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Já não se trata de saber o que os mitos dizem, mas de compreender como eles dizem,
mesmo que, aprendidos nesse nível digam cada vez menos. Esperar-se-á, então da
É por meio dessa busca por operações estruturais fundamentais que agem 'à revelia
dos homens' que podemos compreender o porquê das similaridades de mitos em
sociedades afastadas entre si. O espírito é um ente estruturante. É característico da
experiência humana a criação de sistemas operantes por meio de correlações e
oposições. Em História de Lince (1993), após uma extensa análise dos mitos
envolvendo gêmeos na mitologia ameríndia, Lévi-Strauss retira desses uma constante
conflituosa: tais mitos representam um dualismo instável – os gêmeos aparecem
apenas como formalidade, pois, efetivamente, são diferentes. O autor observa que a
gemelaridade dos mitos ameríndios, por via de regra, representados por características
antagônicas dos gêmeos entre si representam um trabalho implícito de todo sistema. É
por meio das contradições geradas por desequilíbrios que o espírito se põe a trabalhar.
O que tais mitos proclamam implicitamente é que os polos entre os quais se organizam
os fenômenos naturais e a vida em sociedade — céu e terra, fogo e água, alto e baixo,
perto e longe, índios e não-índios, conterrâneos e estrangeiros etc. — nunca poderão
ser gêmeos. O espírito se empenha em juntá-los em pares, sem conseguir estabelecer
uma paridade entre eles. Pois são essas distâncias diferenciais em série, tais como
concebidas pelo pensamento mítico, que colocam em movimento a máquina do
universo. (LÉVI-STRAUSS, 1993 pp. 65-66).
Sobre esse aspecto, cabe ressaltar que em uma nota de rodapé desta mesma obra
(História de Lince, 1993), é possível conceber os processos de interação cultural
decorrentes do contato entre diferentes povos. No caso dos colonizadores cristãos, ao
terem contato com traços culturais dos indígenas, como sacrifícios, por exemplo, os
primeiros não tardaram em atribuir a tais atividades um caráter demoníaco, ou seja,
assentados sob preceitos bíblicos, os brancos só poderiam conceber o novo com base
em categorias já consolidadas dentro de suas estruturas. Similarmente, entre os
indígenas, sucedeu-se a mesma operação. Os Shuswap, por exemplo, definiam os
católicos como descendentes de Coiote – figura marcada, comumente, entre os
indígenas norte-americanos, por seu caráter enganador e causador de males, além de
seu antagonismo com Lince. Desse encontro, Lévi-Strauss aponta que "duas culturas
confrontadas não contestavam os poderes que cada uma delas se atribuía. Sem pôr
em dúvida seu caráter sobrenatural, cada um elaborava uma imagem dos poderes do
outro que lhe permitia integrá-los em seu próprio sistema” (LÉVI-STRAUSS, 1993 p.
199).
Um outro exemplo pode ser esclarecedor: os Sateré-Mawé, por meio do contato com
os colonizadores, incorporaram o mito cristão de Adão e Eva a seu sistema. Em vez do
mito ter sido transposto mecanicamente, como se representasse apenas uma invasão
de outra cultura sobre a deles, os Sateré-Mawé utilizaram o mito a partir de seus
próprios preceitos (VIDAL, 1993). Com isso, na versão indígena, Eva possui um irmão,
pois tal elaboração foi condizente com a estrutura de parentesco desse povo que
operava em um sistema de avunculado. Assim, ao incorporarem um fragmento
mitológico cristão, os Sateré-Mawé o utilizaram para pensar seu próprio sistema.
É por meio desse princípio desequilibrado dos pares que se contrapõem, dessa
assimetria que serve de motor para os sistemas, que, com facilidade, a existência de
não-indígenas pôde ser pensada nos termos indígenas, pois a “a criação dos índios
pelo demiurgo tornava automaticamente necessário que ele tivesse criado também os
não-índios” (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 200).
Referências bibliográficas:
LÉVI-STRAUSS, Claude. História de Lince. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1993.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. São Paulo: Cosac & Naify, 2008.
VIDAL.