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Análise estrutural dos mitos: a

igualdade em meio às diferenças


Por: Mênade Anastácio Eduardo
A análise estrutural dos mitos proposta por Claude Lévi-Strauss pode ser uma
ferramenta útil para compreender o que faz com que diversas culturas ao redor do
mundo apresentem similaridades entre estas narrativas. Os mitos se pensam entre si
mesmos; eles sempre transitam entre as sociedades, variando-se múltiplas vezes em
diferentes versões. Apesar de servirem como ferramentas de diferentes povos para
conceber a vida e a realidade, eles nunca se restringem exclusivamente a nenhum
povo pelo qual passam.

Em sua tetralogia intitulada “Mythologiques”, o autor buscou analisar o maior número


de mitos possíveis, assumindo que um dos fatores centrais da pesquisa consiste em
estabelecer que “cada detalhe, por mais insignificante que seja, preenche uma função”
(LÉVI-STRAUSS, 1993 p. 62). Apesar da importância dos pequenos detalhes, dos
termos dos mitos, o enfoque analítico não se dá apenas na observação dos nesses
[termos] por si só: é necessário olhar para o sistema no qual esses termos estão
operando, desempenhando funções relacionais em suas estruturas. Nesse sentido, a
análise estrutural dos mitos se diferencia de teorias que buscam atribuir significados
precisos aos mitos como, por exemplo, a teoria dos arquétipos desenvolvida por Carl

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Jung; essa maneira de se fazer análise mitológica recai sob os mesmos paradigmas
em que a linguística se encontrava em seu momento pré-científico quando buscava
compreender a linguagem, por meio de significados internos entre sentidos e sons.
Assim era a visão dominante sobre o tema que, porém,  foi superada por Ferdinand de
Saussure quando propôs que a função significativa da linguagem não se dá a partir de
características intrínsecas aos sons, mas sim a partir da maneira como eles
estabelecem relações entre si (LÉVI-STRAUSS, 2008).
Dessa maneira, “se os mitos possuem um sentido, este não pode decorrer dos
elementos isolados que entram em sua composição, mas na maneira como esses
elementos estão combinados” (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 226).
Porém, apesar de estar inscrito na linguagem, o mito está, também, para além dela. A
linguagem, segundo Saussure, se caracteriza por possuir dois tempos: um reversível
relativo à língua e outro irreversível que diz respeito à fala. Quando olhamos para os
mitos nota-se sua singularidade: ele está inserido tanto na fala quanto na língua, porém
se assenta em um outro terceiro nível comportando em si tanto o caráter síncrono e
diacrônico, explicado pois uma das chaves do funcionamento do mito é uma abertura
para diferentes regimes temporais. O mito é característico por sua alusão ao passado,
a um momento fundante. Porém, “[...] o valor intrínseco atribuído ao mito provém do
fato de os eventos que se supõe ocorrer num momento do tempo também formarem
uma estrutura permanente que se refere simultaneamente ao passado, ao presente e
ao futuro”  (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 224). Com isso, Lévi-Strauss define o mito
enquanto uma linguagem que opera em um nível superior de seu fundamento
linguístico. Ao atribuir uma “relativa autonomia” aos mitos, o autor define que a
substância mítica não se deve ao seu estilo ou modo narrativo, mas às suas histórias.
Orientando-se, portanto, pelo interesse nos feixes de relações entre as histórias,
buscando comportar o maior número possível de detalhes e assentando a base das
pesquisas em trabalhos etnográficos, Lévi-Strauss busca extrair dos diferentes mitos e
seus termos, as operações lógicas mais fundamentais do espírito como se buscasse
estabelecer, no caos, a ordem. Nessa dupla chave entre os fatos etnográficos e
possíveis inferências sobre operações lógicas universais, a análise estrutural age
comparando o máximo de mitos possíveis mesmo que com isso apareçam mais suas
formas do que em suas particularidades.

Já não se trata de saber o que os mitos dizem, mas de compreender como eles dizem,
mesmo que, aprendidos nesse nível digam cada vez menos. Esperar-se-á, então da

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análise estrutural que esclareça o funcionamento – em estado puro, por assim dizer –
de um espírito que, emitindo um discurso vazio e porque nada mais tem a oferecer,
desvenda e revela o mecanismo de suas operações (LÉVI-STRAUSS, 1993 p. 175).
A transformação é um fator essencial na análise dos mitos. Isso significa, como dito
anteriormente, que não deve haver privilégio sobre nenhuma versão específica deles. É
necessário avaliar todas as versões do mito para, a partir dessas variações, extrair o
que há de comum entre elas buscando constantes estruturais. Dessa maneira, destitui-
se a preponderância de um sujeito na criação e transmissão dos mitos, Lévi-Strauss
não pretende “mostrar como os homens pensam nos mitos, mas como os mitos se
pensam nos homens, e à sua revelia” (LÉVI-STRAUSS, 2020, p. 2020).

É por meio dessa busca por operações estruturais fundamentais que agem 'à revelia
dos homens' que podemos compreender o porquê das similaridades de mitos em
sociedades afastadas entre si. O espírito é um ente estruturante. É característico da
experiência humana a criação de sistemas operantes por meio de correlações e
oposições. Em História de Lince (1993), após uma extensa análise dos mitos
envolvendo gêmeos na mitologia ameríndia, Lévi-Strauss retira desses uma constante
conflituosa: tais mitos representam um dualismo instável – os gêmeos aparecem
apenas como formalidade, pois, efetivamente, são diferentes. O autor observa que a
gemelaridade dos mitos ameríndios, por via de regra, representados por características
antagônicas dos gêmeos entre si representam um trabalho implícito de todo sistema. É
por meio das contradições geradas por desequilíbrios que o espírito se põe a trabalhar.

O que tais mitos proclamam implicitamente é que os polos entre os quais se organizam
os fenômenos naturais e a vida em sociedade — céu e terra, fogo e água, alto e baixo,
perto e longe, índios e não-índios, conterrâneos e estrangeiros etc. — nunca poderão
ser gêmeos. O espírito se empenha em juntá-los em pares, sem conseguir estabelecer
uma paridade entre eles. Pois são essas distâncias diferenciais em série, tais como
concebidas pelo pensamento mítico, que colocam em movimento a máquina do
universo. (LÉVI-STRAUSS, 1993 pp. 65-66).

A partir dessa noção, as similaridades da incorporação dos brancos em diferentes


sociedades indígenas pode se desnudar em suas engrenagens mais básicas. A relação
entre povos não opera puramente por empréstimos culturais, os indígenas que tiveram
contato com os brancos não tinham uma cultura estanque e passiva. A cultura não se
trata de um inventário estável, ela está em constante mudança, pois as operações
lógicas humanas implicam sempre na atividade de elaboração de respostas para novos

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problemas. Com isso, itens exógenos à uma cultura não a invadem com suas
características puras obstruindo uma suposta originalidade cultural, mas são
reelaborados em um funcionamento estrutural na cultura que o recebe.

Sobre esse aspecto, cabe ressaltar que em uma nota de rodapé desta mesma obra
(História de Lince, 1993), é possível conceber os processos de interação cultural
decorrentes do contato entre diferentes povos. No caso dos colonizadores cristãos, ao
terem contato com traços culturais dos indígenas, como sacrifícios, por exemplo, os
primeiros não tardaram em atribuir a tais atividades um caráter demoníaco, ou seja,
assentados sob preceitos bíblicos, os brancos só poderiam conceber o novo com base
em categorias já consolidadas dentro de suas estruturas. Similarmente, entre os
indígenas, sucedeu-se a mesma operação. Os Shuswap, por exemplo, definiam os
católicos como descendentes de Coiote – figura marcada, comumente, entre os
indígenas norte-americanos, por seu caráter enganador e causador de males, além  de
seu antagonismo com Lince. Desse encontro, Lévi-Strauss aponta que "duas culturas
confrontadas não contestavam os poderes que cada uma delas se atribuía. Sem pôr
em dúvida seu caráter sobrenatural, cada um elaborava uma imagem dos poderes do
outro que lhe permitia integrá-los em seu próprio sistema” (LÉVI-STRAUSS, 1993 p.
199).

Um outro exemplo pode ser esclarecedor: os Sateré-Mawé, por meio do contato com
os colonizadores, incorporaram o mito cristão de Adão e Eva a seu sistema. Em vez do
mito ter sido transposto mecanicamente, como se representasse apenas uma invasão
de outra cultura sobre a deles, os Sateré-Mawé utilizaram o mito a partir de seus
próprios preceitos (VIDAL, 1993). Com isso, na versão indígena, Eva possui um irmão,
pois tal elaboração foi condizente com a estrutura de parentesco desse povo que
operava em um sistema de avunculado. Assim, ao incorporarem um fragmento
mitológico cristão, os Sateré-Mawé o utilizaram para pensar seu próprio sistema.

Em suma, a facilidade da integração de brancos nas mitologias indígenas e as


similaridades entre as elaborações, mesmo que em tribos afastadas se devem, em boa
medida, à existência de operações lógicas pautadas em dicotomias.

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Idealmente gêmeas em cada etapa, as partes se revelam sempre desiguais. Ora,
nenhum desequilíbrio podia parecer mais profundo aos índios do que aquele entre eles
e os brancos. Mas eles dispunham de um modelo dicotômico que permitia transpor em
bloco essa oposição e suas sequelas para um sistema de pensamento no qual seu
lugar estava, de certo modo, reservado. De modo que, assim que era introduzida, a
oposição se punha a funcionar. (LÉVI-STRAUSS, 1993, pp. 66).

É por meio desse princípio desequilibrado dos pares que se contrapõem, dessa
assimetria que serve de motor para os sistemas, que, com facilidade, a existência de
não-indígenas pôde ser pensada nos termos indígenas, pois a “a criação dos índios
pelo demiurgo tornava automaticamente necessário que ele tivesse criado também os
não-índios” (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 200).

Referências bibliográficas:

LÉVI-STRAUSS, Claude. História de Lince. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1993.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. São Paulo: Cosac & Naify, 2008.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido: Mitológicas I. São Paulo, Companhia das


Letras, 2020.

VIDAL.

O irmão de Eva. Povos Indígenas no Brasil, 1993. Disponível em: <


https://pib.socioambiental.org/pt/O_irm%C3%A3o_de_Eva>. Acesso em: 25 jul. 2022.

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