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Biopoder e Sexualidade

Ildenilson Meireles

Uma das novidades da análise foucaultiana do biopoder é a inserção nesse campo de

análise do tema da sexualidade. A sexualidade como dispositivo do biopoder e como

objeto de investimento político. Para Foucault, as razões especiais para que a

sexualidade se tornasse um campo de estratégia política importante no século XIX

foram, “de um lado, a sexualidade enquanto comportamento exatamente corporal que

depende de um controle disciplinar, individualizante, em forma de vigilância

permanente” (o controle e a vigilância da masturbação exercidos sobre as crianças no

meio das instituições). Por outro lado, “a sexualidade se insere e adquire efeito, por seus

efeitos procriadores, em processos biológicos amplos que concernem não mais ao do

indivíduo, mas a esse elemento, a essa unidade múltipla constituída pela população”.

Em suma, diz o filósofo, “a sexualidade está exatamente na encruzilhada do corpo e da

população. Portanto, ela depende da disciplina, na medida em que é preciso controlar e

vigiar as práticas sexuais condenáveis (masturbação, incesto, perversões etc.), mas

depende também da regulamentação” no sentido de multiplicar o significado das regras

de conduta sexual à população, isto é, universalizar o comportamento sexual por meio

da “norma”. O aparecimento da sexualidade como objeto de interesse está orientado

primeiramente pelo discurso médico. Aqui ele cumpre dois movimentos importantes

que caracterizam a vigilância/controle e o biopoder, ou seja, ao mesmo tempo em que

considera que a sexualidade desregrada, irregular e indisciplinada desempenha um

efeito sobre o corpo indisciplinado, portanto individualizado, e que, por isso, esse corpo

é “imediatamente punido por todas as doenças individuais que o devasso sexual atrai
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sobre si”, considera também, por outro lado, que “uma sexualidade devassa, pervertida,

etc., tem efeitos no plano da população, uma vez que se supõe que aquele que foi

devasso sexualmente tem uma hereditariedade, uma descendência que, ela também, vai

ser perturbada e isso durante gerações e gerações, na sétima geração, na sétima da

sétima”. Esses dois efeitos provocados pela sexualidade indisciplinada podem ser

considerados, um, como efeito psicológico; outro, como efeito propriamente biopolítico.

No primeiro caso, a tentativa é atribuir uma espécie de castigo físico ou moral àquele

que não tem controle sobre a sexualidade porque não tem controle sobre o seu próprio

corpo (falta de disciplina). No segundo caso, a sexualidade desregrada, na medida em

que pode acarretar a disseminação de doenças através de gerações, se torna, por isso,

objeto de investimento biopolítico uma vez que é preciso “defender a sociedade”, a

população, contra os males trazidos pelos casos de exceção (o devasso, o louco, o

homossexual, o pervertido). Daqui se retira a ideia de sociedade normalizadora ou a

ideia do individuo “normal” em contraposição ao “anormal”. O mais importante dessa

análise da sexualidade em termos de biopoder é o fato de a preocupação médica sobre a

sexualidade forjar a teoria da degenerescência: “fundamentada no principio da

transmissibilidade da tara chamada ‘hereditária’, foi o núcleo do saber médico sobre a

loucura e a anormalidade na segunda metade do século XIX”. O arremate de Foucault é

este: “a sexualidade, a medida que está no foco de doenças individuais e uma vez que

está, por outro lado, no núcleo da degenerescência, representa exatamente esse ponto de

articulação do disciplinar e do regulamentador, do corpo e da população”. Ponto de

articulação porque o biopoder não exclui a disciplina (ainda somos vigiados e vigiamos

nossas práticas sexuais, além de buscarmos técnicas de correção [aconselhamento

psicológico, confissão, análise, terapia ocupacional, mutilação de membros, suicídio]),

mas faz com que ela adquira um novo sentido do ponto de vista da massa, do controle
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da população. Todo esse investimento de poder sobre a sexualidade tem como pano de

fundo, segundo Foucault, “uma técnica política de intervenção, com efeitos de poder

próprios”, característica do saber médico. Não se trata simplesmente de um saber, mas

de um saber-poder, de uma técnica política de intervenção social e não somente mais

individual: “a medicina é um saber-poder que incide ao mesmo tempo sobre o corpo e

sobre a população, sobre o organismo e sobre os processos biológicos e que vai,

portanto, ter efeitos disciplinares (sobre o corpo individualizado) e efeitos

regulamentadores (sobre o corpo social, a população)”.

II

A sociedade normalizadora

No nível da população temos um tipo de sociedade que é comumente chamada de

“sociedade normalizadora” ou “sociedade de normalização”. Foucault considera que a

“norma”, diferente da lei, é esse “elemento que circular entre o disciplinar e o

regulamentador, que vai se aplicar, da mesma forma ao corpo e à população, que

permite a um só tempo controlar a ordem disciplinar do corpo e os acontecimentos

aleatórios de uma multiplicidade biológica”. Portanto, a norma tem um sentido duplo: se

aplica ao corpo para domesticá-lo, adestrá-lo, imprimir-lhe uma certa disciplina e

corrigi-lo; e também à população para controlá-la politicamente, uniformizá-la segundo

preceitos comuns, homogeneizá-la segundo princípios identitários, proteger os

“normais” dos anormais, fazer viver os normais e deixar morrer os anormais. Ela, “a

sociedade de normalização”, diz Foucault, “é uma sociedade em que se cruzam,

conforme uma articulação ortogonal, a norma da disciplina e a norma da

regulamentação”. Aqui residem alguns paradoxos analisados por Foucault, mas que

retomaremos posteriormente. De qualquer forma, o grande paradoxo do biopoder está


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no fato de que o biopoder, se é diferente da forma de poder soberano, não o é no

conteúdo. Ao contrário, o biopoder é uma extrapolação do “poder de matar”, “um poder

de soberania que mata mas, igualmente, de um poder que é o de matar a própria vida”.

Este é o paradoxo gritante. Quanto mais o biopoder investe seus mecanismos e suas

estratégias no aumento das condições objetivas de vida, mais a vida se perde na

dinâmica do biopoder e cada vez mais ela escapa ao recrudescimento biopolítico. Por

fim, Foucault oferece duas alternativas a partir das quais se pode pensar o paradoxo, a

encruzilhada do biopoder: por um lado, o poder, “ou ele é soberano, e utiliza a bomba

atômica, mas por isso não pode ser poder, biopoder, poder de assegurar a vida, como ele

o é desde o século XIX”, o poder atômico se configura aí como uma espécie de má

economia do poder por correr o risco da auto-supressão; “ou, noutro limite, vocês tem o

excesso, ao contrário, não mais do direito soberano sobre o biopoder, mas o excesso do

biopoder sobre o direito soberano”. É justamente esse excesso de biopoder que nos

remete à proposição com a qual começamos a discussão: fazer viver e deixar morrer. O

biopoder não pode resistir ao excesso e ao paradoxo. Não se pode fazer viver

excessivamente sem, ao mesmo tempo, deixar morrer incessantemente.

III

O racismo de estado

À pergunta feita por Foucault, “como esse poder que tem essencialmente o objetivo de

fazer viver pode deixar morrer?”, pode ser respondida à luz da noção de “racismo de

estado” desenvolvido aqui e alhures. Foucault radicaliza sua interpretação acerca do

biopoder na medida em que considera que sua emergência trouxe à tona, para dentro

dos mecanismos de Estado, um modo peculiar de racismo. Assim, quase todo o modus

operandi dos Estados modernos passa, em última instância, pelo problema do racismo.
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Antes de prosseguir, precisamos nos acercar da definição dada por Foucault: “Com

efeito, o que é o racismo? É, primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse domínio da

vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve

morrer. (...) uma maneira de afastar, o interior da população, uns grupos em relação a

outros (...). (...) Essa é a primeira função do racismo: fragmentar, fazer cesuras no

interior desse contínuo biológico a que se dirige o biopoder”. O segundo aspecto que

define o racismo segundo a lógica do biopoder é aterrador e se refere à proposição

inicial que motiva nossa discussão aqui: “o racismo terá sua segunda função: terá como

papel permitir uma relação positiva, se vocês quiserem, do tipo: ‘quanto mais você

matar, mais você fará morrer’, ou ‘quanto mais você deixar morrer, mais, por isso

mesmo, você viverá”. O pano de fundo dessa discussão acerca do racismo de Estado é a

guerra, a relação guerreira entre os oponentes. Mas não nos enganemos! Essa relação

entre fazer viver e deixar morrer, esse acirramento da violência entre as raças não é uma

invenção do racismo nem do estado moderno. Trata-se, ao contrário, de um tipo de

relação cujo dístico é a guerra e que “o racismo faz justamente funcionar, faz atuar essa

relação de tipo guerreiro de uma maneira que é inteiramente nova e que, precisamente, é

compatível com o exercício do biopoder”. Por exemplo, um tipo de guerra biológica

instaurada para eliminar um inimigo (um estado, uma população, uma cidade, um país,

uma raça considerada inferior ou impura), ou uma guerra atômica para dizimar um

inimigo em função de interesses econômico-políticos (USA x Oriente médio), ou no

nosso caso, uma guerra de raças que encontra na intolerância bairrista sua maior

motivação e no falso ecumenismo seu camuflamento (paulistas x nordestinos; sulistas x

resto do país; cristianismo e religiões de origem africana etc.). A ideia de uma

justificativa razoável para o racismo de estado encontra eco no fato de que, segundo

Foucault, “tirar a vida, o imperativo da morte, só é admissível, no sistema do biopoder,


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se tende não à vitória sobre os adversários políticos, mas à eliminação do perigo

biológico e ao fortalecimento, diretamente ligado a essa eliminação, da própria espécie

ou da raça”. É esse reforçamento do biopoder pela ótica do racismo que parece sustentar

uma guerra entre estados e parece assegurar o “direito” de um estado intervir

diretamente numa política de estado que lhe parece uma ameaça. Mas aqui novamente

não podemos nos enganar. O racismo é aquilo que assegura a função assasina do

Estado. “A raça, o racismo, é a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa

sociedade de normalização”. Veja que ainda estamos no registro da sociedade de

normalização. O racismo de estado, no modo como aparece no século XIX, é uma

espécie de fruto maduro do processo de normalização perpetrado pelo biopoder:

normais/anormais; racionais/loucos; morais/devassos; cidadãos/perigosos;

sociedade/individuo; raças (no sentido biológico) superiores/raças (no sentido

biológico) inferiores. Este último sentido do racismo, o biológico, caracteriza bem a

transformação operada pelo biopoder quando toma o racismo como princípio das

relações de poder nas sociedades atuais. Uma relação, portanto, “não militar, guerreira

ou política”, essencialmente, “mas biológica”, por onde o poder de estado faz vazar suas

lutas políticas contra o inimigo. O tema do racismo arregimentado pelo biopoder

apresenta um inconveniente importante de ser considerado. Trata-se de outro paradoxo.

Não basta somente “travar a guerra contra os adversários, mas também expor os

próprios cidadãos à guerra, fazer que sejam mortos aos milhões”, incitando cada vez

mais a uma guerra interna que tende também, cada vez mais a suprimir a população,

deixar morrer os indivíduos, abandoná-los à sorte em nome de uma raça biológica

idealizada como pura ou melhor. Nestes termos, não se pode pensar em

“evolucionismo” sem pensar a eliminação do perigo iminente da degenerescência. Por

isso, nos termos de Foucault, “na guerra, vai se tratar de duas coisas, daí por diante (no
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biopoder): destruir não simplesmente o adversário político, mas a raça adversa, essa

[espécie] de perigo biológico representado, para a raça que somos, pelos que estão à

nossa frente. (...) No entanto, mais ainda, a guerra – e isto é absolutamente novo – vai se

mostrar, no final do século XIX, como uma maneira não simplesmente de fortalecer a

própria raça eliminando a raça adversa, mas igualmente de regenerar a própria raça.

Quanto mais numerosos forem os que morrerem entre nós, mais pura será a raça a que

pertencemos”. Ou seja, sob a óptica do racismo, o biopoder se estrangula no seu próprio

mecanismo. E é justamente disso que se trata no biopoder: de técnicas de poder efetivas,

de tecnologias de poder que instauram em todo o corpo social a morte iminente, a

insegurança, o medo, o desespero, a miséria. Do mesmo modo, diz Foucault, “a

especificidade do racismo, o que faz sua especificidade, não está ligado a mentalidades,

a ideologias, a mentiras do poder. Está ligado à técnica do poder, à tecnologia do poder”

que faz o biopoder funcionar. Por fim, e portanto, “o racismo é ligado ao funcionamento

de um Estado que é obrigado a utilizar a raça, a eliminação das raças e a purificação da

raça para exercer seu poder soberano”. Um exemplo claro desse paradoxo constitutivo

do racismo de Estado é o Nazismo, que Foucault considera um caso paradigmático de

exercício do poder disciplinar e do biopoder: “não há sociedade a um só tempo mais

disciplinar e mais previdenciária do que a que foi implantada, ou em todo caso

projetada, pelos nazistas. O controle das eventualidades próprias dos processos

biológicos era um dos objetivos imediatos do regime. Mas, ao mesmo tempo que se

tinha essa sociedade universalmente previdenciária, universalmente seguradora,

universalmente regulamentadora e disciplinar, através dessa sociedade,

desencadeamento mais completo do pode assassino, ou seja, do velho poder soberano de

matar”. Com isso, o estado nazista apresenta uma tripla condição: estado absolutamente

racista, absolutamente assassino e absolutamente suicida. O arremate do texto de


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Foucault se dirige ao tema do racismo no Estado socialista. Para ele, “o Estado

socialista, o socialismo, é tão marcado de racismo quanto o fundamento do Estado

moderno, do Estado capitalista”. À diferença do estado capitalista, o socialismo não

conseguiu prolongar seu paradoxo e dar uma sobrevida aos seus ideais. No geral, o tema

do biopoder “não só não foi criticado pelo socialismo, mas também, de fato, foi

retomado por ele, desenvolvido, reimplantado, modificado em certos pontos, mas de

modo algum reexaminado em suas bases e em seus modos de funcionamento”. Nele, a

mesma preocupação impera: a excessiva normalização que culmina num racismo “de

tipo evolucionista, o racismo biológico”, que se pode encontrar “a propósito dos doentes

mentais, dos criminosos, dos adversários políticos, etc.”. No socialismo, o racismo

aparece como segundo plano, como modo de permanecer “em luta” contra os

adversários. E é justamente esse tema da luta que persiste no socialismo, sua

manutenção pela intimidação e pela violência, por vezes, que o obriga a trazer à tona os

mecanismos do biopoder e a conviver com o seguinte paradoxo: “em todos os

momentos em que o socialismo foi obrigado a insistir no problema da luta, da luta

contra o inimigo, da eliminação do adversário no próprio interior da sociedade

capitalista; quando se tratou, por conseguinte, e pensar o enfrentamento físico com o

adversário de classe na sociedade capitalista, o racismo ressurgiu, porque foi a única

maneira, para um pensamento socialista que apesar de tudo era muito ligado aos temas

do biopoder, de pensar a razão de matar o adversário”.


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História da Sexualidade I – A vontade de saber

Direito de Morte e Poder sobre a vida:

O quinto capítulo do volume I de História da Sexualidade, “direito de morte e poder

sobre a vida”, apresenta já no título uma curiosa orientação teórica. Ao invés de falar

agora de “fazer viver e deixar morrer”, lembrem-se que é justamente a compreensão

desse enunciado que estamos perseguindo, Foucault fala de “direito” de morte e de

“poder” sobre a vida. Isso significa inicialmente um prolongamento da discussão, mas

também um aprofundamento da dinâmica do biopoder na medida em que seus efeitos

começam a delinear um arraigamento da sociedade de normalização e tudo se passa

como se cada vez mais esses efeitos do biopoder fossem se justificando “naturalmente”

ou alcançando cada vez mais o “direito” de se repetirem. Essa noção do “direito” que

instala no biopoder é bastante diferente do “direito” que constitui a sociedade de

soberania, em vários aspectos. Para Foucault, “o direito de vida e morte, com é

formulado nos teóricos clássicos, é uma fórmula bem atenuada desse poder (o poder

patriarcal sobre a vida e morte dos filhos). Entre soberano e súditos, já não se admite

que seja exercido em termos absolutos e de modo incondicional, mas apenas nos casos

em que o soberano se encontre exposto em sua própria existência: uma espécie de

direito de réplica” (pg. 127). Trata-se de um direito de matar em resposta a uma

desobediência do poder soberano ou não cumprimento da lei. Nesse caso, o “direito” do

soberano de castigar um súdito se justifica por ser uma réplica, uma resposta a um ato

isolado que pode, no entanto, comprometer o seu poder e desarticular o corpo social. É

nesse sentido ainda que “o direito de vida e morte já não é um privilégio absoluto: é

condicionado à defesa do soberano e à sua sobrevivência enquanto tal”. É preciso ficar

atento à sutileza na mudança do enunciado quando se tratar do biopoder. Vejamos se é

possível agora chegarmos a uma compreensão mais substancial dos enunciados os dois
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planos. No caso do poder soberano, o sentido da expressão “fazer morrer e deixar viver”

está no fato de que “o soberano só exerce, no caso, seu direito sobre a vida, exercendo

seu direito de matar ou contendo-o; só marca seu poder sobre a vida pela morte que tem

condições de exigir. O direito que é formulado com “de vida e morte” é, de fato, o

direito de causar a morte ou de deixar viver”. Causar a morte é prerrogativa do

soberano e de nenhum outro indivíduo. Daí a estranheza em relação ao suicídio,

momento em que esse poder de matar escapa ao soberano e que, por isso, é colocado na

lista de crimes. No caso do biopoder, a fórmula se inverte radicalmente: ao invés de

“fazer morrer”, “fazer viver”; ao invés de “deixar viver”, “deixar morrer”. Para

Foucault, “pode-se dizer que o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi

substituído por um poder de causar a vida ou devolver à morte”. Enfim, “a velha

potencia da morte em que se simbolizava o poder soberano é agora, cuidadosamente,

recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida”. Tomando essa

última caracterização do biopoder como instância administrativa das condições gerais

da vida, entremos de fato no plano da sexualidade. Nos dois sentidos para os quais o

biopoder está orientado pode-se colocar o tema da sexualidade. Um, o do corpo

individual e de sua disciplinarização; outro, o do corpo social e de sua regulamentação.

Trata-se aí de tomar o sexo e a sexualidade como objeto de investimento político sobre

o qual é preciso, além de inscrevê-lo num campo de saber específico, aplicar uma certa

tecnologia política. Inserido nesses dois planos, o sexo “dá lugar a vigilâncias

infinitesimais, a controles constantes, a ordenações espaciais de estrema meticulosidade,

a exames médicos ou psicológicos infinitos, a todo um micropoder sobre o corpo; mas,

também dá margem a medidas maciças, a estimativas estatísticas, a intervenções que

visam todo o corpo social ou grupos tomados globalmente”. Um bom exemplo dessa

intervenção do biopoder sobre o sexo pode ser indicado como sendo, por exemplo, o
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registro das epistemes modernas do século XIX, especificamente o das ciências

humanas. Nesse registro é possível ver em que medida os avanços do capitalismo se

coadunaram com o avanço das ciências e de que modo o “homem” passou a ocupar

lugar de destaque no cenário do biopoder. E é justamente a burguesia que primeiro se

favorece dos efeitos da Scientia Sexualis moderna. Diz Foucault: “foi na família

burguesa, ou aristocrática, que se problematizou inicialmente a sexualidade das crianças

ou dos adolescentes; e nela foi medicalizada a sexualidade feminina; ela foi alertada em

primeiro lugar para a patologia possível do sexo, a urgência em vigiá-lo e a necessidade

de inventar uma tecnologia racional de correção. Foi ela o primeiro lugar de

psiquiatrização do sexo. Foi quem entrou, antes de todas, em eretismo sexual, dando-se

a medos, inventando receitas, pedindo o socorro das técnicas científicas, suscitando,

para repeti-los para si mesma, discursos inumeráveis”. Além das preocupações com a

força de trabalho, com a saúde e higiene, com o meio ambiente, com a organização

familiar, com as condições objetivas de vida da população, tratou-se de fazer aí um

recorte importante: a preocupação com o sexo. “a burguesia começou considerando que

o seu próprio sexo era coisa importante, frágil tesouro, segredo de conhecimento

indispensável”. A primeira implicação biopolítica disso está no fato de o sexo estar

ligado diretamente às questões da procriação (taxa de natalidade), do sangue (o

problemas das raças), das doenças (problema da degenerescência). Uma segunda

implicação diz respeito ao modo como o biopoder investe “toda uma série de táticas

diversas que combinam, em proporções variadas, o objetivo da disciplina do corpo e o

da regulação das populações”, ou seja, o modo como o biopoder articula de modo

bastante eficiente os dois pólos dessa tecnologia do sexo: o indivíduo e a população, a

disciplina e a regulamentação. Do ponto de vista da disciplina, é preciso se lembrar do

controle da natalidade: apesar de a intervenção aí ser de natureza reguladora, era preciso


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que se apoiasse “na exigência de disciplinas e adestramento individuais”. É o mesmo

que se passa com a psiquiatrização das perversões na medida em que as mesmas

precisam entrar no domínio de um rígido procedimento disciplinar (controle do instinto,

negação da vontade, abstenção sexual, ocupação do tempo pelo trabalho) e de uma

profunda normalização (vigilância constante, correções contínuas, tratamento médico,

reeducação dos hábitos etc.). O que se passa propriamente com a regulamentação tem

um alcance ainda mais significativo em relação à população. Sexualização das crianças

e histerização das mulheres são dois aspectos que tiveram na regulação seu ponto de

sustentação. A primeira “foi feita sob a forma de uma campanha pela saúde da raça”; a

segunda, “fez-se em nome da responsabilidade que elas teriam no que diz respeito à

saúde de seus filhos, à solidez da instituição familiar e à salvação da sociedade”. O que

importa notar aqui é que Foucault insiste na ideia de que “é o dispositivo da sexualidade

que, em suas diferentes estratégias, instaura essa ideia “do sexo””. A partir do

engendramento de uma teoria geral do sexo se conseguiu incrementar algumas funções

no dispositivo da sexualidade que a tornaram, com isso, indispensável na dinâmica do

biopoder. Primeiro, diz Foucault, “a noção de ‘sexo’ permitiu agrupar, de acordo com

uma unidade artificial, elementos anatômicos, funções biológicas, condutas, sensações e

prazeres e permitiu fazer funcionar esta unidade fictícia como principio causal, sentido

onipresente, segredo a descobrir em toda parte: o sexo pôde, portanto, funcionar como

significante único e como significado universal”. Isto significa dizer que o XIX

conheceu e experimentou, pela primeira vez, “a armação de uma teoria geral do sexo” e

nela concentrou todos os seus esforços em torná-lo o lugar da verdade. Segundo,

“apresentando-se unitariamente como anatomia e falha, como função e latência, como

instinto e sentido, pôde marcar a linha de contato entre um saber sobre a sexualidade

humana e as ciências biológicas de reprodução”. Essa vizinhança de saberes distintos


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em torno do sexo parece ser responsável pela “garantia de quase cientificidade” sobre a

sexualidade humana. Em terceiro lugar, “permitiu inverter a representação das relações

entre o poder e a sexualidade, fazendo-a aparecer não na sua relação essencial e positiva

com o poder, porém como ancorada em uma instância específica e irredutível que o

poder tenta da melhor maneira sujeitar”. O jogo de inversões aqui tem um caráter

irônico na medida em que nos faz retomar um velho problema e transformá-lo num

“dispositivo” fundamental para o modo de sociedade em que vivemos, a do biopoder.

Não se trata de uma regularidade causal sexo/sexualidade, mas de uma articulação do

dispositivo da sexualidade, portanto de uma invenção, de uma produção de

subjetividade, com esse “elemento mais especulativo, mais ideal e igualmente mais

interior” que é o sexo. Produção de subjetividade porque o dispositivo da sexualidade é

aquilo “que o poder organiza em suas captações dos corpos, de sua materialidade, de

suas forças, suas energias, suas sensações, seus prazeres” e eleva ao nível de uma

preocupação essencial do sujeito consigo mesmo. De acordo com Foucault, “com a

criação deste elemento imaginário que é ‘o sexo’, o dispositivo de sexualidade suscitou

um de seus princípios internos de funcionamento mais essenciais: o desejo do sexo –

desejo de tê-lo em discurso, formulá-lo em verdade. Ele constituiu ‘o sexo’ como

desejável”.

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