Você está na página 1de 4

O gênero e a identidade como ferramentas problemáticas para análise social à luz de

“Problemas de gênero”- Judith Butler.

-Mulheres como sujeito do feminismo: Vamos pensar o conceito de gênero como o


pilar das teorias feministas. Melhor, a divisão sexo/gênero constitui o maior fundamento desta
teoria. Ou seja, o sexo como um dado natural e o gênero como atributo das construções
culturais do sexo. Na verdade, pensar as mulheres como sujeito do feminino implica,
necessariamente questionar a dualidade sexo/gênero.
Pensar o desfacelamento conceitual do gênero diz respeito a desmontar uma equação
em que o gênero seria compreendido em um sentido ontológico, substancial, categorias que só
se tornariam inteligíveis dentro da metafísica que também se fez passível de reflexão.
Vejam bem, a ideia aqui é desmontar a dualidade sexo/gênero, fazendo a crítica ao
feminismo como uma categoria que funciona de fato dentro do Humanismo, pensando uma
tradição que se volta para o Homem (Universal) e a condição humana. Ao pensarmos a
desconstrução na perspectiva que propõe Jacques Derrida, os conceitos passariam por uma
espécie de desmontagem ou decomposição de alguns elementos discursivos, a fim de que
possamos compreender quais termos são capazes de interditar certas condutas. Isso não
significa uma destruição completa do termo. É justamente a tentativa de desmontar o
significante, os significados e a unidade do signo, com o intuito de criticar a metafísica e as
próprias filosofias do sujeito.
Nesse sentido, repensar teoricamente a identidade, já que Butler percebe uma
incoerência quando afirma que as mesmas estruturas de poder que reprimem estes sujeitos
são usadas para emancipa-los. Isso acontece uma vez que é requerida certa visibilidade no
campo de atuação político. Assim, a tática escolhida pelos feminismos, durante muito tempo,
foi a representação/ representatividade. Contudo, para ser expandida a representação, as
qualificações do ser sujeito devem ser atendidas. É sabido que as relações de poder, muito
mais do que limitar e proibir, produz. Neste caso, produz sujeitos, que passam a representar. É
assim que Butler dá seu pontapé inicial para a crítica da categoria Mulheres, uma vez que as
estruturas produzem sujeitos com marcas de gênero que são compreendidas como pré-
estabelecidas, nesse sentido que dão significado a um tipo específico de sujeito. Isso porque o
termo mulheres passaria a denotar uma identidade comum, portanto na análise de Butler, algo
problemático. Se alguém “é” algo, certamente isso não se resume unicamente a ser Homem
e/ou Mulher (p.21).
Esse sujeito que o feminismo quer representar, portanto, não existe. Desse modo, essa
reflexão decorre de uma leitura radicalmente contestadora ao debate acadêmico que circulou
por volta dos anos de 1980/1990 e expandiu os horizontes críticos das teóricas feministas.
Uma das estratégias mais interessantes para tentar mapear as problemáticas da constituição
dos sujeitos femininos foi lançar mão da crítica ao modelo binário de organização e leitura da
realidade, a fim de aplicar às construções das diferenças sexo/gênero. (p.22).
A noção binária de F/M é uma estrutura exclusiva para tornar o sentido de M e F
inteligível. Deste modo, os feminismos estariam totalmente descontextualizados de outros
elementos que formariam o sujeito (raça/etnia-classe), elementos também constituintes da
“identidade comum que se almeja” (p.23/24/25). Butler já problematiza as teóricas e
epistemologias feministas e pressiona a reflexão acerca de uma análise
interseccional/entrecruzada.
O conceito de gênero, por sua vez, enquanto um constructo social, distinto de sexo,
pensado e percebido enquanto algo natural, à priori, são a base argumentativa para a defesa
de premissas “desnaturalizadoras”, sob as quais se dava, grosso modo, a associação do
feminino à submissão e fragilidade e que fixou sentidos de modo tão firme que, até hoje, são
evocados para produzir desigualdades. Butler persegue, então, a ideia da descontinuidade
radical entre corpos sexuados e gêneros culturalmente construídos. “Nesse caso, não a
biologia, mas a cultura torna-se o destino”. A fim de contestar características entendidas como
naturalmente femininas, era necessário colocar o sistema “sexo-gênero” em xeque
(p.26/27/28).
Embora as epistemologias feministas considerem que haja esta unidade fictícia na
categoria mulheres, criam paradoxalmente uma cisão no sujeito do feminismo. Desconstruir a
ideia de a noção de gênero vem da ideia de que ele decorra, diretamente, do sexo, na medida
em que esta distinção se torna automática (natural) é o primeiro passo para a crítica de Butler.
É preciso atenção às teorias feministas que não problematizam outro elemento considerado
também como algo natural e coerente: o desejo. Até que ponto é possível estabelecer uma
analogia à crítica de Derrida do caráter arbitrário do signo como falsa unidade e a analítica de
Butler do sistema sexo/gênero? “Talvez o sexo sempre tenha sido gênero, de tal modo que a
distinção entre eles revela-se absolutamente nenhuma”. O indicativo de que o sexo é tão
construído quanto o gênero aproxima Butler da desconstrução proposta por Derrida. Não há
nada em sua explicação que garanta que o ser que se torna mulher seja necessariamente uma
fêmea.
A problemática de se pensar a identidade comum baseada no gênero está na
obliteração da aproximação entre gênero e essência, substância. Aceitar o sexo como um dado
natural e o gênero construído, implica considerar que o gênero representaria um certo tipo de
essência do sujeito. Desse modo, Butler escarafuncha um pouco mais e chega ao nível das
representações ocidentais hegemônicas e da metafísica da substância, que até então
estruturava a própria noção de sujeito. A metafísica, resumidamente, se traduz no próprio
conceito de ontologia, ou seja, vem da lógica aristotélica de que A é =A. Ou seja, o sujeito é
igual ou pelo menos deveria ser igual à sua essência/subjetividade. Portanto, a identidade
significaria a coerência entre sexo-gênero- corpo- desejo. A grande questão é justamente a
tentativa de mapear quando acontece a construção do gênero.
Então o esquema contestado se resume em:
Sexo = sexo. Gênero = atributo essencial de indivíduo.

Ao contrário desse esquema, pensemos então:


Se o gênero fosse inconstante e contextual, não denotando um ser substantivo, “mas
um ponto relativo de convergência entre conjuntos específicos de relações, culturais e
historicamente convergentes”, não seria uma chave de leitura mais interessante? Aqui nós
chegamos em um ponto realmente interessante: A crítica foucaultiana ao sujeito
constituído/fundante, portanto uno. Não se trata de recusar completamente a noção de sujeito,
mas justamente a proposta de pensar o gênero como efeito de relações de poder em vez de
pensar um sujeito de gênero centrado. Ser um “gênero” é um efeito. Isso nos leva à outra
acertiva, de que a identidade e a essência são propriamente expressões da linguagem e não um
sentido em si do sujeito. Como é possível conhecer uma coisa? Determinar sua natureza?
Marcar uma essência? Qual é o interesse de transformar a pura dispersão da vida no tempo em
um conceito unitário?
A essência, por si só, não está sujeita a ideia de movimento. Portanto, pode ser
apropriada/colonizada por outras instâncias. Assim, é possível “conhecer” a natureza de algo.
E então, por quais motivos os indivíduos colocam sua própria existência em risco? Justamente
por que o ser humano acha que é capaz de conhecer as coisas. Assim, os rearranjos múltiplos
dos modos de vida tornam-se uma coisa só, homogênea. O sujeito, por sua vez, pensado nessa
lógica, boicota os próprios modos de existência para ter a sensação de segurança, certo de que
há, racionalmente um desfecho histórico, imaginado teleologicamente. Assim, o terror em
imaginar de que modo vamos nos orientar e nos compreender diante de um percurso em que
essa finalidade da vida humana não existe impregna toda a ideia do sujeito fundante/
constituído.
Pensar é algo muito mais largo do que conhecer, já que o conhecimento não dá conta
dessas condições e possibilidades de vida. A vida, portanto, acaba sendo reduzida a um
conceito por que ela se multiplica. Há tantas formas de pensar e conhecer quanto as formas de
vida. “Há tantos gêneros quanto pessoas.” Se é que ainda é possível falar nisso. O
pensamento, assim como o sujeito, é uma potência, um processo de profunda
desterritorialização. Na medida em que Judith Butler problematiza esse modo de vida
“mulheres”, enxerga a normatização da própria categoria.
Isso por que ao se constituir enquanto um sujeito mulher, se perde toda singularidade.
Por isso as instituições, em seu incessante exercício de poder se impõe no sentido de nomear
sujeitos para identifica-los. Dessa maneira, regulam as práticas sociais e estabelecem os níveis
em que se dão essas relações, em sua maioria, assimétricas, desiguais e excludentes. A tônica
dos movimentos feministas foi também elaborada nessas estruturas da mecânica institucional.
“Se não existe sujeito, a quem vamos emancipar?” A fim de fazer legítima esta
posição fixa como possibilidade de representação política. Afirmar que a política exige um
sujeito estável é afirmar que não pode haver oposição política a essa assertiva. O paradoxo
dessa perspectiva reside justamente na inviabilidade de novas formas de vida e reforço de
subjetividades cativas e identitárias (p.24-25). A unidade é necessária para ação política
efetiva? Depende de para quem isso é útil (p.40-41).
Então, o que é a identidade? O que a constitui como algo idêntico a si e organiza uma
coerência interna? De que modo isso contamina as identidades de gênero?
1- Supor que há uma identidade geral antes de uma identidade de gênero é um
equívoco, já que o reconhecimento do sujeito é generificado. Então,
reformularemos o modo de pensar: O modo como as práticas reguladoras de
formação e divisão do gênero, constituintes da identidade, coerência do sujeito e
status autoidêntico da pessoas se articulam no campo do saber/ poder são o ponto
nodal da crítica feita por Judith Butler (p.43).

Você também pode gostar