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A força subversiva do performativo:


gênero, performatividade e
pertencimento em Judith butler

Marcelo Henrique de Souza Carvalho


UFMA

10.37885/210805782
RESUMO

A proposta do presente trabalho é compreender como se constitui no interior do pensa-


mento da filósofa estadunidense Judith Butler a importância política do papel estratégico
da noção de ato performativo, nos seus desdobramentos em performatividade de gênero
e contradição performativa, para as maneiras possíveis que a autora concebe de resistir
e desestabilizar os esquemas normativos e as práticas de poder responsáveis pela ex-
clusão e precarização de determinados modos de vida. Ou seja, propõe-se apresentar
as vias possíveis de subverter as estruturas excludentes presentes na filosofia da Butler,
destacando a centralidade do potencial subversivo do performativo para as propostas de
transformação radical das estruturas sociais. Nesse sentido, a pretensão deste trabalho
é levar em consideração não apenas as contribuições da filósofa acerca das discussões
sobre gênero e sexualidade, mas também enfatizar a reflexão ético-política que a Butler
tem realizado recentemente sobre os movimentos de reivindicação por direitos contra a
precariedade feitos por grupos excluídos e marginalizados das instâncias jurídico-estatais,
portanto, privados da condição de pertencimento político. As modalidades e as táticas
de subversão no pensamento da filósofa, seja no que diz respeito às paródias drag que
denunciam a estrutura imitativa das identidades de gêneros, seja as mobilizações sociais
atreladas às demandas das minorias precarizadas, passam imprescindivelmente pelas
possibilidades subversivas constitutivas da dimensão performativa de tais práticas de
contestação política. A intenção desse artigo, portanto, é demostrar a radicalidade do
pensamento da Butler levando em consideração a aposta que ela faz nas estratégias de
resistência na luta por tornar vidas mais vivíveis.

Palavras-chave: Ato Performativo, Performatividade, Contradição Performativa, Subver-


são, Judith Butler.

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INTRODUÇÃO

“Ali onde há poder há resistência” (FOUCAULT, 1999, p. 90). A proposta do pensa-


mento da filósofa estadunidense Judith Butler tem sido fundamentalmente uma radicalização
dessa proposição foucaultiana. Ou melhor, talvez Butler tenha a entendido e desdobrado
melhor que o próprio Foucault, já que o filósofo francês pouco se deteve ou refletiu sobre
a relação de não-exterioridade entre poder e resistência (DUARTE, A.; CÉSAR, M.R.A.,
2019). Embora, de fato, a filósofa siga as indicações feitas por Foucault no que diz respeito
às possibilidades de renegociar e subverter as relações de forças que constituem os arranjos
e as táticas estratégicas do poder, Butler amplia essa discussão inserindo novas noções
para compreender as formas de contestação e enfrentamento – possíveis devido ao próprio
modo como o poder se exerce - das práticas de sujeição e precarização da vida.
Butler ganha projeção mundial com a publicação do livro Problemas de gênero: femi-
nismo e subversão de gênero lançado em 1990 nos Estados Unidos. Nessa obra, consi-
derada a inauguradora da chamada Teoria Queer, a filósofa desmonta a concepção subs-
tancializadora de gênero e sua aparência estática e natural. Profundamente inspirada pela
desconstrução de Derrida, a autora problematiza o binarismo sexo/gênero, dicotomia essa
que é um dos pressupostos fundamentais da política feminista. Nesse sentido, Butler não
apenas desestabiliza esse esquema de inteligibilidade que compreende gênero como a
expressão espontânea de uma natureza pré-discursiva, mas também os preceitos indenitá-
rios e normativos que pautam a política representativa do feminismo, que, além de manter
elementos difusos da heterossexualidade compulsória, é pautada por uma identidade fixa
e universal de mulher a ser representada, operando, desse modo, em termos de exclusão,
inviabilizando uma política plural, aberta à coalizações e alianças.
O esforço da Butler é de denunciar a fragilidade constitutiva das identidades de gênero
apontando como elas não são produtos de um núcleo preestabelecido que as definem como
essências, estanques e idênticas a si mesmas, mas sim uma sequência de atos performati-
vos repetidos no decorrer do tempo, sendo assim, a filósofa pensa gênero não em termo de
substância, mas em termos de performatividade. É a partir da compreensão de que o gênero
se constitui performativamente através da reiteração dos atos estilizados que a Butler admite
a possibilidade subversiva de deslocar e desestabilizar as práticas regulatórias e os signos
corporais generificados. Contudo, o potencial insurgente e perturbador da performatividade
e do ato performativo não tem centralidade, no pensamento de Butler, apenas na sua pro-
blematização acerca do gênero. Esses elementos são absolutamente fundamentais para as
recentes reflexões ético-políticas que a pensadora estadunidense tem feitos sobre as lutas
por direito e reconhecimento político que minorias sociais têm empreendido no âmbito do
espaço de aparição pública.
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Através de um diálogo com o pensamento político de Hannah Arendt, principalmen-
te com a noção de “direito de ter direito” e articulando-a com o conceito de “contradição
performativa”, Butler se propõe refletir como grupos sociais destituídos de garantias fun-
damentais, bloqueados do processo de pertencimento à comunidade política, carentes de
direitos e expulsos, portanto, da esfera pública, ao agirem em coalização a fim de reivindi-
carem a condição de cidadania da qual eles estão carentes, produzem, como efeito da ação
performativa de reivindicação, justamente as prerrogativas políticas da vida qualificada da
qual eles estão privados. Ou seja, Butler, ao pensar a ação política em termos de exercício
performativo, ela se esforça em conceber vias de resistência para minorias marginalizadas
que estão destituídas justamente da liberdade que define a vida politicamente qualificada.
A proposta deste trabalho é compreender como a Butler pensa as formas de resis-
tência e contestação do poder no interior das próprias práticas normativas, ou seja, como
desestabilizar as normas não fora das malhas de poder, mas através das fraturas e dissen-
sões constitutivas do modo mesmo dessas práticas regulatórias operarem. As ideias de ato
performativo, performatividade e contradição performativa são imprescindíveis para essa
compreensão. Nesse sentido, o artigo será dividido em três partes. Na primeira serão trata-
das as questões que Butler debate acerca do feminismo e da crítica que ela faz à metafísica
da substância. No segundo momento, será apresentado como a Butler concebe gênero e a
noção de performatividade. Por fim, na terceira parte, será abordada a forma que a filósofa
compreende a maneira como minorias sociais reivindicam o direito ao reconhecimento e
pertencimento à comunidade política.

Problematizando o sujeito: A crítica ao feminismo e à metafísica da substância em


Judith Butler

Butler se propõe desarticular os dispositivos pelos quais as subjetividades são formadas


a partir das identidades generificadas constituídas no interior de estruturas de poder, abrindo,
desse modo, possibilidades para novos usos legítimos dos signos corporais e das condutas
de gênero. Ou seja, Butler “está indagando o sujeito, indagando os processos através das
quais os sujeitos vêm a existir, através de que meios eles são construídos e como essas
construções são bem-sucedidas (ou não)” (SALIN, 2015, p. 10-11). A questão do sujeito é
central na investigação filosófica da pensadora. A filósofa recusa à concepção de um su-
jeito fixo, pré-discursivo e unitário, na verdade, segundo Butler, o sujeito é carente de uma
substância e de um fundamento último, desse modo, o sujeito, na perspectiva butleriana, é
um processo, um devir permanente, que se constitui no interior de práticas regulatórias de
poder. Portanto, o sujeito não é um dado essencial, preexistente às intervenções normativas
das relações sociais, ele é produto das estruturas discursivas que, por sua vez, formam as
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subjetividades através de um processo de reiteração e repetição permanente. Isso quer dizer
que a formação do sujeito é frágil, pois ele precisa ser reatualizado continuamente median-
te mecanismos de punição e vigilância, ou seja, sua formação não um é fato consumado,
definitivo, por isso, ele é passível de ser radicalmente deslocado e desestabilizado. De todo
modo, a crítica butleriana às categorias universais e estáveis de sujeito leva a pensadora a
criticar o próprio feminismo.

“É minha sugestão que as supostas universalidade e unidade do sujeito do


feminismo são de fato minadas pelas restrições do discurso representacional
em que funcionam. Com efeito, a insistência prematura num sujeito estável
do feminismo, compreendido como uma categoria una das mulheres, gera,
inevitavelmente, múltiplas recusas a aceitar essa categoria. Esses domínios de
exclusão revelam as consequências coercitivas e reguladoras dessa constru-
ção, mesmo quando a construção é elaborada com propósitos emancipatórios”
(BUTLER, 2018, p. 12).

Reivindicar uma identidade absoluta e unitária como uma categoria que a política femi-
nista busca representar opera exclusões de subjetividades não contempladas nessa identi-
dade comum arrogada pelo feminismo. Afirmar uma categoria que denote uma experiência
universal que interliga todas as mulheres desconsidera a interseção de outras modalidades
de violência, que não só a de natureza patriarcal.

“Se alguém “é” uma mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém é;
o termo não logra ser exaustivo, não porque os traços predefinidos de gênero
da “pessoa” transcendam a parafernália específica de seu gênero, mas porque
o gênero nem sempre se constituiu de maneira coerente ou consistente nos
diferentes contextos históricos, e porque o gênero estabelece interseções com
modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades
discursivamente constituídas.” (BUTLER, 2018, p. 11).

Ou seja, não há, segundo Butler, uma identidade estável suficientemente ampla que
abarque a multiplicidade de postulações e reivindicações dos corpos que o feminismo pre-
tende emancipar. Portanto, o que a filósofa propõe destacar é a necessidade de realizar
uma “crítica radical, que busque libertar a teoria feminista da necessidade de construir uma
base única e permanente, invariavelmente contestada pelas posições de identidade ou
anti-identidade que o feminismo invariavelmente exclui” (BUTLER, 2018, p. 13). A proposta
da Butler é de repensar a política feminista visando destacar a urgência de se abandonar
os fundamentos ontológicos identitários rígidos que fomentam um movimento fechado em
si mesmo, incapaz de estabelecer aberturas para a diversidade de demandas políticas ou
a uma prática de coalização com outras pautas que fogem do seu pressuposto normati-
vo essencialista. A problematização que a Butler coloca é na possibilidade de pensar um
feminismo sem sujeito unitário, universal e estagnado, ou seja, sem uma identidade fixa.
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Desse modo, nossa filósofa propõe “uma política feminista que tome a construção variável
da identidade como um pré-requisito metodológico e normativo, senão como um objetivo
político” (BUTLER, 2018, p. 13).
Contudo, está acoplado nessa categoria identitária do feminismo outra questão proble-
mática para Butler, a saber, o modelo binário da distinção entre sexo/gênero. Como resume
Rodrigues (2005, p.179): “O principal embate de Butler foi com a premissa na qual se origina
a distinção sexo/gênero: sexo é natural e gênero é construído”. Essa distinção entre sexo
como uma realidade estanque e invariável sob a qual se inscreve e constrói culturalmen-
te o gênero é um dos eixos absolutamente centrais para o feminismo. O que a Butler vai
problematizar é até que ponto essa própria distinção, essa linha de divisão é algo arbitrário
produto das estruturas discursivas que apelam à noção de um dado natural inquestionável
para legitimar sua pretensão de regulação dos corpos, ou seja, um meio de assegurar a
produção de um corpo generificado. Tratar o sexo como um elemento imutável, previamente
estabelecido, um dado que escapa às interferências da cultura é resguardá-lo da própria
ação política de problematização e questionamento e, consequentemente, do processo de
investigação das práticas responsáveis pela naturalização das ideias normativas de sujeito.

“Podemos referir-nos a um “dado” sexo ou um “dado” gênero, sem primeiro


investigar como são dados o sexo e/ou o gênero e por que meios? E o que é,
afinal, o “sexo”? [...] Haveria uma história de como se estabeleceu a dualidade
do sexo, uma genealogia capaz de expor as opções binárias como uma cons-
trução variável? Seriam os fatos ostensivamente naturais do sexo produzidos
discursivamente por vários discursos científicos a serviço de outros interesses
políticos e sociais?” (BUTLER, 2018, p. 14).

O que é crucial para entender essa questão da Butler é ter em mente a recusa vee-
mente que a autora faz de admitir qualquer realidade que pretenda expressar uma dimen-
são pré-discursiva. Ou seja, na perspectiva butleriana, não há um dado que esteja fora da
ação das práticas de inteligibilidade e dos regimes de verdade que produzem justamente a
possibilidade de que determinada realidade seja concebível, modelando e fazendo aconte-
cer o próprio objeto que se pretende descrever. Não existe, segundo Butler, portanto, uma
ontologia anterior às práticas normativas. Apreender determinada realidade já pressupõe
de antemão um esquema de inteligibilidade que a constitui como possivelmente apreensível
e, por conseguinte, a torna já uma entidade politicamente saturada. Portanto, não há uma
dimensão do mundo social que esteja livre das interferências produtivas do poder, isto é,
uma dimensão neutra e natural. Na verdade, a própria noção de “natural” e “natureza” é um
recurso que as estruturas discursivas lançam mão para garantir a efetividade da formação
do sujeito unitário pretendido pelas práticas regulatórias de produção de gênero. Isto é:

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“o discurso que produz a sexualidade produz também aquilo que está ‘fora’
da lei como transgressão antinatural, assim como produz o que está cronolo-
gicamente ‘antes’ da lei, que se passa por aquilo que é no domínio do natural,
livre, ainda não regulado” (TORRANO, 2010, p. 53).

Nesse sentido, o que é problemático para a Butler no que diz respeito à distinção
entre sexo/gênero é o pressuposto de que existe uma instância biológica pré-discursiva e
autoevidente, que é o sexo. Admitir tal fato, uma dimensão isenta dos efeitos das práticas de
poder, implica desconsiderar a possibilidade de investigar os dispositivos e os mecanismos
pelos quais determinada realidade é naturalizada, ou seja, tornada “natural”. O apelo à uma
referência irrevogável e a-histórica é o que fundamenta a ficção da matriz de inteligibilidade
heteronormativo de um sujeito unitário, que expressa uma natureza preexistente à realidade
social, admiti-la implica operar nos termos do regime que concebe uma correspondência
entre sexo-gênero-desejo-práticas sexuais. Essa concepção, que delimita o que é cultura e
o que é natureza, presume que é possível uma perspectiva que abre mão das prerrogativas
discursivas, isto é, uma visão fora das estruturas linguísticas que permite ponderar sobre
seus próprios limites, como também pressupõe a possibilidade de acessar uma determinada
realidade objetivamente e imparcialmente. Contudo, segundo Butler, “[...] não há como recor-
rer a um corpo que já não tenha sido sempre interpretado por meio de significados culturais;
consequentemente, o sexo não poderia qualificar-se como uma facticidade anatômica pré-
-discursiva” (BUTLER, 2018, p. 15) Ou seja, é uma perspectiva inviável, na leitura da autora,
a defesa da capacidade de acessar a realidade ou um fato natural tal como ele é, pois a
própria concepção de “natureza” já se realiza no interior dos termos do discurso. Em suma,
o que a autora crítica, de fato, é o que ela chama de metafísica da substância.

“O que é a metafísica da substância, e como ela informa o pensamento sobre


as categorias de sexo? Em primeiro lugar, as concepções humanistas do su-
jeito tendem a presumir uma pessoa substantiva, portadora de vários atributos
essenciais e não essenciais. A posição feminista humanista compreenderia o
gênero como um atributo da pessoa, caracterizada essencialmente como uma
substância ou um “núcleo” de gênero preestabelecido, denominado pessoa,
que denota uma capacidade universal de razão, moral, deliberação moral ou
linguagem” (BUTLER, 2018, p. 16).

Ou seja, “a metafísica da substância refere-se a crença difundida de que o sexo e


o corpo são entidades materiais, naturais, autoevidentes” (SALIN, 2015, p. 72). Portanto,
Butler ao recusar a metafísica da substância, ela abandona uma estrutura de pensamento
que concebe categorias em um caráter estável e separado da própria ação produtiva da
linguagem. O pensamento de Butler é uma incisiva e radical crítica à compreensão de que
exista alguma instância substancial ou um atributo essencial – como o sexo – irredutivelmente
biológico que o sujeito seja invariavelmente portador.
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A rejeição em pensar a materialidade dos corpos em termos estanques e neutros, leva
a Butler a desestabilizar o caráter natural daquilo que é o substrato aparentemente inques-
tionável da corporalidade dos sujeitos.

“Se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio construto cha-


mado ‘sexo’ seja tão culturalmente construído quanto o gênero; a rigor, talvez
o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e
gênero se revela absolutamente nula” (BUTLER, 2018, p. 14).

Portanto, seguindo as conclusões de Michel Foucault (1999), para Butler, não há sexo
e gênero separado do dispositivo de poder que os produzem. Eles apenas se constituem
em uma aparência natural devido aos processos de naturalização provocados pelas práticas
discursivas reiteradas. A radicalidade da proposta da Butler encontra-se em pensar toda a
realidade social como processo, sendo assim, a materialidade dos corpos e do gênero é
efeito de mecanismos de poder, de modo que não há uma substância anterior ou preesta-
belecida, um atributo inerente e irredutível da corporalidade, já que “[...] o “corpo” é em si
mesmo uma construção, assim como o é a miríade de “corpos” que constitui o domínio dos
sujeitos com marcas de gênero” (BUTLER, 2018, p. 15).

“Butler extrai a ideia do corpo não como uma matéria estática, mas um cons-
tante materializar-se. Nesse sentido, o corpo não comporta uma substância a
priori, uma essência interior, mas seu sentido é dependente de determinadas
condições num enquadre histórico-cultural, isto é, o corpo não carrega um
sentido inerente, mas somente o faz mediante de um conjunto específico de
disposições numa dada cultura. A materialidade, então, assume o sentido de
um processo.” (DEMETRI, 2018, p. 29).

A crítica que a Butler faz ao feminismo, por ainda operar a partir de certos pressupos-
tos da metafísica da substância e da matriz heteronormativa, é crucial para entender como
Butler irá desdobrar sua própria noção de gênero e sexualidade, a partir do conceito de
performatividade. Elementos que serão discutidos na próxima parte desse trabalho.

Gênero e performatividade: repetição subversiva como forma de desestabilizar a norma

“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher” (BEAUVOIR, 2009, p.267). A célebre frase
de Simone de Beauvoir ecoa fortemente no pensamento da Butler. O mérito de Beauvoir
é o de destacar como “mulher” não algo que se é, ou seja, uma essência preestabelecida
e imutável, ela é, na verdade, um devir, um processo, que tem seu papel ou posição nas
estruturas sociais de poder definido, não por uma natureza intrínseca, mas pelos conjuntos
de mecanismos culturais de hierarquização e marginalização que funcionam em um deter-
minado período histórico. Contudo, o pensamento de Beauvoir ainda opera nos termos do
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binarismo sexo/gênero que, como vimos, é absolutamente problemático para Butler, já que
para a filósofa estadunidense até a própria ideia de sexo é efeito dos esquemas regulató-
rios discursivos.
De todo modo, Butler radicaliza a proposta da pensadora francesa. Gênero e sexo
não são dados naturais, expressões espontâneas de uma natureza pré-discursiva. Não
são categorias estáveis e definitivas, por isso não devem ser compreendidos em esquemas
rígidos de pensamento. São realidades produzidas no interior das estruturas discursivas na
medida em que são executados performativamente.

“A noção de que o sexo aparece na linguagem hegemônica como substância,


ou, falando metafisicamente, como ser idêntico a si mesmo, é central para
cada uma dessas concepções. Essa aparência se realiza mediante um truque
performativo da linguagem e/ou do discurso, que oculta o fato de que “ser” um
sexo ou um gênero é fundamentalmente impossível” (BUTLER, 2018, p. 22).

Portanto, gênero não é um fato, mas um fazer, um ato, ou melhor, uma sequência
de atos, que fazemos regulados por mecanismos de poder que asseguram uma aparente
estabilidade. Nesse sentido, gênero não uma identidade natural, uma entidade a priori às
interferências normativas, que exprimimos espontaneamente. Ou seja, para Butler o “[...]
“núcleo do gênero”, é produzida pela regulação dos atributos segundo linhas de coerência
culturalmente estabelecidas “(BUTLER, 2018, p. 25). Sendo assim, não existe um corpo ge-
nerificado separado dos discursos que o constituem, das práticas que o regulam e produzem.
Ele é constituído performativamente na medida em que ele é encenado – sem, contudo,
exigir e pressupor, para isso, uma entidade por trás da encenação.

“[...]o gênero não é um substantivo, mas tampouco é um conjunto de atributos


flutuantes, pois vimos que seu efeito substantivo é performativamente produzi-
do e imposto pelas práticas reguladoras da coerência do gênero. Consequen-
temente, o gênero mostra ser performativo no interior do discurso herdado da
metafísica da substância — isto é, constituinte da identidade que supostamente
é. Nesse sentido, o gênero é sempre um feito, ainda que não seja obra de um
sujeito tido como preexistente à obra.” (BUTLER, 2018, p. 25).

Segundo Butler, gênero é um conjunto de comportamentos, condutas, atos que por


serem reiterados no decorrer do tempo produzem como efeito não apenas um corpo estili-
zado e generificado, mas também uma aparência social de uma identidade estável e per-
manente. O fundamento do gênero, para a autora, é o próprio ato de encená-lo. Conforme
ele é executado, o gênero, como também o corpo generificado, vai se constituindo perfor-
mativamente. Nesse sentido, o gênero não está em uma dimensão transcendente ao próprio
fazê-lo, ao próprio executá-lo, em uma instância ontológica interna que extrapola às práticas
sociais. Na verdade, segundo Butler, a própria noção de uma interioridade que precede os
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atos é efeito da reiteração dos movimentos e gestos executados e regulados. Em outras
palavras, para a filósofa, não existe um ator previamente estabelecido anterior ao ato, ele, na
verdade, é efeito do atuar. Para nossa autora, portanto, o que existe é apenas a superfície
dos atos, ou seja, apenas e fazer e o proceder do gênero. Não há um núcleo interno que
seria a essência do gênero e a sua causa natural. Como explica Butler:

“Em outras palavras, atos, gestos e desejo produzem o efeito de um núcleo ou


substância interna, mas o produzem na superfície do corpo, por meio do jogo
de ausências significantes, que sugerem, mas nunca revelam, o princípio orga-
nizador da identidade como causa. Esses atos, gestos e atuações, entendidos
em termos gerais, são performativos, no sentido de que a essência ou identi-
dade que por outro lado pretendem expressar são fabricações manufaturadas
e sustentadas por signos corpóreos e outros meios.” (BUTLER, 2018, p. 98).

A identidade de gênero como matéria estática e permanente é radicalmente problemati-


zada por Butler, a aparente fixidez do gênero é produzida pela sequência de ações estilizadas
que são repetidas no interior de estruturas de poder que regulam e disciplinam o campo da
conduta dos sujeitos. É assim que o gênero vai se cristalizando, não como a expressão de
uma essência interna, mas pela execução de gestos normativamente induzidos na superfície
do próprio ato, de modo que o gênero se caracteriza mais como “um verbo em vez de um
substantivo, um ‘fazer’ em vez de um ‘ser’” (SALIN, 2015, p. 89).

“Nesse sentido, o que está radicalmente em questão é, portanto, a estabili-


dade do gênero, invertendo a forma de compreendê-lo: não como algo que
“se expressa” ou vem “de dentro para fora”, isto é, de um locus imanente da
agência pressuposta e generificada, mas como algo cuja “essência” é su-
perficial, resultante de atos que instituem uma ilusão exterior de identidade.”
(DEMETRI, 2018, p. 27).

O gênero, segundo Butler deve ser entendido como uma espécie de performance, isto
é, uma encenação de uma série de códigos e atos, gestos e disposições, ou seja, uma repe-
tição de um script previamente estabelecido, contudo, é uma performance sem pressupor de
antemão um performer por trás da representação. Entretanto, essa “ausência” de performer
“não significa que não há sujeito, mas que o sujeito não está exatamente onde esperaría-
mos encontrá-lo – isto é, “atrás” ou “antes” de seus feitos” (SALIN, 2015, p. 66). Ou seja, o
sujeito generificado passa a existir na medida que o gênero é performado, desse modo, é a
própria repetição dos gestos que produz o sujeito que pretende exprimir como a causa da
performance, portanto, o agente não antecede e nem está atrás do ato. Nesse sentido, para
Butler, os atos na qual o gênero é constituído fazem acontecer, inauguram uma existência,
uma realidade que eles propõem expressar. Por isso, o ocorrer do gênero não é uma sim-
ples performance, mas é compreendido, segundo a filósofa, como performatividade, que
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consiste nesses “atos estilizados que, repetidos, realizam a “verdade” do gênero e simulam
uma certa essência interna” (DEMETRI, 2018, p.39). Conclui Butler:

“[...] se os atributos de gênero não são expressivos, mas performativos, en-


tão constituem efetivamente a identidade que pretensamente expressariam
ou revelariam. A distinção entre expressão e performatividade é crucial. Se
os atributos e atos do gênero, as várias maneiras como o corpo mostra ou
produz sua significação cultural, são performativos, então não há identidade
preexistente pela qual um ato ou atributo possa ser medido; não haveria atos
de gênero verdadeiros ou falsos, reais ou distorcidos, e a postulação de uma
identidade de gênero verdadeira se revelaria uma ficção reguladora.” (BUTLER,
2018, p. 101, itálico meu).

Para Butler os atos de gênero são performativos. Butler nitidamente dialoga com a
teoria dos atos de fala do linguista inglês Jonh Austin, contudo, ela faz uma leitura profun-
damente inspirada pela interpretação do filósofo Jacques Derrida. Austin distingue os atos
performativos daqueles usados para descrever ou narrar algo, os constatativos. Segundo
Austin, os performativos são “aqueles que, ao dizer, realizam efetivamente o que está sendo
dito” (SALIN, 2015, p.124). Ou seja, “o performativo produz, opera, transforma uma situação,
tendo assim valor de força” (RODRIGUES, 2012, p. 152). Portanto, os atos performativos
têm um “valor de força”, isto é, têm a capacidade de produzir o que enuncia no instante
mesmo da enunciação, ele é uma ação que ao ser efetivada instantaneamente inaugura
uma realidade que não preexistia ao ato de fala, mas que passa a existir ao passo que é
pronunciada. Desse modo, afirmar que o gênero é performativo significa que:

“[...] os corpos não são meramente descritos; eles são sempre constituídos no
ato da descrição. Quando o médico ou a enfermeira declara “É uma menina!”
ou “É um menino!” não está simplesmente relatando o que vê (esse seria um
ato constatativo), mas está, efetivamente, atribuindo um sexo e um gênero a
um corpo que não pode ter existência fora do discurso” (SALIN, 2015, p. 125).

Portanto, não existe uma descrição neutra do sexo e do gênero, isto é, dizer o gênero já
é, em certa medida, produzi-lo, é interpelar e projetar uma série de expectativas que os cor-
pos terão que corresponder e, à proporção que são feitos corresponder, vão se constituindo
como corpos generificados. Para Butler, o gênero vai existindo à proporção que é encenado,
regulada por normas e estruturas de vigilância e punição. Nesse sentido, é o próprio fazer
e o repetir dos atos o fundamento ontológico do gênero, sendo assim, a aparência de uma
identidade “natural” e sedimentada é efeito dos gestos reiterados e regulados de gênero
e não aquele a causa destes. “O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de
atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristali-
za no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser”
(BUTLER, 2018, p. 31). Para Austin, como os atos performativos não são descrições, eles
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não têm pretensão de verdade, ou seja, eles não operam no “regime de falso/verdadeiro”.
Nesse sentido, segundo Butler, do mesmo modo, não existem expressões “verdadeiras” ou
“falsas” de gênero, o que produz a noção de uma “verdade” ou “essência” interna, como já
vimos, é a sua própria repetição contínua. Levando isso em consideração, a normatividade
que hierarquiza e marginaliza determinados estilos corporais reivindicado uma “verdade” de
gênero que expressaríamos naturalmente é radicalmente desontologizada e desnaturalizada.

Como os atos de fala, os atos de gênero – ou o que Butler chama de “estilos


de carne” – seriam performativos que estariam fora do regime falso/verdadeiro
e apontariam para a fragilidade da normatividade de gênero ao explicitarem
que a norma só pode funcionar como uma estrutura de citação e de repetição
contínua. Corpos performam gêneros, e o fazem pela repetição, sem nunca
serem idênticos a si mesmos. (RODRIGUES, 2012, p. 152).

O gênero acontece pela repetição. Não é uma substância rígida, estável, mas um
estilo corporal que se constitui no decorrer do tempo, reiterado continuamente sustentando
assim a ilusão de um eu permanente. Portanto, a aparente dureza ou fixidez do gênero, sua
“naturalidade”, não é causado por um núcleo essencial interno, mas sim pela sua condição
de “citação e repetição contínua”. Nesse sentido, signos corporais podem ser repetidos de
modo a desestabilizar a estrutura hegemônicas de gênero, denunciando a absoluta carência
de fundamento desses gestos, perturbando e subvertendo os esquemas estáveis através da
qual o sujeito generificado é construído, ou seja, seria uma repetição que não se constitui
como uma “simples imitação, reprodução e consequentemente consolidação da lei” (BUTLER,
2018, p. 29). Segundo Butler:

“A repetição de construtos heterossexuais nas culturas sexuais gay e hétero


bem pode representar o lugar inevitável da desnaturalização e mobilização das
categorias de gênero. A replicação de construtos heterossexuais em estruturas
não heterossexuais salienta o status cabalmente construído do assim chamado
heterossexual original.” (BUTLER, 2019, p. 30).

Por serem atos que precisam sempre ser reatualizados continuamente eles estão
abertos para serem resinificados e deslocados de maneira a denunciar e expor o caráter
contingente das identidades de gênero. Ou seja, é constitutivo do próprio modo de aconte-
cer do gênero a sua possibilidade de desestabilização. A dimensão frágil e subversiva da
repetição permite a condição dos signos corporais serem extraídos do seu contexto “original”
e realocado de um outro modo, não se fechando ou encerrando em nenhuma convenção
determinada (SALIN, 2015, p. 128). Nesse sentido, é a própria constituição da repetição que
assegura a modificação das normas socialmente constituídas. Derrida chama a fragilidade,
a abertura de todo signo de “iterabilidade”, essa noção será central para Butler discutir as
formas de subversão de gênero. “Para Butler, a iterabilidade em Derrida diz respeito a da
77
Filosofia: os desafios do pensar
estrutura formal dos signos, seu caráter relativamente aberto, que implica a repetição como
possibilidade de alteração dos termos” (GRAÇA, 2016, p. 24).
Derrida desdobra essa ideia a partir de uma divergência com a concepção de Austin
acerca dos atos performativos. Segundo o linguista inglês, os atos performativos são “bem-
-sucedidos apenas se mantém dentro dos limites do contexto e da intenção do autor” (SALIN,
2015, p. 127), ou seja, quando há um acordo entre o ato de fala e “a autoridade de quem a
profere, o contexto e as suas circunstâncias” (RODRIGUES, 2012, p. 152). Quando isso não
ocorre, segundo Austin, o ato de fala é “mal-sucedido”, ou seja, ele fracassa na sua preten-
são convencional. Contudo, para Derrida essa possibilidade de o signo não corresponder
com o seu contexto original é propriedade constitutiva do próprio signo. Ou seja, todo signo
está aberto e sujeito a ser re-citado de modo a alterar sua funcionalidade usual, podendo ser
resignificado a partir de sua aplicação em outro contexto de fala. O fracasso, a não adequa-
ção do signo à sua intenção original, é intrínseco ao próprio signo que, desse modo, pode
ser deslocado e transplantado devido ao seu caráter flexível e variável. “Derrida argumenta
que, em vez disso, os signos podem ser transplantados para contextos imprevistos e citados
de modo inesperados, uma apropriação e um deslocamento que ele chama de transplante
citacional [...]” (SALIN, 2015, p. 128).
A fragilidade dos atos de gênero, pela necessidade de repetição, e a possibilidade de
deslocamento e transporte desses signos para novos cenários e usos não convencionais
é fundamental para Butler pensar as estratégias queer de subversão e desnaturalização
da ficção do sujeito generificado da estrutura heteronormativa. Ou seja, a noção de um eu
unitário que é marcado substancialmente pela continuidade e correspondência entre sexo-
-gênero-desejo considerando que “o sexo, em algum sentido, exige um gênero — sendo
o gênero uma designação psíquica e/ou cultural do eu — e um desejo — sendo o desejo
heterossexual e, portanto, diferenciando-se mediante uma relação de oposição ao outro
gênero que ele deseja.” (BUTLER, 2018, p. 24). A noção desse sujeito unitário, coerente
e idêntico a si mesmo é radicalmente abalado pela cultura do travestismo. Que subverte e
zomba do “modelo expressivo de gênero e da ideia de uma verdadeira identidade de gênero”
(BUTLER, 2018, p. 98). Desse modo, segundo Butler:

“A performance da drag brinca com a distinção entre a anatomia do perfor-


mista e o gênero que está sendo performado. Mas estamos, na verdade, na
presença de três dimensões contingentes da corporeidade significante: sexo
anatômico, identidade de gênero e performance de gênero. Se a anatomia do
performista já é distinta de seu gênero, e se os dois se distinguem do gênero
da performance, então a performance sugere uma dissonância não só entre
sexo e performance, mas entre sexo e gênero, e entre gênero e performance.
” (BUTLER, 2018, p. 98-99).

78
Filosofia: os desafios do pensar
Nesse sentido, a “performance da drag” desmonta e desarranja a ficção de um sujei-
to unitário fundamentado na noção de uma continuidade entre corpo-gênero-encenação.
Como também denuncia a fragilidade e a vulnerabilidade das estruturas e das identidades
que regulam as práticas de gênero. Essas identidades são gestos corporais contingentes,
arbitrários, sujeitos a serem recontextualizados e deslocados, indicando o mais absoluto
vazio de fundamento dessas categorias, ou seja, como elas são entidade fluidas e variáveis.
Sendo assim, a suposta unidade natural e fundacional, que causa a coerência do sujeito
generificado é dessencializado, destacando, desse modo, o caráter fictício e politicamente sa-
turado de sedimentação via repetição reiterativa, das materialidades corporais, contestando,
desse modo, a aparente estabilidade e fixidez das expressões de gênero. A representação
do gênero nunca está completamente assegurada e definitiva. A execução nunca está ple-
namente adequada com as normas que delibera a encenação prevista. Nesse sentido, essa
fragilidade da representação revela a possibilidade invariável de rompimento e desvio dos
esquemas regulatórios que definem a inteligibilidade de gênero passível de reconhecimento.
Essa imitação que repete, em uma nova reconfiguração ou reposicionamento, gestos
e condutas de gênero é o que a Butler vai chamar de paródia. A performance da drag, para
Butler, contudo, não apenas desestabiliza a aparência rígida e naturalizada das identidades
hegemônica da matriz heteronormativa, ela também “revela implicitamente a estrutura imi-
tativa do próprio gênero — assim como sua contingência” (BUTLER, 2018, p. 99).

“A performance imitativa do gênero feminino realizada pela drag não é a cópia


de um gênero verdadeiro, original. Ao contrário, ela mostra que as posições
tidas como naturais (masculinas ou femininas) são elas também imitações
submetidas a repetições e sanções constantes, e que a heterossexualidade
é ela própria uma paródia de gênero. O gênero é um tipo de imitação que não
se refere a original algum.” (POMBO, 2017, p. 394).

Não existe um “original” que é imitado, o que a paródia faz demostrar é a própria es-
trutura imitativa que é constitutivo de toda a expressão de gênero. “Ser” um gênero é imitar
uma série de códigos e significados culturalmente estabelecidos que por ter sua reiteração
garantida por mecanismos rígidos de poder são sedimentadas e cristalizadas, produzindo
uma aparente substancialidade do gênero.

“No lugar de uma identificação original a servir como causa determinante, a


identidade de gênero pode ser reconcebida como uma história pessoal/cultural
de significados recebidos, sujeitos a um conjunto de práticas imitativas que se
referem lateralmente a outras imitações e que, em conjunto, constroem a ilusão
de um eu de gênero primário e interno marcado pelo gênero, ou parodiam o
mecanismo dessa construção” (BUTLER, 2018, p. 99).

79
Filosofia: os desafios do pensar
Nesse sentido, não existe um gênero “original”, “verdadeiro”, “normal”, e, consequente-
mente, um “deturpado”, “falso”, “anormal”; o que existe são encenações de gestos, condutas,
desejos, que repetem um “script” arbitrário que é regulado por esquemas normativos que
definem as expressões aprovadas e/ou ilegítimas de gênero. Não há uma necessidade ou
naturalidade na relação gênero-sexo eles são produtos de mecanismos de poder. Gêneros,
portanto, são estilos corporais que não são “plenamente originais, pois os estilos têm uma
história, e suas histórias condicionam e limitam suas possibilidades” (BUTLER, 2018, p. 100).

“Se a verdade interna do gênero é uma fabricação, e se o gênero verdadeiro é


uma fantasia instituída e inscrita sobre a superfície dos corpos, então parece
que os gêneros não podem ser nem verdadeiros nem falsos, mas somente
produzidos como efeitos da verdade de um discurso sobre a identidade primária
e estável.” (BUTLER, 2018, p. 98).

Desse modo, os dispositivos de poder e o conjunto de normas que excluem e deslegi-


timam determinadas expressões de gênero reivindicando a suposição de uma sexualidade
“natural” hegemônica de um eu unitário e coerente na relação entre gênero-sexo-desejo-prá-
ticas sexuais não possuem força ontológica capaz de justificar e assegurar essa sua violência
normativa constitutiva, tendo em vista que, segundo Butler, essa “natureza” é produto das
estruturas discursivas e das práticas sociais historicamente estabelecidas. Portanto, a crença
da heteronormatividade, que se estrutura privilegiando a heterossexualidade como a única
expressão “verdadeira”, constrangendo e marginalizando todas as manifestações desviantes
e que, por isso, são consideradas descartáveis ou excluíveis; é uma ficção reguladora, um
mecanismo de poder que priva determinados corpos de reconhecimento, destituindo-os de
humanidade e de direitos fundamentais, por escaparem do esquema de inteligibilidade que
define as formas legítimas de gênero.
Compreender o gênero como performatividade, ou seja, realidade que se constitui no
interior de uma sequência reiterada de atos performativos é crucial para entender as pos-
siblidades estratégicas de desestabilizar e subverter as estruturas normativas que regulam
o campo das ações dos sujeitos. É a própria dinâmica de funcionamento de gênero que
fomenta sua perturbação. É constitutivo do gênero sua fragilidade e disrupção. Portanto, seu
deslocamento só é possível pelas fissuras provocadas pelo próprio funcionamento das estru-
turas regulatórias. Conceber gênero a partir dos atos performativos significa desontologizar
as expressões da vida generificada, esvaziar e afrouxar a força coercitiva das normas que
regulam os corpos e os desejos; como também significa admitir a capacidade dos signos
corporais serem radicalmente deslocados e ressignificados, fazendo acontecer novos usos
de gestos e estilos corporais. O objetivo da Butler é relaxar e desestabilizar essas estruturas
excludente e hierárquica de poder com a finalidade de tornar mais vivíveis aquelas vidas não
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Filosofia: os desafios do pensar
contempladas pelas categorias hegemônicas de gênero. Ou seja, reivindicar e lutar para que
vidas que sejam desviantes da norma possam ser possíveis e viáveis. Isso exige desmontar
os dispositivos e seus recursos normativos, que deliberadamente expõe certos corpos ao
risco da violência e da exclusão por não corresponderem aos regimes que determinam as
inteligibilidades admitidas de gênero, ou seja, passíveis de reconhecimento.
Contudo, Butler, desde a publicação da obra “Vida Precária” em 2004, tem se preo-
cupado em refletir e discutir sobre os mecanismos de exclusão e precarização que afetam
não apenas corpos considerados desviantes das normas de gênero. A sua proposta tem
sido de pensar como constituir alianças entre minorias sociais consideradas descartáveis
pelos dispositivos de poder, a fim de reivindicar direitos políticos e melhorias nas condições
viabilizadoras da vida social. Nessas formas de resistência e subversão de grupos sociais
subalternizados a questão do ato performativo, através do conceito de contradição perfor-
mativa, também é absolutamente central no pensamento da autora. Discussão que será
apresentada na próxima parte do presente trabalho.

Contradição performativa e precariedade: a política do performativo como insurgência


social

O grupo de corpos que não corresponde às normas de gênero compõe uma população
exposta à violência, ao risco eminente de morte, ao silenciamento e à expulsão das condições
mínimas de reconhecimento. São vidas despojadas de qualquer mecanismo de proteção e
segurança social. Para esses corpos, não aprovados nos esquemas de inteligibilidade social,
as condições que viabilizam a vida – necessárias a todo corpo vivente – é deliberadamente
desmantelada, produzindo, desse modo, vidas não vivíveis, inviáveis, pois são vidas que
não encontram no seu meio social tecnologias de apoio que possibilite seu perseverar no
existir. Essa situação politicamente saturada de desamparo e marginalização é o que Butler
chamará de “precariedade”.

“A ‘precariedade’ designa a situação politicamente induzida no qual determina-


das populações sofrem a consequência da deteriorização de redes de apoio
social e econômicos mais do que outras, e ficam diferentemente ao dano,
à violência e à morte. Como mencionei antes, a precariedade é, portanto, a
distribuição diferencial da condição precária.” (BUTLER, 2015, p. 42)".

A precariedade não afeta apenas os grupos de corpos que escapam às normas de


gênero, mas envolve todas as populações privadas do status de cidadania, ou seja, aque-
las vidas destituídas “não apenas de direito de proteção, mas também de condições sob
as quais a liberdade poderia ser exercida” (BUTLER; SPIVAK, 2018, 29). As vidas captu-
radas pelo dispositivo da precariedade são aquelas que não contam como vidas, que não
81
Filosofia: os desafios do pensar
são choradas quando perdidas, que fogem aos esquemas normativos que definem a vida
passível de reconhecimento, que correm o risco de suas vidas serem eliminadas no espaço
de aparecimento.

“Esses humanos espectrais, desprovidos de peso ontológico e reprovados nos


testes de inteligibilidade social exigidos para reconhecimento mínimo, incluem
aqueles cuja idade, gênero, raça, nacionalidade e situação laboral não apenas
os desqualificam para a cidadania, mas também os “qualificam” ativamente
para a condição de sem-estado” (BUTLER; SPIVAK, 2018, p. 25, itálico meu)."

Esses “humanos espectrais” estão expulsos da comunidade política, destituídos das


obrigações e prerrogativas da vida cidadã, da vida politicamente qualificada, privados dos
direitos a ela associada e das condições que asseguram o exercício pleno da liberdade, ou
seja, eles estão “[...] dentro da polis como seu exterior interiorizado” (BUTLER; SPIVAK,
2018). Isto é, eles estão incluídos, mas como não-pertencentes, como os desprivilegiados
e não contemplados pela estrutura jurídico-política, de modo que eles estão formalmente
inviabilizados de recorrer aos meios legais de exercício público da ação de aparecimento.
Portanto, essas populações “são vidas pelas quais não se pode realizar o luto; não têm
acesso a direitos e garantias; não tem espaço de representação nas nossas comunida-
des políticas; vidas, enfim, que morrem e que não são choradas.” (DEMETRI, 2018, p. 92,
itálico do autor).
Butler chama essas vidas de vidas precárias. A autora estadunidense, através dessa
discussão, estabelece uma interlocução profunda com o pensador italiano Giorgio Agamben
(2002), a partir do seu conceito de “vida nua”. Essa vida, segundo o autor, está reduzida a
sua mera materialidade biológica, totalmente exposta a um poder que a elimina sem que
isso seja configurado como homicídio ou um delido, tendo em vista que essa vida é aban-
donada e expulsa do ordenamento jurídico da comunidade política, portanto, não goza das
prerrogativas de uma vida qualificada politicamente. A vida nua está incluída pela exclusão e
excluída pela inclusão, ou seja, ela só participa do âmbito político pela sua matabilidade, pela
possibilidade de, sobre ela, a norma operar apenas para decretar sua expulsão. Contudo, a
proposta da Butler a faz discordar frontalmente do Agamben, embora admita como pertinente
sua análise dos processos políticos de exclusão da vida. Segundo Butler, o banimento da
vida nua, tal como pensada nos termos do filósofo italiano, separa essa vida do domínio do
político, ou seja, ao concebê-la como despolitizada, Agamben subtrai da vida abandonada
qualquer possibilidade de apresentar formas de resistência e contestação política. Desse
modo, o que a Butler se propõe a investigar é entender como essas vidas forçosamente
destituídas dos direitos e das prerrogativas jurídicas associadas à cidadania, podem pro-
duzir uma ação de desestabilização e negociação com o poder e com as normas que as
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Filosofia: os desafios do pensar
excluem. Ou seja, como vidas excluídas, mas, nem por isso, desprovidas da capacidade de
resistência e subversão, podem exercer e instaurar princípios das quais eram privados ao
agirem na cena pública a fim reivindicarem justamente tais princípios.

“Precisamos de meios mais complexos de compreensão da polivalência do


poder de compreensão da polivalência do poder e de suas táticas para entender
formas de resistência, agenciamento e contramobilização que obstruam o poder
de estado ou deles se esquivem. Acho que precisamos descrever a destituição
e, de fato, deveríamos, mas se a linguagem com a qual descrevemos essa
destituição pressupõe, repetidas vezes, que os termos-chave são soberania
e vida nua, nós nos privamos do léxico de que precisamos para entender as
outras redes de poder às quais ele pertence, ou como o poder é reformulado
ou mesmo saturado naquele lugar.” (BUTLER; SPIVAK, 2018, p. 44-45)."

Compreender como um exercício performativo a ação através da quais corpos des-


tituídos de prerrogativas e benefícios sociais de uma vida qualificada, portanto, rejeitadas
da polis, possam reivindicar o direito de aparecer e demandar condições mais viáveis de
vida, é o modo como a Butler busca resolver e investigar essas táticas de “resistência e
agenciamento” possíveis no interior das redes do poder. Contudo, isso ainda é insuficiente
para entender a proposta de Butler acerca do potencial político do performativo na ação
política. A pensadora estadunidense se serve de algumas contribuições de outra filósofa
central para o pensamento político contemporâneo, Hannah Arendt. Na obra Origens do
Totalitarismo (2013), no texto Declínio do Estado-nação e o fim dos direitos do homem,
presente na parte que diz respeito ao Imperialismo, Arendt insere, ao discutir a questão dos
apátridas, uma noção muito pouco trabalhada pela autora, a saber, a ideia do “direito de ter
direitos” (ARENDT, 2013, p.257). Segundo esse direito, Butler comenta:

“[...]uma formulação muito interessante, uma vez que esse primeiro direito
não pode estar fundamentado em nenhum governo ou instituição social es-
tabelecida; não é um direito positivo nesse sentido. Parece que há também
direitos ao pertencimento. Há direitos a uma textura social da vida” (BUTLER;
SPIVAK, 2018, p. 48)."

Ou seja, é uma espécie de direito que “ainda não está garantido por lei, mas tampouco
é natural” (BUTER; SPIVAK, 2018, p. 62). Ou seja, é direito que não está assegurado por
alguma instância jurídica ou pela autorização de um agente do Estado, muito menos ele
está fundamentado na existência de um princípio metafísico da humanidade em geral. Ele,
na verdade, segundo Butler, “pertence à natureza da igualdade, que por sinal não é natural,
mas uma condição social” (BUTLER; SPIVAK, 2018, p. 62). É um exercício de cidadania que
independe da autorização das estruturas jurídico-políticas, que excede às fronteiras buro-
cráticas da soberania estatal que define os limites de quem é passível de reconhecimento
político. Para a autora estadunidense, esse direito ao acesso dos direitos está atrelado a uma
83
Filosofia: os desafios do pensar
ação que acontece na cena pública vinculada à necessidade afirmar e demandar um perten-
cimento à comunidade política. Nesse sentido, Butler pensa as vias e táticas de resistência
dos grupos excluído e subtraídos das prerrogativas da cidadania, inspirada nessa possibili-
dade de compreender uma modalidade de direito que não está necessariamente vinculado
à autorização das instituições estatais, mas que, na verdade, pelo contrário, está envolvido
na busca pelo reconhecimento e pelas garantias que asseguram um pertencimento à polis.
Pode-se exercer e reivindicar direitos mesmo sendo destituído do status político necessário
para fazê-lo, sem, contudo, para isso recorrer a uma identidade essencial comum. Pois
esse direito não está fundamentado no Estado, ou em uma dimensão pré-discursiva, mas
sim no próprio ato de reivindicar direitos, ou seja, na simples capacidade de agir e discursar
publicamente – mesmo no espaço que isso seja legalmente proibido. Ou seja:

“[...]agir e discursar politicamente, mesmo quando não se está de posse de um


título jurídico que qualifique o/a agente como cidadão/ã de direito, é o mesmo
que pôr em ação a liberdade política e a igualdade recíproca, produzindo-se,
assim, um efeito político de cidadania. Assim, a tese interessante que Butler
defende em sua interpretação da noção arendtiana do direito a ter direitos
enfatiza o seu poder performativo, isto é, a sua capacidade de produzir efeitos
de igualdade e de cidadania por parte das populações subalternizadas, exata-
mente no instante em que lutam para conquistar os direitos de que carecem”
(DUARTE, 2020, p. 13)."

A interpretação butleriana do direito de ter direitos como um exercício performativo im-


plica compreender um tipo de ação política através da qual grupos destituídos de dispositivos
que os qualifiquem como cidadãos, instauram, ao atuarem no espaço público, uma condição
de liberdade política da qual eles estavam privados. Ou seja, é uma ação que produz algo
que não preexistia ao próprio ato. “Neste sentido, a ação política instituiria em ato, perfor-
mativamente, justamente aquilo de que os agentes se encontram formalmente destituídos,
isto é, a cidadania, fortalecendo assim sua demanda pelos direitos que decorrem desta
condição cidadã” (DUARTE, 2018, p. 315). Ou seja, o ato de demandar reconhecimento e
pertencimento à comunidade política já é o começo do exercício e da conquista do que se
é demandado e solicitado. Isto é, ao reivindicar liberdade política, vidas excluídas da esfera
pública põe em prática a própria liberdade da qual elas estavam despojadas. “Eles não têm
nenhum direito à liberdade de expressão por lei, embora estejam falando livremente, exa-
tamente para exigir o direito de se expressar livremente.” (BUTLER; SPIVAK, 2018, p. 64).
Nesse sentido, esses grupos no ato de solicitarem reconhecimento produzem, como efeito
político, justamente os princípios da vida politicamente qualificada que são a eles negados.
Portanto, para essas minorias subalternizadas, essa condição que os qualifiquem
como sujeitos de direitos apenas passam a existir na medida em que é exercitada, tendo em
vista que ela não preexistia ao próprio ato de executá-la em um movimento de contestação
84
Filosofia: os desafios do pensar
pública. Destarte, por serem expulsos e excluídos do ordenamento jurídico-político, mas,
nem por isso, esvaziados de agência política e, consequentemente, bloqueados da possibili-
dade de contestar o poder responsável pela sua marginalização, esses grupos encontram o
fundamento de sua ação pública de demandar por direitos na própria ação de reivindicação,
ou seja, é uma ação que não requer um fundamento anterior e separado da própria ação
política (DUARTE, 2020), portanto, é um direito que ganha existência conforme é exercido.

“A firmação de Arendt de que mesmo os apátridas têm o ‘o direito de ter direito’


é um tipo de exercício performativo [...]; Arendt está estabelecendo, por meio
da sua reivindicação, o direito de ter direitos, e não existe fundamento para
essa reivindicação que não a reivindicação em si mesma. E embora algumas
vezes essa reivindicação seja entendida como puramente linguística, fica claro
que é representada por meio do movimento corporal, da assembleia, da ação
e da resistência” (BUTLER, 2018, p. 57)."

Butler faz essa análise inspirada pelas manifestações de grupos de imigrantes ilegais
de origem latina que ocuparam as ruas da Califórnia em 2006 cantado em espanhol o hino
nacional dos Estados Unidos. Esse grupo que é legal e violentamente proibido de participar
da comunidade política encena a liberdade e a capacidade de agir politicamente produzindo
como efeito as prerrogativas da cidadania da qual eles estão privados. Conclui Butler: “Esse
é um tipo de política performativa, com certeza, na qual fazer a reivindicação para se tornar
legal é exatamente o que é ilegal, e ele é feito mesmo assim e exatamente como um desafio
à lei pela qual se exige o reconhecimento” (BUTLER; SPIVAK, 2018, p. 60-61). Esses corpos
estão à margem dos dispositivos legais, não dispõe das garantias e da proteção das estrutu-
ras jurídicas, contudo, encenam e produzem performativamente em ato a condição política da
qual estavam destituídos, ou seja, eles instauram a liberdade política da qual eles buscavam
reivindicar no exato momento em que eles ocupam o espaço público visando conquistá-la.
“Se havia uma proibição, havia igualmente um ato performativo que contestava a proibição e
disputava, no espaço público – literalmente, na rua – os sentidos e significados de pertença
a uma nação que constantemente os rejeitava” (DEMETRI; TONELI, 2017, p. 324).
Butler faz referência à noção de contradição performativa para descrever esse pro-
cesso através da qual aqueles que são privados legalmente do exercício da cidadania,
inviabilizados de aparecerem no espaço público, de agirem e discursarem coletivamente
fazem justamente no ato de “exigirem o direito de se expressarem livremente” (BUTLER;
SPIVAK, 2018, p. 61). Ou seja, essa contradição diz respeito à encenação que minorias
excluídas realizam de gestos e signos que caracterizam a condição política da qual estão
desprovidos e que se constituem como o objeto da reivindicação. Butler concebe a contra-
dição performativa através da possibilidade de que categorias do direito que não operam
para determinados grupos, possam ser alterados e ressignificados através da encenação
85
Filosofia: os desafios do pensar
desses princípios, como a liberdade e a igualdade - que não são substâncias preexistentes
às práticas de exercitá-las - em condições não habituais, de modo a destacar a fragilidade
normativa desses termos podendo ser desestabilizados e denunciados ao serem repetidos
de forma imprevista por aqueles que estão inviabilizados de encená-los.

“Butler não visa destacar as reivindicações de direitos em sua institucionali-


zação no Estado ou em órgãos internacionais. A ressignificação na repetição
e a desestabilização política dos termos pelos quais os direitos positivos são
pautados se tornam um dos aspectos centrais. Ainda, mais do que fixar os
direitos positivos em caracterização e abrangências definitivas, trata-se, ob-
servando sua constituição em repetição e citação, de reformulá-los – o que
consequentemente pode levar ao contrassenso de sua inteligibilidade norma-
tiva.” (GRAÇA, 2016, p. 33)."

Tal como acontece com os signos e os gestos de gênero que podem ser contestados
e denunciados como não essenciais a partir de paródias subversivas, as categorias políti-
cas também podem ser recontextualizados e ressignificados pelo exercício de reiteração
deslocadora de modo a revelar a incoerência do “universalismo” e a fragilidade constitutiva
de tais princípios do direito positivo. Portanto, esse exercício performativo, segundo Butler:

[...] não busca simplesmente estabelecer o lugar daqueles previamente des-


contados e ativamente precários em uma esfera de aparecimento existente.
Em vez disso, ela busca produzir uma fenda na esfera do aparecimento, ex-
pondo a contradição por meio da qual a sua reivindicação de universalidade
é proposta e anulada” (BUTLER, 2018, p. 59).

As limitações das estruturas normativas do direito positivo são contestadas ao serem


usados e encenados de modo outro a fim de apresentar novas referências e aplicação para
essas categorias da esfera jurídico-estatal. Butler compreende a contradição performativa
como um elemento fundamental para uma política de transformação radical. É dessa con-
tradição de onde se deriva a força de toda insurgência social.

“Uma vez que rejeitamos o ponto de vista que reivindica que nenhuma posição
política pode se apoiar na contradição performativa e aceitamos a função per-
formativa como uma reivindicação e um ato cujos efeitos se desenrolam com
o passar do tempo, então podemos de fato adotar a tese oposta, ou seja, a
de que não pode haver nenhuma política radical de mudança sem contradição
performativa.” (BUTLER; SPIVAK, 2018, p. 62-63)."

Inspirada pela noção arendtiana do “direito de ter direito”, Butler concebe uma mo-
dalidade de ação e de exercício de cidadania que “precede qualquer codificação legal e é
independente de qualquer apelo a um direito natural” (DUARTE, 2020, p. 14), ou seja, um
agir político que não precisa estar vinculado a uma autorização das estruturas burocráticas
e institucionais, limitados às fronteiras legais que determina quem é ou não portador de
86
Filosofia: os desafios do pensar
direitos. Desse modo, mesmo os grupos excluídos e expulsos da comunidade política, aque-
les deliberadamente induzidos ao abandonado e à precariedade, carentes das condições
mínimas de reconhecimento e de amparo de redes de apoio social, podem atuar na esfera
de aparição pública a fim de reivindicar direitos e condições mais viáveis de vida, de modo
que, no exato momento em que eles lutam coletivamente para a conquista dos princípios
que os qualifiquem como sujeitos de direito, tais minorias produzem e exercem a condição
de cidadania da qual eram desprovidos. Isso só é possível devido ao caráter performativo
do exercício desse direito.
Ele não requer um fundamento que preexista a própria ação, pois ele se fundamenta
no próprio fazer, no caso dos grupos desprivilegiados pelas estruturas jurídico-políticas, na
própria ação de demandar direitos, que já os proporciona o exercício das prerrogativas que
define a vida cidadã. Essa discussão só pode ser entendida no interior do pensamento da
Butler se levarmos em consideração a centralidade da proposta da autora em investigar
as formas de resistência e as possibilidades de desestabilização das práticas de poder por
parte das populações expulsas da comunidade política.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O esforço da produção teórica da Butler é a de performatizar e materializar através da


linguagem, micropráticas de contestação e subversão do poder, destacando a vulnerabilida-
de constitutiva dos esquemas normativos de sujeição e precarização da vida. A pensadora,
no seu percurso filosófico, coloca permanentemente em questão a estabilidade e a força
coercitiva das práticas discursivas lançando mão do potencial subversivo da noção de ato
performativo que ela desdobra em elementos estratégicos originais, imprescindíveis para
se pensar e exercer táticas que desestabilizem os regimes políticos que regulam o campo
da ação dos sujeitos.
A proposta de subversão e insurgência que perpassa a obra da autora requer aban-
donar todo um vocabulário que opera e concebe a realidade e as identidades em termos
de fixidez, de maneira essencialista e estável. Pensando, nesse sentido, as categorias da
vida social como abertas, temporais e frágeis, Butler assume como questão absolutamente
central de sua filosofia destacar as fraturas, as dissensões e as contingências das redes de
poder na qual estamos imersos. Como foi visto, a partir de categorias como performatividade
de gênero e contradição performativa, Butler esboça em seu pensamento as possibilidades
de mudança social e desnaturalização das estruturas normativas, com objetivo de reivin-
dicar condições mais viáveis para determinadas vidas subalternizadas e excluídas pelos
mecanismos de poder.

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Portanto, a questão das estratégias de resistência é uma pauta crucial para a filosofia
problematizadora da Butler. Os desdobramentos que ela faz deslocando e ressignificando o
potencial político do ato performativo é um elemento chave para compreender como a autora
concebe as dinâmicas de “negociação” com o poder e as possibilidades de subversão polí-
tica. Desse modo, o pensamento da Butler faz acontecer as próprias quebras e cisões das
estruturas normativas que ele pretende denunciar com sua linguagem radical e perturbadora
e sua proposta política que leva ao limite as categorias do pensamento.

REFERÊNCIAS
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