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RESUMO
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Filosofia: os desafios do pensar
INTRODUÇÃO
Reivindicar uma identidade absoluta e unitária como uma categoria que a política femi-
nista busca representar opera exclusões de subjetividades não contempladas nessa identi-
dade comum arrogada pelo feminismo. Afirmar uma categoria que denote uma experiência
universal que interliga todas as mulheres desconsidera a interseção de outras modalidades
de violência, que não só a de natureza patriarcal.
“Se alguém “é” uma mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém é;
o termo não logra ser exaustivo, não porque os traços predefinidos de gênero
da “pessoa” transcendam a parafernália específica de seu gênero, mas porque
o gênero nem sempre se constituiu de maneira coerente ou consistente nos
diferentes contextos históricos, e porque o gênero estabelece interseções com
modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades
discursivamente constituídas.” (BUTLER, 2018, p. 11).
Ou seja, não há, segundo Butler, uma identidade estável suficientemente ampla que
abarque a multiplicidade de postulações e reivindicações dos corpos que o feminismo pre-
tende emancipar. Portanto, o que a filósofa propõe destacar é a necessidade de realizar
uma “crítica radical, que busque libertar a teoria feminista da necessidade de construir uma
base única e permanente, invariavelmente contestada pelas posições de identidade ou
anti-identidade que o feminismo invariavelmente exclui” (BUTLER, 2018, p. 13). A proposta
da Butler é de repensar a política feminista visando destacar a urgência de se abandonar
os fundamentos ontológicos identitários rígidos que fomentam um movimento fechado em
si mesmo, incapaz de estabelecer aberturas para a diversidade de demandas políticas ou
a uma prática de coalização com outras pautas que fogem do seu pressuposto normati-
vo essencialista. A problematização que a Butler coloca é na possibilidade de pensar um
feminismo sem sujeito unitário, universal e estagnado, ou seja, sem uma identidade fixa.
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Desse modo, nossa filósofa propõe “uma política feminista que tome a construção variável
da identidade como um pré-requisito metodológico e normativo, senão como um objetivo
político” (BUTLER, 2018, p. 13).
Contudo, está acoplado nessa categoria identitária do feminismo outra questão proble-
mática para Butler, a saber, o modelo binário da distinção entre sexo/gênero. Como resume
Rodrigues (2005, p.179): “O principal embate de Butler foi com a premissa na qual se origina
a distinção sexo/gênero: sexo é natural e gênero é construído”. Essa distinção entre sexo
como uma realidade estanque e invariável sob a qual se inscreve e constrói culturalmen-
te o gênero é um dos eixos absolutamente centrais para o feminismo. O que a Butler vai
problematizar é até que ponto essa própria distinção, essa linha de divisão é algo arbitrário
produto das estruturas discursivas que apelam à noção de um dado natural inquestionável
para legitimar sua pretensão de regulação dos corpos, ou seja, um meio de assegurar a
produção de um corpo generificado. Tratar o sexo como um elemento imutável, previamente
estabelecido, um dado que escapa às interferências da cultura é resguardá-lo da própria
ação política de problematização e questionamento e, consequentemente, do processo de
investigação das práticas responsáveis pela naturalização das ideias normativas de sujeito.
O que é crucial para entender essa questão da Butler é ter em mente a recusa vee-
mente que a autora faz de admitir qualquer realidade que pretenda expressar uma dimen-
são pré-discursiva. Ou seja, na perspectiva butleriana, não há um dado que esteja fora da
ação das práticas de inteligibilidade e dos regimes de verdade que produzem justamente a
possibilidade de que determinada realidade seja concebível, modelando e fazendo aconte-
cer o próprio objeto que se pretende descrever. Não existe, segundo Butler, portanto, uma
ontologia anterior às práticas normativas. Apreender determinada realidade já pressupõe
de antemão um esquema de inteligibilidade que a constitui como possivelmente apreensível
e, por conseguinte, a torna já uma entidade politicamente saturada. Portanto, não há uma
dimensão do mundo social que esteja livre das interferências produtivas do poder, isto é,
uma dimensão neutra e natural. Na verdade, a própria noção de “natural” e “natureza” é um
recurso que as estruturas discursivas lançam mão para garantir a efetividade da formação
do sujeito unitário pretendido pelas práticas regulatórias de produção de gênero. Isto é:
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“o discurso que produz a sexualidade produz também aquilo que está ‘fora’
da lei como transgressão antinatural, assim como produz o que está cronolo-
gicamente ‘antes’ da lei, que se passa por aquilo que é no domínio do natural,
livre, ainda não regulado” (TORRANO, 2010, p. 53).
Nesse sentido, o que é problemático para a Butler no que diz respeito à distinção
entre sexo/gênero é o pressuposto de que existe uma instância biológica pré-discursiva e
autoevidente, que é o sexo. Admitir tal fato, uma dimensão isenta dos efeitos das práticas de
poder, implica desconsiderar a possibilidade de investigar os dispositivos e os mecanismos
pelos quais determinada realidade é naturalizada, ou seja, tornada “natural”. O apelo à uma
referência irrevogável e a-histórica é o que fundamenta a ficção da matriz de inteligibilidade
heteronormativo de um sujeito unitário, que expressa uma natureza preexistente à realidade
social, admiti-la implica operar nos termos do regime que concebe uma correspondência
entre sexo-gênero-desejo-práticas sexuais. Essa concepção, que delimita o que é cultura e
o que é natureza, presume que é possível uma perspectiva que abre mão das prerrogativas
discursivas, isto é, uma visão fora das estruturas linguísticas que permite ponderar sobre
seus próprios limites, como também pressupõe a possibilidade de acessar uma determinada
realidade objetivamente e imparcialmente. Contudo, segundo Butler, “[...] não há como recor-
rer a um corpo que já não tenha sido sempre interpretado por meio de significados culturais;
consequentemente, o sexo não poderia qualificar-se como uma facticidade anatômica pré-
-discursiva” (BUTLER, 2018, p. 15) Ou seja, é uma perspectiva inviável, na leitura da autora,
a defesa da capacidade de acessar a realidade ou um fato natural tal como ele é, pois a
própria concepção de “natureza” já se realiza no interior dos termos do discurso. Em suma,
o que a autora crítica, de fato, é o que ela chama de metafísica da substância.
Portanto, seguindo as conclusões de Michel Foucault (1999), para Butler, não há sexo
e gênero separado do dispositivo de poder que os produzem. Eles apenas se constituem
em uma aparência natural devido aos processos de naturalização provocados pelas práticas
discursivas reiteradas. A radicalidade da proposta da Butler encontra-se em pensar toda a
realidade social como processo, sendo assim, a materialidade dos corpos e do gênero é
efeito de mecanismos de poder, de modo que não há uma substância anterior ou preesta-
belecida, um atributo inerente e irredutível da corporalidade, já que “[...] o “corpo” é em si
mesmo uma construção, assim como o é a miríade de “corpos” que constitui o domínio dos
sujeitos com marcas de gênero” (BUTLER, 2018, p. 15).
“Butler extrai a ideia do corpo não como uma matéria estática, mas um cons-
tante materializar-se. Nesse sentido, o corpo não comporta uma substância a
priori, uma essência interior, mas seu sentido é dependente de determinadas
condições num enquadre histórico-cultural, isto é, o corpo não carrega um
sentido inerente, mas somente o faz mediante de um conjunto específico de
disposições numa dada cultura. A materialidade, então, assume o sentido de
um processo.” (DEMETRI, 2018, p. 29).
A crítica que a Butler faz ao feminismo, por ainda operar a partir de certos pressupos-
tos da metafísica da substância e da matriz heteronormativa, é crucial para entender como
Butler irá desdobrar sua própria noção de gênero e sexualidade, a partir do conceito de
performatividade. Elementos que serão discutidos na próxima parte desse trabalho.
“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher” (BEAUVOIR, 2009, p.267). A célebre frase
de Simone de Beauvoir ecoa fortemente no pensamento da Butler. O mérito de Beauvoir
é o de destacar como “mulher” não algo que se é, ou seja, uma essência preestabelecida
e imutável, ela é, na verdade, um devir, um processo, que tem seu papel ou posição nas
estruturas sociais de poder definido, não por uma natureza intrínseca, mas pelos conjuntos
de mecanismos culturais de hierarquização e marginalização que funcionam em um deter-
minado período histórico. Contudo, o pensamento de Beauvoir ainda opera nos termos do
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binarismo sexo/gênero que, como vimos, é absolutamente problemático para Butler, já que
para a filósofa estadunidense até a própria ideia de sexo é efeito dos esquemas regulató-
rios discursivos.
De todo modo, Butler radicaliza a proposta da pensadora francesa. Gênero e sexo
não são dados naturais, expressões espontâneas de uma natureza pré-discursiva. Não
são categorias estáveis e definitivas, por isso não devem ser compreendidos em esquemas
rígidos de pensamento. São realidades produzidas no interior das estruturas discursivas na
medida em que são executados performativamente.
Portanto, gênero não é um fato, mas um fazer, um ato, ou melhor, uma sequência
de atos, que fazemos regulados por mecanismos de poder que asseguram uma aparente
estabilidade. Nesse sentido, gênero não uma identidade natural, uma entidade a priori às
interferências normativas, que exprimimos espontaneamente. Ou seja, para Butler o “[...]
“núcleo do gênero”, é produzida pela regulação dos atributos segundo linhas de coerência
culturalmente estabelecidas “(BUTLER, 2018, p. 25). Sendo assim, não existe um corpo ge-
nerificado separado dos discursos que o constituem, das práticas que o regulam e produzem.
Ele é constituído performativamente na medida em que ele é encenado – sem, contudo,
exigir e pressupor, para isso, uma entidade por trás da encenação.
O gênero, segundo Butler deve ser entendido como uma espécie de performance, isto
é, uma encenação de uma série de códigos e atos, gestos e disposições, ou seja, uma repe-
tição de um script previamente estabelecido, contudo, é uma performance sem pressupor de
antemão um performer por trás da representação. Entretanto, essa “ausência” de performer
“não significa que não há sujeito, mas que o sujeito não está exatamente onde esperaría-
mos encontrá-lo – isto é, “atrás” ou “antes” de seus feitos” (SALIN, 2015, p. 66). Ou seja, o
sujeito generificado passa a existir na medida que o gênero é performado, desse modo, é a
própria repetição dos gestos que produz o sujeito que pretende exprimir como a causa da
performance, portanto, o agente não antecede e nem está atrás do ato. Nesse sentido, para
Butler, os atos na qual o gênero é constituído fazem acontecer, inauguram uma existência,
uma realidade que eles propõem expressar. Por isso, o ocorrer do gênero não é uma sim-
ples performance, mas é compreendido, segundo a filósofa, como performatividade, que
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consiste nesses “atos estilizados que, repetidos, realizam a “verdade” do gênero e simulam
uma certa essência interna” (DEMETRI, 2018, p.39). Conclui Butler:
Para Butler os atos de gênero são performativos. Butler nitidamente dialoga com a
teoria dos atos de fala do linguista inglês Jonh Austin, contudo, ela faz uma leitura profun-
damente inspirada pela interpretação do filósofo Jacques Derrida. Austin distingue os atos
performativos daqueles usados para descrever ou narrar algo, os constatativos. Segundo
Austin, os performativos são “aqueles que, ao dizer, realizam efetivamente o que está sendo
dito” (SALIN, 2015, p.124). Ou seja, “o performativo produz, opera, transforma uma situação,
tendo assim valor de força” (RODRIGUES, 2012, p. 152). Portanto, os atos performativos
têm um “valor de força”, isto é, têm a capacidade de produzir o que enuncia no instante
mesmo da enunciação, ele é uma ação que ao ser efetivada instantaneamente inaugura
uma realidade que não preexistia ao ato de fala, mas que passa a existir ao passo que é
pronunciada. Desse modo, afirmar que o gênero é performativo significa que:
“[...] os corpos não são meramente descritos; eles são sempre constituídos no
ato da descrição. Quando o médico ou a enfermeira declara “É uma menina!”
ou “É um menino!” não está simplesmente relatando o que vê (esse seria um
ato constatativo), mas está, efetivamente, atribuindo um sexo e um gênero a
um corpo que não pode ter existência fora do discurso” (SALIN, 2015, p. 125).
Portanto, não existe uma descrição neutra do sexo e do gênero, isto é, dizer o gênero já
é, em certa medida, produzi-lo, é interpelar e projetar uma série de expectativas que os cor-
pos terão que corresponder e, à proporção que são feitos corresponder, vão se constituindo
como corpos generificados. Para Butler, o gênero vai existindo à proporção que é encenado,
regulada por normas e estruturas de vigilância e punição. Nesse sentido, é o próprio fazer
e o repetir dos atos o fundamento ontológico do gênero, sendo assim, a aparência de uma
identidade “natural” e sedimentada é efeito dos gestos reiterados e regulados de gênero
e não aquele a causa destes. “O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de
atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristali-
za no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser”
(BUTLER, 2018, p. 31). Para Austin, como os atos performativos não são descrições, eles
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não têm pretensão de verdade, ou seja, eles não operam no “regime de falso/verdadeiro”.
Nesse sentido, segundo Butler, do mesmo modo, não existem expressões “verdadeiras” ou
“falsas” de gênero, o que produz a noção de uma “verdade” ou “essência” interna, como já
vimos, é a sua própria repetição contínua. Levando isso em consideração, a normatividade
que hierarquiza e marginaliza determinados estilos corporais reivindicado uma “verdade” de
gênero que expressaríamos naturalmente é radicalmente desontologizada e desnaturalizada.
O gênero acontece pela repetição. Não é uma substância rígida, estável, mas um
estilo corporal que se constitui no decorrer do tempo, reiterado continuamente sustentando
assim a ilusão de um eu permanente. Portanto, a aparente dureza ou fixidez do gênero, sua
“naturalidade”, não é causado por um núcleo essencial interno, mas sim pela sua condição
de “citação e repetição contínua”. Nesse sentido, signos corporais podem ser repetidos de
modo a desestabilizar a estrutura hegemônicas de gênero, denunciando a absoluta carência
de fundamento desses gestos, perturbando e subvertendo os esquemas estáveis através da
qual o sujeito generificado é construído, ou seja, seria uma repetição que não se constitui
como uma “simples imitação, reprodução e consequentemente consolidação da lei” (BUTLER,
2018, p. 29). Segundo Butler:
Por serem atos que precisam sempre ser reatualizados continuamente eles estão
abertos para serem resinificados e deslocados de maneira a denunciar e expor o caráter
contingente das identidades de gênero. Ou seja, é constitutivo do próprio modo de aconte-
cer do gênero a sua possibilidade de desestabilização. A dimensão frágil e subversiva da
repetição permite a condição dos signos corporais serem extraídos do seu contexto “original”
e realocado de um outro modo, não se fechando ou encerrando em nenhuma convenção
determinada (SALIN, 2015, p. 128). Nesse sentido, é a própria constituição da repetição que
assegura a modificação das normas socialmente constituídas. Derrida chama a fragilidade,
a abertura de todo signo de “iterabilidade”, essa noção será central para Butler discutir as
formas de subversão de gênero. “Para Butler, a iterabilidade em Derrida diz respeito a da
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estrutura formal dos signos, seu caráter relativamente aberto, que implica a repetição como
possibilidade de alteração dos termos” (GRAÇA, 2016, p. 24).
Derrida desdobra essa ideia a partir de uma divergência com a concepção de Austin
acerca dos atos performativos. Segundo o linguista inglês, os atos performativos são “bem-
-sucedidos apenas se mantém dentro dos limites do contexto e da intenção do autor” (SALIN,
2015, p. 127), ou seja, quando há um acordo entre o ato de fala e “a autoridade de quem a
profere, o contexto e as suas circunstâncias” (RODRIGUES, 2012, p. 152). Quando isso não
ocorre, segundo Austin, o ato de fala é “mal-sucedido”, ou seja, ele fracassa na sua preten-
são convencional. Contudo, para Derrida essa possibilidade de o signo não corresponder
com o seu contexto original é propriedade constitutiva do próprio signo. Ou seja, todo signo
está aberto e sujeito a ser re-citado de modo a alterar sua funcionalidade usual, podendo ser
resignificado a partir de sua aplicação em outro contexto de fala. O fracasso, a não adequa-
ção do signo à sua intenção original, é intrínseco ao próprio signo que, desse modo, pode
ser deslocado e transplantado devido ao seu caráter flexível e variável. “Derrida argumenta
que, em vez disso, os signos podem ser transplantados para contextos imprevistos e citados
de modo inesperados, uma apropriação e um deslocamento que ele chama de transplante
citacional [...]” (SALIN, 2015, p. 128).
A fragilidade dos atos de gênero, pela necessidade de repetição, e a possibilidade de
deslocamento e transporte desses signos para novos cenários e usos não convencionais
é fundamental para Butler pensar as estratégias queer de subversão e desnaturalização
da ficção do sujeito generificado da estrutura heteronormativa. Ou seja, a noção de um eu
unitário que é marcado substancialmente pela continuidade e correspondência entre sexo-
-gênero-desejo considerando que “o sexo, em algum sentido, exige um gênero — sendo
o gênero uma designação psíquica e/ou cultural do eu — e um desejo — sendo o desejo
heterossexual e, portanto, diferenciando-se mediante uma relação de oposição ao outro
gênero que ele deseja.” (BUTLER, 2018, p. 24). A noção desse sujeito unitário, coerente
e idêntico a si mesmo é radicalmente abalado pela cultura do travestismo. Que subverte e
zomba do “modelo expressivo de gênero e da ideia de uma verdadeira identidade de gênero”
(BUTLER, 2018, p. 98). Desse modo, segundo Butler:
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Nesse sentido, a “performance da drag” desmonta e desarranja a ficção de um sujei-
to unitário fundamentado na noção de uma continuidade entre corpo-gênero-encenação.
Como também denuncia a fragilidade e a vulnerabilidade das estruturas e das identidades
que regulam as práticas de gênero. Essas identidades são gestos corporais contingentes,
arbitrários, sujeitos a serem recontextualizados e deslocados, indicando o mais absoluto
vazio de fundamento dessas categorias, ou seja, como elas são entidade fluidas e variáveis.
Sendo assim, a suposta unidade natural e fundacional, que causa a coerência do sujeito
generificado é dessencializado, destacando, desse modo, o caráter fictício e politicamente sa-
turado de sedimentação via repetição reiterativa, das materialidades corporais, contestando,
desse modo, a aparente estabilidade e fixidez das expressões de gênero. A representação
do gênero nunca está completamente assegurada e definitiva. A execução nunca está ple-
namente adequada com as normas que delibera a encenação prevista. Nesse sentido, essa
fragilidade da representação revela a possibilidade invariável de rompimento e desvio dos
esquemas regulatórios que definem a inteligibilidade de gênero passível de reconhecimento.
Essa imitação que repete, em uma nova reconfiguração ou reposicionamento, gestos
e condutas de gênero é o que a Butler vai chamar de paródia. A performance da drag, para
Butler, contudo, não apenas desestabiliza a aparência rígida e naturalizada das identidades
hegemônica da matriz heteronormativa, ela também “revela implicitamente a estrutura imi-
tativa do próprio gênero — assim como sua contingência” (BUTLER, 2018, p. 99).
Não existe um “original” que é imitado, o que a paródia faz demostrar é a própria es-
trutura imitativa que é constitutivo de toda a expressão de gênero. “Ser” um gênero é imitar
uma série de códigos e significados culturalmente estabelecidos que por ter sua reiteração
garantida por mecanismos rígidos de poder são sedimentadas e cristalizadas, produzindo
uma aparente substancialidade do gênero.
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Nesse sentido, não existe um gênero “original”, “verdadeiro”, “normal”, e, consequente-
mente, um “deturpado”, “falso”, “anormal”; o que existe são encenações de gestos, condutas,
desejos, que repetem um “script” arbitrário que é regulado por esquemas normativos que
definem as expressões aprovadas e/ou ilegítimas de gênero. Não há uma necessidade ou
naturalidade na relação gênero-sexo eles são produtos de mecanismos de poder. Gêneros,
portanto, são estilos corporais que não são “plenamente originais, pois os estilos têm uma
história, e suas histórias condicionam e limitam suas possibilidades” (BUTLER, 2018, p. 100).
O grupo de corpos que não corresponde às normas de gênero compõe uma população
exposta à violência, ao risco eminente de morte, ao silenciamento e à expulsão das condições
mínimas de reconhecimento. São vidas despojadas de qualquer mecanismo de proteção e
segurança social. Para esses corpos, não aprovados nos esquemas de inteligibilidade social,
as condições que viabilizam a vida – necessárias a todo corpo vivente – é deliberadamente
desmantelada, produzindo, desse modo, vidas não vivíveis, inviáveis, pois são vidas que
não encontram no seu meio social tecnologias de apoio que possibilite seu perseverar no
existir. Essa situação politicamente saturada de desamparo e marginalização é o que Butler
chamará de “precariedade”.
“[...]uma formulação muito interessante, uma vez que esse primeiro direito
não pode estar fundamentado em nenhum governo ou instituição social es-
tabelecida; não é um direito positivo nesse sentido. Parece que há também
direitos ao pertencimento. Há direitos a uma textura social da vida” (BUTLER;
SPIVAK, 2018, p. 48)."
Ou seja, é uma espécie de direito que “ainda não está garantido por lei, mas tampouco
é natural” (BUTER; SPIVAK, 2018, p. 62). Ou seja, é direito que não está assegurado por
alguma instância jurídica ou pela autorização de um agente do Estado, muito menos ele
está fundamentado na existência de um princípio metafísico da humanidade em geral. Ele,
na verdade, segundo Butler, “pertence à natureza da igualdade, que por sinal não é natural,
mas uma condição social” (BUTLER; SPIVAK, 2018, p. 62). É um exercício de cidadania que
independe da autorização das estruturas jurídico-políticas, que excede às fronteiras buro-
cráticas da soberania estatal que define os limites de quem é passível de reconhecimento
político. Para a autora estadunidense, esse direito ao acesso dos direitos está atrelado a uma
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ação que acontece na cena pública vinculada à necessidade afirmar e demandar um perten-
cimento à comunidade política. Nesse sentido, Butler pensa as vias e táticas de resistência
dos grupos excluído e subtraídos das prerrogativas da cidadania, inspirada nessa possibili-
dade de compreender uma modalidade de direito que não está necessariamente vinculado
à autorização das instituições estatais, mas que, na verdade, pelo contrário, está envolvido
na busca pelo reconhecimento e pelas garantias que asseguram um pertencimento à polis.
Pode-se exercer e reivindicar direitos mesmo sendo destituído do status político necessário
para fazê-lo, sem, contudo, para isso recorrer a uma identidade essencial comum. Pois
esse direito não está fundamentado no Estado, ou em uma dimensão pré-discursiva, mas
sim no próprio ato de reivindicar direitos, ou seja, na simples capacidade de agir e discursar
publicamente – mesmo no espaço que isso seja legalmente proibido. Ou seja:
Butler faz essa análise inspirada pelas manifestações de grupos de imigrantes ilegais
de origem latina que ocuparam as ruas da Califórnia em 2006 cantado em espanhol o hino
nacional dos Estados Unidos. Esse grupo que é legal e violentamente proibido de participar
da comunidade política encena a liberdade e a capacidade de agir politicamente produzindo
como efeito as prerrogativas da cidadania da qual eles estão privados. Conclui Butler: “Esse
é um tipo de política performativa, com certeza, na qual fazer a reivindicação para se tornar
legal é exatamente o que é ilegal, e ele é feito mesmo assim e exatamente como um desafio
à lei pela qual se exige o reconhecimento” (BUTLER; SPIVAK, 2018, p. 60-61). Esses corpos
estão à margem dos dispositivos legais, não dispõe das garantias e da proteção das estrutu-
ras jurídicas, contudo, encenam e produzem performativamente em ato a condição política da
qual estavam destituídos, ou seja, eles instauram a liberdade política da qual eles buscavam
reivindicar no exato momento em que eles ocupam o espaço público visando conquistá-la.
“Se havia uma proibição, havia igualmente um ato performativo que contestava a proibição e
disputava, no espaço público – literalmente, na rua – os sentidos e significados de pertença
a uma nação que constantemente os rejeitava” (DEMETRI; TONELI, 2017, p. 324).
Butler faz referência à noção de contradição performativa para descrever esse pro-
cesso através da qual aqueles que são privados legalmente do exercício da cidadania,
inviabilizados de aparecerem no espaço público, de agirem e discursarem coletivamente
fazem justamente no ato de “exigirem o direito de se expressarem livremente” (BUTLER;
SPIVAK, 2018, p. 61). Ou seja, essa contradição diz respeito à encenação que minorias
excluídas realizam de gestos e signos que caracterizam a condição política da qual estão
desprovidos e que se constituem como o objeto da reivindicação. Butler concebe a contra-
dição performativa através da possibilidade de que categorias do direito que não operam
para determinados grupos, possam ser alterados e ressignificados através da encenação
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desses princípios, como a liberdade e a igualdade - que não são substâncias preexistentes
às práticas de exercitá-las - em condições não habituais, de modo a destacar a fragilidade
normativa desses termos podendo ser desestabilizados e denunciados ao serem repetidos
de forma imprevista por aqueles que estão inviabilizados de encená-los.
Tal como acontece com os signos e os gestos de gênero que podem ser contestados
e denunciados como não essenciais a partir de paródias subversivas, as categorias políti-
cas também podem ser recontextualizados e ressignificados pelo exercício de reiteração
deslocadora de modo a revelar a incoerência do “universalismo” e a fragilidade constitutiva
de tais princípios do direito positivo. Portanto, esse exercício performativo, segundo Butler:
“Uma vez que rejeitamos o ponto de vista que reivindica que nenhuma posição
política pode se apoiar na contradição performativa e aceitamos a função per-
formativa como uma reivindicação e um ato cujos efeitos se desenrolam com
o passar do tempo, então podemos de fato adotar a tese oposta, ou seja, a
de que não pode haver nenhuma política radical de mudança sem contradição
performativa.” (BUTLER; SPIVAK, 2018, p. 62-63)."
Inspirada pela noção arendtiana do “direito de ter direito”, Butler concebe uma mo-
dalidade de ação e de exercício de cidadania que “precede qualquer codificação legal e é
independente de qualquer apelo a um direito natural” (DUARTE, 2020, p. 14), ou seja, um
agir político que não precisa estar vinculado a uma autorização das estruturas burocráticas
e institucionais, limitados às fronteiras legais que determina quem é ou não portador de
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direitos. Desse modo, mesmo os grupos excluídos e expulsos da comunidade política, aque-
les deliberadamente induzidos ao abandonado e à precariedade, carentes das condições
mínimas de reconhecimento e de amparo de redes de apoio social, podem atuar na esfera
de aparição pública a fim de reivindicar direitos e condições mais viáveis de vida, de modo
que, no exato momento em que eles lutam coletivamente para a conquista dos princípios
que os qualifiquem como sujeitos de direito, tais minorias produzem e exercem a condição
de cidadania da qual eram desprovidos. Isso só é possível devido ao caráter performativo
do exercício desse direito.
Ele não requer um fundamento que preexista a própria ação, pois ele se fundamenta
no próprio fazer, no caso dos grupos desprivilegiados pelas estruturas jurídico-políticas, na
própria ação de demandar direitos, que já os proporciona o exercício das prerrogativas que
define a vida cidadã. Essa discussão só pode ser entendida no interior do pensamento da
Butler se levarmos em consideração a centralidade da proposta da autora em investigar
as formas de resistência e as possibilidades de desestabilização das práticas de poder por
parte das populações expulsas da comunidade política.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Portanto, a questão das estratégias de resistência é uma pauta crucial para a filosofia
problematizadora da Butler. Os desdobramentos que ela faz deslocando e ressignificando o
potencial político do ato performativo é um elemento chave para compreender como a autora
concebe as dinâmicas de “negociação” com o poder e as possibilidades de subversão polí-
tica. Desse modo, o pensamento da Butler faz acontecer as próprias quebras e cisões das
estruturas normativas que ele pretende denunciar com sua linguagem radical e perturbadora
e sua proposta política que leva ao limite as categorias do pensamento.
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14. RODRIGUES, Carla. Performance, gênero, linguagem e alteridade: J. Butler leitora de J. Der-
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17. TORRANO, Luísa Helena. O campo da ambivalência: poder, sujeito, linguagem e o legado de
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Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade
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