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O QUE É UMA MULHER?

UM OLHAR SOBRE O “FEMININO” A PARTIR DA


PERFORMANCE

Beatriz Ferreira Avinco (Universidade Federal de Uberlândia)


Disciplina: Arte e Feminismos, 2022/2, turma W

RESUMO

Este artigo analisa o “feminino” e a “feminilidade” sob a ótica da perspectiva de gênero em


relação com a performance artística. Este estudo considera conceitos-chave das teorias
feministas e teorias queer para analisar os “novos femininos” e como estes corpos se
encaixam na dicotomia de gênero social ainda vigente. Os conceitos relacionados ao
“feminino” vêm se alterando ao longo das décadas; mas o ato performativo da feminilidade
ainda pode ser visto como um enfrentamento, considerando os paradigmas de gênero ainda
existentes. Nesse sentido, muitas artistas performáticas questionam a relação entre o corpo
e o “ser mulher”. Assim, por meio de uma revisão conceitual e do estudo de caso de artistas
e suas obras, este artigo procura compreender a maneira como o “feminino” se alterou, e
como diferentes “femininos” se inserem na construção social da “mulher” nos dias de hoje.

Palavras-chave: teoria feminista, teoria de gênero, performance.

Introdução
Desde Simone de Beauvoir, o conceito de “feminino”, de “feminilidade” e de “mulher”
vem sendo readequado à medida que se entende sua posição numa estrutura social
e cultural. Aliado a esse caminho teórico, tem-se a performance como um meio pelo
qual o corpo é capaz de questionar a ele mesmo. Por isso, este artigo busca
questionar o “ser mulher” e as mudanças de significado dessa expressão a partir da
teoria queer, utilizando-se da performance como objeto de exemplificação.

A construção teórica de Judith BUTLER (1993) ainda é pertinente para considerar as


dicotomias de gênero vigentes. Também é possível ir mais além, para novas vertentes
da teoria queer que incluem reflexões sobre a transexualidade e outras variações do
espectro de gênero.
As teorias queer e o ato performático encontram terreno comum ao tratar o corpo
como elemento político no espaço. Porém, o entendimento do “ser mulher” ainda está
intrinsecamente ligado ao corpo de uma maneira que, muitas vezes, o reduz a isso.
Como última análise, este artigo busca refletir sobre obras performáticas sob a ótica
de MONTAGNER (2019) para observar a relação entre a performance e a
performatividade de gênero.

O que é uma mulher?

“Não se nasce mulher, torna-se.” (BEAUVOIR, 1949). Em sua obra O Segundo Sexo,
Simone de Beauvoir observou que “ser mulher” é, mais do que uma natureza
intrínseca, uma construção atribuída. Nesse âmbito, o estudo de Butler pode ser
interpretado como uma extrapolação analítica do pensamento de Beauvoir. Ela define
o gênero como a “repetição estilizada de ações ao longo do tempo”. Ao propor essa
definição, Butler dissocia o gênero do indivíduo, transformando-o numa construção
social - e, mais do que isso, numa série de ações, feitas propositalmente ou não, que
incutem o gênero em um indivíduo e que o criam, ao mesmo tempo 1. De maneira
direta, a filósofa propõe a reformulação da ideia de corpo e sexo a partir de cinco
premissas. São elas:

1. “A matéria do corpo é efeito direto de dinâmicas de poder; dessa


forma, o corpo não pode ser indissociado das normas regulatórias
que governam a matéria e dos significados dos efeitos materiais
dessas normas.
2. A performatividade do sexo é um processo de reiteração, em que a
nomeação de um sujeito, mais do que uma ação, é um poder
reaplicado de discurso que reproduz o próprio fenômeno que está
sendo nomeado.
3. O “sexo” é uma construção e norma cultural que incute a
materialização dos corpos.
4. Ao invés de ser algo atribuído ou apropriado a um sujeito, o próprio
“eu” é formado a partir da atribuição de sexo.
5. O processo de atribuição de sexo se torna um processo de
autoidentificação, e é a maneira pela qual um sistema social
heteronormativo é capaz de validar certas identificações enquanto
invalida outras.” (BUTLER, 1993)

1É importante reiterar que, neste momento lógico da teoria de Butler na obra Bodies That Matter,
gênero e sexo ainda não são dissociados.
Num sistema heteronormativo com o sexo como construtor do próprio indivíduo, tudo
é pautado por uma relação de inclusão e abjeção da norma. Dessa forma, “sexo” e
“gênero” geram e são gerados ao mesmo tempo, de maneira paradoxal; o sexo, para
a autora, é a construção social que associou determinadas condições biológicas a
uma performatividade de gênero.

Enfim, parte-se da ideia de que o “ser mulher” é uma ação realizada múltiplas vezes,
sem se exaurir de seu significado, mas se exaurindo da sua natureza criadora,
tornando-se um paradoxo. Ser mulher é, então, repetir padrões de ação e identificação
que fazem com que um indivíduo seja lido como mulher. Trata-se de adotar e
reproduzir padrões de gênero incutidos em si, e que são responsáveis por fazer com
que o indivíduo exista no seu contexto social e identitário.

1. Dicotomias de gênero

Na dialética platônica, “dicotomia” é a partição de um conceito em dois, contrários e


complementares. Sob a ótica butleriana, isso significa que certas ações estilizadas e
repetidas ao longo do tempo criam um indivíduo e o inserem em um dos dois extremos
complementares: “homem” ou “mulher”.

A dicotomia de gênero determina, entre outras coisas, os espaços que ocupam os


corpos. Nesse âmbito, POLLOCK (2019) observa, por meio das artistas
impressionistas Marie Cassatt e Berthe Morisot, como essa dicotomia é traduzida no
espaço e como ela é intrínseca à própria construção crítica na arte.

A história da arte, de maneira geral, assume que o movimento moderno não contou
com a participação de mulheres, mas a autora rebate que o movimento modernista
retratou principalmente a sociedade moderna vivida por homens.

A arte moderna ressaltava a inovação tecnológica que permeava um ambiente de


espetáculo, lazer e boemia. Ela se entrelaça com os conceitos do voyeur e do flâneur,
de Baudelaire. Pollock observa essa relação:

“Os encontros retratados ou imaginados são aqueles


entre homens que têm a liberdade de transportar seus
prazeres a diversos espaços urbanos e mulheres que
pertencem a uma classe subalterna e precisam trabalhar
em tais lugares, frequentemente vendendo seus corpos
a clientes ou artistas.” (POLLOCK, 2019)

De acordo com a autora, a arte modernista, no seu interesse em representar o lazer,


consumo e a bonança, frequentemente se volta para o nu feminino e os espaços de
bordéis e bares. Nesse sentido, o próprio corpo feminino se torna um objeto de cenário
utilizado para construir uma aura de representação.

Pollock se utiliza das obras das duas artistas para observar como o modernismo é
completamente diferente se comparadas as óticas feminina e masculina. Em primeiro
lugar, enquanto os homens tinham passe livre tanto no espaço urbano quanto no
doméstico, as mulheres eram restritas a esse último. As dimensões do lazer e dos
prazeres eram também reduzidas às mulheres. Mais do que isso, a frequentação, por
uma mulher, do espaço urbano preconizava também uma escala de classe, em que
os locais representados pelo típico artista modernista, como os bares e bordéis,
continham sempre mulheres de classe baixa – as únicas que frequentariam tais
espaços em tais condições. De mesma maneira, locais como o ambiente doméstico,
o jardim, ou o camarote da ópera traziam, em seu cenário ou objeto de observação,
mulheres da alta classe (ver Figura 1).
Figura 1. "In the Loge". Marie Cassat, 1878. Óleo sobre tela 81cm x 66cm. Fonte: Google Arts and Culture.

A relação entre ambiente, classe e gênero, segundo Pollock, fez com que a própria
noção de "feminilidade”, dependesse dessa combinação contextual. Uma mulher se
torna cada vez menos feminina – e, ipso facto, cada vez menos mulher – à medida
que frequenta locais cada vez mais públicos, tipificados como masculinos e regidos
pelo poder de consumo, passando a ser então território conquistável ou mesmo
objeto.

Ao retratarem mulheres, como também o faziam os artistas homens, Cassatt e Morisot


incluem uma dimensão mais próxima da vivência das próprias personagens
retratadas. Os enquadramentos, composições e temas das obras trazem um olhar que
não condiz com o mesmo olhar do flanêur baudelairiano, do olhar masculino. Estas
obras mostram, por meio da própria formalidade artística, uma resposta inconsciente
à visão das próprias artistas de sua realidade, delimitando, de maneira literal e
figurada, os espaços acessíveis à mulher e o outro lado da sociedade boêmia
retratada pelos artistas modernos.

Assim, no contexto de seu tempo, Cassatt e Morisot são capazes de fomentar a crítica
sobre o local da mulher e o espectro da feminilidade, ao mesmo tempo em que são
objeto desses paradigmas. Observa-se, então, uma definição bastante nítida do “ser-
mulher” e do que isso implica social e culturalmente.

2. Novos olhares sobre a teoria queer

Atualmente, a teoria butleriana encontra sua crítica na falta de enquadramento de


indivíduos que não se encaixam num espectro binário e cis-gênero. Nesse sentido,
muitas outras autoras exploram suas ideias incluindo também a ótica da não-
binaridade e da transexualidade, permitindo, assim, extrapolar as noções do
“feminino” e das “feminilidades” que são vistas, atribuídas e interiorizadas. Assim
observa BENTO (2019):

“Embora Butler afirme que não exista uma essência


interior que é posta em evidência através dos atos, não
diz nada sobre a especificidade dos processos de
construção dos corpos que buscam ajustar-se ao modelo
dimórfico, ou ainda, àqueles que jogam com as
ambiguidades e os reconstroem com esse objetivo, como
os drag kings e as travestis.” (BENTO, 2019)

Numa sociedade baseada na dicotomia de gênero, e partindo de uma lógica de


poder resultante dessa dicotomia2, levar em conta o gênero interno de um indivíduo
também significa exprimi-lo numa linguagem socialmente identificável. Dessa forma,
dentro de um discurso de desconstrução dos estereótipos de gênero, ainda existe a
situação paradoxal de indivíduos que se utilizam dessa mesma dicotomia para se
fazerem identificar fora desse espectro. Paralelamente a isso, SWAIN (2001) também

2A obra de Butler é largamente baseada nos preceitos de Foucault. Em sua análise, relações de poder,
sob a ótica de gênero, não são uma situação de agente e receptor, mas uma reprodução de contextos
em que, por consequência, determinado indivíduo se encontra uma posição de privilégio, enquanto
outro se encontra numa posição de subjugo.
observa que “as performances adequadas, segundo as normas, resultam em uma
identidade que nos torna visíveis ou que nos permite ser reconhecidos por aqueles
que chamo ‘os meus’”.

Tem-se, então, uma espécie de escala para a desconstrução do “ser-mulher” em


três passos:

(1) O “ser-mulher” se traduz, inicialmente, na performatividade que respeita os


preceitos socialmente construídos da dicotomia de gênero. É o caso, de forma
genérica, de afastar a validade de participação de mulheres desfem e suas
variações3 do movimento feminista por performarem características
“masculinas”. Nesse sentido, isso também limita a participação no feminismo
àquelas mulheres que apresentam uma performatividade característica da
ideia de “mulher” estabelecida socialmente, também criando certa resistência
à inclusão de pessoas trans;
(2) O “ser mulher” pode significar a incorporação de todas as características
chamadas abjetas, ou seja, tudo aquilo que “não é homem”;
(3) O “ser-mulher” pode ser descontruído além da dicotomia de gênero,
considerando a ideia do corpo abjeto mas imbuindo-se de signos e
performatividades que correspondem a ambos, gerando novas possibilidades.

PRECIADO (2014) pode ser vista como o extremo desta linha de raciocínio. A
autora, em seu Manifesto Contrassexual, propõe não apenas enxergar relações de
gênero como um produto social, mas dar as costas a essa performatividade,
assumindo corpos não pela dicotomia de gênero, mas como “corpos falantes”.

“A contrassexualidade é também uma teoria do corpo


que se situa fora das oposições homem/mulher,
masculino/feminino,
heterossexualidade/homossexualidade. Ela define a
sexualidade como tecnologia, e considera que os
diferentes elementos do sistema sexo/gênero
denominados ‘homem’, ‘mulher’, ‘homossexual’,
‘heterossexual’, ‘transexual’, bem como suas práticas e

3 A mulher desfem é aquela que nega a performatividade “feminina”, e assume e performa


características geralmente atribuídas ao gênero masculino. Esse termo, originalmente baseado no
termo biológico de “desfeminização”, é frequentemente associado aos estereótipos da lésbica
caminhoneira, fancha, bofinho, entre outros.
identidades sexuais, não passam de máquinas, produtos,
instrumentos [...]” (PRECIADO, 2014).

Afinal, como considerar, então, o que é uma mulher? À medida que novas teorias se
desenvolvem, e conforme se aprofundam os sentidos e as possibilidades sobre o
gênero e a sexualidade, essa distinção parece se tornar cada vez mais solúvel.
Entretanto, permanece clara a força da dicotomia de gênero enquanto geradora de
todas essas possibilidades e, ao mesmo tempo, perpetuadora dessa separação.

Uma mulher é um corpo?

O “ser-mulher”, hoje, se caracteriza por linhas bem mais tênues do que, por exemplo,
em 1880. Mulheres hoje são mulheres cis, lésbicas, trans, entre tantas outras formas
de se “performar” mulher na atualidade. Nesse aspecto, a arte da performance é
pertinente para trazer à tona esse dilema contínuo. Conforme observa MONTAGNER
(2019):

“Ao assumir o corpo enquanto materialidade a


(arte da) performance experimenta com
estratégias de ruptura que buscam reposicioná-lo
pelo ato performático.” (MONTAGNER, 2019).

Segundo GOLBERG (1979), a performance é um meio artístico ilimitado em suas


possibilidades de representação. Desde sempre, manifestos da performance
permitiram a crítica da própria experiência artística no cotidiano. A linguagem
performática sempre permitiu engajar grandes públicos e trazer o elemento de choque
capaz de fazê-los questionar as próprias noções de arte e cultura (GOLDBERG,
1979).

Nesse sentido, Montagner observa que um lugar-comum das performances, quando


realizadas por mulheres, é o desmantelamento de pré-definições sociais relacionadas
ao gênero. Isso pode se traduzir na docilidade, delicadeza, pureza e tantos outros
signos relacionados ao “feminino” socialmente imposto.

Uma primeira abordagem performática incorpora o princípio do corpo abjeto. Se o


“ser-mulher” parte da abjeção da norma (masculina), então considera-se também a
abjeção dos comportamentos e performatividades tidos como femininos. Isso inclui a
dimensão literal, com a presença de fluídos corporais, por exemplo, como faz Ann Liv
Young.

A performance também explora a mulher e o corpo como lugar, em sua relação com
o lar e com os sentidos de segurança, nutrição, aconchego, maternidade, abrigo. No
caminho inverso, a performance vai desde a crítica à extrapolação completa da ideia
do corpo-abrigo, expondo a dimensão misógina dessa interpretação ou trazendo o
corpo hostil ao que é socialmente esperado, como faz Aleta Valente.

Por fim, observa-se também o emprego do excesso e a asfixia no ato performático. O


excesso, enquanto extrapolação de uma determinada quantidade aceitável de algo,
pode levar à asfixia, num sentido figurado proposto por Montagner. Artistas
performáticas empregam este jogo, muitas vezes relacionando-o ao corpo nu, à
ultrassexualização, ao distanciamento completo de um estado de conforto. Esse
excesso e asfixia podem vir também sob a forma da reprodução de paradigmas de
maneira exagerada, a exemplo das produções de Rosa Luz e Elle di Bernadini.

1. Performatividades em performance

O trabalho de Ann Liv Young é reconhecidamente polêmico e desconfortável. Suas


performances ao vivo são caracterizadas pela agressividade e quebra da isenção e
segurança do espectador. A audiência é colocada numa situação de incômodo
constante, a exemplo da performance Mermaid4 (ver Figura 2), em que a artista salta
sobre o público. Em seu trabalho com Elektra5 (ver Figura 3), Young também traz uma
abordagem da clássica estória grega da vingança feminina com extrema intensidade,
desrespeito cênico e trechos deliberadamente desconectados. As intervenções “fora
do personagem” são constantes, com instruções para a equipe técnica em plena
performance, gritos e arremesso de objetos e fluídos na plateia.

A abordagem de Ann Liv Young é fortemente baseada no desconforto extremo da


plateia para relatar os paradigmas do corpo considerado feminino e seu papel. Na
vertente da performance que se utiliza da abjeção, o emprego de comportamentos
socialmente repugnantes ou problemáticos é um mecanismo de crítica e ataque.

4 YOUNG, Ann Liv. Mermaid, 2012.


5 YOUNG, Ann Liv. Elektra, 2014.
Entretanto, apesar da polêmica, seus próprios espectadores não se dão como
atacados; a provocação e o desconforto gerados pela indulgência ao abjeto e ao mau
comportamento são o que fazem do trabalho de Young uma linha de performance
extremamente calculada em sua autenticidade e autoria.

Figura 2. Trecho da performance "Mermaid", por Ann Liv Young, 2019. Fonte: MONTAGNER, Alessandra. “Do
corpo feminino em performance: exceder-se para não asfixiar”.

Figura 3. Trecho da performance "Elektra", por Ann Liv Young, 2014. Fonte: MONTAGNER, Alessandra. "Do
corpo feminino em performance: exceder-se para não asfixiar".
Já Aleta Valente, em sua performance Eletrodoméstica6 (ver Figura 4), se coloca como
pêndulo, equilibrando o peso entre o próprio corpo e um apanhado de equipamentos
eletrodomésticos presos juntos, como fogão, batedeira e aspirador de pó. Ao longo da
performance, ela permanece em giro e contrapeso infinitos, numa relação clara com
o papel da mulher enquanto doméstica e a relação social estabelecida entre o feminino
e o lar. Além deste trabalho, Aleta Valente também questiona a subversão dos papeis
sexuais e domésticos da mulher, adicionando especialmente a dimensão de classe,
em diferentes mídias.

Figura 4. Trecho da performance "Eletrodoméstica", por Aleta Valente, 2019. Fonte: Aleta Valente. Disponível
em: https://www.agentilcarioca.com.br/artists/32-aleta-valente/works/5467-aleta-valente-eletrodomestica-2019/.
Acesso em: 17 jun. 2023.

Rosa Luz e Elle di Bernadini, em suas performances na rodoviária de Brasília7 (ver


Figura 5) e Dance with Me8 (ver Figura 6), respectivamente, desafiam espectadores
espontâneos a encarar e interagir com o nu. Trata-se da nudez feminina, mas não em
seu sentido mais dicotômico. As duas artistas questionam a interação com este corpo,
cuja nudez pública é abjeta e, mais do que isso, cuja composição, no contexto da
transexualidade, é mais abjeta ainda.

6 VALENTE, Aleta. Eletrodoméstica, 2019.


7 LUZ, Rosa. Performance sem título, 2016.
8 DI BERNADINI, Ellen. Dance with Me, 2018.
A crítica e a interação se fazem de maneira espontânea e delicada se comparadas à
abordagem de artistas Ann Liv Young; Rosa Luz fica parada nas escadarias da
rodoviária, os seios à mostra, e a interação pública que se desenrola ao seu redor é
muito mais derivada do asco de certos espectadores e da resposta de outros à
violência destes primeiros. A exposição dos seios, uma característica corporal tão
tipificada como feminina – e ligada a tantas conotações, desde o seio lactante ao seio
sexualizado -, causa revolta e comoção não apenas por não condizer com as normas
sociais que regem aquele lugar, mas também por não se encaixarem num indivíduo
ou num corpo no qual seriam pressupostos.

É interessante observar como, neste caso, a polêmica é apenas a permanência da


artista num espaço público, um indivíduo que não performa o gênero conforme o
esperado e que causa reações sem ação prévia nenhuma além da sua presença.

Já Elle di Bernadini, em sua performance na Pinacoteca de São Paulo, se coloca nua,


coberta em folhas de ouro, e tira pessoas para dançar. Seu corpo é exposto mas ainda
se imbui de signos que remetem à delicadeza, pureza e valor; a dança, em música
lenta, traz uma dimensão que tornam íntimos espectador – agora participante – e
artista que performa. Em contraponto com a abordagem de Young, Elle di Bernardini
traz o embate da significação do corpo e do feminino de maneira delicada e
convidativa, envolvendo adultos e crianças e colocando a todos numa posição pessoal
que neutraliza reações como as experienciadas por Rosa Luz. Por meio da dança, di
Bernadini consegue se desviar do estigma do corpo transexual. E como fechamento
dessa interação, as folhas de ouro que recobrem a artista se aderem aos
espectadores, permitindo a cada um deles levar uma parte de si e da experiência, ao
mesmo tempo em que permite a interpretação daquilo que o corpo perde na interação
com o outro.
Figura 5. Trecho de performance sem título, por Rosa Luz, 2016. Fonte: Youtube. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=_kms4WYxTD4&t=40s>. Acesso em: 17 jun. 23.

Figura 6. Trecho da performance "Dance with Me", por Elle di Bernadini. Fonte: Youtube. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=VgeM7Qnpvxs&t=275s>. Acesso em: 17 jun. 23.

Considerações finais

Este trabalho teve como objetivo uma reflexão acerca da construção da imagem de
“mulher” e “feminino”, e como isso pode ser explorado teórica e artisticamente. Um
dos pontos mais importantes desta análise é perceber que, hoje, muito das teorias
iniciais acerca do feminismo são revisitadas para incluir novas percepções e
compreensões do espectro identitário de gênero. Nesse âmbito, o trabalho artístico
performático é um dos formatos que, talvez, melhor explore esse desenvolvimento,
permitindo trazer reflexões que colocam o corpo “de mulher” no espaço, com seus
estigmas, paradoxos, críticas, observações e extrapolações. Cada artista de
performance é capaz de incluir em seu trabalho dimensões diversas da compreensão
do que é ser mulher, e este conceito se torna cada vez mais amplo e fluído.

Referências

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LUZ, Rosa. Performance na rodoviária de Brasília. 2016. Performance pública com registro
audiovisual.

BERNADINI, Elle di. Dance with Me. 2018. Performance pública com registro audiovisual.

VALENTE, Aleta. Eletrodoméstica. 2019. Performance com registro audiovisual.

YOUNG, Ann Liv. Mermaid. 2012. Performance pública com registro audiovisual.

YOUNG, Ann Liv. Elektra. 2014. Performance pública com registro audiovisual.

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