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Giovana Oliveira de Russi
Mestranda em Linguística pela Universidade de Franca1.
Processo CAPES: 88882.367273/2019-01.
Introdução
Através dos anos, o conceito do belo feminino foi se modificando, passando por figuras
desnudas e proporcionais na Grécia Antiga; vestimentas longas e corpos cobertos por serem
tentadores na Idade Média; corpos mais rechonchudos, de ancas largas e seios volumosos no
Renascimento; corpos cilíndricos na década de 1920; nos anos de 1980 e 1990, as modelos
passando a ditar a beleza, com corpos altos e magros; até chegarmos nos dias atuais, em que os
padrões de beleza estão diretamente ligados ao ideal de saúde e estético, com corpos sarados e
magros.
A constante modificação dos conceitos de beleza cobra um preço das mulheres
especialmente. Com adventos tecnológicos, essa cobrança ultrapassa o privado e torna-se
pública, exigindo de mulheres até mesmo não famosas, o corpo perfeito nos padrões ditos. O
corpo que antes era privado, restrito ao íntimo, passa a ser público com publicações nas redes
sociais e todas as mulheres estão sujeitas a julgamentos e cobranças.
Diante da constante demanda pelo emagrecimento, a sociedade acaba por criar sujeitos
gordofóbicos, que expurgam o gordo das esferas públicas, o relegando ao privado num
movimento de invisibilização constante. Apesar do crescente movimento de autoaceitação e
normalização de corpos gordos, ainda é comum usuários de redes sociais, objeto de análise
deste artigo, se sentirem livres para ofenderem esses corpos não normativos através de
comentários como veremos.
Para analisarmos o movimento de gordofobia nas redes sociais, principalmente no
Instagram, faremos uso de conceitos como corpo e injúria da filósofa norte-americana Judith
Butler; a teoria dos atos de fala de J. L. Austin e mitos de beleza de Naomi Wolf. A análise de
um post específico da influencer Camila Monteiro pretende evidenciar como a injúria se
constrói afim de evidenciar a gordofobia dos comentários e ao mesmo tempo, como a escritora
consegue, através de suas fotos, ressignificar essa mesma injúria.
1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
– Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001
Analisaremos 4 fotos da influencer junto dos comentários feitos por usuários em suas
fotos originais e procuraremos entender como esses comentários são construídos e refletem
uma visão de sociedade alicerçada em um padrão de beleza magro, colocando o corpo gordo a
margem, algo a ser evitado e escondido, condenando-o a invisibilidade.
É possível dizer que o corpo encontra três lugares: epistemológico, ontológico e político.
O primeiro quando, através de atos de fala e do discurso, se torna concebível; o segundo quando
se torna regulável; e o último quando é passível de normatização e legitimação. “Os atos de fala
limitam os contornos dos corpos, suas articulações possíveis, suas ações possíveis. A imposição
arbitrária num ritual iterável tem como efeito a fixidez e a inevitabilidade.” (PINTO, 2013, p.
37).
Butler também teoriza a importância do poder, responsável pelo aparecimento de
sujeitos de uma maneira reguladora:
Como sujeito ao poder (que pertence a ele) e sujeito de poder (que o exerce), o sujeito ofusca as
condições de seu próprio surgimento; ele ofusca o poder com poder. As condições não só
possibilitam o sujeito, mas também entram na sua formação. Elas se fazem presentes nos atos
dessa formação e nos atos decorrentes do sujeito. (BUTLER, 2017, p. 22-23).
Ainda,
o poder age não só sobre o corpo, mas também dentro do corpo, que o poder produz não só os
limites do sujeito, mas também permeia sua interioridade. Com isso, o corpo parece ter um
“interior” que existe antes da invasão do poder (BUTLER, 2017, p. 96).
Sendo assim, podemos postular que a subjetivação ocorre de maneira diretamente ligada
à circulação dos dizeres, engendrada ao poder e ao político, sem que o corpo possa ser
constituído como tal. Os discursos e suas circulações não só constroem o que é passível de se
dizer, mas são também limitados pela produção exterior, do que não se pode dizer (BUTLER,
2017, p. 101). O que nos leva a repetição dos dizeres, que não são simples já-ditos ditos
novamente, mas lugares de inscrição da diferença pois todos que dizem podem ocupar posições
outras de enunciação e sentidos outros.
Butler afirma:
(...) Assim como nenhuma materialidade anterior está acessível a não ser através do discurso,
também o discurso não consegue captar aquela materialidade anterior; argumentar que o corpo
é um referente evasivo não equivale a dizer que ele é apenas e sempre construído. (PRINS;
MEIJER, 2002, p. 158).
A autora não vê um corpo como mera tela em branco onde se imprimem significados, o
corpo tem reações, objeções, rejeições e responsividade. Já o poder e o sujeito não são
dissociáveis e constituem um paradoxo.
Assim temos três elementos que se constituem no/pela interação: corpo, sujeito e poder.
No entanto, a problemática destacada por Souza é a criação de identidade própria que é
interpelada pelo
confronto a vários parâmetros identitários (acessados pela memória) que compõem nossos
julgamentos estéticos, atravessados continuamente por questões de ordem moral, política e
ideológica. Logo, o dizer sobre, que compõe um veredito estético, diz respeito a um sistema de
imagens em comum, administradas, conduzidas, visibilizadas pela mídia. (SOUZA, 2004, p.
182).
Ainda em Butler (1997), encontramos a injúria, e a autora levanta dois pontos relevantes
para nossa análise:
O sujeito que diz as palavras socialmente injuriosas é mobilizado por aquele longo fio de
interpelações injuriosas: o sujeito atinge um estado temporário de citar esse dizer, em performar
a si mesmo como origem desse dizer. (BUTLER, 1997, p. 50 – tradução nossa).
Ou seja, nenhuma injúria é origem de si, do próprio sujeito que a diz, carregando em si
uma historicidade e poder socialmente inscritos que, ao serem ditos novamente, fazem uso
dessa força para provocarem danos. A autora também fala sobre a possibilidade de
ressignificação presente na repetição:
(...) Ler tais textos contra si mesmos é conceder que a performatividade do texto não está sob
controle soberano. Ao contrário, se um texto age uma vez, pode agir de novo, e possivelmente
contra sua atuação anterior. Isso levanta a possibilidade de ressignificação como uma leitura
alternativa do performativo e do político. (BUTLER, 1997, p. 69 – grifo da autora).
Tanto a injúria quanto sua possível ressignificação, aparecerão claramente nas análises
posteriores, mostrando que o engessamento de dizeres impede essa ressignificação e dificulta a
criação de novos significados.
Mencionado anteriormente, a teoria dos atos de fala, proposta por Austin (1990) é algo
que nos interessa por dialogar diretamente com nosso corpus de análise. O autor propõe
inicialmente uma dicotomia, atos de fala constatativos – aqueles que literalmente constatam
algo do mundo real – e atos de fala performativos – aqueles que permitem a existência do que
está sendo dito através do dizer em si. Ao revisitar sua teoria, o autor descarta os primeiros e
passa a afirmar que há somente atos de fala performativos e que, ao enunciar algo, uma ação
passa a ser realidade, entendendo assim que o modo de operar da linguagem não é apenas uma
maneira de representar algo, mas também de fazer coisas, criando sentido.
É nesse momento em que Butler passa a usar o termo “atos performativos”, um encontro
entre atos de fala e performatividade, no instante em que se entende que a linguagem adentra e
molda o corpo e, como o corpo replica essa movimentação, produzindo linguagem, se
comunicando.
Austin (1990) divide os atos de fala em três tipos2:
1. Ato locucionário – a produção de “ruídos” que integram um vocabulário e uma
gramática, ligados por um sentido e referência.
2. Ato ilocucionário – “produzido ao dizer qualquer coisa, e que consiste da
manifestação de como as palavras devem ser compreendidas naquele momento (...)” (COSTA,
2009, p. 156).
3. Ato perlocucionário – “produzido pelo fato de dizer qualquer coisa, ou seja, o
ato dá lugar a efeitos” ou consequências, para si ou para outrem. (COSTA, 2009, p. 156).
2
Apesar do claro diálogo entre Butler e Austin, a autora (1997) faz críticas ao ideal de soberania do sujeito de
Austin, que diz o que pretende e é, ao mesmo tempo, universal e singular – podendo ser o sujeito ser
responsabilizado por seus autos, como se fosse consciente de si. Butler alega que essa tentativa de fixar um
significado através do percurso intenção-enunciado-ação, mostra um desejo de se chegar a uma verdade, o que
não é possível para ela.
A historicidade da beleza
Ao ter isso em mente, chegamos aos padrões de beleza e o que é dado como belo pela
sociedade. Mais do que um dado social e cultural, a beleza é algo histórico. Se antes a gordura
era vista como sinônimo de saúde, poder e beleza, passa agora a ser vista como vilã, algo a ser
eliminado, sinônimo de descuido próprio e doença.
Não é possível falar de padrões de beleza na atualidade sem mencionar o papel da mídia
em sua difusão e perpetuação, além de compreender o poder dessa construção para além dessa
mídia. Segundo Althusser (1980), a classe dominante detém o poder de Estado, tendo a seu
dispor o Aparelho (repressivo) de Estado, é também detetora dos Aparelhos Ideológicos de
Estado, por meio dos quais cria-se mecanismos de manutenção e/ou reprodução das condições
materiais, ideológicas e explorativas. A mídia é um desses aparelhos ideológicos de estado,
utilizada para manutenção do status quo.
A percepção de si é construída desde o nascimento e irá construir a percepção estética
do indivíduo, atrelada ao social, que será reiterada constantemente no decorrer da vida, criando
uma espécie de norma. Se pensarmos a trajetória do feminismo, o mito da beleza, como
nomeado por Naomi Wolf (1992, p. 12), é a uma resposta violenta ao movimento por empregar
imagens “da beleza feminina como uma arma política contra a evolução da mulher”. A mulher
se liberta da domesticidade, dos serviços domésticos, do cuidado exclusivo dos filhos, da
submissão ao homem, da dependência financeira e ganha a independência pessoal e financeira,
mas se vê presa em outro encargo de controle social.
A reação contemporânea é tão violenta, porque a ideologia da beleza é a última das antigas
ideologias femininas que ainda tem o poder de controlar aquelas mulheres que a segunda onda
do feminismo teria tornado relativamente incontroláveis. Ela se fortaleceu para assumir a função
de coerção social que os mitos da maternidade, domesticidade, castidade e passividade não
conseguem mais realizar. Ela procura neste instante destruir psicologicamente e às ocultas tudo
de positivo que o feminismo proporcionou às mulheres material e publicamente. (WOLF, 1992,
p. 13).
O mito da beleza, como explica Wolf, não é algo rígido, fixo e universal, mesmo no
mundo ocidental que tanto faz parecer que sim. E não é também o mesmo ao longo do tempo e
da história como já dissemos. O mesmo pode ser dito para o que é considerado padrão. Assim,
sua definição é o que, “na realidade, sempre determina o comportamento, não a aparência.”
(WOLF, 1992, p. 17). Podemos então perceber que o mito da beleza é usado como ferramenta
controladora da mulher e do feminino, e “é conseqüência unicamente da necessidade da cultura,
da economia e da estrutura do poder contemporâneo de criar uma contra-ofensiva contra as
mulheres.” (WOLF, 1992, p. 16).
Segundo Justo e Camargo,
A beleza é, portanto, algo social, cultural e histórico, mas é também algo real,
provocando sentimentos exorbitantes e que motivam ações contemplativas reverenciais,
consequentes de elementos aquém da percepção dos sentidos humanos.
Os padrões apresentados como modelos se perpetuam, atravessando o corpo e
impulsionando uma rede de consumo obcecada cada vez mais pelos novos procedimentos e
modelos, sem que nunca se atinja esse ideal. A demanda pelo corpo ideal atravessa idade,
gênero, raça e busca até mesmo o rejuvenescimento. O corpo que não se encaixa nesse padrão
estético magro, é constantemente bombardeado com “conselhos”, técnicas, dietas, produtos,
que levam a um emagrecimento, que o conforme ao ideal dado.
Não é possível dizer atualmente que somente o magro é belo, de forma alguma, há um
levante de corpos “fora do padrão” que têm ganhado cada vez mais espaço no mundo da moda,
com as modelos plus size por exemplo, além de diversas marcas que já aderiram à campanhas
como “Beleza Real” – da Dove ou da Calvin Klein, que estampa a modelo trans, negra e gorda
Jari Jones. Contudo, apesar da maior visibilidade e da ocupação destes espaços, antes
exclusivamente magros, não há uma representatividade igualitária, e o corpo gordo ainda é algo
massacrado.
Abrantes destaca a importância da mídia atual em construir imagens positivas e
“produzir na projeção da autoimagem associada ao belo, ao saudável, a capacidade
consumidora do que se liga a estes lugares historicamente significados”, mas lembra da
importância da imprensa escrita tradicional, notadamente do filão das revistas femininas, em sua
indispensável atuação na construção do mito da beleza como algo a ser perseguido pelas
mulheres cotidianamente e que, adiante, tornar-se-á um elemento também central para as
mobilizações através da rede contra a gordofobia e outras formas de opressão corporal.
(ABRANTES, 2019, p. 4).
que ressoam assim no lugar e na imagem do fracasso tão temida, associada com frequência ao
que move os significados atrelados ao medo da gordura e também a aversão aos gordos/as,
gerando padrões de atitudes discriminatórias que passaram a ser nomeados no presente como
gordofobia. (ABRANTES, 2019, p. 6).
3
Lei 12.737/2012, sancionada em 30 de novembro de 2012, pela então presidente Dilma Roussef, dispõe sobre a
tipificação de delitos informáticos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2012/lei/l12737.htm. Acesso em: 24 jul. 2020.
4
Vídeo disponível em: https://adage.com/creativity/work/evolution/4479?. Acesso em: 27 jul. 2020.
manipulação de imagem com um software. A modelo ganha lábios mais carnudos, pescoço
alongado, olhos maiores, nariz mais fino, dentre outras coisas. O vídeo termina com os dizeres
“não é de se admirar que nossa percepção de beleza está distorcida”5.
Lançado em 2010, o Instagram, agora parte do Facebook, bateu 1 bilhão de usuários
ativos em junho de 2018. A rede é um espaço de compartilhamento de fotos e imagens, e
rapidamente se tornou a plataforma preferida de influenciadores digitais, empresas, famosos e
anônimos que querem compartilhar desde uma simples foto do dia-a-dia, até uma propaganda
profissional de produto.
O Instagram se tornou a rede das mais variadas formas de ativismos, proporcionando
visibilidade a pessoas antes invisíveis, minorias que sempre tiveram suas vozes silenciadas
numa sociedade hetenormativa, branca, magra, patriarcal, de classe média e misógina. Uma
dessas classe invisibilizadas é a de pessoas obesas, ou gordas como muitos preferem ser
chamados.
A escritora e digital influencer Camila Monteiro conta em seu perfil a vida de uma
mulher gorda que está em seu terceiro processo de emagrecimento massivo, tendo perdido mais
de 160kg total. O perfil é cheio de postagens positivas que exaltam o corpo gordo nas mais
diversas situações, além de posts específicos que debatem tabus como “noiva não pode ser
gorda”.
A paulistana escancara sua vida e mostra a vida de uma mulher que está no seu terceiro
processo de emagrecimento e como foram processos diferentes. As consequências do
emagrecimento, a expectativa de um processo rápido e despreocupado em contraste com uma
realidade de um emagrecimento lento, doloroso e que resultou em necessidade de cirurgias para
retirada de excesso de pele, por exemplo.
Ela relata sua luta com a balança desde os 13 anos, destacando a importância que dava
a opinião dos outros e como a sociedade, incluindo familiares, amigos e namorados, exerciam
pressão pela perda de peso, além de processos de adoecimentos físicos e mentais.
Também vivia um relacionamento abusivo, e sempre ouvia do meu namorado que eu tinha que
ser magra. Ele me mostrava fotos de outras meninas, ficava comparando, o que prejudicou meu
psicológico e trouxe memórias da época de escola. (MONTEIRO, 2020, [n.p]).
5
Dizeres originais: “no wonder our perception of beauty is distorted.”
em que descreve o motivo pelo qual resolveu compartilhar sua história e sua vida no Instagram,
a importância que o marido teve no processo e diz que voltou a postar
decidida a me mostrar como eu era. A Camila gorda, sem photoshop, sem truques, sem máscaras.
A Camila que engordou tudo de novo e mais um pouco. Eu queria sim emagrecer, mas não iria
mais me esconder pra isso. Usei biquíni, roupas curtas, viajei, dancei, gargalhei, casei... eu VIVI!
Eu entendi, finalmente, que eu não precisava esperar ficar magra pra finalmente ser feliz.
(MONTEIRO, 2020, [n.p]).
A própria escritora censurou os nomes e fotos daqueles que fizeram os comentários, lhes
concedendo anonimato. O texto que acompanha a postagem se inicia por um questionamento
“Olhe bem essas fotos e me diga: isso é liberdade de expressão ou opinião disfarçada de
maldade?”, que nos leva a pesar a liberdade de expressão versus preconceito num ambiente
pouco regulado como a internet. A maioria dos usuários quando confrontados de seus
preconceitos e falas inapropriadas, se defendem dizendo que aquela é uma opinião ou que os
direitos de dizer são iguais. No entanto, a linha entre o que se pode dizer por liberdade e o que
não se pode dizer por crime, como é o caso de racismo por exemplo, nem sempre parece clara
e embasada em leis.
A gordofobia, apesar de caso de preconceito, não está prescrita na lei como crime de
intolerância, como é o caso de racismo, religião etc. e nem de injúria. Sendo enquadrado como
crime contra a honra em caso de constrangimento por parte da vítima, o crime ainda é pouco
combatido no país.
Figura 1 – Bonita de rosto
Fonte: MONTEIRO, 2020, imagem 16.
6
Publicação original disponível em: https://www.instagram.com/p/B_6EjnHHAK_/. Acesso em: 10 jun. 2020.
A injúria e o bem-estar do outro
Camila conta no post que costumava sumir da rede social sempre que ganhava um pouco
de peso porque começava a ser ofendida, o que fica claro nos dizeres do comentário da figura
2, “Já estava me perguntando quem era essa gorda de biquíni ao abrir meu insta. Tá enorme de
gorda de novo e agora quer fazer as seguidoras engolirem esse corpo aí!! Melhor sumir de novo
do insta e voltar só quando ficar magra. #dica”. Não se deve mostrar o corpo gordo, menos
ainda num contexto praiano “de biquíni” parece até mesmo uma ofensa. O comentário chega a
dizer que a influencer quer que suas seguidoras “engulam” aquele corpo, como algo indigesto
que precisa ser forçado goela abaixo. Disfarçada de dica, a ofensa é clara gordofobia,
condenando a pessoa ao retiro, à invisibilidade, de sua vida privada sem a exposição, até que
se torne aceitável novamente se mostrar, após o emagrecimento.
Para Foucault,
Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de
discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que
permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e
outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade, o estatuto
7
Publicação original disponível em: https://www.instagram.com/p/B_6EjnHHAK_/. Acesso em: 10 jun. 2020.
daqueles que tem o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 1979, p.
12)
Figura 3 – Coragem
A ideia de que corpos gordos não são desejados, desejáveis e sexuais, fica evidente no
comentário da figura 3, “Coragem desse marido dela hein kkkk até parece que gosta mesmo
dessa gorda pelancuda” que acompanha a foto do marido beijando a esposa. Essa preconcepção
de que o gordo é algo tão repugnante que não pode ser desejável, se alinha com Butler:
(...) a materialização de um determinado sexo vai se preocupar sobretudo com a regulação das
práticas identificatórias de tal forma que a identificação com a abjeção de sexo será
persistentemente repudiada. E, ainda assim, essa abjeção repudiada ameaçará expor as
presunções fundadoras do sujeito sexuado, fundado como sujeito por um repúdio cujas
consequências ele não pode controlar de todo. (BUTLER, 2019, p. 19).
As duas figuras trazem adjetivos usados para classificar o adjetivo “gorda”, que já não
basta para ofender a escritora, é preciso classifica-la com os intensificadores enorme e
pelancuda. Butler postula que há um paradoxo na injúria e xingamento uma vez que, apesar de
diminuir e depreciar, ao nomear algo, dá-lhe a possibilidade de existência social. O que significa
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Publicação original disponível em: https://www.instagram.com/p/B_6EjnHHAK_/. Acesso em: 10 jun. 2020.
que na mesma medida em que pode paralisar o ofendido, pode lhe proporcionar a produção de
uma resposta.
Se a linguagem pode sustentar o corpo, pode também ameaçar sua existência, como
quando condena um corpo a invisibilidade – na figura 2 – ou como quando, através de um ato
de fala, que não somente anuncia o que está por vir, mas assinala uma certa força na linguagem.
A noção de que a linguagem fere aparenta depender da relação inseparável não só entre corpo
e discurso, mas também entre discurso e efeito (BUTLER, 1997).
Sobretudo por se tratar de um discurso online, não é possível antever o tipo de reação
que essa tipologia de comentários irá causar, o que nos leva a pensar que o mais prudente seria
a preservação das partes pelo não comentário. A necessidade de injuriar, ofender o outro, aquele
que nem se conhece, mostra uma face da sociedade que é velada, a do preconceito contra o
diferente.
Butler (1997, p. 23) afirma que “o discurso não só lesiona como uma de suas
consequências, mas constitui a lesão em si, deste modo se tornando uma forma inequívoca de
conduta.” Isso quer dizer que o discurso injurioso é um ato de fala perlocucionário. Contudo, a
autora também postula que o discurso de ódio “age como um ato de fala ilocucionário,
lesionando em e através do momento do discurso, e constituindo o sujeito através dessa lesão,
então o discurso de ódio exerce uma função interpelativa.” (BUTLER, 1997, p. 24). Ou seja, o
discurso de ódio, de injúria, constitui o sujeito que lesiona ao lesiona-lo, criando um paradoxo
como já dissemos, num discurso que pretende anular o outro, acaba por proporcionar a subjeção
deste outro, o tornando um sujeito social.
Somente o emagrecimento não basta, é preciso que o corpo fique liso, firme, perfeito.
“Esse excesso de pele aí vc vai tirar né?? parece que vc tá derretendo. O Carlos vai te largar
rapidinho se vc não passar a faca nesse troço aí.” é o comentário que acompanha a foto da
paulistana em frente ao espelho de um provador de roupas segurando o excesso de pele da
barriga (fig.4).
Aqui podemos observar alguns aspectos do controle do corpo pelo outro. Não basta
emagrecer, como já atestamos, é preciso que o corpo esteja perfeito dentro daquilo que é
determinado padrão. O excesso de pele proveniente de qualquer emagrecimento massivo, deve
ser retirado pois é remanescente da abjeção do gordo, não podendo coexistir com a perfeição
do corpo magro. Há também a crença de que, além de não ser digno de amor, o corpo gordo é
algo descartável de tão repugnante, um abjeto que, como já dissemos anteriormente, não é
sexual, o que acaba por reafirmar ainda dizeres machistas de que o desejo da vida de uma
mulher é ter um homem e que perde-lo é algo trágico e a ser evitado.
Butler teoriza que há vidas que são vivíveis e vidas que “são invivíveis”. Esses sujeitos,
não são vistos como sujeitos, sua legalidade e status político estão interditados. São corpos
abjetos, cujas normas que delimitam as vidas que importam, não são cumpridas.
9
Publicação original disponível em: https://www.instagram.com/p/B_6EjnHHAK_/. Acesso em: 10 jun. 2020.
O abjeto se situará precisamente naquelas zonas inóspitas e inabitáveis da vida social, que são,
não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo
habitar sob o signo do inabitável é necessário para que o domínio do sujeito e de suas fronteiras
seja circunscrito. (PORTO, 2016, p. 162)
Esse traço de abjeção fica muito claro com a utilização do substantivo troço, que
determina que nem para ser nomeado o corpo gordo serve, é algo tão descartável e execrável
que não merece ao menos terminação linguística própria, é um troço.
Conclusão
REFERÊNCIAS
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