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Judith Butler, no seu livro, de acordo com Elizabeth Sara Lewis em “Teoria(s) Queer e
performatividade: mudança social na matriz heteronormativa”:
Faz-se necessário aqui explicar que a autora se baseou, num primeiro momento,
na Teoria dos Atos de fala de Austin – citado no capítulo anterior. Austin propõe
aplicar sua concepção performativa a toda a linguagem, usando o ato de fala como a
unidade básica de significação.
Atemo-nos aqui aos atos de fala constativos e performativos – que foram a base
de suas distinções iniciais, pois é nos enunciados performativos que Austin se concentra
para provar que as relações entre contexto e sentido estão evidentes.
Atos de fala constativos são aqueles que descrevem algo e têm valor de verdade.
Por exemplo, quando alguém pergunta “Onde está o livro Moby Dick?” e outro alguém
responde: “O livro Moby Dick está na estante” não há o que se duvidar desta última
frase, esta resposta, pois ela está descrevendo o local onde encontra-se o livro.
Já os atos performativos são aqueles que, para serem bem sucedidos, devem se
encaixar em esquemas pré-definidos socialmente; ao contrário dos constativos,
performativos não descrevem nada e não podem ter valor de verdade.
“Compare as elocuções “Está chovendo lá fora” e “Eu vos declaro marido e mulher”. A
primeira pode ser qualificada de verdadeira ou falsa – basta olhar pela janela para verificar se de
fato está chovendo. A segunda, porém, pode ser bem-sucedida ou malsucedida, mas não
qualificada de verdadeira ou falsa. A primeira frase, “Está chovendo lá fora”, portanto, é um ato
de fala constativo: descreve algo e tem valor de verdade. A segunda, “Eu vos declaro marido e
mulher”, por outro lado, é um ato de fala performativo: não descreve nada e não pode ter valor
de verdade; a própria elocução faz algo, realiza uma ação – no caso, a ação de casar duas
pessoas. É bem-sucedida (ou “feliz”, na terminologia austiniana) quando é dita pela pessoa
adequada, nas circunstâncias adequadas e no momento adequado. No caso de um casamento
católico, por exemplo, a pessoa adequada seria o padre, as circunstâncias adequadas incluiriam
um casal cisgênero e heterossexual, dentro de uma igreja, na frente de convidados/as etc. e o
momento adequado seria o final da cerimônia. Se eu, enquanto professora, falo “Eu vos declaro
marido e mulher” para um casal de estudantes em sala de aula, as condições de felicidade não
são respeitadas e o casamento não será bem-sucedido.”
O que conhecemos sobre sexualidade é algo muito recente. A palavra
“homossexual”, por exemplo, como palavra, foi usada pela primeira vez pelo austro-
húngaro Karl-Maria Benkert, em 1869, assim como a palavra “heterossexual”
também foi inventada por ele, anos depois.
Butler define o gênero como algo produzido na repetição de atos de fala e nas
estilizações corporais.
A “definição” de gênero que Butler (2003, p. 59) [eu , Bianca, estou citando você,
mas você está citando Butler – seria ainda em Gender Trouble, sim? Mas como faço
essa citação corretamente???] propõe é a seguinte:
Dizer “É uma menina!” quando um bebê nasce, uma vez apenas, não é
suficiente, pois aquele bebê só se tornará uma menina (e depois uma mulher) com o
passar dos anos e das reentrâncias sociais e psicológicas que este termo traz consigo;
através de processos sociais repetidos vinculados ao termo “menina”.
“Tais processos incluem ser encorajada a vestir saias e vestidos, usar a cor rosa, ter cabelo
cumprido e usar colares, pulseiras e brincos (a “estilização repetida do corpo” mencionada
na citação acima); ser encorajada a brincar com bonecas em vez de carrinhos e bolas; ser
submetida à expectativa de mostrar suas emoções e não ser agressiva e, mais tarde na vida,
de sentir desejo por homens. Em outras palavras, a criação do gênero (e da sexualidade) não
é um ato ou evento singular; é uma produção, uma performance, ritualizada e reiterada. É
importante frisar que essas performances não envolvem simplesmente atos de fala, mas
também estilizações corporais (roupa, cabelo etc.), gestos e ações corporais (por exemplo,
um menino que mostra os músculos dos braços, sugerindo força e masculinidade), silêncios
(não contestar um insulto homofóbico pode reforçar a marginalização da homossexualidade,
por exemplo) etc.”
Este enunciado do médico, aprioristicamente um ato de fala constativo, na
verdade é um ato de fala performativo, haja vista toda a gama de condições
socializantes a que este bebê será submetido.
Butler, ousada e incisiva, lança aqui um axioma que engendra toda a sorte de
retaliações, violências e humilhações que indivíduos sofrem ou sofrerão dentro da
sociedade mediante o alinhamento sexo-gênero-desejo prescrito pela mesma.
“Nos esquemas de inteligibilidade disponíveis nesta matriz, o sexo “biológico” de uma pessoa
deve se alinhar com seu gênero, e essa pessoa deve sentir desejo sexual por pessoas do sexo e
gênero “opostos”. Em outras palavras, uma pessoa que nasce com uma vagina deve se
identificar como mulher e desejar pessoas que nasceram com pênis e se identificam como
homens. As pessoas cujo sexo, gênero e desejo não se alinham desta maneira – e/ou cujas
práticas e gostos sexuais borram os limites do alinhamento15 – são consideradas doentes,
desviantes, estranhas, inumanas... ou, talvez pior, não são consideradas de modo algum. De
acordo com Butler (2015, p. 21, grifos da autora), “uma vida tem que ser inteligível como uma
vida, tem de s[e] conformar a certas concepções do que é a vida, a fim de se tornar
reconhecível”. A matriz heteronormativa é também uma matriz de inteligibilidade, uma maneira
de entender, interpretar e reconhecer o mundo e as vidas. Ao não ser “inteligível” dentro das
prescrições da matriz heteronormativa – ao não ser cisgênero e heterossexual, com práticas e
performances heteronormativas – as pessoas não são reconhecidas como pessoas no sentido
pleno.”
[depois vai vir uma parte sobre a transexualidade na visão de Butler, mas vamos
começar com as coisas acima e depois expandir]