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Capítulo 2 - Fundamentos teóricos

Seção 2.1 - Performatividade e transexualidade

Inauguro este capítulo me respaldando em Judith Butler e sua Teoria da


Performatividade de Gênero, proposta por ela no livro “Problemas de Gênero:
Feminismo e subversão da identidade” (2003). Para Butler, a performatividade de
gênero consiste nos atos de fala, uma vez que as reiterações dos atos acabam por
amalgamarem repetições que contêm um prévio conjunto de significados, um conjunto
de significados já estabelecidos socialmente e, de acordo com a autora, quem de alguma
forma modifica, subverte ou craveja essas reiterações acaba por se tornar vítima de uma
série de violências sobre si mesmo e sobre suas ações perpetradas no mundo.

Judith Butler, no seu livro, de acordo com Elizabeth Sara Lewis em “Teoria(s) Queer e
performatividade: mudança social na matriz heteronormativa”:

“... critica certas vertentes do feminismo, em particular o feminismo da diferença ou feminismo


da segunda onda, por pressuporem que o termo “mulher(es)” denote uma identidade comum e
um sujeito estável, assim criando um paradoxo: a reificação das relações de gênero que o
feminismo pretende combater. Para a autora, “não há identidade de gênero por trás das
expressões do gênero; essa identidade é performativamente constituída, pelas próprias
‘expressões’ tidas como seus resultados” (2003, p. 48, grifo da autora); ou seja, o gênero não é
uma propriedade essencial, inata, estável ou pré-discursiva das pessoas, é performativo.
“Peformativo” aqui não quer dizer “teatral”; algo performativo no sentido butleriano cria o que
nomeia.”

Faz-se necessário aqui explicar que a autora se baseou, num primeiro momento,
na Teoria dos Atos de fala de Austin – citado no capítulo anterior. Austin propõe
aplicar sua concepção performativa a toda a linguagem, usando o ato de fala como a
unidade básica de significação.

De modo resumido, Austin se debruça no contexto social das relações entre os


falantes, demonstrando que na linguagem não temos apenas enunciados descritivos
(aqueles que descrevem algo no mundo), antes diversas falas que não são descritivas,
falas que significam coisas diferentes de “verdade” e “falsidade”, onde a linguagem não
se limita apenas aos enunciados descritivos ou apenas ao próprio código linguístico, as
convenções sociais de várias ordem entram em cena como lugares essenciais de análise.
Tanto que para tal, Austin nos ensina que a linguagem é uma forma de ação,
uma forma constituinte do real e, portanto, parte do real e não mais meramente a
representação ou correspondente da verdade, a linguagem enquanto forma de ação cria a
verdade.

Atemo-nos aqui aos atos de fala constativos e performativos – que foram a base
de suas distinções iniciais, pois é nos enunciados performativos que Austin se concentra
para provar que as relações entre contexto e sentido estão evidentes.

Atos de fala constativos são aqueles que descrevem algo e têm valor de verdade.
Por exemplo, quando alguém pergunta “Onde está o livro Moby Dick?” e outro alguém
responde: “O livro Moby Dick está na estante” não há o que se duvidar desta última
frase, esta resposta, pois ela está descrevendo o local onde encontra-se o livro.

Já os atos performativos são aqueles que, para serem bem sucedidos, devem se
encaixar em esquemas pré-definidos socialmente; ao contrário dos constativos,
performativos não descrevem nada e não podem ter valor de verdade.

Para poder explicá-los com acuidade notória, recorro novamente à Elizabeth


Sara Lewis em “Teoria(s) Queer e performatividade: mudança social na matriz
heteronormativa”:

“Compare as elocuções “Está chovendo lá fora” e “Eu vos declaro marido e mulher”. A
primeira pode ser qualificada de verdadeira ou falsa – basta olhar pela janela para verificar se de
fato está chovendo. A segunda, porém, pode ser bem-sucedida ou malsucedida, mas não
qualificada de verdadeira ou falsa. A primeira frase, “Está chovendo lá fora”, portanto, é um ato
de fala constativo: descreve algo e tem valor de verdade. A segunda, “Eu vos declaro marido e
mulher”, por outro lado, é um ato de fala performativo: não descreve nada e não pode ter valor
de verdade; a própria elocução faz algo, realiza uma ação – no caso, a ação de casar duas
pessoas. É bem-sucedida (ou “feliz”, na terminologia austiniana) quando é dita pela pessoa
adequada, nas circunstâncias adequadas e no momento adequado. No caso de um casamento
católico, por exemplo, a pessoa adequada seria o padre, as circunstâncias adequadas incluiriam
um casal cisgênero e heterossexual, dentro de uma igreja, na frente de convidados/as etc. e o
momento adequado seria o final da cerimônia. Se eu, enquanto professora, falo “Eu vos declaro
marido e mulher” para um casal de estudantes em sala de aula, as condições de felicidade não
são respeitadas e o casamento não será bem-sucedido.”
O que conhecemos sobre sexualidade é algo muito recente. A palavra
“homossexual”, por exemplo, como palavra, foi usada pela primeira vez pelo austro-
húngaro Karl-Maria Benkert, em 1869, assim como a palavra “heterossexual”
também foi inventada por ele, anos depois.

Todavia, não da maneira identitária que conhecemos hoje. Lá no século XIX,


quando Benkert a cunhou, ela tendia ao pejorativo, um estado “desviado” da psique
humana. Categorias identitárias que hoje em dia nos são naturalizadas, tais como
“gay”, “lésbica”, “bi” e “hétero” provêm da década de 60 do século passado.

Ao longo da história, homens e mulheres vêm se organizando política e socialmente


de diversas maneiras e em momentos diferentes. Questões de gênero começaram a
espocar lá com a Teoria Queer – apresentada no capítulo anterior.

Butler define o gênero como algo produzido na repetição de atos de fala e nas
estilizações corporais.

A ideia da repetição é um conceito central da teoria da performatividade de Butler


(1990, 1993). Ela insiste que temos uma tendência a repetir certas ideias, falas e
estilizações corporais, o que, no decorrer do tempo, cria uma aparência de naturalidade.
Ao mesmo tempo, ela insiste que não somos fadados a repetir sempre a norma; dentro
da repetição também tem a possibilidade de subverter e mudar a norma.

A “definição” de gênero que Butler (2003, p. 59) [eu , Bianca, estou citando você,
mas você está citando Butler – seria ainda em Gender Trouble, sim? Mas como faço
essa citação corretamente???] propõe é a seguinte:

“O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de


uma estrutura reguladora altamente rígida, [os quais] se cristaliza[m] no tempo para
produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser.”

Tendo em vista que a sociedade foi se delineando de maneira punitivista e


conservadora no afã de manter o patriarcado – braço maior do capitalismo - sempre
como sistema norteador de todos os outros subjacentes a ele, tanto a medicina como
a maioria das ciências do século retrasado e até passado tendiam/ tendem a
estratificar indivíduos para manter a base do patriarcado – o casamento e a
reprodução de filhos para mão de obra do capital.
Quando nasce uma criança e o médico enuncia “É uma menina!”, parece-nos, à
primeira vista, que isto está posto e é algo intransponível: aquele pequeno ser deverá
se comportar de maneira tal – dócil, subserviente, recatada, etc., para se casar um
dia e gerar filhos.

Dizer “É uma menina!” quando um bebê nasce, uma vez apenas, não é
suficiente, pois aquele bebê só se tornará uma menina (e depois uma mulher) com o
passar dos anos e das reentrâncias sociais e psicológicas que este termo traz consigo;
através de processos sociais repetidos vinculados ao termo “menina”.

Ainda recorrendo à Lewis em “Teoria(s) Queer e performatividade: mudança social


na matriz heteronormativa”:

“Tais processos incluem ser encorajada a vestir saias e vestidos, usar a cor rosa, ter cabelo
cumprido e usar colares, pulseiras e brincos (a “estilização repetida do corpo” mencionada
na citação acima); ser encorajada a brincar com bonecas em vez de carrinhos e bolas; ser
submetida à expectativa de mostrar suas emoções e não ser agressiva e, mais tarde na vida,
de sentir desejo por homens. Em outras palavras, a criação do gênero (e da sexualidade) não
é um ato ou evento singular; é uma produção, uma performance, ritualizada e reiterada. É
importante frisar que essas performances não envolvem simplesmente atos de fala, mas
também estilizações corporais (roupa, cabelo etc.), gestos e ações corporais (por exemplo,
um menino que mostra os músculos dos braços, sugerindo força e masculinidade), silêncios
(não contestar um insulto homofóbico pode reforçar a marginalização da homossexualidade,
por exemplo) etc.”
Este enunciado do médico, aprioristicamente um ato de fala constativo, na
verdade é um ato de fala performativo, haja vista toda a gama de condições
socializantes a que este bebê será submetido.

Destarte, Butler lança um novo paradigma sobre os atos performativos e


constativos de Austin, acenando para o cunho social advindo da repetição de como que
um ato supostamente constativo se torna performativo, e, assim, amplia este último.

“você-será-hetero-ou-não-será-nada’” (BUTLER, 2003, p. 168).

Butler, ousada e incisiva, lança aqui um axioma que engendra toda a sorte de
retaliações, violências e humilhações que indivíduos sofrem ou sofrerão dentro da
sociedade mediante o alinhamento sexo-gênero-desejo prescrito pela mesma.

A autora, que parte de teorizações de Monique Wittig (1980), a e se debruça


sobre a heteronormatividade compulsória, que, em suma, é a categorização de
indivíduos em cima do binário sexual – homem e mulher, que visa condicionar
indivíduos, suas mentes, seus procederes, suas agências sociais no mundo de acordo
com uma estrutura feita de imposições cristalizadas, punitivistas e mesquinhas, sempre
visando, como já dito, a manutenção do sistema patriarcal-capitalista.

Sobre esta estrutura, nos assinala Lewis em “Teoria(s) Queer e


performatividade: mudança social na matriz heteronormativa”:

“Esta estrutura é um conjunto complexo de pressões, expectativas e restrições sociais e


institucionais que Butler chama de “a matriz heteronormativa”. Tais representações não
somente são heterossexistas; também reforçam várias outras normas inter-relacionadas, como a
cisgeneridade, a monogamia, o estilo de vida burguês etc.”

Ainda Lewis sobre a matriz heteronormativa de Butler:

“Nos esquemas de inteligibilidade disponíveis nesta matriz, o sexo “biológico” de uma pessoa
deve se alinhar com seu gênero, e essa pessoa deve sentir desejo sexual por pessoas do sexo e
gênero “opostos”. Em outras palavras, uma pessoa que nasce com uma vagina deve se
identificar como mulher e desejar pessoas que nasceram com pênis e se identificam como
homens. As pessoas cujo sexo, gênero e desejo não se alinham desta maneira – e/ou cujas
práticas e gostos sexuais borram os limites do alinhamento15 – são consideradas doentes,
desviantes, estranhas, inumanas... ou, talvez pior, não são consideradas de modo algum. De
acordo com Butler (2015, p. 21, grifos da autora), “uma vida tem que ser inteligível como uma
vida, tem de s[e] conformar a certas concepções do que é a vida, a fim de se tornar
reconhecível”. A matriz heteronormativa é também uma matriz de inteligibilidade, uma maneira
de entender, interpretar e reconhecer o mundo e as vidas. Ao não ser “inteligível” dentro das
prescrições da matriz heteronormativa – ao não ser cisgênero e heterossexual, com práticas e
performances heteronormativas – as pessoas não são reconhecidas como pessoas no sentido
pleno.”

[depois vai vir uma parte sobre a transexualidade na visão de Butler, mas vamos
começar com as coisas acima e depois expandir]

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