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Publicado em 17/03/2013
Vivemos em uma época de reducionismo. Isso se torna especialmente evidente pelo uso
comum da palavra “apenas”. Os reducionistas dizem: “a mente humana é apenas um sistema
complexo de matéria” ou “a moralidade é apenas um subproduto da evolução para a
sobrevivência do grupo.”[1] Quando se trata de estudos bíblicos, normalmente o reducionismo
assume a seguinte forma: “As narrativas do Gênesis são apenas mais um mito do Oriente
Próximo Antigo.”
Os pós-evangélicos usam hoje, regularmente, esses argumentos. Em nível popular, escritores
como Rachel Held Evans comentam sobre os “notadamente semelhantes” relatos da criação e
do dilúvio do Antigo Oriente Próximo em relação aos encontrados em Gênesis. Compreender
Gênesis como não histórico, um mito não científico, que contém os mesmos “recursos literários
humanos” e “pressupostos cosmológicos” que os do Antigo Oriente Próximo teria sido, segundo
ela mesma, “libertador”.[2] Peter Enns é o estudioso pós-evangélico mais frequentemente
associado com essa visão. Em seu livro Inspiration and Incarnation (Inspiração e Encarnação),
Enns procurou mostrar que Deus se ajustou às culturas do Antigo Oriente Próximo, usando
formas literárias não históricas e não científicas em Gênesis (e em outros escritos) para
comunicar a sua mensagem.[3] Muitos seguiram a sua liderança, especialmente aqueles que
procuram resolução da [suposta] discórdia percebida entre fé e ciência.
A razão disso? Há semelhanças óbvias entre Gênesis e outras histórias antigas e modernas
das origens. Os estudiosos que mantêm esse ponto de vista têm apresentado as semelhanças
como as características mais essenciais do Gênesis e as diferenças como aspectos
secundários e não essenciais das narrativas. Mas e se isso for um equívoco? E se as
diferenças forem os aspectos essenciais no Gênesis e na visão de mundo do Antigo
Testamento? E se Gênesis e outras histórias do Antigo Oriente forem semelhantes da mesma
maneira que minha minivan KIA e uma Ferrari são semelhantes? “Ei, ambas têm rodas e um
volante, portanto a Ferrari é ‘apenas’ um outro tipo de carro. Quer trocar?” Parece-me que em
Gênesis, como na venda de automóveis, as diferenças são muito mais significativas do que as
semelhanças.
A primeira seção faz uma boa introdução para os vários significados contemporâneos de mito: o
sentido etimológico, que salienta a “falsidade da coisa que está sendo descrita”;[8] sociológico,
que destaca se o grupo vê ou não algo como verdade, mas ignora ou não se a coisa é
realmente verdade; literário, que significa simplesmente uma certa maneira de escrever;
fenomenológico, que destaca as características comuns dos escritos que têm sido chamado de
mitos. Oswalt passa a maior parte de sua escrita neste último significado, pois este é o sentido
frequentemente utilizado em estudos bíblicos. Ele mostra que os defensores dessa visão
procuram definir mito como aquilo que busca relacionar o natural com o humano, o ideal com o
real, o pontual com o contínuo. Após a análise desses pontos de vista, ele conclui, mostrando
que um dos aspectos essenciais de definições descritivas ou fenomenológicas do mito é o que
ele chama de “continuidade” ou “correspondência”; “que todas as coisas são contínuas umas
com as outras”.[9]
Oswalt não acredita que a visão reducionista da Bíblia pode ser mantida, e argumenta
apaixonadamente contra a ideia de ver a Bíblia como apenas mais um mito, primeiramente
por descrever a perspectiva de continuidade que subjaz a outras literaturas do Antigo Oriente
Próximo. Oswalt define a continuidade subjacente aos mitos como “a idéia de que todas as
coisas que existem são partes umas das outras…sem distinções fundamentais entre os três
reinos: a humanidade, a natureza e o divino.”[10] Tudo coexiste nessa visão de mundo. Os
ídolos são símbolos dos deuses, mas, em um sentido muito real, são os deuses. Tempestades
são a ação dos deuses. A reconstituição sexual humana da suposta atividade sexual dos
deuses inspira a produção agrícola na realidade. Cada reino é contínuo e conectado. Nesta
visão de mundo “o criador de mitos racionaliza da realidade dada para o divino”.[11]
Neste ponto, eu tenho que admitir um preconceito pessoal em favor da perspectiva de Oswalt.
Sempre que começava a fazer estudos bíblicos, eu o fazia em uma conceituada universidade
protestante. Os professores falavam de Gênesis como sendo mítico e compartilhando
incontáveis características com os mitos do Antigo Oriente. Dessa forma, eu assumi a verdade
de suas declarações. Eu devo admitir, porém, que foi chocante quando realmente comecei a ler
a literatura do Antigo Oriente. As diferenças eram profundas e muitas das semelhanças
sugeridas pareciam ad hoc. Considerando que eu podia entender algumas dessas
semelhanças como polêmicas veladas contra outras literaturas do Antigo Oriente, ver as
narrativas do Gênesis como uma progressão originária destes escritos parecia (e continua a
parecer) impossível. Por quê? Oswalt faz um trabalho maravilhoso ao delinear a perspectiva do
Velho Testamento sobre as origens, para mostrar o quão distinta é essa visão de mundo em
comparação com a visão de mundo de outros escritos do Antigo Oriente.
Considerando que os mitos do Antigo Oriente projetam uma visão de mundo de continuidade,
Oswalt argumenta que a Bíblia apresenta uma visão de mundo de transcendência e de
revelação. Ele enumera as características comuns do “pensamento bíblico” como o
monoteísmo, a iconoclastia, a prioridade espiritual sobre o material, uma criação através de
processo, uma visão elevada de Deus e da humanidade, uma visão redefinida da ética sexual
(dessacralização), a proibição de magia, uma demanda por obediência ética e a importância da
interação de Deus com a humanidade na história. Claramente, estas distinções são
incompatíveis com a visão de mundo de continuidade descrita acima. Cada uma
delas decorre do pressuposto básico de que há um Deus transcendente, fora e além da
criação, o que alguns teólogos chamam de distinção Criador-criatura. Esse Deus não pode ser
manipulado por magia, nem pode ser representado por qualquer coisa dentro de Sua criação
quer seja um ídolo quer seja a própria natureza. Se ele se revelar, seus comandos serão
inalteráveis e definirão os limites para a existência dentro da criação, etc. Uma vez que a Bíblia
hebraica fortalece essa visão de mundo, não é surpreendente ver que idéias típicas do Antigo
Oriente, como o culto da fertilidade, a idolatria e a divindade de coisas finitas sejam totalmente
rejeitadas.
Quais são as implicações dessas distinções de Oswalt para a apologética cristã? Primeiro,
chamar as narrativas do Gênesis de mito requer redefinir o termo “mito” de uma forma que
o torna de nenhum valor. Em segundo lugar, isso significa que as diferenças entre a Bíblia e os
mitos do Antigo Oriente são mais relevantes do que as semelhanças. Oswalt mostra que há
muitas semelhanças, mas há descontinuidade na forma como estas formas, ideias semelhantes
são usadas entre a Bíblia hebraica e literatura do Antigo Oriente. Ele diz: “[a Bíblia] não é única
porque não faz parte do seu mundo, nem é única porque seus escritores eram incapazes de
relacionar aquilo que eles dizem com seu mundo… Ao contrário, ela é única justamente porque,
sendo uma parte de seu mundo e utilizando conceitos e formas de seu mundo, pode projetar
uma visão da realidade diametralmente oposta à visão desse mundo”.[14]
(APOLOGETICS315)
Í
[5] O LIVRO DE WRIGHT THE BIBLE AGAINST ITS ENVIRONMENT (A BÍBLIA
CONTRA SEU AMBIENTE) CRITICA A IDÉIA EVOLUTIVA, DEFENDENDO A
UNICIDADE DO TEXTO BÍBLICO E SUA VISÃO DE MUNDO CONTRA OUTRAS
LITERATURAS E PERSPECTIVAS DO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO.
[6] JOÃO OSWALT, THE BIBLE AMONG THE MYTHS (A BÍBLIA ENTRE OS MITOS),
KINDLE ED. HARPERCOLLINS, 2010, LOC. 101. AS HISTÓRIAS DE CRIAÇÃO DO
ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO DA “BIBLIOTECA” UGARÍTICA FORAM
ENCONTRADAS PRINCIPALMENTE ENTRE 1928 E 1958; O ENUMA ELISH FOI
ENCONTRADO EM 1849, ASSIM COMO TAMBÉM O ATRAHASIS; A EPOPEIA DE
GILGAMESH, EM 1853, COM MUITAS DAS HISTÓRIAS EGÍPCIAS SENDO
CONHECIDAS AINDA MAIS CEDO.