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DESTINO: LIBERDADE

É possível a psicanálise acolher algo da teoria sobre gêneros de Judith Butler?


Desde a Jornada a anatomia E o destino1 essa questão ressoa e o presente trabalho surge
da tentativa de construir uma resposta a ela.
É a partir da teoria dos atos de fala de J.L. Austin que Butler vai problematizar e
definir a questão do gênero:

O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de aos repetidos


no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se
cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma
classe natural de ser. (Butler, 1990, [2003, p. 59]).

O anúncio do médico “é um menino!” “É uma menina!” funciona, para Butler,


como uma interpelação fundante. Mas isso não basta. Essa interpelação fundante é
reiterada por várias autoridades, e ao longo de vários intervalos de tempo, para reforçar
ou contestar esse efeito naturalizado. A nomeação é, ao mesmo tempo, o estabelecimento
de uma fronteira e também a inculcação repetida de uma norma.
Para a filósofa (Passos, 2015), a questão dos gêneros é, no limite, política: uma
luta que o sujeito trava contra aquilo que o interpela culturalmente e que o coloca na
posição de aceitar ou recusar suas normas, dado que sempre se tratará, para o sujeito de
“lidar com instituições, discursos e autoridades que buscarão designações pelo gênero”.
O conceito de sujeito, para Butler, é tributário de Foucault e Freud, ou seja, ele
está submetido às relações de poder e também é um sujeito dividido pelo inconsciente. A
pulsão, nesse sentido, é um conceito caro à filósofa desde a sua juventude, ainda que,
segundo suas palavras2, ela não tenha “uma formulação explícita do tipo Esta é a minha
teoria da pulsão”. Butler reconhece que “há um amplo espectro de teorias
psicanalíticas”3, afirmando que alguns teóricos feministas e queer utilizam as teorias
lacanianas de forma seletiva.
A despeito da imprecisão teórica admitida por Butler sobre esse importante
conceito psicanalítico em sua obra, vejo com muito respeito a teoria da filósofa por seu
caráter provocativo em relação aos diversos campos do saber. A fecundidade dessa

1
XVII Jornada Corpolinguagem /IX Encontro Outrarte realizada no Instituto de Estudos da Linguagem
(IEL), na Universidade Estadual de Campinas nos dias 22, 23 e 24/10/2017.
2
Conversando com Judith Butler. Entrevista a Patrícia Porchat Knundsen, em 2010. Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2010000100009&lng=en&nrm=iso
3
Entrevista concedida a Carla Rodrigues, Revista Cult 185, p. 25-29.
2

provocação depende, em grande medida, de que nosso campo, o psicanalítico, que não se
mostre segregacionista, mas, ao contrário, disposto ao diálogo com outros campos do
saber, seja para reafirmar algumas teses psicanalíticas, seja para questioná-las ou ainda
para, digamos, reformá-las. No percurso que escolhi há três passos.

1) HOMEM E MULHER

Alguns psicanalistas, como Antônio Quinet, entendem que Butler acrescenta algo
à psicanálise: o conceito de gênero. Cossi e Dunker, diferentemente, assumem que o
conceito de gênero de Butler enriquece o conceito lacaniano de semblante e que há alguns
pontos da teoria de Butler que podem se aproximar da psicanálise. Essa hipótese me
parece muito mais interessante e pertinente que a de Quinet. Há outros psicanalistas,
ainda, que discordam de ambas posições, como é o caso de Marcus do Rio Teixeira.
Nessa (não) relação tensa entre a psicanálise e a teoria de Butler, recolher do
debate entre Cossi e Dunker e Marcus do Rio Teixeira alguns pontos revelou ser uma
estratégia interessante para problematizar e circunscrever questões teóricas para este
trabalho. Ambos autores desse debate, partem do quadrado que Lacan a compõe a partir
do quadro de Apuleio (125 d.C. - 170 d.C.)4, reconfigurado por J. Brunschwig (1929-
2010)5:

4
O quadro das proposições lógicas com seus lugares conhecidos desde Aristóteles e ordenados por Apuleio
(cf. Le Gaufey,2007, p.84) demonstra que, partindo-se de uma proposição universal, pode-se derivar uma
proposição particular. Tais proposições podem ser, ainda, afirmativas ou negativas. Tome-se por exemplo,
as proposições: Universal afirmativa: Todo homem é mortal / Universal Negativa: nenhum homem é mortal
/ Particular afirmativa: Algum homem é mortal / Particular negativa: alguns homens não são mortais.
(Azenha, 2013, p. 67).
5
Na síntese genial de Le Gaufey (2007, p. 184): Enquanto um todo enunciado ) está fundado na
existência de exceções ), e enquanto não há exceção  ), o que existe não se coletiva em
nenhum todo (), em minha tradução livre.
3

Como todo significante é sempre fonte de equívocos, mal-entendidos e


ambiguidades, aqui também não poderia ser diferente. Lá onde Teixeira – apoiado na
leitura de Soller sobre as fórmulas de sexuação de Lacan – lê o quadrado focado na divisão
vertical, como está na imagem do seu seminário, com dois pisos, Dunker e Cossi (2017)
leem o quadrado considerando os seus elementos em relação com o seminário 18 “De um
discurso que não fosse do semblante”, enfatizando as coordenadas horizontais, com três
pisos. Ou seja, para esses últimos, o quadrado da sexuação de Lacan não se dá a ler todo
nesse instante de ver, ao contrário, é preciso a construção desse andar a mais. Interessa
lembrar que entre o seminário 18 e o 20, há aquele em que Lacan propõe um de seus
aforismos mais radicais: “não há relação sexual”, mas, paradoxalmente, há relações
sexuais (Andre, 1987, apud Csillag, 2013).
O debate aconteceu em cinco atos dos quais farei um recorte, apenas6. O primeiro
ato iniciou-se na esteira da polêmica em torno da vinda de Judith Butler ao Brasil e das
hostilidades que endereçadas à filósofa. Na época, Teixeira convocara os psicanalistas
em sua rede social para que, além da justa defesa humanitária que teve lugar nas redes
sociais, pudessem debater o conteúdo das teses de Butler. A essa convocatória, Dunker
lhe responde remetendo-lhe seu artigo com Rafael Kalaf Cossi. Em um tom inicialmente
cordial, Teixeira tece comentários elogiosos quanto “à forma minuciosa e precisa” do
artigo daqueles autores. A seguir, tece diversas críticas ao artigo que vão informando ao
leitor, ao meu ver, mais sobre a posição de leitura de seu autor do que indicando um
debate de ideias. Dentre as inúmeras críticas de Teixeira, saliento a que segue como a
mais importante para a discussão sobre o quadrado das fórmulas de sexuação e sua
(im)possível relação com as teorias de Butler. Cito Teixeira (2017a, p. 9)7:
Os autores, contudo, insistem em argumentar que as identidades de gozo
são na verdade não identidades. Ao que parece, eles optam por considerar
a referência ao gozo nas fórmulas da sexuação como uma evidência de
que estas não constituiriam nenhuma identidade ‒ apesar da leitura em
sentido contrário da grande maioria dos autores mais expressivos do
movimento lacaniano e passando ao largo de inúmeras passagens dos
seminários onde Lacan se refere a “homens” e “mulheres” deixando claro
que não se trata de meros semblantes. (grifos meus)

6
Os cinco atos: 1) postagem de Teixeira, no Facebook convocando psicanalistas a debater a teoria de Butler;
2) Dunker envia a Teixeira seu artigo A diferença sexual de Butler e Lacan: Gênero, espécie e família,
escrito em parceria com Rafael Kalaf Cossi. 3) Teixeira escreve o texto A diferença entre Butler e Lacan
acerca da diferença sexual, como réplica. 4) Cossi e Dunker, na tréplica, produzem o texto Psicanálise sem
gênero. 5) Teixeira encerra o debate com o texto Gênero, semblante e gozo ‒ aproximações e diferenças.
7
Texto de 15 nov. 2017.
4

O argumento do autor é centrado na leitura que Soller (2014) faz do Aturdito, de


Lacan, do qual a psicanalista francesa depreende que as fórmulas de sexuação designam
duas identidades sexuais, duas identidades de gozo, mas é preciso considerar toda a
argumentação da autora8:
Se a gente se volta para a questão da identidade sexual, a tese de Lacan
foi, durante muito tempo, até 1972, precisamente: "Não há identidade
sexual". Há claro, um significante, um semblante, o falo – tanto pode ser
escrito em maiúscula quanto em minúscula – mas esse significante não
fornece uma identidade sexual.
Em 1972, ele vai introduzir, evidentemente, algo diferente, algo novo
no Aturdito (LACAN, 1972/2003) – não é no Seminário Mais
Ainda (LACAN, 1972-73/1985), é no Aturdito, logo antes – com o que
nós chamamos agora as fórmulas da sexuação. As fórmulas da sexuação
designam duas identidades sexuadas, duas identidades de gozo – a toda-
fálica e a não-toda fálica. E com isso, pela primeira vez, Lacan introduziu
um fator identitário no nível do real do gozo. A partir daí, então, um novo
problema se produziu, para o qual Lacan não está isento de
responsabilidade: todo-fálico é homem e não-todo fálico é mulher. Então,
não estamos mais no teatro, não estamos mais no semblante, não estamos
mais no fazer de conta que se é isso ou aquilo, estaríamos no "ou isso ou
aquilo". E o próprio Lacan, quando introduz o seu todo-fálico, ele o
introduz de modo a especificar a identidade do lado masculino. E em
seguida, do outro lado da sexualidade... Mas logo depois ele se corrigiu
– não sei se vocês conseguem seguir suas correções na prática – mas
no “Mais Ainda” (Ibid.), ele se corrigiu dizendo, primeiro, que essa
identidade de gozo é independente da anatomia. Ou seja, que há homens
que podem se colocar do lado do não-todo e mulheres que podem se
colocar do lado do todo. Esta é a tese do Seminário Mais Ainda [...]
Portanto, isso complica as coisas. Porque temos uma identidade de gozo
que não pode se identificar nem com a anatomia nem com o estado civil
(Soller, 2014, grifos meus).

Note-se que o argumento de Soller (2003) – no qual Teixeira nomeadamente se


apoia – pressupõe uma leitura do quadrado lógico em que lado homem e lado mulher não
são contados como um andar/piso do quadrado. Vale ressaltar que, mesmo admitindo que
Lacan fará uma correção no “Mais ainda”, em relação ao que fora escrito em O aturdito,
Soller mantém o sintagma identidade de gozo. Vale ressaltar que esse sintagma
“identidade de gozo” é de Soller, não de Lacan. Dessa forma, nas palavras da psicanalista
É homem o sujeito inteiramente submetido à função fálica. Por isso, a
castração é seu destino, assim como o gozo fálico, ao qual ele tem acesso
por intermédio. É mulher, ao contrário, Outro, o sujeito que não está todo
submetido à ao regime do gozo fálico e ao qual cabe um outro gozo,
suplementar, sem o suporte de nenhum objeto ou semblante. (Soller,
2005, p. 138).

8
O argumento que Soller desenvolve nessa conferência foi construído, de fato, em seu livro de 2003 “Ce
que lacan disait des femmes”.
5

A autora tece uma crítica tanto para Freud como para Robert Stoller (1924-1991)9
para quem – guardadas as grandes diferenças10 que os separam – tornar-se homem ou
mulher seria “uma questão de identificação e, portanto, de assimilação aos modelos
sociais” (2003, p. 137). O argumento de Soller está em clara relação ao destacado no
Seminário 18 sobre o que se pode aprender dos importantes dos relatos dos casos
transexuais do livro de Stoller e que Lacan, em sua conhecida forma irônica, vai criticá-
lo:
Aprenderão também o caráter completamente inoperante do aparato
dialético com que o autor do livro trata essas questões, o que o faz
deparar, para explicar seus casos, com enormes dificuldades, que surgem
diretamente diante dele. Uma das coisas mais surpreendentes é que a face
psicótica desses casos é completamente eludida pelo autor, na falta de
qualquer referencial, já que nunca lhe chegou aos ouvidos a foraclusão
lacaniana, que explica prontamente e com muita facilidade a forma
desses casos. Mas não tem importância. O importante é isto: a identidade
de gênero não é outra coisa senão o que acabo de expressar com estes
termos, "homem" e "mulher" (Lacan, 1971/2009, p. 30, grifos meus).

Será que podemos afirmar por isso que, para a psicanálise, todos os casos de
transexualidade devem ser considerados como uma estrutura psicótica? A complexidade
dessa questão está demonstrada nas diversas produções a respeito do tema11: alguns
trabalhos distinguem psicose do modelo schreberiano e a transexualidade, como o de
Catherine Millot; outros trabalhos tentam afastar a questão da transexualidade ao tema da
psicose, como é o caso de Cossi e Dunker e de François Ansermet12.

Em seu livro mais recente, Millot testemunha que Lacan


nunca tergiversava com a verdade e não permitia que o doente se
esquivasse. Insistia nos pontos do real, no que constituía bloqueio.
Confrontava o doente com os desmentidos que a realidade opunha às suas
construções delirantes. Por exemplo, a um transexual que reivindicava
sua condição de mulher, não parou de lembrar durante a entrevista que
ele era um homem, quisesse ou não, e que nenhuma operação faria dele

9
Psicanalista americano que publicou, em 1968, “Sex and Gender”, introduzindo a palavra gênero para
diferenciar do termo sexo biológico. O termo gênero passou a fazer parte do DSM em 1994.
10
Uma delas diz respeito a Stoller confundir pênis e falo e não admitir, por isso, a primazia do falo na
organização genital infantil afirmando, em seu lugar, a precedência do seio. (Stoller, 1974). Sex and gender,
The development of masculinity and femininity, London: Karnac Books Ltda, citado por Kosovski, 2016.)
11
Vale conferir as posições teóricas de Catherine Millot, Extra-sexo: ensaios sobre o transexualismo. São
Paulo: Editora Escuta, 1992, Joel Dor, Estrutura e perversão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991 e François
Ansermet (2015), citada por Kosovski, 2016.
12
Originalmente publicado em http://www.revistavirtualia.com/articulos/137/lo-femenino-y-la-
sexualidad/elegir-el-propio-sexo-usos-contemporaneos-de-la-diferencia-sexual
6

uma mulher. E, para terminar, chamou-o de “meu pobre velho” – o que


era mais uma vez afirmar sua masculinidade e ao mesmo tempo interpelá-
lo de maneira quase amistosa. Pois isso era dito sem condescendência,
daquele lugar de onde Lacan sempre se dirigia ao outro, o da humana
condição em que cada um se confronta com o impossível, destino comum
que assume frequentemente a face do infortúnio. (2017, p.51).

Guardemos esse termo: “identificação” e com ele voltemos à questão levantada


por Soller: tornar-se homem ou mulher “é uma questão de identificação e, portanto, de
assimilação aos modelos sociais”. Nesse sentido, Soller afirma que Lacan deixa para trás
essa questão do gênero ao ultrapassar o Édipo com suas fórmulas da sexuação. É uma
leitura possível. Mas, seria uma leitura que se detém na imagem13 do quadrado lógico
desenhado por Lacan?
A questão se complica quando Soller propõe que Lacan identifica “homem” e
“mulher” por suas modalidades de gozo. A complicação, a meu ver, vem a reboque do
termo “identifica”. Parece-me que esse termo gera dois problemas: o primeiro, diz
respeito à ambiguidade em relação aos processos de identificação do sujeito, o que não é
a mesma coisa14; o segundo, ao mencionar que “tornar-se homem ou mulher está ligado
à assimilação aos modelos sociais”, a autora coloca a questão para fora do campo da
psicanálise, direcionando-a à Antropologia.
Deste modo, talvez, substituir esse termo identifica por designa favoreceria
perceber que “homem” e “mulher” funcionam aqui como shifters, lugares vazios
construídos pela linguagem, que designam o sujeito sem significá-lo e, ao mesmo tempo
como semblantes que, como tais, “só se enunciam a partir da verdade” (Lacan, 1971, p.
136). Vale lembrar que ao discorrer sobre o grafo do desejo em seus Escritos, Lacan
opondo-se à metalinguagem, assevera que “esse algoritmo e seus análogos utilizados no
grafo [...] não são significantes transcendentes: são índices” (1998, p. 830).
Nesse sentido, aproximo-me da leitura que Cossi e Dunker fazem das fórmulas de
sexuação de Lacan:
Afirmamos que os “semblantes imaginários ou dêixicos
performativos”, situados no primeiro andar das fórmulas da
sexuação como “homem” e “mulher”, aproximam-se da
concepção de gênero em Butler, que os define como
performativo. Isso abriria uma pesquisa possível que é tentar

13
Vale lembrar o que Lacan diz sobre a imagem: “Para dar uma imagem – mas a que tipo de
emburrecimento não pode conduzir a imagem!” (Lacan1971[2009], p. 25).
14
Não desenvolverei aqui o tema do processo de identificação em psicanálise. Remeto o leitor, a esse
respeito, ao Seminário 9. A identificação, de Jacques Lacan.
7

mostrar como a noção de performativo pode enriquecer o


conceito lacaniano de semblante (2017, p. 2)

“De fato, a noção de semblante ocupa uma posição precisa que faz ato e veremos
que ela interpela diretamente a posição do analista”, assevera Andres (Kaufmman, 1996,
p. 462). “O semblante ocupa esse lugar que a verdade supõe” (idem). Sabemos que, para
Lacan, “A verdade não é o contrário do semblante. A verdade é a dimensão, ou diz-
mansão estritamente correlata àquela do semblante. A diz-mansão da verdade sustenta a
do semblante”. (Lacan 1971 [2012], pp. 25-26).
Vale a pena retomar Lacan a esse respeito:
Para o menino, na idade adulta, trata-se de parecer-homem. E isso que
constitui a relação com a outra parte. E à luz disso, que constitui uma
relação fundamental, que cabe interrogar tudo o que, no comportamento
infantil, pode ser interpretado como orientando-se para esse parecer-
homem. Desse parecer-homem, um dos correlatos essenciais é dar sinal à
menina de que se o é. Em síntese, vemo-nos imediatamente colocados na
dimensão do semblante. [...]
Esse nível, [o etológico] por sua vez, é propriamente o de um semblante.
Na maioria das vezes, o macho é o agente da exibição, mas a fêmea não
está ausente dela, já que é precisamente o sujeito atingido por essa
exibição [...]
É certo que o comportamento sexual humano encontra facilmente uma
referência na exibição, tal como definida no nível animal. É certo que o
comportamento sexual humano consiste numa certa manutenção desse
semblante animal. A única coisa que o diferencia dela é que esse
semblante seja veiculado num discurso, e que é nesse nível de discurso,
somente nesse nível de discurso, que ele é levado, permitam-me dizer,
para algum efeito que não fosse semblante. (Lacan 1971 [2009], p. 31,
grifos meus).

Em seu discurso, o sujeito sempre estará apenas representado; não havendo


nenhuma realidade pré-discursiva, “homens, as mulheres e as crianças não são mais que
significantes” (Lacan, 1975/1985, p.46). É assim que, ao meu ver, é necessário incluirmos
no quadro da sexuação de Lacan esse primeiro andar, como propõem Cossi e Dunker:
8

Cossi e Dunker leem o quadrado com três andares, cujas relações entre si são de
contingência:
 Primeiro piso: lado homem / lado mulher;
 Modalidades de gozo (homem: gozo fálico; mulher: gozo fálico e gozo
feminino (ou do Outro)
 Modalidades de fantasia: a posição masculina toma a mulher no lugar de
objeto a, mas a mulher não toma o homem no lugar de sujeito, mas no lugar
de falo.

Contar três faz toda a diferença! Concluo essa primeira parte salientando que a
temática dos gêneros tem aparecido nos relatos de sofrimento na clínica com uma
frequência cada vez maior; porém o meu interesse em pesquisar a teoria de Butler surgiu,
de fato, ao assistir uma entrevista em que ela discorria sobre as implicações de suas teorias
para uma discussão mais atual em sua obra e que dizem respeito às vidas vivíveis e as
vidas matáveis. Esse caráter político da teoria de Butler, a meu ver, interessa muito aos
psicanalistas pois em vários sentidos a ética da psicanálise não pode prescindir dele.
Para além do mal-estar, é preciso resistirmos à violência, sobretudo em um
momento em que, ironicamente, as iniciais de Judith Butler – JB, fazem ressoar as iniciais
daquele que, no momento, encarna a aproximação de processos sociais reificantes.
Além disso, a meu ver, a teoria de Butler contribui com a psicanálise nesse esse
tema – Homem / Mulher – tão difícil e que, por estrutura, sempre manejamos mal. A
respeito dessa dificuldade, Soller nos lembra que
manejamos mal, pois repetimos as fórmulas canônicas de Lacan, ao
mesmo tempo que continuamos a falar das mulheres em concordância
com o senso comum. Em vez de chamarmos mulheres o que é não-todo,
atribuímos o não-todo, com seu outro-gozo às mulheres, segundo à
anatomia ou o estado civil. Isso produz alguns efeitos cômicos que tive a
ocasião de enfatizar, uma vez que permite que mulheres marcadamente
fálicas se adornem com o pseudo não-todo. (2016, p. 17)

Mas, vale lembrar com Marie-Hélène Brousse (2000 [2012], p. 5) que esses
termos ou elementos
são verdadeiros apenas dentro do campo da experiência psicanalítica.
Eles não pretendem, de modo algum, constituir uma nova filosofia ou
uma nova moralidade para a ordem social em geral. Eles têm validade no
campo científico que os produz e não podem ser transformados em uma
ideologia dominante, sob o risco de transformarem-se em preconceitos
de poder.
9

2) LUTO

Dentre os diversos aspectos que as teorias de gênero desafiam a epistemologia


psicanalítica, um deles diz respeito ao quantum de liberdade há para um sujeito. Mas não
há liberdade sem lutas e elaboração de lutos.
Os seminários de Lacan apresentam o seu vívido pensamento; pensamento
insistente, que não declinava quanto ao caráter imperecível do desejo, que construía sua
teoria enquanto falava: “e agora me dei conta que isso está em pé de igualdade com o que
conto” (Lacan 1971/72 [2012], p.35), ele dizia. Esse tom nos dá a dimensão de abertura
de seu pensamento, da direção de seu ensino e também... de que não há a última palavra.
Se Lacan morreu, não seremos nós, como fizeram os pós-freudianos, a tampá-lo
“para que dele já não se filtre a mínima fumaça” (Lacan, 2003, p. 463), pois ele nos legou
os matemas, uma estrutura sem palavras, que continua nos dizendo muito e, por isso
mesmo, sua obra não termina com sua morte...
É Lacan que nos ensinou a perguntar: qual a margem de escolha existe para o
falante? “apenas a da posição que ele tomar em virtude de sua escolha”, nos responde
Colette Soller (2016, p.20). Escolha que é produto do desejo inconsciente, fixado pela
fantasia15, pelo menos para os neuróticos que constroem seu romance familiar a partir da
demanda parental. Reconhecer esses pontos de fixação e poder deles se separar, eis um
trabalho imenso para se ganhar um tanto de liberdade.
“A liberdade é azul” (Trois couleurs: Bleu, 1993) é um filme que faz parte de uma
trilogia. “A obra foi solicitada a Kieslowski em comemoração aos duzentos anos da
Revolução Francesa e ao projeto de Unificação Europeia” (Lemos, 2014). Ao contrário
do que o título sugere, é um filme feito para os ouvidos, segundo seu diretor e põe em
cena o luto, o destino e a liberdade. Trata-se de um drama em que Julie (vivida pela atriz
Juliete Binoche) numa tragédia pessoal, perde o marido e a filha, ainda criança de cinco
anos, num acidente de carro.
Despossuída de suas referências fálicas, o que resta a Julie é ter que se haver com
o real dessa contingência. Nessa condição, percorre um difícil caminho entre tentar – sem

15
Lacan, 1980, citado por Ricardo Goldenberg (07/05/2015) em Seminário sobre a obra de Lacan: Debate
sobre o Gozo e o Significante, na USP, promovido por Christian Dunker: “O que se fixa? Se fixa o desejo
que por estar tomado no processo do recalque, se conserva numa permanência que equivale à
indestrutibilidade. Este é o ponto sob o qual tenho insistido até o fim, sem dar o braço a torcer. Nisto, o
desejo contrasta totalmente com a labilidade dos afetos. Estas fixações são fórmulas, axiomas da fantasia”.
Acessível em https://www.youtube.com/watch?v=EeV-sKjuXfk.
10

conseguir – acabar com a vida de seu corpo próprio devastado, segurar e devorar o papel
que escapa da mão da filha – como a vida que lhe escapa, ouvir o som do concerto
inacabado – que sempre retorna, presentificando os objetos que ela perdera, sufocar o
choro – na secura de sua vida, arrancar e levar um único objeto: o lustre com pedras azuis
– cujos fios parecem metaforizar as ligações que ela precisa desfazer, para só-depois de
se decompor, ver renascer seu desejo e, então, poder voltar à vida, a compor e a desejar.
Dado que o desejo é movimento, Kieslowski nos presenteia com o movimento de
Julie que podemos considerar como pulsional: à medida revolve seus objetos, Julie
restaura em si sua perda original:
Não há outra via em que se manifeste no sujeito a incidência da
sexualidade. A pulsão, como representante da sexualidade no
inconsciente, nunca é senão pulsão parcial. É nisso que está a carência
essencial, isto é, a daquilo que pudesse representar no sujeito o modo, em
seu ser, do que nele é macho ou fêmea. (Lacan, 1998, p. 863)

3) LIBERDADE

Embora não seja um conceito psicanalítico, o conceito de liberdade vem a reboque


quando se trata de pensar os caminhos percorridos pelos falantes rumo ao seu destino:
qual destino? Aquele da diferença sexual que, desde Lacan, podemos considerar: a
diferença sexual não está posta na origem. O corpo erógeno – único que interessa à
psicanálise – é efeito do corte (no sentido topológico) engendrado pelo significante na
superfície do organismo: é o “corte que se beneficia do traço anatômico de uma margem
ou uma borda” (Lacan, 1998, p. 832) e não o contrário; ou seja, é porque há um corte
produzido pelo discurso, pela repetição da demanda, que se apoia na anatomia de um
organismo com sua margem natural, que há o isolamento, a diferenciação, a separação da
pulsão do metabolismo da função (idem) orgânica que ela habita. Dito de outra forma, da
existência de um organismo (que, epistemologicamente, não pertence ao campo da
psicanálise), as suas bordas e furos anatômicos só são libidinizados e passam a ser
pulsionais pela estrutura de repetição da demanda. Isso não é outra coisa que dizer que o
significante é sempre anterior ao sujeito e lhe constitui.
Como num percurso analítico, Julie experimenta a heteronomia radical no homem
ao campo da linguagem, perguntando-se sobre sua cumplicidade ante essa servidão,
buscando reconhecer seus pontos de fixação para deles se separar.
11

Nesse filme, Kieslowski parece se valer da cor azul para demonstrar tanto a ilusão
de alguma essência quanto a fugacidade da liberdade dos seres diante da vida, como uma
nuvem branca no azul do céu de nosso cartaz – uma evanescência.
A ilusão de essência aparece-me pela densidade de todo azul presente no filme em
várias cenas e imagens e roupas de personagens. Mas é, sobretudo, no azul das águas da
piscina do condomínio de Julie que ressoam para mim o “sentimento oceânico”
mencionado por Freud: uma nostalgia do tempo em que Julie se sentia ligada em
comunhão com o mundo. No entanto, é na piscina azul – a qual parece sem fundo, como
a dor de Julie – onde a personagem nada sozinha. Submerge, como para se livrar das
sombras dos fantasmas. E depois emerge, no azul sem fundo.
Nas fendas do Outro, Julie corta todos os laços que a ligavam com sua vida
anterior: a casa, os móveis, a corrente. Não se reduz a nenhum significante, seja filha,
mulher, mãe sem filho, viúva, traída. Poder ser quem se é sem ter que abrir mão de nada
para ser quem se é e ainda obter reconhecimento do Outro não seria um momento de
liberdade?
Longe de se resignar, fazendo apelo a uma esperança divina – mesmo em soluço16,
ousou cair em Tentação, como diz Clarice: “Que importava se num dia futuro sua marca
ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher?” (Lispector, 1990) e, assim, não se
rendendo a uma esperança infinita, não espera e vai aprender, “arte de manter-se à tona”,
como disse lindamente Flavia Trocoli.

16
Referência ao conto A tentação, de Clarice Lispector.
12

REFERÊNCIAS

ANSERMET, F. (2014). Eleger o próprio sexo: usos contemporâneos da diferença dos


sexos. Opção Lacaniana online nova série. Ano 9, nº 25 e 26, mar/jul 2018.
Disponível em
<http://opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_25/Eleger_o_proprio_sexo.pdf>
Acesso em 28 nov. 2018

AZENHA, C. A. C. (2013) Caso e escrita: o que não cessa de não se escrever. Tese de
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FILME CITADO

Kieslowski, Krzysztof (1993) A liberdade é azul. (Trois couleurs: Bleu), França.

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