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DESTINO: LIBERDADE
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XVII Jornada Corpolinguagem /IX Encontro Outrarte realizada no Instituto de Estudos da Linguagem
(IEL), na Universidade Estadual de Campinas nos dias 22, 23 e 24/10/2017.
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Conversando com Judith Butler. Entrevista a Patrícia Porchat Knundsen, em 2010. Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2010000100009&lng=en&nrm=iso
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Entrevista concedida a Carla Rodrigues, Revista Cult 185, p. 25-29.
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provocação depende, em grande medida, de que nosso campo, o psicanalítico, que não se
mostre segregacionista, mas, ao contrário, disposto ao diálogo com outros campos do
saber, seja para reafirmar algumas teses psicanalíticas, seja para questioná-las ou ainda
para, digamos, reformá-las. No percurso que escolhi há três passos.
1) HOMEM E MULHER
Alguns psicanalistas, como Antônio Quinet, entendem que Butler acrescenta algo
à psicanálise: o conceito de gênero. Cossi e Dunker, diferentemente, assumem que o
conceito de gênero de Butler enriquece o conceito lacaniano de semblante e que há alguns
pontos da teoria de Butler que podem se aproximar da psicanálise. Essa hipótese me
parece muito mais interessante e pertinente que a de Quinet. Há outros psicanalistas,
ainda, que discordam de ambas posições, como é o caso de Marcus do Rio Teixeira.
Nessa (não) relação tensa entre a psicanálise e a teoria de Butler, recolher do
debate entre Cossi e Dunker e Marcus do Rio Teixeira alguns pontos revelou ser uma
estratégia interessante para problematizar e circunscrever questões teóricas para este
trabalho. Ambos autores desse debate, partem do quadrado que Lacan a compõe a partir
do quadro de Apuleio (125 d.C. - 170 d.C.)4, reconfigurado por J. Brunschwig (1929-
2010)5:
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O quadro das proposições lógicas com seus lugares conhecidos desde Aristóteles e ordenados por Apuleio
(cf. Le Gaufey,2007, p.84) demonstra que, partindo-se de uma proposição universal, pode-se derivar uma
proposição particular. Tais proposições podem ser, ainda, afirmativas ou negativas. Tome-se por exemplo,
as proposições: Universal afirmativa: Todo homem é mortal / Universal Negativa: nenhum homem é mortal
/ Particular afirmativa: Algum homem é mortal / Particular negativa: alguns homens não são mortais.
(Azenha, 2013, p. 67).
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Na síntese genial de Le Gaufey (2007, p. 184): Enquanto um todo enunciado ) está fundado na
existência de exceções ), e enquanto não há exceção ), o que existe não se coletiva em
nenhum todo (), em minha tradução livre.
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Os cinco atos: 1) postagem de Teixeira, no Facebook convocando psicanalistas a debater a teoria de Butler;
2) Dunker envia a Teixeira seu artigo A diferença sexual de Butler e Lacan: Gênero, espécie e família,
escrito em parceria com Rafael Kalaf Cossi. 3) Teixeira escreve o texto A diferença entre Butler e Lacan
acerca da diferença sexual, como réplica. 4) Cossi e Dunker, na tréplica, produzem o texto Psicanálise sem
gênero. 5) Teixeira encerra o debate com o texto Gênero, semblante e gozo ‒ aproximações e diferenças.
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Texto de 15 nov. 2017.
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O argumento que Soller desenvolve nessa conferência foi construído, de fato, em seu livro de 2003 “Ce
que lacan disait des femmes”.
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A autora tece uma crítica tanto para Freud como para Robert Stoller (1924-1991)9
para quem – guardadas as grandes diferenças10 que os separam – tornar-se homem ou
mulher seria “uma questão de identificação e, portanto, de assimilação aos modelos
sociais” (2003, p. 137). O argumento de Soller está em clara relação ao destacado no
Seminário 18 sobre o que se pode aprender dos importantes dos relatos dos casos
transexuais do livro de Stoller e que Lacan, em sua conhecida forma irônica, vai criticá-
lo:
Aprenderão também o caráter completamente inoperante do aparato
dialético com que o autor do livro trata essas questões, o que o faz
deparar, para explicar seus casos, com enormes dificuldades, que surgem
diretamente diante dele. Uma das coisas mais surpreendentes é que a face
psicótica desses casos é completamente eludida pelo autor, na falta de
qualquer referencial, já que nunca lhe chegou aos ouvidos a foraclusão
lacaniana, que explica prontamente e com muita facilidade a forma
desses casos. Mas não tem importância. O importante é isto: a identidade
de gênero não é outra coisa senão o que acabo de expressar com estes
termos, "homem" e "mulher" (Lacan, 1971/2009, p. 30, grifos meus).
Será que podemos afirmar por isso que, para a psicanálise, todos os casos de
transexualidade devem ser considerados como uma estrutura psicótica? A complexidade
dessa questão está demonstrada nas diversas produções a respeito do tema11: alguns
trabalhos distinguem psicose do modelo schreberiano e a transexualidade, como o de
Catherine Millot; outros trabalhos tentam afastar a questão da transexualidade ao tema da
psicose, como é o caso de Cossi e Dunker e de François Ansermet12.
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Psicanalista americano que publicou, em 1968, “Sex and Gender”, introduzindo a palavra gênero para
diferenciar do termo sexo biológico. O termo gênero passou a fazer parte do DSM em 1994.
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Uma delas diz respeito a Stoller confundir pênis e falo e não admitir, por isso, a primazia do falo na
organização genital infantil afirmando, em seu lugar, a precedência do seio. (Stoller, 1974). Sex and gender,
The development of masculinity and femininity, London: Karnac Books Ltda, citado por Kosovski, 2016.)
11
Vale conferir as posições teóricas de Catherine Millot, Extra-sexo: ensaios sobre o transexualismo. São
Paulo: Editora Escuta, 1992, Joel Dor, Estrutura e perversão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991 e François
Ansermet (2015), citada por Kosovski, 2016.
12
Originalmente publicado em http://www.revistavirtualia.com/articulos/137/lo-femenino-y-la-
sexualidad/elegir-el-propio-sexo-usos-contemporaneos-de-la-diferencia-sexual
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Vale lembrar o que Lacan diz sobre a imagem: “Para dar uma imagem – mas a que tipo de
emburrecimento não pode conduzir a imagem!” (Lacan1971[2009], p. 25).
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Não desenvolverei aqui o tema do processo de identificação em psicanálise. Remeto o leitor, a esse
respeito, ao Seminário 9. A identificação, de Jacques Lacan.
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“De fato, a noção de semblante ocupa uma posição precisa que faz ato e veremos
que ela interpela diretamente a posição do analista”, assevera Andres (Kaufmman, 1996,
p. 462). “O semblante ocupa esse lugar que a verdade supõe” (idem). Sabemos que, para
Lacan, “A verdade não é o contrário do semblante. A verdade é a dimensão, ou diz-
mansão estritamente correlata àquela do semblante. A diz-mansão da verdade sustenta a
do semblante”. (Lacan 1971 [2012], pp. 25-26).
Vale a pena retomar Lacan a esse respeito:
Para o menino, na idade adulta, trata-se de parecer-homem. E isso que
constitui a relação com a outra parte. E à luz disso, que constitui uma
relação fundamental, que cabe interrogar tudo o que, no comportamento
infantil, pode ser interpretado como orientando-se para esse parecer-
homem. Desse parecer-homem, um dos correlatos essenciais é dar sinal à
menina de que se o é. Em síntese, vemo-nos imediatamente colocados na
dimensão do semblante. [...]
Esse nível, [o etológico] por sua vez, é propriamente o de um semblante.
Na maioria das vezes, o macho é o agente da exibição, mas a fêmea não
está ausente dela, já que é precisamente o sujeito atingido por essa
exibição [...]
É certo que o comportamento sexual humano encontra facilmente uma
referência na exibição, tal como definida no nível animal. É certo que o
comportamento sexual humano consiste numa certa manutenção desse
semblante animal. A única coisa que o diferencia dela é que esse
semblante seja veiculado num discurso, e que é nesse nível de discurso,
somente nesse nível de discurso, que ele é levado, permitam-me dizer,
para algum efeito que não fosse semblante. (Lacan 1971 [2009], p. 31,
grifos meus).
Cossi e Dunker leem o quadrado com três andares, cujas relações entre si são de
contingência:
Primeiro piso: lado homem / lado mulher;
Modalidades de gozo (homem: gozo fálico; mulher: gozo fálico e gozo
feminino (ou do Outro)
Modalidades de fantasia: a posição masculina toma a mulher no lugar de
objeto a, mas a mulher não toma o homem no lugar de sujeito, mas no lugar
de falo.
Contar três faz toda a diferença! Concluo essa primeira parte salientando que a
temática dos gêneros tem aparecido nos relatos de sofrimento na clínica com uma
frequência cada vez maior; porém o meu interesse em pesquisar a teoria de Butler surgiu,
de fato, ao assistir uma entrevista em que ela discorria sobre as implicações de suas teorias
para uma discussão mais atual em sua obra e que dizem respeito às vidas vivíveis e as
vidas matáveis. Esse caráter político da teoria de Butler, a meu ver, interessa muito aos
psicanalistas pois em vários sentidos a ética da psicanálise não pode prescindir dele.
Para além do mal-estar, é preciso resistirmos à violência, sobretudo em um
momento em que, ironicamente, as iniciais de Judith Butler – JB, fazem ressoar as iniciais
daquele que, no momento, encarna a aproximação de processos sociais reificantes.
Além disso, a meu ver, a teoria de Butler contribui com a psicanálise nesse esse
tema – Homem / Mulher – tão difícil e que, por estrutura, sempre manejamos mal. A
respeito dessa dificuldade, Soller nos lembra que
manejamos mal, pois repetimos as fórmulas canônicas de Lacan, ao
mesmo tempo que continuamos a falar das mulheres em concordância
com o senso comum. Em vez de chamarmos mulheres o que é não-todo,
atribuímos o não-todo, com seu outro-gozo às mulheres, segundo à
anatomia ou o estado civil. Isso produz alguns efeitos cômicos que tive a
ocasião de enfatizar, uma vez que permite que mulheres marcadamente
fálicas se adornem com o pseudo não-todo. (2016, p. 17)
Mas, vale lembrar com Marie-Hélène Brousse (2000 [2012], p. 5) que esses
termos ou elementos
são verdadeiros apenas dentro do campo da experiência psicanalítica.
Eles não pretendem, de modo algum, constituir uma nova filosofia ou
uma nova moralidade para a ordem social em geral. Eles têm validade no
campo científico que os produz e não podem ser transformados em uma
ideologia dominante, sob o risco de transformarem-se em preconceitos
de poder.
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2) LUTO
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Lacan, 1980, citado por Ricardo Goldenberg (07/05/2015) em Seminário sobre a obra de Lacan: Debate
sobre o Gozo e o Significante, na USP, promovido por Christian Dunker: “O que se fixa? Se fixa o desejo
que por estar tomado no processo do recalque, se conserva numa permanência que equivale à
indestrutibilidade. Este é o ponto sob o qual tenho insistido até o fim, sem dar o braço a torcer. Nisto, o
desejo contrasta totalmente com a labilidade dos afetos. Estas fixações são fórmulas, axiomas da fantasia”.
Acessível em https://www.youtube.com/watch?v=EeV-sKjuXfk.
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conseguir – acabar com a vida de seu corpo próprio devastado, segurar e devorar o papel
que escapa da mão da filha – como a vida que lhe escapa, ouvir o som do concerto
inacabado – que sempre retorna, presentificando os objetos que ela perdera, sufocar o
choro – na secura de sua vida, arrancar e levar um único objeto: o lustre com pedras azuis
– cujos fios parecem metaforizar as ligações que ela precisa desfazer, para só-depois de
se decompor, ver renascer seu desejo e, então, poder voltar à vida, a compor e a desejar.
Dado que o desejo é movimento, Kieslowski nos presenteia com o movimento de
Julie que podemos considerar como pulsional: à medida revolve seus objetos, Julie
restaura em si sua perda original:
Não há outra via em que se manifeste no sujeito a incidência da
sexualidade. A pulsão, como representante da sexualidade no
inconsciente, nunca é senão pulsão parcial. É nisso que está a carência
essencial, isto é, a daquilo que pudesse representar no sujeito o modo, em
seu ser, do que nele é macho ou fêmea. (Lacan, 1998, p. 863)
3) LIBERDADE
Nesse filme, Kieslowski parece se valer da cor azul para demonstrar tanto a ilusão
de alguma essência quanto a fugacidade da liberdade dos seres diante da vida, como uma
nuvem branca no azul do céu de nosso cartaz – uma evanescência.
A ilusão de essência aparece-me pela densidade de todo azul presente no filme em
várias cenas e imagens e roupas de personagens. Mas é, sobretudo, no azul das águas da
piscina do condomínio de Julie que ressoam para mim o “sentimento oceânico”
mencionado por Freud: uma nostalgia do tempo em que Julie se sentia ligada em
comunhão com o mundo. No entanto, é na piscina azul – a qual parece sem fundo, como
a dor de Julie – onde a personagem nada sozinha. Submerge, como para se livrar das
sombras dos fantasmas. E depois emerge, no azul sem fundo.
Nas fendas do Outro, Julie corta todos os laços que a ligavam com sua vida
anterior: a casa, os móveis, a corrente. Não se reduz a nenhum significante, seja filha,
mulher, mãe sem filho, viúva, traída. Poder ser quem se é sem ter que abrir mão de nada
para ser quem se é e ainda obter reconhecimento do Outro não seria um momento de
liberdade?
Longe de se resignar, fazendo apelo a uma esperança divina – mesmo em soluço16,
ousou cair em Tentação, como diz Clarice: “Que importava se num dia futuro sua marca
ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher?” (Lispector, 1990) e, assim, não se
rendendo a uma esperança infinita, não espera e vai aprender, “arte de manter-se à tona”,
como disse lindamente Flavia Trocoli.
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Referência ao conto A tentação, de Clarice Lispector.
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REFERÊNCIAS
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