Você está na página 1de 17

Culturas queer: alteridade e

homossexualidades*
Fabián Fajnwacks
Queer e Lacan

A psicanálise lacaniana poderia dividir até certo ponto, pelo


menos, a crítica que as teorias queer fizeram, desde sua
origem, aos estudos gays e lésbicos: elas lhes reprovam a
reprodução do pensamento straight contra o qual elas se
ergueram.

As teorias queer pensavam que uma nova normatividade saída,


desta vez, das fileiras da comunidade LGBT (lésbicas, gays,
bissexuais, transexuais) começava, então, a nascer.

Nenhum psicanalista lacaniano pode se opor ao questionamento


da norma, quer seja hetero ou homossexual, norma determinada
pelos códigos e usos de tal ou qual comunidade, posto que a
psicanálise, em si mesma, não defende nenhuma norma. É muito
mais a partir da ordem do sintoma que se orienta a
psicanálise, também, no interior de um tratamento, do que
daquilo que ela pode dizer dos fenômenos de civilização.

Um grande mal-entendido persiste, no entanto, na leitura que


os autores das teorias queer fazem de Lacan: suas críticas
apoiam-se quase exclusivamente sobre seus primeiros seminários
e estão, portanto, centradas na formalização do falo e no
lugar central do Nome-do-Pai.

Se Lacan confere efetivamente essa preeminência ao Nome-do-Pai


e ao falo, é preciso assinalar que esses dois conceitos serão
questionados, de forma radical, a partir do final dos anos
1960, por aquilo mesmo que os tinha colocado no centro de sua
teoria. Assim sendo, Lacan, no seminário XVII, O avesso da
psicanálise, reformulará a construção feita por Freud no mito
do Totem e Tabu, apresentando-o como uma versão do tratamento
do gozo pelo significante. Ele interpretará também o complexo
de Édipo como o desejo de Freud de salvar o Pai simbólico.
Uma teoria, sobre o nome e a nomeação, seguirá esse
questionamento da exclusividade do Nome-do-Pai como nome
privilegiado na teoria, e ele produzi,rá os desenvolvimentos
que Lacan proporá na sequência, notadamente no seminário RSI.

A leitura do seminário mais, ainda, que introduz um gozo


suplementar ao gozo fálico, permitiria, talvez, aos autores
queer, revisar suas posições em relação à crítica da primazia
do falo na teoria lacaniana.

Esses dois momentos fundamentais, da teorização de Lacan nos


anos de 1970, bastam para questionar, mais uma vez, os
conceitos que ele mesmo trouxe à psicanálise, a ponto de se
poder afirmar que Lacan opera uma desconstrução e uma revisão
crítica dos conceitos do Nome-do-Pai e do Falo que pusera em
destaque no começo de seu ensino.

Citarei, a esse respeito, um sociólogo espanhol que escreveu


um estudo bastante crítico sobre os Queer Studies e a
psicanálise: “A capacidade subversiva da psicanálise lacaniana
reside principalmente no fato de que Lacan não teoriza a
sexualidade em termos de gênero, mas em termos de gozo. Se um
dos principais esforços da teoria queer é pensar a sexualidade
por fora das categorias de gênero, temos aqui um exemplo”.[1]

Mais, ainda

Efetivamente, a partir do seminário mais, ainda, “Homem” e


“Mulher” tornam-se os nomes de uma relação particular do
sujeito ao gozo fálico e ao seu mais além, o Outro gozo.

Essa relação não se superpõe com o sexo anatômico e já


constitui uma crítica vanguardista da sexuação em termos de
“gênero”, (O seminário mais, ainda é de 1972-73), que
começarão a produzir, anos mais tarde, os Gender Studies. Se
é, talvez, excessivo falar aqui de “gêneros lacanianos”, é
preciso sublinhar que esses dois termos “Homem” e “Mulher”,
que estarão muito presentes ao longo do último ensino de Lacan
nos anos 70, não designam nada mais do que duas relações ao
gozo do Um para o primeiro e gozo do Outro para o segundo,
gozo que também será nomeado, por Lacan, “não-toda”, pois,
esse gozo, se acrescenta como um suplemento ao gozo do Um, ou
gozo fálico. Esse suplemento ao gozo fálico, que constitui o
Outro gozo, designa um gozo especificamente feminino, isolado
por Lacan, por exemplo, nas místicas. Lacan acaba por
acrescentar, pela primeira vez na história da psicanálise, um
mais-além fundamental ao gozo fálico, no qual Freud havia
aprisionado a questão feminina. A supremacia atribuída ao falo
encontra-se assim circunscrita por este mais-além, que Lacan
acrescenta com a ideia desse Outro gozo, e isso nos permite,
então, relativizar as críticas referentes ao falocentrismo da
teoria lacaniana. Sem dúvida, seria bem mais pertinente
interrogar a teoria de Freud sobre a feminilidade.

A respeito da hegemonia teórica atribuída ao Nome-do-Pai, a


conceitualização do sintoma como formação mista composta de
significante e satisfação pulsional, abordada em termos de
gozo, conduzirá Lacan, nos anos 70, a considerar que um
sujeito pode se nomear a partir desse núcleo irredutível de
gozo presente no sintoma, núcleo que ganha corpo durante o
desenrolar da análise, mais além do envelope significante do
sintoma que, esse sim, varia. Expliquemo-nos: esse nome de
gozo, produzido na análise, é diferente daquele que é
determinado pelo Nome-do-Pai. Ele permite relativizar a
importância atribuída ao Nome-do-Pai como modo privilegiado de
nomear um sujeito e de manter entrelaçados os três registros
Real, Simbólico e Imaginário na clínica lacaniana.

Nós nos situamos, então, bem distante das críticas dos autores
dos Queer Studies.

Identificação / Nomeação

Desde sua origem, o movimento queer reivindica uma identidade


“anti-massificação”, um anti pensamento-straitht que as
culturas gays e lésbicas teriam contribuído a desenvolver,
assim pode-se ler. Esta identidade se estabelece a partir de
uma modalidade de gozo sexual, funda-se sobre práticas sexuais
“anti-gênero”, erigidas em insígnia. A insígnia nomeia o
sujeito contra a massificação identificatória e normativa
proposta pelos movimentos LGBT e consiste em diferentes
práticas masoquistas como os cuttings (utilização de agulhas,
de arnês, etc.), diferentes tratamentos do corpo como o
piercing, o branding (cirurgias e ingestão de hormônios),
diferentes tipos de travestismos (Drags), de lesbianismo (
Butch/fem, Vamp, Daddy), de práticas gays, transexualistas,
transgênero e intersexos, utilização de diferentes objetos,
etc. Evidentemente, esta série é muito heterogênea, mas o que
está em jogo nas culturas queer, é a busca de uma nomeação a
partir de um modo privilegiado de gozo sexual, por fora de uma
norma fundada pelo “gênero”.

Como insistia Jacques-Alain Miller por ocasião de um colóquio


sobre os gays em análise, “O queer sublinha que, no fundo, o
gozo é rebelde a toda universalização, à Lei, e ele objeta ao
gay que aquilo continua nos limites do significante-mestre
massificante, logo, nos limites, do Édipo”.[2] Mas, ali onde
as teorias queer reivindicam a constituição de uma identidade
funcionando como uma insígnia que faz laço social a partir de
um modo de gozo situado por fora das categorias estabelecidas
em termos de gênero sexual, a perspectiva lacaniana oferece
uma nomeação que não se autoriza de nenhum semblante, nem de
nenhuma norma existente no Outro social ou no discurso
corrente. Essa nomeação, com efeito, não se funda sobre o gozo
sexual. Ela permite ao sujeito nomear-se a partir de um
“pedaço de real”, que é o gozo irredutível do sintoma, resíduo
do tratamento simbólico, pela fala, numa análise levada ao seu
termo. É esse ponto fundamental que orienta a direção do
tratamento, e que as críticas queer ignoram: é possível
nomear-se a partir de um núcleo de gozo, mais além do
horizonte identificatório do Édipo e do Nome-do-Pai. O falo só
pode se sustentar de um semblante, não é uma condição
necessária e sine qua non à nomeação do sujeito, como a lógica
edipiana o impõe. As coordenadas da direção de uma cura
lacaniana são muito diferentes disso que os autores queer
supõem e afirmam com toda certeza.

Mal-entendidos nas Zonas queer

Mal-entendidos, pois, Lacan é muito mal lido pelos autores


queer: ele é lido de forma enviesada.

Em um movimento que participa de um certo dogmatismo


intelectual reinante, no sentido que um Heidegger chamara em
sua época o “a gente”, a gente se obstina a obrigar um autor
dizer o que a gente quer lhe fazer dizer, forçando a leitura,
ou simplesmente ignorando os avanços ulteriores de sua obra ou
de seu ensino, como é o caso aqui.

É dessa forma que Judith Butler parece não querer


verdadeiramente ler Lacan, a não ser a partir de sua obra
“Corpos que importam”.[3] Em “Problemas de gênero” [4], seu
livro inaugural, ela cita Lacan, toda vez, de segunda mão. Ela
só faz referência ao Lacan dos primeiros seminários, nos quais
a perversão está centrada em torno do falo imaginário
(sobretudo no fetichismo e na homossexualidade). J. Butler
parece desconhecer a elaboração que ele fará, mais tarde,
sobre a perversão, abordada na perspectiva do objeto,
elaboração que colocará o acento sobre o sadismo, o
voyeurismo, o exibicionismo e principalmente sobre o
masoquismo (notadamente no seminário inédito “A Lógica da
fantasia”). Monique Wittig, uma das pioneiras do movimento
queer, busca, por seu lado, desmascarar o caráter político da
categoria de sexo, considerando-o como uma categoria produzida
pelo sistema de pensamento dominante, heterossexual, sistema
no qual a psicanálise representa seu papel. Em O Pensamento
Hétero[5], ela caricatura o uso lacaniano do estruturalismo,
sem nenhuma referência a textos precisos, contestando a
utilização de termos, tais como “discurso psicanalítico”, ou
“experiência analítica”, termos que, segundo ela, não permitem
fundar um saber científico, por serem autorreferenciados. Na
França, um professor reconhecido como Dider Éribon nunca
evoca, nem parece interessado pelos últimos seminários de
Lacan, mesmo tendo escrito, em 2003, um livro chamado
Heresias[6], que parodia, um pouco, o título do seminário RSI
de Lacan. Suas críticas estão particularmente centradas sobre
a primazia concedida, por Lacan, ao Nome-do-Pai e às
observações formuladas, no Seminário V, a respeito da
homossexualidade masculina. Podemos fazer, também, a mesma
constatação em outra Professora muito bem-informada, Marie-
Hélène Bourcier.

A que se devem essa ignorância ou omissão dos autores queer?


Certamente, há um desconhecimento do último ensino de Lacan,
mas, quem sabe, também, um interesse baseado em razões
ideológicas, de destacar o que foi dito por Lacan no começo do
seu ensino, pois acontece que isso parece convir perfeitamente
ao que se quer demonstrar. Assim, por exemplo, no número de
setembro de 2011 de Queer Zones, M-H. Bourcier retorna sobre o
fetichismo, a propósito da prática de BDSM queer[7] para
assinalar que “o fetichismo (em Freud) torna-se, por sua vez,
a perversão, a sanção e a prova, não somente de uma diferença
sexual biológica, mas também, de uma generificação binária e
restritiva. O fetichismo feminino se revela uma
impossibilidade ontológica, até mesmo teológica. […] Na
ausência de difusão da psicanálise crítica na França, sobra
muita gente e muitos psicanalistas para acreditarem, ainda,
nas ficções teóricas de Freud e de Lacan. De um Lacan que
condiciona o acesso ao reino simbólico via o Nome-do-Pai, esse
significante metafórico que crava mais profundamente no
inconsciente o significado falo, a ponto forclui-lo e de
torná-lo absolutamente inacessível à menina” [8].

“Que fazer?” se pergunta M-H Bourcier. “Desmontar esta “cena


primária” da mulher para nada dizer da lésbica de Lacan que
não enquadra com sua história, a grande falta e o falo
encoberto? Defender que o fetichismo só é reservado aos
homens? De fato, a imbecilidade ideológica masculina lacaniana
é imensa […] A existência de uma cultura Daddy (o Daddy é uma
mulher SM, mais velha, que representa o papel do parceiro
masculino protetor para outra mulher) no SM queer
contemporâneo dos anos 90 deixa entender que Lacan estacionou,
notadamente em seu conluio pau/falo/masculinidade biológica e
a faculdade de paternar”. [9]

Encontramos aqui uma ilustração condensada dos preconceitos


que os autores queer dirigem à psicanálise, sem fundamento
clínico algum. Aliás, podemos aí localizar o mesmo paradoxo, o
mesmo embaraço, igual ao do feminismo clássico: buscar sair do
impasse fálico, reforçando paradoxalmente a lógica fálica,
denunciando-a como limitante. O fetichismo nas mulheres
existe, mas ele não é mais feminino do que o próprio desejo. A
estrutura do desejo é fetichista, na medida em que se liga a
um objeto que o sujeito buscará reencontrar, cada vez, e que
determina a condição erótica para todo ser falante, homem ou
mulher. Aliás, todos os exemplos apresentados por M.-H.
Bourcier provam-no. Lacan considera mesmo, que uma criança
pode, para algumas mulheres, vir a ocupar esse lugar de
fetiche. Que “as homossexuais tratam de fazer bebês, enquanto
os queer se satisfazem com os falos nômades”[10], continuam
todos dois inscritos no gozo fálico. O verdadeiro mais-além
abre-se com um gozo que ultrapassa o falo, mais que lhe é
suplementar, quer dizer que não o anula e que situa a posição
verdadeiramente feminina. Luce Irigaray, psicanalista da
Escola Freudiana de Paris que inspirou o feminismo dos anos 70
e a Teoria Francesa, da qual se alimentam os “Queer Studies”,
abordava esse gozo Outro, mas como Todo, isto é, sem ligação
com sua outra borda, o gozo fálico, ao passo que Lacan falava
de um gozo não-toda fálica, para insistir sobre a ideia que
ele lhe era suplementar e não absoluto.

H. Bourcier, ela ainda, conhece o Lacan dos primeiros


seminários, aquele da primazia do simbólico, ao passo que a
perspectiva que ele introduz em seu seminário. “Joyce, o
Sinthoma” permitiria muito melhor compreender esta
multiplicação de identidades queer, estabelecidas a partir de
uma modalidade de gozo, como sublinham os “Queer Studies”. M.-
H. Bourcier assinala, ainda, a ausência de difusão de críticos
acadêmicos queer anglo-saxões da psicanálise na França, o que
não é de todo verdadeiro, pois esses críticos existem e em
diferentes domínios. Ela prefere, então, produzir uma maior
difusão a essas críticas, a fim de desmontar as “ficções
teóricas de Freud e Lacan”[11], e poder mostrar suas próprias
ficções. Adiantamos que se Freud deixa homens e mulheres
reunidos no grande conjunto do gozo fálico, Lacan, ao
contrário, abre uma via que não tem nada de fictícia e que é
muito mais o paradigma do real: A existência de um gozo não-
todo, que escapa à universalização da lógica presente no lado
masculino das fórmulas da sexuação do Seminário mais, ainda.
Esta dimensão, M.-H. Bourcier a ignora.

Podemos escutar, aliás, como um eco do Lacan do mais, ainda,


as proposições de M. Witig, que enunciava em 1978: “Seria
inapropriado dizer que as lésbicas vivem, se associam, fazem
amor com mulheres, porque a mulher não tem sentido a não ser
nos sistemas de pensamento e nos sistemas econômicos
heterossexuais. “As lésbicas não são mulheres”.[12] As
mulheres só existem na clivagem homem/mulher que determina o
sistema heteronormatizado, de onde emergirá esta proposição
que se tornou emblemática no movimento queer: “As lésbicas não
são mulheres”. Não se trata para M. Wittig de negar o
universal da proposição que recai sobre o significante d’A
mulher, à maneira da célebre proposição de Lacan “A Mulher não
existe”, mas de afirmar que não há inscrição no nível do
gênero de um saber sobre o que são as mulheres, bem como não
há para os homens. É o princípio de base do movimento queer: o
seu questionamento de todo saber sobre o que é um homem, uma
mulher, um gay, uma lésbica e a promoção de práticas sexuais
performativas __ o termo “performativo” tendo sido, aqui,
tomado emprestado por J. Butler ao linguista John L. Austin __
que permitem se nomear, a partir da própria prática,
exteriormente a toda categoria de gênero, de classe, de raça,
de etnia, de história e de sociedade. Essa afirmação
identitária é, portanto, estritamente fundada sobre uma
prática sexual.

Um autor advertido como J. Sáez, que citamos anteriormente,


faz a seguinte constatação: os analistas para se modernizarem
e poderem se adaptar à evolução dos costumes da sociedade,
teriam que reconsiderar que a homossexualidade é uma perversão
e estariam prontos a considerar que ela é uma orientação
sexual como qualquer outra, tão problemática quanto a
heterossexualidade. Este aggiornamento teria chegado, muito
tarde, segundo ele, pois para os Queer Studies, desenvolvidos
em reação aos Estudos Gays e Lésbicas e a sua hegemonia nas
circunscrições dos Estudos Culturais nos Estados Unidos, o
próprio termo “homossexualidade” designa uma concha vazia,
pois ele já é abordado de um ponto de vista “héteronormativo”
e “straight”. J. Sáez cita trabalhos lacanianos publicados
recentemente na França (“O inconsistente homossexual”, “Os
homossexuais hoje”, “Psicanálise e homossexualidade”[13]) nos
quais “se entoaria um tipo de mea culpa, reconhecendo uma
homofobia institucional da psicanálise e onde analisar-se-ia
“a homossexualidade” a partir de perspectivas menos
patologizantes, onde ainda se sustenta que “a
homossexualidade” não é nem uma doença nem um desvio”.[14]

Para J. Sáez esta proliferação de explicações e de posições,


“tão variada e contraditória que uma análise lógica não
resistiria, deixa de lado o principal problema, a saber, que
todo trabalho “de explicação da homossexualidade” é um absurdo
em si mesmo e suspeito de um ponto de vista queer”. Nós
estamos, é claro, de acordo com o autor sobre esse ponto,
partindo-se do princípio que “a homossexualidade não existe” e
que se trata sobretudo de ler as escolhas sexuais de um
sujeito como modos particulares de enodar os três registros
Real, Simbólico e Imaginário.
Para ilustrar a variedade de preconceitos dos psicanalistas a
respeito da homossexualidade, J. Sáez tratou de construir uma
lista de explicações diversas e contraditórias que ele diz ter
encontrado nas hostes lacaniana. Nós nos divertimos fazendo
disso um questionário ao qual conviria responder com (V) ou
(F) (verdadeiro ou falso) como nas revistas:

__ Para Freud, a homossexualidade é uma orientação sexual como


qualquer outra, tão problemática quanto a homossexualidade.
(V).

__Para Lacan, a homossexualidade não é uma orientação sexual,


é uma perversão, que não se situa no interior das perversões
sexuais, mais da estrutura perversa. (F).

__Lacan afirma que a perversão está presente em todas as


manifestações do amor. (F, mas V se por “amor” se escuta
“desejo”).

__Os casais de gays e de lésbicas não devem adotar crianças


porque eles lhes educariam no âmbito de uma identificação
narcisista incapaz de admitir a diferença sexual. (F).

__Os casais de gays e de lésbicas podem adotar crianças, pois


a função do Nome-do-Pai é uma posição simbólica que qualquer
um pode adotar e que não tem nada a ver com um pai real de
carne e osso. (Muito verdadeiro)

__A homossexualidade feminina tem a ver com a histeria e a


rivalidade sexual, na homossexualidade masculina, ao
contrário, encontramos um dos fundamentos do laço social. (F.
porque “a homossexualidade feminina” não existe, como foi
bastante desenvolvido acima).

__Lacan nunca tentou “curar” seus pacientes homossexuais, no


sentido de transformá-los em heterossexuais. (V).

__Lacan foi o primeiro a aceitar pacientes homossexuais, e


nunca se opôs a que pudessem ser psicanalistas. (V).
__A homossexualidade questiona a existência da diferença
sexual, o que é intolerável. (F, ela não a questiona, mas a
verifica).

__A homossexualidade é algo normal, à diferença de práticas


perversas e patológicas como o fetichismo e o sadomasoquismo.
(F).

Esses preconceitos devem ser colocados na conta da


contratransferência, pois como ensinava Lacan, “a
contratransferência é a soma dos preconceitos do
analista”.[15] Responder a partir de seus preconceitos é uma
forma de demissão perante o desejo do analista, pois tal
desejo implica em “obter a diferença absoluta”[16] e,
portanto, de estar sempre extremamente atento à singularidade
do sujeito que vem nos encontrar.

J. Sáez se detém longamente, em sua obra, sobre a construção


do objeto a por Lacan, objeto causa do desejo, e ele lembra
que a sexualidade centrada sobre esse objeto descarta toda
perspectiva que concederia uma importância unívoca ao genital
como única forma de aceder ao prazer sexual. Dirigindo-se aos
autores queer, ele sublinha o quanto é redutor insistir sobre
o falocentrismo freudiano e lacaniano, enquanto os queer não
fazem mais do que atestar por suas práticas __e o parágrafo
citado de M.-H. Bourcier também confirma isso__ que é
justamente esse objeto que aparece no primeiro plano sob a
forma do olhar, na variedade de práticas voyeuristas e
exibicionistas, ou da voz nas múltiplas práticas SM, pois não
se trata de uma parte do corpo priorizada como zona erógena.
“Separando o desejo sexual e o gozo do imperativo genital”,
afirma J. Sáez, “Lacan desnaturalizada e desheterossexualiza o
desejo. O objeto a por sua multiplicidade e sua separação do
genital, não permite instaurar nenhum tipo de normalidade
sexual”.[17] Eis o ponto central evitado sistematicamente
pelos autores queer: não pode haver aí normalidade ou leitura
heteronormativa da homossexualidade, desde que nos orientemos
a partir do objeto causa do desejo, introduzido por Lacan.
Apoiar-nos-emos sobre uma vinheta clínica para destacar como a
problemática da homossexualidade feminina situa-se em
coordenadas muito diferentes daquelas que são imputadas a
psicanálise. Podemos, desta forma, medir a importância da
dimensão do amor abrindo, para um sujeito que se diz
homossexual, um horizonte mais-além do gozo fálico.

Um encontro com o heteros

Recebi, há alguns anos, uma mulher de, mais ou menos, 50 anos,


que me procurou porque estava perturbada por um encontro
recente.

Esta professora, mãe de três filhas, já jovens adultas,


decidira se separar de seu marido no momento em que ela
encontrou uma mulher um pouco mais velha do que ela. Após 25
anos de casamento com o pai de suas filhas __alguém que ela
descrevia como um homem bonito, muito gentil e prestativo, mas
um pouco mole__ ela foi morar com essa mulher numa cidade
vizinha do interior. Seu marido não fora o único homem em sua
vida, ela conhecera alguns outros antes dele, mas sua
gentileza e sua beleza foram os traços que lhe haviam levado a
escolhê-lo como pai de seus filhos. Se ela já tinha tido na
adolescência alguns encontros pontuais e sem futuro, com
mulheres, dessa vez, esse novo encontro lhe abriu novamente o
caminho do amor, caminho desgastado por seu longo casamento e
certamente pelo mau jeito masculino, segundo a expressão de
Lacan em “O aturdido”, concernente ao amor.

Esse novo encontro foi também marcado pelo signo do saber,


pois segundo seus ditos, essa mulher parecia deter um saber
sobre ela. Eu diria que ela ocupava a função de um tipo de
sujeito suposto saber. A analisante estava muito impressionada
pela cultura de sua amante e por sua inteligência intuitiva
que lhe faziam acreditar que esta detinha um saber sobre ela.
Era, portanto, um verdadeiro encontro amoroso, redobrado por
uma intensa paixão física.
O que se constituía, para esse sujeito, como enigma, e a
levava à análise, era a relação de submissão amorosa que ela
havia estabelecido com sua parceira, modo de ligação
completamente inédito e que lhe revelava uma face desconhecida
de si mesma. Se esse traço permitia dar evasão ao seu ativismo
fálico, já presente na relação com seu marido, para compensar
sua impotência, sua posição de amante castrado, esse encontro
deixava ainda mais evidente sua identificação ao falo. Esta
identificação desvelava, agora, sua fase sintomática, frágil,
pois é ela era levada, a partir de então, por sua demanda de
amor. O amor tomava a forma feminina de amar para se fazer
amada __essere amata amando__, como canta Violetta na
Traviata__ dom de sua castração, de sua falta, para encontrar,
em trocar, um lugar no Outro. Essa experiência inédita a
dividia, pois se, com seu marido, ela tinha ocupado o lugar da
amada, tratava-se agora de amar para ser amada. Ela cumpria o
que Lacan chama no Seminário A Transferência a “metáfora do
amor”, passagem da posição de eromenos (o amado) à de erates
(o amante). Essa passagem levou-a à análise, porque esta nova
posição subjetiva a confrontava com o abismo da falta que
permanecera velada na relação com seu marido.

Esse encontro homossexual abria paradoxalmente, para ela, a


via do heteros, a via do Outro sexo, ali onde a relação
heterossexual a havia deixado presa na hommossexualidade com
dois “m” como escreveu Lacan no mais- ainda, do lado do
universo fechado do Todo. Ela ia, então ao encontro do
Heteros, tal como Lacan o situa em “O Aturdito”: “aquele que
ama as mulheres, qualquer que seja seu próprio sexo”.[18]

Se sua posição era a de dar tudo para ser tudo, é preciso


assinalar que, aí, se trata de uma falsa solução no que diz
respeito à posição feminina, pois como indicava Éric Laurent
em seu texto “Posições femininas do ser” [19], querer ser tudo
ou nada para o Outro aprisiona uma mulher em um impasse. No
registro da posição feminina trata-se, muito mais, para uma
mulher de se tornar Outra para si mesma, apoiando-se sobre o
homem ou sobre uma mulher.

Poderíamos situar a posição desta mulher, dividida entre o


gozo fálico, do lado esquerdo das fórmulas da sexuação__ e a
via que abre para o amor do lado de S(Ⱥ)__ pois é assim que
Lacan escreve o que ele chama a “forma erotomaníaca do desejo
feminino”, retomada por J. A. Miller em seu texto “Uma
partilha sexual”.[20]

Ali onde ela era chamada a encarnar o objeto ạ, o objeto


fetiche na relação com seu marido, essa nova solução que ela
encontrara era um pouco mais confortável. A forma erotomaníaca
do amor reforçava para ela a função de sujeito suposto saber
que ela atribuía a outra mulher, porque essa parceira tinha
algo de enigmático e, portanto, de inacessível para ela.

Ele foi embora ao final de alguns meses sem que soubéssemos de


antemão. Se a análise, em seu começo, pôde lhe indicar o que
esse movimento para uma mulher implicava para ela, o analista,
certamente, não pôde se tornar; para ela, mais enigmático do
que a Dama[21], encarnar um sujeito suposto saber, para ela, e
poder operar, desta forma, a partir da transferência. Ela
havia dito em uma sessão, numa denegação, que ela não pensava
que o fato do analista ser um homem pudesse ser um obstáculo
para compreender do que ela falava. Se uma análise é também
uma experiência que põe em jogo o amor, pode-se levantar a
hipótese de que ela teria percebido, na transferência, que a
análise a levaria a pôr em cena aquilo que ela se recusava, em
uma fantasia que ficou, por isso, intocada: amar um homem
poderia colocar em perigo a equação amorosa que ela instituíra
com a Dama. Em todo caso, ela partiu numa recusa de saber
ainda mais fechada do que a da jovem homossexual de Freud.

Como esta última, a apaixonada que eu evoco aqui dava a ver o


que é amar uma mulher, tomando como testemunha não mais o pai,
mas o marido e o analista: amar uma mulher ali onde o homem,
aphiligido como ele é, pelo ter fálico, não consegue, ou
consegue mal. Ela colocará, então, o ter entre parênteses,
contornando-o como condição, para amar e ser amada. Isso dá o
aspecto acting out desse caso, mostração dirigida a um Outro,
o que constitui também um apelo à interpretação. Mas, à
diferença do caso da jovem homossexual, em que a decepção é
desencadeada por uma contingência e engendra uma passagem ao
ato inquietante, a demanda de amor, aqui, não diz respeito
somente a uma decepção: ela coloca em evidência, muito mais,
um ponto da estrutura do desejo feminino. A necessidade do
signo da presença do amor do Outro como condição para poder
desejar, isso que claramente ela não conseguiu encontrar com
seu marido. É, portanto, em torno desse ponto que situaremos a
singularidade do protocolo dessa mulher, que nos ensina, sobre
o horizonte que a análise permite abrir, mais além das
miragens da demanda de amor e do seu caráter insaciável. É a
versão S(Ⱥ) que é visada por esse sujeito, sob a forma: “Os
homens não sabem amar: trata-se de procurar o amor, é preciso
ir buscar do lado das mulheres”. Inscrita sobre os dois lados
do quadro da sexuação de Lacan no mais, ainda, lado feminino
com o não-todo fálico, que abre a dimensão do amor situado na
barra do Outro, ela está também no gozo fálico com sua
parceira. O ponto singular, destacado, aqui, de forma
sustentada, é o ponto da estrutura, que mostra a falha no
Outro sobre a forma “os homens não sabem amar uma mulher” e
diz, ainda mais, como o amor pode suprir a ausência de relação
sexual, o real do fracasso entre um homem e uma mulher e entre
duas mulheres também, pois a ausência de relação sexual é um
real para todo falasser.

Assim, contrariamente ao que os autores mais eminentes do


Queer Studies afirmam sobre a psicanálise lacaniana, essa
mulher nos ensina, em seu curto trajeto, que não temos que
edipianizar um caso, ali, onde a lógica do amor, presente em
numerosos sujeitos femininos, nos indica o horizonte de um
mais-além do gozo fálico e do reino do Universal paterno.
Existe uma via para o heteros, para a alteridade, mesmo quando
se apresenta de uma forma aparentemente paradoxal, em uma
escolha de objeto homossexual, uma vez que o amor não se
endereça ao Pai, mas, como Lacan ensina no seminário mais,
ainda, ao significante da falta no Outro. É o protocolo queer,
singular, de certos sujeitos como este aqui.

Tradução: Elizabete Siqueira

*Texto publicado no livro Elles ont choisi: les homosexualités


féminines, pp. 95-116, obra coletiva dirigida por Stella
Harrison, Paris: Éditions Michèle.

[1] Sáez, J. Théorie queer et psychanalyse. EPEL, 2005, p.122.

[2] Miller, J.- A. “Des gays en analyse?”, La Cause


freudienne, nº 55, outubro 2003.

[3] Butler, J., Corpos que importam, Paris, Ed. Amsterdam,


2009.

[4] Butler, J., Problemas de gênero, Paris, La Découverte,


2015.

[5] Wittig M., O pensamento hétero, Paris, Balland, 2001

[6] Eribon D., Heresias: ensaios sobre a sexualidade, Paris,


Fayard, 2003.

[7] Bourcier M.-H., Queer zones, nº 3, Paris Ed. Amsterdam,


setembro 2011, p.231. O BDSM recobriria as práticas de
Contenção, Disciplina e as práticas SM, como uma alternativa à
designação patologizante de “sado-masoquismo” e teriam
aparecido nos fóruns de discussão SM no final dos anos 90.

[8] Bourcier M.-H., Queer zones, op. cit., p. 236.

[9] Bourcier M.-H., op cit., p. 238. A precisão consistente ao


Daddy é de M.-H. Bourcier.

[10] Bourcier M.-H., op cit.

[11] Bourcier M.-H., op cit., p. 264.


[12] O pensamento hétero, Conferência pronunciada em Nova York
em 1978, publicada em 1980 em Questões feministas, nº 7, 1980,
depois como O pensamento hétero, Paris, Ballard, 2001.

[13] Respectivamente “O inconsciente homossexual”, A causa


freudiana, nº. 37, Paris, outubro 1997, “Clínicas
Mediterrâneas“, nº 65, 2002, A Clínica lacaniana, “As
homossexualidades”, nº 4 Éres, maio 2002.

[14] Sáez J. Teoria Queer e psicanálise, Paris, E.P.E.L.,


2005, p. 133.

[15] Lacan J., Escritos, Paris, Seuil, 1966, p. 225.

[16] Lacan J., O seminário, Livro XI, Os quatro conceitos


fundamentais da psicanálise. Paris, Seuil, 1973, p.248

[17] Sáez J., op cit., p. 123.

[18] Lacan J., “O Aturdito“, Outros escritos, Paris, Seuil, p.


467.

[19] Laurent É, “Posições femininas do ser”, La cause


freidienne, nº 24, Paris, junho de 1993; pp. 107-14.

[20] Miller J.-A. “Uma partilha sexual”, La Cause freidienne,


nº 40, setembro 1998, pp. 16-27.

[21] Propomos essa denominação para sua parceira que por seu
caráter fechado, enigmático, ocupava, para esse sujeito, a
mesma posição que a da Dama no amor cortês.

Você também pode gostar