massacre, sempre há um enunciado no qual se pretende englobar todas as vítimas sob apenas um rótulo. Basta lembrar: massacre dos turcos sobre os armênios, dos sérvios para os mulçumanos, de membro do Kmer Rouge sobre seus concidadãos e por aí vai. Essa linha generalista também se aplica ao Holocausto (Shoá) fazendo com que povos, grupos, gêneros, idades, opção sexual, todos fatores que fizeram com que a crueldade nazista se abateram sobre eles, passassem desapercebidos ou sejam desconsiderados. Em muitos dos casos, esses recortes já podem ter sido condenados a caírem no esquecimento como, por exemplo, a sorte dos homossexuais masculinos e femininos que sofreram implacável perseguição sendo exterminados impiedosamente. Como foram condenados à essa situação pelo artigo 175 da lei alemã que condenava a homossexualidade como crime passível de prisão, artigo que não foi revogado no pós guerra sendo que muitos de suas vítimas não reinvindicaram indenizações e nem deixaram testemunhos. Nesse livro, "As judias do campo de concentração de Ravensbrück" de Rochelle G. Saidel, temos a oportunidade de encontrar um recorte para mim ainda inédito, o de gênero. Ao menos dentre as obras as quais tive acesso, a questáo da mulher judia tornou-se marginal ou "diluído" nas narrativas de campos maiores como Auschwitz para onde convergiam as grandes massas de prisioneiros. Outro fato adicional é apontado pela própria autora no primeiro capítulo do livro e cuja lógica, infelizmente, foi absorvida pelo embate ideológico da Guerra Fria. Sob a jurisdição soviética e depois da Alemanha Oriental, pouco destaque se deu à sorte das judias apenas mencionadas quando ao seu "status"somava-se o de ativista política comunista, como no caso de Olga Benário. Após o colapso tanto da URSS como da RDA houve também,nas próprias atividades de lembrança histórica sediadas em Ravensbrück, uma retomada do resgate histórico do sacrifício judaico naquelas instalações. A questão de gênero, como ser verá na leitura, não é uma questão neutra nos padecimentos do campo. Questões até simplórias como a dificuldade de manutenção da higiêne especialmente no período menstrual e outras questões de complexidade maior como a de terem sido as mulheres submetidas a uma educação essencialmente paternalista o que fez com que lhes fosse cobrado um tributo especial quando separadas dos pais e dos maridos foram fatores decisivos quando qualquer fragilidade poderia representar a diferença entre sobreviver ou não. Note-se também que a questão da maternidade , da vida dos filhos e sua criação ser um atributo essencialmente feminino teve como efeito colateral que várias crianças fossem mandadas para morte, já que os homens não podiam e nem sabiam cuidar delas. Muitas das sobreviventes que narram suas histórias no livro, eram adolescentes e crianças e a sobrevivência delas deveu-se, sobremaneira, às "mães substitutas", outras detentas que colocaram essas crianças e jovens sob sua responsabilidade que permitiram a sobrevivência nas condições adversas do campo. O panorama que Rochelle traça não se furta a abordar questões sensíveis como a prostituição forçada de prisioneiras, mais um elemento da terrível sucessão de humilhações impostas às judias. Particularmente, o que mais me supreendeu foi o relato da passagem pelo campo de Ravensbrück de Gemma La Guardia Gluck, irmã do prefeito de Nova Iorque na ocasião, Fiorello La Guardia cujo parentesco conferiu à Gemma a categoria de "prisioneira especial", uma refém para ser "trocada"em algum momento que isso fosse necessário. A sua trajetória da prisão até a libertação dá conta do caráter deliberado das ações nazistas, do frio planejamento industrial para o extermínio. Essas prisioneiras foram utilizadas como mão de obra escrava em diversas empresas e em diversas funções sendo que a maior fábrica do campo era a Siemens onde as mãos delicadas e pequenas serviam ao propósito de montar componentes eletrônicos para as bombas V1 e V2. A libertação das prisioneiras de Ravensbruck foi possível através das gestões da Cruz Vermelha Sueca, especialmente do Conde Folke Bernadotte que , em negociações secretas com Himmler incialmente libertou judias suecas e norueguesas e em seguida de outras nacionalidades. Nesse momento, instala-se a questão fundamental: como viver depois de tudo? Nesse momento, a autora compila testemunhos de relevância inquestionável e de emoção também intensa sobre o prosseguir, o conviver com os ferimentos de alma e do corpo, chagas eternamente sangrantes na memória de quem passa por tanto horror. Muitas delas, para prosseguir, preferiram calar-se sobre o que viveram mas outras optaram por contar o que sofreram e viram. Assim também faz Rochelle Saidel ao recuperar as memórias dessas sobreviventes. À nós, leitores, cabe a consciência de que esse extermínio não encontra paralelos por sua amplitude e pela possibilidade de termos acesso aos documentos, fotos e filmes do ocorrido e mais, da percepção da capacidade do ser humano em engendrar o mal. Mesmo sabendo que o conhecimento da história por si nada representa, cabe-nos rejeitar que represente a morte e a destruição, continuamente levantando-se contra a morte e o sofrimento. Assim todos os mortos de todos os massacres, especialmente do Shoá , não terão morrido em vão.
Nota de direitos autorais: essa resenha poderá ser reproduzida
livremente, em publicações sem fins lucrativos , sem quaisquer alterações. Para quaisquer usos fora esses, favor contatar o autor em jbliborio@gmail.com