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RESENHA

AS JUDIAS DO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO DE RAVENSBRÜCK

ROCHELLE G. SAIDEL

RESENHA DE JOSÉ BENEDITO VIZIOLI LIBÓRIO

Independentemente de qual povo tenha sofrido o


massacre, sempre há um enunciado no qual se pretende
englobar todas as vítimas sob apenas um rótulo. Basta
lembrar: massacre dos turcos sobre os armênios, dos
sérvios para os mulçumanos, de membro do Kmer Rouge sobre seus
concidadãos e por aí vai.
Essa linha generalista também se aplica ao Holocausto (Shoá)
fazendo com que povos, grupos, gêneros, idades, opção sexual, todos
fatores que fizeram com que a crueldade nazista se abateram sobre eles,
passassem desapercebidos ou sejam desconsiderados.
Em muitos dos casos, esses recortes já podem ter sido condenados
a caírem no esquecimento como, por exemplo, a sorte dos homossexuais
masculinos e femininos que sofreram implacável perseguição sendo
exterminados impiedosamente.
Como foram condenados à essa situação pelo artigo 175 da lei
alemã que condenava a homossexualidade como crime passível de prisão,
artigo que não foi revogado no pós guerra sendo que muitos de suas
vítimas não reinvindicaram indenizações e nem deixaram testemunhos.
Nesse livro, "As judias do campo de concentração de Ravensbrück" de
Rochelle G. Saidel, temos a oportunidade de encontrar um recorte para
mim ainda inédito, o de gênero.
Ao menos dentre as obras as quais tive acesso, a questáo da mulher
judia tornou-se marginal ou "diluído" nas narrativas de campos maiores
como Auschwitz para onde convergiam as grandes massas de prisioneiros.
Outro fato adicional é apontado pela própria autora no primeiro capítulo
do livro e cuja lógica, infelizmente, foi absorvida pelo embate ideológico da
Guerra Fria.
Sob a jurisdição soviética e depois da Alemanha Oriental, pouco
destaque se deu à sorte das judias apenas mencionadas quando ao seu
"status"somava-se o de ativista política comunista, como no caso de Olga
Benário.
Após o colapso tanto da URSS como da RDA houve também,nas
próprias atividades de lembrança histórica sediadas em Ravensbrück, uma
retomada do resgate histórico do sacrifício judaico naquelas instalações.
A questão de gênero, como ser verá na leitura, não é uma questão neutra
nos padecimentos do campo. Questões até simplórias como a dificuldade de
manutenção da higiêne especialmente no período menstrual e outras
questões de complexidade maior como a de terem sido as mulheres
submetidas a uma educação essencialmente paternalista o que fez com que
lhes fosse cobrado um tributo especial quando separadas dos pais e dos
maridos foram fatores decisivos quando qualquer fragilidade poderia
representar a diferença entre sobreviver ou não.
Note-se também que a questão da maternidade , da vida dos filhos
e sua criação ser um atributo essencialmente feminino teve como efeito
colateral que várias crianças fossem mandadas para morte, já que os
homens não podiam e nem sabiam cuidar delas.
Muitas das sobreviventes que narram suas histórias no livro, eram
adolescentes e crianças e a sobrevivência delas deveu-se, sobremaneira, às
"mães substitutas", outras detentas que colocaram essas crianças e jovens
sob sua responsabilidade que permitiram a sobrevivência nas condições
adversas do campo.
O panorama que Rochelle traça não se furta a abordar questões
sensíveis como a prostituição forçada de prisioneiras, mais um elemento da
terrível sucessão de humilhações impostas às judias.
Particularmente, o que mais me supreendeu foi o relato da
passagem pelo campo de Ravensbrück de Gemma La Guardia Gluck, irmã
do prefeito de Nova Iorque na ocasião, Fiorello La Guardia cujo
parentesco conferiu à Gemma a categoria de "prisioneira especial", uma
refém para ser "trocada"em algum momento que isso fosse necessário.
A sua trajetória da prisão até a libertação dá conta do caráter deliberado
das ações nazistas, do frio planejamento industrial para o extermínio.
Essas prisioneiras foram utilizadas como mão de obra escrava em diversas
empresas e em diversas funções sendo que a maior fábrica do campo era a
Siemens onde as mãos delicadas e pequenas serviam ao propósito de
montar componentes eletrônicos para as bombas V1 e V2.
A libertação das prisioneiras de Ravensbruck foi possível através
das gestões da Cruz Vermelha Sueca, especialmente do Conde Folke
Bernadotte que , em negociações secretas com Himmler incialmente
libertou judias suecas e norueguesas e em seguida de outras
nacionalidades.
Nesse momento, instala-se a questão fundamental: como viver depois de
tudo? Nesse momento, a autora compila testemunhos de relevância
inquestionável e de emoção também intensa sobre o prosseguir, o conviver
com os ferimentos de alma e do corpo, chagas eternamente sangrantes na
memória de quem passa por tanto horror.
Muitas delas, para prosseguir, preferiram calar-se sobre o que
viveram mas outras optaram por contar o que sofreram e viram.
Assim também faz Rochelle Saidel ao recuperar as memórias
dessas sobreviventes. À nós, leitores, cabe a consciência de que esse
extermínio não encontra paralelos por sua amplitude e pela possibilidade
de termos acesso aos documentos, fotos e filmes do ocorrido e mais, da
percepção da capacidade do ser humano em engendrar o mal.
Mesmo sabendo que o conhecimento da história por si nada
representa, cabe-nos rejeitar que represente a morte e a destruição,
continuamente levantando-se contra a morte e o sofrimento.
Assim todos os mortos de todos os massacres, especialmente do
Shoá , não terão morrido em vão.

Nota de direitos autorais: essa resenha poderá ser reproduzida


livremente, em publicações sem fins lucrativos , sem quaisquer
alterações. Para quaisquer usos fora esses, favor contatar o autor em
jbliborio@gmail.com

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