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Rinaldo Voltolini
O que é ser lacaniano? Question piège, diria, provavelmente, o próprio Lacan. Creio
que nenhuma resposta honesta a esta pergunta pode ser dada sem começar por
reconhecer a traição ao próprio Lacan que sua simples enunciação representa. Afinal,
sua fórmula, já célebre entre nós, do “façam como eu, não me imitem!”, somada a sua
não menos célebre afirmação do “se vocês quiserem ser lacanianos que o sejam, quanto
a mim, sou freudiano!” parecem advertir todo aquele que pretende tomar o ser lacaniano
como uma fórmula de identidade, ou como um signo de filiação. Afinal, a identidade
parece trazer uma segurança narcísica e a irmandade aquele lugar quentinho, duas
tentações para os neuróticos.
Por outro lado, no entanto, me parece imprescindível, eticamente necessário, que todo
aquele que reclame o nome de Lacan, para se autorizar em sua pratica, deva ser capaz
de dizer qual uso faz desse nome. Por que não dizer simplesmente: sou psicanalista? De
onde vem o gosto por evocar o patronímico? Evidentemente, é de certa relação com o
pai que se trata. O próprio Lacan já havia insistido exaustivamente na importância
decisiva da pergunta: em que lugar colocamos Freud? É, pelo menos, o que testemunha
outra de suas fórmulas: a do “retorno a Freud”.
Não se pode nunca escapar dos efeitos de filiação, afinal não há autoengendramento do
sujeito e na construção e transmissão da teoria não é diferente. Melhor, portanto, estar
advertido do que se faz com eles. Duas possibilidades se destacam: (1) há o pai do
legado; (2) há o pai do patrimônio. O do legado é o mestre, aquele que dá a primeira
palavra; o do patrimônio é o chefe, aquele que, como sabem todos os que têm juízo, é o
que dá a última. É preciso um mestre para fundar um discurso e Freud seguramente o
foi. Aliás, nem precisamos buscar a confirmação disso em seus súditos, homens de fé,
sempre suspeitos de parcialidade na questão. Quem o diz é Foucault (2009), alguém
completamente insuspeito quanto à fé na psicanálise, tentando explicar a perenidade da
obra do mestre vienense.
A metáfora religiosa para tratar da questão da filiação não é minha, é do próprio Lacan,
notadamente quando qualificou a restrição feita a seu nome, no momento da adesão do
grupo francês à IPA, como da ordem da excomunhão. Excomunhão que ele comparou
ao processo sofrido por Spinoza, judeu holandês que migra de Portugal para fugir da
perseguição da Igreja católica e que seria excomungado, mais tarde, de sua sinagoga,
por recusar a ortodoxia judaica. Spinoza achava que a sobrevivência do cristianismo,
como a do judaísmo, se devia à obediência a dogmas e rituais e negava que a Bíblia
tivesse sido inspirada por Deus do começo ao fim. Deve ter dedo dos homens neste
texto. Depois de excomungado, foi trabalhar como polidor de lentes, como, aliás,
Lacan; afinal, tratava-se de ajudar os analistas a verem melhor.
Não há dúvidas de que Lacan via a IPA como a guardiã de um patrimônio e sem
referência a um legado. Para ele, a experiência analítica e a preservação de suas
condições estavam ameaçadas pelo conforto que os analistas buscavam em
procedimentos institucionais que não serviam, senão, a nutrir este conforto. A referência
do “retorno a Freud” foi, antes de tudo, uma interpretação aos analistas pós-freudianos,
que viria, em seguida, a se tornar um projeto de trabalho: referência à Freud e não
reverência à Freud.
O próprio Freud não seria poupado por Lacan nessa crítica. Para Lacan, a IPA era
exatamente o que desejava Freud que, preocupado com a perenidade de sua obra, com a
“(...) proteção possível para evitar a extinção da experiência.” (Lacan, 2003a, p.250)
teria preferido criar uma instituição nos moldes daquelas que já haviam provado, ao
longo da história, poder de perenidade: a Igreja e o Exército. Instituições modelares
estudadas por Freud (1921/1996). Impingir à instituição de psicanálise aquilo que a
própria descoberta analítica revelava sobre a dinâmica do psiquismo grupal poderia
expô-la a uma vulnerabilidade, risco não desejável.
O que a Igreja cria é uma interpretação cômoda, do gênero de comodidade que traz a
moral. Assim podemos viver do exemplo de Cristo e não o exemplo de Cristo, operação
que cria o pai do patrimônio. Economicamente mais viável e muito potente em questão
de perenidade. O antídoto contra uma moral, moral da famosa “pastoral psicanalítica”, é
a construção de uma ética.
Lacan tenta, em contrapartida, tomar Freud como o pai do legado. Retornar a Freud
serviria para retomar o exemplo de uma investigação que abriu o terreno para um novo
discurso, discurso que precisaria ser constantemente enunciado para manter aberta e em
boas condições de exploração, as consequências de uma experiência. A perspectiva
biográfica – aquela que não evita os pecados do homem -, mais do que a hagiográfica –
que é a biografia de um santo - deve ser privilegiada quando se trata de ler Freud.
Afinal, como ensina a experiência analítica, a transferência passional é resistência.
O exemplo de Lacan ao reler Freud parece bastante claro e constitui realmente uma
questão crucial, para todos aqueles que declaram ser lacanianos, como é que a
instituição criada por ele acabou por fornecer tantos exemplos de religiosidade
institucional. Leituras canônicas, ao modo do Lacan dixit; disputas intestinas em torno
de citações; assimetrias formativas transformadas em hierarquia – gradus com
hierarquia – e, sobretudo, o lacanês, espécie de língua paterna não votada à
transmissão. Não por acaso a língua é materna e a Pátria paterna. A primeira é fundante,
funda um corpo; a segunda, disciplinadora, disciplina um corpo, em defesa dos signos
de soberania.
Não se trata de uma questão fácil para os lacanianos, sobretudo porque, em sua maioria,
sequer reconheceram o problema. Como dizíamos no início, a irmandade é um lugar
quentinho e é sempre reconfortante partilhar/comungar mitos comuns – por exemplo, o
do Lacan herói, perseguido e executado; o da superioridade teórica da psicanálise
lacaniana sobre as outras psicanálises, sempre desviantes; o da eternidade da
psicanálise, etc. Histórias contadas em família que, como toda história contada em
família, serve para reforçar identidade de grupo e estreitar laços, mas que não deixam de
trazer, também alguns efeitos colaterais, como, por exemplo, o de complicar a imagem
da psicanálise com a ciência.
Não por acaso, a história do movimento analítico se parece mais com a história – com
minúscula, já que os acordos normativos da língua portuguesa extinguiram a palavra
estória - de uma família, do que com a História – com maiúscula para designar a ciência
baseada no estudo documental - de uma ciência. São os escândalos, as rupturas, as
dissidências, os amores, as traições, os mitos, as polêmicas, as imposturas, as
rivalidades, os anátemas, que atraem os analistas na história da psicanálise, mais do que
um suposto avanço linear no campo das ideias e conceitos.
Pista importante, mas que protege Lacan do lacanismo. Ainda firme na metáfora
religiosa, poderíamos dizer que esta explicação assume a forma do adágio: tudo é
perfeito na mão do criador, degenera na mão dos homens. Podemos mesmo isentar o
criador daquilo que anda mal em sua criação? Não teria Lacan subestimado a
imperfeição dos homens - ou superestimado a perfectibilidade dos analistas -, aquela
mesma que ele não cessou de aludir sarcasticamente em seus seminários, dizendo que
não percebia ninguém que fosse capaz de escutá-lo?
Em todo o caso, creio ser possível reconhecer em Lacan o grande mérito de ter
mostrado que a psicanálise é um discurso. Freud, como todos sabem, a havia definido
de outra forma, como sendo teoria, método, e terapêutica. Assim definida, sem maiores
esclarecimentos, ela fica presa fácil das apropriações universitárias que, aliás, abundam
em todos os meios. Que ela seja definida como um discurso quer dizer, essencialmente,
que ela é, antes de tudo, uma dada posição específica de tomada da palavra. Que o que a
caracteriza não é o conjunto de seus conceitos – teoria – nem sua prática de tratamento –
terapêutica – nem seu modo próprio de investigação – método.
Passado bastante tempo desde a concepção dessas iniciativas, podemos dizer que a
empreitada fracassou. A psicanálise encontrou sim um lugar na universidade, mas não
ao modo desenhado nem por Freud nem por Lacan. É de forma centrífuga que a
psicanálise se encontra presente na universidade contemporânea. Ou seja, não é no
escopo da formação do analista, mas no da formação de outros profissionais –
psicólogos, professores, sociólogos, médicos, etc. – que ela está presente. E não está
mal que seja assim. Bem melhor do que as tentativas que vez ou outra surgem, no
cenário brasileiro em particular, que buscam, de um modo oportunista e fora de toda
ética psicanalítica, implantar a formação de analistas como curso de graduação
universitária1.
É bem sobre a égide do discurso do capitalista que vemos a universidade funcionar hoje
em dia, não apenas porque é a logica do dinheiro e do mercado que define a pesquisa e
o ensino, mas principalmente porque é a operação de determinação da verdade, como da
ordem da evidência, que predomina como modelo. Evidence based practice, para
1
No momento da escrita deste texto vivemos no contexto brasileiro uma dessas tentativas –
oportunistas e virulentas - de aprovação de um curso de graduação em psicanálise.
formalizar em inglês que é a língua que domina o universo da pesquisa. Todo o debate
epistemológico em torno da ciência, debate que demonstra que se ela é una em seu
postulado – o de ser pautada por uma relação crítica com a verdade - ela é plural em
seus métodos, se encontra hoje em dia fortemente ameaçado pela vitória – econômica e
ideológica mais do que epistemológica – do paradigma da ciência baseada em
evidências.
Mesmo a ideia de evidência – que bem pode ser pensada no caso particular da
psicanálise - aparece restrita ao resultado direto do procedimento de pesquisa baseado
no contraste do grupo experimental e do grupo de controle. Só é evidência aquilo que
pode ser demonstrado quantitativamente, pois o que interessa é que a verdade
decorrente da pesquisa seja eficiente.
Lembremos que uma das coisas que Lacan escreve na fórmula do Discurso do
capitalista implica exatamente, uma mudança crucial da operação da verdade realizada
neste discurso. A seta que partia do lugar da verdade para o do agente, na escrita de
todos os quatro discursos, é alterada na escrita do capitalista, formulando que neste
discurso o agente determina a verdade, extinguindo, portanto, a própria dimensão do
inconsciente.
O sujeito capitalista não se crê determinado por uma verdade que lhe escapa e lhe
ultrapassa; ele crê poder determiná-la ao seu gosto e ao seu controle. A dependência do
fato ao discurso que o condiciona – elemento apontado por Lacan, mas, também, a seu
modo, por Foucault, ou seja, não há evidência que não esteja preparada antes por um
discurso – não é mais uma ideia considerada, a não ser pela presença incômoda e cada
vez menos tolerada na universidade, das chamadas ciências humanas.
Lacan propõe um termo que discerne perfeitamente o problema da dita evidência, tal
como ela aparece sustentada pelo campo da ciência: o de “artefato” (Lacan, 2009, p.12).
Enquanto a ciência trabalha com a ideia de que um fato existe e a linguagem não faz
senão refleti-lo em sua suposta realidade, a psicanálise ressalta que não há fato que não
seja artefato, ou seja, produzido por um discurso.
Mais ainda, ao lado da eficiência das ideias tornou-se imperativo à universidade definir
os termos de propriedade delas. Na linguagem acadêmica isso se chama “propriedade
intelectual”. Nada mais distante do que imaginou Lacan: “Essa coisa impressa a que se
dá o nome de Scilicet, como um certo número de vocês já sabe, é escrita sem assinar.(...)
O futuro dirá se essa é a fórmula que, dentro de cinco ou seis anos, será adotada por
todas as revistas, as boas revistas, bem entendido. É uma aposta, veremos.(2009, p.12)
Pois bem, Lacan, o futuro já respondeu. Não só as revistas, menos ainda as boas, não
avançaram na direção deste modelo que preza pelo Isso fala, logo algo se transmite e
por certa compreensão do que é um autor, senão que evoluíram, ao contrário, na direção
do Eu falo, logo lucro, direção da patente e do crime do plágio. Do autor latente ao
autor patente, bem poderíamos resumir assim o destino que a política da produção
universitária tomou.
É neste sentido que dizíamos acima que não está mal que a presença da psicanálise na
universidade seja centrífuga. Já está bem claro para todos os psicanalistas que a
universidade não é o lugar de formação de analistas. Para isso as instituições
psicanalíticas. De certo modo, pode-se encontrar não raras vezes no âmago da crítica de
lacanianos à universidade, o desejo de que a psicanálise fosse reconhecida pela
universidade em sua especificidade, ou seja, reconhecida pelo discurso do mestre.
Mas isso não seria logicamente impossível? Mais ainda, não seria politicamente
indesejável? Enquanto discurso é nas brechas que a psicanalise reside. O psicanalista é
um profissional da borda, o litoral é a forma topológica que mais lhe corresponde; se ele
faz continente vira discurso do mestre. “Para qualquer um que adote o ângulo pelo qual
a análise nos permite renovar o que se passa no discurso, fica claro que isso implica nos
deslocarmos, eu diria, num desuniverso.” (idem, p.12, grifo do autor)´.
Não raras vezes, a crítica dos lacanianos à universidade assume a forma ressentida,
resultante de uma exclusão. É espantoso o número crescente de psicanalistas que
adentram na política universitária, buscando o mestrado e o doutorado para fazer suas
pesquisas e dizer, em todas elas, como a universidade não acolhe a psicanálise.
Mas seria razoável esperar que o discurso do mestre reconheça a psicanálise? Em certo
sentido ele já o fez e foi de maneira, como não poderia deixar de ser, domesticadora. É
transformando a psicanálise em um discurso universitário que o mestre a domestica. A
domesticação realizada pela universidade à psicanálise passa, fundamentalmente, por
uma operação: a que transforma a psicanálise em um saber disciplinar. A universidade
não tolera que haja em seu seio um saber que não seja disciplinar. Toda sua divisão
política e administrativa passa, fundamentalmente pela divisão das disciplinas. É a
mesma tendência, inclusive, que permite e encoraja uma perspectiva interdisciplinar,
espécie de pacto federativo entre as disciplinas.
Por colocar luz na distinção entre saber e conhecimento, a psicanálise se coloca em uma
particular posição frente à própria ciência e sua produção. Distinção que, aliás, cumpre
notar, encontra dificuldades de ser expressa e trabalhada na língua inglesa – na tentativa
de traduzir os termos saber e conhecimento trombamos sempre com o termo knowledge
que é a palavra que traduziria ambos os termos – língua que, como dissemos, domina a
produção da pesquisa.
E isso porque ela coloca o acento no campo do saber, ou ainda para sermos mais
precisos, na relação do saber com o gozo e no quanto isso perpassa a dinâmica do
conhecimento. O saber, sempre inconsciente, é essencialmente indisciplinado, o que não
quer dizer que ele não tenha uma lógica que o organiza, como bem mostrou a
psicanalise desde Freud, mas que seu conteúdo não pode ser disposto em fórmulas
universais. O saber dá forma ao pensamento, mais do que recebe deste uma forma.
Antes que um saber possa ser disciplinado – episteme – ele é moldado na dinâmica
desejante do inconsciente - Eros.
Seu ensino, malgrado suas críticas à universidade, sempre esteve ligado a ela, não em
seus quadros oficiais, mas em relação com um lugar de saber que a universidade
franqueava. Os analistas de fé, em geral, desconsideram ou desvalorizam esse fato e
suas implicações e aderindo às críticas, sem considerar que era um lugar de borda para
seu ensino, não fazem senão viver, como dizíamos anteriormente, do exemplo de Lacan
e não o exemplo dele.
À guisa de conclusão
Ao fim e ao cabo, o que seria ser lacaniano? Nesta perspectiva, ser lacaniano é saber
profanar a psicanálise, tirá-la de qualquer posição sagrada. É poder dispensar o termo
lacaniano e ser simplesmente analista. Para concluir, ainda com a metáfora religiosa,
poderíamos nos perguntar: se já se pôde dizer que Freud é Deus, Lacan Jesus, o que
seria de todos nós? Apóstolos? Não é difícil encontrar alguns que, como Paulo em
relação à palavra de Jesus, se coloquem voluntariamente como guardiães da verdade da
palavra do Cristo, ou que como Pedro em relação ao patrimônio da Igreja se coloquem
como chefes, papas de um lacanismo eterno. Mas não creio ser o apostolado lacaniano a
boa resposta à pergunta sobre o que é ser lacaniano. Pegar o bastão das mãos de Lacan
e continuar a corrida me parece uma mais justa definição; a psicanálise é um discurso e
como tal não é patrimônio de ninguém.
Referências:
FOUCAULT, M. O que é um autor? In: Ditos &Escritos III. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2009.p.264-298.
FREUD, S. (1921) Psicologia de Grupo e Análise do Ego. Edição Standard das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol XVIII. Rio de Janeiro: imago, 1996.