Você está na página 1de 12

O psicanalista: do semblante de discurso ao discurso do semblante

Rinaldo Voltolini

O que é ser lacaniano? Question piège, diria, provavelmente, o próprio Lacan. Creio
que nenhuma resposta honesta a esta pergunta pode ser dada sem começar por
reconhecer a traição ao próprio Lacan que sua simples enunciação representa. Afinal,
sua fórmula, já célebre entre nós, do “façam como eu, não me imitem!”, somada a sua
não menos célebre afirmação do “se vocês quiserem ser lacanianos que o sejam, quanto
a mim, sou freudiano!” parecem advertir todo aquele que pretende tomar o ser lacaniano
como uma fórmula de identidade, ou como um signo de filiação. Afinal, a identidade
parece trazer uma segurança narcísica e a irmandade aquele lugar quentinho, duas
tentações para os neuróticos.

Por outro lado, no entanto, me parece imprescindível, eticamente necessário, que todo
aquele que reclame o nome de Lacan, para se autorizar em sua pratica, deva ser capaz
de dizer qual uso faz desse nome. Por que não dizer simplesmente: sou psicanalista? De
onde vem o gosto por evocar o patronímico? Evidentemente, é de certa relação com o
pai que se trata. O próprio Lacan já havia insistido exaustivamente na importância
decisiva da pergunta: em que lugar colocamos Freud? É, pelo menos, o que testemunha
outra de suas fórmulas: a do “retorno a Freud”.

Não se pode nunca escapar dos efeitos de filiação, afinal não há autoengendramento do
sujeito e na construção e transmissão da teoria não é diferente. Melhor, portanto, estar
advertido do que se faz com eles. Duas possibilidades se destacam: (1) há o pai do
legado; (2) há o pai do patrimônio. O do legado é o mestre, aquele que dá a primeira
palavra; o do patrimônio é o chefe, aquele que, como sabem todos os que têm juízo, é o
que dá a última. É preciso um mestre para fundar um discurso e Freud seguramente o
foi. Aliás, nem precisamos buscar a confirmação disso em seus súditos, homens de fé,
sempre suspeitos de parcialidade na questão. Quem o diz é Foucault (2009), alguém
completamente insuspeito quanto à fé na psicanálise, tentando explicar a perenidade da
obra do mestre vienense.

E é mesmo em Foucault que vermos o sentido dado a esta fórmula do “retorno a”


ganhar seu valor mais preciso. Sem citar Lacan nominalmente, que há tempos fazia o
uso desta fórmula a propósito de Freud e que estava presente na plateia no dia desta
conferência, Foucault sublinha que um fundador de discurso – e ele exemplifica com
Freud e Marx – é aquele que toma como objeto um esquecimento essencial, e faz
“retorno a”.

A metáfora religiosa para tratar da questão da filiação não é minha, é do próprio Lacan,
notadamente quando qualificou a restrição feita a seu nome, no momento da adesão do
grupo francês à IPA, como da ordem da excomunhão. Excomunhão que ele comparou
ao processo sofrido por Spinoza, judeu holandês que migra de Portugal para fugir da
perseguição da Igreja católica e que seria excomungado, mais tarde, de sua sinagoga,
por recusar a ortodoxia judaica. Spinoza achava que a sobrevivência do cristianismo,
como a do judaísmo, se devia à obediência a dogmas e rituais e negava que a Bíblia
tivesse sido inspirada por Deus do começo ao fim. Deve ter dedo dos homens neste
texto. Depois de excomungado, foi trabalhar como polidor de lentes, como, aliás,
Lacan; afinal, tratava-se de ajudar os analistas a verem melhor.

Não há dúvidas de que Lacan via a IPA como a guardiã de um patrimônio e sem
referência a um legado. Para ele, a experiência analítica e a preservação de suas
condições estavam ameaçadas pelo conforto que os analistas buscavam em
procedimentos institucionais que não serviam, senão, a nutrir este conforto. A referência
do “retorno a Freud” foi, antes de tudo, uma interpretação aos analistas pós-freudianos,
que viria, em seguida, a se tornar um projeto de trabalho: referência à Freud e não
reverência à Freud.

O próprio Freud não seria poupado por Lacan nessa crítica. Para Lacan, a IPA era
exatamente o que desejava Freud que, preocupado com a perenidade de sua obra, com a
“(...) proteção possível para evitar a extinção da experiência.” (Lacan, 2003a, p.250)
teria preferido criar uma instituição nos moldes daquelas que já haviam provado, ao
longo da história, poder de perenidade: a Igreja e o Exército. Instituições modelares
estudadas por Freud (1921/1996). Impingir à instituição de psicanálise aquilo que a
própria descoberta analítica revelava sobre a dinâmica do psiquismo grupal poderia
expô-la a uma vulnerabilidade, risco não desejável.

A construção da psicanálise tinha em grande parte a ver com os sintomas de Freud.


Retornar a Freud, portanto, não era um signo de adesão ampla e irrestrita ao que ele
dizia ou propunha, mas, ao contrário, à construção da possibilidade mesma de
desalienação da palavra do mestre como reveladora da verdade.

A via do pai do patrimônio é a via da alienação. O mesmo fenômeno já havia sido


sublinhado brilhantemente por Wilhelm Reich, particularmente em seu livro “O
assassinato de Cristo”(1991) , no qual a tese principal poderia ser resumida assim: o
cristianismo é uma doutrina construída ponto por ponto na negação do exemplo de
Jesus. Como exemplo ilustrativo, podemos pensar no mandamento: “não abandonarás
teu pai e tua mãe”, absolutamente contrário ao que fez Jesus, afinal, foi fora de toda
relação familiar, fora do eterno ronronar edipiano, que caracteriza o neurótico médio,
que Jesus se tornou o Cristo. Cristo que, aliás, mostrou de modo exemplar como a
questão do pai está bem além da família, nos interstícios e na prática da palavra.

O que a Igreja cria é uma interpretação cômoda, do gênero de comodidade que traz a
moral. Assim podemos viver do exemplo de Cristo e não o exemplo de Cristo, operação
que cria o pai do patrimônio. Economicamente mais viável e muito potente em questão
de perenidade. O antídoto contra uma moral, moral da famosa “pastoral psicanalítica”, é
a construção de uma ética.
Lacan tenta, em contrapartida, tomar Freud como o pai do legado. Retornar a Freud
serviria para retomar o exemplo de uma investigação que abriu o terreno para um novo
discurso, discurso que precisaria ser constantemente enunciado para manter aberta e em
boas condições de exploração, as consequências de uma experiência. A perspectiva
biográfica – aquela que não evita os pecados do homem -, mais do que a hagiográfica –
que é a biografia de um santo - deve ser privilegiada quando se trata de ler Freud.
Afinal, como ensina a experiência analítica, a transferência passional é resistência.

O exemplo de Lacan ao reler Freud parece bastante claro e constitui realmente uma
questão crucial, para todos aqueles que declaram ser lacanianos, como é que a
instituição criada por ele acabou por fornecer tantos exemplos de religiosidade
institucional. Leituras canônicas, ao modo do Lacan dixit; disputas intestinas em torno
de citações; assimetrias formativas transformadas em hierarquia – gradus com
hierarquia – e, sobretudo, o lacanês, espécie de língua paterna não votada à
transmissão. Não por acaso a língua é materna e a Pátria paterna. A primeira é fundante,
funda um corpo; a segunda, disciplinadora, disciplina um corpo, em defesa dos signos
de soberania.

O lacanês, espécie de monstro impossível - uma língua paterna – acaba, em sua


dinâmica, para continuarmos na metáfora religiosa, funcionando como o latim nas
missas católicas. Língua morta, incompreensível, portanto, para os fiéis, era mantida
como língua oficial do culto, sob a alegação de ser a língua na qual Deus melhor se
expressa. Importa menos que uma mensagem qualquer possa ser explorada, afinal sua
verdade já está dada de uma vez para sempre, consagrada por toda a eternidade, amém!
Ouvida como um mantra, servia apenas à comunhão e não à transmissão.

Não se trata de uma questão fácil para os lacanianos, sobretudo porque, em sua maioria,
sequer reconheceram o problema. Como dizíamos no início, a irmandade é um lugar
quentinho e é sempre reconfortante partilhar/comungar mitos comuns – por exemplo, o
do Lacan herói, perseguido e executado; o da superioridade teórica da psicanálise
lacaniana sobre as outras psicanálises, sempre desviantes; o da eternidade da
psicanálise, etc. Histórias contadas em família que, como toda história contada em
família, serve para reforçar identidade de grupo e estreitar laços, mas que não deixam de
trazer, também alguns efeitos colaterais, como, por exemplo, o de complicar a imagem
da psicanálise com a ciência.

Não por acaso, a história do movimento analítico se parece mais com a história – com
minúscula, já que os acordos normativos da língua portuguesa extinguiram a palavra
estória - de uma família, do que com a História – com maiúscula para designar a ciência
baseada no estudo documental - de uma ciência. São os escândalos, as rupturas, as
dissidências, os amores, as traições, os mitos, as polêmicas, as imposturas, as
rivalidades, os anátemas, que atraem os analistas na história da psicanálise, mais do que
um suposto avanço linear no campo das ideias e conceitos.

Para os homens da ciência, obstinada e obsessivamente ligados ao progresso das ideias


e da pesquisa, o gosto dos analistas em se referir a textos do século retrasado, ou da
década de 20, 30, quando não criticado como prova de não cientificidade, é percebido
como uma espécie de hábito familiar de contemplar ternamente o álbum de fotos da
família. De certo modo, esses homens da ciência estão certos; eles atiram no que veem e
acertam no que não veem: no movimento analítico, a questão da filiação – teórica (?) -
graça em mais alto valor do que a do consenso em torno das leis do psiquismo.

Para os lacanianos que assumiram verdadeiramente a questão da religiosidade presente


na própria instituição analítica criada por Lacan - os analistas profanos – restaria, ainda
evitar um caminho fácil da resposta: o de apontar que entre Lacan e os lacanianos teria
acontecido o mesmo que entre Freud e os freudianos. O que, certamente é verdade, já
que podemos ver o mesmo entre Marx e os marxistas, entre Jesus e os cristãos, e assim
sucessivamente. O fenômeno é um fenômeno de discurso, apontado, inclusive, por
Lacan. Todo discurso sofre de entropia discursiva, ou seja, a tendência a se desgastar.
Sem entrar em todos os meandros do conceito de entropia, em essência o que ele aponta
é que um momento fundante, diríamos instituinte, não pode perpetuar-se;
invariavelmente ele recai num momento instituído. E é aí que ele começa a se desgastar.

Pista importante, mas que protege Lacan do lacanismo. Ainda firme na metáfora
religiosa, poderíamos dizer que esta explicação assume a forma do adágio: tudo é
perfeito na mão do criador, degenera na mão dos homens. Podemos mesmo isentar o
criador daquilo que anda mal em sua criação? Não teria Lacan subestimado a
imperfeição dos homens - ou superestimado a perfectibilidade dos analistas -, aquela
mesma que ele não cessou de aludir sarcasticamente em seus seminários, dizendo que
não percebia ninguém que fosse capaz de escutá-lo?

Em todo o caso, creio ser possível reconhecer em Lacan o grande mérito de ter
mostrado que a psicanálise é um discurso. Freud, como todos sabem, a havia definido
de outra forma, como sendo teoria, método, e terapêutica. Assim definida, sem maiores
esclarecimentos, ela fica presa fácil das apropriações universitárias que, aliás, abundam
em todos os meios. Que ela seja definida como um discurso quer dizer, essencialmente,
que ela é, antes de tudo, uma dada posição específica de tomada da palavra. Que o que a
caracteriza não é o conjunto de seus conceitos – teoria – nem sua prática de tratamento –
terapêutica – nem seu modo próprio de investigação – método.

Evidentemente que todas essas dimensões dizem respeito à psicanálise e mesmo


compõem sua definição, mas só ganham sentido se não apagam a dimensão discursiva
que ela representa. A psicanálise é o avesso do discurso do mestre, quer dizer, não seu
contrário – pois avesso é o outro lado do mesmo pano – mas, antes, a construção de um
espaço que torna possível examinar a verdade de um dado discurso. Afirmação que
pode parecer pretensiosa, na medida em que parece anunciar a psicanalise como
detendo a chave da verdade dos outros discursos. Não é de uma verdade última,
essencial, que se trata nessa afirmação, a verdade que, lembremos, não é “A” verdade,
em termos absolutos, mas aquela que guarda certa relação com aquilo que um discurso
oculta.
Se devemos a Foucault ter-nos mostrado a positividade de todo discurso: um discurso
afirma, positiva, empodera, devemos a Lacan ter-nos mostrado sua negatividade: um
discurso oculta, contorna o impossível. A psicanálise seria, portanto, essa presença
incômoda em toda mestria, porque votada a desocultar algo de sua verdade. Ela trabalha
tentando fazer o Mestre bem dizer enquanto este último só quer bem fazer. Votada a
demonstrar que toda pretensão de verdade que anima um discurso esbarra no eterno
desfiladeiro de uma verdade não-toda dita. A psicanálise, portanto, não é, em si mesma
um discurso do Mestre, nem mesmo quando se trata de formular os termos da
instituição que forma analistas.

Enquanto discurso, ela é aquele discurso que precisa, de maneira intrínseca e


constitutiva, de outro discurso para se articular. Sua consistência é como a da sombra,
que só se forma por efeito da luz que reflete em um objeto. Numa fórmula: o discurso
psicanalítico é aquele que menos se autoriza de si mesmo e depende mais para se
autorizar de outro discurso.

O fato pode ser bem percebido quando examinamos no próprio movimento de


teorização da psicanálise o quanto ela só se concebeu a partir do apoio em outros
discursos positivados. Em Freud vemos a Física, a Biologia, a Mitologia, a Literatura;
em Lacan a Linguística, a Lógica, a Antifilosofia, a Matemática, etc. Disciplinas que
participaram da própria construção do vocabulário da psicanálise; sem elas, a
psicanálise não se tornaria a psicanálise. Bem entendido, não é de uma prática de
empréstimo ou importação conceitual que se trata aqui, mas de escansão discursiva.

Quando Freud fala em sublimação, por exemplo, ou Lacan em entropia, ambos


conceitos originalmente da Física, não é em busca de uma metáfora potente que eles
correm, mas de um alargamento de campo, ou seja, de um deslocamento da borda que
separa e aproxima campos discursivos. Seja na transformação sem escalas do sólido em
gasoso – versão da Física - seja na transformação do elemento sexual em não sexual –
versão da psicanálise – é a própria noção de energia que se encontra aqui escandida.
Fica compreensível, então, o alcance da observação lacaniana invertendo a pergunta
sobre se a psicanálise é ou não uma ciência: é preciso perguntar como fica a ciência
depois da psicanálise.

Definir, portanto, a psicanálise como um discurso, implica reconhecer que é de uma


posição de tomada de palavra que se caracteriza seu escopo. Tomada de palavra que
precisa ser constantemente re-tomada, em ato, pois nunca se está livre de deslizar para
outros discursos. Com tal definição se afirma, também, que um psicanalista não o é
apenas quando está em sua prática de condução de uma cura. Isso seria defini-lo pela
via do semblante e não pela via do discurso, ainda que estes dois termos se achem
sempre vinculados. Aliás, o simples fato de receber em seu consultório um paciente,
não garante para nada que aí se instale o discurso do analista; é preciso instaurá-lo em
ato, o que nem sempre é possível. Mas, o discurso analítico não depende dessa
organização contingente – o setting clínico - para se colocar.
A psicanálise na universidade: um exemplo

Todos conhecem as ressalvas dos lacanianos à universidade. Elas começam com o


próprio Lacan que, por tantas vezes aludiu à mediocridade que grassaria nela: a
universidade é um lugar concebido para que as ideias não tenham consequência (1967-
68, inédito); o estudante é um astudado (1971/2009); a ignorância docente e a besteira
acadêmica (2003b), etc.

Afirmações que, a despeito do que portam de verossímil, não o impediram de pensar


que a psicanálise poderia ter algum lugar na universidade. É o que testemunha o texto
“Talvez em Vincennes” (2003c). Neste texto ele chega mesmo a formular um percurso
disciplinar interessante para a psicanálise na universidade, que passaria, nominalmente
por quatro disciplinas: linguística; logica, topologia e antifilosofia. Freud, igualmente já
havia pensado em um modelo universitário para a psicanálise: a universitas literarum.

Passado bastante tempo desde a concepção dessas iniciativas, podemos dizer que a
empreitada fracassou. A psicanálise encontrou sim um lugar na universidade, mas não
ao modo desenhado nem por Freud nem por Lacan. É de forma centrífuga que a
psicanálise se encontra presente na universidade contemporânea. Ou seja, não é no
escopo da formação do analista, mas no da formação de outros profissionais –
psicólogos, professores, sociólogos, médicos, etc. – que ela está presente. E não está
mal que seja assim. Bem melhor do que as tentativas que vez ou outra surgem, no
cenário brasileiro em particular, que buscam, de um modo oportunista e fora de toda
ética psicanalítica, implantar a formação de analistas como curso de graduação
universitária1.

Pelo menos esta posição centrífuga da psicanálise na universidade parece estar de


acordo com a própria observação de Lacan: “Agora não se trata somente de ajudar o
analista com ciências propagadas à moda universitária, mas de que essas ciências
encontrem em sua experiência uma oportunidade de se renovar” (2003c, p. 316).

O modo centrífugo da presença da psicanálise, somado ao relativo fracasso da


empreitada de Freud e Lacan na implantação dela na universidade, tem sido a base para
que muitos psicanalistas lacanianos, identificados com a crítica do próprio Lacan,
continuem a sublinhar a mediocridade que caracterizaria a universidade. Crítica que
hoje em dia, fica ainda mais verossímil, dado o fato de que se pode constatar,
facilmente, a onda produtivista que assola a universidade no mundo inteiro e que a
afasta daquela universidade vivida por Freud e Lacan, na qual se podia encontrar
facilmente as formas do discurso universitário.

É bem sobre a égide do discurso do capitalista que vemos a universidade funcionar hoje
em dia, não apenas porque é a logica do dinheiro e do mercado que define a pesquisa e
o ensino, mas principalmente porque é a operação de determinação da verdade, como da
ordem da evidência, que predomina como modelo. Evidence based practice, para
1
No momento da escrita deste texto vivemos no contexto brasileiro uma dessas tentativas –
oportunistas e virulentas - de aprovação de um curso de graduação em psicanálise.
formalizar em inglês que é a língua que domina o universo da pesquisa. Todo o debate
epistemológico em torno da ciência, debate que demonstra que se ela é una em seu
postulado – o de ser pautada por uma relação crítica com a verdade - ela é plural em
seus métodos, se encontra hoje em dia fortemente ameaçado pela vitória – econômica e
ideológica mais do que epistemológica – do paradigma da ciência baseada em
evidências.

Mesmo a ideia de evidência – que bem pode ser pensada no caso particular da
psicanálise - aparece restrita ao resultado direto do procedimento de pesquisa baseado
no contraste do grupo experimental e do grupo de controle. Só é evidência aquilo que
pode ser demonstrado quantitativamente, pois o que interessa é que a verdade
decorrente da pesquisa seja eficiente.

Lembremos que uma das coisas que Lacan escreve na fórmula do Discurso do
capitalista implica exatamente, uma mudança crucial da operação da verdade realizada
neste discurso. A seta que partia do lugar da verdade para o do agente, na escrita de
todos os quatro discursos, é alterada na escrita do capitalista, formulando que neste
discurso o agente determina a verdade, extinguindo, portanto, a própria dimensão do
inconsciente.

O sujeito capitalista não se crê determinado por uma verdade que lhe escapa e lhe
ultrapassa; ele crê poder determiná-la ao seu gosto e ao seu controle. A dependência do
fato ao discurso que o condiciona – elemento apontado por Lacan, mas, também, a seu
modo, por Foucault, ou seja, não há evidência que não esteja preparada antes por um
discurso – não é mais uma ideia considerada, a não ser pela presença incômoda e cada
vez menos tolerada na universidade, das chamadas ciências humanas.

Lacan propõe um termo que discerne perfeitamente o problema da dita evidência, tal
como ela aparece sustentada pelo campo da ciência: o de “artefato” (Lacan, 2009, p.12).
Enquanto a ciência trabalha com a ideia de que um fato existe e a linguagem não faz
senão refleti-lo em sua suposta realidade, a psicanálise ressalta que não há fato que não
seja artefato, ou seja, produzido por um discurso.

Em todo o caso, não é que a ciência desconheça ou que desminta a verdade da


determinação discursiva da evidência, mas que, para funcionar em sua pesquisa
ordinária, ela prescinde dessa verdade. Ou seja, tal verdade existe, mas não conta; como
se vê, a última palavra na ciência agenciada pelo discurso capitalista é dada em ternos
de contabilidade. Acreditar que o impasse da universidade de hoje está na mediocridade
das ideias é acreditar/desejar que a resistência à psicanalise seria ainda no campo
epistemológico e subestimar a forma capitalista que domina sua dinâmica.

Mas é no campo da eficiência, da ferocidade da eficiência, que o debate hoje se coloca.


Atualizando as palavras de Lacan, poderíamos dizer que não é que a universidade é uma
instituição construída para que as ideias não tenham consequência, mas que é uma
instituição que se tornou tão ligada às consequências – pragmáticas e econômicas - das
ideias, que a própria noção de ideia se viu modificada: só é uma ideia válida a que tiver
calcada em uma evidência e for eficiente.

Mais ainda, ao lado da eficiência das ideias tornou-se imperativo à universidade definir
os termos de propriedade delas. Na linguagem acadêmica isso se chama “propriedade
intelectual”. Nada mais distante do que imaginou Lacan: “Essa coisa impressa a que se
dá o nome de Scilicet, como um certo número de vocês já sabe, é escrita sem assinar.(...)
O futuro dirá se essa é a fórmula que, dentro de cinco ou seis anos, será adotada por
todas as revistas, as boas revistas, bem entendido. É uma aposta, veremos.(2009, p.12)

Pois bem, Lacan, o futuro já respondeu. Não só as revistas, menos ainda as boas, não
avançaram na direção deste modelo que preza pelo Isso fala, logo algo se transmite e
por certa compreensão do que é um autor, senão que evoluíram, ao contrário, na direção
do Eu falo, logo lucro, direção da patente e do crime do plágio. Do autor latente ao
autor patente, bem poderíamos resumir assim o destino que a política da produção
universitária tomou.

Aos olhos da eficiência, a psicanalise aparece como um produto ultrapassado e


dispendioso e que deve ser substituído por outros mais modernos e eficazes. Contudo, a
psicanálise está presente na universidade. Frente a este cenário, como posicionar-se?
Repetir a mesma crítica lacaniana quanto à mediocridade da universidade parece tão
vago quanto ultrapassado e, francamente, suicida. Não é da mesma universidade que
estamos falando. Seria fundamental abandonar este modo identificatório imaginário
com Lacan, que leva a herdar sua critica da universidade, bastante condicionada por sua
própria experiência com uma universidade que não existe mais do mesmo modo.

A assertiva lacaniana, entretanto, parece ainda interessante como vetor de trabalho:


criar oportunidade para que as ciências se renovem. Mesmo que a aceitação da
psicanálise na universidade tenha dependido e dependa ainda estreitamente da
domesticação que esta última impõe à primeira, a presença de psicanalistas na
universidade implica que algo do discurso psicanalítico possa se colocar. Desde que, é
claro, não se pretenda que a psicanálise se coloque na universidade como um discurso
do mestre. A universidade não impede a psicanálise de existir em seu seio, apenas
prescinde dela para funcionar.

É neste sentido que dizíamos acima que não está mal que a presença da psicanálise na
universidade seja centrífuga. Já está bem claro para todos os psicanalistas que a
universidade não é o lugar de formação de analistas. Para isso as instituições
psicanalíticas. De certo modo, pode-se encontrar não raras vezes no âmago da crítica de
lacanianos à universidade, o desejo de que a psicanálise fosse reconhecida pela
universidade em sua especificidade, ou seja, reconhecida pelo discurso do mestre.

Mas isso não seria logicamente impossível? Mais ainda, não seria politicamente
indesejável? Enquanto discurso é nas brechas que a psicanalise reside. O psicanalista é
um profissional da borda, o litoral é a forma topológica que mais lhe corresponde; se ele
faz continente vira discurso do mestre. “Para qualquer um que adote o ângulo pelo qual
a análise nos permite renovar o que se passa no discurso, fica claro que isso implica nos
deslocarmos, eu diria, num desuniverso.” (idem, p.12, grifo do autor)´.

Não raras vezes, a crítica dos lacanianos à universidade assume a forma ressentida,
resultante de uma exclusão. É espantoso o número crescente de psicanalistas que
adentram na política universitária, buscando o mestrado e o doutorado para fazer suas
pesquisas e dizer, em todas elas, como a universidade não acolhe a psicanálise.

Mas seria razoável esperar que o discurso do mestre reconheça a psicanálise? Em certo
sentido ele já o fez e foi de maneira, como não poderia deixar de ser, domesticadora. É
transformando a psicanálise em um discurso universitário que o mestre a domestica. A
domesticação realizada pela universidade à psicanálise passa, fundamentalmente, por
uma operação: a que transforma a psicanálise em um saber disciplinar. A universidade
não tolera que haja em seu seio um saber que não seja disciplinar. Toda sua divisão
política e administrativa passa, fundamentalmente pela divisão das disciplinas. É a
mesma tendência, inclusive, que permite e encoraja uma perspectiva interdisciplinar,
espécie de pacto federativo entre as disciplinas.

A psicanálise será, então, incorporada à psicologia na formação do psicólogo e do


professor; incorporada à antropologia e a sociologia na formação do cientista social, etc.
Isso faz com que sua presença na universidade seja modalizada por uma discursividade
que lhe é alheia. Assim sendo, sua presença no quadro universitário enquanto disciplina
sequer depende que haja um psicanalista para que esta seja conduzida. Enquanto saber
disciplinar basta ser conduzida por alguém cuja formação permitiu cultivar os saberes
próprios a esta disciplina.

Aqui se encontra a questão decisiva para o psicanalista na universidade. Definir a


psicanálise como um discurso, implica reconhecer, de saída, que ela não é um saber
disciplinar. O desassossego de Foucault com relação à definição do lugar da psicanálise
no cenário das ciências humanas, cenário que para ele se define pela construção dos
saberes disciplinares, repousa sobre este ponto: a psicanálise ainda que permita ser
enquadrada em um saber disciplinar, não se deixa esgotar completamente neste saber:
ela é não-toda disciplinar.

Por colocar luz na distinção entre saber e conhecimento, a psicanálise se coloca em uma
particular posição frente à própria ciência e sua produção. Distinção que, aliás, cumpre
notar, encontra dificuldades de ser expressa e trabalhada na língua inglesa – na tentativa
de traduzir os termos saber e conhecimento trombamos sempre com o termo knowledge
que é a palavra que traduziria ambos os termos – língua que, como dissemos, domina a
produção da pesquisa.

Essa particularidade da psicanálise condiciona sua posição no campo do saber, no vetor


da especificidade e não no da especialidade. Sua especificidade é a de nunca poder vir a
ser uma especialidade: um psicanalista é o avesso de um especialista. Donde sua
presença centrífuga na universidade, mas, ao mesmo tempo, a razão da paradoxal e
relativa intolerância desta última em relação á psicanálise. A universidade tolera mal a
impossibilidade de constituir especialidade. As fronteiras disciplinares são fundamentais
para a política universitária, pois como bem demonstrou Foucault, ao longo de toda a
sua obra, o termo disciplina é um termo dobradiça: reúne e articula os campos do saber
e do poder.

Da sustentação competente desta tensão vive o psicanalista na universidade. É


sustentando a psicanálise como discurso e não como saber disciplinar que ela pode
oferecer às ciências uma oportunidade, a partir de sua experiência, de se renovar.
Notemos que, na observação lacaniana sobre a universidade em Vincennes, ele
sublinha, como, aliás, o faz com frequência ao longo de seu ensino, o termo experiência
– para que as ciências encontrem em sua experiência, ou seja, na da psicanálise, uma
oportunidade de se renovar. É como experiência e não como disciplina que a psicanálise
pode afetar a ciência universitária.

E isso porque ela coloca o acento no campo do saber, ou ainda para sermos mais
precisos, na relação do saber com o gozo e no quanto isso perpassa a dinâmica do
conhecimento. O saber, sempre inconsciente, é essencialmente indisciplinado, o que não
quer dizer que ele não tenha uma lógica que o organiza, como bem mostrou a
psicanalise desde Freud, mas que seu conteúdo não pode ser disposto em fórmulas
universais. O saber dá forma ao pensamento, mais do que recebe deste uma forma.
Antes que um saber possa ser disciplinado – episteme – ele é moldado na dinâmica
desejante do inconsciente - Eros.

De olho na questão do saber por trás do conhecimento, a psicanálise, - mas aí sim


necessariamente o psicanalista, porque sem este e sua formação esta distinção entre
saber e conhecimento não pode ser percebida – assume uma posição bem delineada no
meio da universidade. Como tal, ela pode figurar em todos os lugares da universidade –
vantagem de não se configurar como especialidade – a partir de sua especificidade. Ela
está num modo de ler os textos; nas escolhas de abordagem do objeto de uma tese; nas
discussões sobre formação, missão de todo curso universitário; no debate sobre os
destinos da pesquisa acadêmica, na escolha dos projetos de extensão universitária, etc.
Mas sempre nas brechas, nas bordas, na margem. A psicanálise é marginal, mas apenas
se evitamos esta afirmação como busca de uma imagem heróica do analista; ela é
marginal porque está sempre na margem e não à margem.

O exemplo de Lacan, neste sentido, é verdadeiramente eloquente. Seja em Saint Anne,


seja na escola de Altos Estudos, seja na faculdade de Direito a frente do Panteón, seja
em Vincennes, foi sempre na borda da universidade que seu ensino se deu e se situou.
Não creio que possamos considerar a universidade, no caso particular de Lacan, como
apenas um espaço físico onde ocorria seu ensino. A universidade era um lugar
discursivo, lugar que ele sempre se empenhou em analisar. Foi assim quando analisou
sua expulsão de Saint Anne, foi assim quando analisou sua presença na faculdade de
Direito, etc.

Seu ensino, malgrado suas críticas à universidade, sempre esteve ligado a ela, não em
seus quadros oficiais, mas em relação com um lugar de saber que a universidade
franqueava. Os analistas de fé, em geral, desconsideram ou desvalorizam esse fato e
suas implicações e aderindo às críticas, sem considerar que era um lugar de borda para
seu ensino, não fazem senão viver, como dizíamos anteriormente, do exemplo de Lacan
e não o exemplo dele.

À guisa de conclusão

Ao fim e ao cabo, o que seria ser lacaniano? Nesta perspectiva, ser lacaniano é saber
profanar a psicanálise, tirá-la de qualquer posição sagrada. É poder dispensar o termo
lacaniano e ser simplesmente analista. Para concluir, ainda com a metáfora religiosa,
poderíamos nos perguntar: se já se pôde dizer que Freud é Deus, Lacan Jesus, o que
seria de todos nós? Apóstolos? Não é difícil encontrar alguns que, como Paulo em
relação à palavra de Jesus, se coloquem voluntariamente como guardiães da verdade da
palavra do Cristo, ou que como Pedro em relação ao patrimônio da Igreja se coloquem
como chefes, papas de um lacanismo eterno. Mas não creio ser o apostolado lacaniano a
boa resposta à pergunta sobre o que é ser lacaniano. Pegar o bastão das mãos de Lacan
e continuar a corrida me parece uma mais justa definição; a psicanálise é um discurso e
como tal não é patrimônio de ninguém.

Essa corrida demanda a habilidade de saber distinguir um semblante de discurso de um


discurso do semblante. Não por acaso, Lacan fez da posição lógico-positivista a forma
perfeita do discurso universitário (idem, p.13). Neste, o saber tem a pretensão de levar à
verdade. No analítico, a forma possível do discurso do semblante, que sabe destacar o
semblante de todo discurso, é a verdade que pode levar a um saber.

Referências:

FOUCAULT, M. O que é um autor? In: Ditos &Escritos III. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2009.p.264-298.

FREUD, S. (1921) Psicologia de Grupo e Análise do Ego. Edição Standard das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol XVIII. Rio de Janeiro: imago, 1996.

LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da escola. In.


Outros Escritos(p.250). Rio de Janeiro: JZE, 2003a.

___________ A psicanálise. Razão de um fracasso. In: Outros Escritos (pp.341-349),


Rio de Janeiro: JZE, 2003b.

___________ Talvez em Vincennes... In: Outros Escritos (pp.316-318), Rio de Janeiro:


JZE, 2003c.

____________(1971) O Seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009

____________ (1967-68) O Seminário, livro 15: O ato psicanalítico, inédito.


____________(1971) O Seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

REICH, W. O assassinato de Cristo. São Paulo, Martins Fontes, 1991.

Você também pode gostar