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Danilo Cruz Vélez

A Idéia de Uma Philosophia


Perennis em Nicolai Hartmann

Tradução & Notas:


Isaías Klipp

www.ProscenioFilosofico.com.br
Danilo Cruz Vélez

A Idéia de Uma Philosophia


Perennis em Nicolai Hartmann

Tradução e Notas:
Isaías Klipp

PROSCÊNIO FILOSÓFICO - 2022.


(Org.) prof. Isaías Klipp| www.prosceniofilosofico.com.br

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No alto do cume que nos une em nome, o íngreme e sólido se


preserva em um grifo: Colina Íngreme (i.e, Klippentein), que em seu
fundo enlaça-nos, senão em sangue.

À minha Família.2

2
O nome KLIPP (en-Stein, i.e, “Colina Íngreme" de Rocha/Pedra dos vales)
chega ao Brasil com uma alteração em seu grifo original. A presente tradução
se faz, de minha parte, em homenagem à minha família que se integra nesse
nome. Assim sendo, que se integre de boa tradição ao que se possa agregar a
tão belo e rico país que nos recebeu. Que o trabalho intelectual, dádiva e
também benção, pois se exulte de mais em mais em nossos dias.

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A Idéia de uma Philosophia Perennis


em Nicolai Hartmann
Ao final do ano passado morreu na Alemanha, na idade
de 68 anos, Nicolai Hartmann, professor da Universidade de
Gotinga. A notícia nos chegou de surpresa. De suas mãos
estávamos vendo sair o sistema filosófico mais importante de
nosso tempo e nunca pensamos que a morte o alcançaria em
meio ao seu labor.

Hartmann havia sido um escritor parcimonioso. Apesar


de ter iniciado seu labor filosófico no começo do século, até faz
poucos anos teria publicado somente duas obras importantes: a
Metafísica do Conhecimento (1921) e a Ética (1926). Pois, em sua
última etapa de vida, começou a trabalhar de forma quase febril.
No breve tempo de sete anos apareceram os quatro volumes de
sua Ontologia [1], destinados a edificar esta disciplina sobre novas
bases. O último é de 1942. E já em 1943 tem terminada uma
Filosofia da Natureza - continuação da Ontologia - e em 1945 uma
Estética [2]. O sistema ia, pois, crescendo, contudo já não o
veremos terminado.

Para nós, Hartmann é o filósofo mais importante na


filosofia recente. Poderia haver outros mais importantes que ele
desde o ponto de vista da originalidade, como Heidegger, por
exemplo. Contudo, a originalidade não é o único critério de valor
em filosofia. Hartmann o era em um sentido diferente. Em um
sentido que trataremos de esclarecer nessas rápidas notas e que
nos parece decisivo, decisivo para a sorte da filosofia mesma.

A filosofia atual tem chegado a um estado de obstinado


ouvido de sua própria essência na qual corre perigo de
auto-aniquila-se. Suas direções mais influentes fazem patente este
ouvido. O positivismo lógico quer deixar de ser filosofia e
converter-se em matemática. O historicismo introduz em seu
centro o corrosivo do conceito relativista da verdade. O
existencialismo faz dela coisa de literatos e negócio de dilettanti. O
irracionalismo a reduz a uma intuição turva parente da mística.
Etcetera, etcetera…

Reconhecer este estado de coisas não implica o


reconhecer a inanidade da filosofia atual. Tal estado de confusão
não significa uma anormalidade. Pelo contrário, na história da
filosofia tem sido uma confusão normal. Desde os tempos
remotos em que foi posta em marcha entre os gregos, se ha

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movido em águas tão turvas como as que agora temos à vista.


Quem tenha olhado um manual de história desta disciplina sabe
das purulentas lutas entre os sistemas, dos movimentos céticos e
relativistas, das confusões de fronteiras, das irrupções
irracionalistas… Todo ele é necessário a filosofia. Nela, o novo
surge sempre do caos.

A filosofia absorve todas as contradições e todos os


tóxicos que caem em seu centro. A possibilidade disto radica em
sua essencia mesma.

A filosofia não se confunde com as filosofias em que se


desprende. Se assim fosse, se dissolve no caos em que estas se
agitam. Ela não realiza sua essência nas correntes particulares. Se
assim fosse, haveria muitas essencias da filosofia, tantas quanto
sistemas filosóficos. Tais correntes filosóficas particulares não são
mais que as vias que ensaia a filosofia parecida a como na
metafísica de Bergson a vida é um único torrente virtual que vai
coagulando nos indivíduos, para abandoná-los logo, como desejo,
em um empuxo ascendente, a filosofia é uma única corrente de
pensamento que vai encarnado em direções particulares que
depois deixa a um lado, quando são um estorvo para sua marcha
para adiante.

A filosofia necessita para levar a cabo esta tarefa de um


intermediário. Não faz em forma, por assim dizer, mágica.
Filosofia é o que logram os arrebatados por ela, os filósofos. E
assim como os utiliza para buscar o novo, lançando-os por
caminhos que, na maioria dos casos, se convertem em atrasos,
assim também se serve deles para encontrar o caminho real.

Semelhante papel o desempenham os filósofos, quase


sempre, de forma inconsciente. No passado, somente Leibniz o
fez conscientemente. A ele lhe correspondeu ser o representante
da filosofia no sentido aludido, a princípios da Idade Moderna.
Estes são tempos de grandes novidades filosóficas. Uma nova
filosofia se proclama como a única verdadeira. Se rompem todos
os laços com o passado. Isto é, se lhe nega continuidade a
filosofia. O filósofo apaga todos os conhecimentos adquiridos
pelas melhores cabeças do Ocidente no século de meditação.
Quer partir do nada e fabricar-se em sua própria filosofia.
Recordem-se das palavras de Descartes no Discurso do Método: “...
Resolvendo-me a não buscar outra ciência que a que se pudesse
falar em mim mesmo, ou bem no grande livro do mundo…”. Pois
bem, Leibniz significa uma reação contra tais pretensões. E o faz
em nome da filosofia.

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Leibniz aceita a filosofia nova, mas somente no que tem


de autêntico conhecimento, em suas verdades. No entanto, estas
não são as únicas verdades; não são verdades que se poderiam
enfrentar aos erros do passado, como pretendiam os novos
pensadores, senão verdades que vinham a somar-se as verdades
conquistadas pelos filósofos gregos e medievais. Este é o sentido
de seus esforços por unir o novo com a tradição filosófica. Nesse
ínterim, rechaça o que há sido aceito somente pelo prestígio da
novidade, os erros cometidos pelo exagero dos próprios pontos
de vista. Logra ver uma coisa muito fácil de ver, mas que quase
nada vê: que a filosofia de seu tempo é uma mescla de verdade e
de erro. E não somente a filosofia de seu tempo. Segundo seu
ponto de vista, em todas as filosofia do passado se encontra a
mesma mescla. Então, a autêntica filosofia não se identifica com
os sistemas particulares. Está dentro desses sistemas entreverada
com o erro. Portanto, é necessário um trabalho depurado que
permita isolar o verdadeiro do falso. O resultado desse labor
depurado seria a philosophia perennis.

Há um texto de Leibniz onde se expressa o anterior em


forma claríssima. É um texto de singular importância. Nele se
encontra, pela primeira vez, de forma concreta, aquela ideia da
filosofia, tão transparente, tão a mão, praticada por muitos
pensadores, mas nunca formulada. Em tradução castelhana, diz o
seguinte:

“A verdade está mais estendida do que se pensa; mas se


encontra muitas vezes maquiada, velada, atenuada, estropiada e
deixada a perder por alusões que a mancham e a fazem estéril. Se
se fizessem visíveis estes vestígios da verdade entre os antigos ou,
falando mais geralmente, entre os predecessores, se extrairia o
ouro do povo, o diamante da rocha, a luz das trevas. Isto seria
então, realmente, uma espécie de perennis philosophia. [3].

Pois bem, Nicolai Hartmann significa para a filosofia atual


o que Leibniz significou para a filosofia de seu tempo. Agora,
surge, em meio a tudo isso, também uma filosofia cheia de
arrogância contra o imediato passado, uma filosofia que tende a
perder suas raízes históricas. Como Descartes nos princípios da
Idade Moderna, um de seus mais geniais representantes, Husserl,
quer voltar a partir do nada. O mesmo havia confessado seu
parentesco com Descartes no que se refere a seu radicalismo. Nas
primeiras páginas das Meditações Cartesianas encontramos esta
confissão: “Quase poderia chamar a fenomenologia um
neo-cartesianismo, apesar do muito obrigado que está a rechaçar
quase todo o conhecido conteúdo doutrinal da filosofia

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cartesiana, justamente por desenvolver motivos cartesianos em


uma forma radical” [4]. O conteúdo da filosofia cartesiana deve
ser rechaçado. Ainda mais: o conteúdo de toda a história da
filosofia. Somente deve ficar esse espírito negador de todo o
passado, a coragem cartesiana de por por sua própria conta e
característica edificar uma filosofia. A isto alude Husserl com a
expressão “motivos cartesianos”. Suas palavras soam como um
eco do Discurso do Método. “A filosofia - continua -, a sabedoria, é
uma incumbencia totalmente pessoal do sujeito filosofante. Deve
ir forjando-se como sua filosofia, como aquele seu saber tendente
a universalizar-se que ele adquire por si mesmo, de que ele pode
fazer-se responsável desde um princípio e em cada passo,
partindo daquela sua evidência absoluta. Tomada a resolução de
dedicar minha vida ao logro deste objetivo, que é a única
resolução que pode pôr-se em caminho de chegar a filósofo, dito
que hei escolhido como ponto de partida a absoluta pobreza na
ordem do conhecimento” [5].

Hartmann se volta contra essa atitude arrogante frente ao


passado e contra esta decidida vocação de solidão filosófica. O
passado não pode ser sepultado no olvido. Há que seguir
edificando sobre o que ele nos legou. O filósofo não pode ser um
Robinson. A filosofia é uma tarefa infinita na qual cada pensador
não é mais que um colaborador. Daqui sua preocupação pela
história da filosofia e seus esforços por reconciliar as filosofia
mais contrapostas que reste imaginar como, por exemplo, a de
Aristóteles e Hegel [6]. É o primeiro pensador de uma influência
o suficientemente poderosa para marcar-lhe rombos a filosofia
em quem o pensamento atual reassume seu passado.

A isto nos referimos ao falar da excepcional importância


de Nicolai Hartmann, ao princípio dessas notas. Importância que
não radica na originalidade; no descobrimento audaz de domínios
filosóficos para os velhos problemas. O espírito era o equilíbrio e
não teria voo para essas empreitadas de ousadia. A ousadia tem
sido uma das características mais comuns entre os filósofos. Mas
para Hartmann era um dos maiores perigos da filosofia.
Precisamente, a considerava como um dos signos que nos servem
para saber onde se encontra o erro. “Tudo o que leva o selo de
uma construção ousada - diz - se faz de antemão suspeito de
erro”.

Na confusão das línguas filosóficas de nossos dias,


Hartmann era o único que falava a linguagem da philosophia
perennis, concebida tal como se encontra, em forma, todavia,
desfocada, no texto citado de Leibniz. Que sintamos vertigo ante

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a tensão a que há chegado o pensamento recente, em seu conflito


genial para o novo; em sua aventura, rica em ganhos e, contudo,
semeadora de confusão, através de rotas inéditas, vemos em
Hartmann o único fator de equilíbrio entre as forças encontradas.
Em sua grande obra, interrompida desgraçadamente pela morte,
vemos os conceitos necessários para voltar a normalidade, para
voltar à filosofia.

Repetimos: Hartmann serve de instrumento a filosofia para


unir seu passado com seu presente, para continuar sua marcha
interrompida. O mesmo papel lhe corresponde a Leibniz em seu
tempo. Pois este vivia na época mais dominada pelo “espírito de
sistema” que há conhecido a história da filosofia e não logra
safar-se de suas malas. Vê o que é a philosophia perennis e, desde o
ponto de vista das conexões históricas, leva a cabo um labor de
ressuscitação do passado enterrado pela nova filosofia. Pois em
seu filosofar não se ateve estritamente a ela. Constitui também um
sistema hermético, tão hermético como suas mônadas; um
sistema sem janelas para as paisagens que se dividem no campo
da filosofia universal que entreviu.

Hartmann, todavia, pretende submeter-se às exigências


desta filosofia. Sempre a vê como o ideal de todo filosofar e seu
filosofar é um esforço - condenado ao fracasso, como o veremos
- tendente a realizá-la. Sua luta contra o “espírito de sistema” está
orientada para ali. Pois o leitor já se fala dado conta de que a ideia
da filosofia de que vínhamos falando exclui os sistemas
particulares. Já indicamos anteriormente que a filosofia devora as
filosofias, pressionado por seu ímpeto unificador.

Pois há algo, todavia, mais importante. Hartmann,


ademais, pretende realizar esta ideia, quer ser seu pensador. Isto é,
se volta sobre ela e a converte em objeto de meditação. Para
seguir empregando uma linguagem quase mitológica, poderíamos
dizer que aqui a filosofia não se contenta com funcionar através de
um pensador, como o há feito em toda sua história, para aniquilar
os particularismo e buscar sua perdida unidade, senão que
também o utiliza para adquirir consciência de si.

Tomemos três aspectos de seu pensamento onde ressalta


com grande relevo o anterior. Temos eleito suas reflexões sobre a
história da filosofia, suas críticas ao “espírito de sistema” e suas
ideias sobre o método filosófico. Todas estas coisas brotam
diretamente da ideia da philosophia perennis, como se verá em
seguida.

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Segundo Hartmann, até agora não temos tido uma


autêntica história da filosofia. Esta é uma das ciências que há que
principiar a fazer. Pois antes de tudo há que assinalar as falhas do
existente e traçar as linhas da que se há de fazer.

Em um trabalho lido em uma sessão geral da Academia


Prussiana de ciências, em 1936 [7], encontramos formulados os
pensamentos a esse respeito.

Há um grande erro na investigação e na exposição


histórica do passado. A história da filosofia se preocupa somente
de um aspecto da filosofia, propriamente do que não é filosofia, ou
melhor, do que é um erro em filosofia. Está nascendo como um
intento de conhecer os objetos. Pois o obtido neste trabalho é
uma mescla de conhecimento e erro. Pois não temos um critério
absoluto de verdade. O que não ousa ao filósofo, porque necessita
a todo transe conhecer e se lança à aventura ainda a caráter de
errar. O que resulta de erro na filosofia é, pois, o que corresponde
a esta característica. No entanto, nos sistemas filosóficos nem
tudo é erro. Ao lado do erro, se encontra o ouro da verdade. Pois
esta está enterrada em meio dos montantes de erro que entram no
sistema em questão. A história da filosofia deve, pois,
desenterrá-la. Para isso se devem demonstrar os bem estruturados
sistemas filosóficos do passado, para verificar esta tarefa
selecionadora.

A história da filosofia não se dá conta deste fato e, por


isto, não há estado à altura de sua missão. Se dedica a reconhecer
somente os pensamentos, opiniões, concepções e sistemas. Seu
objetivo havia sido o Factum histórico, o que havia dito o filósofo,
não o que em realidade havia conhecido.

Na opinião de Hartmann, nem sequer Windelband foi


capaz de ver qual era a autêntica tarefa da história da filosofia. Se
propõe fazer uma história dos problemas, mas somente se limitou
a fazer uma classificação do material segundo domínios ou
disciplinas dentro das diversas épocas. Não fez mais que organizar
em forma diferente as velhas histórias da filosofia. Pois “tudo fica
reduzido a ideias e doutrinas, sistemas e ismos”. A história do que
os pensadores vieram na realidade não aparece por nenhuma
parte. Os trabalhos de Dilthey também são criticados neste
sentido. Estão dedicados aos movimentos espirituais dentro dos
quais se move a filosofia. Nos permite ver os fios de diversa
índole que se enredam em torno dela, pois o que verdadeiramente
interessa é a história da filosofia, a depuração do material

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histórico, para extrair daí as conquistas na ordem do


conhecimento, está ausente [8].

Aqui vemos como em suas ideias sobre a história da


filosofia Hartmann tem a vista o conceito da filosofia de que
vínhamos falando. Poderíamos dizer que o que pede Hartmann é
uma história da philosophia perennis.

Intimamente unida com a mesma ideia está sua crítica ao


“espírito de sistema”, “Der Wille zum System es ein Mangel an
Rechtschaffen Heit", a vontade de sistema é uma falta de
honradez, havia dito Nietzsche. Todos os erros em filosofia
provêm para Hartmann desta falta de honradez intelectual. Em
certo sentido, a vontade de sistema é uma vontade de falsidade.
Tal vontade é escrava da harmonia sistemática. Não se submete às
exigências da verdade, pois a harmonia sistemática não é um
critério de verdade. Somente a confrontação dos pensamentos
com os objetos a que se referem nos podem dizer se aqueles são
falsos ou verdadeiros. Pretender que a verdade consiste na falta de
contradição interna de um sistema, em seu bem trabalhada
estrutura, é deslocar seu reto sentido. Esta pretensão tem, pois,
um fundamento extra-filosófico. Ao lado deste motivo, o mais
frequente de todos, há outros motivos da vontade do sistema.
Estes também são extra-filosóficos e não nos dão nem
remotamente um critério de verdade. Como, por exemplo, o
prazer estético que produz e vê surgir um grande edifício teórico
de linhas imponentes e harmoniosas. Ou a necessidade de evasão;
neste caso, o sistema é o refúgio de quem quer fechar os olhos à
realidade opressora. Ou um certo sensacionalismo intelectual e
uma certa concupiscência nas ideias. Ou, no fim, o afã humano,
demasiado humano, de ver resolvidos a todo transe de problemas
do mundo, não importa que ele seja com respostas profissionais,
fabricadas para o caso. Semelhante modo de proceder traz como
consequência lógica a violentação da realidade. Não se parte dos
problemas senão do sistema. O primeiro é dar-lhe uma forma
acabada a este. Logo se verá como se resolvem os problemas a
sua luz. Se os fatos que suscitam os problemas não encalham
dentro do sistema, pior para eles, como dizia Hegel, essa grande
possessão do “espírito de sistem”. Afortunadamente para a
filosofia, trabalhada com a vontade de sistemas, marcha ao
mesmo tempo uma vontade de problema. Ainda quando somente
seja em momentos fugazes, ainda os pensadores mais dominados
pelo furor construtivo se detém ante os problemas particulares -
se em realidade são filósofos -, antes de deixar-se absorver pela
lógica violenta do sistema. Os filósofos poderiam caracterizar-se

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pelo predomínio de uma destas vontades. Uns pensar


predominantemente sistemas, como os mestres da escolástica,
Giordano Bruno, Spinosa, Wolff, Fichte, Schelling e Hegel.
Outros pensam predominantemente problemas, como Platão,
Aristóteles, Descartes, Leibniz e Kant. Neste último, o
pensamento se estrutura em sistemas, pois os rompe
continuamente. A harmonia sistemática se vê destruída pelo
esforço dos problemas que não a resistência. Se adotam uma
concepção do mundo preconcebida, não vacilam, quando o exige
o problema. Por isso aparecem muitas vezes como
inconsequentes.

Voltamos a insistir sobre a nossa ideia central. Ante esta


concepção do “espírito de sistema” não é necessário dizer que
para Hartmann o canal da autêntica filosofia constitui o
pensamento problemático. Os sistemas não nascem da fonte de
onde nasce a filosofia, do afã de conhecer os objetos, senão de
motivos extra-filosóficos. Estão muito distantes da objetividade,
da entrega ao objeto, que exige a filosofia. São, de melhor modo,
algo pessoal. Se acercam mais aos produtos do espírito que
aparecem como para emancipação da subjetividade - como a arte,
por exemplo - que a filosofia mesma. Por isso mudam com cada
pensador. Carece de sentido falar de sua continuidade através dos
tempos. Pelo contrário, os problemas encontram uma
continuidade histórica. Todo problema uma vez descoberto segue
seu trânsito por entre a série dos intentos de solução até ser
realmente resolvido. A linha problemática transcende, pois, a linha
sistemática. Ou, de melhor modo, a destrói. A luta entre os
sistemas filosóficos - um dos quebra-cabeças de quem fala de um
progresso da filosofia - se converte em algo pessoal, em negócio
dos filósofos, frente a esta irmandade dos problemas, frente a esta
unidade da filosofia através de todas suas vicissitudes, frente e a
esta linha contínua da philosophia perennis.

Em último termo, vemos parecida relação do método


crítico de Hartmann com tal ideia. O que ele considera como o
método filosófico não o vê como um invento seu. É algo que se
há praticado na história da filosofia, já conscientemente, já
inconscientemente; em forma adequada ou em forma inadequada;
pondo em ordem seus momentos ou fazendo ressaltar
unilateralmente somente um deles. Apesar de que não o diga
expressamente, para nós no pensamento de Hartmann está
contida a ideia de que o que se ha conquistado efetivamente em
filosofia se deve a sua aplicação e de que os erros cometidos se

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devem ao seu descobrimento. Com outras palavras, aqui se trata


do método da philosophia perennis.

Recordemos os passos tão conhecidos deste método. Seus


momentos fundamentais obedecem a maneira de ser do único
que lhe interessa a filosofia: o conhecimento. Este, visto desde um
ponto de vista formal, é um esforço humano tendente a
responder as perguntas que nos conduzem os fenômenos. Logo seus
elementos essenciais são os fenômenos, os problemas e as
respostas ou teorias. O método filosófico deve atender a cada um
destes elementos. Portanto, seus momentos fundamentais são o
fenomenológico, o aporético e o teórico.

O momento fenomenológico é o mais importante de


todos. Nele se constitui a base para o filosofar. Por isso exige um
trabalho cuidadoso. O fenômeno deve ser amplamente descrito,
de tal forma que se façam visíveis todas suas características
essenciais e até o ponto de que estejamos seguros de não haver
excluído nada importante [9]. Sem uma base semelhante, os
passos posteriores podem ser passos no vazio, um erro
desorientado do filosofar. Em suma, tomando em um sentido
vulgar uma expressão muito usada, aqui se trata de criar-lhe
carinhosamente um ponto de partida seguro ao filosofar.

Neste momento se busca unicamente iluminar o


fenômeno por todas suas caras, sem ir mais além. Isto se pode
conseguir por meio de puras descrições. A fenomenologia é uma
ciência descritiva que não desenvolve problemas nem propõe
soluções. Tem, pois, um caráter problemático e pré-teórico. A
análise fenomenológica, diz Hartmann, está mais além não
somente de todo ponto de vista, de toda teoria, de toda solução
determinada, senão também de toda formulação particular de
problemas mesmo. Em suma, aqui não se trata mais que da pura
quaestio facti [10].

Em meio a análise fenomenológica tropeçamos com o


rosto enigmático do problema e caímos no domínio de aporética.
Chega um momento em que o fenômeno se faz esquivo ao
procedimento descritivo, em que oculta uma de suas caras a pura
visão direta. Surge, então, o que Hartmann chama “ein
Bewusstsein der Inadaequatheit” (uma consciência da
inadequação) ou “ein Wissen des Nichtsissens” (um saber do não
saber) [11]. Isto é, a consciência de que o que se há de conhecer
não coincide com o conhecido; o saber de uma zona obscura no
fenômeno, de algo rebelde a visão imediata.

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A aporética ou ciência dos problemas é uma ciência


especial. Não lhe interessa mais que o tratamento dos problemas
como tais. As aporias constituem seu objeto e não se preocupa
por dar soluções. Pelo contrário, sua tarefa o cumpre criando
dificuldades, suscitando enigmas. Faz ressaltar cuidadosamente o
problema no fenômeno até o ponto de que apareça como
verdadeiramente problemático, impenetrável para a visão direta.
O que aparece claro o faz a um lado como alheio a sua tarefa.
Quando já tem seguro o problema, o submete, a seu turno, a
análise. Esta análise permite conhecer a estrutura do problema,
conhecimento indispensável para desenvolver soluções. Deixa ver
se o problema é solúvel e as possíveis vias de solução ou se o
problema é insolúvel. No primeiro caso orienta a tarefa teórica, a
qual, em caso contrário, se perderia buscando as cegas, desde fora
do problema mesmo, vias de acesso às respostas. No segundo
caso, salva de uma perda de tempo e um fantasiar impotente
frente ao que permanecerá sempre como um enigma.

Depois de haver esgotado os momentos anteriores já


podem vir as respostas aos problemas. As teorias não são
inventos humanos exclusivamente. O homem deve lê-las no
fenômeno mesmo. Por isto exigem um labor preparatório,
destinado a fazê-la brotar das coisas. Sem o trabalho
fenomenológico e aporético são, pois, impossíveis as autênticas
respostas, às teorias adequadas. Neste momento pode edificar-se
o sistema, porque as teorias se organizam em sistemas. Pois os
sistemas não são engendros caprichosos, edificados sobre
concepções preconcebidas. Surgem de uma atenção solicita aos
fenômenos e a seus enigmas. Isto é, não tem como ponto de
partida a subjetividade do filósofo, senão os fenômenos mesmos.
O mundo dos fenômenos não é um caos. Os fenômenos estão
trabalhados entre si, formando um cosmos. E as teorias devem
refletir este cosmos em forma de sistema, porque o que significa a
palavras cosmos para o conjunto dos fenômenos significa a
palavra sistema para as teorias. “A marcha estritamente objetiva de
uma investigação - diz Hartmann - pertencente indubitavelmente
uma direção concêntrica para o sistema. A sistemática natural não
sai da cabeça dos filósofos, senão que está encerrada nos
problemas mesmos”. Não deve ser construída, senão descoberta.
Todo o segredo para ganhá-la consiste na arte de fazer falar os
problemas em forma pura, por si mesmos, e na arte de descobrir
suas estruturas naturais sem falsificá-las, introduzindo-se dentro
delas pontos de vista que lhes fariam violência [12].

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Este método esboçado por Hartmann é de uma


fecundidade extraordinária e mereceria uma consideração mais
detida. Pois somente nos temos referido a ele com o objetivo de
assinalar um aspecto da ideia da filosofia de que fala o título
destas notas.

Pois bem: aqui nos encontramos de novo com a imagem


da philosophia perennis.

Em primeiro lugar, Hartmann não considera o método


como um invento seu. Não há mais que desenterrá-lo de entre as
ruínas da história da filosofia. Em segundo lugar, está em íntima
conexão com as ideias expostas já sobre a história da filosofia e
com as críticas ao “espírito de sistema”, ideias e críticas que
constituem peças muito importantes do conceito hartmanniano
da filosofia.

Vejamos com alguma atenção cada um destes pontos.

Enquanto a fenomenologia, Hartmann encontra já suas


linhas no passado em forma muito clara. Pois sempre lançadas a
perder devido ao afã problemático e sistemático. Somente na
época presente vem a ser considerado e praticado este momento
metódico com a atenção que se merece. Husserl é para Hartmann
o homem que havia levado a cabo esta tarefa. No entanto,
segundo ele, a fenomenologia, tal como a concebe Husserl, é
todavia insuficiente. A razão desta insuficiência da fenomenologia
husserliana aos olhos de nossos filósofos é muito simples. Para
Husserl o campo onde deve funcionar o método fenomenológico
está constituído pela consciência transcendental. Os fenômenos
que se apresentam na atitude natural, isto é, os dados da
experiência transcendente, devem ser reduzidos
fenomenologicamente. Depois desta redução somente fica como
resíduo fenomenológico a consciência pura, único campo da
fenomenologia. Tudo o que não pertence a este campo
permanece posto entre parênteses, submetido a epóque [13].
Hartmann vê esta volta aos modos de consciência mesmos. Ele
toma muito a sério tal volta as coisas. A atitude orientada para a
subjetividade, a atitude reflexa, repugnando sua natureza. Hans
Leisegang há observado a ausência da obra psicológica neste
pensador que abarcou todos os domínios do saber. Todo gênero
de reflexão sobre si mesmo lhe era estranha. Esta é uma causa de
suas frequentes deserções. Ao princípio de sua carreira pertenceu
a escola neokantiana de Marburgo, mas prontamente houve que
rechaçar a seus mestres para ingressar no movimento
fenomenológico; sua atitude de retorno para as coisas não poderia

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admitir a teoria idealista daqueles, segundo a qual os objetos são


um engenho da consciência. Pois a fenomenologia, tal como a
concebe Husserl, tampouco havia de permanecer muito tempo.
Aqui tropeçou também com o subjetivismo. Por isso se vê
impulsionado a ir mais além dela. O método fenomenológico - no
qual absorve Husserl toda a filosofia - não é mais que um
momento do verdadeiro método filosófico e seu campo de
trabalho não é a consciência pura. Somente é um labor
preparatório. Depois vem a aporética e a sistemática, também
como momentos fundamentais. Tampouco pode permanecer
encerrado dentro da consciência. É necessário, para exercê-lo, sair
dela para a realidade. Não necessita, pois, da atitude reflexiva.
Deve permanecer na atitude natural, volta para o mundo, atitude
que supera Husserl por meio da epóque. Em tal atitude se obtém o
material sobre o qual se levam a cabo as descrições
fenomenológicas. Os fenômenos de que fala sua fenomenologia
não são fenômenos subjetivos. São os fenômenos que nos
apresentam a realidade total, tal como se apresentam. O mundo e
o eu tem aqui igual importância. O mundo não sucumbe a epóque
como em Husserl. Mundo e eu constituem o âmbito no qual se
apresentam os fenômenos. Estes são os laços tendidos entre
aqueles. Em suma, o método fenomenológico não tem como
campo de trabalho a consciência pura, senão a vida mesma,
porque a vida não é mais que isto: um diálogo entre o eu e o
mundo. Por isso resume Hartmann sua concepção da
fenomenologia com as seguintes palavras: “não basta voltar aos
fenômenos, como Husserl o exige; temos que voltar à terra, a
vida”.

A aporética também se encontra no passado. Aristóteles


foi seu inventor, e a pôs em prática de forma genial. Pois lhe
faltou uma base fenomenológica. A isto se deve seu vão esforço
com problemas que, no fim de contas resultam problemas
aparentes. O ponto de partida não era para ele a descrição do
fenômeno, senão a discussão dos problemas. A este respeito é
frequentemente citado a seguinte passagem da Metafísica: “O
primeiro que devemos fazer, com olhar para a ciência que
estamos investigando, é recontar os assuntos que há que discutir
ante tudo. Há que compreender nele as opiniões que expressaram
alguns filósofos sobre os primeiros princípios, assim como todo
ponto que crescemos ha sido descuidado por eles, pois se
queremos resolver as dificuldades, é vantajoso discuti-las bem,
posto que a subsequente facilidade e liberdade no pensamento
leva em si a solução das dificuldades prévias, não sendo possível
que nada desfaça um “nó” que desconhece em absoluto. A

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dificuldade de nosso pensamento indica um nós do objeto ou


matéria, pois enquanto nosso pensamento encontra dificuldades,
lhe ocorre como aos que se encontram amarrados, posto que em
ambos os casos não é possível avançar. Por isso há que observar
as dificuldades de antemão, tanto para os propósitos que temos
indicado como porque as pessoas que investigam sem haver
estudado as dificuldades se encontram em aparecida situação a
daqueles que não sabem aonde se dirigem; ademais, o homem não
pode saber em qualquer tempo dado, nem sequer se há
encontrado ou não o que busca, porque não se vê bem o término,
enquanto que o que há estudado as dificuldades o verá” [14].

A aporética foi praticada pelos mestres da escolástica. Pois


a Idade Moderna foi esquecida em favor do sistemismo que
dissolve todos os problemas na lógica de sistema. No entanto, em
Kant encontramos um vestígio dela. Ele pede uma consideração
detida sobre o que se há de perguntar, pois quando a pergunta é
absurda as respostas tem que ser necessariamente absurdas [15].
Pois depois dele desaparece como momento fundamental do
método filosófico. Hartmann é que o fez valer de novo.

O terceiro momento, o sistemático, tem sido o menos


afortunado na história da filosofia. Quase sempre há primado o
sistema artificial, o sistema construído subjetivamente, sem ater-se
aos dados. O sistema natural, reflexo da ordem real, somente há
tido momentos fugazes, quase inevitáveis. Pois, não obstante a
isto, sempre se há visto como um ideal. Porque os sistemas
artificiais pretendem também, embora de modo vão, refletir a
realidade.

Por último, se faz patente aqui a relação do método com


as ideias sobre a história da filosofia e com as críticas ao "espírito
de sistema”. Chega até tal ponto esta relação que não sabemos
com certeza se o método surge como resultado destas ideias e
críticas, ou se elas lhe vieram a Hartmann ao examinar os sistemas
filosóficos do passado à luz do método.

Se poderia dizer que o único instrumento para separar o


verdadeiro do falso e para assinalar onde se encontra atuando o
espírito de sistema é o método crítico. Pois ali onde se lhe há
observado se encontram, seguramente, algo positivo ; e ali onde
se hão seguido procedimentos contrários, nós as temos com o
erro e com a vontade de sistema.

Finalmente, nos permite reconstruir a unidade da


filosofia, desmoronando aparentemente na itinerante dos

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sistemas. O historiador deve buscar o material em que se vão


cumprindo os momentos metódicos. Deve buscar a linha
contínua, clara e pura da filosofia, fazendo a um lado o estranho a
ela. Para tal tem que desmontar os sistemas, pois em meio de seu
emaranhado se encontra esta linha.

Pois no processo histórico em que vão desenvolvendo-se


a filosofia as coisas ocorrem do seguinte modo. Cada sistema -
quando é autêntica filosofia, quando é o produto de um
verdadeiro pensador, embora esteja dominado por pontos de vista
falsos - trabalha em um dos momentos metódicos em forma
positiva. Não importa que isto seja encoberto pelo negativo que
se encontra em dito sistema. O positivo permanece e o negativo
se evapora. Por exemplo: pode ocorrer que um filósofo trabalhe
em uma descrição adequada de um determinado fenômeno,
descrição que logo é posta a perder e obscurecer pela elaboração
artificial da problemática e da sistemática. Pois bem, a dita
descrição fica como uma conquista segura, enquanto que o
demais não resiste a crítica posterior. Logo vem outro filósofo
que se enfrenta com o mesmo fenômeno. Parte da descrição
adequada que há herdado e trata em forma conveniente os
problemas que ali se fazem visíveis. Pois este também pode seguir
vias falsas, ao preocupar-se por dar as respostas aos problemas,
constituindo um ousado sistema que não tem em conta o
alcançado no tratamento dos problemas. O sistema artificial
tampouco resiste aos ataques da crítica e somente subsiste o
trabalho aporético. Este é o trabalho fenomenológico anterior que
vem a formar um todo unitário, embora os dois sistemas em que
se albergam sejam os mais contraditórios que resta imaginar,
como o há demonstrado Hartmann em casos particulares. Por
último, aparece o filósofo que, baseando-se no conquistado pelos
anteriores, dá respostas mais adequadas aos problemas, o filósofo
que elabora teorias bem fundamentadas. Neste novo sistema
falará, possivelmente, também algo errôneo, condenado a ser
rechaçado na marcha posterior da investigação. Mas isto não
importa. Nele já há - se há estado ao nível a que há chegado a
questão nos momentos que o precederam - uma aproximação às
respostas verdadeiras. Sobre o que ele deixa como permanente se
irão acumulando verdades sobre verdades, até levantar-se o
sistema natural, radicalmente diferente dos sistemas artificiais por
sua objetividade, o sistema natural que reflete fielmente a
realidade.

Quem nos segue até aqui verá como, ao ir tocando vários


pontos do sistema de Hartmann, vai brotando a imagem de

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philosophia perennis. Aqui devia terminar nossa tarefa. Isto era o


único que nos propomos. No entanto, não nos resignamos a tocar
uma questão que provavelmente já tenha saltado ao passo do
leitor.

Temos acentuado - por nossa parte, pois em Hartmann


não ocorre isto - a ideia de que a philosophia perennis se vai
realizando através da história da filosofia, à medida que vai
deixando a seu passo os cadáveres dos sistemas particulares. Em
Hartmann há algo mais. Ele crê que já passou a época dos
sistemas artificiais. Isto é, que é hora de pormos a fazer philosophia
perennis. Para nós isto é completamente impossível, pelas seguintes
razões.

Uma coisa é a filosofia e outra é o filosofar. Aqui


tropeçamos com a conhecida diferença entre conteúdos e atos. A
mesma diferença que se faz entre os pensamentos como
conteúdos do pensar e os atos deste pensar, deve fazer-se entre o
conteúdo da filosofia e o filosofar do filósofo.

Os lógicos atuais distinguem o pensamento pensado, que


tem um caráter intemporal, independente dos sujeitos que o
pensaram, que segue sendo o mesmo apesar dos infinitos atos
individuais em que pode ser apressado, deste atos, sempre
variantes, acompanhados de conteúdos psíquicos diferentes,
individuais. O primeiro pertence ao mundo ideal, o segundo ao
mundo real. Aqui entram em contato duas esferas ônticas
radicalmente diferentes.

Parecida distinção devemos fazer entre a filosofia e o


filosofar. A filosofia de que aqui temos falado, a philosophia perennis,
pertence ao mundo ideal. Não tem a mesma maneira de ser dos
pensamentos, pois se identifica com elas em sua idealidade. Não
é, pois, uma essência lógica como aqueles. Mas, de bom modo, é
uma idéia no sentido kantiano. Para Kant, as ideias são ideais.
Podemos, pois, dizer que é um ideal. De bom modo, os ideais
pertencem ao mundo ideal. Portanto, tem categorias parecidas às
dos pensamentos.

Por isso, o filosofar se comporta com este ideal como o


pensar com respeito ao pensamento. O filosofar é uma realidade,
um processo psíquico. A isto deve sua individualidade, causa das
inumeráveis formas históricas do filosofar. Isto é, o filosofar não
pode ser, precisamente, o filosofar universal que, em forma
matemática, realiza o ideal. O ideal é a meta a que tende o
filosofar e o pensar podem falhar em sua aspiração, pois o ideal e

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os pensamentos seguem sendo o mesmo. Este é o último


fundamento do erro no pensar em geral e no filosofar. No
entanto, há uma diferença entre a relação que existe entre o
pensar, como ato psíquico, e os pensamentos pensados, e a que
existe entre o filosofar particular do filósofo e a filosofia
concebida no sentido de que temos vindo falando. O pensar quer
apressar os pensamentos. O filósofo quer ajustar-se às exigências
do ideal. O ideal opera como uma meta para a qual tendem os
atraídos por ela.

Pois aqui tomamos, repetimos, a palavra ideal e sentido


kantiano, como ideia. E lhe atribuímos o mesmo caráter das ideias
kantianas. Isto é, é algo irrealizável, para dizê-lo de uma vez.
Nossa ideia da filosofia atua desde distante, orientando o
navegante filósofo, como a estrela que guia o marinheiro, mas na
qual não desembarca, para seguir usando a imagem kantina.

A philosophia perennis é irrealizável. O que não significa que


não se possa determinar seu sentido. Nestas páginas temos estado
falando, precisamente, de seu sentido. Uma coisa é a questão do
sentido e outra a questão da realização. Podemos conhecer o
sentido de uma coisa, sem saber nada sobre sua realização.

O filosofar, em síntese, não é mais que um esforço por


realizar a philosophia perennis. Pois nenhuma forma particular de
filosofar pode realizá-la. As filosofias são os esforços históricos por
realizar a filosofia. Esta funciona sobre aquelas como meta
inacessível e, a seu turno, se volta sobre elas aniquilando-as, como
tais formas históricas do pensar. Pois de todo o histórico, dos
sistemas particulares, nenhum fica como a filosofia. Somente
subsiste o que concorda com o ideal. Desta forma se consegue
historicamente a unidade da filosofia.

A philosophia perennis vai se realizando na história, mas


nunca se acaba de realizar. Cada sistema é um ensaio neste
sentido. Pretende encarnar a única filosofia - pretensão
condenada necessariamente ao fracasso - em um momento
determinado da história, para logo ceder-lhe o posto a novos
sistemas que levar com a mesma pretensão. O permanente
somente se pode conhecer depois de haver-se derrubado o
sistema, depois de converter-se em história. Isto é, desde o centro
de cada sistema não se pode dizer que é o permanente. Não há
um critério absoluto de verdade. Cada filósofo principia a
filosofar com um acúmulo de pressupostos de caráter racial,
social, filosófico, científico, de concepção do mundo etc., que
podem determinar seu critério de verdade. É necessário esperar a

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que todos esses supostos se façam como história para que saiam à
tona e possa se dizer que é o que há de verdade no sistema em
questão e que o que pertence às condições pessoais, isto é, o que
há ali de erro. A philosophia perennis, o que há de filosofia neste
sentido nos sistemas filosóficos, não pode determinar-se desde o
centro de cada sistema nem nós podemos pôr a fazer filosofia
neste sentido, sem mais, nem mais. O primeiro somente pode
fazê-lo o tempo e a história da filosofia, os únicos capazes de
dizer-nos o que é o que há permanecido. O segundo é impossível.
O homem é um ser finito condicionado por muitos fatores. Não
flutua no ar, senão que é um tecido de prejuízos de toda classe: os
prejuízos de seu tempo, de sua raça, de sua nação, de seu círculo
cultural. E onde quer que leve esta armadura de prejúizos, como o
caracol leva sua concra. Por isso nos parece impraticável o
método crítico de Hartmann. É um belo ideal para filosofar.
Contudo essa falta de prejuízos, essa, por assim dizer,
espectralidade humana que exige é impossível de alcançar. Na
descrição fenomenológica, no manejo dos problemas e na
elaboração das teorias se nos vem em cima nossos prejuízos,
como fontes inevitáveis de erro.

Hartmann tampouco realizou a philosophia perennis que


tinha a vista. Também construiu um mundo de pensamentos
onde se encontram entremesclados o erro e a verdade. A filosofia
atual já começa a rechaçar muitas de suas afirmações, muitas das
coisas que teve por verdadeiro. E também parece que outras se
vão convertendo em bem comum, em algo permanente. Ele
encarnou de forma poderosa o ideal de philosophia perennis que
seria uma homenagem que ele mesmo realizou com seus
predecessores. Pois já temos dito que este é um labor que
somente pode levar a cabo o tempo. Esperemos sua fácil
sentença.

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[1] Zur Grundlegung der Ontologie (1935),


Möglichkeit und Wirklichkeit (1938), Die Aufbau der realen
Welt (1940), Neue Wege der Ontologie (1942).

[2] A Filosofia da Natureza apareceu em 1950;


dificuldades de diversa índole retardaram sua publicação. A
estética permanece inédita.

[3] “Die Wahrheit ist verbreiteter, als man denkt; aber


sie ist sehr oft auch geschminkt sehr oft auch verhüllt und
gar geschwächt, verunstaltet, verdorben durch
Hinzugungen, die sie beflecken und unfruchtbar machen.
Wenn man diese Spuren der Wahrheit bei den Alten oder,
allgemeiner gesprochen, bei den Vorgänger sichtbar
machte, man wurde das Gold aus dem Staube haben, den
Diamant aus dem Gestein, das Licht aus der Finsternis, das
wäre dann wirklich eine Art perennis philosophie”
(Philosophische Schriften, edic. de Gernhardt, t. III, pags.
624 e sgt.) / A verdade é mais ampla do que se pensa; mas é
muitas vezes maquiada, muitas vezes velada e até enfraquecida,
desfigurada, estragada por acréscimos que o mancham e o tornam
estéril. Se se tornassem visíveis esses vestígios de verdade nos
antigos ou, de modo mais geral, nos predecessores, teríamos o
ouro do pó, o diamante da rocha, a luz das trevas, isso seria
realmente uma espécie de philosophia perennis.

[4] Meditações Cartesianas, trad. de José Gaos, ed. de “El


Colegio de México” pg. 3.

[5] Ob. Cit. pg. 5.

[6] Confira seu livro Die Philosophie des deutschen


Idealismus, II Teil: Hegel. Edit. Walter de Gruyter & Co., 1929,
pg. 49 e seguintes.

[7] El Pensamiento Filosófico y su Historia, Trad. de


Aníbal del Campo, edit. Claudio García & Cía., Montevideo, 1944.

[8] No anterior não está contida uma desvalorização da


história da filosofia clássica. Pelo contrário, Hartmann a aprecia
em alto grau. Somente a censura em sua unilateralidade. Pois nós
nos atrevemos a dizer que não lhe concede importância como
história da filosofia, senão como história de certos produtos muito
distantes da autêntica filosofia, os chamados sistemas filosóficos.
No entanto, queremos deixar consignadas aqui suas próprias
palavras: “Naturalmente que não se trata com isso de desconhecer
o direito de uma investigação desde este ponto de vista. Ela é

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legítima e necessária dentro de certos limites, assim como é


absolutamente indispensável em si o interesse pela história
espiritual e o é também com relação aos problemas da filosofia.
Ainda mais. O necessitamos também mediatamente para a
investigação da história da filosofia; porque a filosofia descansa
em todos os tempos sobre supostos e tendências que tendem a
sua raiz fora dela. Tão impossível nos é prescindir dos motivos e
das conexões estruturais do espírito histórico, como da
reconstrução dos sistemas no sentido da literatura clássica da
história da filosofia. O erro começa, de melhor modo, onde se
tem tal tipo de investigação pelo todo ou a peça central do
progresso que segue o conhecimento filosófico. Esta opinião é,
no entanto, a que mais se estende nos círculos especializados de
todas as classes. Com tal concepção somente pode predominar
nas exposições aquele que tem valor atual para a época porque daí
provém os impulsos mais visíveis. E no caso de investigadores
menos aprofundados, em sua maior parte se dilui nas correntes
populares, modas intelectuais e tópicos da época. Desde essa
opinião não pode advertir-se, por certo, que existe uma marcha
autónoma dos problemas, que em todos os tempos as ideias que
fazem época se assentam sobre intelecções revolucionárias, e que
estas não se podem dar senão no continuum de um labor
progressivo do conhecimento, continuum que corre oculto detrás
das querelas doutrinais manifestas e que necessita ser prévia e
especialmente descoberta. (ob. cit. pág. 27 e seguintes.)

[9] Cf. o livro de Hartmann Grundzüge einer


Metaphysik der Erkenntnis, Vierte Auflage, Berlin, 1949, p. 37.

[10] Ob. Cit., p. 38.

[11] Ob. Cit., p. 70.

[12] Ob. Cit., p. 10.

[13] Cf. de Husserl Ideias para uma Fenomenologia


pura e uma Filosofia Fenomenológica, trad. de José Gaos,
Fundo de Cultura Económica., 1949, pg. 155 e seguintes.

[14] Metafísica, Livro II, cap. 1. A. del Campo em na Ob.


Cit.

[15] Kritik der reinen Vernunft, Erster Band, Deutsche


Bibliothek, Berlin, p. 91.

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