_CAPÍTULO XIII [2ª metade] - O PENSAMENTO FILOSÓFICO NO BGLADSTONE - RASIL_GLADSTONE Chaves-de-Melo-Oriegem-Formacao-e-Aspectos-Da-Cultura-Brasileira-1974
Para Farias Brito, cabe àiFilosofia, como «actividade per
m anente do espírito humano», regenerar o mundo pela inces sante procura da verdade e pela aceitação da «verdade como regra das acções». D aí já se vê que é moral a finalidade suprema do filosofar: «a m oral é o fim da Filosofia», «o ideal que me im pulsionou é a ordem m oral» (A Base Física, p. 72). H á nele um sopro heraclítico, uma angustiosa aflição com o espectáculo do mundo, em contínuo vir-a-ser, que para nós melancólicam ente se resolve na morte. Urge então buscar na Filosofia solução para essa angústia: «Tudo passa, tudo se aniquila. Pois bem: eu quero saber se do que passa e se aniquila algum a coisa fica, que não há de passar nem aniqui lar-se: quero estudar essa ciência incomparável de que falava Sócrates; quero ensinar aos que padecem como é que se pode esperar com serenidade o desenlace da m orte; quero dirigir, aos pequenos e humildes, palavras de conforto; quero levantar contra os tiranos a espada da justiça; quero, em um a palavra, m ostrar para todos que antes e acim a de tudo existe a lei m oral, e que é somente para quem se põe fora desta mesma lei que a vida term ina.» (A Filosofia como Actividade, ps. 21-22). Farias distingue a filosofia pré-científica, que é a própria actividade do espirito a elaborar o conhecimento; a ciência, que é o conhecimento sistem atizado e especializado; e a filosofia supercientífica, «interpretação do sentido real e racional da exis tência; interpretação pelas prim eiras causas e pelos prim eiros princípios; o que, em últim a análise, se resolve num a totaliza- ção da experiência, ou mais precisamente, num a solução do problem a do universo; concepção que corresponde, exactam ente e com o máximo rigor, ao que se cham a metafísica.» (A Base Física, p. 64). A existência universal tem, para Farias, dois aspectos: um, objectivo, que é a realidade exterior, «o m undo da natureza e 202
dos corpos», e outro subjectivo, que é a consciência, o espírito.
A realidade objectiva é contínuo vir-a-ser; a realidade subjectiva é sentir e pensar: «coisa que não entre em nenhuma destas duas categorias fundamentais não existe, nem pode ser conhecida». (Mundo Interior, p. 479). Prosseguindo em suas especulações, busca Farias, para além dos fenómenos, a «coisa-em-si», que descobre ser o espírito. E acaba por identificar a matéria com o espírito: «tudo isto que se chama matéria não é senão a aparência externa, a manifes tação e o desenvolvimento, ou a eterna fenomenalidade do espírito, uma como sombra que o espírito projecta no vácuo.» (Ibid., p. 415). Farias tem uma Teodiceia à primeira vista lúcida e segura, pois vê em Deus espírito criador, inteligência suprema, princípio de todas as coisas, a tudo presente, ser pleno, conhecimento perfeito. «Negar a Deus é negar a razão no mundo.» (Filosofia Moderna, p. 16). Com tal entusiasmo fala de Deus, que se diria um platónico ou um aristotélico-tomista. M as é engano. Farias Brito é panteista: «Há, pois, a luz, há a natureza e há a cons ciência. São os três momentos da natureza divina. A luz é Deus em sua essência; a natureza é Deus representado; a cons ciência é Deus percebido.» (Ibid., p. 267). Tem, portanto, toda a razão Leonel Franca ao capitular a filosofia do pensador cearense como «pampsiquismo panteista». Na ordem prática, entende Farias que «as duas manifesta ções fundamentais do espírito humano na m archa geral da sociedade são a Política e a Filosofia. A Política dá em resul tado o Direito; a Filosofia dá em resultado a M oral.» (A Filoso fia conto actividade, p. 33). A regra da moral é a verdade, ou, mais concretamente, a convicção, porque, ao fim e ao cabo. Farias cai no relativismo moral: «O homem tem sobre todos os outros seres este privilégio 203
excepcional: que é éle próprio quem formula as leis a que deve
obedecer». (A Verdade como Regra, p. 9) Ou: «forma subjec tiva: procede sempre e tem todas as relações da vida de con form idade com o que pensas que é verdade, isto é, de conformi dade com as tuas convicções.» {Ibid., p. 25). O Direito é a norm a de conduta estabelecida e coactivamente exigida pelo poder público, já que a tendência do homem é para o mal. As religiões actuais, segundo Farias, estão mortas. Urge, pois, criar outra, nova, que não será senão a própria moral organizada. «E isto quer dizer: é a sociedade organizada pela lei moral, é a sociedade governada pela razão». {Mundo Interior, p. 102). N ão sendo, pois, espiritualista ortodoxo, menos ainda cris tão, serviu, no entanto. Farias Brito a muitos de caminho para o encontro do Cristianismo.
Justam ente neste ponto é a hora de falar num a corrente de
pensamento, que já tem mais de cem anos de continuidade, que reatou, em muito melhores termos, um a tradição interrompida, mas que nem sempre tem merecido a devida atenção dos histo riadores do pensamento brasileiro, — apesar das boas ou exce lentes coisas já produzidas. Refiro-me ao renascimento da Filosofia Tomista, geral- mente conhecido por neotomismo, uma vez que os seus fautores e continuadores actualizaram, fiéis ao sistema, as indagações e conclusões provocadas pelos problemas das modernas ciências experimentais e matemáticas. O movimento começou na Itália, com Liberatore (1810-1892), que em 1850 deu à estampa um curso completo de Filosofia. Acompanharam-no Taparelli d’Azeglio, Sanseverino, Cornoldi, Zigliara, na Itália: Kleutgen (1811-1883), na Alemanha; De 204
Broglie, D’Hulst, Domet de Vorges e Farges, na França; menos
rigoroso, Balmes, na Espanha. M as foi a encíclica Aeterrú Patris, de Leão X III (1879), que deu o grande impulso à restauração tomista, insistindo no verdadeiro progresso da Filosofia, que se faz por aprofundamento e não por substituição: «Vetera novis augere et perficere», como diz, no documento, o famoso pon tífice. No Brasil, antes da encíclica, já em 1866 o paraibano José Soriano de Sousa (1833-1895) publicava em Recife os Princípios Sociais e Políticos de Santo Tomás de Aquino. Além de outros trabalhos de menor tomo, deu à estampa em 1871, editado em Paris e distribuído pela Livraria Académica de Pernambuco, um alentado compêndio de 544 recheadas páginas — Lições de Filosofia Elementar, Racional e Moral. Não se lhe vá buscar originalidade; mas ninguém pode negar que o jurista paraibano assimilou bem as aulas que rece beu na Universidade de Lovaina, na Bélgica, e as m uitas leituras que fez nos melhores tratadistas e divulgadores, dando-nos um compêndio claro, metódico e, sobretudo, bem escrito, em boa língua. Apesar de passado um século, ainda se lê com gosto e proveito o livro de Soriano, hoje raríssimo. Algum tempo depois, o Visconde de Saboia, Vicente Cân dido Figueira de Sabóia (1835-1909), professor da Faculdade de Medicina do Rio, publica A Vida Psíquica do Homem (Rio, 1903), em que refuta o materialismo corrente, e afirm a que só uma concepção integral e correcta do homem pode explicar devi damente os fenómenos mentais, em todos os seus aspectos e extensão. Em 1908, pioneira, é fundada a Faculdade de Filosofia de S. Bento, em S. Paulo. Mandou-se vir da Bélgica o doutor por Lovaina Carlos Sentroul, que já se distinguirá por uma tese sobre o objecto da Metafísica, segundo K ant e segundo A ristó- 205
teles. Foi ela traduzida para o alemão e premiada, em 1906,
pela Kantgesellschaft. Sentroul ensinou muitos anos no Brasil, e publicou, em português, um Tratado de Lógica. Interrom pidos os cursos em 1917, retom am em 1922, agora já com outro belga, que se radicou no Brasil, Leonardo van Acker. Este ainda vive e actúa, sendo autor do melhor trabalho sobre Lógica escrito em nossa língua: Introdução à Filosofia. Lógica (S. Paulo, 1932). Em 1921 ocorre um facto, que veio a ter importantes con seqüências e larga repercussão: Jackson de Figueiredo, recém convertido ao catolicismo, funda no Rio o Centro D. Vital, destinado a ser foco de irradiação do tomismo e da doutrina católica. Funcionou regularmente durante mais de quarenta anos, publicando um a revista, «A Ordem», e ministrando cursos diver sos, além de conferências semanais. Surgiram réplicas em S. Paulo e em M inas, de m odo que por todo o período de sua vida activa, directa ou indirectamente teve o Centro papel nos estudos e nos escritos filosóficos aristotélico-tomistas. Na direcção, a Jakson sucedeu Alceu Am oroso Lima, con vertido em 1928, e a este, em seus impedimentos, Gustavo Corção. Muitos têm sido os cultores da Filosofia neotomista, alguns dos quais se destacaram, seja pela profundidade na assimilação do sistema, seja pela aplicação dos princípios e dos métodos a novos aspectos da realidade. Um recente e isento historiador do pensamento brasileiro, Antônio Paim, reconhece e proclam a a importância do movimento. Veja-se-lhe este tópico: «O esplritualismo de Farias Brito conduziu à estruturação da corrente neo-tomista, provavelmente a que abriga em seu seio maior número de pensadores. Partidários de Jacques M aritain 206
e divulgadores de sua obra ocupam a maioria das cadeiras nos
cursos de Filosofia, tanto das Universidades Católicas como das federais. Alimentam significativo movimento editorial e, embora pareçam divididos no plano político, formam uma corrente filosófica única. A persistência do positivismo e a hegemonia neotomista sobre o ensino da disciplina constituem a nota domi nante de nosso acanhado universo filosófico (15)». Para lembrar alguns nomes, no passado e no presente, mencionaríamos: Ludgero Jaspers, Castro Nery, A. B. Alves da Silva, Alexandre Correia, Antônio Alves de Siqueira, Leonel Franca, Saboia de Medeiros, Nélson Romero, Francisco Xavier Roser, Pedro Cerruti, Sebastião Tauzin, Armando Cámara, Aldo Obino, Geraldo Pinheiro Machado, Orlando Vilela, Lúcio dos Santos, Peixoto Fortuna, João Camilo de Oliveira Torres, Eduardo Prado de Mendonça, Ubaldo Puppi, Luís Castagnola, José van den Besselaar, Irineu Pena, Gustavo Corção, Alfredo Lage, Maurílio Teixeira Leite Penido. Quero, desta lista feita ao acaso da memória e inclusiva de vários centros nacionais (Rio, S. Paulo, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre), destacar algumas figuras. Leonel Franca aliou a erudição à profundidade e à pureza da linguagem. Foi, depois do bosquejo de Sílvio Romero, o primeiro sistematizador da história da Filosofia no Brasil, e deixou dois trabalhos com muita contribuição pessoal — A Crise do Mundo Moderno, em que argutamente analisa as conse qüências, nos nossos dias, da grande ruptura do século X VIII, e O Problema de Deus, obra póstuma.
(ls) História das Idéias Filosóficas no Brasil, S. Paulo, 1967,
ps. 252-3. 207
Antônio Alves de Siqueira é autor do melhor tratado
sobre Filosofia da Educação, baseada nos princípios de Aristó teles, Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. Ludgero Jaspers tem um bom compêndio de Filosofia e tra duziu toda a Summa contra Gentiles, do Doutor Angélico. Ubaldo Puppi, do Paraná, com Itinerário para a Verdade (1955), Prius Natura (1960) e A Intuição Intelectual e a Exis tência (1966) sagrou-se pensador seguro, arejado e rigoroso. Gustavo Corção, depois que trocou a Física e a Matemática pelas especulações filosóficas e teológicas, tem-nos dado impor tantes trabalhos, de que talvez se deva sublinhar As Fronteiras da Técnica, onde situa no verdadeiro lugar a Técnica e a Polí tica, sobretudo a partir da distinção aristotélica entre agir e fazer; e Dois Amores, Duas Cidades, longa, segura e percuciente análise da civilização moderna, onde mostra a decadência do pensamento límpido e voltado para o ser, desde o século XIV aos nossos dias, com as sucessivamente trágicas conseqüências que vem acarretando. Alfredo Lage, uma das nossas melhores cabeças filosóficas, deu-nos um excelente ensaio estético, A Revolução da Arte Moderna (1969), em que, à luz dos princípios tomistas, analisa as diversas experiências e realizações artísticas do Romantismo para cá; e recentemente publicou um suculento estudo sobre a falência do pensamento liberal, sob o título de A Recusa de Ser (1971), que deveria ser lido por quantos pretendem chegar às raízes da actual crise de cultura. Maurílio Teixeira Leite Penido é um pensador universal mente conhecido. Formado na Europa e por muito tempo pro fessor na Universidade de Friburgo, na Suíça, dedicou-se prin cipalmente à Teologia, mas granjeou a primeira linha dos Filó sofos tomistas com o arcabouço filosófico de Le rôle de Vanalogie en Théologie Dogmatique, com La méthode intuitive de M. 208
Bergson e com Dieu dans le bergsonisme. Logo depois da
Guerra de 39 foi para o Brasil, onde ensinou vinte e cinco anos, na Faculdade Nacional de Filosofía e no Seminário de São José, no Rio. * * *
Como já se viu pela citação de Antônio Paim, com a qual
estou de acordo, o pensamento actual brasileiro está dominado pelo neotomismo, pela mentalidade positivista e, acrescento eu, por um marxismo difuso, que tem suas origens mais remotas, parece, no ensino de Leónidas Resende (1889-1950) na Facul dade de Direito do Rio (então integrada na Universidade do Brasil). Leónidas transitou do positivismo ao marxismo, ou melhor, incluiu teses marxistas num esquema e estilo de pensa mento comtista. Outros depois estudaram e adoptaram sobretudo a visão marxista da História — aliás fácil de assimilar e supostamente aplicável a todas as culturas — com seu componente hegeliano do «processo». Mas pouquíssimos são os que realmente conhe cem o pensamento de Marx, na sua variada e complexa totali dade. Outra não é a opinião de Antônio Paim: «No Brasil, o estudioso do fenómeno depara-se com uma situação deveras curiosa: o marxismo jamais despertou qualquer movimento teórico de envergadura, nem antes nem depois da form ação do partido político que pretende encarná-lo. Nunca houve uma difusão sistemática dessa doutrina, não havendo sequer uma tradução portuguesa de O Capitai Observa-se, na verdade, um grande desinteresse pela teoria, entre aqueles que se dizem marxistas, a par de uma defesa intransigente das posições poli- 209
ticas trazidas à luz sob esse rótulo. A maioria dos chamados
engajados não sabe nem mesmo precisar o conteúdo de certos conceitos que emprega (10)». Fora dessas dominantes — positivismo, marxismo, neoto- mismo — existem pensadores singulares, que ou não se filiam a escolas, ou adoptam isolados posições desta ou daquela corrente. É o caso de Euríalo Canabrava (1903), que parece ter-se última mente inclinado para o empirismo lógico, depois de muita irre- quietude erudita. É o caso do exietencialismo de Vicente Fer reira da Silva (1916-1963) e, outrora, de Roland Corbisier. Miguel Reale poderia ser considerado partidário da «Filosofia do Valor», que tom a como eixo o homem e como fundamento da Ética a relação de «um eu» com «outro eu». Renato Cirell Czema, ligado a Reale, pode ser classificado como idealista. Outros seriam de difícil classificação, porque têm sido histo riadores e críticos do pensamento brasileiro. Tal é o caso de Luís Washington Vita, talvez fenomenologista, mas que, em todo caso, diz que, «em última instância, o que im porta na Filo sofia é a verdade (17)». Poderíamos também dizê-lo culturalista, posição em que, acrescentando, humanista, eu enquadraria um Djacir Meneses, sublinhanho ainda o nítido suporte hegeliano de seu inquieto pensamento, creio que próxim o de um grande desaguadouro, descoberto e definido por Santo Agostinho, logo no começo das Confissões: «fecisti nos ad te [Domine], et inquietum est cor nostrum, donee requiescat in te (l8)».
Aí está, creio, um balanço, sumário e maçudo, de nosso
pensamento filosófico, que, se por um lado, am plamente documenta e ilustra a chamada «dei da repercussão», form ulada por Alceu Amoroso Lima, demonstra, por outro, nos melhores casos, um fácil poder de assimilação da inteligência brasileira. Acompanhamos o velho mundo no bom e no mau, demons· trando assim estarmos integrados na civilização ocidental, no que ela tem de positivo e de negativo, nas suas palpitações de vida e nos seus sinais de agonia ou de esperança.