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Para Farias Brito, cabe àiFilosofia, como «actividade per­


m anente do espírito humano», regenerar o mundo pela inces­
sante procura da verdade e pela aceitação da «verdade como
regra das acções». D aí já se vê que é moral a finalidade suprema
do filosofar: «a m oral é o fim da Filosofia», «o ideal que me
im pulsionou é a ordem m oral» (A Base Física, p. 72).
H á nele um sopro heraclítico, uma angustiosa aflição com
o espectáculo do mundo, em contínuo vir-a-ser, que para nós
melancólicam ente se resolve na morte. Urge então buscar na
Filosofia solução para essa angústia: «Tudo passa, tudo se
aniquila. Pois bem: eu quero saber se do que passa e se
aniquila algum a coisa fica, que não há de passar nem aniqui­
lar-se: quero estudar essa ciência incomparável de que falava
Sócrates; quero ensinar aos que padecem como é que se pode
esperar com serenidade o desenlace da m orte; quero dirigir,
aos pequenos e humildes, palavras de conforto; quero levantar
contra os tiranos a espada da justiça; quero, em um a palavra,
m ostrar para todos que antes e acim a de tudo existe a lei m oral,
e que é somente para quem se põe fora desta mesma lei que a
vida term ina.» (A Filosofia como Actividade, ps. 21-22).
Farias distingue a filosofia pré-científica, que é a própria
actividade do espirito a elaborar o conhecimento; a ciência, que
é o conhecimento sistem atizado e especializado; e a filosofia
supercientífica, «interpretação do sentido real e racional da exis­
tência; interpretação pelas prim eiras causas e pelos prim eiros
princípios; o que, em últim a análise, se resolve num a totaliza-
ção da experiência, ou mais precisamente, num a solução do
problem a do universo; concepção que corresponde, exactam ente
e com o máximo rigor, ao que se cham a metafísica.» (A Base
Física, p. 64).
A existência universal tem, para Farias, dois aspectos: um,
objectivo, que é a realidade exterior, «o m undo da natureza e
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dos corpos», e outro subjectivo, que é a consciência, o espírito.


A realidade objectiva é contínuo vir-a-ser; a realidade subjectiva
é sentir e pensar: «coisa que não entre em nenhuma destas duas
categorias fundamentais não existe, nem pode ser conhecida».
(Mundo Interior, p. 479).
Prosseguindo em suas especulações, busca Farias, para
além dos fenómenos, a «coisa-em-si», que descobre ser o espírito.
E acaba por identificar a matéria com o espírito: «tudo isto que
se chama matéria não é senão a aparência externa, a manifes­
tação e o desenvolvimento, ou a eterna fenomenalidade do
espírito, uma como sombra que o espírito projecta no vácuo.»
(Ibid., p. 415).
Farias tem uma Teodiceia à primeira vista lúcida e segura,
pois vê em Deus espírito criador, inteligência suprema, princípio
de todas as coisas, a tudo presente, ser pleno, conhecimento
perfeito. «Negar a Deus é negar a razão no mundo.» (Filosofia
Moderna, p. 16). Com tal entusiasmo fala de Deus, que se diria
um platónico ou um aristotélico-tomista. M as é engano. Farias
Brito é panteista: «Há, pois, a luz, há a natureza e há a cons­
ciência. São os três momentos da natureza divina. A luz é
Deus em sua essência; a natureza é Deus representado; a cons­
ciência é Deus percebido.» (Ibid., p. 267).
Tem, portanto, toda a razão Leonel Franca ao capitular a
filosofia do pensador cearense como «pampsiquismo panteista».
Na ordem prática, entende Farias que «as duas manifesta­
ções fundamentais do espírito humano na m archa geral da
sociedade são a Política e a Filosofia. A Política dá em resul­
tado o Direito; a Filosofia dá em resultado a M oral.» (A Filoso­
fia conto actividade, p. 33).
A regra da moral é a verdade, ou, mais concretamente, a
convicção, porque, ao fim e ao cabo. Farias cai no relativismo
moral: «O homem tem sobre todos os outros seres este privilégio
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excepcional: que é éle próprio quem formula as leis a que deve


obedecer». (A Verdade como Regra, p. 9) Ou: «forma subjec­
tiva: procede sempre e tem todas as relações da vida de con­
form idade com o que pensas que é verdade, isto é, de conformi­
dade com as tuas convicções.» {Ibid., p. 25).
O Direito é a norm a de conduta estabelecida e coactivamente
exigida pelo poder público, já que a tendência do homem é
para o mal.
As religiões actuais, segundo Farias, estão mortas. Urge,
pois, criar outra, nova, que não será senão a própria moral
organizada. «E isto quer dizer: é a sociedade organizada pela
lei moral, é a sociedade governada pela razão». {Mundo Interior,
p. 102).
N ão sendo, pois, espiritualista ortodoxo, menos ainda cris­
tão, serviu, no entanto. Farias Brito a muitos de caminho para
o encontro do Cristianismo.

Justam ente neste ponto é a hora de falar num a corrente de


pensamento, que já tem mais de cem anos de continuidade, que
reatou, em muito melhores termos, um a tradição interrompida,
mas que nem sempre tem merecido a devida atenção dos histo­
riadores do pensamento brasileiro, — apesar das boas ou exce­
lentes coisas já produzidas.
Refiro-me ao renascimento da Filosofia Tomista, geral-
mente conhecido por neotomismo, uma vez que os seus fautores
e continuadores actualizaram, fiéis ao sistema, as indagações e
conclusões provocadas pelos problemas das modernas ciências
experimentais e matemáticas.
O movimento começou na Itália, com Liberatore (1810-1892),
que em 1850 deu à estampa um curso completo de Filosofia.
Acompanharam-no Taparelli d’Azeglio, Sanseverino, Cornoldi,
Zigliara, na Itália: Kleutgen (1811-1883), na Alemanha; De
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Broglie, D’Hulst, Domet de Vorges e Farges, na França; menos


rigoroso, Balmes, na Espanha. M as foi a encíclica Aeterrú Patris,
de Leão X III (1879), que deu o grande impulso à restauração
tomista, insistindo no verdadeiro progresso da Filosofia, que se
faz por aprofundamento e não por substituição: «Vetera novis
augere et perficere», como diz, no documento, o famoso pon­
tífice.
No Brasil, antes da encíclica, já em 1866 o paraibano José
Soriano de Sousa (1833-1895) publicava em Recife os Princípios
Sociais e Políticos de Santo Tomás de Aquino. Além de outros
trabalhos de menor tomo, deu à estampa em 1871, editado em
Paris e distribuído pela Livraria Académica de Pernambuco,
um alentado compêndio de 544 recheadas páginas — Lições de
Filosofia Elementar, Racional e Moral.
Não se lhe vá buscar originalidade; mas ninguém pode
negar que o jurista paraibano assimilou bem as aulas que rece­
beu na Universidade de Lovaina, na Bélgica, e as m uitas leituras
que fez nos melhores tratadistas e divulgadores, dando-nos um
compêndio claro, metódico e, sobretudo, bem escrito, em boa
língua. Apesar de passado um século, ainda se lê com gosto e
proveito o livro de Soriano, hoje raríssimo.
Algum tempo depois, o Visconde de Saboia, Vicente Cân­
dido Figueira de Sabóia (1835-1909), professor da Faculdade
de Medicina do Rio, publica A Vida Psíquica do Homem (Rio,
1903), em que refuta o materialismo corrente, e afirm a que só
uma concepção integral e correcta do homem pode explicar devi­
damente os fenómenos mentais, em todos os seus aspectos e
extensão.
Em 1908, pioneira, é fundada a Faculdade de Filosofia de
S. Bento, em S. Paulo. Mandou-se vir da Bélgica o doutor por
Lovaina Carlos Sentroul, que já se distinguirá por uma tese
sobre o objecto da Metafísica, segundo K ant e segundo A ristó-
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teles. Foi ela traduzida para o alemão e premiada, em 1906,


pela Kantgesellschaft.
Sentroul ensinou muitos anos no Brasil, e publicou, em
português, um Tratado de Lógica.
Interrom pidos os cursos em 1917, retom am em 1922, agora
já com outro belga, que se radicou no Brasil, Leonardo van
Acker. Este ainda vive e actúa, sendo autor do melhor trabalho
sobre Lógica escrito em nossa língua: Introdução à Filosofia.
Lógica (S. Paulo, 1932).
Em 1921 ocorre um facto, que veio a ter importantes con­
seqüências e larga repercussão: Jackson de Figueiredo, recém
convertido ao catolicismo, funda no Rio o Centro D. Vital,
destinado a ser foco de irradiação do tomismo e da doutrina
católica.
Funcionou regularmente durante mais de quarenta anos,
publicando um a revista, «A Ordem», e ministrando cursos diver­
sos, além de conferências semanais. Surgiram réplicas em
S. Paulo e em M inas, de m odo que por todo o período de sua
vida activa, directa ou indirectamente teve o Centro papel nos
estudos e nos escritos filosóficos aristotélico-tomistas.
Na direcção, a Jakson sucedeu Alceu Am oroso Lima, con­
vertido em 1928, e a este, em seus impedimentos, Gustavo
Corção.
Muitos têm sido os cultores da Filosofia neotomista, alguns
dos quais se destacaram, seja pela profundidade na assimilação
do sistema, seja pela aplicação dos princípios e dos métodos a
novos aspectos da realidade. Um recente e isento historiador
do pensamento brasileiro, Antônio Paim, reconhece e proclam a
a importância do movimento. Veja-se-lhe este tópico:
«O esplritualismo de Farias Brito conduziu à estruturação
da corrente neo-tomista, provavelmente a que abriga em seu seio
maior número de pensadores. Partidários de Jacques M aritain
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e divulgadores de sua obra ocupam a maioria das cadeiras nos


cursos de Filosofia, tanto das Universidades Católicas como das
federais. Alimentam significativo movimento editorial e, embora
pareçam divididos no plano político, formam uma corrente
filosófica única. A persistência do positivismo e a hegemonia
neotomista sobre o ensino da disciplina constituem a nota domi­
nante de nosso acanhado universo filosófico (15)».
Para lembrar alguns nomes, no passado e no presente,
mencionaríamos: Ludgero Jaspers, Castro Nery, A. B. Alves
da Silva, Alexandre Correia, Antônio Alves de Siqueira, Leonel
Franca, Saboia de Medeiros, Nélson Romero, Francisco Xavier
Roser, Pedro Cerruti, Sebastião Tauzin, Armando Cámara, Aldo
Obino, Geraldo Pinheiro Machado, Orlando Vilela, Lúcio dos
Santos, Peixoto Fortuna, João Camilo de Oliveira Torres,
Eduardo Prado de Mendonça, Ubaldo Puppi, Luís Castagnola,
José van den Besselaar, Irineu Pena, Gustavo Corção, Alfredo
Lage, Maurílio Teixeira Leite Penido.
Quero, desta lista feita ao acaso da memória e inclusiva de
vários centros nacionais (Rio, S. Paulo, Belo Horizonte, Curitiba,
Porto Alegre), destacar algumas figuras.
Leonel Franca aliou a erudição à profundidade e à pureza
da linguagem. Foi, depois do bosquejo de Sílvio Romero, o
primeiro sistematizador da história da Filosofia no Brasil, e
deixou dois trabalhos com muita contribuição pessoal — A Crise
do Mundo Moderno, em que argutamente analisa as conse­
qüências, nos nossos dias, da grande ruptura do século X VIII,
e O Problema de Deus, obra póstuma.

(ls) História das Idéias Filosóficas no Brasil, S. Paulo, 1967,


ps. 252-3.
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Antônio Alves de Siqueira é autor do melhor tratado


sobre Filosofia da Educação, baseada nos princípios de Aristó­
teles, Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino.
Ludgero Jaspers tem um bom compêndio de Filosofia e tra­
duziu toda a Summa contra Gentiles, do Doutor Angélico.
Ubaldo Puppi, do Paraná, com Itinerário para a Verdade
(1955), Prius Natura (1960) e A Intuição Intelectual e a Exis­
tência (1966) sagrou-se pensador seguro, arejado e rigoroso.
Gustavo Corção, depois que trocou a Física e a Matemática
pelas especulações filosóficas e teológicas, tem-nos dado impor­
tantes trabalhos, de que talvez se deva sublinhar As Fronteiras
da Técnica, onde situa no verdadeiro lugar a Técnica e a Polí­
tica, sobretudo a partir da distinção aristotélica entre agir e
fazer; e Dois Amores, Duas Cidades, longa, segura e percuciente
análise da civilização moderna, onde mostra a decadência do
pensamento límpido e voltado para o ser, desde o século XIV
aos nossos dias, com as sucessivamente trágicas conseqüências
que vem acarretando.
Alfredo Lage, uma das nossas melhores cabeças filosóficas,
deu-nos um excelente ensaio estético, A Revolução da Arte
Moderna (1969), em que, à luz dos princípios tomistas, analisa
as diversas experiências e realizações artísticas do Romantismo
para cá; e recentemente publicou um suculento estudo sobre
a falência do pensamento liberal, sob o título de A Recusa de
Ser (1971), que deveria ser lido por quantos pretendem chegar
às raízes da actual crise de cultura.
Maurílio Teixeira Leite Penido é um pensador universal­
mente conhecido. Formado na Europa e por muito tempo pro­
fessor na Universidade de Friburgo, na Suíça, dedicou-se prin­
cipalmente à Teologia, mas granjeou a primeira linha dos Filó­
sofos tomistas com o arcabouço filosófico de Le rôle de Vanalogie
en Théologie Dogmatique, com La méthode intuitive de M.
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Bergson e com Dieu dans le bergsonisme. Logo depois da


Guerra de 39 foi para o Brasil, onde ensinou vinte e cinco
anos, na Faculdade Nacional de Filosofía e no Seminário de
São José, no Rio.
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* *

Como já se viu pela citação de Antônio Paim, com a qual


estou de acordo, o pensamento actual brasileiro está dominado
pelo neotomismo, pela mentalidade positivista e, acrescento eu,
por um marxismo difuso, que tem suas origens mais remotas,
parece, no ensino de Leónidas Resende (1889-1950) na Facul­
dade de Direito do Rio (então integrada na Universidade do
Brasil). Leónidas transitou do positivismo ao marxismo, ou
melhor, incluiu teses marxistas num esquema e estilo de pensa­
mento comtista.
Outros depois estudaram e adoptaram sobretudo a visão
marxista da História — aliás fácil de assimilar e supostamente
aplicável a todas as culturas — com seu componente hegeliano
do «processo». Mas pouquíssimos são os que realmente conhe­
cem o pensamento de Marx, na sua variada e complexa totali­
dade.
Outra não é a opinião de Antônio Paim: «No Brasil, o
estudioso do fenómeno depara-se com uma situação deveras
curiosa: o marxismo jamais despertou qualquer movimento
teórico de envergadura, nem antes nem depois da form ação do
partido político que pretende encarná-lo. Nunca houve uma
difusão sistemática dessa doutrina, não havendo sequer uma
tradução portuguesa de O Capitai Observa-se, na verdade,
um grande desinteresse pela teoria, entre aqueles que se dizem
marxistas, a par de uma defesa intransigente das posições poli-
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ticas trazidas à luz sob esse rótulo. A maioria dos chamados


engajados não sabe nem mesmo precisar o conteúdo de certos
conceitos que emprega (10)».
Fora dessas dominantes — positivismo, marxismo, neoto-
mismo — existem pensadores singulares, que ou não se filiam a
escolas, ou adoptam isolados posições desta ou daquela corrente.
É o caso de Euríalo Canabrava (1903), que parece ter-se última­
mente inclinado para o empirismo lógico, depois de muita irre-
quietude erudita. É o caso do exietencialismo de Vicente Fer­
reira da Silva (1916-1963) e, outrora, de Roland Corbisier.
Miguel Reale poderia ser considerado partidário da «Filosofia do
Valor», que tom a como eixo o homem e como fundamento da
Ética a relação de «um eu» com «outro eu». Renato Cirell
Czema, ligado a Reale, pode ser classificado como idealista.
Outros seriam de difícil classificação, porque têm sido histo­
riadores e críticos do pensamento brasileiro. Tal é o caso de
Luís Washington Vita, talvez fenomenologista, mas que, em todo
caso, diz que, «em última instância, o que im porta na Filo­
sofia é a verdade (17)». Poderíamos também dizê-lo culturalista,
posição em que, acrescentando, humanista, eu enquadraria um
Djacir Meneses, sublinhanho ainda o nítido suporte hegeliano
de seu inquieto pensamento, creio que próxim o de um grande
desaguadouro, descoberto e definido por Santo Agostinho, logo
no começo das Confissões: «fecisti nos ad te [Domine], et
inquietum est cor nostrum, donee requiescat in te (l8)».

(10) Ibid., p. 222.


(” ) Escorço, p. 14.
(«) Conf., 1, 1.
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*
♦ *

Aí está, creio, um balanço, sumário e maçudo, de nosso


pensamento filosófico, que, se por um lado, am plamente
documenta e ilustra a chamada «dei da repercussão», form ulada
por Alceu Amoroso Lima, demonstra, por outro, nos melhores
casos, um fácil poder de assimilação da inteligência brasileira.
Acompanhamos o velho mundo no bom e no mau, demons·
trando assim estarmos integrados na civilização ocidental, no
que ela tem de positivo e de negativo, nas suas palpitações
de vida e nos seus sinais de agonia ou de esperança.

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