Você está na página 1de 124

O que é a filosofia calvinista?

J. M. Spier
Recomendo o pequeno e excelente livro de Spier como uma introdução muito
útil à filosofia calvinista ou reformacional. Há mais de cinquenta anos ele foi
minha introdução a essa tradição filosófica, e tem moldado meu pensamento
desde então.

— Al Wolters
Autor de Criação restaurada
Copyright © 1950, de J. M. Spier
Publicado originalmente em holandês sob o título
Wat Is Calvinistische Wijsbegeerte?
por J. H. Kok,
Kampen, Holanda.

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por

EDITORA MONERGISMO
SCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato
Brasília, DF, Brasil — CEP 70.760-620
www.editoramonergismo.com.br

1ª edição, 2019

Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto


Revisão: Fabrício Tavares de Moraes
Capa: Bárbara Lima Vasconcelos

PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.
Todas as citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e Atualizada (ARA) salvo
indicação em contrário.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Spier, J. M.

O que é a filosofia calvinista? / J. M. Spier, tradução Felipe Sabino de Araújo Neto — Brasília, DF:
Editora Monergismo, 2019.

Título original: Wat Is Calvinistische Wijsbegeerte?

978-85-69980-96-4

1. Filosofia reformacional 2. Filosofia 3. Teologia I. Título

CDD 230
SUMÁRIO
Sumário
Apresentação à edição brasileira
Prefácio
1. Antecedente histórico
2. O que é filosofia?
3. A filosofia calvinista
4. Filosofia e revelação
5. A grande fronteira
6. Os aspectos cósmicos
7. A esfera-lei
8. A soberania da esfera
9. A ordem da lei cósmica
10. A relação das esferas-lei
11. O tempo
12. Diagrama
13. O objeto
14. As coisas
15. A estrutura das coisas
16. A estrutura das relações sociais
17. A sociedade
18. As inter-relações
19. Corpo e alma
20. A estrutura do corpo
21. Os atos humanos
22. O pecado
23. Teoria do conhecimento
24. O horizonte da experiência
Conclusão
Apêndice 1: Um breve esboço da filosofia de Herman Dooyeweerd
Apêndice 2: O meio intelectual de Herman Dooyeweerd
Bibliografia
Apresentação à edição brasileira
Johannes Marinus Spier — mais conhecido como J. M. Spier — nasceu
em 1902, sendo um pastor conhecido primariamente por ter popularizado a
filosofia de Dooyeweerd.
Este livro, traduzido para o inglês em 1953,[1] para o coreano na década
de 1960[2] e para o japonês em 1967 foi um grande responsável pela
introdução da filosofia cristã nos Estados Unidos, na Coreia, e no Japão.
O livro que agora aparece em português foi chamado de “uma
esplêndida introdução à filosofia de Dooyeweerd” por David Hugh Freeman
e William Young, tradutores do monumental A New Critique of Theoretical
Thought.[3] Já R. J. Rushdoony, em seu prefácio ao No crepúsculo do
pensamento ocidental, afirma que este livreto oferece “uma análise valiosa do
pensamento de Dooyeweerd”.[4]
Spier faleceu em 8 de junho de 1971, mas seus livros continuam sendo
utilizados para despertar o interesse de muitos para a filosofia de
Dooyeweerd. Queira Deus abençoar esta tradução.
— Felipe Sabino de Araújo Neto
Janeiro de 2019
Prefácio
Os fatores que me moveram a escrever este livro são os seguintes:
Nem todo cristão calvinista tem o desejo, oportunidade ou habilidade
de fazer um estudo completo da filosofia calvinista que tem sido revelada nos
escritos dos seus proponentes, Professor Dr. H. Dooyeweerd e Professor Dr.
D. H. Th. Vollenhoven, e como ela foi resumida em meu livro “Inleiding in
de Wijsbegeerte der Wetsidee”.[5]
Todavia, muitos em nossos círculos desejam conhecer mais sobre essa
filosofia que, nos últimos anos, tem-se tornado mais conhecida, parcialmente
por causa do estabelecimento de cátedras especiais nas universidades
públicas e escolas secundárias.
Regozijo-me neste interesse crescente nas questões filosóficas — não
somente porque o campo amplo da filosofia era explorado quase
exclusivamente, até anos recentes, por homens da ciência que não
reconheciam a Palavra de Deus como a norma suprema para a esfera
científica, mas também porque a filosofia subjaz a todo o labor nas ciências
particulares. Nosso povo calvinista sempre demonstrou interesse em teologia.
Mas se esse interesse reside na ideia que a teologia está mais intimamente
relacionada à fé e à igreja, exercendo portanto maior influência sobre a nossa
fé do que as outras ciências particulares, ele está fundamentado sobre uma
pressuposição equivocada. Teologia como ciência está no mesmo nível que
outras ciências particulares neste respeito, pois toda ciência é controlada pela
fé do investigador e está sujeita às Sagradas Escrituras como a norma
suprema, e nenhuma das ciências tem uma influência que fortaleça a fé. Mas
as questões mais profundas de toda ciência levam ao terreno da filosofia.
Portanto, uma pessoa que tenha interesse popular nas questões
científicas, mas não seja ela mesma um estudante de ciência, pode encontrar
melhor seu caminho na filosofia que é a ciência do todo, ou em outras
palavras, no pensamento científico concernente a todo o cosmo.
Por causa dessas considerações, escrevi este pequeno livro com a
esperança que ele possa cumprir seu propósito e servir ad majorem gloriam
Dei, para a maior glória daquele que deve ser louvado por todas as suas
obras.

— J. M. Spier
Junho de 1950
1. Antecedente histórico
Antes de apresentar um esboço das principais características do sistema
de filosofia calvinista, é necessário lançar luz sobre seu antecedente histórico.
Toda vida é historicamente orientada. E todo aquele que negligencia o
aspecto histórico de um assunto, não pode entendê-lo nem avaliá-lo
corretamente.
Quando falamos aqui de filosofia calvinista, queremos dizer aquele
sistema filosófico cristão que tem se tornado conhecido a nós durante os
últimos vinte anos pelo nome “Wijsbegeerte der Wetsidee”.[6] O nascimento
deste sistema é um evento de grande importância, embora não tenha recebido
a atenção geral que obviamente mereça. A não familiaridade é com certeza a
desculpa mais frequente para essa negligência.
Quais são os fatos do caso? É geralmente sabido que por muitos
séculos, mesmo antes do cristianismo adentrar no mundo, a filosofia foi
cultivada por aquelas pessoas que tinham alcançado certo nível de cultura. Na
Europa havia os antigos gregos e romanos — pense em Sócrates, Platão e
Aristóteles. Mais tarde, durante a Idade Média e nos tempos modernos, houve
especialmente as pessoas da Europa Ocidental. E durante os poucos últimos
séculos, a filosofia tem sido estudada em todo o mundo civilizado.
Durante esses séculos, pensadores de vários ramos têm concebido um
grande número de sistemas filosóficos. Esses sistemas algumas vezes
suplementam uns aos outros; às vezes ignoram uns aos outros; e outras eles
são até mesmo diametralmente opostos uns aos outros. Tais sistemas ainda
portam o nome de seus famosos proponentes — Tomás de Aquino,
Descartes, Espinoza, Kant, Hegel, Nietzsche e muitos outros.
A despeito dos muitos pontos acerca dos quais esses sistemas possam
diferir um do outro, em um aspecto eles são todos semelhantes: são todos não
cristãos. Eles não procedem da raiz da revelação divina. Eles não se sujeitam
à Palavra de Deus. Pelo contrário, todos começam a partir da soberania da
razão humana, a autossuficiência do entendimento humano, que se julga
capaz, à parte da luz da revelação, de descobrir a verdade com respeito às
coisas criadas e mesmo do próprio Criador.
Isso não significa que não foi desenvolvido nenhum sistema filosófico
que tenha usado ideias cristãs em certa extensão e as acomodado a temas não
cristãos. Aqui podemos mencionar a filosofia que foi originada e ainda é
propagada pelos católicos romanos, a saber, o tomismo, que é uma síntese
entre temas bíblicos e o tema clássico forma-matéria. Dessa combinação
surgiu a filosofia do tema natureza-graça. Mesmo em círculos calvinistas tais
sínteses foram realizadas quando homens como Kuyper, Bavinck, Woltjer e
Geesink tomaram de empréstimo ideias de Platão e Aristóteles e as uniram
com dados bíblicos a fim de formar um conceito de logos cristão. Mas a
assim chamada filosofia de síntese nunca pode satisfazer ninguém que esteja
convencido que a Palavra do Senhor deve ser a norma suprema na ciência; e
que Cristo, que é soberano sobre todas as coisas, diz também sobre o domínio
filosófico — “É meu!”.
A grande reforma de Lutero e Calvino no século XVI não foi capaz de
produzir sua própria filosofia cristã. Embora isso seja lamentável, é algo bem
compreensível. O conflito não irrompeu na esfera científica, mas na
eclesiástica, e os reformadores não tentaram estruturar suas ideias puramente
bíblicas numa filosofia cristã. Contudo, eles lançaram o fundamento de uma
teologia reformada. Mas a teologia, uma ciência particular, nunca toma o
lugar de uma filosofia cristã, que é a ciência fundamental. Essa deficiência
teve uma influência nociva sobre a herança cristã nos séculos subsequentes à
Reforma, pois vários temas da filosofia não cristã predominante (o
Iluminismo) se infiltraram nos círculos cristãos, e não se ofereceu nenhuma
resistência apropriada. Sem dúvida, houve a resistência da fé baseada sobre a
Palavra de Deus. Lembre-se apenas no pietismo. Mas quando o inimigo ataca
com armas proveniente do arsenal da ciência incrédula, o cristão deve contra-
atacar com armas oriundas do arsenal da ciência cristã. Infelizmente, essas
não existem pois os filhos da Reforma retornaram ao cultivo fatal da filosofia
da síntese.
Todavia, o que nunca tinha ocorrido, agora aconteceu. O primeiro
sistema filosófico cristão finalmente chegou, tendo brotado da raiz do
calvinismo, do tema básico da criação, queda e redenção. Isso é um dom da
graça divina e um dos primeiros frutos da Universidade Livre[7] — aquela
universidade singular que em toda a sua obra científica continuamente se
sujeita à Palavra de Deus.
Como calvinistas não podemos falhar em observar esse fato
significativo, prestando atenção à palavra do salmista: “Não te esqueças de
nem um só de seus benefícios!”.
Regozijamo-nos, portanto, que o interesse nesta filosofia esteja
crescendo e que mesmo aqueles cujo trabalho diário não esteja no campo
científico estejam fazendo a pergunta: o que é a filosofia calvinista?
2. O que é filosofia?

Antes de poder dizer o que é a filosofia calvinista, precisamos primeiro


assinalar o que é filosofia em geral.
Com respeito a essa pergunta não há apenas completa ignorância por
parte de muitos, mas também muita confusão da parte de outros. Talvez a
concepção mais comum é que a tarefa da filosofia seja explicar os mistérios
divinos e humanos e torná-los racionalmente claros. Já é hora de nos
desfazermos dessa falsa noção.
O que então é filosofia? Filosofia é um tipo específico de
conhecimento científico. Todo mundo sabe, sem dúvida, que existe uma série
inteira de ciências: matemática, ciência natural, ciência histórica, economia,
filosofia do direito, teologia e outras. Em distinção da filosofia, todas essas
ciências são chamadas ciências particulares. Com isso queremos dizer que
uma ciência particular investiga, de uma forma científica ou sistemática, não
criaturas específicas, mas um lado específico, ou aspecto das criaturas, como
é geralmente chamado. A fim de examinar cientificamente uma coisa
concreta completamente em todos os seus aspectos, uma pintura por
exemplo, todas as ciências particulares devem ser empregadas. A matemática
examina a pintura quanto ao número e tamanho. A ciência natural procura a
composição química da pintura e da tela. De que meio histórico se origina,
em qual período da cultura se encaixa, e que estilo demonstra são
investigados pela ciência histórica. A estética avalia a beleza desse produto
de arte. A ciência do direito está interessada com sua propriedade. A
economia lida com as normas pelas quais seu valor monetário é determinado.
E a teologia lida com a fé que vê até mesmo os produtos da cultura como
criaturas de Deus.
Há então uma tarefa restante para a filosofia? Certamente, a filosofia,
distinguindo-se das ciências particulares, tem a tarefa de examinar a pintura
como um todo a fim de entender seu lugar em toda a ordem da criação, sua
importância no grande mundo de Deus, e a característica única pela qual essa
coisa como um produto de arte é distinta de todas as outras coisas.
A filosofia é então a ciência que examina as totalidades; os homens e
coisas, eventos e ações humanas, relacionamentos sociais e conexões da
sociedade — e cada uma dessas em sua inteireza, em sua estrutura única, em
sua distinção e inter-relações mútuas, em sua função e significado dentro da
ordem mundial divina todo-inclusiva.
Isso leva à conclusão que a filosofia, em distinção de todas as ciências
particulares, é uma ciência fundamental. Ela não é a combinação de todas as
ciências particulares, mas é fundacional para as ciências particulares.
Nenhuma ciência particular pode existir sem filosofia. As questões básicas de
cada ciência particular são de uma natureza filosófica e não podem ser
respondidas por nenhuma ciência particular como tal. Qual é o campo de
investigação para essa ciência particular específica? Que relação esse campo
de pesquisa tem para com todos os outros campos de pesquisa? Qual é a
estrutura desse campo de pesquisa? A filosofia deve responder essas
questões.
Isso demonstra a grande necessidade de uma filosofia verdadeiramente
cristã. Tal filosofia não é simplesmente o hobby de alguém que por acaso tem
um interesse filosófico, mas é a base necessária de toda ciência cristã
particular. Enquanto não existir uma filosofia cristã, a ciência cristã particular
deve buscar respostas para suas questões fundamentais tomando de
empréstimo a partir de uma filosofia que não leva Deus e sua Palavra em
consideração. As fatalidades, científicas bem como práticas, que disso
resultam são uma legião.
É difícil exagerar o valor de uma filosofia calvinista para todo o
sistema da ciência cristã.
3. A filosofia calvinista
Agora que temos visto o que é filosofia, devemos responder a
pergunta: o que então é filosofia calvinista?
Essa questão seria supérflua se postulássemos a soberania da razão
humana como a atual filosofia não cristã o faz. Pois então nossa fé cristã não
teria nenhuma importância no domínio da ciência. A ciência então dependeria
somente da razão autossuficiente que não permite nenhuma interferência por
parte da fé.
Mas esse não é o verdadeiro estado das coisas. Os numerosos sistemas
filosóficos que têm sido desenvolvidos ao longo da história da nossa cultura,
e que frequentemente contradizem uns aos outros, são uma clara
demonstração do fato que a fé do pensador está sempre ativa por detrás do
seu pensamento científico.
O todo da vida do homem é religiosamente condicionado. Sua razão
nunca é seu ponto de partida absoluto. Tudo o que o homem faz é
determinado nas profundezas do seu coração. No coração sua relação com
Deus é determinada. Ali ele é renovado pelo Espírito Santo e enxertado em
Cristo, ou persevera em sua apostasia em relação a Deus. E como sua alma é,
assim também são todas as funções da vida que procedem dessa alma ou
coração. Isto é, o pensamento humano, sendo uma das muitas funções da
vida, também é religiosamente condicionado; e ele se mostra a serviço de
Deus ou em apostasia para com ele. E visto que todas as funções da vida do
homem estão debaixo da direção de sua função principal, a fé, o pensamento
científico portanto também está sob a direção de sua fé. O assim chamado
pensamento científico “puro” (objetivo), absolutamente não influenciado pela
fé do pensador, simplesmente não existe; é pura ficção. Significaria que o
pensamento teria que ser livre tanto do coração como da orientação da fé, o
que significaria sua abolição. Por detrás de todo fantasioso pensamento
científico “puro” se esconde a escolha religiosa do coração — uma escolha
apóstata. Qualquer que declare que o pensamento humano é autossuficiente
colocou seu coração sobre o ídolo da razão, na qual ele tem fé e sobre a qual
todas as funções de sua vida estão agora baseadas. Esta é a filosofia da
imanência, isto é, filosofia que se origina num coração que confia na criatura
deificada e que, por causa da fé nesse ídolo, afasta o pensamento científico
daquele cujo temor é o princípio da sabedoria. E quem quer que raciocine em
apostasia nos fundamentos necessariamente será descarrilado no campo das
ciências particulares, sendo engolido em falsos problemas e contradições. Ele
nunca será capaz de ajustar os elementos da verdade que descobriu no
contexto total da verdade, que é basicamente religiosa.
De tudo isso é evidente que a antítese entre fé e incredulidade, entre
aquilo que é de Cristo e aquilo que é contra ele toma expressão na ciência e
certamente não ignora o domínio da filosofia.
Visto que a fé do filósofo de fato influencia seu pensamento filosófico,
faz sentido perguntar que caráter uma filosofia calvinista deve ter.
A isso respondemos: filosofia calvinista é a filosofia que brota da raiz
do cristianismo. Não é simplesmente certo sistema da assim chamada
filosofia “neutra”, que em essência é não cristão, embora decorado ou
suplementado ou corrigido por uns poucos pensamentos cristãos. Essa
miserável filosofia-síntese tem impedido a ciência cristã por muito tempo de
desenvolver plenamente seu próprio caráter. Em nenhum domínio da vida, e
certamente não na ciência, pode o ferro e o barro serem combinados
permanentemente. Não, a filosofia verdadeiramente cristã rompe com todas
as outras filosofias que não procedem da fé no único Deus verdadeiro que se
revelou a nós em sua Palavra e à parte de cuja luz não se pode encontrar
sabedoria verdadeira na investigação de todas as suas obras.
A filosofia calvinista tem tanto um caráter positivo como negativo. Ela
é negativa porque recusa honrar qualquer ídolo. Vimos antes que em sua
proclamação da soberania do entendimento humano, a filosofia não cristã
transforma a razão num ídolo autossuficiente. A tragédia da idolatria é que
um ídolo chama outro, pois a idolatria sempre se desenvolve em politeísmo.
Dessa forma, a filosofia atual tem produzido uma série de sistemas que
podem ser caracterizados por termos como materialismo, psicologismo,
historicismo, esteticismo, fideísmo etc. Ligado a cada um desses termos está
a adoração de um ídolo específico. O materialista honra a matéria juntamente
com a razão, declarando a física como onipotente e autossuficiente. Junto ao
ídolo do pensamento puro, o psicologista honra a sensação como a força
controladora na realidade, de forma que todos os fenômenos são reduzidos a
sensações, e a vida humana está confinada a isso. E assim por diante. Depois
da ciência ter servido a determinado ídolo por um tempo, embora sem
encontrar nenhuma satisfação duradoura nele, erige-se um novo ídolo; e
então o jogo começa mais uma vez. Esse ciclo é tão fatigante que ninguém é
capaz de descrevê-lo adequadamente.
A filosofia calvinista rompe com toda essa idolatria. Por causa do seu
ponto de partida, ela não precisa de nenhum ídolo. Pela aceitação dos fatos da
criação e da lei, ela não somente se reconhece no serviço daquele que através
de Cristo Jesus criou e redimiu todas as coisas para a sua própria glória, mas
também permite que todas as coisas criadas permaneçam em seu devido lugar
e as aprecie por seu significado temporal dado por Deus.
O caráter positivo da filosofia calvinista se manifesta em sua escolha
do ponto de partida através da fé verdadeira na Palavra de Deus. Somente sua
verdade pode nos libertar do serviço do pecado — inclusive na ciência.
4. Filosofia e revelação

Filosofia calvinista é filosofia com a Bíblia. Sem dúvida alguns


questionarão: o filósofo calvinista deriva seu sistema da Bíblia? A Palavra de
Deus coloca um sistema de filosofia em nossas mãos? Não, não é isso o que
queremos dizer. Filosofia é ciência, e a Bíblia não dá o material nem o
conteúdo de qualquer ciência. Das Escrituras não podemos deduzir
matemática, física, astronomia, psicologia, literatura, economia, estética ou
ciência do direito. Nem mesmo a teologia é simplesmente retirada da Bíblia.
Nem pode a filosofia ser extraída da Bíblia. Isso não é uma degradação das
Sagradas Escrituras, mas simplesmente o reconhecimento de seu caráter
único na vida. A Bíblia é o livro da salvação, a vontade revelada de Deus
concernente ao caminho pelo qual os pecadores podem novamente se
reconciliar com ele. A Bíblia não se dirige primariamente ao nosso
entendimento, mas à nossa fé. Ela é a grande lei da fé. E visto que a fé
desempenha o papel principal em toda a nossa vida, a Bíblia é a norma
suprema para toda a existência humana. Assim, para a ciência também, a
Bíblia é a norma final. Todo pensamento científico que nega ou conflita com
a Palavra de Deus está condenado.
A filosofia calvinista, então, não busca o conteúdo do seu sistema na
Bíblia, mas em sujeição à norma da Escritura e em sua luz ela encontra seu
conteúdo — assim como qualquer outra ciência — na investigação laboriosa
das obras de Deus. O que Deus nos ensina em suas obras concernente à
natureza, estrutura, diferenciação e relação das coisas é revelação geral. Essa
revelação geral nas obras de Deus dá a razão básica pela qual o mundo ao
nosso redor e a própria existência humana com todas as suas relações na
sociedade não permanecem um enigma ou um mistério impenetrável; pois
nele podemos vislumbrar a sabedoria pela qual o Criador fez todas as coisas.
E essa é a tarefa de toda ciência, incluindo a filosofia. As ciências
particulares investigam os vários aspectos das coisas, enquanto a filosofia
estuda as coisas em sua totalidade.
Humanamente falando o curso da ciência é interminável. Isso não é
assim apenas porque a ciência deve continuamente corrigir seus inúmeros
erros, de forma que dá um passo difícil adiante apenas depois de vários
passos para trás, mas principalmente por causa das riquezas inexauríveis da
multiforme sabedoria de Deus revelada em suas obras.
Contudo, essa revelação geral pode ser entendida corretamente
somente à luz da revelação especial das Escrituras. A filosofia calvinista
deseja fazer exatamente isso. Ela é a investigação científica da totalidade
cósmica em submissão completa à Palavra de Deus.
5. A grande fronteira

A filosofia calvinista demonstra seu ponto de partida absolutamente


cristão ao manter a distinção bíblica básica entre Deus e o cosmos. Deus é o
criador todo-poderoso e sustentador de todas as coisas. O cosmos é a
totalidade da criação, absolutamente dependente do seu criador. Essa
distinção básica não é resultado de nossa própria pesquisa, mas é
biblicamente revelada.
Qual é então a grande diferença entre o Criador e suas criaturas? Ela
consiste nisto: que tudo o que Deus criou está sujeito à sua lei. Não há nada
que tenha sido feito que não esteja debaixo de sua lei. Tal lei é a expressão da
vontade de Deus para a existência, atividade e vida das criaturas. A
criaturalidade, a subjetividade, a dependência e o dever de obediência da
criatura são apresentados pela lei. E note bem, de todas as criaturas. Pois a lei
não se aplica somente ao homem, mas também aos anjos, animais, plantas e
coisas inanimadas. Leia os versículos iniciais de Eclesiastes 9 e você verá que
a existência e atividade do sol, vento e água estão de acordo com a lei.
Visto que tudo o que foi criado está sujeito à lei divina, toda criação,
por conseguinte, está sujeita ou debaixo da autoridade de Deus e obrigada a
obedecer àquele que fez todas as coisas. Como essa filosofia o expressa, toda
criação é caracterizada pelo fato de que seu modo de existência é sentido. Isso
significa que o sentido, propósito e destinação de toda criatura, grande e
pequena, nunca reside dentre de si mesma. Nada que foi criado é
autossuficiente. Fazer ídolos de coisas criadas é uma contradição interna, pois
aquilo que é divino deve ser autossuficiente. Mas tão logo independência é
atribuída a uma criatura, ela se torna sem sentido. Porque a criatura não é
autossuficiente, seu verdadeiro sentido reside no serviço àquele que é o
primeiro e o último e que deve ser louvado por tudo em todos.
Disso segue que a lei, incluindo todas as expressões da vontade divina,
é a fronteira entre Deus e o cosmos. Naturalmente isso não significa que
nosso Deus em seu ser seja limitado por algo, mas significa que Deus mesmo
não está sujeito a qualquer lei. Ele é o legislador exaltado e supremo, o único
que é verdadeiramente soberano, exercendo autoridade divina. Como o Deus
fiel e verdadeiro, ele naturalmente respeita suas leis. Mas ele mesmo está
exaltado acima de toda lei, pois a lei se aplica somente às suas criaturas.
Dessa forma, as criaturas sempre e em todo lugar vivem sob a lei de
Deus. Eles nunca podem ficar acima dela. A esfera na qual a lei se aplica é o
elemento das criaturas. Na fronteira exterior do seu ser, eles são controlados
pela lei, que não é uma cadeia pesada ou jugo inquebrantável, mas é a
pressuposição necessária de sua vida. Dela se evidencia, claro como a luz do
dia, sua criaturalidade, dependência, falta de autossuficiência e incapacidade
de auto-determinação.
Quem quer que negue essa subjetividade, isto é, o ser das criaturas
estar debaixo da lei de Deus, deificou a criatura e se fez culpado de idolatria.
O erro que é denominado subjetivismo é geralmente reconhecido. Mas
não podemos definir esse erro como uma ênfase exagerada sobre o “estar-
sujeito”, mas como uma negação deste. Pois na prática e na teoria, o
subjetivismo primeiro livra o sujeito de toda lei divina, e então exalta esse
sujeito para se tornar seu próprio legislador. Dessa forma o sujeito, uma
criatura dependente e limitada, é exaltada para se tornar Deus, que é
independente e soberano. Como resultado vemos a necessidade de começar
uma filosofia cristã com o reconhecimento da grande fronteira entre Deus, o
legislador, e suas criaturas que estão sob a sua lei, sujeitas a ele, sob sua
autoridade. A criatura nunca pode cruzar essa fronteira.
6. Os aspectos cósmicos
Até agora temos falado de lei no singular. Não temos feito isso porque
existe uma única lei, mas para resumir todas as leis divinas que o Criador,
como expressões de sua santa vontade, colocou sobre suas criaturas. Há uma
variedade de leis no cosmos, e essas muitas leis correspondem aos vários
lados ou aspectos das criaturas aos quais já nos referimos.
Agora surge a questão: quantos aspectos são manifestos nas coisas que
Deus criou? Quantos lados podem ser observados na realidade cósmica, e
quais são eles? Há quatorze. Eu os apresentarei em ordem, a partir do
primeiro que é o menos complicado até o último que é o mais complexo.
Primeiro há o aspecto do número. Se você abstrai todas as propriedades
de uma coisa incluindo sua materialidade e espacialidade, então você retém
como o atributo final e único o do número. Todas as coisas são numeráveis,
isto é, a existência delas é passível de ser expressa em número. Mas o número
nos diz pouco sobre uma coisa. Ele diz de certa coisa, por exemplo, que é
uma criatura individual, e que é divisível em certo número de unidades.
O segundo aspecto de toda criatura é sua espacialidade. Uma coisa é
mensurável em comprimento, largura e altura. Ela ocupa espaço. Ela tem uma
relação espacial portanto, estando a uma distância de outras coisas.
É necessário notar que as chamadas “coisas abstratas” tais como
beleza, amor, etc., não são realmente coisas. Elas são na verdade
propriedades ou condições de pessoas e coisas. Não podemos distinguir
quatorze aspectos em tais pessoas-coisas. Na maioria das vezes elas
pertencem simplesmente a um aspecto.
O terceiro aspecto é o físico. Cada coisa tem certo peso e em sua
existência material é composta de certos elementos quimicamente
analisáveis. Por causa dessa característica física uma coisa pode se mover ou
ser movida. Isso é movimento mecânico em distinção do movimento de
criaturas vivas, no qual todavia outro aspecto está envolvido. Movimento é
dessa forma a característica singular do aspecto físico.
A seguir vem o quarto aspecto, o biológico, que tem a ver com a vida
orgânica das criaturas. Uma planta, por exemplo, não é apenas numerável,
encontra-se no espaço e é quimicamente analisável, mas, o que é singular
aqui, é que a planta cresce, passa por um processo de metabolismo, floresce e
produz semente. Esse é o lado biológico ou orgânico que se encontra também
nos animais e no homem, mas que não aparece nas coisas inanimadas.
Um animal, embora biologicamente relacionado à planta, tem em
adição um quinto aspecto, a saber, o psicológico ou o aspecto da sensação. Se
um animal é ferido, ele experimenta dor e dá expressão à dor. Ele vive e age
de acordo com seus instintos. Ele vê, ouve e reage psicologicamente. Dessa
forma, a característica distinta do lado psicológico da existência é a sensação.
Isso não significa que tudo que seja psicológico tenha uma alma. A
psicologia não é, portanto, a ciência da alma, mas a ciência da sensação.
O homem, portanto, embora relacionado aos animais, plantas e coisas
nos aspectos anteriores, está exaltado muito acima deles. Pois ele é criado à
imagem de Deus.
Em sexto lugar, portanto, a existência humana se exibe como um
aspecto analítico. Isso implica que o homem é capaz de pensar
analiticamente, e por meio do entendimento combinar os elementos
analisados num conceito e de uma forma que conscientemente chegue a
possuir conhecimento. Mas o aspecto racional no homem está longe de ser o
mais alto e mais importante. Chamar um homem de criatura “racional” não é
errado em si mesmo, mas é obviamente incompleto, pois a racionalidade
certamente não é a caraterística distintiva do seu ser.
O sétimo aspecto é o histórico, pelo que queremos dizer que o homem
possui poder para moldar a cultura. O que isso significa? Isso pode ser mais
bem explicado por uma ilustração. Pássaros, que não possuem esse poder de
formar cultura, ainda constroem seus ninhos como no princípio. Mas aquilo
que um pássaro produz não é cultura. Ele faz o seu ninho de acordo com um
instinto inconsciente. Tal criatura não possui controle sobre a natureza
baseada numa percepção racional, e não busca dar um propósito à natureza
que esta originalmente não possua. Esse produto criatural tem, assim, uma
forma fixa. Ele não é suscetível a mudança ou aperfeiçoamento. Mas o
homem constrói suas habitações na forma de cabanas, casas, castelos ou
palácios. Ele tem poder para transformar os dados naturais de uma maneira
racional e intencional a fim de transformá-los em outra coisa e dar-lhes um
propósito maior, para que possam enriquecer a sua vida. Esse é o seu
mandamento cultural histórico. Nesta luz devemos ver nosso trabalho diário
como um chamado divino no qual devemos contribuir para moldar a cultura.
O próximo aspecto da vida humana é o assim chamada lingual, isto é, o
aspecto da significação simbólica. Isso envolve o uso de vários sinais e
símbolos aos quais atribuímos um certo significado. Dessa forma, a escrita é
formada a partir de caracteres e os idiomas a partir de símbolos fonéticos.
Inclusos nesses símbolos estão estátuas, bandeiras, insígnia, sinais, luzes de
farol, etc.
Depois disso segue o nono aspecto, nomeadamente, o social. Esse
aspecto é caracterizado por associação mútua, tratos e comércio entre
pessoas. Há uma babel de confusão com respeito à palavra “social”. Ela é
usada para muitas coisas que não têm nada a ver com o significado real da
palavra “social”. Alguns a utilizam para referir-se a qualquer coisa
relacionada ao movimento de sindicatos trabalhistas. Outros a aplicam a
questões que dizem respeito a relações de trabalho ou organizações
empresariais. Se quisermos escapar do labirinto de confusão, devemos
enfatizar consistentemente que social refere-se simplesmente àquilo que diz
respeito a associações humanas. Medidas sociais verdadeiras são aquelas que
promovem ou melhoram as relações entre pessoas tais como projetos
habitacionais, construção de estradas, medidas sanitárias, etc. Questões
salariais, por outro lado, são de natureza econômica.
Associação é algo singularmente humano. Com isso queremos dizer
que, como humanos, não estamos simplesmente próximos a outros seres
humanos no mundo. Antes, temos contato e comunhão com os outros de
diversas formas.
A seguir vem o décimo aspecto da vida, o econômico. Com isso
queremos dizer que o homem tem o poder de avaliar o valor das coisas e a
partir desse ponto de vista viver parcimoniosamente, isto é, controlar seu
dinheiro e sua propriedade cuidadosamente.
O décimo primeiro aspecto da existência humana é o estético. O
homem recebeu o dom de apreciar as coisas de acordo com sua beleza —
julgá-las de acordo com um grau maior ou menor de harmonia.
O aspecto jurídico vem a seguir. O homem tem um senso de certo e
errado. Portanto, quando se comete um erro, ou onde certos direitos são
negligenciados ou desnecessariamente negados, ele sente a compulsão de
invocar a retribuição para restaurar o direito.
O décimo terceiro aspecto a ser mencionado é o ético. Por isso
entendemos que cada pessoa tem um senso de e sente a necessidade de amar,
e experimentar esse amor em várias relações temporais — como no
casamento e na família, e com amigos e vizinhos.
E finalmente, o último ou mais alto aspecto da nossa existência é o
aspecto da fé. Pois toda pessoa tenta pela fé — quer seja uma fé falsa ou
verdadeira, fé na mentira ou na verdade — encontrar um fundamento firme
para sua vida numa certeza que sobrepuje todas as coisas terrenas.
7. A esfera-lei
Na seção anterior descrevi brevemente os diversos aspectos da
realidade cósmica dentro da qual Deus criou os homens e as coisas.
Visto que cada aspecto da vida é um aspecto criado e está, portanto,
deste lado da grande fronteira (a lei), deve ser enfatizado que para cada um
desses muitos aspectos da vida cósmica Deus instituiu tipos distintos de leis.
Em outras palavras, para cada aspecto da vida há uma lei correspondente que
é do mesmo tipo e natureza que o aspecto da realidade ao qual ela se aplica.
Dessa forma, há leis para números, e.g., as leis da divisão,
multiplicação, etc. Há também leis de espaço, e.g., a menor distância entre
dois pontos numa linha reta. Há leis para o aspecto físico tais como a lei da
gravitação, e as leis para a composição química. Há leis para o aspecto
biológico que se aplicam ao metabolismo, reprodução, etc.; leis para
sensação, pense na lei de associação; leis de pensamento, e.g., a lei de
identidade e a lei da contradição. Há leis para o aspecto linguístico, e.g., leis
gramaticais; leis para o histórico, ligando uma pessoa ao nível cultural
alcançado, levando o passado em consideração; leis para a etiqueta
apropriada, uma mulher precede o homem; leis para a economia, leis de
oferta e procura; leis para a estética, excesso de harmonia rompida; leis para
retribuição, como o código penal; leis para o amor, o dever da fidelidade no
casamento; e finalmente, leis para a fé, isto é, toda a sagrada Escritura que
devemos aceitar pela fé como revelação divina.
Ora, todas as leis que se aplicam a um aspecto específico, juntamente
com aquele lado subjetivo da própria realidade cósmica, designamos uma
esfera-lei.
Isso significa que em qualquer determinada esfera-lei podemos
diferenciar duas fases, o lado lei e o lado sujeito. Essas nunca podem ser
reduzidas ou confundidas entre si. O lado da lei está acima do lado do sujeito,
assim como Deus está acima de sua criação. A grande fronteira entre Deus e
o cosmos perpassa cada esfera-lei horizontalmente. O que é um sujeito nunca
pode se tornar lei, e o que é lei nunca pode se tornar sujeito. Isso é facilmente
demonstrado na esfera-lei histórica. Alguns sustentam que a história nunca é
normativa e jamais pode ser o padrão de ação; enquanto outros afirmam
exatamente o oposto, contendendo que a história certamente é normativa.
Qual das suas opiniões é verdadeira? O argumento segundo o qual a história é
normativa é verdadeiro no sentido de que a ação histórica, em seu lado
subjetivo, é determinado por normas históricas. Mas a história entendida
como o processo subjetivo de desdobramento cultural não é normativa. Isto é,
uma pessoa nunca pode usar os fatos históricos, que sempre são subjetivos,
como uma norma de sua conduta. Em outras palavras, o sujeito histórico
nunca se torna a lei histórica, pois cada sujeito histórico está sempre sujeito a
uma lei histórica.
Duas coisas ainda devem ser ditas concernente ao lado legal das esferas
da lei. Primeiro, devemos observar que nas primeiras cinco esferas da lei, a
aritmética, espacial, física, biológica e psicológica, a lei é dada diretamente
por Deus, e não pode ser violada. Um animal sempre age de acordo com seus
instintos psicológicos e não se desvia deles. Assim, plantas e coisas
inanimadas também estão absolutamente ligadas à lei imposta sobre elas pelo
Criador. Por outro lado, nas esferas mais altas, unicamente humanas, a lei
tem o caráter de uma norma, isto é, uma regra para a conduta apropriada que
pode ser violada por uma escolha livre. Em nosso pensamento podemos
transgredir as leis do pensamento mediante raciocínio ilógico. Cometemos
erros linguísticos. Violamos as leis sociais, e agimos sem amor, etc. Em tais
formas o pecado humano toma expressão.
Deve-se observar, além disso, que nas esferas da lei normativa, Deus
deu ao homem uma tarefa em relação à lei. Pois nessas esferas da lei
normativa Deus concedeu as leis somente em princípio. Esses princípios do
pensamento lógico, do desenvolvimento cultural, da linguagem, associação,
ciência do direito, amor, etc. devem ser positivados, i.e., organizados e
concretamente aplicados a situações e relações específicas. A lei do amor, por
exemplo, se aplica à vida familiar. Mas a aplicação específica dessa lei no
relacionamento dos pais com os filhos deve ser deduzido a partir do princípio
geral pelos pais.
8. A soberania da esfera
A palavra “soberania” implica a possessão de poder para falar, a
capacidade de comandar, estando investido de autoridade. Deus é o supremo
soberano, o comandante absoluto, o detentor exaltado de toda autoridade.
Toda soberania e autoridade na terra procede dele, é instituída por ele,
e é sempre responsável diante dele. E visto que a soberania absoluta repousa
em Deus, suas leis que são a expressão de sua vontade também são
soberanas. Essas leis exercem autoridade e estão revestidas de poder, mas
somente dentro daquela esfera à qual se aplicam. A filosofia calvinista chama
isso de soberania na sua própria esfera de lei, ou soberania de esfera.
Essa soberania na própria esfera de lei significa na verdade que os
vários aspectos cósmicos são mutuamente irredutíveis. Cada aspecto é um
fase de sentido da lei original com sua própria ideia central (núcleo de
sentido) única, com sua própria importância, não deduzida a partir de outros
aspectos. Cada um desses aspectos tem recebido suas próprias leis de Deus,
as quais não podem ser transferidas para uma ou outra esfera. As leis físicas
não podem ser aplicadas ao aspecto psicológico da sensação. Uma sensação
não pode ser medida ou pesada. Nem pode o dado histórico ser explicado
como reações psicológicas. Ainda outro exemplo: a vida jurídica, ética ou
pística (da fé) dos homens não pode ser reduzida ao fenômeno histórico. A
realidade se opõe a essa redução de uma classe de coisas, caracterizada por
um aspecto específico do qual ela deriva seu significado, a uma classe
diferentemente qualificada de coisas. Quem quer que reduza a fé à razão mata
a fé verdadeira e permite que a religião afunde em raciocínio estéril.
As várias leis são soberanas somente naquela esfera da vida para a qual
o Criador as instituiu. Quem não leva isso em conta, mas arbitrária e
imprudentemente viola os limites das esferas da lei, enreda-se naquelas
contradições insolúveis que são chamadas antinomias. Quando uma
antinomia aparece em nosso raciocínio é um sinal que nosso pensamento
descarrilhou, que confundiu vários aspectos e que devemos portanto
retroceder e encontrar o ponto onde o descarrilamento aconteceu.
Há uma antinomia, por exemplo, no argumento irrefutável que um
automóvel nunca pode ultrapassar um carrinho de bebê em movimento. Pois
pode ser argumentado que o automóvel deve primeiro cobrir metade da
distância. Mas enquanto isso o carrinho já se adiantou mais. A fim de cobrir
essa distância novamente, o automóvel deve primeiro percorrer metade dela.
E assim interminavelmente. Aqui o aspecto físico do movimento é
confundido com o aspecto espacial.[8]
Em distinção das antinomias reais, contudo, devemos observar que há
coisas que excedem completamente nosso entendimento, de forma que nunca
podemos torná-las logicamente penetráveis, por exemplo, os mistérios da
revelação divina.
9. A ordem da lei cósmica
Apresentamos acima um resumo das quatorze esferas de lei.
Devemos agora fazer duas perguntas sobre esse assunto. A primeira é
essa: como a filosofia chegou a essas quatorze esferas? Ela sabe com certeza
que não haverá mais e que não pode haver menos?
Pode ser mantido com certeza que não haverá mais. É possível que
uma análise científica adicional mostre que uma área da vida que até agora
tem sido subsumida a um dos aspectos reconhecidos seja um aspecto único
da realidade com sua própria ideia central irredutível (núcleo de sentido).
Chegaríamos a essa conclusão se, em nossa investigação dessa área,
caíssemos continuamente em antinomias, o sinal de estarmos no trajeto
errado. Por conta disso aparentemente a filosofia calvinista é avessa a
sistemas fechados. Por causa de nosso discernimento humano limitado e a
possibilidade de erro, o sistema sempre deve reter um caráter aberto.
Mas o número de esferas da lei será, no mínimo, não menor que esses
quatorze. A análise filosófica das várias áreas da realidade tem mostrado que
essas esferas da lei são de fato aspectos originais do cosmos que não podem
ser reduzidos a cada um dos demais. Eles têm suas próprias ideias centrais
que não podem ser subordinadas a outro aspecto da realidade.
A segunda questão agora diz respeito à ordem ou sucessão dessas
esferas da lei. Essa ordem é constante ou muda em várias criaturas? A isso
devemos responder que essa ordem das esferas da lei, em resumo, essa ordem
da lei, é deveras constante. Trata-se de uma ordenança da criação. Nela é
revelada a sabedoria daquele que instituiu decretos fixos para suas criaturas e
não deixou a existência delas à arbitrariedade.
Se esse é o fato da questão, surge então a pergunta: como podemos
encontrar essa ordem da lei, que nos garante, por exemplo, que o psicológico
sempre segue o biológico, que o histórico vem após o analítico, e vice-versa?
A investigação filosófica descobre essa ordem da lei pela regra da
complexidade crescente. Isto é, os aspectos menos complexos devem
preceder e serem fundacionais para os mais complexos. Cada aspecto
sucessivo torna-se dessa forma complexo, pois pode existir somente sobre o
fundamento do precedente. Portanto, cada aspecto precedente é sempre
pressuposto no aspecto seguinte.
O aspecto do número é, portanto, o primeiríssimo, porque ele é o
menos complicado, já que, nele, não há mais nada pressuposto. Um número
não pressupõe espaço, movimento ou vida. Podemos falar de forma
significativa sobre os números em abstração de todos os outros aspectos do
cosmos. Portanto, número é o aspecto mais geral. O oposto não é verdade.
Ninguém pode falar de espaço em abstração de número. Pois qualquer um
que fale sobre espaço refere-se a pontos e distâncias que são magnitudes que
devem ser expressas em números.
Ora, a mesma coisa pode ser demonstrada de todas as esferas da lei.
Consideremos a esfera-lei histórica. O controle da natureza pelo homem para
que molde a cultura a partir dos dados naturais reside não somente na análise
racional, mas, ademais, só pode dar-se em liberdade. Essa liberdade racional
da vontade é uma das características da nossa função analítica de
pensamento. Todos os aspectos que se seguem ao histórico pressupõem o
poder formativo humano. No aspecto linguístico do discurso, o homem forma
palavras, expressões e sentenças. Na esfera-lei estética o pensamento
econômico é pressuposto, pois o excesso torna uma coisa feia, e não bela. E
no aspecto pístico todos os outros treze aspectos são pressupostos, vida e
sentimento, conhecimento e símbolos, relacionamento social e amor.
10. A relação das esferas-lei
As várias esferas-lei são até certo ponto distintas mesmo em nossa
experiência comum do dia a dia, mas no pensamento científico rigoroso elas
são ainda mais nitidamente diferenciadas. Essas várias esferas-lei não estão
misturadas de forma caótica como árvores caídas, mas, por meio de
interconexão e inter-relações, elas formam um todo arquitetural, cujo
construtor e artista é Deus.
Isso já ficou evidente acima quando, no tocante à ordem da lei
cósmica, vimos que cada aspecto pressupõe todos os aspectos precedentes e
não pode existir sem esse fundamento. Mas agora isso deve ser considerado
em maior detalhe.
Podemos expressar tal ideia dessa forma: cada esfera-lei é em sua
própria construção interna um reflexo de toda a ordem cósmica. Em outras
palavras, todos os aspectos da vida são de uma forma ou de outra
representados em cada um dos aspetos. Num certo sentido cada esfera-lei é
um espelho do mundo inteiro, mas cada espelho é único. Dessa forma, há
uma profunda significância em falar do mundo de número, o mundo de
sentimento ou o mundo de fé. Podemos chamar isso de universalidade de
cada esfera.
Algumas ilustrações esclarecerão esse ponto. Ora, existe uma diferença
entre pensamento e entendimento. Pensamento refere-se somente ao ato de
diferenciação lógica. Mas entendimento é mais amplo. Significa o controle de
algo pelo pensamento, tê-lo intelectualmente em nosso poder. Entendimento
significa controle lógico. Tal atividade é certamente racional e caracterizada
pelo analítico. Mas nela há também uma antecipação do histórico — o poder
do controle. Em outras palavras, o aspecto histórico parece estar representado
dentro do analítico. Isto se dá não somente com o histórico, mas com os
outros aspectos também. O pensamento econômico ou frugal, que não faz
desvios no raciocínio, é uma antecipação do aspecto econômico, que está
dessa forma presente no analítico. A certeza lógica é uma antecipação do
aspecto da fé cuja ideia central é a certeza.
Ainda outro exemplo pode nos ajudar. Quem quer que fale sobre a
alegria da fé, refere-se àquela fase em sua vida de fé que se relaciona ao
sentimento, e esse aspecto refere-se ao psicológico. É diferente do sentimento
estético. Aqui estamos na esfera psicológica e encontramos um aspecto que
aponta para o estético.
A conclusão a partir de tudo isso é que para cada ideia central há treze
pontos ou momentos que são representações dos outros aspectos precedentes
e sucessores dentro dessa esfera de lei. Dessa forma, nenhuma esfera de lei é
idêntica a outra. Contudo, embora a soma da ideia central e dos vários pontos
seja sempre quatorze, o arranjo é sempre diferente. O que é a ideia central
numa esfera de lei é em todos os outros um ponto dependente, caracterizado
pela ideia central dessa esfera de lei. Na soma total de todos os pontos ou
momentos dentro de uma esfera de lei, pode-se distinguir dois grupos. O
primeiro grupo contém aqueles momentos que apontam para os aspectos
anteriores. Esses são portanto chamados retrocipações ou analogias. O
segundo grupo contém aqueles momentos que apontam para os aspectos
sucessores. Eles são chamados antecipações. Dessa forma, no conceito
“entendimento”, há uma antecipação do histórico, enquanto na alegria da fé
há uma analogia do psicológico.
É óbvio que o número de antecipações e analogias em cada esfera
varia, embora a soma seja sempre treze.[9] Há uma esfera de lei, a aritmética,
que não tem nenhuma analogia; todos os momentos aqui são antecipações.
Há também uma esfera de lei, aquela da fé, que não tem nenhuma
antecipação, aqui todos os momentos são analogias. Chamamos essas duas de
esferas fronteiriças.
Por causa dessa relação multilateral de analogias e antecipações entre
as esferas de lei mútuas, cada aspecto em sua própria esfera é um espelho do
mundo todo. E aí reside a possibilidade para aqueles erros e falsas teorias nos
quais uma certa esfera de lei é absolutizada e sobre a base disso todo o
cosmos é interpretado. Dessa forma, o psicologismo, a absolutização da
função psicológica, reduz tudo à sensação. Isso pode ser feito porque todas as
esferas de lei não psicológicas têm uma analogia ou uma antecipação no
psicológico.
Da mesma forma, o materialismo constrói uma cosmovisão ao reduzir
tudo ao físico. A filosofia vitalista absolutiza a função biológica e o
historicismo a função histórica, etc. Em contrapartida, a filosofia cristã
permite que cada aspecto permaneça em seu lugar, reconhece o caráter
individual de cada esfera, descobre a ordem, reconhece as relações e por
causa de tudo isso exalta a sabedoria multiforme daquele que faz todas as
coisas esplendidamente bem.
11. O tempo
Se alguém seguiu cuidadosamente essa enumeração dos vários
aspectos com suas leis, deve ter percebido a ausência do elemento do tempo.
Na verdade, o tempo não é um aspecto específico da realidade, e portanto não
pertence à lista das esferas de lei. Na atual filosofia não cristã, tempo e
espaço são geralmente mencionados no mesmo fôlego como sendo
magnitudes similares.
Caso não se queira reduzir tempo e espaço às formas de intuição, como
Kant o fez, de maneira que deixem de ser aspectos da realidade cósmica, mas
sejam, antes, reduzidos a dois aspectos de nossa visão do cosmos; e caso não
se queira reduzi-los a formas do pensamento que estão inerentemente em
nosso pensamento acerca do cosmos, de modo que, por meio de nossa
atividade analítica, imprimimos as formas do tempo e espaço sobre ele (o
cosmo); segue-se, pois, que a única outra conclusão a partir dessa
coordenação de tempo e espaço é que o tempo, como o espaço, é apenas certo
aspecto da vida.
Mas isso então levaria à conclusão lógica que, como existem muitas
coisas na realidade que são supra-espaciais, pelo que queremos dizer que elas
são mais complicadas que o espaço embora sejam baseadas nele, então
também haveria muitas coisas que seriam de natureza supra-temporal e não
seriam caracterizadas pelo tempo. E é exatamente isso que a filosofia
calvinista, com base na Palavra de Deus, nega veementemente.
Em quase toda a filosofia não cristã o tempo é subestimado — o que é
natural, pois se alguém não tem nenhuma perspectiva para o Eterno, ele não
pode entender corretamente o que é o tempo. Quando a ciência nega o Deus
verdadeiro e nega a sua Palavra, ela busca pelo eterno e divino dentro do
cosmos e assim exalta uma porção da criação acima do tempo.
As Escrituras ensinam diferentemente. Elas ensinam enfaticamente que
toda a criação é temporal, transitória, fugaz. Isso não é simplesmente um
resultado do pecado. Pois mesmo antes da queda, Deus deixou a vida eterna
como um objetivo futuro para o homem, que seria realizado somente após
uma dispensação temporal sem pecado.
Se toda a existência sobre a terra é pois temporal, o tempo não pode
simplesmente ser uma esfera de lei entre muitas coisas; mas deve, de acordo
com a ordem divina da criação, ser tempo cósmico que permanece acima e
atravessa cada aspecto. Se retratarmos as esferas de lei esquematicamente
como quatorze linhas horizontais, então o tempo é uma linha vertical que
perpassa todas as outras. Se a ideia central de cada esfera de lei é a trama,
então o tempo é a urdidura de todas as esferas de lei. Ora, se tudo de
determinada esfera de lei é caracterizado por sua ideia central e é capturado
por essa imagem especial, então todo o tempo cósmico deve individualizar-se
e expressar a si mesmo em cada esfera de lei de uma maneira única.
Isso pode ser demonstrado em cada aspecto da vida. Na primeira esfera
de lei, o tempo expressa a si mesmo como a sequência de números. Na
espacial temos a concomitância. Na física há a hora mecânica do relógio. No
biológico é o desenvolvimento orgânico. O tempo psicológico é duração de
sentimento. Qualquer um que tenha esperado alguém sozinho e ficado
impaciente sabe que o tempo em sua expressão psicológica não é idêntico à
hora do relógio. Dessa forma, o tempo atravessa toda as esferas de lei e em
cada uma delas tem uma forma única caracterizada pela ideia central desse
aspecto. Também na fé — para não mencionar outras — o tempo cósmico
tem sua expressão na ascensão e queda da vida de fé real dos filhos de Deus.
Na vida humana, a jurisdição do tempo é excedida em apenas duas
formas. Primeiro, por meio da fé, pois mediante a fé verdadeira no Deus
triúno, o homem põe-se acima do temporal e alcança o Eterno em cujo
relacionamento ele encontra o firme fundamento para sua vida e em cujas
premissas ele encontra a certeza para o seu futuro.
Em segundo lugar, o homem transcende o tempo porque em seu
coração ele tem um ponto de contato com aquelas coisas que são eternas. O
coração ou a alma é, como ensina claramente a Palavra de Deus, o ponto de
concentração mais profundo de todas as funções temporais do homem, ou a
fonte espiritual de sua existência de onde procedem todas as funções
temporais. A escolha religiosa em relação a Deus se dá no coração. Ali, no
coração — porque foi enxertado, pela graça, em Cristo, e é recriado por meio
da obra de recriação do Espírito Santo –, é que se encontra o amor por Deus,
pelo qual o crente dirige todo o seu ser a serviço do Senhor. Ou,
contrariamente, é também no coração que, ao se persistir no pecado, Deus é
rejeitado em favor de um ídolo para o qual o homem, em sua totalidade,
direciona as expressões de sua vida.
Essa alma, com tudo que nela sucede, transcende em certo sentido o
tempo. Nela, o homem se põe acima de todas as coisas transitórias. Ora, o
crente é enxertado em Cristo, tornando-se portanto um membro de seu corpo,
um templo do Espírito Santo, e é, pois, em princípio, um participante da vida
eterna — nada disso são simples questões temporais. Antes, determinam o
destino eterno do crente, assim como a escolha pecaminosa de um ídolo
dentro do coração do incrédulo o separa no tempo e na eternidade de Deus, a
fonte da vida.[10]
À luz dessa concepção calvinista de tempo, vemos que, por conta da
estrutura temporal da realidade, a totalidade da existência cósmica em seu
desdobramento dentro do horizonte dos aspectos temporais é perpassa e
atravessa incansavelmente tudo que é terreno, a fim de encontrar descanso,
por fim, naquele que transcende tempo e em cujo amor e graça eternos os
crentes têm sua segurança eterna.
12. Diagrama
O diagrama a seguir pode ajudar a esclarecer a conexão entre as esferas
de lei e a ordem temporal e ilustra como essas esferas de lei se concentram no
coração do homem que transcende o tempo.

Lei como a fronteira entre Deus e o cosmos

Vida temporal funcional

Fé (teologia)
Amor (ética)
Retribuição (ciência do direito)
Harmonia (estética)
Valores econômicos (economia)
Associação (sociologia)
Linguagem (linguística)
Moldagem da cultura (história)
Pensamento (lógica)
Sensação (psicologia)
Vida (biologia)
Movimento (física)
Espaço (geometria)
Número (matemática)

tempo cósmico

Direcionado a Deus
Coração ou alma
Direcionado a um ídolo
13. O objeto
O ponto final a ser considerado no estudo das esferas de lei é o objeto
que desempenha esse importante papel não somente nas ciências, mas
especialmente em nossa experiência diária comum.
Por objeto nos referimos a uma coisa concreta. Se olho para uma
árvore, todo o meu ser subjetivo está ativamente engajado, embora o ato de
ver seja caraterizado pela função-sujeito psicológico, a função de percepção
sensorial. Mas eu vejo a árvore. A árvore em si não vê. Ela não é
psicologicamente ativa. Ela não tem nenhuma função sensorial subjetiva.
Contudo, a árvore está envolvida no psicológico, não como sujeito, mas
como objeto. A verdade é o objeto da minha visão.
A esse exemplo podem ser acrescentados muitos outros que estão
relacionados com outras funções-sujeito dos homens e das coisas que têm
objetos dispostos ao seu redor, de todas as esferas de lei. Esse é o primeiro
ponto que devemos entender bem: um objeto sempre tem uma existência
relativa. Ele tem existência somente, pelo menos nas funções-objeto abertas,
na relação concreta com um sujeito. Se olho para uma árvore, a função-
objeto psicológica da árvore está aberta. Se não olho para a árvore, então a
árvore naturalmente retém sua função-objeto psicológica, mas trata-se agora
de uma situação fechada. Há apenas a possibilidade de ser vista, embora o
ver efetivamente não ocorra.
Apresentemos agora exemplos de outras esferas de lei. Se penso sobre
um animal, em minha atividade analítica subjetiva esse animal torna-se um
objeto analítico ou simplesmente o objeto do meu pensamento. Pois o animal,
juntamente com toda a realidade temporal, tem uma função-objeto analítica.
Quando um carpinteiro faz uma mesa a partir de tábuas, como sujeito
ele está historicamente ativo com seu poder de formação de cultura. Nessa
situação concreta as tábuas devem ser vistas numa função-objeto histórica
aberta. Se uma pessoa escreve uma carta, ela, enquanto sujeito, está
linguisticamente comprometida em formar letras, palavras e sentenças. O
papel sobre o qual ela escreve funciona nesta situação como o objeto
linguístico.
Objetos na esfera de lei social de associação são móveis, casas, meios
de transporte, etc. Objetos econômicos são aquelas coisas às quais atribuímos
um valor monetário e portanto compramos ou vendemos. Objetos estéticos
são as coisas cuja beleza avaliamos. Eles têm uma função-objeto estética.
Os objetos jurídicos são coisas relacionadas à lei. Se reivindico algo
como minha propriedade privada, trata-se de um objeto jurídico nessa
situação. Coisas que amamos são objetos éticos, enquanto os elementos dos
sacramentos, um edifício eclesiástico, e a Bíblia enquanto livro são objetos
na esfera de lei da fé. O conteúdo da Escritura, sem dúvida, não é o objeto
mas a norma da fé.
As ilustrações acima foram extraídas da vida humana em suas várias
atividades subjetivas que são frequentemente realizadas em relação a objetos.
Todavia, mesmo na existência não humana os objetos aparecem. Quando um
pássaro constrói um ninho por instinto, o ninho é um objeto psicológico para
esse pássaro. Quando uma planta é alimentada com água e outros elementos,
tais elementos de nutrição são objetos biológicos. Se uma pedra meteórica cai
sobre a terra à noite e deixa um rastro de luz nos céus, a pedra em si é um
sujeito físico. Mas o rastro de luz, ao longo do qual se moveu, é o objeto
físico. O rastro não se move, mas tem algo a ver com o movimento do
meteoro.
O que esses exemplos nos ensinam? Em primeiro lugar vimos, em
nossa descrição das esferas de lei na seção sete acima, que somos
conscientemente incompletos. Há diferenciações entre a lei e o sujeito em
cada aspecto. A isso devemos agora acrescentar que o lado sujeito de cada
esfera de lei contém não apenas o sujeito mas também o objeto que está
relacionado com o sujeito de tal forma que tanto o sujeito como o objeto
estão sob a lei nessa esfera específica de lei.
Além disso, esses exemplos nos ensinam que na experiência ingênua,
isto é, na vida comum do dia a dia que é de natureza pré-teorética, podemos,
por meio da relação sujeito-objeto, experimentar o cosmos em sua
universalidade ou de acordo com todos os seus aspectos. Em nossa função-
sujeito psicológica sempre experimentamos o mundo todo em sua função-
objeto psicológica. Em nossa função-sujeito analítica experimentamos todo o
mundo de acordo com sua função-objeto analítica, pois ao pensar formamos
um conceito de tudo que chega ao alcance da nossa função-sujeito analítica.
Dessa forma, a função-sujeito histórica do homem é direcionada à função-
objeto histórica daquilo que, na criação, pode ser transformado em cultura.
Em terceiro lugar, esse acesso à onidimensionalidade da realidade
cósmica na relação sujeito-objeto é possível não somente na totalidade da
experiência ingênua, na qual todas as funções-sujeito interconectadas do
homem estão inclusas, mas também em cada atividade individual
caracterizada por uma função-sujeito específica. Na experiência ingênua total
não olhamos para uma flor (uma ação humana qualificada pela função-sujeito
psicológica), mas também pensamos sobre ela (uma ação analiticamente
qualificada), falamos sobre ela (uma atividade linguisticamente qualificada),
nos associamos com ela, apreciamos seu valor, respeitamo-la como a
propriedade de nosso próximo, etc. Assim, experimentamos a realidade
onidimensional da flor.
Podemos também experimentar a universalidade dessa coisa numa
ação específica. Na ação psicologicamente qualificada da visão, por exemplo,
experimentamos sua onidimensionalidade porque na função-sujeito
psicológica atual objetivamos psicologicamente todos os aspectos, i.e.,
fazemos deles os objetos de nossa percepção. O que vemos quando olhamos
para uma flor? Nessa visão perceptual da flor caracterizada como o objeto
psicológico, distinguimos não somente os aspectos pré-psicológicos —
contabilidade (e.g., o número de pétalas); a espacialidade (e.g., seu tamanho);
seu aspecto físico, isto é, o fato de que a flor, em sua forma não desenvolvida,
carece de certos nutrientes necessários; seu aspecto biológico (e.g., que está a
ponto de murchar) — mas também as qualidades psicológicas e pré-
psicológicas objetivas. Vemos também sua cor (uma propriedade psicológica
objetiva); seus atributos lógicos objetivos, pelos quais podemos formar um
conceito dela; sua função histórica objetiva (e.g., que é uma flor cultivada e
não selvagem); suas qualidades estéticas objetivas; sua função econômica
objetiva (e.g., que tem um certo valor no comércio); sua função jurídica
objetiva (e.g., que é a propriedade de outro); sua função ética objetiva (e.g.,
que é estimada por ser uma flor própria para um buquê de noiva); e sua
função pística objetiva, que é uma criatura de Deus a ser respeitada como tal.
Dessa forma, vemos que na relação sujeito-objeto captamos a realidade
das coisas em sua universalidade cósmica. Isso corrobora a declaração
anterior de que cada esfera de lei é um espelho do mundo todo.
Para finalizar o raciocínio, deve-se acrescentar que a existência humana
pode ser objetivada somente na medida em que se expressa nos aspectos
temporais. Podemos observar a estatura de um ser humano, seu sexo, cor,
imagem e status no comércio, governo, família, etc. Mas o homem como tal
em sua existência total não pode e não deve ser objetivado porque em sua
alma, que é o cerne do seu ser, ele transcende os aspectos temporais desta
vida. Dessa forma, o homem não pode ser tratado como mercadoria, nem
considerado como extensão de uma máquina. Pois ele carrega dentro de si o
mistério da redenção de Deus em Cristo por ser templo do Espírito Santo.
14. As coisas
Até aqui temos falado dos vários aspectos, ou modalidades de coisas.
Mas o que dizer das coisas em si? Como devemos vê-las filosoficamente? A
filosofia é afinal a ciência do todo, certo? Devemos fazer as seguintes
observações sobre este assunto.
Em primeiro lugar, observemos coisas inanimadas como fragmentos de
uma pedra natural. Sua existência é claramente caracterizada pelos três
primeiros aspectos — número, espaço e movimento (físico). Em cada um
desses três aspectos cada coisa inanimada funciona como sujeito. Nos
aspectos sucessivos, contudo, essa coisa não tem funções de sujeito. Ela não
vive, come, pensa, fala ou crê. Devemos portanto concluir que a realidade
plena dessa coisa está contida dentro desses três aspectos? Que sua existência
está encapsulada ali? Que ela não tem relação alguma com todos os outros
aspectos?
Não, pois embora não tenha uma função de sujeito, essa coisa tem,
porém, em todas as modalidades subsequentes, uma função como objeto. A
coisa que em si mesma não tem sensação e portanto não tem nenhuma
função-sujeito psicológica, pode todavia ser percebida pelo animal ou
homem, e, dessa forma, tem uma função-objeto psicológica. Podemos usar a
coisa como o objeto de nosso poder formador de cultura e fazer um objeto
decorativo a partir dele, por exemplo, por ele ter uma função-objeto histórica.
Dessa forma, uma coisa tem uma função em todas as esferas de lei. Sua
existência nunca é prematuramente fechada em um dos aspectos. Damos a ela
um nome. Associamo-nos com ela ao tomá-la em nossas mãos. Avaliamos
seu valor monetário. Achamo-la bela ou feia. Podemos respeitá-la como
propriedade de outra pessoa. Gostamos dela ou a desprezamos. E finalmente
devemos vê-la como parte da criação de Deus. Dessa forma o todo da
realidade cósmica está resumido em cada coisa. Cada coisa está relacionada
com a totalidade da vida por inúmeros contatos e possibilidades.
Uma planta difere de uma coisa inanimada ou de uma coisa física
porque ela é caracterizada por sua função-sujeito mais sublime. Em adição a
esses três primeiros aspectos, uma planta tem também uma função-sujeito no
quarto aspecto, o aspecto biológico, e uma função-objeto nos dez outros que
o sucedem. Uma planta é portanto uma coisa biológica.
Um animal difere também. Essa criatura tem funções sujeito nas
primeiras cinco esferas de lei, dessa forma também no psicológico. Um
animal possui uma vida sensorial de sentimento pela qual ele age e reage
instantaneamente. Em todos os aspectos subsequentes, o animal tem funções-
objeto. Portanto um animal é um ser psicológico.
O homem é exaltado acima de todas as outras criaturas, não somente
porque todas as funções temporais focam-se em seu coração como a raiz de
todo o seu ser, mas também no fato de que tem uma função-sujeito em cada
uma das esferas de lei, enquanto também tem as máximas funções-objeto.
Deus certamente adornou sua mais sublime criatura com muitos dons.
15. A estrutura das coisas
Isso nos leva ao tema que na terminologia filosófica é chamado
estrutura da individualidade (a “coisidade” da coisa), isto é, a estrutura de
criaturas como unidades ou totalidades individuais. O que se quer dizer com
isso? Uma coisa é mais que um punhado de funções-sujeito. Uma coisa não é
simplesmente uma coleção de atributos, mas uma unidade ou todo.
Como devemos entender isso filosoficamente? Para responder isso
devemos primeiro distinguir entre coisas naturais e coisas culturais. Há uma
diferença essencial entre um pedaço de pedra natural e um tijolo, entre uma
pepita de ouro e um anel de casamento, e entre uma árvore e uma caixa de
madeira feita a partir dela.
Coisas naturais são aquelas que são dadas como tais na natureza, e que
não passam por nenhuma ação de formação cultural por parte do homem. Há
sem dúvida coisas naturais que devem sua existência à atividade animal, por
exemplo, um ninho de passarinho, um buraco de coelho, uma casca de ovo,
etc. Mas isso não faz deles objetos culturais, já que sua forma é constante e
não é o resultado de uma atividade de formação e controle sobre a natureza,
direcionada por um insight racional e determinada por um objetivo. Elas
permanecem coisas naturais que são de uma estrutura objetiva, isto é, sua
realidade é caracterizada pela função-objeto psicológica, que é regulada à
vida animal.
Por outro lado, tudo que deve sua existência a um poder humano livre e
formativo é uma coisa cultural.
Em primeiro lugar, com respeito às coisas naturais — não fazemos
comentário adicional sobre coisas naturais como objetos — observamos
acima que esses possuem um número igual de funções-sujeito nas três
primeiras esferas de lei. Uma rocha tem três funções-sujeito, uma na esfera de
lei matemática, uma na espacial, e uma na física. A função-sujeito mais alta
— neste caso, a física — desempenha um papel distintivo e controlador. Na
estrutura da coisa, é a função diretiva ou qualitativa. Isto é, no meio de todas
as funções-sujeito, ela serve para direcioná-las de uma maneira singular em
direção a um objetivo específico. Por meio do processo interno de
desvelamento de uma coisa, todas as suas funções recebem uma unidade
estrutural interna de acordo com a lei. As funções unem-se para formar uma
estrutura individual pela qual a coisa demostra uma unidade interna, e se
tornam, portanto, uma coisa concreta que é singularmente distinguida de
todas as outras espécies de coisas.
Essa unidade de uma coisa não é determinada por um aspecto. Ela se
encontra mais profundamente ancorada na ordem cósmica mundial que em
um dos aspectos temporais. Pois ela coere e interliga os aspectos das coisas
num todo individual e significativo.
Mas porque essa totalidade da coisa é em si mesma de uma natureza
transitória e não transcende o horizonte temporal do cosmos, concluímos que
a unidade da coisa como um todo está ancorada no próprio tempo cósmico,
que perpassa verticalmente todas as esferas de lei. Esse é o caso com as
coisas naturais.
Com as coisas culturais, a situação é um pouco diferente. É verdade,
elas também têm uma função diretiva e qualificante que dá direção ao
processo de desvelamento dentro da coisa, direcionando todas as funções em
direção a um fim específico, expressando dessa forma a estrutura supra-
funcional da coisa de uma maneira única em cada um de seus aspectos. A
diferença, contudo, entre as coisas culturais e naturais, é que, nas primeiras, a
função qualificante não é a função-sujeito superior da coisa, mas uma das
funções-objeto.
Qual? Depende. Ela é determinada pela natureza ou caráter da coisa. A
função diretiva de um artigo assim chamado semimanufaturado, que serve
como material para a manufatura de vários produtos, é a função-objeto
histórica. A destinação de uma tábua, por exemplo, reside na possibilidade
dela ser transformada num produto finalizado. A função qualificante de uma
pintura é sua função-objeto estética; a de uma casa é a sua função-objeto
social em associação; a de um produto comercial, sua função-objeto
econômica; num tribunal, a do punhal com o qual um assassinato foi
cometido, sua função-objeto jurídico; a de um objeto herdado que temos em
alta conta, sua função-objeto ética; e a do edifício da igreja e do pão do
sacramento, a função-objeto de fé. Uma diferença adicional entre tais coisas
culturais e naturais é que — embora a função guia desempenhe um papel
importante no processo de desvelamento interno de ambos — na coisa
cultural há ainda uma função secundária a observar que desempenha um
papel muito especial em sua estrutura. Essa segunda função é sempre a
função-objeto histórica — o poder formador de cultura. Chamamos isso de
função fundante da coisa, pois esta coisa objetiva deve sua existência ao
poder de formação cultural de um homem que age sobre a base da
plasticidade objetiva do material que, por sua vez, se presta à produção da tal
coisa chamada cultura.
Ora, a “qualidade de coisa” desse objeto cultural consiste na unidade
indissolúvel entre suas funções qualificante e fundante. Essa estrutura da
coisa liga todas as suas funções na unidade individual supra-modal (unidade-
coisa), que também está ancorada no tempo cósmico.
16. A estrutura das relações sociais
Devemos dar atenção agora ao conceito filosófico das relações sociais.
[11]
Não podemos senão apontar as principais características. As relações
sociais constituem aquelas associações de pessoas que, sob a base de certa
estrutura de autoridade, estão unidas numa vida comunal única, tais como
casamento, família, Estado, igreja, escola ou clube. Clã e raça estão ambos
unidos no sangue e assentam-se, desse modo, sobre um fundamento
biológico. O clã é a comunhão entre pessoas consanguíneas contemporâneas;
enquanto raça representa essa consanguinidade na linha sucessiva e histórica.
Esses dois não são relacionamentos (verbanden), mas comunhões
(agrupamento), pois carecem de uma estrutura de autoridade. Ambos estão,
contudo, intimamente conectados com o relacionamento familial.
A filosofia não cristã sempre deu uma explicação dupla para a estrutura
organizacional da vida social humana. Por outro lado há a visão de
universalismo e, contra esta, a visão de individualismo. Devemos discutir
brevemente cada um desses pontos de vista que ainda estão em voga hoje.
O universalismo é a visão que sustenta que, dentre todos os
relacionamentos sociais, um é central, e, como o objetivo da vida, esse
relacionamento superior toma todos os outros como meios e partes
subservientes. Essa relação superior pode ser o Estado (socialismo estatal) ou
a igreja (tomismo).
Por outro lado, o individualismo procede da autossuficiência do
indivíduo, do homem divorciado de todas as relações da vida. Uma relação
não é nada senão uma união relativamente arbitrária de tais indivíduos
soberanos que voluntariamente abandonam parte de sua soberania em prol de
um propósito comum (humanismo liberal).
Nenhum argumento detalhado é necessário para demonstrar que um
calvinista não pode satisfazer-se com nenhuma dessas visões. Ele rejeita
inteiramente todo individualismo, já que este nega de fato a realidade das
relações; e, ao divorciar-se a personalidade humana de sua raiz religiosa, ele
o absolutiza em sua auto-determinação soberana. Mas ele também rejeita o
universalismo, pois, a despeito de seu reconhecimento da realidade das
relações sociais, ele falha em reconhecer suas diferenças, seus tipos
estruturais, como fundamentadas na ordem cósmica divina, e porque busca
explicar todas as associações humanas por meio da fórmula biologicamente
derivada do todo e suas partes. Aqui a natureza única das relações sociais é
ignorada e a relação superior é idolatrada.
A visão filosófica calvinista das relações sociais da vida humana se
resume a isso. Todo tipo de relação, família, Estado ou igreja, tem seu
próprio caráter, seu próprio princípio estrutural. Esse princípio estrutural é de
caráter supra-modal, isto é, ele não está confinado a um aspecto modal
específico; antes, abordamo-lo por meio da conexão indissolúvel entre as
funções qualificante e fundante. Esse princípio estrutural se expressa de
maneira única nos vários aspectos da relação. Ele também carrega um caráter
normativo. É necessário que se concretize (ou realize) universalmente nas
relações sociais. Cada relação, enquanto sujeito, está ela mesma sujeita ao
princípio estrutural normativo. Nenhuma relação terrena persiste
eternamente. Portanto, a individualidade de cada relação enraíza-se dentro do
horizonte do tempo cósmico.
Cada tipo de relacionamento tem uma função qualificante que, dentro
do processo de desvelamento interno, dirige todas as funções de uma forma
única em direção a um objetivo específico por meio do qual todas as funções
estão ligadas numa unidade estrutural interna. Cada relação social, em relação
íntima com sua função qualificante, tem também uma função fundante da
qual sua existência depende. Essas duas funções podem mudar de acordo
com a necessidade dos vários princípios estruturais.
Assim, a função qualificante do casamento é o amor, uma função ética,
embora o casamento em si esteja fundado no aspecto biológico do intercurso
sexual. Na família essas funções são as mesmas. A família nasce do
casamento. Ela é qualificada pelo amor e se assenta na relação sanguínea.
É diferente com respeito ao Estado. A função qualificante é a jurídica,
a da retribuição, ao passo que a função fundante deve ser buscada no
[aspecto] histórico, no poder de formação cultural da espada.
Por outro lado, a função qualificante da igreja é a fé — fé na revelação
divina. Sua função fundante é o [aspecto] histórico, baseado no poder de
formação cultural da Palavra divina.
E novamente há uma diferença com respeito à escola. Suas funções
qualificantes e fundantes residem ambas no histórico. Ela está fundada no
poder formador do conhecimento, e seu objetivo é transformar, por meio do
conhecimento, os alunos em adultos capazes de participar na tarefa cultural.
Sociedades ou clubes (verenigingen) são todos fundados sobre o
aspecto histórico. Elas têm origem no processo histórico do desenvolvimento
da humanidade, e são variavelmente qualificadas de acordo com sua natureza
e propósito. Um clube para o propósito de sociabilidade é caracterizado por
uma diretiva social; um clube de negócios é economicamente qualificado,
enquanto cada organização que une pessoas da mesma fé para um propósito
especial — por exemplo, uma sociedade escolar cristã, uma associação
política cristã, uma sociedade jovem cristã, ou um sindicato cristão — tem a
fé como sua função qualificante.
Os princípios estruturais de todas essas relações agora demonstram
uma diferença dupla da estrutura de individualidade das coisas. A primeira
diferença consiste no fato que as relações sociais têm uma função-sujeito em
cada aspecto. Elas são completamente subjetivas e não tem nenhuma
estrutura objetiva. Cada relação consiste de seres humanos, e os seres
humanos são sujeitos em todas as esferas de lei. Assim também os
relacionamentos.
Embora as próprias relações sociais não tenham funções-objeto, isso
não significa que não estejam interconectadas com o “mundo externo” por
meio da relação sujeito-objeto. Por exemplo, se uma família vive numa casa,
a função-sujeito social das relações familiar está entremeada com a função-
objeto social da casa. O território de um Estado tem uma relação objeto
espacial para com a função-sujeito espacial do Estado.
A partir de sua estrutura subjetiva, segue-se que a relação social deve
continuamente cumprir uma tarefa normativa. Os laços familiares entre os
membros devem ser mantidos. Ao manter uma consciência na igreja, os
membros da igreja devem manter a existência da igreja, e se conduzirem
como membros eclesiásticos fiéis. Se essa tarefa é descumprida, então as
relações sociais se degeneram e por fim se rompem mediante dissolução.
A segunda diferença entre a estrutura das relações e aquela da coisas
concretas é uma natureza diferente. Vimos que a unidade específica das
coisas concretas estava sob controle de sua estrutura de lei conforme está
enraizada no horizonte do tempo cósmico. Isso é verdade também, como já
afirmado, com respeito às relações sociais. Pois cada relação é transitória no
tempo, assim como coisas concretas são fugazes. O casamento, a família, a
igreja e o Estado não são eternos.
E, todavia, as relações sociais têm uma raiz mais profunda e religiosa
porque o homem, em distinção das coisas, tem uma fonte religiosa de vida.
Cada relação é uma expressão temporal de, e é finalmente determinada pela
comunhão religiosa de seres humanos. Essa comunhão religiosa dos homens
é uma renovação pactual que existia em Adão originalmente, tendo sido em
seguida destruída pela queda, sendo, porém, restaurada, por fim, pela graça
em Cristo. Por causa da queda, aliás, por causa da obra divina de recriação,
uma antítese surgiu nessa comunhão pactual profundamente religiosa dos
homens. Uma parte permaneceu na apostasia de Adão, enquanto a outra parte
é graciosamente restaurada, por Cristo, à relação de amor para com Deus. Eis
aí a origem do conflito irreconciliável entre o reino das trevas e o reino de
Deus.
Essa comunhão religiosa de homens, seja em apostasia ou em
regeneração, imprime uma marca sobre todas as relações sociais. Uma
família que vive pela fé na Palavra de Deus é uma revelação temporal do
corpo de Cristo, enquanto outra família, por conta de sua incredulidade,
continua a carregar a marca da apostasia e é uma expressão temporal do reino
das trevas.
Assim se dá com todas as relações sociais. Aqui cada relação que se
sujeita pela fé a Cristo e o serve tem um destino e influência que ultrapassa
todos os fins temporais, ao passo que cada relação que é estranha a ele não
verá uma aurora; pelo contrário, mantém seus membros em trevas eternas.
Dessa forma, tudo de nossa vida, tanto pessoal como social,
pertencendo a várias relações sociais, existe sub specie aeternitatis, sob o
aspecto da eternidade.
17. A sociedade
Igreja, Estado e sociedade — esses três são frequentemente
mencionados seguida e conjuntamente, como se fossem três iguais.
Todavia, eles não são, de modo algum, iguais no mesmo plano. Pois a
igreja e o Estado são relações que carregam um caráter institucional. Isto é,
elas não devem sua existência à iniciativa humana. Elas passaram a existir
por ordenança divina, assim como o casamento e a família. A existência de
cada pessoa é em certo sentido determinada por tais relações institucionais,
independentemente de sua própria vontade. Cada uma, sem tê-lo desejado,
nasceu de certo casamento, numa determinada família, e a partir do
nascimento pertence a determinado Estado e igreja.
Mas o que é a sociedade (maatschappij)? Em todo caso, ela não é
institucional, embora se refira a associações humanas. Poderíamos chamá-la
de a maior esfera da liberdade pessoal, na qual os homens podem se associar
como iguais, e estabelecer conexões uns com os outros e se organizarem
livremente, mas tudo isso fora da esfera dos relacionamentos institucionais.
Na esfera da sociedade encontramos dois tipos principais que merecem nossa
atenção: os contatos da sociedade (maatschappelijke betrekkingen) e as
organizações da sociedade (maatschappelijke verbanden).
Na sociedade devemos distinguir entre contatos pessoais entre homens
como iguais e os contatos entre vários relacionamentos sociais
(samenlevingsverbanden), cada um soberano em sua própria esfera. Aos
contatos societários pessoais pertencem aqueles do comprador para com o
vendedor; de um homem para com seu vizinho, conhecido ou colega; do
médico para com seu paciente; de alguém caminhando junto a uma pessoa
com quem se encontrou.
Mesmo esses contratos societários livres têm seus próprios princípios
estruturais, que são determinados pela conexão indissolúvel entre as funções
qualificadoras e fundacionais e que são expressos de uma maneira única em
cada um dos aspectos. Todas essas relações descansam sobre um fundamento
histórico, pois se originam no poder humano para formar cultura. Eles
passam a se desenvolver na história somente em certo nível de cultura. Tais
relações societárias livres não existiam ainda em povos primitivos. A função
diretiva de um contato societário livre varia de acordo com sua natureza. A
relação do comprador para com o vendedor é economicamente qualificada;
aquela de um homem para com seu vizinho é socialmente qualificada; aquela
entre dois colegas é caracterizada historicamente como de dois homens que
se entregam à mesma tarefa cultural.
Em todas essas formas individualistas de contatos sociais, os
indivíduos não estão unidos permanentemente, mas retém sua liberdade
pessoal um para com o outro. Eles têm apenas contato incidental um com o
outro, um contato que não se assenta sobre a base de uma organização. Esse
contato sempre consiste da relação sujeito-sujeito.
Há também contatos societários livres entre vários relacionamentos
sociais, tais como aquele entre duas ou mais famílias, entre Estado e igreja ou
entre vários negócios. A natureza de tais contatos podem variar. Quando uma
grande amizade existe entre duas famílias, seus contatos de sociedade mútua
são determinados pelo aspecto ético de amor. Mas se essas famílias se
associam simplesmente como vizinhos, então esses contatos são
caracterizados pelo aspecto social. E quando há contato entre vários negócios,
esse contato não precisa per se conter um caráter econômico, pois ele pode
simplesmente ser socialmente qualificado.
É possível também que os contatos societários entre esses
relacionamentos sociais tenham uma forma organizada permanentemente, por
exemplo, quando várias escolas se organizam numa união escolar. Então os
contatos societários livres transformam-se num relacionamento societário.
Por essas organizações societárias entendemos aqueles
relacionamentos que são caracterizados por uma estrutura de autoridade e que
vieram à existência pela união livre de indivíduos ou relacionamentos em
busca de um objetivo comum. Esse objetivo determina a natureza da
organização que há de ser formada. Aqui estão todos os tipos de negócios e
sociedades (verenigingen), que são sempre historicamente fundamentadas e
são variavelmente qualificadas como vimos acima.
O que é verdade dos relacionamentos sociais (família, igreja, Estado),
aplica-se também a esses contatos societários (comprador e vendedor) e
organizações societárias (união escolar). Seus princípios estruturais são
normativos e supramodais; eles se expressam singularmente em cada aspecto;
sua existência deve ser continuamente realizada de acordo com a norma do
princípio estrutural; sua individualidade subjetiva está enraizada no tempo
cósmico, por meio do qual sua identidade é determinada; eles têm uma raiz
religiosa que ou está divorciada da Palavra de Deus e de seu culto, ou então é
renovada para que busquem servir aquele que é exaltado como Rei do
mundo.
18. As inter-relações
A criação de Deus é uma unidade. Essa unidade pressupõe a existência
de muitas criaturas individuais que estão em contato umas com as outras de
várias formas e estão unidas em várias relações.
A filosofia deve dar conta dessa unidade cósmica que está
fundamentada na vontade do Criador. Mas, visto que a reflexão filosófica
nunca pode ir além do horizonte temporal, a unidade religiosa mais profunda
da criação se encontra além do seu alcance.
Essa unidade básica é a relação pactual entre Deus e humanidade —
primeiro em Adão e mais tarde em Cristo — em que o cosmos não-humano
foi incluído como o campo mais amplo onde o homem, em seu tríplice ofício
como sacerdote, profeta e rei, deveria executar o mandato dado por Deus para
dominar o mundo.
Já observamos algumas relações temporais entre as criaturas. Temos
visto como o tempo cósmico interliga e coere os vários aspectos.
Assinalamos também as conexões mútuas entre as esferas de lei na
antecipação e na analogia, as relações entre sujeito e objeto, e também as
relações entre sujeitos humanos tanto nos relacionamentos sociais como em
seus contatos na sociedade.
Contudo, devemos investigar ainda um tipo específico de relação entre
estruturas individuais que é chamada interrelação ou encapse. O que se
pretende dizer com isso? Interrelação significa uma conexão de estruturas em
que estas retêm sua própria esfera de soberania. A interrelação, portanto, não
denota a relação de uma parte para com o todo (por exemplo, de um
fragmento de pedra para com a rocha da qual se desprendeu); ou de um
negócio para com toda a indústria; ou de uma província para com o reino.
Pois na relação de uma parte para com o todo, a parte tem a mesma
qualificação que o todo ao qual ela pertence.
Mas onde a interrelação está presente, a independência única e
intrínseca das estruturas que o compõe é inteiramente mantida. Encontramos
tais interrelações entre várias coisas concretas, também entre relacionamentos
sociais e coisas concretas; e finalmente há também interrelação entre
estruturas mútuas de vida comunitária.
Citemos primeiramente alguns exemplos de interrelação entre coisas
concretas. Numa pintura a arte é trabalhada no material a partir do qual é feita
— lona, tinta e tela. O material é de uma estrutura sujeito-física, enquanto a
pintura é de uma estrutura objeto-estética. Porque a obra de arte está
fundamentada no material físico e não vice-versa, falamos aqui de uma
interrelação fundante unilateral. As interrelações entre plantas ou animais e
os elementos físicos que são necessários para construir os organismos são do
mesmo tipo.
Outro exemplo de interrelação é aquele entre um pássaro e seu ninho, o
caracol e sua morada, a tartaruga e seu casco. Um animal é um sujeito
psicologicamente qualificado; enquanto o ninho, o casco do caracol e da
tartaruga são objetos psicológicos. Aqui temos uma interrelação encáptica
entre sujeito e objeto.
A interrelação entre um relacionamento social e uma coisa concreta é
vista na conexão entre um negócio diário e as vacas que são parte dele, ou a
relação de uma congregação para com seu edifício, ou de uma família para
com a casa na qual vivem. Esse tipo de interconexão é a relação sujeito-
objeto novamente.
Na categoria final — interconexão entre as estruturas mútuas de vida
comunitária — nosso primeiro exemplo é a conexão entre os relacionamentos
sociais e os contatos societários. Aqui há reciprocidade ou uma assim
chamada encapse correlativa. Isto é, os relacionamentos sociais e os contatos
societários existem somente em reciprocidade um com o outro. A existência
humana nunca pode ser completamente absorvida nos relacionamentos
sociais (igreja e Estado, por exemplo). Ela precisa da suplementação da
atividade pessoal livre ao estabelecer comunicação com outros. Por outro
lado, contudo, a liberdade do homem na sociedade deve ser limitada por sua
atividade nos relacionamentos sociais.
Outro exemplo é a interconexão entre os contatos e as organizações da
sociedade. Aqui temos uma interrelação fundante unilateral, pois as
organizações são possíveis somente sob a base dos contatos na sociedade.
Um terceiro exemplo é a interrelação de um Estado e um negócio que o
governo tomou a seu encargo (e.g., o sistema postal). Embora o Estado seja o
empreendedor, todavia, o negócio retém suas características econômicas. Isso
é um tipo de interrelação correlativa.
Um exemplo final é a relação entre o Estado e todas as estruturas de
vida corporativa encontradas dentro de seu território. Nesse caso falamos de
uma interrelação territorial. Aqui o caráter singular de cada estrutura da vida
corporativa é retido, enquanto o Estado tem o dever de zelar para que os
interesses de um relacionamento não sejam danosos ao interesse geral.
19. Corpo e alma
Um capítulo importante na filosofia é a antropologia, o estudo da
estrutura do ser do homem. A questão da relação do corpo e alma dentro da
unidade do nosso ser exige nossa atenção, de modo primordial. Não há
podemos encontrar nenhuma verdade sobre esse tema à parte da luz das
Sagradas Escrituras. Afora a Palavra de Deus, todo tipo de erro vem à tona,
conduzindo a dificuldades insolúveis.
O que a Bíblia diz sobre o ser do homem? Ela nos diz que nossa
existência consiste do aspecto “dois-em-um” da alma e corpo. As Escritura
Sagradas frequentemente designam a alma de coração. Trata-se do ponto de
concentração religioso mais profundo de todas as nossas funções temporais,
que, unificadamente, formam o corpo temporal.
É impossível uma ciência ou filosofia da alma. O conhecimento
científico da alma não existe. Pois toda ciência é limitada ao modo temporal
do ser da criatura. O que reside além da ordem temporal cósmica dos
aspectos está fora da esfera da reflexão científica. O que frequentemente tem
sido chamado “ciência da alma” é em geral reflexão a respeito da estrutura
das funções superiores do corpo. Seja qual for a verdade que possamos obter
concernente à alma do homem, ela nos é dada na Palavra de Deus: tudo o que
ultrapassa isso é especulação e fruto de fantasia orgulhosa. Qualquer conflito
com a informação presente na Bíblia é falsidade.
Na alma toda a nossa existência temporal está concentrada num ponto.
Nela o homem experimenta sua comunhão religiosa mais profunda na
unidade da raça humana. Também na alma está a raiz criatural da antítese
entre a parte da humanidade que continua na apostasia de Adão e a outra
parte que é renovada como o corpo de Cristo, o Salvador, enchido com o
Espírito, e unido ao Pai. Aí no coração humano faz-se as escolhas em relação
a Deus: uma escolha contra o Senhor em favor de um ídolo, ou então a
escolha amorosa de servi-lo de todo ser, guardando a aliança e cumprindo o
ofício tríplice do homem.
A vida da alma do homem se desdobra nas quatorze facetas das
funções-sujeito temporais que são refratadas pelo prisma do tempo cósmico.
Esse tessitura completa de funções é o corpo humano, que é uma totalidade
complexa.
Esses fundamentais da antropologia, que são basicamente bíblicos, são
absolutamente irreconciliáveis com as visões antropológicas da filosofia não
cristã e sua aliada, a filosofia da síntese. Essa filosofia geralmente advoga a
visão de que as três ou quatro funções humanas mais baixas estão ligadas
num composto que é chamado a substância do corpo humano, enquanto as
funções temporais remanescentes formam pois a substância complexa da
alma.
Há inúmeras objeções a serem apresentadas contra essa concepção
atual. Em primeiro lugar, não é biblicamente justificado falar de “substância”.
“Substância” na verdade significa aquilo que existe por si só, e repousa em si
mesmo — um pensamento que não pode ser harmonizado com a nossa fé no
poder todo-poderoso e onipresente de Deus pela qual ele sustenta todas as
coisas da criação. A filosofia calvinista não precisa desse conceito de
substância. Pois à parte da objeção acima, a filosofia calvinista não dá conta
da individualidade das criaturas por meio de uma filosofia da substância, na
qual a diversidade da criatura é comprimida num padrão de duas substâncias
(substância material e espiritual). A filosofia calvinista faz plena justiça à
singularidade de ambas as coisas e aos relacionamentos em sua concepção da
individualidade estrutural.
Em segundo lugar é feito injustiça à universalidade do corpo humano
ao reduzi-lo a um complexo das funções mais baixas, enquanto o restante das
funções do corpo é elevado à alma. Frequentemente isso significa que a
função do pensamento lógico é declarada como sendo absoluta e como a
função principal da alma, de forma que todas as outras “expressões da alma”
são expressões dependentes do pensamento.
Em terceiro lugar é difícil saber o que deve ser feito com a função
biológica. Alguns a incluem no complexo “corpo” substancial, ao passo que
outros a incluem no complexo “alma” substancial. Em quarto lugar a questão
da relação do corpo e da alma torna-se irrespondível.
E finalmente obstrui-se dessa forma o caminho para um entendimento
do que a Palavra de Deus revela no tocante à estrutura básica do ser do
homem, na qual o coração é o ponto de concentração religioso e supra-
temporal da vida.
20. A estrutura do corpo
Devemos adicionar algo ao que já foi dito sobre o corpo humano. Já
sabemos que o corpo não é uma substância nem o complexo das funções
humanas mais baixas. Ele é a soma de todas as nossas funções que procedem
do coração e são de natureza temporal. Mesmo a fé é uma função temporal
que procede do coração. Pois a Escritura diz “com o coração se crê para a
justiça” (Rm 10.10a).
Ora, a estrutura total do corpo humano na coerência de todas as
quatorze funções não é uma estrutura simples, mas complexa. Isso implica
que na unidade do corpo humano várias estruturas estão interrelacionadas.
Trata-se de uma interrelação unidirecional.
Quais estruturas estão conectadas na unidade do corpo humano?
1. A estrutura corporal física, na qual as três primeiras funções-sujeito estão
unidas numa estrutura individual. Essa é a estrutura dos elementos químicos
físicos que são necessários para o desenvolvimento orgânico do corpo.
2. A estrutura corporal biológica do organismo vivo que se baseia na e não
pode existir sem a estrutura física. O sistema nervoso autônomo, que não está
sob o controle da vontade humana, desempenha um papel nessa estrutura
biológica.
3. A estrutura corporal psicológica da vida sensorial do sentimento que está
fundamentada nas duas estruturas acima. Aqui o sistema nervoso animal, que
é obediente à nossa vontade, desempenha um papel importante no controle do
processo emocional.
4. O assim chamado ato-estrutura do corpo pelo qual todas as funções pós-
psicológicas são unidas e dentro das quais as três formas básicas de atos
humanos acontecem — as do conhecimento, da imaginação e da vontade.
Esse ato-estrutura reside nas três estruturas acima e é exclusivamente
humano, pois não é encontrado na vida animal. A estrutura total do corpo
humano na interrelação fundacional unidirecional das várias estruturas do
corpo é caracterizada pelo ato-estrutura. Por essa razão o corpo animal não
difere do corpo humano somente em partes, de maneira que o corpo animal
não tem nenhum ato-estrutura como o tem o corpo humano, embora em
outras partes eles sejam semelhantes. Eles diferem em todos os aspectos. A
vida emocional dos humanos e dos animais é de uma natureza completamente
diferente porque a vida emocional humana está aberta a, e é direcionada,
pelas funções pós-psicológicas, que unificadamente formam o ato-estrutura.
Visto que o corpo humano tem seu centro nas profundezas religiosas
do coração, o corpo do homem que se tornou um membro do corpo de Cristo
pela graça regeneradora pode tornar-se o templo do Espírito Santo: “Porque
fostes comprados por preço. Agora, pois, glorificai a Deus no vosso corpo”
(1Co 6.20).
21. Os atos humanos
Acima vimos que o ato-estrutura do corpo humano é único. Devemos
considerar agora a atividade que é determinada pelo ato-estrutura do corpo do
homem. Em primeiro lugar, devemos responder à pergunta: O que devemos
entender por atos humanos? Não seria correto afirmar que tudo o que o
homem faz pode ser chamado um ato. Nas atividades do homem, devemos
sempre distinguir atos de operações. Se entramos numa loja e compramos
algo, isso é uma operação. Cada operação é um feito humano que tem
resultados diretos na realidade objetiva de forma que alguma mudança
ocorre. Dessa forma, quando compramos algo, o artigo comprado muda de
dono, embora ao mesmo tempo uma quantidade razoável de dinheiro também
muda de mãos na direção oposta.
Se retivermos essa ilustração de uma compra, todas as operações
humanas são resultado de atos prévios. Por que compramos algo? Pois
desejamos esse artigo. Mas não o desejamos a menos que tenhamos
conhecimento dele em algum grau e nossa imaginação tenha sido direcionada
para ele. Em outras palavras, cada operação é preparada para e gerada pelos
atos de conhecimento, vontade e imaginação.
Por ato então entendemos aquela atividade interior do homem pela
qual, de maneira imaginada, ele se lida, em suas funções pós-psicológicas,
com a realidade,.
Olhar para algo então é um ato. Pois ver não é pós-psicológico, mas
psicologicamente qualificado. Mas os seguintes são atos: pensar sobre algo,
falar sobre ele, trabalhar por ele, amá-lo, aferir o seu valor, julgar suas
qualidades estéticas e orar por ele. Nesses atos estamos imaginativamente
trabalhando com a realidade. Isto é, estamos engajados com ela em nosso
espírito, que é direcionado para a realidade. Mas não fazemos nada com essa
realidade. Ela não passa por nenhuma influência de nossos atos.
Tal ato-vida é normativo. Ele se passou sob a influência de nossa
atividade pós-psicológica, que se exerce sob a validade de normas, nas quais
a vontade de Deus para nossa vida é expressa. Dessa forma, um ato não é
uma reação induzida pela natureza, mas uma atividade responsável que pode
ser boa ou má, que deve ser promovida ou impedida. Dessa forma o
provérbio “o pensamento é livre” é absolutamente errado.
Atos são realizados pela estrutura corporal mais alta do homem. Mas
em sua execução eles não estão limitados às funções sujeito pós-psicológicas.
Não, eles funcionam em todos os aspectos de nossa existência temporal. Um
ato de fé, por exemplo, tem tanto analogias psicológicas como pré-
psicológicas — pense na alegria da fé ou no fato de que a fé é possível
somente sob o fundamento de nossa vida biológica.
Qual é agora a fonte mais profunda do ato-vida do homem? Essa é a
alma, o centro religioso de existência. O coração é o estímulo de nossos atos.
Dele nossas orações, desejos e pensamentos se acumulam e sob a direção do
ato-estrutura do corpo se expressam em todos os aspectos de nossa existência
temporal.
De tudo isso segue que um ato não tem nenhuma qualificação uniforme
em uma das funções. Pois nosso espírito é completamente livre em seu ato-
vida. Um ato de conhecer nem sempre precisa ser analiticamente qualificado.
Pelo contrário, o conhecimento pode ser qualificado pela fé, vale dizer, o
conhecimento espiritual; o conhecimento comercial é econômico; o
conhecimento dos homens é socialmente qualificado. As características que
um ato possui são determinadas pela estrutura da comunidade humana dentro
da qual tal ato ocorre. Quando uma criança deseja agradecer aos seus pais
com um presente, então esse ato da vontade é de natureza ética. Mas se essa
mesma criança deseja fazer algo para Deus, então esse ato de vontade é
qualificado pela fé.
Finalmente deve ser observado que os três tipos de atos — conhecer,
desejar e imaginar — nunca são completamente isolados, mas sempre
amalgamados entre si.
Dessa forma Deus equipou o homem, a mais sublime criatura, com
inumeráveis dons e poderes. Quando, com um novo coração, o homem usa
esses dons para servir ao seu Criador, aquele que se tornou novamente filho
de Deus por meio de Cristo demonstra algo das riquezas da imagem de Deus
que somente chegará ao seu completo desvelamento na inteireza da nova
humanidade, quando cada um, dos maior ao menor, conhecerá a Deus.
22. O pecado
A filosofia calvinista será incompleta caso não dê conta do terrível fato
do pecado que penetrou em todo o mundo e em toda a humanidade.
Já discutimos os atos e operações do homem. Ambos os tipos de
atividade são normativos, isto é, neles o homem pode se conformar à lei ou
transgredi-la. Se do seu coração ele se conforma à lei, então é renovado de
acordo com a imagem de Cristo, o que o Catecismo de Heidelberg chama a
ressurreição do novo homem. Mas se continuamente transgride a lei, ele
corrompe ainda mais a imagem de Deus na qual fora criado.
O que dizer sobre o pecado? Em primeiro lugar devemos distinguir
dois elementos no pecado. O pecado é de fato sempre a transgressão da lei de
Deus, mas isso pode ocorrer em dois níveis. Primeiro há pecado no nível mais
profundo. Nesse nível o pecador pode transgredir a lei religiosa fundamental
de todo o seu ser, que demanda que ele ame e sirva ao Senhor com todo o seu
coração. Essa é a apostasia radical, a defecção da nossa alma, nosso ser mais
íntimo, e portanto uma deserção de toda a pessoa em relação ao Deus vivo.
Não importa o que uma pessoa faça, não importa quão boas suas ações
possam parecer exteriormente, ela não pode agradar a Deus. Pois no coração
há idolatria, uma busca e culto a ídolos.
Por causa da relação pactual com Adão, a vida de todo mundo é agora
por natureza direcionada para a esquerda.[12] Somente por meio da graça
renovadora de Deus em Cristo Jesus essa defecção pode ser curada e em
princípio restaurada. Então aprendemos novamente a amar o Senhor com
todo o nosso coração e em princípio a nova vida inteira é direcionada para a
direita novamente. Então buscamos honrar a Deus e regozijar em suas leis.
Mas há outro tipo de pecado, nomeadamente, a transgressão da lei
temporal, modal. Tal pecado é uma ação anti-normativa nas esferas de lei
pós-psicológicas. No lugar da fé na Palavra de Deus há incredulidade. Ódio
substitui o amor. Erramos. Estimamos o que é feio e produzimos o que não é
harmônico. Cedemos à extravagância. Quebramos as regras de etiqueta.
Pecamos contra leis linguísticas. Agimos a-historicamente por causa de um
espírito reacionário ou revolucionário. Ao pensar cometemos erros.
Há uma combinação estranha entre esses dois níveis de pecado.
Quando a apostasia religiosa é unida com a desobediência modal, então a
imagem de Deus no homem é depravada ao extremo, e a vida de uma pessoa
é direcionada totalmente contra a vontade de Deus. As palavras da Escritura
vêm à mente; “Continue o injusto fazendo injustiça, continue o imundo ainda
sendo imundo...” (Ap 22.11a). Aqui a vida humana assume uma
profundidade satânica e uma tendência demoníaca. É nesse espírito que o
“homem do pecado” aparecerá um dia.
É uma sorte, contudo, que, por conta da bondade geral de Deus, uma
obediência modal ainda é possível na vida apóstata que se afastou
religiosamente dele. Nesse ponto as virtudes dos incrédulos reluzem. Aqui
encontramos a bondade civil do ímpio. Dessa forma, a vida na terra numa
sociedade apóstata é ainda suportável, e as bênçãos ainda são desfrutadas sob
o rigor de um ideal de vida humanista.
Por outro lado, na vida do regenerado cuja alma está ligada a Deus em
Cristo, há tanto a possibilidade como a realidade da desobediência modal. É
nesse ponto que nos deparamos com os pecados dos santos, à parte do fato de
que, mesmo no mais profundo do coração, eles não são perfeitos, a despeito
de neles habitarem o Espírito Santo.
O pecado penetra mesmo nas esferas da vida pré-analíticas não-
normativas. É possível para o pecador usar os dados naturais de uma forma
equivocada. Psicologicamente, por exemplo, ele pode encontrar prazer no
mal e sexualmente empregar suas funções biológicas a serviço do pecado.
De fato, o poder do pecado não está limitado à vida subjetiva dentro
das esferas de lei, mas também diz respeito ao lado-lei dos aspectos
normativos sempre que o postular de princípios não é feito em obediência à
Palavra de Deus, por exemplo, quando os pais exigem algo dos seus filhos
que não seja para a glória de Deus.
Mas um dia na nova terra, o poder da injustiça será totalmente
erradicado da vida dos filhos de Deus. Então não apenas haverá perfeição
religiosa a serviço de Deus de todo o coração, mas também obediência
completa às leis modais — pelo menos na medida em que pudermos ainda
tratar dessas coisas lá —, quando a lei em sua plenitude será novamente
escrita no coração do redimido.
23. Teoria do conhecimento
Um sistema filosófico é incompleto caso não inclua uma
epistemologia. A ciência e a filosofia são elas mesmas o fruto do pensamento
teórico, de forma que uma teoria filosófica do conhecimento é na verdade
autoconsciência filosófica.
O homem adquire conhecimento por meio dos atos intelectuais. O
processo de conhecer tem o conhecimento como resultado, e, por
conhecimento, queremos dizer a posse da verdade. Por meio do
conhecimento obtemos tamanho insight da realidade que podemos considerá-
lo como sólido e certo.
No tocante ao conhecimento em si, isto é, a atividade do homem nos
atos intelectuais, é necessário distinguir entre conhecimento pré-teórico (ou
ingênuo) e conhecimento teorético. A filosofia não cristã em geral coloca
uma barreira entre esses dois e forma uma teoria que desqualifica o
conhecimento ingênuo em muitos respeitos como falso e imperfeito,
enquanto o conhecimento teorético é idolatrado como a certeza final e mais
sublime da vida.
A filosofia cristã rejeita tudo isso e dá uma visão completamente
diferente das relações mútuas desses dois tipos de conhecimento. Ela começa
com o fato que as duas espécies de conhecimento são religiosamente
orientadas, pois têm seu ponto de partida no coração humano. Isso significa
que todo conhecimento parte de um pressuposto religioso e participa de uma
direção religiosa para Deus ou para longe dele — direção esta que é
determinada na alma. Em outras palavras, o conhecimento como tal nunca
pode ser independente. Ele não nos oferece certeza absoluta para a nossa
existência.
O “conhecimento puro”, livre de determinações religiosas,
simplesmente não existe. Trata-se de autoengano. É uma posição acrítica que
recusa penetrar nas raízes mais profundas de nossa vida-ato. Ela abriga uma
atitude preconceituosa e incrédula que idolatra o conhecimento.
Além disso ambos tipos de conhecimento concordam nisto: que eles
visam a posse da verdade em relação à realidade.
Mas eis agora a diferença. O conhecimento ingênuo é indizivelmente
mais rico que o conhecimento teórico. Seu campo é tão amplo como a própria
criação de Deus. Não importa quão longe o conhecimento teórico possa
chegar, ele nunca pode alcançar a universalidade do conhecimento ingênuo.
Por quê? Não apenas porque a aceitação das Escrituras divinas em fé capacita
o conhecimento ingênuo a cruzar a fronteira do que é criado, algo impossível
ao conhecimento teorético, mas também porque o conhecimento ingênuo se
direciona para a realidade individual plena, enquanto o conhecimento
teorético deve abstrair-se do individual e ocupar-se com a estrutura das
coisas. Conhecer pessoas individuais em suas características pessoais
singulares, por exemplo, jamais pode ser a tarefa de um empreendimento
científico.
Uma segunda diferença reside no método. O conhecimento teórico é de
natureza abstrata. O conhecimento científico se direciona a um aspecto
específico da vida em abstração a todos os demais aspectos. Por outro lado,
essa abstração é estranha ao conhecimento ingênuo. Ele vive na plena
realidade de todos os aspectos. Dessa forma, a terna união com a vida é
mantida no conhecimento ingênuo.
Outra diferença é que o ato-conhecimento teórico é sempre
analiticamente qualificado, ao passo que o ato-conhecimento ingênuo pode
assumir todas as qualificações pós-psicológicas possíveis; e, dentro dele,
temos o conhecimento histórico, como o conhecimento que um trabalhador
tem do seu ofício; o conhecimento linguístico que nos capacita a expressar-
nos em palavras; o conhecimento social que adquirimos em associação com
pessoas e coisas; o conhecimento estético, conhecimento da fé, etc.
Eles diferem também nisto: que o conhecimento ingênuo está
fortemente ligado e edificado sobre a percepção sensorial de coisas concretas,
enquanto o pensamento científico abstrai-se disso e se desenvolve livremente
sob a direção de aspectos pós-analíticos. Por causa disso o conhecimento
teórico é um conhecimento aprofundado. Finalmente, o conhecimento
ingênuo não é sistemático, enquanto a ciência continuamente busca
sistematizar e completar o seu conhecimento.
Mas essas diferenças entre os dois tipos de conhecimento não levantam
uma barreira entre eles. Antes há uma afiliação, pois o conhecimento
teorético repousa sobre o conhecimento ingênuo. Se o conhecimento ingênuo
não tivesse nenhuma informação dos aspectos diferenciados da realidade,
então o homem da ciência não poderia abstrair um aspecto a fim de investigá-
lo sistematicamente. O conhecimento ingênuo jamais pode ser substituído
pelo conhecimento científico. Todo homem da ciência prossegue em seu
conhecimento pré-teorético quando fora dos limites de seu próprio campo, e
dessa forma experimenta o íntimo relacionamento com a realidade.
Nosso conhecimento, quer ingênuo ou teórico, deve ser reestruturado
em conceitos, julgamentos e demonstrações.
24. O horizonte da experiência
A palavra experiência resume a totalidade da atividade humana em atos
e operações. Dessa forma, experiência não é simplesmente uma atividade
epistemológica, mas manifesta todos os tipos possíveis. Um cristão como
crente tem a experiência da fé. Como pai, tem a experiência do amor em suas
relações com esposa e filhos. Como cidadão, tem experiência política. Como
comprador, possui experiencia econômica. Como artesão, ele adquire
experiência histórica de formação de cultura.
Essa experiência é estruturalmente determinada pelo horizonte cósmico
dentro de cujos limites Deus criou o mundo, e dentro do qual vivemos e nos
movemos. Assim, o horizonte do cosmos tem uma estrutura de lei por um
lado. Ele fornece os limites de nossa experiência. Nenhum homem pode
ultrapassá-los.
Mas esse horizonte de experiência tem um lado subjetivo também.
Algumas vezes a experiência humana pode estar fechada para algumas
estruturas da realidade que pertencem a um outro horizonte que não aquele
que está aberto para ela naquele momento. Uma criança pequena vive com as
coisas com as quais se tornou consciente por meio da sensação. Ela não
conhece nada ainda de conceitos e distinções modais, como os sociais e
econômicos; nem experimenta a unidade temporal dos vários aspectos das
coisas; nem jamais ouviu da raiz religiosa de toda criação ou da unidade
pactual de todas as criaturas.
A maneira pela qual a realidade criada torna-se acessível à experiência
de alguém é determinada por quatro dimensões que, em sua unidade
indissolúvel, formam o horizonte cósmico.
Essas quatro dimensões são as seguintes:
1. A dimensão religiosa
Não somente nós mesmos, que somos os sujeitos de nossa experiência,
temos a raiz do nosso ser na profundidade religiosa do coração humano, pelo
que todas as “comissões e omissões” são determinadas; mas todo o cosmos e
cada coisa no cosmos é religiosamente determinado tanto em sua origem
enquanto criatura relacionada ao Criador como também em seu ser. Pois ela
está envolta pela relação pactual na qual, por causa de Cristo, Deus incluiu o
mundo, juntamente com os crentes.
2. A dimensão cósmica do tempo
Isso implica que experimentamos coisas e situações na unidade
cósmica de seus aspectos temporais. Não somente observamos a cor de uma
determinada árvore, mas também mencionamos o seu nome, falamos do seu
valor, consideramo-la bela e gostamos dela.
3. A dimensão modal
Mediante isso experimentamos a natureza única de cada criatura.
Percebemos imediatamente que uma árvore é diferente de uma cabine de
telefone. Distinguimos entre um artigo de comida e algum que é usado para
ornamentação. Temos um insight intuitivo e uma experiência da distinção
entre os aspectos modais.
4. A dimensão plástica
Aqui lidamos com a estrutura de individualidade das coisas, relações,
atos, operações e situações. Toda existência concreta tem uma plástica
constante ou estrutura moldável. Uma casa e o edifício de uma igreja, por
exemplo, são coisas tanto subjetivas como físicas. Todavia, nunca
deveríamos confundir um com o outro porque a estrutura plástica de cada um
é obviamente distinta. Um carro e uma mesa são coisas tanto objetivas como
subjetivas. Mas cada um tem uma estrutura plástica distinta que
intuitivamente experimentamos em nosso relacionamento imediato com a
realidade.
Toda experiência humana sobre essa terra está ligada a esse horizonte
com suas quatro dimensões. Quando a Palavra de Deus é rejeitada, então a
dimensão religiosa de nosso horizonte de experiência é obscurecida,
excluindo-se portanto o caminho para a verdade mais sublime concernente à
criação em relação com o Criador e Redentor. Os incrédulos constroem sua
própria dimensão religiosa apóstata de vida que é tolice e conduz ao erro e à
falsidade. Isso é punido pelo obscurecimento de nossa experiência mesmo
dentro das outras dimensões do nosso horizonte. Pois então as criaturas não
são mais vistas em seu lugar apropriado ou nas relações nas quais Deus as
colocou.
Mas se em nosso coração aceitamos a Palavra de Deus, então nossa
experiência é livre também desse obscurecimento do pecado. Assim, o
verdadeiro significado da existência nos é revelado, bem como a importância
da nossa posição e chamado no grande cosmos de Deus. Então as palavras da
Escritura tornam-se verdadeiras para nós: “na tua luz vemos a luz”.
Conclusão
O exposto acima foi um breve esboço das principais características da
filosofia calvinista. Não hesito em dizer que essa filosofia é uma das grandes
bênçãos que Deus em sua graça deu ao nosso povo cristão, nessa era de
confusão e conflito mundiais.
Neste ponto não deveríamos nos lançar numa elaboração sobre seu
valor e importância na esfera científica, tanto no debate com os aderentes de
outros sistemas filosóficos quanto no fundamento sólido para as ciências
particulares.
Mas há uma questão demanda uma resposta. Ora, essa filosofia tem
importância para a multidão de crentes cujo trabalho diário não está na esfera
da ciência? Devemos responder essa pergunta com uma resoluta afirmativa.
Mas se alguém pensa que uma filosofia totalmente cristã será um meio de
fortalecer sua fé, suas expectativas não são apenas altas demais, mas
apresenta também uma concepção equivocada da relação da filosofia com a
fé. Pois a filosofia não conduz à fé, mas procede da fé. A totalidade da vida
cristã, incluindo a ciência, é dominada pela fé. A fé é a função guia no todo
da existência humana e não pode nem deve ser excluída no estudo da ciência.
Nem pode a filosofia ser apresentada como o substituto da religião.
Isso é frequentemente feito no campo da filosofia não cristã. A religião é
então considerada responsável pela miséria acientífica da massa da
humanidade. O homem da ciência, por outro lado, encontra sua mais alta
satisfação na adoração e consolo da filosofia. A elevação da filosofia a esse
nível devocional é fruto da religião apóstata. A ciência nunca pode ser
deificada. Ela não é a expressão mais alta da existência humana. Ela não é o
caminho aberto para Deus, nem pode se tornar uma pedra de tropeço no
caminho que conduz ao único nome debaixo do céu dado entre os homens
pelo qual devemos ser salvos.
Somente um cristão atento irá, sob a base da fé que é iluminada pela
Palavra de Deus, possuir uma visão correta da posição respectiva da ciência e
da filosofia no grande sistema da criação de Deus. Ele vê o lugar modesto de
todo conhecimento científico. Isso não leva a um desprezo da filosofia, mas à
sua correta apreciação.
A filosofia calvinista deve também servir à glória de Deus. De que
forma? Em primeiro lugar, os crentes devem louvar a Deus por sua graça ao
dar sabedoria para a reivindicação dessa esfera central da ciência à luz de sua
Palavra. E devemos orar por mais luz, a fim de que a filosofia cristã possa
manifestar mais clara e plenamente o significado das obras de Deus, e para
que, no campo científico, seja capaz de resistir ao inimigo com maior
sucesso.
Além disso, as conclusões da filosofia calvinista precisarão ser
absorvidas cada vez mais no mundo do pensamento cristão comum que
chamamos de nossa biocosmovisão. É necessário que esta seja corrigida,
ampliada e estimulada por esses resultados.
Desse modo, com maior clareza e vivacidade os cristãos serão capazes
de ver a sabedoria de Deus conforme demonstrada nas obras de suas mãos. E
se eles portanto louvam aquele que é absolutamente glorioso, experimentarão
esta resposta à sua oração: santificado seja o teu nome.
Apêndice 1: Um breve esboço da filosofia de Herman Dooyeweerd

Roy Clouser

Resumo: Este artigo apresenta um panorama da ontologia não reducionista


de Dooyeweerd, além de abordar o papel da crença religiosa na formulação
de teorias, sem, porém, deter-se na sua argumentação sobre a inevitabilidade
desse papel. A ontologia de Dooyeweerd é uma teoria da natureza da
realidade (criada) que pressupõe e é regulada pela crença no Deus do teísmo
judaico-cristão. Admitindo-se que tudo na criação deve ser diretamente
dependente de Deus, apresenta-se aqui uma descrição das naturezas tanto das
coisas naturais quanto dos artefatos, a qual impede que se considere qualquer
coisa no cosmos como aquilo do qual tudo o mais no cosmo depende.
Palavras-chave: Crença religiosa; Experiência pré-teórica; Aspectos da
experiência; Irredutibilidade dos aspectos; Funções ativa e passiva; Funções
qualificadoras; Relações parte-todo; Totalidades encapsuladas; Leis típicas;
Soberania de esfera.

A fim de compreender as dificuldades que este artigo impõe, imagine-


se tentando escrever uma breve introdução à, digamos, filosofia de
Aristóteles dirigida àqueles que jamais ouviram acerca dele. As decisões mais
difíceis de se fazer dizem respeito aos pontos que se deixará de fora. Assim
haveria escolhas com relação às dificuldades internas que deveriam ser
abordadas. Por fim, também teríamos de proceder a seleções difíceis no
tocante a quais das variações dessa filosofia seriam trabalhadas e quais
seriam omitidas, já que estariam além do escopo de uma breve introdução.
Ora, o mesmo se aplica à filosofia de Dooyeweerd, não obstante o fato de que
sua obra não esteve circulando por cerca 2300 anos, como é o caso de
Aristóteles. Pois a obra-prima de Dooyeweerd, A New Critique of Theoretical
Thought [Nova crítica do pensamento teórico], é sem dúvida a contribuição
mais original à filosofia desde Kant, sendo também uma das que mais se
opõem às conclusões de Kant desde então, e apresenta uma teoria da
realidade que — embora mais próximo das intenções de Aristóteles que
qualquer outro filósofo desde Descartes — excede até mesmo a teoria da
realidade aristotélica em poder explanatório.[13] (E se isto não chama sua
atenção, então não sei o que mais chamará!)
O que torna minha tarefa um tanto mais fácil, por outro lado, é o fato
de que os artigos que se seguem a este aplicarão o pensamento de
Dooyeweerd a áreas específicas: teoria política, teoria econômica,
matemática e física, e ética. Isso me permite omitir qualquer tratamento
detalhado dessas áreas de seu pensamento, e limita meu esboço aos seguintes
tópicos: (1) a natureza da crença religiosa, (2) seu papel na produção de
teorias, e (3) sua teoria da realidade. Cada um desses tópicos exige
comentários explicativos preliminares.
Primeiramente, quando Dooyeweerd trata da “crença religiosa”, ele se
refere a uma crença que adota algo como “a origem absoluta” de tudo o mais
— não importa o modo como esse algo é concebido. O termo “religiosa”,
portanto, não é primariamente uma referência ao culto, a um credo formal, ou
participação numa organização religiosa. É, antes, uma referência à
orientação individual no que diz respeito ao que o indivíduo entende ser
aquilo do qual todas as coisas dependem.[14] Nisto ele reverbera seu contexto
calvinista holandês, pois é Calvino que disse: “... é necessário que seja eterno
e seja princípio de si mesmo o Ser que é origem e princípio de todas as
coisas” (Instituição I, 5, 6)[15], e que assumia a perspectiva de que aquilo que
se crê como sendo a origem de tudo o mais é, por isso mesmo, considerado
divino. E isto é válido quer uma pessoa creia que essa origem divina seja ou
não o Deus do teísmo tradicional. Desse modo, teorias que entendem que a
matéria/energia, ou os dados do sentido, ou as leis matemáticas, etc. têm esse
status estão tão comprometidas com as crenças numa divindade quanto
aquelas que creem que a origem de todas as demais coisas é Deus, Brâman-
Atman, Dharmakaya ou o Tao.[16]
O segundo ponto relacionado é que essa ideia dooyeweerdiana sobre o
cerne das crenças religiosas pode ser aplicada para se ressaltar como as
teorias da realidade não podem deixar de incluir ou pressupor uma ou outra
crença religiosa. Uma teoria pode desenvolver-se ou com base na premissa de
que o Divino transcende o cosmos, ou com base na premissa de que uma
parte (ou o todo) do próprio cosmo é divino. Mas, seja no primeiro ou no
segundo caso, o conteúdo específico de uma ou outra crença religiosa torna-
se a chave para a maneira pela qual se constrói qualquer teoria da realidade.
Em terceiro lugar, por “teoria da realidade” Dooyeweerd sempre se
refere a uma teoria daquilo que um teísta chamaria realidade criada; ele não
busca incluir Deus no escopo dessa teoria. Uma vez que ele entende Deus
como a origem de tudo “que se encontra na criação” (Calvino) — e as
verdades matemáticas e lógicas não são exceção —, nada na criação existe
independentemente do restante da criação ou de Deus. Assim, ele toma esta
regra como sua diretriz para toda teorização: a crença em Deus exige que
nada no cosmo seja considerado como a origem de todas as demais coisas no
cosmo.[17] Este se torna então o ponto crucial para sua própria teoria da
realidade: visto que, no cosmo, não há nada do qual tudo o mais dependa,
toda forma de redução ontológica está portanto excluída.[18] Seu projeto era,
pois, desenvolver uma teoria da realidade que fosse uma descrição
sistematicamente não reducionista das naturezas das coisas e da ordem
cósmica.
Conforme a nota seis (adiante) talvez tenha deixado claro, Dooyeweerd
não usa o termo “redução” simplesmente para referir-se à análise continuada
de totalidades até que se alcance suas partes mais básicas, que se une à
afirmação de que a natureza do todo é a mesma que a de suas partes. Esse
sentido de “redução” é uma mixórdia: para certas inquirições trouxe à tona
importantes insights, embora, em relação a outros, tenha-se tornado grande
fonte de equívocos. Mas o que Dooyeweerd tem em vista não é apenas a
redução do todo às partes, mas a longa lista de declarações ontológicas que
afirmam que a realidade é — seja exclusivamente, seja essencialmente —
caracterizada por um ou dois tipos selecionados de propriedades e leis que se
apresentam à nossa experiência. Designarei apenas algumas delas, porém
creio que serão suficientes para fornecer uma ideia geral. Eles incluem
afirmações como: tudo são números (Pitágoras), ou é físico (Epicuro, Smart),
ou é sensorial (Hume, Mach). Nem todas elas são monistas, entretanto; e
incluem dualismos compósitos que afirmam que tudo é produto da
combinação ou interação do físico e do matemático (Heisenberg), ou do
lógico e do sensorial (Kant), dentre outros.

1. Aspectos da experiência
Assim, para apresentar sua ontologia não reducionista, Dooyeweerd
distingue um número de tipos exaustivos de propriedades e leis que, segundo
seu entendimento, são incapazes de serem eliminados ou de explicarem uns
ao outros. Ele chama esses tipos de “aspectos” ou modalidades da realidade
experienciada. E embora ele afirme que sua lista de aspectos é genuinamente
irredutível, devo sem demora assinalar que a ontologia que ele desenvolve
não depende de nenhuma lista particular desses aspectos. Outros pensadores
divergiram em relação a ele no que diz respeito à lista correta de aspectos; no
entanto, seguiram os contornos de sua teoria, de modo a fornecer uma
descrição não reducionista de suas respectivas listas de aspectos. No que se
segue, contudo, usarei a própria lista de Dooyeweerd, que é esta:

Fiduciário
Ético
Jurídico
Estético
Econômico
Social
Linguístico
Histórico
Lógico
Sensorial
Biótico
Físico
Cinemático
Espacial
Quantitativo

Busquei evitar o uso de substantivos nessa lista, a fim de não dar a


impressão de que ela designa classes de coisas. Essa atitude, porém, resultou
em alguns termos estranhos e significados excepcionais para alguns termos
familiares, de modo que será necessário comentá-los, e o farei seguindo a
ordem dos aspectos na lista, de baixo para cima.
O termo “quantitativo” é usado para designar o “quanto” de coisas, e
não deveria ser aqui tomado como referência a um domínio distinto dos
números ou a sistemas abstratos da matemática, concebidos para o cálculo de
quantidades. Há evidência de que animais têm certo senso de quantidade,
mesmo que não inventem símbolos para representar quantidades ou para
descobrir e formular leis relacionadas a elas.[19]
“Cinético” é usado para o movimento das coisas — seu deslocamento
no espaço. Muitos cientistas incluem as leis cinéticas dentro da física, mas
Galileu, e um grande número de cientistas contemporâneos, discordam.[20]
O termo “sensorial” é usado para as qualidades tanto das percepções
quanto dos sentimentos; designa as propriedades e leis da sensibilidade
animal e humana.
O termo “histórico” é familiar; de qualquer maneira, porém, é preciso
explicá-lo. Não se refere a tudo que aconteceu no passado, porque não é nisso
que os historiadores estão interessados. O que lhes interessa é tudo no
passado que tem importância cultural. De modo que o termo especifica a
atividade e transmissão do poder de formação de cultura. (Outros pensadores
usaram os termos “cultural”, “formativo” ou técnico, para referirem-se a esse
aspecto.) O foco aqui encontra-se na habilidade humana de formar artefatos a
partir de materiais naturais. Isto inclui a formação de línguas, teorias, música
e organizações sociais, também coisas como indumentárias e residências.
De semelhante modo, o termo “ético” é familiar, mas exige maior
esclarecimento. Na maioria das vezes, “ético” é usado indiscriminadamente
para aquilo que, de fato, são sentidos diferentes de certo e errado. Neste caso,
no entanto, não implicarão atos que são injustos, mas atos que são
desamorosos. O termo “jurídico” é a designação para o tipo de propriedades e
leis que se aplicam para coisas ou atos que se conformam ou violam a norma
da equidade, ao passo que o “ético” referir-se-á às coisas ou atos que
cumprem ou violem a norma da beneficência.[21]
Por fim, fiduciário é meu termo para a confiabilidade ou fidedignidade
que as pessoas, coisas, crenças, etc. possam ter. (O termo de Dooyeweerd era
“pístico”, oriundo da palavra grega para “confiança”.)
O impulso não reducionista da ontologia de Dooyeweerd parte da
consideração de que as propriedades de cada tipo e as leis relacionadas a
essas propriedades são correlatas: não há propriedades absolutamente
desordenadas, nem há leis aspectuais que não ordenam propriedades desse
tipo. (Há outras espécies de leis além das leis aspectuais, é claro, e explicá-
las-ei no devido momento.) Em acréscimo a essas leis enquanto correlatos do
que governam, Dooyeweerd propõe outra ideia concernente a todas as leis do
cosmo — ideia que é a chave de sua ontologia, a saber, que a ordem-lei da
realidade é um componente distinto do cosmo, não reduzível aos sujeitos ou
objetos sobre os quais governa. Essas leis não são, portanto, simplesmente
nossas generalizações acerca do modo como as coisas com naturezas fixas se
comportam, como o objetivista afirmaria. Nem são a ordem que impomos
sobre aquilo que experienciamos, como advoga o subjetivista. A ordem-lei é
sui generis com relação tanto aos sujeitos cognoscentes quanto os objetos
conhecidos; governa e liga ambos, mas não se reduz nem a um nem a outro.
[22]
Daí o nome para sua filosofia: a Filosofia da Idea de Lei (que eu
abreviarei para Teoria da Estrutura de Lei). Desse modo, um dos primeiros
benefícios relacionados às leis e àquilo que elas governam como correlatos é
que somos libertos do antigo dilema de objetivismo versus subjetivismo.
Nem o sujeito cognoscente nem os objetos conhecidos são a fonte de
ordenamento do mundo que experienciamos. Esse status pertence somente a
Deus.
Ademais, de acordo com essa teoria todas as coisas concretas são
governadas por todas as leis aspectuais simultaneamente, de modo que cada
coisa concreta tem algumas propriedades de cada tipo aspectual,
simultaneamente. Este ponto somente fica claro, no entanto, se distinguirmos
duas formas nas quais uma coisa possui uma propriedade: ativa ou
passivamente.[23] Assim, a teoria trata destes como sendo os dois modos nos
quais uma coisa pode existir e operar sob as leis de um aspecto. A despeito de
todas as diferenças entre eles, entretanto, esses dois modos não são
mutuamente exclusivos. A teoria entende que todas as coisas funcionam
passivamente em cada aspecto, a todo momento, de maneira que uma coisa
pode carecer somente de funções ativas em certos aspectos. Com efeito, é
pelo surgimento de funções ativas refletida na ordem da lista de aspectos
apresentada acima, que uma coisa pode ter funções ativas em aspectos mais
abaixo na lista, mas não tê-las nos aspectos superiores na lista. A ordem é
portanto aquela em que funções ativas em aspectos inferiores são
precondições para — mas não causas das — funções ativas nos aspectos
superiores na lista.
Tomemos o exemplo de uma rocha. De acordo com a distinção aqui
proposta, a rocha opera ativamente nos aspectos quantitativo, espacial,
cinemático e físico. Isto é, ela possui propriedades de cada um desses
aspectos e está sujeita às leis de cada um deles de uma maneira que não
depende das relações da rocha para com as funções ativas de outras coisas. A
rocha não opera ativamente nos aspectos superiores, contudo. Não é
biologicamente viva, não tem percepção sensorial, nem pensa logicamente,
nem faz uso de uma linguagem. Mas se a rocha não estivesse sujeita às leis
da biologia, ela não poderia funcionar passivamente nos processos vitais das
coisas vivas. (Não poderia ser sequer biologicamente segura ou nociva.) Mas
as rochas claramente podem ter funções bióticas passivas, ainda que não
estejam vivas. Podem ser deglutidas por um pássaro, tomando assim parte na
maceração do alimento em sua moela; podem ser a parede na toca de um
animal; podem ser a superfície dura na qual um pássaro lança um molusco a
fim de quebrar sua concha. De igual modo, embora uma rocha não tenha
função sensorial ativa, ela pode ser passivamente percebida por animais e
homens que de fato têm essa função ativa. Mas, a menos que fosse
passivamente governada por leis sensoriais e que possuísse propriedades
sensoriais passivas, a rocha não poderia ser percebida. Não poderia, por
exemplo, ser percebida como tendo determinada cor. Se não é percebida, não
tem cor ativamente; mas a menos que possua o potencial passivo de
demonstrar certa cor, esta cor não poderia ser atualizada em relação a um ser
que tenha uma função sensorial ativa. O mesmo é válido para suas
propriedades lógicas. Se a rocha não estivesse sujeita às leis da não
contradição, identidade e do terceiro excluído, possuindo desse modo
propriedades lógicas, não poderíamos distingui-la ou formar um conceito
dela. (É preciso atentar-se para não confundir “ativo” com “atual” ou
“concreto”, nessas questões. As propriedades passivas podem ser tanto
potenciais quanto atuais, embora as propriedades ativas sejam sempre atuais.)
[24]
À vista disso, uma rocha tem propriedades passivas que são linguísticas
(pode-se falar dela), econômicas (é possível aferir-lhe valor, comprá-la,
vendê-la), jurídicas (pode ser a propriedade de um indivíduo ou a arma de um
crime), e assim por diante. O gráfico seguinte pode ajudar-nos a esclarecer
esses conceitos:
Fiduciário
Ético
Jurídico
Estético
Econômico
Social
Linguístico
Histórico
Lógico
Sensorial
Biótico
Físico
Cinemático
Espacial
Quantitativo
Rocha Árvore Animal

■ □
Funções ativas Funções passivas

Mesmo nesse estágio inicial da explicação, é possível perceber alguns


dos benefícios dessa teoria. Considere-se apenas seus resultados para a
percepção sensorial. Um graveto, diz-se, tem a propriedade disposicional
passiva de parecer marrom à percepção normal sob uma luz normal. Quando
essa potencialidade passiva é atualizada em relação ao observador, ele se
mostra, em ato, marrom. Pelo mesmo raciocínio, contudo, o graveto tem as
disposições sensoriais passivas de mostrar-se torto na água e menor à
distância. Assim, não há necessidade de postular que aquilo que está torto ou
que é menor é algo diferente do graveto. Em outras palavras, não é necessário
deixar-se levar ao impasse de julgar que o que realmente experienciamos são
“dados sensoriais” internos, em vez do graveto real que nos é externo. Na
teoria dos dados sensoriais, jamais conheceremos a existência e natureza do
graveto real. Na Teoria da Estrutura da Lei, entretanto, não estamos isolados
do mundo e encerrados em nós mesmos, segundo o argumento de que tudo
que conhecemos são nossos próprios estados internos. Ao mesmo tempo,
contudo, essa teoria nos permite apreciar o elemento de verdade tanto no
objetivismo tanto no subjetivismo. Por exemplo, concordamos com o
subjetivista que, caso não seja percebido, o graveto realmente não tem, em
ato (manifestamente), a cor marrom. Mas negamos a hipótese de que essas
qualidades são, por conseguinte, criadas indiscriminadamente por nós ou que
existem apenas em nossas mentes. Assim, a teoria nos permite concordar que
as qualidades sensoriais que não são efetivamente inerentes aos objetos, sem,
no entanto, comprometer-nos com a totalidade da explicação subjetivista
dessas qualidades. De semelhante modo, podemos concordar com a negação
objetivista de que, digamos, “a beleza está nos olhos de quem vê”, ou de que
o valor econômico é inteiramente criado por nós. Do ponto de vista da
Estrutura de Lei, se as normas econômicas e estéticas não estivessem
embutidas no lado-lei da realidade, e se os objetos não tivessem essas
propriedades passivamente em correlação a essas normas, não poderíamos
experienciar esses modos. Por exemplo, se uma rocha não estivesse sujeita às
normas da oferta e demanda e à lei dos rendimentos decrescentes, não
poderíamos atualizar um valor econômico para ela. É o potencial passivo da
rocha que atualizamos quando lhe damos um valor.
A proposta de um lado-lei distinto para com a realidade e da diferença
entre funções ativas e passivas também demonstra a razão pela qual não é
plausível a emergência ou sobrevinda desses aspectos, em sua totalidade; o
elemento da verdade nessas perspectivas é que são as funções ativas das
coisas que emergem nos aspectos superiores. Elas, porém, somente podem
fazê-lo em relação às leis e propriedades passivas que já são próprias das
coisas em determinado aspecto. Qual sentido teria, por exemplo, a afirmação
de que o cosmo originalmente tivesse apenas propriedades e leis físicas, ao
passo que somente depois emergiriam as propriedades sensoriais e lógicas?
Se não houvesse leis sensoriais já governando os potenciais sensoriais
passivos, não poderíamos descrever ou imaginar nada no cosmo original, já
que nada poderia ter tido qualquer aparência. E se não fosse governado por
leis lógicas desde o princípio, a emergência de novas funções ativas não teria
sido logicamente possível! Tampouco poderia haver uma explicação
plausível de como os seres teriam surgido, caso não houvesse leis bióticas
para possibilitar os potenciais bióticos passivos que posteriormente viriam a
ser atualizados em coisas não vivas, que se combinariam para formar coisas
vivas.
Nesse sentido, a distinção ativo/passivo remove a tentação de negar
que aspectos são todos igualmente reais em suas propriedades passivas e
lados-lei, e pavimenta o caminho para uma teoria mais plausível daquilo que
chamarei “emergência forte”: (1) funções ativas em aspectos inferiores na
lista são precondições para que as coisas adquiram funções ativas nos
aspectos superiores na lista; (2) a ordem de pré-condicionalidade não é uma
ordem causal, de modo que não há postulação de causas carentes de toda
homogeneidade de causa e efeito; (3) de fato, cada coisa concreta, evento, ou
estado de coisas têm algumas propriedades de cada aspecto. Assim, quando a
teoria nega que tudo é exclusivamente físico, por exemplo, não o faz
sustentando que há coisas absolutamente não físicas. Pelo contrário, fá-lo ao
afirmar que todas as coisas têm propriedades passivas em cada aspecto da
realidade, e propriedades ativas em, ao menos, vários aspectos.

2. As naturezas das coisas


A Teoria da Estrutura da Lei está bem consciente, entretanto, que,
apenas por si própria, não nos levará longe na delineação das naturezas dos
tipos específicos das coisas pela simples menção à diferença entre a
possessão ativa e passiva de propriedades. Para isso, precisamos focar-nos na
maneira que as propriedades e leis de um aspecto particular sempre
caracterizam a natureza de uma coisa mais incisivamente do que os demais
aspectos o fazem. Assim, a teoria fala que o aspecto central da natureza de
uma coisa a “qualifica”. Por exemplo, no tocante ao quadro apresentado
anteriormente, diz-se que uma rocha é fisicamente qualificada, uma planta é
bioticamente qualificada, ao passo que um animal é sensorialmente
qualificado. Um aspecto qualificante é pois aquele que: (1) é central à
natureza de uma coisa, (2) aquele cujas leis governam a organização interna
da coisa tomada como um todo, e (3) é o aspecto mais alto na lista no qual a
coisa opera ativamente (este terceiro requisito é válido para as coisas naturais,
mas não para os artefatos, conforme explicarei adiante).
A ideia de uma função qualificante tem várias vantagens que a
recomendam. Primeiramente, é uma teoria empírica aberta à confirmação,
refutação e revisão. Não é uma regra para ser seguida caso as coisas se
encaixem nela ou não. Em segundo lugar, confirma e corresponde ao modo
pelo qual começamos a classificar as coisas naturais na linguagem habitual,
quando falamos delas como animais, vegetais ou minerais. Ao confirmar e
dar conta dessa classificação, estamos no caminho para uma ontologia que
reconhece níveis irredutíveis de realidade, níveis que são fortemente
emergentes com relação uns aos outros. Também distingue entre os modos
que a linguagem habitual trata das coisas como sendo “físicas”, em
contraposição à maneira que muitas teorias reducionistas o fazem. A
linguagem habitual refere-se a uma coisa como sendo física a fim de remeter
ou àquilo que é real ao invés de imaginário, ou àquilo que tem propriedades
físicas. Jamais significa uma coisa que é exclusivamente física, já que não
experienciamos nada que seja assim. Assim, a Teoria da Estrutura de Lei
enriquece a percepção da linguagem habitual ao apontar o caminho pelo qual
uma coisa pode ser fisicamente qualificada. Em contrapartida, um ato de
percepção pode ser sensorialmente qualificado. O ato tem outras funções
ativas que não o qualificam, é claro. Possui ativamente quantidade, locação
espacial, deslocamento, e inclui processos físicos e bióticos. E passivamente
pode ser conceitualizado, praticado, nomeado, respeitado, ter valor
monetário, ser justo, amável ou fidedigno. No entanto, é qualificado por
propriedades sensoriais e internamente governado por leis sensoriais. De
igual modo, outros atos de seres humanos podem ser qualificados
economicamente (comprar e vender), bioticamente (comer), esteticamente
(dançar) ou juridicamente (promulgar uma lei ou julgar um caso de tribunal).
Contudo, dar-se-ão sob o governo das leis de cada aspecto e terão
propriedades passivas em cada aspecto, que é a razão pela qual podem ser
estudados da perspectiva de qualquer aspecto.
Contudo, outra vantagem que recomenda a ideia de uma função
qualificante é o modo que ela nos permite traçar a importante distinção entre
totalidades compostas de partes e totalidades compostas de sub-totalidades
(bem como de partes). Conforme se sabe, Aristóteles afirmava que algo deve
ser considerado como parte de um todo, contanto que: (1) participe na
organização interna do todo, e (2) seja ou incapaz de vir à existência ou de
operar à parte do todo. Isto, embora seja verdadeiro em cada ponto, não é
uma definição adequada. Os seres humanos certamente operam na
organização interna das comunidades sociais e não pode vir à existência à
parte da comunidade social de seus pais. Entretanto, os homens não são
simplesmente partes das famílias, escolas, negócios, estados ou clubes. O
critério suplementar que precisamos acrescentar ao de Aristóteles é que uma
parte deve compartilhar a mesma qualificação aspectual que o todo. Por
exemplo, não seria exato designar uma pedra de parte de um jardim, já que a
rocha não somente pode existir sem o jardim, mas também porque uma rocha
é fisicamente qualificada, ao passo que um jardim é um todo esteticamente
qualificado. A rocha é incluída na organização interna do jardim, é claro,
mas, uma vez que tem uma qualificação aspectual diferente, é nela incluída
como uma sub-totalidade dentro de um todo maior.

3. Todos capsulares

Desse modo, a ideia de uma função qualificante permite-nos traçar a


distinção entre as relações parte/todo e as relações sub-totalidade/todo.
Assim, a Teoria da Estrutura de Lei afirma que o todo maior “encapsula” uma
sub-totalidade, e que o todo maior é um “todo capsular”.[25] Essa distinção
mostra-se muito útil, e além do mais recomenda a ideia de uma função
qualificante. Tomemos o exemplo de uma escultura marmórea de um corpo
humano. Como devemos entender a relação do mármore para com a estátua
como um todo? Não é possível que seja uma parte do todo; as partes da
estátua são seus braços, pernas, torso, etc. Mesmo na visão tradicional, o
mármore não pode ser parte da estátua, já que pode existir à parte dela. Além
disso, não faz sentido falar que o mármore atua na organização interna da
estátua! Porém a ideia de um todo capsular é muito mais apropriada. Segundo
esta ideia, o mármore é uma sub-totalidade fisicamente qualificada incluída
no todo capsular que é a obra de arte esteticamente qualificada. Ademais, a
relação entre o mármore e a obra de arte finalizada demonstra outro traço
constante da relação de uma sub-totalidade para com um todo capsular:
nenhuma quantidade de conhecimento de suas sub-totalidades é capaz de
oferecer qualquer conhecimento do todo capsular.
Segue-se alguns exemplos adicionais desse mesmo tópico. Ora, os
átomos que estão incluídos numa planta não são partes da planta, mas sub-
totalidades nela encapsuladas. Eles podem existir e operar à parte da planta,
mas são fisicamente qualificados, ao passo que a planta é bioticamente
qualificada, e nenhum conjunto de conhecimentos sobre os átomos poderia
fornecer-nos conhecimento acerca da natureza das plantas. (Esta é uma
confirmação adicional de um argumento que apresentei anteriormente, a
saber, que a ideia de todos capsulares apoia a ideia mais ampla da emergência
forte — de níveis irredutíveis de realidade.) Em contrapartida, as células
incluídas nas plantas são partes dela. Têm a mesma qualificação biótica, e
não podem vir à existência ou operar separadamente da planta. Por outro
lado, a relação dos átomos com uma molécula seria uma relação capsular. Os
átomos de hidrogênio e oxigênio que se combinam para formar a molécula de
água são sub-totalidades dentro da molécula capsular, ainda que não tenham
a mesma qualificação (física). Isto se dá porque os átomos podem existir e
operar à parte da molécula, e porque nenhum conjunto de conhecimento dos
átomos seria capaz de predizer que a água congelaria a 0° centígrado, que se
expandiria quando congelada, ou que sentimos sua umidade.
Outra característica das relações capsulares é que, sempre que nelas
pensamos, uma sub-totalidade incluída num todo capsular maior tem sua
função qualificante subsumida pela totalidade maior e contribui para o
funcionamento desta totalidade mais ampla (pense aqui na pedra na moela,
ou numa pedra no jardim). Ademais, embora cada todo capsular terá
propriedades que nenhuma de suas sub-totalidades possui, alguns poderão ter
uma função qualificante que falta a todas suas sub-totalidades. Esta é uma
razão adicional por que as sub-totalidades não podem ser consideradas
causas dos todos maiores que os encapsulam. São condições necessárias para
os todos capsulares, mas jamais lhe são suficientes.

4. Leis típicas
O último ponto mencionado na seção anterior leva-nos à questão sobre
como as propriedades de diferentes tipos aspectuais, bem como as sub-
totalidades com diferentes funções qualificantes, combinam-se para formar
coisas de um tipo particular. Posto de outra maneira: por que algumas
combinações de propriedades, partes e sub-totalidades aparentemente não são
possíveis, ao passo que outras o são? A resposta, diz a Teoria da Estrutura de
Lei, é novamente outra espécie de leis, leis que perpassam os aspectos.
Chamemo-las de “leis típicas”: leis que tornam possível combinar em uma
coisa propriedades, partes e sub-totalidades, de modo a formar coisas de um
tipo específico.[26] Essa ideia, além disso, delineia nosso foco sobre as
naturezas das coisas. Não basta apontar para as qualificações que algo pode
assumir, nem assinalar que algumas coisas são compostas de sub-totalidades,
bem como de partes. Devemos dar um passo à frente e diferenciar os tipos de
coisas de acordo com suas leis típicas.
Atente-se, por favor, para o fato de que, com a expressão “diferenciar
de acordo com a lei típica”, não se pretende sugerir que podemos obter
conhecimento dessa lei anteriormente à experiência com as coisas do tipo que
as tornam possíveis. Pelo contrário, postulamos essas leis a fim de descrever
as combinações de propriedades de diferentes tipos aspectuais, assim como
das sub-totalidades com diferentes qualificações aspectuais, que encontramos
dentro das coisas individuais do mesmo tipo. Nessa perspectiva, portanto,
uma coisa concreta é uma reunião estrutural individual de propriedades,
partes e talvez sub-totalidades, determinada por uma lei típica e qualificada
pelas leis aspectuais que governam sua organização interna. Uma coisa
concreta individual não é, pois, um agregado ou um pacote de partes e
propriedades, ao mesmo tempo em que não é, no entanto, nada acima ou
além de uma combinação estruturada por lei dessas partes e propriedades. Em
relação à ideia de uma lei típica, vale a pena assinalar que nem todas as
combinações que possamos conceber são de fato possíveis. Podemos pensar
em combinações formando coisas que, embora não autocontraditórias, não
são, todavia, possíveis: uma rocha falante, um cavalo voador, etc. A
explicação é que não são possíveis porque não há lei típica para eles. Nessa
perspectiva, portanto, há uma diferença entre “impossível” e “não possível”:
embora possamos falar de coisas que são impossíveis, por conta do fato de
que violariam uma lei (um círculo quadrado, uma pedra que ergue a si
própria), há também outras que não violam nenhuma lei, mas não são
possíveis, já que não há nenhuma lei típica para elas (uma árvore falante).
Dever-se-ia também notar que, diferentemente de leis aspectuais, leis
típicas existem anteriormente às coisas que a tornam possíveis e não lhe são
estritamente correlatas. Com base nessa teoria, há leis típicas não apenas para
cada tipo de coisas naturais, mas também para cada tipo de artefato.[27]

5. Artefatos
Até aqui aplicamos os conceitos apresentados pela Teoria da Estrutura
de Lei apenas às coisas naturais, pois as naturezas dos artefatos são mais
complexas. Elas exigem mais do que a especificação da função qualificante
de seu material natural e de sua lei típica, caso queiramos descrever aquilo no
qual o material natural foi transformado. Por exemplo, as pedras usadas para
construir uma casa não teriam, por si mesmas, mais que uma qualificação
física. Mas uma vez que passaram por um controle formativo humano e
foram transformadas numa casa, a nova totalidade que as encapsula adquire
uma qualificação social adicional, a despeito do fato de que todas suas partes
e sub-totalidades têm apenas uma função passiva nesse aspecto. Contudo, a
menos que reconheçamos que essa transformação de fato se deu, não
reconheceríamos que as pedras formaram uma casa, e assim perderíamos de
vista aquilo em que se tornaram.[28]
Desse modo, dois novos componentes são acrescentados à teoria a fim
de identificar a natureza de um artefato. Primeiramente, reconhece que um
artefato, diferentemente de uma coisa natural, pode ser qualificado por um
aspecto no qual tem apenas uma função passiva. Em segundo lugar, expande
a ideia sobre aquilo que qualifica a natureza de um artefato a fim de incluir o
aspecto que qualifica o processo de transformação pelo qual foi produzido,
assim como o aspecto que qualifica o tipo de plano que guiou sua formação.
O aspecto que qualifica o processo de formação de um artefato é chamado de
função fundante do artefato, ao passo que o aspecto que qualifica o plano que
guiou sua formação é chamado de função guia. Assim, no tocante ao
exemplo das pedras que formaram uma casa, a teoria diz que a função
fundacional da casa é histórica (ou cultural), porque esse processo é
qualificado pela habilidade humana de transformar materiais naturais. Mas
qual é então sua função guia? Uma resposta plausível seria a função
biológica. E não há dúvida de que uma casa serve a necessidades biológicas.
As casas teriam uma formação bastante diferente se nossos corpos fossem
significativamente diferentes daquilo que são. Porém uma casa é mais do que
um simples abrigo biológico — que é a razão pela qual difere de uma mera
cobertura ou barraca. A casa fornece um lugar para o intercâmbio social e
supre a necessidade de privacidade. E os tamanhos e formas variáveis de seus
quartos usualmente refletem uma diferença no status social entre seus
ocupantes. De fato, se faltasse a um edifício essas características, não o
chamaríamos de uma casa. Por essas razões, a teoria diz que a função guia de
uma casa é social.[29]
Não há espaço aqui para dar muito mais exemplos de como esses
conceitos servem para trazermos ao foco as naturezas dos artefatos; porém
listo alguns: de um livro, dir-se-ia ter uma função fundante histórica e uma
função guia linguística. A poesia cifrada no livro, por outro lado, teria uma
função fundante histórica e uma função guia estética.[30] De semelhante
modo, uma pintura ou uma escultura teria uma função guia estética. Em
contrapartida, um armazém, com suas plataformas de carregamentos e áreas
de estoque, apresenta uma função fundante histórica e uma função guia
econômica. É claro, um banco tem a mesma função guia. O que distingue um
armazém de um banco é a lei típica de cada um; a lei que determina as
relações internas das propriedades, partes e sub-totalidades e que as conforma
a seu tipo. Essa é o motivo pelo qual a descrição completa da natureza de um
artefato deve incluir sua lei típica, assim como sua qualificação por meio de
suas funções fundante e guia.
Nesse ponto, pode parecer que todos os artefatos teriam uma função
guia histórica (cultural). Afinal de contas, são todos formados por seres
humanos, não? Embora haja, em certo sentido, uma verdade nisso, há, no
entanto, artefatos formados pelo homem que têm sua fundação num aspecto
diferente do histórico. Para tornar esse ponto claro, contudo, devo, em
primeiro lugar, repetir que a teoria também vê as comunidades sociais como
artefatos, formados quando seres humanos dão uma organização específica a
relações inter-humanas aspectualmente diferenciadas. Essas diferem de
artefatos não sociais na medida em que seus “materiais naturais” são outros
seres humanos. Dito isto, aparentemente há (pelo menos) duas comunidades
que não deveriam ser consideradas como tendo uma função fundante cultural:
o casamento e a família. A razão é que elas não são criações culturais
espontâneas, pois estão enraizadas em nossa natureza biótica, sexual. Os
homens atribuem formas específicas a essas comunidades, é claro. Mas é
nossa composição biótica que conduz o processo de sua formação e assegura
que essas instituições receberão uma ou outra forma.

6. Emergência social: Soberania de esfera


Já vimos por que muitas totalidades não podem ser analisadas apenas
pela distinção de suas partes, mas precisam ser vistas como todos capsulares
que incluem sub-totalidades. Isto é especialmente válido para comunidades
sociais, visto que incluem humanos que jamais são simples partes. De acordo
com o teísmo subjacente a essa ontologia, a existência humana é vista como
centrada no “coração” ou “espírito” de uma pessoa que opera em todos os
aspectos igualmente, mas não pode ser identificado com nenhum deles. A
natureza humana, portanto, não tem qualificação aspectual.[31] Assim,
humanos jamais são partes de uma família, escola, igreja ou que tais, mas são
sub-totalidades encapsulados neles.
Este último ponto também é válido para várias comunidades em sua
relação umas com as outras: elas quase nunca são partes umas das outras, na
medida em que têm funções guias diferentes e demonstram conformidade a
diferentes leis típicas. Dessa forma, por exemplo, uma família não pode ser
parte de um Estado, como demonstrado pelo fato de que seus membros
podem ser cidadãos de diferentes Estados. Mas o que é ainda mais importante
é que, de igual modo, nenhum dos grandes tipos de comunidades sociais
pode ser encapsulado dentro de outro.[32] Lembre-se que quando uma sub-
totalidade é encapsulada num todo maior, a função guia do todo maior
sobrepõe-se à função qualificante da sub-totalidade (pense na pedra na moela
servindo a propósito biótico). No caso das grandes instituições sociais,
subsumir uma a outra implicaria que a instituição subsumida serviria à função
guia do todo capsular. Assim, subsumir um negócio, uma escola ou uma
igreja ao Estado, por exemplo, consequentemente invalidaria as funções guias
das comunidades subsumidas em prol da função guia do Estado: a justiça.
Visto que essa situação certamente corromperia a função guia das famílias,
negócios, escolas, igrejas, etc., é preciso rejeitá-la. E isso exige que adotemos
uma visão não hierárquica da sociedade como um todo.
Eis o mesmo ponto, porém de um ângulo diferente, o ângulo da
autoridade na vida humana. Há uma fonte suprema de autoridade na vida
social humana? Caso sim, que tipo de autoridade é? Já houve várias respostas
reducionistas a essa questão. Há teorias que afirmam que a fonte da
autoridade é o poder, a razão (a razão acrescida da virtude), riqueza ou a
vontade superior. Mas uma visão genuinamente teísta deve rejeitar todas
essas propostas. Da perspectiva teísta, toda autoridade tem origem em Deus,
que a embutiu na vida humana de modo plural. Há a autoridade dos pais
numa família, dos donos num negócio, de oficiais eleitos no Estado, do clero
na igreja, templo ou mesquita, dos médicos num hospital, dos professores
numa sala de aula, e assim por diante. Essas organizações são formadas para
a promoção e preservação de facetas aspectualmente distintas da vida: amor
ético (família), vida econômica (negócios), justiça pública (Estado), crença e
prática religiosa (igreja, sinagoga ou mesquita), bem-estar biótico (hospital),
crítica e aprendizagem de conceitos (escola), etc. Cada uma dessas
comunidades tem suas próprias funções guias e fundacionais, suas próprias
leis típicas e seu próprio tipo de autoridade.
Essa ideia de múltiplos tipos de autoridade, cada um com seu domínio
ou “esfera” próprios, era chamado de “soberania de esfera” por seu grande
promotor, Abraham Kuyper.[33] A ideia enfatiza que nenhum tipo de
autoridade — e portanto nenhuma instituição isolada — é a fonte de toda
autoridade na vida, nem é a autoridade suprema sobre todos os demais tipos
de autoridade. Pelo contrário, as instituições sociais de cada tipo distinto têm
uma esfera de competência que corresponde à sua função guia, de modo que
cada uma tem uma imunidade relativa à interferência por parte das
autoridades de tipos diferentes ou que se assoma em organizações com
diferentes funções guias. Na prática significa, por exemplo, que os pais — e
não o governo — estabelecem a hora de seus filhos irem para a cama; que as
igrejas — e não as cortes — fixam os requisitos para que as pessoas se
tornem seus membros; que as cortes — e não as igrejas — interpretam a lei
criminal; que as escolas — e não os pais — determinam os requisitos
educacionais; e que os negócios — e não as escolas — decidem que produtos
ou serviços oferecidos, e assim se segue. Ademais, embora uma escola possa
ser mantida por uma família, Estado, igreja ou negócios, é possível que não
seja regida por eles. Se é isso que se entende por “escola estatal”, então a
ideia é tão autocontraditória quanto “igreja estatal” ou “família estatal”.[34]
Um dos resultados mais importantes dessa norma social é que a ideia
de autoridades distintas, limitadas, é a que mais se mostra capaz de refrear o
poder do governo, impedindo assim um Estado totalitário. A ideia de
democracia por si só não é capaz disso. Pois sempre que o governo é visto
como o controlador de todas as instâncias, o simples fato de dar a todo o
mundo a capacidade de votar em quem fará as leis resultará apenas numa
tirania da maioria. E repare que a ideia de soberania de esfera não apenas
protege direitos individuais ao limitar a autoridade do governo, mas protege,
de igual modo, os direitos das comunidades não governamentais. Além do
mais, essas comunidades tornam-se então não apenas protegidas em relação
ao Estado, mas também em relação umas às outras. A soberania de esfera é
pois o princípio social que encarna uma visão fortemente emergente da vida
social enquanto um nível distinto da realidade. E mais do que isso: ao opor-se
a todas as tentativas reducionistas de subsumir todas as autoridades sob
determinado tipo [de autoridade], também corrobora, novamente, a visão não
hierárquica das instituições sociais que exercem diferentes tipos de
autoridades.
7. Conclusão
A ontologia de Dooyeweerd pode muito bem ser designada de
“emergência forte” ou simplesmente “não reducionista”. Isto se dá porque
insiste não apenas que nenhum tipo exaustivo de propriedades e leis é
idêntico a outro, ou que possa ser eliminado em favor de outro, mas também
porque afirma que nenhum aspecto pode ser a causa de qualquer outro dentre
os demais. Primeiramente, em oposição a esse ponto de vista, a ontologia de
Dooyeweerd assinala o fato de que a espécie de causalidade necessária para
sustentar uma afirmação de que, por exemplo, entidade físicas combinam-se
de modo a produzir propriedades ou coisas não físicas, traz consigo um
sentido de “causa” ainda mais forte do que aquilo que se pode observar no
universo. O que observamos é que uma causa fisicamente qualificada
(aquecer um fio de cobre) pode resultar na mudança da cor sensorial (o fio
torna-se verde). Mas, nesse caso, o aquecimento é simplesmente a ocasião
para o brilho verde; não é razão pela qual existem coisas como brilhos verdes
no cosmo. Mas é esse sentido de “causa” mencionado acima que as teorias
reducionistas causais exigem.
Evidentemente o reducionista pode dizer que as causas fortes
necessárias para sua teoria podem ser postuladas como sendo leis
intermediárias que não precisam ser observadas a fim de ter poder
explanatório. A réplica da Estrutura de Lei a essa afirmação será apontar o
fato de que relações causais são em si mesmas multiaspectuais e são
qualificadas por cada aspecto a partir do aspecto físico para cima, conforme
sua disposição na lista. Assim, indagamos: que tipo de lei uma lei
intermediária deveria ser? Se é, em si mesma, uma lei física, então como ela
relaciona o físico com seus produtos supostamente não físicos? E por que
essa visão seria preferível a afirmar que uma relação dessas não é concebível?
Ainda assim continuaria a deparar-se com a mesmo impasse de Descartes no
tocante à relação mente/corpo: relações de causa/efeito sem qualquer
homogeneidade não podem sequer ser concebidas. Em contrapartida, a Teoria
da Estrutura de Lei percebe a homogeneidade multiaspectual de todas as
coisas no cosmo com tudo o mais no cosmo.
Em suma, a Teoria da Estrutura de Lei é capaz de demonstrar um
impressionante poder explanatório ao desenvolver sua ideia de aspectos
irredutíveis, igualmente existentes na realidade. Dessa ideia surge a
possibilidade de distinguir o aspecto qualificante de uma coisa, todos
capsulares, leis típicas e funções fundantes e guias dos artefatos. Tudo isso
converge para nossa recomendação de que se entenda que tantos são, no
cosmo, os níveis distintos quanto são os níveis relacionados, o que nos
impede de cair na armadilha de presumir, desde o início, que a explicação
leva somente à redução ontológica.
Apêndice 2: O meio intelectual de Herman Dooyeweerd

Albert M. Wolters

Mais do que no caso da maioria dos filósofos de estatura internacional, ainda se faz
necessário divulgar o pensamento de Herman Dooyeweerd fora de seu país natal, em razão
do desconhecimento generalizado sobre o meio intelectual em que desenvolveu sua
filosofia. Os dois fatores mais relevantes desse meio — o neocalvinismo holandês e a
filosofia alemã a ele contemporânea — são ainda grandezas amplamente desconhecidas no
mundo da filosofia anglo-americana. Ademais, as pessoas familiarizadas com um desses
fatores, em geral, costumam conhecer pouco acerca do outro.[35] Contudo, Dooyeweerd não
pode ser compreendido sem certa apreciação de ambas as tradições. Consequentemente,
meu propósito neste ensaio é oferecer um esboço breve e formal de como, de um lado, os
grandes temas do neocalvinismo holandês, e do neokantismo e fenomenologia alemães, de
outro, exerceram influência sobre a formação intelectual de Dooyeweerd. Desse modo,
espero tornar mais inteligíveis alguns dos problemas e categorias na filosofia de
Dooyeweerd, os quais são frequentemente de difícil acesso. Muitos dos temas que aqui
apresento serão trabalhados posteriormente pelos outros ensaios.[36]
Pode parecer que o neocalvinismo holandês e a filosofia alemã são fatores bastante
heterogêneos, não sendo, assim, possível compará-los efetivamente somente sob a rubrica
de meio intelectual. Afinal, o primeiro não se refere a um movimento religioso e teológico,
ao passo que o outro, a uma influência secular e mais estritamente acadêmica? Não há
dúvida da validade dessa observação, mas é importante notar que, da perspectiva do
próprio pensamento de Dooyeweerd, a oposição entre “religioso” e “secular”, ou entre
“teológico” e “mais estritamente acadêmico”, é falsa. Antes, talvez seja mais apropriado
tratar do neocalvinismo como a força intelectual dominante no nível da cosmovisão de
Dooyeweerd, e a filosofia alemã como o catalisador intelectual primário[37] no nível da
filosofia, estritamente falando, isto é, enquanto disciplina acadêmica técnica. Na própria
visão de Dooyeweerd, ambos esses níveis são “religiosos” (no neerlandês: geestelijk),
assim como “intelectuais”, embora somente o segundo seja intelectual no sentido preciso
de “científico” (no neerlandês: wetenschappelijk). Além disso, os dois estão intimamente
ligados entre si.
Neocalvinismo

A própria concepção de uma ligação íntima entre cosmovisão e filosofia é um


legado do reavivamento do calvinismo, que forma o contexto imediato da vida e obra de
Dooyeweerd. Sob a liderança de Abraham Kuyper (1837-1920), o brilhante teólogo,
jornalista e político que ascendeu ao posto de primeiro-ministro dos Países Baixos (1901-
1905), um pequeno segmento de protestantes holandeses levou a cabo um extraordinário
programa de re-cristianização dirigido a todas as áreas da cultura.[38] Dentre os feitos
notáveis realizados por esses neocalvinistas — não mencionando aqui uma nova
denominação eclesiástica, um novo partido político, um novo periódico e um novo
sindicato –, estava o estabelecimento, em 1880, de uma nova universidade, a Universidade
Livre de Amsterdã. O próprio Kuyper tornou-se o primeiro reitor e seu professor mais
proeminente desde sua fundação até tornar-se primeiro-ministro em 1901.
A influência de Kuyper permeou a vida de Dooyeweerd de todas as formas.
Dooyeweerd foi criado em Amsterdã, num lar kuyperiano, frequentou um colégio
(gymnasium) clássico neocalvinista nas localidades da Universidade Livre de Kuyper,
estudou nesta universidade e recebeu seu doutorado em 1917, trabalhando em seguida, por
alguns anos, como diretor do Instituto Kuyper em Haia, e finalmente, de 1926 a 1965, foi
professor em sua alma mater. Nasceu e foi criado na subcultura do neocalvinismo e passou
toda sua vida propagando e desenvolvendo sua cosmovisão essencial.
Um conceito-chave nesse vigoroso movimento religioso-cultural, que dominou por
algumas décadas a vida política e cultural dos Países Baixos, era a de uma “visão calvinista
do mundo e da vida”. Foi apresentado por Kuyper como um estandarte sob o qual todas as
fileiras das iniciativas culturais neocalvinista poder-se-iam reunir e que deveria pois ser
distinguido da teologia calvinista ou reformada, que tinha uma relação mais específica com
a igreja e com a vida de fé. De acordo com Kuyper, o calvinismo não era apenas uma
teologia, mas uma visão global da totalidade da vida e do mundo, que tinha implicações
diretas para todas as áreas das atividades humanas. Cabia, portanto, aos calvinistas
desenvolver essas implicações não apenas em suas vidas eclesiásticas e pessoais,[39] mas
também em todas as demais áreas da cultura, incluindo a da universidade e do trabalho
acadêmico. Era o calvinismo enquanto uma visão do mundo e da vida que fornecia a visão
transformadora que fundamentava, motivava e inspirava a ação cristã em cada fronte. Os
críticos de Kuyper chamavam essa atitude de “neocalvinismo”, e o próprio Kuyper veio a
adotar o termo.
Não surpreende, portanto, que quando Kuyper foi convidado para proferir as
Palestras Stone de 1898, na Universidade de Princeton, ele as tenha reunido sob o título
lapidar de Calvinismo. Ele explicou, em sua primeira palestra, que tinha em mente o
calvinismo enquanto cosmovisão, e de fato, nas palestras seguintes, continuou esboçando
as implicações do calvinismo para áreas como política, ciência e arte. Essas Lectures on
Calvinism [Palestras sobre o Calvinismo], como vieram a ser conhecidas no mundo
anglófono, ministradas em inglês perante uma audiência americana, e desde então
frequentemente reeditas, constituem um tipo de manifesto daquilo que Kuyper queria dizer
com “uma visão calvinista do mundo e da vida” e de todo o programa neocalvinista de
renovação cultural cristã
É preciso também assinalar que Kuyper usava a frase “visão do mundo e da vida”
como um de uma série de sinônimos, dentre os quais se incluíam expressões como
“biocosmovisão”, “sistema de vida” e “concepção de mundo”. É possível demonstrar que o
uso que Kuyper faz do termo reflete um conjunto de expressões alemãs análogas (que
encontramos frequentemente na obra do filósofo Wilhelm Dilthey, por exemplo), centradas
em torno da palavra Weltanschauung, a fonte para o vocábulo inglês “worldview”, que
Kuyper utiliza. Embora Kuyper e seus seguidores, incluindo Dooyeweerd, geralmente
preferissem a expressão mais rebuscada “visão do mundo e da vida” ou suas variantes,
neste ensaio valer-me-ei doravante do termo mais simples “cosmovisão”.
Quais são os pontos principais da cosmovisão que Kuyper identificava ao
calvinismo e como eles influenciaram a filosofia de Dooyeweerd? Segundo minha
avaliação, o ponto fundamental de uma cosmovisão calvinista (como a teologia reformada)
é sua insistência e coerência quanto a uma percepção central da relação entre criação e
salvação, entre natureza e graça. Na fórmula amiúde citada pelo teólogo Herman Bavinck,
sucessor de Kuyper na Universidade Livre e seu companheiro intelectual dentro do
neocalvinismo, a “graça restaura a natureza”.[40] Isso significa que o cristianismo não é
alheio à vida natural; antes, busca renová-la a partir de dentro, a fim de restabelecê-la a
seus devidos lugar e função criacionais. “Natureza” e “vida natural” são aqui concebidas
como criação num sentido amplo, um sentido efetivamente cósmico que abarca todo o
leque dos assuntos humanos, incluindo a totalidade da vida cultural e social. Inclui
especialmente a razão humana, a filosofia e todo o empreendimento científico. Tudo isto
jaz sob a maldição do pecado, mas tudo isso também se encontra dentro do escopo redentor
de Jesus Cristo.
O calvinismo, portanto, segundo Kuyper e Bavinck, não vê o evangelho como
antitético à vida criada em suas muitas manifestações, nem como paralelo ou suplementar a
ela; menos ainda como uma sua extensão evolucionária. Estas visões todas encontram seus
expoentes nas demais tradições cristãs. A bem da verdade, o calvinismo entende o
evangelho como sendo o poder curativo, restaurador, que redireciona e restabelece a
criação de acordo com o propósito original do Criador.
É essa intuição essencial que reaparece no trabalho de Dooyeweerd, quando ele
propõe que o motivo básico cristão ecumênico pode ser formulado tematicamente como o
da criação, queda e redenção. Dooyeweerd concebe essa como a alternativa bíblica aos
motivos básicos pagão, sintético e humanista que, pela maior parte do tempo, dominaram a
cultura ocidental. Essa formulação só pode ser compreendida à luz da relação
natureza/graça, conforme concebida na cosmovisão calvinista promovida por Kuyper e
Bavinck. A ligação é de certo modo obscurecida pela aversão de Dooyeweerd, em seus
escritos maduros, a formulações teológicas e por seu hábito posterior de evitar a
nomenclatura “calvinista” em favor de designações mais ecumênicas como “cristão” e
“bíblico”. Um estudo de seus primeiros escritos deixa bastante claro, contudo, que a visão
calvinista da relação natureza/graça — que ele descreve como allesbeheersend, isto é,
“absolutamente importante”[41] — foi, desde o princípio, fundamental à obra de sua vida.
Em minha opinião, não é exagero dizer que esse entendimento central da criação, queda e
redenção é a chave para a filosofia de Dooyeweerd e para todo o projeto intelectual ao qual
dedicou sua vida.
Intimamente associada a esse ponto essencial na cosmovisão neocalvinista está a
ênfase na lei criacional e na diversidade criacional. Se a salvação é realmente recriação, e
se a recriação significa uma restauração de tudo a seus função e lugar criacionais devidos,
então, pensava Kuyper, deve haver, para cada tipo de coisa, uma norma, um padrão, ao
qual deve ser restaurado e pelo qual se distingue de todos os demais tipos de coisa. É nesse
contexto que a questão calvinista da re-criação se une a outra questão dominante, a
soberania de Deus. Deus é soberano; portanto, sua palavra é lei para todas as criaturas. Essa
palavra-lei constitui a natureza normativa e identidade distintiva de todo tipo de coisa
criada, seja os carvalhos, a racionalidade humana ou o corpo político. Kuyper muitas vezes
utilizou o termo levenswet para expressar essa ideia; tudo tem sua própria “lei da vida”, o
padrão ao qual se deve conformar, caso queira viver ou operar plena e autenticamente. Esta
é a lei que é dada em virtude da criação; Kuyper também se refere a isso frequentemente
como “ordenança criacional”.
Esse tópico da lei criacional também predomina no pensamento de Dooyeweerd,
que o extraiu diretamente da cosmovisão calvinista, conforme elaborada por Kuyper. Para
ele, assim como para Kuyper, a criação é definida por lei. Uma distinção categorial
fundamental em Dooyeweerd é a correlação entre lei e “sujeito” (aquilo que está sujeito à
lei). Juntos, constituem os parâmetros básicos da realidade. Com efeito, a “ideia de lei”
(wetsidee) mostrou-se, desde o início, central no pensamento de Dooyeweerd. Ele próprio
cunhou a designação “filosofia da wetsidee”, para descrever seu pensamento, tendo sido
posteriormente traduzida para o inglês (por sugestão dele mesmo) como “filosofia da ideia
cosmonômica”.
O que talvez seja menos óbvio num primeiro momento é a continuidade entre
Kuyper e Dooyeweerd na questão da diversidade criacional. A relação entre criação e
diversidade ou pluriformidade é essencial ao pensamento de ambos os pensadores. As
diferenças que nos são dadas em nossa experiência – seja a experiência da diferença entre
pensamento e sentimento, entre um gerânio e um cacto, ou entre igreja e Estado – não são
simplesmente produtos da evolução ou do processo histórico no sentido de que qualquer
tipo de coisa possa transformar-se em outro tipo de coisa no curso do tempo; antes, estão
enraizadas na criação. Coisas diferentes são definidas por “leis da vida” específicas e têm
suas identidades garantidas por ordenanças criacionais. Isso não nega a evolução ou a
história, mas fornece as estruturas ontológicas com base nas quais todos os processos
podem ocorrer.
Para Kuyper, essa ideia da diversidade criacional assumiu uma relevância prática
diretamente no conceito de “esfera de soberania”. Com esta expressão ele se referia ao
princípio sociológico de que tipos distintos de instituições sociais (e.g. Estado, família,
escola, igreja) ou setores culturais (e.g., comércio, academia, arte) têm sua própria
jurisdição limitada e definida pela natureza específica da “esfera” relacionada. Esse tornou-
se o princípio orientador para o partido político cristão que Kuyper conduziu, fornecendo
uma base racional para limitar a autoridade do Estado e proteger os direitos e
responsabilidades distintos de instituições como a igreja e a família. Ao passo que Groen
van Prinsterer (1801-1876), predecessor de Kuyper na liderança do Partido Cristão
Antirrevolucionário, defendera esse princípio com fundamentos históricos, argumentando
que direitos e privilégios somaram-se às instituições sociais por direito consuetudinário e
pelo uso, Kuyper deu o passo decisivo de fundamentar a diversidade sociológica e cultural
na lei criacional. O objetivo central da ação cultural cristã era respeitar e reafirmar as
fronteiras criadas. Foi essa a mensagem do discurso de Kuyper intitulado Souvereiniteit in
eigen kring (soberania de esfera), quando da abertura da Universidade Livre de Amsterdã
em 1880 – uma universidade que deveria ter sua própria soberania, livre da jurisdição tanto
da igreja quanto do Estado.
Nisso, também, Dooyeweerd seguiu Kuyper. Não é exagero dizer que Dooyeweerd
começou a elaborar sua filosofia sistemática numa tentativa de prover um fundamento
ontológico mais amplo para o princípio kuyperiano de esfera de soberania. Desde o
princípio, compartilhava com Kuyper da convicção, tão fundamental à cosmovisão
neocalvinista, de que a diversidade básica estava enraizada na natureza da realidade criada,
devendo portanto ser compreendida com base na lei criacional. Embora, para Kuyper, a
esfera de soberania tenha sido um princípio sociológico que forneceu uma diretriz na
política prática, Dooyeweerd, por sua vez, expandiu-a para um princípio geral da
irredutibilidade ontológica, aplicável também a categorias como a vida e a matéria, a fé e a
emoção.
A despeito das diferenças, contudo, há uma unidade temática clara entre ambos os
pensadores, nesse ponto. Todas as criaturas, não somente as plantas e animais, são criados
“segundo sua espécie” (cf. Raízes da cultura ocidental). Há uma variedade maravilhosa,
uma intricada pluriformidade, integrada na própria tessitura da ordem criada, uma
variedade e pluriformidade que devemos respeitar e honrar, tanto na teoria quanto na
prática. Fazemos violência à criação, caso ignoremos as distinções reais ou espezinhemos
as diferenças genuínas.
O princípio da diversidade criada faz-se sempre presente em Dooyeweerd, seja
explicitamente ou não. Está ali, de modo inconfundível, quando o vemos aplaudir, em
Raízes da cultura ocidental, o avanço de Kuyper em relação a Groen no entendimento da
soberania de esferas. Mas pode passar-nos despercebido quando ele trata de permitir que o
“motivo criação” bíblico tenha seu pleno efeito em nosso pensamento, conforme
frequentemente afirma em Raízes da cultura ocidental. Para Dooyeweerd, o fruto teórico
do “motivo criação” é uma percepção amplificada e uma apreciação para a diversidade
dada dos tipos, especialmente em relação à ordem social. A menos que o interpretemos à
luz desse motivo chave da cosmovisão calvinista, perderemos de vista o objetivo de suas
muitas referências ao “motivo criação”.
Há outro tema relacionado à cosmovisão neocalvinista que é particularmente
significativo para o pensamento de Dooyeweerd. Trata-se da ideia de desenvolvimento
cultural da criação. Uma avaliação positiva do avanço histórico da cultura e sociedade
humanas constituía parte essencial de todo o programa de ação e visão de Kuyper. O
desenvolvimento da tecnologia, a construção de cidades, a diferenciação das instituições
sociais, a ascensão da ciência, o avanço da industrialização são todos exemplos dos
fenômenos que se tornaram possíveis, e que com efeito são evocados pelos potenciais da
boa criação de Deus. A civilização humana, aliás todo o curso da história, é uma resposta
ao chamado de Deus para a atualização, por parte do homem, das possibilidades e
potências latentes na criação. Esse chamado divino é o que Kuyper entendia como sendo o
sentido do mandamento paradigmático dado a Adão e Eva, em Gênesis, para dominar a
terra – mandamento que o próprio Kuyper denominou “mandato cultural” e alguns de seus
sucessores, “mandato criacional”. A terra, isto é, o domínio terreno da criação (todas as
coisas fora o céu enquanto habitação de Deus), era para ser, desde o princípio,
responsavelmente desenvolvido para a glória de Deus. E, a despeito de quão distorcidos os
vários produtos culturais e sociais tenham sido por parte da apostasia e perversidade
humanas, Kuyper acreditava que esses produtos possuíam uma validade intrínseca em
virtude da criação. Os cristãos poderiam afirmar a bondade criacional e legitimidade da
universidade, do Estado-nação, dos direitos humanos individuais e das estradas de ferro –
todos desenvolvimentos relativamente recentes na história da cultura humana. Esses
fenômenos, embora historicamente novos e em muitos aspectos associados às forças da
secularização, não eram estranhos aos propósitos de Deus na criação, mas sim intrínsecos a
eles. E mais, Kuyper acreditava que é dever dos cristãos não somente afirmá-los (embora
opondo-se a suas distorções), mas efetivamente defender e promover seu avanço dentro do
contexto da vinda do reino de Deus.
A criação, portanto, na cosmovisão neocalvinista, era escatológica num sentido
cultural abrangente, e tinha implicações para uma filosofia completa da história. É essa
ideia que Dooyeweerd desenvolveu em sua concepção do “processo de abertura”
(ontsluitingsproces) da criação e sua teoria do desenvolvimento histórico. Ligado à sua
noção de diversidade criacional, especialmente quando aplicada à ordem social na doutrina
da soberania da esfera, esse processo significa que a história envolve a diferenciação e o
progressivo desdobramento da natureza criacional singular de cada instituição social e de
cada setor cultural. Elaborado em termos de analogias e de posição fundamental do aspecto
histórico, Dooyeweerd dá a esse traço essencial da cosmovisão neocalvinista uma
articulação filosófica altamente sofisticada em sua filosofia técnica da história.
Voltemo-nos, por fim, a outro ponto importante da cosmovisão defendida por
Kuyper: a ideia de antítese. No uso de Kuyper, refere-se em primeiro lugar à oposição
espiritual entre obediência e desobediência a Deus, entre o Espírito de Deus e os espíritos
deste mundo. Em termos práticos, significa uma grande divisão entre aqueles que
reconhecem a realeza de Jesus e buscam honrá-la em cada área da vida e aqueles que
negam essa realeza. A antítese, portanto, divide crentes de descrentes, embora num nível
mais profundo também divida os corações de crentes, visto que o pecado se encontra
igualmente naqueles que nasceram de novo pelo Espírito.
Essa oposição espiritual, ou antítese, está também relacionada intimamente ao tema
fundamental de que a graça restaura a natureza e deve ser compreendida com base nisso. A
natureza, a boa criação de Deus, é a arena de duas forças opostas. Há a força do pecado e
desobediência a Deus que perverte e distorce a totalidade, e há a força de restauração e
renovação em Jesus Cristo que busca desfazer toda perversão e distorção a fim de
restabelecer o propósito original de Deus para a criação. Essas duas forças se chocam; são
diretamente antitéticas. Ademais, são ambas cósmicas em seu escopo: tanto o pecado
quanto a salvação se estendem por toda criação.
Para Kuyper isso significava que as forças da cristianização tinham de opor-se, em
toda parte, às forças da secularização — na educação, na política, no jornalismo, na
academia, nas relações industriais, e assim por diante. A antítese religiosa entre crença e
descrença – uma vez que não se restringia a uma esfera acima ou paralela à intensa
atividade da vida natural, sendo, pelo contrário, uma competição espiritual por essa vida
[natural] mesma – expressou-se devidamente no meio dos afazeres “seculares” comuns da
vida criada. Isso significava que uma universidade cristã deveria envolver-se no trabalho
acadêmico sério, que buscaria forjar uma nova direção cristã nas várias disciplinas
acadêmicas, incluindo a filosofia.
A visão de Kuyper de uma vasta batalha espiritual sendo travada em meio aos
assuntos humanos teve um profundo impacto na vida e pensamento de Dooyeweerd. Ele
não apenas se dedicou ao ideal de erudição cristã, mas compreendeu que seu trabalho
filosófico tomava parte na antítese religiosa. Ele repetidas vezes enfatiza a inevitabilidade
dessa concepção, embora também regularmente nos alerte a fim de não concebermos a
antítese como simplesmente uma oposição entre diferentes grupos de pessoas. A antítese,
em última instância o conflito entre o reino de Deus e o reino das trevas, encontra-se até
mesmo em nossos corações.
Há muitos outros temas da cosmovisão neocalvinista que moldaram o pensamento
de Dooyeweerd. Por exemplo, quando ele recorrentemente trata, em sua maior obra, A New
Critique of Theoretical Thought [Nova crítica do pensamento teórico], da “realidade
terrena”, podemos compreendê-lo somente se soubermos que o neocalvinismo dividia a
criação em céu e terra, e que a investigação científica (incluindo a filosofia) se limita ao
reino terreno. De fato, toda a infraestrutura da filosofia de Dooyeweerd, os pressupostos em
operação que frequentemente não são explicitamente discutidos, procede diretamente da
cosmovisão comumente aceita do neocalvinismo. Mas já tratamos o suficiente para que
seja possível corroborar esta conclusão de Karel Kuyper, um antigo aluno de Dooyeweerd
e atualmente um reconhecido filósofo neerlandês, que escreveu na ocasião da morte de
Dooyeweerd em 1977: “De modo sumário, devemos enfatizar que, na obra [de
Dooyeweerd], as ideias essenciais do Dr. Abraham Kuyper, que levaram à fundação da
Universidade Livre, receberam pela primeira vez uma elaboração fundamental na filosofia
e na teoria da ciência”.[42]

Neokantianismo e fenomenologia

Voltamo-nos agora para outro grande componente do meio intelectual de


Dooyeweerd, o fato que é importantíssimo para o entendimento de alguns dos traços mais
técnicos e estritamente filosóficos de seu pensamento. Após esboçar essa dimensão de seu
contexto, retornaremos à questão de como ele se relaciona com a influência do
neocalvinismo em Dooyeweerd.
Não há como se duvidar que a orientação estritamente filosófica de Dooyeweerd
esteve, desde o início, voltada para a Alemanha. De modo geral, é fato que, no princípio do
século XX, a vida intelectual neerlandesa, por conta de seu cosmopolitismo, estava muito
mais atrelada ao pensamento do mundo germanófono do que às áreas francófonas ou
anglófonas. Os intelectuais neerlandeses tinham fácil acesso a essas três influências – os
calouros de todas as universidades eram capazes de ler as três línguas —, mas havia um
laço especialmente próximo com seus primos germânicos a leste, principalmente em
teologia e filosofia. Talvez não seja exagero dizer que a Holanda, intelectualmente falando,
era, naquela época, uma província cultural da Alemanha.
Em fins do século XIX e princípios do XX, o cenário filosófico alemão fora
dominado pelo neokantismo, um revigoramento da filosofia de Immanuel Kant (1724-
1804).[43] O novo movimento era uma reação profunda ao materialismo e positivismo
reinantes de meados do século XIX. Os neokantianos, assim como os positivistas,
postulavam a autonomia da ciência e da razão, mas, diferentemente destes últimos,
enfatizavam a autonomia das ciências humanas face às ciências naturais e a importância
das questões metafísicas ao se lidar com a ampla extensão da Wissenschaft (a ciência em
geral). Acima de tudo, as próprias ciências, bem como os diferentes setores da natureza e
experiência humanas que investigam, estavam fundamentados na e são possibilitados pela
estrutura da subjetividade humana. As palavras-chave eram transzendental, a priori e
begrüden (fundamentar-se). Responder à questão transcendental (“Como é possível que x
exista ou seja válido? O que torna x possível?) é fundamentar x num a priori da experiência
humana, num ego lógico transcendental, em algo que constitui x mesmo antes que x
adentre nossa experiência. Em última análise, uma vez que o mundo é o mundo da
experiência humana, o sujeito “constitui” o mundo.
Na época posterior à sua graduação, esse kantismo ressurgente havia tomado cada
uma das cátedras de filosofia das quatro maiores universidades neerlandesas, sem contar a
minúscula Universidade Livre de Amsterdã. O neokantismo, ou Kritizismus, como era
habitualmente denominado, era tão difundido quanto o é hoje a filosofia analítica no
mundo anglo-saxão. Além disso, os professores na Universidade Livre de Amsterdã
estavam inclinados a ser prudentemente simpáticos a esse movimento; afinal de contas, o
neokantismo também travava guerra contra o arqui-inimigo, o positivismo, e em níveis
variados deixava certo espaço legítimo para a religião e fé. O teólogo W. Geesink, da
Universidade Livre de Amsterdã, que estava também encarregado do ensino de filosofia,
passou gradativamente de uma posição aristotélica para outro mais simpática à “filosofia
crítica” de Kant e de seus sucessores. Para aqueles interessados nas questões fundacionais
da metodologia e da metafísica, especialmente nas humanidades e nas ciências sociais —
devemos lembrar que Dooyeweerd era, por profissão, um teórico do Direito — era então o
neokantismo que abria novas sendas.
Sabemos, pelo próprio testemunho de Dooyeweerd, que ele passou por uma fase
neokantiana. No prefácio de seu New Critique escreve: “Originalmente estive sob forte
influência, primeiramente, da filosofia neokantiana, posteriormente da fenomenologia de
Husserl” (NC I, v). Isto se confirma pelas suas primeiras publicações, em que abundam
referências aos neokantianos.
Dizer que Dooyeweerd passou por uma fase neokantiana não equivale a dizer que
ele fora sempre um neokantiano consumado. A racionalidade autônoma do neokantismo,
em especial, era incompatível com a visão kuyperiana da natureza religiosa de toda ciência.
De igual modo, Dooyeweerd não era um idealista epistemológico. Contudo, havia certas
tendências e abordagens neokantianas que se tornaram parte de seu pensamento e assim
permaneceram ao longo de sua vida. O mais importante desses elementos é o método
transcendental. Dooyeweerd, de forma autoconsciente, se refere à sua própria filosofia
como filosofia transcendental e, repetidas vezes, afirma que a chave para seu pensamento
se encontra em sua “crítica transcendental do pensamento teórico”, uma frase que
claramente remete à Crítica da razão pura (1781) e que ecoa no título em inglês da
magnum opus dooyeweerdiana. Nesta, o “pensamento teórico” (em vez de “razão pura”)
está sujeito a uma nova (i.e., pós-kantiana) crítica, e o sujeito no qual se fundamenta
revela-se não um ego transcendental lógico, mas um ego transcendental religioso, que é
equivalente ao “coração” bíblico. Kant é severamente criticado por sua visão limitada da
experiência humana, mas o método pelo qual Dooyeweerd descreve filosoficamente a
experiência é claramente inspirado (e é paralelo) ao procedimento kantiano. Dooyeweerd
detém-se um pouco antes de sugerir que nossa experiência é “constituída” pelo sujeito
humano, mas ele de fato trata de “a prioris” subjetivos que tornam a experiência possível. É
o que leva um crítico simpático ao pensamento de Dooyeweerd, o filósofo sul-africano
H.G. Stoker (1899-1993), a falar de um tipo de “idealismo de sentido” em Dooyeweerd e a
censurá-lo por ter dado um peso indevido ao método transcendental na filosofia.
Outros elementos neokantianos se fazem abundantemente presentes na obra de
Dooyeweerd. A distinção entre “conceito” e “ideia”, por exemplo, é tomada do kantismo,
especialmente do teórico neokantiano do direito Rudolph Stammler (1856-1938). A ideia
de filosofia como um tipo de superciência enciclopédica é neokantiana em sua origem.
Dooyeweerd demonstra afinidades particularmente com o neokantismo da chamada Escola
de Heidelberg ou Escola do Sul da Alemanha, liderada por Wilhelm Windelband (1848-
1915) e Heinrich Rickert (1863-1936). Isso transparece em sua interpretação de Kant, a
qual sublinha o significado da dialética transcendental e a legitimidade suprema da
metafísica, assim como em muitos detalhes de terminologia, por exemplo a distinção entre
“normas” e “leis da natureza”, que ecoa o ensaio seminal de Windelband, “Normen und
Naturgesetze”, de 1882.[44]
Dooyeweerd também mencionou que esteve por um tempo sob a influência da
fenomenologia. Esta é a segunda grande escola da filosofia alemã que devemos ter em
conta, caso queiramos um retrato do contexto intelectual de Dooyeweerd.
A fenomenologia, enquanto escola de filosofia fundada por Edmund Husserl (1859-
1938), é caracterizada por uma virada ao objeto, uma insistência na realidade independente
dos dados objetivos de nossa experiência. Ademais, interpretava-se amplamente o termo
“objeto”, de modo que também veio a interpretar-se a “experiência” num sentido muito
mais amplo do que se permitia no modelo sentido-dados do empirismo. Estados de espírito,
sonhos e valores tornaram-se componentes da experiência humana com status ontológicos
próprios, que a filosofia deveria descrever e catalogar. Por definição, a experiência se torna
inerentemente “intencional”, isto é, direcionada ao objeto. É preciso, porém, muito cuidado
para não reduzir um tipo de experiência a outro, mas sim permitir que a natureza singular
de cada fenômeno se mostre em sua própria integridade. Parte dessa atitude geral de
antirreducionismo devia-se à luta de Husserl contra aquilo que chamava de psicologismo,
isto é, a tentativa de reduzir o pensamento e o raciocínio a mecanismos psicológicos como
a associação. Em oposição a isso, Husserl defendia a irredutibilidade do pensamento
analítico, sua própria autonomia frente aos processos psíquicos. Do início ao fim, o espírito
da fenomenologia era um espírito de respeito para com a variedade dada da experiência,
um desejo de honrar o mundo dos objetos, tal como verdadeiramente se apresenta em nossa
experiência.
Ligada a essa atitude geral, estava a doutrina do método fenomenológico, um
procedimento que permitiria o fenomenologista abstrair-se (“colocar entre parênteses”) da
realidade ou existência de um objeto, e chegar a uma intuição da essência de uma coisa (o
famoso Wesensschau de Husserl). Desse modo, a natureza essencial das coisas tornar-se-ia
genuinamente apreensível.
Em Dooyeweerd, um número considerável desses pontos (ou pontos análogos)
parecem estar presentes. A meu ver, o mais importante deles é provavelmente a ênfase na
realidade do objeto. Ao passo que Husserl, na redução transcendental, aparentemente fez
com que o objeto da experiência dependesse, em última instância, de um ego lógico
constituinte,[45] Dooyeweerd, por sua vez, dá ao objeto, ou, antes, à função-objeto das
coisas, o tipo de status ontológico real que Husserl, inicialmente, parecia pressupor. Para
Dooyeweerd, não apenas a “verdidade” é um traço ontológico real da grama, mas também
o é sua “conceitualidade”, suas qualidades estéticas e seu valor econômico. O que
Dooyeweerd chama de relação sujeito/objeto, a relação básica da experiência ingênua (i.e.,
a experiência pré-científica do dia a dia), parece ser uma forma radicalizada de
“intencionalidade” no sentido husserliano, uma relação inerentemente direcionada ao
objeto, que é definida pela realidade dada à qual se remete.
Relacionado a isso, tem-se a respeitosa atitude fenomenológica de Dooyeweerd para
com o dado em toda sua variedade e nuances, com sua concomitante aversão a todo tipo de
reducionismo. Este é um ponto no qual o motivo da criação, no contexto de sua própria
cosmovisão original, é reforçado pelas ênfases da filosofia fenomenológica, e é difícil
delimitar onde uma influência termina e a outra começa.
É tentador, também, enxergar, na visão dooyeweerdiana da abstração científica, um
legado da fenomenologia husserliana. É verdade que ele usa o termo de Husserl, epoché
(“colocar entre parênteses”)[46], para descrever o processo de abstração modal que define a
atitude científica ou teórica do pensamento, além de usar também o termo “intencional” em
oposição a “ôntico”, a fim de descrever a resultante relação Gegenstand (NC, 1:39);
contudo, não é claro como isso se relaciona com o “colocar entre parênteses” e o
Wesensschau de Husserl. O próprio Dooyeweerd, ao menos, insiste que não há paralelo
material (NC, 2:73).
Quer se aplique ou não à relação Gegenstand, não resta dúvida de que a noção de
uma apreensão imediata — reminiscência da Wesensschau — é um importante elemento na
ideia dooyeweerdiana de intuição. Na filosofia de Dooyeweerd, os momentos nucleares das
esferas modais, por exemplo, são diretamente conhecidos pela intuição — um ato que ele
descreveu em alguns de seus escritos iniciais usando o verbo neerlandês arcaico schouwen,
um óbvio cognato do Schau de Husserl. Seria necessária uma análise mais detida para
determinar se a afinidade com a concepção de Husserl nesse ponto é mais do que
simplesmente verbal.
Para completar nosso esboço acerca das filosofias alemães que se mostraram
relevantes no meio intelectual de Dooyeweerd, devemos mencionar dois pensadores que,
como ele, passaram tanto pelo estágio neokantiano quanto pelo fenomenológico. Os nomes
que tenho em mente são Nicolai Hartmann (1882-1950) e Martin Heidegger (1889-1976),
ambos os quais produziram obras seminais durante a década de 1920, quando Dooyeweerd
estava em seus intensos anos de formação intelectual, e que aparentemente deixaram uma
profunda marca sobre ele.
Hartmann foi o sucessor de Paul Natorp (1854-1924) na neokantiana Escola de
Marburgo, fundada por Herman Cohen (1842-1918). Em 1921, após alguns anos de
silêncio, Hartmann publicou uma obra com o título provocativo de Metaphysik der
Erkenntnis (metafísica do conhecimento) — provocativo porque a Escola de Marburgo
interpretava Kant como o inimigo de toda metafísica. O que era ainda mais revolucionário
era que Hartmann, sob a influência da fenomenologia, deu adeus ao idealismo do
neokantismo nessa sua obra, e defendeu, antes, um realismo epistemológico bastante
resoluto, revertendo, assim, a revolução copernicana de Kant. Isso foi água para o moinho
de homens como Dooyeweerd, que estavam fazendo uma peregrinação filosófica análoga –
pode-se demonstrar que ele leu e citou extensivamente a obra, logo após ter sido publicada.
A relevância dessa informação reside não tanto em seu interesse epistemológico quanto no
fato de que Hartmann, em seus primeiros trabalhos, também desenvolveu os primórdios
daquilo que posteriormente chamaria de sua Schichtentheorie (teoria dos níveis) e que seria
uma pedra angular de sua futura ontologia, especialmente conforme sua elaboração num
grande trabalho publicado em 1935. Ora, sua teoria, que propunha um número de “níveis”
ontológicos ou “estratos” (Schichten) sobrepostos uns sobre os outros, de modo que o
estrato superior e seguinte se assentava, em cada caso, sobre o estrato anterior, embora não
se reduzindo a este, é, de modo surpreendente, análoga à escala modal de Dooyeweerd.
Ora, Dooyeweerd sempre rejeitou a sugestão de que tivera alguma dependência de
Hartmann, argumentando que a Schichtentheorie só fora publicada muito depois de ter
divulgado sua teoria em livro (NC 2:51); porém, um exame do Metaphysik der Erkenntnis
(1921) deixa espaço para dúvidas sobre a negação de Dooyeweerd.[47] Qualquer que seja o
caso, é inquestionável que Dooyeweerd elaborou sua própria versão dessa ideia de uma
maneira independente.
A obra de Heidegger que Dooyeweerd estudou intensivamente nos anos de 1920 foi
O ser e o tempo (1927). Reza a lenda que Dooyeweerd o leu treze vezes antes de declarar
que o havia compreendido. Em todo caso, seu exemplar pessoal da obra,[48] por seus grifos
e comentários de margem, fornecem evidência de uma leitura cerrada e de uma interação
com essa obra fundamental. Há também pouca documentação, conforme percebo, para
permitir-nos especular sobre as possíveis ligações entre o existencialismo e o pensamento
de Dooyeweerd, mas há um ponto que pode estabelecer uma conexão entre Heidegger e
Dooyeweerd: a ideia do tempo cósmico. Vincent Brümmer demonstrou que Dooyeweerd
apresentou seu conceito de tempo em fins da década de 1920, por volta da época em que
leu Heidegger.[49] Dooyeweerd entendia o tempo como um tipo de princípio ontológico de
continuidade intermodal, guardando pouquíssima relação àquilo que chamamos tempo na
linguagem comum.
Há muitas outras figuras na filosofia alemã que poderiam ser destacadas como
importantes para o desenvolvimento de Dooyeweerd — os nomes de Wilhem Dilthey
(1833-1911) e Oswald Spengler (1880-1936) foram mencionados nessa questão —, mas
deixaremos nosso breve esboço tal como se encontra.
Há, contudo, um outro nome, embora seja um filósofo neocalvinista neerlandês e
não alemão, que deveria ser mencionado quando estamos tratando do contexto filosófico
do pensamento de Dooyeweerd. Trata-se de D.H.T. Vollenhoven (1892-1978) — um nome
que esteve bastante associado com o de Dooyeweerd e também bastante ofuscado por ele.
É extraordinário quão intimamente entrelaçadas e semelhantes as vidas desses dois homens
foram.[50] Contudo, havia também diferenças significativas. A mais importantes delas para
nossos presentes propósitos é que Vollenhoven recebeu um doutorado em filosofia na
Universidade Livre em 1918, e publicou sua tese doutoral, intitulado De wijsbegeerte der
wiskunde van theistisch standpunt (A filosofia da matemática de uma perspectiva teísta),
vários anos antes de Dooyeweerd — mais novo que ele — ter desenvolvido interesse pela
filosofia. Nos primórdios dos anos 1920, quando ambos viviam em Haia e estudavam
juntos Hartmann, e também quando Dooyeweerd, em constante interação com Vollehoven,
estava começando a familiarizar-se com as questões filosóficas em sua própria disciplina
da ciência do direito, Vollenhoven já havia publicado um livro substancial em filosofia,
assim como um número considerável de artigos bastante profundos no qual as sementes de
sua filosofia sistemática posterior faziam-se já claramente evidentes. Seria um grande
equívoco descrever Vollenhoven como um coadjuvante em relação ao gênio de
Dooyeweerd. Com base nas primeiras publicações de Vollenhoven, poder-se-ia
fundamentar a tese de que, de maneiras significativas, ele moldou a filosofia sistemática
então em desenvolvimento de Dooyeweerd, especialmente em relação aos pontos da
cosmovisão neocalvinista. Os primórdios da noção de conceitos analógicos, por exemplo,
ou da centralidade do coração podem ser documentadas em Vollenhoven, antes mesmo que
Dooyeweerd começasse a atuar na filosofia. Por outro lado, Vollenhoven jamais aceitou
alguns dos conceitos-chave de Dooyeweerd, notadamente a crítica transcendental, o ser
como sentido, o tempo cósmico e a análise dos motivos básicos da cultura ocidental; nestes
pontos, ele atuou, pelo contrário, como um importante e contínuo crítico filosófico do
pensamento de Dooyeweerd.

Neocalvinismo e filosofia alemã

Retornamos agora à questão do relacionamento entre os dois amplos movimentos


que sugeri, num primeiro momento, terem influenciado Dooyeweerd: o neocalvinismo e a
filosofia alemã nos primórdios do século XX. É claro que as principais ideias de ambos os
movimentos estão entrelaçadas de várias maneiras em seu pensamento maduro. No entanto,
pode-se formular uma generalização como a seguinte: a cosmovisão subjacente ao
pensamento de Dooyeweerd mantém-se em continuidade essencial com a visão do
neocalvinismo, embora a elaboração filosófica dessa visão seja construída basicamente
com as ferramentas conceituais oriundas da filosofia alemã — principalmente o
neokantismo, e em segundo lugar, a fenomenologia.
Se isso é verdade, um número de implicações faz-se presentes aqui. Uma delas é que
a relevância de Dooyeweerd e seu legado residem mais no impacto da cosmovisão que
compõe sua filosofia do que nas categorias sistemáticas que dependem do neokantismo e
da fenomenologia. A singularidade de Dooyeweerd em meio aos filósofos do século XX se
encontra no vigor e perseverança com que conduziu o programa neocalvinista na filosofia.
Dentro do mundo da filosofia, considerado panoramicamente, que por muito tempo se
definiu com base na autonomia do pensamento teórico, essa singularidade é também um
escândalo, de modo que o pensamento de Dooyeweerd frequentemente evoca a acusação de
ser teologia, e de modo nenhum filosofia. Dentro do mundo dos filósofos cristãos, contudo,
a singularidade de Dooyeweerd é precisamente o que constitui sua relevância para a
filosofia. Se se admite a premissa básica de que a religião é necessariamente um fator
central em toda a atividade filosófica, então Dooyeweerd é um pioneiro de proporções
heroicas na filosofia do século XX. Visto sob essa luz, ele pode provar-se um seguidor
moderno digno de gigantes cristãos como Agostinho, no século V, cuja inspiração religiosa
essencial continua a cativar as mentes contemporâneas, mesmo quando as particularidades
de suas categorias filosóficas neoplatônicas têm pouca relevância, contemporaneamente.
Dizemos isso não com o propósito de afirmar que a filosofia sistemática de
Dooyeweerd é simplesmente uma curiosidade histórica, um exemplo interessante de como
uma visão protestante e definida da vida estruturou-se segundo os aparatos filosóficos de
sua época. O objetivo é, antes, mostrar que Dooyeweerd (como Agostinho) é
filosoficamente mais interessante e relevante nesses pontos precisos de seu pensamento em
que sua cosmovisão cristã forja novas categorias que, embora desenvolvidas com base e em
contato com o meio filosófico de sua época, opõem-se e transformam os elementos em seu
interior.
A meu ver, um dos exemplos mais significativos desse tipo de reforma filosófica
cristã se encontra na concepção de Dooyeweerd da correlação lei-sujeito, especialmente
conforme é desenvolvida em sua teoria das estruturas de individualidade. Neste ponto, a
cosmovisão neocalvinista, ou (como Dooyeweerd preferia dizer em seus escritos maduros)
o motivo básico das Escrituras cristãs, produz novos e importantes frutos filosóficos,
apontando um caminho que pode superar dilemas como lei natural versus historicismo, e
substância versus função. Em relação a isso, os conceitos de Dooyeweerd de princípio
normativo, estrutura normativa e positivação histórica, trabalhadas detalhadamente em sua
especialidade (a ciência do direito), permanecem promissores para aplicações frutíferas em
outras disciplinas.
Desse modo, de maneira geral, creio que a relevância filosófica de Dooyeweerd é
estritamente proporcional a seu sucesso com a condução do programa de Kuyper de uma
reforma cristã do trabalho acadêmico. Nesse sentido, o reconhecimento dos pontos e
categorias neokantianos e fenomenológicos em seu pensamento, embora nos alerte quanto
a percepções genuínas presentes nesses movimentos filosóficos, pode também levar-nos ao
reconhecimento daquilo que é genuinamente novo e significativo nesse filósofo
inteiramente cristão.
Bibliografia

Hebden Taylor, A nova ordem legal à luz da filosofia cristã do direito. Brasília:
Monergismo, 2019.
Herman Dooyeweerd, Estado e soberania: ensaios sobre cristianismo e política. São
Paulo: Vida Nova, 2014.
Herman Dooyeweerd, No crepúsculo do pensamento ocidental: estudos sobre a pretensa
autonomia do pensamento filosófico. Brasília: Monergismo, 2018.
Herman Dooyeweerd, Raízes da cultura ocidental. São Paulo: Cultura Cristã, 2015.
Josué K. Reichow, Reformai a vossa mente: a filosofia cristã de Herman Dooyeweerd.
Brasília: Monergismo, 2019.
L. Kalsbeek, Contornos da filosofia cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2015.
Roy A. Clouser, O mito da neutralidade religiosa. Brasília: Monergismo, 2019.

[1]
Por Fred H. Klooster (1922-2003), autor de diversos livros e professor de Teologia Sistemática
durante 35 anos no Calvin Theological Seminary. Esta edição em português foi traduzida a partir da
edição inglesa.
[2]
Pelo Rev. Hak-Soo Han.
[3]
Herman Dooyeweerd, A New Critique of Theoretical Thought, volume 1 (Paidea Press, 1984).
Prefácio do tradutor, p. XII.
[4]
Herman Dooyeweerd, No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia
do pensamento filosófico (Brasília: Monergismo, 2018), p. 15.
[5]
Kampen, 4ª edição, 1950.
[6]
“Filosofia da Ideia da Lei”, ou “Filosofia do Conceito de Lei”. O título enfatiza que esse sistema de
filosofia cristão reconhece a lei que Deus instituiu como a grande fronteira entre o Criador e a criação, e
a concebe como fundamental para entender o mundo. Cf. especialmente as seções 5, 7, 9 e 10 abaixo e
também Dr. H. Dooyeweerd, Transcendental Problems of Philosophic Thought (Grand Rapids: Wm. B.
Eerdmans, 1948), p. 15 ss.
[7]
A Universidade Livre, localizada em Amsterdã, Holanda, foi fundada em 1880 pelo Dr. Abraham
Kuyper. Hoje ela é uma universidade cristã de pleno direito, conhecida mundialmente, com faculdades
de teologia, direito, ciências naturais, filosofia, literatura, economia e medicina. Ela publica a revista
acadêmica, principalmente em inglês, chamada “The Free University Quarterly”.
[8]
Spier faz, aqui, referência a um dos paradoxos de Zenão, mais especificamente aquele popularmente
conhecido como “Aquiles e a tartaruga”, embora, como é óbvio, atualizando os agentes (i.e., o
automóvel e o carrinho de bebê) na sua exemplificação. [N. do T.]
[9]
Lembrando, conforme dito acima, que quatorze é o número obtido pela soma da ideia central
(núcleo de sentido) mais os momentos que são representações dos demais aspectos, precedentes e
posteriores (isto é, retrocipações e antecipações), dentro de cada esfera de lei. [N. do T.]
[10]
Após consideração posterior, o autor deste livreto não mais sustenta a visão do Prof. Dooyeweerd
de que o coração humano é supra-temporal. Em distinção às manifestações de tempo nas esferas de lei,
Spier agora fala do tempo religioso da alma. A esse tempo religioso e as formas de tempo dentro dos
aspectos, ele chama de as duas dimensões do tempo cósmico. Spier explica essa visão num novo livro,
Time and Eternity, publicado por J. H. Kok de Kampen.
[11]
Nas páginas seguintes três frases usadas são difíceis de verter exatamente para o inglês
(português). A dificuldade surge de distinções entre social (samenleving) e sociedade (maatschappij).
A primeira é “samenlevingsverbanden” (relações sociais) que incluem aqueles de uma natureza
institucional (família, igreja e Estado), bem como outros estabelecidos pela livre agência humana
(escolas, negócios, clubes) para os quais o segundo termo é usado, a saber, “maatschappelijke
verbanden” (organizações societárias). O terceiro termo é intimamente relacionado. É
“maatschappelijke betrekkingen” (contratos societários) e refere-se àqueles livres contratos que não são
baseados sobre organização e autoridade.
[12]
A referência aqui e mais adiante não diz respeito, por óbvio, a posicionamentos ideológicos
modernos, mas sim à metonímia bíblica que entende a “esquerda” como o caminho ou comportamento
pecaminoso e iníquo, e a “direita” ou “destra” como o estilo de vida em obediência ao Senhor. Cf.
Eclesiastes 10.2: “O coração do sábio se inclina para o lado direito, mas o do estulto, para o da
esquerda”. [N. do T.]
[13]
A edição original de New Critique (doravante NC) foi publicada pela Presbyterian & Reformed
Publishing Co., Philadelphia, em 1953. Foi reeditada pela Mellen Press, Lewiston, NY, em 1997. Ao
dizer que a ontologia de Dooyeweerd tem um poder explanatório maior que a de Aristóteles, não
pretendo dizer que é mais detalhada, mas que evita vários impasses que a ontologia de Aristóteles não
pôde evitar, como a relação entre forma e matéria e se os artefatos representam novas formas.
[14]
A crença em algo enquanto a realidade incondicional da qual tudo o mais depende é central a todas
as religiões e é a única característica que todas têm em comum. Para Dooyeweerd, tais crenças são um
produto antes da experiência de uma pessoa que de provas ou argumentos — embora seja preciso ter
em mente que tais crenças podem ser suposições inconscientes, assim como compromissos sinceros.
Ademais, as experiências que dão origem a essas crenças podem variar em seu conteúdo. Por exemplo,
enquanto Calvino diz: “Rogam que se lhes responda como seremos persuadidos de que a Escritura
procede de Deus sem nos abrigarmos no decreto da Igreja? Assim como distinguimos a luz das trevas,
o branco do negro, o doce do amargo” (Instituição I, 7, 2), Paul Ziff disse: “Se você me perguntar por
que sou um materialista... não é por conta dos argumentos. Acho que teria de dizer que a realidade me
parece irresistivelmente física”.
[15]
Instituição da religião cristã, Tomo I (São Paulo: Editora UNESP, 2008), p 57.
[16]
Dooyeweerd jamais empreendeu uma defesa dessa definição de crença religiosa ou da declaração
de que as crenças em algo como sendo autoexistente são igualmente religiosas, quer ocorram nas
teorias, quer se deem nas tradições religiosas. Argumento extensivamente a favor desses dois pontos no
capítulo 2 de meu O mito da neutralidade religiosa (Brasília: Monergismo, 2019).
[17]
Nesse ponto, a posição de Dooyeweerd é a mesma da teologia ortodoxa oriental. Como São
Gregório Palamas observa: “Os cristãos não podem tolerar qualquer substância intermediária entre o
Criador e as criaturas...” (citado em John Meyendorff, A Study of Gregory Palamas, Londres: Faith
Press, 1964, p. 130). Por essa mesma razão Dooyeweerd também rejeita qualquer tentativa de provar a
existência de Deus, afirmando, pelo contrário, que “aquilo que se provaria não seria, por conta disso,
Deus”. A razão é que, uma vez que o ser de Deus é a origem criativa de tudo, incluindo as leis da
prova, ele não está, por conseguinte, sujeito a essas leis. Assim, tentativas de provar sua existência
inadvertidamente o rebaixam ao status de criatura.
[18]
Nem todo uso do termo “redução” se refere a um sentido ontológico. Por exemplo, não há objeção
à substituição da teoria do calórico pela teoria da vibração molecular. Os tipos maiores de teorias que
são objetáveis podem ser, grosso modo, descritos da seguinte maneira:
A. Substituição de sentido. A natureza de toda a realidade deve possuir apenas propriedades do
tipo X, e ser governado somente por leis X. Defende-se isso por meio da afirmação de que
todos os termos com sentido supostamente não-X podem ser substituídos por termos X sem
nenhuma perda de sentido, embora nem todos os termos X possam ser substituídos por termos
não-X (Berkeley, Hume e Ayer defendiam o fenomenalismo desse modo).
B. Identidade factual. Embora os termos de vocabulários não-X não possam ser inteiramente
substituídos por termos X, os termos não-X, entretanto, referem-se apenas a propriedades ou
leis X. Defende-se a seleção de X com base no fato de que a única ou melhor explicação para
qualquer coisa tem invariavelmente os termos X como seus termos primários e as leis X como
suas leis básicas (J. J. C. Smart defendia o materialismo dessa forma).
C. Dependência causal metafísica. A natureza da realidade é basicamente (não exclusivamente)
constituída do(s) tipo(s) X (ou de X mais Y) das coisas. Defende-se essa posição afirmando
que há uma dependência de via única das propriedades e leis dos tipos não-X sobre entidades
cuja natureza é exclusivamente do(s) tipo(s) X (ou de X mais Y) (Aristóteles e Descartes
defenderam sua ideia de “substância” dessa maneira).
D. Epifenomenalismo. Esta posição é semelhante à da causalidade metafísica, com a exceção,
porém, de que os tipos de propriedades dependentes, causados, são menos reais, já que não há
leis dentro desses tipos, de modo que não se pode oferecer nenhuma explicação genuína com
base em propriedades epifenomênicas (Huxley e Skinner defendiam que estados da
consciência são simples epifenômenos em corpos ou comportamentos puramente físicos).

[19]
Veja Tobias Dantzig, Number: The Language of Science (Garden City, NY: Doubleday, 1954), p.
2-3.
[20]
Planck e Einstein, por exemplo. Veja as observações de Einstein em ‘‘Autobiographical Notes’’ in:
Albert Einstein, Philosopher-Scientist, ed. P.A. Schlipp (New York: Harper Torchbooks), p. 43.
[21]
A ordem dentro dos aspectos inferiores na lista é considerada como leis rígidas, embora a ordem
dentro dos aspectos mais intimamente associados com a vida social humana é considerada normas.
Diferentemente das leis rígidas como a da gravidade, as normas da linguagem, polidez, economia,
estética, justiça e ética constituem uma ordem que humanos tem capacidade de violar.
[22]
Pois para que haja objetos com naturezas fixas, teria de haver anteriormente (ao menos) leis
aspectuais governando o modo pelo qual as propriedades de cada aspecto se relacionam umas com as
outras. E para que as regularidades de lei fossem impostas pelos sujeitos cognoscentes em sua
experiência, teria de haver, antes disso, regularidades do tipo lei regendo o processo cognitivo. Por
essas razões, o objetivismo e o subjetivismo apontam ambos — a despeito de suas intenções — para
um lado-lei distinto da realidade, que não tem sua origem nem no objeto nem no sujeito.
[23]
Os termos de Dooyeweerd para esses modos são “funções-sujeito” e “funções-objeto”, o que gerou
confusões em demasia, já que “sujeito” e “objeto” são usados aqui equivocadamente.
[24]
Veja NC, III, p. 78.
[25]
Os termos próprios de Dooyeweerd para essa ideia eram “encapse” e “totalidade encáptica”. Em
minha versão, simplesmente anglicizei os termos.
[26]
O termo de Dooyeweerd para isso era “estrutura de individualidade” (veja NC, III). Antes,
confundia-se tão frequentemente o termo, interpretando-o como se implicasse a organização interna de
um individual concreto em vez da lei que possibilita seu tipo, que cunhei a expressão “lei típica” para
substituí-lo. Há, é claro, aquelas que são chamadas “leis causais” na realidade, assim como as leis
aspectuais e leis típicas. A Teoria da Estrutura da Lei, no entanto, prefere chamá-las “relações causais”
porque, embora sejam parte da ordem da realidade, são multiaspectuais e têm qualificações aspectuais.
Além disso, não há relações causais nos três aspectos inferiores; elas surgem pela primeira vez no
aspecto físico. Porém, embora fundadas no aspecto físico, há relações causais qualificadas por cada um
dos aspectos a ele superiores. Por exemplo, a reprodução é uma causa bioticamente qualificada; a
conclusão de certas premissas é uma causa logicamente qualificada; e a escassez de uma mercadoria é
uma causa economicamente qualificada.
[27]
NC, III, p. 106.
[28]
Animais também forma artefatos, e a descrição destes é um tanto diferente. Em prol da concisão,
porém, tratarei apenas dos artefatos humanos. Para um tratamento completo da questão, veja NC, III,
capítulos 2 e 3.
[29]
Visto que o aspecto que qualifica a função guia de um artefato é aquele que qualifica o plano que
orientou sua formação, a ideia de uma função guia não pode ser separada da ideia de propósito. A
intenção, contudo, não é um propósito subjetivo que uma pessoa possa ter para com um artefato, mas o
propósito integrado em seu plano. Assim, embora alguém possa usar uma cadeira como uma escada ou
casar-se por dinheiro, os propósitos integrados nesses artefatos permanecem sendo social e ético,
respectivamente, a despeito de terem sido pervertidos por um propósito subjetivo. Veja NC, III, p. 143,
574.
[30]
Mais precisamente, as palavras do poema são linguisticamente qualificadas, ao passo que o evento
da leitura do poema é esteticamente qualificado. Veja NC, III, p. 110, 111.
[31]
No discurso habitual, o termo comum é “alma”. Mas os redatores bíblicos jamais usaram “alma”
para referir-se ao centro da existência humana, mas sim para a vida do corpo — daí é precisamente a
alma que morre. Mais frequentemente usam o termo “coração” para a identidade de uma pessoa; a sede
e fonte do intelecto, vontade, talento, disposições, etc. humanas. Na perspectiva bíblica, portanto, a
natureza humana não deve ser identificada com nenhuma de suas funções aspectuais. O coração
humano subjaz a todas elas como o agente em operação nelas. Dessa forma, embora somente os seres
humanos tenham funções ativas em todos os aspectos, eles não têm função qualificante.
[32]
Há exemplos de comunidades que são sub-totalidades dentro de um todo capsular maior, mas isso
jamais se aplica às grandes instituições da sociedade. Os exemplos são todos de organizações auxiliares
formadas para servir a outra comunidade, tal como uma associação de pais e mestres para servir a uma
escola, ou um grupo organizado para angariação de fundos para apoio de uma instituição de caridade
ou de um hospital.

[33]
Uma das exposições mais claras dessa ideia foi apresentada em seu livro Calvinismo, que são suas
palestras Stone ministrada no Seminário de Princeton em 1898.
[34]
Por outro lado, apontar para esferas de autoridade distintas significa que é possível ter as esferas
permeando todas as instituições e práticas. Não é o mesmo que a distinção público-versus-privado, por
exemplo. Um crime praticado em privado, numa igreja ou numa escola ainda assim se enquadra na
esfera da justiça, sendo portanto responsabilidade do governo, assim como a permuta ou a venda que se
dá dentro de uma família ou governo é o lado econômico dessas instituições.
[35]
Foi-me possível realizar a pesquisa no tema deste ensaio durante meu ano sabático nos
Países Baixos em 1981-1982, em razão de uma Bezoekersbeurs (Bolsa de Pesquisa),
oferecida pela Organização Neerlandesa de Pesquisa Científica (ZWO).
[36]
O presente ensaio é o primeiro da série que compõe a obra The Legacy of Herman
Dooyeweerd, editada por C. T. McIntire, e na qual diferentes especialistas e continuadores
da tradição da filosofia cosmonômica apresentam uma dimensão distinta e complementar
da obra de Dooyeweerd. [N. do T.]
[37]
Sobre Kuyper, veja P. Kasteel, Abraham Kuyper (Kampen: J.H. Kok, 1938) e
McKendree R. Langley, The Practice of Spirituality: Episodes in the Public Career of
Abraham Kuyper (St. Catharines: Paideia, 1984).
[38]
Praticamente não há literatura em inglês sobre o contexto de origem de Dooyeweerd.
Uma exceção é William Young, Towards a Reformed Philosophy: The Development of a
Protestant Philosophy in Dutch Calvinistic Thought Since the Time of Abraham Kuyper
(Franeker: Weyer, 1952). Para mais sobre Dooyeweerd e seus colaboradores, veja Bernard
Zylstra, “Introdução” em Contornos da filosofia cristã (São Paulo, Cultura Cristã: 2015).
Veja W.F. de Gaay Fortman et al., Philosophy and Christianity: Philosophical Essays
Dedicated to Professor Dr. Herman Dooyeweerd (Amsterdam: North: Holland, 1965).
[39]
Abraham Kuyper, Calvinismo (São Paulo: Cultura Cristã, 2008).
[40]
Veja Jan Veenhof, Nature and Grace in Bavinck, trad. Albert Wolters (Mimeo, n.d.).
[41]
Herman Dooyeweerd, “The Problem of the Relationship of Nature and Grace in the
Calvinistic Law-Idea”, Anakainosis 1 (1979, no. 4): 13-15. Esta é a tradução de um
excursus presente num artigo escrito por Dooyeweerd em 1928.
[42]
Karel Kuypers, “Herman Dooyeweerd” (7 de outubro de 1894 – 12 de fevereiro de
1977)”, in: Jaarboek da Academia Real de Artes e Ciências dos Países Baixos (1977), p. 3.
[43]
Ver Thomas E. Willey, Back to Kant: The Revival of Kantianism in German Social and
Historical Thought, 1860-1914 (Detroit: Wayne State University Press, 1978).
[44]
Willey, Back to Kant, p. 135.
[45]
T. De Boer, The Development of Husserl’s Thought, trad. Theodore Plantinga (The
Hague: Martinus Nijhoff, 1978).
[46]
Ou, como habitualmente traduzido, “suspensão de juízo”. [N. do T.]
[47]
Willey, Back to Kant, p. 102 ss.
[48]
Este exemplar consta presentemente na Dooyeweerd Collection, no Institute for
Christian Studies em Toronto.
[49]
Vincent Briimmer, Transcendental Criticism and Christian Philosophy: A Presentation
and Evaluation of Herman Dooyeweerd’s “Philosophy of the Cosmonomic Idea”
(Franeker: Weyer, 1961), p. 150-151.
[50]
Com relação a suas semelhanças: ambos nasceram em Amsterdã nos anos iniciais de
1890, frequentaram o mesmo colégio secundário clássico e a mesma universidade,
residiram por um tempo em Haia, estiveram em outras áreas de estudo antes de se voltarem
para a filosofia (direito, no caso de Dooyeweerd; teologia, no caso de Vollenhoven),
aceitaram as designações para sua alma mater em 1926, eram membros fundadores da
Sociedade pela Filosofia Calvinista em 1935, aposentaram-se nos anos de 1960, e
morreram em sua Amsterdã natal, em fins da década de 70. Para coroar tudo isso,
Vollenhoven era casado com a irmã de Dooyeweerd. Sobre Vollenhoven, veja The Idea of
a Christian Philosophy: Essays in Honour of D. H. Th. Vollenhoven (Toronto: Wedge,
1973), que contém um ensaio escrito por Dooyeweerd acerca de Vollenhoven.

Você também pode gostar