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G. Reale - D.

Antiseri

HISTÓRIA
DA FILOSOFIA
De Nietzsche
6 à Escola de Frankfurt
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Reale, G.
História da filosofia, 6: de Nietzsche à Escola de Frankfurt / G. Reale, D. Antiseri; [tradução
Ivo Storniolo]. — São Paulo: Paulus, 2006. — (Coleção história da filosofia; 6)

Titulo original: Storia delia filosofia, volume III.

ISBN 85-349-2431-7

1. Filosofia - História l. Antiseri, D. II. Título. III. Série.

05-6197 CDD-109

índices para catálogo sistemático:


1. Filosofia: História 109

Título original
S to ria d e lia filo s o fia - Volum e III: D a l R o m a n tic is m o a i g io rn i n o s tri
© Editrice LA SCUOLA, Brescia, Itália, 1997
ISBN 88-350-9273-6

Tradução
Ivo S to rn io lo

Revisão
Z o lfe rin o Tonon

Impressão e acabamento
PAULUS

© PAULUS - 2006
Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 São Paulo (Brasil)
Fax (11) 5579-3627 • Tel. (11) 5084-3066
www.paulus.com.br • editorial@paulus.com.br
ISBN 85-349-2431-7
jK prase.v\\c\<^c\o

* * *
Existem teorias, argumentações e dis­
putas filosóficas pelo fato de existirem pro­ A história da filosofia é a história dos
blemas filosóficos. Assim como na pesquisa problemas filosóficos, das teorias filosó­
científica idéias e teorias científicas são ficas e das argumentações filosóficas. É
respostas a problemas científicos, da mes­ a história das disputas entre, filósofos e
ma forma, analogicamente, na pesquisa dos erros dos filósofos. É sempre a his­
filosófica as teorias filosóficas são tentativas tória de novas tentativas de versar sobre
de solução dos problemas filosóficos. questões inevitáveis, na esperança de
Os problemas filosóficos, portanto, conhecer sempre melhor a nós mesmos e
existem, são inevitáveis e irreprimíveis; de encontrar orientações para nossa vida
envolvem cada homem particular que e motivações menos frágeis para nossas
não renuncie a pensar. A maioria desses escolhas.
problemas não deixa em paz: Deus existe, A história da filosofia ocidental é
ou existiríamos apenas nós, perdidos neste a história das idéias que inform aram,
imenso universo? O mundo é um cosmo ou ou seja, que deram forma á história do
um caos? A história humana tem sentido? Ocidente. É um patrimônio para não ser
E se tem, qual é? Ou, então, tudo - a gló­ dissipado, uma riqueza que não se deve
ria e a miséria, as grandes conquistas e os perder. E exatamente para tal fim os pro­
sofrimentos inocentes, vítimas e carnífices blemas, as teorias, as argumentações e
- tudo acabará no absurdo, desprovido as disputas filosóficas são analiticamente
de qualquer sentido? E o homem: é livre explicados, expostos com a maior clareza
e responsável ou é um simples fragmento
possível.
insignificante do universo, determinado * * *
em suas ações por rígidas leis naturais? A
ciência pode nos dar certezas? 0 que é a Uma explicação que pretenda ser clara
verdade? Quais são as relações entre razão e detalhada, a mais compreensível na me­
científica e fé religiosa? Quando podemos dida do possível, e que ao mesmo tempo
dizer que um Estado é democrático? E ofereça explicações exaustivas comporta,
quais são os fundamentos da democracia? todavia, um "efeito perverso", pelo fato
E possível obter uma justificação racional de que pode não raramente constituir um
dos valores mais elevados? E quando é que obstáculo ã "memorização" do complexo
somos racionais? pensamento dos filósofos.
Eis, portanto, alguns dos problemas Esta é a razão pela qual os autores
filosóficos de fundo, que dizem respeito pensaram, seguindo o paradigma clás­
às escolhas e ao destino de todo homem, sico do Üeberweg, antepor à exposição
e com os quais se aventuraram as mentes analítica dos problemas e das idéias dos
mais elevadas da humanidade, deixando- diferentes filósofos uma síntese de tais
nos como herança um verdadeiro patrimô­ problem as e idéias, concebida como
nio de idéias, que constitui a identidade e instrumento didático e auxiliar para a me­
a grande riqueza do Ocidente. morização.
.A p r e s e n t a ç ã o

* * * * * *

A firm ou-se com justeza que, em Ao executar este complexo traçado,


linha geral, um grande filósofo é o gênio os autores se inspiraram em cânones psico-
de uma grande idéia: Platão e o mundo pedagógicos precisos, a fim de agilizar a
das idéias, Aristóteles e o conceito de Ser, memorização das idéias filosóficas, que
Plotino e a concepção do Uno, Agostinho são as mais difíceis de assimilar: seguiram o
e a "terceira navegação" sobre o lenho da método da repetição de alguns conceitos-
cruz, Descartes e o "cogito", Leibniz e as chave, assim como em círculos cada vez
"mônadas", Kant e o transcendental, Hegel mais amplos, que vão justamente da síntese
e a dialética, Marx e a alienação do traba­ à análise e aos textos. Tais repetições, re­
lho, Kierkegaard e o "singular", Bergson e petidas e amplificadas de modo oportuno,
a "duração", Wittgenstein e os "jogos de ajudam, de modo extremamente eficaz, a
linguagem", Popperea "falsificabilidade" fixar na atenção e na memória os nexos
das teorias científicas, e assim por diante. fundantes e as estruturas que sustentam
Pois bem, os dois autores desta obra o pensamento ocidental.
propõem um léxico filosófico, um dicioná­ * * *
rio dos conceitos fundamentais dos diversos Buscou-se também oferecerão jovem,
filósofos, apresentados de maneira didá­ atualmente educado para o pensamento
tica totalmente nova. Se as sínteses iniciais visual, tabelas que representam sinotica-
são o instrumento didático da memoriza­ mente mapas conceituais.
ção, o léxico foi idealizado e construído Além disso, julgou-se oportuno enri­
como instrumento da conceitualização; e, quecer o texto com vasta e seleta série de
juntos, uma espécie de chave que permita imagens, que apresentam, além do rosto
entrar nos escritos dos filósofos e deles dos filósofos, textos e momentos típicos da
apresentar interpretações que encontrem discussão filosófica.
pontos de apoio mais sólidos nos próprios
textos. •k ★ ★
* * * Apresentamos, portanto, um texto cien­
tífica e didaticamente construído, com a
Sínteses, análises, léxico ligam-se,
intenção de oferecer instrumentos adequa­
portanto, à ampla e meditada escolha dos
dos para introduzir nossos jovens a olhar
textos, pois os dois autores da presente
para a história dos problemas e das idéias
obra estão profundamente convencidos
filosóficas como para a história grande,
do fato de que a compreensão de um fi­
fascinante e difícil dos esforços intelectuais
lósofo se alcança de modo adequado não
que os mais elevados intelectos do Ociden­
só recebendo aquilo que o autor diz, mas
te nos deixaram como dom, mas também
lançando sondas intelectuais também nos
como empenho.
modos e nos jargões específicos dos textos
filosóficos. G iovanni R eale - D ario A ntiseri
C T ^ d ic e g e r a l

índice de nomes, XVII I. O nascimento do neocriticismo, 22; 2. A Es­


índice de conceitos fundamentais, X X I cola de Marburgo, 23; 2.1. Hermann Cohen:
a filosofia crítica como metodologia da ciên­
cia, 23; 2.2. Paul Natorp: “ o método é tudo” ,
Primeira parte 24; 3. A Escola de Baden, 24; 3.1. Wilhelm
Windelband e a filosofia como teoria dos
A FILOSOFIA valores, 24; 3.2. Heinrich Rickert: conhecer
é julgar com base no valor de verdade, 24.
DO SÉCULO XIX
II. Ernst Cassirer e a filosofia
AO SÉCULO XX das formas simbólicas_____ 26
1. Substância e função, 26; 2. A filosofia das
Capítulo primeiro formas simbólicas, 28; 3. “ Animal rationa-
Friedrich Nietzsche. le” e “ animal symbolicum” , 28.
Fidelidade à terra T e x t o s - E. Cassirer: 1. O homem é um
e transmutação “animal simbólico” , 30.
de todos os valores__________ 3
1. A vida e a obra, 5; 2. O “ dionisíaco” , Capítulo terceiro
o “ apolíneo” e o “ problema Sócrates” , 6; O historicismo alemão,
3. Os “ fatos” são estúpidos e a “ saturação
de história” é um perigo, 8; 4. O afastamen­
de Wilhelm Dilthey
to em relação a Schopenhauer e Wagner, 8; a Friedrich Meinecke________ 33
5. O anúncio da “ morte de Deus” , 10; 6. O
I. Gênese, problemas,
Anticristo, ou o cristianismo como “ vício” ,
10; 7. A genealogia da moral, 12; 8. Niilis- teorias e expoentes
mo, eterno retorno e “ amor fati” , 13; 9. O do historicismo alemão ____ 33
super-homem é o sentido da terra, 15. I. Os grandes historiadores e as grandes
M a p a c o n c e i t u a l - D o dionisíaco ao super­ obras históricas do século XIX, 34; 2. O nas­
homem, 16. cimento do historicismo, 34; 3. Idéias e pro­
blemas fundamentais do historicismo, 35.
T e x t o s - F. Nietzsche: 1. A sublime ilusão
metafísica de Sócrates, 17; 2. O anúncio da II. Wilhelm Dilthey
morte de Deus, 18; 3. A “moral dos senho­ e a “crítica
res" e a “moral dos escravos” , 19.
da razão histórica” ________ 36
1. Rumo à crítica da razão histórica, 37;
Capítulo segundo 2. A fundamentação das ciências do espírito,
O neocriticismo. 38; 3. A historicidade constitutiva do mundo
A Escola de Marburgo humano, 38.
e a Escola de B aden _________ 21 III. O historicismo alemão
I. Gênese, finalidade e centros entre Wilhelm Dilthey
de elaboração do neocriticismo _ 21 e Max Weber____________ 40
ZT^vclice g e ^ a l

1. Windelband e a distinção entre ciências no- cedimentos para fixar as “crenças” , 80; 3. De­
motéticas e ciências idiográficas, 41; 2. Rickert: dução, indução, abdução, 81; 4. Como tornar
a relação com os valores e a autonomia claras nossas idéias: a regra pragmática, 82.
do conhecimento histórico, 42; 3. Simmel:
os valores do historiador e o relativismo II. O empirismo radical
dos fatos, 42; 4. Spengler e o “ o caso do de William Jam es_________ 84
O cidente” , 42; 5. Troeltsch e o caráter 1. O pragmatismo é apenas um método, 85;
absoluto dos valores religiosos, 44; 6. Mei- 2. A verdade de uma idéia se reduz à sua
necke e a busca do eterno no instante, 44. capacidade de “ operar” , 85; 3. Os princípios
T e x t o s - W. Dilthey: 1. “Reviver” para da psicologia e a mente como instrumento
“compreender”, 46; 2. As ciências do espírito da adaptação, 86; 4. A questão moral: como
entendem o sentido de um mundo humano escolher entre ideais contrastantes?, 86;
histórico e objetivado, 47; W. Windelband: 5. A variedade da experiência religiosa e o
3. Ciências nomotéticas e ciências idiográ­ universo pluralista, 87.
ficas, 48; H. Rickert: 4. Aprendizado gene- III. Desenvolvimentos
ralizante e aprendizado individualizante,
50; G. Simmel: 5. O “terceiro reino” dos
do pragmatismo__________ 88
produtos culturais, 51; F. Meinecke: 6. D is­ 1. Mead: continuidade entre o homem e o uni­
tinção entre civilização e cultura, 53. verso, 88; 2. Schiller: o pragmatismo como
humanismo, 89; 3. Vaininger e a filosofia
do “ como-se” , 89; 4. Calderoni: distinção
Capítulo quarto entre juízos de fato e de valor, 89; 5. Vailati:
M ax Weber: o pragmatismo como método, 90.
o desencantamento do mundo T e x t o s - Ch. S. Peirce: 1. Abdução, dedu­
e a metodologia ção, indução, 91; 2. A regra pragmática,
das ciências histórico-sociais___ 55 92; W. James: 3. “ O pragmatismo é apenas
um m étodo” , 93; G. Vailati: 4. Crítica do
1. Vida e obras, 57; 2. A questão da “referên­ materialismo histórico, 93.
cia aos valores” , 58; 3. Ateoria do “tipo ideal” ,
59; 4. O peso das diferentes causas na reali­
zação dos eventos, 60; 5. A polêmica sobre a Capítulo sexto
“ não-avaliabilidade” , 61; 6. A ética protes­ O instrumentalismo
tante e o espírito do capitalismo, 61; 7. Weber de John D ew ey_____________ 95
e Marx, 62; 8. O desencantamento do mundo, 1. A experiência não se reduz à consciência
63; 9. A fé como “ sacrifício do intelecto” , 64.
nem ao conhecimento, 96; 2. Precariedade e
M a p a c o n c e i t u a l - Metodologia das ciên­ risco da existência, 97; 3. A teoria da pesquisa,
cias histórico-sociais, 65. 98; 4. Senso comum e pesquisa científica: as
idéias como instrumentos, 99; 5. A teoria dos
T e x t o s - M . Weber: 1. A objetividade
valores, 100; 6. A teoria da democracia, 101.
cognoscitiva das ciências sociais, 66; 2. Ética
da convicção e ética da responsabilidade, M a p a c o n c e itu a i. - Método científico: Ética,
67; 3. Possibilidade objetiva e causação ade­ política, pedagogia, 103.
quada, 69; 4. A política não combina com a T e x t o s - J. Dewey: 1. A experiência não é
cátedra, 70; 5. Em busca de uma definição consciência, mas história, 104; 2. N ão há
de “capitalismo”, 72; 6. A ética protestante nada mais prático do que uma boa teoria,
e o espírito do capitalismo, 74; 7. O desen­ 105; 3. A relação entre passado e presente
cantamento do mundo, 75; 8. A ciência se na pesquisa histórica, 106; 4. A ciência e o
fundamenta sobre uma escolha ética, 77. progresso social, 108.

Capítulo quinto Capítulo sétimo


O pragmatismo_____________ 79 O neo-idealismo italiano,
I. O pragmatismo lógico Croce e Gentile,
de Charles S. Peirce________ 79 e o idealismo anglo-americano_ 109
1. O pragmatismo é a forma que o empiris- I. O idealismo na Itália
mo assumiu nos Estados Unidos, 80; 2. Os pro­ antes de Croce e Gentile____ 109
I. Augusto Vera, 109; 2. Bertrando Spaven-
ta, 109; 3. Outros expoentes italianos do Segunda parte
hegelianismo, 110.
II. Benedetto Croce
O CONTRIBUTO
e neo-idealismo como DA ESPANHA
“ historicismo absoluto”____ 111 À FILOSOFIA
1. Vida e obras, 112; 2. “ Aquilo que está DO SÉCULO XX
vivo e aquilo que está morto na filosofia de
Hegel” , 114; 3. A dialética como relação
dos distintos e síntese dos opostos, 115; 4. A Capítulo oitavo
estética croceana e o conceito de arte, 116; Miguel de Unamuno
4.1. A arte é “ aquilo que todos sabem o que
seja” , 116; 4.2. A arte como conhecimento
e o sentimento trágico da vida _ 157
intuitivo, 117; 4.3. A arte como expressão 1. A vida e as obras, 158; 2. A essência da Es­
da intuição, 117; 4.4. A intuição estética panha, 159; 3. Para libertar-se do “ domínio
como sentimento, 117; 4.5. A relação entre dos fidalgos da razão” , 159; 4. A vida “ não
intuição e expressão artística é uma “ sínte­ aceita fórm ulas” , 160; 5. Unamuno: um
se estética a priori” , 118; 4.6. O caráter de “ Pascal espanhol” encontra o “ irm ão ”
universalidade e cosmicidade da arte, 119; Kierkegaard, 161.
4.7. O que a arte não é, 119; 4.8. Alguns
T e x t o s - M. de Unamuno: 1. A vida vai
corolários da estética croceana, 119; 5. A ló­
gica croceana, 120; 5.1. A lógica como ciên­ além da “razão” , 162.
cia dos conceitos puros, 120; 5.2. Os pseu-
doconceitos e seu valor de caráter utilitarista Capítulo nono
(econômico), 121; 5.3. Coincidência de con­
ceito, juízo e silogismo, 122; 5.4. Identifica­ José Ortega y Gasset
ção entre juízo definitório e juízo individual, e o diagnóstico filosófico
e suas conseqüências, 122; 6. A atividade da civilização ocidental______ 165
prática, econômica e ética, 122; 7. A his­
tória como pensamento e como ação, 123. 1. A vida e as obras, 166; 2. O indivíduo
M apa c o n c e it u a l - A s formas do espírito, 1 2 5 . e sua “ circunstância” , 167; 3. Gerações
cumulativas, gerações polêmicas e gerações
III. Giovanni Gentile decisivas, 167; 4. A diferença entre “ idéias-
e o neo-idealismo invenções” e “ idéias-crenças” , 168; 5. O
como atualismo__________ 126 tesouro dos erros, 168; 6. O controle sem
fim das teorias científicas, 169; 7. O “ ho-
1. Vida e obras, 127; 2. A reforma gentiliana mem-massa” , 169.
da dialética hegeliana, 127; 3 .0 pensamento
como “ autoconceito” e “ forma absoluta” , T e x t o s - J. Ortega y Gasset: 1. Como distin­
129; 4. O “ mal” e o “ erro” , 129; 5. A “ natu­ guir as “crenças” das “idéias-invenções” , 171.
reza” como objeto do “ autoconceito” , 130;
6. Os três momentos do “ autoconceito” , 130;
7. Natureza do atualismo gentiliano, 131. Terceira parte
M a p a c o n c e i t u a l - O pensamento como
“autoconceito” e “forma absoluta” , 133.
FENOMENOLOGIA
EXISTEN ClALISMO
IV. O neo-idealismo na Inglaterra
e na América____________ 134 HERMENÊUTICA
1. Os precedentes: Carlyle e Emerson, 134;
2. Bradley e o neo-idealismo inglês, 135; Capítulo décimo
3. Royce e o neo-idealismo na América, 136. Edmund Husserl
T e x t o s - B. Croce: 1. O que é a arte, 137; e o movimento fenomenológico _ 175
2. A concepção da história, 144; G. Gentile:
3. O s problemas essenciais do atualismo e I. Gênese e natureza
suas implicações, 147. da fenomenologia_________ 175
Ctadice g e m i

I. A fenomenologia: um método para “ vol­ como linguagem do ser, 209; 11. A técnica
tar às próprias coisas” , 176; 2. A fenome­ e o mundo ocidental, 210.
nologia é descrição das essências eidéticas,
176; 3. Direção idealista e direção realista TExros - M. Heidegger: 1. A morte é “uma imi­
da fenomenologia, 177; 4. Às origens da nência ameaçadora específica ”, 211; 2. “No
fenomenologia, 177; 4.1. Bolzano e o valor tempo da noite do mundo o poeta canta o
lógico-objetivo das “ proposições” , 177; sagrado” , 213.
4.2. Brentano e a intencionalidade da cons­
ciência, 178. Capítulo décimo segundo
II. Edmund Husserl__________ 179 Traços essenciais
1. Vida e obras, 180; 2. A intuição eidética,
e desenvolvimentos
181; 3. Ontologias regionais e ontologia do existencialismo___________ 215
formal, 181; 4. A intencionalidade da cons­
ciência, 182; 5. “Epoché” ou redução feno-
I. Perspectivas gerais_________ 215
menológica, 183; 6. A crise das ciências I. A existência é “ poder-ser” , isto é, “ incer­
européias e o “ mundo da vida” , 184. teza, risco e decisão” , 215; 2. Pressupostos
remotos e próximos do existencialismo, 216;
III. Max Scheler_____________ 185 3. Os pensadores mais representativos do
1. Contra o form alism o kantiano, 186; existencialismo, 217.
2. Valores “ materiais” e sua hierarquia, 187;
3. A pessoa, 187; 4. A simpatia, o amor e a
II. Karl Jaspers
fé, 188; 5. Sociologia do saber, 188. e o naufrágio da existência_ 218
1. Vida e obras, 218; 2. A ciência como
IV. Desenvolvimentos orientação no mundo, 219; 3. O ser como
da fenomenologia________ 190 “ oniabrangente” , 219; 4. A não-objetivi-
1. Nicolai Hartmann e a análise fenomeno- dade da existência, 220; 5. O naufrágio da
lógica dirigida ao “ ser enquanto tal” , 191; existência e os “ sinais” da transcendência,
1.1. A concepção da ética, 191; 1.2. A proble­ 220; 6. Existência e comunicação, 221.
mática ontológica, 191; 2. Rudolf Otto e a fe­
nomenologia da religião, 191; 3. Edith Stein: III. Hannah Arendt:
o problema da empatia e a tarefa de uma filo­ uma defesa inflexível
sofia cristã, 192; 3.1. A vida e as obras, 192; da dignidade
3.2. Teoria fenomenológica da empatia, 193; e da liberdade do indivíduo _ 223
3.3. A tarefa de uma filosofia cristã, 194.
1. Hannah Arendt: a vida, 223; 2. As obras:
T e x t o s - E. Husserl: 1. A intencionalidade uma filosofia em defesa da liberdade, 224;
do conhecimento, 195; 2. A epoché fenome­ 3. Anti-semitismo, imperialismo e totalita­
nológica, 196; 3. “As meras ciências de fatos rismo, 224; 4. A ação como atividade polí­
criam simplesmente homens de fato ” , 198; tica por excelência, 225.
M. Scheler: 4. Quando uma idéia religiosa
torna possível a ciência, 200. IV. Jean-Paul Sartre:
da liberdade absoluta
e inútil à liberdade histórica_ 226
Capítulo décimo primeiro
Martin Heidegger: 1. Vida e obras, 227; 2. A náusea diante da
gratuidade das coisas, 227; 3. O “ em-si” e
da fenomenologia o “para-si” , o “ ser” e o “nada” , 228; 4. O
ao existencialismo___________ 201 “ ser-para-outros” , 228; 5. O existencialismo
1. Vida e obras, 202; 2. Da fenomenologia é um humanismo, 229; 6. Crítica da razão
ao existencialismo, 203; 3. O Ser-aí e a ana­ dialética, 231.
lítica existencial, 203; 4. O ser-no-mundo, V. Maurice Merleau-Ponty:
205; 5. O ser-com-os-outros, 205; 6. O ser-
para-a-morte, existência inautêntica e exis­ entre existencialismo
tência autêntica, 206; 7. A coragem diante e fenomenologia__________ 232
da angústia, 207; 8. O tempo, 207; 9. A 1. A relação entre a “consciência” e o “ cor­
metafísica ocidental como “ esquecimento p o ” , e entre o “ homem” e o “ mundo” , 232;
do ser” , 208; 10. A linguagem da poesia 2. A liberdade “ condicionada” , 233.
c e 0 ei*al ,,^^r

VI. Gabriel Mareei Capítulo décimo quarto


e o neo-socratismo Desenvolvimentos recentes
cristão__________________ 234 da teoria da hermenêutica____ 265
1. A defesa do concreto, 235; 2. A assimetria I. Emílio Betti
entre crer e verificar, 235; 3. Problema e e a hermenêutica
metaproblema, 236; 4. Ser e ter, 236.
como método geral
T e x t o s - K . Jaspers: 1. Os limites da ciência, das ciências do espírito_____ 265
238; H. Arendt: 2. A dignidade humana
I. A vida e as obras, 266; 2. Interpretar é
contra toda forma de totalitarismo e ra­
entender, 266; 3. A distinção entre “ interpre­
cismo, 239; J.-P. Sartre: 3. O homem “é
condenado em todo momento a inventar o tação do sentido” e “ atribuição de sentido” ,
homem” , 242; 4. O homem é responsável 266; 4. Uma hermenêutica garante dos di­
por aquilo que pertence a todos os homens, reitos do objeto, 267; 5. Os quatro cânones
243; M . Merieau-Ponty: 5. Para que servem do procedimento hermenêutico, 267.
os filósofos?, 244; G. Mareei: 6. Problema II. Paul Ricoeur:
e metaproblema, 245.
a falibilidade humana
e o conflito
Capítulo décimo terceiro das interpretações_________ 268
Hans Georg Gadamer 1. A vida e as obras, 269; 2. “ Eu suporto
e a teoria da hermenêutica____ 249 este corpo que governo” , 270; 3. Uma von­
tade humana que erra e que peca, 271; 4. A
I. Estrutura da hermenêutica__ 250 simbólica do mal, 271; 5. A “ escola da sus­
peita” , 271; 6. O conflito das interpretações,
1. Origens e objeto da hermenêutica, 250; 272; 7. A realidade do símbolo entre o vetor
2. O que é o “ círculo hermenêutico” , 250; “ arqueológico” e o “ teleológico” , 272; 8. A
3. O procedimento hermenêutico como ato reconquista da pessoa, 273.
interpretativo e seu esquema de fundo, 251;
4. A interpretação como tarefa possível, III. Luís Pareyson
mas infinita, 252; 5. Estrutura e função e a pessoa
dos pré-conceitos e da pré-compreensão
do intérprete, 253; 6. A “ alteridade” do
como órgão da verdade___ 274
texto, 253. 1. A vida e as obras, 275; 2. Condiciona-
lidade histórica, caráter pessoal e validade
II. Interpretação especulativa da filosofia, 276; 3. A filosofia é
e “história dos efeitos” ____ 254 “ também” expressão do tempo; e é “também”
interpretação pessoal, 277; 4. A unidade da
1. Valência hermenêutica da história dos filosofia é a “ confilosofia” , 277; 5. Plurali­
efeitos de um texto, 254; 2. Eficácia da dis­ dade de vozes que comunicam discutindo,
tância temporal para a compreensão de um 278; 6. O homem é um ser interpretante e,
texto, 255. enquanto tal, órgão da verdade, 278; 7. A
ontologia do inesgotável contra o misticismo
III. “Preconceito” , do inefável, 278; 8. O Deus dos filósofos
“razão” e “tradição” _____ 256 e o Deus da experiência religiosa, 279; 9. A
1. Os “ idola” de Bacon como “ preconcei­ linguagem reveladora do mito, 279.
to s” , 256; 2. A superação de todos os pre­
conceitos propugnada pelos iluministas é IV. Gianni Vattimo:
um “ preconceito” típico, 256; 3. O conceito hermenêutica,
romântico de “ tradição” , 256; 4. Relação pensamento débil,
estrutural entre “ r a z ã o ” e “ tra d iç ã o ” , pós-modernidade________ 280
257.
1. A vida e as obras, 281; 2. O “ pensamento
T e x t o s - H . G. G adam er: 1. O que é débil” , 281; 3. O pressuposto hermenêutico
o “círculo hermenêutico”, 258; 2. “Precon­ do pensamento débil, 281; 4. O que significa
ceito” de modo nenhum significa juízo falso, “ pensar” ; o que significa “ ser” , 282; 5. M o­
260; 3. A idéia de “história dos efeitos” , derno e pós-moderno, 283; 6. Metamorfoses
260; 4. Teoria da tradição, 262. da idéia de racionalidade, 283.
.ITnclice g e m i

T e x t o s - E . Beti: 1 . 0 sentido de um texto deve Tractatus, 310; 4. A interpretação não-neo-


ser tirado do próprio texto, 284; P. Ricoeur: positivista do Tractatus, 311.
2. A escola da suspeita: Marx, Nietzsche e
Freud, 284; L. Pareyson: 3. Como falar de III. As Pesquisas filosóficas _312
Deus, 286; G. Vattimo: 4. O “pensamento dé­ 1. A volta à filosofia, 312; 2. A teoria dos
bil” como pensamento antifundacional, 289. “ jogos de língua” , 312; 3. O princípio de uso
e a filosofia como terapia lingüística, 313.
T e x t o s - L. Wittgenstein: 1. A linguagem
Q uarta parte representa projetivamente o mundo, 315;
2. A parte “mística” do Tractatus, 317; 3. O
BERTRAND RUSSELL, sentido do Tractatus logico-philosophicus
LUDWIG WITTGENSTEIN “é um sentido ético”, 318; 4. A teoria dos
jogos-de-língua, 318.
E A FILOSOFIA
DA LINGUAGEM Capítulo décimo sétimo
A filosofia da linguagem.
Capítulo décimo quinto O movimento analítico
Bertrand Russell e de Cambridge e Oxford______ 321
Alfred North Whitehead_____ 295 I. A filosofia analítica
I. Bertrand Russell: em Cambridge____________ 321
da rejeição do idealismo I. Os filóso fo s de Cam bridge: R ussell,
à crítica da filosofia analítica _ 295 M oore e Wittgenstein, 322; 2. A revista
“ A nalysis” , 323; 3. John W isdom e as
I. A formação cultural e o encontro com G.
afirmações metafísicas como “ paradoxos
E. M oore, 296; 2. O atomismo lógico e o
de exploração” , 323; 4. A análise filosófica
encontro com Peano, 296; 3. A teoria das
como “ terapia lingüística” , 323.
descrições, 298; 4. Russell contra o “ segun­
d o ” Wittgenstein e a filosofia analítica, 299; II. A filosofia analítica
5. Russell: a moral e o cristianismo, 300. em Oxford_______________ 324
II. Alfred North Whitehead: 1. G. Ryle: o trabalho do filósofo como cor­
processo e realidade_______ 301 reção dos “ erros categoriais” , 325; 2. J. L.
Austin: a linguagem comum não é a última
1. A inter-relação entre ciência e filosofia, palavra em filosofia, 325; 3. A filosofia de
301; 2. O universo como “ processo” , 301. Oxford e a análise da linguagem ético-ju-
T e x t o s - B. Russell: 1. O que significa “ser rídica, 327; 4. P. F. Strawson e a metafísica
racionais” , 303; 2. O “segundo” Wittgens­ descritiva, 327; 5. S/H am p sh ire e A. J.
tein “cansou-se de pensar seriamente” , 304; Ayer: um desacordo sobre a volta a Kant,
3. “Ideais” para a política, 305. 327; 6. F. Waismann: a filosofia não pode
ter apenas uma tarefa terapêutica, 328.

Capítulo décimo sexto III. A filosofia analítica


Ludwig Wittgenstein: e a “redescoberta”
do Tractatus logico-philosophicus do significado da linguagem
às pesquisas filosóficas_______ 307 metafísica_______________ 329
1. Grandes problemas que os filósofos ana­
I. A v id a___________________ 308 líticos procuraram resolver, 329; 2. Nova
I. Professor de escola elementar e grande atitude em relação à metafísica, 329; 3. Os
filósofo, 308. resultados mais significativos na reflexão
sobre a metafísica, 330.
II. O Tractatus T e x t o s - P. F. Strawson: 1. O que começa
logico-philosophicus________ 309 como metafísica pode terminar como ciência,
1. As teses fundamentais, 309; 2. Realidade 331; H. P. Grice, Pears, Strawson: 2. O me­
e linguagem, 309; 3. A parte “ mística” do tafísico “re-projeta todo o mapa do pen-
-7 A-
*_mdice gera lI .XI11

sarnento” , 331: F. Waismann: 3. “É um T e x t o s - H. Bergson: 1. Em que consiste a


nonsense dizer que a metafísica carece de duração real, 358; 2. O grande problema da
sentido” , 332. união entre alma e corpo, 359; 3. Impulso
vital e adaptação ao ambiente, 360.

Q uinta parte
Capítulo vigésimo
ESPIRITUALISMO, A renovação
do pensamento teológico
NOVAS TEOLOGIAS no século X X _______________ 363
E NEO-ESCOLÁSTICA
I. A renovação
da teologia protestante_____ 363
Capítulo décimo oitavo I. Karl Barth: a “teologia dialética” contra
O espiritualismo a “ teologia liberal” , 364; 2. Paul Tillich e o
como fenômeno europeu_____ 335 “ princípio da correlação” , 365; 3. Rudolf
Bultmann: o método “ histórico-morfológico”
I. O espiritualismo: e a “ demitização” , 366; 4. Dietrich Bonhoeffer
gênese, características e o mundo saído da “tutela de Deus” , 366.
e expoentes_______________ 335 II. A renovação
I. A reação ao “ reducionismo” positivista, da teologia católica_______ 368
335; 2. As idéias básicas do espiritualismo, 336.
1. Karl Rahner e as “ condições a priori” da
II. As diversas manifestações possibilidade da Revelação, 368; 2. Hans
do espiritualismo Urs von Balthasar e a estética teológica, 369.
na Europa_______________ 337 III. A “teologia da morte de Deus”
1. O espiritualismona Inglaterra, 338; 2. O e sua “ superação” ________ 370
espiritualismo na Alemanha, 338; 3. O espiri­ 1. Pode-se continuar a crer em Cristo, mas
tualismo na Itália, 339; 4 .0 espiritualismo na não em Deus, 370; 2. A superação da tipo­
França e o contingentismo de Boutroux, 339.
logia da morte de Deus, 371.
III. Maurice Blondel IV. A teologia da esperança___ 373
e a “ filosofia da ação” _____ 341
1. Moltmann e a contradição entre “ esperan­
1. Os precedentes da filosofia da ação, 342; ça” e “ experiência” , 374; 2. Pannenberg: “ a
2. A dialética da vontade, 343; 3. O método prioridade pertence à fé, mas o primado à
da imanência, 343; 4. A filosofia da ação e esperança” , 374; 3. Metz: a teologia da espe­
suas relações com o modernismo, 344. rança como teologia política, 375; 4. Schille-
T e x t o s -M . Blondel: 1. 0 homem: um ser finito beeckx: “ Deus é aquele que virá” , 375.
que tende “naturalmente” ao “absoluto”, 345. T e x t o s - K. Barth: 1. “N ós pedimos fé,
nada mais e nada menos” , 377; Bonhoeffer:
2. “Quem está ligado a Cristo encontra-se
Capítulo décimo nono seriamente sob a cruz” , 378; K. Rahner:
Henri Bergson 3. Tarefa e compromissos da teologia do
e a evolução criadora________ 347 futuro, 379; 4. A missão da Igreja: indicar
a salvação ao mundo inteiro, 381; J. M olt­
1. A originalidade do espiritualism o de mann: 5. A fé é escopo e não meio, 383.
Bergson, 348; 2. O tempo espacializado e
o tempo como duração, 350; 3. Por que a
duração funda a liberdade, 350; 4. Matéria Capítulo vigésimo primeiro
e memória, 351; 5. Impulso vital e evolu­ A neo-escolástica,
ção criadora, 352; 6. Instinto, inteligência, a Universidade de Louvain,
intuição, 354; 7. A intuição como órgão
da metafísica, 354; 8. Sociedade fechada e
a Universidade Católica de Milão
sociedade aberta, 355; 9. Religião estática e o pensamento
e religião dinâmica, 356. de Jacques M aritain_________ 385
Ó v \d ic e g e ^ a l

I. Origens e significado e o marxismo, 405; 4. Em direção à nova


da filosofia neo-escolástica__ 385 sociedade, 405; 5. O cristianismo deve rom­
per com todas as desordens estabelecidas,
I. As razões do renascimento do pensamen­ 406.
to escolástico, 386; 2. As encíclicas“ Aeterni
Patris” e “ Pascendi” , 387; 3. O Concilio III. Simone Weil:
Vaticano II e o pós-concílio, 387; 4. O car­ entre ação revolucionária
deal Mercier e a neo-escolástica em Louvain,
387; 5. A neo-escolástica na Universidade e experiência mística______ 407
Católica de M ilão, 389. 1. A vida e as obras, 407; 2. Gabriel Mareei
e Charles De Gaulle julgam Simone Weil,
II. O pensamento 408; 3. Escravidão em nome da força e es­
de Jacques Maritain cravidão em nome da riqueza, 408; 4. O que
e a neo-escolástica significa ser revolucionários, 409; 5. Fomos
na França________________ 390 colocados aos pés da cruz, 409; 6. Cristo é o
contrário da força: é um Deus que morre na
1. Jacques Maritain: os “ graus do saber” e cruz, 410; 7. A presença de Cristo, ^10.
o “ humanismo integral” , 391; 1.1. A grande
escolha: viver segundo a verdade, 391; 1.2. O T e x t o s - E. Mounier: 1. Para uma teoria
eixo central do pensamento de Maritain: da “pessoa humana” , 412; S. Weil: 2. Deus
“ distinguir para unir” , 391; 1.3. A concep­ vem a nós despojado de seu poder e de seu
ção da educação e seus fundamentos, 392; esplendor, 413.
1.4. A concepção da arte, 392; 1.5. H u­
manismo integral e concepção da política,
393; 2. Etienne Gilson: por que não se pode Sétima parte
eliminar o tomismo, 393.
T e x t o s - J . Maritain: 1. Assim como a me­
LIBERDADE
dicina, a educação é uma ars cooperativa DO INDIVÍDUO
naturae, 395.
E TRANSCENDÊNCIA
DIVINA
Sexta parte NA REFLEXÃO
O PERSONALISMO FILOSÓFICA
HEBRAICA
Capítulo vigésimo segundo CONTEMPORÂNEA
O personalismo:
Emmanuel Mounier
e Simone Weil ______________ 399 Capítulo vigésimo terceiro
Martin Buber
I. O personalismo: e o princípio dialógico_______ 417
uma filosofia, 1. A vida e as obras, 417; 2. O Eu fala das
mas não um sistem a_______ 399 coisas mas dialoga com o Tu, 419; 3. A dife­
I. Características da “ pessoa” , 399; 2. O rença entre a relação “ Eu-Esse” e a relação
contexto histórico em que surgiu o perso­ “ Eu-Tu” , 420; 4. É o Tu que me torna Eu,
nalismo, 400; 3. As regras e as estratégias 420; 5. Pode-se falar com Deus, não se pode
do personalismo, 400; 4. Os representantes falar de Deus, 420.
do pensamento personalista, 401. T e x t o s - M. Buber: 1. A Jesus cabe um gran­
II. Emmanuel Mounier de lugar na história da fé de Israel, 421.
e “ a revolução personalista
e comunitária” ____________ 402 Capítulo vigésimo quarto
1. Vida e obra, 402; 2. As dimensões da Emmanuel Lévinas
“ pessoa” , 403; 3. O personalismo contra o e a fenomenologia
moralismo, o individualismo, o capitalismo da face do Outro____________ 423
1. A vida e as obras, 423; 2. Onde nasce o 1. Gyòrgy Lukács, 442; 1.1. Totalidade e
existente, 423; 3. A face do Outro nos vem dialética, 442; 1.2. Classe e consciência de
ao encontro e nos diz: “ Tu não m atarás” , classe, 443; 1.3. A estética marxista e o “rea­
424; 4. O Outro me olha e se refere a mim, lismo” , 444; 2. Karl Korsch entre “ dialética”
425; 5. Quando o Eu é refém do Outro, e “ciência”, 445; 3. Emst Bloch, 446,3.1. A vida
425. de um “ utopista” , 446; 3.2. “ O que importa
é aprender a esperar” , 446; 3.3. “ O mar­
T e x t o s - F. Lévinas: 1. O Outro não pode xismo deve ser fielmente ampliado” , 448;
nos deixar indiferentes, 426. 3.4. “ Onde há esperança, há religião” , 448.
VI. O neomarxismo na França _ 449
O itava parte 1. Roger Garaudy, 449; 1.1. Os erros do
sistema soviético, 449; 1.2. A alternativa,
O MARXISMO 450; 1.3. M arxism o e cristianismo, 450;
DEPOIS DE MARX 2. Louis Althusser, 451; 2.1. A “ ruptura
epistem ológica” do M arx de 1845, 45.1;
E A ESCOLA 2.2. Por que o marxismo é “ anti-humanis-
DE FRANKFURT m o” e “ anti-historicismo” , 451.
VII. O neomarxismo na Itália__453
1. Antônio Labriola, 454; 1.1. “ O marxismo
Capítulo vigésimo quinto não é positivismo nem naturalismo” , 454;
O marxismo depois de Marx _429 1.2. A concepção materialista da história,
454; 2. Antônio Gramsci, 455; 2.1. A vida e a
I. O “revisionismo” obra, 455; 2.2. A “filosofia da práxis” contra a
do “reformista” “ filosofia especulativa” de Croce, 456; 2 .3 .0
Eduard Bernstein _________ 429 “ método dialético” , 456; 2.4. A teoria da he­
I. A Primeira, a Segunda e a Terceira In­ gemonia, 456; 2.5. Sociedade política e socie­
ternacional, 4 3 0 ; 2. Eduard Bernstein e dade civil, 457; 2 .6 .0 intelectual “orgânico”,
as razões da falência do marxismo, 431; e o partido como “ príncipe moderno” , 457.
3. Contra a “ revolução” e a “ ditadura do T e x t o s - E. Bernstein: 1. “A democracia é a
proletariado” , 431; 4. A democracia como arte elevada do compromisso", 459; Adler:
“ alta escola do comprom isso” , 432. 2. Onde Marx se assemelha a Kant, 461; Lê­
nin: 3. O ideal ético dos comunistas, 463; G.
II. O debate Lukács: 4. A sociedade não pode ser compreen­
sobre o “reformismo” _____ 433 dida com o método das ciências naturais,
1. Karl Kautsky e a “ ortodoxia” , 433; 2. R o­ 464; 5. O papel do “tipo” na estética realista,
sa de Luxemburgo: “ a vitória do socialismo 464; R. Garaudy: 6. Refutação do stalinismo,
não cai do céu” , 434. 465; A. Gramsci: 7. As razões da crítica a
Croce, 466; 8. A função dos intelectuais, 467.
III. O austromarxismo_______ 435
1. Gênese e características do austromarxis­ Capítulo vigésimo sexto
mo, 435; 2. M ax Adler e o marxismo como A Escola de Frankfurt _______ 469
“ programa científico” , 436; 3. O neokantis-
mo dos austromarxistas e a fundamentação I. Gênese, desenvolvimentos
dos valores do socialismo, 437. e programa
IV. O marxismo da Escola de Frankfurt_____ 469
na União Soviética________ 438 I. Totalidade e dialética como categorias
1. Plekanov e a difusão da “ ortodoxia” , fundamentais da pesquisa social, 469; 2. Da
438; 2. Lênin, 439; 2.1. O partido como Alemanha para os Estados Unidos, 471.
vanguarda arm ada do proletariado, 439; II. Theodor Wiesengrund
2.2. Estado, revolução, ditadura do prole­
tariado e moral comunista, 440. Adorno__________________ 472
1. A “ dialética negativa” , 472; 2. Adorno e sua
V. O “marxismo ocidental” colaboração com Horkheimer: a dialética do
de Lukács, Korsch e Bloch___441 Iluminismo, 473; 3. A indústria cultural, 474.
tíJ^dice. 0e»*al

III. M ax Horkheimer: V. Erich Fromm


o eclipse da raz ão ________ 476 e a “cidade do ser” _______ 482
1. O “lucro” e o “planejamento” como ge­ 1. A desobediência é de fato um vício?, 482;
radores de repressão, 476; 2. A razão ins­ 2. Ter ou ser?, 483.
trumental, 476; 3. A filosofia como denúncia
T e x t o s - T. W. Adorno: 1. A filosofia não
da razão instrumental, 477; 4. A nostalgia
pode se reduzir a ciência, 484; M. H ork­
do “ totalmente O utro” , 477.
heimer; 2. A n o sta lg ia do “ totalm ente
IV. Herbert Marcuse O utro” , 485; M . Horkheimer - Adorno:
3. É necessário frear a corrida para o mun­
e a “grande recusa” _______ 479 do da organização, 486; H. Marcuse: 4. Para
1. E impossível uma “ civilização não-repres- “outra” e “mais hum ana” sociedade, 487;
siva” ?, 479; 2. “ Eros” libertado, 480; 3. O 5. A categoria das “falsas necessidades” ,
homem de uma dimensão, 481. 488.
JVidfce de cornes*

B a u e r O ., 4 3 5 , 4 3 6 Breda, H. van, 180


B e a u v o ir , S. d e , 2 1 7 B ren ta n o F., 175, 176, 177, 178,
Abbagnano N., 2 3,205,215,217 B e c k e r O ., 1 7 7 179, 180,195, 196
A b e la r d o P., 394, B e l o c h K. J., 3 3 , 3 4 Breznev L., 449, 465
A d a m s o n R., 23 B e n ja m i n W ., 4 7 1 B r i d g m a n R W., 83
A d l e r F., 436 B e r d j a e v N . ,2 1 7 , 3 9 9 ,4 0 1 , 4 0 2 ,4 0 3 B r i g h t m a n E. S., 399, 401
A d l e r M . , 4 3 5 , 4 3 6 - 4 3 7 , 461 -463 B e r g s o n H .,9 5 , 9 7 , 3 3 3 , 3 3 4 , B r o a d C. D., 323
A d o r n o T. W., 4 6 9 , 470, 4 1 7 , 4 7 2 , 338, 3 4 0 , 3 4 4 , 3 4 7 - 3 5 7 , 358­B r o u w e r L. E., 312
4 7 3 - 4 7 5 , 484-486 3 6 2 , 391 Bruegel R, 323
A g a z z i E ., 3 8 9 B e r k e l e y G., 8 0 , 9 3 B r u n o G., 148, 152
A g o s t i n h o d e H ip o n a ,336, 348, B e r l i n I ., 3 2 7 B r u n s c h v i c g L., 21, 23
382, 385, 386 B e r n s t e i n E., 4 2 9 - 4 3 2 , 4 3 3 , 4 3 4 , B u b e r M . , 401,415,416,417-420,
A l a i n E. A . , 245 4 3 9 , 459-460 421,446
Atbérès R. M., 160 B e t t i E., 1 7 3 , 2 6 5 - 2 6 8 , 284 B u b e r S., 417
Afonso XIII, 158 B i o t R., 4 0 1 Bülow, C. von, 5
Alighieri D., 120, 138, 142, 394 B i r a n , M. d e , 339, 349, 401 B u l t m a n n R., 223,265,266,267,
A l t h u s s e r L., 449, 451-452 Bismarck, O. von, 60, 460 271, 363, 366
A l t i z e r T . J. J., 370 Black D. W., 300 Burckhardt/., 3, 5, 33, 34
A n a x i m a n d r o , 91, 202, 208, B l a n c h o t M., 423 B u r e n , R M. v a n , 370, 371, 372
210 B l o c h E., 374,375,427,441,442, Buzzoni M., 272
A r e n d t H . , 223-226, 239-242 44 6 -4 4 8
Ariosto L., 142 B lo n d e l M., 337, 338, 339, 341­
A r i s t ó t e l e s , 7,27,83,91,93,147, 344, 345-346
148, 149, 178, 189, 202, 208, B l o y L., 391

281, 289, 290, 325, 331, 394 Blumenfeld K., 240 C a ir d E., 135
A r n i m , H. v o n , 34 B o a v e n t u r a , são, 394 C a ld e r o n i M., 80, 88, 89
A r o n R., 223, 402 Bocchini A., 121 C a m p a n e l l a T., 148
A u s t i n J. L., 324, 325-327 B õ h m - B a w e r k , E. v o n , 435 C a m u s A., 166, 215, 217, 408
A y e r A . J., 327-328 B o l t z m a n n L., 311 C a n t o n i C ., 21, 23
B o l z a n o B ., 1 7 5 , 1 7 7 C a r a b e l l e s e R, 339, 340
B o n a i u t i E., 341, 344 Carducci G., 113
B o n h o e f f e r D., 333, 364, 3 6 6 ­ Carlini A., 399, 401
B 3 6 7 , 378-379 C a r l y l e T . , 134, 135
B o n t a d i n i G., 386, 389 C a s s i r e r E., 1,21,23,26-29,30-31
B a c h e la r d G., 451 B o p p F., 34 Castro F., 227
B acon F., 80, 256, 487 B ó r g ia C., 11 Catarina d e Sena, santa, 348, 357
B a l f o u r A. J., 338 B o r k e n a u F.,471 C h e s t o v L., 217
B a l t h a s a r , H. U. v o n , 368, 369 Botticelli S., 323 C h ild E. B., 101
Balzac, H. de, 444 B o u t r o u x E., 3 3 7 , 3 3 8 , 3 3 9 , Cbiodi P., 216
B a n f i A., 23 340, 349 C l a u d e l R, 369, 485
B a r t h K., 216,363,364-365,369, B o w n e B. R, 401 C o a t e s J. B., 399, 401
371, 377, 386 B r a d l e y F. H . , 1 3 4 , 1 3 5 - 1 3 6 , 2 9 5 , C o h e n H., 21, 23, 24, 26, 165,
B a r z e l l o t t i T., 21, 23 296, 338 166, 435, 436

* Neste índice:
-reportam -se em versalete os nomes dos filósofos e dos homens de cultura ligados ao desenvolvimento
do pensamento ocidental, para os quais indicam-se em negrito as páginas em que o autor é tratado de
acordo com o tema, e em itálico as páginas dos textos;
-reportam -se em itálico os nomes dos críticos;
-reportam -se em redondo todos os nomes não pertencentes aos agrupamentos precedentes.
XVIII -y i. ,
*_mdice d e cornes

Coleridge S. T., 134 Ficker, L. von, 311, 318 114, 115, 116, 122, 123, 126,
Colombo C., 323 F i n c k E., 177 128, 134, 138, 139, 144, 147,
C o m t e A., 4, 8, 91, 167, 189, F i o r e n t i n o F., 21, 23 148, 150, 151, 167, 202, 208,
198, 340 F l e w A., 324 217, 231, 244, 250, 262, 274,
C o n r a d - M a r t i u s E., 177, 192 F o g a z z a r o A., 341, 344 275, 276, 295, 296, 330, 343,
Corneille P., 142 Francisco de Assis, são, 68, 348, 364, 430, 436, 438, 441, 442,
C o u s i n V., 144, 336 357 443, 446, 449, 451, 454, 462,
Cox H., 370, 371 F r e d e r ic o o G r a n d e , 60 470, 472
C r e i g h t o n J., 136 F r e g e G ., 297, 298, 308 H e i d e g g e r M., 174, 176, 177,
C r o c e B., 109, 110, 111-124, F r e u d S., 269,271,272,273,274, 179, 201-210, 211-214, 215,
126, 127, 128, 131, 137-146, 276, 284, 285, 286, 291, 323, 217,218, 2 2 1 ,2 2 3 ,2 2 8 ,2 3 5 ,
147, 148, 453, 455, 456, 458, 479, 480 236, 243, 250, 258, 259, 260,
466, 467 F r i e s J. F., 22 265, 266, 267, 271, 278, 280,
F r o m m E., 469, 471, 482-483 281,285, 290, 291, 368, 423,
424
V H e l m h o l t z , H ., 21, 22, 29
H e m p e l C. G., 299
H e r á c l i t o , 95, 97, 132, 202,
D a r w in C. R., 254
D e G a u lle C., 408 G a d a m e r h . G . , 173, 174, 249­ 208,210
257, 258-263, 265, 266, 267, H e r b a r t J. F., 22, 113, 454
D e S a n c t i s F . , 109,110, 113
D é l è a g e A., 401 280, 281 Hertwig M., 446
G a l i l e i G . , 29, 180, 184, 244, H e r t z H . R., 311
D e s c a r t e s R., 48, 180, 184, 197,
244, 245, 272, 283, 284, 285, 245 Herzl T., 417, 418
G a l l u p p i R, 110, 148 H e s s M., 418
290, 304, 330, 332, 336, 349,
G a r a u d y R., 449-450, 465-466 H i c k J., 324
352, 388, 401
G a r d i n e r R, 324 H i c k s G. D ., 21, 23
D e w e y J., 80, 88,95-102,104-108
Gaus, 239, 240, 241 H i l f e r d i n g R., 435, 436
D i c k i n s o n , 296
D i e l s H., 34 G e i g e r M., 177 Hitler A., 223, 225, 469, 471
D i l t h e y W., 1, 22, 25, 33, 34, 36­ G e m e l l i A., 386, 389 Hobbes, 94
G e n t i l e G . , 109, 110, 111, 114, H o c k i n g W. E., 399, 401
39, 40,41, 45, 46-48, 59,250,
126-132,147-154, 458 H o d g s o n S. H ., 21, 23, 93
267, 274, 276, 290, 417, 470
G i l s o n E., 390, 393-394 H ò l d e r l i n F., 210, 213, 214
D o s t o i e w s k i F. M., 6, 216, 242,
323, 423, 442 G i o b e r t i V . , 110, 148 Homero, 254
G o e t h e J. W., 50, 124,134, 168 H o r k h e i m e r M., 427, 469, 470,
D o y l e , 75
D r a y W., 324 Gogol N., 423 471, 472, 473, 474, 475, 476­
D r o y s e n G., 33, 34 G o l d m a n n L., 450 478, 485-487
G r a m s c i A., 453, 454, 455-458, H o w i s o n G. H ., 136, 399, 401
D u n c a n - J o n e s A., 323
466-468 H u m b o l d t , W. v o n , 119
D ü r e r A., 47
G r e e n T. H., 135, 338 H u m e D ., 80, 93, 368
D u v e a u G., 401
G r i c e H. R, 331 H u s s e r l E., 173, 174, 175, 176,
Grimm H., 261 177, 178, 179-184, 185, 186,
G r i m m J., 34 190, 192, 193, 195-200, 201,
G r o s s m a n n H., 471 202, 205, 223, 226, 227, 262,
G u a r d i n i R., 446 268, 270, 271, 325, 389, 423,
E c k h a r t ( M e s t r e ) J., 482, 483
Guarini B., 142 424, 449, 451, 470
E c k s t e i n G., 436
Guerrera Brezzi F., 270, 271 H y p p o l i t e J., 217, 270
E i n s t e i n A., 29,198, 274, 300
Guevara C., 227
E liezer, I. b e n , 418
Gumnior, 485, 486
E lio t T. S., 372
Gundolf F., 261
E m e r s o n R. W., 134, 135, 136
G uzzo A., 274, 275
E n g e l m a n n R, 307, 311,318 Infantino, L., 166
E n g e l s F., 231, 429, 431, 435, I z a r d G., 399, 401
436, 437, 439, 443, 446, 454,
f-l
461,462
E p i c t e t o , 28, 30
E u c k e n R., 337, 338
H a b e r m a s J., 471 3
H a m e l i n O ., 21, 23
E u c l i d e s , 296, 395
H a m i l t o n W., 370 J a c in i S., 142
E u r íp id e s , 3, 7
H a m p s h i r e S., 324, 327-328 A., 193
J a e g e r s c h m id
H a r e R. M., 293, 324, 327, 330 J a i a D ., 109, 110, 126, 127
Harich W., 446 J a m e s H., 349
P . H a r n a c k , A. v o n , 363, 364 J a m e s W., 79, 80, 84-87, 88, 89,
H a r r i s W. T., 136 90, 93, 99,104,134, 349, 352
F e u e r b a c h L., 4, 8,216,274,275, H a r t H . L. A., 327 J a n i k A., 311
370, 448 H a r t m a n n N., 177, 190, 191 J a r c z y k G., 381
F i c h t e H., 337, 338 H a r t m a n n , E. v o n , 377, 338 J a s p e r s K., 173, 215, 217, 218­
F i c h t e J. G., 22, 68, 146, 150, H e g e l G. W. F., 22, 34, 35, 36, 38, 222, 223, 238-239, 242, 243,
337, 338 4 8,95,97,10 9 ,1 1 0 ,1 1 1 ,1 1 3 , 269, 275, 446
D n c lia e - de n o m e s

Jesi P., 418 Lope de Vega F., 142 M o u n ie r E., 2 6 8 , 2 6 9 , 2 7 0 , 3 8 5 ,


Joana d’Arc, santa, 348, 357 L o t z e R. H., 337, 338, 339 386, 397, 398, 399, 400, 401,
João da C r u z , são, 194 L õ w e n t h a l L ., 469, 471 4 0 2 - 4 0 6 , 412-413
João Paulo II, papa, 190,192,193, L o y o l a , I. d e , 157, 160 M u r r i R., 3 4 1 , 3 4 4
385,387 L u b a c , H. d e , 369
J o h n s o n M . E., 323 L u k á c s G., 7 6 ,4 4 1 , 4 4 2 - 4 4 4 , 445,
J o l i o t - C u r i e I., 298 446, 464-465, 470
L u t e r o M., 12, 46, 47
L u x e m b u r g o , R. d e , 429, 430, N a b e rt, 401
K 433, 4 3 4 - 4 3 5 N a to rp P., 21,23,24,26,165,166
N é d o n c e l l e M.,399, 401, 405
Kafka F., 216 N e g t O., 471
K a n t I., 21, 22,23, 3 5 ,4 0 ,4 2 , 76, M N e u m a n n F., 471
88, 89, 109, 129, 147, 148, Neumann O., 60
185, 186, 187, 256, 281,289, M a c e C. A., 323 N e u r a t h O., 295, 299
290, 296, 327, 328, 332, 338, M a c h E., 90, 121, 435, 436 N e w m a n J. FL, 342
339, 368, 369, 386, 388, 395, M a d i n i e r G., 401 N e w t o n I., 29,198, 330, 332
401, 436, 461, 462, 474, 486 M a l c o l m N., 309, 323 N i e b u h r B. G., 33, 34
K a u t s k y K ., 429, 430, 431, 4 3 3 ­ M a l e b r a n c h e N., 332 N i e t z s c h e F., 1, 3-15, 17-20, 34,
4 3 4 , 445 Malka S., 424, 425 ' 166, 202, 208, 216, 220, 262,
Kegan P., 309 M a n e t E., 3 2 3 269, 272, 274, 276, 280, 281,
K e l s e n H., 435, 436 M a q u i a v e l N., 122,383,384,455 2 8 3 ,2 8 4 ,2 8 5 ,2 8 6 , 290, 291,
Kennedy J., 300 M a r c e l G., 173, 177, 215, 217, 375,417
K e y n e s J. M., 312 234-237, 243, 245-247, 268, N o w e l l - S m i t h P., 327
K i e r k e g a a r d S., 157, 161, 215, 270, 402, 403, 408, 446 N y s D., 386, 388
216, 220, 231, 273, 274, 275, M a r c u s e H.,427, 469, 470, 471,
3 1 1 ,364,377, 401,417, 442 479-481, 487-488
K o j è v e A., 217, 223 M a r é c h a l ]., 386, 388 O
K o r s c h K ., 441, 442, 4 4 5 - 4 4 6 Marias J., 166
K o y r é A., 223 M a r i t a i n J., 3 3 4 , 3 8 5 , 390-393, O c k h a m , G . d ’, 83
K r i e s , J. v o n , 69, 70 395-396, 3 9 9 , 4 0 1 , 4 0 2 O lg ia t i F., 386, 389
Kruschev N., 227, 300 M a r i t a i n R ., 3 9 1 O l l é - L a p r u n e L ., 3 4 2 , 3 4 9
K ü l p e O., 446 M a r t i n e t t i P., 3 3 7 , 3 3 9 , 3 4 0 O rte g a y G asset ]., 155, 156,
K u n B., 442 M a r x K., 4 5 , 1 1 0 , 1 1 1 , 1 6 7 , 1 6 9 , 1 5 9 , 1 6 5 - 1 7 0 , 171-172
231, 269, 272, 274, 276, 284, O t t o R., 1 7 9 , 1 8 2 , 1 9 0 , 191-192
285, 286, 291, 330, 409, 428,
L 429, 430, 431, 433, 435, 436,
437, 438, 439, 440, 441, 442, P
341,343,344
L a b e r t h o n n i è r e L ., 443, 445, 448, 449, 451, 455,
L a b r io la A., 111, 113, 453, 4 6 1 ,4 6 2 , 4 7 8 , 4 8 1 ,4 8 2 , 4 8 3 P a c i E., 180, 184
4 5 4 -4 5 5 M a s n o v o A., 3 8 6 , 3 8 9 P a d o v a n i U. A., 389
L a ch iè z e -R e y P., 401 M a t h i e u V., 3 3 7 , 3 5 1 P a n n e n b e r g W., 373, 374-375
L a c r o ix J., 399, 401 M a t t e o t t i G., 1 1 4 , 1 2 7 P a p in i G., 80, 88, 89
L a n d g r e b e L ., 177 M a t u r i S., 1 0 9 , 1 1 0 P a r e y s o n L., 2 7 4 - 2 8 0 , 281,286-289
L a n d s b e r g P., 401 M auth ner, 316 P a r m ê n i d e s , 202, 208, 210, 389
L a n g e F. A., 23, 89 M a x w e l l J. C., 2 9 P ascalB , 157,161,185,187,305,
Laterza G., 142 M e a d G. H., 8 0 , 88-89 336, 349,395, 401,417
L a v e l l e L ., 336, 338 P a s t e u r L., 323
M e i n e c k e F ., 3 3 ,3 4 , 3 5 ,4 1 , 4 4 ,4 5 , 5 3
L a z e r o w i t z M . , 323 M e i n o n g A., 2 9 8 , 3 2 5 P a u l G. A., 323
Leão XIII, papa, 385, 387, 388 M e n g e r C., 4 3 5 , 4 3 6 P a u l J., 116
L e R o y E., 344 M e r c i e r D., 3 8 6 , 387-388 Paulo de Tarso, 11, 348, 357
L e S e n n e E. R ., 401, 407 M e r l e a u -P o n t y M . , 1 7 3 , 1 7 7 ,2 1 5 , Paulo VI, papa, 396
L e f e b v r e H., 450 217, 2 2 7 , 232-234, 244-245 P e a n o G., 90, 296, 297
L e f r a n c q M., 401 M e t z B., 3 7 3 , 375 Pears D. F., 327, 331
L e i b n i z G. W., 304, 332, 338, 401 M e y e r E., 6 0 , 6 9 , 7 0 P e i f f e r S r t a . , 423
L ê n i n N ., 300, 433, 434, 435, M i c h e l e t J., 1 4 4 P e i r c e C. S ., 1, 79, 8 0 - 8 3 , 85, 88,
438, 4 3 9 - 4 4 0 , 445, 453, 455, M i l l J . S., 7 1 , 1 0 5 89, 90, 91-92
456, 463 M i s e s , L. v o n , 4 3 5 Pellicatii L., 167, 170
L e q u i e r J., 337, 339 M i t c h e l l B., 3 2 4 Perrin J. M., 407, 408,410
L e s s i n g , G. E., 17, 141 M o l t m a n n J., 3 3 3 , 3 7 3 , 374, Pestalozzi, 395
L é v i n a s E., 415,416, 4 2 3 - 4 2 5 , 426 383-384 Pétain H.-P.-O., 403
L i e b k n e c h t K., 429,430,433,434 M o m m s e n T., 3 3 , 3 4 P f a n d e r A . , 177
L i e b m a n n O., 21, 22 M o n t a ig n e , M . d e , 2 4 5 P h i l i p A., 401
L o b a t c h e v s k i N. I., 274 M o n t e f i o r e A., 3 2 7 Pio X, papa, 341, 344, 385, 387
L o c k e J., 49, 80, 93, 304 M o o r e G. E., 2 9 5 , 2 9 6 , 3 0 8 , 3 0 9 , Pio XII, papa, 387
L o i s y A., 341, 344 3 2 1 , 322, 3 2 3 , 3 3 2 P i r r o , 183
London, 465 M o u c h o t L. H., 3 3 6 P l a n c k M., 29,198
J n d ic e d e nom es

P la tã o , 4, 7, 53, 91, 148, 189, S c h ille b e e c k x E., 2 7 0 , 373,


202, 208, 210, 302, 324, 325, 375-376
u
332, 339, 395 S c h i l l e r F. C. S ., 80, 88, 89
P l e k a n o v G. V., 438-439 S c h l e g e l F., 250 U e x k ü ll,J. v o n , 3Q
P l o t i n o , 335, 336 S c h l e i e r m a c h e r F., 192, 250, U nam uno, M. d e , 80, 155, 156,
P o i n c a r é H., 339 267, 364, 384 157-161, 162-163, 166
P o l l o c k F., 469, 471 S c h l i c k M., 311, 312, 328 U s e n e r H., 34
Pôncio Pilatos, 11 S c h m i d t A., 471
P o p p e r K. R., 45, 83, 330, 331 S c h o p e n h a u e r A., 3, 4, 5, 6, 7, 8,
P r e z z o l i n i G., 80, 88, 89 9, 2 2 ,2 1 6 ,3 3 9 V
Primo de Rivera M., 158, 159 Secretan P., 271
P r i n g l e - P a t t i s o n A. S., 338 S e v e r i n o E., 389 V a h a n ia n G., 370
P r o t á g o r a s , 15, 88 Shakespeare W., 120, 138 V a ih in g e r H., 80, 88, 89
Proust M., 323 S i d g w i c k H., 295, 296 V a i l a t i G., 1, 80, 88, 89, 90,
P r z y w a r a E., 369 S i l v e S r t a . , 403 93-94
Puskin S., 423 S i m m e l G., 33, 34, 40,41, 42, 51­ V a n n i R o v i g h i S., 386, 389
52, 417, 446, 470 V a r i s c o B., 339, 340
Siniavski A. D., 449 V a t t i m o G., 204, 206, 275, 280­
"R Sobell M., 300 283, 289-291
S ó c r a t e s , 3, 4, 6, 7, 8 ,1 7 ,1 8 , 93, V e r a A., 109
R aeym aeker, L. d e , 386, 388 297, 355, 401 V e r i t é P., 401
R ahner K., 368-369, 375, 379­ SOMBART W., 57 Vermeer J., 423
383, 386 Sossi F., 276 Vico G. B., 110, 113, 116, 127,
R a j k , 465
S p a v e n t a B., 109-110, 111, 113, 148
Rakosi M., 449, 465 126,127, 453, 454
R a m s e y F. P., 312, 323
S p e n c e r H., 97, 347, 350
R a n k e L., 33, 34
S p e n g l e r O., 33, 34, 40, 41, 42­ w
R a v a i s s o n F., 337, 338, 339, 349
43, 45
Ravasi G., 209 S p i n o z a B., 48, 109, 332, 339 W a g n e r R., 3, 4 , 5, 8, 9, 141
R e i n a c h A., 177
S p i r A . , 337,338, 339 Wa h l J .,2 1 7
R e n n e r K., 435, 436
S t a lin J ., 223, 225,449, 465 W a is m a n n F., 293, 312, 324, 328,
R e n o u v i e r C., 21, 23, 400
S t e b b i n g L. S ., 323 329, 332
Ricci Sindoni P., 418, 420 S t e f a n i n i L., 399, 401 W a r d J., 337, 338
R i c k e r t H., 2 1 ,2 2 ,2 3 ,2 4 ,2 5 ,3 3 ,
S t e i n E., 177, 179,190,192-194 W a r n o c k G. J., 324, 327
34, 35, 4 0 ,4 1 ,4 2 , 45, 50-51, S tein R., 193 W e b b C. C .J., 337, 338
59, 202, 435, 436 S t i r l i n g J. H., 134, 135 Weber Marianne, 64
R i c o e u r P., 268-273, 284-286,
S t r a u s s D. F., 4, 8, 364 W e b e r M a x , 1,25, 33, 34,40,41,
399, 401 S t r a w s o n P. F., 324, 327, 329, 45, 55-65, 66-78, 218, 290,
R i e h l A., 23
330, 331 442, 446, 470
Rilke R. M., 332
W e i l S., 397, 398, 399, 407-411,
R i t s c h l A., 363, 364
413-414
R o b i n s o n J. A. X , 370
T W h i t e h e a d A. N., 87, 294, 295,
R o h d e E., 8, 34
301-302
Rosenberg J., 300
J. M c , 135, 295, 296 W i l a m o w i t z - M õ l l e n d o r f f , U.
R o s e n z w e i g F., 418 T a g g a rt,
91 v o n , 8, 34
R o s m i n i A., 110, 148 T a le s ,
Tasso T., 142 W i l s o n C., 325
R o u s s e a u J.-J., 30,169, 384, 395
T e l é s i o B., 148 W i n d e l b a n d W ., 21, 22, 23, 24,
R o v a t t i P. A., 281
Teresa d’Ávila, santa, 348, 357 33, 34, 35, 40, 41, 42, 45, 48­
R o y c e J., 134,136
Thibon G., 408 50, 435, 436
R u s s e l l B., 293, 294, 295-300,
W i s d o m J., 321, 322, 323
301, 303-304, 307, 308, 309, T i l l i c h P., 363, 365-366, 368,
446 W i t t f o g e l K. A., 469, 471
3 1 0 ,311,316, 321,322, 323
T occo F., 21, 23 W i t t g e n s t e i n L., 271, 293, 294,
R y l e G., 323, 324, 325, 327
Toller E., 58 295, 296, 297, 299, 304-305,
Tolstoi L., 64, 75, 77, 305, 311, 307-314, 315-320, 321, 322,
s 323
T o m á s d e A q u i n o , 190,194, 368,
323, 325, 327, 328, 329, 330,
332, 370, 372, 484
Sachs H., 47 369, 383, 385, 387, 394, 395 Wordsworth W., 134
W u l f , M . d e , 386, 388
S a r t r e J.-P, 173, 177, 215, 217, Touchard P. A., 401
223, 226-231, 232, 234, 235, T o u l m i n S. E., 311, 327 Wust P., 192
242-244, 375, 450 T r a n D u c T a o , 177
Savignano A., 167 T r e v e l y a n G. M., 295, 296
S a v i g n y , F. C. v o n , 34 Treves R., 165, 166 2
S c h e l e r M., 175, 177, 179, 182, T r o e l t s c h E., 33, 34, 41, 44,
185-189, 190, 191,200, 401 45, 53 Z am boni G., 389
S c h e l l i n g F. W., 22, 48, 134, T r o t s k i L., 410 Z ehm G., 446
138, 139 T y r r e l l G., 341, 344 Z e l l e r E., 33, 34
CJndice de conceitos
j-uKvdamervtais

abdução, 83 instrumentalismo, 99
am or fati, 13
angústia, 207
autoconceito (conceptus sui), 129
método da imanência, 343

círculo hermenêutico, 251


conhecimento intuitivo, 117 neocriticismo (ou neokantismo), 23

dejeção, 205 ôntico - ontológico, 206


demitização, 366
dialética, 128
desencantamento do mundo, 63
duração, 351 personalismo, 400
proposição atômica, 310

epocbé, 183
escatologia, 374 regra pragmática, 83
existentivo - existencial, 204 ressentimento, 11

falibilismo, 83 sionismo, 418


filosofia das formas simbólicas, 29 super-homem (Übermensch), 14

teoria crítica da sociedade, 470


hassidismo, -rio
nassiuisinu, 418 • -J„„l /rn
hegemonia (teoria da hegemonia), 457 *P° 1 ’
história, 124 __
história dos efeitos (Wirkungsgeschichte), 254 __________________MSM______
historicismo, 45
homem-massa, 169 universal concreto,120
DE NIETZSCHE
À ESCOLA DE FRANKFURT

o.

o
> .
A FILOSOFIA
DO SÉCULO XIX
AO SÉCULO XX

“Sócrates foi um equívoco: toda a moral do perfec­


cionismo, até mesmo a cristã, foi um equívoco
Friedrich Nietzsche

“Estamos abertos à possibilidade de que o sentido


e o significado surjam apenas no homem e em sua
história. Mas não no homem individual, e sim no ho­
mem histórico. Porque o homem é um ser histórico”.
Wilhelm Dilthey

“Sermos superados no plano científico é[...] não só


nosso destino, de todos nós, mas também nosso
escopo”.
Max Weber

“O homem não vive mais em um universo simbóli­


co. A linguagem, o mito, a arte e a religião são parte
deste universo, são os fios que constituem o tecido
simbólico, a emaranhada trama da experiência hu­
mana. Todo progresso no campo do pensamento
e da experiência reforça e aperfeiçoa esta rede”.
Ernst Cassirer

“Uma hipótese está, para a mente científica, sem­


pre em prova”.
Charles S. Peirce

“Todoerronosindicaumcaminhoaevitar,aopassoque
nem toda descoberta nos indica um caminho a seguir”.
Giovanni Vailati
Capítulo primeiro

Friedrich Nietzsche.
Fidelidade à terra e transmutação de todos os valores

Capítulo segundo

O neocriticismo.
A Escola de M arburgo e a Escola de B a d e n ________

Capítulo terceiro

O historicismo alemão
de Wilhelm Dilthey a Friedrich M einecke__________

Capítulo quarto

M ax Weber:
o desencantamento do mundo
e a m etodologia das ciências histórico-sociais ______

Capítulo quinto

O pragm atism o__________________________________

Capítulo sexto

O instrumentalismo de John D e w e y _______________

Capítulo sétimo

O neo-idealismo italiano, Croce e Gentile


e o idealismo anglo-am ericano____________________
íS a p í+ u lo p n m e i^ o

Friedrick A)i^+2scke.
Fidelidade à terra
e tratas mutação de todos os valores

• Crítico impiedoso do passado e profeta "inatual" do fu ­


turo, dessacralizador dos valores tradicionais e propugnador do ^ essa,c^ /iz, r
homem que ainda está por vir, Friedrich Nietzsche (1844-1900) °°adidonais
é um pensador cuja obra deixou marca decisiva. Aos vinte e e p r ofeta
quatro anos, professor de filologia na Universidade de Basiléia, ^ homem
Nietzsche estreita amizade com o famoso historiador Jakob Bur- novo
ckhardt. Nesse período encontra Richard Wagner, em cuja obra -> § 1
musical Nietzsche via o instrumento apto para renovar a cultura
contemporânea. Logo, porém, ele se afastará de W agner e de Schopenhauer, cujo
M undo como vontade e representação ele havia lido alguns anos antes.
Em 1879 Nietzsche deixa a Universidade por motivos de saúde - mas também
porque a filologia não era seu "destino" - e inicia sua peregrinação de pensão em
pensão, entre a Suíça, a Itália e a França meridional. Em 1882 conhece Lou Salomé,
jovem russa de 24 anos; enamora-se, e pretende desposá-la; ela, porém, o rejeita
e se casa com Paul Rée, amigo e discípulo de Nietzsche. Em 1883, em Rapallo,
Nietzsche concebe sua obra mais importante: Assim falou Zaratustra, trabalho que
term inou, entre Roma e Nice, dois anos depois. Acredita ter encontrado morada
satisfatória em Turim. Mas, no dia 3 de janeiro de 1889 torna-se presa da loucura,
lançando-se ao pescoço de um cavalo cujo dono estava espancando diante de sua
casa. Entregue primeiro aos cuidados da mãe e depois aos da irmã, Nietzsche morre
dia 25 de agosto de 1900, sem poder ficar inteirado do sucesso que estavam tendo
os livros que ele havia impresso à própria custa.

• Fascinado pela leitura de Schopenhauer, Nietzsche vê a vida como irracio­


nalidade cruel e cega, destruição e dor. E pensa que apenas a arte possa oferecer
ao indivíduo força e capacidade para enfrentar a dor da vida, fazendo-o dizer
sim à vida. De 1872 é O nascimento da tragédia: aí Nietzsche
afirm a que a civilização grega pré-socrática explodiu em uma £ a tragédia
aceitação vigorosa da vida, em uma exaltação corajosa dos valo- ãtica
res vitais. E individua o segredo desse mundo grego no espirito que une
de Dioniso: Dioniso é o símbolo da força instintiva e da saúde, espirito
de uma humanidade em pleno acordo com a natureza. A arte dionisíaco
grega, todavia, deve seu desenvolvimento não só ao instinto e espirito
dionisíaco, mas tam bém ao apoiineo: visão de sonho, senso da apolineo
medida e de límpido equilíbrio. E se o apolíneo se exprime nas §2
artes figurativas, o dionisíaco explode na música. Os dois instintos
caminham um ao lado do outro, "no mais das vezes em aberta discórdia", até
quando, "por causa de um milagre metafísico da 'vontade' helênica", aparecem
acoplados, gerando a obra de arte, igualmente dionisíaca e apolínea, que é a
tragédia ática.

• Eis, porém, que chega Eurípedes, que procura eliminar da tragédia o elemen­
to dionisíaco em favor dos elementos morais e intelectualistas. E surge Sócrates,
Primeira parte - A filosofia d o s é c u lo a o sé c u lo

Sócrates com sua *ouca presunção de dominar a vida com a razão. Estamos
e Platão em Pjena decadência. Sócrates e Platão são "sintomas de deca-
são dência, os instrumentos da dissolução grega, os pseudogregos, os
"pseudogregos" antigregos". Sócrates - continua Nietzsche - "foi apenas alguém
e "a ntig reg os" longamente enferm o". Foi hostil à vida. Destruiu o fascínio dio-
§2 nisíaco. A racionalidade a todo custo é uma doença.

• Contra a exaltação da ciência e da história, Nietzsche, entre 1873 e 1876,


escreve as Considerações inatuais: Strauss, Feuerbach e Comte são medíocres filis-
teus; Strauss, mais precisamente, é "autor de um evangelho de cervejaria".
Nietzsche combate a saturação de história e a idolatria do
. fato (os fatos "são estúpidos"; apenas as teorias que os interpre-
dema * d tam Poc*em ser inteligentes), e afirma que quem crê no "poder da
to m a'3 a história" será hesitante e inseguro, "não pode crer em si mesmo",
"hesitantes e ser^ então súcubo do existente, "seja ele um governo, uma
e inseguros" opinião pública, ou a maioria numérica".
~> § 3 Nietzsche rejeita a história monumental (de quem procura no
passado modelos e mestres) e a história antiquáría (a que busca
os valores sobre os quais a vida presente se enraíza) e torna-se
partidário da história crítica: esta é a história de quem julga o passado, procurando
abater os obstáculos que proíbem a realização dos próprios ideais.

• Nietzsche havia dedicado a W agner o Nascimento da tragédia, vendo em


Wagner "seu insigne precursor no campo de batalha". No entanto, porém, ele vinha
amadurecendo sua separação tanto de W agner como de Schopenhauer, como é
testemunhado por obras como Humano, demasiadamente huma-
Schopenhauer no (1878), Aurora (1881) e A gaia ciência (1882). Schopenhauer
foge da vida "não é outra coisa que o herdeiro da tradição cristã"; o seu é "o
e W agner pessimismo dos que renunciam, dos falidos e dos vencidos"; é,
"est une justamente, o pessimismo resignado do romantismo, fuga da vida.
névrose" E, por outro lado, W agner - deve adm itir Nietzsche - não é de
§4 fato o instrumento da regeneração da música; ele - escreve Niet­
zsche em O caso Wagner (1888) - "lisonjeia todo instinto niilista
(-budista) e o camufla com a música, bajulando toda cristandade W agner é
uma doença: "est une névrose".

• O afastamento de seus dois "mestres" comporta (ou caminha paralelamente


com) o afastamento de Nietzsche em relação ao idealismo (que cria um "anti-
mundo"), ao positivismo (com sua louca pretensão de dominar
a vida com pobres redes teóricas), aos redentores socialistas, e
Somos ao evolucionismo ("mais afirmado que provado"). O desmasca-
os assassinos ramento, porém, não termina aqui. E justamente em nome do
de Deus instinto dionisíaco, em nome do homem grego sadio do século
5 VI a.C., que "ama a vida", Nietzsche anuncia a "morte de Deus"
e desfere um ataque decisivo contra o cristianismo.
Deus está morto: “Nós o matamos; eu e vós. Somos seus assassinos!". Elimi­
namos Deus de nossa vida; e, ao mesmo tempo, eliminamos aqueles valores que
eram o fundam ento de nossa vida; perdemos os pontos de referência. Isso eqüivale
a dizer que desapareceu o homem velho, mesmo que o homem novo ainda não
tenha aparecido. Zaratustra anuncia a morte de Deus; e sobre suas cinzas exalta
a idéia do super-homem, repleto do ideal dionisíaco, que "ama a vida e que, es­
quecendo o 'céu', volta à sanidade da 'terra'

• O anúncio da morte de Deus caminha lado a lado com a "maldição do


cristianismo". É verdade que Nietzsche sente-se fascinado pela figura de Cristo:
"Cristo é o homem mais nobre". Mas o cristianismo não é Cristo. O cristianismo
Capítulo primeiro - A Jie+zscke. F id eli d a d e à te r r a e tr a n s m u ta ç ã o d e tod o s o s v a lo re s

- lemos no Anticristo - é uma conjuração "contra a saúde, a beleza, a constituição


bem-sucedida, a vontade de espírito, a bondade da alma, contra a própria vida".
Eis a razão pela qual é preciso a transmutação de todos os valores, dos valores que
"dominaram até hoje".
Esses temas são difusamente tratados por Nietzsche em Além Transmutação
do bem e do mal (1886) e em Genealogia da moral (1887). A moral de todos
da tradição é a m oral dos escravos, dos fracos e mal-sucedidos os valores
que, não podendo dar maus exemplos, dão bons conselhos. E -*§ 6 -7
esses bons conselhos, a moral, são fruto do ressentimento: é o
ressentimento contra a força, a saúde, o amor pela vida que faz com que se tor­
nem dever e virtude comportamentos como o sacrifício de si ou a submissão. E o
todo justifica-se por metafísicas que, apresentando-se como objetivas, inventam
"mundos superiores" para poder "caluniar e emporcalhar este mundo", volunta­
riamente reduzido a aparência.

• Com a morte de Deus e o desmascaramento da metafísica e dos valores que


até agora nos sustentavam, o que resta é nada: nós nos precipitamos no abismo do
nada. Em tudo o que acontece não há um sentido, não existem totalidades racionais
que se mantenham de pé, nem existem fins consistentes. Caem
"as mentiras de vários milênios" e o homem permanece sozinho #
e espantado. Permanece um mundo dominado pela vontade de ° anúncio
aceitar a si próprio e de repetir-se. Esta é a doutrina do eterno do
retorno: o mundo que aceita a si mesmo e que se repete. E a essa suP^r_h° mem
doutrina t- que Nietzsche retoma da Grécia e do Oriente - ele liga '
sua outra doutrina do am or fati: amar o necessário, aceitar este
mundo e amá-lo. O am or fa ti é aceitação do eterno retorno e da vida e, ao mesmo
tem po, anúncio do super-homem. O super-homem é o homem novo que, rompi­
das as antigas cadeias, cria um sentido novo da terra; é o homem que vai além do
homem, o homem que ama a terra e cujos valores são a saúde, a vontade forte, o
amor, a embriaguez dionisíaca. Esse é o anúncio de (Nietzsche) Zaratustra.

jj]. ;A vida e a ob^a Em 1872, saiu O nascimento da tragé­


dia. Entre 1873 e 1876 Nietzsche escreveu as
quatro Considerações inatuais. Nesse meio
Friedrich Nietzsche nasceu em 15 de tempo, por motivos pessoais e por razões
outubro de 1844, em Rõcken, nas proximi­ teóricas rompeu sua amizade com Wagner.
dades de Lutzen. Estudou filologia clássica O testemunho desse rompimento pode ser
em Bonn e em Leipzig. Em Leipzig leu O encontrado em Humano, muito humano
mundo como vontade e representação, de (1878), onde o autor também toma distância
Schopenhauer, leitura destinada a deixar da filosofia de Schopenhauer.
marca decisiva no pensamento de Nietzsche. N o ano seguinte, em 1879, por ra­
Com vinte e cinco anos apenas, Nietzsche zões de saúde, mas também por motivos
foi chamado, em 1869, a ocupar a cátedra mais profundos (a filologia não era seu
de filologia clássica na Universidade de Ba­ “ destino” ), Nietzsche demitiu-se do ensino
siléia, onde estreitou amizade com o famoso e iniciou sua irrequieta peregrinação de
historiador Jakob Burckhardt. pensão a pensão pela Suíça, a Itália e o sul
E desse período seu encontro com Ri- da França.
chard Wagner, que naqueles dias vivia com Em 1881 publicou a Aurora, onde já
Cosima von Bülow em Triebschen, no lago tomam corpo as teses fundamentais de seu
dos Quatro Cantões. Nietzsche se converteu pensamento. A Gaia ciência é de 1882: aqui,
à causa de Wagner, que sentiu como “ seu o filósofo prometeu novo destino para a
insigne precursor no campo de batalha” , humanidade. Escreveu esses dois livros em
passando a colaborar com ele na organiza­ Gênova, onde também teve oportunidade de
ção do teatro de Bayreuth. ouvir a Carmen, de Bizet, que o entusiasmou.
Primeira parte - A filosofia d o s é c u lo X J X a o s é c u Io X X

Ainda em 1882 Nietzsche conhece Lou 3 de janeiro de 1889 cai vítima da loucura,
Salomé, jovem russa de vinte e quatro anos. lançando-se ao pescoço de um cavalo que o
Acreditando nela, queria desposá-la. M as dono estava espancando diante de sua casa
Lou Salomé o rejeitou e se uniu a Paul Rée, em Turim.
amigo e discípulo de Nietzsche. Inicialmente, foi confiado a sua mãe
Em 1883, em Rapallo, ele concebe sua e, quando esta faleceu, à irmã. Morreu em
obra-prima: Assim falou Zaratustra, obra Weimar, imerso nas trevas da loucura, em 25
que foi concluída entre Roma e Nice, dois de agosto de 1900, sem poder se dar conta
anos depois. Em 1886, publicou Além do do sucesso que estavam tendo os livros que
bem e do mal. A Genealogia da moral é de mandara publicar à própria custa.
1887. N o ano seguinte, Nietzsche escreve:
“ O caso Wagner, O crepúsculo dos ídolos,
O Anticristo, Ecce homo. Do mesmo perío­
do é também o escrito Nietzsche contra
Wagner.
Nesse período, ainda, lê Dostoiewski. e o “p r o b le m a S ó c r a t e s ”
Entrementes, parece-lhe ter encontrado
lugar satisfató rio em Turim, “ a cidade
que se revelou como a minha cid ad e ". É Em Leipzig, conforme salientam os,
em Turim que ele trabalha em sua última Nietzsche leu O mundo como vontade e
obra, a Vontade de poder, que, no entan­ representação, de Schopenhauer, e ficou
to, não conseguiu concluir. Com efeito, em fascinado, a ponto de mais tarde o julgar

Friedrich Nietzsche
aos vinte anos.
Nietzsche (1844-1900)
foi um crítico
impiedoso do passado
e profeta “inatual"
de nossos dias.
Cãpítulo primeiro - /\) ie tz s c h e , F id eli d a d e à te r r a e tr a n s m u ta ç ã o d e to d o s o s v a lo r e s

como “ um espelho, no qual vi [...] o mundo, em relação à vida se transforma em super­


a vida e meu próprio espírito” . ficialidade silogística: surge então Sócrates,
A vida, pensa Nietzsche nas pegadas de com sua louca presunção de compreender
Schopenhauer, é cruel e cega irracionalidade, e dominar a vida com a razão e, com isso,
dor e destruição. Só a arte pode oferecer ao temos a verdadeira decadência.
indivíduo a força e a capacidade de enfrentar Sócrates e Platão são “ sintomas de
a dor da vida, dizendo sim à vida. decadência, os instrumentos da dissolução
E em O nascimento da tragédia, que é grega, os pseudogregos, os antigregos” .
de 1872, Nietzsche procura mostrar como a “ Sócrates — escreve Nietzsche — foi um
civilização grega pré-socrática explodiu em equívoco: toda a moral do aperfeiçoamen­
vigoroso sentido trágico, que é aceitação ex­ to, inclusive a cristã, foi um equívoco [...].
tasiada da vida, coragem diante do destino A mais crua luz diurna, a racionalidade a
e exaltação dos valores vitais. A arte trágica qualquer custo, a vida clara, prudente, cons­
é corajoso e sublime sim à vida. ciente e sem instintos, em contraste com os
Com isso Nietzsche subverte a imagem instintos, isso era apenas doença diferente
romântica da civilização grega. Entretanto, a — e de modo nenhum retorno à ‘virtude’,
Grécia de que fala Nietzsche não é a Grécia à ‘saúde’, à felicidade” . “ Sócrates apenas
da escultura clássica e da filosofia de Sócra­ esteve longamente doente” . Disse não à
tes, Platão e Aristóteles, e sim a Grécia dos vida; abriu uma época de decadência que
pré-socráticos (séc. VI a.C.), a Grécia da esmaga também a nós. Ele combateu e des­
tragédia antiga, na qual o coro era a parte truiu o fascínio dionisíaco que liga homem
essencial, senão talvez tudo. a homem e homem a natureza, e desvela o
De fato, Nietzsche identifica o segredo mistério do uno primigênio. Texto
desse mundo grego no espírito de Dioniso.
Dioniso é a imagem da força instintiva e da
saúde, é embriaguez criativa e paixão sen­
sual, é o símbolo de uma humanidade em Ke
plena harmonia com a natureza.
Ao lado do dionisíaco, diz Nietzsche, o
desenvolvimento da arte grega também está GEBURT DER TRAGÔDIE.
ligado ao apolíneo, que é visão de sonho e
tentativa de expressar o sentido das coisas
Ofef
na medida e na moderação, explicitando-
se em figuras equilibradas e límpidas. “ O
desenvolvimento da arte está ligado à di- Gritclolhia mi fm w tim
cotomia do apolíneo e do dionisíaco, do
mesmo modo como a geração provém da
dualidade dos sentidos, em contínuo con­ Vo»
flito entre si e em reconciliação meramente
periódica [...]. Em suas [dos gregos] duas FRIEDRICH NIETZSCHE.
divindades artísticas, A poio e D ioniso,
baseia-se nossa teoria de que no mundo
grego existe enorme contraste, enorme pela
origem e pelo fim, entre a arte figurativa, a
de Apoio, e a arte não figurativa da música, H§u§
que é especificamente a de Dioniso. Os dois mtt dtm V«r*uoh elner S«lb»tkrltik.
instintos, tão diferentes entre si, caminham
um ao lado do outro, no mais das vezes em
aberta discórdia [...], até que, em virtude de
um milagre metafísico da ‘vontade’ helênica,
apresentam-se por fim acoplados um ao
outro. E nesse acoplamento final gera-se a U IK 16.
obra de arte, tão dionisíaca quanto apolínea, Veta* w l W . FrtUich.
que é a tragédia ática” .
Entretanto, quando, com Eurípides,
tenta-se eliminar da tragédia o elemento Frontispício da obra
dionisíaco em favor dos elementos morais e O nascimento da tragédia,
intelectualistas, então a luminosidade clara de Nietzsche (Leipzig, 7872j.
Primeira purte - filo sofia d o s é c u lo a o sé c u lo ,X,X

|||jjf "\a\os"s ã o estúpidos do ‘lógico’ ou da ‘idéia’, que nos ajoelhemos


logo, então, e percorramos ajoelhados a
e a^satw^ação de kistóna”
escada dos sucessos” .
é um pengo São três as atitudes que Nietzsche dis­
tingue diante da história.
a) Existe a história monumental, que
O Nascimento da tragédia foi escrito é a história de quem procura no passado
sob a influência das idéias de Schopenhauer, modelos e mestres em condições de satisfazer
mas também sob a das idéias de Wagner. suas aspirações.
Com efeito, Nietzsche vislumbrava em Wag­ b) Existe a história antiquaria, que é
ner o protótipo do “ artista trágico” desti­ a história de quem compreende o passado
nado a renovar a cultura contemporânea. E de sua própria cidade (as m uralhas, as
dedicou a Wagner o Nascimento da tragédia, festas, os decretos municipais etc.) como
assim escrevendo no fim da dedicatória: fundamento da vida presente; a história
“ Considero a arte como a tarefa suprema antiquária procura e conserva os valores
e como a atividade metafísica própria de constitutivos estáveis nos quais se radica a
nossa vida, segundo o pensamento do ho­ vida presente.
mem ao qual pretendo dedicar esta obra c) E, por fim, existe a história crítica,
como a meu insigne precursor no campo que é a história de quem olha para o pas­
de batalha” . sado com as intenções do juiz que condena
Logo que saiu, embora defendida pelo e abate todos os elementos que constituem
próprio Wagner e por Erwin Rohde, a obra obstáculos para a realização de seus pró­
de Nietzsche foi violentamente atacada, em prios valores. Esta última foi a atitude de
nome da seriedade da ciência filológica, pelo Nietzsche diante da história.
grande filólogo Ulrich von Wilamowitz- E essa é a razão pela qual ele combate
M õllendorff, o qual escreveu que “ com o o excesso ou “ saturação de história” : “ Os
Nietzsche apóstolo e metafísico não preten­ instintos do povo são perturbados por esse
do ter nada a ver” , e o acusou de “ ignorân­ excesso e o indivíduo, não menos que a to­
cia e escasso amor pela verdade” . talidade, é impedido de amadurecer” .
M as, entre 1873 e 1876, contra a
exaltação da ciência e da história, Nietzsche
escreve as Considerações inatuais. Aqui o
velho hegeliano D. F. Strauss, juntamente afastamento
com Feuerbach e Comte, passa pela en­ ém °
em delação a S c kope.nWaiAe.r
carnação do filisteísmo e da mediocridade:
“ autor de um evangelho de cervejaria” , e Wagner
ele é o homem desejado e inventado por
Sócrates. Ao mesmo tempo, Schopenhauer
é exaltado como precursor da nova cultura Nesse meio tempo, porém, Nietzsche
“ dionisíaca” . vinha amadurecendo seu afastamento de
Aqui Nietzsche também combate o que Schopenhauer e m ais ainda de Wagner.
ele chama de saturação de história. N ão que Esse distanciamento é testemunhado por
negue a importância da história: ele combate obras como Humano, muito humano, a
mais a idolatria do fato, por um lado, e as Aurora e Gaia ciência. São dois os tipos de
ilusões historicistas, por outro, com as impli­ pessimismo:
cações políticas que elas comportam. Antes a) o primeiro é o romântico, ou seja,
de mais nada, na opinião de Nietzsche, os “ o pessimismo dos renunciantes, dos falidos
fatos são sempre estúpidos: eles necessitam e dos vencidos” ;
de intérprete. Por isso, só as teorias são in­ b) o outro é o de quem aceita a vida,
teligentes. Em segundo lugar, quem crê “ no embora reconhecendo sua dolorosa tragi-
poder da história” torna-se “ hesitante e in­ cidade.
seguro, não podendo crer em si mesmo” . E, Pois bem, em nome deste último pes­
em terceiro lugar, não crendo em si mesmo, simismo Nietzsche rejeita o primeiro, o de
ele será dominado pelo existente, “ seja ele Schopenhauer, que por toda parte cheira a
um governo, uma opinião pública, ou ainda resignação e renúncia, e que é mais fuga da
uma maioria numérica” . N a realidade, “ se vida do que “vontade de tragicidade” . Scho­
todo sucesso contém em si uma necessidade penhauer “ nada mais é do que o herdeiro
racional, se todo acontecimento é a vitória da interpretação cristã” .
Capítulo primeiro - /\ )ie tz s c k e . F id e lid a d e à t e ^ a e tr a n s m u ta ç ã o d e to d o s o s v a lo re s

Friedrich Nietzsche fotografado


na companhia da mãe.

Por outro lado, o afastam ento em muflagens metafísicas do homem e de sua


relação a Wagner foi um acontecimento história que são:
ainda mais significativo e doloroso para 1) o idealismo (que cria um “ anti-
Nietzsche. Ele vira na arte de Wagner o mundo” );
instrumento da regeneração, mas logo teve 2) o positivismo (cuja pretensão de en­
de admitir que estava iludido. Em O caso jaular solidamente a vasta realidade em suas
Wagner, podem os ler: Wagner “ lisonjeia pobres malhas teóricas é ridícula e absurda);
todo instinto niilista (-budista) e o camufla 3) os redentorismos socialistas das mas­
com a música, brandindo toda cristandade, sas ou através das massas;
toda forma de expressão religiosa da déca- 4) e também o evolucionismo (aliás,
dence” . Wagner é uma doença; “ ele adoece “ mais afirmado do que provado” ).
tudo o que toca — ele adoeceu a m úsica” . Desse modo, Nietzsche parece basear
Wagner é “ um gênio histriônico” , ele “est suas reflexões em raízes iluministas. E, com
une névrose” . efeito, é o que acontece. A desconfiança em
O afastamento de Nietzsche em rela­ relação às metafísicas, a abertura a respeito
ção a seus dois grandes mestres significou das possíveis interpretações “ infinitas” do
o afastamento e distanciamento crítico em mundo e da história e, portanto, a elimina­
relação ao romantismo, com seu falso pessi­ ção da atitude dogmática, o reconhecimento
mismo, a resignação e a ascese quase cristã do limite e da finitude humana, e a crítica à
de Schopenhauer, com a retórica daquele religião são elementos que fazem Nietzsche
“ romantismo desesperado que murchou” , dizer em Humano, muito humano: “ Pode­
que era Wagner. Significou distanciamento mos levar novamente adiante a bandeira do
e crítica daquelas pseudojustificações e ca­ Iluminismo” .
Primeira purte - jA -filosofia d o s é c u lo ,X.IJ,X a o sé c u lo

N a Gaia ciência, o homem louco anun­


cia aos homens que Deus está morto: “ O que
MENSCHLICHES, houve com Deus? Eu vos direi. N ós o ma­
tamos — eu e vós. N ós somos os assassinos
ALLZÜMENSCHUCHES. dele!” Pouco a pouco, por diversas razões,
a civilização ocidental foi se afastando de
Em B uch f Or freie G eister . Deus: foi assim que o matou. M as, “ matan­
d o ” Deus, eliminam-se todos os valores que
I)cm Andcnkcn Vokairc** serviram de fundamento para nossa vida e,
conseqüentemente, perde-se qualquer ponto
xur Gedâchlniss-Feier seines TodMtagM,
de referência.
fk% 30. Uai t jji .
Por conseguinte, com Deus desapare­
ceu também o homem velho, mas o homem
Von
novo ainda não apareceu. Diz o louco em
Friedrich Nietache. G aia ciência: “ Venho cedo demais, ainda
não é meu tempo. Esse acontecimento mons­
truoso ainda está em curso e não chegou aos
ouvidos dos homens” .
CII*Ritt H7» A morte de Deus é fato que não tem
V*rt>c vgu £rnM Ichn w tonf ♦
paralelos. E acontecimento que divide a his­
mcwrui» wWHSl.
J lKK
iwwmm K NttlOOirf 7Mii tória da humanidade. N ão é o nascimento
de Cristo, e sim a morte de Deus, que divide
nv-?nt
(.■TtlWlfc i0fi9i
*>**!• »W?t a história da humanidade.
E esse acontecimento, a morte de Deus,
anuncia antes de mais nada Zaratustra, que,
depois, sobre as cinzas de Deus, erguerá a
Frontispício idéia do super-homem, do homem novo,
da primeira edição (1878) impregnado do ideal dionisíaco que “ ama
da obra Humano, demasiadamente humano.
a vida” e que, voltando as costas para as
quimeras do “ céu” , voltará à “ sanidade da
terra” .

c x n iA n c À o
I // 1 I *T'>i
d a morte de U e . i \ s
//
i f i i l ^ T ^ rv tic risto ,
ow o c r i s t i a n i s m o
a * • //
A crítica ao idealismo, ao evolucionis- como vicio

mo, ao positivismo e ao romantismo não


cessa. Essas teorias são coisas “ humanas,
muito humanas” , que se apresentam como A morte de Deus é um evento cósmico,
verdades eternas e absolutas que é preciso pelo qual os homens são responsáveis, e
desmascarar. que os liberta das cadeias do sobrenatural
M as as coisas não ficam nisso, uma que eles próprios haviam criado. Falando
vez que Nietzsche, precisamente em nome sobre os padres, Zaratustra afirma: “Tenho
do instinto dionisíaco, em nome daquele pena desses padres [...], para mim eles são
homem grego sadio do século VI a.C., que prisioneiros e marcados. Aquele que eles
“ ama a vida” e que é totalmente terreno, chamam de redentor os carregou de gri­
por um lado anuncia a “ morte de Deus” e lhões de falsos valores e de palavras loucas!
por outro realiza profundo ataque contra Ah, se alguém pudesse redimi-los de seu
o cristianismo, cuja vitória sobre o mundo redentor!”
antigo e sobre a concepção grega do homem Esse, precisamente, é o objetivo que
envenenou a humanidade. E, por outro lado Nietzsche quer alcançar com o Anticristo,
ainda, vai às raízes da moral tradicional, que é uma “maldição do cristianismo Para
examina sua genealogia, e descobre que ela ele, um animal, uma espécie ou um indivíduo
é a moral dos escravos, dos fracos e dos é pervertido “ quando perde seus instintos,
vencidos ressentidos contra tudo o que é quando escolhe e quando prefere o que lhe
nobre, belo e aristocrático. é nocivo” .
Capitulo primeiro - A ^ ie tz s c k e . F id e lid a d e à te r r a e tr a n s m u ta ç ã o d e to d o s o s v a lo re s

Abo I'
.
'
" '
■ R essentim ento. O conceito de
ressentimento, na reflexão moral,
\
\
;

sprach Zarathustra. :

:
encontra-se na Genealogia da moral.
Para Nietzsche o ressentimento está
na base da m oral dos escravos, isto é,
i
;
j
i dos fracos e mal-sucedidos impoten- !
Em Biack ; tes que traduzem - travestem - em
«te ; "ideais morais" seu ódio contra tudo ;
: aquilo que é alegria, beleza, força,
Alie und Keinen. saúde, contra aquilo que não são ou
»- que não têm. ;
i A moral dos ressentidos configura-se '
F r lid r ls k V tit iiB lib como um instrumento de domínio dos ■
; fracos sobre os fortes; é vontade de ;
■ aniquilação da m oral dos senhores, I
. isto é, da moral cujos valores são a *
: força, a alegria, a saúde. ;
Ch*mruu 1888. A moral cristã, para Nietzsche, é a ;
v«n»g ««• K m l S ck a tiU a rr.
típica moral dos escravos: humilda- ■
c .» r« | de, piedade, compaixão, são valores
r r iir ■ antivitais, prédicas de quem, não !
' podendo dar maus exemplos, dá bons j
conselhos. É do ódio dos mal-sucedi- \
\ dos que surge sua moral, a moral dos |
; escravos, isto é, dos ressentidos. t
Frontispício , Trabalhando na química das idéias,
da primeira edição (1883) da obra
: Nietzsche chega à conclusão de que
Assim falou Zaratustra. tam bém valores éticos propostos
: como sacrossantos são apenas más-
i caras do ódio, da inveja e do ressen- <
timento. Na Genealogia da moral, ele
Todavia, pergunta-se Nietzsche, o que escreve: "A revolta dos escravos, na
fez o cristianismo senão defender tudo o ■ ética contemporânea, começa quan­
que é nocivo ao homem? O cristianismo do o próprio ressentimento se torna
considerou pecado tudo o que é valor e criador e gera valores; o ressentimen-
prazer na terra. Ele “ tomou partido de tudo : to dos indivíduos aos quais é negada a ;
verdadeira reação, aquela ação e que,
o que é fraco, abjeto e arruinado; fez um portanto, só encontram compensação i
ideal da contradição contra os instintos de em uma vingança imaginária".
conservação da vida forte” . O cristianismo
é a religião da compaixão. “ M as a pessoa
perde força quando tem compaixão [...]; a I ■

com paixão bloqueia maciçamente a lei do


desenvolvimento, que é a lei da seleção” .
Nietzsche vislumbra no Deus cristão “ a
divindade dos doentes [...]; um Deus de­ tianismo, isto é, em ódio e ressentimento
generado a ponto de contradizer a vida, ao contra tudo o que é nobre e aristocrático:
invés de ser a transfiguração e o eterno sim “ Paulo foi o maior de todos os apóstolos
dela [...]. Em Deus, está divinizado o nada, da vingança” .
está consagrada a vontade do nada!” N o N ovo Testamento Nietzsche en­
Apesar de tudo isso, Nietzsche é ca­ contra apenas um personagem digno de ser
tivado pela figura de Cristo (“ Cristo é o elogiado, Pôncio Pilatos, em virtude de seu
homem mais nobre” ; “ o símbolo da cruz é sarcasm o em relação à “ verdade” . M ais
o símbolo mais sublime que jamais existiu” ) tarde, na história de nossa civilização, a
e faz distinção entre Jesus e o cristianismo. Renascença tentou a transvalorização dos
Cristo morreu para mostrar como se deve valores cristãos, procurou levar à vitória os
viver. Cristo foi um “ espírito livre” , mas valores aristocráticos, os nobres instintos
com Cristo morreu o Evangelho: também terrenos. Feito papa, César Bórgia teria sido
o Evangelho ficou “ suspenso na cruz” , ou grande esperança para a humanidade. M as
melhor, transformou-se em Igreja, em cris- o que aconteceu? Ocorreu que “ um monge
Primeira parte - yv f i lo s o f i a d o s é c u lo /'CIT.X a o s é c u lo /'■CX

alemão, Lutero, veio a Roma. Trazendo den­


tro do peito todos os instintos de vingança
de padre frustrado, esse monge, em Roma,
indignou-se contra a Renascença [...]. Lu­
tero viu a corrupção do papado, quando se Juntamente com o cristianismo, aliás,
podia tocar com a mão justamente o con­ condenando o cristianismo, Nietzsche tam­
trário: na cadeira papal não estava mais a bém submete a moral a cerrada crítica. Essa
antiga corrupção, o peccatum originale, o é a “ grande guerra” que Nietzsche trava
cristianismo! Que boa é a vida! Que bom em nome da “ transformação dos valores
o triunfo da vida! Que bom o grande sim a que dominaram até hoje” . E essa revolta
tudo o que é elevado, belo e temerário! [...] contra “ o sentimento habitual dos valores”
E Lutero restaurou novamente a Igreja [...] ele a explicita especialmente em dois livros:
Ah, esses alemães, quanto nos custaram !” Além do bem e do mal e Genealogia da
São dessa natureza, portanto, as razões moral. Escreve Nietzsche: “ Até hoje, não
que levam Nietzsche a condenar o cristianis­ se teve sequer a mínima dúvida ou a menor
mo: “ A Igreja cristã não deixou nada intacto hesitação em estabelecer o ‘bom ’ como
em sua perversão; ela fez de cada valor um superior, em valor, ao ‘m au’ Como?
desvalor, de cada verdade uma mentira, de E se a verdade fosse o contrário? Como?
toda honestidade uma abjeção da alm a” . O E se no bem estivesse inserido também um
além é a negação de toda realidade e a cruz sistema de retrocesso ou então um perigo,
é uma conjuração “ contra a saúde, a bele­ uma sedução, um veneno?”
za, a constituição bem-sucedida, a valentia Essa é a questão proposta pela Ge­
de espírito, a bondade da alma, contra a nealogia da moral. E é aí que Nietzsche
própria vida” . começa a indagar os mecanismos psicoló­
Assim, o que devemos esperar senão gicos que iluminam a gênese dos valores:
que este seja o último dia do cristianismo? a compreensão da gênese psicológica dos
E “ a partir de hoje? A partir de hoje, trans- valores, em si mesma, será suficiente para
valorização dè todos os valores” , responde pôr em dúvida sua pretensa absolutez e
Nietzsche. indubitabilidade.
13
Capítulo primeiro - A JietzscK e. F id e lid a d e à te rr a e tra n sm u ta ç ã o , d e to d o s o s v a lo re s

Antes de mais nada, a moral é máquina


construída para'dom inar os outros e, em
segundo lugar, devemos logo distinguir entre
a moral aristocrática dos fortes e a moral
■ A m o r fa ti. Esta expressão é usada
por Nietzsche para indicar a atitude
dos escravos. Estes são os fracos, os mal- do super-homem que, com espírito
sucedidos. E, como diz o provérbio, os que dionisíaco, aceita a vida entusiasti­
não podem dar maus exemplos dão bons camente em todos os seus aspectos,
conselhos. É assim que os constitutivamen- até nos cruéis. O super-hòmem não
te fracos agem para subjugar os fortes. E apenas suporta aquilo que é neces­
Nietzsche prossegue: “ Enquanto toda moral sário, mas o aceita e o ama. O am or
aristocrática nasce da afirmação triunfal de fa ti é aceitação da vida e do eterno
si, a moral dos escravos opõe desde o co­ retorno.
meço um não àquilo que não pertence a ela
mesma, àquilo que é diferente dela e cons­
titui o seu não-eu — este é seu ato criador.
Essa subversão [...] pertence propriamente
ao ressentimento” . É o ressentimento contra
a força, a saúde e o amor à vida que torna A Jiilism o ,
dever e virtude e eleva à categoria de bons e te m o re to m o
comportamentos o desinteresse, o sacrifício
de si mesmo, a submissão. e "a m o f fa ti"
E essa moral dos escravos é legitimada
por metafísicas que a sustentam com bases
presumidamente “ objetivas” , sem que se O niilismo, diz Nietzsche, é “ a con­
perceba que tais metafísicas nada mais são seqüência necessária do cristianismo, da
do que “ mundos superiores” inventados para moral e do conceito de verdade da filosofia” .
poder “ caluniar e sujar este mundo” , que elas Quando as ilusões perdem a máscara, então
querem reduzir a mera aparência. ........... o que resta é nada: o abismo" do nada.

Retrato de Nietzsche
nos últimos anos de sua vida.
A interpretação
que tenta fazer de Nietzsche
um “profeta do nazismo ”
é, à luz de uma
historiografia correta,
carente de fundamentos.
Primeira parte - jA filosofia d o s é c u lo ^CZ7,X a o sé c u lo ,X X

“ Como estado psicológico, o niilismo


torna-se necessário, em primeiro lugar, quan­
do procuramos em todo acontecimento um
‘sentido’ que ele não tem, até que, por fim, ' ■ S u p e r-h o m e m ( Ü b e rm e n s c h ) .
começa a faltar coragem a quem procura” . ! Com este termo Nietzsche designa
Aquele “ sentido” podia ser a realização ou : sua mensagem a respeito do homem
o fortalecimento de um valor moral (amor, ■ novo que deve vir, que quebrará as
harmonia de relações, felicidade etc.). M as ( velhas cadeias e criará um sentido
o que devemos constatar é que a desilusão ; novo da terra. O homem deve in­
quanto a esse pretenso fim é “ uma causa ventar o homem novo, exatamente
o super-homem, o homem que vai
do niilismo” .
■ além do hom em , um homem que
Em segundo lugar, “ postulou-se uma -voltando as costas para as quimeras
totalidade, uma sistematização e até uma ■ do "céu" - voltará para a sanidade
organização em todo o acontecer e em sua da terra, um homem cujos valores
base” . Entretanto, o que se viu é que esse são a saúde, a vontade forte, o amor,
universal, que o homem construíra para a embriaguez dionisíaca e um novo
poder crer no seu próprio valor, não existe! i orgulho.
N o fundo, o que aconteceu? “ Alcançou-se "Um novo orgulho - diz Zaratustra
o sentimento da falta de valor quando se . - me ensinou o meu Eu, e eu o ensi­
compreendeu que não é lícito interpretar no aos homens: não mais escondam
o caráter geral da existência nem com o ; a cabeça na areia das coisas celestes,
! mas levem-na livremente: uma ca­
conceito de ‘fim’, nem com o conceito de ' beça terrestre, que cria ela própria
‘unidade’, nem com o conceito de ‘ver­ : o sentido da terra". O super-homem
dade’.” enfrenta a vida aceitando-a com am or
Caem assim “ as mentiras de vários fa ti, anuncia a morte de Deus e a
milênios” e o homem permanece sem os 1 transmutação de todos os valores de
enganos das ilusões, mas permanece só. N ão f que a tradição nos carregou. O super-
há valores absolutos; aliás, os valores são ■ homem é o homem que reconquistou
desvalores; não existe nenhuma estrutura o espírito de Dioniso.
racional e universal que possa sustentar o : Houve intérpretes que viram no
esforço do homem; não há nenhuma provi­ super-homem de Nietzsche o fulcro
í da idéia nazista da superioridade
dência, nenhuma ordem cósmica. f da raça ariana e, em Nietzsche, por­
N ão há uma ordem, não há um sen­ tanto, um profeta do nazismo, mas
tido. M as há uma necessidade: o mundo tais interpretações são erradas. Foi
tem em si a necessidade da vontade. Desde i. a irmã de Nietzsche, Elisabeth Fõrs-
a eternidade, o mundo é dominado pela i ter-Nietzsche, curadora dos escritos
vontade de aceitar a si próprio e de repe- : do irmão e fautora da idéia de uma
tir-se% palingenesia universal a ser confiada
E essa a doutrina do eterno retorno que à nação alemã, que interveio pesada­
Nietzsche retoma da Grécia e do Oriente. O ; mente sobre as páginas manuscritas
| de A vontade de p o d e r (obra que
mundo não procede de modo retilíneo em
: Nietzsche não conseguiu levar a
direção a um fim (como acredita o cristia­ i termo), fazendo aparecer o irmão
nismo), nem seu devir é progresso (como como negador do humanitarismo e
pretende o historicismo hegeliano e pós- da democracia.

I
hegeliano), mas “ todas as coisas retornam Eis dois pensamentos de Nietzsche
eternamente e nós com elas; nós já existimos sobre o Estado: " 'Estado' se chama
eternas vezes e todas as coisas conosco” . o mais frio de todos os monstros".
Toda dor e todo prazer, todo pensamen­ O Estado é um ídolo que cheira mal:
to e todo suspiro, toda coisa indizivelmente "Seu ídolo cheira mal - o monstro frio
pequena e grande retornarão: “Voltarão até
essa teia de aranha e este raio de lua entre - e todos estes adoradores do ídolo
as árvores, até este idêntico momento e eu cheiram mal [...]. Apenas onde o Esta­
mesmo” . do deixa de existir começa o homem
não inútil". Nietzsche faz Zaratustra
O mundo que aceita a si próprio e que dizer essas coisas. E no Crepúsculo
se repete: é esta a doutrina cosmológica de dos ídolos (1888) temos: "A cultura e
Nietzsche. E a ela Nietzsche vincula sua o Estado são antagonistas".
outra doutrina, a do amor fati: amar o ne­
cessário, aceitar este mundo e amá-lo.
Capítulo primeiro - A lie + z s c k e . F id e lid a d e à e t m n s m u t a ç ã o d e to d o s o s v a lo re s

O supe^-komem homens: não deveis mais esconder a cabeça


é o sentido d a terra
na areia das coisas celestes, mas mantê-la
livremente: uma cabeça terrena, que cria ela
própria o sentido da terra” .
O super-homem substitui os velhos
O am or fati é aceitação do eterno re­ deveres pela vontade própria. “ O homem
torno, é aceitação da vida. M as não se deve é uma corda estendida, estendida entre o
ver nele a aceitação do homem. A mensagem bruto e o super-homem, uma corda esten­
fundamental de Zaratustra, com efeito, está dida sobre um abism o” . Ele deve procurar
em pregar o super-homem. novos valores: “ O mundo gira em torno dos
E o homem, o homem novo, que deve inventores de novos valores” .
criar um novo sentido da terra, abandonar Assim como para Protágoras, também
as velhas cadeias e cortar os antigos troncos. para Nietzsche o homem deve ser a medida
O homem deve inventar o homem novo, isto de todas as coisas, deve criar novos valores
é, o super-homem, o homem que vai além do e pô-los em prática. O homem embrutecido
homem e que é o homem que ama a terra e tem a espinha curvada diante das ilusões
cujos valores são a saúde, a vontade forte, cruéis do sobrenatural.
o amor, a embriaguez dionisíaca e um novo O super-homem “ ama a vida” e “ cria
orgulho. Diz Zaratustra: “Um novo orgulho o sentido da terra” , e é fiel a isso.
ensinou-me o meu Eu, e eu o ensino aos Aí está sua vontade de poder.
Primeira parte - A filosofia do século XJX ao século

________________________
DO DIONISÍACO AO SUPER-HOMEM

A vida é irracionalidade cruel e cega, dor e destruição.


Seus dois instintos fundamentais são

O D IO N ISÍA C O : O A P O L ÍN E O :
imagem da força instintiva e da saúde, visão de sonho, tentativa de expressar o sentido
embriaguez criativa e paixão sensual: das coisas com medida e moderação:
Dioniso é o símbolo da humanidade Apoio é o símbolo da humanidade que se explicita
que “diz sim à vida”, em pleno acordo com a natureza em figuras equilibradas e límpidas

Considerando a história sob o perfil crítico,


Dois tipos de pessimismo: São três os pontos de vista
o dionisíaco e o apolíneo “ milagrosamente” sobre a história:
ROMÂNTICO se ligaram apenas na época da Grécia pré-socrática,
o pessimismo na TRAGÉDIA ÁTICA: MONUMENTAL
dos que renunciam, a arte trágica foi um corajoso e sublime “ dizer sim à vida” de quem procura no passado
dos falidos e dos vencidos - expressão do autêntico pessimismo trágico modelos e mestres;
{como Schopenhauer - ANTIQUÁRIO
e Wagner, de quem entende o passado
em um primeiro tempo como fundamento
M as com SÓCRATES o apolíneo prevaleceu:
considerados por Nietzsche da vida presente,
com a louca presunção socrática
como artífices conservando seus valores
de entender e dominar a vida com a razão
do renascimento constitutivos;
começou a verdadeira decadência da humanidade
do dionisíaco
na modernidade); CRÍTICO
de quem olha o passado
TRÁGICO sob o ponto de vista
o pessimismo O CRISTIANISMO contribuiu do juiz que abate
de quem aceita a vida, para, posteriormente, envenenar a humanidade: e condena todos
embora conhecendo considerou pecado todos os valores e os prazeres da terra, os elementos
sua dolorosa tragicidade: fazendo de Cristo, verdadeiro “ espírito livre” , que obstaculizam
este leva adiante a bandeira um símbolo de ressentimento contra tudo aquilo que é nobre a realização
de um novo Iluminismo dos próprios valores

A m oral dos escravos - Daqui a im posição, sobre a m oral aristocrática dos fortes, - A MORAL
opõe da m oral dos escravos, legitimada pela METAFÍSICA, é em geral
desde o princípio que pretendeu dar-lhe uma presumida base “ objetiva” , máquina construída
um não àquilo inventando um “ mundo superior” para reduzir para dominar
que é diferente de si: a mera aparência “ este m undo” , o único que existe os outros.
é o ressentimento A m oral aristocrática
contra a força, a saúde, dos fortes
o am or pela vida nasce de uma triunfal
A decadência da civilização ocidental culmina
com a m o r t e d e D e u s , afirmação de si
com a eliminação de todos os valores que foram
fundamento da humanidade: evento cósmico
pelo qual os homens são responsáveis,
esta morte os liberta das cadeias daquele sobrenatural
que eles próprios haviam criado,
m as os deixa sem outros pontos de referência

/ Z a r a t u s t r a é o p r o fe ta d o amor fati c o m o
a c e ita ç ã o d o etern o r e to rn o d a s c o is a s
Conseqüência necessária é e transvalorização de todos os valores, e a n u n cia
o N IIL ISM O :
não há valores absolutos, não há nenhuma
providência, nenhuma ordem cósmica:
o advento do SU PER -H O M E M ,
resta apenas o abismo do nada (nihil):
que ama a vida e cria o sentido da terra:
o ETER N O R E TO R N O do universo e da vida
nele reemerge o dionisíaco como vontade de poder
, . . 17
Cdpítulo primeiro - /v iie fz s c k e . F id e lid a d e à t e r r a e f ^ n s m w t a ç â o d e f o d o s o s v a lo r e s ____

Q u e m percebe claramente, como depois


de Sócrates, o mistagogo da ciência, as escolas
N ie t z s c h e filosóficas se sucederam uma à outra como onda

a
atrás de onda; como uma universalidade jamais
suposta da ânsia de saber no domínio mais am­
plo do mundo culto e como missão verdadeira
e própria para cada um dos melhores dotados
fi sublime ilusão metafísico levou a ciência ao alto-mar, do qual não pôde
de Sócrates mais a seguir ser completamente removida;
como por esta universalidade foi estendida pela
primeira vez uma rede comum do pensamento
Contra Sócrates, "o mistagogo da ciên­ sobre o globo terrestre inteiro, com perspecti­
cia": a fé socrático em umo razão capaz de vas até sobre a legislação de um sistema solar
penetrar "nos mais profundos abism os do todo; quem se lembra de tudo isso, juntamente
ser" é "uma profunda ilusão". com a pirâmide prodigiosamente alta do saber
atual, não pode se abster de ver em Sócrates
o único eixo e fundamento da história universal.
Pora demonstrar também para Sócrates Pois se alguém imaginasse toda essa indeci­
a dignidade de tal posição diretiva, basta frável soma de força que foi empregada para
reconhecer nele o tipo de uma formo d e exis­ aquela tendência universal, não a serviço do
tência antes dele inaudita, o tipo do homem conhecimento, mas reduzida a fins práticos,
teórico, do qual é nossa tarefa imediata isto é, egoístas, dos indivíduos e dos povos, o
chegar a entender a significação e o objeti­ prazer instintivo da vida estaria provavelmente
vo. [...] tessing, o mais honesto dos homens tão enfraquecido em lutas generalizadas de
teóricos, ousou declarar que a ele importava extermínio e em contínuas migrações de povos,
mais a pesquisa da verdade do que a própria que, com o hábito do suicídio, o indivíduo deve­
verdade: com isso foi descoberto o segredo ria talvez sentir o último avanço do sentimento
fundamental da ciência, para espanto, ou me­ do dever ao estrangular, como o habitante das
lhor, a despeito dos cientistas. Ora, ao lado ilhas Fidgi, como filho os próprios pais e como
desse reconhecimento isolado, como excesso amigo o próprio amigo: pessimismo prático, que
de honestidade ou mesmo de presunção, está poderia gerar também uma ética cruel do mas­
sem dúvida uma profunda ilusão, a qual veio sacre dos povos por piedade, o que de resto
pela primeira vez ao mundo na pessoa de Só­ existe e existiu em todo lugar no mundo, onde
crates - a fé inabalável de que o pensamento, não apareceu a arte em uma forma qualquer,
seguindo o fio condutor da causalidade, alcaru especialmente como religião e como ciência,
ce até os mais profundos abismos do ser, e como remédio e defesa contra aquele sopro
de que o pensamento esteja em grau não só pestilencial.
de reconhecer, mas até de corrigir o ser. £sta Diante deste pessimismo prático Sócrates
sublime ilusão metafísica é dada como instinto é o protótipo do otimista teórico, que na própria
à ciência e a remete sempre e sempre a seus fé na perscrutabilidade da natureza das coisas
limites, sobre os quais ela deve se converter em si atribui ao saber e ao conhecimento a força
em arte: ò quol propriamente se mira com esse de um remédio universal, e no erro vê o mal
mecanismo. em si. Penetrar nesses fundamentos e separar
Olhemos agora Sócrates, com a tocha o verdadeiro conhecimento da aparência e do
deste pensamento: ele nos aparece como o erro pareceu ao homem socrático a mais nobre,
primeiro, que soube com a guia do instinto da ou melhor, a única vocação verdadeiramente
ciência não só viver, mas também - e isso é humana: assim como o mecanismo de conceitos,
muito mais - morrer; e por isso a imagem do juízos e argumentações de Sócrates para frente
Sócrates moribundo, como do homem subtraído foi considerado a afirmação suprema e o dom
pelo saber e pelos raciocínios ao medo da mor­ mais maravilhoso da natureza, acima de todos
te, é o brasão que sobre a porta de entrada da as outras faculdades, flté as ações morais mais
ciência recorda a cada um a destinação dela, sublimes, os movimentos da compaixão, do
ou seja, a de mostrar a existência inteligível e, sacrifício, do heroísmo e a serenidade da alma
portanto, justificada: a cujo objetivo certamente, semelhante à serenidade do mar, tão difícil
se os raciocínios não atingem, deve por fim ser­ de atingir e que o grego apolíneo chamou de
vir também o mito, que eu pouco antes designei soFrosine, desde Sócrates e dos sucessores e
até como conseqüência necessária, ou melhor, seguidores até a época presente derivaram
como objetivo da ciência. da dialético do saber e, por conseguinte foram
Primeira parte - y\ ] lloso-fin d o s é c u lo ,X.r7,X a o sé c u lo

designados como possíveis de aprender. Quem "Perdeu-se como uma criança?", disse outro. "Ou
provou em si o prazer de um conhecimento estaria bem escondido? Tem medo de nós? Teria
socrático e intui como este procure abraçar o embarcado? Cmigrou?" -, gritavam e riam em
mundo inteiro dos fenômenos, não sentirá ne­ grande confusão. O homem louco pulou no meio
nhum estímulo, capaz de impelir à existência, deles e os fulminou com seus olhares: "Para
mais violentamente do que aquele que não onde foi Deus?, gritou. Quero dizer-lhesl Fomos
sinta o anseio de realizar tal conquista e de te­ nós que o matamos-, vós e eu! Todos nós somos
cer a rede inpenetravelmente fechada. A quem seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como
está em tal disposição de espírito o Sócrates podemos esvaziar o mor bebendo-o até a última
platônico aparece então como o mestre de uma gota? Quem nos deu a esponjo para dissipar
forma totalmente nova da "serenidade grega" e todo o horizonte? Que faremos para desamarrar
da beatitude da existência, forma que procuro esta terra da corrente de seu sol? Onde é que
efundir-se em ações e encontrará esta efusão se move agora? Onde é que nos movemos?
mais em influências maiêuticas e educativos fora, totalmente sozinhos? O nosso não é um
exercidas sobre jovens nobres, com o objetivo eterno precipitar? C para trás, pelos lados, na
de por fim suscitar o gênio. frente, de todos os lados? Existe ainda um alto
Todavia, incitada por sua potente ilusão, a e um baixo? Não estamos talvez vagondo como
ciência corre agora sem trégua até seus limites, através de um nada infinito? Não sopra sobre
onde seu otimismo oculto na essência da lógica nós um espaço vazio? Não se tornou mais frio?
se encalha. Uma vez que a periferia do círculo da Não continua a vir noite, sempre mais noite?
ciência tem infinitos pontos, e enquanto não se Não devemos acender lanternas de manhã?
pode ainda de fato ver de que modo o círculo Não ouvimos nada do estrépito dos coveiros,
poderia ser completamente medido, também enquanto sepultam Deus? Não farejamos ain­
o homem nobre e de talento ainda antes de da o cheiro da divina putrefação? Também os
chegor ao meio de sua existência toca inevi­ deuses se decompõem! Deus está morto! Deus
tavelmente tais pontos de limite da periferia, continua morto! € nós o matamos! Como nos
onde se enrijece, fixando o olhar no inexpli­ consolaremos, nós, os assassinos de todos os
cável. Quando neste ponto vê com espanto assassinos? Tudo o que de mais sagrado e de
como a lógica nesses confins se enrola sobre mais poderoso o mundo possuía até hoje se
si mesma e por fim morde suo própria cauda, esvaiu em sangue sob nossos punhais; quem
então prorrompe a nova forma de conhecimen­ limpará de nós este sangue? Com qual água
to, o conhecimento trágico, o qual, para poder poderemos nos lavar? Quais ritos expiatórios,
ser apenas tolerado, tem necessidade da arte quais jogos sagrados deveremos inventar? Não
como proteção e como remédio. é demasiado grande, para nós, a grandeza des­
F. Nietzsche, ta ação? Não devemos nós mesmos nos tornar
deuses, para parecer ao menos dignos dela?
Jamais houve uma ação maior: todos aqueles
que virão depois de nós pertencerão, por causa
2 O anúncio desta ação, a uma história mais elevada do que
o foram todas as histórias até hoje!"
da morte de Deus Nesse momento o homem louco calou-se
e de novo dirigiu o olhar sobre seus ouvin­
tes: também eles calavam-se e o olhavam,
"Deus está morto! [...]€ nós o matamos! espantados, finalmente atirou no chão sua
[...] Jamais houve uma oçõo maior: todos lanterna, que se despedaçou e se apagou.
aqueles que virõo depois de nós pertence­ “Venho muito cedo - continuou - ainda não é
rão, p o r causa desta ação, a uma história meu tempo. Cste enorme acontecimento ainda
mais elevada do que o Foram todas as his­ está a caminho e fazendo seu caminho: ainda
tórias até hoje!" . não chegou até os ouvidos dos homens. Raio
e trovão requerem tempo, o luz das constela­
ções requer tempo, as ações requerem tempo,
Ouvistes falar daquele homem louco que mesmo depois de terem sido realizadas, para
acendeu uma lanterna à luz clara da manhã, que sejam vistas e ouvidas. Csta ação ainda
correu ao mercado e se pôs a gritar sem parar: está sempre mais distante dos homens do que
"Procuro Deus! Procuro Deus!" 6 como justamente as mais distantes constelações: todavia, foram
lá se encontravam reunidos muitos daqueles eles que a realizaram!' Conta-se também que o
que não acreditavam em Deus, provocou gran­ homem louco tenha irrompido, naquele mesmo
de riso: "Perdeu-se, talvez?", disse um deles. dia, em diversas igrejas e aí tenha entoado
, . . , 19
Cãpítulo primeiro - A J ie tz sc k e . F id e lid a d e à te r r a e tr a n s m u ta ç ã o d e to d o s o s v a lo r e s ____

seu Réquiem aeternam Deo. Tendo delas sido a si mesmo como aquele que determina o valor,
expulso 0 interrogado, dizem que limitou-se não tem necessidade de receber aprovação;
q responder invariav0lm0nt0 d0st0 modo: “O seu julgamento é "aquilo qu© 0 prejudicial a
qu© mois sõo estos igrejas, senão as covos 0 mim, é prejudicial ©m si mesmo", conh©c© a si
os sepulcros de Deus?" m©smo unicamente como aquele que confere
F. Nietzsche, dignidade às coisas, ele é criador de valores.
R gaia ciência. Honram tudo aquilo que sabem que pertence
a si: tal moral é autoglorificação. €m primeiro
plano encontra-s© o sentido da plenitude, do
poder qu® quer transbordar, a felicidade da
máximo tensão, a consciência de uma riqueza
3 A "moral dos senhores" que gostaria de dar 0 conceder: também o
e a "moral dos escravos" homem nobre presta socorro ao desventurado,
mas não ou quase não por piedade, e sim muito
mais por impulso gerado pela superabundância
"fí moro! aristocrático dos senhores é o de poder. O homem nobre honra em si mesmo
de todos os que dizem sim à Forço, à alegria, aquele que possui, e também aquele que sabe
à soúde. R moroI dos escravos é, 00 contrá­ falar e calar, qu© exerce com gosto severidade
rio, o moroI dos Fracos e dos mal-sucedidos, 0 dureza contra si mesmo e nutre veneração
dos ressentidos contra o saúde, a beleza, o por tudo o que é severo e duro. "Um duro co­
amor aos volores vitais. ração UJotan colocou em meu peito", se diz ©m
uma antiga saga escandinava: deste modo a
alma de um soberbo viquingue encontrou sua
Çxiste uma morol dos senhores e uma moral exata expressão poética. Tal tipo de homens é
dos escravos [...]. Fts diferenciações morais de soberbo justamente pelo fato de não ser feito
valor surgiram ou em meio a uma estirp© domi- para a piedade, razão pela qual o herói da
nant0, qu0 com um senso de bem-estar adquiria saga acrescenta, em tom de advertência: “quem
consciência do própria distinção em relação à não tem duro coração desde jovem, não 0 terá
dominada, ou então em meio aos dominados, jamais”. Nobres e valorosos que pensam deste
os escravos 0 os subordinados d© todo grau. modo estão muito distantes daquela moral que
No primeiro caso, quando são os domi­ vê precisamente na piedade ou no agir altruísta
nadores que d0t0rminom a noção de "bom", ou no désintéressement o elemento próprio da­
são os estados de ©lovação e de altivoz de quilo que é moral; a fé em si mesmos, 0 orgulho
alma que são percebidos como traço distintivo de si, uma inimizade radical e ironia para com o
0 qualificador da hiorarquia. O horrom nobre "desinteresse", ©stão compreendidos na moral
separa de si os indivíduos nos quais se exprime aristocrática, exatamente cio mesmo modo com
o contrário de tais estados de elevação e de que competem a ela um lev© desprezo e um
altivez: ele os despreza. Note-se logo que neste senso d© reserva diante dos sentimentos d©
primeiro tipo de moral o contraste "bem” e "mal" simpatia 0 de "calor do coração”. São os pod©-
tem o mesmo significado de “nobre" e "des­ rosos aqu©l0s qu© sobem atribuir honra, esta é
prezível"; o contraste entre "bom" e "mau" tem a arte deles, seu domínio inventivo, fl profunda
outra origem. 6 desprezado o vil, o medroso, o veneração pela idade avançada e pela tradi­
mesquinho, aquele qu© pensa em sua estreita ção - todo o direito repousa sobre esta dupla
utilidade; da mesmo formo o desanimado, com veneração -, a fé e a opinião preconcebida em
seu olhar servil, aquele que se torna abjeto, a favor dos antepassados e em desfavor pelos
espécie canina de homens que s© deixa mal­ pósteros são um elemento típico na moral dos
tratar, o m0ndicant© adulador 0 principalmente poderosos; e se, no oposto, os homens das
o mentiroso: é convicção fundamental de todos "idéias modernas" crêem, quase por instinto,
os aristocratas que o populacho seja mendaz. no "progresso" e no “futuro", e sempre estão
"Nós, os v0rdadeiros" - assim os nobres deno­ privados d© respeito pela idade vetusta, tudo
minavam-se na antigo Grécia, é fato evidente isso já é um indício suficiente da origem não no­
que as designações morais de valor sempre bre daquelas "idéias". Mas principalmente uma
foram em todo lugar primeiramente atribuídas a moral dos dominadores é estranha ao gosto
*homens, e apenas de modo derivado e sucessi­ dos contemporâneos e para eles desagradá­
vo a ações: motivo pelo qual é erro grave qu© vel pelo rigor de seu princípio, que há deveres
os historiadores da moral tomem como pontos unicamente para com os próprios semelhantes;
de partida problemas como “por que foi louvada que em relação aos indivíduos de posição in­
a ação piedosa?" O homem de tipo nobre sente ferior e de todos os estranhos seja lícito agir
Primeira parte - y\ filosofa do século X^X qo século XX

por própria conta ou "como quer o coração", 0 cos meios para suportar o peso da existência.
em todo caso "além do bem 0 do mal": é sob A moral dos escravos é essencialmente moral
©ste último asp0cto que pod0m ter seu lugar a utilitária. €is o lar em quo nasceu o famoso
compaixão ou outras coisas do gênero, fl capa­ contraste entre "bom" e "mau": no íntimo do
cidade 0 a obrigação de uma longa gratidão 0 mal percebem-se o poder e a periculosidade,
de uma longa vingança - as duos coisas estão certa terribilidade, fineza e força, que sufocam o
d©ntro da esfera dos próprios semelhantes desprezo nas raízes. Conforme a moral dos es­
a sutileza na represália, o refinamento da idéia cravos, o “mau" suscita portanto temor; segundo
de amizade, certa necessidade de ter inimigos a moral dos senhores é precisamente o bom que
(como canal d© d0fluxo, por assim dizer, paro suscita e quer suscitar temor, enquanto o homem
as paixões da inveja, do litígio, da insolência: "mau" é sentido como desprezível. O contraste
no fundo, para ser bons amigos): todas estas atinge seu ponto culminante quando, conside­
são caract0rísticas típicos da moral aristocrá­ rando as implicações da moral dos escravos,
tica, a qual, conforme acenei, não é o moral também sobre os "bons" desta moral acaba
das "idéias modernas", 0 é por isso qu© hoje por cair uma sombra desse desprezo - por
s0 torna difícil senti-la ainda, como também mais leve e benévolo que possa ser -, uma
d0S0nt0rrá-la ou descobri-la. vez quo o bom, no campo do modo de pensar
Rs coisas são diferentes no qu© se refere dos escravos, deve ser em todo caso o homem
ao segundo tipo de moral, a moral dos escra­ inócuo: este é bonachão, facilmente enganável,
vos. Uma v0z que os oprimidos, os despreza­ um pouco ©stúpido talvez, um ingênua. Gm todo
dos, os sofredores, os não livres, os inseguros e lugar em que a moral dos escravos se imponha,
cansados d e si próprios fazem moral, qual será a língua revela certa tendência de aproximar
o elemento homogêneo em suas estimativas d0 uma da outra os palavras "bom” e "estúpido".
valor? Provavelmente encontrará expressão uma Uma última diferença fundamental: o desejo
suspeita p0ssimista para com toda a condição de liberdade, o instinto dirigido à felicidade 0
humana, talv0z uma condenação do homem, às finezas do senso de liberdade pertencem
juntamente com sua condição. O escravo não tão necessariamente à moral e à moralidade
vê com bons olhos as virtudes dos pod0rosos: dos escravos, quanto a arte e o entusiasmo da
é céptico e desconfiado, tem a Fineza da des­ veneração, da dedicação, são o indício normal
confiança de tudo o qu0 de "bom" seja tido em de um modo aristocrático de pensar e de ava­
honra no meio deles, gostaria de estar persua­ liar. fi partir disso é sem dúvida compreensível
dido de que entre eles o própria felicidade a razão de o amor como paixão - é a nosso
não é genuína. No oposto, são evidenciadas especialidade européia - s©r absolutamente
e inundados de luz as quolidad0s qu© S0rvem de origem nobre: sabe-se que sua descoberta
poro aliviar a existência dos sofredores: são, cabe aos poetas cavaleiros provençais, àque­
n0st0 caso, a piedade, a mão que se compraz les esplêndidos engenhosos homens do “gaio
e socorre, o calor do coração, a paciência, a saber" ao qual a Curopa deve tantas coisas, e
operosidade, a humildade, o gentileza que são quase que totalmente a si mesma.
colocados em honra, uma vez que são estas, F. Nietzsche,
agora, as qualidades mais úteis 0 quase os úni­ Poro olém do bem e do mol.
C a p ítu lo s e g u n d o

O neocH+icismo.
yA Ê sco la de ]\/\c\Á ? ía^q o
e a Ê sco la de Baderv

I. (g ê n e s e , fm a lid a d e
e ceKvfros d e e la b o r a ç ã o d o Kveocn+icismo

• Uma retomada sistemática da filosofia de Kant teve lugar


Neocriticismo:
na Alemanha a partir da segunda metade do século XIX. Tal re­ análise
tom ada partiu e se desenvolveu como reflexão sobre os métodos, das condições
os fundamentos e os limites da ciência, para depois se estender de validade
a outras atividades humanas como a moral, o mito, a religião, a da ciência,
arte e a linguagem. Distante da metafísica, tanto a espiritualista da moral,
como a idealista, crítico do fetichismo positivista do "fato" e do da arte
cientismo, o neocriticismo pretendeu repropor uma filosofia em e da religião
termos rigorosamente kantianos, ou seja, como análise das con­ 7
dições de validade da ciência e de outros produtos humanos (a
moral, a arte e a religião).

• Trabalhos de inspiração kantiana foram os de O tto Liebmann (1840-1912)


e os do grande pesquisador Hermann Helmholtz (1821-1894). Neokantianos apa­
recerão na Inglaterra (Shadworth H. Hodgson, George D. Hicks),
na Itália (Carlos Cantoni, FélixTocco, Francisco Fiorentino e Tiago O neokantismo:
Barzellotti) e na França (Charles Renouvier, Otávio Hamelin e Léon fenômeno
Brunschvicg). Todavia, os centros mais importantes de elaboração europeu
do neocriticismo foram de um lado Marburgo, com Hermann Co- -Ȥ 1
hen, Paul Natorp e seu discípulo Ernst Cassirer (do qual falaremos
à parte); e, do outro, Heidelberg e Friburgo - duas cidades situadas na região do
Baden (e daí a Escola de Baden) com W ilhelm Windelband e Heinrich Rickert.

• Hermann Cohen (1842-1918), contrário à concepção positi­ Cohen


vista, afirma em A teoria de Kant da experiência pura (1871) que e a filosofia
a ciência não é um acúmulo de sensações ou de fatos observados, como análise
que o fundam ento da objetividade da ciência está no a priori, e dos elementos
que a filosofia tem como tarefa a pesquisa dos elementos puros, a priori da ciência
isto é, a priori, do conhecimento científico. -->§2.1

• Em Os fundamentos lógicos das ciências exatas (1910) Paul


Natorp:
Natorp (1854-1924), estudando não tanto a atividade psíquica do o objeto do
cognoscente e sim mais os conteúdos do conhecimento, afirma conhecimento
que o conhecimento é síntese que deve ser submetida a contínua é um p on to
análise, onde se revêem e corrigem os conhecimentos preceden­ de chegada
tes, de modo a aperfeiçoar sempre mais as determinações dos que sempre
objetos. O objeto, no conhecimento científico, não é um dado, não se desloca
é um ponto de partida, mas um ponto de chegada que sempre se — > § 2.2
Primeira parte - .A filo sofia d o s é c u lo X ^ 7X s é c u lo X X

desloca. O obiectum é um proiectum: é conhecimento sempre mais determinado


que se projeta sobre a realidade.

• A "volta a Kant" significa para Wilhelm Windelband (1848­


W indelband
e a filosofia
1915) que a filosofia é análise dos princípios a priori; contudo, na
como análise sua opinião, tal tipo de análise se estende também à moralidade e
dos princípios à arte, e tais princípios a priori devem ser tipificados como valores
a priori universais e necessários, de natureza normativa: é com o valor da
necessários verdade que se confrontam os juízos científicos, é o valor do bem
e universais aquilo com que se avalia se o agir humano tem validade universal
da pesquisa, e necessária, é o valor da beleza aquilo com que julgamos se uma
da m oral obra de arte possui ou não validade universal e necessária. Os dois
e da arte volumes dos Prelúdios são de 1884; História da filosofia moderna,
-->§3.1
também em dois volumes, é dos anos 1878-1880.

• Por sua vez, Heinrich Rickert (1863-1936) é da opinião que conhecer é julgar,
isto é, aceitar ou rejeitar, o que pressupõe o reconhecimento de um valor, de um
dever ser que aparece como fundam ento do conhecimento. Sem esta norma, isto
é, sem este valor ou.dever ser, estaríamos na impossibilidade de
Rickert: form ular qualquer juízo, até o juízo que nega. Rickert aqui está
o sujeito falando do valor da verdade. Quando se julga, "o juízo que eu
cognoscente formulo, embora verse sobre representações que vêm e vão, tem
é o "sujeito um valor duradouro, pois não poderia ser diverso daquilo que é".
transcendental" No momento em que se julga, pressupõe-se algo que vale eter-
^ 3.2 namente. Eis, portanto, que enquanto para Dilthey o sujeito que
conhece‘é um ser histórico, para Rickert o que deve ser julgado
é o sujeito transcendental, a consciência em geral. E esta "consciência em geral"
não é apenas lógica, mas também ética e estética.

O n a sc im e n to Para o neocriticismo a filosofia deve


voltar a ser o que era com Kant: análise das
d o n e o c r itic ism o
condições de validade da ciência e dos outros
produtos humanos, como a moral, a arte ou
a religião. Disso torna-se clara a razão pela
A partir da metade do século X IX assis­ qual os neokantianos propõem uma filosofia
tiu-se, sobretudo na Alemanha, à retomada dominada por problemas gnosiológicos ao
sistemática da filosofia kantiana, no sentido invés de problemas empírico-factuais ou
preciso de reflexão sobre os fundamentos, os metafísicos.
métodos e os limites da ciência. E, posterior­ N a verdade, inclusive no período de
mente, essa retomada levaria à ampliação hegemonia do idealismo, a tradição kantia­
dos âmbitos de exercício da reflexão crítica, na nunca havia desaparecido inteiramente
que não se limitariam mais ao campo da na Alemanha. Entretanto, em 1865, Otto
ciência, mas abrangeriam também outros Liebmann (1840-1912) publicou um livro,
produtos da atividade hum ana, como a Kant e os epígonos, onde examinava as
história e a moral e, depois, a arte, o mito, quatro orientações da filosofia alemã pós-
a religião, a linguagem. kantiana (o idealismo de Fichte, Schelling e
Da mesma forma que o espiritualismo, Hegel; o realismo de Herbart; o empirismo
o criticismo pretende combater o fetichismo de Fries; as concepções de Schopenhauer) e,
positivista do “ fato” e a idéia da ciência ao término da análise de cada uma dessas
metafisicamente absoluta. Entretanto, o neo- orientações, concluía com o lema: “ Deve­
criticismo é contrário a qualquer metafísica, mos, portanto, retornar a Kant” .
tanto de tipo espiritualista como idealista. E, Por sua própria conta, já retornara a
igualmente, é avesso a toda redução da filo­ Kant o grande cientista Hermann Helmholtz
sofia à ciência empírica (trate-se da fisiologia (1821-1894), que, com base em estudos de
ou da psicologia), à teologia ou à metafísica. fisiologia e de física (Sobre a vista humana,
'
Capítulo segundo - O neocritici sm o . E s c o l a d e ^/\arbur 0 o e a E s c o l a d e 13 a d e n
23

(como a da filosofia de Simmel e, depois, do


marxismo). M as, antes de Banfi, já haviam
■ N eocriticism o (ou n eokan tism o ). retornado a Kant também Carlos Cantoni
Com neocriticismo ou neokantismo (1840-1906) e Félix Tocco (1845-1911),
entende-se "a volta a Kant" da fi­ além de Francisco Fiorentino (1834-1884)
losofia alemã - e não apenas alemã e Tiago Barzellotti (1844-1917).
- por volta da metade do século XIX. Foi notável e influente a presença
Tal "volta a Kant" implica uma crítica do neocriticismo na França. Aqui basta
decisiva tanto do positivismo como
mencionar Carlos Renouvier (1815-1903),
do idealismo e uma reabilitação da
tarefa da filosofia já fixada por Kant, para quem o único fim da filosofia está no
tarefa que consiste na análise das estabelecimento de leis gerais e dos limites
condições de validade da ciência e do conhecimento; Otávio Hamelin (1856­
dos outros produtos humanos como 1907); e Léon Brunschvicg (1869-1941),
a moral, a arte, a religião. que, na obra O idealismo contemporâneo
O neokantismo é um movimento (1905), fez questão de sustentar que não
de pensamento que se orientou em cabe à filosofia aumentar a quantidade do
mais de uma direção. Eis como Nicola saber, já que a filosofia nada mais faz do
Abbagnano delineia os traços comuns
que refletir sobre a qualidade do saber. E
das correntes do neocriticismo:
" 1. A negação da metafísica e a redu­ como o saber humano está em contínuo
ção da filosofia a uma reflexão sobre desenvolvimento histórico, então, afirma
a ciência, isto é, a uma teoria do Brunschvicg, a história do saber humano é
conhecimento; “ o laboratório da filosofia” .
2. a distinção entre o aspecto psico­
lógico e o aspecto lógico-objetivo do
conhecimento [...];
3. a tentativa de remontar das estru­ y \ Escola de ]S/\a.À?i r g c
turas da ciência, tanto a da natureza
como a do espírito, para as estruturas
do sujeito que a tornariam possível".
EDI ■Hecmann a filosofia crítica
co m o m e to d o lo g ia d a c iê n c ia

O fundador reconhecido da Escola


de M arburgo foi Hermann Cohen (1842­
1855; D outrina das sensações sonoras, 1918), professor em Marburgo e autor, entre
1863; Os fatos da percepção, 1879), chega­ outros, dos seguintes trabalhos: A teoria de
ra à tese segundo a qual nossa estrutura fisio- Kant da experiência pura (1871), O funda­
psíquica é uma espécie de a priori kantiano. mento da ética kantiana (1871), A influência
Também chegaram autonomamente de Kant sobre a cultura alemã (1883) e O
ao criticismo Friedrich Albert Lange (1828­ fundamento da estética kantiana (1889).
1875), autor de História do materialismo A ciência e, mais precisamente, a física
(1866), e Alois Riehl (1844-1924), autor de matemática, assume papel de máxima im­
O criticismo filosófico e seu significado para portância na concepção de Cohen. Cohen
a ciência positiva (1876-1887). aceita a ciência como válida e concebe a
Os dois centros de elaboração do neo­ filosofia exatamente como o estudo das
criticismo foram M arburgo, com Cohen e condições de validade da ciência.
N atorp, aos quais se liga Cassirer, e Heidel- Ora, o positivismo tinha visto o valor da
berg, com Windelband e Rickert. ciência no fato sagrado, absoluto e intocável;
Entretanto, embora tenha alcançado para o positivista, em suma, objetivo é o fato,
na Alemanha seus resultados mais significa­ objetiva é a sensação, isto é, o a posteriori.
tivos, o neocriticismo não foi uma filosofia Cohen retorna a Kant, invertendo a concep­
apenas alemã. ção positivista. Como escreve ele em A teoria
N a Inglaterra o neokantismo foi de­ de Kant da experiência pura, o fundamento
senvolvido por S. H. Hodgson (1832-1912), da objetividade da ciência está no a priori.
Robert Adamson (1852-1902) e George D. Com efeito, a ciência não é e não se desen­
Hicks (1862-1941). volveu como caos de percepções, nem é acú­
N a Itália foi Antônio Banfi (1886­ mulo de sensações ou de fatos observados.
1957) quem adotou as teses do neocriti­ A realidade é que a ciência não se cons­
cismo, juntamente com outras instâncias tituiu tanto pela acumulação de fatos, e sim
Primeira parte - ;A filo sofia d o s é c u lo X^X q ° s é c u lo XX

muito mais pela unificação dos fatos por e Friburgo, cidades situadas na região de
meio de e sob hipóteses, leis e teorias. M as Baden) foram Wilhelm Windelband (1848­
nós não extraímos leis e teorias dos fatos, 1915) e Heinrich Rickert (1863-1936), de
e sim as impomos aos fatos: a teoria é o a quem falaremos também no capítulo sobre
priori. E a filosofia indaga exatamente os o historicismo, no que se refere às suas re­
elementos “ puros” , ou seja, os elementos flexões sobre a fundação da historiografia
a priori, do conhecimento científico. A como ciência. Aqui, falaremos a propósito
filosofia, portanto, deve ser metodologia de sua filosofia dos valores, que, embora
da ciência. os tornando expoentes de primeiro plano
do neocriticismo, os diferencia, porém, da
Escola de M arburgo.
W SM P a wl /SJatorp: "o m étod o é tu d o ”
Em seu “ retorno a Kant” , Windelband
certamente atribui à filosofia a função de
O outro prestigioso representante buscar os princípios a priori que garantem
da Escola de M arburgo é Paul N atorp a validade do conhecimento. Entretanto,
(1 8 5 4 -1 9 2 4 ), estu d io so de am plos in ­ são duas as coisas novas que ele introduz
teresses, autor de A doutrina platônica nessa questão:
das idéias (1 9 0 3 ), de O s fundam entos a) por um lado, esses princípios são
lógicos das ciências exatas (1910) e tam ­ interpretados como valores necessários e
bém de escritos de pedagogia, psicologia universais, tipificados pelo caráter norma­
e política, como G uerra e paz (1916) e tivo independente de sua realização efetiva;
A m issão m undial dos alem ães (1918). b) por outro lado, diferentemente da
A exemplo de Cohen, N atorp afirma Escola de M arburgo, Windelband se liber­
que a filosofia não é ciência das coisas; das ta da referência privilegiada ao âmbito do
coisas falam precisamente as ciências, ao pas­ conhecimento para considerar a atividade
so que a filosofia é teoria do conhecimento. humana também nos campos da moralidade
Entretanto, a filosofia não estuda o e da arte.
pensamento subjetivo, ou seja, ela não inda­ Portanto, a filosofia não tem por objeto
ga sobre a atividade cognoscente, sobre uma os juízos de fato, mas Beurteilungen, isto
atividade psíquica, e sim sobre conteúdos. é, juízos valorativos do tipo “ esta coisa é
E estes são determinações progressivas do verdadeira” , “ esta coisa é boa” , “ esta coisa
objeto. Em O s fundamentos lógicos das é bela” . E é assim que os valores — que têm
ciências exatas, podemos ler que o conhe­ precisamente validade normativa — distin-
cimento é síntese e a análise consiste no guem-se das leis naturais: a validade das leis
controle das sínteses já efetuadas. Sínteses naturais é a validade do Müssen, a validade
que devem ser submetidas a reelaboração empírica de não poder ser de outro modo-, a
contínua, de modo a aperfeiçoar sempre validade das normas ou valores é a do Sol-
mais as determinações dos objetos. Por isso, len, isto é, do dever ser. Concluindo, deve-se
o objeto não é um dado, não é um ponto dizer, portanto, que, para Windelband, a
de partida, mas um ponto de chegada que filosofia consiste na teoria de valores; que
sempre se desloca. a função da filosofia, mais especificamente,
Em suma, o obiectum é um proiectum: está em estabelecer quais são os valores
é conhecimento sempre mais determinado que estão na base do conhecimento, da
que se projeta sobre a realidade. E não há moralidade e da arte; que a teoria do conhe­
termo para essa determinação; portanto, o cimento, para além da concepção de alguns
objeto está sempre in fieri, é tarefa infinita. neokantianos de Marburgo, é apenas uma
parte da teoria dos valores.

;A éEscola d e B a d e n
M SB -Heinrick R ic k e rt:
c o n k e c e r é ju lg a r com b a s e
n o v a lo r d e v e r d a d e
W ilk e lm W in d e lb a n d
e a filo so fia co m o te o ria d o s v a lo re s Rickert retoma de Windelband a con­
cepção da filosofia como teoria dos valores
Os representantes mais prestigiosos da e, ao mesmo tempo, os resultados mais
Escola de Baden (assim chamada porque válidos de sua investigação metodológica.
teve seus pontos centrais em Heidelberg Entretanto, ele tenta sistematizar resulta­
Capitulo S C g U n d o “ (D r\eocn+icismo. y\ E s c o l a d e A A arbu^go e a E s c o l a d e 3 a d e ^

dos semelhantes em concepção orgânica da dicionamento de espaço e de tempo; é a cons­


teoria do conhecimento e procura fundar ciência em geral (Bewusstsein überhaupt); e
(ao invés de, mais ou menos simplesmente, essa “ consciência em geral” não é somen­
registrar) a autonom ia do conhecimento te lógica, m as tam bém ética e estética.
histórico. Desse modo, sendo os valores transcen­
Conhecer quer dizer julgar, isto é, acei­ dentes as consciências individuais e sendo
tar ou rejeitar, aprovar ou reprovar, o que o sujeito do conhecimento entendido como
implica o reconhecimento de um dever ser sujeito transcendental, é óbvio que as in­
que está na base do conhecimento. Negar vestigações de Rickert, diferentemente das
o dever ser, isto é, a norma, eqüivaleria a de M ax Weber, se colocam em um plano
ratificar a impossibilidade de qualquer juízo, que abstrai completamente as condições e
inclusive daquele que nega. os problemas efetivos dos processos de pes­
Um juízo não é verdadeiro porque quisa, sejam estes científicos ou históricos.
expressa aquilo que é; pode-se afirmar, ao Segundo Rickert, a filosofia não tem em
invés, que algo é somente se o juízo que o absoluto a função de se interessar por tais
expressa é verdadeiro por força do seu dever problemas; ela deve muito mais cumprir a
ser. E o dever ser, isto é, os valores, ou seja, função de estabelecer de que modo as ciên­
as normas, são transcendentes em relação a cias generalizantes e as individualizantes
cada simples consciência empírica. Para Dil- encontram a garantia de sua validade uni­
they, o sujeito do conhecer é o homem como versal e necessária, tendo em vista os valores
ser histórico. Já para Rickert é o sujeito que constituem seus princípios a priori e o
transcendental, para além de qualquer con­ fundamento.

Vista de Heidelberg, em uma estampa do século X IX .


Esta cidade, junto com Eriburgo,
foi centro cultural de primeiríssimo plano
e sede da Escola do Baden.
Primeira parte - A ■filosofia d o s é c u lo X ^ X a o s é c u lo X X

' II. íz^mst C a ssir e r '


e a filosofia d a s fo rm a s sim bólicas

• Discípulo de Cohen e Natorp em Marburgo, Ernst Cassirer (1874-1945) pri­


meiro foi professor em Berlim e depois em Marburgo. Obrigado a emigrar em
1933, foi primeiro para a Inglaterra, depois para a Suécia e por fim para os Esta­
dos Unidos, onde ensinou na Universidade de Yale e a seguir na
As ciências Universidade de Colúmbia. É autor de famosas obras históricas
buscam (entre as quais O problema do conhecimento na filosofia e na
relações ciência da era moderna, em quatro volumes) e teóricas (entre as
funcionais quais A filosofia das formas simbólicas, em três volumes: 1923,
e não 1925, 1929; e o Ensaio sobre o homem, 1944).
substâncias
Em 1910 Cassirer publicou O conceito de substância e o con­
-»S 1 ceito de função, onde, com rara competência, ele mostra que o
desenvolvimento do pensamento científico nos obriga a passar
do conceito de substância para o conceito de função: as ciências progrediram
justamente porque deixaram de buscar substâncias e se dirigiram à pesquisa de
leis, de relações funcionais.

• Cassirer submeteu à análise filosófica não só a ciência, más


As "formas
também as formas fundamentais da compreensão do mundo, que
simbólicas" são "formações simbólicas", como o mito, a arte, a linguagem.
são formas Estas formas simbólicas "dão forma e sentido", ou seja, organizam
da compreensão a experiência, constituem modos de ver o mundo, criam mundos
do mundo de significados. A aparição do sistema simbólico transformou toda
-> § 2 a situação existencial do homem: o homem doravante vive não só
em uma realidade mais vasta, mas até em "uma nova dimensão
da realidade".

• O homem, com efeito, com sua atividade simbólica "superou os limites da


vida orgânica". Os animais têm sinais; o homem produz símbolos. Ele "não vive
mais em um universo apenas físico, mas em um universo simbólico. A linguagem,
o mito, a arte e a religião são parte deste universo". É um dado de fato que "o
homem não se encontra mais diretamente diante da realidade; por assim dizer,
ele não pode mais vê-la face a face. A realidade física parece re­
D efin ir troceder à medida que a atividade simbólica do homem avança".
o homem Eis, então, que o homem deve ser definido não mais como animal
como animal rationale e sim como animal symbolicum. Sem dúvida, esclarece
rationale Cassirer, a definição de homem como animal rationale "mantém
eqüivale seu valor"; contudo, ela pretende trocar a parte pelo todo. Em
a trocar a parte poucas palavras: a "razão" é um term o pouco adequado "se
pelo todo
-^§3
quisermos abraçar em toda a sua riqueza e variedade as formas
da vida cultural do homem".

S u b s t â n c ia e. f u n ç ã o como livre-docente e, depois, em Hambur­


go. Em 1933, forçado a emigrar, vai primei­
ro para a Inglaterra, depois para a Suécia,
Ernst Cassirer (1874-1945) nasceu em e finalmente para os Estados Unidos, onde
Breslau, de família judaica de boas condi­ ensinou na Universidade Yale e, em seguida,
ções. Estudou filosofia sob a guia de Cohen e na Universidade de Colúmbia. Interessado
Natorp. De 1906 a 1919 ensinou em Berlim pela história das idéias filosóficas, que vê en­
Capitulo SegUfldo - O n eocriticism o. y\ íS s c o la d e A A a rb u rgo e a E s c o l a d e S a d e n

trelaçadas com as idéias científicas, Cassirer lam os objetos do conhecimento científico


é autor de obras famosas, como O problema (e do conhecimento comum) são produtos
do conhecimento na filosofia e na ciência da do pensamento, que tornam “ possível a
época moderna (vols. I e II, 1906-1907; vol. priori" o conhecimento, estabelecendo suas
III, 1920; vol. IV, 1940, publicado postuma­ condições de possibilidade. E o fato de que
mente), Indivíduo e cosmo da Renascença a ciência consiste em teorias ou relações
(1927), A filosofia do Iluminismo (1932). construídas pelo homem e que os objetos da
E a consciência histórica acompanhará sem­ ciência sejam instituídos por esses pontos
pre até as obras mais caracteristicamente de vista, por essas teorias, não significa de
teóricas de Cassirer: “ O uso [...] de pôr modo algum cair no subjetivismo. Escreve
[...] no vazio os próprios pensamentos, sem Cassirer: “ N ós não conhecemos os objetos,
pesquisar sua relação e sua conexão com o como se eles fossem dados e determinados
trabalho de conjunto das ciências filosóficas, como objetos, antes e independentemente
nunca me pareceu oportuno e fecundo” . En­ de nosso conhecimento. Ao contrário, nós
tre as obras de natureza teórica de Cassirer, conhecemos objetivamente, já que, no trans­
podemos recordar: O conceito de substância correr uniforme dos conteúdos da expe­
e o conceito de função (1910); A filosofia riência, criamos determinadas delimitações
das formas simbólicas (3 vols., 1923-1925­ e estabelecemos determinados elementos
1929); A teoria einsteniana da relatividade duráveis e determ inadas ligações entre
(1921); Determinismo e indeterminismo eles” .
na física moderna (1937); Ensaio sobre o
homem (1944).
Em 1910, portanto, Cassirer publica
O conceito de substância e o conceito de
função. Nesse trabalho, através de seguro
domínio da história da ciência, ele realiza
uma investigação sobre o conhecimento
matemático, geométrico, físico e químico,
a fim de mostrar que esses conhecimentos
não buscam a substância, e sim a lei, a re­
lação, isto é, a função. Relações e funções
instituem os entes matemáticos e constituem
as expressões geométricas. N o conhecimen­
to científico e também no conhecimento
comum encontramos muito mais do que
dados sensíveis. Olhamos as coisas atra­
vés de pontos de vista, teorias, leis, isto é,
relações. Em suma, o desenvolvimento do
pensamento científico nos leva a passar do
conceito de substância ao de função. A me­
tafísica de Aristóteles falava de um mundo
de coisas das quais era preciso abstrair as
características comuns, a essência. M as,
por um lado, enquanto esse método levou a
toda uma massa de resultados estéreis (entre
outras coisas, não há garantia alguma de
que o comum seja o essencial), por outro
lado, viu-se que as ciências progrediram
porque se matematizaram (na matemática
não entra o conceito de substância, mas o
de função); progrediram porque deixaram
de buscar substâncias e voltaram-se para a Ernst Cassirer (1874-1945)
é um dos mais representativos pensadores
busca de relações funcionais entre os obje­
do neokantismo, historiador penetrante
tos. E assim como as funções matemáticas do pensamento moderno,
não se obtêm por abstração, mas são cons­ autor justamente famoso
truídas pelo pensamento, da mesma forma de A filosofia das formas simbólicas.
também os pontos de vista, as teorias ou E dele a definição do homem
relações funcionais que instituem e vincu­ como animal symbolicum.
Primeira parte - y\ f ilo s o f ia d o sé.c-iA loXJX a o sécLA loXX

2 ;A filosofia O homem é animal symbolicum. Com


a sua atividade simbólica, ele superou “ os
das formas simbólicas limites da vida orgânica” . E agora “ não
se pode fazer nada contra essa subversão
da ordem natural. O homem não pode se
Cassirer não submeteu à análise filo­ subtrair às condições de existência que ele
sófica somente as ciências. Indo além dos próprio criou: deve se conformar a elas.
marcos das “ duas culturas” , ele também N ão vive m ais em um universo apenas
pretendeu, com A filosofia das formas sim­ físico, e sim em um universo simbólico. A
bólicas, “ delimitar as diversas formas funda­ linguagem, o mito, a arte e a religião são
mentais da ‘compreensão’ do mundo umas partes integrantes desse universo, são os
em relação às outras, e captar cada uma delas fios que constituem o tecido simbólico, a
o mais claramente possível em sua tendência intricada tram a da experiência humana.
peculiar e em sua forma espiritual peculiar” . Todo progresso no campo do pensamento e
Essas formas fundamentais de “ com­ da experiência fortalece e refina essa rede” .
preensão” do mundo são “ formações sim­ De fato, afirma Cassirer, está fora de qual­
bólicas” como o mito, a arte, a linguagem quer dúvida que “ o homem não se encontra
ou também o conhecimento. Somos nós que mais diretamente diante da realidade; por
plasmamos o mundo com nossa atividade assim dizer, ele não pode mais vê-la face a
simbólica, criando e fazendo mundos de ex­ face. A realidade física parece retroceder à
periências: “ o mito e a arte, a linguagem e a medida que a atividade simbólica do homem
ciência são [...] sinais que tendem a realizar avança. Ao invés de se defrontar com as
o ser” , direções da vida humana, formas próprias coisas, em certo sentido o homem
típicas da ação humana. E uma filosofia do está continuamente em colóquio consigo
homem, escreve Cassirer, deveria ser “ filo­ mesmo. Cercou-se de formas lingüísticas,
sofia que faça conhecer a fundo a estrutura de imagens artísticas, de símbolos míticos e
fundamental de cada uma dessas atividades de ritos religiosos a tal ponto que não pode
humanas e que, nesse meio tempo, faça por mais ver e conhecer nada senão por meio
onde entendê-las como um todo orgânico” . dessa mediação artificial” . E a situação é a
As formas simbólicas — isto é, a linguagem, mesma no campo teórico e no campo prá­
a arte, o mito e a ciência — “ dão forma e tico. Também no campo prático o homem
sentido” , vale dizer, estruturam o modo de não vive em um mundo de puros fatos; ele
ver o mundo, criam mundos de significados, vive muito mais “ entre emoções suscitadas
organizam a experiência. Com efeito, “ in­ pela imaginação, entre medos e esperanças,
serido entre o sistema receptivo e o sistema entre ilusões e desilusões, entre fantasias e
relativo (encontráveis em todas as espécies sonhos. Como disse Epicteto, ‘aquilo que
anim ais), existe no homem um terceiro perturba e agita o homem não são as coisas,
sistema, que se pode chamar de sistema sim­ e sim suas opiniões e fantasias em torno das
bólico, cujo aparecimento transforma toda coisas’
a sua situação existencial. Confrontado com
os animais, observa-se que o homem não
somente vive em uma realidade mais vasta,
mas também, por assim dizer, em uma nova T^nimal ra+ionale”
dimensão da realidade” . O homem é animal
cultural, diriam os etólogos. E Cassirer o cha­ e^animal symbolicumA
ma de “ animal symbolicum” . Os animais
têm sinais, o homem produz símbolos. “ A
diferença entre linguagem proposicional e Chegando a esse ponto, Cassirer é da
linguagem emotiva constitui o verdadeiro opinião de que se pode e se deve corrigir
limite entre o mundo humano e o mundo a definição tradicional de homem. N a ­
anim al” . E o nascim ento da linguagem turalmente, a definição de homem como
descritiva ou proposicional que desencadeia animal rationale “ mantém seu valor” , não
o desenvolvimento da “ cultura” , isto é, da obstante pretenda ela trocar a parte pelo
“ civilização” . Com efeito, escreve Cassirer, todo, “ pois, além da linguagem conceituai,
“ é inegável que o pensamento e o compor­ existe uma linguagem do sentimento e das
tamento simbólicos são os aspectos mais emoções; além da linguagem lógica e cien­
característicos da vida humana e que todo o tífica, existe a linguagem da imaginação
progresso da cultura baseou-se neles” . poética. A linguagem não expressa somente
Capitulo segundo - CD neocH+icismo.tSscol a de AAarLmrgo e a £scola de 13aden

pensamentos e idéias, mas, em primeiro lu­


gar, sentimentos e afetos” . Os filósofos que
definiram o homem como animal rationale
■ F ilo so fia das fo rm a s sim bólicas.
não eram empiristas, observa Cassirer, e Eis como Cassirer, no Ensaio sobre o
não pretenderam “ dar explicação empírica hom em , esclarece a tarefa de uma
da natureza humana. Com essa definição, filosofia das formas simbólicas. |
eles propuseram muito mais um imperativo "A característica principal do homem,
m oral” . Em suma, a razão é termo pouco aquilo que o distingue, não é sua
adequado se quisermos abraçar em toda a natureza física ou metafísica, e sim |
sua riqueza e variedade as formas da vida sua obra. É essa obra, isto é, o sistema |
cultural do homem. “ Essas formas são es­ das atividades humanas, que decifra e I
sencialmente formas simbólicas. Ao invés determina a esfera da humanidade". I
A linguagem, o mito, a religião, a arte
de definir o homem como animal rationale, e a história são os elementos constitu­
dever-se-ia, portanto, defini-lo como animal tivos dessa esfera, os setores que ela
symbolicum. Desse m odo, indicar-se-á o compreende. Assim, uma "filosofia
que verdadeiramente o caracteriza e o que do homem" deveria ser uma filosofia
o diferencia em relação a todas as outras que faça conhecer a fundo a estrutu­
espécies, podendo-se entender o caminho ra fundamental de cada uma destas
especial que o homem tomou: o caminho atividades humanas e que ao mesmo
para a civilização” . N esse caminho, na tempo "forneça o modo de entendê-
opinião de Cassirer, a ciência corresponde à las como um todo orgânico".
Nas formas simbólicas - linguagem,
última fase do desenvolvimento intelectual
arte, religião, ciência - "o homem
do homem, “ podendo ser considerada como descobre e demonstra um novo po­
a mais elevada e significativa conquista da der, o poder de construir um mundo
cultura. E produto muito raro e refinado, próprio, um mundo 'ideal'
que só pôde tom ar form a em condições Nas formas simbólicas a análise filo­
especiais” . O trabalho científico de Galileu sófica é chamada a descobrir o homem:
e Newton, de Maxwell e Helmholtz, de Plan- "pelos seus produtos o reconhecereis".
ck e Einstein, não consistiu em simples coleta
de fatos: “ foi trabalho teórico, mas cons­
trutivo” , fruto daquela “ espontaneidade e
produtividade que estão verdadeiramente
no centro de todas as atividades humanas” .
Com a linguagem, a religião e a ciência, o
homem construiu o próprio universo, uni­ a multiplicidade, a variedade e a peculiari­
verso simbólico que o põe em condições dade estrutural de cada forma simbólica, a
de compreender e interpretar, de articular filosofia, diz Cassirer, não pode renunciar à
e organizar, de sintetizar e universalizar busca da unidade fundamental desse mundo
sua experiência. E desse modo, na cultura ideal. “ Todas as funções se completam e se
tomada em seu conjunto, “ pode-se observar integram mutuamente. Cada uma descerra
o processo da autolibertação progressiva do novo horizonte e mostra novo aspecto da
homem. A linguagem, a arte, a religião e a humanidade. O dissonante está em har­
ciência são fases desse processo. Em todas monia consigo mesmo; os contrários não
elas, o homem descobre e demonstra novo se excluem reciprocamente, mas dependem
poder, o poder de construir um mundo um do outro; é a ‘harmonia no contraste,
próprio, um mundo ‘ideal’ ” . Sem esconder como no plectro e na lira
I*Y ÍtT ie ÍT (l p U T t C - ;A filo sofia d o s é c u lo ^CITX cxo s é c u lo .X X

os animais percebe-se que o homem não só vive


em uma realidade mais vasta, mas também, por
C a s s ir e r assim dizer, em uma nova dimensão da reali­
dade. Cxiste uma diferença evidente entre as
reações orgânicas e as respostas humanas. No
primeiro caso o estímulo externo provoca uma
D éO um
homem
"animal simbólico"
resposta direta e imediata, no segundo caso a
resposta é deferida. 0 a é retida e retardada
depois de lento e complexo processo mental. A
primeira vista esta dilação das reações poderia
parecer uma vantagem bastante discutível. Com
"6/7? vez de definir o homem como um efeito, muitos filósofos aconselharam o homem
animal rationale dever-se-io [...] defini-lo a desconfiar de tal pretenso progresso: "O
como um animal symbolicum". homem que medito - disse Rousseau - é um
homem depravado'-, a superação dos limites
da vida orgânica levaria não à melhoria, e sim
Para 0I0 [o biólogo Johannes von Uexküll] à deterioração da natureza humana.
a vida é p0rf0ita em todo lugar; é a rrosma tanto Todavia, não se pode fazer nada contra
no p0qu0no como no grand0. Todo organismo, esta inversão da ordem natural. O homem não
compr00ndendo aqu 0 l0 5 que se encontram na podo mais s© subtrair às condições de exis­
extremidade inferior da escala biológica, não tência que ele próprio criou para si; deve se
só 0, 0m s0nso lato, adaptado (angepasst) a conformar a elas. Não vive mais em um universo
s0u ambiente, mas encontra-se também orga­ apenas físico, mas em um universo simbólico. R
nicamente nele inserido (eingepasst). Conforme linguagem, o mito, a arte e a religião são parte
sua estrutura anatômica particular 0I0 possui um deste universo, são os fios que constituem o
Merhnetz 0 um UJirknetz, ou seja, um sistema tecido simbólico, a emaranhada trama da ex­
r0C0ptivo 0 certo sistema qu© Ih0 permite agir. periência humana. Todo progresso no campo do
Sem o acordo 0 a cooperação dest0s dois pensamento e da experiência reforça e refina
sist0mas o organismo não pod0ria sobreviver. essa rede. O homem não se encontra mais
Cm todo caso, em dada espécie biológica o diretamente diante da realidade; por assim
sistema receptivo que transmite os estímulos dizer, ele não pode mais vê-la face a face. R
externos 0 o sistema qu© p0rmite reagir a tais realidade física parece retroced0r à medida qu©
estímulos estão intimamente ligados. São anéis a atividad© simbólica do homem avança. Cm vez
d0 uma única cadeia que Uexküll chama de de ter o que fazer com as próprias coisas, em
círculo funciono! (o Funktionskreis) do animal certo sentido o homem está continuamente em
em questão. ' diálogo consigo mesmo. Circundou-se de formas
fiqui não é o caso de discutir as concep­ lingüísticas, de imagens artísticas, de símbolos
ções biológicas de Uexküll. Referimo-nos a míticos e de ritos religiosos a um ponto tal de
©Ias e à terminologia correspondente apenas não poder ver e conhecer mais nada a não ser
para delinear um problema de carót0r g0ral. por meio dessa mediação artificial. R situação
é possível usar o esquema proposto por esse é a mesma no campo teórico e no prático.
autor para uma descrição e uma caracterização Também no campo prático o homem não vive
do mundo humano? Obviamente, este mundo em um mundo de fatos puros segundo suas
não constitui uma 0xc0ção, é dirigido p0las necessidades e seus desejos mais imediatos.
mesmas leis biológicas em ação em todos os Vive muito mais entre emoções suscitadas pela
outros organismos. Todavia, no mundo humano imaginação, entre medos e esperanças, ilusões
encontramos também algo de característico e desilusões, entre fantasias e sonhos. “Rquilo
quo o distingue do de qualquer outra forma de que perturba e agita o homem - disse Cpicteto
vida. Não só o círculo funcional do homem 0 - não são as coisas, mas suas opiniões e suas
quantitativamente mais amplo, mas ele apre­ fantasias a respeito das coisas".
senta também uma diferença qualitativa. Por R este ponto pode-se corrigir e ampliar a
assim dizer, o homem descobriu um modo novo definição clássica do homem [...]. Os grandes
de adaptar-se ao ambiente. Inserido entre o pensadores que definiram o homem como ani­
sistema receptivo 0 o reativo (encontráveis em mal rationale não eram empiristas e não preten­
todos as espécies animais), no homem há um diam dar uma explicação empírica da natureza
terc0iro sistema qu© se pode chamar de sistema humana. Com tal definição eles puseram muito
simbólico, cuja aparição transforma toda a sua mais um imperativo moral. R razão é um termo
situação existencial, fazendo um confronto com pouco adequado, se quisermos abraçar em toda
Capítulo Segundo - O n e o cH ticism o . / \ É s c o l a d e ]\A a Á > u .r g o e a (E & c o \a de B aden

q suo riqueza e variedade as formas da vida deiramente o caracteriza e que o diferencia em


cultural do homem, êstas formas são essencial­ relação a todas as outras espécies, e se poderá
mente formas simbólicas. €m vez de definir o compreender o caminho especial que o homem
homem como um animal rationale dever-se-ia, tomou: o caminho para a civilização.
portanto, defini-lo como um animal symbolicum. €. Cassirer,
Para tal objetivo indicar-se-á aquilo que verda­ €nsaio sobre o homem.
C Z a p í+ u lo t e r c e i r o

O KisioHci smo alemão,


de WilKelm Dil+key
a Pnednck A^e^ ecl<e

I. (^êrvese, prob lem as,


teoria s e e x p o e n te s
do kistoricism o a le m ã o

•A s histórias da política e da economia, da religião e da arte, O século XIX


da filosofia e da filologia têm no século XIX alemão, chamado alemão:
o "século da história", seu século de ouro. Aqui bastará relem­ "o século
brar apenas os nomes de Barthold Niebuhr (1776-1831), Leopold da história "
Ranke (1795-1886), Gustav Droysen (1808-1884), Eduard Zeller -*§1
(1814-1908), Theodor Mommsen (1817-1903), Jakob Burckhardt
(1818-1897) e de Karl Julius Beloch (1854-1929).

% Pois bem, diante deste desenvolvimento portentoso de Gênese


saber histórico constitui-se o diversificado movimento filosófico e expoentes
conhecido sob o nome de historicismo, cuja intenção de fundo do historicismo
consiste na pesquisa - de tipo substancialmente kantiano - das alemão
condições de possibilidade, isto é, de autonomia e de validade -^§ 2
cognitiva das ciências históricas. Que tipo de saber é o histórico?
Qual é seu método? Estes são não só alguns dos problemas enfrentados pelos his-
toricistas alemães (Dilthey, Simmel, W eber etc.) ou por filósofos muito próximos a
eles como os neokantianos Windelband e Rickert. Outras questões se referirão à
concepção das civilizações (Spengler) e à corrida a reparos para conter o relativismo
transbordante (Troeltsch e Meinecke).

•Traços essenciais do historicismo alemão são:


a) a idéia de que a história é obra dos homens, de suas ações e relações si­
tuadas em contextos precisos, e não o resultado de leis inelutáveis;
b) com os positivistas os historicistas têm em comum a exigência de que a
pesquisa verse sobre fatos empíricos concretos;
c) os historicistas estendem a crítica kantiana ("como é possí- perspectivas
vel a ciência?") para além das ciências físico-naturais, isto é, para teóricas
as ciências histórico-sociais; do historicismo
d) para os historicistas o pesquisador não é o sujeito trans- alemão
cendental com categorias a priori, fixadas para a eternidade, mas §3
é um homem concreto, historicamente condicionado.
Primeira purte - y\ filosoj-ia d o s é c u lo X - ^ X a o s é c u lo X X

de seu sentido da tradição, de seu culto


db °e ass g gr ar na dn ed. se s k oi sUt o aHs a d o ^ e s pela consciência coletiva dos povos, de sua
tentativa de reviver o passado em sua pró­
k is + ó n c a s d o s é c u lo pria posição histórica. E, por outro lado,
justamente com a abstração de sua filosofia
da história, Hegel ensinara a ver a história
O século X IX foi o século dos grandes não como um amontoado de fatos separados
historiadores alemães. E útil lembrar os uns dos outros, e sim como totalidade em
nomes mais significativos. desenvolvimento dialético. E isso constitui
1) Barthold Niebuhr (1776-1831) es­ um de seus contributos mais importantes.
creveu uma famosa História romana.
2) Leopold Ranke (1795-1886) foi au­
tor de uma História dos papas nos séculos
X V I e X V II e de uma História da Alemanha 2 O n a sc im e n to
nos tempos da Reforma. d o n isto n c ism o
3) Gustav Droysen (1808-1884), autor
de uma História do helenismo.
4) Eduard Zeller (1814-1908), cuja Com base nesses elementos, não é difí­
Filosofia dos gregos em seu desenvolvimento cil compreender a gênese e o desenvolvimen­
histórico continua ainda hoje, ao menos sob to do movimento filosófico conhecido com o
alguns aspectos, um ponto de referência. nome de historicismo e cujos representantes
5) Theodor Mommsen (1817-1903), mais conhecidos, além de M ax Weber (do
autor de monumental História romana. qual falaremos à parte, dada a relevância, a
6) Jakob Burckardt (1818-1897) escre­ complexidade e a válida e grande influência
veu a obra justamente famosa A civilização de sua obra), são Wilhelm Dilthey (1833­
da Renascença na Itália. 1911), Georg Simmel (1858-1918), Oswald
7) Karl Julius Beloch (1854-1929) es­ Spengler (1 8 8 0 -1 9 3 6 ), Ernst Troeltsch
creveu uma importante História grega. (1865-1923) e Friedrich Meinecke (1862­
As histórias da política e da econo­ 1954). A esses, costuma-se acrescentar os
mia, da religião e da arte, da filosofia e da nomes de Wilhelm Windelband (1848-1915)
filologia encontram no século X IX alemão e de Heinrich Rickert (1863-1936), que es-
seu século de ouro, que foi chamado de “ o
século da história” . Erwin Rohde (1845­
1898) e Ulrich W ilamowitz-M õllendorff
(1848-1931), dois grandes filólogos, foram
protagonistas de um debate sobre as teorias
que Nietzsche havia proposto a propósito
do mundo grego.
N ão devemos esquecer que é nesse pe­
ríodo que se realiza o paciente trabalho de
coleta sistemática e recuperação dos textos
literários e papíricos relativos aos epicuris-
tas (Hermann Usener), aos estóicos (Hans
von Arnim) e aos pré-socráticos (Hermann
Diels).
O século X IX também assistiu a um
portentoso desenvolvimento da lingüística
histórica e da lingüística comparada (fala­
mos de Franz Bopp e de Jacob Grimm).
Além disso, foi intenso o interesse pela
história do direito na “ escola histórica” de
Karl Friedrich von Savigny (1779-1861),
que quis mostrar como as instituições ju­
rídicas não são fixadas para a eternidade,
e sim produtos de processos evolutivos
freqüentemente não programados.
Nesse interesse pela história certamente Retrato de Barthold G. Niebuhr,
descobre-se a influência do romantismo, autor de uma conhecidíssima História humana.
Cdpitulo terceiro - O kis+oricism o a le m ã o , d e W ilk e lm X^il+key a ^NAeinecke

tão ligados mais propriamente à “ filosofia de ciências que Kant não considera, ou seja,
dos valores” dentro do neocriticismo, mas as ciências histórico-sociais. E por isso que
dos quais não se pode deixar de falar, por uma exposição sobre o historicismo não
razões que explicitaremos, em uma exposi­ pode excluir Windelband e Rickert, ou seja,
ção sobre o historicismo. os neocriticistas, que haviam proposto a si
O historicismo surge nos últimos dois mesmos e nos mesmos termos o problema
decênios do século X IX e se desenvolve até das ciências histórico-sociais.
a vigília da Segunda Guerra Mundial. 5) É fundamental para o historicismo
a distinção entre história e natureza, como
também o é o pressuposto de que os objetos
do conhecimento histórico são específicos,
J d é i a s e p r o b le m a s no sentido de serem diferentes dos objetos
fim d a m e n + a is d o h isto n c ism o do conhecimento natural.
6) O problema cardeal em torno do
qual gira o pensamento historicista alemão
O historicismo alemão não é uma filosofia é o de encontrar as razões da distinção das
compacta. Entretanto, entre suas várias ex­ ciências histórico-sociais em relação às ciên­
pressões, é possível detectar certo “ ar de cias naturais, e investigar os motivos que
fam ília” , identificável nos seguintes pontos: fundamentam as ciências histórico-sociais
1) Como diz Meinecke, “ o primeiro como conjuntos de conhecimentos válidos,
princípio do historicismo consiste em subs­ isto é, objetivos.
tituir a consideração generalizante e abstrata 7) O objeto do conhecimento histórico
das forças histórico-humanas pela conside­ é visto pelos historicistas como residindo
ração de seu caráter individual” . na individualidade dos produtos da cultura
2) Para o historicismo, a história não é hum ana (m itos, leis, costum es, valores,
a realização de um princípio espiritual infi­ obras de arte, filosofias etc.), individualidade
nito (Hegel) ou, como queriam os românti­ oposta ao caráter uniforme e repetível dos
cos, uma série de manifestações individuais objetos das ciências naturais.
da ação do “ espírito do m undo” que se 8) Se o instrumento do conhecimento
encarna em cada “ espírito dos povos” . Para natural é a explicação causai (o Erklãren),
os historicistas alemães contemporâneos, a o instrumento do conhecimento histórico,
história é obra dos homens, ou seja, de suas segundo os historicistas, é o compreender
relações recíprocas, condicionadas pela sua (o Verstehen).
pertença a um processo temporal. 9) As ações humanas são ações que
3) D o positivism o, os historicistas tendem a fins, è os acontecimentos humanos
rejeitam a filosofia comtiana da história e a são sempre vistos e julgados na perspectiva
pretensão de reduzir as ciências históricas de valores precisos. Por isso, mais ou menos
ao modelo das ciências naturais, apesar de elaborada, sempre há uma teoria dos valores
os historicistas concordarem com os positi­ no pensamento dos historicistas.
vistas na exigência de pesquisa concreta dos 10) Por fim, deve-se recordar que, se
fatos empíricos. o problema cardeal dos historicistas é um
4) Com o neocriticismo, os historicis­ problema de natureza kantiana, no entanto,
tas vêem a função da filosofia como função para os historicistas, o sujeito do conheci­
crítica, voltada para a determinação das mento não é o sujeito transcendental, com
condições de possibilidade, isto é, o funda­ suas funções a priori, e sim homens concre­
mento, do conhecimento e das atividades tos, históricos, com poderes cognoscitivos
humanas. O historicismo estende o âmbito condicionados pelo horizonte e pelo contex­
da crítica kantiana a todo aquele conjunto to histórico em que vivem e atuam.
Primeira parte - y\ f i lo s o f i a d o s é c u lo a o s é c u lo X X

zzzz: II. Wilkel m Dil+key zzzzz


e a^crí+ica d a razão kistóHca '7

• Historiador das idéias e filósofo, Wilhelm Dilthey (1833­


O problem a
de Dilthey: 1911) teve, em sua vida de estudioso, uma preocupação constante:
como a da fundamentação da autonomia e da validade das ciências do
fundam entar espírito.
a autonom ia Tal preocupação é testemunhada por escritos como: Intro­
das ciências dução às ciências do espírito (1883); Idéias para uma psicologia
do espírito descritiva e analítica (1894); Contribuições para o estudo da
-^§1 individualidade (1895-1896); Estudos para a fundamentação das
ciências do espírito (1905); A construção do mundo histórico nas
ciências do espírito (1910). A contribuição principal de Dilthey
consistiu, de fato, em uma "crítica da razão histórica".

A diversidade • Tal crítica da razão histórica encontra seus inícios na Intro­


dos objetos dução às ciências do espírito. 1
tratados
Nessa obra Dilthey distingue as ciências do espírito das ciên­
como base
da prim eira
cias da natureza com base na diversidade dos objetos por elas
distinção tomados respectivamente em consideração: os fatos das ciências
entre ciências do espírito se apresentam à consciência "originalmente a partir
da natureza do interior, enquanto os das ciências da natureza se apresentam
e ciências à consciência, ao contrário, a partir do exterior".
do espírito
1 • A seguir Dilthey põe a psicologia analítica
mento das ciências do espírito; afirma que estas estudam tanto
as uniformidades como os fatos individuais, e que o "tipo" tem a
função de ligar estas duas realidades opostas do mundo humano; e salienta, sem­
pre sobre o tem a da compreensão dos outros, o papel fundamental do entender
(Verstehen), que consiste no "reviver" e no "reproduzir".
Em todo caso, na opinião de Dilthey, a solução mais ade­
A relação quada do problema referente à autonomia e à fundamentação
entre Erleben das ciências do espírito pode ser encontrada nos Estudos para a
(expressão) fundamentação das ciências do espírito e em A construção do
e Verstehen mundo histórico nas ciências do espírito.
(entender) O que caracteriza os fenômenos do mundo humano e que
como
reúne as ciências do espírito e fundam enta sua autonomia é a
fundam ento
das ciências relação - que não se dá no interior do mundo da natureza e das
do espírito ciências de caráter natural - entre Erleben (expressão) e Verstehen
-->§2-3 (entender): a vida dos indivíduos torna-se espírito objetivo, se
exprime e se objetiva em eventos e instituições (Estados, Igre­
jas, movimentos religiosos, textos filosóficos, teorias científicas,
sistemas éticos etc.) que o cientista social procura entender captando seu lado
interno; isso é bem possível, uma vez que entender é "um reencontro do eu no
tu ". E tal entender é um compreender obras e instituições de homens históricos,
que produzem valores e realizam objetivos, e cujas obras não são, portanto, como
em Hegel, espírito objetivo, fruto de uma razão absoluta.
Capitulo terceiro - CD his+oricism o a le m ã o / d e W rlk e lm D iltk e y a ^Vleirvecke

1 K u m o a o^iTioa ciências da natureza e as ciências do espírito


m s se diferenciam, antes de mais nada, por seu
d a c a z ã o k isté n c a
objeto. O objeto das ciências da natureza
é constituído pelos fenômenos externos ao
homem, ao passo que as ciências do espíri­
A obra de Wilhelm Dilthey (1 833­ to estudam o mundo das relações entre os
1911) representa uma articulada e tenaz indivíduos, mundo do qual o homem tem
tentativa de construção de “ crítica da razão consciência imediata.
histórica” . Em outros termos, a intenção de A diferença dos objetos de estudo
Dilthey é a de fundamentar a validade das implica uma diferença gnosiológica: é a
ciências do espírito (Geisteswissenschaften). observação externa que nos dá os dados das
E não devemos de modo nenhum esquecer ciências naturais, ao passo que é a observa­
que ele próprio foi historiador, como ates­ ção interna, isto é, o Erlebnis (“ experiência
tam seus trabalhos Vida de Schleiermacber vivida” ), que nos dá os dados das ciências
(1867-1870), A intuição da vida na Renas­ do espírito.
cença e na Reforma (1891-1900), A história E também são diferentes as categorias
do jovem Hegel (1905-1906), Experiência ou conceitos de que se servem as ciências do
vivida e poesia (sobre o romantismo, 1905) e espírito: as categorias de significado, objeti­
As três épocas da estética moderna (1892). vo, valor e assim por diante não pertencem
Já na Introdução às ciências do espírito às ciências da natureza, mas ao mundo
(que é de 1883), Dilthey sustentava que as humano, que tem seu centro no indivíduo
Primeira parte - y\ f ilo s o f ia d o s é c u lo X ^ X a o s é c u lo X X

e se configura — através das relações dos continuamente em sons, em gestos do ros­


indivíduos — em sistemas de cultura e de to, em palavras, e têm sua objetividade em
organizações sociais que possuem existência instituições, Estados, Igrejas e institutos
histórica. A estrutura do mundo humano, científicos: precisamente nessas conexões é
portanto, é uma estrutura histórica. que se move a história” .
Em Idéias para uma psicologia descri­ E o nexo entre Erleben, (“ expressão” )
tiva e analítica (1894) e nas Contribuições e Verstehen (“ entender” ) que institui a pecu­
ao estudo da individualidade (1895-1896), liaridade do mundo humano e fundamenta
Dilthey enfrenta respectivamente o pro­ a autonomia das ciências do espírito. Esse
blema da psicologia analítica (diferente da nexo não pode ser encontrado na natureza
psicologia explicativa de tipo positivista) nem nas ciências naturais. A vida, o Erleben,
como fundamento das outras ciências do torna-se espírito objetivo, isto é, se objetiva
espírito, e o problem a da relação entre em instituições (Estados; Igrejas; sistemas
uniformidade e identificação histórica: as jurídicos; movimentos religiosos, filosóficos,
ciências do espírito estudam tanto as leis literários e artísticos; sistemas éticos etc.).
e a uniformidade dos fenômenos como os E o entender, na referência retrospectiva,
acontecim entos em sua singularidade, e dá origem às ciências do espírito, que têm
o “ tipo” tem a função de ligar esses dois como objeto “ a realidade histórico-social do
opostos. Por outro lado, neste último es­ homem” . Realidade que tem, de fato, um
crito, Dilthey parece persuadido de que o lado externo investigável pelas ciências na­
Erlebnis não pode ser considerado como turais, mas cujo lado interno — o significado
fundamento exclusivo das ciências do espí­ ou essência — só pode ser alcançado pelas
rito: a experiência interna deve ser integrada ciências do espírito. E pode ser alcançado
com o Verstehen (entender), que é reviver porque, através do entender — que é “ um
(Nacherleben) e reproduzir (Nachbilden), encontro do eu no tu” —, o homem pode
porque só assim se terá a compreensão dos compreender as obras e as instituições dos
outros indivíduos. homens. Em suma, o entender é possível por­
que “ a alma anda pelos caminhos habituais,
nos quais já gozou e sofreu, sofreu e agiu em
situações de vida semelhantes” . Através de
f u n c la m e - n ia ç ã o
uma “ transferência interior” , que implica
d a s c iê n c ia s d o e s p írito um “ com sentimento” (Mitfühlen) e uma
“ penetração simpatética” , o homem pode
reviver várias outras existências.
Como se vê, à medida que avança, o
pensamento de Dilthey amplia seus horizon­
tes e os problemas se multiplicam, ligando-se
uns aos outros. Entretanto, o núcleo para o ; A k is to r ic id a d e constitutiva
qual todos esses problemas convergem e do d o m u n d o Inumano -
qual partem é sempre o da fundamentação
das ciências do espírito. Dilthey pergunta-
se nos Estudos para a fundamentação das A objetivação da vida é a primeira
ciências do espírito (1905): “ De que modo característica da estrutura do mundo histó­
as ciências do espírito podem ser delimitadas rico, devendo-se atentar para o fato de que
pelas ciências da natureza?” Onde estão a es­ o espírito objetivo de Dilthey não é, como
sência da história e sua diferença em relação para Hegel, a manifestação de uma razão
às outras disciplinas? Pode-se alcançar um absoluta, mas é o produto da atividade de
saber histórico objetivo? N a obra citada e homens históricos. Tudo saiu da atividade
em outra, intitulada A construção do mundo espiritual dos homens e, portanto, diz Dil­
histórico nas ciências do espírito (1910), ele they, tudo é histórico.
apresenta em forma definitiva seu projeto de A segunda característica fundamental
fundamentação das ciências do espírito. do mundo humano é a que Dilthey chama
Operando uma distinção entre Erlebnis de “ conexão dinâmica” , que se distingue da
e Erleben (o Erlebnis é uma etapa do Erle- conexão causai da natureza enquanto pro­
ben, isto é, da vida), Dilthey sustenta que duz valores e realiza objetivos. O indivíduo,
aquilo que é comum às ciências do espírito, as instituições, as civilizações e as épocas
ou seja, o que constitui seu domínio, é isto: históricas são conexões dinâmicas. E, assim
“ Os estados de consciência se expressam como o indivíduo, da mesma forma todo
A obra de Dilthey (aqui em uma fotografia nos anos da maturidade)
é tentativa articulada e tenaz de construir uma “crítica da razão histórica".

sistema de cultura e toda comunidade tem O homem, conclui Dilthey, é um ser


seu próprio centro em si. E essa “ autocentra- histórico. E históricos são todos os seus
lidade” , intrínseca a toda unidade histórica, produtos culturais, inclusive a filosofia e,
faz com que essas unidades históricas (os sis­ portanto, também a metafísica.
temas de cultura, os sistemas de organização Uma função do filósofo consciente é a
social, as épocas históricas) se caracterizem de dar vida a uma “ filosofia da filosofia” ,
por um horizonte fechado, que torna as entendida como exame crítico das possibi­
diversas histórias irredutíveis, tornando-as lidades e dos limites da filosofia. E é assim
singularmente compreensíveis apenas com que a razão histórica se transform a em
a condição de que possamos compreender crítica “histórica” da razão. N ão existem
os valores e os objetivos particulares que as filosofias que valham sub specie aeternitatis.
tipificam. '
Primeira parte - yv filosofia d o s é c u lo a o s é c u lo X X

III. O ki s+oricismo a le m ã o
eKvtre.WilKe.lm D iltkey e ]\Ac\yc W e b e r

• Contrapor a "natureza" ao "espírito", como fez Dilthey, é simplesmente


um erro: é o que afirma o neokantiano Wilhelm Windelband (1848-1915) em His­
tória e ciência natural (1894). Tal distinção é uma insustentável
W indelband: tese metafísica; e à distinção das ciências operada por Dilthey
as ciências sobre uma base objetiva (mundo humano, mundo da natureza),
distinguem-se W indelband contrapõe uma distinção sobre base metodológica
sobre base e distingue as ciências em ciências nomotéticas (as que buscam
m etodológica determinar a regularidade dos fenômenos) e ciências idiográfkas
->S 1 (atentas à especificidade dos fenômenos particulares). E qualquer
evento - pertinente ao mundo da natureza ou ao mundo humano
- pode ser estudado ou como caso particular de uma uniformidade ou então para
compreender seu caráter único e irrepetível.

• Para Heinrich Rickert (1863-1936), a mesma re


Rickert:
o papel
se natureza quando "a consideramos em relação a© geral, e se
de referência torna história quando, ao contrário, a consideramos em relação
aos valores ao particular". Esta é a tese sustentada por Rickert em Os limites
no trabalho da formação dos conceitos científicos (1896-1902). E uma posterior
do historiador e importante idéia de Rickert, que veremos também em Weber, é
-> § 2 que no oceano sem fim dos eventos e das instituições humanas o
historiador escolhe como objeto de estudo os fatos e os aconteci­
mentos investidos e, portanto, tornados "interessantes" pelos valores da civilização
à qual ele pertence. Trata-se, justamente, da "relação aos valores".

• Georg Simmel (1858-1918) é um estudioso de grande fôlego e são múltiplas


as temáticas por ele tratadas. Pois bem, no que se refere à historiografia, ele põe o
problema em termos kantianos: como é possível a história? Quais
Simmel: são as condições que tornam possíveis e fundamentam autono­
"Um fato mia e validade das ciências histórico-sociais? A tal interrogação
é im portante Simmel responde, diversamente de Kant e dos neokantianos,
porque que as categorias da pesquisa histórica não são a priori válidas
interessa para a eternidade, pois elas próprias são produtos históricos de
a quem homens históricos, produtos que mudam com a história. Por
o considera " conseguinte, não tem nenhum sentido falar de fatos históricos
-^§3 "objetivamente" importantes. "Um fato - escreve Simmel - é
importante porque interessa a quem o considera".

• “As civilizações são organismos-, a história universal é sua biografia complexi-


va": lemos isso no Ocaso do Ocidente, a obra que tornou famoso Oswald Spengler
(1880-1936). Toda civilização é um organismo; e, como os organismos, as civilizações
"aparecem, amadurecem, fenecem e não voltam mais". Toda civilização-acrescenta
Spengler - é um mundo fechado: com sua moral, sua filosofia e
Spengler: seu direito próprios. E as civilizações, como os organismos, estão
as civilizações destinadas ao ocaso. Uma vez realizado seu ciclo, "a civilização
são como se enrijece repentinamente, dirige-se para a morte, seu sangue
os organismos: se coagula, suas forças faltam e ela torna-se uma civilização em
nascem,
declínio". E este era o caso, aos olhos de Spengler, da civilização
crescem
e depois morrem
ocidental, doravante em seu ocaso por causa da prevalência da
-> § 4 democracia e do socialismo, e da veneração, na democracia, do
dinheiro e do poder.
Capitulo terceiro - CD k is + o r ic is m o a le m ã o , d e W i lK e l m X ^ il+ K e y a

• Um dos problemas fundamentais da especulação filosófica de Ernst Troeltsch


(1865-1923) consistiu na tentativa de conciliar o condicionamento histórico de toda
forma de religião com a pretensão de toda religião de possuir uma
validade universal. Ele chegou à conclusão, em A absolutez do Troeltsch:
cristianismo e a história das religiões (1902), de que a historicidade como conciliar
de uma religião não a priva de modo algum do valor universal e historicidade e
de sua relação com a transcendência. E ainda, em O historicismo universalidade
dos valores
e sua superação (1928), Troeltsch afirma que os critérios absolutos
religiosos
que são a norma moral e a Revelação cristã não se dissolvem em ^ § 5
suas múltiplas e diversificadas manifestações históricas.

• Um dique contra o relativismo expansível gerado pelo historicismo pretende


ser tam bém a filosofia de Friedrich Meinecke (1862-1954). Contrário ao "veneno
corrosivo" do relativismo, Meinecke - autor de Razão de Estado
na história moderna (1924) e de A origem do historicismo (1936) Meinecke:
- rejeita as soluções que se movem em direção horizontal (abso- o "relativo",
lutizar o passado, como o fazem os românticos; ou absolutizar o visto como
futuro, como fazem os sacerdotes do progresso); ele sustenta que desejado
o caminho para neutralizar o veneno do historicismo é o caminho p o r Deus,
vertical. É preciso sair da corrente para olhar a história a partir do torna-se como
alto, como desejada por Deus. Toda época, embora historicizada, que "abso luto'
—> § 6
"está em relação imediata com Deus".

W in d e lb a n d e a d istin ç ã o podia permanecer estranha ao desenvolvi­


e n tre c iê n c ia s n o m o té tic a s
mento portentoso das ciências históricas,
sob pena de correr o risco de se defasar
e c i ê n c i a s id io 0r á f i c a s em relação a efetivas aquisições científicas.
M as podem-se considerar satisfatórios os
resultados conseguidos por Dilthey em seu
Depois de Dilthey, a crítica da razão trabalho? Sobre quais bases sólidas Dilthey
histórica daria passos substanciais adiante apoiava a distinção entre ciências da natu­
— que ainda causam impacto por sua ori­ reza e ciências do espírito?
ginalidade e validade — com M ax Weber. Windelband rejeita com firmeza tal dis­
M as, entre Dilthey e Weber, situa-se um tinção, por se tratar de distinção metafísica
grupo de pensadores que, movendo-se em infundada que contrapõe a “ natureza” ao
torno dos problemas levantados e discutidos “ espírito” . Conseqüentemente, Windelband
por Dilthey, introduzem algumas novidades contrapõe à distinção de base objetual (na­
metodológicas (como é o caso de Windel­ tureza e mundo humano) de Dilthey uma
band e de Rickert), ou então levam às últi­ distinção de método.
mas conseqüências o relativismo de Dilthey Windelband distingue as disciplinas
(o que fazem Simmel e Spengler), ou ainda científicas em ciências nomotéticas e ciências
reagem a esse relativismo propondo valores idiográficas. As primeiras são as que procu­
absolutos (caminho trilhado sobretudo por ram determinar as leis gerais que expressam
Troeltsch e Meinecke, mas também pelo a regularidade dos fenômenos; as segundas,
último Windelband e por Rickert). ao invés, são as ciências que voltam sua
W ilhelm W indelband (1848-1915) atenção para o fenômeno singular, visando
— representante da Escola de Baden jun­ compreender sua especificidade e indivi­
tamente com Rickert, como já sabem os dualidade. E qualquer evento — pertença
— enfrenta o problema do conhecimento ele ao mundo da natureza ou ao mundo
histórico como neocriticista: para ele “ a humano, isto é, ao mundo do espírito — só
ciência histórica constitui o problema da pode ser pesquisado como um caso particu­
crítica, a exemplo da pesquisa natural” . Em lar de uma lei geral, de uma regularidade, ou
1894, no escrito História e ciência natural, então para compreender seu caráter único,
ele faz questão de precisar que a filosofia não peculiar, irrepetível. gffST T I
Primeira parte - y\ filo so fia d o s é c u lo j)CI7,X a o sécu Io XX

jglp "RicUert: Todavia, no início, concordando com os


a relação com os valores neocriticistas da Escola de Baden, ele ha­
via, por exem plo, atribuído ao dever ser
e a a u fo n o m ia a independência em relação às situações
do conKecimento Kistórico históricas. E nos P roblem as fundam en­
tais de filosofia (1910), além do sujeito
e do objeto, Simmel propõe um terceiro
A autonom ia do conhecimento his­ reino das idéias, e um quarto reino do
tórico é o problema de fundo de Heinrich dever ser.
Rickert (1863-1936). Rickert retoma de Simmel põe a questão da história, em
W indelband a distin ção entre ciências termos kantianos, como o problema das
nomotéticas e ciências idiográficas, assim condições que tornam possível e funda­
escrevendo em O s limites da form ação mentam as ciências histórico-sociais em sua
dos conceitos científicos (1896-1902): “A autonomia e validade. M as, contra Kant
mesma realidade torna-se natureza quando e os neokantianos, Simmel afirma que os
a consideramos em referência ao geral, e elementos do conhecimento se encontram
torna-se história quando a consideramos na experiência. Em suma, a possibilidade
em referência ao particular” . da história não reside em condições a priori
Nesse ponto, porém, surge um proble­ independentes da experiência. As catego­
ma posterior: nem todos os acontecimentos rias da pesquisa histórica são produto de
individuais suscitam o interesse do histo­ homens históricos, e elas próprias mudam
riador, mas apenas os que têm particular com a história. Desse modo, a realidade
importância ou significado. O historiador histórica pode ser interpretada à luz de di­
deve escolher. Todavia, com base em qual versas categorias. N ão há sentido, portanto,
critério ele pode operar suas escolhas? em falar de fatos históricos “objetivamente”
Para Rickert, o critério de escolha está importantes. Escreve Simmel: “ Um fato
na relação dos fatos individuais com o valor. é importante porque interessa a quem o
É a relação com os valores que constitui a considera” .
base da elaboração conceituai da história. O Portanto, também para Simmel é a
historiador descura tudo o que não tem valor. relação com o valor que atua como critério
Isso não significa que o historiador de escolha dos fatos históricos, só que esses
deve pronunciar juízos de valor sobre o valores não são inerentes aos fatos, e sim
que pesquisa, e sim que ele reconstrói um são os valores do historiador, j j j g j j s ]
acontecimento somente porque este tem
valor. “ O conceito de individualidade his­
tórica é constituído pelos valores captados uJLm Spengler
e tornados próprios pela civilização à qual mÊÊÈm, u
ele pertence. O procedimento histórico é e o ocaso
referência contínua ao valor” . Em suma, do Ociden+e”
o conhecimento histórico encontra o seu
fundamento na relação com os valores. Por
isso, o objeto do conhecimento histórico é Decadência do Ocidente foi a obra
definido como Kultur (cultura), e os valores que tornou famoso Oswald Spengler (1880­
aos quais ele se refere são definidos como 1936). Nela, a ruína da Alemanha tornou-se
Kulturwerte (valores culturais). São esses o “ ocaso da civilização ocidental” . Spengler
os valores que o homem realiza no devir torna metafísica a distinção entre natureza
histórico. K ffg fõ l e história. A natureza é dominada por uma
necessidade mecânica, a história por uma
necessidade orgânica. E é precisamente
por isso que a história pode ser entendida
Simmel: através da experiência vivida ou Erlebnis,
os valores do kis+oriador vista como a penetração intuitiva das for­
mas assum idas pelo desenvolvimento da
e o rela+ivismo dos jatos história. Diz Spengler: “ A humanidade não
tem nenhum fim, nenhuma idéia, nenhum
plano, do mesmo m odo como não têm
O resu ltad o fin al da filo so fia de um fim a espécie das borboletas ou a das
Georg Simmel (1858-1918) é o relativismo. orquídeas. A ‘humanidade’ é conceito zoo­
Capítulo terceiro - O k isfo H r ism o a le m ã o , d e W ilk e lm D ilfk e y a A ^ e in e ck e

lógico ou então é uma palavra desprovida que são inteiramente diversos dos valores
de sentido” . das outras civilizações.
Em lugar “ daquele desolado quadro Nisso consiste o absolutismo relativo
da história universal como desenvolvimento dos valores defendidos por Spengler: os
linear” , Spengler vê “ o espetáculo de uma valores são absolutos no interior de uma
pluralidade de civilizações poderosas que civilização, mas referem-se apenas a essa
florescem com força primigênia do útero da civilização. E as civilizações, como os orga­
terra materna” . “As civilizações são orga­ nismos, destinam-se à decadência: “ Quando
nismos; a história universal é sua biografia o fim é alcançado e a plenitude das possibili­
total” . dades interiores chega a se realizar comple­
Toda civilização, portanto, é um or­ tamente em direção ao exterior, a civilização
ganismo. E, assim como os organismos, as se enrijece repentinamente, encaminha-se
civilizações “ aparecem, amadurecem, de­ para a morte, seu sangue se coagula, suas
caem e não voltam m ais” . E toda civilização forças lhe faltam e ela se torna civilização
tem um sentido fechado em si mesmo: uma em declínio” .
moral, uma ciência, uma filosofia e um di­ Aos olhos de Spengler parecia em de­
reito têm sentido absoluto dentro da própria clínio a civilização ocidental, em virtude da
civilização, mas, fora dela, não têm nenhum. crise da moral e da religião, pela prevalência
Diz Spengler: “ Há tantas morais quantas da democracia e do socialismo e devido à
são as civilizações, nem mais nem menos” . equiparação, na democracia, entre dinheiro
Toda civilização cria seus próprios valores, e poder político.

Oswald Spengler (1880-1936)


em um desenho de Grossmann.
Spengler alcançou notoriedade
repentina com a publicação do livro
Ocaso do Ocidente,
no qual a queda da Alemanha
é identificada com o ocaso
de toda a civilização ocidental.
Primeira parte - f ilo s o f i a d o s é c u lo X ^ ? X s é c u lo X X

A ^ e in e c U e
l â i i ~^^o e ^ s c ^
e o caráter absoluto e a busca do eterno
dos valores religiosos no instante

N o quadro do historicismo foram Er- Friedrich Meinecke (1862-1954) não


nst Troeltsch e Friedrich Meinecke que en­ está muito distante da posição de Troeltsch.
frentaram a temática complexa das relações Historiador da Alemanha moderna, Meine­
entre o devir histórico e os valores eternos cke, mediante importante estudo sobre a Ra­
da religião. zão de Estado na história moderna (1924),
Substancialmente, a questão funda­ defronta o problema do historicismo. E o
mental de Troeltsch (1865-1923) é a que problema do historicismo é que ele suscitou
brota, por um lado, da consciência histórica um relativismo que considera toda forma­
que nos mostra o condicionamento de toda ção histórica individual, toda instituição,
forma de religião e, por outro lado, da pre­ toda idéia e toda ideologia somente como
tensão da religião de possuir uma validade momento transitório no curso infinito do
absoluta. Troeltsch rejeita tanto a solução devir. Para o historicismo, portanto, todas
positivista, que fazia da religião o estágio as coisas, sem exceção, só têm valor relativo.
primitivo da humanidade, como a solução N o historicismo, portanto, “ há veneno
romântico-idealista, que via nas diversas reli­ corrosivo” . N a opinião de Meinecke, há ape­
giões a realização de uma essência universal. nas três caminhos para neutralizar esse veneno.
Para Troeltsch, as religiões são fatos a) O primeiro é a fuga romântica no
históricos individuais, inclusive o cristianis­ passado.
mo. M as, como ele observa em O caráter b) O segundo é a fuga para o futuro.
absoluto do cristianismo e a história das O caminho romântico absolutiza uma época
religiões (1902), a condicionabilidade de um do passado (a época de ouro), ao passo que
fenômeno histórico não o priva de validade. o outro expressa o otimismo do progresso.
A religião é historicamente condicionada e, M as ambos os caminhos estão na corrente
apesar de tudo, ela, na opinião de Troeltsch, da história, diz Meinecke. Tanto indo contra
mostra — por meio de fenômenos como o a corrente como indo no rumo da corrente,
surgimento do cristianismo e da Reforma sempre se está procedendo em direção hori­
— uma causalidade autônoma. zontal, sempre dentro da corrente.
Essa independência da religião em re­ c) N a opinião de Meinecke, porém,
lação à causalidade natural é interpretada há um terceiro caminho para neutralizar o
por Troeltsch como a presença de Deus veneno do historicismo: é o caminho verti­
no finito. E, segundo ele, o cristianismo é cal. E preciso sair da corrente para olhá-la
superior às outras religiões precisamente de cima. O “ relativo” , visto como desejado
pelo seu reconhecimento explícito da ação por Deus, apresenta-se como “ absoluto” .
de Deus na história.
Capítulo terceiro - CD k isto H cism o ale m Ô o , d e W ilh e lm D iltk e y a A A e m e ck e

■ H isto ricism o . A primeira acepção atribuída a este termo é a de que a


realidade é história e esta história é guiada por alguma lei necessitante. Uma
doutrina desse tipo encontra-se em Hegel: é o historicism o absoluto. Com a
teoria dialética invertida, Marx propôs um historicism o m aterialista.
A história é desenvolvimento de eventos;
e existe uma lei que determina seu curso.
Entendendo o historicismo nessa acepção
- isto é, como a pretensão de ter captado as
leis que determinam o desenvolvimento da
história humana em sua totalidade -, Karl
Popper o tornou objeto de suas devastado­
ras críticas, enquanto prova que é impossí­
vel a previsão do futuro e que, portanto,
é ilusório crer ter chegado à posse de leis
inelutáveis do curso da história humana.
Há também um historicism o fideístico, como
o proposto, entre outros, por Meinecke
e por Troeltsch, para os quais na história
agem valores transcendentais aí inseridos
por Deus. Este é um historicismo metafísico
ou, melhor, te oló gico.
Como metafísico, embora em uma direção Friedrich Meinecke
com pletam ente diversa, o h is to ric is m o
re la tiv o é defendido - como se viu nas páginas precedentes - por Oswald
Spengler, para o qual toda civilização é um organismo, uma configuração
compacta e fechada, com sua moral, sua filosofia e seu direito próprios:
"Há tantas morais - afirma Spengler - quantas são as civilizações, nem mais
nem menos".
Diferentes dos agora acenados são os problemas discutidos pela corrente
de pensamento denominada historicism o crítico, problemas que se referem,
kantianamente, às condições de possibilidade, autonomia e validade das
ciências histórico-sociais.
Dilthey discute sobre a diferença entre ciências da natureza e ciências do
espírito, e no fim encontra na relação entre Erleben, expressão , e Verstehen,
e nte nd e r, a característica essencial do mundo humano e ao mesmo tempo
o fundamento das ciências do espírito.
Windelband, e com ele Rickert, traça a importante distinção entre ciências
nomotéticas e ciências idiográficas.
Weber delineia a teoria do "tipo ideal",
discute sobre o peso das diversas causas
particulares de um evento, intervém com
extrema clareza sobre o problem a da
"avaliabilidade" nas ciências histórico-
sociais, des-dogmatiza o materialismo his­
tórico.
E problemas que atravessam o historicismo
crítico são o da referência aos valores, o do
Verstehen (compreender) em oposição ao
Erklàren (explicar causalmente), o da empa­
tia (e de suas críticas), e outros ainda. Mas
o que foi dito é suficiente para estabelecer
a diversidade específica do h is to ric is m o
crítico de outros tipos de historicismo, com
os quais, por outro lado, pouco a pouco ele
entrou em contato. Heinrich Rickert
Primeira parte - jA filosofia d o s é c u lo X^X q° s é c u lo XX

consentimento e de penetração simpatética,


embora seja evidente sua conexão pelo fato
D il t h e y de que o consentimento reforça a energia dp
reviver. Nós olhamos para a importante função
desse reviver pela nossa possibilidade de nos
apropriarmos do mundo espiritual. 61a repousa
sobre dois momentos. Todo pressentimento
E l "Reviver" vivo de um ambiente e de uma situação ex­
para "compreender" terna suscita em nós o reviver, e a fantasia
pode reforçar ou diminuir o peso das formas dê
comportamento, das forças, dos sentimentos,
O "reviver" eqüivale ò "nossa possibilida­ das tendências, das direções ideais contidôs
de de nos apropriarmos do mundo espiritual". em nossa ligação de vida, reproduzindo assim
''Diante dos limites impostos pelas circuns­ toda vida psíquica de outrem. [...]
tâncias se abrem a ele [ao homem] outras € nesse reviver está uma parte importante
belezas do mundo e outros regiões da vida, da aquisição de coisas espirituais, das quais
que ele jam ais pod e alcançar". somos devedores ao historiador e ao poeta.
O curso da vida produz em todo homem uma
constante determinação em que são limitadas
Sobre a base desta transferência interior, as possibilidades que aí estão contidas. A
desta transposição, apresenta-se agora a for­ formação de seu ser determino sempre todo
ma mais elevada em que a totalidade da vida seu desenvolvimento posterior. £m poucas pa­
psíquica age no entender: a reprodução ou o lavras, ele experimenta sempre, ele pode tomar
reviver. O entender é em si uma operação inver­ em exame o modo em que está constituída sua
sa ao cursa dinâmico: uma penetração completa situação ou a forma de sua ligação adquirida,
está ligada ao fato de que a compreensão de modo que o âmbito de novos olhares sobre
proceda sobre a mesma linha do devir. €la a vida, e sobre as modificações externas de
avança, procedendo continuamente, com o curso sua existência pessoal, é limitado. O entender
da vida, e assim se alarga o processo de trans­ abre-lhe amplo campo de possibilidades, as
ferência interior, de transposição. O reviver é o quais não existiam na determinação de sua vida
mover-se sobre a linha do devir. Dessa forma real. A possibilidade de viver imediatamente,
seguimos a história, ou um acontecimento em em minha existência, estados religiosos é para
uma terra longínqua ou alguma coisa que ocorre mim como para a maior parte dos homens de
no espírito de um homem que esteja próximo hoje bastante restrita. Mas quando folheio as
de nós. Sua completude é atingida quando o cartas e os escritos de Lutero, os relatos de
acontecimento é animado pela consciência do seus contemporâneos, as atas das conferências
poeta, do artista ou do historiador, e está pre­ religiosas e dos concílios, assim como de sua
sente em forma durável diante de nós, fixado narração oficial, eu vivo um processo religioso
em uma obra. de tal força eruptiva, de tal energia, que na
A poesia lírica torna assim possível, na vida e na morte isso está além de toda possi­
sucessão de seus versos, reviver uma conexão bilidade de drlebnis para qualquer homem de
de Çrlebnisse: não a real que anima o poeta, nossos dias. Mas posso, porém, revivê-lo. €u
mas a que, sobre sua base, o poeta põe na me transfiro em tais circunstâncias, e tudo nele
boca de uma pessoa ideal. A sucessão das impele a um desenvolvimento extraordinário
cenas em uma obra teatral torna possível revi­ da vida religiosa do espírito. Vejo nos claustros
ver suas partes com base no curso da vida das uma técnica de contato com o mundo invisível,
pessoas que aí se apresentam. A narração do que dá às almas dos monges uma constante
romancista ou do historiador, que segue o curso orientação para as coisas transcendentes:
histórico, suscita em nós um reviver: o triunfo do as controvérsias teológicas se tornam aqui
reviver acontece quando nele os fragmentos de questões de existência interior. Vejo como no
um curso de vida são completados de modo mundo leigo se prepara em inumeráveis canais
tal que acreditamos ter diante de nós uma - púlpitos, confessionários, cátedras, escritos
continuidade. - aquilo que se elabora nos claustros; e ob­
Todavia, sobre o que se apóia este revi­ servo como concílios e movimentos religiosos
ver? O processo nos interessa aqui apenas em tenham aberto, em todo lugar, o caminho para
sua função, e não deve ser dada uma explica­ a doutrina da igreja invisível e do sacerdócio
ção psicológica dele. Por isso não ilustramos universal, como ela está em relação com a
sequer a relação deste conceito com os de libertação da personalidade na vida mundana;
, . 47
Capitulo terceiro - O k is to n c is m o a le m ã o , d e W ilh e tm U iltk e y a yVtí’ ii\i'í‘ l<L' ----- „

0 como tudo isso S0 afirme no solidão dos c0las O indivíduo, as comunidades e as obras
0 nas lutas dos forças agora d0scritas diante em que se transpuseram a vida e o espírito,
dos ©stímulos da Igr0ja. O cristianismo como constituem o domínio externo do espírito. Cssas
forço capaz d® incidir sobre a própria vida da manifestações da vida, assim como aparecem
família, na profissão, nas relaçõ0s políticas: no mundo externo diante da compreensão,
0Sta é uma potência nova qu© s© apresenta estão quase inseridas na ligação da natureza.
q o 0spírito da época nas cidad0s ou em todo Sempre nos circunda esta grande realidade
lugar em qu® S0 r0aliz0 um trabalho superior, externa do espírito, a qual é uma realização do
©m Hans Sachs ou 0m Dür0r.1 Çnquanto Lutero espírito no mundo sensível, da fugaz expressão
pertence ao ápice desse movimento, podemos até o domínio secular de uma constituição ou de
viv®r imediatamente seu desenvolvimento com um texto jurídico. Toda manifestação particular
base em uma conexão que remonta daquilo da vida representa, no campo de tal espírito
que é geralmente humano para a esfera reli­ objetivo, um elemento comum. Toda palavra,
giosa e desto, por meio de suas determinações todo proposição, todo gesto e toda fórmula
históricas, até suo individualidade. € assim esse de cortesia, toda obra de arte e todo fato
processo nos desvela um mundo religioso que histórico são compreensíveis apenas enquanto
está presente nele e em seus companheiros uma comunhão une quem neles se exprime com
dos primeiros tempos da Reforma, ampliando quem os entende; o indivíduo vive, penso e age
nosso horizonte por m0io de possibilidades continuamente em uma esfera de comunhão, e
de vida qu© apenas de tal modo se tornam apenas nela pode penetrar. Tudo aquilo que
acessíveis a nós. O homem determinado pelo é entendido traz consigo, por assim dizer, a
interior pode, portanto, viver na imaginação marca de sua cognoscibil idade sobre a base
várias outras existências: diante dos limites im­ de tal comunhão: vivemos nessa atmosfera, que
postos pelas circunstâncias abrem-se para ele nos circunda constantemente, e nela estamos
outras belezas do mundo e outras regiões do imersos. ím todo lugar estamos em casa neste
vido, que ele jamais pode alcançar. €m termos mundo histórico a ser entendido, penetramos
gerais, o homem ligado e determinado pela seu sentido e seu significado, estamos nessas
realidade da vida liberta-se não só por meio mesmas relações comuns.
da arte - o que aconteceu com muita freqüên­ A mutação das manifestações da vida,
cia - mas também mediante a compreensão que agem sobre nós, nos impele continuamen­
daquilo que é histórico. te a uma nova compreensão; mas elo tem, ao
UJ. Dilthey, mesmo tempo, lugar também no entender, pois
Novos estudos sobre as ciências do espírito. toda manifestação da vida e sua compreensão
estão ligadas a outras, dando lugar a um mo­
vimento que acontece segundo as relações de
afinidade dos indivíduos dados com o todo. 6,
crescendo as relações entre aquilo que é afim,
aumentam ao mesmo tempo as possibilidades
As ciências do espírito de generalização já encerradas na comunhão
entendem o sentido como determinação daquilo que é entendido.
No entender está presente também uma
de um mundo humano qualidade posterior da objetivaçõo da vido,
histórico e objetivado que determina tanto a articulação conforme o
afinidade como a tendência da generalização.
A objetivaçõo da vida contém em si uma multi­
Objetivaçõo do mundo do vido e ciêndo plicidade de relações articuladas. Da distinção
do espírito: "Tudo oqui surgiu pela atividade das raças até a diversidade das formas de
espiritual [...]. Da repartição das árvores em expressão e dos costumes em um tronco de
um parque, da ordem das casas em uma rua, povo, aliás em uma cidade, há uma articulação
do instrumento do trabalhador manual até a de diferenças espirituais condicionado natural­
sentença no tribunal, tudo ao nosso redor, mente. Diferenças de outro tipo se apresentam
em todo momento, aconteceu historicamen­ nos sistemas de cultura, e outras separam as
te". 6 este mundo da vida objetivado é o épocas entre si: em poucas palavras, muitas
mundo que as ciências do espírito procuram
compreender: "Seu âmbito se estende como
o entender, e o entender tem seu objeto
'Hans Sachs (1494-1576), poeta e mestre cantor em
unitário na objetivaçõo da vida". IMuremberga, a cidade em que viveu o grande pintor fílbrecht
Dürer (1471-1528).
Primeira pcirtc ;A filosofia d o s é c u lo X^X a o s é c u lo XX

linhos que delimitam o partir d® algum ponto d® produzida independentemente da atividade do


visto âmbitos devida afins atravessam o mundo ©spírito. Tudo aquilo ©m que o homem, operan­
do espírito objetivo e nele se entrecruzam. A do, imprimiu sua marco, constitui o objeto das
plenitude da vida se manifesta em inumeráveis ciências do espírito.
nuanças e é compreendida por meio do recurso £ também a expressão "ciência do espírito"
a tais diferenças. recebe neste ponto suo justificação. €stamos no
Por meio da idéia de objetivação da vida discurso passado do espírito das leis, do direito,
chegamos pela primeira vez a lançar um olhar da constituição: agora podemos dizer que tudo
na essência daquilo que é histórico. Tudo aqui aquilo em que o espírito se objetivou entra no
surgiu da atividade espiritual e traz, portanto, âmbito das ciências do espírito.
o caráter de historicidade, inserindo-se, como UJ. Dilth®Y,
produto da história, no próprio mundo sensível. f l construção do mundo histórico
Do repartição das árvores em um parque, da nos ciências do espírito,
ordem das casas em uma rua, do instrumento em Crítico da razão histórico.
do trabalhador manual até a sentença no tri­
bunal, tudo ao nosso redor, em todo momento,
aconteceu historicamente. Aquilo que o espírito
insere hoje de seu caráter na própria manifes­
tação de vida, amanhã, quando está diante, é
história. Gnquanto o tempo procede, estornos WlNDELBAND
cercados pelas ruínas de Roma, pelas catedrais,
pelos castelos independentes. A história não é
nada de separado da vida, nado de distinto do
presente por sua distância temporal.
Olhemos o resultado: as ciências do e s­
3 Ciências nomotéticas
pírito têm, como seu dodo complexivo, a obje­ e ciências idiográficas
tivação da vida. Mas, enquanto o objetivação
da vida se torna para nós algo de entendido,
ela encerra sempre, enquanto tal, a relação H divisão das ciências, com base na di­
do exterior com o interior. Por isso tal objeti­ versidade dos objetos pesquisados, em ciên­
vação está em todo lugar ligada no entender cias da natureza e ciências do espírito não se
ao €rleben, em que a unidade da vida se dá mantém, fí psicologia é ciência da natureza
a própria forma e pode ser distinto de todas ou ciência do espírito? Fundada e válida
as outros. A partir do momento que aqui se é, ao contrário, a divisão das ciências com
encontra o dado das ciências do espírito, veri­ base metodológica em ciências nomotéticas
fico-se também que tudo aquilo que é estável 0 ciências idiográficas: "umas são ciências
e estranho, em relação às imagens do mundo da lei, as outras ciências do acontecimento;
físico, deve ser pensado como algo de dado aquelas ensinam aquilo que sem pre existe,
nesse campo. Todo o dado aqui brotou fora 0, estas aquilo que uma vez existiu.
portanto, é histórico: é entendido e, portanto,
contém em si um elemento comum: é conhecido
enquanto é entendido, e contém em si uma Quanto ò divisão destas disciplinas diri­
reunião do múltiplo, pois já a interpretação gidas ao conhecimento do real, hoje é familiar
da manifestação da vida no entender superior a todos a distinção entre ciências naturais e
apóia-se sobre ele. Também o procedimento ciências do espírito: eu não a considero, nesta
de classificação de tais manifestações está, forma, feliz. Natureza e espírito é uma antítese
portanto, já encerrado dentro dos dados dos objetiva que prevaleceu no ocaso do pensa­
ciências do espírito. mento antigo e nos primórdios do medieval, e
£ aqui se completa o conceito dos ciências que em toda a suo aspereza foi conservado no
do espírito. Seu âmbito estende-se como o metafísica recente desde Descartes e Spinoza
entender, e o entender tem seu objeto unitário até Schelling e Hegel. Porém, se interpreto
no objetivação da vida. Assim, o conceito de justamente a otitude da filosofia moderna e as
disciplina espiritual é determinado, conforme conseqüências da crítica teórica, esta separa­
o âmbito dos fenômenos que caem sob ela, ção, embora tendo permanecido no modo geral
por meio da objetivação da vida no mundo de pensar e de se exprimir, não seria agora
0xt0rno. Apenas aquilo que o espírito criou, mais admitida com tão tranqüila segurança de
ele o entende. A natureza, isto é, o objeto modo a poder constituir sem mais a base de
do conhecimento natural, encerra a realidade uma classificação. Além disso, a esta antítese
, . 49
Capítulo terceiro - O kisto ricism o a le m ã o , d e W ilK e lm D iltK ey a AAei n ecU e - —

dos objetos nõo corresponde uma igual antítese apodítico; a das outras, a proposição geral
dos modos do conhecimento. assertiva. [...]
Com efeito, também locke levou o dua­ Assim podemos dizer: as ciências empí­
lismo cartesiano para a fórmula subjetiva que ricas procuram no conhecimento do real ou o
contrapõe a percepção externa à percepção geral na forma da lei de natureza, ou o particular
interior - sensation e réfíection - como dois em sua figura historicamente determinada; ora
órgãos distintos para o conhecimento, de um consideram a forma estável, ora o conteúdo par­
lado do mundo físico exterior, da natureza, do ticular, determinado em si mesmo, do acontecer
outro do mundo interno do espírito; ora, a crítica real. Umas são ciências da lei, as outras são
do conhecimento faz vacilar temerosamente ciências do acontecimento; aquelas ensinam 0
esta concepção e põe em dúvida que se possa que sempre existe, estas aquilo que uma vez
admitir uma "percepção interna” como modo existiu. O pensamento científico é - se posso
de conhecimento particular, e muito menos que compor uma expressão nova - no primeiro caso
unicamente sobre elo se fundem as assim cha­ nomotético-, no segundo, idiográfico. Se preferir­
madas ciências do espírito. Mas a incongruência mos, ao contrário, servirmo-nos de expressões
da divisão objetiva e formal é evidente, prin­ familiares, podemos falar do contraste entre
cipalmente por outro motivo. Acontece, com as ciências naturais e as disciplinas históricas,
efeito, que uma ciência empírica de primeiro porém sempre tendo presente que se classifi­
plano, como a psicologia, não possa ser ligada ca a psicologia, sempre do ponto de vista dò
nem às ciências da natureza nem às ciências do método, sem nenhuma dúvida entre as ciências
espírito: em relação a seu objeto deveria ser naturais.
caracterizada apenas como ciência do espírito, M as o contraste metodológico define
e em certo sentido muito mais como a base de apenas a tratação e nõo o conteúdo do saber.
todas as outras, enquanto, ao contrário, seu Permanece possível, ou acontece efetivamente,
procedimento e método inteiro é de cima a que as mesmas coisas possam ser objeto de
baixo o próprio das ciências naturais. Por isso uma pesquiso nomotético e ao mesmo tempo
a psicologia foi chamada de "ciência natural do também de uma pesquisa idiográfico. Isso se
sentimento interno", ou até "ciência natural do verifica porque o contraste entre o imutável e
espírito". [...] o particular é, em certo sentido, relativo. Aquilo
Por outro lado, a maioria das doutrinas que por longo espaço de tempo não sofre
empíricas que ainda são definidas como ciên­ nenhuma mudança imediatamente sensível,
cias do espírito tende decisivamente a poder e pode por isso ser tratado nomoteticamente
descrever de modo verdadeiramente completo por suas formas invariáveis, a um olhor mais
e exaustivo um acontecimento, mais ou menos circular pode parecer válido apenas por um
extenso, da realidade particular limitada no período de tempo limitado, pode parecer algo
tempo. Também aqui os objetos e os artifí­ de particular. Assim, uma língua segue sempre
cios particulares usados para assegurar sua em todas as suas estruturas as próprias leis
compreensão são extremamente múltiplos. formais que, embora os termos possam mudar,
Trata-se ou de um acontecimento singular ou de permanecem as mesmas, mas de outro lado
uma série de ações e de vicissitudes, da índole esta mesma língua toda particular, com seu
e da vida de um homem individual ou de todo sistema de leis formais igualmente particular,
um povo, dos características e do desenvolvi­ é também apenas um fenômeno particular, um
mento de uma língua, de uma religião, de um fenômeno passageiro na história das línguas
direito, de um produto da literatura, da arte ou humanos. A mesma coisa se pode dizer da
da ciência, 0 cada um destes objetos requer fisiologia, da geologia, em certo sentido oté
uma tratação correspondente à própria índole. da astronomia. 6 eis então que o princípio
Mas o fim científico é sempre o de reproduzir histórico se introduz no campo das ciências
e de entender em sua própria realidade um naturais. [...]
fenômeno da vida humana que se apresentou Pergunta-se o que seria mais útil para
exatamente com fisionomia única. o objetivo de conhecer: descobrir as leis ou
Agora nos encontramos, portanto, diante individuar os acontecimentos? Compreender
do problema de construir uma subdivisão das o ser universal sem tempo, ou os fenômenos
ciências empíricas puramente metodológica particulares no tempo? € desde o princípio é
sobre conceitos lógicos certos. Princípio da claro que se pode responder a esta pergunta
subdivisão é o caráter formal de seus fins cientí­ apenas tendo presente as metas últimas da
ficos : umas procuram leis gerais; as outras, fatos pesquisa científica. [...]
históricos particulares. Para usar a linguagem da Sem dúvida hó também diferenças positi­
lógica formal: a meta de umas é o juízo geral vas, e todavia puramente teóricas, no valor das
Primeira parte - jA filo sofia d o s é c u lo XJX < *° s é c u lo XX

coisas em relação ao fim do conhecimento, mos captar freqüentemente no sinal, e compreender


nõo há outro medido o não ser o grau em que em profundidade seus heróis e as ações por
contribuem poro o conhecimento total, fl coisa eles realizados.
particular permanece objeto de curiosidades UJ. UJindelbcind,
ociosas, caso nõo possa servir de pedra na Prelúdio.
construção da estrutura geral. €m sentido
científico, portonto, o "fato" já é um conceito
teleológico. Nem todo ente real é um fato para
a ciência, mas apenas aquele do qual a ciência
pode, para usar palavras pobres, aprender al­
guma coisa. Observem a história. Muitas coisas R ic k e r t
acontecem sem constituir um fato histórico. Que
Goethe no ano 1 7 7 0 tenha mandado fabricor
uma campainha de portão e uma chave, e no
dia 2 2 de fevereiro uma caixa paro bilhetes, é
documentado por um conto de ferreiro artesão Aprendizado general izante
absolutamente autêntico e, portanto, é coisa
veríssima e certo, mas não é um foto histó­ e aprendizado
rico e não interesso nem para a história da individualizante
literatura nem para a sua biografia. 6 preciso,
portanto, refletir que dentro de certos limites é
impossível dizer de início se a coisa particular fí lógico do ciência histórico nos impõe
que se oferece à observação e se presta a distinguir:
ser transmitida tenha ou não o valor de “fato". - entre aprendizado generalizante (por
Por isso a ciência deve fazer como Goethe em meio do qual chegamos o olhar os objetos do
idade avançada: armazenar, acumular tudo mundo sob os categorias da identidade e do
aquilo de que se pode apoderar, alegre por repetição, articulando assim "a multiplicidade
não descurar nada daquilo que poderia ser-lhe e a policromia da realidade", e tornando des­
útil um dia, e da confiança de que o trabalho se modo possível nelo nos orientarmos);
das gerações futuras, nõo sendo prejudicado - e aprendizado individualizante (que
pelas circunstâncias externas da transmissão, leva ao conhecimento da individualidade de
como um grande crivo conservará o utilizável e um objeto; tal conhecimento, todavio, nõo é
deixará cair o inútil. cópia do objeto, no sentido de conhecimento
Por outro lado, porém, as ciências idio- de "todo o multiplicidade de seu conteúdo",
gráficas têm necessidade a cada passo das mas é escolha de "um conjunto de elementos
proposições gerais que apenas os disciplinas que, nessa composição porticular, pertence
nomotéticas podem lhes dar em uma forma apenas àquele único objeto determinado").
absolutamente correta. Toda explicação cousal
de um evento histórico qualquer pressupõe
necessariamente idéias gerais sobre o curso Se dessas determinações gerais da tarefa
do real, e quando se querem aduzir provas de uma lógica das ciências particulares nos
históricas em forma puramente lógica se põem voltamos para os conceitos fundamentais que
sempre como suas premissas supremas as leis a lógica da ciência histórica deve desenvolver
naturais do acontecer, e principalmente do d0 modo particular, será necessário em primeiro
acontecer espiritual. Quem nõo tivesse a míni­ lugar trazer à consciência a máxima antítese for­
mo idéia de como os homens pensam, sentem mal presente em nossa concepção da realidade
e querem, faliria não apenas na tentativa de empírica, ou seja, perguntar o que significa
reunir juntos os diversos acontecimentos poro logicamente essa antítese e indicar qual termo
conhecer a vicissitude complexiva, mas já na da antítese é determinante para a representa­
tentativa de estabelecer criticamente os fatos ção histórica da realidade. Que hajo dois tipos
particulares. Sem dúvida, é muito estranho como substancialmente diversos de aprendizado da
são no fundo débeis as premissas psicológicos realidade, pode-se talvez compreender de
do ciência histórica. Como se sobe, as leis da modo melhor olhando os conhecimentos pré-
vida espiritual foram formuladas até agora com científicos que possuímos de uma parte mais
extrema imperfeição, mas isso jam ais criou ou menos grande do mundo. Seria ilusório crer
obstáculos para os historiadores: graças ao ter aqui uma cópia da realidade tal qual ela é.
seu conhecimento natural dos homens, à sua Antes que a ciência se disponha a seu trabalho
sensibilidade e por intuição eles souberam já surgiu sempre alguma espécie de elabo­
Cüpltulo terceiro - O k is+ on cism o a le m ã o , d e W ilk e lm D iltk e y a A ^ e in e ck e

ração conceituai, e o ciência encontra como portanto, distinguir a individualidade que diz
material próprio os produtos dessa elaboração respeito a qualquer coisa ou evento - cujo
conceituai pré-científica, nõo a realidade livre conteúdo coincide com suo realidade, e cujo
de interpretações, A máxima distinção formal conhecimento não pode ser alcançado nem
nessa elaboração conceituai pré-científica é, merece ser objeto de aspiração - da individua­
porém, a seguinte. A maior parte das coisas e lidade para nós significativa, e que consiste em
dos eventos nos interessa apenas por aquilo elementos determinados; e devemos ter cloro
que têm em comum com outros e, portanto, que essa individualidade em senso estrito (a
damos a atenção o esse elemento comum, única o que de costume se olude) não constitui
mesmo que de fato toda parte da realidade uma realidade, como o conceito de gênero, mas
seja individualmente diferente de todo outra, é apenas um produto de nosso aprendizado
e nada no mundo se repete exatamente. Uma do realidade, de nosso elaboração conceituai
vez que a individualidade da maior parte dos pré-científica.
objetos nos é totalmente indiferente, nós não H.
a conhecemos; para nós esses objetos não lógico do ciêncio histórico.
são mais que exemplares de um conceito de
gênero, que podem ser substituídos por outros
exemplares do mesmo conceito: mesmo que
nunca sejam idênticos, nós os vemos como tais
e, portanto, os designamos apenas com nomes
de gênero. €sta delimitação, conhecida de S im m e l
todos, do interesse por aquilo que é geral (no
sentido daquilo que é comum a um grupo de ob­
jetos), ou aprendizado generalizante, sobre cuja
base consideramos erradamente que no mundo
existe algo como a identidade e a repetição, 5 O "terceiro reino"
é paro nós ao mesmo tempo de grande valor
prático. €le articulo de um modo determinado
dos produtos culturais
a multiplicidade e a policromia da realidade,
e nos torna possível nela nos orientarmos. Todos os conteúdos religiosos e jurídicos,
Por outro lado o aprendizado generali- científicos ou tradicionais, éticos ou artísticos
zante nõo esgota de nenhum modo aquilo que existem. São "espírito objetivo"e determinam
nos interessa em nosso ambiente e, portanto, "toda a evolução histórica do humanidade".
aquilo que dele conhecemos. Este ou aquele
objeto é mais tomado em consideração justa­
mente por aquilo que lhe é peculiar, e que o Na história do gênero humano Foi d e­
distingue de todos os outros objetos. Nosso senvolvida uma longa série de criações que,
interesse e nosso conhecimento se referem, surgidas pela genialidade ou pelo trabalho
portanto, justamente à sua individualidade, psicológico subjetivo, adquirem uma típica e
àquilo que o torna insubstituível, e mesmo que objetiva existência espiritual, acima das cons­
saibamos que ele se deixa captor, como os ciências particulares que originariamente. os
outros objetos, como exemplar de um conceito produziram e que novamente as reproduzem.
de gênero, todavia não queremos considerá-lo A estas criações pertencem as proposições do
idêntico a outras coisas, mas queremos extraí- direito, as prescrições morais, as tradições em
lo expressamente de seu grupo; isso encontra todos os campos, a língua, as produções da
sua expressão lingüística na designação com arte e da ciência, a religião. Sem dúvida, elas
um nome próprio em vez de um substantivo de encontram-se ligadas a alguma forma exterior,
gênero. Também este tipo de articulação, ou à palavra ou à escritura, a dados dos sentidos
aprendizado individualizante da realidade, é ou do sentimento. Mas esta base material ou
tão corrente que não requer uma análise pos­ pessoal não esgota, em sua condicionalidade
terior. M as uma coiso é importante e deve ser temporal, a objetividade dos fatos espirituais
salientada: o conhecimento da individualidade e a forma particular de suo existência. O e s­
de um objeto não constitui de modo nenhum pírito que está incorporado em um livro está
uma cópia no sentido de que conhecemos toda sem dúvida nele, pois dele pode ser extraído;
a multiplicidade de seu conteúdo, mas também também pode estar apenas enquanto tal livro
aqui se realiza um complexo de elementos que, acolhe em si o espírito do autor, o conteúdo de
nesta particular composição, pertence apenas seus processos psíquicos. Mas o autor morreu,
àquele único objeto determinado. Devemos, seu espírito não pode subsistir como processo
Primeira parte - jA filo sofia d o s é c u lo a o s é c u lo X X

psíquico originário, mas apenas para o leitor, própria manifestação. O conteúdo do pensa­
cuja dinâmica espiritual, a partir d® traços 0 mento é verdadeiro, tanto se ele for ou não
sinais sobre o papel, reconstrói o 0spírito. pensado, como na csntralidade de ser falso,
Tal processo, porém, tem como condição a 50 0I0 for ou não pensado. A isso corresponde,
existência do livro e, de um modo totalmsnt© do outro lado, o princípio essencial, ou seja,
divorso 0 mais im0diato do que 0I0 não tenha, que ess© cont0Údo não é de modo nenhum a
o fato de que o sujeito que reproduz respira 0 cópia naturalista do objeto, p0lo qu0 ele vale.
sabe ler. O conteúdo, ao qual o leitor dá ©m O pensam0nto idealista da discrepância entre
si a forma d© processo vivo, 0stá no livro d0 a representação 0 o s©r 0m si da coisa perma­
modo objetivo, 0 o leitor o "apreende". Mas, se nece aqui fora de discussão: que os objetos
também ele não o apreende, o livro não perde não possam passar em nossa consciência pode
esse conteúdo, e sua verdade ou falsidade, ser ©xato, mas, para o ponto d0 vista presente,
sua nobreza ou vulgaridade não dependem o problema é a priori outro. Pois aqui uma re­
evidentsment© do fato d e que o significa­ alidade qu© não é imediatamente constatável
do do livro tenha sido recriado em ©spíritos como dado dos sentidos, nem pode ser com-
subj0tivos com maior ou m0nor freqüência 0 pre0ndida em seu ser por nenhum proc0sso d0
compre0nsão. Uma forma igual de existência pensamento, 0 oposta ao conhecer, o qual, por
têm todos os conteúdos religiosos ou jurídicos, sua vez, não a reproduz como uma cópia de
científicos ou tradicionais, éticos ou artísticos. gesso reproduz o original, mas 50 movimenta
Cies afloram historicamente 0 são, ao longo da em formas absolutamente diferentes, vive por
história, vez por outra reproduzidos, mas, entre assim dizer uma vida diferente em relação à da
©stas duas realizações psíquicas, eles têm uma realidad©. O s©r real dos elementos químicos
existência de forma diversa, mostrando assim co0xist0ntes sem relações recíprocas nada tem
que, também nessas formas subjetivas de rea- a ver com a lei das proporções múltiplas ou
Iidad0, subsist0m como algo qu0 n0las não com o sistema de M0nd0l0ieff; os movimentos
se esgota e é por si mesmo significativo, sem das estrelas não contêm absolutam0nte nada
dúvida, como espírito que, enquanto espírito da I0Í de. gravitaçõo. €ssas fórmulas, aliás,
objetivo, cujo significado concreto p0rman0C0 transportam na realidad© uma língua qu© não
intacto acima de sua vitalidade subjetiva nesta encontra nela correspondência nem sequer de
ou naquela consciência, não tem realmente uma voz. Portanto, se aquele terceiro reino
nada a fazer com seus pontos de apoio sen­ do qual as "leis naturais" podem servir como
síveis. (Esta categoria que permite conservar o o 0X0mplo mais simples, ou talvez como o
supermaterial no material e o supersubjetivo no símbolo, é sem dúvida distinto do processo
subjetivo determina toda a evolução histórica repres0ntativo que o traduz na forma da psiqui-
da humanidade; este ©spírito obj0tivo p0rmit0 dade, 0I0 é também distinto das substâncias 0
qu0 o trabalho da humanidad© conserve S0US dos movimentos que o traduzem na forma da
resultados acima das pessoas individuais e das realidad©. Para o surgimento da polaridade
reproduções individuais. [...] , de sujeito ©d© obj©to, o ser divid©-s© ©m dois
levanta(-se), sobre as realidades opos­ reinos, cujas qualidades ou funções são sem
tas do mundo, sujeito e objeto, um reino de dúvida incomparáveis. Sua relação, porém, que
conteúdos ideais, que não é nem subjetivo nem chamamos de conhecim©nto, torna-se possível
objetivo. €sses conteúdos têm valor e signifi­ porque realiza-se na forma de um como do
cado apenas em si e por si, mas, justamente outro o mesmo conteúdo, o qual, em si © por
por isso, podem formar como que a matéria si, transcende essa oposição. Tal concepção da
comum que entra, de um lado, na forma da unidade d© sujeito ©de objeto é, em s©u prin­
subjetividade 0, do outro, na da obj0tividad0, cípio, muito diferente da spinoziana, segundo
0 assim m0d0ia a relação 0ntre os dois 0 re­ a qual os dois termos, por seu próprio ser, se
presenta sua unidade. Pod0r-s0-ia, portanto, perdem na unidade da substância absoluta,
indicar 0ssa t0oria como a do "t0rc0iro reino", exprimindo apenas as duas formas em que
0m que-entra aquilo qu© 0xpus, traçando as se realiza sua real existência metafísica, flqui,
linhas essenciais do pensamento hegeliano, ao contrário, sujeito © obj©to permanecem em
sobre a doutrina do espírito objetivo. O que sua ©ssência também mais separados, mas o
importa é, d© um lado, o p0nsam0nto que, no cosmo ideal dos conteúdos que se realizam sob
conhecimento, não só se realiza em nós um uma ou sob a outra destas categorias, ©difica,
processo psicológico, e é experimentado inte- sobre a diferenciação destes sistemas reais,
riorm0nt0 um ©stado d0 consciência, mas esse a unidad© daquilo qu© justamente neles se
proc0sso 0 0ssa consciência têm um cont0údo realiza, e assegura assim a possibilidade da
que vale também independentemente de sua verdode. fl descoberta deste terceiro reino,
Capítulo terceiro - O k isto H cism o a le m ã o / d e W ilk e lm I^il+key a AAí‘ int’ í [<í1

embora confusamente formulada e privada de mos um com o outro, fl Zivilisation levanta-se


fundamento gnosiológico, é a grande obra de além da pura natureza: esta é reorganizada
Platão, que em sua teoria das idéias expôs pelo intelecto impelido pela vontade de vida,
uma das soluções típicas do problema sujeito- orientado para o útil. O âmbito inteiro das in­
objeto. venções técnicas pertence em primeiro lugar a
G. Simmel, isso. Como invenções, como produções de um
Os problem as fundam entais d a Filosofia. cérebro espiritualmente produtivo 0 original elas
são também produções culturais. Todavia pode-
se explicá-las também biologicamente, com
base naquilo que se chama de “adaptação". O
próprio ato das invenções tem, portanto, uma
componente biológica e uma de tipo cultural.
M e in e c k e 6 uma vez produzidas, aplicadas e difundidas,
elas ameaçam, quando uma vida espiritual
independente não as sustenta, recair na pura
naturalidade, porque uma espécie de técnica
aplicada encontra-se também junto aos animais.
B Distinção entre civilização Tentei representar esse âmbito intermediário do
utilitário em um exemplo, a razão de Cstado.
e cultura O historiador terá de ocupar-se continuamente
disso, não só porque a maior parte das causa-
f) Zivilisation (civilização) é a reorga­ lidades, que ele deve pesquisar, pertencem a
nização da notureza efetuada p o r um inte­ ele, mas também porque os desenvolvimentos
lecto (com suas invenções) "impelido pela de fatos nele pod0m, com freqüência de modo
vontade d e vida, orientado paro o útil". Fl imperceptível, se tornar produções culturais.
Kultur (cultura) se tem onde o homem "cria Deve - sim, não temos outra palavra - fazer a
ou procura alguma coisa de bom e de belo alma vibrar, para que o puro útil se torne algo
p o r si mesmo, ou então procura o verdadeiro de belo ou de bom. De outra forma ele perma­
p or si mesmo". nece pura produção intelectual, sem alma, sem
espírito, pura Zivilisation e não cultura, fl cultura
entra apenas onde o homem, com toda a sua
Nós distinguimos, com Troeltsch, dos interioridade, não apenas com o querer e o in­
valores de vida inferiores, puramente animais, telecto, empreende a luto com a natureza; onde
que para o historiador podem ser considerados ele age avaliando, no sentido mais elevado do
apenas os superiores, valores espirituais de termo; onde ©le cria ou procura algo de bom
vida ou valores culturais, que formam a esfe­ ou de belo em si mesmo, ou então procura o
ra de interesses própria do historiador, cuja verdadeiro em si mesmo. Tudo aquilo qu© ele,
compreensão constitui sua meta mais elevada, neste sentido, faz, avaliando, toma-se precioso
Não compreendemos sob o termo espírito sim­ também para o historiador, atesta-lhe a conti­
plesmente o psíquico, e sim, no sentido antigo, nuidade e a fertilidade do elemento espiritual
a vida psíquica superiormente desenvolvida, na história, mostra-lhe o caminho que o desdo­
exatamente aquilo que distingue, escolhe e bramento daquele mesmo elemento tomou até
julga, e por meio da qual brota a cultura. Cultu­ ele. Mas, para compreendê-lo totalmente, ele
ra é, portanto, manifestação e irrupção de um deve, como dizíamos, pesquisar também todo
elemento espiritual dentro da conexão causai o âmbito do desenvolvimento causai dos fatos,
universal. Cntre a vida humana de tipo cultural que em grande parte não têm nada a ver com a
0 a de tipo natural encontra-se um âmbito cultura. Cm sua representação, se esta procede
intermediário que participa de ambos, que retamente, aquilo que está ligado aos valores e
indicamos com o nome que está se tornando é provido de valor brilhará apenas vez ou outra,
sempre mais geral de civilização (Zivilisation), exatamente como na vida, como uma flor rara
e o distinguimos do mais elevado de Hultur naquilo que cresce comumente.
espiritual, no sentido mais completo do termo,
F. Meineck
enquanto um uso lingüístico muito incerto, mas Páginas de historiografia
também muito difundido, mistura os dois ter­ e de filosofia da história.
C a p ítu Io q u a r to

J\ A a x W e b e r :

o desencan+amento do mundo
e a metodologia
das ciências kistónco-sociais

• Historiador, sociólogo, metodólogo, economista e político, Max Weber


(1864-1920) é um dos pensadores de maior relevo na passagem entre o século XIX
e o século XX: a influência de suas idéias até hoje está bem presente sobre todo
o arco dos estudos sociais, além da metodologia. Sua produção
científica é muito vasta. Weber
De seus trabalhos, lembramos: A ética protestante e o espíri- e a enorme
to do capitalismo (1904-1905); A objetividade “cognoscitiva " da influência
ciência social e da política social (1904); O trabalho intelectual de suas teorias
como profissão (1919); Escritos de sociologia da religião (3 volu- §1
mes, 1920-1921); Economia e sociedade (1922).

• Para Weber há uma só ciência, uma vez que único é o critério para estabelecer
a cientificidade das diversas disciplinas: temos o conhecimento científico - tanto
nas ciências naturais como nas histórico-sociais - quando conseguimos produzir
explicações causais: scire est scire per causas. Ora, porém, a realidade apresenta
aspectos infinitos, pode ser estudada dos mais disparatados pontos de vista, ou
seja, a partir das mais diversas perspectivas.
O sociólogo ou o historiador da realidade sem limites que O cientista
se apresenta diante deles operam seleções, escolhem tratar um social
argumento ao invés de outro, um aspecto de um evento ao invés não glorifica
de outro: por exemplo, um historiador decide interessar-se pela e não condena,
Revolução Francesa mais do que pelas expedições de Xerxes e mas para ele
escolhe o estudo das relações entre Revolução e Igreja católica, é indispensável
de preferência, apenas para exemplificar, a realizar pesquisas a "referência
aos valores"
sobre o funcionamento dos tribunais.
Como é que, portanto, acontece tudo isso? Com quais cri­ - > 5 2
térios o sociólogo ou o historiador fazem as escolhas dos argu­
mentos a tratar ou decidem quais aspectos e problemas enfrentar? Pois bem, tais
escolhas e decisões ocorrem - afirma W eber - com base na referência aos valores.
É o valor da justiça que guia a escolha do estudo dos tribunais no período da
Revolução Francesa; é o valor da eficiência que impele a pôr a atenção sobre a
máquina burocrática; e assim por diante. A referência aos valores é um princípio
de escolha; ele serve para estabelecer quais serão os problemas, os aspectos dos
fenômenos, isto é, o campo de pesquisa dentro do qual a investigação procederá
depois de modo cientificamente objetivo com a finalidade de chegar a explicações
causais dos próprios fenômenos.

• O cientista social trabalha com conceitos como "economia


citadina", "capitalismo", "seita", "igreja" etc. A fim de introduzir "Tipos ideais"
rigor na pesquisa histórico-social, Weber propõe a teoria do "tipo como
ideal"; o tipo ideal é uma construção intelectual com objetivos instrumentos
heurísticos. heurísticos
Acentuam-se, por exemplo, alguns traços da "economia - » §3
citadina", do "padre católico" etc., traços "difusos e discretos,
Primeira parte - y\ filo sofia d o s é c u lo X ^ X a o s é c u lo X X

existentes aqui em maior medida e ali em menor, e por vezes também ausentes",
e assim fazendo surge um modelo, um tipo-ideal ou modelo ideal-típico da eco­
nomia citadina, ou do padre católico etc.; e tal tipo ideal serve para ver o quanto
a realidade efetiva se afasta ou se aproxima do tipo ideal. O "tipo ideal" é um
instrumento heurístico.

Como • Instrumento heurístico é também a outra idéia de Weber


determinar sobre a possibilidade objetiva. Um fato histórico-social explica-se
o peso em geral por meio de uma constelação de causas; e justamente
específico a fim de determinar o maior ou menor peso de uma causa par­
das causas ticular, o historiador imagina um possível desenvolvimento do
particulares evento, excluindo justamente tal causa, e se pergunta o que teria
de um evento acontecido se essa causa não tivesse existido.
social Por exemplo: os fuzilamentos que na noite de março de
-> § 4 1848, em Berlim, iniciaram a revolução foram determinantes, ou
a revolução teria igualmente acontecido? Em poucas palavras:
constroem-se possibilidades objetivas, ou seja, juízos sobre como as coisas podiam
acontecer, para compreender melhor como aconteceram.

• A referência aos valores não eqüivale nem implica minimamente que o


homem de ciência, enquanto cientista, deva emitir juízos de valor: o juízo que
glorifica ou condena não tem lugar na ciência. A ciência explica e não avalia. W e­
ber distingue claramente entre juízos de fato e juízos de valor,
Juízos de fato entre "aquilo que é" e "aquilo que deve ser".
e juízos de valor; E em base a tal distinção ele toma posição sobre o problema
a "avaliabilidade" da avaliabilidade nas ciências sociais. E uma tomada de posição
das ciências que, dentro de seu trabalho, assume dois significados:
histórico- - um significado-epistemológico, que consiste na liberdade
sociais
da ciência em relação a avaliações ético-políticas e religiosas;
—>§ 5
- e outro significado ético-pedagógico, que consiste na defesa
da ciência em relação às incursões dos assim chamados "socialistas
de cátedra", que subordinavam a cátedra a ideais políticos, a verdade à política.
Não é a ciência que deverá dizer-nos o que devemos fazer. O médico poderá cuidar
de nós e tam bém curar-nos; mas não lhe cabe, enquanto médico, estabelecer se
vale ou não vale a pena viver.

• De 1904-1905 é A ética protestante e o espírito do capitalismo. O proble­


ma da predestinação é grande problema para os calvinistas. Estes viram o sinal
da certeza da salvação no sucesso mundano em sua profissão,
Quando uma sobretudo no sucesso econômico.
concepção Para vencer a angústia da predestinação, o indivíduo é,
religiosa portanto, impelido a trabalhar, ao sucesso e - portanto - a eco­
produz nomizar o tem po e a racionalizar os métodos de trabalho. A ética
um fenômeno protestante, além disso, impõe ao crente praticar uma conduta
econômico ascética, não dissipar o lucro, mas reinvesti-lo. Estamos, assim,
—»§ 6
dentro do espírito do capitalismo.

• Eis, então, invertida a tese do materialismo histórico de Marx, segundo o


qual seria a estrutura econômica o fator determinante da superestrutura das idéias.
W eber desdogmatiza a posição de Marx, mostrando sua injustificada unilatera-
lidade. Ele - no ensaio A objetividade “cognoscitiva" da ciência
Weber inverte social e da política social (1904) - distingue entre:
a tese - fenômenos econômicos verdadeiros e próprios (um banco,
do materialismo por exemplo);
histórico - fenômenos economicamente importantes (por exemplo,
—>§ 7
os processos da vida religiosa);
Capítulo quarto - M ax W e b e r e a s c iê n c ia s K is+ órico -sociais

- e fenômenos condicionados economicamente (por exemplo, os fenômenos


artísticos).
A concepção marxista a respeito da relação unidirecional da estrutura eco­
nômica que determinaria o mundo das idéias, a superestrutura, é uma teoria que
- escreve W eber - "sobrevive hoje apenas nas cabeças carentes de competências
científicas e de diletantes".

• O mundo, assim como W eber o vê, é um mundo desen- Razá0/ ciência


cantado: não é preciso mais agradar os espíritos para resolver e técnica
os problemas; bastam razão e meios técnicos. Isso, mesmo que "desencantam
seja necessário adm itir que a própria ciência funda-se sobre uma o mundo"
escolha irracional da razão. Mas, em todo caso, W eber é da opi- -»§ 8
nião que a decisão por uma fé religiosa eqüivaleria, neste nosso
mundo desencantado, ao "sacrifício do intelecto".

fora chamado, a fim de ensinar economia


política, em 14 de junho de 1920.
A obra de M ax Weber, complexa e
M ax Weber nasceu em Erfurt, em 21 profunda, constitui um monumento da
de abril de 1864. Por meio do pai, que foi compreensão dos fenômenos históricos e
deputado do Partido Nacional Liberal, We­ sociais e, ao mesmo tempo, da reflexão sobre
ber teve oportunidade de entrar bem cedo o método das ciências histórico-sociais. Os
em contato com ilustres historiadores, filó­ trabalhos de Weber podem ser classificados
sofos e juristas da época. Estudou história, em quatro grupos:
economia e direito nas universidades de 1) Estudos históricos:
Heidelberg e Berlim. Laureou-se em Gõt- a) Sobre as sociedades mercantis da
tingen, em 1889, com uma tese de história Idade Média (1889);
econômica sobre a História das sociedades b) H istória agrária rom ana em seu
comerciais na Idade Média. significado para o direito público e privado
Em 1892 conseguiu a livre-docência (1891);
com A história agrária romana em seu sig­ c) As condições dos camponeses na
nificado para o direito público e privado. Alemanha oriental do Elba (1892);
Em 1894 tornou-se professor de economia d) As relações agrárias na antigüidade
política na Universidade de Friburgo. Em (1909).
1896 passou a ensinar em Heildelberg. 2) Estudos de sociologia da religião:
De 1897 a 1903 sua atividade científi­ a) A ética protestante e o espírito do
ca e didática ficou bloqueada por causa de capitalismo (1904-1905);
grave doença nervosa. Nesse meio tempo, b) Escritos de sociologia da religião (3
em 1902, juntamente com Werner Som- vols., 1920-1921).
bart, tornara-se co-diretor da prestigiosa 3) Tratado de sociologia geral: Econo­
revista “Archiv für Sozialwissenschaft und mia e sociedade (1922).
Sozialpolitik” (“ Arquivo de ciência social e 4) Escritos de metodologia das ciências
de política social” ). Em 1904 realizou uma histórico-sociais:
viagem aos Estados Unidos. a) A “objetividade” cognoscitiva da
Durante a Primeira Guerra Mundial, ciência social e da política social (1904);
defendeu as “ razões ideais” da “ guerra ale­ b) Estudos críticos acerca da lógica das
m ã” e prestou serviço como diretor de um ciências sociais (1906);
hospital militar. Acompanhou com preocu­ c) Algumas categorias da sociologia
pação angustiada a ruína moral e cultural da abrangente (1913);
Alemanha, jogada pelo imperador e por seus d) O significado da “avaliabilidade”
ministros no beco sem saída da pura política das ciências socioló gicas e econôm icas
de poder. Depois da guerra participou da (1917);
redação da Constituição da República de e) O trabalho intelectual como profis­
Weimar. Morreu em Munique, para onde são (1919).
Primeira parte A filosofia d o s é c u lo s é c u lo }ÇK

Historiador, sociólogo, economista e naturais como nas ciências histórico-sociais,


político, Weber trata dos problemas meto­ temos conhecimento científico quando con­
dológicos com a consciência das dificuldades seguimos produzir explicações causais.
que emergem do trabalho efetivo do histo­ Entretanto, não é difícil ver que toda
riador e do sociólogo, mas principalmente explicação causai é somente uma visão frag­
com a competência do historiador, do soció­ mentária e parcial da realidade investigada
logo e do economista. (por exemplo, as causas econômicas da
Primeira Guerra Mundial). E como, além
disso, a realidade é infinita, tanto extensiva
;A q u e stã o como intensivamente, é óbvio que a regres­
são causai deveria ir até o infinito: para o
d ía referen
4 cia a o s valores conhecimento exaustivo do objeto, os efeitos
seriam estabelecidos “ desde a eternidade” .
Todavia, nós nos contentamos com cer­
Para Weber temos uma “ só ” ciência tos aspectos do devir, estudamos fenômenos
porque é “ único” o critério de cientificida- precisos e não todos os fenômenos, em suma
de das diversas ciências: tanto nas ciências realizamos uma seleção, tanto dos fenôme­

Max Weber (1864-1920) foi sociólogo, economista e teórico do método das ciências histórico-sociais.
Nesta fotografia de 1919 vemo-lo com barba e chapéu,
enquanto discute com o dramaturgo e pacifista comunista Ernst Toller.
Capítulo quarto - A W W e b e r e a s c iê n c ia s k is+ ó W co -so cia is

nos a estudar como dos pontos de vista a mais uma vez, mostra o absurdo da preten­
partir dos quais os estudamos e, conseqüen­ são de que as ciências da cultura poderiam
temente, das causas de tais fenômenos. N ão e deveriam elaborar um sistema fechado de
pode haver dúvidas sobre tudo isso. conceitos definitivos. i?yr?grTT2~|
M as como se realiza, ou melhor, como
funciona essa seleção? Com uma expressão
tomada de Rickert, Weber responde a essa A teoria d o "tip o id ea l"
pergunta dizendo que a seleção se realiza
tendo como referência os valores.
E aqui é preciso que nos entendamos N a opinião de Weber, com freqüência
com muita clareza. Antes de mais nada, a linguagem do historiador ou do sociólogo,
a referência aos valores (Wertbeziehung) diferentemente da linguagem das ciências
não tem nada a ver com o juízo de valor naturais, funciona mais por sugestão do que
ou com a apreciação de natureza ética. por exatidão. E precisamente com o objeti­
Weber é explícito: o juízo que glorifica ou vo de dar rigor suficiente a toda uma gama
condena, que aprova ou desaprova, não tem de conceitos utilizados nas investigações
lugar na ciência, precisamente pela razão histórico-sociais, Weber propôs a teoria
de que ele é subjetivo. Por outro lado, a do “ tipo ideal” . Escreve ele: “ O tipo ideal
referência aos valores, em Weber, não tem obtém-se pela acentuação unilateral de um
nada a dividir com um sistema objetivo e ou de alguns pontos de vista pela conexão
universal qualquer de valores, um sistema de certa quantidade de fenômenos difusos
em condições de expressar uma hierarquia e discretos, existentes aqui em maior e lá
de valores unívoca, definitiva e válida sub em menor medida, por vezes até ausentes,
specie aeternitatis. Dilthey já constatara a correspondentes àqueles pontos de vista
moderna “ anarquia de valores” ; e Weber unilateralmente evidenciados, em um qua­
aceita esse relativismo. dro conceitual em si unitário. Em sua pureza
A referência aos valores, portanto, não conceitual, esse quadro nunca poderá ser
eqüivale a pronunciar juízos de valor (“ isto encontrado empiricamente na realidade;
é bom ” , “ aquilo é justo” , “ isto é sagrado” ), ele é uma utopia, e ao trabalho histórico se
nem implica o reconhecimento de valores apresenta a tarefa de verificar, em cada caso
absolutos e incondicionais. Então, o que pre­ individual, a maior ou menor distância da
tende Weber quando questiona a “referência realidade daquele quadro ideal, estabelecen­
aos valores” ? Para sermos breves, devemos do, por exemplo, em que medida o caráter
dizer que a referência aos valores é um prin­ econômico das relações de determinada
cípio de escolha; ele serve para estabelecer cidade pode ser qualificado conceitualmen-
quais os problemas e os aspectos dos fenô­ te como próprio da economia urban a” .
menos, isto é, o campo de pesquisa no qual Pode-se ver, portanto, que o “ tipo
posteriormente a investigação se realizará ideal” é instrumento metodológico ou, se
de modo cientificamente objetivo, tendo em assim se preferir, expediente heurístico ou
vista a explicação causai dos fenômenos. de pesquisa. Com ele, construímos um qua­
A realidade é ilimitada, aliás, infinita, dro ideal (por exemplo, de cristianismo, de
e o sociólogo e o historiador só acham inte­ economia urbana, de capitalismo, de Igreja,
ressantes certos fenômenos e aspectos desses de seita etc.), para depois com ele medir ou
fenômenos. E estes são interessantes não por comparar a realidade efetiva, controlando a
uma qualidade intrínseca deles, mas apenas aproximação (Annàherung) ou o desvio em
em referência aos valores do pesquisador. relação ao modelo.
Segue-se daí que ao historiador cabe Brevemente, pode-se dizer que:
exclusivamente a explicação de elementos e 1) a tipicidade ideal não se identifica
aspectos do acontecimento enquadrável em com a realidade autêntica, não a reflete nem
determinado ponto de vista (ou teoria). E os a expressa;
pontos de vista não são dados de uma vez 2) ao contrário, em sua “ idealidade” , a
por todas: a variação dos valores condiciona tipicidade ideal afasta-se da realidade efetiva
a variação dos pontos de vista, suscita novos para afirmar melhor seus vários aspectos;
problemas, propõe considerações inéditas, 3) a tipicidade ideal não deve ser con­
descobre novos aspectos. É o feixe do maior fundida com a avaliação ou com o valor,
número de pontos de vista definidos e com­ “ este filho da dor de nossa disciplina” ;
provados que nos permite ter a idéia mais 4) o tipo ideal, repetindo, pretende ser
exata possível de um problema. Tudo isso, instrumento metodológico ou instrumento
Primeira parte - J K f ilo s o f i a d o s é c u lo X J X o » s é c u lo X X

heurístico: os conceitos ideais-típicos são


uniformidades limites.
■ Tipo ideal. No contexto das refle­
xões metodológicas de Max Weber,
a do tip o ideal é uma idéia destina­
4 O p e s o d a s d ife re n te s
da a funcionar como instrumento
c a u s a s n a re a liz a ç ã o heurístico, com a finalidade de uma
determinação e maior rigorização
d o s ev en to s
dos conceitos utilizados nas pesquisas
histórico-sociais - conceitos como:
seita, capitalismo, ética protestante,
A pesquisa histórica é individualizante, cristianismo, cidade comercial na
isto é, diz respeito às individualidades his­ Idade Média etc.
tóricas (a política agrária romana, o direito Pois bem, o cientista social metodo-
comercial na Idade M édia, o nascimento do logicamente hábil constrói modelos
capitalismo, as condições dos camponeses ideais-típicos dos fenômenos aos quais
na Alemanha oriental do Elba etc.). O his­ estes conceitos se referem, utilizando
toriador quer descrever e dar conta dessas traços efetivamente existentes de
individualidades. M as dar conta delas signi­ tais fenômenos, acentuando outros
fica explicá-las. E, para explicá-las, necessi­ também eles existentes, introduzindo
ta-se de conceitos e de regularidades gerais traços talvez inexistentes; construído
pertencentes às ciências nomológicas. Entre de tal modo um quadro unitário do
fenômeno, ele se aproxima do fe­
elas, vistas como instrumentos de explicação nômeno histórico concreto para ver
histórica, Weber considerou especialmente a como e quanto a realidade efetiva
sociologia. Em outros termos, para explicar se aproxima ou se desvia do modelo
os fatos históricos precisa-se de leis, que o ideal-típico.
historiador vai buscar principalmente na
sociologia, que descobre “ conexões e regu­
laridades” nos comportamentos humanos.
Deve-se notar, porém, que, quando o
historiador explica um fato, geralmente o
faz referindo-se a uma constelação de causas.
M as, a seus olhos, nem todas as causas têm
igual peso. Eis, portanto, a questão: como
pode o historiador determinar o peso de uma
causa na ocorrência de um acontecimento?
Para bem compreender a questão, Weber se
remete a algumas opiniões do historiador
Eduard Meyer, para quem o desencadeamen-
to da segunda guerra púnica foi conseqüência
de uma decisão voluntária de Aníbal, assim
como a explosão da guerra dos sete anos ou
da guerra de 1866 foram, respectivamente,
conseqüências de uma decisão de Frederico,
o Grande, e de Bismarck. Meyer também afir­
mara que a batalha de Maratona foi de gran­
de importância histórica para a sobrevivência M ax Weber
da cultura grega e, por outro lado, que os retratado por Otto Neumann.
fuzilamentos que, na noite de março de 1848,
deram início à revolução em Berlim não fo­
ram determinantes, pelo fato de que, dada
a situação na capital prussiana, qualquer historiador constrói ou imagina um desen­
incidente teria podido fazer explodir a luta. volvimento possível, excluindo uma causa
Opiniões desse tipo atribuem a certas para determinar seu peso e sua importância
causas importância maior que a outras. E no devir efetivo da história. Assim, em rela­
essa desigualdade de significado entre os ção aos exemplos anteriores, o historiador
vários antecedentes do fenômeno pode ser se propõe, pelo menos implicitamente, a
detectada, diz Weber, já que, com base nos pergunta: o que teria acontecido se os per­
conhecimentos e nas fontes à disposição, o sas houvessem vencido, se Bismarck não
Cãpítulo quarto - ]\A a x W e b e f e a s c iê n c ia s k is + ó n c o -s o c ia is

houvesse tomado aquela decisão e se não Com base nisso, é oportuno fixar em
houvesse ocorrido o fuzilamento em Ber­ alguns breves pontos as considerações de
lim? Da mesma forma que um penalista, o Weber sobre a questão da avaliabilidade:
historiador isola mentalmente uma causa 1) O professor deve ter claro quando faz
(por exemplo, a vitória de M aratona ou o ciência e, ao contrário, quando faz política.
fuzilamento nas ruas de Berlim), excluindo-a 2) Se o professor, durante uma aula,
da constelação de antecedentes, para depois não pudesse se abster de produzir avalia­
se perguntar se, sem ela, o curso dos aconte­ ções, então deveria ter a coragem e a probi­
cimentos teria sido igual ou diferente. dade de indicar aos alunos aquilo que é puro
Desse modo, constroem-se possibili­ raciocínio lógico ou explicação empírica,
dades objetivas, isto é, opiniões (baseadas e aquilo que se refere a apreços pessoais e
no saber à disposição) sobre como as coisas convicções subjetivas.
podiam ocorrer, para se compreender me­ 3) O professor não deve aproveitar de
lhor como elas ocorreram. Prosseguindo no sua posição de professor para fazer propa­
exemplo, se os persas houvessem vencido, ganda de seus valores; os deveres do pro­
então é verossímil (ainda que não necessá­ fessor são dois:
rio, pois Weber não é determinista) que eles a) de ser cientista e de ensinar os outros
houvessem imposto na Grécia, como fizeram a se tornarem também;
em toda parte onde venceram, uma cultura b) de ter a coragem de pôr em discussão
teocrático-religiosa baseada nos mistérios seus valores pessoais e de pô-los em discus­
e nos oráculos. Esta é uma possibilidade são no ponto em que se pode efetivamente
objetiva e não gratuita, para que compreen­ discuti-los, e não onde se pode facilmente
damos que a vitória de M aratona é causa contrabandeá-los.
muito importante para o desenvolvimento 4) A ciência é distinta dos valores, mas
posterior da Grécia e da Europa. Já os não está separada deles: uma vez fixado o
fuzilamentos diante do castelo de Berlim, objetivo, a ciência pode nos dar os meios
em 1848, pertencem à ordem das causas mais apropriados para alcançá-lo, pode pre­
acidentais, pelo fato de que a revolução teria ver quais serão as conseqüências prováveis
explodido de qualquer forma. BffÉinri do empreendimento, pode nos dizer qual é
ou será o “ custo” da realização do fim a que
nos propomos, pode nos mostrar que, dada
uma situação de fato, certos fins são irreali-
;A polêmica záveis ou momentaneamente irrealizáveis, e
s o b r e a //^ A ã o - a v a lia b > ilid a d e ,, pode nos dizer também que o fim desejado
choca-se com outros valores.
Em todo caso, a ciência nunca nos dirá o
Weber distingue claramente entre co­ que devemos fazer, e como devemos viver. Se
nhecer e avaliar, entre juízos de fato e juízos propusermos essas interrogações à ciência,
de valor, entre “ o que é” e “ o que deve ser” . nunca teremos resposta, porque teremos
Para ele a ciência social é não-valorativa, no batido à porta errada. Cada um de nós deve
sentido de que procura a verdade, ou seja, buscar a resposta em si mesmo, seguindo sua
procura apurar como ocorreram os fatos e inspiração ou sua fraqueza. O médico pode
por que ocorreram assim e não diferente­ até nos curar, mas, enquanto médico, não
mente. A ciência explica, não avalia. está em condições de estabelecer se vale ou
Dentro do trabalho de Weber, tal toma­ não vale a pena viver. H gQ Rn
da de posição tem dois significados:
a) um, epistem ológico, consiste na
defesa da liberdade da ciência em relação a A ética protestante
avaliações ético-político-religiosas (uma teo­ e o espírito do capitalismo
ria científica não é católica nem protestante,
não é liberal nem marxista);
b) o outro significado, ético-pedagógi- Tanto em seu grande tratado Econo­
co, consiste na defesa da ciência em relação mia e sociedade (ver o capítulo: “Tipos de
às deformações demagógicas dos chamados comunidade religiosa” ) como nos Escritos
“ socialistas de cátedra” , que subordinavam de sociologia da religião, Weber estudou a
o valor da verdade a valores ético-políti- importância social das formas religiosas de
cos, isto é, subordinam a cátedra a ideais vida. O ponto de partida da história reli­
políticos. giosa da humanidade é um mundo repleto
Primeira parte - ;A filo sofia d o s é c u lo X^X a ° s é c u lo XX

de sagrado e, em nossa época, o ponto de 2) esse Deus, onipotente e misterioso,


chegada é aquilo que Weber chama de desen­ predestinou cada um de nós à salvação ou
canto do mundo: “ A ciência nos faz ver na à danação, sem que, com nossas obras,
realidade externa unicamente forças cegas, possam os modificar um decreto divino já
que podemos dispor a nosso serviço, mas estabelecido;
não pode fazer sobreviver nada dos mitos 3) Deus criou o mundo para sua glória;
e da divindade com que o pensamento dos 4) esteja destinado à salvação ou à da­
primitivos povoava o universo. Nesse mun­ nação, o homem tem o dever de trabalhar
do desprovido de encantos, as sociedades para a glória de Deus e criar o reino de Deus
humanas evoluem para uma organização sobre esta terra;
mais racional e sempre mais burocrática” . 5) as coisas terrenas, a natureza huma­
N ã o pod em os nos deter aqui nos na, a carne, pertencem ao mundo do pecado
interessantíssim os problem as levantados e da morte; a salvação para o homem é
no grande tratado Economia e sociedade. tão-somente um dom totalmente gratuito
Entretanto, é obrigatório pelo menos acenar da graça divina.
ao famoso livro de Weber A ética protestante Esses diferentes elementos podem-se
e o espírito do capitalismo, de 1904-1905. encontrar dispersos em outras concepções
Weber está persuadido de que o capita­ religiosas, mas a combinação de tais elemen­
lismo moderno deve sua força propulsora à tos, precisa Weber, é original e única, com
ética calvinista. A concepção calvinista em conseqüências verdadeiramente de grande
questão é a que se pode encontrar no texto importância. Antes de mais nada, encontra
da Confissão de Westminster de 1647, resu­ aqui sua conclusão aquele grande processo
mida por Weber nos cinco pontos seguintes: histórico-religioso de eliminação do elemento
1) mágico do mundo, processo que se iniciou
existe um Deus absoluto e trans­
cendente, que criou o mundo e o governa, com as profecias judaicas e prosseguiu com
mas que o espírito finito dos homens não o pensamento grego. N ão há comunicação
pode captar; entre o espírito finito e o espírito infinito de
Deus. Em segundo lugar, a ética calvinista
está ligada a uma concepção anti-ritualista
que leva a consciência ao reconhecimento
G esam m elte A ufsãtze de uma ordem natural, que a ciência pode e
deve explorar.
zur Além disso, há o problema da predesti­
nação. Os calvinistas viram no sucesso mun­
R e lig io n s s o z io lo g ie dano na própria profissão o sinal da certeza
da salvação. Em substância, as seitas calvi­
voo
nistas acabaram por encontrar no sucesso
temporal, sobretudo no sucesso econômico,
a prova da eleição divina. Em outros termos,
Max Weber o indivíduo é impelido a trabalhar para
superar a angústia em que é mantido pela
L incerteza de sua salvação.
Há mais, porém: a ética protestante
ordena ao crente desconfiar dos bens deste
mundo e praticar conduta ascética. A essa al­
tura, está claro que trabalhar racionalmente
em função do lucro e não gastar o lucro,
mas reinvesti-lo continuamente, constitui
t comportamento inteiramente necessário ao
desenvolvimento do capitalismo. CSB51 5 161

Tftbinftn 7 W e b e r e /vA arx


Verta* v.«i J. C. H Mofcr f f W Stetxxk)
*f*e
Do materialismo histórico Weber rejei­
Frontispício dos Escritos de sociologia da religião ta o pressuposto m arxista de uma direção
(Tübingen, 1920). determinada de condicionamento que vai da
Capítulo quarto - W e b e r e a s c iê n c ia s k is + ó n c o -s o c ia is

estrutura para a superestrutura e que tenha ritualidade, igualmente abstrata: “ Ambas


o caráter de interpretação geral da história. são possíveis, mas ambas igualmente são
E, contrariamente à posição m arxista do de pouca serventia para a verdade histórica,
inelutável condicionamento do momento caso se pretendam não uma preparação, mas
econômico sobre qualquer outro estado pes­ uma conclusão da investigação” .
soal ou social, material ou imaterial, Weber
propõe, no escrito A “objetividade” cognos-
citiva da ciência social e da política social, O d esen can tam en to
uma divisão dos fenômenos sociais com do m undo
base em sua relação com a economia (para
esse propósito fala-se de fenômenos econô­
micos verdadeiros e próprios, de fenômenos N o escrito A ciência como profissão,
economicamente importantes, por exemplo, depois de afirmar que “ ser superados no
os processos da vida religiosa, e de fenôme­ plano científico é [...] não somente nosso
nos condicionados economicamente, como, destino, de todos nós, mas também nosso
por exem plo, os fenôm enos artísticos). escopo” , M ax Weber se propõe o problema
Como bem se pode ver, Weber procura do significado da ciência.
ampliar e desdogmatizar a posição marxista, Trata-se do problema do significado
mostrando sua unilateralidade intencional e de uma atividade que “ não alcança e jamais
dogmática. poderá alcançar seu fim” . Em todo caso,
Weber, portanto, aceita de bom grado para Weber “ o progresso científico é uma
uma explicação em termos econômicos da fração, sem dúvida a mais importante, da­
história. O que ele rejeita é a metafisiciza- quele processo de intelectualização ao qual
ção e a dogm atização de tal perspectiva. estamos sujeitos há séculos” .
A propósito disso, escreve: “ A concepção O significado profundo dessa intelec­
materialista da história do velho sentido tualização e racionalização progressivas,
genialmente primitivo, que se apresenta, segundo Weber, está “na consciência ou na
por exemplo, no Manifesto comunista, hoje fé de que basta querer para poder; em prin­
só sobrevive na cabeça de pessoas privadas cípio, qualquer coisa pode ser dominada pela
de competência específica e de diletantes. razão. O que significa o desencantamento do
Entre essa gente, ainda se pode encontrar
de forma extensa o fato de que sua necessi­
dade causai de explicação de um fenômeno
histórico não encontra satisfação enquanto
não se mostram (ou não aparecem) em jogo,

I
de algum modo ou em algum lugar, causas . D e s e n c a n ta m e n to d o m u n d o . O 1
econômicas. Todavia, precisamente nesses desencantamento do mundo é, para 1
casos eles se contentam com hipóteses de
malhas mais am plas e formulações mais
gerais, enquanto sua necessidade dogmática
é satisfeita ao considerar que as forças ins­
Max Weber, o resultado do "processo ;í
tintivas econômicas são as forças próprias,
de intelectualização ao qual estive- \
as únicas verdadeiras e, em última instância, mos submetidos há séculos". |
as forças sempre decisivas” . O significado profundo desta progres- "
Para concluir, podemos dizer que Weber: s siva intelectualização e racionalização ;
a) aceita a perspectiva m arxista nos j consiste, na opinião de Weber; "na j
limites em que ela, vez por outra, é adotada \ consciência ou na fé que basta apenas •
como conjunto de hipóteses explicativas a [ querer para po d e r; toda coisa, em :
serem comprovadas caso por caso; j linha de princípio, pode ser dominada í
b) rejeita a perspectiva marxista quan­ \ pela razão. O que significa o desen- í
do se transforma em dogma metafísico e, I cantamento do mundo. Não é preciso j
| mais recorrer à magia para dominar 1
simultaneamente, apresenta-se como con­
J ou para agradar os espíritos, como J
cepção científica do mundo; . faz o selvagem, para o qual existem í
c) não é intenção de Weber, como \ tais poderes. A isso suprem a razão e j
escreve em A ética protestante e o espírito [ os meios técnicos". j
do capitalismo, a de “ substituir” uma inter­ I Em um mundo assim desencantado, •
pretação causai da civilização e da história, | "a tensão entre a esfera dos valores 1
abstratamente materialista, por outra espi­ I da 'ciência' e a da salvação religiosa j
I é incurável". 1
Primeira parte - y \ f i lo s o f i a d o s é c u lo X ^ ? X a° s é c u lo X X

mundo. N ão é mais preciso recorrer à magia 9 A fé c o m o


para dominar ou para obter as graças dos es­ “ s a c r i f í c i o d o i r v f e l e c t o ;/
píritos, como faz o selvagem para quem tais
potências existem. Isso é suprido pela razão
e pelos meios técnicos. E sobretudo esse o Então, a qual dos valores em luta deve­
significado da intelectualização como tal” . mos servir? Bem, é preciso dizer, sentencia
Todavia, admitido esse desencantamen- Weber, que a resposta a essa pergunta “ cabe
to do mundo, Weber então se pergunta qual a um profeta ou a um redentor” . M as, neste
será o significado da “ ciência como voca­ nosso mundo desencantado, não existe o
ção ” . E escreve que a resposta mais simples invocado profeta ou redentor. E “ os falsos
a essa interpretação é oferecida por Tolstoi: profetas das cátedras” , com seus sucedâ­
a ciência “ é absurda, porque não responde neos, não bastam para cancelar o fato fun­
à única pergunta importante para nós: o damental que o destino nos impõe de viver
que devemos fazer, como devemos viver?” em época sem Deus e sem profetas. Para
Além de pressu por a validade das quem não está em condições de enfrentar
normas da lógica e do método, a ciência virilmente esse destino da nossa época, We­
também deve pressupor que “ o resultado do ber aconselha que volte em silêncio, sem a
trabalho científico é importante no sentido costumeira conversão publicitária, mas sim
de ser ‘digno de ser conhecido’ ” . pura e simplesmente, aos braços das antigas
M as é evidente que, por seu turno, igrejas, ampla e misericordiosamente aber­
“ esse pressuposto não pode ser demonstrado tas. Elas não dificultam seu caminho. “ Em
com os meios da ciência” e “ menos ainda todo caso, é preciso realizar — é inevitável
se pode demonstrar se o mundo por elas (as — o ‘sacrifício do intelecto’, de um modo ou
ciências) descrito é digno de existir: se tenha de outro. Se ele for realmente capaz disso,
um ‘significado’, ou se haja sentido existir não o censuraremos” .
nele” . Com isso as ciências naturais “ não Em toda teologia “ positiva” , o crente
se preocupam” . Apenas para exemplificar, chega a um ponto em que é válida a máxima
a “ ciência médica não se propõe a questão famosa: “ Credo non quod, sed quia absur-
se, e quando, a vida vale a pena ser vivida. dum” . Para Weber, aí está o “ sacrifício do
Todas as ciências naturais dão resposta intelecto” : isso “ leva o discípulo ao profeta
a esta pergunta: o que devemos fazer se e o crente à igreja” . E, sendo assim, Weber
quisermos dominar tecnicamente a vida? sustenta que “ está claro que [...] a tensão
M as se querem os e devemos dominá-la entre a esfera dos valores da ‘ciência’ e a
tecnicamente, e se isso, em última instância, esfera da salvação religiosa é incurável” .
tem verdadeiramente um significado, elas
o deixam inteiramente suspenso ou então
o pressupõem para seus fins” . Da mesma
forma, as ciências históricas “ nos ensinam
a entender os fenômenos da civilização
— políticos, artísticos, literários ou sociais
— nas condições de seu surgimento. Elas
pressupõem que haja interesse em participar,
através de tal procedimento, na comunidade
dos ‘homens civis’. M as elas não estão em
condições de demonstrar ‘cientificamente’
que as coisas são assim, e o fato de elas o
pressuporem não demonstra de modo ne­
nhum que isso seja evidente. E, com efeito,
não o é em absoluto” .
Essencialmente, a ciência pressupõe a
escolha da razão científica. E essa escolha
não pode ser justificada cientificamente. A
afirmação de que “ a verdade científica é um
bem” não é uma afirmação científica.
Nem pode sê-lo, já que a ciência, em­
bora pressupondo valores, não pode funda­
mentar os valores, e não pode igualmente /V lií.v C SIUI ■d Ahiri
rejeitá-los. I7 18 {icrcii d e I S {)2 l .
Capítulo quarto - A A a* W e b e r e a s ciêrvcias k is+ ó rico -so cia is

SBiafttM
WEBER
METODOLOGIA DAS CIÊNCIAS HISTÓRICO-SOCIAIS

O objetivo da CIÊNCIA é a verdade


e único é o critério de cientificidade das várias ciências
(tanto naturais, como histórico-sociais):
chegar a produzir explicações causais dos fenômenos

Como a regressão causai vai ao infinito,


é preciso realizar sobre os fenômenos
e sobre as teorias mediante as quais os estudamos
uma seleção em relação aos valores

A R E FE R E N C IA A O S V A LO RES
é um princípio de escolha que serve para estabelecer o campo de pesquisa
em que sucessivamente a pesquisa procederá de modo cientificamente
objetivo, em vista da explicação causai dos fenômenos _____ .

A variação dos valores condiciona Instrumento metodológico


A ciência, portanto, fundamental
a variação dos pontos de vista,
suscita novos problemas, explica, não avalia: é o TIPO IDEAL:
descobre novos aspectos: exprime juízos de fato, modelo de realidade obtido
não pronuncia com a acentuação unilateral
garante, portanto,
o progresso científico juízos de valor de um ou de alguns pontos de vista,
e mediante a conexão
de uma quantidade
de fenômenos particulares
a AVALIABILIDADE DAS CIÊNCIAS correspondentes
garante a liberdade da ciência àqueles pontos de vista em um quadro
em relação às avaliações ético-político-religiosas conceituai unitário em si

SSÜlfHS
O DESENCANTAMENTO DO MUNDO

Oponto de partida da humanidade é um mundo povoado pelo sagrado,


pelo ELEMENTO MÁGICO desenvolvido por meio
das profecias judaicas e continuado pelo pensamento grego.
F o r m eio

^ A K> e da ÉTICA CALVINISTA


do progresso científico : j qUe procJUz de modo não intencional
. \ o espírito do capitalismo
.............. •» ____ ______ .
o ponto de chegada em nossa época é o
DESENCANTAMENTO DO MUNDO:
a fé de que toda coisa, em linha de princípio, pode ser dominada pela razão-,
mas essa “fé” não pode ser justificada cientificamente.
O destino nos impõe viver em uma época sem Deus e sem profetas,
e a fé religiosa se configura apenas como SACRIFÍCIO DO INTELECTO:
l tensão entre a esfera dos valores da ciência e a da salvação religiosa é incurável”
Primeira parte - .A filosofia do século X^X ao século XX

e também a indicação dos conseqüências que


lógica e praticamente derivam de sua realiza­
W eb er ção, deve ser válida para qualquer um, também
para um chinês, uma vez admitido que tenha
tido êxito. 6 isso enquanto a ele pode faltar a
"sensibilidade" para com nossos imperativos
g fl éticos, e enquanto ele pode rejeitar e certa­
■ U fí objetividade cognoscitiva mente rejeitará freqüentemente o ideal e as
das ciências sociais avaliações concretas que dele derivam, sem
incidir de tal modo sobre o valor científico de
qualquer análise conceitual. [...]
; Scire est scire per causas. 6, assim como Do que foi dito até agora resulta, portanto,
há conhecimento dos Fatos da natureza, que é carente de sentido uma tratação “obje­
também há conhecimento objetivo dos Fa­ tiva" dos processos culturais, para o qual devo
tos históricos e dos eventos sociais,- Fatos valer tomo objetivo ideal do trabalho científico
e eventos evidenciados p elos valores do a redução daquilo que é empírico a “leis". €la
pesquisador e explicados p o r meio de "leis não está carente de sentido, como muitos vezes
sociais se considerou, porque os processos culturais ou
também os processos espirituais se comportam
"objetivamente" de modo menos legal, e sim
pelos seguintes motivos: 1) porque o conheci­
A capacidade de realizara distinção entre mento das leis sociais não é conhecimento do
o conhecer e o avaliar, ou seja, entre a realiza­ realidade social, mas é conhecimento apenas
ção do dever científico de ver a verdade dos fa­ de um dos diversos instrumentos de que nosso
tos e a realização do dever prático de defender pensamento tem necessidade para tal objetivo;
os ideais próprios, este é o programa ao qual 2) porque não se pode conceber um conheci­
pretendemos nos manter firmemente fiéis. mento de processos culturais a não ser sobre
€m toda época há e sempre permane­ o fundamento do significado que tem para nós
cerá - isto é o que nos toca - uma diferença o realidade da vida, sempre individualmente
intransponível entre uma argumentação que se atuada, em determinadas relações particulares.
dirige ao nosso sentimento e à nossa capaci­ €m que sentido e em quais relações isso aconte­
dade de nos entusiasmarmos por fins práticos ce, não nos é desvelado por nenhuma lei, uma
concretos ou para formas e conteúdos culturais, vez que isso é decidido pelas idéias de valor em
ou então também para nossa consciência - no bose às quais consideramos no caso particular
caso em que esteja em questão a validade o "cultura”, fl "cultura” é uma secção finita da in­
das normas éticas - e uma argumentação que finidade carente de sentido do devir do mundo,
se dirige ao contrário a nosso poder e à nossa à qual atribui-se sentido e significado do ponto
necessidade de ordenar conceitualmente a de vista do homem. 61a é tal também para os
realidade empírica de modo tal a pretender homens que se contrapõem a uma cultura con­
uma validade de verdade empírica. € esta creta como a um inimigo mortal, e que aspiram a
proposição permanece correta apesar de que uma "volta à natureza". Pois eles podem chegar
os "valores" supremos que estão na base do a esta tomada de posição apenas enquanto
interesse prático sejam e permaneçam sempre referem a cultura concreta a suas idéias de
de importância decisiva, como ainda se escla­ valor, e acham-na "demasiadamente leviana",
recerá, por causa da direção que a atividade é esse fato puramente lógico-formal que se
ordenadara do pensamento assume a cada tem presente quando aqui se fala da conexão
momento no campo das ciências da cultura, é logicamente necessária de todos os indivíduos
e permanece verdadeiro, com efeito, que uma históricos com "idéias de valor". Pressuposto
demonstração científica correta no campo das transcendental de toda ciência da cultura não
ciências sociais, conduzida de formo metódica, é tanto que consideremos como provida de
deve ser reconhecida como justa, quando ela valor uma determinada, ou também em geral
tiver realmente atingido seu próprio objetivo, uma "cultura" qualquer, mas que nos tornemos
mesmo por um chinês. O que quer dizer, mais seres culturais, dotados da capacidade e da
precisamente, que ela deve em todo caso a s ­ vontade de assumir conscientemente posição
pirar a esse fim, embora talvez não plenamente nas relações com o mundo e de atribuir-lhe um
atuável por causa da insuficiência do material, e sentido. [...]
que a análise lógica de um ideal, considerado fl validade objetivo de todo saber empíri­
em seu conteúdo e em seus axiomas últimos, co se apóia sobre o fato, e apenas sobre o fato
.
Cãpítulo quarto -
. . .
A 'la x W e b e f e a s c iê n c ia s h is tó r ic o -s o c ia is
67
_

de qu® o realidade dada ordeno-se segundo


categorias que são subjetivas em um sentido do mundo p o d e prescindir do Fato de que o
específico, ou seja, enquanto representam o alcance dos Fins 'bons' é o mais das vezes
pressuposto de nosso conhecimento, e que acompanhado pelo uso de meios suspeitos
estão vinculadas ao pressuposto do valor da­ ou pelo menos perigosos, e pela possibilida­
quela verdade que apenas o saber empírico nos de ou também pela probabilidade do concur­
pode dar. Aquele que não considere provida de so de outras conseqüências más
valor esta verdade - e a fé no valor da verdade
científica é, de fato, produto de determinadas
culturas, e não tanto algo dado naturalmente Todavia, qual é a relação real ©ntre a ética
- não temos nada a oferecer com os meios de e o política? São talvez elas, como por vezes
nossa ciência. €m vão ele andará em busca de se disse, de fato estranhas uma para a outro?
outra verdade que possa substituir a ciência Ou, vice-versa, é verdadeiro que a "mesma"
naquilo que apenas ela pode fornecer: concei­ ética vale para a ação política assim como
tos e juízos que não são a realidade empírica, para todos as outras? Por vezes considerou-se
e que também não a reproduzem, mas que que entre estas duas afirmações se pusesse
permitem ordená-la conceitualmente de modo uma alternativa: justa seria uma ou outra. Mas
válido. No campo das ciências sociais empíricas seria verdadeiro então que uma ética qual­
da cultura, como vimos, a possibilidade de um quer poderia estabelecer normas de conteúdo
conhecimento provido de sentido daquilo que idêntico para todo tipo de relações, eróticas e
para nós é essencial na quantidade infinita do de negócios, familiares e de trabalho, paro a
devir aparece vinculada ao emprego constante mulher e para o feirante, o filho e o concorrente,
de pontos de vista de caráter específico, os o amigo e o adversário? Para as exigências da
quais, por sua vez, podem ser empiricamente ética em relação à política seria de fato tão
constatados e vividos como elementos de todo indiferente o fato de que esto opera com um
agir humano provido de sentido, mas não tanto meio bem específico como o poder, por trás
fundados validamente em base ao material do qual esconde-se a violência? Não vemos
empírico. A "objetividade" do conhecimento da talvez que os ideólogos bolchevistas, justa­
ciência social depende muito mais de que o mente enquanto aplicam à política este meio,
dado empírico está continuamente dirigido em chegam exatamente aos mesmos resultados de
vista das idéias de valor que, sozinhas, lhe for­ um ditador militar qualquer? £m que, a não ser
necem um valor cognoscitivo, e entende-se em justamente na pessoa de quem detém o poder
seu significado sobre o base delas, mas todavia e em seu diletantismo, o domínio dos conselhos
não se torna jamais um pedestal para a prova, dos operários e dos soldados se distingue do
empiricamente impossível, de sua validade. de um senhor absoluto do antigo regime? 6 em
M. UJeber, que se distingue a polêmica de qualquer outro
O m étodo das ciências histórico-sociais. demagogo daquela que contra seus adversários
desencadeiam a maior parte dos representan­
tes da presumida nova ética? £la se distingue
pela nobreza da intençãol Assim se responde.
Bem. Mas aqui fala-se dos meios, e quanto à
2 ética do convicção nobreza dos fins últimos, também os odiados
adversários pretendem tê-la de seu lado e,
e ético do responsabilidade subjetivamente, em perfeita boa-fé. "Quem com
a espada fere, pela espada perece", e a luto é
sempre luta. € a ética do Sermão da Montanha?
A/estos páginas célebres, tiradas de O Gm relação a esta - e entendemos com ela a
trabalho intelectual como profissão, M ax ética absoluta do evangelho - a coisa é mais
UJeber traça a distinção entre ética da con­ séria do que crêem aqueles que hoje citam
vicção e ética da responsabilidade. R ética com prazer seus preceitos. Não é brincadeira.
da convicção é a ética absoluta que não se Vale para ela aquilo que foi dito a propósito
preocupa com as conseqüências (fiat iustitia, da causalidade na ciência: não é uma carrua­
pereat mundus,). R ética da responsabilidade gem de praça de que se possa dispor para
é, ao contrário, a ética daquele que, atento nela montar ou dela descer ao bel-prazer. Ao
às conseqüências d e suas ações, rejeita os contrário, seu significado é ou tudo ou nada, se
meios perigosos do ponto de vista ético (fiat dela se quiser tirar algo a mais do que simples
iustitia ne pereat mundus). "Nenhuma ética banalidades. Assim, por exemplo, a parábola
do jovem rico, "o qual se afastou tristemente,
Primeira parte - A f i lo s o j- ia d o s é c u lo X J X ao s é c u lo X X

porque possuía muitas riquezas". O preceito convicção podereis expor com a máxima força
evangélico é incondicionado e preciso: entrega de persuasão que sua ação terá como conse­
aquilo que possuis, tudo, absolutamente. O qüência aumentar as esperanças da reação,
político observará: "Uma pretensão socialmente agravar a opressão de sua classe e impedir
absurda, enquanto não for atuada por todos". sua ascensão: isso não o deixará minimamente
€, portanto, taxações, expropriações, confiscos, impressionado. Se as conseqüências de uma
em uma palavra, ordens e coerções para todos. ação determinada por uma convicção pura são
Mas a lei moral não exige nada de tudo isso, e más, delas será responsável, segundo este,
nisso reside sua essência. Ou então, tomemos a não o agente, e sim o mundo ou a estupidez de
ordem: “Dá a outra face": incondicionadamente, outrem, ou a vontade divina que os criou tais.
sem perguntar qual direito tem o outro de bater. Quem, ao contrário, raciocina segundo a ética
Uma ética da falta de dignidade, a menos que da responsabilidade leva justamente em conta
se trate de um santo. €ste é o fato: é preciso os defeitos presentes na média dos homens;
ser um santo em tudo, ao menos na intenção: ele não tem nenhum direito - como justamente
é preciso viver como Jesus, como os apóstolos, disse Fichte - de neles pressupor bondade e
como são Francisco e seus confrades, e ape­ perfeição, não sente-se autorizado a atribuir a
nas então essa ética tem um sentido e uma outros as conseqüências de sua própria ação,
dignidade. De outra forma, não. Com efeito, até onde podia prevê-la. €ste dirá: “estas con­
onde, como conseqüência da ética do amor, se seqüências serão imputadas ao que eu fiz". O
ordena: “Não resistir ao mal com a violência", homem moral segundo a ética-da convicção se
o preceito que vale vice-versa para o político sente “responsável'' apenas quanto ao dever
é o seguinte: "Deves resistir oo mal com o vio­ de manter acesa a chama da convicção pura,
lência, de outro modo serás responsável se ele por exemplo, a do protesto contra a injustiça
prevalece". Quem quiser agir segundo a ética da ordem social. Reavivá-la continuamente, é
do êvangelho, abstenha-se das greves - pois este o objetivo de suas ações absolutamente
elas constituem uma coerção - e se inscreva irracionais-julgando por seu possível resultado
nos sindicatos pelegos. Mas, principalmente, as quais podem e devem ter um valor apenas
não fale de "revolução", uma vez que essa ética de exemplo. , .
não ensinará sem dúvida que seja exatamente Todavia, nem sequer com isso o problema
a guerra civil a única guerra legítima. O pacifista esgota-se. Nenhuma ética do mundo pode pres­
que age segundo o €vangelho recusará pegar cindir do fato de que o alcance de fins “bons"
em armas ou então os jogará fora, como era é o mais das vezes acompanhado pelo uso de
recomendado na Alemanha, considerando isso meios suspeitos ou pelo menos perigosos, e
um dever moral, com o objetivo de pôr fim à pela possibilidade ou também pela probabi­
guerra e com isso a toda guerra. [...] € finalmen­ lidade do concurso de outras conseqüências
te: o dever da verdade. Para a ética absoluta más, e nenhuma ética pode determinar quando
trata-se de um dever incondicionado. [...] A e em que medida o objetivo moralmente bom
ética absoluta não se preocupa com as con­ "justifica" os meios e as outras conseqüências
seqüências. €ste é o ponto decisivo. Devemos igualmente perigosas. [...] Aqui, sobre este
perceber claramente que todo agir orientado problema da justificação dos meios mediante
em sentido ético pode oscilar entre duas máxi­ o fim, também a ética da convicção em geral
mas radicalmente diversas e inconciliavelmente parece destinada a falir. 6, com efeito, ela não
opostas, ou seja, pode ser orientado segundo tem logicamente outro caminho a não ser o de
a "ética da convicção” [gesinnungsethisch], ou recusar toda ação que opere com meios perigo­
então segundo a "ética da responsabilidade" sos do ponto de vista ético. Logicamente. Sem
[verantujortungsethisch]. Não que a ética da dúvida, no mundo da realidade fazemos conti­
convicção coincida com a falta de responsa­ nuamente a experiência que o fautor da ética
bilidade e a ética da responsabilidade com da convicção transforma-se repentinamente no
a falta de convicção. Não se quer certamente profeta milenarista, e que, por exemplo, aque­
dizer isso. Mas há uma diferença intransponí­ les que pouco antes pregaram opor “o amor à
vel entre o agir segundo a máxima da ética força", um instante depois apelam à força, à
da convicção, a qual - em termos religiosos força última, a qual deveria levar à abolição de
- soa: "O cristão age como justo e entrega o toda força possível, assim como nossos chefes
resultado nas mãos de Deus", e agir segundo a militares a cada nova ofensiva diziam aos sol­
máxima da ética da responsabilidade, segundo dados: "Gsta é a último, nos levará à vitória e,
a qual é preciso responder pelas conseqüências portanto, à paz”.
(previsíveis) das próprias ações, fl um convicto M. LUeber,
sindicalista que se regule conforme a ética da O trabalho intelectual como profissão.
.............................. 69
Capítulo quarto - fiAax Webe** e as ciências kis+ó^ico-sociais _

domínio, e do outro a vitória do livre mundo


3 Possibilidade objetiva espiritual helênico, orientado para este mundo,
o qual nos deu os valores culturais de que ainda
e causação adequada hoje nos alimentamos; e que essa "decisão"
aconteceu por meio de um combate de reduzi­
R idéia d e "possibilidade objetivo" é dos dimensões como a "batalha" de Maratona
um instrumento heurístico, um expediente que, por sua vez, representou a indispensável
d e pesquisa, apto a descobrir a ''causação "condição preliminar" do surgimento da frota
adequada" de um evento. ateniense e, portanto, do curso sucessivo da
O mecanismo funciono assim: da cons­ luta pela liberdade, da salvação da autonomia
telação das condições de um evento tiro-se da cultura helênica, do estímulo positivo levodo
uma d e tais condições e s e estabelece, oo início da específica historiografia ocidental,
portanto, "qual efeito" se deveria esperar, do pleno desenvolvimento do drama e de toda
em bose a "regras de experiência", perma­ a singular vida espiritual que se desdobrou
necendo as outras condições. 6 desse modo naquela tribuna - se medida apenas quantita­
que o cientista social faz uso de "experimen­ tivamente - da história universal.
tos mentóis". € que tal batalha tenha trazido consigo,
ou tenha influenciado de modo essencial a
"decisão" entre as "possibilidades", é obvia­
mente apenas o fundamento sobre o qual
fl teoria da assim chamada "possibilida­ nosso interesse histórico - nós, que não somos
de objetiva", de que pretendemos tratar aqui, atenienses - refere-se em geral a ela. Sem o
apóia-se sobre os trabalhos do insigne fisiólogo avaliação de tais "possibilidades" e dos insubs­
J. von Kries. I\la metodologia das ciências sociais tituíveis valores culturais que são “legados",
as noções de von Kries foram até agora adota­ como resulta de nossa análise retrospectiva,
das apenas pela estatística. Que exatamente àquela decisão, seria impossível determinar o
os juristas, e em primeiro lugar os criminalistas, “significado". [...]
tenham enfrentado o problema, é coisa natural, O que quer dizer, porém, quando falamos
pois a questão da culpa penal, implicando o de mais "possibilidades"? [...]
problema da determinação das circunstâncias Se considerarmos [...] de modo ainda mais
sob as quais pode-se afirmar que alguém "cau­ preciso estes “juízos de possibilidade" - isto é,
sou" por meio de seu agir certa conseqüência as asserções sobre aquilo que “teria" acontecido
externa, é pura questão de causalidade, e no caso de uma exclusão ou de umo mudança
obviamente reveste a mesma estrutura lógica de certas condições - e se nos perguntarmos em
da causalidade histórica. [...] primeiro lugar como nós propriamente chegamos
M as a imputação causai realiza-se na a eles, não poderá restar nenhuma dúvida de
forma de um processo conceitual, que implica que se trata sem exceções de procedimentos de
uma série de abstrações, fl primeiro, e decisiva, isolamento e de generalização; isso quer dizer
é justamente a que realizamos pensando uma que decompomos o “dado" em "elementos", até
ou algumas das componentes causais objetivas que cada um destes possa ser inserido em uma
do processo mudadas em determinada direção, "regra da experiência" e se possa, portanto,
e perguntando-nos se, nas condições assim estabelecer qual efeito se “teria esperado" da
mudados do evento, seria “de se esperar" a parte de cada um deles, subsistindo os outros
mesma conseqüência (nos pontos "essenciais"), como "condições", conforme uma regra da ex­
ou então qual outra. Tomemos um exemplo da periência. [...]
práxis historiográfica de Cduard Meyer. Ninguém O "saber" sobre o qual fundamenta-se
como ele ilustrou prática e claramente o "porte" tal juízo para a justificação do "significado" do
histórico-universal dos guerras persas para o batalha de Maratona é, segundo todas as con­
desenvolvimento cultural do Ocidente. Mas siderações precedentes, de um lado um saber
como aconteceu isto, considerado logicamente? relativo a determinados "fatos” verificáveis em
Essencialmente enquanto foi desenvolvida a bose às fontes, e pertinentes à "situação histó­
tese de que houve uma "decisão" entre duas rico" (saber “ontológico"), do outro - conforme
“possibilidades'' - de um lado o desenvolvi­ vimos - um saber relativo a determinadas regras
mento de uma cultura religiosa-teocrática, cujos da experiência já conhecidas, em particular ao
princípios residem nos mistérios e nos oráculos, modo em que os homens costumam reagir a
sob a égide do protetorado persa que em dadas situações (saber “nomológico"). [...]
todo lugar utilizava o mais possível a religião fl consideração do significado causai de
nacional, como entre os judeus, como meio de um fato histórico começará em primeiro lugar
Primeira parte - filosofia do século XJX ao século XX

com q seguinte questão; se, excluindo-o do de possibilidade", de modo o penetrar com


complexo dos fatores considerados como o auxílio de regras empíricas o "significado"
condicionantes, ou então mudando-o em de­ causai dos elementos singulares do acontecer.
terminado sentido, o curso dos acontecimentos Para compreender as conexões causais reais,
teria podido, em base a regras gerais da ex­ construímos irreais.
periência, assumir uma direção de olgum modo Max UJeber,
diversamente configurada nos pontos decisivos O m étodo dos ciências histórico-cuiturois.
para o nosso interesse. Pois a nós interessa
apenas o modo com que aqueles "aspectos"
do fenômeno, que nos interessam, são tocados
por seus elementos condicionantes particulares.
£, certamente, se deste delineamento substan­
Q fl político não combina
cialmente negativo nõo se chega a um corres­ com a cátedra
pondente "juízo de possibilidade negativa”, ou
seja, se em base à situação de nosso saber, "fl cátedra nõo é para os proFetas e os
excluindo ou mudando aquele fato, o curso da dem agogos"; "a cátedra nos é conferida
história devia "ser esperado" segundo as regras apenas como mestres".
gerais da experiência exatamente ossim como
se desenvolveu, em seus pontos "historicamente
importantes", ou seja, interessantes paro nós,
entõo aquele fato resulta causalmente privado Flfirma-se - e eu assino isso - que a polí­
de significado, e não pertence, portanto, à tica não combina com a cátedra. Não combina
cadeia que o regresso causai da história quer, por parte dos estudantes. €u deploro, por
e deve, estabelecer. [...] - exemplo, que na sala de aula de meu antigo
Queremos, em relação ao uso lingüístico colega Dietrich Schãferem Berlim, os estudantes
da teoria da causalidade jurídica estabelecido pacifistas se amontoassem ao redor da cátedra
depois dos trabalhos de Hries, designar estes e fizessem um barulho parecido àquele que de­
casos de relação entre determinados complexos vem ter encenado os estudantes antipacifistas
de “condições", reunidos em unidade e consi­ diante do professor Foerster, de cujas opiniões
derados isoladamente pela análise histórica e as minhas divergem radicalmente em muitos
o “efeito" que se apresenta, com o nome de pontos. Mas nem sequer por parte dos mestres
causação "adequado" (dos elementos do efeito a política combina com a sala de aula. Mais
por parte daquelas condições); e como o faz ainda quando o mestre se ocupa de política do
também Meyer - o qual, porém, não formula ponto de vista científico. Já que a atitude política
claramente o conceito -, falamos de causação na prática e a análise científica de formações
"acidentai' onde, sobre os elementos do efeito, e partidos políticos são duas coisas diferentes.
que caem sob a consideração histórica, atuaram Quando alguém fala sobre a democracia em
fatos que produziram uma conseqüência que uma reunião popular, não faz mistério sobre a
nõo era neste sentido "adequada" a um com­ própria atitude pessoal; ao contrário, é esta a
plexo de condições pensadas como reunidas danada obrigação e dever, tomar partido de
em unidade. modo claramente reconhecível. Rs palavras de
Para voítar, portanto, aos exemplos an­ que nos servimos não são neste caso meios
tes aduzidos, o "significado" da batalha de para a análise científica, e sim de propaganda
Maratona deveria ser logicamente determina­ para atrair os outros para o nosso lado. Rquelas
do, conforme o parecer de Meyer, nõo tanto palavras não são um vomitar para fecundar o
dizendo que uma vitória persa devia ter como terreno do pensamento contemplativo, e sim
conseqüência um desenvolvimento totalmente espadas contra os adversários, instrumentos de
diferente da cultura helênica e da mundial - um luta. Mas em uma palestra ou em uma sala de
juízo desse tipo seria simplesmente impossível aula tal uso da palavra seria sacrílego. Se aí se
- e sim dizendo que aquele desenvolvimento di­ falar de “democracia", deverão ser observadas
ferente "teria" sido a conseqüência “adequada" as diversas formas, delas se analisará o modo
de tal acontecimento. [...] £sta antítese jamais em que elas funcionam, se estabelecerá quais
constitui diferenças de causalidade "objetiva" sejam as conseqüências particulares de uma
do curso dos processos históricos e de suas ou de outra na vida prática, e depois a elas se
relações causais; trata-se, porém, simplesmente contraporão as outras formas não democráticas
do fato de que isolamos abstratamente uma da organização política, e se procurará chegar
parte das “condições" encontradas na "matéria" até o ponto em que o ouvinte esteja em grau
do acontecer e as tornamos objeto de "juízos de poder tomar posição segundo os próprios
Cãpttulo quarto - A W Weber e a s ciências kistórico-sociais

ideais supremos. Mas o verdadeiro mestre evi­ uma atitude pessoal. Mas isso nõo é tudo. A
tará impeli-lo, do alto da cátedra, a tomar uma impossibilidade de apresentar "cientificamente"
atitude qualquer, tanto de modo explícito como uma atitude prática - exceto o caso da discus­
por sugestão: uma vez que é o método mais são sobre os meios para um objetivo que se
desleal, o de "fazer os fatos falarem". pressupõe já dado - deriva de razões bem
Todavia, por qual razão, precisamente, mais profundas. Semelhante empreendimento
devemos nos abster disso? Adianto que diver­ é substancialmente absurdo, enquanto entre
sos entre meus estimadíssimos colegas são do os diversos valores que presidem a ordem do
parecer de que tal discrição não seja exeqüível mundo o contraste é inconciliável. O velho Mill,
e que, mesmo que o fosse, seria loucura pre­ cuja filosofia não pretendo por outro lado louvar,
tendê-la. Ora, a ninguém pode-se demonstrar mas que sobre este ponto tem razão, diz em
cientificamente qual seja seu dever de professor certo lugar: partindo da pura experiência chega-
universitário. Dele pode-se pretender apenas a se ao politeísmo. [...] Mudado sob o aspecto,
probidade intelectual, por meio da qual saiba acontece como no mundo antigo, ainda sob o
compreender como a verificação dos fatos, das encanto de seus deuses e de seus demônios:
relações matemáticas ou lógicas e da estrutura como os gregos sacrificavam ora a Afrodite e ora
interna das criações do espírito de um lado, e a Apoio, e cada um em particular aos deuses de
do outro a resposta à questão a respeito do sua própria cidade, assim é ainda hoje, sem a
valor da civilização e de seus conteúdos parti­ magia e o revestimento daquela transfiguração
culares - e, portanto, a respeito do modo com plástica, mítica, mas intimamente verdadeira.
o qual se devo agir no âmbito da comunidade Sobre estes deuses e sobre suas lutas domina o
civil (Hulturgemeinschaft) e das sociedades destino, e sem dúvida não a "ciência'', é possível
políticas - sejam dois problemas absolutamente somente entender o que seja o divino em um
heterogêneos. Se depois ele pergunta por que ou no outro caso, ou então em uma ordem ou
não deva tratá-los ambos na universidade, na outra. Mas com isso a questão está absolu­
eis a resposta: porque a cátedra não é para tamente fechada a qualquer discussão em uma
os profetas e os demagogos. Ao profeta e sala de aula pela boca de um mestre, ainda que
ao demagogo foi dito: "Sai pelas ruas e fala de fato naturalmente não esteja de modo ne­
publicamente”. Fala, isto é, onde é possível a nhum fechado o enorme problema de vida q.ue
crítica. Na aula, onde se está sentado diante nela está contido. Aqui, porém, a palavra cabe
dos próprios ouvintes, a estes cabe calar-se e a outras forças e não às cátedras universitárias.
ao mestre falar, e reputo uma falta de sentido Quem desejará tentar "refutar cientificamente" a
de responsabilidade aproveitar tal circunstância ética do Sermõo da Montanha, por exemplo, a
- por meio da qual os estudantes são obrigados máxima: "não fazer resistência ao mal", ou então
pelo programa de estudos a freqüentar o curso a imagem de dar a outra face? Apesar disso é
de um professor onde ninguém pode intervir claro que, de um ponto de vista mundano, aí
para contestá-lo - para inculcar nos ouvintes se prega uma ética da falta de dignidade: é
as próprias opiniões políticas ao invés de tra­ preciso escolher entre a dignidade religiosa,
zer-lhes subsídios, como o dever impõe, com que é o fundamento desta ética, e a dignidade
os próprios conhecimentos e as próprias expe­ viril, que prega algo bem diverso: "Deves fazer
riências científicas. Pode certamente ocorrer que resistência ao mal, de outra forma és também
o indivíduo consiga apenas imperfeitamente responsável se este prevalecer". Depende da
esconder suas próprias simpatias subjetivas. própria atitude em relação ao fim último que
6ntão ele se expõe à crítica mais impiedosa um seja o diabo e o outro o deus, e cabe ào
diante do tribunol de sua consciência. € isso indivíduo decidir qual seja para ele o deus e
por outro lado não prova nada, uma vez que qual o diabo. 6 assim ocorre para todos os
também outros erros puramente de fato são ordenamentos da vida. [...]
possíveis, e nõo podem contrastar o dever de M as o destino de nossa civilização é
procurar a verdade. €u me recuso a admiti-lo justamente este, de nos termos tornado hoje
também e precisamente pelo interesse pura­ novamente e mais claramente conscientes
mente científico. €stou disposto a provar sobre daquilo que um milênio de orientação - que
as obras de nossos historiadores que, toda vez se presume ou se afirma exclusiva - para o
que o homem de ciência adianta seu próprio grandioso pothosda ética cristã havia ocultado
juízo de valor, cessa a inteligência perfeita do a nossos olhos.
fato. Todòvia, isso extrapola o tema deste dis­ Todovia, basta agora desses problemas
curso e exigiria longa explicação. [...] que nos levam demasiado longe. Pois, quando
Até agora falei apenas dos motivos prá­ uma parte de nossos jovens quisesse dar a tudo'
ticos que aconselham evitar a imposição de isso esta resposta: "Sem dúvida, mas viemos à
Primeira parte - jA filo sofia d o s é c u lo XJX a o s é c u lo XX

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aula para encontrar uma experiência que não
consista apenas em análises e constatações 6 ainda: "Um ato econômico capitalista sig ­
de fato", eles incorreriam no erro de procurar nifica poro nós um ato que se baseia sobre
no professor algo de diverso daquilo que está a expectativa de ganho, qu e deriva do
diante deles, ou seja, um chefe e não um mestre. desfrutar habilmente as conjunturas da troca
fl cátedra nos é conferida apenas como mestres. e, portanto, das probabilidades de ganho
Trata-se de duas coisas bem diferentes, e disso formalmente pacíficas".
é fácil nos convencermos. Permitam-me conduzi-
los mais uma vez à América, onde estas coisas
podem ser vistas freqüentemente em sua mais Apenas o Ocidente produziu os parla­
crua originalidade. Ojovem americano aprende mentos de "representantes do povo”, eleitos
incomparavelmente menos que o nosso. Ape­ periodicamente, os demagogos, e o domínio
sar de uma incrível quantidade de exames, o dos chefes de partido na vesto d0 ministros
sentido de sua vida de escola ainda não se parlamentarmente responsáveis, embora, na­
tornou tal para fazê-lo passar por um "tipo de turalmente, em todo o mundo tenham assistido
exames’' (€xamessmensch), como acontece com partidos para a conquista do poder político. €
ojovem alemão. Isso porque lá se está apenas o Cstado, sobretudo, com o significado de um
nos inícios da burocracia, que exige o diploma instituto político, com uma Constituição racional­
de exame como bilhete de ingresso no reino mente promulgada, com um direito racionalmen­
dos ganhos burocráticos. O jovem americano te constituído, com uma administração dirigida
nõo respeita nada nem ninguém, nenhuma tra­ por empregados especializados segundo regras
dição e nenhuma profissão, além de sua obra racionalmente enunciadas, apenas o Ocidente
diretamente pessoal: tal é para o americano a moderno o conhece nessa combinação, para
"democracia". Por mais disforme que seja da nós importante, das várias características de­
realidade, este é seu modo de pensar e aqui terminantes, fora de todas as tentativas em tal
devemos levar isso em conta. Do mestre que sentido de outros tempos e de outros países.
está diante dele, o jovem americano tem esta C assim acontece com a maior força de
opinião: ele me vende suas noções e seus mé­ nossa vida moderna: o capitalismo.
todos em troça do dinheiro de meu pai, assim fl sede d© .lucro, a aspiração o ganhar
como o feirante vende couve para minha mãe. dinheiro o mais possível, nõo tem em si mesma
Com isso, tudo está dito. Todavia, se o mestre é nada em comum com o capitalismo. Csta aspi­
por acaso um campeão de futebol, nesse campo ração encontra-se nos camareiros, médicos,
ele é também um chefe. Mas se não for tal (ou cocheiros, artistas, coristas, empregados corrup­
algo de semelhante em outros esportes), ele tíveis, soldados, bandidos, nos cruzados, nos
é simplesmente um mestre e nada mais, e a freqüentadores de casas de jogo, nos mendi­
nenhum jovem americano ocorrerá que ele lhe gos; pode-se dizer em ali sorts and conditions of
venda "concepções do mundo" (UJeltanschauun- men, em todas as épocas de todos os países da
geri) ou normas de conduta. terra, onde havia e há a possibilidade objetiva.
M. UUsber, Deveria já entrar nos mais rudimentares
O trabolho intelectual como profissão. elementos da educação histórica o abandono
de uma vez para sempre dessa ingênua defi­
nição do conceito de capitalismo.
fl ânsia desmedida de ganho não é de
5 €m busca de uma definição modo nenhum idêntica ao capitalismo, e muito
menos corresponde ao "espírito" deste.
de "capitalismo" O capitalismo pode aliás se identificar com
uma disciplina, ou pelo menos com um tempero
O que é o "capitalismo"? "R ânsia d es­ racional de tal impulso irracional. Cm todo caso,
medida de ganho nõo é de fato idêntica ao o capitalismo é idêntico com a tendência ao
capitalismo, e muito menos corresponde ao ganho em uma empresa capitalista racional
'espírito' dele. O capitalismo p od e aliás se e contínua, ao ganho sempre renovado, ou
identificar com uma disciplina, ou pelo me­ seja, à rentabilidade. € assim ele deve ser.
nos com um tempero racional de tal impulso Cm uma ordem capitalista de todo a economia,
irracional. €m todo coso, o capitalismo é idên­ um empreendimento capitalista particular, que
tico à tendência de ganho em uma racional não se orientasse segundo a eventualidade de
0 contínuo empresa capitalista, ao ganho alcançar a "rentabilidade", seria condenado a
sem pre renovado, isto é, à rentabilidade". perecer. Definomo-lo mais exatamente do que
geralmente se faz.
73
Capítulo quarto - A W W e b e r e a s c iê n c ia s h is tó r ic o -s o c ia is ...

Um o to econômico capitalista significa para obriguem a um cálculo preciso. Mas estes são
nós um ato que se baseia sobr® a expectativa elementos que se referem apenas ao grau da
de ganho que deriva do desfrutar habilmente racionalidade do proveito capitalista.
as conjunturas da troca, portanto, de proba­ Para o conceito, importa apenas que o
bilidades de ganho formalmente pacíficas, fl confronto entre o resultado calculado em di­
aquisição violenta (formal e atual) segue suas nheiro e a entrada calculada em dinheiro, em
leis particulares, e não é útil - mesmo que não qualquer forma, por mais primitiva que seja,
se possa proibir de fazê-lo - colocá-la sob a determine o ato econômico. Neste sentido
mesma categoria da atividade orientada se ­ houve "capitalismo" e “empresas capitalistas"
gundo as probabilidades de ganho na troca. também com certa racionalidade no cálculo
Quando se tende de modo racional ao ganho do capital em todos os países civilizados do
capitalista, a ação correspondente orienta-se mundo; pelo menos até onde remontam os do­
conforme o cálculo do capital. cumentos econômicos que possuímos. Na China,
Isso quer dizer que ela ordena-se segundo na índia, na Babilônia, no Cgito, na antiguidade
um emprego preestabelecido de prestações mediterrânea, na Idade Média e na era moder­
reais ou pessoais como meios para conseguir na. Existiram não só empresas isoladas, mas
um proveito, de modo tal que a consistência também complexos econômicos que se basea­
patrimonial estimada em dinheiro no encerra­ vam sobre empresas capitalistas particulares
mento das contas supere o capital, ou seja, o sempre novas, e também empresas contínuas;
valor estimado, posto na balança, dos bens embora o comércio por longo tempo não tivesse
instrumentais reais empregados na aquisição o caráter de nossas empresas continuativas,
por meio da troca. No caso de uma empresa mas muito mais o de uma série de atos singu­
contínua a consistência patrimonial em dinhei­ lares e apenas lentamente, na atividade dos
ro calculada periodicamente na balança deve grandes comerciantes, penetrasse uma ligação
periodicamente superar o capital. Tanto se se íntima, com a instituição de várias seções. €m
tratar de um complexo de mercadorias in natu- todo modo, a empresa e o empreendedor
ra entregues em consignação a um mercador capitalista, não só de ocasião mas também
viajante cujo proveito final pode consistir em com atividade contínua, são antiquíssimos e se
outras mercadorias in natura, como de uma difundiram em todo lugar. Mas o Ocidente tem
fábrica cujas instalações particulares, edifícios, um grau de importância que não se encontra
máquinas, reservas de dinheiro, matérias-pri­ alhures. € desta importância dão a razão as
mas, produtos acabados e semitrabalhados espécies e formas e direções do capitalismo
representam exigências às quais correspondem que não surgiram em outros lugares. Cm todo
compromissos: o importante é que seja feito um o mundo houve estados mercantes dedicados
cálculo do capital expresso em dinheiro, tanto ao comércio por atacado e por varejo, local e
de modo moderno, com livros regulares, como em países distantes, houve empréstimos de
também de modo primitivo e superficial. toda espécie, eram muito difundidos bancos
C no início da empresa tem lugar um ba­ com funções bastante diversas, mas pelo me­
lanço inicial, como antes de todo ato comercial nos semelhantes em substância às dos bancos
particular um cálculo para o controle e um ensaio de nosso século XVI; empréstimos marítimos,
da correspondência do ato com o objetivo pre­ negócios e sociedades em comodato, consig­
fixado e, no encerramento, para verificar aquilo nações, eram profissionalmente muito difundi­
que se ganhou, tem-se um cálculo retrospectivo: dos. Sempre, onde houve finanças em base
o balanço de encerramento. O balanço inicial de monetária dos entes públicos, esteve presente
uma consignação é, por exemplo, o acerto de o banqueiro; na Babilônia, na Grécia, na (ndia,
valor expresso em dinheiro que devem ter as na China e em Roma; para o financiamento em
mercadorias para as partes contraentes, caso primeiro lugar das guerras e da pirataria, para
sejam elas ainda não em si mesmas dinheiro; provisões e trabalhos de todo tipo, na política
o balanço de encerramento é a estimativa final colonial como colonizadores, plantadores ou
que é fundamento da repartição do ganho e portadores de concessões a escravos ou com
da perda. Um cálculo está como fundamento trabalhadores forçados de várias formas; para
de todo ato particular do consignatário, desde o concessão de empreitada de propriedades,
que este aja racionalmente. Que não se tenham de profissões, e principalmente de impostos,
um cálculo e uma estimativa realmente exatos; para o financiamento de chefes-de-partido para
que se proceda a modo de estimativa ou então as eleições e de chefes de mercenários poro
tradicional e convencionalmente, são coisas que a guerra civil; em suma, como especuladores
acontecem ainda hoje em toda forma de empre­ sobre probabilidades de todo tipo avaliáveis
sa capitalista, sempre que as circunstâncias não em dinheiro. Csta espécie de empreendedores,
PtÍ1fl€ÍTCil parte - y\ filo sofia d o s é c u lo X *-7 X a o sé c u lo X X

os aventureiros copitolistos, existiu em todo o dos fatores técnicos decisivos; em suma, pelo
mundo. fundamento de um cálculo exato; o que, na rea­
Suas possibilidades eram - com exceção lidade, significa o caráter particular da ciência
do comércio e dos negócios de crédito 0 do européia, especialmente das ciências naturais
banco - ou de caráter puramente irracional, es­ com fundamento racional, experimental e mate­
peculativo, ou eram orientadas para a aquisição mático. O desenvolvimento dessas ciências e da
pela violência, para a predação, tanto como técnica que sobre elas se baseia recebeu, por
butim ocasional de guerra ou butim crônico 0 sua vez, e recebe até agora, impulsos decisivos
fiscal, ou seja, a espoliação dos súditos. O ca­ das probabilidades de rendimento capitalista,
pitalismo colonial dos grandes especuladores, que se ligam ò sua aplicação econômica como
e o capitalismo financeiro moderno do tempo "prêmios”.
de paz, mas principalmente e d© modo espe­ M. Weber,
cífico o capitalismo de guerra, levam também fí ético protestante
hoje no Ocidente essa marca; e alguns ramos e o espírito do capitalismo.
- mas apenas alguns - do comércio internacio­
nal, tanto hoje como em qualquer tempo, os
seguem de perto.
Mas o Ocidente conhece na época moder­ 6 R ética protestante
na uma espécie de capitalismo bem diferente,
e que por outro lado jamais se desenvolveu: a
e o espírito do capitalismo
organização racional do trabalho formalmente
livre, fl mesma organização do trabalho não "Fl voloroçõo religioso do trobolho pro­
livre chegou a certo grau de racionalidade fissional leigo, incansável, contínuo, sistemá­
apenas nas plantações e, em medida muito tico, como do mais oito meio ascético, e ao
limitada, nas colônias penais da antiguidade; mesmo tempo como da mais alta, segura e
e teve um grau de racionalidade ainda menor visível confirmação do homem regenerado
nas curtes e fábricas e indústrias domésticas e da sinceridade de sua fé, devia s e r o
das grandes propriedades agrícolas com o fermento mais poderoso que s e pudesse
trabalho dos escravos e dos servos da gleba pensar paro a expansão daquela concepção
no princípio da era moderna. Pora o trabalho de vido, que definimos como 'espírito do
livre estão documentadas, fora do Ocidente, capitalismo' ".
verdadeiras e próprias "indústrias domésticas"
apenas em casos isolados, e o emprego de
assalariados diaristas que naturalmente se en­ Quanto maior se torna a propriedade, tan­
contra em todo lugar, fora exceções muito raras to mais grave se torna - se a disposição ascética
e particularíssimas, todavia bem distantes das supera a prova - o sentimento da responsabi­
organizações industriais modernas (trotava-se lidade para mantê-la intacta para a glória de
especialmente de monopólios de €stado), não Deus e de aumentá-la com um trabalho sem
produziu jamais grandes manufaturas e nem trégua. Também a gênese deste estilo da vida
sequer uma organização racional de profissão remonta com tais raízes, como tantos elementos
de tipo patronal no modelo da de nossa Idade do espírito capitalista moderno, à Idade Média,
Média, fl organização racional da indústria mas apenas na ética do protestantismo ascético
orientada conforme as conjunturas do mercado encontrou seu conseqüente fundamento moral.
e não conforme probabilidades políticas ou irra­ Sua importância para o desenvolvimento do
cionalmente especulativas não é, porém, o único capitalismo é evidente.
fenômeno particular do capitalismo ocidental, fl ascese leiga protestante - assim po­
fl organização racional moderna da atividade demos resumir aquilo que dissemos até aqui
capitalista não teria sido possível sem outros - agiu com grande violência contra o gozo
dois importantes elementos de seu desenvolvi­ desmedido da propriedade, e restringiu o con­
mento: a separação da administração doméstica sumo, principalmente o consumo de luxo. Por
da empresa, que doravante domina a vida outro lado liberou, em seus efeitos psicológicos,
econômica hodierna; e, estreitamente ligada a a aquisição de bens dos obstáculos da ética
esta, a capacidade racional dos livros. [...] tradicionalista, enquanto não só a legalizou,
O capitalismo especificamente ocidental mas até, no sentido que expomos, a viu como
foi, evidentemente, determinado em grande desejada por Deus. fl luta contra os prazeres da
medido tombém pelo desenvolvimento das pos­ carne e o apego aos bens exteriores não era,
sibilidades técnicas. Sua racionalidade é hoje como atesta expressamente, com os puritanos,
fortemente condicionada pela calculabilidade também o grande apologeta dos Quakers,
75
Capítulo quarto - M w W e b e f e a s c iê n c ia s k is + ó fic o -s o c ia is ------

Barclay, uma luta contra o ganho racional, e sim uma exata determinação em cifras quão forte
contra o emprego irracional da propri0dad0. 6 tenha sido esse efeito. Na Nova Inglaterra a
isso consistia no alto apreço, condenado como ligação aparece tão evidente, que naturalmente
idolatria, das formas ostensivas do luxo que não fugiu ao olho de um historiador excelente
oram tão próximas do modo de sentir f0udal, 0m como Doyle. Mas também na Holanda, que
v®z do emprego desejado por Deus, racional e foi dominada pelo calvinismo rigoroso apenas
utilitário, para os fins da vida do indivíduo e da por sete anos, a maior simplicidade da vida
coletividade. Não se queria impor ao proprietá­ que dominava nos grupos religiosamente mais
rio a maceração, mas o uso d© sua riqueza para sérios, ligada às 0norm©s riquezas, levou a uma
coisas necessárias 0 de utilidade prática. ansiedade excessiva de acumular capitais.
O conc0ito de comfort alarga de modo M. Weber,
característico o círculo dos fins, moralmente ft ética protestante
lícitos, em que a riqueza pode ser empregada, e o espírito do capitalismo.
e naturalmente não é um acaso que se tenha
observado justamente entre os mais conse­
qüentes seguidores de toda esta concepção, os
Quakers, um desenvolvimento mais precoce e O desencantamento
mais manifesto do estilo de vida, que s© remete
a ess© conceito. Contra as brilhantes aparências do mundo
da pompa cavalheiresca, que, apoiando-se
sobre bases econômicas pouco sólidas, prefere é destino de nosso époco, "com suo ca­
uma exígua elegância na simplicidade modesta, racterística racionalização e intelectualização,
0I0S opõ0m como ideal a limpa e sólida como­ e sobretudo com seu desencantamento do
didade do home burguês. mundo", o de ser uma época sem Deus 0
No campo da produção da riqueza priva­ sem profetas. 6 isso impõe o coda um fazer
da, a ascese combatia contra a desonestidade com coragem as próprias escolhas e seguir "o
e contra a avidez puramente impulsiva qu© demônio que segura os fios de sua vida".
cond©nava como covetousness 0 “mamonismo’';
ou S0ja, o esforço tenso para a riqueza, pelo
único escopo final d© s©r rico. Mas a ascese Que a ciência hoje seja uma "profissão"
©ra a força "qu© quer continuamente o bem e especializado, posta a serviço da consciência
continuamente o mal", isto é, cria aquilo que, de si e do conhecimento d© situações de fato,
segundo sua própria interpretação, é mal: a © não uma graça de visionários e profetas,
riqueza e suas tentaçõ©s. dispensadora de meios de salvação e de
Pois ©Ia não soment© via, com o flntigo revelações, ou um elemento da meditação de
Testamento e em plena analogia com o apreço sábios e filósofos sobre o significado do mundo,
ético das “obras boas", no esforço para a rique­ é certamente um dado de fato, inseparável de
za como fim a si mesma, uma coisa reprovável nossa situação histórica, à qual, se quisermos
em máximo grau, e na conquista, ao contrário, permanecer fiéis a nós mesmos, não podemos
da riqueza, como fruto do trabalho profissio­ escapar. € s© novamente surge em vós o Tolstoi
nal, a bênção de Deus. Mas, coisa ainda mais qu© pergunta: “Se, portanto, não é a ciência que
importante: a avaliação religiosa do trabalho o faz, quem responde então à pergunta: o que
profissional leigo, incansável, contínuo, siste­ devemos fazer? € como devemos regular nossa
mático, como o mais elevado meio ascético, e vida?",, ou então, na linguagem que há pouco
ao mesmo t©mpo como a mais ©levada, segura usamos: “Fl qual dos deuses em luta devemos
e visível confirmação e prova do homem rege- servir? Ou talvez algum outro, e, nesse caso,
nsrado ©da sinc0ridad© d© sua fé, devia ser a quem?", é preciso dizer que a resposta cabe a
alavanca mais poderosa que se pudesse pensar um profeta ou a um redentor. Se este não se
para a expansão daquela concepção da vida, encontra entre nós, ou se o anúncio dele não
que definimos como "espírito do capitalismo". é mais crido, sem dúvida não adiantará fazê-lo
€ se ligarmos a limitação do consumo com este descer sobre esta terra em que milhares de
desencadeamento do esforço dirigido ao ga­ professores tentem roubar-lhe o papel em suas
nho, o resultado exterior é evidente: formação aulas, como pequenos profetas privilegiados
do capital por meio de uma constrição ascética ou pagos pelo €stado. Isso servirá apenas
à poupança. Os obstáculos que se opunham para esconder toda a enorme importância e o
ao consumo daquilo que se tinha adquirido significado do fato decisivo, ou seja, qu© o pro­
deviam aumentar seu emprego produtivo como feta, que tantos de nossa mais jovem geração
capital de investimento. Naturalmente foge a invocam, não existe. O interesse interior de um
Primeira parte - jA filo sofia d o s é c u lo XJX a o s é c u lo XX

homem de foto "musical" em sentido religioso tenha um significado)? Todavia, as teologias


nunca e jamais estará satisfeito, creio, com o não se contentam em geral com esse pressu­
expediente pelo qual se procura esconder-lhe posto (pertinente essencialmente à filosofia da
com um sucedâneo, como são todos estes religião), flo contrário, elas partem em geral do
falsos profetas na cátedra, o fato fundamental prossuposto ainda mais remoto pelo qual deter­
de que o destino lhe impõe viver em uma épo­ minadas "revelações" devem ser absolutamente
ca sem Deus e sem profetas, fl seriedade de cridas enquanto fatos que revestem uma impor­
seu sentimento religioso deveria, parece-me, tância para a salvação - como tais, ou seja, que
rebelar-se diante disso. Ora, sereis induzidos a por si conferem um pleno significado à conduta
perguntar: mas como nos comportamos diante na vida - e pelo fato de que determinados mo­
do fato da existência da "teologia" e de suas dos de ser e de agir possuem a qualidade da
pretensões a se apresentar como “ciência"? Nõo santidade, ou seja, constituem uma conduta de
nos atormentemos para encontrar uma respos­ vida de significado plenamente religioso ou são
ta. "Teologia" e “dogmas" sem dúvida não se os elementos desta, fl pergunta que a teologia
encontram sempre e em todo lugar, mas nem se faz é, portanto, a seguinte: como podem
sequer exclusivamente no cristianismo. Nós os ser interpretados, no âmbito de uma imagem
encontramos (olhando para trás, no passado) complexiva do cosmo ( Gesamtuueltbild), esses
em formas muito desenvolvidas também no pressupostos que devem ser aceitos de modo
Islã, no maniqueísmo, na gnose, no orfismo, absoluto? Tais pressupostos encontram-se,
no parsismo, no budismo, nas seitas hindus, portanto, para a teologia, além daquilo que é
no taoísmo, nos upanixades e, naturalmente, "ciência". Cies não são um "saber" no sentido
também no judaísmo. Como é natural, d e­ corrente, e sim um "possuir". Não podem ser
senvolveram-se sistematicamente em medida substituídos - a fé ou os outros estados de
bastante diversa. € não é por acaso que não só graça - por nenhuma teologia, para quem não
o cristianismo ocidental os tenha construído, ou os "possua". Muito menos ainda, portanto, por
tenda a construí-los de modo mais sistemático outra ciência. Ou melhor, em toda teologia “po­
- diversamente daquilo que a teologia é, por sitiva" o crente chega ao ponto onde é válida
exemplo, para o judaísmo - mas também que a máxima agostiniana: "Credo non quod, sed
seu desenvolvimento tenha tido aqui um signi­ quio absurdum est". fl capacidade de realizar
ficado histórico muitíssimo mais importante. Cste esse extremo "sacrifício do intelecto" constitui o
é um produto do espírito grego, do qual deriva caráter decisivo do homem que pertence a uma
toda a teologia do Ocidente, assim como (evi­ religião positiva. C, assim estando as coisas,
dentemente) toda a teologia oriental deriva do é claro que, para desonra (ou melhor, como
pensamento indiano. Toda a teologia consiste conseqüência) da teologia (que desvela esse
no racionalização intelectual do potrimonium estado de coisas), a tensão entre a esfera dos
salutis. Nenhuma ciência é absolutamente valores da "ciência" e a da salvação religiosa
privada de pressupostos, e nenhuma pode é insanável.
estabelecer o fundamento do próprio valor O "sacrifício do intelecto" levo, como é
para quem rejeite tais pressupostos. Contudo, natural, o discípulo ao profeta e o crente à
toda teologia introduz alguns pressupostos igreja. Mas ainda não surgiu uma nova profecia
específicos relativamente à própria atividade e, simplesmente pelo fato de que muitos intelec­
portanto, à justificação da própria existência. Cm tuais modernos (retomo aqui de propósito esta
vários sentidos e com diferente alcance. Para imagem que provocou muitas suscetibilidodes)
toda teologia, por exemplo, também para a tenham sentido a necessidade de decorar, por
induísta, vige este pressuposto: o mundo deve assim dizer, sua alma com objetos antigos g a­
ter um significado; e a questão a ser resolvida rantidos como originais, e se tenham lembrado
é a seguinte: como é preciso interpretá-lo, para nessa ocasião que entre estes há também a
que isso possa ser pensado? De modo total­ religião, que eles certamente não possuem,
mente semelhante à teoria do conhecimento mas que substituem com uma espécie de capela
de Kant, que portia do pressuposto de que há privada enfeitada como de brincadeira com
um conhecimento científico e este é válido, e, imagens sacras de todos os países, ou então
portanto, se perguntava: em virtude de quais com todo tipo de experiências de vida às quais
condições do pensamento isso é possível (para conferem a dignidade de um meio místico de
que tenha um significado)? Ou então, como os salvação e que vão vender na praça. Cm tudo
estetas modernos que (explicitamente - como, isso trata-se simplesmente de charlatanice ou
por exemplo, G. von lukács - ou então de fato) de auto-ilusão. Mas não é de fato uma charlata­
partem do pressuposto: “Há obras de arte", e nice, e sim algo muito sério e sincero - embora
se perguntam: como isso é possível (para que não ausente, por vezes, de um mal-entendido
Capitulo quarto - 7V\a* W e b e r e a s c iê n c ia s h is tó r ic o -s o c ia is

o respeito de seu próprio significado - o fato sem ter compreendido que entre as paredes
de que muitas dessas associações de jovens, da sala de aula uma só virtude tem valor: a
surgidas no silêncio destes últimos anos, dêem simples probidade intelectual. €la nos impõe
às suas relações comuns, humanas, o sentido colocar às claras que hoje todos aqueles que
de uma ligação religiosa, cósmica ou mística. Se vivem na espera de novos profetas e novos
for verdade que todo ato de genuína irmandade redentores se encontram na mesma situação
pode se ligor com a consciência de que com isso descrita no belíssimo canto da escolta iduméia
é de algum modo acumulado em um domínio durante o período do exílio, que se lê no oráculo
ultrapessoal algo que não será perdido, ainda de Isaías: "Uma voz choma de Seir em £dom:
assim me parece duvidoso que a dignidade das Sentinela! Quanto durará ainda a noite? 6 a
relações propriamente humanas entre os mem­ sentinela responde: Virá a manhã, mas ainda
bros de umo comunidade se torne elevada por é noite. Se quiserdes perguntar, voltai outra
meio de tais interpretações religiosos. Todavia, vez". O povo, ao qual era dado essa resposta,
isso também nõo combina com nosso tema. perguntou e esperou bem mais de dois milê­
é o destino de nossa época, com sua nios, e sabemos de seu trágico destino. Disso
característica racionalização e intelectualização, desejamos extrair a advertência de que anelar
e principalmente com seu desencantamento do e esperar não basta, e nos comportaremos de
mundo, que exatamente os valores supremos outra maneira: realizaremos nosso trabalho e
e sublimes se tenhom tornado estranhos ao cumpriremos a "tarefa quotidiana" - em nossa
grande público, para refugiar-se no reino extra- qualidade de homens e em nossa atividade
mundano do vido místico ou na fraternidade das profissional. Isso é simples e fácil, quando cada
relações imediatas e diretas entre os indivíduos. um tiver encontrado e seguir o demônio que
Não é por acaso que nossa melhor arte seja ín­ segura os fios de suo vido.
tima e não monumental, e que hoje apenas, no M. UJeber,
seio dos mais restritas comunidades, na relação O trabalho intelectual como profissão.
d e homem para homem, no pianissimo, palpite
aquele indefinível que há um tempo penetrava e
fortificava como um sopro profético e uma chama
impetuosa as grandes comunidades. Provemos 8 fl ciência se fundamenta
forçar e “suscitar" um sentido monumental da
arte, e eis nascer um aborto lamentável como sobre uma escolha ética
o de numerosos monumentos comemorativos
dos últimos vinte anos. Algo de semelhante se
Pi ciência nõo pod e responder à única
reproduz na esfera interior, com efeitos ainda
mais deletérios, caso se procure cogitar novos pergunta importante para nós: "O que deve­
mos fazer? Como devemos viver?" C, além do
formas religiosas sem uma novo e genuína
mais, a própria ciência é o resultado de uma
profecia. € a profecia formulada pela cátedra
escolha - da escolha que seus resultados
poderá talvez dar vida a seitas fanáticas, mas
sejam para nós "dignos de serem conheci­
nunca a umo comunidade autêntica. A quem não
dos". M as "este pressuposto nõo p od e ser
esteja em grau de enfrentar virilmente esse des­
por sua vez demonstrado com os meios da
tino de nossa época é preciso aconselhar que
ciência”. "
volte em silêncio, sem a costumeira conversão
publicitário, e sim fronca e simplesmente, para
os braços das antigas igrejas, larga e misericor­
diosamente abertos. Cias não lhe tornam difícil Voltemos ao ponto de partida. Dados e s­
a passagem. £m todo caso, é preciso realizar tes pressupostos intrínsecos, vejamos qual é o
- é inevitável - o "sacrifício do intelecto", de um significado do ciência como vocação, o partir do
ou de outro modo. Não o reprovaremos, caso momento em que naufragaram todas as ilusões
seja realmente capaz disso. Pois semelhante precedentes: "meio para o olcance do verda­
sacrifício do intelecto em favor de uma incon- deiro ser", "da verdadeira arte", “da verdadeira
dicionoda entrega religioso é sempre algo de natureza", "do verdadeiro Deus", "da verdadeira
moralmente diferente daquele modo de evitar felicidade". A resposta mais simples foi dada
a simples probidade intelectual que se verifica porTolstoi com estos palavras: ”€ absurda, por­
quando, nõo tendo o coragem de perceber que nõo responde à única pergunta importante
claramente a própria posição última, se alivia poro nós: o que devemos fazer? como devemos
esse dever por meio do refúgio no relativo. G viver?" O fato de que nõo responda a isso é
o considero também mais respeitável do que absolutamente incontestável. Trata-se apenas
aquela profecia que se proclama da cátedra de perguntar-se em que sentido não dê "ne­
Primeira parte - filosofia do século X»I?X ao século XX

nhuma resposta", ©S0 0m lugar desta ©Ia não tos da medicina © o código penal impedem
puder por acaso dar qualqu0r auxílio a quem que o médico desista, fl ciência médica não
S0 colocar a questão em s0us termos exatos. se pergunta se 0 quando a vida valha a pena
Hoje se qu0r fr0qüentemente falar d0 ciência ser vivida. Todas as ciências naturais dão uma
"sem pressupostos". (Existirá alguma? Depende resposta a esta pergunta: o que devemos fazer
daquilo que se queira entender. Pressuposto de se quisermos dominar tecnicamente a vida? Mas
qualquer trabalho científico é sempre a validade se queremos e devemos dominá-la tecnica­
das regras da lógica e do método: fundamentos mente, 0 s© isso, d0finitivam0nte, tiver de fato
gerais d0 nossa orientação no mundo. Ora, um significado, 0las o deixam totalmente em
tais pressupostos, ao menos quanto ò nossa suspenso ou então o pressupõem por seus fins.
qu0stão particular, não são minimam0nt0 pro­ Tomemos, se quiserdes, uma disciplina como
blemáticos. Pressupõe-se, além disso, que o a crítica da art©. O fato de qu© haja obras d©
resultado do trabalho científico seja importante art© constitui, para a estética, um pressuposto.
no sentido que seja "digno de ser conhecido" Cia procura ©stab©l©c©r ©m quais condições
(uiissensiuert). C aqui evident0mente têm sua isso s© vsrifiqu©. Mas não s© põ© a p©rgunta
raiz todos os nossos problemas. Uma vez que s© o domínio da art© não seria por acaso um
este pressuposto não pod0 ser por sua vez reino d© magnificência diabólica, um reino deste
demonstrado com os meios da ciência. Pode ser mundo, ©por isso intimamente oposto ao divino
apenas explicado em vista de seu significado 0, por seu caráter intrinsecamente aristocráti­
último, qu© será preciso acolher ou rejeitar co, ao espírito de fraternidade. Cia, portanto,
conforme a posição pessoal última assumida não se pergunta se devam ©xistir obras d©
diante da vida. art©. Ou então, tomemos a jurisprudência:
Bem diverso, além disso, é o tipo de rela­ ©Ia estabelece aquilo que é válido segundo
ção do trabalho científico com est0s s0us pres­ as regras do pensamento jurídico, em part©
supostos, conforme sua estrutura. Rs ciências imperativamente lógico e em parte vinculado
naturais como a física, a astronomia, a química, por esquemas convencionais; em outras pa­
pressupõem como evidente em si qu© as l©is lavras, estabelsc© se são reconhecidas como
últimas do acontecer cósmico - construtíveis, obrigatórias determinadas regras jurídicas e
até onde chega a ciência - sejam dignas d0 s0r determinados métodos para sua interpretação.
conh0cidas. Não só porqu© com estas noções Não decide se deva haver 0 direito e se devam
se podem atingir sucessos técnicos, mas - se ser formuladas exatamente aquelas regras;
devem ser "vocação" - "por. si mesmas". Cste ela pod© indicar apenas isto: caso se queira
pressuposto, por sua vez, não é absolutamente atingir um resultado, o meio para alcançá-lo
demonstrável; e muito menos se pode demons­ nos é dado por esta regra jurídica, conforme
trar se o mundo por elas descrito seja digno de as normas de nosso pensamento jurídico. Ou
existir: se tenha um “significado", e S0 haja um tomai ainda as ciências históricas (historischen
S0ntido nele existir. Com isso as ciências não Hulturuuissenschafterí). Cias nos ensinam a en­
se preocupam. Ou então tomai uma t0cnologia tender os fenômenos da civilização (Hulturers-
prática tão desenvolvida ci0ntificom0nt0 como a cheinungerí) - políticos, artísticos, literários ou
medicina moderna. O “pressuposto'' geral desta sociais - nas condições de seu surgimento. Mas
atividad© 0 - em palavras pobres - qu© seja não respondem em si à pergunta a respeito do
considerada positiva, unicamente como tal, a valor positivo destes fenômenos, ©nem à outra
tarefa da conservação da vida e da redução da questão, se valha a pena conhecê-los. Cias
dor ao mínimo. £ isso é problemático. O médico pressupõem qu© haja interesse em participar,
procura com todos os meios conservar a vida do por meio de tal procedimento, da comunidade
moribundo, m0smo qu© ©ste implore ser liberto dos "homens civis” (Hulturmenschen). Mas que
da vida, mesmo qu© sua morto é e deva ser assim estejam as coisas, a ninguém elas estão
d0S0jada - mais ou menos conscientemente em grau de demonstrar “cientificamente”, e que
- por seus familiares, para os quais sua vida elas o pressuponham nõo demonstra de fato
não tem mais valor enquanto insuportáveis são que isso seja evidente. C, com efeito, de modo
os ônus para conservá-la, e eles lhe auguram nenhum o é.
a lib©rtação das dores (trata-s®, digamos, do M. UJeber,
caso d© um pobre louco). Mas os pressupos­ O trabalho intelectual
como profissão.
íS a p í+ u Io q u in to

CD pragmatismo

I. CD pra g m a tism o lógico


d e (ZX\c\Aes S . Pei rce

• O pragmatismo é a forma que o empirismo tradicional o praqmatismo


assumiu nos Estados Unidos. E enquanto o empirismo tradicional 7
viu na experiência a progressiva acumulação e sistematização
dos dados sensíveis e das observações passadas ou presentes, no pragmatismo a
experiência é abertura para o futuro, previsão e projeção, regra de ação.

• Menos conhecido que William James, Charles Sanders Peirce (1839-1914)


exerceu sobre as pesquisas semiológicas e metodológicas sucessivas uma influência
muito mais incisiva e durável do que as já notáveis de James.
Peirce foi estudioso de lógica e semiólogo sofisticado ("todo pensamento é
um signo e participa essencialmente da natureza da linguagem"; "não é possível
pensar sem signos"; "todo pensamento é signo"); ele afirma que o conhecimento
é pesquisa; que a pesquisa parte da dúvida: é a irritação da dúvida que causa a
luta para obter o estado de crença. E são quatro, na opinião de Peirce, os métodos
para fixar a crença:
1) o método da tenacidade' Peirce:
2) o método da autoridade (de quem procura impor suas o método
próprias idéias com a ignorância ou o terror); correto
3) o método do a priori (este é o método de diversas metafísi­ para fixar
cas, e "não difere de modo essencial do método da autoridade"); as "crenças"
4) o método científico. éapenas
Os três primeiros métodos - escreve Peirce no ensaio A fixação o científico
da crença (1877) - não funcionam. Apenas o método científico é ^ § 2
o método correto se quisermos alcançar crenças válidas.

• Na ciência temos três modos diferentes de raciocínio: de­


dução, indução e, diz Peirce, abdução. A abdução:
A dedução é o raciocínio que de premissas verdadeiras não um raciocínio
pode levar a conseqüências falsas. para explicar
A indução é o raciocínio que, sobre a base de certos mem­ os fatos
bros de uma classe com certas propriedades, conclui que todos os ^ § 3
membros daquela classe terão as mesmas propriedades.
A abdução é o raciocínio que nos diz que, para encontrar a solução de um fato
surpreendente, devemos inventar uma hipótese da qual deduzir as conseqüências,
que devem ser controladas empiricamente, isto é, indutivamente.

• Não nos é lícito pensar que uma hipótese bem verificada seja segura para
sempre: "uma hipótese é, para a mente científica, sempre in prova". Nossos co­
Primeira parte - jA filo sofia d o s é c u lo /K.D/K. a o s é c u lo ^C,X

nhecimentos continuam desmentíveis, "falíveis", escreve Peirce.


Uma regra
para E se o método válido para fixar as crenças é o científico, a regra
estabelecer para estabelecer o significado dos conceitos, ou seja, para tornar
o significado claras nossas idéias, é a regra pragmática: um conceito se reduz
dos conceitos a seus efeitos experimentais concebíveis. Eu sei o que quer dizer
—»§ 4 "leão", isto é, conheço o significado do term o "leão", quando sei
comportar-me diante do animal designado pelo termo "leão";
da mesma forma, conheço o significado de "vinho" quando sei o que fazer com
o objeto designado pelo conceito "vinho".

O pragmatismo é a forma versos de pragmatismo, que, vez por outra,


se diferenciavam na teoria do conhecimento,
que o empirismo assumiu
na teoria da verdade, na teoria do significado,
nos é^stados lAnidos na teoria dos valores. Desse modo, a gama
de significados do conceito de pragmatismo
se estende do “ pragmatismo lógico” de Peir­
O pragm atism o nasceu nos Estados ce e Vailati até a formas de voluntarismo e
Unidos nas últimas décadas do século pas­ de vitalismo irracionalistas e incontroláveis.
sado, e sua força de expressão, tanto na
América quanto na Europa, chegou a seu
ponto máximo nos primeiros quinze anos de O s procedimentos
nosso século. Do ponto de vista sociológico, para fixar as “crenças*
o pragmatismo representa a filosofia de uma
nação voltada com confiança para o futuro,
enquanto do ponto de vista da história das Se o pragmatismo de William James teve
idéias ele se configura como a contribuição mais sucesso na época, no entanto o prag­
mais significativa dos Estados Unidos à fi­ matismo de Charles S. Peirce (Cambridge,
losofia ocidental. O pragmatismo é a forma Massachussets, 1839-Milford, 1914) exer­
que o empirismo tradicional assumiu nos ceu e ainda em nossos dias exerce influência
Estados Unidos. Com efeito, enquanto o decididamente mais importante sobre as
empirismo tradicional, de Bacon a Locke, pesquisas m etodológicas e semiológicas.
de Berkeley a Hume, considerava válido o Para Peirce, o conhecimento é pesqui­
conhecimento baseado na experiência e a ela sa. E a pesquisa se inicia com a dúvida. E a
redutível — concebendo a experiência como irritação da dúvida que causa a luta para se
a acum ulação e organização progressiva obter o estado de crença, que é um estado
de dados sensíveis passados ou presentes de calma e satisfação. E nós procuramos
— , para o pragm atism o a experiência é obter crenças, já que são esses hábitos que
abertura para o futuro, é previsão, é norma determinam as nossas ações.
de ação. Pois bem, por quais caminhos ou pro­
Os representantes mais prestigiosos do cedimentos se passa da dúvida à crença?
movimento pragmatista foram: Charles Peir­ N o ensaio de 1877 The Fixation o f Belief
ce, William Jam es, George Herbert Mead (A fixação da crença), Peirce sustenta que
e John Dewey nos Estados Unidos; Ferdi- os métodos para fixar a crença são substan­
nand Schiller na Inglaterra (Schiller, porém, cialmente redutíveis a quatro:
concluiu seus estudos em Los Angeles, nos 1) o método da tenacidade;
Estados Unidos); Giovanni Papini, Giuseppe 2) o método da autoridade;
Prezzolini, Giovanni Vailati e M ario Calde- 3) o método do a priori;
roni na Itália; Hans Vaihinger na Alemanha 4) por fim, o método científico.
e Miguel de Unamuno na Espanha.
A simples relação desses pensadores 1) O método da tenacidade é o compor­
já mostra quão complexo e variado foi o tamento do avestruz, que esconde a cabeça
movimento pragmatista de pensamento. N a na areia quando se aproxima o perigo; é o
realidade, em 1908, Arthur O. Lovejoy já caminho de quem está seguro somente na
classificava nada menos que treze tipos di­ aparência, ao passo que, em seu interior, está
Capitulo quinto - O pi*Qjjmatismo

espantosamente inseguro. E tal insegurança sições fundamentais estão de acordo com


emerge quando ele se defronta com outras a razão. Entretanto, observa Peirce, a ra­
crenças, reputadas igualmente boas por zão de um filósofo não é a razão de outro
outros. O impulso social, escreve Peirce, é filósofo, como o demonstra a história das
contra esse método. idéias metafísicas. O método a priori leva
2) O m étodo da autoridade é o de ao insucesso, porque “ faz da pesquisa algo
quem, com a ignorância, o terror e a in­ semelhante ao desenvolvimento do gosto” ,
quisição, quer alcançar a concordância de visto ser método que “ não difere de modo
quem não pensa igual ou não pensa em essencial do método da autoridade” .
harmonia com o grupo ao qual pertence. 4) Assim, por um ou outro motivo, os
Este é um método que tem “ incomensurá- três métodos precedentes (da tenacidade, da
vel superioridade mental e moral sobre o autoridade e do a priori) não se sustentam.
método da tenacidade” , e seu sucesso tem Se quisermos estabelecer validamente as
sido grande e “ de fato sempre apresentou nossas crenças, segundo Peirce, o método
os mais m ajestosos resultados” ; este é o correto é o método científico.
método das fés organizadas. M as nenhuma
de tais fés organizadas permaneceu eterna;
na opinião de Peirce, a crítica as corroeu e I ^ e d u ç ã o , in d u ç ã o , a b d u ç ã o
a história as redimensionou e, de qualquer
forma, as particularizou.
3) O m étodo do “a-p rio ri” é o de Ora, na ciência, temos três diferentes
quem considera que suas próprias propo­ modos fundamentais de raciocínio:

Charles Sanders Peirce


( 1839- 1914),
representante maior
do pragmatismo lógico,
deu contributos
que ainda são de grande
atualidade para a lógica,
a semiótica
e a filosofia da ciência.
Primeira parte - y\ filo sofia c io s é c u lo X*-^X a o s é c u lo XX

a) a dedução; desmentir as conseqüências de nossas con­


b) a indução; jecturas: “Para a mente científica, a hipótese
e aquela que Peirce chama de c) abdução. está sempre in prova” . EEBIITI

a) A dedução é o raciocínio que não


pode levar de premissas verdadeiras a con­
clusões falsas. 4 C o m o torn ar c la ra s
b) A indução é “ argumentação que, a n o s s a s id é ia s:
partir do conhecimento de que certos mem­
bros de uma classe, escolhidos ao acaso, pos­ a re g ra p ra g m á tic a
suem certas propriedades, conclui que todos
os membros da mesma classe igualmente
as terão” . A indução, diz Peirce, move-se O método válido para fixar as crenças,
na linha de fatos homogêneos; classifica e portanto, é o método científico, que consiste
não explica. em formular hipóteses e submetê-las a verifi­
c) O salto da linha dos fatos para a das cação, com base em suas conseqüências. Por
suas razões, ao contrário, temos com o tipo outro lado, a regra válida para a teoria do
de raciocínio que Peirce chama de abdução, significado — assim como Peirce a apresenta
cujo esquema é o seguinte: também em Como tornar claras nossas idéias
(1878) — , isto é, a regra adequada para
1. Observa-se C, um fato surpreen­ estabelecer o significado de um conceito,
dente. é a regra pragmática, segundo a qual um
2. M as, se A fosse verdadeiro, então C conceito se reduz a seus efeitos experimentais
seria natural. concebíveis-, estes efeitos experimentais se
3. Portanto, há razões para suspeitar reduzem, por sua vez, a ações possíveis (ou
que A seja verdadeiro. seja, a ações efetuáveis no momento em que
se apresentar a ocasião); e a ação se refere ex­
Esse tipo de argum entação nos diz clusivamente a aquilo que atinge os sentidos.
que, para encontrar a explicação de um Do que foi dito torna-se evidente que
fato problemático, devemos inventar uma o pragm atism o de Peirce não reduz de
hipótese ou conjectura, da qual se deduzam modo algum a verdade à utilidade, mas se
conseqüências, que, por seu turno, possam estrutura muito mais como uma lógica da
ser verificadas indutivamente, isto é, expe­ pesquisa ou uma norma metodológica que
rimentalmente. Esse é o modo pelo qual a vê a verdade como por fazer, no sentido de
abdução mostra-se intimamente relacionada considerar verdadeiras as idéias cujos efeitos
com a dedução e a indução. concebíveis são comprovados pelo sucesso
Por outro lado, a abdução mostra que prático, sucesso jamais definitivo e absoluto.
as crenças científicas são sempre falíveis, já A verdade, escreve Peirce, jaz no futuro.
que as provas experimentais sempre poderão Texto
m
Capítulo quinto - O p m g m a tis in o

■ A b d u ç ão . Na antiguidade Aristóteles indicava com abdução - apagoghé


- o tipo de silogismo no qual a premissa maior é certa, a premissa menor é
incerta e, portanto, a conclusão tem uma certeza ou inferior ou igual à da
premissa menor.
Em Peirce a abdução é usada para um tipo de raciocínio onde, a fim de encontrar
uma explicação de um fato surpreendente - isto é, de um fato problem ático,
de um problem a - inventa-se uma hipótese como tentativa de solução, de cuja
idéia ou hipótese se deduzem as conseqüências que devem ser submetidas ao
controle empírico ou indutivo dos fatos. Peirce esquematiza do seguinte modo
o raciocínio abdutivo.
1) Observamos C, um fato surpreendente.
2) Mas, se A fosse verdadeiro, C seria natural.
3) Há, portanto, razão de suspeitar que A seja verdadeiro.
O raciocínio abdutivo liga dentro de si a dedução e a indução:
- a dedução é utilizada para forçar as conseqüências da hipótese A proposta
como tentativa de solução do "fato surpreendente" C;
- a indução funciona como verificação experimental do conteúdo da hipótese
A, isto é, como controle factual de suas conseqüências.
Digno de nota é que aquilo que Peirce chama de "fato surpreendente" é o
problema. Um fato é "surpreendente" quando se choca contra alguma nossa
idéia ou teoria ou expectativa precedente, criando assim o problema.

■ F a lib ilis m o . Este é um termç que freqüentemente se usa para indicar a


concepção da ciência de Peirce. É o próprio Popper - o teórico por excelência
do falibilismo em nosso século-que afirma: "Esta expressão ('falibilismo'), pelo
que eutaiba, encontra-se pela primeira vez em Charles Sanders Peirce".
E Peirce diz: "O falibilismo é a doutrina segundo a qual nosso conhecimento
jamais é absoluto, mas nada sempre, por assim dizer, em um continuum de
incerteza e de indeterminação". "Não podemos estar absolutamente certos de
nada". "Há três coisas que jamais podemos esperar obter por meio do raciocínio,
isto é, a certeza absoluta, a exatidão absoluta, a universalidade absoluta".
É interessante notar que, bem antes de Popper, Peirce usou não só o termo
"falibilismo" e o conceito de refutação, mas também o termo-conceito de fal­
sificação como oposto de verificação: "A proposição hipotética pode, portanto,
ser falsificada por um estado de coisas particular".

■ R egra p ra g m á tic a . Proposta por Peirce, a regra pragmática representa uma


rigorosa navalha de Ockam para estabelecer o significado de um conceito.
Escreve Peirce: "Um conceito, isto é, o significado racional de uma palavra ou
de outra expressão, consiste exclusivamente em seus reflexos concebíveis sobre
a conduta de vida; de modo que, a partir do momento que obviamente nada
daquilo que pode não resultar do experimento possa ter um reflexo direto
qualquer sobre a conduta, se alguém pode acuradamente definir todos os
fenômenos experimentais concebíveis que a afirmação ou a negação de um
conceito podem implicar, terá, por conseguinte, uma definição completa do
conceito, e nele não há absolutamente outra coisa".
O significado de um conceito define-se em termos de efeitos concebíveis;
estes eqüivalem à ação possível: uma crença é uma regra de ação, implica um
hábito. Com efeito, "nossa ação refere-se exclusivamente àquilo que atinge
nossos sentidos, nosso hábito tem o mesmo alcance que a ação, a crença tem
o mesmo que o hábito e o conceito o mesmo que a crença".
Com toda clareza, é "impossível que tenhamos uma idéia em nossa mente que
se refira a outra coisa a não ser aos concebíveis efeitos sensíveis das coisas.
Nossa idéia de uma coisa é a idéia de seus efeitos sensíveis, e se imaginamos
ter outra, enganamos a nós mesmos".
A regra pragmática liga o pensamento de Peirce ao neopositivismo e, sobre­
tudo, ao operacionismo de Bridgman.
Primeira parte - A filo sofia d o s é c u lo xax ao sécu Io XX

II. O empirismo radical


d e W ill iam j j a m e s

• Foi William James (1842-1910) que, no fim do século XIX, tornou conhecido
ao mundo o pragmatismo como nova filosofia. "O pragmatismo, afirma James,
é apenas um método". É antes de tudo um convite a afastar o olhar das "coisas
primeiras" (princípios, "categorias", pretensas necessidades) para dirigir a aten­
ção sobre as "coisas últimas" (os fatos). Em segundo lugar é um
método para obter a clareza das idéias; método que nos ordena
O pragmatismo
como método considerar os efeitos práticos concebíveis implicados por esta ou
e a concepção aquela idéia, "quais sensações devemos esperar e quais reações
instrumental devemos preparar". E uma idéia é verdadeira, na opinião de
da verdade James, "até quando nos permite ir à frente e levar-nos de uma
-»§ 1-2 parte para outra de nossa experiência, ligando as coisas de modo
satisfatório, operando com segurança, simplificando, economi­
zando a fadiga".
A abraçada por James é uma concepção instrumental da verdade: a verdade
- que é um processo e não uma posse - identifica-se com sua capacidade de ope­
rar, com sua utilidade para melhorar ou para tornar menos dificultosa e menos
precária a vida dos indivíduos.

• Os Princípios de psicologia são de 1890. James é contrário à velha psicologia


racional para a qual a alma era uma substância separada do corpo e auto-suficiente;
critica o associacionismo e sua pretensão d e /ed u zir a vida psíquica à combinação
de sensações elementares. É contrário aos materialistas que crêem
poder identificar os fenômenos psíquicos com movimentos da
A mente matéria cerebral. Para James a mente é um instrumento dinâmi­
é o instrumento
co e funcional para a adaptação ao ambiente. Concepção que o
da adaptação
ao ambiente leva a falar não só da percepção e das atividades intelectivas, mas
-^ § 3 também de fenômenos como o hipnotismo e o subconsciente, ou
ainda dos condicionamentos sociais.

• Daí a atenção ao problema ético, tratado por James em O filósofo moral e a


vida moral (1891) e em A vontade de crer (1897): o bem e o mal não são fatos; não
nos dizem como estão as coisas, mas como estas deveriam estar.
Um critério Pr°klemas éticos implicam escolhas por parte dos homens; e,
para escolher segundo James, devem ser preferidos os ideais que comportem,
os valores se realizados, a destruição do menor número de outros ideais e.,
§4 ao mesmo tempo, favoreçam o universo mais rico de possibili­
dades.

• E a concentração da riqueza da experiência humana leva James - diver­


samente dos positivistas - a tom ar em séria consideração e a avaliar de modo
positivo a experiência religiosa: esta põe os homens em contato
Avaliação com ° sagrado e muda sua existência. James chega a defender
positiva da filosofia a experiência mística, uma experiência que potência
da experiência e alarga o campo perceptivo e que abre para possibilidades des-
religiosa conhecidas no exercício da racionalidade. A influente obra de
-> § 5 James A variedade da experiência religiosa é de 1902.
Capítulo quinto - O p r a g m a tism o

*L . ° p ™ 9 m ah s™ °
e a p e n a s um m éto d o

Se com Peirce temos a versão lógica do


pragmatismo, com Jam es temos a versão
moral e religiosa, apesar de James ser lau­
reado em medicina e ter ensinado fisiologia
e anatomia em Harvard.
Foi James (Nova Iorque, 1842 — Cho-
corua, New Hampshire, 1910) — quem lan­
çou o pragmatismo como filosofia em 1898.
Foi sob a sua liderança que o pragmatismo
tornou-se conhecido no mundo. O prag­
matismo de fato foi recebido e conhecido
pelo público mais amplo nas concepções
propostas por James.
Afirma Jam es: “ O pragmatismo é ape­
nas m étodo” que se configura, em primeiro
lugar, como uma atitude de pesquisa, como
“ a disposição de afastar o olhar das coisas
primeiras, dos princípios, das ‘categorias’,
das pretensas necessidades e, ao contrário, William James (1842-1V10)
voltar os olhos para as coisas últimas, os representa a versão psicológica, moral e religiosa
resultados, as conseqüências, os fatos” . do pragmatismo.
O pragmatismo é método para alcançar
a clareza das idéias que temos dos objetos.
E esse método nos impõe “ considerar quais segurança, simplificando, economizando
efeitos práticos concebíveis essa [idéia] pode esforços” .
implicar, quais sensações podemos esperar Esta, diz ainda Jam es, “ é a concepção
e quais reações devemos preparar. N ossa ‘instrumental’ da verdade, ensinada com
concepção desses efeitos, tanto imediata tanto sucesso em Chicago, a concepção
como remota, é então toda a concepção tão brilhantemente difundida em Oxford:
que temos do objeto, enquanto ela tiver a veracidade de nossas idéias significa sua
capacidade de ‘operar’ ” . Desse modo, a
significado positivo” . B U Z ]
veracidade das idéias era identificada com
sua capacidade de operar, com sua utilidade,
tendo em vista a melhoria ou a tornar menos
-2^ v e r d a d e d e u m a id é ia precária a condição vital do indivíduo.
Além disso, para James “ a verdade de
se reduz à su a c a p a c id a d e
d // )) uma idéia não está em sua estagnante pro­
e o p erar priedade” . Há um processo de verificação
que torna verdadeira uma idéia. “Uma idéia
torna-se verdadeira, é tornada verdadeira
A este ponto, parece que as idéias de pelos acontecimentos. Sua veracidade é de
Jam es sobre o pragmatismo (expostas no fato acontecimento, processo: mais exata­
ensaio Pragmatismo, de 1907) não diferem mente, o processo de seu verificar-se, sua
das de Peirce. N o entanto, as coisas não verificação” . As idéias verdadeiras, segun­
são bem assim: para Jam es, “ as idéias (que do Jam es, “ são as que podemos assimilar,
são parte da nossa experiência) tornam-se ratificar, confirmar e verificar. E falsas são
verdadeiras à medida que nos ajudam a aquelas em relação às quais não podemos
obter relação satisfatória com as outras fazer o mesmo” .
partes de nossa experiência, e a resumi-las As idéias ou teorias verdadeiras, para
por meio de esquem as conceituais [...]. Jam es, são aproximações melhores do que
Uma idéia é verdadeira quando nos permi­ as idéias anteriores, resolvendo os proble­
te andar adiante e leva-nos de uma parte mas de modo mais satisfatório. E “ a posse
a outra de nossa experiência, ligando as da verdade, longe de ser fim, é apenas meio
coisas de modo satisfatório, operando com para outras satisfações vitais” .
Primeira parte - A filo sofia d o s é c u lo XJX a o sé c u lo XX

d L O s princípios da psicologia ceptivos e intelectivos, e sim também aos


e a mente como instrumento
condicionamentos sociais ou fenômenos
como os concernentes ao hipnotismo, à
da adaptação dissociação ou ao subconsciente. James não
apenas realizou análises refinadas e críticas
agudas sobre esses tem as, m as também
Em 1890, Jam es publicou os dois vo­ prenunciou muitas doutrinas que depois
lumes que constituem os Princípios de psi­ seriam desenvolvidas pelo comportamen-
cologia. Jam es considera que uma fórmula talismo, pela psicologia da Gestalt e pela
que prestou amplos serviços à psicologia psicanálise.
foi a fórmula spenceriana, segundo a qual
“ a essência da vida mental e a essência
da vida corporal são idênticas, ou seja, ‘a
adaptação das relações internas às exter­ 4 A questão moral:
nas’ Essa fórmula pode ser considerada como escolKer
a encarnação da generalidade — comenta
Jam es — mas, “ como considera o fato de entre ideais contrastantes?
que as mentes vivem em ambientes que
agem sobre elas e sobre as quais elas por
Presente em diversos escritos de James,
seu turno reagem, já que, em suma, ela põe a questão ética é enfrentada explicitamente
a mente no concreto de suas relações, tal em dois escritos fundamentais para sua
fórmula é imensamente mais fértil do que
a velha ‘psicologia racional’, que conside­
rava a alma como coisa separada e auto-
suficiente, e pretendia estudar somente sua
natureza e prioridade” .
N a realidade, Jam es faz da mente um
instrumento dinâmico e funcional para a
CVLTVRA.
adaptação ambiental. A vida psíquica ca­ DELL' ANIM A
racteriza-se por finalismo que se expressa
como energia seletiva já no ato elementar
da sensação.
Por isso tudo, a velha noção de alma
já não servia para Jam es. M as ele também
criticava os associacionistas, que reduziam
a vida psíquica à combinação das sensações
elementares, e criticava os materialistas, com
sua pretensão de identificar os fenômenos
psíquicos com os movimentos da matéria
cerebral.
A consciência se apresenta para J a ­
mes como corrente contínua: ele fala de
uma stream o f tbought (uma corrente de
pensam ento). E a única unidade que se
pode detectar na stream o f consciousness é
aquela pela qual o pensamento “ difere em
cada momento do momento anterior, apro­
priando-o juntamente com tudo o que este ftC A R A B B A , E D JT O R E
último chama de seu” . A “ experiência pura”
aparece para ele como “ o imenso fluxo vital La n c ia n o
que fornece o material para a nossa reflexão
ulterior” . Para Jam es, a relação sujeito-ob-
jeto é derivada.
Conceber a mente como instrumento Frontispício da edição italiana
de adaptação ao ambiente foi a idéia que dos Ensaios pragmáticos de William James,
levou Jam es à ampliação do objeto de es­ publicada por Carabba em 1919
tudo da psicologia: esse objeto não diria com um prefácio e uma bibliografia
mais respeito somente aos fenômenos per- de Giovanni Papini.
Capítulo quinto - O ptAa 0 m atism o

concepção pragm ática: O filósofo moral variedade


e a vida moral, de 1891, e  vontade de
d a e x p e r ie n c ia re lig io sa
crer, de 1897. Neste último ensaio, James
levanta questões como a dos valores, que e o u n iv e rso p lu ra lista
não podem ser decididas recorrendo às ex­
periências sensíveis: “ As questões morais,
antes de tudo, não são tais que sua solução Outra grande obra de William James, de
possa esperar prova sensível. Com efeito, 1902, é A variedade da experiência religiosa,
uma questão moral não é uma questão do onde o autor propõe antes de mais nada uma
que existe, mas daquilo que é bom ou seria rica fenomenologia da experiência religiosa.
bom que existisse” . Jam es é contrário aos positivistas, que liga­
A ciência pode nos dizer o que existe vam a religião a fenômenos degenerativos.
ou não existe. M as, para as questões mais O empirista radical James não quer que a
urgentes, devemos consultar as “ razões do identificação das riquezas das experiências
coração” . H á decisões que todo homem humanas seja bloqueada por um juízo de
não pode deixar de tomar: dizem respeito valor qualquer. A vida religiosa é inconfun­
ao sentido último da vida, ao problema dível; ela põe os homens em contato com
da liberdade humana ou de sua falta, da uma ordem invisível e muda sua existência.
dependência ou não no mundo em relação Segundo Jam es, o estado místico é o
a uma inteligência ordenadora e regente, momento mais intenso da vida religiosa e
da unidade monística ou não do mundo, age como se ampliasse o campo perceptivo,
todas questões teoricamente insolúveis, que abrindo-nos possibilidades desconhecidas
só se podem enfrentar mediante escolha ao controle racional. E a atitude mística não
pragmática. pode se tornar garantia de uma determinada
Voltemos, porém, aos valores. Os fatos teologia. Aliás, para Jam es, a experiência
físicos existem ou não existem e, enquanto mística deve ser defendida pela filosofia.
tais, não são bons nem maus: “ O ser melhor Aqui podemos ver como Jam es passa da
não é relação física” . A realidade é que o descrição à avaliação da experiência mística,
bem e o mal só existem em referência ao considerada como acesso privilegiado, ina­
fato de que satisfazem ou não as exigências cessível pelos meios comuns, ao Deus que
dos indivíduos. Refletindo variedade enorme potencializa nossas ações e que é “ a alma e a
de necessidades e impulsos diversos, essas razão interior do universo” , de um universo
exigências geram um universo de valores pluralista, onde Deus (que não é o mal nem
freqüentemente em contraste. o responsável pelo mal) é concebido como
Então, como unificar e hierarquizar pessoa espiritual que nos transcende e nos
tais ideais, variados e muitas vezes contras­ convoca a colaborar com ele.
tantes? A resposta de Jam es a essa pergunta Um universo pluralista (1909) é uma
crucial é que se devem preferir os ideais que, das últimas obras de Jam es, onde ele tenta
se realizados, impliquem a destruição do libertar a experiência religiosa da angústia
menor número de outros ideais e o universo do pecado — angústia arraigada na tradi­
mais rico de possibilidades. Naturalmente, ção puritana da Nova Inglaterra — e onde,
tal universo não é dado de fato, não é ab­ precisamente, Deus é concebido como ser
solutamente garantido, e se propõe como finito. Para Jam es, Deus não é o todo;
simples norma que caracteriza a vontade usando a imagem de Whitehead, ele é um
moral enquanto tal. Deus-companheiro.
Primeira parte - y\ filosofia do século X^X ao século XX

III. T) e s envolvimentos
do pragm atism o

• Os Estados Unidos, além da obra de Peirce e de James, podem se orgulhar


tam bém da de George Herbert Mead (1863-1931), o qual - colega de Dewey na
Universidade de C hicago-trabalhou com ele sobre temas comuns. Mead concebe
um universo não dividido e uma continuidade entre o universo e o
Mead e Schiller homem, cujas experiências, por outro lado, têm todas um caráter
nos Estados social. Os trabalhos de maior relevo que Mead nos deixou são: A
Unidos filosofia do presente (1932); Espírito, eu e sociedade (1934).
5 1-2 Na América, e precisamente na Universidade de Los Ange­
les, ensinou - depois de ter sido professor em Oxford - também
Ferdinand Cunning Scott Schiller (1864-1937), para o qual uma "razão pura", des­
ligada dos requisitos da ação, é mutação destinada a ser eliminada; e, igualmente,
encontram um filtro na mais ampla sociedade gostos e avaliações do indivíduo
particular.

• Na Alemanha uma concepção próxima do pragmatismo é a proposta pela fi­


losofia do como~se de Hans Vaihinger (1852-1933), estudioso de Kant e sustentador
-justam ente, na Filosofia do como-se, 1911 - da tese segundo a
Vaihinger qual conceitos, princípios e teoria do saber comum, da ciência e da
na Alemanha filosofia nos servem para padronizar a realidade (entendida, por
-> 5 3 sua vez, como conjunto de representações): são "ficções" úteis, e
sua utilidade faz com que as consideremos como verdadeiras.

• Giovanni Papini (1881-1956) e Giuseppe Prezzolini (1882-1982) propuseram


um pragmatismo que exaltava a vontade de crer, por meio da revista "O Leonardo"
(1903-1907), que serviu, junto com "Voz" (1908) e "Lacerba" (1913-1915), para
rejuvenescer a cultura italiana.
Bem diferente é, ao contrário, o pragmatismo defendido
Papini, por M ario Calderoni (1879-1982) e Giovanni Vailati (1863-1909),
Prezzolini, cujas concepções se inspiraram substancialmente nas propostas
Calderoni teóricas de Peirce.
e vf í a.P Para Vailati o pragmatismo possui um caráter utilitário en-
na htaha quanto - por meio da regra pragmática - leva a descartar toda
' uma série de questões inúteis. Convicto da extrema utilidade cul­
tural, científica e didática da história da ciência, Vailati esclareceu
a função do erro dentro da pesquisa científica: "Todo erro nos indica um escolho
a evitar, enquanto nem toda verdade nos indica um caminho a seguir".

1 AAead; de núcleos problem áticos comuns. Para


M ead, a função da filosofia é a de mostrar
continuidade
um universo não cindido, do qual emerja a
entre o komem e o universo continuidade entre o universo e o homem.
Aspecto fundamental no pensamento de
M ead é que existe relação de condicionali-
Ao lado de Peirce e Jam e s, outro dade recíproca entre condicionante e con­
prestigioso pragm atista norte-americano dicionado-. assim, por exemplo, o presente
foi George Herbert M ead (1863-1931), é condicionado pelo passado, mas, por seu
colega de Dewey na Universidade de Chi­ turno, o presente “ reescreve o seu passa­
cago, onde colaborou com ele em torno d o ” . Outro tema de fundo da filosofia de
Capítulo quinto - O p r a g m a t is m o

M ead é o de caráter social de todo aspecto do como-se, de Hans Vaihinger. Iniciando


da experiência humana. M ead é autor de como estudioso de Kant e do neocriticista
muitos escritos, reunidos em três volumes Friedrich Albert Lange, Vaihinger, na Filo­
depois de sua morte: A filosofia do presente sofia do como-se (1911), tenta mostrar que
(1932), Espírito, eu e sociedade (1934) e A todos os conceitos, princípios e hipóteses
filosofia do ato (1938). que constituem o saber comum, as ciências
e a filosofia são ficções, que não possuem
validade teórica nenhuma, mas que são
aceitos e defendidos somente porque são
S c k ille ^ : úteis, embora freqüentemente sejam até
contraditórios.
o pragmatismo
Para Vaihinger, o objetivo do conheci­
como Humanismo mento é a vida. E ele leva até a exasperação
o contraste entre valor teórico e valor vital
da ficção. Nesse sentido, também são ficções
Ferdinand Cunning Scott Schiller as teorias filosóficas que não podem nos
(1864-1937) foi inicialmente professor em propor a elaboração de visões verdadeiras
O xford e depois, na América, na Univer­ do mundo, e sim muito mais concepções
sidade de Los Angeles. O pragmatismo de capazes de tornar a vida mais digna e mais
Schiller apresenta-se com o hum anismo. intensa.
Para ele, todo conhecimento postula um
aspecto emocional e toda argumentação
encerra uma urgência prática: na opinião de
Schiller, o procedimento efetivo da ciência Calderoni:
obedece ao critério da utilidade. Uma lei distinção entre juízos de fato
natural seria uma fórmula econômica e uma
função conveniente para descrever o com­ e de valor
portamento de séries de acontecimentos.
Para ele, uma “ razão pura” afastada das
exigências da ação é mutação destinada a
O pragm atism o italiano surgiu com
ser eliminada.
Persuadido, com Protágoras, de que o o “ L eon ard o” (1903-1907), fam osa re­
homem é a medida de todas as coisas, Schil­ vista com a qual colaboraram , além de
ler sustenta que os gostos e as apreciações Giovanni Papini (1881-1956), Giuseppe
de cada indivíduo encontram na sociedade Prezzolini (1882-1982), Giovanni Vailati e
um filtro seletivo: também neste caso são a M ário Calderoni, e também Jam es, Schil­
utilidade e a eficiência que determinam sua ler e Peirce. Enquanto Papini e Prezzolini
aceitabilidade. A filosofia de Schiller pode exaltavam (com James) a vontade de crer,
ser qualificada como espécie de relativismo M ário Calderoni (Ferrara, 1879 — Imola,
radical. 1914) e Giovanni Vailati (Crema, 1863
Entre as obras mais notáveis de Schiller, — Rom a, 1909) mostravam-se mais pró­
devem-se destacar: Os enigmas da Esfinge ximos de Peirce.
(1891 — trata-se de estudo sobre a filosofia Convicto defensor da distinção entre
da evolução), Estudos sobre o humanismo juízos de fato e juízos de valor, Caldero­
(1907), Problemas da crença (1924), Lógica ni afirm ou que a filosofia m oral “ pode
para o uso: introdução à teoria voluntarista modificar poderosamente o conjunto de
do conhecimento (1930), Devem os filóso­ crenças e previsões que se misturam con­
fos divergir? e outros ensaios (1934), e As tinuamente — e freqüentemente sem que
nossas verdades humanas (1939). tenhamos consciência disso — com nossas
apreciações, acrescentando novas crenças
e previsões às conseqüências de nossos
atos; pode nos mostrar a incompatibilidade
Vaikirvger
prática de certos ideais com outros ideais
e a filosofia do*como-se1 que consideramos superiores, de certos sen­
timentos com outros ‘melhores’, de certas
tendências nossas com outras mais ‘fortes’;
N a Alemanha, uma concepção filosó­ e, assim, influir consideravelmente sobre
fica análoga ao pragmatismo foi a filosofia nossa conduta” .
Primeira parte - y\ filosofia d o s é c u lo a o s é c u lo ,X,X

Vailati; vemos recordar que ele examinou grande


número de problemas, apresentando válidas
o pragmatismo como método
contribuições clarificadoras. Análise de
questões algébricas, geométricas e lógicas;
estudos de metodologia científica; análise
Laureado em matemática (1884) e em dos conceitos de causa e efeito aplicados às
engenharia (1886) em Turim (onde tam ­ ciências históricas; exame do problema dos
bém foi assistente de Peano), desde o início termos teóricos nas ciências empíricas e das
Vailati esteve do lado de Peirce, muito mais relações entre linguagem comum e linguajar
do que de Jam es, e logo compreendeu o técnico, e assim por diante.
valor metodológico exato da norma prag­ E ainda outro ponto importante. Vaila­
mática. Escrevia Vailati: “ A norma metó­ ti nos deixou estupendos ensaios de história
dica enunciada por Peirce, longe de estar da ciência. De acordo com Mach, Vailati
voltada para tornar mais ‘arbitrária’, mais escreveu o seguinte sobre a importância
‘subjetiva’ e mais dependente do parecer e dessa disciplina: “ Sejam verdadeiras, sejam
do sentimento individual a distinção entre falsas, as opiniões são fatos apesar de tudo
opiniões verdadeiras e opiniões falsas, ao e, como tais, merecem e exigem ser tomadas
contrário, tem objetivo perfeitamente opos­ como objetos de investigação, verificação,
to. Essencialmente, ela nada mais é do que confronto, interpretação e explicação, pre­
um convite a traduzir nossas afirmações em cisamente como qualquer outra ordem de
uma forma na qual possam ser mais direta fatos e com o mesmo objetivo [...]” . Eis,
e facilmente aplicáveis a elas precisamente pois, a enorme importância do mundo de
aqueles critérios de veracidade e de falsida­ papel. “ Eu diria que a história das teorias
de que são mais ‘objetivos’, isto é, menos científicas sobre determinado tema não deve
dependentes de qualquer im pressão ou ser concebida como a história de uma série
preferência individuais” . Substancialmente, de tentativas sucessivas, todas sem sucesso,
para Vailati, a norma pragmática constitui exceto a última [...]. Ao contrário, a história
uma linha de demarcação entre questões nos apresenta uma série de acontecimentos,
sensatas e questões sem sentido: “ A questão em que cada qual supera e eclipsa o anterior,
de determinar o que queremos dizer quando assim como o anterior, por sua vez, superara
enunciamos dada proposição não é apenas e eclipsara os que o haviam precedido [...].
uma questão completamente diferente da Encontramo-nos sempre ou quase sempre
questão de decidir se essa proposição é ver­ diante de um processo de aproxim ações
dadeira ou falsa: é questão que, de um ou de sucessivas, com paráveis a uma série de
outro modo, precisa ser decidida antes que explorações em região desconhecida, cada
se possa sequer começar a tratar da outra” . uma das quais corrige ou precisa melhor
Desse modo, o pragmatismo tem caráter os resultados das explorações anteriores e
utilitário, “ enquanto leva a descartar certo torna sempre mais fácil, para as explorações
número de questões inúteis: inúteis, porém, que se seguem, a consecução do objetivo que
pela simples razão de que são apenas ques­ todas tiveram em vista” . Desse modo, Vailati
tões aparentes ou, mais precisamente, não precisava também a função do erro na his­
são questões de modo nenhum” . Assim, por tória da pesquisa científica: “ Uma afirmação
exemplo, as intermináveis discussões sobre errônea ou um raciocínio inconcludente de
o tempo, sobre a substância, sobre o infinito um cientista de tempos passados podem ser
etc., que ocupam tanto espaço em certas dis­ tão dignos de consideração quanto uma des­
cussões filosóficas, “ fornecem numerosos e coberta ou uma intuição genial, se também
característicos exemplos das várias espécies servirem para lançar luz sobre as causas que
de ‘questões fictícias’ ” , questões que se asse­ aceleraram ou retardaram o progresso dos
melham à da criança que perguntava ao pai conhecimentos humanos, ou para evidenciar
onde está o vento quando não está soprando. o modo de agir de nossas faculdades inte­
Portanto, análise da linguagem e tera­ lectuais. Cada erro nos indica um escolho
pia lingüística. Voltando-nos para a parte a evitar, ao passo que nem toda descoberta
construtiva do pensamento de Vailati, de­ nos aponta um caminho a seguir” . W 5à2SÃ\
91
Capítulo q u if lt O - O p r a g m a tism o .

e Fora atingido pelo fato de que há diversos


modos incompatíveis entre si para explicar
P e ir c e os mesmos fatos. Por fim, a circunstância que
uma hipótese, embora possa fazer-nos prever
corretamente certos fatos, possa no futuro
levar-nos a expectativas errôneas em relação
a outros fatos - esta mesma circunstância, que
^ 1 Abdução, dedução, indução não podemos negar uma vez que nos tenha
saltado aos olhos, impressionou de tal forma
os cientistas, primeiro na astronomia e depois
Peirce chama d e abdução o "passo infe- nas outras ciências, que se tornou indiscutível
rencial" que leva um pesquisador a adotar
que uma hipótese adotada por abdução deve
uma hipótese como tentativa de solução ser adotada apenas provisoriamente, e deve
d e um "fato surpreendente"; uma vez que ser experimentada.
a hipótese tenha sido formulada, dela se
deduzem as conseqüências; conseqüências
que serão indutivamente controladas sobre fldedução
os fatos.
Quando tudo isso for reconhecido como se
deve, a primeira coisa a fazer, uma vez adotada
uma hipótese, será extrair dela as prováveis
f l abdução conseqüências experimentais. Cste passo é a
dedução. Notarei de passagem uma regra de
Se aceitarmos a conclusão de que uma
abdução sobre a qual Auguste Comte insiste
explicação é necessária quando surgem fatos
muito, ou seja, que toda hipótese metafísica
contrários àquilo que havíamos esperado, deveria ser excluída; e por hipótese metafísica
segue-se daí que a explicação deve ser uma
entende uma hipótese que não tem conse­
proposição em grau de prever os fatos ob­
qüências experimentais. [...]
servados como conseqüências necessárias ou
pelo menos prováveis naquelas circunstâncias,
fl este ponto deve-se adotar uma hipótese, fl indução
que seja em si verossímil e torne verossímeis
os fatos. O passo de adoção de uma hipótese Ora, tendo tirado por dedução de uma
enquanto sugerida pelos fatos é aquilo que hipótese as previsões dos resultados de um
defino como abdução. Considero-a uma forma experimento, procedamos a saborear uma hipó­
de inferência, por mais problemática que seja a tese executando o experimento e confrontando
hipótese adotada. Quais são as regras lógicas as previsões com os resultados efetivos dele. O
a seguir para realizar esta adoção? Não seria experimento é uma empresa muito custosa em
racional impor regras e dizer que devem ser se ­ dinheiro, tempo e pensamento, de modo que
guidas até que nõo esteja claro que o objetivo será uma poupança de despesa iniciar com as
da hipótese as requeira. Analogamente, parece previsões positivas da hipótese verossimilmente
que os primeiros cientistas, Tales, Anaximandro menos passíveis de confirmação. Isto porque,
e os outros, considerassem esgotada a tarefa se um experimento particular pode refutar de­
da ciência, uma vez que fosse sugerida uma finitivamente a mais válida das hipóteses, uma
hipótese verossímil. Com isto homenageio seu hipótese fixada por um só experimento seria
sólido instinto lógico pela hipótese. Também verdadeiramente de escasso valor. Quando,
Platão, no Timeu e em outros lugares, não he­ por fim, vemos que uma hipótese verifica-se
sita em afirmar claramente a verdade de tudo experimentalmente, previsão depois de previ­
aquilo que parece tornar razoável o mundo, e são, apesar de se ter dado precedência à prova
este mesmo procedimento, ainda que em forma das previsões menos plausíveis, sem nenhuma
modificada, está na base da moderna crítica modificação ou com modificações puramente
histórica. Tudo caminhou bem até que não se quantitativas, entõo começamos a atribuir-lhe
percebeu que tal procedimento pode interferir dignidade entre os resultados científicos. Cste
na utilidade da hipótese. Aristóteles afasta- tipo de inferência por experimentos que provam
se em parte desse método. Suas hipóteses as previsões baseadas sobre uma hipótese é
sobre a natureza são igualmente infundadas, o único que pode de fato ser definido como
mas a elas acrescenta sempre um "talvez". indução.
Isto, a meu ver, acontecia porque Aristóteles Ch. 5 . Peirce,
era conhecedor profundo dos outros filósofos, História e abdução.
Primeira parte - ;Afilo sofia d o s é c u lo X « U X a o s é c u lo xx

apenas um estágio da ação mental, um efeito


2 fl regra pragmática do pensamento sobre nossa natureza, efeito tal
que influirá sobre o pensamento futuro.
fl essência da crença é a fixação de um
O significado de um conceito denomina­ hábito (the establishment of o habit) e crenças
do p or uma palavra se reduz - para Peirce diferentes se distinguem pelos diversos modos
- q o conjunto d e nossos ações práticos de ação a que dão origem. Se as crenças não
concebíveis com ou em presença do objeto diferem deste ponto de vista, se aplacam a
ao qual o conceito s e refere. "Nossa idéia de mesma dúvida produzindo as mesmas regras
algo é a idéia de seus efeitos sensíveis". de ação, então simples diferenças dos modos
com os quais se percebem não as tornam cren­
ças diferentes, assim como tocar um trecho de
Vimos que o açõo do pensamento (the música em chaves diversas não produz peças
oction of thought) é estimulada pela irritação diferentes. [...] Para entender o significado de
da dúvida e cessa quando a crença é alcan­ uma coisa, devemos, portanto, unicamente de­
çada; d® modo que a produção da crença é terminar quais hábitos ela produz, pois aquilo
a única função do pensamento. [...] fl alma e que uma coisa significa é simplesmente o hábito
o significado do pensamento, purificados dos por ela implicado. € a identidade de um hábito
outros elementos que os acompanham, embora depende de quais ações nos levará a realizar,
possam ser voluntariamente frustrados, jamais nõo somente nas circunstâncias que provavel­
poderão se orientar para nenhuma outra coisa mente se apresentarão, mas também naquelas
a não ser a produção da crença. O pensamen­ que, com escassa probabilidade, surgirão. O
to em ação (thought: in oction) tem como seu que é um hábito depende, em outras palavras,
único motivo possível alcançar o pensamento do quando e do como nos levará a agir. Naquilo
em repouso {thought ot resf)-, e qualquer outra que se refere ao quando, todo estímulo à ação
coisa que nõo se refira à crença não faz parte deriva da percepção; e naquilo que se refere
do próprio pensamento. ao como, todo objetivo da ação é o de produzir
€ o que é, então, a crença? é a meia algum resultado sensível. Assim, desçamos ao
cadência que encerra uma frase musical na tangível e ao prático, ou seja, desçamos à raiz
sinfonia de nossa vida intelectual. Vemos que de toda verdadeira distinção de pensamento,
tem três propriedades: 1) é algo de que somos por mais que esta possa ser sutil; e não há
conscientes; 2) aplaca a irritação da dúvida; distinção de significado tão refinada que não
3 ) implica a fixação, em nossa natureza, de consista senão em uma possível diferença de
uma regra de açõo, ou, em poucos palavras, atividade prática. [...] Nossa idéia de algo é a
de um hábito (habit). Quando ela aplaca a idéia de seus efeitos sensíveis, e se imaginar­
irritação da dúvida, que é o móvel do pensar, mos ter dela uma outra, nós enganaremos a nós
o pensamento se relaxa, e pára um momento, mesmos e confundiremos a simples sensação
quando se alcança a crença. Mas, como a crença que acompanha o pensamento com uma parte
é uma regra para a ação (b s lie i is o rule for do próprio pensamento.
oction), cuja aplicação implica ulteriores dúvidas Parece, portanto, que a regra para alcan­
e ulteriores pensamentos, ao mesmo tempo em çar o terceiro grau de clareza de apreensão é
que ela é um ponto de chegada, é também um assim formulável: consideramos quais efeitos,
ponto de partida para o pensamento. € é por que podem ter concebivelmente conseqüências
tal razão que me permiti chamá-la de pensa­ práticas, pensamos que o objeto de nossa
mento em repouso, embora o pensamento seja concepção tenha. €ntão, a concepção destes
essencialmente uma atividade. O resultado Final efeitos é todo a nossa concepção do objeto.
do pensar é o exercício da volição, e o pensa­ Ch. 5 . Peirce,
mento não faz mais parte disso; mas a crença é Como tornar daras nossas idéias.
, 93
Capítulo quinto - O pragmatismo __

para os resultados, conseqüências, fatos. 6


basta isso para o método pragmático! Podereis
J am es objetar que elogiei mais do que expliquei, mas
agora eu o exporei abundantemente, mostran­
do-o em ação em tais problemas familiares.
6 ntrementes a palavra "pragmatismo" foi usada
em sentido mais vasto, de modo a indicar certa
B "O pragmatismo teoria da verdade.
é apenas um método" UJ. James,
Progmotism.

O pragmatismo é um método que consis­


te, segundo James, na "disposição de tirar o
olhar das coisas primeiras, dos princípios, das
'categorias', das pretensas necessidades,
e olhar ao contrário para as coisas últimas, V a il a t i
paro os resultados, conseqüências, fatos".

Não há absolutamente nada de novo


no método pragmático. Sócrates aderia a 4 Crítica do
ele. Aristóteles o praticava, locke, Berkeley e
Hume trouxeram, por meio dele, importantes
materialismo histórico
contribuições à verdade. Shadiuorth Hodgson
afirma que as realidades são como se conhe­
cem. Mas estes precursores do pragmatismo o Fl concepção materialista da história erra
empregaram fragmentariamente, limitando-se a ao considerar determinante o fator econômi­
introduzi-lo. Apenas hoje ele se generalizou e co para a gênese e o desenvolvimento dos
tornou-se consciente de uma missão universal, eventos históricos e sociais. R realidade
e se dirige a um destino como conquistador. 6u -p recisa Vailati com um espírito rigorosamen­
creio nesse destino e espero podê-lo levar a te científico - é que "mais do que uma relação
cabo inspirando-vos com minha fé. de causa e efeito trata-se aqui [...] de uma
O pragmatismo representa uma atitude relação de mútua dependência, análoga à
totalmente familiar em filosofia, a empirista, que existiria, p o r exemplo, entre as posições
mas a representa a meu ver de forma mais de duas esferas pesadas, sustentadas por
radical e menos criticável do que no passado. uma superfície côncava [...]“.
Um pragmático volta resolutamente as costas,
de uma vez por todas, a um grande número de
posições caras aos filósofos de profissão. 61® A concepção materialista da história [...]
foge da abstração, das soluções verbais, das consiste para muitos em considerar as condições
más razões a priori, dos princípios fixos, dos econômicas como os únicos fatores eficazes do
sistemas fechados, dos falsos absolutos. 6le se desenvolvimento e dos transformações sociais,
dirige à concretude e à adequação, aos fatos, e em qualificar todas as outras manifestações
à ação e ò força. Isso significa fazer prevalecer da vida coletiva, e particularmente as mais ele­
uma atitude empirista sobre a racionalista, a vadas, como simples superestruturas ou reflexos
liberdade e a possibilidade contra o dogma, o ideológicos daquelas, privadas em si próprias
artifício e a pretensão de umo verdade defini­ de qualquer eficácia ou impulso diretivo.
tiva. O pragmatismo também não toma posição Também contra os mantenedores desta
por algum resultado particular. 6 apenas um teoria se poderia observar, como no caso pré-
método. Mas seu triunfo comportaria mudança cedente, que admitira influência preponderante
enorme naquilo que chamei de “temperamento" de relações econômicas, na formação e no
da filosofia. [...] desenvolvimento das espécies particulares d®
Nenhuma doutrina particular, em suma, atividade às quais dá lugar a convivência huma­
mas apenas uma atitude de pesquisa: eis o que na, não implica qu® estas últimas não possam
significa o método pragmático. A disposição de por sua vez agir como causas modificadoras
tirar o olhar das coisas primeiros, dos princípios, da estrutura e da própria vida econômica da
das "categorias", das pretensas necessidades, sociedade em que se manifestam. Mais que de
e a olhar ao contrário para as coisas últimas, uma relação de causa e efeito, trata-s® aqui,
Primeira parte - y\ filosofia do século X J X ao século X X

como é mérito principalmente dos economistas a pesquisa das causas é apta freqüentemente
da escola matemática ter feito salientar, de a levar a conseqüências de fato diversas, con­
uma relação de mútua dependência, análoga forme sentimentos ou preocupações políticas e
a que existiria, por exemplo, entre as posições morais do pesquisador.
de duas esferas pesadas sustentadas por uma Cste se deixa induzir, mais ou menos cons­
superfície côncava, cada uma das quais pode cientemente, a limitar sua atenção e a qualificar
ser qualificada como causa da posição que a como causas apenas as que, entre as condições
outra ocupa, no sentido de que cada uma delas de um dado fato, para cuja modificação ele
obriga a outra a assumir uma posição diferente crê que seria necessário ou útil prover caso se
da que assumiria se estivesse sozinha. quisesse provocar ou impedir o fato em questão
Há, todavia, razões que podem, dentro ou outros de índole análoga, ou modificá-los no
de certos limites, justificar nossa tendência modo por ele desejado.
a aplicar mais a um do que a outro de dois Nem esta espécie de parcialidade deve
fatos mutuamente dependentes a qualificação ser considerada como ilegítima, ou confundida
de causas. Tais razões são precisamente as com a que consiste em permitir às nossas pai­
mesmas pelas quais, quando nos encontramos xões e aos nossos interesses influir sobre a
diante de um complexo de condições que juntas avaliação das provas dos fatos e das teorias.
concorrem para a produção de um dado efeito, Cnquanto esta segunda espécie de parcialida­
somos induzidos a escolher uma parte apenas de é radicalmente incompatível com o caráter
delas para aplicar-lhes, excluindo as restantes, científico de qualquer espécie de pesquisa, a
o nome de "causas". outra é perfeitamente legítima, nas ciências
Com efeito, nem todas as condições de históricas da mesma forma que nas ciências
cujo concurso depende, a verificação de um naturais. C, deste ponto de vista, ouvir falar, por
dado fato apresentam para nós o mesmo inte­ exemplo, de um volume de história socialista,
resse, e também aqui o exemplo das ciências em contraste com outro, por exemplo, de história
físicas é útil para esclarecer os motivos e os conservadora, não deveria parecer mais estra­
critérios pelos quais determina-se tal diferença nho que ouvir falar de um manual de química
de interesse. para os tintureiros, completamente diferente de
fi distinção entre causa e efeito, e isso é um tratado de química para os farmacêuticos e
verdade ainda mais para as ciências sociais e para os agrônomos.
históricas do que para as ciências físicas, é uma fi verdade é uma só, mas as verdades
distinção essencialmente de origem prática, e são muitas, e muitos são os objetivos para
que se relaciona, em um grau mais ou menos cujo alcance nossos conhecimentos podem
direto, à representação que fazemos do mundo eventualmente ser aplicados. C preocupar-se
e da ordem em que deveremos ou quereremos com um mais do que do outro de tais objetivos
proceder para modificar o andamento dos fatos é, também nas ciências históricas como em
de que se trata, e adaptá-los a nossos fins e qualquer ramo de pesquisa, de fato compatível
a nossos desejos. com a mais serena imparcialidade na avaliação
é por isso que, como observa Hobbes, das provas e dos testemunhos.
"quaeruntur causae non eorum quae sunt, sed G. Vailati,
eorum quae e sse possunt". C esta é também a Sobre o aplicabilidade dos conceitos
razão pela qual nas ciências históricas e sociais de c q u s o e efeito.
d a p í f u l o sex+o

O m s + m m e ^ + a lis m o

de 3 o h n Dewey

• John Dewey (1859-1952) - o mais significativo filósofo americano do século


XX - chamou de instrumentalismo sua própria filosofia. E nessa filosofia é funda­
mental um conceito de experiência diferente do típico do empirismo.
No empirismo a experiência é simplificada e ordenada, é
consciência clara e distinta. Para Dewey, ao contrário, "a ex- a experiência
periência não é consciência, mas história". Ele escreve isso em nàoé
Experiência e natureza, de 1925. E acrescenta que a experiência consciência,
não se reduz sequer ao conhecimento; com efeito, ela inclui mas história
tam bém "os sonhos, a loucura, a doença, a morte, a guerra, a •§ 1
confusão, a ambigüidade, a mentira e o horror; inclui os sistemas
transcendentais e também os empíricos, a magia e a superstição, da mesma forma
que a ciência. Inclui a inclinação que impede de aprender da experiência, como a
habilidade que tira partido de seus mais fracos indícios".

• A experiência é, portanto, história: história dirigida ao futu­


Criticas
ro em um mundo precário, instável e cheio de perigos. Primeiro o das filosofias
homem tentou enfrentar este mundo adverso apelando a forças da história
mágicas e construindo mitos; sucessivamente filósofos como He- super-
ráclito, Hegel ou Bergson pensaram ter captado as leis necessá­ simplificadoras
rias e universais da mudança, crendo assim exorcizar o medo. A e desresponsa-
verdade, nota Dewey, é que essas filosofias não conseguiram seu bilizadoras
intento. São apenas "filosofia do medo", super-simplificadoras e ^ § 2
desresponsabilizadoras:
super-simplificadoras, porque voluntariamente ignoram toda uma grande
quantidade de fatos e eventos que elas não conseguem explicar;
desresponsabilizadoras, porque apresentam como progresso indiscutível
aquilo que pode ao contrário ser apenas o resultado do empenho humano lúcido
e tenaz.

• São necessários instrumentos bem diferentes para enfrentar um mundo e


uma existência tão difíceis e precários. Aqui entra em jogo o instrumentalismo de
John Dewey: dentro de uma concepção evolutiva, ele considera o pensamento,
isto é, o processo de pesquisa que produz conhecimento, como
um instrumento ou uma forma de adaptação ao ambiente, instru­
mento para a solução dos problemas que o ambiente - entendido conhecimento
no sentido mais amplo - nos impõe enfrentar. como
A função do pensamento reflexivo - escreve Dewey em Lógi­ instrum ento
ca: teoria da pesquisa (1938) - é "a de transformar uma situação da adaptação
na qual se tenham experiências caracterizadas por obscuridade, ao am biente
dúvida, conflito, perturbações, em suma, em uma situação que >§3-4
seja clara, coerente, ordenada, harmoniosa". As dúvidas se des­
fazem e volta a luz se nossas hipóteses, adiantadas como tentativas de solução
de "situações perturbadas", encontram confirmação nos fatos, na prática, nos
experimentos. A inteligência é constitutivamente operativa; é uma força ativa
Primeira parte - y \ f ilo s o f ia d o s é c u lo X J X ao s é c u lo X X

apta a transformar o mundo. E o conhecimento científico é a busca do conheci­


mento engastado no senso comum. A verdade de uma idéia se identifica com "o
comprovado poder de guia" de tal idéia. Mesmo que seja necessário notar que,
no decorrer da evolução humana, o conhecimento se afasta sempre mais das ne­
cessidades imediatas. Não ganhamos muito, com efeito, se mantivermos o próprio
pensamento preso ao tronco do uso com uma corrente demasiadamente curta.

• Assim como as idéias e teorias científicas, também as idéias éticas e as pro­


postas políticas deverão mostrar seu valor sobre suas conseqüências práticas; e
serão aceitas, rejeitadas òu corrigidas exatamente com base nessas conseqüências.
E a proposta política que Dewey torna própria e que defendeu
Para uma com rigor por toda a vida é a da sociedade democrática. Longe
sociedade de impor um fim único da vida, a democracia permite e estimula
"que se a discussão sobre todo fim; a democracia é debate sem fim; é
planifica colaboração; é participação "na formação dos vaiores que regu­
constantemente' lam a vida dos homens associados". O oposto da democracia é a
-> § 5 -6 sociedade totalitária, caracterizada pela planificação centralizada,
manobrada a partir de cima.
E eis como Dewey traça a diferença entre uma sociedade planificada e uma
sociedade democrática, ou seja, uma sociedade que se planifica constantemente:
"A primeira requer objetivos finais impostos a partir de cima e que, portanto, se
entregam à força, física e psicológica, para obter que as pessoas a eles se confor­
mem. A segunda significa libertar a inteligência por meio da forma mais vasta de
intercâmbio cooperativo".

• Finalmente, não devemos esquecer os contributos de Dewey


ao problem a pedagógico. Poucos filósofos dedicaram tanta
A contribuição
atenção a isso. Basta aqui mencionar trabalhos como: Escola e
de Dewey
para os sociedade (1899); Democracia e educação (1916); Experiência e
problemas educação (1938); Problemas de todos (1946). O ideal educativo
da educação de Dewey tende a "libertar e liberalizar a ação", em contínua
atenção para com a natureza ativa da aprendizagem e para com
a finalidade social de toda a educação.

A e x p e riê n c ia n ão s e re d u z e erro, reduzida a estados de consciência


claros e distintos.
ã c o n sc iê n c ia
Dewey, em Experiência e natureza
n em a o c o n k e c im e n to (1925), sustenta que “ a experiência não é
consciência, e sim história” ; ou seja, ela não
se reduz a um estado de consciência claro e
A filosofia de John Dewey (Burlington, distinto. A experiência não se reduz tampou­
Vermont, 1859 — New York, 1952), que co ao conhecimento, ainda que o próprio
foi o mais significativo filósofo americano conhecimento seja parte da experiência, seja
de nosso século, foi definida como “ natu­ uma experiência. Ela, de fato, inclui “ os so­
ralism o” . E uma filosofia que se move no nhos, a loucura, a doença, a morte, a guerra,
leito do pragmatismo e se situa no quadro a confusão, a ambigüidade, a mentira e o
da tradição empirista. horror; inclui os sistemas transcendentais, e
Entretanto, Dewey optou por chamar também os sistemas empíricos; inclui tanto a
sua filosofia de instrumentalismo, que, em magia e a superstição como a ciência. Inclui
primeiro lugar, se diferencia do empirismo tanto a inclinação que impede de aprender
clássico quanto ao conceito fundamental de da experiência como a habilidade que tira
experiência. A experiência dos empiristas partido de seus mais fracos acenos” .
clássicos é simplificada, ordenada e puri­ Dewey propõe substancialmente a idéia
ficada de todos os elementos de desordem de experiência capaz de dar a mesma atenção
Capitulo seXtO - O irvstmmeiatalismo d e D ew ey
97

que se tem para aquilo que é “ nobre, honro­ relevo é o seu caráter precário e arriscado” .
so e verdadeiro” também para o que, na vida Diz Dewey: “ O homem vive em mundo
humana, existe de “ desfavorável, precário, aleatório; para dizê-lo cruamente, sua exis­
incerto, irracional e odioso” . Afirma ele: tência implica o acaso. O mundo é o palco
“ Considerando o papel que a antecipação do risco: é incerto, instável, terrivelmente
e a memória da morte desempenharam na instável” . Claro, seria fácil e confortante
vida humana, da religião às companhias de insistir na boa sorte e nas alegrias inespe­
seguro, o que se pode dizer de uma teoria radas. A comédia é tão genuína quanto a
que define a experiência de tal modo a ponto tragédia. M as, observa Dewey, é sabido que
de fazer seguir-se logicamente que a morte “ a comédia atinge uma nota mais superficial
nunca seja matéria de experiência?” que a tragédia” . E o homem teme porque
Há mais, já que a não identificação vive em um mundo temível, em um mundo
entre experiência e conhecimento permite que dá medo. O próprio mundo é precário
a Dewey realizar a tentativa de solução do e perigoso: “ N ão foi o temor em relação aos
problema gnosiológico: com efeito, “ há duas deuses que criou os deuses” .
dimensões das coisas experimentadas; uma O homem vive neste mundo: a natureza
é a de tê-las, outra é a de conhecê-las para não existe sem homem, nem o homem existe
tê-las de modo mais significativo e seguro” . sem a natureza. O homem está imerso na
N a realidade, não é fácil conhecer as coisas natureza. E, no entanto, ele é uma natureza
que temos ou somos, sejam elas o sonho, o capaz de, e destinada a, mudar a própria
saram po, a virtude, uma pena, o vermelho. natureza e dar-lhe significado.
O problema do conhecimento é “ o proble­ E precisamente para se garantir contra
ma de como encontrar o que é necessário a instabilidade e a precariedade da existência
encontrar em torno dessas coisas para ga­ o homem, primeiro, recorreu a forças mági­
rantir, retificar ou evitar o fato de tê-las ou cas e construiu mitos que, depois de terem
o de sê-las” . Desse modo, escreve Dewey, caído, logo procurou substituir por outras
enquanto o ceticismo pode verificar-se (a fim idéias tranqüilizadoras, como a imutabilida­
de nos tornar curiosos e indagadores) em de do ser, o processo universal, a racionali­
qualquer momento em relação a qualquer dade inerente ao universo, o universo regido
crença ou conclusão intelectual, no entanto por leis necessárias e universais.
ele é impossível acerca das coisas que nós “ De Heráclito a Bergson, há muitas
temos e somos. “ Um homem pode duvidar filosofias ou metafísicas do universo. Somos
se está com sarampo, porque o sarampo é gratos a essas filosofias, que mantiveram
termo intelectual, classificação, mas não vivo aquilo que as filosofias clássicas e
pode duvidar do que tem empiricamente ortodoxas deixaram de lado. M as as filo­
— não, como se diz, porque está imediata­ sofias do fluxo normal também indicam
mente certo dele, mas porque não é matéria a intensidade com que se deseja o que é
de conhecimento, não é de modo algum seguro e estável. Elas deificaram a mudan­
questão intelectual, não é caso de verdade ça, tornando-a universal, regular e segura
ou falsidade, de certeza ou de dúvida, mas [...]. Considerai o modo completamente
somente de existência” . íflfTl laudatório com o qual Hegel, Bergson e
os filósofos evolucionistas do devir consi­
deraram a mudança. Para Hegel, o devir é
processo racional que define uma lógica,
jJL, "Precariedade mesmo nova e estranha, e um absoluto,
e risco da existência também este novo e estranho, Deus. Para
Spencer, a evolução é somente um processo
transitório para obter o equilíbrio estável e
A experiência é história, história vol­ universal de ajustamento harmonioso. Para
tada para o futuro, prenhe de futuro. E a Bergson, a mudança é a operação criadora
filosofia, diferentemente da antropologia de Deus ou é o próprio D eus” .
cultural, “ tem a função do desm em bra­ Para Dewey, essas filosofias são fi­
mento analítico e da reconstrução sintética losofias do medo, hiper-simplificadoras e
da experiência” . Os fenômenos da cultura, des-responsabilizadoras. Elas transformam
apresentados pelo antropólogo, constituem um elemento da realidade na realidade em
o material para o trabalho do filósofo. seu todo, confinando assim na aparência
Pois bem, “ uma característica da exis­ (no secundário, epifenomênico, errôneo,
tência que os fenômenos culturais põem em ilusório etc.) tudo o que não se revela
P v Íffl6 ÍT C l P ü T t& - y\ filosofia d o s é c u lo a o sé c u lo /K,X

compatível com seu respectivo esquema de A te o ria d a p e s q u is a


imutabilidade, ordem, racionalidade, neces­
sidade ou perfeição do ser ou da realidade.
Além disso, são des-responsabilizadoras, A luta para enfrentar o mundo e a exis­
já que presumem garantir metafisicamente tência tão difíceis exige comportamentos e
a ordem, o progresso ou a racionalidade, operações humanas inteligentes e responsá­
que, ao contrário, constituem a tarefa fun­ veis. E aí que se inserem o instrumentalismo
damental da condução inteligente da vida de Dewey e sua teoria da pesquisa.
humana. Segundo a maior parte dos sistemas
Em suma, para Dewey, é preciso ter filosóficos tradicionais, a verdade é estática e
a coragem de denunciar a falácia filosófica definitiva, absoluta e eterna. Dewey, porém,
de m etafísicas consoladoras e ilusórias, não pensa assim. Dado seu interesse pela
que iludem precisamente a respeito da per­ biologia, ele vê o pensamento como processo
manência estável de bens e valores, posse de evolução; segundo Dewey, o conhecimen­
exclusiva de uma camada privilegiada. São to é processo chamado pesquisa, que, no
metafísicas que aparentemente repelem a fundo, consiste em uma forma de adaptação
irracionalidade, a desordem, o mal, o erro, ao ambiente. O conhecimento é prática
coisas que não são aparências, e sim reali­ que tem êxito. Êxito no sentido de que
dades que precisamos dominar e controlar, resolve os problemas postos pelo ambiente
embora com a consciência de que a existên­ (entendendo este no sentido mais amplo).
cia permanece, sempre e de qualquer modo, Em sua grande obra Lógica: teoria da
precária e cheia de riscos. investigação (1938) Dewey sustenta que “ a

John Dewey (1859-1952)


foi o teórico
do instrumentalismo,
uma filosofia que surgiu
no interior
do pragmatismo americano.
Capítulo S C X tO - O in sfm m e^+a l ism o d e D ew ey

tentativa de solução, ainda que vaga, já que


caso contrário se teria o caos, e de que seja
possível intelectualizar essa vaga sugestão,
■ In s tru m e n ta l ism o. Com este ter- formulando o problema dentro de uma idéia
■ mo John Dewey quis distinguir seu i que consista em antecipação ou previsões do
pragmatismo do de James. , que pode acontecer.
Para Dewey a "lógica" é teoria da ■ A idéia proposta desenvolve-se em seus
: pesquisa; e toda pesquisa tem como ;
significados pelo raciocínio, que identifica as
resultado um instrumento para a ;
: ação. Os conhecimentos levam, com conseqüências da idéia, pondo-a em relação
; efeito, a modificações das condições com o sistema das outras idéias e esclarecen­
; de fato e, portanto, são planos de do-a assim em seus aspectos mais diversos. A
operações sobre a realidade, instru- \ solução do problema, inserida e antecipada
: mentos teóricos de aspecto prático: i na idéia que depois foi desenvolvida pelo
não há nada mais prático do que : raciocínio, dirige e articula o experimento.
uma boa teoria. As idéias que têm E será precisamente o experimento que dirá
sucesso são instrumentos de solução ■■ se a solução proposta deve ser aceita ou
dos problemas ("teóricos" e "prá- rejeitada ou, ainda, corrigida, a fim de dar
; ticos").
• Em A busca da certeza (1930) Dewey
conta dos fatos problemáticos.
■ escreve: "A essência do instrumenta- , A propósito dos fatos, diferentemente
lismo pragmático está em conceber í do antigo empirismo, Dewey observa que
■ tanto o conhecimento como a prática eles não são puros dados, “ pois não existem
como meios para tornar seguros, na dados em si. N ada constitui um dado senão
existência experimentada, os bens, em relação com uma idéia ou com um pla­
isto é, as coisas excelentes de qual- ■ no operativo que possa ser formulado em
quer espécie". Toda pesquisa é a pro- ; termos simbólicos, desde os da linguagem
posta de idéias e projetos para passar ; comum até os mais precisos e específicos da
de uma situação de dúvida para uma matemática” , da física ou da química.
■ situação "coerente, ordenada, har- ;
Em suma, Dewey é da opinião de que
: moniosa". A inteligência é constitu- ;■
tivamente operativa, uma máquina | tanto as idéias como os fatos são de natureza
que cria sem cessar instrumentos | operacional. As idéias são operacionais por­
para nos adaptarmos aos problemas * que não são mais que propostas e planos de
. que continuamente emergem de um | operação e intervenção sobre as condições
"ambiente" mutável. f existentes; e os fatos são operacionais no
sentido de que são resultados de operações
de organização e de escolha.

função do pensamento reflexivo é [...] a de


transformar uma situação na qual se tem e. pesquisa científica:
experiências caracterizadas por obscurida­ as idéias como instrumentos
de, dúvida, conflito, em suma, experiências
perturbadas, em uma situação que seja
clara, coerente, ordenada e harm oniosa” . A inteligência, portanto, é constitutiva-
Em poucas palavras, a investigação parte mente operativa. A razão não é meramente
dos problem as, isto é, de situações que contemplativa: é força ativa cham ada a
implicam incerteza, perturbação, dúvida transformar o mundo em conformidade com
e obscuridade. E Dewey se declarava des­ objetivos humanos.
concertado diante do fato de que “pessoas A contem plação, sem dúvida, é ela
sistematicamente empenhadas nas investi­ própria uma experiência, mas, para Dewey,
gações sobre questões e problemas (como ela constitui a parte final, na qual o homem
certamente são os filósofos) sejam tão pouco desfruta do espetáculo de seus processos. O
curiosas acerca da existência e da natureza processo cognoscitivo não é contemplação,
dos problem as” . e sim participação nas vicissitudes de um
Situações desse tipo, isto é, de dúvida mundo que deve ser mudado e reorganizado
e obscuridade, tornam-se problem áticas sem descanso.
quando se tornam objeto de pesquisa, no Dewey comenta que o método expe­
sentido de que seja possível avançar alguma rimental é novo como recurso científico ou
Primeira parte - y \ f i lo s o f i a d o s é c u lo X > ^ X a° s é c u lo X X

como meio sistematizado de criar o conheci­ vendo-se ter em vista que essa garantia não
mento e de garantir que seja conhecimento; é absoluta nem eterna, já que os resultados
entretanto, “ como expediente prático, ele é da pesquisa científica, bem como de toda
tão antigo quanto a própria vida” . E é pre­ operação humana, são continuamente corri­
cisamente por essa razão que Dewey insiste gíveis e aperfeiçoáveis em relação às novas e
na continuidade entre conhecimento comum cambiantes situações em que o homem virá
e conhecimento científico. a se encontrar em sua história, tflggl 2
N o escrito A unidade da ciência como
problema social (1938), ele diz que “ a ciên­
cia, em sentido especializado, é a elaboração yA teoria dos valores
de operações cotidianas, ainda que essa
elaboração assuma freqüentemente caráter
muito técnico” . E, ainda na Lógica, Dewey
reafirma o fato de que “ a ciência tem seu Se as idéias comprovam seu valor na
ponto de partida necessário nos objetos qua­ luta com os problemas reais, e se cada in­
litativos, nos processos e nos instrumentos divíduo tem o direito-dever de dar sua con­
do senso comum, que é o mundo do uso, tribuição à elaboração de idéias capazes de
da fruição e dos sofrimentos concretos” . guiar positivamente a ação humana, então
Depois, porém, “ pouco a pouco, através está claro que as idéias morais, os dogmas
de processos mais ou menos tortuosos e ini­ políticos ou os preconceitos do costume
cialmente desprovidos de uma linha diretriz, também não se revestem de autoridade es­
formam-se e são transmitidos determinados pecial: também eles devem ser submetidos
procedim entos e instrum entos técnicos. à verificação de suas conseqüências na prá­
Vão sendo reunidas informações sobre as tica e devem ser responsavelmente aceitos,
coisas, sobre suas propriedades e seus com­ rejeitados ou mudados com base na análise
portamentos, independentemente de cada de seus efeitos.
aplicação imediata particular. Vamo-nos Dewey é relativista, não considera
afastando sempre mais das situações origi­ possível fundamentar valores absolutos. Os
nárias de uso e fruição imediatos [...]” . valores são históricos e a tarefa do filósofo
N ão se ganha muito mantendo o pró­ é a de examinar as “ condições generativas”
prio pensamento ligado ao tronco do uso (isto é, as instituições e os costumes ligados
com uma corrente muito curta, sentencia a estes valores) e de avaliar sua funcionali­
Dewey. O importante é que, como quer que dade na perspectiva de uma renovação, em
seja, o pensamento, isto é, as idéias, estejam relação às necessidades que pouco a pouco
ligadas à prática, porque as idéias — tanto irrompem da vida associada dos homens.
lógicas como científicas — estão sempre Com efeito, existem valores de fato, isto é,
em função de problemas reais, ainda que bens imediatamente desejados, e valores de
abstratos, e porque é sempre a prática que direito, isto é, bens razoavelmente desejá­
decide do valor de uma idéia. veis. E precisamente função da filosofia e da
E as idéias são exatamente instrumen­ ética promover a contínua revisão crítica,
tos em nossa investigação: são instrumentos voltada para a conservação e o enriqueci­
para resolver os problemas e para enfrentar mento dos valores de direito. E está claro
um mundo ameaçador e uma existência pre­ que, na perspectiva de Dewey, sequer estes
cária. E, por serem instrumentos, há muito últimos podem ter a pretensão de dignidade
pouco sentido em pregar a veracidade ou a meta-histórica, já que todo sistema ético
falsidade deles. As idéias são instrumentos é relativo ao meio em que se formou e se
que podem ser eficazes, relevantes ou não, tornou funcional.
danosos ou econômicos, mas não verdadei­ A ética de Dewey é histórica e social:
ros ou falsos. E o juízo final que se dá em como na teoria da pesquisa, nela também
todo processo de pesquisa nada mais é do desponta aquele sentido de interdependência
que uma “ afirmação garantida” . e de unidade inter-relativa dos fenômenos,
Eis, portanto, o significado genuíno que se explicitará no conceito de interação
do instrumentalismo de Dewey: a verdade entre indivíduo e meio físico e social. Assim,
não é mais adequação do pensamento ao os valores também são fatos tipicamente
ser, mas se identifica muito mais com “ o humanos: são planos de ação, tentativas de
poder comprovado de guia” de uma idéia resolver problemas que brotam da vida as­
e, em última análise, com “ o corpo sempre sociada dos homens. E constitui objetivo da
crescente das afirmações garantidas” , de­ filosofia educar os homens “ a refletir sobre
Capitulo S e X tO - (D instm m en+alis»no de 3 ° ^ D ew ey

os valores humanos mais elevados, da mes­ que não queira ser vã fantasia, ainda que
ma forma como eles aprenderam a refletir nobre e sugestiva. E as coisas que parecem
sobre aquelas questões que se inserem no fins são, com efeito, unicamente previsões
âmbito da técnica” . ou antecipações do que pode ser levado à
Há, sem dúvida, o problema da deter­ existência em determinadas condições. Por
minação dos fins. Escreveu Dewey: “ A ciên­ isso, em Teoria da avaliação (1939), Dewey
cia é indiferente ao fato de suas descobertas escreve que não existe problema de avalia­
serem utilizadas para curar as doenças ou ção fora da relação entre meios e fins, o que
difundi-las, para acrescer os meios para a vale não somente na ética, mas também na
promoção da vida ou para fabricar material arte, onde a criação dos valores estéticos (a
bélico a fim de aniquilá-la” . arte é natureza transformada e não existe
Por vezes, Dewey parece indicar como distinção entre belas-artes e artes úteis) requer
fim último da vida dos homens um reino de a utilização de meios adequados. illB É T I
Deus visto como justiça, amor e verdade.
Entretanto, é preciso insistir em um ponto
de capital importância no pensamento de
Dewey: trata-se da não possibilidade de 6 A teoria da democracia
distinguir entre meios e fins.
Para Dewey todo fim é também meio e
todo meio para atingir um fim é desfrutado Dewey é um relativista pelo fato de
ou percebido também como fim. A atividade que, em sua opinião, não existem métodos
que produz meios e a atividade que inventa racionais para a determinação dos fins últi­
e consuma os fins estão intimamente liga­ mos. Por isso Dewey é decididamente con­
das uma à outra. O fim alcançado é meio trário aos filósofos utópicos que, projetando
para outros fins. E a avaliação dos meios é suas visões ideais, não se preocuparam em
fundamental para todo fim real e genuíno, dedicar uma investigação acurada aos meios
Primeira parte - y \ f i lo s o f i a d o s é c u lo X ^ X a o s é c u lo X X

necessários para sua realização, e sequer em social que se estende a todo campo e a todo
avaliar atentamente sua desejabilidade mo­ caminho da vida, pelo qual as forças indi­
ral efetiva. A utopia gera normalmente o ce­ viduais não deveriam ser simplesmente li­
ticismo ou o fanatismo. O que é necessário, bertadas de constrições mecânicas externas,
segundo Dewey, é propor metas concretas mas deveriam ser alimentadas, sustentadas
e descer dos fins remotos para os mais pró­ e dirigidas” .
ximos, realizáveis em condições históricas Com base nisso tudo, pode-se compre­
efetivas. Portanto, Dewey projeta o operar ender a aversão de Dewey pela sociedade
contínuo tendo em vista maior consciência planejada. O que ele almeja e defende é a
e maior liberdade, no sentido de que a liber­ sociedade que se planeja constantemente
dade conquistada hoje cria situações graças a partir de seu interior, atenta, portanto,
às quais haverá mais liberdade amanhã, e no ao controle social mais amplo e articulado
sentido de que minha liberdade faz crescer dos resultados. A diferença existente entre
a dos outros. a sociedade planejada (a planned society), e
Conseqüentemente, Dewey é avesso à a sociedade que se planeja constantemente
sociedade totalitária e convicto defensor da (a continuously planning society) é definida
sociedade democrática. Para ele, a pressu­ por Dewey nos termos seguintes: “ A primei­
posição de um fim absoluto trunca a discus­ ra requer desígnios finais impostos de cima
são, ao passo que a democracia representa e que, portanto, se baseiam na força, física
discussão inteiramente livre, é método que e psicológica, para fazer com que nos con­
permite discutir toda finalidade, é debate formemos a eles. A segunda significa libertar
sem fim, é colaboração, é participação em a inteligência mediante a forma mais vasta
finalidades conjuntas. A democracia é aquele de intercâmbio cooperativo” .
modo de vida em que “ todas as pessoas m a­ Ligada à teoria da investigação, à teo­
duras participam da formação dos valores ria dos valores e à teoria da democracia de
que regem a vida dos homens associados” , Dewey encontra-se sua teoria da educação,
modo de vida que “ é necessário tanto do entendida como reconstrução e reorgani­
ponto de vista do bem social como da ótica zação contínua da experiência, visando a
do desenvolvimento pleno dos seres huma­ aumentar a consciência dos vínculos entre
nos como indivíduos” . Em Liberalismo e as atividades presentes, passadas e futuras,
ação social (1935), Dewey afirma que “ o nossas e alheias, e aumentar a capacidade
problema da democracia [...] torna-se o dos indivíduos para dirigir o curso da ex­
problema daquela forma de organização periência futura. E M
C a p í t u l o S e x t O - O ins+m m en+alism o d e 3 ° ^ D ew ey

MÉTODO CIENTÍFICO

A e x p e r iê n c ia é h istó r ia v o lta d a p a r a o futuro-.


n ã o é c o n s c iê n c ia , n e m c o n h e c im e n t o , m a s e xistê n cia ,
cu ja s ca ra cterística s fu n d a m e n ta is sã o :
a p r e c a r ie d a d e , a p e ric u lo sid a d e , a a d a p t a ç ã o a o a m b ie n te

a PESQUISA Para enfrentar a instabilidade e o acaso do mundo e da existência


p a rte d e p r o b le m a s , é preciso desmascarar os sistemas metafísicos, consoladores e ilusórios, e
fo r m u la h ip ó te se s p r o m o v e r o c o n h e c i m e n t o n ã o c o m o c o n te m p la ç ã o ,
(id éia s) d e s o lu ç ã o ----------------------------------- m as c o m o p r o c e s s o d e p e sq u isa ,
e, p o r m e io a qual é uma forma de adaptação ao ambiente
d o rac io c ín io ,
d irige e a rticu la T
o e x p e rim e n to ,
In s tr u m e n ta lis m o :
q u e d irá se
as id éia s s ã o in stru m e n to s d e n o ssa p e sq u isa p a ra re s o lv e r o s p ro b le m a s
a s o lu ç ã o p r o p o s ta
e é sem p re a p rá tica q u e d e cid e seu v a lo r
d e v e ser aceita
o u rejeita d a

A v e r d a d e é o “ c o m p r o v a d o p o d e r d e g u ia ” d e u m a id éia :
sua ga ra n tia n ã o é a b s o lu ta n e m etern a , p o r q u e o s re su lta d o s d a p e sq u isa h u m a n a
sem p re sã o co r rig ív e is e a p e rfe iço á v e is e m re la çã o às n o v a s situ a çõ e s e m q u e o h o m e m
v e m a en con tra r-se em sua h istória

Todo SISTEMA ETICO Como também as idéias morais


é relativo ao ambiente devem ser submetidas ao controle
em que se formou e foi funcional de suas conseqüências sobre a prática,
a filosofia deve promover uma contínua revisão crítica
dirigida ao enriquecimento
dos v a lo r e s d e d ire ito

V a l o r e s d e fato :
Não e x is t e m f in s ú l t i m o s :
o s ben s q u e sã o im e d ia ta m e n te d e se ja d o s
TODO FIM ALCANÇADO
É UM MEIO PARA OUTROS FINS
Va l o r e s d e d i r e i t o :
o s ben s q u e sã o ra z o a v e lm e n te desejáveis
em d e te rm in a d a s itu a çã o

T
É p r e c is o c o n stitu ir u m a d e m o c r a c i a c o m o s o c ie d a d e q u e se p la n ific a co n sta n te m en te,
em q u e a in telig ên cia se liberte em u m in te rcâ m b io c o o p e r a t iv o q u e tra ba lh e s o b r e m etas co n cre ta s,
rea lizá veis nas c o n d iç õ e s h is tórica s efetiv a s, e e m q u e se atue

a educação c o m o r e c o n s t r u ç ã o e r e o r g a n iz a ç ã o co n tín u a d a e x p e riê n cia ,


em g ra u d e a u m en ta r a c o n s c iê n c ia d o s v ín cu lo s entre as n ossa s a tiv id a d es e as d o s o u tr o s ,
e d e a u m en ta r a c a p a c id a d e d o s in d iv íd u o s d e d irigir o c u r s o d a e x p e r iê n cia fu tu ra
Primeira parte - y \ f ilo s o f i a d o s é c u lo X ^ X o o s é c u lo X X

são justamente as coisas que o assim chamado


empirismo, com sua redução da experiência a
D ew ey estados de consciência, nega à experiência. €
importante para umo teoria da experiência sa ­
ber que em certas circunstâncias o homem tem
em estima aquilo que é distinto e claramente
evidente. Mas não é menos importante saber
fl experiência que, em outras circunstâncias, floresce aquilo
não é consciência, que é crepuscular, vago, obscuro e misterioso.
Que crimes intelectuais tenham sido cometidos
mas história em nome do subconsciente, não é uma razão
para recusar admitir que aquilo que não está
"fl ignorância, o hábito, o radicar-se Fatal explicitamente presente constitui uma parte
no passado, são justamente as coisas que muito mais vasta da experiência do que aquele
o chamado empirismo, com sua redução da campo da consciência ao qual os pensadores
experiência a estados de consciência, nega foram tão devotos.
à experiência". Quando a doença, a religião, o amor ou
o próprio conhecimento são experimentados,
estão envolvidas forças e conseqüências po­
fl via de acesso que parte daquilo que tenciais que não estão diretamente presentes
está mais à mão, em vez de dos produtos bem nem diretamente implicadas. Cias estão "na"
acabados da ciência, nem por isso começa com experiência tão verdadeiramente como estão
os resultados da ciência psicológica mais do presentes mal-estares e exaltações. Conside­
que dos da ciência física. Com efeito, o material rando a parte que a antecipação e a memória
psicológico está mais distante da experiência da morte exerceram na vida humana, da reli­
direta do que o da física. Essa via implica que gião às companhias de seguros, o que se pode
se comece mais para trás de qualquer ciência, dizer de uma teoria que define a experiência
com a experiência em seus traços toscos e ma­ de modo tal que dela faz logicamente seguir
croscópicos. fl ciência então interessará como que a morte jamais é matéria de experiência?
uma das fases da experiência humana, mas não fl experiência não é uma corrente, mesmo que
mais que a magia, o mito, a política, a pintura, o corrente dos sentimentos e das idéias que
a poesia e os penitenciários. O domínio sobre corre em sua superfície seja a parte que os
os homens exercido pela rêverie e pelo desejo filósofos gostam de atravessar, fl experiência
pertence à teoria filosófica da natureza não inclui as margens duradouras da constituição
menos do que a física matemática; a imagina­ natural e dos hábitos adquiridos, além da cor­
ção não deve ser considerada menos que a rente. O momento fugaz é sustentado por uma
observação refinada, é um fato da experiência atmosfera que não escapa, mesmo quando
que alguns homens, como Sontayana observou mais vibra.
a respeito de Shelley, são imunes em relação Quando dizemos que a experiência é um
à ''experiência" porque conservam intacta a ponto de acesso à explicação do mundo no qual
atitude da infância. € para um empirista radi­ vivemos, entendemos por experiência algo que
cal, a mais transcendente das filosofias é um seja vasto, profundo e pleno ao menos tanto
fenômeno empírico. 0 a nõo pode demonstrar quanto toda a história sobre esta terra; uma
intelectualmente aquilo que seu autor supõe história que (pois a história não acontece no
que ela demonstre, mas mostra algo a respeito vazio) inclui a terra e os correlatos físicos do
da experiência, talvez algo de valor imenso para homem. Quando assimilamos a experiência à
umo interpretação sucessiva da naturezo à luz história mais que à fisiologia dos sensações,
da experiência. indicamos que a história denota ao mesmo
fl experiência é, portanto, algo de comple­ tempo as condições objetivas, as forças, os
tamente diferente da "consciência", que é aquilo eventos, e o registro e a avaliação desses
que aparece qualitativamente e focalmente eventos feitos pelo homem, fl experiência
em um momento particular. O homem comum denota tudo aquilo que é experimentado, tudo
não tem necessidade que se lhe recorde que aquilo que se sofre e se prova, e também os
a ignorância é um dos principais aspectos da processos do experimentar. Como é próprio
experiência; e que tais são os hábitos aos quais da história ter significados ditos subjetivos
nos entregamos sem consciência, tanto que eles e objetivos, assim ocorre com a experiência.
agem de modo hábil e seguro. Todavia, a igno­ Conforme disse LUilliam James, ela é um fato
rância, o hábito, o radicar-se fatal no passado, "com face dupla". Sem o sol, a lua, as estre-
105
C ü p í t u l o SextO - O ins-frum entalism o d e ^/aí\n D e w e y ....................

Ias, as montanhas e os rios, as floretas e as um fator inevitável em toda a nossa conduta,


minas, o solo, a chuva e o vento, a história não mas não é experimento a não ser enquanto
existiria. Cstas coisas não são condições exter­ são notadas as conseqüências, e enquanto são
nas da história e da experiência, mas fazem usadas para fazer predições e projetos para
integralmente parte delas. Mas do outro lado, situações semelhantes no futuro. Quanto mais
sem as atitudes e os interesses humanos, sem se colhe o significado do método experimental,
o registro e a interpretação, estas coisas não mais a nossa prova de certo modo de tratar os
seriam história. recursos e os obstáculos materiais que se nos
J. Dew®y, apresentam compreende um uso precedente
Experiência e natureza. da inteligência. Aquilo que chamamos de
magia era sob muitos aspectos o método ex­
perimental do selvagem; mas, para ele, tentar
significava tentar sua sorte, e não suas idéias.
O método científico experimental é, ao contrá­
2 Não há nada mais prático rio, um saborear idéias; por isso, mesmo que
entre em falência na prática, ou imediatamente,
do que uma boa teoria é intelectualmente fecundo, pois aprendemos
de nossos insucessos quando nossos esforços
são seriamente reflexivos.
O método cientíFico-experímental con­ O método experimental é novo come re­
siste em "saborear idéias". "No mais, seu curso científico ou como meio sistematizado de
significado s e considera conFinado a certos criar o conhecimento, embora como expediente
problem as técnicos e unicamente Físicos. prático seja tão velho como a própria vida. Por
Sem dúvida será preciso muito tempo para isso não é de se maravilhar se os homens não
qu e s e com preenda qu e e le vale igual­ reconheceram todo o seu raio de ação. No mais,
mente para a Formação e a verifícação das seu significado se considera confinado a certos
idéias no campo dos problem as sociais e problemas técnicos e unicamente físicos. Sem
morais". dúvida será preciso muito tempo para que se
compreenda que ele vale igualmente para a
formação e a verificação das idéias no campo
dos problemas sociais e morais. Os homens
O desenvolvimento do método experi­ querem ainda a marca do dogma, das crenças
mental enquanto método de obter o conheci­ estabelecidas por via de autoridade, para
mento e de assegurar que seja conhecimento, e ficarem livres tanto da fadiga de pensar como
não só opinião, - método tanto de descoberta da responsabilidade de dirigir sua atividade
quanto de confirmação, - é a grande força com o pensamento. Cies tendem a confinar seu
que permanece para provocar uma transfor­ pensamento à pergunta sobre qual sistema
mação na teoria do conhecimento. O método dogmático, entre aqueles que se contendem no
experimental tem dois lados. De uma parte, campo, eles devem aceitar. Por isso as escolas
significa que não temos nenhum direito de estão mais aparelhadas para fazer discípulos do
chamar algo de conhecimento a não ser onde que pesquisadores, como disse John Stuart Mill.
nossa atividade realmente produziu certas Mas, quanto mais o método experimental vê
mudanças físicas nas coisas, que entrem em crescer sua influência, ele contribuirá certamente
acordo com a concepção que delas se tinha, e a para destronar os métodos literários, dialéticos
confirmem. Fora dessas mudanças específicas, e autoritários na formação das crenças, que
nossas crenças não são mais que hipóteses, dirigiram as escolas do passado, e a transferir
teorias, sugestões, e é preciso considerá-las seu prestígio para métodos que promovam um
como incertas e utilizá-las como indicações interesse ativo pelas coisas e pelas pessoas,
de experimentos a serem tentados. Por outro dirigidos por objetivos de porte temporal maior,
lado, o método experimental do pensamento e que desenvolvam maior riqueza de coisas no
significa que o pensamento é útil; que é útil espaço. Com o tempo a teoria do conhecimento
justam ente à medida que a previsão das deverá ser derivada da prática que mais conse­
conseqüências futuras é feita em base a uma gue criar conhecimento; e então tal teoria será
completa observação das condições atuais, fl empregada para melhorar os métodos menos
experimentação, em outras palavras, não eqüi­ rentáveis.
vale à reação cega. Tal atividade suplementar
- suplementar em relação àquilo que foi obser­ J. Dew®Y,
vado e agora é previsto - é verdadeiramente Democracia e educação.
P tÍffl6 ÍT C l parte - ;A filosofia d o s é c u lo X^X c \o s é c u lo XX

treinada poderia segui-los e destrinçá-los. Não


3 fi relação há dúvida de que este princípio seja psicologi­
camente sólido. Mas dele se abusa, quando
entre passado e presente é empregado paro dar um relevo exagerado
na pesquiso histórico às ações de alguns indivíduos sem referência
às situações sociais que representam. Quando
se faz uma biografia consistir apenas em um
fí história 0 a vida so cia l atual: "O
relatório das ações de um homem, isoladas
verdadeiro ponto de partida da história é
das condições que o promoveram e às quais
sem pre alguma situação atual com seu s
suas atividades foram uma resposta, não te­
problemas".
mos um estudo de história, pois não temos um
estudo de vida social, a qual é um problema
de indivíduos associados. Não temos mais que
fl segregação que mata a vitalidade da um incentivo falaz para ingerir fragmentos de
história é a separação dos modos e dos interes­ informação.
ses atuais da vida social. O passado, apenas Prestou-se muita atenção recentemente à
como passado, não mais nos diz respeito. Se vida primitiva como introdução à aprendizagem
verdadeiramente estivesse acabado e morto da história. Também aqui há um modo justo e
haveria uma só atitude razoável para com ele. um errado de considerar seu valor. O caráter
Deixai que os mortos enterrem seus mortos. Mas aparentemente já formado e a complexidade
o conhecimento do passado é a chove para das condições atuais são um obstáculo quase
compreender o presente, fl história pesquisa insuperável para lançar luz sobre sua natureza.
o passado, mas este passado é a história do Recorrendo aos primitivos se podem obter os
presente. Um estudo inteligente da descoberta, elementos fundamentais da situação presente
do exploração e da colonização da América, em uma forma infinitamente simplificada, é como
do movimento dos pioneiros para o oeste, da se se desenrolasse uma tela de tecido tão
imaginação etc., seria um estudo dos Cstados complicada e tão próxima dos olhos que não
Unidos assim como são hoje; do país no qual se pode ver seu desenho, até que apareçam os
hoje vivemos. €studá-lo no processo de sua primeiros traços mais grosseiros e maiores. Não
formação torna de fácil compreensão muito do podemos simplificar as situações atuais com um
que seria demasiadamente complicado para experimento deliberado, mas o recurso à vido
ser apreendido diretamente. O método g e­ primitiva nos oferece o tipo de resultados que
nético foi talvez a principal conquista científica desejaríamos de um experimento. As relações
da última metade do século XVIII. Seu princípio sociais e os métodos de ação organizada re­
é que o modo de penetrar qualquer produto duziram-se a seus termos mais elementares.
complexo é o de seguir o processo de seu Se, porém, se descuida deste objetivo social, o
fazer-se, e de seguir os estágios sucessivos estudo da vida primitiva torna-se simplesmente
de seu crescimento. Aplicar este método à his­ uma evocação dos aspectos sensacionais e
tória apenas no significado grosseiro de que o excitantes da vida selvagem.
estado social atual não pode ser separado de A história primitiva dá elementos para
seu passado serio unilateral. Significa também entender a história da produção. Pois uma das
que os acontecimentos passados não podem razões principais de recorrer a condições mais
ser separados do presente vivo sem perder seu primitivas para resolver o presente em fatores
significado. O verdadeiro ponto de partida da mais facilmente perceptíveis é que possamos
história é sempre alguma situação atual com com preender como foram enfrentados os
seus problemas. problemas fundamentais de providenciar o
Cste princípio geral pode ser brevemente alimento, o abrigo e a proteção; vendo como
aplicado a uma consideração de suo relação esses problemas foram resolvidos nos primei­
com um grande número de pontos. Recomen­ ros tempos da raça humana, podemos formar
da-se geralmente o método biográfico como uma idéia do longo caminho que se teve de
sistema de aproximação natural para o estudo percorrer, e das sucessivas invenções com
histórico. As vidos dos grandes homens, dos as quais a raça progrediu na civilização. Não
heróis e dos pioneiros, tornam concretos e vitais temos necessidade de entrar em discussão a
episódios históricos que seriam de outro modo respeito da interpretação econômica da história
abstratos e incompreensíveis. €les condensam, para compreender que a história industrial da
em imagens vivas, séries de acontecimentos humanidade lança uma luz sobre duas fases
complicados e intrincados tão extensos no e s­ importantes da vida social, como não o pode
paço e no tempo que apenas uma mente muito fazer nenhum outro período da história. €la nos
, 107
C d p l t u l o SeX tO - O in stm m e d ta lism o d e D ew ey _____

foz conhecer os invenções sucessivos por meio controlada e em desenvolvimento, e os artistas


dos quois o ciência teórico foi aplicada ao con­ e os poetas que celebraram suas lutas, seus
trole do natureza, no interesse da segurança e triunfos, suas derrotas em umo língua que, seja
do prosperidade da vida social. Desta formo, ela pictórico, plástica ou escrita, tornou suo
elo revelo as causas sucessivas do progresso compreensão universalmente acessível aos
sociol. Outro serviço nos prestou, o de mostrar- outros. Uma das vantagens da história indus­
nos os coisos que interessam fundamentalmente trial, como história da adaptação progressiva
a todos os homens em geral; as ocupações que o homem fez dos forças naturais aos usos
e os valores ligados com o ganho da vida. fl sociais, é o ocasião que oferece à consideração
história econômica pesquisa os atividades, a do progresso dos métodos e dos resultados do
carreira e os destinos do homem comum como conhecimento. Hoje os homens estão habitua­
nenhum outro ramo da história, fl única coisa dos a louvara inteligência e a razão em termos
que todo indivíduo deve fazer é viver; a única gerais; insiste-se sobre sua fundamental impor­
coisa que deve fazer o sociedode é obter de tância. Mas os alunos freqüentemente saem
cada indivíduo suo justa contribuição ao bem- do estudo convencional da história pensando
estar geral, e providenciar para que lhe seja que o intelecto humano é uma quantidade
dada uma compensação justa. estática que não progride com a invenção de
fl história econômico é mais humana, mais métodos melhores, ou que a inteligência é um
democrática, e por isso mais libertadora do que fator histórico descurável, ou então exibição
a história político. Não considero o surgimento e de astúcia pessoal. Certamente o melhor modo
o decadência dos principados e das potências, de instilor um sentido genuíno do parte que o
mas o desenvolvimento dos liberdades reais do mente deve ter no vida é o estudo da história
homem graças ao seu domínio sobre o natureza que torna claro como todo o progresso do
comum paro a qual existem os potências e os humanidade, do estado selvagem para cima,
principados! até a civilização, remonta às descobertas e às
fl história industrial oferece também um invenções intelectuais, e torna claro até que
caminho mais direto poro nos aproximarmos ponto as coisos que geralmente chamam mais
do compreensão do nexo íntimo que liga à a atenção nos escritos históricos não foram mais
natureza lutas, sucessos e falências do homem, que coisas secundárias, ou até obstáculos que
mois do que a história política o faça, para nõo a inteligência teve de superar.
falar do história militar, na qual transborda tõo Se a história se fizesse deste modo, ela
facilmente o política quando reduzido ao nível exerceria naturalmente gronde eficácia ético no
do compreensão dos meninos. Pois a história ensino. Uma penetração inteligente das formos
industrial é essencialmente uma narração do atuais da vida associada é necessária para um
modo com que o homem aprendeu a utilizar caráter cujo moralidade não se limita a uma ino­
a energia natural, desde o tempo em que os cência sem cor. O conhecimento histórico ajuda
homens desfrutaram mais plenamente as ener­ a providenciar esta penetração. € um órgão
gias musculares de outros homens, até o tempo poro analisor a urdidura e a trama do tecido
em que, como promessa ou como atuação, os social atual, e para tornar conhecidas as forças
recursos da natureza vieram a estar assim ao que teceram o desenho. O uso da história para
comando do homem de modo o lhe permitir cultivar uma inteligência socializada constitui
estender seu domínio sobre elo. Quando não seu significado moral, é possível empregá-la
se leva em conto a historio do trabalho, dos como espécie de reservatório de anedotas do
condições do uso do solo, dos florestas, das qual extrair para inculcar lições morais especiais
minas, do cultivo e da criação dos sementes a respeito desta virtude ou daquele vício. Mas
e dos animais, da fabricação e distribuição, tal ensino nõo é tanto um uso ético da história
a, história tende a se tornar apenas literária: quanto um esforço de criar impressões morais
romance sistematizado de uma humanidade por meio de um material mais ou menos autên­
mítica que vive sobre si própria em vez de tico. No melhor das hipóteses produz um fogo
sobre a terra. emotivo temporário; na pior, uma indiferença
Talvez o ramo mais descurado da histó­ insensível à moral. O auxílio que a história pode
ria na educação geral é a história intelectual. dar para uma compreensão mais inteligente e
Começamos apenas agora a perceber que os interessada das situações sociais do presente,
grandes heróis que fizeram progredir o destino do qual participam os indivíduos, é uma vanta­
humano não são os homens políticos, os ge­ gem moral permanente e construtiva.
nerais e os diplomatas, mas os descobridores
científicos e os inventores, que puseram na mão J. D0W0Y,
do homem os instrumentos de uma experiência Democracia e educação.
Primeira parte - j A f i lo s o f i a d o s é c u lo X ^ X ao s é c u lo X X

teria importância sem as milhares de invenções


D R ciência menos sensacionais [...] a serviço de nossa vida
quotidiana.
e o progresso social é preciso admitir que em grande parte
o progresso assim obtido foi apenas técnico;
"O problema do uso educativo da ciência proporcionou meios mais eficazes de satisfazer
é [...] o de criar uma inteligência que esteja desejos preexistentes, mais do que modificar a
plenamente convencida da possibilidade de qualidade dos propósitos humanos. Não há, por
dirigir com ela os assuntos humanos". exemplo, uma civilização moderna que possa
igualar a cultura grega, sob todos os aspectos.
A ciência é ainda demasiadamente recente para
Assumindo qu® o desenvolvimento do ter sido transformada em disposição imaginativa
conhecimento direto conquistado no decorrer e emotiva. Os homens se movem mais rapida­
de ocupações de interesse social seja levado mente e com mais segurança para a realização
a uma forma lógica aperfeiçoada, surge a de seus fins, mas seus fins permanecem mais
questão a respeito de seu lugar na experiência. ou menos aqueles que eram antes da instru­
Cm geral, a resposta é que a ciência atesta a ção científica. Cste fato confere à educação a
emancipação da mente da entrega a objetivos responsabilidade de usar a ciência de modo a
habituais, e torna possível a busca sistemática modificar a atitude habitual da imaginação e
de novos fins. é o agente do progresso em do sentimento, e de não deixá-la como simples
ação. O progresso é algumas vezes conside­ extensão de nosso ser físico.
rado como consistindo no aproximar-se de fins O progresso da ciência já modificou os
já procurados. Mas esta é uma forma menor de pensamentos dos homens sobre os objetivos
progresso, pois requer apenas a melhoria dos e sobre os bens da vida de modo bastante
meios de açõo ou o avanço técnico. Os modos vasto para dar uma idéia da natureza desta
mais importantes de progresso consistem em responsabilidade e dos modos de enfrentá-la.
enriquecer os objetivos precedentes e em for­ A ciência, com seus efeitos sobre a atividade hu­
mar novos. Os desejos não são uma quantidade mana, abateu as barreiras materiais que antes
fixa, nem o progresso significa apenas quanti­ separavam os homens, alargou imensamente a
dade maior de satisfação. Com o aumento da área das relações entre os homens, criou uma
cultura e com o novo domínio sobre a natureza interdependência de interesses sobre vastíssi­
nascem novos desejos, exigências de novas ma escala. Trouxe consigo uma convicção firme
qualidades a satisfazer, pois a inteligência da possibilidade de controlar a natureza para os
percebe novas possibilidades de ação. Cste interesses da humanidade, e assim induziu os
projeto de novas possibilidades leva à busca homens a olhar para o futuro em vez de para o
de novos meios de execução e se realiza no passado. A coincidência do ideal do progresso
progresso, enquanto a descoberta de objetos com o desenvolvimento científico não é apenas
que ainda não são usados leva à sugestão de uma coincidência. Antes deste desenvolvimento
novos fins. os homens tinham posto a era de ouro em uma
Que o ciência seja o meio principal de antiguidade remota. Agora eles enfrentam o fu­
aperfeiçoar o controle dos meios de ação é turo com a firme convicção de que a inteligência
demonstrado pela grande quantidade de in­ usada eficazmente pode eliminar males que
venções que se seguiram ao domínio intelectual outrora eram considerados inevitáveis. Subjugar
sobre os segredos da natureza. A transforma­ uma doença devastadora não é mais apenas
ção maravilhosa da produção e da distribuição um sonho, a esperança de abolir a pobreza não
conhecida sob o nome de revolução industrial é uma utopia. A ciência familiarizou os homens
é o fruto da ciência experimental. A ferrovia, com a idéia do desenvolvimento, que se realiza
a navegação a vapor, os motores elétricos, o praticamente com a melhoria gradual e contínua
telefone e o telégrafo, os automóveis, os aero- do estado da humanidade comum.
planos e os dirigíveis sõo provas evidentes da J. DcuueY,
aplicação da ciência à vida. Mas nenhum deles Democracia e educação.
( S a p ít u lo s é t im o

O Kveo-idealismo italiano,
C ^ o c e e (^ À e n + ile ,

e o idealismo anglo-americano

I. O idealismo n a J7+àlia
an+es de (Sroce e (MeK\+ile

• Nápoles foi a cidade que em certo sentido constituiu o berço do idealismo


italiano. Na Universidade de Nápoles, de fato, ensinaram Augusto Vera (1813-1885)
e Bertrando Spaventa (1817-1883), que foram os protagonistas
da difusão do hegelianismo na Itália. 0 idealismo
Im p ortante é principalm ente a contribuição teórica de na Itália
Spaventa, que repensou Hegel com o objetivo de operar uma antes de Croce
simplificação e uma rigorização de sua filosofia. e Gentile
Muitos homens de cultura na Itália, na segunda m etade ->§ 1-3
do século XIX, foram atraídos pelo hegelianismo, e entre estes
sobressai Francisco De Sanctis (1817-1883) que, ao traçar o plano geral de sua
história literária da Itália, se inspira no conceito hegeliano de espírito.
A Spaventa ligam-se Donato Jaia (1839-1914), Sebastião Maturi (1843-1917) e,
sobretudo, Giovanni Gentile. Croce, que chegou tarde ao hegelianismo, inspirou-
se, ao contrário, em De Sanctis.

“I y\ugwstoVera hegelianismo, apresenta fisionomia mais


teórica e vigorosa. Spaventà se formara em
seminário, mas uma crise religiosa o afastara
Nápoles foi, em certo sentido, o berço dramaticamente da fé na transcendência.
do idealismo italiano. Com efeito, foi na Entretanto, manteve certo tom teologizante
Universidade de N ápoles que ensinaram em sua problemática.
Augusto Vera (1813-1885) e Bertrando Seus escritos mais interessantes são
Spaventa (1817-1883), os protagonistas da Preâmbulo e introdução às lições de filoso­
difusão do verbo hegeliano na Itália. fia na Universidade de Nápoles, de 1862, e
Augusto Vera seguiu as posições da os Princípios de filosofia, de 1867. Esses e
direita hegeliana, destacando-se pela sua muitos outros escritos de Spaventa foram
preparação filosófica e pelo conhecimento depois republicados ou editados pela primei­
preciso dos textos hegelianos. Entre suas ra vez por Gentile, que, como veremos, a ele
obras, podemos recordar: Introduction à la se remete. Deve-se recordar ainda o até há
philosophie de Hegel, Paris, 1855; Logique pouco inédito, intitulado Sobre o problema
de Hegel, Paris, 1859, e Essai de philosophie da cognição e em geral do espírito, de 1858,
hegelienne, Paris, 1864. muito interessante e claro.
Spaventa estava convicto de que a
2 Bertrando Spaventa filosofia moderna nascera na Itália, com
os pensadores da Renascença, mas que os
frutos desse pensamento amadureceram
O pensamento de Bertrando Spaven­ fora da Itália, com Spinoza, Kant e Hegel.
ta, que tentou fatigosamente a reforma do Depois de um período de perplexidade, no
Primeira parte ~ y\ filosofia do século X^X ao século XX

qual pareceu-lhe que nada de bom houvesse da Itália, que tem como fundo a convicção
acontecido na Itália depois da Renascença, de que a poesia seria o espírito universal
mudou de opinião e convenceu-se de que, que se realiza no particular, adquirindo
ainda que de modo imperfeito e parcial, desse modo consciência de si. Sua História
Vico podia ser considerado como o precur­ da literatura italiana (1870-1872) e seus
sor da “ filosofia da mente” , Galluppi foi ensaios sobre literatura italiana constituem
um pensador do qual se pode reconhecer obras-primas, que se impõem e merecem
o mérito de haver tratado de modo novo ser lidas ainda hoje, inclusive por causa da
“ o problema do conhecer” , Rosmini che­ elevada consciência social, moral e política
gou a debater a questão do conhecer em de De Sanctis.
sentido kantiano, e Gioberti em sentido Remetem-se a Spaventa Donato Jaia
hegeliano. (1839-1914) e Sebastião M aturi (1843­
Portanto, já desencadeara na Itália 1917). Jaia tornou-se célebre por ter sido
uma “ circulação” do pensamento europeu professor de Gentile em Pisa.
e, agora, era preciso levá-la adequadamen­ Assim, o atualismo de Gentile derivou
te a seu termo. A contribuição teórica de do hegelianismo de Spaventa. Benedetto
Spaventa consiste em ter empreendido o Croce, ao contrário, fez outro trajeto. Ao
repensamento de Hegel, com o objetivo invés de aproximá-lo de Hegel, a leitura
de realizar a simplificação e a rigorização de Spaventa (ao qual, entre outras coisas,
do mesmo. Visto que distinguia idéia-na- como veremos, era ligado por laço de pa­
tureza-espírito, Hegel mostrava que ainda rentesco) afastou-o dele, pelo menos em
não havia conquistado completamente a um primeiro momento. A primeira nutri­
perfeita identidade e m ediação entre Eu ção espiritual de Croce veio de De Sanctis
e Não-eu, e que ainda não havia “ menta- (que ele considerava seu mestre). Croce
lizado” perfeitamente o real, ou seja, que chegou ao Hegel filósofo só mais tarde,
ainda não o havia perfeitamente reduzido meditando sobre M arx e o marxismo, pela
à consciência. N o inédito de 1858, que necessidade de remontar às fontes, como
citamos acima, Spaventa assim resume sua logo veremos.
concepção do Absoluto como autocriação
ex nibilo: “ Pode-se dizer verdadeiramente
que a criação seja ex nihilo; ela é tal enquan­
to o último, o ato do pensar, o espírito, o
criador é o verdadeiro primeiro, ao passo
que o primeiro é o último. E o primeiro na
produção é o ser = nada [alusão aos dois
momentos da primeira tríade dialética da
Lógica de Hegel]. E a criação é livre, porque
é o pressuposto de que o pensar, o espírito,
faz-se a si próprio; é amor, amor a si mesmo,
bem etc.” N o espírito, “ a criação é sua pró­
pria criação” . Esse “ ato de pensar” que, ao
se autocriar, cria também o ser, constituiria
o ponto de partida para o desenvolvimento
da filosofia de Gentile.

O u tr o s e x p o e n te s italianos
d o kegelianism o

N a segunda metade do século X IX


muitos homens de cultura na Itália foram
atraídos pelo hegelianismo. Entre eles des­
taca-se Francisco De Sanctis (1817-1883),
que se inspirou no conceito hegeliano de
espírito para traçar o esboço geral de sua Francisco De Sanctis
grandiosa reconstrução da história literária quando era Ministro da Educação (1861).
Capítulo sétimo - O rv eo-id ealism o i+alicmo e o id ea lism o cm glo-am ericaK \o

II. B enedetto (Sroce


e Kveo-idealismo como historicismo absolu+o^

• Benedetto Croce nasceu em Pescasseroli (L'Aquila) em 1866, de uma rica


fam ília de proprietários de terras, e freqüentou as escolas secundárias em Nápoles
em um colégio mantido por religiosos. Em 1883, depois do terrem oto na ilha de
ísquia em que se encontrava de férias, perdeu o pai, a mãe e a irmã. Foi acolhido
em Roma pelo tio Sílvio Spaventa, irmão de Bertrando, e aí conhe­
ceu o marxista Labriola. Em 1886 voltou a Nápoles: ocupou-se dos Croce
negócios de família, viajou e leu muito, mas não quis obter títulos e suas obras
acadêmicos. De 1895 a 1899 ocupou-se de Marx, criticando seus 1
pontos fracos e, depois de ter fundado em 1903 com Giovanni
Gentile a revista "A crítica", a partir de 1905 começou o repen-
samento sistemático de Hegel. Foi senador em 1910 e Ministro da Educação em
1920-1921. Antifascista, rompeu com Gentile, e depois da queda do fascismo foi pre­
sidente do partido liberal e membro da Assembléia Constituinte. Morreu em 1952.
Entre suas obras, são fundamentais: Estética como ciência da expressão e lin­
güística geral (1902); Lógica como ciência do conceito puro (1905); Teoria e história
da historiografia (1917); A história como pensamento e como ação (1938).

• Segundo Croce, Hegel descobriu a autêntica dimensão do pensamento


filosófico, o qual é conceito universal concreto, ou seja, conceito universal como
síntese de opostos; Hegel, porém, depois usou desatinadamente sua dialética, co­
m etendo toda uma série de erros que dependem de um só: de não ter entendido
que a realidade não é feita apenas de opostos (que se sintetizam), mas também
de distintos. A nova dialética deve, portanto, ser relação de distintos, além de
síntese de opostos.
A realidade do espírito é compreendida apenas atentando a crítica
para a relação particular de unidade-distinção, que é uma im- a Hegel
plicância recíproca na diferenciação. Em particular, o espírito e a dialética
tem duas atividades fundamentais, cognoscitiva e voütiva, que, como relação
conforme se dirijam ao particular ou ao universal, dão origem a dos distintos
quatro "distintos" (ou categorias), em cada um dos quais, depois, e síntese
ocorre a oposição: dos opostos
1) fantasia (= oposição belo/feio; objeto da Estética); 5
2) intelecto (= oposição verdadeiro/falso; objeto da Lógica);
3) atividade econômica (= oposição útil/nocivo; objeto da Economia);
4) atividade moral (= oposição bem/mal; objeto da Ética).
Os quatro graus são inseparáveis e implicam-se reciprocamente, e nesse dis-
tinguir-se-implicando-se e implicar-se-distinguindo-se está a vida do espírito, uma
história que é como um círculo em que nenhum dos momentos é início absoluto,
porque todos têm igual função no âmbito do espírito.

• Segundo Croce, todos os homens têm uma espécie de compreensão das ver­
dades de fundo, porque é sempre o mesmo espírito que pensa e age no homem
comum e no filósofo. Isso, portanto, também vale para a arte, e a definição de Croce
de "arte" mostra justamente aspectos que no fundo todos os homens pressupõem
quando falam de arte. As teses fundamentais da estética de Croce são:
a) a arte é conhecimento intuitivo, e como tal é autônoma, _
porque a intuição é uma categoria irredutível a outras; concepção
b) toda intuição estética é sempre, ao mesmo tempo, também manifestação
"expressão"; a atividade intuitiva tanto intui quanto exprime, e do espirito
pertence a todos os homens; ->§4
Primeira parte - A f ilo s o f i a d o s é c u lo a o s é c u lo

c) a intuição estética é caracterizada pelo "sentimento", que é um "estado


de espírito" e é liricidade;
d) a arte tem um caráter de "universalidade" e de "cosmicidade"; na repre­
sentação artística, o indivíduo palpita da vida do todo, e o todo está na vida do
indivíduo.

• Para Croce a lógica é ciência do conceito puro, isto é, do "universal concreto",


o qual, do ponto de vista formal, é único, enquanto a multiplicidade dos concei­
tos se refere simplesmente à variedade dos objetos que são pensados segundo
tal forma única. Além disso, o conceito tem o caráter de expressividade, é obra
expressa e falada do espírito; a clareza da expressão é o espelho exato da clareza
do pensamento. O conceito puro não deve ser confundido com
A lógica as representações empíricas (por exemplo: "cão") nem com os
como ciência conceitos abstratos empregados nas ciências ("triângulo" etc.);
do conceito eles são pseudoconceitos, porque não correspondem a nada de
puro verdadeiramente universal e real; todavia, não devem ser eli­
—>§ 5 minados, porque servem para coordenar nossas experiências e
agilizar a memória.
Além da coincidência entre o conceito único, o juízo e o silogismo, a tese típica
da lógica de Croce é a identificação do "juízo definitório" e do "juízo individual",
no sentido de que o juízo definitório, na realidade, não é mais que o predicado do
juízo individual: por conseguinte, a filosofia e a história vêm a coincidir, porque o
pensamento, criando a si próprio, qualifica a intuição e cria a história.

• A forma da atividade prática do espírito é produtora não de conhecimentos,


mas de ações dirigidas a um fim. As duas esferas da atividade prática são:
1) a atividade econômica, a qual deseja e atua
A atividade correspondente apenas às condições de fato em que o indivíduo
prática se encontra; os fins da economia (em cuja esfera Croce faz entrar
e também o direito e as leis, a atividade política e a própria vida
do Estado) são individuais;
2) a atividade ética, que quer e atua aquilo que, embora sendo correspondente
às condições de fato em que o indivíduo se encontra, refere-se ao mesmo tempo
a algo que o transcende; o homem moral se dirige ao espírito, à realidade real, à
vida verdadeira, à liberdade.

• Dado que para Croce o juízo filosófico coincide com o juízo histórico, então,
seja qual for a época à qual nos referimos no conhecer histórico, ela se torna sem­
pre atual: toda história é sempre "história contemporânea", porque revive e se
atua no presente do espírito. A história, portanto, é o verdadeiro
o "historicismo conhecimento do real, do universal concreto, e o conhecimento
absoluto" histórico é todo o conhecimento.
7 Este é o "historicismo absoluto", segundo o qual a história
e o juízo histórico são necessários, no sentido da racionalidade
imanente. O tribunal da história não condena nem absolve, não zomba nem elogia,
mas conhece e compreende; e o conhecimento histórico é catártico, é estimulador
de ação e, ao mesmo tempo, estimulado pela ação: é uma relação de "pensamento"
e "ação" que se explica de modo circular como o espírito.

princípios morais, mas muito conservadora


e de visão político-social estreita, ainda
ligada aos Bourbons. Freqüentou a escola
Benedetto Croce nasceu em Pescassero- secundária em N ápoles, em um colégio
li (na região de L’Aquila) em 1866, em rica de religiosos, pouco aberto culturalmente.
família de proprietários de terras, de sadios M as desde então já começaram suas leitu­
Cüpítulo sétimo - O n e o - id e a lis m o i t a li a n o e o id e a lis m o a n g l o - a m e r ic a n o

ras de De Sanctis e Carducci, destinados a


se tornarem para ele dois firmes pontos de
referência. Em 1883, por causa do terre­
moto que destruiu Casamicciola (na ilha de
ísquia), onde passava férias, perdeu o pai, a
mãe e a irmã. Ele próprio, como nos relata,
permaneceu “ sepultado por várias horas
debaixo dos escombros, com várias partes
do corpo quebradas” .
O tio Sílvio Spaventa, irmão de Ber­
trando, tornou-se seu tutor e o acolheu em
sua casa em Roma, superando com nobre
gesto os dissabores que tivera com os Croce
(que se haviam afastado dele, censurando-o
por ter abraçado o liberalismo que detes­
tavam, assim como se haviam afastado de
Bertrando por ser apóstata). N a casa de
Sílvio Spaventa, Croce conheceu políticos
d estacad o s, encontrou L ab rio la (então
herbartiano) e começou a freqüentar suas
aulas com bastante proveito. Os livros de Benedetto Croce (1866-1952),
Bertrando Spaventa que havia na casa, como sobre o fundo de um hegelianismo repensado
sabemos, não só não o interessaram, mas o em sentido historicista,
aterrorizaram por sua dificuldade, criando- formulou uma doutrina estética
lhe a idéia de que Hegel devia ser algo quase entre as mais sugestivas do século X X ,
incompreensível. que exerceu grande influência
Em 1886 voltou a Nápoles, onde, dei­ tanto na Itália
como em outros países.
xando para trás a “ politiqueira sociedade
romana, acre de paixões” , encontrou uma
sociedade mais bem composta e freqüentou
sábios e eruditos, amantes da pesquisa e
investigação. Ocupou-se dos assuntos do­ espiritual e os conhecimentos de Croce
mésticos somente o mínimo indispensável. e, como já observamos, em conseqüência
Viajou e leu muito. N ão quis obter títulos dessas experiências, ele sentiu necessidade
acadêmicos. de rem ontar a Hegel. N a Contribuição
Uma reviravolta importante em sua à crítica de mim mesmo, escreve nosso
trajetória foi constituída pelo interesse filósofo: “ O fermento do hegelianism o
repentino que se acendeu nele pelas idéias chegou a meu pensamento bastante tarde:
do m arxism o, que Labriola (que, nesse da primeira vez, através do marxismo e do
meio tempo, havia abandonado a filosofia materialismo histórico, que, como haviam
de Herbart) deu-lhe a conhecer em 1895. aproximado meu mestre, Labriola, a Hegel
M as foi um amor que durou pouco tem­ e à dialética, também me fizeram perceber
po. Croce estudou a fundo os ensaios de quanta concretude histórica havia, embora
Labriola, de que falaremos mais adiante, em meio a tantos arbítrios e artifícios, na
leu livros de economia, revistas e jornais filosofia hegeliana” .
italianos e alemães de inspiração socialista, M as p a ra ele ain d a não estavam
e assim surgiu nele a paixão política que maduros os tempos para o repensamento
duraria para sempre, ainda que em outra sistemático de Hegel, que ocorreu em 1905
dimensão. M as Croce logo descobriu os (e cujos frutos se encontram em Aquilo que
pontos fracos do marxismo e, entre 1895 e está vivo e aquilo que está morto na filosofia
1899, expressou sua crítica a eles, “ crítica de Hegel, de 1906, agora incluído no Ensaio
tanto mais grave” , escreveu, “ porque que­ sobre Hegel) e que, posteriormente, o levou
ria ser a defesa e a retificação” do próprio à redescoberta de Vico e à sua revaloriza­
marxismo. ção em nova ótica. Entrementes, houve a
Esses ensaios foram reunidos sob o longa gestação da Estética, obra que saiu
título M aterialismo histórico e economia em 1902 e que impôs Croce na Itália e no
marxista. Essa fase de interesse pelo marxis­ mundo inteiro, permanecendo como sua
mo enriqueceu notavelmente o patrimônio obra-prima.
Primeira parte - A f i lo s o f i a d o s é c u lo X J X a o s é c u lo X X

N o verão de 1902, Croce amadureceu tam-se 54 volumes de “ Escritos de história


o projeto da revista “ A Crítica” (que come­ literária e política” e outros 12 volumes de
çou a ser publicada em 1903), juntamente “ Escritos diversos” .
com Giovanni Gentile, que ele conhecera
quando este ainda era estudante em Pisa e
com o qual colaborou até que sua amizade se
rompeu e se transformou em inimizade, por flfai -7^ cIu ^0 c\ue- & s iá vivo
causa da adesão de Gentile ao fascismo. Cro­ e aquilo q u e es+á morto
ce foi senador em 1910 e Ministro da Edu­
n a filosofia d e -H egel”
cação em 1920-1921. Projetou uma reforma
escolar, que, no entanto, não levou a termo,
precisamente porque não quis aderir ao fas­
cismo, mas que Gentile retomou e realizou. A reforma que Croce promoveu no
Depois do caso M atteotti, Croce assu­ idealismo e suas motivações estão contidas
miu firm e p o siçã o a n tifa scista e reuniu no ensaio Aquilo que está vivo e aquilo que
muitos dissidentes em torno de si. Depois está morto na filosofia de Hegel, que cons­
da queda do fascism o, foi presidente do titui verdadeira jóia, modelo de discurso
Partido Liberal e membro da Assembléia filosófico, em que o autor esclarece de modo
Constituinte. Em 1947, fundou o Institu­ exemplar sua posição.
to de E stu d o s H istó ric o s. M orreu em Croce já se encontrava “no meio do
1952. caminho da nossa vida” , podendo assim
Recordem os ainda seus méritos no esclarecer a si e aos outros sua própria
campo cultural que se explicam por meio identidade filosófica de modo plenamente
das atividades editoriais da editora Laterza, consciente.
principalmente com a publicação de muitos Segundo Croce, Hegel descobriu a di­
clássicos da filosofia, alguns dos quais iné­ mensão autêntica e a estatura verdadeira do
ditos na Itália. pensamento filosófico. Essa descoberta pode
Croce foi escritor muito fecundo e ser resumida na fórmula segundo a qual esse
incansável. Suas obras filosóficas foram pensamento é a) conceito, b) universal e
ordenadas e sistematizadas por ele mesmo, c) concreto.
do seguinte modo: a) E “ conceito” e não intuição, senti­
I) Filosofia do espírito: mento ou algo de imediato;
1) A estética como ciência da expressão b) é “ universal” e não simples genera­
e lingüística geral, 1902; lidade, como a que é própria das noções das
2) A lógica como ciência do conceito ciências empíricas;
puro, 1905; c) é “ concreto” , enquanto capta a
3) Filosofia da prática. Econômica e realidade em sua própria linfa vital e em
ética, 1909; toda a sua riqueza. Essa fórmula eqüivale
4) Teoria e história da historiografia a esta outra: o universal concreto é síntese
(1917). de opostos.
II) Ensaios filosóficos (todos reeditados Com essas teses Hegel superava tanto
várias vezes): a posição daqueles que reduziam os opostos
1) Materialismo histórico e economia a uma coincidentia oppositorum, enfraque­
marxista (1900); cendo-os e anulando-os, como a posição
2) Problemas de estética (1910); daqueles que, dualisticamente, os cindiam,
3) A filosofia de G iam battista Vico contrapondo-os com o irredutíveis. Eis,
(1911); então, o sentido da descoberta hegeliana:
4) Ensaio sobre Hegel (1912); “ Como todas as afirmações verdadeiras,
5) N ovos ensaios de estética (1920); a dialética de Hegel não toma o lugar das
6) A poesia (1936); verdades anteriores, m as as confirm a e
7) A história como pensamento e como enriquece. O universal concreto, unidade
ação (1938); na distinção e na oposição, é o princípio
8) O caráter da filoso fia m oderna verdadeiro e completo de identidade, que
(1941); não deixa subsistir separadam ente, nem
9) Discursos de filosofia (1945); como seu companheiro nem como seu rival,
10) Filosofia e historiografia (1949). o princípio das velhas doutrinas, porque
A esses escritos filosóficos, que se esten­ o resolveu em si, transformando-o em seu
dem por todo o arco de sua vida, acrescen­ próprio sumo e sangue” .
Capítulo sétimo - (D K \ e o - id e a lis m o i t a li a n o e o id e a lis m o a ^ g lo - a m e n c a n o

Assim, por exemplo, fantasia e intelecto


Í A d ialética com o re la ç a o
i i. ■ são distintos e não opostos. Analogamente,
d o s distintos
atividade econômica e atividade moral são
e sín tese d o s o p o sto s distintos e não opostos. Em suma, no espí­
rito existem “ categorias” que se distinguem,
não sendo lícito por nenhuma razão tratá-las
Hegel, entretanto, utilizou despropo- como opostos.
sitadamente sua dialética, até o limite do Ora, segundo Croce, a nova dialética
inverossímil, cometendo uma série de erros. deverá ser “relação de distintos”, além de
Segundo Croce, todos esses erros dependem “síntese de opostos” . Aliás, para ele, só se
de um só, que está em sua base. compreende propriamente a realidade do
Esse erro consiste em não ter com ­ espírito atentando para esse nexo particular
preendido que a realidade não é feita só de unidade-distinção, que é uma recíproca
de opostos (que se sintetizam), mas é feita implicação-na-diferenciação.
também de distintos, que Hegel desconhe­ Eis um esquema que servirá para escla­
ceu inteiramente e tratou como se fossem recer esses distintos e seus nexos, bem como
opostos. sua posição em relação aos opostos: ▼

Assim, fica clara a dedução do quadro Atividades cognoscitiva e prática não


dos distintos. O espírito tem duas atividades são opostas e não são dialetizáveis como
fundamentais, a cognoscitiva e a volitiva, tais; conseqüentemente, também não são
que, enquanto se dirigem ao particular ou ao opostos fantasia e intelecto, atividade eco­
universal, dão origem a quatro “ distintos” nômica e ética ou qualquer desses membros
(ou categorias): em relação aos outros. A oposição, ao con­
1) fantasia; trário, se dá no interior de cada distinto.
2) intelecto; Conseqüentemente, cada um dos membros
3) atividade econômica-, que constituem opostos no interior de cada
4) atividade moral. distinto não pode constituir um oposto em
Primeira parte - / \ f i lo s o f i a d o s é c u lo X J X ao s é c u lo X X

por uma razão muito importante, ou seja,


porque, para Croce, o oposto negativo,
tomado em si mesmo, não tem autonomia,
m as acom pan ha o outro com panheiro
“ como a sombra acompanha a luz” . E, as­
sim, a recíproca também é verdadeira. O que
significa que “ o oposto não é distinto de seu
oposto” , e sim uma abstração da verdadeira
realidade. E, depois, significa que cada uma
das categorias ou dos distintos, enquanto
determina a realidade ou é momento da
realidade, concretiza-se como realidade
que supera uma oposição, um negativo,
tornando-o verdadeiro em um positivo. E
esta é a vida: o caminhar (diz Croce com
o poeta romântico Jean Paul) é “ contínuo
cair” : o termo positivo desapareceria sem
o negativo.
Esta, portanto, é a nova dialética, a
dialética da relação dos distintos, que torna
possível a síntese dos opostos em sua justa
medida, resgatando-a dos erros e dos arbí­
trios de Hegel.
O esquema que traçamos acima tam­
bém esclarece a divisão da filosofia croceana
do espírito:
a) o estudo do momento teórico-intui-
tivo é a Estética;
b) o estudo do momento teórico-inte-
Este livro de Benedetto Croce sobre Hegel,
lectivo é a Lógica;
que é de 1907, é um verdadeiro “manifesto ”
c) o estudo da atividade prática voltada
do neo-idealismo italiano.
Também do ponto de vista estilístico para o particular é a Economia’,
e comunicativo aparece no ápice d) o estudo da atividade prática voltada
da produção de Croce. para o universal é a Ética.
Por fim, Croce examinará o espírito
em seu conjunto, que é pensamento-e-ação,
em Teoria e história da historiografia e na
relação a nenhum dos termos que estão no História como pensamento e como ação.
interior de outros distintos. O belo não é
oposto ao verdadeiro e nem ao falso, como
também ao útil ou ao inútil, ao bom ou ao
mau; o feio não é oposto ao verdadeiro etc. e sté tic a c ro c e a n a
O espírito, portanto, tem duas formas e o co n c eito d e a rte
fundamentais, que se ritmam em quatro
“ graus” inseparáveis, também na distinção,
porque se implicam reciprocamente, já que K O I ^ arte. é
um não pode existir sem o outro. E nesse “a q u ilo q u e tod os sa b em o q u e s e ja ”
distinguir-se-implicando-se e implicar-se-
distinguindo-se está a vida do espírito, que N o início do Breviário de estética
pode ser chamada, com termo que Croce (inclusive nos Novos ensaios de estética),
tom a de Vico, “ história ideal e eterna” , Croce tem uma afirmação intencionalmente
com suas “ idas e vindas” eternas: história provocatória: “ À pergunta ‘o que é a arte?’
que é como um círculo, em que nenhum dos poder-se-ia responder, gracejando (mas não
momentos é começo absoluto, porque todos seria gracejo tolo), que a arte é aquilo que
têm igual função no âmbito do espírito. todos sabem o que seja. E, verdadeiramente,
Um esclarecimento ainda se torna in­ se de algum modo não se soubesse o que
dispensável sobre os opostos. N o esquema é, não se poderia sequer propor aquela
acima traçado, grifamos o oposto negativo pergunta, porque toda pergunta importa
Capítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o italiano e o id ea lism o a n g lo -a m e r ic a n o

certa informação sobre a coisa da qual se filosóficas nas tragédias, sentenças postas na
pergunta, designada na pergunta e, portan­ boca das personagens nos romances etc.) é
to, qualificada e conhecida” . assumido no elemento intuitivo geral, como
Essa afirm ação provocatória não é sua parte integrante, vindo assim a ser parte
simples brincadeira, visto que Croce está dele. Essa intuição não deve ser confundida
profundamente convencido de que o homem com a percepção, que é a apreensão de fatos
tem uma espécie de compreensão (ou pré- ou acontecimentos reais, ao passo que, na
compreensão) das verdades de fundo, e que arte, a realidade ou irrealidade das coisas
a filosofia, quando é autêntica filosofia, na não tem relevância (na arte, tudo é real e
realidade nada mais faz do que levar à cla­ tudo é irreal). E importante observar ainda
reza crítica aquelas vagas compreensões. que aquilo que intuímos na arte tem sempre
Com efeito, é o mesmo espírito que “ caráter ou fisionomia individual” .
pensa e age no homem comum e no filósofo.
E o filósofo nada mais faz do que propor
as perguntas e dar as respostas “ com maior fcSM a v te
co m o e ^ p ^ e s s ã o d a intuição
intensidade” .
Eis então a resposta croceana, que se
A segunda proposição fundamental
apresenta precisamente como a resposta
da estética de Croce é que toda intuição
que deveria dizer “ com maior intensidade”
estética é sempre, ao mesmo tempo, também
o que, no fundo, todos entendem quando
“ expressão” .
falam de arte.
Tanto se intui quanto, ao mesmo tem­
po, se expressa: a expressão surge espon­
E S 3 jA a ft e taneamente a partir da intuição (e não se
co m o co n k ecim en to m+uifivo acrescenta extrinsecamente), porque uma e
outra são a mesma coisa.
A proposição fundamental da estética Quem diz, por exemplo, “ tenho den­
croceana é a seguinte: a arte é “ conhecimen­ tro de mim intuições de certas coisas, mas
to intuitivo” . Croce destaca o fato de que, não sei expressá-las” , está, na realidade,
no mais das vezes, pensava-se que a intuição dizendo uma tolice; na verdade, não sabe se
fosse alguma coisa cega e que o intelecto expressar porque não tem aquela intuição
deveria lhe prestar socorro. M as este é um que pensa ter.
erro grave, já que o conhecimento intuitivo Portanto, tanto se intui como se ex­
é perfeitamente autônomo. pressa.
Só se compreende bem essa posição Todavia, esse paradoxo, que encerra
tendo-se presente a dialética croceana dos efetivam ente uma verdade profunda, é
distintos, na qual a intuição é uma categoria perfeitamente inteligível em seu significado,
irredutível a outras. mas apenas quando ligado ao paradoxo,
N a arte, que é, portanto, intuição, em certo sentido oposto, que o esclarece e
qualquer outro elemento presente (máximas integra. Com efeito, Croce considera que a
intuição artística não é uma prerrogativa
exclusiva dos grandes artistas, dos gênios, e
sim que pertence a todos os homens: a dife­
rença entre um homem comum e um gênio
é apenas de quantidade e não de qualidade;

Í
i C o n h e c im e n to in tu itiv o . É o co- I
nhecimento do individual e é objeto ! caso contrário, o gênio não seria homem e
| da estética de Croce. O conhecimento 5 os homens não o entenderiam.
f intuitivo é perfeitamente autônomo, Por isso, cada um de nós é um pequeno
| não redutível às outras três categorias ; poeta, pequeno músico, pequeno pintor etc.,
\ do espírito (lógica, econômica, ética), j que não sabe criar, mas que certamente sabe
ü: e é constitutivo da arte. ; recriar e desfrutar, na mesma dimensão do

I
* A arte, portanto, é intuição em que ; gênio, da dimensão da criação do gênio.
todo outro elemento presente é subs- !
sumido no elem ento in tu itiv o geral i
I O ;A intuição está tica
| como parte integrante. A atividade !
co m o sentim ento
i intuitiva, além disso, é essencialmente I
| e necessariamente expressão.
N o Breviário de estética, Croce precisa
que (além dos dois pontos destacados na
P r i m e i r a p d v t c - filosofia d o s é c u lo /Kj ^X a o s é c u lo X X

grande Estética, já expostos) o que carac­ A relação entre intuição e expres­


teriza a intuição estética é o “ sentimento” são, que, como vimos, é estruturalmente
(que é um “ estado de espírito” ): “ A intuição indissolúvel, é representada de modo cor­
é verdadeiramente tal porque representa um respondente à kantiana “ síntese a priori” ,
sentimento e só pode surgir dele ou sobre mais precisamente como “ síntese estética
ele. N ão é a idéia, mas o sentimento aquilo a priori” .
que confere à arte a leveza aérea do símbolo: A arte não é arte pelo seu conteúdo
uma aspiração encerrada no círculo de uma ou pela sua form a, mas apenas por sua
representação, eis a arte; e, nela, a aspiração síntese.
significa apenas a representação, e a repre­ Eis a passagem que se tornou um dos
sentação apenas a aspiração” . pontos básicos das análises estéticas poste­
O sentimento é liricidade. riores: “ Porque a verdade é precisamente
E dizer que a “ intuição é lírica” não esta: o conteúdo e a forma devem ser bem
significa qualificar a intuição com um adje­ distinguidos na arte, mas não podem, sepa­
tivo predicativo, e sim expressar a mesma radamente, ser qualificados como artísticos,
coisa, como uma hendíadis, pois liricidade precisamente por ser artística somente a
é sinônimo de intuição. relação deles, isto é, sua unidade, entendida
não como unidade abstrata e morta, mas
como a unidade concreta e viva própria da
E S ;A r e la ç ã o ent(“e intuição síntese a priori; e a arte é verdadeira síntese
e e x p r e s s ã o a rtística estética a priori de sentimento e imagem na
é u m a "sm tese e s té tic a a p rio ri" intuição, da qual se pode repetir que o sen­
timento sem a imagem é cego, e a imagem
Ainda no Breviário, Croce acrescenta sem o sentimento é vazia. Fora da síntese es­
aos princípios já expostos um esclarecimen­ tética, o sentimento e a imagem não existem
to decisivo. para o espírito artístico: terão existência,

BEXEDETTO OROCK
LA CRITICA
ESTETICA R IV ÍST A
D( LtrrtUTVKA STOKU t FILOSOFIA
CUXK SCIBNJÍA DELL* KS1*KKSSI0NF,

E LINüHSTICA GENKKALK
DOUETTAM B. CROCE
1. TcnitJA, II. Stü*U,

Amo 1, Inc. 1.
Ip A M

|;KMu MMtCiiX Khl S“ l* WREBONK


V9r* Vto Airí. ijf

Frontispícios da primeira edição da obra Estética como ciência da expressão e lingüística geral
(Sandron, 1902) e do primeiro fascículo da revista "A crítica" (20 de janeiro de 1903).
C ãpítulo sétifflO - O n e o -id e a lis m o ifalrano e o id ea lism o ü h g lo -a m e ^ ic a n o

diversamente colocados, em outros campos a intuição pura ou representação artística


do espírito; então, o sentimento será o as­ repugna com todo o seu ser à abstração;
pecto prático do espírito que ama e odeia, aliás, nem ao menos repugna, porque a igno­
deseja e repugna, e a imagem será o resíduo ra, precisamente por seu caráter cognosci-
inanimado da arte, a folha seca à mercê do tivo ingênuo, que chamamos de ‘aurorai’.
vento da im aginação e dos caprichos da Nela, o singular palpita na vida do todo,
sorte. M as isso não atinge o artista nem o e o todo está na vida do singular. E toda
esteta, porque a arte não é o vão fantasiar, clara representação artística é ela própria
nem a passionalidade tumultuada, e sim a e o universo, o universo naquela forma
superação desse ato através de outro ato individual, e aquela forma individual como
ou, se assim se preferir, a substituição desse o universo. Em cada verso de poeta e em
tumulto por outro tumulto, com o anseio cada criatura de sua fantasia estão todo o
da form ação e da contemplação, com as destino humano, todas as esperanças, as
angústias e as alegrias da criação artística. ilusões, as dores e alegrias, as grandezas e
Por isso é indiferente ou é questão de mera misérias humanas, o drama inteiro do real,
oportunidade terminológica apresentar a que se torna e cresce perpetuamente sobre
arte como conteúdo ou como forma, desde si mesmo, sofrendo e alegrando-se".
que se entenda sempre que o conteúdo é
form ado e a form a é preenchida, que o
sentimento é sentimento figurado e a figura ESI o q u e ck a**+e não é.
é figura sentida” .
Além de definições positivas, para
tornar seu conceito de arte mais bem enten­
dido, Croce também procedeu com base em
E O O c a r á t e r d e u n iversa lid a d e determinações negativas, visando a dissipar
e c o s m ic id a d e d a a rte as muitas confusões de que está cheia a his­
tória da estética.
Por tudo o que se disse, torna-se clara Então, o que não é a arte?
então a conseqüência importantíssima de M ais uma vez, a resposta revela-se
que a arte tem caráter de universalidade e muito simples se retornarmos ao esquema
de cosmicidade. traçado das categorias e dos graus do espí­
Com efeito, o sentimento artístico rito. As muitas páginas que Croce dedica a
“ não é um conteúdo particular, mas todo o esse tema podem ser resumidas dizendo que
universo visto sub specie intuitionis” . Con­ a arte não é tudo o que as outras categorias
ceito, esse, reafirmado no escrito O caráter implicam e que elas contêm. “ A arte não
de totalidade da expressão artística (inseri­ expõe conceitos ou doutrinas, dado que esta
do nos N ovos ensaios de estética), do qual é a função da lógica, inserindo-se, portanto,
esta passagem é o mais eloqüente exemplo: no segundo grau do espírito (quem sustenta
“ N o que se refere ao caráter universal ou o contrário, peca por intelectualismo). A
cósmico que é justamente reconhecido à arte não é atividade prática e, portanto, não
representação artística (e talvez ninguém o tem finalidades econômicas ou morais. Em
tenha evidenciado tão bem quanto Wilhelm suma, a arte é independente, tanto da ciência
H umboldt no ensaio sobre Hermann und como da economia e da ética, e tem fim em
Dorothee), sua demonstração está naquele si mesma, teoria que se resume na fórmula
mesmo princípio, considerado com aten­ ‘a arte pela arte’ ” .
ção. Pois o que será um sentimento ou um
estado de espírito? Será algo que possa K frfc yM guns c o ro lá rio s
ser separado do universo e desenvolver-se d a e s té tic a c.\*oc.e.av\a
por si mesmo? Será que a parte e o todo,
o indivíduo e o cosmo, o finito e o infinito Por fim, recordemos alguns corolários
têm realidade um longe do outro, um fora úteis para completar o quadro da estética
do outro? Haverá quem esteja disposto a croceana:
consentir que todo distanciamento e todo a) Para Croce, não existem “ gêneros
isolam ento dos dois term os da relação literários” . A arte é sempre única em todas
nada mais poderiam ser do que obra da as m anifestações. As distinções do tipo
abstração, para a qual existe somente a “ gênero cômico” , “ gênero épico” , “ gênero
individualidade abstrata, o finito abstrato, a lírico” etc., são simplesmente esquemas
unidade abstrata e o infinito abstrato. M as comodistas que o intelecto introduz para
PvitTieiva parte - jA filo sofia d o s é c u lo X«^7X a o s é c u lo XX

fazer uma classificação que, enquanto tal, é expusemos acima, onde explicamos a refor­
estranha à arte. Trata-se, portanto, de uma ma do hegelianismo e as novidades trazidas
intromissão indébita da categoria lógica na por Croce. M as ainda restam alguns pontos
categoria estética. E, se nos obstinarmos a muito importantes a completar e algumas
considerar os gêneros literários como es­ doutrinas a integrar.
teticamente relevantes, caímos no erro do A lógica é “ ciência do conceito puro” .
intelectualismo. E o conceito puro, como vimos, é o univer­
b) N ão existe beleza física (beleza da sal concreto no sentido já definido. Croce
natureza, das coisas etc.), porque o belo o chama também de transcendental. Do
pertence apenas à atividade do espírito já ponto de vista lógico, “ o conceito não dá
descrita. As coisas naturais que chamamos lugar a distinções, porque não existem
“ belas” são como o material, que somente muitas formas no conceito, mas uma só
no crisol da criação artística pode receber a form a” , enquanto uma só é a forma teórica
verdadeira marca da beleza. universal do espírito (vide o esquema já tra­
c) N ão se deve confundir a expressão çado). Portanto, o conceito é único quanto
da arte com a sua extrinsecação. Diz Croce: à forma, e “ a multiplicidade dos conceitos
“ N ós, como artistas, não podemos deixar só pode ser referida à variedade dos obje­
de querer nossa visão estética: naturalmente, tos que são pensados naquela form a” . Por
podemos querer ou não exteriorizá-la, ou exemplo, posso pensar conceitualmente (ou
melhor, conservar e transmitir ou não aos
outros a exteriorização produzida” . Assim,
as “ técnicas artísticas” pertencem a essa
extrinsecação e não à expressão artística
enquanto tal, que é o todo unido à intui­
ção. Desse modo, as técnicas artísticas não
■ Universal concreto. O universal
pertencem à atividade estética enquanto
concreto é o objeto da lógica de Cro-
tal, mas à atividade prática (extrinsecação, ce, é o conceito puro, cujos elementos j
fixação, comunicação). ; são:
d) Para Croce, o poeta como personali­ ; a) a racionalidade, e não a intuição,
dade (ou melhor, como pessoa) desaparece: o sentimento ou em todo caso algo j
“ o poeta nada mais é do que sua poesia” ; de imediato; |
Dante e Shakespeare são “ sua obra poética” . b) a universalidade, que é engastada §
Isso só pode ser compreendido com base no no particular e não é simples genera- \
conceito idealista segundo o qual é o espírito lidade como a das noções das ciências i
que age através do homem. empíricas; \
c) a concretude, enquanto ele capta ;
e) Por fim, Croce sustentou a identida­
a realidade em sua própria linfa vital i
de entre lingüística e estética. Com efeito, a e em toda a sua riqueza. 1
linguagem é essencialmente expressão, pre­ O universal concreto é síntese de ‘
cisamente como a arte. Em outros termos, a opostos e, do ponto de vista formal,
linguagem é criação estética. A forma lógica é único, enquanto a multiplicidade
da linguagem e as distinções gramaticais são dos conceitos se refere simplesmen- ■
necessariamente introduzidas pelo intelecto, te à variedade dos objetos que são ;
que intervém naquele organismo vivo que pensados segundo a forma única; '
é a língua com as suas análises e suas siste- além disso, ele tem o caráter da ex-
matizações. E g S l Xl ; pressividade, é obra expressa e falada ,
do espírito. ;
i O conceito puro não deve ser confun- ;
dido com as representações empíricas ■
-7^ lógica cro ce a n a (por exemplo, "cão") nem com os
conceitos abstratos empregados nas >
; ciências ("triângulo" etc.), que são ;
| pseudoconceitos, porque não corres- í
B I A l ó g rc a co m o c iê n c ia pondem a nada de verdadeiramente *
d o s concet+os pu^os ; universal e real, e todavia não devem
ser eliminados, porque servem para ;
O objeto da lógica croceana é constituí­ ordenar nossas experiências e agilizar ’
do pela segunda categoria do espírito e, mais a memória.
em geral, pelo estudo da estrutura geral do
espírito. Em ampla medida, portanto, já a
Capítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o ital ia ^ o e o id ea lism o a n 0 lo-am eklican o

seja, na forma do conceito) o bem, o útil, o que extraio de um grupo de gatos como
verdadeiro etc. Isso é possível, diz Croce, em símbolo que representa todos os gatos. O
virtude do fato de que, estruturalmente, o mesmo se dá quando digo “ rosa” . Trata-se
espírito é unidade-e-distinção, e o conceito de um esquema cômodo, mas, obviamente,
se move exatamente segundo esse esquema, inadequado. Analogamente, quando digo
de modo que o conceito abrange toda a área “ triângulo” ou “ movimento livre” , penso
da filosofia do espírito, pensando todas as em algo, mas o que penso e assim como o
distinções que lhe são próprias. penso não tem realidade correspondente,
Além disso, o conceito tem o caráter porque “ um triângulo geométrico jamais
de expressividade, o que significa que ele existe na realid ad e” , assim como “ não
é “ obra cognoscitiva” e, como tal (assim existe na realidade um movimento livre,
como a arte), é obra expressa e falada e pois todo movimento real realiza-se em
não ato mudo do espírito, como o são as condições determinadas e necessariamente
atividades práticas da economia e da ética. entre obstáculos” .
Também no caso do conceito (analogamen­ Entretanto, esses pseudoconceitos, que
te ao que dissera sobre a intuição estática), Croce divide em empíricos (“ gato” , “ rosa”
Croce assevera que, sendo o pensar tam ­ etc.) e puros (“ triângulo” , “ movimento”
bém um falar, “ quem não expressa ou não etc.), não devem ser eliminados.
sabe expressar um conceito, não o possui” . O valor deles não é de caráter lógico,
A clareza da expressão é o espelho e sim de mera utilidade e, portanto, de ca­
exato da clareza do pensamento. ráter econômico (ou seja, eles se inserem na
terceira categoria do espírito). Eles servem
para ordenar nossas experiências e facilitar
E Z f l Os p s e u d o c o n c e i t o s a memória. Para Croce, portanto, todas as
e s e u v a l o r d e c a r á t e r u tilita ris ta ciências empíricas e matemáticas são destituí­
(e c o n ô m ic o ) das de valor teórico e pertencem à atividade
prática do espírito, à econômica.
O conceito puro não deve ser con­ Com essa teoria (que lembra, em parte,
fundido com as representações empíricas, idéias defendidas por Mach), Croce afasta-se
por exemplo, de “ cã o ” ou de “ ro sa ” , e da tese dos românticos alemães, para quem
tampouco com todos os conceitos abstratos os que ele chama de “ pseudoconceitos” eram
de que fazem uso as ciências, inclusive as obra do intelecto, ao passo que os conceitos
matemáticas. puros eram obra da razão. Os idealistas
Estes são “ pseudoconceitos” , porque alemães não haviam compreendido que, na
não correspondem a nada de verdadei­ realidade, os conceitos empíricos e abstratos
ramente universal e real. Q uando digo não são obra do intelecto, mas de uma facul­
“ gato” , erijo um grupo de características dade não teórica. Por conseguinte, deve-se

REON0 DMTAUA

MINÍSTERO DELL’ INTERNO


D 1 9 F A C C IO T W U U » A £ f C £ , . .
C Ar » A TF--. 21015
tiSBBTAÍâ -J ~ -■ ’■ • - 1
n.s, ALTO «BSaSSâtJU» «WOU / .>/■
k. MJO-P.F. íregMl dlaporr» oh. Tlgilwun ml tXQuato,
n s M e n e sx *t% *n «a o rru M M * Um despacho,
rmei. intenolfie>t* «t eu» qmaaini «v®n:oal« p«t«ut* assinado pelo chefe
t u k -iP O ll jFrc«U-.io '.«nater» wng» da polícia fascista, tíocchim,
org»ntl 3l=o . *u;310 '..itil: taro xniiv**» 1«K»«0 solicita que o alto comissário
de polícia de Nápoles
C A » ÍO U IU
intensifique a vigilância
ÍNSCCiilItt em relação
a Benedetto Croce.
Primeira parte - jA filosofia d o s é c u lo X*^X sé c u lo XX

dar ao intelecto toda a sua dignidade e deve condicionam reciprocamente, mas até se
ser considerado como sinônimo de razão. identificam. A síntese a priori, que é a con-
cretude do juízo individual e da definição, é
E O (C oin cid ên cia d e co n ceito,
ao mesmo tempo a concretude da filosofia e
ju ízo e. silogism o
da história. E o pensamento, criando-se a si
mesmo, qualifica a intuição e cria a histó­
Croce retoma de Hegel a idéia de que ria. Nem a história precede a filosofia, nem
o juízo não deve ser entendido como o era a filosofia precede a história: uma e outra
tradicionalmente, porque, na realidade, é nascem do mesmo parto” .
“ o próprio conceito em sua efetividade”
(enquanto é o universal concreto).
Aliás, visto que, como vimos, pensar ;A atividade prática,
um conceito quer dizer “ pensá-lo em suas e c o n ô m i c a e ética
distinções, pô-lo em relação com os outros
conceitos e unificá-lo com eles no conceito
único” (na única forma conceituai), temos
então uma silogização. Portanto, conceito, Antes de passar à doutrina croceana
juízo e silogismo coincidem. da história, devemos falar brevemente da
Esta é uma doutrina que deriva da con­ filosofia prática, que, porém, constitui talvez
cepção do conceito como atividade dinâmica a parte mais fraca do pensamento de nosso
em sentido idealista e que retoma a teoria filósofo.
da “ proposição especulativa” que já vimos A forma da atividade prática do espí­
em Hegel. E evidente que ela só tem sentido rito é a atividade que se diferencia da mera
contemplação teórica, não sendo produtora
no contexto do espírito como processo, e
só deve ser interpretada e julgada segundo de conhecimentos, e sim de ações. A ativi­
dade prática coincide com a vontade: agir é
essa ótica.
querer; não há volição sem ação, nem ação
sem volição.
M i B dTdenti fic a ç ã o Ora, quando se quer, se quer um fim.
en tre ju íz o defini+ório e ju íz o individual, Se o fim é individual, temos a atividade eco­
e suas c o n s e q ü ê n c ia s nômica; se o fim, ao contrário, é universal,
temos a atividade ética. Eis a definição de
M as a tese talvez mais típica da lógica Croce: “ Atividade econômica é aquela que
croceana é a identificação do “ juízo defini- quer e concretiza aquilo que corresponde
tório” (exemplo: “a arte é intuição lírica” ) e somente às condições de fato em que o indi­
do “ juízo individual” (exemplo: “o Orlando víduo se encontra. Atividade ética é aquela
furioso é uma obra de arte” ). que quer e concretiza aquilo que, embora
E isso também pode ser bem compreen­ correspondendo àquelas condições, refere-se
dido no contexto croceano: com efeito, é ao mesmo tempo a algo que as transcende.
precisamente o juízo individual que concre- À primeira, correspondem aqueles que cha­
tamente nos faz conhecer e possuir o mundo. mamos fins individuais; à segunda, os fins
À medida que um juízo de fato atribui um universais — em uma, fundamenta-se o juízo
predicado a um objeto, dá-lhe valor, decla­ sobre a maior ou menor coerência da ação,
rando-o partícipe da universalidade. tomada em si mesma; na outra, fundamenta-
Pode-se também dizer que o juízo de- se o juízo sobre a maior ou menor coerência
fmitório, na realidade, nada mais é do que da ação em relação ao fim universal, que
o predicado do juízo individual. (Quando transcende o indivíduo” .
digo que o Orlando é uma obra de arte, N a esfera da economia, como já vi­
digo que ele, precisamente, é aquilo que se mos, inserem-se todos os pseudoconceitos
definiu como obra de arte, dando um juízo e todas as ciências particulares. M as Croce
definitório, ou seja, que é intuição lírica.) atribui a essa esfera também o direito e as
Assim, o ato lógico de julgar é síntese leis, a atividade política e a própria vida do
lógica a priori, pelos motivos explicados. Estado. O Estado, portanto, não tem esta­
A conseqüência importantíssima que tura ética, mas utilitária, econômica (essa é
daí brota é que a filosofia e a história acabam a posição que Maquiavel, por exemplo, já
por coincidir, como escreve expressamen­ assumira).
te Croce: “ Filosofia e história já não são E a ética? Já vimos que, para Croce,
duas formas, e sim uma só forma, e não se é a volição do universal. M as o que é esse
Capítulo sétimo - CD n e o -id e a lis m o i+aliano e o id ea lism o a n g lo -a m e r ic a n o

universal? Eis a resposta: o universal é o uma necessidade prática, para responder às


próprio espírito, “ a realidade enquanto necessidades da situação presente. Assim, o
verdadeiram ente real com o unidade de juízo histórico que damos (seu significado)
pensamento e querer; é a vida, colhida em torna-se “ presente” . Neste sentido toda
sua profundidade como aquela mesma uni­ história é sempre “ história contemporânea” ,
dade; é a liberdade, se uma realidade assim uma história que “ vive em nós” .
concebida é perpétuo desenvolvimento, cria­ O homem — diz Croce — é um mi­
ção, progresso. [...] E, no querer universal, crocosmo, não em sentido naturalista, mas
ou seja, aquilo que o transcende enquanto em sentido histórico, compêndio da história
indivíduo, o homem moral volta-se para o universal” .
espírito, para a realidade real, para a vida A história, portanto, é o verdadeiro
verdadeira, para a liberdade” . Como icas- conhecimento do real, isto é, aquela “ sínte­
ticamente diz ainda Croce, é “ um negar-se se a priori” de que falamos anteriormente,
e superar-se enquanto indivíduo isolado, e entre intuição e categoria. A história é o
servir a Deus” . v erdadeiro conhecim ento do universal
Esta é uma resposta que o próprio H e­ concreto. E não somente todo juízo histó­
gel teria podido subscrever plenamente. rico é conhecimento, mas o conhecimento
histórico “ é todo o conhecimento” . Isso é
o “ historicismo absoluto” .
A história e o juízo histórico são,
y \ k istó ria c o m o p e n sa m e n to
portanto, necessários. M as não o são no
e com o a ç ã o sentido mecanicista em que os materialistas
entendiam a “ necessidade” , e tampouco no
sentido de força transcendente que, de fora,
Se, como vimos acima, o juízo filosófico mova a história (a Providência de Deus-fora-
coincide com o juízo histórico, então, seja do-mundo), mas no sentido da racionalidade
qual for o período a que nos referirmos no imanente. __
conhecer histórico, ele se torna atual. Com O “ se” histórico é ridículo. E ridícu­
efeito, nós operamos o juízo histórico por lo, por exemplo, dizer “ se Napoleão não
Primeira parte - filosofia do século X^X ao século XX

houvesse cometido o erro de ir à R ússia” ,


porque isso suporia a impotência do espíri­
to, negando o nexo lógico e racional íntimo
do universal concreto, que é a substância da ■ História. A história não é crônica,
história. Por isso, referindo-se ao indivíduo, nem arte, nem retórica, mas é o ver­
o “ se” histórico é um contra-senso. N ão se dadeiro conhecim ento do real, ou
seja, a síntese a priori entre intuição e
pode dizer “ se não tivesse cometido aquele categoria, e "a síntese a priori, que é
erro” . Com efeito, tu és o que és preci­ a concretude do juízo individual e da
samente porque cometeste aquele erro, e definição, é ao mesmo tempo a con­
podes dizer o que dizes porque o cometeste cretude da filosofia e da história".
e, cometendo-o, conheceste o verdadeiro e Para Croce, portanto, filosofia e
superaste o momento do erro. história coincidem: a história é o
Todavia, em história também não tem verdadeiro conhecim ento do u n i­
sentido o juízo de louvor e de censura, por­ versal concreto, e não só todo juízo
histórico é conhecimento, mas o
que louvor e censura cabem aos indivíduos
conhecimento histórico "é todo o co­
no momento em que agem; mas, uma vez nhecimento".
tornados acontecimentos históricos, não As características fundamentais da
podem mais ser julgados uma segunda vez. história são:
O tribunal da história não condena nem a) a atualidade, razão pela qual toda
absolve, não censura nem louva: o tribunal história é história contemporânea,
da história conhece e compreende. juízo histórico que revive e se atua
Além disso, o conhecimento histórico no presente do espírito;
é catártico. Com efeito, nós somos produ­ b) a necessidade, mas não em sentido
mecanicista nem em sentido trans­
zidos pelo passado e podemos nos resgatar cendente, e sim como racionalidade
do passad o, precisamente conhecendo-o imanente;
historicamente. Escrever história, como já c) o efeito catártico, porque conhecer
dizia Goethe, é um modo de tirar das costas ^ historicamente o passado significa
o passado e de libertar-se dele. resgatar-se e libertar-se dele;
Assim como o espírito é teórico e prá­ d) a relação de pensamento e ação,
tico na unidade-distinção, do mesmo modo porque o conhecimento histórico é,
o conhecimento histórico é estimulador de ao mesmo tempo, estimulador de
ação e estimulado pela ação.
ação e, ao mesmo tempo, é estimulado pela
ação, é ligação de “ pensamento” e “ ação”
que se exerce de modo circular, precisamente
como o espírito. Texto Q
Capítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o i+al iano e o id ea lism o a n g lo -a m e r ic a n o

AS FORMAS DO ESPÍRITO

T E O R IA P ráxis
Kl ONÔMK a:
Ari n relativa apen.is
intuição c expressão, as> condições de tato
caracterizada pelo sentimento em que o indivíduo
universal e cósmico se encontra
da liricidade

In d iv id u a l id a d e In d iv id u a l id a d e

U n iv e r s a l id a d e Un iv e r s a l id a d e

L ó g ic a : " ..■'É t i c a :
ciência do conceito puro, relativa a fins universais
isto é, do universal concreto que vão além
do homem individual

T eoria P r á x is

O F IM D O R E A L C O N S IS T E N A T O T A L ID A D E C IR C U L A R D E S T A S Q U A T R O F O R M A S ,
O U S E JA , A P E N A S O E S P ÍR IT O É O F IM D O E S P ÍR IT O

RICISMO ABSOLUTO

0 juízo Como o pensamento autêntico é pensamento UNIVERSALV -


individual------ do universal concreto, CONCRETO: i
nos faz e como o juízo definitório coincide com o juízo individual, | a realidade
concretamente filosofia e história coincidem do espírito
conhecer em sua seiva vital
e possuir o mundo, universal
e seu predicado ▼ = e em toda a sua
não é mais í A HISTÓRIA É O VERDADEIRO CONHECIMENTO DO UNIVERSAL . riqueza:
que \ c o n c r e t o , e o conhecimento histórico é todo o conhecimento síntese de opostos,
o juízo unidade na
definitório distinção
T
F. como o juízo histórico responde sempre a uma necessidade prática atual

___T
TO D A H ISTÓRIA É HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA
que revive e se realiza no presente do espírito

' ▼ "
O conhecimento histórico é catártico,
é estimulador de ação e, ao mesmo tempo, estimulado pela ação:
é uma ligação de “pensamento” e “ação”
que se explica de modo circular como o espírito
Primeira parte - y \ f i lo s o f i a d o s é c u lo X ^ J X s é c u lo X X

III. G, iovanni (A an file


e o neo-idealismo como atualismo

• Giovanni Gentile nasceu em Castelvetrano, na Sicília, em 1875. Discípulo de


Donato Jaia em Pisa, apreciou o pensamento de Spaventa. Depois de ter ensinado
nos liceus, tornou-se professor na Universidade de Palermo; em 1914 sucedeu Jaia
em Pisa e a partir de 1917 se transferiu para a Universidade de
Gentile Roma. Aderiu ao fascismo, e isso foi causa de sua ruptura com
e suas obras Croce. Em 1922 foi eleito senador e, como Ministro da Educação,
1 levou a term o a reforma escolar. Em 1925 tornou-se diretor do
Instituto Treccani e publicou a famosa Enciclopédia. Não se desli­
gou do fascismo nem em 1943, e em 1944 foi morto por um desconhecido, diante
de sua casa em Florença.
Suas obras teóricas mais importantes são: O ato do pensamento como ato puro
(1912); A reforma da dialética hegeliana (1913); A teoria geral do espírito como
ato puro (1916); Sistema de lógica como teoria do conhecer (1917-1922).

• O coração do sistema de Gentile está no repensamento do conceito de


"dialética", definida como "ciência das relações conceituais". Há duas formas de
dialética, absolutamente inconciliáveis:
a) a dialética antiga, de tipo platônico, que é dialética do
A dialética pensado ("dialética da morte"), porque considera as idéias como
segundo objetos que são diferentes em relação ao pensamento;
Gentile b) a dialética moderna, nascida da reforma kantiana, que é
§2 dialética do pensar ("dialética da vida"), isto é, da própria ativi­
dade do pensamento que pensa.
A dialética moderna, que em Hegel encontra sua expressão mais madura, não
chegou ainda à sua perfeição, porque nela permanecem resíduos da velha dialéti­
ca. A reforma da dialética hegeliana consistirá então em eliminar todo resíduo da
dialética do pensado e em rigorizar a dialética, tornando-a uma dialética do puro
pensar. Há um só e único conceito, e este é ato puro, autoconceito, e nele toda a
realidade se resolve. Nasce assim o atualismo.

• O atualismo é a forma de idealismo segundo o qual o espírito, enquanto


ato, põe seu objeto como multiplicidade de objetos, e em si os reabsorve como o
próprio momento do próprio fazer-se. O atualismo, sustenta Gentile, se resume
em duas posições fundamentais:
a) o verdadeiro conceito da realidade m últipla, o conceito
do sujeito centro de todas as coisas, é a u to c o n c e ito (con-
O pensamento ceptUS SUÍ);
c° mo . n b) no ato espiritual, toda a matéria é absorvida inteiramente
"autoconceito" na f orma como atividade (formalismo absoluto).
absoluta" última análise, as duas posições coincidem, porque con­
e a necessidade ceber o pensamento como forma absoluta eqüivale a concebê-lo
do "m a l" como conceptus sui. Ora, o espírito encontra diante de si, como
_> § 3.4 seu momento essencial, negação de si que deve ser negada, o mah
o espírito é bem e verdade exatamente superando e vencendo
o inimigo interior.

• O autoconceito realiza-se como posição: a) de si enquanto sujeito; b) de


si enquanto objeto (natureza); a realidade espiritual, com efeito, é desdobrar-se
como si mesma e como outro, e reencontrar-se no outro. O autoconceito que se
auto-realiza e se autoconhece, portanto, implica três momentos:
Capítulo sétimo - O n e o -id e o lis m o italiano e. o id ea lism o a n g l o -a m e n c a ^ o

1) a realidade do sujeito, puro sujeito; . A natureza


2) a realidade do objeto, puro objeto; ea
3) a realidade do espírito, como unidade ou processo do realização do
pensamento, e a imanência do sujeito e do objeto no espí­ "autoconceito'
rito. mediante
A verdadeira realidade, portanto, é a do pensamento, ou seus três
seja, do espírito,'síntese vivente eterna, monotríade justamente momentos
enquanto se desenvolve em três momentos. A história do mundo, —> § 5-7
ou seja, o caminho da humanidade através do espaço e do tempo,
é a representação empírica e exterior da vitória eterna imanente do espírito sobre
a natureza; é, diz Gentile com fórmula de Vico, "história ideal eterna".

Vi d Suas obras teóricas mais importantes são:


O ato do pensamento como ato puro (1912);
A reforma da dialética begeliana (1913); Su­
Giovanni Gentile nasceu em Castel- mário de pedagogia como ciência filosófica
vetrano (na Sicília) em 1875. Foi aluno (1913-1914); A teoria geral do espírito como
de Donato Jaia na Escola Norm al de Pisa, ato puro (1916); Sistema de lógica como
que o fez conhecer e amar o pensamento teoria do conhecer (1917-1922); Discursos
de Spaventa, que seria o ponto de partida de religião (1920) e Filosofia da arte (1931).
de seu atualismo. Depois de alguns anos de Sua obra que teve mais sucesso foi A
ensino em liceus, tornou-se professor na teoria geral do espírito como ato puro, mas a
Universidade de Palermo; em 1914, sucedeu que, ao contrário, os estudiosos consideram
a Jaia em Pisa e, a partir de 1917, transfe­ como a mais profunda é o Sistema de lógica.
riu-se para a Universidade de Roma. Da
colaboração com Croce e do rompimento
posterior, já falamos. Em 1922 tornou-se
senador e, como M inistro da Educação, A ^ reforma ge.nf\liana
levou a cabo a reforma escolar iniciada por da dialética kegeliana
Croce e que se demonstraria sólida durante
décadas. Sua adesão ao fascismo sobreviveu
ao delito Matteotti, ainda que Gentile tenha O cerne do sistema gentiliano está, sem
procurado tomar a devida distância em rela­ dúvida, no repensamento do conceito de
ção ao caso. Em 1925 tornou-se diretor do dialética e em ter levado a cabo o processo
Instituto fundado pelo senador Treccani e de sua “ mentalização” , que Bertrando Spa­
projetou, elaborou e publicou uma Enciclo­ venta preconizara.
pédia que, durante muitos anos, constituiu A essência da dialética, diz Gentile, está
ponto de referência para todos os italianos, na relação que liga os conceitos, de modo que
sendo ainda hoje de útil consulta. Em 1943 a dialética pode ser definida como “ ciência
Gentile não se afastou do fascismo, e aderiu das relações” . Ora, existem duas formas de
ao chamado “ governo fantoche” . Este, sem dialética: a) a antiga, de tipo platônico, e b)
dúvida, foi ato de fidelidade àquele regime a moderna, nascida da reforma kantiana.
do qual fora o líder cultural e, em última a) A dialética antiga é dialética do pen­
análise, um ato de coerência moral. Em 1944 sado, porque considera as idéias precisamen­
foi assassinado por mão desconhecida diante te como objetos diferentes do pensamento e
de sua casa, em Florença. o condicionam;
São numerosas as obras de Gentile. A b) a dialética moderna, pelo contrário,
“ Fondazione Gentile” preparou uma edição é a dialética do pensar, ou seja, da própria
completa de suas obras, em cinqüenta e atividade do pensamento que pensa.
cinco volumes, divididos em: As duas dialéticas são absolutamente
a) obras sistemáticas (vols. 1-9); inconciliáveis, pois existe um abismo entre
b) obras históricas (vols. 10-35); elas: o abismo que divide o idealismo mo­
c) obras diversas (vols. 36-45); derno do antigo.
d) fragmentos (vols. 46-55); M as a dialética moderna, que encontra
e) um epistolário em vários tomos. em Hegel sua expressão mais madura, ainda
Primeira parte - y\ filo sofia d o s é c u lo a o s é c u lo X X

não alcançou sua perfeição. Com efeito,


em Hegel permanecem alguns resíduos da b
velha dialética. De fato, Hegel distinguia a
■ D ialética. A dialética é definida j
fenomenologia da lógica pura e, além disso, | por Gentile como "ciência das rela- 1
introduzia a tripartição entre lógica, filosofia f ções conceituais". Há duas formas í
da natureza e filosofia do espírito também [ de dialética, absolutam ente incon- 1
na esfera da ciência pura, contradizendo-se I ciliáveis: :
manifestamente, ou seja, como que recain- ; a) a dialética antiga, de tipo platôni- -
do em um platonism o (embora parcial), j co, que é dialética do pensado, por- :
enquanto o “ pensam ento” estudado na que considera as idéias como objetos %
lógica e a “ natureza” constituem momentos ; que são diferentes em relação ao 1
pensamento e o condicionam; j
anteriores (ainda que idealmente) ao espírito 1
b) a dialética moderna, nascida da ;
e, portanto, mantendo ainda uma espécie de I reforma kantiana, que é dialética do '
dialética do pensado. | pensar, isto é, da própria atividade do j
A reforma da dialética hegeliana con- I pensamento que pensa. 1
sistiria, então, em eliminar todo resíduo da \ E enquanto a dialética antiga é "dialé- j
dialética do pensado e em rigorizar a dialéti- j tica da morte", porque a realidade aí \
ca, tornando-a uma dialética do puro pensar. \ se encontra como determinada para I
Pode-se objetar, porém: Croce já não 1 a eternidade, a dialética moderna, ^
trabalhara nessa direção? Ele já não reduzira | que encontra em Hegel sua expressão j
mais madura mas ainda não perfeita, ■
toda a dialética a dialética do espírito? Sem f é a "dialética da vida", porque cons- j
dúvida, Croce já se movera nesse sentido, I titui o processo do real "e o processo 1
mas introduzira, com seus “ distintos” , um ; do real não é mais concebível a não j
sistema de categorias (os quatro graus do | ser como a história do pensam ento". \
espírito), que Gentile não aceita. A catego- $ Para Gentile a dialética é a dialética í
ria é uma só: a do espírito. Existe um só e do autoconceito. |
único conceito, e este é propriamente ato »
puro, autoconceito, e nele resume-se toda a p ■ . . . :I
i ■ ‘"N*, C.fl
realidade. Assim nasce o atualismo.

\*
é
Giovanni Gentile (1875-1944)
% repensou o hegelianismo,
reformando sua dialética de modo radical,
e criando o atualismo que constitui
a forma extrema assumida
pelo idealismo ocidental.
C a p í t u l o s é t íff íO - (D n e o -id e a lis m o italiano e o id ea lism o a n g lo -a m e r ic a n o

O p en sam en to é intrinsecamente determinado, mediato,


desenvolvido em toda a multiplicidade de
c o m o ^ a u to c o n c e ito *
seus momentos positivos. Por conseguinte,
e #[ o i * m a a b s o l u t a ” como a unidade é do sujeito que concebe o
conceito, a multiplicidade dos conceitos das
coisas não pode ser senão a casca superfi­
O atualismo é a forma de idealismo cial de um núcleo que é um só conceito: o
que afirma que o espírito como ato põe seu conceito de sujeito como centro de todas as
objeto como multiplicidade de objetos, e os coisas. De modo que o verdadeiro conceito,
reabsorve em si como momento do próprio que existe propriamente, é autoconceito
fazer-se. O espírito se autopõe, pondo dia- (conceptus sui)” .
leticamente o objeto e resumindo-o plena­ b) O segundo ponto é o do formalismo
mente em si: “ O pensamento não conhece absoluto. Se por matéria e forma se entende
a não ser realizando-se a si mesmo, e o que o que Kant assim denominou, então deve-
conhece nada mais é do que essa mesma se dizer que toda a matéria é inteiramente
realidade que se realiza” . absorvida na forma: “ A matéria (da expe­
Como diz Gentile na Teoria geral do riência) é posta e resumida na forma. De
espírito como ato puro, o atualism o ba­ modo que a única matéria que pode existir
seia-se e resume-se em dois conceitos, que no ato espiritual é a própria forma como
constituem a) o “ princípio primeiro” e b) o atividade. N ão o positivo enquanto posto
“ termo último” da doutrina. [...], mas o positivo enquanto se põe, a
a) N ã o existem m uitos con ceitos
própria form a” .
(como já observam os), m as apenas um Em última análise, esses dois conceitos
só, porque não há m uitas realidades a coincidem, porque conceber o pensamento
com preender, m as uma só, em bora em como forma absoluta eqüivale a concebê-lo
multiplicidade de momentos. Portanto, “ o como conceptus sui. O espírito é o pôr-se
verdadeiro conceito da realidade múltipla (o autopor-se) enquanto pensar, e tudo se
não deve consistir em uma multiplicidade resume na dialética do pensar.
de conceitos, e sim em conceito único, que

â /?~\ // I // // //
LJ m al e o e rro

Segundo Gentile, o atualismo explica o


que sempre repugnou ao espírito humano:
■ A u to c o n c e ito (c o n c e p tu s s u i). É o mal e o erro.
o verdadeiro único conceito da reali­ O mal é aquilo que o espírito encon­
dade múltipla, o conceito do sujeito tra diante de si como negação de si. M as o
centro de todas as coisas, enquanto espírito nega essa negação — e sua vida é
"a multiplicidade dos conceitos das
coisas não pode ser senão o esboço
precisamente esse negar a negação. Portan­
superficial de um núcleo que é um to, o mal assim entendido é como “ a mola
conceito só". ; interna pela qual o espírito progride — e ele
O autoconceito é atividade, enten­ vive com a condição de progredir” .
dida como form alism o absoluto, que O mesmo vale para o erro. O conceito
absorve inteiramente toda a matéria; não é o “ já posto” , mas “ o positivo que se
em sua auto-realização e autoco- j autopõe” ; como diz Gentile, é “ um processo
nhecimento implica três momentos de autóctese (= posição de si mesmo) que
dialéticos: tem como seu momento essencial a própria
1) a realidade do sujeito, puro su­ negação, o erro contra o verdadeiro” . O
jeito; erro é apenas um momento do verdadeiro;
2) a realidade do objeto, puro ob­
jeto; . aliás, só é reconhecido como erro ao ser
3) a realidade do espírito, como uni­ referido ao verdadeiro. E o que vale para
dade ou processo do pensamento, e o erro teórico vale também para o erro
a imanência do sujeito e do objeto prático-moral.
no espírito. Em suma, diz Gentile, mal e erro são
como que o “ combustível” de que a chama
do espírito necessita para queimar: o fogo
alimenta-se do combustível, mas o queima.
Primeira parte - y \ f ilo s o f i a d o s é c u lo X ^ X a o s é c u lo X X

E, assim, o espírito é bem e verdade, preci­


samente superando e vencendo o inimigo
interior e consumindo-o.
GIORNALE CRITICO
DELLA

gjjjgl y W a t u i * e 2 a #c o m o o b je + o
F IL O S O F IA IT A L IA N A
d o ^ a u + o c o n c e i+ o * D IR E TTO DA

GIOVANNI GENTILE

Conforme Gentile, o atualismo expli­


ca tam bém a natureza com o objeto do
autoconceito. Com efeito, o autoconceito
se realiza como posição de si mesmo como
sujeito e de si mesmo como objeto. Escreve
Gentile: “ Isto é o Eu, a realidade espiritual:
identidade de si consigo mesmo, não como
identidade imediatamente posta, mas como
identidade que se põe, como reflexão: du­
plicar-se como si mesmo e como outro — e
encontrar-se no outro. O Si-mesmo que fosse
‘si’ sem ser o outro evidentemente não seria
nem si mesmo, porque só o é enquanto é o
outro. Nem o outro também seria o outro se
DIR F.7.IONE: RO M A. VIA PALISTRO j* «t 4
não fosse ele mesmo, porque o outro não é m iu im a , cm a K xnoc* o. m u n c i m i o
pensável a não ser como idêntico ao sujeito,
ou seja, como o mesmo sujeito como este
encontrar-se diante de si mesmo, pondo-se
realmente” . Frontispício do primeiro fascículo da revista
“Jornal crítico da filosofia italiana ”
(janeiro de 1920).
O s t rè s m o m e n to s
cio " a u t o c o n c e i t o ”
Conseqüentemente, observa Gentile
na Teoria geral do espírito, a história do
Ora, com base nessa estrutura dialéti­ mundo, ou seja, o caminho da humanida­
ca, o autoconceito que se auto-realiza e se de através do espaço e do tempo, “ nada
autoconhece implica três momentos: mais é do que a representação empírica e
1) a realidade do sujeito, puro su­ exterior da vitória eterna imanente (plena
jeito; e absoluta vitória) do espírito sobre a na­
2) a realidade do objeto, puro ob­ tureza, da resolução imanente da natureza
jeto; no espírito” . Como diz Gentile com fórmula
3) a realidade do espírito, como unida­ viquiana, é “ história ideal eterna” . E assim,
de ou processo do pensamento, e a imanên- analogamente, também a natureza, vista
cia do sujeito e do objeto no espírito. exteriormente, é “ como que o eterno passa­
M as note-se bem: o sujeito deve existir, do de nosso eterno presente” . Nessa ótica,
porque, do contrário, não existiria quem natureza e história coincidem.
pensa; o objeto deve existir, porque, do Uma última observação, para com ­
contrário, o pensamento não seria nada. pletar o quadro. Aos três momentos acima
M as a verdadeira realidade é a do pensa­ distinguidos na categoria única do espí­
mento, isto é, do espírito, pois nele e por ele rito, Gentile faz corresponder, respectiva­
existem sujeito e objeto: “ nada é real fora mente:
do pensamento” . O primeiro e o segundo 1) ao primeiro (o da subjetividade),
momento só têm realidade no terceiro, que a arte;
é a síntese viva eterna. N o Sistema de lógica, 2) ao segundo (o da objetividade), a
Gentile denominou essa unidade que se de­ religião;
senvolve em três momentos usando o termo 3) ao terceiro (o da síntese), a filo­
“ monotríade” . sofia.
131
Cãpítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o italiano e o id ea lism o a n g lo -a m e r ic a n o

/\)a + u r e z a d o a tu a lism o abstrato. M as, diz Gentile, pensar a unidade


mediante as diferenças é próprio de todas as
g e n f iIla
ic n o filosofias: com efeito, foram os eleáticos que
começaram a “ unicizar” e, de vários modos,
todos os filósofos prosseguiram nesse cami­
N as páginas conclusivas de sua obra nho. Nesse sentido, pode-se dizer que “ todo
maior, o Sistema de lógica, Gentile toma homem, saiba ou não, é panlogista” .
posição contra algumas tentativas polêmicas Outros, por seu turno, consideraram
de determinar a natureza de sua filosofia. E o atualism o como “ panteísm o” . Gentile
o faz de modo muito esclarecedor. rejeita vivamente essa qualificação, susten­
Croce lhe objetara que seu atualismo tando que o panteísmo concebe Deus como
era uma “ mística” . Gentile respondeu que, natureza, ao passo que o atualismo diz o
da mística, o atualismo mantém o positivo, contrário, sendo “ a crítica peremptória
porque só considera real o absoluto e só jul­ de todo panteísmo” . N a verdade, porém,
ga a Deus como realidade verdadeira. M as, Gentile entende aqui o panteísmo no sentido
ao mesmo tempo, elimina o defeito do mis­ spinoziano restrito. M as, se por panteísmo
ticismo, porque não cancela as distinções, se entende a negação da transcendência e a
mas as considera não menos necessárias que redução do mundo a Deus, ainda que em
a identidade. termos dialéticos, então Gentile é panteísta,
A lguns co n sid eraram o atu alism o dado que ele afirma claramente que “ a coisa
como árido “ panlogismo” , que resolve todas finita (e, portanto, o mundo) é sempre a
as diferenças na unidade de um pensamento realidade de Deus” .

Giovanni Gentile
fotografado durante uma conferência na década de 1920.
Primeira parte - y\ f >lo so fia d o s é c u lo ao sécu Io XX

Giovanni Gentile no cargo de Ministro da Educação discute com Severi,


seu chefe de gabinete.

Outros acusaram o atualismo de ser uma mal nisso, considerando que, mais do que o
“ filosofia teologizante” . Gentile responde pensamento dos teólogos, Deus é também e
que aceita essa qualificação por aquilo que principalmente o pensamento constante de
ela tem de verdadeiro. E o que ela tem de todo homem que não se compraz em jogos
verdadeiro resume-se do seguinte modo no de inteligência, mas vive seriamente sua vida
trecho que encerra sua obra maior: “ Fi­ em que está envolvido o universo e que, por
losofia teologizante, portanto? E por que isso, lhe faz sentir o peso de uma responsa­
não? Só que a teologia dos teólogos nunca bilidade divina. Além disso, o que importam
falou propriamente de Deus, já que os teó­ os nomes, as etiquetas, as características?
logos nunca conheceram Deus, tendo-o O importante é pensar: ‘o pensar é a maior
sempre pressuposto, confundindo-o com virtude’, já dizia Heráclito” .
sua sombra. Pois, se teologizar significar de E, algumas páginas antes, Gentile escreve­
qualquer modo falar com Deus, não haverá ra: “ Pensar é viver a vida imortal” . EfSlTTI
Capítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o i+al iano e o id ea lism o a n g lo -a m e r ic a n o

GENTILE
O PENSAMENTO
COMO "AUTOCONCEITO" E "FORMA ABSOLUTA"

O espírito é
autoconceito,
verdadeiro único conceito
da realidade múltipla

Toda a matéria é absorvida totalmente


na forma absoluta,
que é ato espiritual,
é o positivo que põe a si próprio (au tóctise)

O autoconceito se auto-realiza e se autoconhece


DIALÉTICA:
segundo uma dialética triádica (m onotríade ): -
ciência
1. realidade do sujeito das relações
2. realidade do objeto
3. realidade do espírito a dialética
antiga
era dialética
do pensado
a dialética
A verdadeira realidade é m oderna
a realidade do pensamento que se autopensa, é dialética
ou seja, do espírito: do pensar
bem e verdade,
síntese viva eterna,
que tem como seu momento essencial
a própria negação (a natureza),
o erro contra o verdadeiro,
o mal contra o bem

_____________ . I ........
A história do m undo é a representação empírica e exterior
da imanente vitória eterna do espírito sobre a natureza,
da imanente resolução da natureza no espírito

.1
A É H IS T Ó R IA ID E A L E T E R N A
V E R D A D E IR A H IS T Ó R IA
que se reúne no eterno ato do pensar
Primeira parte - jA . f ilo s o f i a d o s é c u lo a o s é c u lo X X

IV. o Kveo-idealismo na. CMgla+e^a


e Kva ;A.ménca

Predecessores • O neo-idealismo surgiu na Inglaterra e na América como


do reação ao predomínio do empirismo e, portanto, foi um fenômeno
neoidealismo inesperado, ainda que tivesse encontrado nos literatos filósofos
anglo- Carlyle e Emerson - respectivamente na Inglaterra e na América
americano - precedentes significativos.
>§1
• O neo-idealismo inglês encontra seu representante máxi­
mo em F. H. Bradley, que se empenhou em uma demonstração
O neoidealismo
sistemática dos múltiplos aspectos contraditórios da experiência
inglês
—> § 2
e demonstrou a necessidade de uma referência a uma realidade
absoluta, em alguma medida imanente em cada homem.

O neoidealismo • A problemática de Bradley da relação entre o homem e o


americano absoluto encontrou um eco consistente no americano J. Royce,
- 5 3 que repropôs - em chave filosófico-idealista - o conceito paulino
de corpo místico.

.1 p re c e d e n te s: neo-hegelianos ingleses e norte-americanos,


(S a rly le e Ê m e f s o n
tanto na Inglaterra como na América alguns
influentes “ literatos filósofos” , como os dois
poetas Samuel Taylor Coleridge (1772-1834)
e William Wordsworth (1770-1850) e, de­
Contra a tradição empirista e psicolo- pois, Thomas Carlyle (1795-1881) na Ingla­
gista, desenvolve-se na segunda metade do terra e Ralph Waldo Emerson (1803-1882)
século X IX e nas primeiras duas décadas na América, haviam preparado o terreno
do século X X , tanto na Inglaterra como na e o clima propício para o aparecimento e
América, um forte movimento neo-idealista. também para o sucesso do neo-hegelianismo
Tratava-se de um movimento que pretendia anglo-americano. O pensamento de Schelling
contrastar longa e bem arraigada tradição. foi o inspirador dos ensaios literários e de
Por isso, além dos apoios e de críticas ine­ muitas poesias de Coleridge e Wordsworth.
vitáveis, também não deixou de suscitar Por seu turno, Carlyle tornou conhecida
surpresa. A propósito dele escreveu William na Inglaterra a literatura romântica alemã.
Jam es: “ E um estranho acontecimento essa Além disso, de 1837 é seu trabalho histórico
ressurreição de Hegel na Inglaterra e aqui sobre A Revolução Francesa, onde encon­
(nos Estados Unidos) depois de seus funerais tram os adm irada exaltação das grandes
na Alemanha. Penso que sua filosofia terá in­ personagens da Revolução. E em Os heróis
fluência importante sobre o desenvolvimen­ (1841), Carlyle delineia uma concepção da
to de nossa forma liberal de cristianismo. história vista como resultado e expressão
Tal filosofia apresenta aquela ossatura quase da ação dos heróis. N a trilha de Goethe,
metafísica de que essa teologia sempre teve escreve Carlyle em Sartor Resartus (1834)
necessidade” . E se olharmos a obra de Jacob que o universo é “ a roupagem de Deus” , um
Hutchinson Stirling (1820-1909), que é O “ tempo místico do espírito” , um símbolo
segredo de Hegel (1865), devemos dizer que daquele poder divino que se torna patente
Jam es não estava de modo nenhum errado. na personalidade dos “ heróis” . Simultanea­
Stirling foi o primeiro a apresentar a filosofia mente, Carlyle mostra-se muito afastado
de Hegel na Grã-Bretanha “ de forma relati­ em relação à ciência, que considera inútil
vamente inteligível e coerente” (J. Passmore). para a solução dos problemas filosóficos.
A bem da verdade, deve-se recordar que, N o mesmo período em que Carlyle
antes ainda que aparecessem as obras dos atuava na Inglaterra, Ralph Waldo Emer­
Capítulo sétimo CD n e o -id e a lis m o i+aliano e o id ea lism o a n g lo -a m e c ic a n o

Ralph Waldo Emerson


(1803-1882)
foi o promotor
do idealismo panteísta
na América.

son, nos Estados Unidos, fazia-se paladino .2 Bradley


de um idealism o panteísta que vê uma
“ superalm a” com o força encarnada em
toda a realidade. Tudo procede do mesmo
espírito: os homens e o mundo. E enquanto
o corpo humano é guiado por uma vontade, Depois de Stirling, os representantes
o mundo é “ uma encarnação de Deus mais destacados do idealismo inglês foram, sem
baixa e mais distante” : o mundo é “ uma dúvida, Thomas Hill Green (1836-1882),
projeção de Deus no inconsciente” . A ordem Edward Caird (1835-1908) e John M cT ag-
do mundo, testemunha do espírito divino, gart (1866-1925); todavia, a figura de maior
não pode ser violada pelo homem. E quando destaque é certamente a de Francis Herbert
enveredamos pelo caminho que nos leva a Bradley (1846-1924), cuja obra principal,
infringir a ordem da natureza, não é difícil Aparência e realidade, é de 1893.
perceber que “ nos tornamos estranhos na Para Bradley, o mundo de nossa expe­
natureza” . O afastam ento em relação à riência é contraditório e incompreensível.
natureza é alienação em relação a Deus. A Da forma como nos aparece, o mundo se
exemplo de Carlyle, Emerson também é da despedaça sob as bordoadas da análise fi­
idéia de que a história é feita e plasmada losófica.
por grandes homens. Seu trabalho Homens Com efeito, se olharmos para a dis­
representativos é de 1850. tinção antiga entre qualidades primárias e
Primeira parte - y\ filo s o -p a d o s é c u lo X ^ X a o s é c u lo X X

qualidades secundárias, podemos ver, escre­ Royce (1855-1916). Autor muito fecundo,
ve Bradley, que “ o raciocínio que demonstra Royce registrou os melhores frutos de seu
que as qualidades secundárias não são reais pensamento em O mundo e o indivíduo
possui a mesma força quando o aplicamos (2 vols., 1900-1902) e em O problema do
às qualidades primárias” , que também “ nos cristianismo (1913).
vêm unicamente da relação com um órgão Antes de mais nada, Royce sustenta
do sentido” . que não é possível nos acomodarmos em
N ão é válido distinguir as coisas das nossos conhecimentos, sempre limitados e
qualidades, já que “ não podemos descobrir parciais. Exigimos verdade absoluta, um juiz
nenhuma unidade real existente independen­ infinito, que esteja em condições de julgar, de
temente das qualidades” . uma vez por todas, para toda a eternidade,
O mundo de nossa experiência está o erro e o mal.
cheio de contradições, é inconsistente. Ele Em suma, o homem finito postula uma
é apenas aparência. “ A realidade definitiva consciência absoluta. E essa consciência
é aquela que não deve se contradizer” . N ão absoluta é Deus, no qual se integra o que é
há um só aspecto do mundo finito que se fragmentário, e no qual encontram lugar e
salve da contradição e que possa, portanto, sentido até os erros, as derrotas, os defeitos e
ser considerado real. Conseqüentemente, a todos os esforços das consciências finitas.
realidade absoluta transcende toda tentativa A partir dessas premissas, no que se
humana de alcançá-la. Por outro lado, o refere à sociabilidade, Royce deduz uma
homem finito, que não consegue chegar à doutrina que guarda analogias estreitas com
realidade absoluta, mas que distingue a apa­ a doutrina cristã do corpo místico. Escreve
rência da realidade, possui essa realidade ab­ ele: “ N ós som os apenas pó, se a ordem
soluta como imanente, de modo que “ todo social não nos dá a vida. Se considerarmos
ato de experiência, toda esfera ou grau do a ordem social como um instrumento nos­
mundo é fator necessário do absolu to” . so e nos preocuparmos unicamente com
N o absoluto nada se perde, mas tudo se nossas sortes privadas, então ela se torna
transforma. “ O absoluto não tem história, desprezível para nós [...]; mas, se modifi­
embora contenha inumeráveis histórias” . carmos nossa atitude e servirmos a ordem
social, mais do que só a nós mesmos, então
perceberemos que aquilo que servimos é
3 R oyce
simplesmente nosso mais elevado destino
espiritual em forma corpórea” .
e o n e o - i d e a l is m o Este é o ideal que Royce proclama dian­
n a ^ A m é r ic a te de uma sociedade que impele as pessoas
ao individualismo e diante de Igrejas que,
em sua opinião, afastaram-se sempre mais
Depois de Emerson, o neo-idealismo do ideal paulino do corpo místico. Royce,
foi significativamente defendido na América portanto, sustenta que a sociedade que pode
por William Torrey Harris (1835-1909), G. fazer o indivíduo sair de sua finitude não é
H. Howison (1834-1916) e James Creighton tanto uma sociedade real, e sim muito mais
(1861-1924). M as o filósofo americano neo- uma sociedade ideal, que está na base de
idealista mais influente e conhecido éjo siah todas as comunidades históricas.
137
Capítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o if a íi a n o e o id ea lism o a n g lo -a m e r ic c m o

2. fl arte não é um fato físico


C roce €la nega em primeiro lugar qu© a arte
seja um fato físico; por exemplo, certas cores
determinadas ou relações de cores, certas
formas determinadas de corpos, certos sons
determinados ou relações de sons, certos fe­
D O que é o arte nômenos de calor ou de eletricidade, em suma,
qualquer coisa que se designe como “física". Já
no pensamento comum se tem o pretexto para
R concepção crociona do arte foi a que este erro de fisicizar a arte, e, como as crianças
impôs o filósofo em âmbito nacional e inter­ que tocam a bolha de sabão e gostariam de
nacional, e que difundiu seu pensamento tocar o arco-íris, 0 espírito humano, admirando
também nos círculos dos literatos e dos as coisas belas, dirige-se espontaneamente
artistas em geral. para rastrear seus motivos na natureza externa,
R arte é conhecimento intuitivo que impli­ e experimenta pensar ou crê ter de pensar como
ca um sentimento que se exprime justamente belas certas cores e feias certas outras, belas
p or imogens. R arte é uma espécie de síntese certas formas de corpos e feias certas outras.
a priori estética de sentimento e imagem na Mas de propósito, e com método, esta tentativa
intuição. foi depois executada mais vezes na história do
R arte enquanto tal não tem necessi­ pensamento: dos "cânones" que os artistas e
dade de modo nenhum de que o intelecto teóricos gregos e da Renascença fixaram para
lhe preste socorros, nem da economia nem a beleza dos corpos, das especulações sobre
da ética. relações geométricas e numéricas determináveis
R arte é, em resumo, o primeiro dos nas figuras e nos sons, até as pesquisas dos
"distintos" do espírito, e nesta óptica deve estetas do século XIX [...] e as “comunicações",
se r entendida. que nos congressos de filosofia, de psicologia
Nas páginas seguintes, além de passos e de ciências naturais de nossos dias os inex­
q u e indicam justam ente a determ inação perientes costumam apresentar a respeito das
precisa da arte em relação aos outros três relações dos fenômenos físicos com a arte. ê
"distintos", há também trechos em qu e caso perguntemos por qual razão a arte não
emergem alguns corolários importantes da pode ser um fato físico, é preciso em primeiro
estética crociona: a negação dos gêneros lugar responder que os fatos físicos não têm
literários e do belo natural, e a afirmação da realidade, 0 que a arte, à qual tantos consa­
indentidade entre lingüística e estética. gram sua vida inteira e que a todos enche de
divina alegria, é sumamente real; de modo que
ela não pode ser um fato físico, que é algo de
irreal.
1. fí arte é intuição
fl arte é visão ou intuição. O artista produz 3. fl arte não é um ato utilitário
uma imagem ou fantasma; 0 aquele qu0 sabo­ Outra negação está implícita na defini­
reia a arte dirige o olho ao ponto qu© o artista ção da art© como intuição: ou seja, que, se
Ih© indicou, olha pela espiral que o artista lhe ela é intuição, e se intuição vale como teoria
abriu 0 reproduz em si a imagem. “Intuição", "vi­ no sentido originário de contemplação, a arte
são", "contemplação", “imaginação", “fantasia", não pode ser um ato utilitário; e, como um ato
"figuração1', “representação", e daí por diante, utilitário visa sempre a alcançar um prazer e
são palavras que voltam continuamente como por isso a afastar uma dor, a arte, considerada
sinônimos no discorrer em torno da arte, e todas em sua própria natureza, não tem nada a ver
elevam nossa mente ao mesmo conceito ou à com o útil, e com prazer e com a dor, enquanto
mesma esfera de conceitos, indício de consenso tais. Conceder-se-á, de fato, sem demasiada
universal. resistência, que um prazer como prazer, um
Mas esta minha resposta, que a arte seja prazer qualquer, não é em si artístico: não é
intuição, atinge ao mesmo tempo significado e artístico o prazer de uma bebida de águo que
força a partir de tudo aquilo que ela implicitamen­ dessedenta, de um passeio ao ar livre que de-
te nego e de que distingue a arte. Quais nega­ sentorpece nossos membros e faz nosso sangue
ções estão aí compreendidas? Indicarei as prin­ circular mais levemente, do alcançar um lugar de
cipais, ou pelo menos aquelas que para nós, em trabalho suspirado que põe em ordem nossa
nosso momento cultural, são mais importantes. vida prática, e daí por diante. Rté nas relações
Primeira parte - y\ f ilo s o f i a d o s é c u lo XJX cxo s é c u lo xx

qu® se desenvolvem entre nós e as obras da Shakespeare), quanto julgar moral o quadrado
arte, salta aos olhos a diferença entre o prazer ou imoral o triângulo.
e a arte, porque a figura representada pode
ser cara para nós e despertar as mais delei-
5. fl arte não tem o caráter
táveis recordações, e, todavia, o quadro pode
de um conhecimento intelectual
ser feio; ou, ao contrário, o quadro pode ser
belo e a figura representada odiosa ao nosso Ainda (e esta é a última, e talvez a mais
coração: ou o próprio quadro, que aprovamos importante, das negações gerais que me con­
como belo, despertar raiva ou inveja porque vém recordar de propósito), com a definição da
obra de um nosso inimigo ou rival, ao qual arte como intuição nega-se que ela tenha cará­
trará vantagem e conferirá nova força: nossos ter de conhecimento conceituai. O conhecimento
interesses práticos, com os correlativos prazeres conceituai, em sua forma pura que é a filosó­
e dores, se misturam, por vezes se confundem, fica, é sempre realista, visando a estabelecer
perturbam-no, mas nunca se juntam com nosso a realidade contra a irrealidade ou a abaixar
interesse estético, filém do mais, para sustentar a irrealidade, incluindo-a na realidade como
mais validamente a definição da arte como o momento subordinado da própria realidade.
agradável, se afirmará que ela não é o agra­ Mas intuição quer dizer, justamente, indistinção
dável em geral, e sim uma forma particular de de realidade e irrealidade, a imagem em seu
agradável. Mas esta restrição não é mais uma valor de mera imagem, a pura idealidade da
defesa e é aliás um verdadeiro abandono imagem; e, contrapondo o conhecimento intui­
naquela tese, porque, uma vez que a arte seja tivo ou sensível ao conceituai ou inteligível, a
uma forma particular de prazer, seu caráter estética à noética, visa-se a reivindicar a auto­
distintivo seria dado não pelo agradável, mas nomia desta mais simples e elementar forma
por aquilo que distingue aquele agradável dos de conhecimento, que foi comparada ao sonho
outros agradáveis, e a esse elemento distintivo (ao sonho, e não ao sono) da vida teórica,
- mais que agradável ou diferente do agradável em relação ao qual a filosofia seria a vigília.
- conviria dirigir a pesquisa. €, verdadeiramente, toda pessoa que, diante
de uma obra de arte, pergunta se isso que o
artista expressou é metafísica e historicamente
4. fl arte não é um ato moral
verdadeiro ou falso, levanta uma pergunta sem
Uma terceira negação que se realiza significado, e entra no erro análogo ao de quem
graças à teoria da arte como intuição é que quer traduzir diante do tribunal da moralidade
a arte seja um ato moral; ou seja, a forma de as imagens aéreas da fantasia. [...]
ato prático que, embora se unindo necessa­ €sta reivindicação do caráter alógico da
riamente com o útil e com prazer e dor, não arte é, conforme eu disse, a mais difícil e im­
é imediatamente utilitária e hedonista e se portante das polêmicas incluídas na fórmula da
move em uma esfera espiritual superior. Mas arte-intuição; porque as teorias, que tentam ex­
a intuição, enquanto ato teórico, é oposta a plicar a arte como filosofia, como religião, como
qualquer prática, e, na verdade, a arte, con­ história e como ciência e, em grau menor, como
forme observação antiquíssima, não nasce por matemática, ocupam, com efeito, a parte maior
obra de vontade: a boa vontade, que define o na história da ciência estética, e se enfeitam
homem honesto, não define o artista. €, como com os nomes dos maiores filósofos. Na filosofia
não nasce por obra de vontade, ela se subtrai do século XIX, exemplos de identificação ou
igualmente a toda discriminação moral, não confusão da arte com a religião e com a filo­
porque lhe seja permitido um privilégio de sofia são oferecidos por Schelling e por Hegel;
isenção, mas simplesmente porque a discri­ da confusão dela com as ciências naturais, por
minação moral não encontra o modo de a ela Taine; da confusão com a observação histórica
se aplicar. Uma imagem artística retratará um e documentária, pelas teorias dos veristas
ato moralmente louvável ou reprovável; mas a franceses; e da confusão com a matemática,
própria imagem, enquanto imagem, não é nem pelo formalismo dos herbartianos. Mas seria
louvável nem reprovável moralmente. Não só vão procurar em todos esses autores, e nos
não há código penal que possa condenar à pri­ outros que se poderia lembrar, exemplos puros
são ou à morte uma imagem, mas nenhum juízo destes erros, porque o erro nunca é "puro", pois,
moral, dado por uma pessoa razoável, pode se assim o fosse, ele seria verdade. 6 por isso
fazê-la seu objeto: tanto valeria julgar imoral também as doutrinas da arte, que por brevida­
a francesca de Dante ou moral a Cordélia de de chamarei de "conceituai istas", contêm em si
Shakespeare (que têm mera função artística e elementos dissolventes, tanto mais numerosos
são como notas musicais da alma de Dante e de e eficazes quanto mais enérgico era o espírito
Capítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o italiano e o id ea lism o a n g lo -a m e r ic a n o

do filósofo que os professava; 0 por isso em como conseqüência de um princípio filosófico,


ninguém tão numerosos e eficazes como em mas por efeito de uma classificação empírica e
Schelling e em Hegel, os quais tiveram tão viva naturalista, que formou os dois grupos de fatos
consciência da produção artística que sugeriram, internos e fatos externos (como se os internos
com suas observações e seus desenvolvimentos não fossem ao mesmo tempo externos e os ex­
particulares, uma teoria oposta à que existe ternos pudessem existir sem interioridade), de
na afirmação de seus sistemas. De resto, as almas e corpos, de imagens e de expressões;
próprias teorias conceitualistas, não só são su­ e sabe-se que é vão esforço reunir em sínteses
periores, enquanto reconhecem o coráter teórico superiores aquilo que foi distinguido não tanto
da arte, às outras examinadas anteriormente, filosófica e formalmente, mas apenas empírica
müs trazem também sua contribuição à verda­ e materialmente, fl alma é alma enquanto é
deira doutrina, graças à exigência que contêm corpo, a vontade é vontade enquanto move
de uma determinação das relações (que, se pernas e braços, ou seja, é ação, e a intuição
forem de distinção, são também de unidade) enquanto é, no próprio ato, expressão. Uma
entre a fantasia e a lógica, entre a arte e o imagem não expressa, que não seja palavra,
pensamento. canto, desenho, pintura, escultura, arquitetura,
6 aqui já se pode ver como a simplicíssima palavra pelo menos murmurada de si para
fórmula de que "a arte é intuição", - a qual, si mesmo, canto pelo menos que ressoa no
traduzida em outros vocábulos sinônimos (por próprio peito, desenho e cor que se veja na
exemplo: que "a arte é obra da fantasia"), se fantasia e colore de si toda a alma 0 o orga­
ouve das bocas de todos aqueles que discorrem nismo, é coisa inexistente. Pode-se asserir sua
quotidianamente sobre a arte, e se encontra existência, mas não se pode afirmá-la, porque a
com vocábulos mais velhos ("imitação", "fic­ afirmação tem como único documento que aque­
ção”, “fábula" etc.) em tantos livros antigos -, la imagem esteja corporificada e expressa. €sta
pronunciada agora no contexto de um discurso profunda proposição filosófica da identidade de
filosófico, se encha de um conteúdo histórico, intuição e expressão se encontra, de resto, no
crítico e polêmico, de cuja riqueza se pôde dar bom senso comum, que ri daqueles que dizem
apenas alguma amostra. ter pensamentos mas não sabem expressá-los,
8. Croce, de ter idealizado uma grande pintura, mas de
Breviário de estético. não sabê-la pintar, fíem tene, verbo sequentur.1
se não existem os verbo, muito menos a res.
6. Intuição e expressão Tal identidade, que se d©v0 afirmar para todas
as esferas do espírito, na da arte tem uma
Um dos problemas que em primeiro lugar evidência e uma saliência que talvez faltem em
se apresentam, tendo definido a obra de arte outros lugares. I\la criação da obra de poesia,
como “imagem lírica", refere-se à relação entre assiste-se como que ao mistério da criação do
“intuição" e “expressão" e o modo da passagem mundo; e daí a eficácia que a ciência estética
de uma para a outra. €ste, substancialmente, é exerce sobre toda a filosofia, para a concepção
o mesmo problema que se apresenta em outras do Uno-Todo. Fl estética, negando na vido da
partes da filosofia, como o de interno e externo, arte o espiritualismo abstrato e o dualismo que
de espírito e matéria, de alma e corpo, e, na daí se segue, pressupõe e, ao mesmo tempo,
filosofia da prática, de intenção e vontade, de de sua parte exige o idealismo ou espiritualismo
vontade e ação, e semelhantes. Nestes termos, absoluto.
o problema é insolúvel, porque, separando o
interno do externo, o espírito do corpo, a von­ 7. €xpressão e comunicação
tade da ação, a intuição da expressão, não há
modo de passar de um para o outro dos dois As objeções contra a identidade de intui­
termos ou de reunificá-los, salvo se a reunifi­ ção e expressão provêm comumente de ilusões
cação for posta em um terceiro termo, que por psicológicas em que se crê possuir, em todo mo­
vezes foi apresentado como Deus ou como o mento, imagens concretas e vivas em profusão,
Incognoscível: o dualismo leva necessariamente quando se possuem quase que apenas sinais e
ou à transcendência ou ao agnosticismo. Mas, nomes; ou de casos mal analisados, como os de
quando os problemas se mostram insolúveis artistas dos quais se crê que exprimam apenas
nos termos em que foram colocados, não resta fragmentariamente todo um mundo de imagens
mais que criticar os próprios termos, e indagar que têm na alma, quando na alma justamente
como se tenham gerado, e se a gênese deles
é logicamente legítima. Fl pesquisa neste caso
leva ò conclusão de que eles nasceram não '"Retém a coisa, e os palavras seguir-se-ão”.
Primeira parte - y\ filo so fia d o s é c u lo X - T X a o s é c u lo xx

nõo têm mais qu® aqueles fragmentos, e junto vernizes, ou as que tratam dos modos de obter
com estes não aquele mundo suposto, mas a boa pronúncia e declamação, e semelhantes.
no mais das vezes a aspiração ou a obscura Os tratados de técnica não são trotados de
labuta na direção dele, ou seja, na direção de estética, nem partes ou seções destes tratados.
uma imagem mais vasta e rica, que talvez se Isso, bem entendido, sempre que os conceitos
forme ou não. Tais objeções, porém, também forem pensados com rigor e as palavras em­
se alimentam da troca entre a expressão e a pregadas com propriedade em relação àquele
comunicação, esta última de fato distinta da rigor de conceitos e, sem dúvida, não valeria a
imagem e de sua expressão, fl comunicação pena debater sobre a palavra "técnica” quan­
se refere à fixação da intuição-expressão em do é empregada, ao contrário, como sinônimo
um objeto que diríamos material ou físico por do próprio trabalho artístico, no sentido de
metáfora, uma vez que, efetivamente, não s® "técnica interior", que é, portanto, a formação
trata nem mesmo nesta parte de material e de da intuição-expressão; ou então no sentido de
físico, mas de obra espiritual. Todavia, uma vez “disciplina", ou seja, da ligação necessária com
que esta demonstração a respeito da irrealida­ a tradição histórica, da qual ninguém pode se
de daquilo que se chama físico e sua resolução desligar, embora ninguém permaneça simples­
no espiritualidade tem d® fato interesse primário mente ligado a ela. fl confusão da arte com a
para a concepção filosófica total, mas apenas técnica, a substituição desta por aquela, é um
indireto para o esclarecimento dos problemas partido assaz almejado pelos artistas impoten­
estéticos, podemos, por brevidade, deixar tes, que esperam das coisas práticas, e das
aqui correr a metáfora ou o símbolo, e falar de excogitações e invenções práticas, o auxílio e
matéria ou d® natureza, é claro que a poesia já a força que não encontram em si mesmos.
existe inteira quando o poeta a expressou em
palavras, cantando-a dentro de si; e qu®, ao 8. Os objetos artísticos:
passar a càntá-la com voz expressa para que a teoria das artes particulares
outros a ouçam, ou a procurar pessoas que a e o belo por natureza
aprendam d® cor e a recantem a outrem como
em uma scholo cantorum, ou a colocá-la em O trabalho da comunicação, ou seja, da
sinais de escrita e de impressão, entra-se em conservação e divulgação das imagens artísti­
novo estágio, certamente de muita importância cas, guiado pela técnica, produz, portanto, os
social e cultural, cujo caráter não é mais estético, objetos materiais que se dizem por metáfora
mas prático. O mesmo deve-se dizer no coso do "artísticos" e "obras de arte"; quadros e escul­
pintor, o qual pinta sobre a madeira ou sobre a turas e edifícios, e depois também, de modo
tela, mas não poderia pintar se em todo estágio mais complicado, escritas literárias e musicais,
de seu trabalho, da mancha ou esboço inicial e, em nossos dias, aparelhos de som e discos,
até o acabamento, a imagem intuída, a linha que tornam possível reproduür vozes e sons.
e a cor pintadas na fantasia não precedessem Todavia, nem estas vozes e sons, nem os sinais
o toqu® do pincel; tanto é verdade que, quan­ da pintura, da escultura e da arquitetura são
do aquele toque se antecipa à imagem, el® obras de arte, as quais não existem em nenhum
é cancelado e substituído na correção que o outro lugar a não ser nas almas que as criam
artista faz de sua obra. O ponto da distinção ou os recriam. Tirando a aparência de parado­
entre expressão e comunicação é certamente xo desta verdade da inexistência de objetos
bastante delicado de captar no foto, porque no 0 coisas belas, será oportuno lembrar o caso
fato os dois processos se aproximam em geral análogo da ciência econômica, a qual sabe bem
rapidamente e parece que se misturam; mas é que em economia não existem coisas natural e
claro em idéia, e é preciso mantê-lo bem firme. fisicamente úteis, mas apenas necessidades
Do fato de tê-lo descurado ou deixado vacilar e trabalho, dos quais as coisas físicas tomam
provêm as confusões entre arte e técnica, das como metáfora o adjetivo. Quem em economia
quais a última não é uma coisa intrínseca à arte, quisesse deduzir o valor econômico das coisas
mas liga-se justamente ao conceito da comuni­ a partir das qualidades físicas delas, cometeria
cação. fl técnica é, em geral, uma cognição ou uma grosseira ignoratio etenchi.
um complexo de cognições dispostas e dirigidas € apesar de tudo esta ignoratio elenchi
a uso da ação prática, e, no caso da arte, da foi cometida, e ainda tem sucesso, na estética,
ação prática que molda objetos e instrumentos com a doutrina das artes particulares e dos
para a lembrança e a comunicação das obras limites, ou seja, do caráter estético próprio de
de arte; quais seriam as cognições a respeito cada uma. As divisões das artes são meramente
da preparação dos quadros, das telas, dos técnicas ou físicas, ou seja, conforme os objetos
murais a pintar, das matérias colorantes, dos artísticos consistem em sons, em tons, em obje­
Capítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o ifaliano e o id ea lism o a n g lo -a m e r ic a n o

tos coloridos, em objetos incisos ou esculpidos, aquele fio de erva que, posto na boca, per­
em objetos construídos e que nõo parecem mitia entender as palavras dos animais e das
encontrar correspondência em corpos naturais plantas. Com "belo por natureza" se designam
(poesia, música, pintura, escultura, arquitetura verdadeiramente pessoas, coisas, lugares, que
etc.). Perguntar qual seja o caráter artístico de por seus efeitos sobre os espíritos devem se
cada uma destas artes, aquilo que cada uma aproximar da poesia, da pintura, da escultura
possa ou nõo possa, quais ordens de imagens e das outras artes; e não há dificuldade de
se exprimem em sons e quais em tons e quais admitir tais “coisas artísticas naturais", porque
em cores e quais em linhas, e daí por diante, o processo de comunicação poética, como se
é como perguntar em economia quais coisas realiza com objetos artificialmente produzidos,
devam por suas qualidades físicas receber assim também pode se realizar com objetos
um preço e quais nõo, e qual preço devam ter naturalmente dados, fl fantasia do enamorado
umas em relação às outras, quando é claro que cria a mulher para ele bela e a personifica em
as qualidades físicas nõo entram na questão laura; a fantasia do peregrino, a paisagem
e toda coisa pode ser desejada e exigida, e encantadora ou sublime e a personifica na
receber um preço maior do que outras ou de cena de um lago ou de uma montanha; e estas
todas as outras, conforme as circunstâncias e criações poéticas se difundem por vezes em
os necessidades. Colocando inadvertidamente mais ou menos largos círculos sociais, dando
o pé sobre este resvaladouro, até um lessing origem às "belezas profissionais" femininas,
foi impelido a conclusões tão estranhas como a admiradas por todos, e aos "lugares de vista"
que à poesia cabem as "ações" e à escultura os famosos, diante dos quais todos se extasiam
"corpos”; e também um Richard UJagner se pôs mais ou menos sinceramente, é verdade que
a matutar sobre uma arte complexiva, a Opera, estas formações são efêmeras: o gracejo por
que reunisse em si, por agregação, as potências vezes as dissipa, a sociedade as deixa cair, õ
de todas as artes particulares. Quem tem senso capricho da moda as substitui; e, diversamente
artístico, em um verso, em um pequeno verso das obras artísticas, não permitem interpreta­
de poeta, encontra ao mesmo tempo toda a ções autênticas. O golfo de Nápoles, visto do
musicalidade, pictoricidade, força escultórica alto de uma das mais belas "vilas" do Vômero,
e estrutura arquitetônica, e, da mesma forma, foi, depois de alguns anos de incansável visão,
em uma pintura, a qual jamais é uma coisa de declarado pela dama russa que adquirira aque­
olhos, mas sempre de alma, e na alma não la "vila" uma cuvette bleue, tão odioso em seu
está apenas como cor, mas também como som azul engrinaldado de verde, que a induziu a
e palavra, até como silêncio que, a seu modo, revendera "vila". Também a imagem da cuvette
é som e palavra. Todavia, onde se experimenta bleue ,2 era, de resto, uma criação poética, a
agarrar separadamente aquela musicalidade respeito da qual nõo há o que discutir.
e aquele pitoresco e as outras coisas, elas lhe
escapam e se transmutam uma na outra, fun­ 9. Os gêneros literários
dindo-se na unidade, mesmo que se costume e as categorias estéticas
separadamente chamá-las por modo de dizer,
ou seja, experimenta-se que a arte é uma e não Bastante maiores e mais deploráveis con­
se divide em artes. Uma, e ao mesmo tempo seqüências teve na crítica e na historiografia lite­
infinitamente variada; mas variada não tanto rária e artística uma teoria de origem um pouco
conforme os conceitos técnicos das artes, e sim diversa, mas análoga, a dos gêneros literários
conforme a infinita variedade das personalida­ e artísticos. Também esta, como a precedente,
des artísticas e de seus estados de espírito. tem como fundamento uma classificação que,
fi esta relação e a esta troca entre tomada em si, é legítima e útil: aquela, os
as criações artísticas e os instrumentos da agrupamentos técnicos ou físicos dos objetos ar­
comunicação ou "coisas artísticas" devemos tísticos; esta, as classificações que se fazem das
recolocar o problema que se refere ao belo obras de arte, conforme seu conteúdo ou motivo
por natureza. Deixemos de lado a questão, sentimental, em obras trágicas, cômicas, líricas,
que assoma em alguns estetas se, além do heróicas, amorosas, idílicas, romances, e d a í por
homem, outros seres sejam na natureza po­ diante, dividindo e subdividindo. Na prática é
etas e artistas: questão que merece resposta útil distribuir segundo estas classes as obras de
afirmativa, não só por devida homenagem um poeta na edição que dele se faz, colocando
aos pássaros cantores, mas ainda mais em
virtude da concepção idealista do mundo, que
é todo vida e espiritualidade, mesmo que,
como naquele conto popular, tenhamos perdido 2”Concho azul”.
Primeira purte - y \ f i lo s o f i a d o s é c u lo X ^ X a o s é c u lo X X

em um volume os líricos, em outro os dramas, Pareceu que das divisões dos gêneros
em um terceiro os poemas, em um quarto os se devia salvar, dando-lhe valor filosófico, ao
romances; e é cômodo, ou melhor, indispensá­ menos uma; a de "lírica", “épica" e "dramática",
vel, citar com estes nomes as obras e os grupos interpretando-a como três momentos do proces­
de obras ao discorrer sobre elas em voz alta e so da objetivação, que da lírica, efusão do eu,
por escrito. Mas também aqui devemos declarar vai à épica, em que o eu separa de si o sentir,
indevido e negar a passagem destes conceitos narrando-o, e desta para a dramática, em que
classificatórios às leis estéticas da composição deixa que ele molde por si os próprios porta-
e aos critérios estéticos do juízo; como se faz vozes, as dramatis personae. Mas a lírica não
quando se quer determinar que a tragédia deva é efusão, não é grito ou pranto; ao contrário, é
ter tal ou tal argumento, tal ou tal qualidade de ela própria objetivação, pela qual o eu vê a si
personagens, tal ou tal andamento de ação, mesmo como espetáculo e se narra e se dra­
e tal ou tal extensão; e diante de uma obro, matiza; e este espírito forma a poesia do epos
em vez de procurar e julgar a poesia que lhe é e do drama, que, portanto, não se distinguem
própria, põe-se a pergunta se ela é tragédia da primeira a não ser em coisas extrínsecas.
ou poema, e se obedece às "leis" de um ou de Uma obra que seja totalmente poesia, como o
outro “gênero", fi crítico literária do século XIX Macbeth ou o fíntônio e Cleópatra, é substan­
deve seus grandes progressos em grande parte cialmente uma lírica, da qual os personagens
por ter abandonado os critérios dos gêneros, e as cenas representam os vários tons e as
nos quais permaneceram como que aprisiona­ estrofes consecutivas.
das a crítica da Renascença e a do classicismo Nas velhas estéticas, e ainda hoje na­
francês, como comprovam as disputas que então quelas que continuam seu tipo, se dava des­
surgiram em torno da Comédia de Dante e dos taque às assim chamadas categorias do belo;
poemas de flriosto e de Tasso, do Pastor Fido o sublime, o trágico, o cômico, o gracioso, o
de Guarini, do Cid de Corneille, dos dramas de humorístico, e semelhantes, que os filósofos,
lope de Vega. Não igual vantagem tiraram os marcadamente alemães, não só começaram a
artistas da queda destes preconceitos, porque, tratar como conceitos filosóficos (quando são
negados ou admitidos que tenham sido em simples conceitos psicológicos e empíricos),
teoria, permanece como fato que aquele que mas desenvolveram com aquela dialética que
tem gênio artístico passa através de todos os diz respeito unicamente aos conceitos puros ou
vínculos de servidão, e até mesmo das correntes especulativos, isto é, às categorias filosóficas,
faz para si instrumento de força; e aquele que onde se entretiveram, dispondo-os em uma
disso é escasso ou privado, converte em nova série de progresso fantástico, culminante oro
servidão a própria liberdade. no belo, ora no trágico, ora no humorístico. Gn-

D a esquerda para a direita:


Stefano Jacini, Benedetto Croce e Giovanni Laterza em uma foto da década de 1920.
14
Capítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o italiano e o id ea lism o a n g lo -a m e r ic a n o ------

tendendo tais conceitos por aquilo que se disse no fundo desta distinção de forma lógica e de
que eles são, deve-se notar sua correspondên­ forma metafórica, de dialética e retórica, ela era
cia substancial com os conceitos dos gêneros a necessidade de construir ao lado da ciência
literários e artísticos, dos quais, com efeito, e da lógica uma ciência da estética; mas infeliz­
principalmente das "instituições literárias", se mente se fazia o esforço de distinguir as duas
verteram na filosofia. Gnquanto conceitos psico­ ciências no campo da expressão, que pertence
lógicos e empíricos, não pertencem à estética, a uma só delas.
e em seu conjunto designam nada mais que a Por uma necessidade não menos legítima,
totalidade dos sentimentos (empiricamente dis­ naquela parte da didática que é o ensino das
tintos e reunidos), que são a matéria perpétua línguas começou-se desde a antiguidade a
da intuição artística. dividir as expressões em períodos, proposições
e palavras, e as palavras em várias classes, e
10. Retórica, gramática em cada uma a analisá-las segundo suas varia­
e Filosofia da linguagem ções e composições em radicais e sufixos, em
sílabas e em fonemas ou letras; daí nasceram
Que todo erro tenha um motivo de verda­ os alfabetos, as gramáticas, os vocabulários,
de e nasça de uma combinação arbitrária de como, analogamente, para a poesia houve
coisas em si legítimas, confirma-se pelo exame as artes métricas, e para a música e as artes
que se fizer de outras doutrinas errôneas, as figurativas e arquitetônicas, as gramáticas mu­
quais tiveram grande campo no passado e sicais, pictóricas, e assim por diante. Todavia,
ainda hoje têm um, embora mais restrito. € nem mesmo os antigos conseguiram evitar que
perfeitamente legítimo valer-se, para o ensino também nesta parte se realizasse um daqueles
do escrever, de divisões como as do estilo nu trânsitos indevidos ob intellectu ad rem, das
e do figurado, da metáfora e de suas formas, abstrações à realidade, da empiria à filosofia,
e perceber que em tal lugar ajuda falar sem que observamos nos outros casos; e nisso se
metáfora e em tal outro por metáfora, e que em veio a conceber o falar como agregação de
tal outro a metáfora empregada é incoerente palavras e as palavras como agregação de
ou é mantida demasiado longamente, e que sílabas ou de raízes e sufixos: onde o prius
aqui conviria uma figura de "preterição" e lá é justamente o falar como um continuum,
uma "hipérbole" ou uma “ironia". Mas quando semelhante a um organismo, e as palavras e
se perde a consciência da origem de fato didá­ as sílabas e as raízes são o posterius, o pre­
tica e prática destas distinções, e filosofando parado anatômico, o produto do intelecto que
se teoriza a forma como distinguível em uma abstrai, e não justamente o fato originário e
forma “nua" e em uma forma “ornada", em real. Transportada a gramática assim como a
uma forma “lógica" e em uma forma “afetiva” e retórica no seio da estética, disso proveio um
semelhantes, se transporta no seio da estéti­ desdobramento entre “expressão" e “meios" da
ca a retórica e se vicia o conceito genuíno da expressão, que é uma reduplicação, porque os
expressão, fl qual nunca é lógica, mas sempre meios da expressão são a própria expressão,
afetiva, ou seja, lírica e fantástica, e é sempre, triturada pelos gramáticos. €ste erro, combi­
e por isso mesmo não é nunca, metafórica, e nando-se com o outro de uma forma "nua” e de
por isso sempre própria; nunca é nua para se uma forma “ornada", impediu que se visse que
dever cobrir, nem ornada para dever-se libertar a filosofia da linguagem não é uma gramática
de coisas estranhas, mas sempre resplande­ filosófica, mas está além de toda gramática,
cente de si própria [...]. Também o pensamento e não torna filosóficas as classes gramaticais,
lógico, também a ciência, enquanto se exprime mas as ignora, e, quando as encontra contra
torna-se sentimento e fantasia, que é a razão si, as destrói, e que, em suma, a filosofia da
pela qual um livro de filosofia, de história, de linguagem é uma com a filosofia da poesia e
ciência pode ser não só verdadeiro, mas belo, da arte, com a ciência da intuição-expressão,
e de todo modo é julgado não só conforme uma com a estética, a qual abraça a linguagem em
lógica, mas também conforme uma estética, e se toda a sua extensão, que compreende a lin­
diz por vezes que um livro é equivocado como guagem fônica e articulada, e em sua realidade
teoria ou como crítica ou como verdade histórica, intacta, que é a expressão viva e de sentido
mas permanece, pelo afeto que o anima e que realizado.
nele se exprime, na qualidade de obra de arte. B. Croc®,
Quanto ao motivo de verdade que se elaborava Flesthetica in nuce.
Primeira parte - j A f i lo s o f i a d o s é c u lo a ° s é c u lo X X

b. fl liberdade é a própria vida da história


2 fl concepção e não pode jamais vir a faltar

do história Nada mais freqüente do que ouvir em


nossos dias o anúncio jubiloso ou a admissão
resignada ou a lamentação desesperada de
fl realidade, paro Croce, é vida que se que a liberdade tenha doravante desertado
desenvolve por meio do pensamento e da o mundo, que seu ideal se tenha posto no
oção, em uma unidade que é a realização e horizonte da história, com um crepúsculo sem
a atualização do universal concreto. promessa de aurora. Rqueles que assim fa­
6ste realizar-se do espírito é o história. lam, escrevem e publicam, merecem o perdão
fl história é, portanto, o realizar-se do motivado com as palavras de Jesus: porque
espírito na unidade-distinção, que se escon­ não sabem o que dizem. Se o soubessem, se
de na síntese dos opostos, a qual se explica refletissem, perceberiam que afirmar que a li­
de modo circular. M as este escandir-se do berdade está morta é o mesmo que afirmar que
espírito é, ao mesmo tempo, um explicar-se está morta a vida, quebrada sua mola íntima.
e realizar-se da liberdade, justamente por €, por aquilo que se refere ao ideal, provariam
meio da síntese dos opostos. Tal liberdade grande embaraço com o convite de enunciar o
do espírito, portanto, realiza -se através ideal que substituiu, ou poderio substituir, o da
dos contrastes e das oposições. Rssim se liberdade: e também aqui notariam que não
verificou no decorrer da história, e assim se há nenhum outro que se emparelhe com ele,
verificará sempre, sem exceções. nenhum outro que faça o coração do homem
Croce afirma, além disso, a contempo- bater em sua qualidade de homem, nenhum
raneidade da história em todos os seus outro que responda melhor ò própria lei da
momentos. Com efeito, em se u sistema, vida, que é história e lhe deve por isso corres­
toda forma e momento de história é sempre ponder um ideal no qual a liberdade seja aceita
história que, conhecendo-se, s e revive e se ® respeitada e posta em condição de produzir
realiza no presente do espírito. obras sempre mais altas.
O s trechos que aqui reproduzimos ilus­
tram bem estes dois pontos. c. Os exemplos da história que pareceriam negar
o domínio da liberdade
são uma confirmação disso
Sem dúvida, ao opor às legiões dos
que pensam diversamente ou diversamente
1. fl história como história da liberdade falam estas proposições apodíticas, estamos
bem conscientes de que elas sõo justamente
o. fl liberdade como eterna formadora daquelas que podem fazer sorrir ou mover a
da história caçoadas contra o filósofo, o qual parece que
Qu® q história ssja história da liberdade caia no mundo como um homem do outro mun­
é um famoso dito d® Hegel, repetido um pouco do, ignaro daquilo que a realidade é, cego e
de ouvido e divulgado em toda a Curopa por surdo às suas duras feições e à sua voz e a
Cousin, Michelet e outros escritores franceses, seus gritos. Também sem se deter sobre acon­
mas que em Hegel e em seus repetidores tem tecimentos e sobre condições contemporâneas
o significado [...] de uma história do primeiro em que, em muitos países, as ordens liberais,
nascimento da liberdade, de seu crescer, de seu que foram a grande aquisição do século XIX e
tornar-se adulta e estar firme nesta alcançada pareceram uma aquisição perpétua, desmoro­
era definitiva, incapaz de ulteriores desen­ naram e em muitos outros alarga-se o desejo
volvimentos (mundo oriental, mundo clássico, desse desmoronamento, toda a história mostra,
mundo germânico = um só livre, alguns livres, com breves intervalos de inquieta, insegura e
todos livres). Com intenção diversa e diverso desordenada liberdade, com raros lampejos de
conteúdo esse dito é pronunciado aqui, não uma felicidade mais entrevista qu® possuída,
para atribuir à história o tema da formação de um amontoar-se de opressões, de invasões
uma liberdade que antes não existia e que um bárbaras, de depredações, de tiranias profa­
dia existirá, mas para afirmar a liberdade como nas e eclesiásticas, de guerras entr® os povos
a eterna formadora da história, sujeito próprio e nos povos, de perseguições, de exílios e de
de toda história. patíbulos. C, com esta visão diante dos olhos,
Como tal, ela é, por um lado, o princípio o dito de que a história é história da liberdade
explicativo do curso histórico e, pelo outro, o soa como uma ironia ou, afirmado seriamente,
ideal moral da humanidade. como uma tolice.
' / setimo
Capitulo ' - O neo-idealism o italiano e o idealismo anglo-am ericano 145
„™™™.

Todavia, a filosofia nõo está no mundo aos poucos verdadeiramente falam os grandes
para deixar-se dominar pela realidade tal filósofos, os grandes poetas, os homens gran­
qual se configura nas imaginações feridas e des, toda qualidade de grandes obras, mesmo
perdidas, mas para interpretá-la, libertando quando as multidões os aclamam e deificam,
as imaginações, flssim, pesquisando e inter­ sempre prontas para abandoná-los por outros
pretando, ela, que bem sabe que o homem ídolos, para fazer barulho ao seu redor e para
que torna escravo o outro homem desperto no exercitar, sob qualquer lema e bandeira, a
outro a consciência de si e o anima à liberdade, natural disposição à cortesania e servilidade;
vê serenamente suceder a períodos de maior e, por isso, por experiência e por meditação,
outros de menor liberdade, porque quanto o homem pensa e diz a si próprio que, se nos
mais estabelecida e não disputada for uma tempos liberais se tem a grata ilusão de gozar
ordem liberal, tanto mais decai para o hábito, de uma rica companhia, e se naqueles não
e, reduzindo para o hábito a consciência vigi­ liberais se tem a oposta e ingrata ilusão de se
lante de si próprio e a prontidão da defesa, encontrar em solidão ou em quase solidão, ilu­
se dá lugar a uma vichiono repetição daquilo sória era certamente a primeira crença otimista,
que se acreditava que nõo iria mais reaparecer mas, por sorte, ilusória é também a segunda,
no mundo, e que por sua vez abrirá um novo pessimista.
curso. Vê, por exemplo, as democracias e as
repúblicas, como as da Grécia no século IV ou d. fl vida da liberdade
de Roma no I, em que a liberdade permanecia como formadora da história sempre foi
e sempre será vido de combatente
nas formas institucionais mas não mais na alma
e no costume, perder também aquelas formas, £stas, e tantas outras coisas semelhantes
como aquele que não soube ajudar-se e que em a estas, ela vê, e daí conclui que se a história
vão procurou se endireitar com bons conselhos não é exatamente um idílio, também não é
é abandonado à áspera correção que a vido uma "tragédia de horrores1', mas é um droma
dele fará. Vê a Itália, exausta e derrotado, em que todas as ações, todos os personagens,
depositada pelos bárbaros na tumba com sua todos os componentes do coro são, em sentido
pomposa veste de imperatriz, ressurgir, como aristotélico, "medíocres", culpáveis-inculpáveis,
diz o poeta, ágil marinheira em suas repúblicos mistos de bem e de mal, e, todavia, o pensa­
do Tirreno e do Adriático. Vê os reis absolutos, mento diretivo nela é sempre o bem, ao qual
que abateram as liberdades do baronato e do o mal acaba por servir como estímulo; a obra é
clero, tornadas privilégios, e que superpuseram da liberdade que sempre se esforça para res­
a todos o seu governo, exercido por meio de tabelecer, e sempre restabelece, as condições
uma burocracia e sustentado por um exército sociais e políticas de mais intensa liberdade.
próprio, preparar uma bem mais larga e mais Quem desejar em breve persuadir-se de que
útil participação dos povos na liberdade política; a liberdade não pode viver diversamente de
e um Napoleõo, também ele destruidor de uma como foi vivida e viverá sempre na história,
liberdade tal apenas de aparêncio e de nome e de vida perigosa e combatente, pense por
à qual retirou aparência e nome, arrasador de um instante em um mundo de liberdade sem
povos sob seu domínio, deixar atrás de si estes contrastes, sem ameaças e sem opressões de
mesmos povos ávidos de liberdade e tornados nenhum tipo; e logo delo se desviará apavo­
mais espertos do que verdadeiramente eram, rado, como da imagem, pior que a da morte,
e ativos para implantar, como pouco depois do náusea infinita.
fizeram em toda a Europa, seus institutos. £la
a vê, também nos tempos mais sombrios e gra­ 2. Toda história é sempre
ves, fremir nos versos dos poetas e afirmar-se "história contemporânea"
nas páginas dos pensadores e arder solitária
e soberba em alguns homens, não assimiláveis a. Há sempre uma necessidade prótica
pelo mundo que os envolve, como naquele como fundamento de todo juízo histórico
amigo que Vittorio Rlfieri descobriu na Siena R necessidade prática, que está no fundo
setecentista e grõ-ducal, "espírito libérrimo" de todo juízo histórico, confere a toda história
nascido "em dura prisão", onde estava "como o caráter de “história contemporânea", porque,
leão que dorme", e para o qual ele escreveu o por mais remotos e remotíssimos que pareçam
diálogo da virtude desconhecida. €la a vê em cronologicamente os fotos que nela entram,
todos os tempos, tanto nos propícios como nos ela é, na realidade, história sempre referida
adversos, genuína, robusta e consciente apenas à necessidade e à situação presente, na qual
nos espíritos de poucos, embora apenas esses aq u e le s fatos propagam suas vibrações.
depois historicamente contam, como apenas Rssim, se eu, para inclinar-me e recusar-me a
Primeira parte - ? \ filosofia d o s é c u lo X J X o » s é c u lo X X

um oto de expiação, recolho-me mentalmente possíveis, como se observo em certos processos


poro entender do que se troto, isto é, como doentios dos quais saímos desmemoriados e
se tenho formado e transformado este insti­ diferentes, como criaturas de fato novos e e s­
tuto ou este sentimento até assumir um puro tranhas ao mundo ao qual antes pertencíamos.
significado moral, também o bode expiatório Perceba-se de passagem que esta verdade da
dos hebreus e os múltiplos ritos mágicos dos história entrevista, que não nos é dada a partir
povos primitivos soo parte do drama presente do exterior, mas vive em nós, foi um dos motivos
de minha olmo neste momento e, fazendo que extraviaram os filósofos do era romântico
expressamente ou de forma subentendida a (Fichte e outros) na teoria da história o ser
história deles, faço o da situação em que me construída a priori, graças à pura e abstrata
encontro. lógico e fora de toda documentação; embora
depois eles, contradizendo-se (Hegel e outros),
b. O homem é um microcosmo e tornando extrínseca a síntese, requeressem
não em sentido naturalista, uma colaboração entre o pretenso o priori que
mas em sentido histórico,
vinha de um lado, e o pretenso a posteriori, ou
como compêndio da história universal
o documento, que sobrevinha do outro.
Da mesma forma, a condição presente de
minha alma, sendo a matéria, é por isso mesmo c. R historiografia deve representar a vida vivida
o documento do juízo histórico, o documento em forma de conhecimento
vivo que carrego em mim mesmo. Aqueles que Se a necessidade prática e o estado
se chamam, no uso historiográfico, documentos, de espírito em que se exprime é a matéria
escritos esculpidos ou figurados ou aprisionados necessária, mas apenas a matéria bruta da
nos fonógrafos ou talvez existentes em objetos historiografia, o conhecimento histórico não
naturais, esqueletos ou fósseis, não operam pode, como também nenhum conhecimento
como tais, e tais não são, a não ser enquanto pode, consistir em presumida reprodução ou
estimulam e reafirmam em mim recordações cópia daquele estado de espírito, pela razão
de estados de espírito que estão em mim; e elementar que esta seria uma duplicação de
em todo outro aspecto restam tintas coloridas, fato inútil e, portanto, estranha à atividade
papel, pedras, discos de metal ou de vinil, e espiritual, que não tem, entre suas produções,
similares, sem nenhuma eficácia psíquica. Se em a do inútil. Daí se esclarece a vaidade, que
mim não existe, ainda que dormente, o senti­ existe nos programas (nos programas, mas
mento da caridade cristã ou do salvação pela não nos fotos, que naturalmente saem diferen­
fé ou da honra cavalheiresca ou do radicalismo tes) daqueles historiógrafos que se propõem
jacobino ou da reverência pela velha tradição, apresentar a vida vivida em sua imediação,
em vão me passarão sob os olhos as páginas fl historiografia, ao contrário, deve superar a
dos evangelhos e das epístolas paulinas, e vida vivida para representá-la em forma de
da epopéia carolíngia, e dos discursos que se conhecimento. Além do mais, e mal significando
faziam na Convenção nacional, e das líricas, dos sua intenção, os escritores que crêem trabalhar
dramas e romances que expressaram a nostal­ como historiógrafos, tendem a transformar a
gia do século XIX pela Idade Média. O homem matéria passional em obra de poesia. Mas,
é um microcosmo, não em sentido naturalista, embora efetivamente a matéria passional
mas em sentido histórico, compêndio da história posse sempre mais ou menos rapidamente
universal. € parte bem pequena nos parecerão através da esfera da fantasia e da poesia (e,
no complexo os documentos, aqueles, assim quando aí se demora e se estende, nasce a
especificamente chamados pelos pesquisa­ poesia propriamente dita, a poesia em sentido
dores, quando se pensar em todos os outros específico), a historiografia não é fantasia,
documentos sobre os quais continuamente nos mas pensamento. Como pensamento, ela não
apoiamos, como a língua que falamos, os cos­ dá apenas marco universal à imagem, como
tumes que nos são familiares, as intuições e os a poesia o faz, mas liga intelectivamente a
raciocínios feitos em nós quase que de forma imagem ao universal, distinguindo e unificando
instintiva, as experiências que carregamos, ao mesmo tempo no juízo.
por assim dizer, em nosso organismo. Sem tais B. Croce,
documentos específicos, bastante mais difíceis, R história como pensam ento
ou até proibitivas, seriam nossas lembranças e como ação.
históricas; mas, sem estes, seriam de fato im­
147
Capítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o italiano e o id ea lism o a n g lo -a m e H c a n o ......

G e n t il e

3 Os problemas essenciais do atualismo e suas implicações

Não é Fácil encontrar nos escritos dos FilósoFos algumas páginas em que sintética e clara­
mente eles resumam seu próprio pensamento. Gentile, Felizmente, as deixou em sua Introdução
à filosofia, onde, justamente na parte introdutória, ele apresenta um mapa dos problemas em
torno dos quais gira todo o seu sistema e evidencia igualmente uma série de implicações que
eles têm.
Depois de ter indicado as origens do atualismo na reviravolta impressa no pensamento
FilosóFico da FilosoFia alemã que vai de Hant a Hegel, e ter salientado alguns precedentes na
FilosoFia renascentista e do ressurgimento italiano, Gentile toma distância em relação a Croce,
salientando como sua própria FilosoFia tenha parecido afím com a de Croce mais do que de
Fato era.
Passa entõo a apresentar o princípio básico de sua FilosoFia, que é o d o imanência absoluta,
entendida não no sentido tradicional, mas como imanência de todo o real no ato do pensar,
além do qual nõo há nada de independente.
Cste ato do pensar nõo deve ser conFundido com o ato do pensar como, por exemplo, o
do motor imóvel de Aristóteles ou da metaFísica tradicional, que, segundo Gentile, são meras
abstrações, mas é o ato de pensar que coincide com nosso pensamento.
Ém nós, enquanto somos ato ou atividade do pensar, está compreendida a totalidade do
real: nõo somos nós (como pensamento) que estamos contidos no espaço, mas é o espaço
que está contido em nosso pensamento; e, assim, nõo somos nós que estamos na natureza,
mas é a natureza que está em nós (como pensamento).
Csta atividade do pensamento, além de infinita (porque inclui todos as coisas) é livre,
enquanto autoridade suprema no julgor e distinguir verdadeiro e Falso, bem e mal.
Cxatamente na dimensão do ato do pensar descobrimos dentro de nossa humanidade
empírica uma humanidade profunda, que é aquela por meio do qual procuramos os outros e
con-sentímos com os outros. Por esta humanidade profunda nós somos os outros e os outros
são nós, em sentido global.
O pensamento atual é tudo, e o próprio Cu particular é, em certo sentido, uma abstração,
porque, como tudo o mais, está imanente no ato espiritual.
O método do atualismo é a dialética do novo sentido, ou seja, nõo a dialética das realida­
des pensadas, como o era na metaFísica dos antigos, mas a dialética da atividade pensante.
O próprio Hegel, que havia reFormado a dialética antiga, deve se r posteriormente reFormodo,
porque, com suas distinções sistemáticas de idéia, natureza e espírito (com suas implicações) e
com suo concepção da lógica, permaneceu condicionado por uma série de resíduos da dialética
do pensado. £ a própria reForma da dialética hegeliano operada por Croce, segundo Gentile,
deve serpuriFicada, eliminando os "distintos", fí unidade do pensamento em sua subjetividade,
como autoconceito, que absorve a totalidade do real exatamente nesta sua atividade, constitui
o coração da dialética do atualismo.
Gentile aFirma, portanto, que o atualismo tem um caráter proFundamente religioso, enquan­
to, dialeticomente, no ato do pensamento concretamente resolve os problemas que o religião
sem pre se colocou. O mal é um momento dialético do bem; o erro é um momento dialético
do verdadeiro; o bem é aquilo que concretamente se Faz, desobrochando de seu contrário;
o verdadeiro é aquilo que concretamente se realiza, superando seu contrário. O espírito é a
natureza que s e torna espírito.
O corpo nõo é apenas aquilo que está dentro de nossa pele. Também cada membro de
nosso corpo p od e se r pensado isoladamente do resto do corpo, mas apenas por abstração;
separado do corpo perderia qualquer signiFicado e valor. Rssim é para nosso corpo, o qual é
correlotivo a todo o resto do mundo Físico. Dizer corpo é como dizer corpo do universo.
Primeira parte - A fi lo s o j- ia d o s é c u lo X ^ ? X ao s é c u lo X X

O auto-sentir-se do corpo é o germe de onde derivo todo o vido espiritual. Fl experiência é


tão-somente o desenvolvimento sistemático deste princípio. Dizer que o experiência é medida
de todas os coisas significa dizer que o pensamento é a medido de todos os coisas; a medida
do pensamento é o próprio pensamento.
Fl próprio história, como toda a realidade sem exceção, é atividade do pensamento pen­
sante, e neste sentido toda história é história contemporânea, e o possodo está eternamente
presente na atividade pensante.
O atualismo nõo p od e de modo nenhum se confundir com o solipsismo. Fl redução ao Eu
do sólipsista consiste na redução de tudo ao Eu empírico particular. Fio contrário, o Eu de que
fala o atualismo é princípio da progressiva universalização do próprio Eu; é posição de limites
para superá-los, e, portanto, é retirada de qualquer limite.
O atualismo está, conforme Gentile, bem longe de ser anticristõo e ateu. físsim como Cristo
é homem-Deus, também o atualismo quer ser síntese de humano e divino; o atualista, bem longe
de negar Deus, repete como os espíritos mais religiosos do passado: "Deus está em nós".

1. Origem da filosofia atualista se definir “método da imanência absoluta",


profundamente diversa da imanência de que se
fl filosofia atualista historicamente relacio­
fala em outras filosofias, antigas e modernas, e
na-se com a filosofia alemã de Kant a Hegel,
também contemporâneas, fl todas elas falta o
diretamente e por meio dos seguidores, exposi­
conceito da subjetividade irredutível da realida­
tores e críticos que os pensadores alemães da­
de, à qual se encontra imanente o princípio ou
quele período tiveram na Itália durante o século
a medida da própria realidade. Aristóteles foi
XIX. Mas liga-se também à filosofia italiana da
imanentista em relação ao idealismo abstrato
Renascença (Telésio, Bruno, Campanella), ao
de Platão, cuja idéia na filosofia aristotélica
grande filósofo napolitano Giambattista Vico,
torna-se forma da própria natureza - forma
e aos renovadores do pensamento especulati­
inseparavelmente ligada à matéria, na síntese
vo italiano da era do Ressurgimento nacional:
do indivíduo concreto, do qual a idéia, seu
Galluppi, Rosmini e Gioberti.
princípio e medida, não pode ser separada, a
Os primeiros escritos em que a filosofia
não ser por abstração. Mas o indivíduo natural
atualista começa a se delinear remontam aos
paro a filosofia atualista é ele próprio alguma
últimos anos do século XIX. 61a foi se desen­
coisa de transcendente: porque em concreto
volvendo nos primeiros decênios deste século,
não é concebível fora daquela relação em que
paralelam ente à "filosofia do espírito" de
ele, objeto de experiência, está indissoluvel-
Benedetto Croce. Minha assídua colaboração
mente ligado com o sujeito desta, no ato do
com o revista que em 1 9 0 3 foi fundada por
pensamento mediante o qual a experiência se
Croce, fí Crítico, e que por muitos anos na Itália
realiza. Todo o realismo, até o criticismo kan-
chefiou vitoriosamente uma luta tenaz contra
tiano, permanece sobre o terreno desta trans­
as tendências positivistas, naturalistas e racio­
cendência. Nele permanece toda filosofia que,
nal istas do pensamento e da cultura, e o fato
mesmo que reduza tudo à experiência, entenda
de que a "filosofia do espírito" amadureceu
esta como algo de objetivo, e não como o ato
cerca de um decênio antes, desde o princípio
do Cu pensante enquanto pensa, realizando a
atraindo sobre si a atenção universal, fizeram
realidade do próprio Cu: uma realidade fora da
aparecer geralmente as duas filosofias muito
qual não é dado pensar nada de independente
mais afins do que a princípio não pareciam.
e existente em si.
Mas as divergências se tornaram naturalmente
Cste é o ponto firme ao qual se liga o
mais claras passo a passo que os princípios das
idealismo atual. A única realidade sólida, que
duas filosofias expuseram suas conseqüências.
me é dado afirmar, e com a qual deve por isso
€ hoje, também por circunstâncias contingentes,
ligar-se toda realidade que eu possa pensar,
que aqui não ocorre lembrar, aparecem muito
é a mesma que pensa, a qual se realiza e é
mais as divergências do que as afinidades e os
assim uma realidade, apenas no ato que se
motivos que têm certamente em comum.
pensa. Portanto, a imanência de tudo o que é
pensável ao ato do pensar; ou, tout court, ao
2. O princípio da filosofia atualista
ato; pois de atual, por aquilo que se disse, não
fl filosofia atualista é assim chamada a há mais que o pensar em ato; e tudo aquilo
partir do método que propugna e que poderia que se pode pensar como diverso deste ato,
Capítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o italii a n o e o i d eali: cmglo- a m e f ic a n o

atua-se 0m concroto enquanto é imon0nt0 ao espaço e no tempo, eu compreendo a natureza


próprio oto. dentro de mim. € dentro de mim ela deixa de
ser aquela natureza espacial e temporal, que é
3. O ato como logos concreto mecanismo, e se espiritualiza e se atua também
ela na vida concreto do pensamento.
O oto cte qu0 s© fala nesta filosofia, por­
tanto, nõo é confundível com o ato (energheia) 5. Liberdade do €u
d© Aristóteles 0 da filosofia escolástica. O ato
oristotélico é tombém p0nsamento puro, mas Por meio desta sua infinidade, à qual tudo
um pensamento transcendente, pressuposto a 0 imanente, o €u é livre. €, sendo livre, pode
partir de nosso pensamento. O ato do filosofia querer e conhecer 0 escolher sempre entre
atualista coincide justamente com nosso pensa­ os opostos contraditórios em que se polariza
mento; e, para esta filosofia, o ato oristotélico, o mundo do espírito, que tem valor porque
em sua transcendência, é simplesmente uma se contrapõe a seu oposto. Liberdade não
abstração, e não um ato: é logos, mas um lo­ compete à natureza em seu aspecto abstrato;
gos abstrato, cuja concretitude se tem apenas mas não compete a nenhuma forma do logos
no logos concreto, que é o pensamento que abstrato: nem à verdade lógico, nem à verda­
atualm0nt0 s0 penso. de de fato, nem à lei, que se representa ao
Não só o ato oristotélico, mas também querer com a necessidade coarctante de umo
a idéia platônico, e em geral toda realidade força natural: a nada enfim que, contrapondo-
metafísica ou empírica, que realisticamente se no pensamento ao sujeito quo pensa o sou
se pressuponha do pensamento, é, segundo objeto, o define e encerra em certos termos,
o atualismo, logos abstrato, que tem um sen­ e fixa, e priva daquela vida que é própria do
tido apenas na atualidade do logos concroto. realidade espiritual atual. Não é livre o homem
Mesmo que este se represente e tem razão enquanto se considera e representa como parte
do representar-se como independente do do natureza, um ser que ocupa certo espaço
Sujeito, existente em si, coisa em si, estranho por certo tempo, que nasceu e que morrerá, e
ao pensamento e condição do pensamento, que é limitado em todo sentido, e na própria
Sempre se trata de logos obstrato, cujos deter­ sociedade é circundado por elementos que nõo
minações são sempre um produto da atividade estão em seu poder e agem sobre ele. Contu­
originária do Cu que, no pensamento, se atua do, por mais que ele se mova nessa ordem de
como logos concreto. Todo realismo, por isso, idéias, e ponha em relevo os próprios limites,
tem razão; com a condição, porém, de que e minimize e empobreça suas próprias possibi­
não se pretenda esgotar todos as condições lidades, e entre em suspeita de que a própria
do pensar. As quais, de fato, restará sempre liberdade não é mais que uma ilusão, e que ele
0 acrescentar, a fim de que seja superada a nada verdadeiramente pode nem para dominar
transcendência e olcançada a terra firme do o mundo e nem mesmo paro conhecê-lo, ele,
realidade efetiva, oquela que será o condição no auge do desespero, não poderá deixar de
fundamental de todo pensabilidode, a ativi­ reencontrar e reafirmar no fundo de si mesmo
dade pensante. a desconhecido liberdade, sem a qual não lhe
seria possível pensar o tanto que ele pensa.
Hoc unum seio, me nihil scire} Mas, ainda que
4. Infinidade do €u
limitado, este saber importa à capacidade de
A atividade pensante, contudo, poro conhecer a verdade; a qual não seria tal se não
sustentar a carga infinita e a infinita respon­ se distinguisse do falso, e não se concebesse
sabilidade de toda realidade pensável, que é e não se percebesse nesta sua distinção, que
pensável apenas enquanto é imanente ao mun­ é oposição. O que não serio possível sem li­
do espiritual que tal atividade realiza, não deve berdade, ou seja, infinidade de quem concebe
mais ser concebida materialmente, como atuan­ e percebe, julgando aquilo que é verdadeiro,
do no tempo e no espaço. Tudo está em mim, e pronunciando este juízo com autoridade
enquanto tenho em mim o tempo e o espaço suprema, contra a qual não é admissível um
como ordens de tudo aquilo que se representa apelo. Autoridade que não poderia competir
na experiência. Portanto, longe de estar contido evidentemente a quem estivesse encerrado
no espaço e no tempo, eu contenho o espaço e dentro de determinados limites.
o tempo. 6 longe de eu próprio estar compreen­
dido, como vulgarmente se pensa, apoiando-se
em uma imaginação falaz, na natureza que é
o sistema de tudo aquilo que é ordenado no '"Sei apenas isto: que não sei nada".
___ Primeira parte - / \ filosofia do século X^X íu ■século XX

6. Humanidade profunda falando e manifestando-se, sai fora de si, se


objetiva e se desnaturo, deixando de ser aquilo
Portanto, dentro da humanidade empírica
que ele é por si mesmo. Cie é enquanto se rea­
todo homem possui uma humanidade profun­
liza; e, realizando-se, se manifesta. € por isso
da, que está na base de todo o seu ser, e de
o pensamento atual é tudo; e fora do pensa­
todo ser que ele possa distinguir de si. flquela
humanidade por meio da qual ele tem consciên­ mento atual o próprio €u é uma abstração a ser
relegada ao grande armário das excogitações
cia de si, e pensa e fala e quer; e, pensando,
metafísicas: entidades puramente racionais e
pensa a si mesmo e ao restante; e pouco a
nõo subsistentes. O £u não é alma-substância;
pouco se forma um mundo, que sempre mais
não é uma coisa, a mais nobre das coisas. €le
se enriquece de particulares e sempre mais se
é tudo porque não é nada. Sempre que houver
esforça por conceber como um todo harmônico,
alguma coisa, é um espírito determinado: uma
como um organismo de partes que se buscam
personalidade que se atua em um mundo seu;
reciprocamente, ligadas por uma unidade inte­
uma poesia, uma ação, uma palavra, um siste­
rior. Mas a este mundo está sempre presente
ma de pensamento. Mas esse mundo é real,
ele próprio, que o represento e procura reduzi-
enquanto a poesia está se compondo, a ação
lo sempre mais conforme às suas exigências,
se realiza, a palavra se pronuncia, o pensamen­
aos seus desejos, à sua própria natureza: ele
to se desenvolve e se torna sistema, fl poesia
que diante de si tem não só o mundo, mos
não existia, e nõo existirá; ela existe sempre
a si próprio, o um em relação com o outro, e
enquanto se compõe, ou, lendo-se, torna-se
ambos postos nesta relação por ele, artífice e
a compor. Deixada aí, ela cai no nada. Sua
ao mesmo tempo guardião, ator e expectador,
realidade é um presente que jamais se põe no
infatigável e insone.
passado e que não teme futuro. € eterna, com
Não é esta a humanidade que sustenta o
aquela imanência absoluta do oto espiritual, em
indivíduo particular, mas associa os indivíduos
que não há momentos sucessivos do tempo que
no pensamento, quero dizer, no sentir e no
não sejam co-presentes e simultâneos.
pensar, no poetar e no agir, na civilização que é
a vida do espírito, ligando em um só homem as
gerações e as estirpes diversas; em um homem, 8. O método do atualismo: a dialética
que não conhece obstáculos a não ser para Tudo isso quer dizer que a atualidade eter­
superá-los, não conhece mistérios a nõo ser na (sem passado e sem futuro) do espírito não
para desvendó-los, não conhece mal a não ser é concebível por meio da lógica da identidade
para emendá-lo, não conhece escravidão o não própria da velha metafísica da substância, e
ser para dela se libertar, não conhece misérias sim apenas com a dialética. Com a dialética,
a não ser para socorrê-las, nõo conhece dores bem entendido, tal qual a filosofia moderna
a não ser para medicá-las? Cssa humanidade a pode conceber: conceito não do ser objeto
profunda é a que à primeira vista não percebe­ do pensamento, mas do pensamento em sua
mos nem nos outros nem em nós: mas é aquela própria subjetividade: a rigor, não conceito,
pela qual é possível que um procure o outro, mas autoconceito (não BegriFF, mas Selbstbe-
e lhe dirija a palavra, e lhe estenda a mão. é griff). Se o pensamento como ato é o princípio
aquela que quando uma verdade nos ilumina do atualismo, seu método é a dialética. Não
a mente, e um sentimento se apodera de nós dialética platônico, nem hegeliano: mas uma
e nos comove e nos inspira, a nossa língua é, dialética novo e mais propriamente dialética,
como diz o poeta italiano, como que por si pró­ que é uma reforma da dialética hegeliano. fl
pria movida; e não sabemos não falar e nossa qual já se contrapunha à platônica porque esta
alma se expande, e diz, e canta; e ainda que era uma dialética estática das idéias pensadas
ninguém de fato nos escute, pode-se dizer que (ou, em todo caso, objeto do pensamento), e
uma multidão invisível esteja ao nosso redor Hegel em sua Ciência da lógica considerou a
para escutar: vivos, mortos, não nascidos, uma dialética, ao contrário, como o movimento das
multidão anônima de juizes que não têm rosto, idéias pensantes, ou categorias com as quais
mas pensam e sentem como nós, e estão pro­ o pensamento pensa o seu objeto.
priamente em nós, mais ainda, propriamente, Dialética do pensado, portanto, e dialética
são nós mesmos; e nos escutam, porque somos do pensar: esta dialética do pensar, cujo pro­
nós que, falando, nos escutamos. blema começou a ser colocado por Fichte, mas
foi Hegel que em primeiro lugar enfrentou com
7. fl atualidade do €u
Csta humanidade não é um Deus abscon-
ditus ,2 não é um €u secreto inacessível que, 2"Deus escondido”.
151
Capítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o ital iano e o id ea lism o a n g lo -a m e r ic a n o _____

plena consciência da necessidade de uma nova fato da experiência. Oro, uma coerente con­
lógica o ser contraposta à analítica aristotélica, cepção religiosa do mundo deve ser otimista,
ou seja, à lógica do platonismo ossim como de sem negar a dor e o mal e o erro; deve ser
toda a antiga filosofia, Hegel se propôs o pro­ idealista sem suprimir a realidade com todos
blema, mas não o resolveu, porque, a começar os seus defeitos, deve ser espiritualista sem
das primeiras categorias (ser, não-ser, devir) fechar os olhos sobre a natureza e sobre as
deixou-se escapar a absoluta objetividade do férreas leis de seu mecanismo. Mas todas as
pensar, e trotou sua lógica como movimento dos filosofias e todas as religiões, apesar de todo
idéias que se pensam e, por isso, se devem esforço idealista e espiritual, estão destinadas
definir. Movimento absurdo, porque as idéias a falir, ou por abandonar-se a um dualismo ab­
se pensam, ou sejo, se definem enquanto se fe­ surdo ou por fechar-se em um abstrato e, por
cham no círculo de seus termos, e permanecem isso, insatisfatório e, portanto, ele próprio um
paradas. £ essa é a razão pela qual as idéias monismo absurdo, caso se limitem à lógica da
platônicas são de fato todas ligadas entre si e, identidade, pela qual os opostos se excluem, e
por isso, obrigam o pensamento subjetivo que onde o ser não é o não-ser, e vice-versa.
queira pensar uma delas, a pensar também Com a lógica da identidade as antinomias
todas as outras, e a mover-se, por isso, de uma da vida moral e da consciência religiosa, do
para outra sem descanso, mas elas permane­ mundo e do homem, tornam-se insolúveis.
cem paradas, como o estádio sobre o qual os 6 não há fé na liberdade humana, na razão
ginastas correm. humana, na potência do ideal ou na graça de
Permanecem paradas, mas são logos abs­ Deus que possa salvar o homem e, finalmente,
trato, que é preciso reconduzir ao pensamento levantá-lo em sua vida, todo pervodida, como
real e atual. Que é enquanto não é, e não está ela é, pelo pensamento, que é pesquisa e dú­
jamais parado, e sempre se move; e de fato vida, e perpétua interrogação para quem a vida
define, e se espelha no objeto definido, mas é resposta. Somos ou não somos imortais? Há
para voltar a definir de outra forma, sempre uma verdade para nós? C verdadeiramente há
mois adequadamente à necessidade incessante lugar no mundo para a virtude? C há um Deus
em cuja satisfação se encontra seu realizar-se. que governa tudo? € vale a pena esta vida
O pensamento é dialético por este seu devir, que nos custa viver? Cstas perguntas voltam
que é, não pensado unidade de ser e não-ser, sempre a surgir e ressurgir do fundo do cora­
conceito em que se ensimesma o conceito do ção humano, e por isso os homens pensam e
ser e o conceito oposto do não-ser, mas é uni­ têm necessidade da filosofia, a fim de que os
dade realizada do próprio ser do pensamento conforte para viver com uma resposta qualquer.
com seu real não-ser. Nós podemos, de foto, Cada um que vive procura como pode uma res­
definir o conceito desta unidade; mas nossa posta para si. Mas uma resposta lógica, firme,
definição não é uma imagem, ou um duplicado razoável, não é possível se o pensamento não
lógico de uma realidade transcendente em re­ se retrai dos objetos que vez por vez pensa e
lação ao ato lógico: é todo um e uma só coisa solda em férrea corrente como o sistema de seu
com este ato.3 mundo e não se volta sobre si próprio, onde
toda realidade tem sua raiz e de onde retira,
9. Caráter religioso da concepção dialética por isso, sua vida: onde o ser ainda não é, mas
vem a ser, não sendo o princípio, imediatamen­
Na dialética do pensamento encontra-se te: onde saber é aprender, e toda vez, mesmo
a resposta às milhares de dúvidas céticas e às que já se saiba, aprender do início; onde o
milhares de perguntas angustiantes, que sur­ bem não é aquilo que foi feito, e já existe, mas
gem da experiência e dos contrastes da vida: aquilo que não se fez e, por isso, se faz; onde
contrastes entre o homem e a natureza, a vida a alegria não é o que se gozou, mas aquela
e o morte, o ideal e a realidade, o prazer e a que brota de seu contrário, e não se detém,
dor, a ciência e o mistério, o bem e o mal etc. caindo na monotonia da náusea, que estagna
Todos os antigos problemas que foram o tor­ e gera a morte, mas se renova e reconquista
mento da consciência religiosa e da vida morol como novo anseio e nova fadiga e, por isso,
de todos os homens, as ânsias da teodicéia por meio de novas dores; onde, finalmente, o
como o cruz da filosofia, fl concepção atualista espírito arde eternamente, e na combustão fla-
é uma concepção espiritualista e profundamente
religiosa, embora sua religiosidade não possa
satisfazer quem está habituado a conceber o ! Cf. dois escritos meus no vol. fí reform o d o dialético
divino como um transcendente abstrato, ou a hegeliana, Principoto, Messina, 19232, pp. 1-74 e 209-240.
confundir o ato do pensamento com o simples [Noto de Gentile]
Primeira parte - j A f i lo s o f i a d o s é c u lo X^X a o s é c u lo XX

meja e cintila, destruindo toda escória pesada, 11. espiritualidade da natureza


inerte e morta. Aí, dizer ser é dizer não-ser: aí, Dizer ''corpo", portanto, é dizer todo o
saber é ignorância, bem é mal, alegria é dor, universo corpóreo, em que se nasce e se mor­
conquista é fadiga, paz é guerra, e o espírito re, do qual surgem e no qual recaem todos os
é natureza que se torna espírito. indivíduos viventes particulares. Mas o que é
este corpo? Onde e como se tem o sentido dele
10. O corpo e o unidade do natureza e se aprende a conhecê-lo? Cu disse antes: no
primeiro princípio de nosso sentir, quando ainda
A natureza, a natureza real primordial, o não sentimos nada de particular, mas sentimos
eterna geradora da qual falava Bruno, antes de porque nos sentimos: e somos o sentido de
ser aquela que nós esquematizamos no espaço nós mesmos, aquele mesmo que depois se
e no tempo, e analisamos em todos as suas desenvolverá sempre mais como consciência
formas por meio da experiência e do constru­ de nós (autoconsciência). Aí, no primeiro e
ção do intelecto, é aquela natureza profundo originário germe de nosso vida espiritual, há
que encontramos em nosso corpo e por meio já um princípio que sente e alguma coisa que
de nosso corpo: nõo como aquele conjunto de é sentida (e o corpo é justamente aquilo que
abstrações, em que para pensá-la a decompõe, é sentido). Há uma síntese destes dois termos,
esmiúço, pulveriza e torna impalpável o pensa­ cada um dos quais existe para o outro; e juntos
mento, sistematizando-a no logos abstrato, mas realizam o ato do sentir, a síntese fora da qual
aquela unidade não multiplicável que é a fonte seria vão procurar tanto o princípio que sente
inexaurível infinita de toda realidade múltiplo como o termo sentido.
que se desdobra no espaço e no tempo. Cia
é -antes de tudo aquele corpo que cada um
12. fl experiência como medida do real
de nós, em sua consciência de si, sente como
o objeto primeiro e irredutível de sua própria Êsta imanência originária da essência
consciência: aquele corpo por meio do qual do corpo no núcleo primitivo do espírito, esto
sentimos e acolhemos na consciência toda qua­ originária e fundamental espiritualidade e
lidade das coisas externas e todo particular que idealidade do corpo e, portanto, em geral, da
é possível individuar em todo o universo físico. naturezo, é o razão pela qual o pensamento
O qual se percebe porque está em relação com encontro no experiência imediota a medida
nosso corpo, que é objeto imediato e direto de da existência que é próprio da realidade, que
nosso sentir; mas está nesta relação em sua não seja abstrata construção do pensamento.
totalidade, nada se podendo pensar no mundo Não que o pensamento tenha sua medida fora
físico que não seja correlativo a todo o resto de si próprio, em uma fantástica realidade
do próprio mundo físico. Assim, é evidente que externa, com a qual ele se ponha em relação
nossa cabeça cairia no chão se não estivesse por meio da experiência sensível. A medida do
sustentada pelo tronco, e este pelas pernas; pensamento está no próprio pensamento. Mas
mas também é evidente que suprimindo um só o pensamento como sujeito, autoconsciência, é
grão de areia no fundo do oceano não só desa­ antes de tudo sentido de si, alma de um corpo,
bariam os grãos contíguos por ele sustentados, isto é, do corpo, da natureza. C tudo aquilo que
mas na verdade o universo ruiria. Vivemos em não se liga a este princípio do pensamento e,
nosso planeta; mas este planeta faz parte de por isso, não se realiza como desenvolvimento
um sistema, fora do qual não teríamos sobre deste princípio, é como um edifício que se cons­
a terra aquela luz e aquele calor com os quais trua sem os fundamentos necessários e que, por
nela vivemos. C tudo se mantém no universo; e isso, se encontre destinado a desmoronar.
nosso corpo, como efetivamente o sentimos, é O pensamento é sempre um círculo, cuja
um centro de uma circunferência infinita: é um linha não se afasta de seu ponto inicial a não
elemento vivo de um organismo vivo, o qual ser para aí voltar e aí se fechar. Onde o fim não
está presente e age e se faz sentir em cada coincide com o princípio, meu pensamento não é
um de seus elementos. Considerar como nosso pensamento meu. Não me reencontro mais. Isso
corpo apenas aquela parte da naturezo física não tem valor. l\lão é verdade. O ponto em que
que está dentro de nossa pele é uma abstração o círculo do pensamento se fecha e se firma, é
análogo àquela pela qual, olhando nossa mão, o €u que pensa e se realiza no pensamento;
podemos também fixá-la, abstraindo de fato do de modo que aquele mesmo pensamento que
braço ao qual elo está necessariamente ligada, ele produz (o conceito) seja a concreta e efe­
e tirada do qual ela, por isso, estaria privada tiva existência do próprio €u (autoconceito). fi
não só da força que tem, mas de sua própria personalidade de todo homem está, portanto,
estrutura material. em sua obra.
15 3
Capítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o italiano e o id ea lism o a n g lo -a m e r ic a n o

13. fl atualidade da história íntima que é a própria essência do pensamento


como consciência de si que pensa. Uma energia que nega e supera o
limite, porque o limite é aquele que ela põe a si
Nõo só o natureza, quando não se olhe a
mesma à medida que se determina, fl começar
partir do exterior e em abstrato, mas a própria
pelo sentido de si, razão pela qual, sentindo o
história conflui toda e desemboca na atualidade
€u, se desdobra nos dois termos do sujeito e do
do pensamento que pensa. Também a história
objeto do sentir, e como sujeito ocaba, portanto,
é autoconceito. 0 a não é consciência que o
sendo enfrentado e, por conseguinte, limitado
homem tenha do operar de espíritos diversos
pelo objeto, o €u manifesta sua energia infinita,
daquele que ele atua em sua consciência histó­
pondo e negando incessantemente seu limite.
rica, ou dos ações de homens que não existem
Tal negação não é destruição. O limite,
mais, ou do passado, que é mera idealidade
por ser negado, como é entendido por nós,
em que o pensamento distingue o presente
deve ser conservado; mas deve interiorizar-se
que existe, e que só é real, e conta, e é eter­
na consciência da infinidade do sujeito. Amar
no, daquilo que não existe e não conta e por
o próximo de modo cristão é negar os outros
isso não é presente, e é expulso do mundo do
como limite externo de nossa personalidade;
eterno (onde estó tudo aquilo que conta do
mas não é, por isso, suprimir a personalidade
ponto de vista do espírito), fl história é, como
de outrem, mas entendê-la e senti-la como
todo pensamento, consciência de si. € por isso
interna em nossa própria personalidade mais
foi dito que toda história é história contempo­
profundamente concebida. Tal é o significado da
rânea, pois reflete por meio da representação
conversão imanente do logos abstrato no logos
de eventos e paixões passadas os problemas,
concreto, de que se trata na lógica atualista.
os interesses e a mentalidade do historiador e
de seu tempo.
Os assim chamados achados e documen­ 15. Atualismo e cristianismo
tos do passado são elementos da cultura, ou
Finalmente, esta filosofia tão radicalmente
seja, da vida intelectual presente; e se reavivam
imanentista seria uma filosofia atéia? A acu­
por causa do interesse que os faz buscar, criticar,
sação mais insistente hoje é feita a ela pelos
interpretar; e falam e se fazem valer por meio do
pensadores católicos e tradicionalistas, que não
trabalho historiográfico, que é um pensamento
conseguem perceber a distinção que existe na
atual, que não se explica a não ser adquirindo
unidade do ato espiritual. € são eles os verda­
sempre mais aguda e couta consciência de
deiros ateus na sede da filosofia. Porque, se
si. Os mortos estariam bem mortos e seriam
realmente se tivesse de conceber a separação
cancelados do quadro do realidade, que é a
absurda entre o ser divino e o humano, toda
divina realidade, se não existissem os vivos,
relação entre os dois termos se tornaria de fato
que falam deles, evocando-os novamente em
impossível. € eu penso firmemente que esta
seu coração e ressuscitando-os na atmosfera
atitude dos pensadores seja atéia, porque
viva de seu próprio espírito.
anticristã. Cstou de fato convencido de que o
cristianismo, com seu dogma central do Homem-
14. Crítica do solipsismo. Deus, tem este significado especulativo: que,
O limite do €u e a negação do limite como fundamento da distinção necessária entre
Seria isto solipsismo? Não. O Gu do solip- Deus e o homem, se deve pôr uma unidade, que
sista é um €u particular e negativo que, por isso, nõo pode ser mais que a unidade do espírito;
pode sentir sua solidão e a impossibilidade de que será espírito humano enquanto espírito
sair dela. Por isso o solipsista é egoísta. Nega divino, e será espírito divino enquanto também
o bem, assim como nega a verdade. Mas seu espírito humano. Quem tremer e se amedron­
6u é negativo porque é idêntico a si mesmo, ou tar ao acolher no espírito esto consciência da
seja, coisa, e não espírito. Sua negatividade é responsabilidade infinita em que o homem se
a negatividade do átomo, que é sempre o mes­ ograva, reconhecendo e sentindo Deus em si
mo, incapaz de qualquer mudança; que pode mesmo, nõo é cristão e - se o cristianismo não
absolutamente excluir de si os outros átomos e é mais que uma revelação, isto é, uma cons­
ser reciprocamente por eles excluído, justamen­ ciência mais aberta que o homem adquire de
te porque não tem a força de negar a si mesmo sua próprio natureza espiritual - não é sequer
e mudar. Mas a dialética do €u, assim como homem. Quero dizer homem consciente de sua
é concebida pelo atualismo, é o princípio da humanidade. £ como poderá ele sentir-se livre
universalização progressiva e infinita do próprio e, por isso, capaz de reconhecer e cumprir um
€u, o qual em tal sentido é infinito, e nada exclui dever, e de aprender uma verdade, e de entrar
de si. Todo limite é superável por esta energia finalmente no reino do espírito, se ele no fundo
154
Pnmeira parte - jA filo sofia d o s é c u lo XJX a o sé c u lo XX

de seu próprio ser nõo sente recolher em si e socorrer a capacidade espontânea do espírito,
pulsor o história, o universo, o infinito, tudo? que não seja um auxílio querido e valorizado
Poderia ele com as forças limitadas, que em e, por isso, livremente procurado e atuado. G
qualquer momento de sua existência ele de fato nada, finalmente, nos vem do exterior que aju­
percebe que possui, enfrentar, como ele faz e de a saúde da alma, o vigor da inteligência, a
deve fazer, o problema da vida e da morte, que potência do querer.
se lhe apresenta terrível com a potência inelutá­ Por isso, o atualista não nega Deus, mas,
vel das leis da natureza? Todavia, se ele deve junto com os místicos e com os espíritos mais
viver uma vida espiritual, é preciso que triunfe religiosos que existiram no mundo, repete: Deus
desta lei, e tanto no modo da arte como no da in nobis e st4
moralidade, com a açõo e com o pensamento, G. Gentile,
participe da vida das coisas imortais, que são introdução à Filosofia.
divinas e eternas. 6 nisso participe por si, livre­
mente; pois não há auxílio externo que possa 4"Deus está em nós”.
O CONTRIBUTO
DA ESPANHA
À FILOSOFIA
DO SÉCULO XX

“A vida é o critério para julgara verdade”.


Miguel de Unamuno

“O homem de ciência deve continuamente tentar


duvidar de suas próprias verdades”.
José Ortega y Gasset
Capítulo oitavo

Miguel de Unamuno e o sentimento trágico da vida


Capítulo nono

José Ortega y Gasset


e o diagnóstico filosófico da civilização ocidental
O a p í+ u lo o it a v o

M iguel de LÁncxm uno


e o senfimenfo +^a0Íco da vida

• Miguel de Unamuno (1864-1936) realiza seus estudos em Salamanca, e desta


prestigiosa Universidade será professor e também reitor.
Em 1902 publica Em torno do casticismo, livro sobre a essência da Espanha, em
que o autor desencadeia seu primeiro assalto significativo contra o intelectualismo,
contra os discursos de intelectuais e políticos que deixam o povo indiferente. A
idéia que estes têm da Espanha é uma decoração intelectualista,
um "fantasma" do qual foge a vida real das pessoas, de todos "os Contra o
que se levantam com o sol e vão para seus campos para continuar intelectualismo
sua tarefa obscura e silenciosa, cotidiana e eterna". 5 J'2

• A batalha contra o intelectualismo não pára aqui; Unamuno vai mais a fundo
e na Vida de Dom Quixote e de Sancho (1905) afirma que a vida é inexaurível para
a inteligência, que "não é a inteligência, mas a vontade que constrói o mundo
para nós". Eis, então, que da "peste do bom senso" é possível se
curar apenas por obra da "autêntica loucura" que, ao contrário, a loucura
"está faltando para nós". Dom Quixote, portanto, torna-se louco heróica
"unicamente por maturidade de espírito". contra
A vida é enriquecida pela loucura heróica e não pela miséria a miséria
do bom senso; pelos livros de cavalaria e não pelas propostas do bom senso
presunçosas do intelectualismo, do cientismo e do racionalismo
supersimplificador de tanta filosofia.
Unamuno se pergunta: o cavaleiro de Cristo que foi Inácio de Loyola foi de
fa to tão diferente de Quixote? A aventura de um não pode ser considerada em
paralelo com a aventura do outro? Para Unamuno existe apenas o homem concreto,
e o homem concreto "está acima de todas as razões". Logo: "a verdade racional
e a vida estão em oposição"; e ainda: "Eu não me submeto à razão, e me rebelo
contra ela".

• "Tudo aquilo que é vital é irracional, enquanto tudo aquilo que é racional
é antivital": isso é escrito por Unamuno em Do sentimento trágico da vida (1913).
A vida "não aceita fórmulas"; aliás, a ciência existe porque sus­
tentada por uma "insustentável" fé na razão. o Deus
E devemos ainda dizer que o desprezo que Unamuno ali- de Unamuno
menta diante das construções intelectualistas e doutrinais, ele o é ° "Deus vivo"
estende também ao racionalismo teológico da tradição tomista. de Pascal
O Deus de Unamuno não é o Deus dos filósofos e dos teólogos; e . ,
é, muito mais, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, como para _[er ^ í aa
Pascal e Kierkegaard: é um Deus que fala ao coração e não a ’
conclusão de uma série de silogismos.
Segunda parte - O c o n t r ib u t o d a < z L s p a n i\ a à j- ilo s o f ia d o s é c u Io XX

1 A vida e a s ot>ras De 1910 é Minha religião e outros en­


saios. Segue-se uma longa série de ensaios,
coletados depois em mais volumes. A obra
filosófica mais representativa de Unamuno
Miguel de Unamuno nasceu em 29 de — D o sentimento trágico da vida — é de
setembro de 1864 em Bilbao, onde freqüen­ 1913. Este livro representa um dos testemu­
tou a escola primária e a secundária. Os es­ nhos mais lúcidos do desmoronamento do
tudos universitários naquele tempo duravam otimismo filosófico do fim do século, da crise
na Espanha apenas três anos. E, assim, em da intelectualidade positivista e idealista.
1884, com vinte anos, Unamuno já era dou­ Em 1914, tendo-se declarado a favor
tor em língua basca. Depois de sete anos de dos Aliados, Unamuno é destituído do cargo
ensino privado em Bilbao, em 1891 Unamu­ de reitor; todavia, conserva a cátedra até
no é assumido como professor de grego na 1924. Em 1923, com um golpe de Estado,
Universidade de Salamanca. Desta prestigio­ sobe ao poder o ditador Primo de Rivera.
sa Universidade Unamuno foi eleito reitor Unamuno, em uma conferência em Bilbao,
em 1901. 1901 é também o ano em que ele critica tanto o rei Afonso XIII como o di­
passa do ensino do grego para o de literatura tador. Foi assim que, em fevereiro de 1924,
espanhola. N o entanto, em 1902, publica ele é preso e levado ao exílio nas Canárias,
sua primeira obra — escrita alguns anos na ilha de Fuerteventura. Daí ele foge. E, na
antes — Em torno do casticismo. A vida de França, em Paris, vive os dias mais amargos
Dom Quixote e de Sancho aparece em 1905. do exílio, e escreve A agonia do cristianismo.

Miguel de Unamuno
(1864-1936)
foi um dos mais originais
pensadores
dos inícios do século X X ,
crítico agudo das construções
intelectualistas e doutrinárias:
para ele a vida
“não aceita fórm ulas".
Capitulo oitavo - 7V\>gwe! d e L \y \a n \tA V \o e o sen tim en to tr á g ic o d a vid a

De Paris Unamuno se transfere a Hen- humana que existe” ; e aqueles que falam de
daye, na costa basca, diante de Bilbao. Em regeneração da Espanha se esquecem jus­
Hendaye Unamuno permanece até 1930, tamente do destino individual dos homens
isto é, até a queda do ditador Primo de Rive- individuais.
ra. Volta para Salamanca e lhe é devolvida a Unamuno olha o povo de carne e osso.
cátedra. Em 1931 é proclamada a República, Esse povo não é um fantasma intelectua­
e Unamuno é nomeado deputado. Em 1936 lista ou uma reconstrução historiográfica.
explode a guerra civil espanhola: Unamuno E gente que trabalha, pensa, sofre e canta
não esconde sua escolha franquista. suas canções sobre determinado pedaço de
A morte o colhe em 31 de dezembro terra, sob determinado céu e diante deste
do mesmo ano de 1936. Comemorando mar. É gente que vive na tradição. E aquilo
Unamuno, Ortega y Gasset dirá: “Unamuno que Unamuno procura é a tradição espa­
sempre esteve na companhia da morte, sua nhola eterna: eterna porque humana, mais
perene amiga-inimiga. Sua vida inteira e que espanhola. E, então, que sentido possui
toda sua filosofia foram [...] uma meditatio tentar regenerá-la, europeizá-la? Um povo
mortis. A nossos olhos uma inspiração desse é atrasado? Pois bem, responde Unamuno,
tipo triunfa em todo lugar, mas, em todo “ deixemos que os outros corram; também
caso, devemos dizer que Unamuno foi o seu eles, antes ou depois, se deterão” . O povo
precursor!” . passa sua vida na ignorância? Pois bem, o
povo “ sabe tantas coisas que os homens
públicos ignoram” e “ a ignorância é uma
ciência divina: é mais que ciência — é sa­
2 A essência da Êspanka
bedoria” . E ainda: o camponês de Toboso
— pergunta-se Unamuno — não vive e não
morre mais feliz que um operário de Nova
Em torno do casticismo é de 1895. Este York? “ M alditas as vantagens de um pro­
livro sobre a essência da Espanha é uma gresso que obriga-nos a nos dilacerar de afã,
decidida e lúcida tomada de posição contra de trabalho, de ciência!”
os literatos que representam a “ geração de Em torno do casticismo é o primeiro
1898” , que, desiludidos pela perda de Cuba, assalto significativo de Unamuno contra o
falavam a todo instante da “ regeneração da intelectualismo, contra imagens que pre­
Espanha” . Estes discursos de intelectuais e tendem passar por realidade, contra idéias
políticos, todavia, deixam o povo indiferen­ de Deus que querem substituir os ímpetos
te. E isso ocorre — nota Unamuno — porque místicos dos fiéis, contra tantos, para além
o povo goza de “ saúde cristã” . Unamuno das estatísticas e dos gráficos econômicos
denuncia, com aguda previsão, os perigos e sociológicos, que não conseguem ver a
do nacionalismo; mas ele não se deixa se­ fome e os sofrimentos de multidões de seres
quer fascinar pela idéia que os intelectuais humanos.
e políticos fazem da Espanha: tal idéia é
uma decoração intelectualista da qual foge
a vida real do povo. A Espanha não é “ um
fantasm a” sobre uma tela pintada ou uma IP a r a liber+ar-se
visão de origem livresca. A Espanha é a vida do^domínio dos fidalgos
de milhões e milhões de homens e não aquilo da r a z ã o "
que dela contam os jornais ou que dela diz
a história: “ os jornais não dizem nada da
vida silenciosa de milhões de homens sem
história que, em qualquer hora do dia e em N a Vida de Dom Quixote e de Sancho
todo lugar, em todos os países do mundo, se Unamuno escreve: “ N ão é a inteligência,
levantam com o sol e vão para seus campos mas a vontade que constrói para nós o mun­
a fim de continuar sua tarefa obscura e si­ do e, ao velho aforismo escolástico ‘nihil
lenciosa, quotidiana e eterna [...] que lança volitum quin praecognitum’, ou seja, ‘nada
as bases sobre as quais se levantam as ondas se quer que não seja antes conhecido’, é pre­
da história” . O mais caro para Unamuno ciso fazer uma correção, lendo assim: ‘nihil
não é uma idéia da Espanha ou a retomada cognitum quin praevolitum’, ou seja: ‘nada
da história da Espanha. Para Unamuno se conhece que antes não seja querido’ ” .
conta apenas “ o destino individual de cada A vida, afinal de contas, é inexaurível para a
homem” , uma vez que esta é “ a coisa mais inteligência. E há mais: a razão vem depois
Segunda püYte - O contributo d a ér^spanka à filosofia d o s é c u lo X X

da ação; a inteligência segue a vontade. “ É coisas que põem a vida em risco e, portanto,
a vida — sentencia Unamuno — o critério nelas existe a verdade. E, por outro lado,
para julgar a verdade, e não a concordân­ aquele cavaleiro de Cristo que foi Inácio de
cia lógica, que é apenas critério de razão. Loyola foi tão diferente de Dom Quixote?
Se minha fé me leva a criar ou a aumentar A aventura de um não pode ser vista em
a vida, para que pretender outra prova de paralelo com a aventura do outro?
minha fé? Quando as matemáticas servem
apenas para matar, também as matemáticas
se tornam mentira. Se, enquanto caminhais
morrendo de sede, vedes uma miragem que y\ vida
vos representa vivamente aquilo que cha­
" n ã o a c e i f a fó c m u la s
mamos de água, e vos lançais a beber e vos
sentis renascidos porque a sede se aplacou,
aquela miragem era verdade, e verdade era
aquela água. Verdade é tudo aquilo que, Nem o humano nem a humanidade
impelindo-nos a agir de um ou de outro têm uma existência real. Para Unamuno, o
modo, faz com que o resultado de nossa que existe é apenas o homem concreto. E a
ação resulte conforme nosso propósito” . existência, a vida do homem concreto não
Contra “ a peste do bom senso que encontra justificação, “ está além de todas as
nos mantém a todos sufocados e compri­ razões” . Lemos em D o sentimento trágico
m idos” , Unamuno sente que dessa peste da vida que “ tudo aquilo que é vital é irra­
podemos ser curados apenas por “ aquela cional, enquanto tudo aquilo que é racional
autêntica loucura” que, ao contrário, “ nos é antivital” . A vida “ não aceita fórmulas” ; o
está faltando” . Em uma época dominada homem concreto “ é absolutamente instável,
pelo cientificismo positivista, ele, escreven­ absolutamente individual” ; não é capturável
do a seu “ bom am igo” sobre a necessidade por esta ou por aquela definição teórica. Por
de libertar o sepulcro de Dom Quixote, conseguinte, afirma Unamuno, “ eu não me
afirma que é preciso desconfiar da ciência: submeto à razão, e me revolto contra ela” .
“ deve bastar-te a tua fé. Tua fé será tua arte; O que a ciência pode dizer sobre o sentido
tua fé será tua ciência” . E ainda é preciso da vida, sobre nossas mais profundas ne­
desconfiar das letras “ que degeneram em cessidades volitivas, sobre nossa fome de
literatura, naquela nojenta literatura que é imortalidade? E justamente por isso que, a
a aliada natural de todas as escravidões e de seu ver, “ a verdade racional e a vida estão em
todas as misérias” . E eis então que aparece oposição” . Unamuno, em outras palavras,
em todo seu esplendor e valor “ a santa “ considera que o pensamento, a razão e o
cruzada” que impele a resgatar o sepulcro intelecto fossem demasiado restritos para
de Dom Quixote “ das mãos dos sabichões, compreender clara, total e seguramente as
dos padres e dos barbeiros, dos duques e coisas que procuram abraçar. Nem por isso
dos eclesiásticos que dele se apoderaram ” . renunciou a eles: tornou-os “ trágicos” e
O sepulcro do “ cavaleiro da loucura” deve “ agônicos” , ou seja, conforme a etimologia
ser, portanto, resgatado “ do domínio dos grega, “ em luta” (R. M. Albérès). A vida,
fidalgos da razão” . a existência vai além de qualquer tentativa
Dom Quixote, diz Unamuno, torna- da razão de dar-se conta. Um pensamen­
se louco “ unicamente por maturidade de to demasiadamente seguro de si constrói
espírito” . Ele alimentou sua alma com os unicamente dogmas vãos. Se, ao contrário,
empreendimentos daqueles valorosos ca­ alguém está consciente dos limites da razão,
valeiros que, “ desapegando-se da vida que de suas presunções e de seus erros, do fato
passa, aspiram à glória que permanece” . Foi de que existem realidades que a ultrapassam,
o desejo de glória e de imortalidade que os então teremos pensadores que, em contínua
impeliu a agir. E, desse modo, ele, perdendo vigilância, se encontrarão em luta contra si
seu próprio juízo, nos deixou “ um eterno próprios, contra as pretensões de seu pró­
exemplo de generosidade espiritual” . Per­ prio intelecto. E, portanto, para Unamuno,
gunta-se Unamuno: “ com o juízo no lugar, “ o verdadeiro intelectual é [...] aquele que ja­
teria ele sido tão heróico?” A loucura herói­ mais está satisfeito consigo mesmo, nem com
ca contra a miséria do bom senso; os livros os outros. A noção de ‘trágico’ se opõe à de
de cavalaria contra as pretensões do inte- certeza e de comodidade” (R. M. Albérès).
lectualismo cientificista e do racionalismo Com tais premissas é fácil compreender
supersimplificador das filosofias: são estas as a desconfiança de Unamuno em relação aos
161
C a p i t u l o o i t a v o - AAiguel d e ÍA n a m u n o e o sen tim en to tr á g ic o d a vid a

sistemas filosóficos criados por maníacos do vale mais que todas as provas racionais.
desejosos de reduzir o todo a matéria ou a E a descoberta da morte, a incapacidade de
idéia ou a força ou a espírito. A verdade, resignar-se a abandonar a vida, é afinal esse
diz Unamuno, é que nossos desejos, nossas sentimento trágico da vida, que leva o ho­
volições, nossos afetos, nossos sentimentos, mem “ a gerar o Deus vivo” . E é justamente a
nossas angústias vêm antes da inteligência, insistência sobre a imortalidade o traço pelo
não nascem da inteligência: as doutrinas fi­ qual Unamuno mais aprecia o catolicismo,
losóficas são tentativas de justificar depois, a apesar do racionalismo da escolástica: o
posteriori, nossa conduta e os aspectos mais eixo do protestantismo é a justificação; o
importantes da vida. A própria ciência não é do catolicismo é a esperança.
um valor diante do qual devamos nos ajoe­ “ Ninguém — escreve Unamuno em
lhar. Por trás da ciência existe a fé na razão; Minha religião e outros ensaios — conse­
e “ a fé na razão está destinada a aparecer, guiu me convencer por meio de argumentos
no plano racional, tão insustentável quanto racionais a respeito da existência de Deus,
qualquer outra fé” . E, depois, “ a ciência nem de sua inexistência” . E os raciocínios
existe unicamente na consciência pessoal, e dos ateus lhe parecem até “ mais superficiais
graças a ela” . Em outras palavras, existem e mais fúteis” do que os de seus adversários.
filósofos e cientistas que criam, e mudam O problema de Deus é inadiável. N ão é pos­
idéias: instrumentos nas urgências das lutas sível voltar-lhe as costas, como o agnóstico, e
interiores que atormentam as consciências dizer: “N ão sei. É verdade — afirma Unamu­
dos indivíduos. |,É5,3 i no — que talvez jamais poderei saber, mas
quero saber. Quero, e isso me basta!” .
Cristão porque percebia em seu co­
ração “ uma forte tendência para o cristia­
lÁ nam iA no1.
nism o” , Unamuno declarava considerar
um “P a s c a l e s p a n K o l" cristão “ todo aquele que invocar com res­
e n c o n fr a peito e amor o nome de Cristo” . O Deus
de Unamuno, portanto, é um Deus que
o “ i ^ m ã o // K . i e r k e g a a r d
fala ao coração; é o Deus de Abraão, de
Isaac e de Jacó, e não o Deus dos filósofos
e dos teólogos. E o Deus vivo de Pascal e
O desprezo que Unamuno nutre em re­ de Kierkegaard. E, justamente na Agonia do
lação às construções doutrinárias se lança cristianismo, Unamuno percebe em si pró­
também contra o racionalismo teológico prio “ um Pascal espanhol” ; assim como al­
tom ista. Esta filosofia — escreve ainda guns anos antes havia chamado de “ irm ão”
Unamuno em D o sentimento trágico da vida aquele pensador que vivera “ em perpétuo
— pôde triunfar pelo fato de que “ a fé, isto desespero interior” , que foi Kierkegaard.
é, a vida, não se sentia mais segura de si” . E como vida e luta — e, portanto, agonia
A existência de Deus não é, para Unamuno, — Unamuno concebe o cristianismo: este
o resultado de uma prova racional. Para ele não é pensamento, é vida, é fé que morre e
Deus existe porque há em nós vontade inex- ressuscita sem cessar dentro da consciência
tirpável de sobrevivência: este desejo profun­ humana.
162
..■■ •* Segunda pãfte - O con lH b u to d a & s p a n \ \ a à filo sofia d o s é c u lo X X

Aqui entre nós já não se compreende mais


sequer a loucura. Até do louco dizem que, se
U namuno o for, deve ter uma vantagem ou motivo para
isso. O motivo oculto da loucura é doravante um
fato consumado para todos estes miseráveis.
Se nosso senhor Dom Quixote ressuscitasse e
Dl A vido voi além da "rozõo" voltasse a esta sua Cspanha, certamente se
afanariam em busca de uma secreta intenção
pora seus nobres desatinos. Se alguém denun­
€m uma época dominada p elo cientifí- cia um abuso, se persegue a injustiça, se açoita
cismo positivista, Unamuno se rebela contra a vilania, os escravos se perguntam: "O que ele
"a lógica suja" 0 a "peste do bom senso que estará procurando? Ao que aspira?". Por vezes
nos mantém a todos sufocados e refreados". crêem e dizem que o faz para que lhe tapem a
€ tudo isso porque a vida é inesgotável para boca, enchendo-a de ouro; outras vezes, que
a inteligência, "é a vida o critério para julgar é pelos vis sentimentos e as baixas paixões
a verdade; nõo a concordância lógica, que é de um invejoso vingativo; outras ainda, que o
apenas critério de rozõo". 6, de modo ainda faz unicamente para fazer as pessoas falarem
mais paradoxal: "Se, enquanto caminhais e andarem na boca de todos, satisfazendo sua
morrendo de sede, vedes uma miragem que própria vanglória; outras ainda, que o faz para
vos representa ao vivo aquilo que chamamos distrair-se e para passar o tempo, por esporte.
d e água, e vos lançais a b eb er e vos sentis Pena, porém, que sejam tão poucos os que se
renascidos porque a sed e se aplacou, aquela deleitam com tal esportel
miragem era verdade, e verdade era aquela Olha e observa. Diante de um ato qual­
água". R "loucura" de que Unamuno tece o quer de generosidade, de heroísmo, de pura
elogio mais apaixonado significa a abun­ loucura, a todos estes sabichões estúpidos,
dância transbordante da vida em relação a párocos e barbeiros de nossos dias, não vem
uma encolhida e dogmático rozõo de estilo à mente mais que uma pergunta: "Por que ele
positivista. fará isso?" 6 logo que consideram ter desco­
berto o motivo daquele ato - seja ou não o
motivo que supõem -, eles se dizem: "8ah! G e
fez isso por esta ou por aquela rozõo". Pelo
Tu me perguntas, meu bom amigo, se próprio fato de que uma açõo tem uma razão
conheço o modo de desencadear um delírio, de ser e eles a conhecem, a coisa perdeu todo
uma vertigem, uma loucura qualquer sobre estas valor. Para esse objetivo lhes serve o lógica, a
pobres folhas ordenadas e tranqüilas que nas­ lógica suja... [...]
cem, comem, dormem, se reproduzem e morrem. "Por que faz isso?" Por acaso Sancho per­
"Nõo haverá um meio", me dizes, "de renovar guntou alguma vez por que dom Quixote fazia
a epidemia dos flagelantes ou dos convulsio- as coisas que fazia?
nários?" C me falas depois do fatídico milênio. Mas voltemos à questão, à tua pergun­
Também eu, como tu, experimento com ta, à tua preocupação: "Que tipo de loucura
freqüência a nostalgia da Idade Média; como coletiva poderíamos inculcar nestas pobres
tu, também eu gostaria de viver entre os e s­ multidões? Que tipo de delírio?"
pasmos do ano mil. Se fosse possível fazer Tu próprio te aproximaste da solução, em
crer que em determinado dia, por exemplo, dia uma das cartas em que me assaltaste com as
2 de maio de 1 9 0 8 , no centenário do grito de perguntas. Gscrevias: “Não crês que se poderia
independência, a Cspanha deve acabar para tentar uma nova cruzada?"
sempre, que naquele dia seriamos divididos Pois bem, sim. Creio que se possa tentara
como cordeiros, penso que dia 3 de maio seria santa cruzada de ir resgatar o sepulcro de Dom
o maior de toda a nossa história, a aurora de Quixote das mãos dos sabichões, dos padres e
uma nova vida. dos barbeiros, dos duques e dos cônegos que
fl que hoje vivemos é uma miséria, uma dele se apossaram. Creio que se possa tentar
completa miséria, fl ninguém importa mais nada a santa cruzada de ir resgatar o sepulcro dos
de nada. 6 quando alguém procura debater cavaleiros da loucura do domínio dos nobres
isoladamente este ou aquele problema, esta da razão.
ou aquela questõo, logo as pessoas pensam Defenderão, se compreende, aquilo que
que seja apenas uma questõo de trocados, usurparam, e procurarão provar com muitos e
ou certa mania de ostentação e desejo de se bem construídos raciocínios que justamente a
distinguir dos outros. eles tocam a guarda e a defesa daquele sepul­
Capítulo oitavo - M ig u e l d e lA n a m u n o e o sen tim en to tr á g ic o d a vid a

cro. £ o guardam, com efeito, mas apenas para enquanto marchamos?" O quê? Lutar! Lutar, e
que o Cavaleiro não tenha de ressuscitar, com todas as forças!
fl esse tipo de raciocínios é preciso res­ "Como?" Topais com alguém que desem-
ponder com insultos, com pedradas, com gritos bucha idiotices, mas que uma imensa multidão
de paixão, com golpes de lança. Não é preciso ouve de boca aberta? Gritai à multidão: “€s-
pôr-se a discutir com eles. Se tentares racioci­ túpidosl”, e em frente! Cm frente, sempre em
nar em conflito com seus raciocínios, estarás frente! [...]
perdido. [...] 6 se alguém vier te dizer que sabe construir
fl caminho, portanto. 6 cuide bem para pontes e qu® talvez haverá ocasião em que con­
que não entrem no esquadrão sagrado cru­ virá recorrer às suas noções para atravessar um
zados nem sabichões, nem barbeiros, nem rio, manda-o embora! fora com o engenheiro!
padres, nem cônegos, nem duques travestidos fltravessareis os rios a vau ou a nado, mesmo
como tantos Sanchos. Não faças nada para que metade dos cruzados tiver de restar aí,
que te peçam ou não ilhas; teu dever é de afogada. Que o engenheiro vá fazer pontes
expulsá-los quando vierem te perguntar qual em outro lugar! Haverá necessidade disso. Mas
é o itinerário da marcha, quando te falarem do para ir em busca do sepulcro basta a fé para
programa, quando te murmurarem ao ouvido, servir de ponte.
maliciosamente, pedindo-te que lhes digas Se tu, meu caro amigo, queres realizar ple­
em que lugar permanece o sepulcro. Segue namente a tua missão, desconfia da ciência, ou
a estrela. € faz como o cavaleiro: endireita a pelo menos daquelas que se costumam chamar
tortuosidade que encontrares em teu caminho. de “arte" e de "ciência", mas que não são mais
Agora, o que convém agora; aqui, aquele que que pálidas macaquices da arte e da verdadeira
se encontra aqui. ciência, fl ti deve bastar a tua fé. Tua fé será a
Colocai-vos em caminho! Tu me perguntas tua arte; tua fé será a tua ciência.
para onde andais? A estrela o dirá a vás: “Para M. de Unamuno,
o sepulcro!" “Que faremos ao longo do caminho, Vido de Dom Quixote e de Sancho.
(C-ap'di\\o nono

3 ose CVtega y G asset


e o diagnóstico filosófico
da civilização ocidental

• José Ortega y Gasset (1883-1955) é, sem dúvida, o mais significativo filósofo


espanhol do século XX. Formando-se na Alemanha, na escola dos neokantianos
Hermann Cohen e Paul Natorp, Ortega publica em 1914 as Meditações sobre o
Quixote; em 1920, Espanha invertebrada. Em 1923 funda a "Re­
vista do Ocidente" e publica O tema de nosso tempo. Em 1930 a "voz
sai a obra mais famosa e mais difundida de Ortega, A rebelião de advertência"
das massas, obra que - escreve Renato Treves foi para a Europa de A rebelião
"uma voz de advertência". De 1933 é o livro Em torno de Galileu; das massas
de 1940, Idéias e crenças; de 1941, História como sistema. §1

• "Eu sou eu e minha circunstância", escreve Ortega nas Meditações sobre


o Quixote. A circunstância é o ambiente físico e social em que cada um de nós
é jogado desde o nascimento. E, partindo justamente dos problemas que a cir­
cunstância lhe coloca, o homem constrói sua própria existência, tenta realizar o
projeto que escolheu ser. Em poucas palavras: o homem inventa o
homem e - por meio da fantasia, uma força que torna o homem "Eu sou eu
ser que projeta - inventa a cultura e a história. Em todo caso, não e minha^
é a humanidade que age, são apenas os indivíduos que agem na circunstância"
história; e os indivíduos são sempre elementos de uma geração, a -> § 2'3
qual incorpora pessoas que, no mesmo espaço e no mesmo tem ­
po, vivem no mesmo horizonte de expectativas, e devem enfrentar dificuldades e
problemas comuns. E as gerações se distinguem em gerações cumulativas (isto é,
não inovadoras), em gerações polêmicas (as contrárias à tradição), e em gerações
decisivas (as que efetivamente conseguem dar nova configuração à sociedade).

• São os indivíduos que agem. Sem dúvida, o homem é mais do que seu pen­
samento, uma vez que ele é também paixão, medo, desejo, angústia. Todavia,
se quisermos resolver os problemas práticos da "circunstância", necessitaremos
de idéias. E aqui Ortega traça a distinção entre idéias-invenções
(as que produzimos, sustentamos e discutimos) e idéias-crenças idéias
(idéias herdadas do passado, previsíveis, e que confundimos "que tem os"
com a própria realidade; por exemplo, andamos pela rua e evi- e idéias
tamos os edifícios, sem que em nossa mente surja a idéia: "as "que somos"
paredes são impenetráveis"). As idéias-crenças, todavia, não são $ 4~6
imunes de dúvidas, e o mesmo ocorre com as idéias-invenções.
O homem cria idéias, imagina possibilidades, inventa hipóteses; e quando estas
não têm sucesso, ele muda de caminho, aprende dos erros. Os erros cometidos,
individuados e eliminados constituem para o homem um autêntico tesouro: o
tesouro dos erros.

• Em A rebelião das massas Ortega sustenta a tese de que a civilização ocidental


está enferma com a grave doença que é o homem-massa. O homem-massa é um
tipo ideal, um modo de ser que permeia todas as classes; o homem-massa é um
homem irresponsável, um especialista incapaz de enfrentar um problema geral.
Segunda pavte - O c o n t r ib u t o d a í E s p a n k a à f ilo s o f ia d o s é c u lo X X

decidido na rejeição da discussão; é "inerte como a massa". E se


O homem-
massa,
gaba, diz Ortega, desta monstruosa novidade: "o direito de não
o tipo ideal ter razão, a razão da não-razão".
do homem O homem-massa deu as costas aos valores liberais e ao
"inerte individualismo sobre o qual a civilização ocidental cresceu. O
como a massa' fascismo e o bolchevismo são exatam ente movimentos de ho-
^§7 mens-massa muitas vezes guiados por homens cruéis e privados
de cultura.

vida e as o b r a s M arias, funda o Instituto de Humanidades.


Morre em M adri no dia 17 de outubro de
1955.
Albert Camus definiu Ortega como “ o
José Ortega y Gasset nasceu em M a­ maior escritor europeu depois de Nietzs­
dri no dia 9 de maio de 1883. Seu pai era che” . Renato Treves escreveu, a propósito
diretor do jornal de orientação liberal “ El de A rebelião das m assas, que essa obra foi
Imparcial” . Estudou com os jesuítas, e em para a Europa “ uma voz de advertência” .
1898 inscreve-se no Instituto de Estudos Su­ Do ponto de vista teórico — afirma L. In-
periores de Deusto (Bilbao). Sucessivamente fantino — “ o problema de Ortega foi o da
transferiu-se para M adri, onde se laureou
em filosofia em 1904. Entrementes, no ano
anterior, em 1903, conhecera Unamuno. Em
1905, terminando os estudos universitários,
Ortega foi para a Alemanha, onde, antes
se inscreveu na Universidade de Leipzig, e
depois em Berlim. E, sucessivamente, em
M arburgo segue as aulas dos neokantianos
Hermann Cohen e Paul Natorp. Voltando
a M adri — estamos em 1907 —, Ortega
ensina na Escola Superior de Magistério. Em
1910 é nomeado professor de metafísica na
Universidade de Madri. As Meditações sobre
Quixote — “ o primeiro grande ponto de
chegada da reflexão orteguiana” (L. Infanti-
no) — aparecem em 1914. Em 1920 Ortega
publica Espanha invertebrada, e em 1923
O tema de nosso tempo. Ainda em 1923
funda a “ Revista de Ocidente” . Em 1929 o
ditador de Rivera manda prender diversos
estudantes, que haviam se rebelado às ten­
tativas de politização da vida universitária.
Ortega, em protesto, renuncia à cátedra.
N o entanto, em 1930, sai A rebelião das
m assas, obra que obtém vasta ressonância
internacional.
Em 1 9 3 6 exp lo d e a gu erra civil.
Ortega vai para o exílio: Paris, Holanda,
Argentina e depois para Lisboa. Escreve
ensaios de grande importância: A respeito
de Galileu (1933), Idéias e crenças (1940),
H istória como sistema (1941). Em 1946 José Ortega y Gasset (1883-1955) realizou,
Ortega, em meio à consternação de seus na obra A rebelião das massas,
amigos e discípulos, aceita a permissão do um atento diagnóstico da grave doença
governo franquista para voltar à Espanha. (o “ homem-massa ”) que atingiu
Em M adri, junto com seu discípulo Julian a civilização ocidental.
(Zdpítulo nOflO - O ^ e g a y l a s s e i e o d ia g n ó s tic o d a c iv iliz a ç ã o o cid en tal

“ reforma da filosofia” . Ele incansavelmente ção. O homem é o ser condenado a traduzir


repetiu que “ a razão deve ser colocada em a necessidade em liberdade” .
um lugar diferente daquele que a carolice
intelectualista lhe havia atribuído” . E no
campo político — nota L. Pellicani — Or- lg |ll C À e .r a ç õ e . s cumulativas,
tega foi um pensador que longamente lutou
“ para ver realizada uma dem ocracia de ge m çõ e s polêmicas
tipo novo, na qual as liberdades individuais e gera çõ es decisivas
fossem garantidas e efetivas, a riqueza so­
cializada, o nível cultural do homem médio
o mais possível elevado, as aristocracias O homem, porém, não exercita sua
intelectuais e morais numerosas e diversa­ liberdade no vazio, e ele toma suas decisões
mente articuladas” . dentro de instituições com usos aceitos, pa­
péis e expectativas estabelecidos, hierarquias
reconhecidas: usos, papéis, expectativas e
hierarquias selecionados por “ gente” do
O indivíduo
passado e impostos à “ gente” do presente.
e sua^circwnstancia" Em poucas palavras, o destino do homem é
a ação: a ação que, informada por crenças e
idéias, transforma a realidade física e social,
“ Eu sou eu e minha circunstância” . sem que por outro lado o homem alcance um
N essa fórmula Ortega — nas Meditações ponto firme sobre o qual se apoiar. A felici­
sobre o Quixote — encerra sua concepção dade jamais poderá ser posse do homem; o
do homem. E a circunstância não é apenas homem é constitutivamente um ser históri­
o ambiente físico; é também o ambiente co, cuja natureza é sua história, aquilo que
social: “ Todas as coisas e os seres do uni­ se tornou operando. Em suma, “ o homem
verso que nos circunda [...] formam nossa deve livremente projetar-se e autofabricar-se
circunstância” . N o ssa circunstância é o [...]” (A. Savignano).
lugar, o tempo, a sociedade em que cada São sempre e apenas os indivíduos
um de nós é lançado desde o nascimento. que agem; mas toda vida individual é um
Ela se impõe a todo homem como reali­ elemento de uma geração; uma geração
dade física e social estranha, como fonte incorpora pessoas que, dentro do mesmo
perene de preocupações e de problemas. espaço e do mesmo tempo, condividem o
E, procurando resolver estes problemas, o mesmo horizonte de expectativas, dificulda­
homem é forçado a construir sua própria des e problemas. E se existem gerações cu­
existência, a realizar o projeto que escolheu mulativas, ou seja, não inovadoras, também
ser. O homem luta com as dificuldades em existem gerações polêmicas, contrárias ao
que tropeça inventando não só idéias e legado de quem as precedeu. Sem dúvida,
instrumentos, mas também papéis, estilos lembra Ortega, as mudanças coletivas não
de vida: partindo de sua “ circunstância” , o têm em geral tempos breves, a ruptura com
homem inventa o homem, e inventa também o passado freqüentemente é mais aparente
a cultura e a história. que real, e todavia não se exclui a aparição
E realiza isso por meio da fantasia: uma das gerações decisivas, de fato revolucioná­
força que torna o homem ser que projeta, rias, que subvertem tudo e todos, imprimin­
um ser que procura mudar a si mesmo e o do uma configuração nova à coletividade.
ambiente circunstante e que, sem trégua, E, dentro de uma geração, são sempre
põe em confronto os projetos elaborados minorias escolhidas, indivíduos dotados
em seu mundo interior com a situação do de fantasia e de coragem, que impõem a
mundo externo. E a fantasia, portanto, que multidões passivas (massas miméticas) suas
se encontra na base da liberdade do indi­ propostas inovadoras. A história, portanto,
víduo: este inventa sua própria existência, se move. M as seu desenvolvimento não
não é determinado, é continuamente estável. é enquadrável nos esquemas determinís-
Viver é sentirmo-nos obrigados “ a exercitar ticos de filosofias da história como as de
a liberdade, a decidir aquilo que devemos ser Comte, Hegel e M arx. O da história é um
neste mundo” . E é ainda Ortega que fala: “ O desenvolvimento compreensível a partir
sentido da vida consiste em cada um aceitar — quando existe — da ação criativa de
sua própria circunstância inexorável e, ao indivíduos empreendedores, que, sabendo
aceitá-la, convertê-la em sua própria voca­ interpretar as necessidades e expectativas
Segunda parte - O cotrtribu+o d a éÜspanlv* à filosofia d o sé c u lo

das m assas, conseguem transformar suas de nós está em casa e decide sair: ele vai pa­
idéias e costumes. ra a porta, gira a chave para abrir a porta,
desce as escadas. Tudo isso tem o caráter
da deliberação consciente. M as a coisa mais
y \ d ife r e n ç a importante, o pressuposto que lhe permitiu
decidir interveio sem que ele pensasse nisso:
entee //idéias-invenções/ trata-se da crença que fora da soleira existe
e "id é ia s -c re n ç a s /; uma rua. N ós “ vivemos, nos movemos e
existim os” dentro de crenças do gênero.
Assim, Ortega exemplifica ainda: “ Quando
O homem é mais do que seu pensa­ caminhamos pela rua não tentamos passar
mento, pois ele é também paixão, medo, através dos edifícios: evitamos autom atica­
angústia, desejo. Todavia, escreve Ortega, mente trombar neles, sem que em nossa
“ sem idéias [...] o homem não poderia mente surja necessariamente a idéia: ‘As pare­
viver. Quando Goethe disse ‘no princípio des são impenetráveis’. Em todo momento
era a ação’, dizia uma frase pouco medita­ nossa vida apóia-se sobre um enorme re­
da, porque evidentemente uma ação não é pertório de crenças semelhantes” . ggflPI
possível sem que antes exista o projeto, o
esboço dessa ação” . O homem sem idéias
não existe; às idéias lhe são necessárias para
O tesouro dos erros
resolver os problemas que continuamente
surgem da condição humana, para sair do
abismo das dúvidas. O homem, em poucas
palavras, deve conhecer sua circunstância, Em todo caso, não é que as crenças
se não quiser viver cegamente. sejam certas, absolutamente seguras e ina­
E se a filosofia, para Ortega, é análi­ baláveis. Elas são apenas “ pensamentos
se e clarificação das propostas éticas, dos consolidados” , usados inconscientemente.
mundos de valores e de ideais por meio dos M as não é raro o caso — nota Ortega — que
quais os homens procuram orientar-se na “ na área fundamental de nossa crença se
vida e se agarram a tudo o que para eles vale abram, aqui e ali, como alçapões, enormes
a pena ser vivido, a ciência, por sua vez, é o abismos de dúvidas” . Encontramo-nos sem
instrumento mais eficaz e mais válido que chão sob os pés, em um “ mar de dúvidas” ,
permite ao homem ser informado sobre o quando estamos “ presos entre duas crenças
mundo e sobre o ambiente em que ele vive antagonistas que se chocam mutuamente e
e deve agir. nos fazem balançar de uma para outra” . E
Uma distinção importante, no campo onde uma crença é infringida ou se enfraque­
dos pensam entos, é a que Ortega traça ceu, o homem “ se agarra ao intelecto como
entre crenças e idéias-invenções. “ Idéias- a um salva-vidas” e procura inventar novas
invenções, e nelas incluindo as verdades idéias. As novas idéias, as idéias científicas,
mais rigorosas da ciência, podemos dizer são fantasias que têm sucesso: “ o triângulo e
que as produzimos, que as sustentamos, as o amuleto têm o mesmo pedigree. São filhos
discutimos, as propagamos [...]. São obra da louca da família” , isto é, da fantasia. O
nossa e por isso mesmo pressupõem já nossa homem — escreve Ortega — “ está condena­
vida, que se funda mais sobre idéias-crenças do a ser um narrador” : ele cria suas idéias,
não produzidas por nós, idéias que em geral imagina possibilidades, isto é, inventa hipó­
nós sequer formulamos, que obviamente não teses e teorias, que depois põe à prova, des­
discutimos, não propagamos, não sustenta­ cartando as que resultam erradas e contando
m os” . As crenças são idéias fundamentais, com o fato de que o dos erros cometidos,
herdadas do passado e que constituem, por individuados e eliminados, é um verdadeiro
assim dizer, um patrimônio tácito, previsto: e próprio tesouro. Tudo aquilo que o homem
elas “ não são idéias que temos, mas idéias obteve — salienta Ortega — “ custou milênios
que so m o s” ; são “ o conteúdo de nossa e milênios, e o obteve à força de erros, ou
vida” ; “ nós as confundimos com a própria seja, embarcando em fantasias absurdas que
realidade, constituem nosso mundo e nosso resultaram em becos sem saída dos quais
ser” . Ortega escreve isso no ensaio Idéias e teve de voltar atrás machucado [...]. Hoje,
crenças, onde acrescenta que nós estamos ao menos, sabe que as figuras do mundo que
nas crenças, e que, enquanto “pensamos as imaginava no passado não são a realidade.
idéias, contamos com as crenças” . Alguém À força de errar, está delimitando a área do
Capítulo tlO flO - O r t e g a y ( g a s s e t e o d ia g n ó s tic o d a c iv iliz a ç ã o oc id en ta l 169

êxito possível. D a í a importância de não


esquecer os erros, e isto é história” .
■ O h o m em -m assa. Em A rebelião
das massas, Ortega nos apresenta um
perfil penetrante do "homem-massa".
controle sem fim Este é o personagem típico do tempo
lÉ l» °
d a s teorias científicas de crise. É um "bárbaro vertical", que
recusa "trâmites, normas, cortesia,
hábitos intermediários, justiça, razão"
e que, diante do universo cultural, se
A idéia, na opinião de Ortega, tem ne­ pergunta: "Como é que se criou tanta
cessidade da crítica assim como os pulmões complicação?" O "homem-massa"
têm necessidade do oxigênio. A crítica mais declara caídas as regras da cultura; pe­
forte se tem em geral por meio do confronto sam-lhe demasiadamente e vê em sua
com os fatos. Os fatos da ciência, porém, "abolição a licença para jogar tudo às
não são fatos nus e crus, mas são realidades urtigas e para deixar a libertinagem à
já elaboradas pelas teorias; “ a realidade não solta". Mas de onde vem o "homem-
é dada, não é algo de dado, de presenteado, massa"? O século XIX introduziu uma
inovação radical no destino humano.
mas é uma construção feita pelo homem Criou-se "novo cenário para a existên­
com o material de que dispõe” . Inventamos cia do homem, novo materialmente e
idéias e as provamos sobre fatos que já são civilmente. Três princípios tornaram
interpretações (“ A verdade suprema é a da possível esse mundo novo: a democra­
evidência, mas o valor da evidência é, por cia liberal, a experiência científica e a
sua vez, mera teoria, idéia, combinação in­ industrialização. Os últimos dois po­
telectual” ); aprendemos a partir de nossos dem se resumir em um, a técnica. Ne­
erros. E as idéias ou teorias confirmadas não nhum destes princípios foi descoberto
permanecem fora de dúvida: “ O homem de pelo século XIX; ao contrário, provêm
dos dois séculos anteriores. O erro do
ciência — escreve Ortega no ensaio A respei­ século XIX não consiste em sua desco­
to de Galileu — deve continuamente tentar berta, e sim em sua introdução". No
duvidar de suas próprias verdades. Estas são passado, "também para o rico e para o
verdades do conhecimento, apenas à medida poderoso, o mundo era um âmbito de
que resistem a toda dúvida possível. Vivem, pobreza, dificuldade, perigo". A situa­
portanto, em um conflito permanente com ção de hoje, porém, é bem diferente.
o ceticismo. Tal conflito chama-se prova” . O mundo que desde seu nascimento
Esta, em poucas palavras, é a epistemologia circunda o homem é um mundo rico,
de Ortega, epistemologia que não deve ser que não conhece mais as privações
de um tempo. Mas é justamente aqui
minimamente confundida com a posição que a razão caiu em grande ilusão. Em
pragmática. Sem dúvida, algumas verdades vez de tornar o homem consciente dos
podem resultar úteis, e fatores práticos in­ benefícios e das vantagens da nova
tervém na formação de diversas convicções sociedade, em vez de fazer refletir
nossas; todavia, a verdade não pode “ ser sobre os esforços gigantescos dos
relativa às condições de um sujeito, seja ele quais a nova ordem nasceu e sobre
um indivíduo ou uma espécie. N ão existe os esforços necessários para mantê-lo
uma verdade para um e a verdade para em vida, irresponsavelmente fez acre­
outro” . ditar que qualquer coisa é possível.
Nasceu assim o "homem-massa", um
"menino viciado", cujo "diagrama
psicológico" caracteriza-se pela "livre
expansão de seus desejos vitais, isto é,
o % omem-massa de sua pessoa, e absoluta ingratidão
para com tudo o que tornou possí­
vel a facilidade de sua existência".
Escreveram que “ aquilo que o Contra­
to social de Rousseau foi para o século XVIII
e o Capital de M arx foi para o século X IX ,
A rebelião das m assas de Ortega deveria
sê-lo para o século X X ” . Tal civilização aparece a Ortega doente da
Com este famoso livro Ortega realiza o grave enfermidade que é o homem-massa. O
diagnóstico da civilização ocidental na épo­ crescimento quantitativo da população e um
ca que segue-se à primeira guerra mundial. bem-estar sempre mais largamente difundi-
Segunda parte - O contribu to d a ê s p a n k a à filosofia d o s é c u lo XX

do — fenômenos por trás dos quais há, na para a imposição daquilo que se deseja” . O
opinião de Ortega, o desenvolvimento da homem-massa é um novo bárbaro que “ não
técnica e da indústria — são acompanhados se limita a considerar-se excelente enquanto
pela destruição do valor sobre o qual cresceu é vulgar, mas pretende impor a vulgaridade
a civilização ocidental: o individualismo. como direito e o direito à vulgaridade” (L.
Escreve Ortega: “ Foi aquilo que se Pellicani). Em poucas palavras, escreve Or­
define como individualismo que enriqueceu tega, nosso tempo pode se orgulhar dessa
o mundo e todos os homens do mundo; e monstruosa novidade: “ o direito de não ter
foi essa riqueza que tão fundamentalmente razão, a razão da não-razão” . Novidade esta
multiplicou a planta humana M ais tanto mais clara se considerarmos o fato de
idéias, mais fés, mais estilos artísticos e uma que o homem-massa confiou totalmente sua
experimentação em todo âmbito da vida e vida ao poder público, ao Estado. O fascis­
do pensamento construíram uma civilização mo e o bolchevismo representam exatamen­
que no indivíduo contraposto ao coletivo te movimentos de homens-massa dirigidos
viu seu mais alto valor. O mundo moderno por homens por vezes rudes e privados de
cresceu, em suma, sobre a fé segundo a qualquer cultura. O homem-massa, em ou­
qual “ todo ser humano deve ser livre para tros termos, é um homem que “ deu as costas
preencher seu destino individual e não aos valores da tradição liberal e introduziu
transferível” . Eis, porém, que justamente no na vida pública um estilo de ação baseado
seio da civilização moderna vem à luz um sobre a sistemática agressão e cancelamento
homem-massa, um homem-massa que é tal do outro, sobre a idolatria do chefe caris­
não tanto porque elemento estandardizado mático e sobre o estatismo totalitário” . (L.
de uma m assa, e sim “ porque inerte como Pellicani). O Ocidente pode, em todo caso,
a m assa” . salvar-se, afirma Ortega. E o caminho da
O hom em -m assa não designa uma salvação foi por ele profeticamente indicado
classe social; é um ideal-tipo por meio do na formação dos Estados Unidos da Euro­
qual Ortega delineia “ um modo de ser que pa, ou seja, na criação de uma Europa com
hoje se encontra em todas as classes” . O uma alma antinacionalista, e fundada sobre
homem-massa não percebe que a cultura e princípios liberais, em grau, de um lado, de
as instituições em que vive são realidades contrastar o estatismo, a burocratização e
precárias; é, portanto, um irresponsável; é o intervencionismo destrutivos da criativi­
um especialista incapaz de enfrentar um pro­ dade e da responsabilidade dos indivíduos
blema geral; é decidido em rejeitar a discus­ e, do outro, de satisfazer as exigências fun­
são: “ detesta-se toda forma de convivência damentais da justiça social, uma vez que a
que por si mesma comporta o respeito de liberdade de todos os cidadãos se resolve em
normas objetivas [...]. Suprimem-se todos os uma ficção hipócrita, se depois faltam “ os
trâmites normativos e se corre diretamente meios para exercitá-la e assegurá-la” .
Capítulo tlOflO - O r t e g a y l a s s e i e o d i a g n ó s t i c o d a c i v iliz a ç ã o o c id e n ta l

como tais. Isso significa que toda a nossa “vida


intelectual" vem depois da real ou autêntica e,
O rteg a y G asset em relação a esta, constitui apenas uma dimen­
são virtual ou imaginária. Perguntareis então
qual seria o valor da verdade das idéias, das
teorias. Respondo: a verdade ou a falsidade de
uma idéia é uma questão de "política interior",
K l Como distinguir as "crenças" no âmbito do mundo imaginário de nossas
das "idéias-invenções" idéias. Uma idéia é verdadeira quando corres­
ponde à idéia que temos da realidade. Nossa
idéia da realidade, porém, não coincide com
Rs crenças são os pressupostos de fundo a realidade. £sta é constituída por tudo aquilo
com que olhamos o mundo e vivemos; confia­ sobre o que de fato contamos. Pois bem, não
mos nelas, "estamos em uma crença"; como temos a mínima idéia da maior parte das coisas
na crença de que, saindo d e casa, encontra­ com as quais de fato contamos e, se a temos
mos ainda o caminho. Rs idéias-invenções - graças a um esforço particular de reflexão so­
são, ao contrário, idéias que vêm ò nossa bre nós mesmos -, ela nos é indiferente porque
mente ou na mente de outros, idéias que não é realidade enquanto idéia, mas, ao contrá­
conscientemente construímos juntos e talvez rio, é realidade à medida que, para nós, não é
abandonamos. €m todo caso, tanto umas apenas idéia, mas crença infra-intelectual. [...]
como as outras sõo atacadas p e lo ácido O homem tem clara consciência do fato de
da dúvida. € quando s e abrem as brechas que seu intelecto se exerce apenas sobre maté­
da dúvida, eis que intervém a fantasia para rias discutíveis, que a verdade de suas idéias se
produzir novas idéias como tentativas d e ‘ alimenta de sua incerteza. Por isso, tal verdade
soluções; idéias que depois serão colocadas é constituída pela prova que pretendemos dar
no crivo ou na prova dos Fatos. delas. A idéia tem necessidade da crítica como
"O homem de ciência - afirma Ortega os pulmões de oxigênio, e se sustenta e se afir­
- deve continuamente tentar duvidar d e suas ma apoiando-se em outras idéias que, por sua
próprias verdades. €stos [...] vivem em con­ vez, estão a cavalo em outras ainda, e todas
flito permanente com o ceticismo. Tal conflito dão vida a uma totalidade ou sistema, formam,
denomina-se de prova". portanto, um mundo separado do mundo real,
um mundo composto exclusivamente de idéias
das quais o homem sabe que é o construtor e
€m geral, quando tentamos determinar o responsável. Deste modo, a solidez da idéia
as idéias de um homem ou de uma época, mais estável se reduz à consistência com que
confundimos duas coisas radicalmente diversas: ela consegue estar correlacionada com todas as
as crenças e as idéias-invenções ou “pensamen­ outras. Nada menos, mas também nada mais.
tos". €m termos rigorosos, apenas estas últimas Não é então possível verificar uma idéia como
devem ser chamadas de "idéias". uma moeda, medindo-a diretamente com a
As crenças constituem o fundamento de realidade e fazendo desta uma pedra de com­
nossa vida, o terreno sobre o qual ela se de­ paração. A verdade suprema é a da evidência,
senvolve, dado que nos colocam diante daquilo mas o valor da evidência é, por sua vez, mera
que para nós é a própria realidade. Todo o teoria, idéia, combinação intelectual. [...] De­
nosso comportamento, inclusive o intelectual, pois, a partir do momento que a razão corrige
depende do sistema particular de nossas cren­ sem descanso suas concepções, e ò verdade de
ças autênticas. Nelas “vivemos, nos movemos ontem substitui a de hoje, se nossa fé consistis­
e existimos". 6 é este o motivo pelo qual em se em crer diretamente nas idéias, sua mudança
geral não temos consciência clara delas, nõo comportaria a perda da fé na inteligência. Pois
as pensamos, pois intervém em nossa vida de bem, acontece tudo ao contrário. Nossa fé na
modo latente, como implicações de tudo o que razão suportou imperturbável mente as mudan­
expressamente fazemos ou pensamos. Quando ças mais escandalosas de suas teorias, até as
cremos de fato em algo, não temos a "idéia" mudanças profundas das teorias sobre aquilo
da coisa em que cremos, mas simplesmente que é a razão humana. €stas últimas sem dúvida
“contamos com" ela. influíram sobre a forma daquela fé, mas esta
As idéias, isto é, os pensamentos que continua a agir impavidomente sob diversas
temos, sejam originais ou postiços, ao contrá­ vestes. [...]
rio! não têm valor de realidade em nossa vida. O homem, no fundo, é crédulo, ou melhor,
Intervém nela enquanto pensamentos e apenas o que é o mesmo, a estratificação mais profunda
Segunda pUTte - O c o n t r ib u t o d a é S s p a n k a à f ilp s o jt a d o s é c u lo X X

de nossa vida, a que sustenta e suporta todas da dúvida". Mas o que fazer? fl característica do
as outras, é constituída por crenças. Cstas são, duvidar é não saber o que fazer. O que fazer,
portanto, a terra firme sobre a qual nos afana­ portanto, quando nos acontece justamente não
mos (de passagem, tal metáfora se origina de saber o que fazer porque o mundo - uma parte
uma das crenças mais elementares que possuí­ dele, bem entendido - apresenta-se a nós de
mos, e sem a qual talvez nõo poderíamos viver: modo ambíguo? Com ele não há nada a fazer.
a crença segundo a qual a terra está bem firme, O homem, porém, quando se encontra em tal
apesar dos terremotos que por vezes ocorrem situação,Teafiza um estranho fazer, que quase
em alguns lugares da superfície terrestre. Expe­ não parece um fa?er: começa a pensar. Pensar
rimentemos imaginar que amanhã, por um ou em algo é o menos que pode fazer. Não deve
outro motivo, falte esta crença. Determinar, em sequer mover-se. Quando tudo ao redor vai de
linha de máxima, os traços da radical mudança roldão, resta-lhe, todavia, a possibilidade de
que tal desaparecimento produziria sobre o a s­ meditar sobre aquilo que vai de roldão. O inte­
pecto da vida humana seria um excelente exer­ lecto é o dispositivo mais à mão com o qual o
cício introdutório ao pensamento histórico). homem conta, e está sempre à sua disposição.
Mas na área fundamental de nossas cren­ Quando crê em geral dele não se serve, porque
ças se abrem, cá e lá, como alçapões, enormes é um esforço fatigante, mas, quando cai na
abismos de dúvidas. Cste é o momento de dizer dúvida, aferra-se a ele como a um salva-vidas.
que a dúvida, a verdadeira, aquela que não As brechas de nossas crenças são, portan­
é simplesmente metódica ou intelectual, é um to, o lugar vital em que as idéias realizam sua
modo de ser da crença e pertence, na arquitetu­ intervenção. Graças a elas substituímos sempre
ra da vida, à sua própria estratificação. Também o mundo instável e ambíguo da dúvida, por um
na dúvida se existe, flpenas que neste caso o mundo em que a instabilidade desaparece.
existir tem um aspecto terrível. [...] Como se obtém esse resultado? Fantasiando,
Todas as expressões comuns que se re­ inventando mundos. A idéia é imaginação. Ao
ferem à dúvida nos dizem que nela o homem homem não é dado nenhum mundo já deter­
sente-se submerso em um elemento não sólido, minado. São-lhe dadas apenas as alegrias e
não firme, fl dúvida é uma realidade líquida as dores de sua vida. Guiado por elas, deve
sobre a qual o homem não consegue gusten- inventar o mundo. A maior parte do mundo ele
tar-se e cai. Daí o "encontrar-se em um mar de a herdou dos mais antigos e ela influi sobre sua
dúvidas", que é contraposto ao elemento da vida como um sistema de crenças fixas. Mas
crença: a terra firme. €, insistindo na mesma cada um deve se haver por sua própria conta
imaginação, dúvida como flutuação, como vai- com aquilo que é duvidoso e problemático. Para
e-vem de ondas, fl paisagem marinha é indis­ esse objetivo, ele traça figuras imaginárias de
cutivelmente o mundo da dúvida e suscita no mundos e de seu possível comportamento ne­
homem pressentimentos de naufrágio, fl dúvida les. Cntre elas, uma lhe parece idealmente mais
descrita como flutuação, nos faz perceber o fato fundamentada e a chama de verdade. Observe-
de que ela é uma crença. 6 o é justamente por se, porém: aquilo que é verdadeiro, e também
ser constituída pela redundância do crer. Duvi­ aquilo que é cientificamente verdadeiro, não é
damos porque nos encontramos presos entre mais que um caso particular do fantástico. Há
duas crenças antagônicas que se entrechocam fantasias exatas. C mais: só pode ser exato o
e elas nos fazem balançar entre uma e outra, que é fantástico. Não há modo de compreender
deixando-nos sem terra sob os pés. O dois, é bem o homem, a não ser constatando que a
claro, torna-se o du da dúvida. matemática brota da mesma raiz da poesia, da
O homem, sentindo-se cair em tais abis­ faculdade da imaginação.
mos, que se abrem no solo firme de suas cren­ J. Ortega y Gasset,
ças, reage energicamente. €sforça-se para "sair Rurora do razão histórico.
FENOMENOLOGIA
EXISTENCIALISMO
HERMENÊUTICA
“Na miséria de nossa vida [...] esta ciência não tem
nada a nos dizer. Ela exclui de princípio os problemas
maiscandentesparaohomem, oqual, emnossostem-
pos atormentados, sente-se em poder do destino”.
Edmund Husserl
“A última questão [...] é saber se do fundo das
trevas um ser pode brilhar”.
Karl Jaspers
“A liberdade consiste na escolha do próprio ser. E
tal escolha é absurda”.
Jean-Paul Sartre
“A revolução é progresso quando a comparamos
ao passado, mas desilusão e aborto quando a
comparamos ao futuro que ela deixou entrever e
depois sufocou”.
Maurice Merleau-Ponty

“O próprio mundo tende [...] a aparecer por vezes


como simples canteiro de obras de desfrutamento,
outras como um escravo adormecido”.
Gabriel Mareei
“Quem quer compreender um texto deve estar
pronto a deixar que ele diga algo de si”.
Hans Georg Gadamer

“Sensus non est inferendus, sed efferendus”.


Emílio Betti
Capítulo décimo

Edmund Husserl e o movimento fenom enológico______

Capítulo décimo primeiro

M artin Heidegger: da fenomenologia ao existencialismo

Capítulo décimo segundo

Traços essenciais e desenvolvimentos do existencialismo

Capítulo décimo terceiro

H ans Georg Gadam er e a teoria da hermenêutica___

Capítulo décimo quarto

Desenvolvimentos recentes da teoria da hermenêutica


( Z a p í + u Io J lé . c \ v n o

E dm und H u sse rl
e o movime.Kvto j-enomenológico

I. g ê n e s e e n a tu re z a
d a - fe » a o m e n o lo 0 Ía

• A palavra de ordem da fenomenologia é: voltem o s às p ró p ria s coisas! Para


além das construções teóricas jogadas no ar e dos conceitos apenas a p a re n te m e n te
justificados, o fenomenólogo quer construir uma filosofia que, porém, se funda­
mente sobre d ados in d u b itá v eis , ou seja, sobre evidências estáveis. E para tal fim
o caminho justo é o da epo ch é, ou seja, do procedimento que
consiste em suspender, em pôr fora de uso, entre parêntese, por "Voltemos
assim dizer, nossas persuasões filosóficas e científicas e as próprias às próprias
convicções embutidas em nossa atitude natural que nos faz crer coisas"
na existência das coisas do mundo ou do próprio mundo. Em $1
outras palavras, suspende-se o juízo sobre tudo aquilo que não
é indubitavelmente certo, que não é nem apodítico nem incontestável, até que
se chegue a encontrar os "dados" que resistem aos reiterados assaltos da epoché.
E este ponto de chegada da epo ch é, o resíduo fe n o m e n o ló g ic o , como o chamará
Husserl, os fenomenólogos o encontram na consciência: a existência da consciência
é imediatam ente evidente.

• Sobre a base desta evidência a fenomenologia se exerce na descrição dos


m o d o s típicos em que as coisas e os fatos se apresentam à consciência: e esses
modos típicos são as essências eidéticas, por exemplo, a essência do pudor, da
simpatia, da santidade, do amor etc. Em poucas palavras: a cons­
ciência é sempre in ten c io n al, sempre consciência d e alguma coisa; A
mas não posso duvidar da consciência. À consciência as coisas se fenomenologia
apresentam em m odos típicos e não em emaranhados modos ca- como cjênaa
óticos: um comportamento ou é comportamento de ódio, ou de de essências
amor, ou de simpatia, ou de benevolência etc. E o problema que *
aqui o movimento fenomenológico se colocou é se esses m odos
típicos r em que as coisas se apresentam à consciência, se essas essências eidéticas
são "constituídas" pela própria consciência ou são, ao contrário, realidades que se
impõem à consciência, como a luz ao olho e o som ao ouvido. No primeiro sentido
- direção idealista - se orientará Husserl; no segundo sentido - direção realista da
fenomenologia - se orientará Max Scheler.

• A fenom enologia nasce com Husserl como p o lê m ic a a n -


Husserl atinge
tip sicologista; e sobre a base da idéia da in te n c io n a lid a d e da
o pensamento
consciência. Pelo antipsicologismo Husserl pôde atingir o pensa­ de Bolzano
mento do matemático e filósofo Bernhard Bolzano (1781-1848), e de Brentano
e pela intencionalidade da consciência as teses de seu mestre -*§4
Franz Brentano (1838-1917). Com efeito, foi Bolzano que falou da
Terceira parte - f & n o m a n o \ o g ia, É £xisten cia!ism o, -H e rm en ê u tica

"proposição em si", da verdade em si ou do conteúdo lógico de uma proposição,


prescindindo do fato de que esta seja ou não seja expressa ou crida. E, por sua
vez, Brentano sustentara que a intencionalidade é a característica que tipifica os
fenômenos psíquicos: estes se referem sempre a outro.

;A fenomenologia: aproximação da epoché, o resíduo fenome-


nológico — como o chamaria Husserl —,
um método para
na consciência: a existência da consciência
própr'
“voltar às próprias coisas” é imediatamente evidente.

y \ fenomenologia
Escreve Heidegger em Ser e tempo: “ A
expressão ‘fenomenologia’ significa, antes é descrição
de mais nada, um conceito de método [...]. das essências eidéticas
O termo expressa um lema que poderia ser
assim formulado: voltemos às próprias coi­
sas! E isso em contraposição às construções A partir dessa evidência, os fenome­
desfeitas no ar e às descobertas casuais, em nólogos pretendem descrever os m odos
contraposição à aceitação de conceitos só típicos como as coisas e os fatos se apre­
aparentemente justificados e aos problemas sentam à consciência. E esses modos típicos
aparentes que se impõem de uma geração à são precisamente as essências eidéticas. A
outra como verdadeiros problemas” . fenomenologia não é ciência de fatos, e sim
Portanto, a palavra de ordem da feno­ ciência de essências. Para o fenomenólogo
menologia é a do retorno às próprias coisas, não interessa a análise desta ou daquela
indo além da verbosidade dos filósofos e de norma moral, porém compreender por que
seus sistemas construídos no ar. M as como esta ou aquela norma são normas morais e
se fará para construir uma filosofia que se não, por exemplo, normas jurídicas ou re­
sustente? Para cumprir essa tarefa, é preciso gras de comportamento. Da mesma forma,
partir de dados indubitáveis para com base o fenomenólogo não se interessará (ou, pelo
neles construir depois o edifício filosófico. menos, não se interessará principalmente) em
Em suma, procuram-se evidências estáveis examinar os ritos e os hinos desta ou daquela
para colocar como fundamento da filosofia: religião; ao contrário, ele se interessará por
“ sem evidência não há ciência” , dirá Husserl compreender o que é a religiosidade, ou seja,
nas Pesquisas lógicas. Os limites da evi­ o que transforma ritos e hinos tão diferentes
dência apodítica representam os limites de em ritos e hinos “ religiosos” . Naturalmente,
nosso saber. Assim, é preciso buscar coisas o fenomenólogo também produzirá análises
manifestas, fenômenos tão evidentes que mais específicas sobre o que caracteriza es­
não possam ser negados. sencialmente, por exemplo, o pudor, a santi­
Essa, portanto, é a intenção de fundo da dade, o amor, a justiça, o remorso ou os tipos
fenomenologia, intenção que os fenomenó- de sociedade, mas, em todo caso, sua ciência
logos procuram realizar através da descrição é precisamente ciência de essências.
dos “ fenômenos” que se anunciam e se apre­ Tais essências se tornam objeto de
sentam à consciência depois de feita a epo- estudo se o pesquisador, estabelecendo-se
ché, isto é, depois de postos entre parênteses na atitude de espectador desinteressado,
as nossas persuasões filosóficas, os resultados liberta-se das opiniões preconcebidas e, sem
das ciências e as convicções engastadas na­ se deixar envolver pela banalidade e pelo ób­
quela nossa atitude natural que nos impõe a vio, saiba “ ver” e consiga intuir (e descrever)
crença na existência de um mundo de coisas. aquele universal pelo qual um fato é aquilo e
Em outros termos, é preciso suspender não outra coisa. N ós distinguimos um texto
o juízo sobre tudo o que não é apodítico mágico de um texto científico, mas como
nem objeto de controvérsia até se conseguir conseguimos fazê-lo senão porque utiliza­
encontrar aqueles “ d ad o s” que resistem mos discriminantes essenciais, senão porque,
aos reiterados assaltos da epoché. E os talvez até sem termos consciência disso,
fenomenólogos encontram esse ponto de sabemos o que é magia e o que é ciência?
'
Capítulo x.
deciwiO - ££dmund tHusserl e o movimerv+o fenom enológico
177
____

Como podemos dizer que este é um ato de dizer kantianamente o que está na nossa
simpatia, aquele um gesto de ira, este outro consciência enquanto algo independente
um comportamento desesperado ou aquele da sensibilidade e, portanto, a priori, mas
outro ainda um comportamento de santida­ funcionalmente ordenado para a “ constitui­
de, se não houvesse precisamente essências, ção” da experiência). Scheler, por seu turno,
dirigirá sua análise para os valores objetivos
ou seja, idéias essenciais, de simpatia, de ira,
de desespero ou de santidade? hierarquicamente ordenados que se impõem
Eis, portanto, o que a fenomenologia à intuição emocional, como a luz para os
pretende ser: ciência fundamentada esta- olhos e o som para o ouvido.
velmente, voltada à análise e à descrição Até aqui, citamos Husserl e Scheler.
das essências. Com base nisso, podemos M as o movimento fenomenológico é uma
compreender como a fenomenologia se dis­ vasta e articulada corrente de pensamento,
tingue da análise psicológica ou da análise da qual se destacam as concepções ontoló-
científica. Diferentemente do psicólogo, o gica e ética de Nicolai Hartmann, o pensa­
fenomenólogo não manipula dados de fato, mento de Heidegger, as análises de Sartre,
mas essências; não estuda fatos particulares, de Merleau-Ponty e de G. Mareei, as idéias
senão idéias universais; não se interessa pelodo materialista dialético Tran Duc Tao, além
com portam ento m oral desta ou daquela dos trabalhos dos discípulos ou seguidores
pessoa, mas pretende conhecer a essência de Husserl, como E. Conrad-M artius, E.
da moralidade e talvez ver se a moral é ou Finck, E. Stein, A. Reinach, L. Landgrebe,
não fruto de ressentimento. Alexander Pfãnder, Oscar Becker e Moritz
Geiger. Deve-se dizer ainda que a influência
dos fenomenólogos sobre a psicologia, a
antropologia, a psiquiatria, a filosofia moral
V i^eção idealista
e a filosofia da religião foi e continua sendo
e direção realista notável. Por isso, é doravante reconhecido
da fenomenologia que o movimento fenomenológico constitui
um acontecimento decisivo no âmbito da
filosofia contemporânea.
O fenomenólogo, em suma, cumpre
tarefas bem diferentes das dos cientistas. A v

consciência é “ intencional” , é sempre cons­ g||lU y \s origens


ciência de alguma coisa que se apresenta de da fenomenologia
modo típico: a análise desses modos típicos
é precisamente a função do fenomenólogo,
que se pergunta e indaga sobre o que a cons­ E U B o lz a n o e o v a lo r IÓ0 Íco-obje+ivo
ciência transcendental entende por amor, d a s “ p r o p o s iç õ e s "
percepção, religiosidade, justiça, comuni­
dade, simpatia, e assim por diante. A fenomenologia nasce com Husserl
N esse ponto, a fenom enologia p o ­ — e veremos adiante — como polêmica
dia tomar duas direções: a idealista ou a antipsicologista. Uma das idéias funda­
realista. Os significados ou essências dos mentais de Husserl e da fenomenologia é
objetos, das instituições e dos valores são a da intencionalidade da consciência. Foi
constituídos e postos pela consciência, ou precisamente em relação a esses dois núcleos
o olhar do teórico desinteressado os intui problemáticos que Husserl se inspirou em
enquanto dados objetivos? É aqui que diver­ dois pensadores de nível notável, isto é,
gem, por exemplo, os caminhos de Husserl Bernhard Bolzano e Franz Brentano.
e de Scheler: Husserl, sobretudo o último Bolzano (1781-1848), matemático e
Husserl, tomará o caminho do idealismo. filósofo, padre católico e professor de filoso­
Assim, o pensador que estabeleceu como fia da religião na Universidade de Praga até
programa da fenomenologia o do retorno 1819 (ano em que foi afastado da cátedra
às próprias coisas, no fim se encontrará e suspenso a divinis), nos deixou duas im­
com a realidade única que é a consciência: portantes obras: Os paradoxos do infinito
a consciência transcendental, que nulla re (escritos em 1847-1848, mas publicados só
indiget ad existendum e que “ constitui” em 1851), e a Doutrina da ciência (1837). O
os significados das coisas, das ações, das primeiro trabalho exerceu influência notável
instituições e o sentido do mundo (atente-se sobre a história do pensamento matemático.
para o fato de que, aqui, transcendental quer Já o segundo elabora a doutrina da “ pro­
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia , (Sjd s+en cialism o/ •H erm enêutica

posição em si” e da “ verdade em si” . A professor na Universidade de Viena, viveu


proposição em si é o puro significado lógico longamente em Florença e morreu em Zuri­
de um enunciado, não dependendo do fato que. Escreveu muito sobre Aristóteles (A psi­
de ele ser expresso ou pensado. Já a verdade cologia de Aristóteles, 1867; O cristianismo
em si é dada por qualquer proposição válida, de Aristóteles, 1882; Aristóteles e sua visão
seja ou não expressa ou pensada. Assim, a do mundo, 1911; A doutrina de Aristóteles
validade de um princípio lógico, como o da sobre a origem do espírito humano, 1911);
não-contradição, permanece tal tanto se o todavia, sua obra de maior sucesso foi A psi­
pensarmos ou não, tanto se o expressarmos cologia do ponto de vista empírico (1874).
com palavras ou por escrito, como se não o É nesta última obra que Bretano afirma o
expressarmos. As proposições em si podem caráter intencional da consciência. N a es-
derivar uma da outra e podem entrar em colástica, intentio significava o conceito en­
contradição: elas são parte de um mundo quanto indica algo diferente de si. Segundo
lógico-objetivo e são independentes das Brentano, precisamente, a intencionalidade
condições subjetivas do conhecer. é o que tipifica os fenômenos psíquicos,
que sempre se referem a algo diferente de si
próprio. Eles se distinguem em três classes
E E 9 B re n ta n o fundamentais, que são a representação, o
e a in ten cio n a lid a d e d a c o n s c iê n c ia juízo e o sentimento. N a representação, o
objeto é puramente presente; no juízo, ele
Brentano (1838-1917), também padre é afirmado ou negado; no sentimento, ele é
católico que depois abandonou a Igreja, foi amado ou odiado.

Franz Brentano (1838-1917).


Seu ensinamento influenciou
Edmund Husserl.
Capítulo décimo - <£J m u K \d H u s s e r l e o m ovim ento f-enom enoiógico

II. € A mu nd 'Husserl

• Edmund Husserl (1859-1938) primeiro estudou matemática


em Berlim, e depois seguiu as aulas de Brentano em Viena. Foi Husserl:
professor de filosofia em Gõttingen e sucessivamente em Friburgo, o filósofo
que criou a
onde - sendo judeu - foi-lhe proibido pelos nazistas de continuar
fenomenologia
em sua atividade didática.
-»S7
Husserl é o criador da fenomenologia. Entre suas obras é
preciso lembrar: Pesquisas lógicas (1901); Filosofia como ciência
rigorosa (1911); Idéias para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomeno-
lógica (1913); Meditações cartesianas (1931); póstuma, em 1950, apareceu A crise
das ciências européias e a fenomenologia transcendental. Entre os discípulos de
Husserl devemos citar Heidegger e Edith Stein.

• Husserl está persuadido de que o conhecimento começa com a experiência de


coisas concretas existentes, de fatos, de fatos contingentes, que se nos apresentam
aqui e agora. Mas quando um fato se apresenta à consciência, nós no fato capta­
mos sempre uma essência. Vemos esta cor, que é um caso particular da essência
cor; ouvimos este som, que é um caso particular da essência som.
As essências são os modos típicos do aparecer dos fenômenos à jntujCã
consciência. E essências que não se obtêm por abstração - como Cética ° •
sustentariam os empiristas -; elas são muito mais resultados da -+ § 2-4
intuição eidética ou intuição da essência. Os fatos particulares,
em suma, são casos de essências eidéticas: não abstraímos a idéia
ou essência de triângulo da comparação de mais triângulos; mas este, aquele e
aquele outro são todos triângulos porque casos particulares da idéia de triângulo.
As essências eidéticas são, portanto, universais, conceitos que a consciência intui
quando os fenômenos a ela se apresentam; e são exatamente estes universais ou
objetos ideais que permitem o reconhecimento, a classificação e a distinção dos
fatos particulares. E nisso consiste a redução eidética, na intuição das essências,
quando na descrição dos fenômenos que aparecem à consciência conseguimos
colher seu aspecto invariável entre as diversas variações das propriedades.
Devemos notar que o fenomenólogo não trabalha apenas sobre fatos per-
ceptivos (cores, sons, rumores) ou sobre fenômenos como a simpatia, o pudor, o
ressentimento ou o amor; o fenomenólogo explora e descreve também as que
Husserl chama de ontologias regionais, como o âmbito da moralidade ou da reli­
gião. Assim, Max Scheler trará contribuições para a fenomenologia dos valores; e
Rudolf Otto, por sua vez, procurará captar aquilo que tipifica a experiência religiosa
ou experiência do sagrado.

• A fenomenologia é, portanto, ciência das essências, dos modos típicos do


aparecimento e da manifestação dos fenômenos à consciência, cuja característica
fundam ental é a intencionalidade. Isto quer dizer que nossos atos psíquicos se
referem sempre a um objeto. Mas o que a consciência nos oferece de indubita­
velmente evidente e sobre o qual construir um edifício estável
de teoria filosófica? É aqui que Husserl dispara a epoché: põe a epoché
entre parênteses as convicções científicas ou filosóficas e as do fenomenológica
senso comum (como a tranqüila crença de que exista um mundo §5
exterior à consciência) que não resistem à dúvida, aos assaltos da
epoché, que não exibem a marca de uma indubitável certeza. O fenomenólogo
põe entre parênteses estas crenças, e isso no sentido de que como filósofo não
pode partir delas; não pode partir nem das doutrinas filosóficas, nem das teorias
científicas, nem das crenças mais consolidadas do senso comum; ele não pode pôr
essas idéias, teorias e crenças como base de uma filosofia rigorosa, porque seriam
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia , Ê x is te n c ia lis m o , H e r m e n ê u tic a

pontos de partida frágeis. Para Husserl, aquilo que não pode ser posto entre pa­
rênteses, aquilo que resiste aos ataques da epoché é unicamente a consciência, a
subjetividade. A consciência é a realidade mais evidente; é a realidade que nulla
re indiget ad existendum (= não precisa de nada para existir). O mundo é "cons­
tituído" pela consciência.

• Mas uma consciência tornada mais aguda e hábil pela prática da descrição
fenomenológica não poderá aceitar o naturalismo e o objetivismo, ou seja, a
pretensão de que a verdade cientifica seria a única verdade e o
As meras mundo descrito pelas ciências seria a verdadeira realidade.
ciências De tal pretensão Husserl traça a história, começando por
de fatos criam Galileu e Descartes; e afirma: "Na miséria de nossa vida [...] esta
meros homens ciência nada tem a nos dizer. Ela exclui de início os problemas
de fato 0
q ue sg os m a js agudos para o homem, o qual, em nossos tem-
56 pos atormentados, sente-se à mercê do destino; os problemas do
sentido e do não-sentido da existência humana". Escreve ainda
Husserl: "As meras ciências de fatos criam meros homens de fato". A filosofia re­
conhece a função da ciência e da técnica, mas é justamente a filosofia - comenta
Enzo Paci - que tem a função "de libertar a história da fetichização da ciência e
da técnica".

Vida e ob^as Dessa grande m assa de manuscritos


foram extraídos vários livros, o mais co­
nhecido e importante dos quais é A crise
Husserl nasceu em Prossnitz (na Mo-
rávia), em 1859. Estudou mal£mática em
Berlim, onde seguiu os cursos de álgebra de
Weierstrass. Laureou-se em 1883 com uma
tese sobre o cálculo das variações. Em Vie­
na, seguiu as aulas de Brentano. Em 1891,
publicou a Filosofia da aritmética.
Livre-docente em Halles em 1887, foi
nom eado professor de filosofia em Gõt-
tingen em 1901. Neste ano apareceram as
Pesquisas lógicas. E de 1911 A filosofia
como ciência rigorosa; e Idéias para uma
fenomenologia pura e uma filosofia feno­
menológica é de 1913.
Em 1916 passou a ensinar em Friburgo,
onde permaneceu até 1928, ano em que foi
posto de licença. Como emérito, não pôde
prosseguir sua atividade didática porque,
sendo judeu, foi obstaculizado pelo regime
nazista. A lógica form al e a lógica transcen­
dental é de 1929. Em 1931 foram publicadas
suas conferências parisienses, sob o título de
Meditações cartesianas.
Morreu em 1938. Ao morrer, Husserl
deixou grande quantidade de inéditos (cerca
de quarenta e cinco mil páginas esteno-
grafadas), que, salvas com grande esforço Edmund Husserl (1859-1938)
durante a guerra pelo padre belga Hermann foi o fundador da fenomenologia,
van Breda, constituem agora o “ Arquivo uma das correntes de pensamento
Husserl” de Louvain. que teve maior difusão em nossa época.
'
Capitulo ' •
decimo - é^dm und "H usserl Í’ o m ovim ento fe n o m e n o ló g ic o
181

das ciências européias e a fenomenologia E o conhecimento das essências não é


transcendental, publicado em 1950, mas conhecimento mediato, obtido, como se re­
escrito em 1935-1936. pete, por meio da abstração ou comparação
de vários fatos: para comparar vários fatos,
é preciso já ter captado uma essência, isto é,
y \ intuição aidética um aspecto pelo qual eles são semelhantes.
O conhecimento das essências é uma
intuição. E uma intuição diferente daquela
As proposições universais e necessárias que nos permite captar os fatos particu­
são condições que tornam possível uma lares. É a ela que Husserl chama intuição
teoria, sendo diferentes das proposições eidética ou intuição da essência (Wesen,
obtidas indutivamente da experiência. N a eidos). Trata-se de conhecimento distinto do
base desses dois tipos de proposições, Hus­ conhecimento do fato. Os fatos particulares
serl distingue entre intuição de um dado de são casos de essências eidéticas.
fato e intuição de uma essência. Essas essências eidéticas, portanto, não
Husserl está persuadido de que nosso são objetos misteriosos ou evanescentes.
conhecimento começa com a experiência, E verdade que só os fatos particulares são
ou seja, com a experiência de coisas exis­ reais, e que os universais não são reais como
tentes, de fatos. A experiência nos oferece os fatos particulares. Os universais, isto é,
continuamente dados de fato, os dados de as essências, são conceitos, ou seja, objetos
fato com os quais nos vemos às voltas na ideais que, porém, permitem classificar, re­
vida cotidiana, e dos quais a ciência também conhecer e distinguir os fatos particulares,
se ocupa. Um fato é o que acontece aqui e dos quais a consciência, quando eles se lhe
agora; um fato é contingente, podendo ser apresentam, reconhece o hic et nunc, mas
ou não ser. Este som de violino poderia até também o quid.
não existir, por exemplo.
M as, quando um fato (este som, esta
cor etc.) se nos apresenta à consciência,
Ontologias regionais
juntam ente com o fato captam os uma
essência (o som, a cor etc.). N as ocasiões e ontologia formal
mais díspares, podemos ouvir os sofis mais
diversos (clarim, violino, piano etc.), mas
neles reconhecemos algo de comum, uma A fenomenologia pretende ser ciência
essência comum. N o fato sempre se capta de essências e não de dados de fato. Ela é
uma essência. O individual se anuncia para fenômeno-logia, ou seja, “ ciência dos fenô­
a consciência através do universal. Quando menos” , mas seu objetivo é o de descrever
a consciência capta um fato aqui e agora, os modos típicos com os quais os fenôme­
ela capta também a essência, o quid desse nos se apresentam à consciência. E essas
fato particular e contingente que é caso modalidades típicas (pelas quais este som
particular: esta cor é caso particular da es­ é um som e não uma cor ou um ruído, ou
sência “ cor” , este som é caso particular da pelas quais este desenho é de um triângulo
essência “ som ” , este ruído é caso particular e não de outra coisa) são precisamente as
da essência “ ruído” etc. essências.
As essências, portanto, são os modos A fenomenologia, portanto, é ciência de
típicos do aparecer dos fenômenos. E não é experiência, não, porém, de dados de fato.
que nós abstraiamos as essências da compa­ Os objetos da fenomenologia são as essên­
ração de coisas semelhantes, como queriam cias dos dados de fato, são os universais que
os empiristas, uma vez que a semelhança a consciência intui quando os fenômenos a
já é essência. N ão abstraímos a idéia ou ela se apresentam. E nisso consiste a redu­
essência de “ triângulo” da comparação de ção eidética, isto é, a intuição das essências,
muitos triângulos: o que ocorre é que este, quando, na descrição do fenômeno que se
esse e aquele são triângulos porque são apresenta à consciência, sabemos prescindir
casos particulares da idéia de triângulo. dos aspectos empíricos e das preocupações
Este triângulo isósceles desenhado no qua- que nos ligam a eles.
dro-negro existe aqui e agora, com estas Nesse sentido, as essências são inva­
dimensões e não outras. Esse é um dado riáveis. E são obtidas através do que, nos
de fato particular. M as nele captamos uma escritos póstumos de Husserl, denomina-se
essência. “método da variação eidética” . Toma-se
Terceira parte Fenome-nologia, Êxiste.ncialismo, H erm enêutica

determinado exemplo de um conceito que A consciência, com efeito, é sempre


se quer explicar e depois, pouco a pouco, consciência de alguma coisa. Quando eu
se introduzem variações nas propriedades, percebo, imagino, penso ou recordo, eu
as quais são submetidas a variações até se percebo, imagino, penso ou recordo algu­
chegar a um ponto em que não se pode ma coisa. Por isso se pode ver, diz Husserl,
mais variar, caso contrário já não se estaria que a distinção entre sujeito e objeto dá-se
tratando do mesmo conceito. imediatamente: o sujeito é um eu capaz de
É óbvio que essas essências não existem atos de consciência como perceber, julgar,
somente no interior do mundo perceptivo: imaginar e recordar; o objeto, ao contrário,
fatos como recordações, esperanças ou dese­ é o que se manifesta nesses atos, ou seja,
jos também têm sua essência, isto é, se apre­ corpos percebidos, imagens, pensamentos,
sentam à consciência de modo típico. Além recordações.
disso, a distinção entre o fato (que é um isto) Por isso, devemos distinguir ainda o
e uma essência (que é um quid) permite a aparecer de um objeto do objeto que apa­
Husserl justificar a lógica e a matemática. As rece. E se é verdade que conhecemos o que
proposições lógicas e matemáticas são juízos aparece, para Husserl também é verdade
universais e necessários porque são relações que vivemos o aparecer do que aparece.
entre essências. E sendo relações entre essên­ Husserl chama de noese o ter consciência,
cias, as proposições lógicas e matemáticas e noema aquilo de que se tem consciência.
não recorrem à experiência como fundamen­ E entre os diversos noemas, como sabemos,
to de sua validade. Há mais, porém. O fato Husserl distingue claramente os fatos das
de a consciência poder efetivamente referir- essências.
se a essências ideais não legitima somente A consciência, portanto, é intencional.
uma análise dos modos típicos em que se Como escreve Husserl, “ a intencionalidade
apresentam os fenômenos perceptivos, nem é o que caracteriza a consciência de modo
apenas a distinção das proposições lógicas e significativo” . N ossos atos psíquicos têm
matemáticas das propriedades das ciências a característica de se referirem sempre a
empíricas; o fato da referência às essências um objeto, pois sempre fazem aparecer
ideais abre à fenomenologia a exploração e objetos.
a descrição do que Husserl chama de “ on­ Entretanto, deve-se notar que, em Hus­
tologias regionais” . serl, o caráter intencional da consciência, em
Nesse sentido, “ regiões” são a natu­ si mesmo, não implica concepção realista.
reza, a sociedade, a moral e a religião. O Em outros termos: a consciência refere-se a
estudo dessas ontologias regionais se propõe outra coisa; isto, porém, não significa que
captar e descrever as essências, isto é, as essa outra intencionalidade da consciência
modalidades típicas com que aparecem à deixa pendente a controvérsia entre realismo
consciência os fenômenos morais, por exem­ e idealismo.
plo, ou os fenômenos religiosos. Nessa linha, O que importa, no entanto, é descrever
M ax Scheler dará contribuições importantes o que efetivamente se dá à consciência, o
à fenomenologia dos valores, e Rudolf Otto que nela se manifesta e nos limites em que
procurará captar o que tipifica a experiência se manifesta. E o que se manifesta e aparece
religiosa ou experiência do sagrado. A essas é o fenômeno, em que por “ fenômeno” não
ontologias regionais, Husserl contrapõe a devemos entender a “ aparência” contrapos­
ontologia formal, que depois identifica com ta à “ coisa em si” : eu não ouço a aparência
a lógica. de uma música, eu escuto a música; eu não
sinto a aparência de um perfume, eu sinto
o perfume; nem tenho a aparência de uma
recordação, eu tenho uma recordação.
Conseqüentemente, o “ princípio de todos
A " * W e n c io ^ lid a d e os princípios” , enunciado por Husserl, é
da consciência o seguinte: “ Toda intuição que apresenta
originariamente alguma coisa é, por direito,
fonte de conhecimento; tudo aquilo que se
A fenomenologia, portanto, é ciência apresenta a nós originariamente na intuição
das essências, isto é, dos modos típicos do (que, por assim dizer, se nos oferece em carne
aparecer e do manifestar-se dos fenômenos à e osso) deve ser assumido assim como se
consciência, cuja característica fundamental apresenta, mas também apenas nos limites
é a da intencionalidade. em que se apresenta” . 8ESÍ31TT1
Capitulo décimo - ■Husserl e o m ovim ento f-enom enológico

justamente suspender o juízo em primeiro


ou redução j-enomenológica
lugar sobre tudo aquilo que nos dizem
as doutrinas filosóficas com seus debates
metafísicos, depois igualmente sobre tudo
Mediante o princípio acima menciona­ o que nos dizem as ciências, sobre aquilo
do, Husserl pensava fundamentar a fenome­ que cada um de nós afirma e pressupõe na
nologia como ciência rigorosa, como ciência vida quotidiana, isto é, sobre as crenças
voltada para as coisas, para as próprias que compõem aquilo que Husserl chama de
coisas; uma ciência que está voltada para ver atitude natural.
como são as coisas. Z u den Sachen selbst! A atitude natural do homem é feita de
(“ vam os às co isas!” ) torna-se o lema da persuasões variadas, úteis e necessárias à
fenomenologia. E é precisamente a fim de ir vida cotidiana. E a primeira dessas persua­
às coisas, às coisas em carne e osso, ou seja, sões é a de que vivemos em um mundo de
a fim de encontrar pontos sólidos e dados coisas existentes. Essas persuasões, porém,
indubitáveis, coisas tão manifestas a ponto não possuem evidência constritiva e, conse­
de não poderem ser postas em dúvida e so­ qüentemente, devem ser postas entre parên­
bre as quais poder fundar uma concepção teses. N ão é que o filósofo duvide delas: ele
filosófica consistente, que Husserl propõe a muito mais as põe fora de uso, não as uti­
epoché ou redução fenomenológica, como lizando como fundamento de sua filosofia,
método da filosofia. Epoché (que é a transli- uma vez que, se a filosofia quer ser ciência
teração do termo usado pelos céticos gregos rigorosa, deve pôr como seu fundamento
para indicar a suspensão do juízo) significa apenas o que é indubitavelmente evidente.
Por conseguinte, da minha persuasão de que
o mundo existe, eu não devo deduzir nenhu­
ma proposição filosófica, pelo motivo de que
a existência do mundo, fora da consciência
que a percebe, não é de modo nenhum in-
dubitável. Como homem, o filósofo crê na

I
- Epoché. É um termo grego que quer I
dizer "suspensão do consentimento": ; existência do mundo e, ainda como homem,
não pode deixar de crer em muitas outras
k suspensão do consentimento ou do coisas na vida prática, mas, como filósofo,
| juízo típica da atitude do ceticismo ■ ele não pode partir delas. E não pode partir
| antigo e, particularmente, de Pirro. ■ tampouco dos resultados da pesquisa cien­

I
* Dentro do pensamento contemporâ- ; tífica, em virtude do fato de que, embora
neo, a epoché é conceito fundamen- procedendo crítica e rigorosamente no seu
I tal da fenomenologia de Husserl. i âmbito, as ciências interpretam, aceitando-

I1
" A epoché é a suspensão, a colocação ; os “ ingenuamente” , os dados da experiência
entre parênteses, das convicções ; comum, sem se perguntar se eles resistem à
| científicas ou filosóficas, ou também í pressão da epoché, ou seja, se são realidades
| das crenças do senso comum que : indubitáveis.
não resistem à dúvida, que não são i
Portanto, nem as doutrinas filosóficas,
I indubitáveis, que não exibem a marca j
I da certeza incontestável. Tais idéias j nem os resultados da ciência, nem as cren­
I e crenças atacáveis pela dúvida são ças da atitude natural, até as mais óbvias,
I colocadas entre parênteses no senti- podem constituir pontos de partida indubi­
í do de que uma filosofia rigorosa não ■ táveis, que são precisamente aquilo de que
necessita a filosofia concebida como ciência
I
pode basear-se sobre elas.
: Em cada caso, o procedimento da epo- rigorosa. Todas essas crenças, pois, devem
ser postas entre parênteses.
: ché entra em função com o objetivo 5 M as existe alguma coisa da qual não se
I de atingir uma fonte de certeza qual- : possa duvidar e que não se deixa pôr entre
| quer. E isso Husserl encontra na cons- i parênteses? Se existe, o que é isso que pode
| ciência, na subjetividade. A consciên- í resistir à epoché? Pois bem, para Husserl, o
| cia não pode ser posta entre parênte- ; que resiste aos ataques da epoché, ou seja,
| ses. Sua existência brilha com a mais 5 o que não se pode pôr entre parênteses, é
| inabalável evidência. Ela é a realidade ;
| que nulla re in d ig e t ad existendum |
a consciência ou subjetividade. Aquilo cuja
existência é absolutam ente evidente é o

I
f (= não precisa de nada para existir); f
a consciência "constitui" o mundo. | cogito com seus cogitata, a consciência à
qual se manifesta tudo aquilo que aparece.
Terceira purte - F e n o m e n o lo g ia , E x is te n c ia lis m o , "H erm en êu tica

A consciência, portanto, é o resíduo feno­ E Husserl traça a história dessa preten­


menológico que resiste aos continuados são e dessa idéia, a começar por Galileu e
assaltos da epoché. Descartes. M as, escreve ele, “ na miséria de
M as a consciência, prossegue Husserl, nossa vida [...] tal ciência não tem nada a
não é apenas a realidade mais evidente, e nos dizer. Em princípio, ela exclui aqueles
sim também realidade absoluta, é o funda­ problemas que são os mais candentes para
mento de toda realidade, é aquela realida­ o homem, o qual, em nossos tempos ator­
de que nulla re indiget ad existendum. O mentados, sente-se à mercê do destino; os
mundo, diz Husserl, é “ constituído” pela problemas do sentido e do não-sentido da
consciência..........
Texto existência humana em seu conjunto” . N a
opinião de Husserl, em sua generalidade e
em sua necessidade, esses problemas exigem
crise solução racionalmente fundada. Eles “ con­
cernem ao homem em seu comportamento
das ciências européias
diante do mundo circundante, humano e
e o “m u n d o da vida” extra-humano, o homem que deve escolher
livremente, o homem livre de plasmar-se a si
mesmo e ao mundo que o circunda” . Então
Em 1954, apareceu postumamente A Husserl pergunta: “ O que tal ciência tem
crise das ciências européias e a fenomeno­ a dizer sobre a razão e sobre a não-razão,
logia transcendental. Esta é a última obra o que tem ela a dizer sobre nós, homens,
de fôlego de Husserl, na qual trabalhou até enquanto sujeitos dessa liberdade? Obvia­
próximo da morte. mente, a mera ciência de fatos não tem nada
A crise das ciências, obviamente, não a nos dizer a esse respeito: ela, precisamente,
é a crise de sua cientificidade, e sim crise do abstrai de qualquer sujeito” .
que elas, as ciências em geral, têm significado O drama da época moderna é o drama
e podem significar para a existência humana. que começou com Galileu: ele recortou do
Escreve Husserl: “ A exclusividade com que, m undo-da-vida a dimensão físico-mate-
na segunda metade do século XIX, a visão de m ática, que depois passou a ser consi­
conjunto do mundo do homem moderno se derada como vida concreta. “ Galileu vive
deixou determinar pelas ciências positivas, na ingenuidade da evidência apodítica” .
e com que se deixou deslumbrar pela ‘pros- Naturalmente, a filosofia reconhece a fun­
perity’ que daí derivava, significou o afas­ ção da ciência e da técnica, m as, como
tamento dos problemas decisivos para uma escreve Enzo Paci, a função da filosofia “ é
autêntica humanidade. As meras ciências de a de libertar a história da fetichização da
fatos criam meros homens de fato” . ciência e da técnica” . Vista desse modo, “ a
O objeto da crítica de Husserl são o natu­ fenomenologia é filosofia primeira que se
ralismo e o objetivismo, a pretensão pela qual liberta da clausura do mundo, anulando-o,
a verdade científica é a única verdade válida, para descobrir na humanidade a liberdade
e a idéia a ela ligada de que o mundo descrito de se transcender em direção a novos ho­
pelas ciências seria a verdadeira realidade. rizontes ” . «asam
C ã p l t u l o d é c if H O - Ê d m im d ■Husserl e o m ovim ento fa v \o m e .n o \ó c ) \c o

III. jK\c\x S>c\\e .ler

• Autor de obras ricas de idéias estimulantes (O ressentimento na edificação


das morais, 1912; O eterno no homem, 1921; As formas do saber e a sociedade,
1926; Essência e formas da simpatia, 1923), Max Scheler (1875­
1928), em sua obra mais conhecida O formalismo na ética e a ética Também
m aterial dos valores (aparecida entre 1913 e 1916 no "Jahrbuch" a ética de Kant
- "Anuário" - de Husserl), propõe uma concepção da ética decisi- nasce d?
vãmente contrária à de Kant. A ética de Kant diz "Tu deves porque ressentimento
deves", mas a ordem não é justificada: a ética imperativa de Kant s
é arbitrária; é também uma ética do ressentimento, onde, em
nome do dever, se esteriliza e se bloqueia a plenitude e a alegria da vida. Scheler
afirma que o conceito fundamental da ética não é o dever, e sim o valor.

• Kant, em sua opinião, não teria feito a distinção entre bens e valores; bem,
por exemplo, é uma máquina, valor é sua utilidade; bem é uma lei, valor sua jus­
tiça. Os bens são fatos; os valores são essências. As proposições éticas são de fato
necessárias e universais - referem-se, de fato, a essências - , mas
não formais; elas são materiais, e as matérias sobre as quais ver- a ética
sam tais essências são constituídas por valores: valores religiosos material
(sacro-profano), valores estéticos (belo-feio), valores especulativos dos valores
(verdadeiro-falso), valores jurídicos (justo-injusto) etc. Valores que - ^§2
o homem não deve produzir, mas apenas reconhecer e descobrir. E
os descobre por meio de uma intuição emotiva. Diz Scheler que é um preconceito
negar a intencionalidade do sentimento, sua capacidade de ver essências e captar
valores. Há, em suma, uma ordre de coeur, como pensava Pascal.

• Sobre a base desses pressupostos Scheler constrói uma antropologia per­


sonalista, da qual emerge um sujeito como ser espiritual e como pessoa. Ser es­
piritual, porque capaz "de se desvincular do poder e da ligação
com a vida"; e pessoa, porque centro de atos intencionais. E a a "pessoa"
pessoa entra em relação com o "eu do outro" de várias formas, nas várias
que são: a massa (que nasce do contágio emotivo), a sociedade formas
(que surge do contrato), a comunidade vital ou nação, a comu- das relações
nidade jurídico-cultural (Estado, escola, círculo), e a Igreja, que é interpessoais
comunidade de amor. É a simpatia o fundam ento autêntico das § 3~4
relações interpessoais; e os limites da simpatia - devidos ao fato
de que se experimenta simpatia por aquele que pertence à minha nação, à mi­
nha fam ília etc. - são superados, afirma Scheler em Essência e forma da simpatia,
apenas pelo amor.

• A respeito da relação do homem com Deus, Scheler afirma que o sagrado é


imediatamente percebido no sentimento de criaturalidade típico da experiência
religiosa: a revelação do sagrado é graça, à qual o homem responde com a fé.
Não devemos pensar que o saber científico possa negar o saber
religioso ou saber-de-salvação. Uma religião - e esta é uma tese Não há
sustentada na Sociologia do saber (1926) - pode entrar em conflito contraste
com outra religião ou com uma metafísica, mas não com a ciência, entre saber
E devemos salientar que o monoteísmo criacionista judaico-cristão, cientifico
tendo dessacralizado o mundo, tornou-o pronto para a pesquisa e d e,r~ ~
científica: "quem considera as estrelas como divindades visíveis _^'ça5vaçao
ainda não está maduro para uma astronomia científica".
Terceira parte - P e n o m e n o i o 0 Í a , é r ^ x is + e n c ia lis m o , - H e r m e n ê u t i c a

íSontra o o(*malismo objetiva. Conseqüentemente, a fim de justifi­


car as avaliações morais, é preciso definir o
kantiano
bem em relação à lei moral, que só é tal se for
universalizável. Essa ética imperativa, para
Scheler, é arbitrária. Ela diz “ tu deves por­
M ax Scheler (1875-1928) era um “ gê­ que deves” , mas a ordem não é justificada.
nio” vulcânico. Duas coisas o ligaram à fe­ E uma ética do ressentimento (e o ressenti­
nomenologia: “ a aversão pelas construções mento é a “ tensão entre o desejo e a impo­
abstratas e a capacidade de captar intuiti­ tência” ), que, em nome do dever, esteriliza
vamente a verdade da essência” . Scheler é e bloqueia a plenitude e a alegria da vida.
autor de obras cheias de idéias interessantes Para Scheler, porém, não é o dever
e novas (O ressentimento na edificação das que constitui o conceito fundamental da
morais, 1912; Crise dos valores, 1919; O ética, e sim o valor. E Kant não distinguiu
eterno no homem, 1921; A posição do ho­ os bens dos valores. Os bens são coisas que
mem no cosmo, 1928; As formas do saber e têm valor. E os valores, por seu turno, são
a sociedade, 1926; Essência e formas da sim­ essências no sentido husserliano, isto é, são
patia, 1923). M as sua obra mais conhecida é aquelas qualidades pelas quais são bens as
O formalismo na ética e a ética material dos coisas boas: por exemplo, uma máquina
valores, que apareceu pela primeira vez no é um bem, e seu valor é a utilidade; uma
“Jahrbuch” de Husserl entre 1913 e 1916. pintura é um bem, mas o é pelo valor da
Nesse trabalho, Scheler estende a aplicação beleza; um gesto é um bem, pelo valor de
do método fenomenológico ao campo da sua nobreza; uma lei é um bem, mas pelo
atividade moral. valor da justiça. Substancialmente, os bens
Scheler é adversário decidido da con­ são fatos e os valores são essências.
cepção ética kantiana. Kant pusera a questão Scheler está pronto a reconhecer os mé­
ética na alternativa entre dever e prazer. Ou ritos de Kant, que seriam: a recusa a derivar
seja, quer-se alguma coisa porque o exige a o critério da conduta moral através de uma
lei moral ou porque essa coisa causa prazer. indução a partir de fatos empíricos; o fato
M as, se aceitarmos este último caso, então de ter procurado construir uma lei moral
passa a nos faltar qualquer base de avaliação a priori universal; a negação da ética do

Max Scheler (1875-1928),


gênio filosófico autêntico,
pensador ligado
ao movimento fenomenológico,
fundador da sociologia do conhecimento,
sustentou, contra Kant,
que não é o “dever”
que constitui o conceito fundamental
da ética, e sim o “valor".
Capítulo décimo - éSdm und f l u s s e d e o m ovim ento •f-enomenológico

sucesso, e o fato de recorrer à interioridade como a lógica pura; não, porém, redutível
da lei moral. de modo algum à legitimidade típica da
Todavia, na opinião de Scheler, todos atividade intelectual” .
esses méritos se anulam pela fundamental e Aquilo que o sentimento vê são as
errada equação com a qual Kant identifica essências como valores.
a priori com formal. É precisamente contra Para tornar as coisas mais compreen­
essa identidade que se volta o pensamento de síveis, podemos dizer que possuímos um
Scheler, o qual se mantém fiel ao apriorismo instrumento inato, a intuição sentimental,
e à universalidade da norma moral, definin­ que capta os valores objetivos pelos quais
do, porém, materialmente, isto é, concreta- as coisas são bens, e que capta e reconhece
mente, a esfera dos valores. O que Scheler a hierarquia existente entre esses valores.
sustenta é a existência de proposições a Esses valores, cada um dos quais se encontra
priori (ou seja, necessárias e universais) e, encarnado em uma pessoa ou modelo-tipo,
no entanto, materiais, já que as matérias são enunciados e propostos por Scheler na
sobre as quais elas versam não são fatos, e sucessão hierárquica apresentada no quadro
sim essências, isto é, os valores. Desse modo, abaixo.
Scheler pretende chegar à fundação de uma Esse cosmo de valores e sua hierarquia
ética a priori, não form al, mas material (pela qual se vai dos valores religiosos aos
(aqui, “ material” se opõe a “ form al” ): ética sensoriais, em ordem de preferência) são
material dos valores e não dos bens. captados ou reconhecidos pela intuição ou
visão emocional, que nos põe imediatamente
em contato com o valor, independentemente
Vai ores “materiais// da vontade e do dever, condicionados e basea­
dos precisamente na intuição do valor.
N ão é verdade, por conseguinte, que
aquilo que não é racional seja sensível: há
uma atividade espiritual extra-teórica, a
O homem se encontra, portanto, cir­ intuição emocional. Em suma, existe o que
cundado por um cosmo de valores que ele Pascal chama 1’ordre du coeur.
não deve produzir, mas apenas reconhecer
e descobrir. E os valores não são objeto de
atividade teórica, e sim de uma intuição
emocional.
Scheler diz que pretender captar os va­
àm ^ Pessoa
lores com o intelecto eqüivaleria à pretensão
de ver um som. N ão passa de preconceito Essas idéias sobre os valores e sua hie­
negar a intencionalidade do sentimento, sua rarquia permitem a Scheler, por um lado,
capacidade de “ ver” essências e captar va­ refinadas análises críticas do subjetivismo
lores; trata-se de preconceito que deriva de ético no mundo moderno e delineamento
outro preconceito, segundo o qual apenas o agudo da antropologia do “ burguês” (isto é,
intelecto dá origem a atividades intelectuais. do homem ressentido e desconfiado, fanati-
Para Scheler, porém, há “ uma eterna e abso­ zado pelo valor do útil e insensível ao valor
luta legitimidade dos sentimentos, absoluta do trágico), e, por outro lado, permitem-lhe

1. valores sensoriais (alegria-tristeza, prazer-dor) gozador


2. valores da civilização (útil-danoso) técnico
3. valores vitais (nobre-vulgar) herói
4. valores culturais ou espirituais gênio
a) estéticos (belo-feio) artista
b) ético-jurídicos (justo-injusto) legislador
c) especulativos (verdadeiro-falso) sábio
5. valores religiosos (sagrado-profano) santo
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia , E x is te n c ia lis m o , 'H e r m e n ê u tica

a construção de uma antropologia persona­ sidade do outro. O amor se dirige para o


lista, da qual emerge um sujeito como ser que o outro tem de válido. Volta-se para a
espiritual e como pessoa. natureza, para a pessoa humana e para Deus,
O homem é capaz de se perguntar o para o que eles têm de outro em relação
que é uma coisa em si mesma, é capaz de àquele que ama.
captar essências, prescindindo do interesse Sobre a relação com Deus Scheler
vital que as coisas possam ter para mim ou escreveu um dos mais significativos livros
para ti. de fenomenologia da religião: O eterno no
O homem, portanto, escreve Scheler em homem.
A posição do homem no cosmo, é capaz “ de Diz ele que a primeira evidência filo­
desvincular-se do poder, da pressão, do laço sófica é a de que existe algo, ou seja, de que
com a ‘vida’ e do que lhe pertence” . E, nesse não existe o nada. E é da consciência de que
sentido, ele é um ser espiritual, não mais existe algo que nasce a estupefação diante do
ligado “ aos impulsos e ao ambiente” , tor­ ser. “ Quem não olhou no abismo do N ada
nando-se assim “ aberto ao mundo” — aliás, absoluto não se dará conta da eminente
é assim que ele “ tem um mundo” . positividade do conteúdo da intuição de que
Enquanto sujeito espiritual, o homem é existe algo e não o nada” .
pessoa, ou seja, centro de atos intencionais. A Todavia, depois dessa primeira evidên­
pessoa não é o eu transcendental, mas indiví­ cia, apresenta-se a evidência imediata de que
duo concreto, é a unidade orgânica de sujei­ existe um ser absoluto, caracterizado pela
to espiritual que se serve do corpo como de asseidade, pela onipotência e pela sacralida-
um instrumento para realizar esses valores. de. Tais características são intuídas por um
Para Scheler, a pessoa não é sujeito ato de percepção imediata, a que correspon­
que considera a natureza pragmaticamente de um sentimento de “ criaturalidade” .
apenas como objeto a dominar; quase fran- N a experiência religiosa, temos a re­
ciscanamente, a pessoa sabe se colocar na velação do sagrado. E a ela, que é graça, o
atitude extática de abertura para as coisas. homem responde com a fé.
Além disso, a pessoa está originariamente O homem só pode saber de Deus ape­
em relação com o “ eu-do-outro” . A forma nas em Deus. O Deus da religião e o salvador
mais baixa de sociabilidade é a massa, que da pessoa, conseqüentemente, também é
nasce do contágio emotivo; depois, vem a pessoa. Por tudo isso, a teologia negativa é
sociedade, que nasce do contrato social; a mais profunda e autêntica do que a teologia
ela, segue-se a comunidade vital ou nação; positiva.
depois, temos a comunidade jurídico-cul-
tural (Estado, escola, círculo) e, por fim, a
comunidade de amor, a Igreja.

4 A simpatia, o amor e a fé Em 1923, a ontologia personalista e


teísta de Scheler sofreu uma reviravolta, no
sentido de que ele orientou suas pesquisas
Em Essência e form as da sim patia, (que ficaram incompletas por sua morte
Scheler considera a simpatia como o único prematura) na direção de um panteísmo
fundamento autêntico da relação interpes­ evolucionista.
soal. A simpatia, porém, tem limites. Com A intenção de Scheler era a de construir
efeito, ela é uma forma de compreensão uma imponente “ antropologia filosófica” ,
que se tem no interior e nos limites daque­ da qual restam, como documentação, breves
las relações que nos ligam com as outras e agudos escritos. Aqui, é possível apenas
pessoas: experimento simpatia por outra acenar para a contribuição dada por Scheler
pessoa enquanto e nos limites em que ela à sociologia do conhecimento, isto é, àquele
pertence à minha nacionalidade, à minha âmbito de pesquisas relativas à influência
família, ao meu círculo de amigos, à minha dos fatores sociais sobre as produções men­
coletividade, e assim por diante. tais (filosofia, moral, direito etc.).
Só o amor, afirma Scheler, pode superar Contra o espiritualismo abstrato, Sche­
os limites com que a simpatia se defronta e ler volta sua atenção para a impotência de
instaurar uma relação de profundidade. realização dos fatores espirituais e, contra
Entretanto, mais ainda do que a sim­ o determinismo naturalista, reivindica a
patia, o amor exalta a autonomia e a diver­ autonomia e a influência do espírito. Como
Capítulo décimo - <£d mund 'H u sserl e o m ovim ento fe n o m e n o ló g ic o

quer que seja, o condicionamento social do para poder ser investigados cientificamente.
saber diz respeito, em primeiro lugar, às Escreve Scheler em Sociologia do saber:
form as do saber, que são modos de entrar “ Enquanto, para um dado grupo, a natureza
em contato com a realidade física, psíquica está cheia de forças pessoais e voluntárias,
e espiritual. divinas e demoníacas, ela é [...] exatamente
Scheler remete-se à “ lei dos três es­ ainda um ‘tabu’ para a ciência [...]. Quem
tágios” de Comte e distingue três formas considera as estrelas como divindades visí­
de saber, que, no entanto, não se sucedem veis ainda não está maduro para a astrono­
uma à outra, como queria Comte, mas são mia científica” .
co-possíveis em toda época. Tais formas de Pois bem, “ o monoteísmo criacionista
saber são as seguintes: judaico-cristão e sua vitória sobre a religião
a) O saber religioso, que diz respeito e a metafísica do mundo antigo foram, sem
à salvação definitiva da pessoa^ por meio da dúvida, a primeira possibilidade funda­
relação com o Ser supremo. E o saber-de- mental para libertar a pesquisa sistemática
salvação. da natureza. Significou libertar a natureza
b) O saber metafísico, que põe o ho­ para a ciência de uma ordem de grandeza
mem em relação com a verdade e os valores. que talvez ultrapasse tudo o que, até hoje, já
E o saber “ formativo” . ocorreu no Ocidente. O Deus espiritual de
c) O saber técnico, que permite ao ho­ vontade e de trabalho, o Criador, que não
mem a utilização da natureza e o domínio foi conhecido por nenhum grego e nenhum
sobre ela. rom ano, por nenhum Platão e nenhum
Em cada época, diz Scheler, ocorre que Aristóteles, foi [...] a maior santificação
uma forma de saber prevalece sobre as ou­ da idéia do trabalho e do domínio sobre as
tras, mas não as exclui. Para ele, o relevante coisas infra-humanas; e, ao mesmo tempo,
é a relação interfuncional que se estabelece operou o maior desânimo, mortificação,
entre cada uma dessas formas de saber e distanciamento e racionalização da natureza
certas estruturas sociais, como, por exem­ que jamais ocorreu em relação às culturas
plo, entre o realismo filosófico e a sociedade asiáticas e à antiguidade” .
feudal, entre o nominalismo e a crise do A idéia de que o criacionismo judaico-
feudalismo, entre o triunfo da burguesia e o cristão tenha mortificado, isto é, tornado
racionalismo mecanicista, entre capitalismo morta a natureza, preparando-a assim para
e positivismo, e assim por diante. a investigação científica, é hoje concepção
M as o estudo do condicionamento so­ consolidada.
cial do saber não impede Scheler de analisar Como também está consolidada outra
os laços interfuncionais entre as diversas idéia de Scheler, segundo a qual o marxismo,
form as de saber: teológico, metafísico e que tanto lutou contra o pensamento ideo­
científico. E certamente é de grande inte­ lógico, também é ideologia. Se a classe bur­
resse o estudo que Scheler realiza sobre a guesa tem seus “modos de pensar formais
relação entre o monoteísmo judaico-cristão determinados por sua posição de classe” , o
e a ciência. mesmo vale para a classe dos proletários.
A religião não tem nada a temer da Onde quer que exista interesse de classe, lá
ciência. Uma religião só pode entrar em também haverá ideologia. Sem dúvida, o so­
contraste com outra religião ou com uma ciólogo do conhecimento “ não pode deixar
metafísica, mas não com a ciência. de se dizer m arxista” . M as isso não implica
Entretanto, os âmbitos do conhecimen­ que se devam aceitar também os elementos
to humano devem perder seu caráter sacral míticos do marxismo. E fS fir n
Terceira parte - 1“e n o m e n o lo 0 Ía, (S x iste n cia lism o , -H e rm en ê u tica

IV. desenvolvimentos
d a fenomenologia

• Realista no campo gnosiológico (Princípios de uma metafísica do conheci­


mento, 1921), não reducionista no campo ontológico enquanto o plano "espiritual"
não se reduz ao "psíquico" nem este ao "orgânico", que não se reduz ao "físico"
{A construção do mundo real, 1940), Nicolai Hartmann (1882-1950)
Hartmann: em sua Ética (1926) sustentou uma posição muito próxima à de
valores Scheler: o sujeito, o homem, não cria nem estabelece os valores;
objetivos
ele os pode apenas manifestar, eles, com efeito, possuem um ser
e uma
ontologia ideal em si, da mesma forma que os entes matemáticos ou das
não essências (são universais).
reducionista As páginas mais vivas e significativas de Hartm am n são
—>§ 7 aquelas em que ele faz a análise fenomenológica das virtudes e
das paixões.

Otto
• A obra O sagrado (1917) de Rudolf O tto (1869-1937) hoje é
e o sentimento um clássico da fenomenologia da experiência religiosa.
de ser criatura A experiência religiosa ou experiência do numinoso (de
como traço numen) ou do sagrado tem, segundo Otto, um traço caracterís­
típico tico, ou seja, o sentimento de dependência, o sentimento de ser
da experiência criatura.
religiosa O homem religioso é cheio de "maravilha atônita" diante
^§2 do mistério religioso, que ele experimenta como "totalm ente
Outro".

• Edith Stein (1891-1942), de origem hebraica, foi discípula de Husserl. Tor­


nando-se irmã carmelita depois de ter recebido o batismo em 1922, foi docente
primeiro de germanismo em Spira, e sucessivamente de pedagogia
Stein: em Münster. Foi morta pelos nazistas no campo de concentração
a empatia de Auschwitz dia 9 de agosto de 1942. Em 1987, no dia 1o de maio,
como o papa João Paulo II proclamou Edith Stein "serva de Deus"; e no
conhecimento dia 11 de outubro de 1998 declarou-a "santa".
da experiência Em O problema da empatia (1916) Stein estuda a empatia
de outrem como conhecimento da experiência de outrem; e eis, em suas
-> § 3 próprias palavras, a essência do processo empático: "Em minha
experiência vivida não-originária, eu me sinto acompanhada por
uma experiência vivida originária, a qual não foi vivida por mim, embora se anuncie
em mim, manifestando-se em minha experiência vivida não-originária".

• Preocupada com as relações entre pesquisa filosófica e experiência religiosa,


entre razão e fé, em Ser finito e ser eterno (obra póstuma, 1959), Stein delineia a
tarefa do que, em sua opinião, deve ser a filosofia cristã.
Nossa razão não está em grau de nos oferecer a verdade
A filosofia última, total e definitiva; e "a tarefa mais elevada" de uma filo­
cristã sofia cristã é exatamente "a de preparar o caminho para a fé".
prepara Foi isso que santo Tomás de Aquino fez, segundo Stein, de modo
o caminho excelente.
da fé Uma envolvente descrição da experiência mística é a que
-^ § 3 nos foi deixada por Stein em sua última obra, A ciência da cruz
(póstuma, 1950).
.
Capítulo . ■
décimo ,
- (Sdmund -Husserl e o movimento |-enomenolÓ0 Íco
191

7\)icolai 'Ha r i m a n n fen om en o ló gico , e com olh ar sem pre


atento para a história da ética, sobretudo
e a análise- fenomenológico
da ética grega clássica, Hartmann escreve
dirigida páginas muito interessantes e vivas sobre
a o "ser enquanto \a\" as virtudes e as paixões, que estão entre as
páginas mais significativas, não apenas do
autor, mas também de toda a filosofia moral
À década de 1912-1921 remonta a contemporânea.
reflexão de Nicolai Hartmann (1882-1950)
sobre a fenom enologia husserliana, que KOI A p ro b lem á tica orvtológica
o ajudou a libertar-se do pressuposto do
primado da doutrina da consciência e de Hartmann aprofundou também a pro­
toda forma de subjetivismo imanentista e blemática ontológica entre 1935 e 1950.
idealista, encaminhando-o para os caminhos Sua obra em certo sentido mais significati­
da ontologia. va nesse campo é A construção do mundo
Embora possa ser enquadrado no inte­
real (1940), que apresenta ampla análise,
rior do movimento fenomenológico, H art­
por vezes muito aguda, do complexo en­
mann não pode ser “ engaiolado” nele, uma
trelaçamento das categorias do ente real,
vez que ele se subtrai a qualquer classificação
apresentado como hierarquicamente es­
demasiado rígida. Para ele, com efeito, a
truturado em quatro “ planos” : 1) o físico,
análise fenomenológica está voltada para 2) o orgânico ou vital, 3) o psicológico, 4) o
o ser como tal e não para a pura relação
espiritual.
intencional e, de todo modo, é somente o O plano inferior é condição imprescin­
momento inicial, o da constatação daquilo dível da constituição do plano superior, no
que se dá primeiramente na consciência, qual reaparecem as categorias fundamentais
de um filosofar que se desenvolve através
(além das categorias modais, também as
da identificação dos problemas (momento
“ bipolares” , como forma-matéria, quali-
aporético), para se concluir com a solução dade-quantidade, unidade-multipliciâade,
dos próprios problemas (momento teórico e assim por diante), embora mudando de
propriamente dito). A essa proposição Hart­ significado em função do novo âmbito a
mann chegou com os Princípios de uma me­ que pertencem. N essa m anifestação de
tafísica do conhecimento (1921), nos quais novidades no plano superior em relação ao
reconquista uma concepção gnosiológica inferior, constata-se a “ distância” entre os
claramente realista, que depois será apro­ dois, isto é, uma contingência no processo
fundada nos dois volumes, respectivamente de desenvolvimento, entendida como verda­
de 1923 e de 1929, dedicados a A filosofia deira liberdade, que emerge em cada nível
do idealismo alemão. do ser, ainda que parcialmente condicionada
pelo nível precedente.
c o n c e p ç ã o d a é tic a

Em 1926 sai a Ética, em que Hartmann, Rwdolf Of+o


seguindo explicitamente Scheler, critica o
e a fenomenologia
subjetivismo ético, repropondo uma ética
material dos valores, que são inteiramente da reliqião
objetivos e se revelam ao homem por meio
de um sentimento específico.
Substancialmente, a intervenção da Se M ax Scheler foi quem aplicou me­
subjetividade não estabelece os valores, mas lhor que ninguém a fenomenologia ao âm­
tem apenas a função de manifestá-los, já que bito dos valores, o trabalho de Rudolf Otto
eles possuem um ser ideal em si, como os (1869-1937), intitulado O sagrado (1917),
entes matemáticos e as essências em geral (e é hoje um clássico da fenomenologia da
são, como eles, universais). experiência religiosa.
A tarefa da ética, portanto, é a de des­ Ora, o que se manifesta na experiên­
crever e analisar os valores morais, antes cia religiosa? O que tipifica ou caracteriza
mesmo de, coerente e conseqüentemente, essencialmente o que Otto chama de expe­
deles fazer b ro tar norm as p recisas de riência do numinoso (numinoso derivado de
conduta. Usando amplamente o método numen) ou do sagrado?
T^CYCCÍYU pdYte - PekAomeKologia/ <39<is+e.K\cialismoy •He^me^êutica

Pois bem, um aspecto notável de tal ex­


periência, Otto (seguindo Schleiermacher) o
vê no sentimento da “ dependência” , ou seja,
no “ sentimento de ser criatura” . Esse senti­
mento de criaturalidade, porém, diz Otto, é o
efeito de outro momento da experiência reli­
giosa, que “ se refere primeira e diretamente a
um sujeito fora do eu” . Em outros termos, “ o
sentimento de ‘minha absoluta dependência’
tem como pressuposto um sentimento criatu-
ral de ‘sua’ inacessibilidade” . O homem que
tem experiência religiosa percebe o sagrado
como mysterium tremendum. Mysterium
nada mais indica além do oculto, do não-
manifesto, do extraordinário e do incomum.
O mysterium está ligado ao mirum ou ad­
mirável. O homem religioso é homem cheio
de “ maravilhamento estupefato” diante do
mistério religioso, que ele experiencia como
“ totalmente Outro” : “ o estrangeiro estranho
é o que enche de estupefação, aquilo que
está além da esfera do usual, do compreen­
sível, do falível e, por essa razão, ‘oculto’,
absolutamente fora do ordinário e em con­
traste com o ordinário, enchendo, portan­
to, o espírito de surpresa desm esurada” . Edith Stein (1891-1942), primeiro aluna de Husserl,
depois docente universitária e, por fim,
religiosa carmelita,
foi presa pelos nazistas por motivos raciais,
Ê d i+ k S t e i v\\ e morta no lager de Auschwitz
o problema da empatia em lima câmara de gás.
Foi canonizada no dia 11 de outubro de 1998,
e a ta ^efa pelo papa João Paulo II.
de uma filosofia cristã

Durante o verão de 1921 Edith Stein


eh a v id a e a s ob^as tem ocasião de ler, na casa de campo do casal
Conrad-Martius (ambos seus amigos e am­
Edith Stein nasceu na Breslávia, de ge­ bos discípulos de Husserl), em Bergzabern,
nitores judeus, dia 12 de outubro de 1891. o Livro da vida de santa Teresa de Ávila.
Terminando o liceu em 1911, "de 1911 a Dia I o de janeiro de 1922 Edith recebe o
1913 freqüenta durante quatro semestres batismo na igreja paroquial de Bergzabern;
os cursos de psicologia e germanismo na Edwig Conrad-Martius foi sua madrinha.
Universidade da Breslávia. D e l 9 1 3 a l 9 1 6 De 1922 a 1930 foi docente de germanismo
freqüenta os cursos de fenomenologia dados no Instituto “ Santa M adalena” , de Spira.
por Edmund Husserl na Universidade de Em 1932 é chamada para ensinar no Institu­
Gõttingen. Entretanto, em 1915, Edith Stein to universitário alemão para a pedagogia de
fizera os exames estatais para o ensino de Münster. Aí permanece pouco tempo, pois
propedêutica filosófica, história e alemão. em 1933 os nazistas a proíbem de ensinar.
Ainda em 1915 presta serviço voluntário na Este foi o fato que acelerou sua decisão
cruz-vermelha, no leprosário de Márisch- de tornar-se religiosa enclausurada. Foi aco­
Weisskirchen. lhida no Carmelo de Colônia em outubro de
1916 é o ano em que Husserl passa 1933. A vestição religiosa teve lugar dia 15
a ensinar de Gõttingen para Friburgo na de abril de 1934: Edith Stein recebe então o
Brisgóvia. Edith segue o mestre, de quem se nome de Theresia Benedicta a Cruce. Em um
torna assistente. Em agosto, ainda em 1916, estupendo artigo publicado na “ Kõlnische
Stein discute sua dissertação para o douto­ Volkszeitung” , Peter Wust, entre outras coi­
rado sobre O problema da empatia. sas, escrevia: “ Domingo, dia 15 de abril de
Capítulo décimo - £ d m u n d t " l u s s e r l e. o m o v im e n t o j'e n o m e n o lÓ 0 Íc o

1934, um grupo de pessoas ávidas das coisas F H T e o n a f e n o m e ^ o ló g i c a


do espírito se encontrava reunido na modesta d a e m p a t ia
capela do Carmelo de Colônia para assistir a
uma festa singular [...]. Edith Stein, a jovem Em O problem a da em patia Edith
e brilhante filósofa, assistente de Husserl e Stein, com o fito de fazer compreender a
nossa amiga, torna-se uma nossa humilde essência do ato empático, aduz este exemplo:
irmã, e doravante se chama: Teresa Benedita “ Um amigo vem a mim e me diz ter perdido
da Cruz” . Husserl teve a notícia da vestição um irmão e eu percebo sua dor” . Pois bem:
religiosa de sua ex-assistente por uma outra o que é este perceber? Eis, então, aquilo que
discípula, a beneditina irmã Aldegonda Jae- para Stein é o problema da empatia; não se
gerschmid. E justamente à irmã Aldegonda trata de conhecer a maneira pela qual venho
ele disse: “ É extraordinário ver Edith que, a saber da dor de meu amigo: “ talvez chego
como do alto de uma montanha, descobre a sabê-lo por meio da percepção de sua face
a clareza e a amplidão do horizonte, com pálida e sofredora, de sua voz submissa ou
maravilhosa agilidade e transparência; ao quase afônica, talvez ainda por meio das
mesmo tempo sabe voltar-se para o interior e palavras com que ele se exprime” . O que,
conservar a perspectiva do próprio eu. Nela, ao contrário, se quer saber é: “ o que tal
tudo é autêntico perceber é em si, e não por meio de quais
Em 1936 Edith Stein terminou seu caminhos seja possível chegar até ele” .
livro mais importante: Ser finito e ser eter­ Pois bem, podemos perceber a vivên­
no. Para uma elevação ao sentido do ser. cia de outra pessoa justamente por meio
Entrementes, em 1934, havia publicado a do processo cognoscitivo que é a empatia
Vida de santa Teresa de Ávila e a Vida de (Einfüblung), que atua em três graus: o
santa Teresa M argarida Redi. primeiro grau verifica-se quando o vivido
D ia 21 de abril de 1938 Stein faz por outro “ emerge improvisamente diante
sua profissão religiosa solene. Dia 27 do de mim” — quando sei, por exemplo, que
mesmo mês morre seu “ venerado mestre” meu amigo perdeu seu irmão —; o segundo
Edmund Husserl. N o fim de 1938, irmã grau se tem quando alguém é envolvido no
Teresa Benedita da Cruz deixa, na calada estado de espírito do outro — quando, por
da noite, por causa das perseguições contra exemplo, sinto-me envolvido na dor vivida
os judeus, o Carmelo de Colônia e vai para por meu amigo —; no terceiro grau se tem “ a
a Holanda, ao Carmelo de Echt. Em 1941 objetivação compreensiva do vivido expli­
e 1942 trabalha na Kreuzeswissensckaft (A citado” , isto é, o vivido apresenta-se diante
ciência da Cruz). N a tarde de 2 de agosto de de mim não como envolvimento de espírito,
1942, enquanto está em oração na capela do mas muito mais como objeto de consciência.
Carmelo, Edith Stein é presa por dois oficiais Devemos notar o fato de que na empa­
da Gestapo. Confinada primeiro no campo tia, vista como conhecimento da experiência
de concentração holandês de Drente-Wester- de outrem, não se tem — como no caso da
bork, dia 7 de agosto é deportada, junto com lembrança, da expectativa ou da fantasia
irmã R osa, para o lager de Auschwitz. Aqui — a identidade do sujeito empatizante.
as duas irmãs morrem em uma câmara de Escreve Stein: “ Enquanto vivo a alegria que
gás, dois dias depois, 9 de agosto de 1942. é experimentada por outro, não percebo
Do campo de concentração de Westerbork, nenhuma alegria originária: ela não brota de
irm ã Teresa Benedita conseguiu enviar modo vivo de meu Eu, nem tem o caráter de
uma mensagem à superiora do Carmelo de ter estado viva anteriormente como a alegria
Echt, onde, entre outras coisas, se lê: “ Cara lembrada, muito menos como meramente
M adre, [...] pode-se adquirir uma “ scientia fantasiada, isto é, privada de vida real, mas
crucis” apenas quando se começa a sofrer é precisamente o outro Sujeito aquele que
verdadeiramente o peso da cruz. Tive a experimenta de maneira viva a originarieda-
íntima convicção disso desde o primeiro de, embora eu não viva tal originariedade;
instante, e do fundo do coração eu disse: sua alegria que brota dele é originária, em­
Ave crux, spes única. A Vossa Reverência, bora eu não a viva como originária” . Eis,
a filha agradecida. Irmã B .” . portanto, a essência do processo empático:
O papa João Paulo II proclamou Edith “ Em minha experiência vivida não-origi­
Stein “ serva de Deus” em 1987, no dia I o de nária, eu me sinto acompanhado por uma
maio. E no dia 11 de outubro de 1998 foi experiência vivida originária, que não foi
canonizada, isto é, declarada santa, também vivida por mim, mas se anuncia em mim,
pelo papa João Paulo II. manifestando-se em minha experiência vi­
Terceira parte - T -en om en o lo gia / E x is te n c ia l ism o, H e r m e n ê u tic a

vida não-originária. De tal modo chegamos não pode se enganar nem enganar” . Nós,
por meio da empatia a uma espécie de atos portanto, acolhemos a verdade de fé com
experienciais “sui generis ” . base no testemunho de Deus, e abraçamos
assim “ conhecimentos que não possuem
evidência intelectiva” . Esta é a razão pela
EE1 ta r e fa d e uma filo so fia cristã
qual a fé é chamada de “ luz escura” . A fé
— afirma Edith Stein — “ quer mais do que
Stein já havia enfrentado o tema da re­ as verdades particulares sobre Deus, quer
lação entre pesquisa filosófica e experiência ele próprio, que é a Verdade, Deus, inteiro, e
de fé no ensaio A fenomenologia de Husserl o acolhe sem ver, ‘mesmo se é noite’ ” . Esta
e a filosofia de santo Tomás de Aquino. Aqui — comenta Stein — “ é a mais profunda
a autora distingue entre o conhecimento escuridão da fé, contraposta à eterna luz, à
divino, que é conhecimento da “ verdade em qual ela tende” . E aqui a filósofa carmelita
sua totalidade” , e o conhecimento humano, se refere a são Jo ão da Cruz, que escreve:
ao qual põem-se “ limites estabelecidos” . Em “ [...] o progresso do intelecto consiste em
sua grande obra Ser finito e ser eterno, Stein estabelecer-se mais fortemente na fé, ou seja,
afirma que com a expressão filosofia cristã em pôr-se sempre mais no escuro, uma vez
procura designar “ o ideal de um perfectum que a fé é trevas para o intelecto” . A fé é
opus rationis, que tenha conseguido recolher trevas para o intelecto e, todavia, ela é um
em unidade tudo aquilo que se nos tornou progredir, para além dos conhecimentos
acessível pela razão natural e pela Revela­ racionais, na direção da única Verdade: “ a
ção ” . Neste sentido não se dá, na opinião fé está mais próxima da Sabedoria divina
de Stein, uma “ filosofia pura” e, todavia, ela do que toda ciência filosófica e também
não é teologia: é filosofia “ em primeiro lugar teológica.” . Deus dá ao espírito criado
aberta à teologia e pode ser integrada por a visão beatífica quando o une a si. N o
esta” . Por mais que impulsionemos adiante decorrer da vida terrena, escreve Stein, “ a
nossa razão, ela não nos pode dar a verdade aproxim ação máxima desta meta altíssima
total e absoluta. Inquietum est cor nostrum, é a visão m ística".
e “ a tarefa mais elevada de uma filosofia E sobre a possibilidade ou não de uma
cristã é justamente a de preparar o caminho descrição da experiência mística versa -a
para a fé” . Isso foi feito de modo excelente última obra de Stein: Kreuzeswissenscbaft.
por santo Tomás de Aquino. Studie über Johannes a Cruce (A ciência
Stein assume a definição de fé do Ca- da Cruz. Estudo sobre são Jo ão da Cruz).
tecbismus catholicus: “ A fé é uma virtude De fenomenóloga rigorosa, Stein mira à
sobrenatural pela qual, com a inspiração e essência da experiência mística. Esta é a
com a assistência da graça divina, conside­ “ terra impraticável” , cujo mapa não pode
ramos como verdadeiro aquilo que Deus re­ ser oferecido pelos conceitos da razão natu­
velou e ensinou por meio da Igreja, não pela ral; apenas a poesia e os símbolos (como a
verdade objetiva intrínseca, que poderemos “ cruz” e a “ noite” ) estão em grau de aludir à
conhecer mediante a razão natural, mas pela experiência mística, que é uma prefiguração
autoridade do próprio Deus que revela, que da visão beatífica.
Cãpltulo decimo - £ d m u k \d -H u sse rl e o m ovim en to fe n o m e n o ló g ic o

representação, a modalidade do representar,


no juízo, a modalidade do julgar etc. Como se
H usserl sabe, a tentativa brentaniana de classificar os
fenômenos psíquicos em representações, juízos
e movimento afetivos ("fenômenos do amor e
do ódio") baseia-se sobre essa modalidade de
referência, que Brentano distingue justamente
D fl intencionalidade em três tipos fundamentalmente diversos (por
do conhecimento sua vez posteriormente especificóveis).
O fato de que se considere a classificação
brentaniana dos "fenômenos psíquicos" mais ou
"Fl referência intencional [...] representa menos adequada, ou então que se chegue a
para nós a determinação essencial dos fe­ reconhecer que ela tem para toda a psicologia
nômenos psíquicos". a importância fundamental que seu autor genial
pensava que deveria lhe ser atribuída, não é
aqui muito relevante. Apenas uma coisa deve
ser salientada pela importância que ela detém
é momento agora de definir a natureza para nós: há diversas modalidades específicas
da classificação brentaniana e, portanto, a do essenciais da referência intencional ou, em
conceito de consciência, entendida como ato poucas palavras, da intenção (que representa
psíquico. o caráter descritivo genérico do "ato"). A mo­
Guiado pelo interesse classificatório ao dalidade em que “mera representação" de um
qual acenamos, o próprio Brentano conduz sua estado de coisas "entende" este seu objeto é
pesquisa pessoal distinguindo as duas classes diferente da modalidade do juízo que assume
de "fenômenos" - os físicos e os psíquicos -, este estado de coisas como verdadeiro ou falso.
que ele assume como fundamentais. €le obtém 6 diferente de ambas é também a modalidade
assim seis definições, das quais apenas duas da presunção e da dúvida, da esperança ou
são interessantes para nós, enquanto, em todas do temor, da satisfação ou da insatisfação,
as outras, certos equívocos enganadores exer­ do desejo ou da repugnância; da decisão de
cem uma função deletéria, tornando insustentá­ uma dúvida teórica (decisão judicativa) ou de
veis os conceitos de fenômeno, particularmente uma dúvida prática (decisão volitiva no caso
de fenômeno físico e, portanto, também de de uma escolha cujos termos se eqüivalem);
percepção interna e externa. da confirmação de uma opinião teórica (reali­
Das duas definições por nós privilegia­ zação de uma intenção judicativa) ou de uma
das, a primeira indica diretamente a essência intenção volitiva (realização da intenção voli­
dos atos ou dos fenômenos psíquicos. Cia se tiva), e assim por diante. Sem dúvida, se não
impõe de modo inconfundível considerando todos, ao menos a maior parte destes atos são
exemplos quaisquer. Na percepção é percebida complexos vividos, e muito freqüentemente as
alguma coisa, na representação imaginativa próprias intenções são múltiplas. As intenções
alguma coisa é representada em imagem, na afetivas baseiam -se sobre intenções repre-
enunciação alguma coisa é enunciada, no amor sentaclpnais ou judicativas etc. Mas não há
alguma coisa é amada, no ódio alguma coisa dúvida de que, dissolvendo esses complexos,
é odiada, no desejo alguma coisa é desejada chegamos sempre a características intencionais
etc. Brentano pensa o que se pode reunir de primitivas que, em sua essência descritiva, não
comum nesses exemplos, quando diz: "Todo podem ser reduzidas a vivências psíquicas de
fenômeno psíquico caracteriza-se por aquilo outro gênero; e, além disso, não há dúvida de
que os Cscolásticos da Idade Média chama­ que a unidade do gênero descritivo "intenção"
ram de inexistência intencional (ou também ("característica do ato") exibe diversidades
mental) de um objeto e que chamaremos, não específicas que se fundam na essência pura
sem alguma ambigüidade, referência a um desse gênero, precedendo, assim, como um a
conteúdo, direção para um objeto (e isso não priori, a factualidade empírico-psicológica. Há
quer dizer que se trate de uma realidade) ou espécies e subespécies de intenções essen­
então objetualidade imanente. Todo fenômeno cialmente diferentes. Cm particular, é impossível
psíquico contém em si alguma coisa como obje­ reduzir todas as diferenças entre os atos de um
to, embora nem sempre de igual modo". Cssa tecido de representação e de juízos, recorrendo
"modalidade de referência da consciência a um simplesmente a elementos que não pertencem
conteúdo" (como Brentano freqüentemente se ao gênero "intenção". Por exemplo, a aprovação
exprime em outros lugares) é justamente, na ou a desaprovação estética é modalidade de
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia , é^x isten cia lism o, -H e rm en ê u tica

referência intencional que se demonstra com íncontro constantemente à mão, diante


evidência e por essência peculiar em relação à de mim, a realidade espaço-temporal, à qual
mera representação do objeto estético ou ao eu próprio pertenço 0 à qual pertencem todos
juízo teórico a ela dirigido. Sem dúvida, a apro­ os outros homens, que nela se encontram e
vação estética 0 o predicado estético podem ser a ela se referem do mesmo modo que eu. A
enunciados, e o enunciado é um juízo e, como realidade - e a própria palavra o diz - eu a
tal, inclui certas representações. Mas então encontro enquanto permaneço dentro de uma
a intenção estética, assim como seu objetivo experiência homogênea e nunca interrompida,
( Objekt), é objeto (G egenstand) de repre­ encontro-a como existente e a assumo existen­
sentações e de juízos; ela mesma permanece te, assim como ela se oferece a mim. Qualquer
essencialmente diversa desses atos teóricos. dúvida nossa ou repúdio de dados do mundo
Atribuir validade a um juízo, nobreza a uma natural nõo modiFica em nada a tese geral do
coisa afetiva vivida etc., pressupõe certamente comportamento natural. O mundo como reali­
intenções análogas e afins, mas não idênticas dade está sempre ali; pode revelar-se cá ou
do ponto de vista específico. Assim também no lá "diferente" de como eu o presumia, este ou
confronto entre decisões judicativas e decisões aquele elemento deve ser cancelado por ele
volitivas etc. como “aparência", "alucinação" e semelhantes;
A referência intencional, entendida em porém, no sentido da tese geral, ele é sempre
sede puramente descritiva como peculiaridade mundo existente. Conhecê-lo mais compreen-
interna de certas vivências, representa para sivamente, fielmente e em todo aspecto mais
nós a determinação essencial dos "fenômenos perfeitamente de quanto o saiba fazer a mera
psíquicos" ou dos “atos", de modo que consi­ sapiência empírica, resolver todos os problemas
deramos a definição de Brentano, segundo a de conhecimento científico que se apresentam
qual eles são "fenômenos que têm em si inten­ sobre o terreno deste, tal é o escopo das
cionalmente um objeto", como uma definição ciências do comportamento natural. São as
essencial, cuja "realidade" (no sentido antigo)
é naturalmente assegurada pelos exemplos.
€m outros termos, simultaneamente em uma
formulação puramente fenomenológica: a idea-
ção efetuada sobre casos particulares exem-
plificativos de tais vivências - e efetuada de
modo tal a excluir qualquer posição existencial
e qualquer interpretação empírico-psicológica,
levando em conta apenas o estatuto fenome-
nológico real dessas vivências - nos apresenta
a idéia genérica, puramente fenomenológica,
de vivência intencional ou ato, e também suas
especificações puras.
S. Husserl,
Pesquisas lógicas, vol. II.

<?

2 fl epoch é fenomenológica

Com a epoché Fenomenológica "colo­


camos Fora de ação a tese geral inerente à
essência do comportamento natural, pomos
entre parênteses tudo o que ela abraça sob
o aspecto ôntico: portanto, todo o mundo
natural, que está constantemente "aqui para
nós", "à mão", e que continuará a permanecer
como "realidade" para a consciência, m es­
mo que tenhamos vontade de pô-lo entre
p arênteses”.
Retrato fotográfico de Edmund Husserl.
197
Capitulo décimo - E d m u n d "H u sserl e o m ovim ento fe n o m e n o ló g ic o

ciências habitualmente "positivas", as ciências poderiam ser modificados com plena liberdade
da positividade natural. e todo objeto de juízo poderia ser posto entre
Ro invés de permanecer nesse compor­ parênteses. Mas visamos ò descoberta de um
tamento, nós queremos mudá-lo radicalmente. novo território científico, e queremos conquistó-
Trata-se agora de persuadir-se da possibilidade lo justamente com o método da colocação entre
de princípio desta mudança. parênteses, porém limitado de certo modo.
Fl tese geral, pela qual o mundo circundan­ Devemos indicar essa limitação.
te real é reconhecido não só conceitualmente, Colocamos fora de ação a tese geral ineren­
mas como “realidade" existente, não é consti­ te ã essência do comportamento natural, coloca­
tuída evidentemente por um só ato específico, mos logo entre parênteses tudo o que ela abra­
como, por exemplo, um juízo predicativo explí­ ça sob o aspecto ôntico: portanto, todo o mundo
cito sobre o existência do mundo. Ou melhor, natural, que está constantemente “aqui para
ela é algo que dura estavelmente por toda a nós", “Ó mão", e que continuará a permanecer
duração do comportamento, ou seja, por toda como "realidade" para a consciência, mesmo que
a nossa vida natural no estado de vigília. Tudo sejamos tentados a colocá-lo entre parênteses.
o que cada vez percebemos e clara ou obscu­ Fazendo isso, conforme está em minha
ramente nos representamos do mundo natural, plena liberdade fazê-lo, eu não nego este
em poucas palavras, quanto sabemos experi­ mundo, como se fosse um sofista, não duvido
mentalmente antes de todo pensar, apresenta de seu existir aí, como se fosse um cético; mas
em sua totalidade, e em toda parte articulada exerço em sentido próprio a epoché fenomeno-
que dele se retirar, a característica de estar lógica, ou seja, não assumo o mundo que me
"aqui", a mão": uma característica sobre a qual é constantemente já dado enquanto existente,
é essencialmente possível fundamentar um juízo como faço, diretamente, na vida prático-natural
(predicativo) explícito de existência intimamente e também nas ciências positivas, como um mun­
ligado a ele. Exprimindo este juízo estamos, do preliminarmente existente e, em definitivo,
porém, conscientes de ter tematizado e apre­ como um mundo que nõo é um terreno universal
endido predicativamente aquilo que, justamente de ser para um conhecimento que procede por
como característica de “à mão", se encontrava meio da experiência e do pensamento. Cu não
já, não tematicomente nem cogitativamente nem atuo mais nenhuma experiência do real em um
predicativamente no experimentar original ou no sentido ingênuo e direto. <
ter experimentado. Cu não assumo aquilo que elo me propõe
Ora, podemos proceder em relação a esta enquanto existente simpliciter, enquanto pre-
tese potencial e não expressa exatamente como sumidamente ou provavelmente existente. Os
para a judicativamente explícita. Um procedimen­ modos de validade operantes no experimentar
to semelhante e sempre possível é, por exem­ ingênuo, cujo realização ingênua é constituída
plo, a tentativa de dúvida universal que Des­ pelo "estar sobre o terreno da experiência"
cartes empreendeu para um objetivo totalmente (sem que, por outro lado, jornais se ponha, por
diferente do nosso, ou seja, em vista da fixação meio de uma iniciativa particular e por meio de
de uma esfera do ser absolutamente isenta de uma decisão particular, sobre aquele terreno),
dúvida. Procedemos a partir daqui - declaramos no âmbito dessa experiência, eu os coloco fora
logo - enquanto a tentativa de dúvida univer­ de validade, proíbo-me esse terreno. Isso não
sal nos serve apenas como apoio metódico investe as experiências do mundano em sua
para salientar em virtude dela certos pontos singularidade apenas. Já toda experiência par­
que estão implícitos em sua própria essência. ticular tem, por essência, "o próprio” horizonte
fl tentativa de dúvida universal entra no universal de experiência, o qual, embora não
campo de nossa liberdade completa: podemos explícito, comporta a constante convalidação da
tentar duvidar de tudo e de qualquer coisa, mes­ totalidade aberta e infinita do mundo existente.
mo que estejamos firmemente certos em base a Justamente este valer preliminarmente, que me
uma evidência plenamente adequada. [...] sustenta atual e habitualmente na vida natural
A tentativa cartesiana de uma dúvida uni­ e que fundamenta toda a minha vida prática e
versal poderemos agora substituir a universal teórica, justamente esse preliminar existir-para-
epoché em nosso novò e bem determinado mim "do” mundo, eu me proíbo; tiro-lhé aquela
sentido. Mas, por razão evidente, limitamos força que até agora me propunha o terreno do
a universalidade dessa epoché. Pois, se lhe mundo da experiência contínua como antes, ex­
concedermos toda a amplitude que pode ter, ceto o fato de que essa experiência, modificada
não permaneceria mais nenhum campo para por meio desse novo comportamento, não me
juízos não modificados e muito menos para fornece mais o “terreno” sobre o qual eu estava
uma ciência: com efeito, toda tese e todo juízo até este momento.
Terceitã purte - Fenom enologia, Existencialism o, -Hermenêutica

Assim realizo a epoché fenomenológico,


q qual, portanto, eo ipso, me proíbe também a "As meras ciências de fatos
realização de qualquer juízo, de qualquer toma­
da de posição predicativa em relação ao ser e
criam simplesmente
ao ser-assim e a todas as modalidades de ser homens de fato"
da existência espaço-temporal do "real".
Assim eu neutralizo todas as ciências que
se referem ao mundo natural e, por mais que me "No misério de nosso vido [...] esto ciên­
pareçam sólidas, por mais que as admire, por cia nõo tem nada o dizer-nos. 6/a exclui de
pouco que eu pense em acusá-las d® alguma princípio justamente aqueles problemas que
coisa, delas não faço absolutamente nenhum sõo os mois prementes do homem, o quol,
uso. Não me aproprio de sequer uma de suas em nossos tempos atormentodos, sente-se
posições, mesmo que sejam de perfeita evidên­ entregue ao sobor do destino: os problemas
cia, não assumo nenhuma delas e de nenhuma do sentido ou do nõo-sentido da existência
delas extraio algum fundamento - bem enten­ humana em seu conjunto".
dido, à medida que elas são concebidas, como
acontece justamente nessas ciências, como
verdades referentes à realidade deste mundo. Podemos seriamente falar de uma crise
Posso assumi-las apenas depois de lhes ter de nossas ciências em geral? Csse discurso,
aplicado os parênteses, como conseqüência hoje comum, não constitui talvez um exagero?
do fato de que eu já submeti à modificação da A crise de uma ciência comporta nada menos
colocação entre parênteses qualquer experiên­ que sua peculiar cientificidade e o modo em que
cia natural, à qual definitivamente remete toda se propôs suas tarefas e, por isso, em que ela­
fundamentação científica, como a uma experiên­ borou seu próprio método, tenham se tornado
cia que manifesta a existência. O mesmo que duvidosos. Isso poderá valer para a filosofia,
dizer: apenas na modificação de consciência da que atualmente está ameaçada de sucumbir
colocação entre parênteses do juízo e, portanto, à dúvida, ao irracionalismo, ao misticismo. €n-
não como as proposições que estão na ciência, quanto a psicologia adianta ainda pretensões
onde reclamo uma validade que de resto eu filosóficas e nõo quer ser mera ciência positiva
mesmo reconheço e utilizo. entre as outras, isso poderá valer também para
Não se deve confundir a epoché ora em ela. Mas, como é possível falar em geral e se­
questão com a requerida pelo positivismo (con­ riamente de uma crise das ciências e, portanto,
tra a qual, como devemos estar persuadidos, também das ciências positivas, da matemática
choca-se o positivismo do próprio Comte). Para pura, das ciências naturais exatas, que jamais
nós nõo se trata da neutralização de todos os deixaremos de admirar como exemplos de uma
preconceitos que perturbam a pura efetuai idade cientificidade rigorosa e destinada a contínuos
da pesquisa, nem da constituição de uma ciência sucessos? Sem dúvida, elas, no estilo comple-
“livre de teorias", "livre da metafísica", fazendo xivo de sua teoria sistemática e de seu méto­
retroceder toda fundamentação às datidades do, se demonstraram passíveis de evolução.
imediatas da experiência objetiva, e sequer do Cias conseguiram recentemente despedaçar,
meio para alcançar tais fins, de cujo valor não se justamente a partir deste ponto de vista, um
faz questão. Aquilo que buscamos está em dire­ enrijecimento que, sob o título de física clássica,
ção completamente diferente. Para nós o mundo as ameaçava, enquanto presumida realização
inteiro, assim como se põe no comportamento clássica de um estilo que durava há séculos. [...]
natural, ou como efetivamente se nos oferece to­ Tanto se a física seja representada por um
talmente "livre de juízo" e claramente se anuncia Neujton ou por um Planck ou por um Cinstein ou
à ligação das experiências uma prévia elimina­ por qualquer outro cientista do futuro, ela sempre
ção das aparências, deve ser agora posto fora foi e continuará a ser uma ciência exata. C assim
da validade: não provado, mas também não permanecerá mesmo que tenham razão os que
contestado, ele deve ser colocado entre parên­ consideram que não seja possível esperar nem
teses. Igualmente todas as teorias e as ciências, perseguir uma forma última do estilo segundo o
por boas que sejam, fundamentadas positiva­ qual a teoria foi se construindo em seu conjunto.
mente ou de outra forma, enquanto se referem Algo de análogo vale evidentemente
a este mundo, subjazem ao mesmo destino. também para outros grandes grupos de ciências
que costumamos enumerar entre as ciências
£. Husserl,
Idéias para uma fenom enologia pura positivas, ou seja, para as ciências concretas do
e poro uma filosofia fenom enológico, espírito - seja qual for o nosso comportamento
- vol. I. diante de suo controversa adoção do ideal de
Capitulo dedm o - Ê d m u n d -H ussecl e o m ovim ento fe n o m e n o ló g ic o ____

exatidão das ciências naturais-, uma problema- pelas ciências positivas e com as quais se dei­
ticidade qu® d0 r0sto investe também a relação xou fascinar pela "prosperity" que daí derivava,
que existe entre as disciplinas biofísicas ("con- significou um afastamento daqueles problemas
cretamente" científicas) 0 as das ciências naturais qu© são decisivos para uma humanidade au­
matemáticas exatas. O rigor ci0ntífico d0 todas têntica. As meras ciências de fatos criam meros
estas disciplinas, a evidência de suas operações homens de fato. A revolução do comportamento
teóricas e de seus sucessos, que doravante S0 geral do público foi inevitável, especialmente
impus0ram de modo vinculador e para sempre, depois da guerra, 0 sabemos que na geração
p0rman0C0 fora de discussão, Apenas em rela­ mais recente e la .se transformou até em um
ção à psicologia, qu0 também pretende ser a estado d0 0spírito hostil. Na miséria de nossa
ciência fundamental, abstrata, definitivamente vida - ouve-se dizer - esta ciência nada tem a
explicativa em relação às ciências concretas do dizer-nos. 61a exclui de princípio justamente os
espírito, não estaremos, talvez, tão seguros. problemas que são os mais perturbadores do
Mas, considerando que o evidente afastamento homem, o qual, em nossos tempos atormenta­
no método e nas operações deriva de um desen­ dos, sento-so entregue ao sabor do destino:
volvimento por natureza mais lento, estaremos os problemas do sentido e do não-sentido
geralmente dispostos a reconhecer também a ela da existência humana em seu conjunto. £sses
sua validade. De qualquer modo, o contraste en­ problemas, em sua generalidade e em sua
tre a "cientificidade" deste grupo de ciências e a necessidade, não exigem talvez, para todos os
"não-cientificidade" da filosofia é indiscutível. [...] homens, também considerações gerais e uma
Todavia, pode ocorrer que, procedendo solução racionalmente fundamentada? Ges,
a partir de uma outra ordem de considerações, definitivamente, referem-S0 ao hom0m em seu
isto é, das lamentações difusas sobre a crise de comportamento diante do mundo circundante,
nossa cultura e sobre o papel que nessa crise é humano 0 extra-humano, ao homem que deve
atribuído às ciências, venham ao nosso encontro escolher livremente, ao homem que é livre para
motivos que nos induzam a submetera uma crítico plasmar racionalmente a si mesmo e o mundo
sério e p or outro lado extremamente necessário que o circunda. O qu© tem a dizer esta ciência
a cientificidade de todas as ciências, sem contu­ sobre a razão e sobre a não-razão? o que tem a
do renunciar ao primeiro sentido de sua cientifi­ diz0r sobr© nós, homens-, enquanto suj0itos des­
cidade, aquele sentido que é inatacável, dada sa liberdade? Obviamente, a mera ciência de
a legitimidade de suas operações metódicas. fatos não tem nada a nos dizer a este respeito:
Nós nos propomos, com efeito, de nos ela abstrai exatamente de qualquer sujeito. No
colocar no caminho daquela mudança, a que já que se refere, por outro lado, às ciências do es­
aludimos, de todas as nossas considerações. pírito, que também, em todas as suas disciplinas
Realizando essa mudança perceberemos logo particulares 0 g0rais, consideram o homem em
que à problem aticidade que é própria da sua existência espiritual, isto é, no horizonte de
psicologia, não só em nossos dias, mas há sua historicidade, sua rigorosa cientificidade, se
séculos, à "crise" que lhe é peculiar, é preciso diz, exige que o estudioso evite acuradamente
reconhecer um significado central; ela revela qualquer tomada de posição valorativa, todos
as enigmáticas 0, à primeira vista, in0xtricáv0is os problemas referentes à razão ou à não-razão
obscuridad0s das ciências mod0rnas, até das da humanidade tematizada e de suas forma­
mat0máticas; 0la r0V0la um 0nigma do mundo ções culturais. A verdade científica objetiva é
de um gênero que 0ra compl0tam0nt0 estranho exclusivamente uma constatação daquilo que o
às épocas passadas. Todos esses enigmas mundo, tanto o mundo psíquico como o mundo
remetem ao enigmo do subjetividade e estão, espiritual, de fato é. Todavia, na realidade, o
portanto, inseparavelmente ligados ao enigma mundo e a existência humana podem ter um
da temática e do método da psicologia. Tudo sentido se as ciências admitem como válido e
isso não constitui mais que uma primeira indi­ como verdadeiro apenas aquilo que é obje­
cação no sentido profundo daquilo que estas tivamente constatável, se a história não tem
conferências se propõem. Adotamos como outra coisa a ensinar a não ser que todas as
ponto de partida a mudança, verificada no fim formas do mundo espiritual, todos os vínculos
do século XIX, na avaliação geral das ciências. de vida, os ideais, as normas que vez por outra
(Ele não investe sua cientificidade e sim aquilo forneceram uma direção aos homens, se formam
que elos, as ciências em geral, têm significado e depois se dissolvem como ondas fugidias,
0 podem significar para o ©xistência humana, que sempre foi assim e sempre será, que a
fl exclusividade com que, na segunda metade razão está destinada a se transformar sempre
do século XIX, a visão do murido complexiva de novo em não-sentido, os atos prudentes
do homem moderno açoitou S0r d0terminada em flagelos? Podemos contentar-nos com isso.
Terceirã parte - F e n o m e n o lo g ia , E x is te n c ia lis m o , -H e rm en ê u tica

podemos viver neste mundo em que o devir consciência religiosa, e eventualmente também
histórico nõo é mais que umo cadeia incessante por nova metafísica conquistadora dòs massas.
de impulsos ilusórios 0 amargos desilusões? Os tabus cunhados pelas religiões em vários
€. Husserl, campos do conhecimento humano, declarando
fl crise da ciência européia "sagradas" 0 “objetos de fé" as coisos a eles
e a Fenomenologia transcendental, relacionadas, em razão de seus motivos e s ­
vol. 1.
pecificamente religiosos ou metafísicos devem
perder essa característica d© tabu 0 se tornar
objeto da ciência. Rpenas onde, por exemplo,
um livro considerado "sagrado" perdeu para
vastos círculos seu caráter sacral devido a
motivos religiosos ou metafísicos, ele pode
S ch eler ser estudado "cientificamente" como uma fonte
histórico qualquer. Ou ainda: enquanto para o
grupo a natureza estiver cheia de forças divinas
0 demoníacas dotadas de personalidade 0 de
vontade, à medido que o for, a própria natureza
Quando umo idéia religiosa ainda é “tabu" para a ciência, flpenas o impulso
torna possível a ciência religioso para uma idéia espiritual de Deus, uma
idéia menos biomórfica, 0 enquanto tal essen­
cialmente também mais ou menos monoteísta
Sobre a relação ciência-Fé: a ciência, - como aparece pela primeira vez no âmbito
enquanto perm anece ciência, não p o d e dos vastas monarquias políticas do Oriente,
torcer um só cabelo da religião. Por outro intimamente ligada no sentido com essa or­
lado, o monoteísmo criacionista hebraico- denação monárquica da sociedade -, faz com
cristão, dessacrolizando o mundo, constituiu que a religião se eleve acima dos vínculos das
"a primeira possibilidad e Fundamental de comunidades consangüíneas e tribais; apenas
abrir livremente caminho no Ocidente para assim se espiritualiza 0 se desvitaliza a idéia
a pesquisa sistemática da natureza". de Deus, tornando, portanto, sempre mais livre
para a pesquisa científica a natureza esfriada,
por assim dizer, na religião e tornada relativa­
Cm primeiro lugar, é preciso acabar com mente objetiva e "morta", ou aquela parte da
o erro, bastante difundido, de que a ciência natureza que foi esfriada pela religião. Quem
positiva, e seu movimento progressivo, tenha considera as estrelas como divindades visíveis,
podido e possa - enquanto permanecer dentro ainda não está maduro para uma astronomia
de seus limites essenciais - torcer um só cabelo científica.
da religião. Csta tese é sempre e igualmente O monoteísmo criacionista hebraico-
falsa, tanto se é sustentada por crentes ou por cristão e suo vitória sobre o religião e sobre
não crentes. Como as religiões não são formas a metafísica do mundo antigo foi sem dúvida
preliminares nem reproduções da metafísica a prim eira p o ssib ilid ad e fundamental de
0 da ciência, mas em seu núcleo possuem abrir livremente caminho no Ocidente para
uma 0volução de fato autônoma, 0 uma V0Z a pesquisa sistemática da natureza, foi um
que, por outro lado, umo roligião positiva tornar livre o natureza para a ciência, e isso
qualquer já preenche o espírito dos olmas e em uma ordem de grandeza que ultrapassa
dos grupos quando apareço uma metafísica provavelmente tudo aquilo que no Ocidente
ou uma ciência, por isso, se para a pesquisa aconteceu até hoje. O Deus espiritual, dotado
metafísica e científica, no sentido sociológico de vontade, trabalhador e criador, que o grego
de um fenômeno geral, deve tornar “livre" um e o romano não conheceram, foi, indepen­
campo de existência 0 de objetos, a religião dentemente da verdade ou falsidade de sua
deve, ao contrário, estar sempre submetida a hipótese, o máxima santificação da idéia do
uma modificação espontânea produzida pela trabalho e do domínio sobre as coisos infra-
sua própria energia.. Aquilo que faz tremor uma humanas; e ao mesmo tempo operou a maior
religião dominante nunca é a ciência, mas o desanim ação, mortificação, distanciamento
ressecamento e a morte de sua própria fé, de e racionalização da natureza que jamais se
seu ethos vivo, isto é, o fato de qu© no lugar verificou, vista em relação às culturas asiáticas
da fé "viva" 0 do ethos “vivo" insinue-se uma fé e à antiguidade.
"morta", um ethos “morto", e sobretudo que a fé M. Scheler,
se torne reprimida por nova forma germinal de Sociologia do saber.
( Z - a p \ ii\ \ o d é c i m o p r im e ir o

' H e i d e g g e r :

da jervomervoIogia ao exisfervciaIismo

• M artin Heidegger (1889-1976) - a figura mais representa- sucessor


tiva do existencialismo alemão - foi professor em Marburgo e, de Husserl
a partir de 1929, sucessor de Husserl na cátedra de Friburgo. Em em Friburgo
1933, H e id eg g er-q u e havia aderido ao nazism o-torna-se reitor ->§ 1
da Universidade de Friburgo e pronuncia o discurso A auto-afir­
mação da universidade alemã. Em 1927 sai o trabalho fundamental de Heidegger:
Ser e tempo. De 1929 são: O que é metafísica? e Sobre a essência do fundamento.
De 1937 é Hõlderlin e a essência da poesia; de 1947 é a Carta sobre o humanismo;
de 1950, Caminhos interrompidos; de 1959, A caminho para a linguagem.

• Com Ser e tempo Heidegger se propõe construir uma ontologia em grau de


estabelecer de modo adequado o sentido do ser.
Todavia, para atingir tal objetivo, é necessário saber quem é que propõe a
pergunta sobre o sentido do ser. Ser e tempo se resolve, assim, em uma analítica
existencial sobre o ente que se interroga sobre o sentido do ser; entretanto, nos
escritos de 1930 em diante tal perspectiva será abandonada para focalizar a aten­
ção sobre o próprio ser, sobre sua auto-revelação.
O homem que se coloca a pergunta sobre o sentido do ser é um homem que
já está sempre em uma situação, jogado nela; é, justamente, Da-sein (Ser-aí). E
este homem que é o Da-sein é existência, portanto, poder-ser e,
portanto, projeto que transforma as coisas em "utensílios": o ser Analítica
das coisas eqüivale ao seu ser utilizadas pelo homem. existencial:
A primeira característica fundamental do homem é, pois, ser-no-mundo;
o ser-no-mundo. E se o ser-no-mundo é um existencial, ou seja, ser<om-os-outros;
um traço típico do homem, também o ser-com-os-outros é um ser-para-a-morte
existencial: não há "um sujeito sem mundo", nem há "um sujeito 2-6
isolado dos outros". E o ser-no-mundo manifesta-se no assumir
o cuidado das coisas, o ser-com-os-outros se exprime em ter cuidado dos outros,
que se torna autêntico coexistir se os outros são ajudados a adquirir a liberdade
de assumir seus próprios cuidados.
Depois do ser-no-mundo e do ser-com-os-outros, o terceiro existencial é o ser-
para-a-morte. É possível a queda do homem no plano das coisas do mundo, isto
é, no plano "ôntico" ou "existentivo" - e isto é a dejeção -; mas existe a voz da
consciência que chama novamente à existência autêntica e que remete o homem
do plano ôntico ao ontológico, do existentivo ao existencial. E esta voz da cons­
ciência faz entender que a morte é uma possibilidade permanente da existência:
ela é a possibilidade de que todas as outras possibilidades se tornem impossíveis.
É assim que a morte nos proíbe perder-nos entre os objetos e de afogar nesta ou
naquela situação; ela mostra a nulidade de todo projeto. Apenas a compreensão
da possibilidade da morte como impossibilidade da existência faz o homem reen­
contrar seu ser autêntico.

• "Viver-para-a-morte": esta decisão antecipatória constitui o sentido autên­


tico da existência: a possibilidade do nada.
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia / éSxis+encialism o, -hlerm enêu+ica

"O ser-para-a-morte é essencialmente angústia". A angústia é experiência


reveladora do nada, põe o homem diante do nada, ao nada de sentido, ou seja,
ao não-sentido de todos os projetos humanos e da própria existência. A angústia
põe o homem diante do nada. E viver autenticamente implica
a experiência a coragem de olhar para a possibilidade do próprio não ser; e,
"reveladora " com efeito, "a existência anônima e banal não tem a coragem da
da angústia angústia diante da m orte". Para a existência autêntica o futuro
-+ § 7 -8 é um viver-para-a-morte, que não permite que o homem seja
arrastado nas possibilidades mundanas.

• A análise do Ser-aí, feita em Ser e tempo, não revela o sentido do ser, mas
o nada da existência. Na realidade, sustenta Heidegger na Introdução à metafísi­
ca (1953), a metafísica clássica, de Aristóteles até Hegel e Nietzsche, tentou uma
impossibilidade; procurou o sentido do ser indagando os entes. A metafísica tra­
dicional identificou o ser com a objetividade, com a simples-presença dos entes; é
metafísica que, na realidade, é "física"; física absorvida pelas coisas, que esqueceu
o ser, e que está na origem da "técnica", a qual, tornando a realidade - incluindo
o homem - puro objeto a ser dominado e manipulado, torna o
homem uma coisa entre coisas.
A "reviravolta" A técnica não é um evento acidental do Ocidente, mas
no pensamento
muito mais o produto resultante da reviravolta dada por Platão
de Heidegger:
o homem deve ao conceito de verdade. Nos primeiros filósofos (Anaximandro,
ser o pastor Parmênides, Herádito) a verdade era a-létheia, o des-velar-se do
do ser ser. Platão, ao contrário, inverteu a relação entre ser e verdade
-+§9-11 no sentido de que a verdade estaria no pensamento que julga
e que estabelece relações entre realidades, e não no ser que se
desvela ao pensamento. E, então, como recuperar a verdade do
ser, o seu des-velamento? Para falar da realidade nós usamos nossa linguagem
(palavras, regras gramaticais, sintáticas etc.). Mas esta linguagem pode falar dos
entes, das coisas, e não do ser. Este desvelamento pode ocorrer apenas por inicia­
tiva do próprio ser. O homem deve ser o pastor do ser, um pastor que deve "ser
guardião de sua verdade". E o ser se desvela - mas não na linguagem da ciência
ou na tagarelice inautêntica -; ele se desvela na linguagem autêntica da poesia:
"a linguagem é a casa do ser. Nesta moradia habita o homem. Os pensadores e
os poetas são os guardiões dessa moradia". O des-velar-se do ser não é obra do
homem; é um dom do ser.

^ Vid a e obras para o volume miscelâneo publicado em


comemoração dos setenta anos de Husserl),
bem como o livro Kant e o problema da
O expoente principal da filosofia da m etafísica. N esse entretempo, em 1927,
existência é M artin Heidegger. N ascido saíra o trabalho fundamental de Heidegger,
em Messkirch em 1889, estudou teologia Ser e tempo.
e filosofia. Aluno de H. Rickert, laureou-se Em 1933, Heidegger, que aderira ao
em filosofia em 1914 com uma tese sobre nazismo, torna-se reitor da Universidade
A doutrina do juízo no psicologismo. Em de Friburgo, pronunciando o discurso A
1916, como tese de habilitação ao ensino auto-afirmação da universidade alemã. M as
universitário, publicou A doutrina das ca­ pouco depois se demitiu do cargo de reitor.
tegorias e do significado em Duns Escoto. Seus escritos posteriores a esse período são:
Professor por alguns anos na Universidade Hõlderlin e a essência da poesia (1937), A
de M arburgo, em 1929 Heidegger sucedeu doutrina de Platão sobre a verdade (1942),
a Husserl na cátedra de filosofia em Fribur- republicado em 1947, juntamente com a
go, dando sua aula inaugural sobre O que Carta sobre o humanismo; A essência da
é a metafísica? Do mesmo ano é o ensaio verdade (1943); Caminhos interrompidos
Sobre a essência do fundamento (escrito (1950); Introdução ã metafísica (1953); O
Capitulo d é c i m o p Y ifflc itO - yV\ar+in -H e id e g g e r : d a fe n o m e n o lo g ia a o e x isten c ia lism o

que é a filosofia? (1956), A caminho rumo prescinde da existência, que se torna uma
à linguagem (1959); Nietzsche (1961), em determinação não essencial do ser. Escreve
dois volumes. Heidegger morreu em 1976. ele: “ A história do ser rege e determina toda
condição e situação humana” .

D a fenomenologia
á í í ^ S er-aí
ao existencialismo e a analítica existencial

O objetivo declarado de Ser e tempo A intenção da obra Ser e tempo, diz


é o de uma ontologia capaz de determinar Heidegger, é “ a elaboração concreta do
adequadamente o sentido do ser. M as, para problema do sentido do ‘ser’ ” . Entretanto,
alcançar esse objetivo, é preciso analisar o problema do sentido do ser propõe ime­
quem é que se propõe a pergunta sobre o diatamente a interrogação: “ A respeito de
sentido do ser. Enquanto Ser e tempo se qual ente deve ser compreendido o sentido
resume em uma analítica existencial sobre do ser?”
aquele ente (o homem) que se propõe a Pois bem, prossegue Heidegger, “ se o
pergunta sobre o sentido do ser, os escritos problema do ser deve ser proposto explici­
de 1930 em diante abandonam a proposi­ tamente em toda a sua transparência, então
ção originária: não se trata mais de analisar [...] torna-se necessário evidenciar as manei­
aquele ente que procura caminhos de acesso ras de penetração no ser, de compreensão
ao ser, mas sim o próprio ser e sua auto- e de posse conceituai de seu sentido, bem
revelação. E aqui, precisamente, reside a como a solução da possibilidade de escolha
“ reviravolta” do pensamento de Heidegger, correta do ente exemplar e a indicação do
que, no segundo período de sua filosofia, caminho autêntico de acesso a esse ente.

Martin Heidegger (1889-1976),


sucessor de Husserl
na Universidade de Friburgo,
é a figura mais representativa
da filosofia da existência.
T e r c e i r a p a r t e - F e n o m e n o lo g ia , E x is te n c ia lis m o , 'H e rm en ê u tica

Penetração, compreensão, solução, escolha, está sempre em uma situação, lançado nela
acesso — são momentos constitutivos da e em relação ativa com ela.
busca e, ao mesmo tempo, modos de ser O Ser-aí, isto é, o homem, não é so­
de determinado ente, mais precisamente mente aquele ente que propõe a pergunta
daquele ente que, nós que o buscamos, já sobre o sentido do ser, mas é também aquele
som os” . ente que não se deixa reduzir à noção de ser
Por tudo isso, “ elaboração do proble­ aceita pela filosofia ocidental, que identifica
ma do ser significa, portanto, o tornar-se o ser com a objetividade, ou seja, como diz
transparente de um ente, pôr aquele que Heidegger, com a simples-presença. As coi­
busca em seu ser” . E nisso consiste a analí­ sas são certamente diversas uma da outra,
tica existencial. mas todas são objetos (ob-jecta) colocados
O homem, portanto, é o ente que se diante de mim: e nesse seu estar presente a
propõe a pergunta sobre o sentido do ser. filosofia ocidental viu o ser.
Por isso, a proposição correta do problema M as o homem não pode se reduzir a
do sentido do ser requer uma explicitação objeto puro e simples no mundo; o Ser-aí
preliminar daquele ente que se propõe a jamais é uma simples-presença, uma vez que
pergunta sobre o sentido do ser: e “ esse ente, ele é precisamente aquele ente para o qual
que nós mesmos já somos sempre, e que as coisas estão presentes.
tem, entre as outras possibilidades de ser, O modo de ser do Ser-aí é a existência:
a de buscar, nós o indicamos com o termo “ A ‘natureza’, a ‘essência’ do Ser-aí consiste
Ser-aí (Dasein)” . em sua existência” . A essência da existência
Considerado em seu modo de ser, o ho­ é dada pela possibilidade, que não é possibi­
mem é precisamente Da-sein, ou seja, ser-aí. lidade lógica vazia nem simples contingência
E o “d a ” (aí) indica o fato de que o homem empírica. O ser do homem é sempre uma

---■ --- ' <


> :
i ■ E x is te n tiv o - e x is te n c ia l. Este j
\ par de conceitos heideggerianos é j
: explicado da maneira seguinte por :
; Gianni Vattimo, fino intérprete de :
í Heidegger: “Os adjetivos 'existen- \
i tivo' e 'existencial' (e xiste n z ie ll e ;
: existenzial) aludem à distinção entre ;
; o problema da própria existência (são
í existentivos os problemas concretos
que encontramos para resolver dia a ;
; dia em todos os níveis [...]) e o proble- j
; ma da existência que se põe em nível
i reflexo, poderemos dizer o problema I
: sobre a existência".
Nas palavras de Heidegger: "O pro- ;
■ blema da existência não pode ser ,
; posto claramente a não ser no próprio
■' existir. A compreensão de si mesmo
: que serve de guia neste caso nós a ;
; chamamos de existentiva. [...] O pro- i
^ blema a respeito dela [a existência] :
; focaliza, ao contrário, a discussão 1
daquilo que constitui a existência. Ao j
' conjunto dessas estruturas damos o ;
■ nome de existencialidade. A analítica
: dela não tem o caráter de uma com- ?
preensão existentiva, mas o de uma I
■ compreensão existencial". | Frontispício da terceira edição
de Sem und Zeit (Ser e tempoj.
r. . . - ..... J A primeira edição é a que foi publicada em Halle,
em 1927. ..
Capítulo décimo primeiro - A^ar+in ■ H eid egg er: d a fe n o m e n o lo g ia a o e x isten c ia lism o

possibilidade a atuar e, conseqüentemente, utilizáveis: o mundo vem a ser graças a seu


o homem pode escolher-se, isto é, pode ser utilizável. O ser das coisas eqüivale ao
conquistar-se ou perder-se. seu ser utilizadas pelo homem. O homem,
Neste sentido, o Ser-aí (ou homem) é “ o portanto, não é um espectador do grande
ente que depende de seu ser” e “ a existência teatro do mundo: o homem está no mun­
é decidida, no sentido da posse ou da ruína, do, envolvido nele, em suas vicissitudes.
somente por cada Ser-aí individual” . E transformando o mundo, ele forma e se
transforma a si mesmo. A atitude teórica e
contemplativa do espectador desinteressado
ser-no-m undo (na qual Husserl tanto insistira, bem como a
tradição filosófica ocidental em geral) é so­
mente um aspecto da mais ampla e geral uti-
O homem é aquele ente que se inter­ lizabilidade das coisas. As coisas são sempre
roga sobre o sentido do ser. O homem não instrumentos: se for conveniente, poderão
pode reduzir-se a simples objeto, isto é, a ser vistas como instrumentos que satisfazem
simples estar-presente. O modo de ser do um prazer estético; mas, se o consideramos
homem é a existência. A existência é poder- útil, poderão ser vistas “ objetivamente” ,
ser. M as poder ser significa projetar. Por isso, isto é, cientificamente, tendo como fundo
a existência é essencialmente transcendência, um projeto total. O homem compreende
identificada por Heidegger com a ultrapassa- uma coisa quando sabe o que fazer dela, do
gem. Desse modo, para ele, a transcendência mesmo modo como compreende a si mesmo
não é um entre os muitos possíveis compor­ quando sabe o que pode fazer consigo, isto
tamentos do homem, e sim sua constituição é, quando sabe o que pode ser.
fundamental: o homem é projeto e as coisas
do “ mundo” são originariamente utensílios
em função do projetar humano.
Tudo isso nos introduz à tratação da
característica fundamental do homem que
Heidegger chama de ser-no-mundo. O ho­ Se o ser-no-mundo (in der-Welt-sein) é
mem está-no-mundo. M as, como o homem um existencial, também o ser-com-os-outros
é constitutivamente projeto, o mundo — di­ (Mit-sein) é um existencial. N ão há “ um
ferentemente do que pensava Husserl — não sujeito sem mundo” e, ao mesmo tempo,
é originariamente uma realidade a contem­ não existe “ um eu isolado sem os outros” :
plar, e sim muito mais um conjunto de ins­ os outros não são inferidos como outros
trumentos “p a ra ” o homem, um conjunto “ eus” ; eles são dados, ao invés, como outros
de utensílios, ou seja, de coisas a utilizar, à “ eus” , desde a origem. Sendo a existência
mão, e não de coisas a contemplar como constitutivamente abertura, desde a origem
presentes. A existência é poder-ser, projeto, os outros “ eus” , como tais, participam do
transcendência em relação ao mundo: estar- mesmo mundo no qual eu vivo.
no-mundo, portanto, significa originaria­
mente fazer do mundo o projeto das ações
e dos comportamentos possíveis do homem.
A transcendência institui o projeto
ou esboço de um mundo: ela é um ato
de liberdade — aliás, para Heidegger, é a i ■ Dejeção. Com este conceito Hei- j
r degger entende a queda do homem j
própria liberdade. Entretanto, se é verdade : no plano das coisas do mundo, ou
que qualquer projeto radica-se em um ato j seja, a queda da existência ao nível ■
de liberdade, também é verdade que todo , da inautenticidade e banalidade das ;
projeto limita imediatamente o homem que ■ vicissitudes quotidianas.
se encontra dependente das necessidades e I "O estado da dejeção é aquele em que ;
limitado pelo conjunto daqueles utensílios r a existência se distancia de si, esconde j
que é o m undo. Estar-no-m undo, pois, a si mesma sua possibilidade própria
significa para o homem cuidar das coisas (que é a da morte) e se abandona ao •
necessárias a seus projetos, e ter a ver com * modo de ser anônimo que se caracte- -i
uma realidade-utensílio, meio para sua vida f riza pela tagarelice, pela curiosidade ;
• e pelo equívoco" (N. Abbagnano). i
e para suas ações.
Sendo o Ser-aí constitutivamente proje­ »■ ...... . .
to, o mundo existe como conjunto de coisas .■' ' ?...... "..■■■ '
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia , E x is te n c ia lis m o , -H e rm en ê u tica

Por outro lado, assim como o ser-no-


mundo do homem se expressa pelo cuidar
das coisas, do mesmo modo o seu ser-com- ■ Ô n tico -o n to ló g ico . Ainda Gianni
os-outros se expressa pelo cuidar dos outros, Vattimo: "O termo 'ôntico' constitui
coisa que constitui a estrutura basilar de com 'ontológico' um par de conceitos
toda possível relação entre os homens. E o paralelo a existentivo-existencial,
cuidar dos outros pode tomar duas direções: mesmo que os significados não se so­
na primeira, procura-se subtrair os outros de breponham completamente. Ôntica é
seus cuidados; na segunda, procura-se aju­ toda consideração, teórica ou prática,
do ente que pára nas características
dá-los a conquistar a liberdade de assumir do ente como tal, sem colocar em
seus próprios cuidados. N o primeiro caso, questão seu ser; ontológica, ao con­
temos um simples “ estar junto” e estamos trário, é a consideração do ser que
diante de uma forma inautêntica de coexis­ focaliza o ser do ente".
tência; no segundo caso, ao contrário, temos Nas palavras de Heidegger: a "descri­
um autêntico “ coexistir” . ção do ente intramundano" é ôntica;
a "interpretação do ser deste ente"
é ontológica. Procurando ser ainda
mais claros: a descrição dos objetos
O ser-para-a-morte, efetuada, por exemplo, pela ciência é
existência inautêntica uma descrição ôntica; o discurso sobre
o sentido da realidade e da própria
e existência autêntica ciência é questão ontológica.

O Ser-aí é e tem de ser; isto é, o homem


se encontra sempre em uma situação e en­
frenta essa situação graças a seu projetar.
M as, quando volta seus “ cuidados” para
o plano “ ôntico” ou “ existentivo” , isto é, “ ôntico” ou “ existentivo” , e sim no plano
ao plano dos entes em sua factualidade, o “ ontológico” ou “ existencial” , procurando
homem permanece na existência inautêntica. o sentido do ser dos entes, isto é, o sentido
Nesta, o homem manipula as coisas, utiliza- do seu existir.
as e estabelece relações sociais com outros A voz da consciência traz de novo
homens. Todos esses projetos, porém, em o homem envolvido pelos cuidados para
uma espécie de vertigem, atiram o homem diante de si mesmo, remetendo-o à questão
para o nível dos fatos. A utilização das coisas do que ele é no mais profundo do seu ser
se transforma em fim em si mesma. A lin­ e que não pode ocultar. Como já sabemos,
guagem se transforma então no palavrório a existência é poder-ser; e é nesse poder-ser
da existência anônima subjacente ao axioma que se baseia o projetar ou transcender do
“ as coisas são assim porque assim se diz” . homem. M as todo projetar leva o homem
Essa existência anônima procura en­ ao nível das coisas e do mundo.
cher o vazio que a caracteriza, recorrendo Tudo isso quer dizer que os projetos e
continuamente ao novo: ela se afoga na as escolhas do homem, no fundo, são todos
curiosidade. E, por fim, além do palavrório equivalentes: posso dedicar minha vida ao
e da curiosidade, a terceira característica da trabalho, ao estudo, à riqueza ou a qualquer
existência inautêntica é o equívoco: a indivi­ outra coisa, mas posso ser homem seja esco­
dualidade das situações, em uma existência lhendo uma possibilidade, seja escolhendo
devorada pelo palavrório e pela curiosidade, outra. E por essa razão que, considerando
desvanece na neblina do equívoco. A exis­ como última e decisiva uma dessas escolhas
tência inautêntica é existência anônima: é a ou possibilidades, o homem se decide por e
existência do “ se diz” e do “ se faz” . se dispersa em uma existência inautêntica.
A análise existencial revela que a exis­ Entretanto, entre as várias possibilida­
tência anônima é um poder ser constitutivo des, há uma diferente das outras, à qual o
do homem. E, segundo Heidegger, o que se homem não pode escapar: trata-se da morte.
encontra na base desse poder-ser é a dejeção, Com efeito, posso decidir dedicar minha vida
ou seja, a queda do homem no plano das a um objetivo ou a outro, posso escolher uma
coisas do mundo. Entretanto, existe a voz da profissão ou outra, mas não posso deixar de
consciência, que chama à existência, quando morrer. E então, quando a morte torna-se
então nos colocamos não mais no plano realidade, não há mais existência. Isso nos
C ã p l t u l o d é c i m o p T im e it O - A^artin -H e id e g g e r : d a fe n o m e n o lo g ia a o e x isten c ia lism o

faz entender que, enquanto há o existente,


a morte é possibilidade permanente, e essa é
a possibilidade de que todas as outras possi­ ■ Angústia. Por meio da experiência
bilidades se tornem impossíveis. Diz Heide­ da angústia Heidegger escancara uma
gger: “ Enquanto possibilidade, a morte não característica fundamental da existên­
dá ao homem nada a realizar” . Ela é a pos­ cia autêntica: o ser-para-a-morte, ou
sibilidade da impossibilidade de todo projeto seja, a aceitação da morte enquanto
"possibilidade absolutamente pró­
e, com isso, de toda existência: com efeito,
pria, incondicionada e intransponível
com a morte, não há outras possibilidades do homem".
a escolher nem novos projetos a realizar. A angústia é a experiência que revela
A voz da consciência, por conseguinte, ao homem a presença do nada, do
nos remete ao sentido da morte e revela a nada de sentido, ou, como escreve
nulidade de todo projeto: na perspectiva Heidegger em Ser e tempo, "da impos­
da m orte, todas as situações singulares sibilidade possível de sua existência".
aparecem como possibilidades que podem A angústia não é medo de perigos
se tornar impossíveis. Desse modo, a morte e sequer medo da própria morte;
impede que alguém se fixe em uma situação, ela, muito mais, permite ao homem
compreender a impossibilidade da
mostra a nulidade de todo projeto e funda
própria existência. Não é lícito, em
a historicidade da existência. suma, confundir a angústia com o
A existência autêntica, portanto, é um medo: "O medo encontra seu ponto
ser-para-a-morte. Somente compreendendo de apoio no ente do qual se toma cui­
a impossibilidade da morte como possibili­ dado dentro do mundo. A angústia,
dade da existência, e somente assumindo ao contrário, brota do próprio Ser-aí.
essa possibilidade com decisão antecipada, o O medo chega repentinamente do
homem encontra seu ser autêntico. intramundano. A angústia ergue-se
do ser-no-mundo enquanto jogado
ser-para-a-morte".
Temos medo de alguma coisa; angus-
^ c o m 9 e m d ,a n + e tiamo-nos de nada. E na angústia se
d a a n g u s tia ergue a voz da consciência que con­
voca à aceitação da própria finitude;
enquanto "a existência anônim a e
banal não tem a coragem da angústia
O “ viver para a morte” constitui, por­ diante da m orte".
tanto, o sentido autêntico da existência. O
“ viver-para-a-morte” nos afasta do estar
submerso nos fatos e nas circunstâncias.
A antecipação da morte (que não signi­
fica de modo algum realizá-la pelo suicídio)
dá sentido ao ser dos entes, mediante a morte, de modo que, para escapar à angús­
experiência do seu nada possível. tia, a existência anônima ocupa-se muito
Essa experiência, no entanto, não se com as coisas e afunda no reino do se (man):
tem por obra de ato intelectivo, e sim, mui­ ‘‘a existência anônima e banal não tem a
to mais, por meio do sentimento específico coragem da angústia diante da morte”. E
que é a angústia: “ O ser-para-a-morte é isso pode ser visto no fato de que a existência
essencialmente angústia” . A angústia põe o anônima banaliza a angústia no medo: “ o
homem diante do nada, do nada de sentido, medo é uma angústia que decaiu ao nível do
isto é, do não-sentido dos projetos humanos mundo, inautêntica e oculta para si mesma
e da própria existência. como angústia” . Sempre se tem medo de
Existir autenticamente implica ter a alguma coisa; ao passo que nos angustiamos
coragem de olhar de frente a possibilidade por nada: na angústia está presente o nada,
do próprio não-ser, de sentir a angústia do com seu poder de aniquilação.
ser-para-a-morte. A existência autêntica, por
conseguinte, significa a aceitação da própria
finitude. E é a essa aceitação que nos con­
clama a voz da consciência: a aceitação da
nossa própria finitude e negatividade.
A existência inautêntica e anônima, ao Dado que a existência é possibilida­
contrário, tem medo da angústia diante da de e projeto, escreve Heidegger em Ser e
T e r c e i r a p a r t e - F e n o m e n o lo g ia , E x is te n c ia lis m o , H e r m e n ê u tic a

tempo, entre as determinações do tempo humana à qual pertence, em uma espécie


(passado, presente e futuro) a fundamental de amor fati.
é o futuro: “ O projetar-se-adiante para o Em outros termos, o homem que vive
‘em-vista-de-si-mesmo’, projetar-se que se autenticamente continua a viver a vida, por
baseia no futuro, é característica essencial assim dizer, banal de seu tempo e de seu
da existencialidade. Seu sentido primário é povo, mas a vive com todo aquele afasta­
o futuro” . mento próprio de quem, com a experiência
Entretanto, o cuidado, que antecipa as antecipadora da morte, teve a revelação do
possibilidades, surge do passado e o implica. nada dos projetos humanos e da existência
E entre passado e futuro está o ocupar-se humana.
com as coisas que é o presente. Essas três
determinações do tempo encontram seu
significado em seu ser “ fora de si” : o futuro ;A metafísica ocidental
é um protender-se, o presente é estar preso como “esquecimento do s e /
às coisas e o passado é retornar à situação
de fato para aceitá-la.
Essa é a razão pela qual Heidegger A tarefa declarada de Ser e tempo é a
chama os três momentos do tempo de êx­ de determinar o sentido do ser. Entretanto,
tase, entendido em seu sentido etimológico essa interrogação — que se desdobrou na
de “ estar fora” . analítica existencial, ou seja, na análise das
Em todo caso, as três determinações estruturas da existência — teve como resul­
do tempo mudam com base no fato de se tado o de que o sentido do ser não pode ser
tratar de tempo autêntico ou de tempo obtido pela interrogação de um ente. A aná­
inautêntico, sendo o tempo autêntico o da lise da existência mostra que a existência au­
existência autêntica e o tempo inautêntico têntica é o nada de todo projeto e o nada da
tipificado pela preocupação com o sucesso, própria existência. A análise do Ser-aí, isto
é a atenção para com o êxito; ao passo que é, daquele ente privilegiado que se propõe a
na existência autêntica, que assume a morte pergunta sobre o sentido do ser, não revela
como possibilidade que qualifica a existên­ o sentido do ser, e sim o nada da existência.
cia, o futuro é um viver para a morte que Essas considerações são explicitadas
não permite ao homem ser envolvido pelas por Heidegger em sua Introdução à meta­
possibilidades mundanas. física (1953), que se apresenta como crítica
E se o passado autêntico é o não aceitar radical da metafísica clássica. De Aristóteles
passivamente a tradição, mas confiar nas a Hegel e ao próprio Nietzsche, a metafísi­
possibilidades que a tradição nos oferece e ca clássica fez o que a analítica existencial
reviver a possibilidade do homem que já foi, mostrou ser impossível: procurou o sentido
o presente autêntico é o instante, em que o do ser indagando os entes. A metafísica
homem repudia o presente inautêntico (onde identificou o ser com a objetividade, isto
o homem é absorvido sem descanso pelas é, com a simples presença dos entes. Desse
coisas a fazer) e decide seu destino. modo, ela não é metafísica, senão “ física”
Dessa análise do tempo, entre outras absorvida pelas coisas, que esqueceu o ser
coisas, derivam algumas conseqüências im­ e que, aliás, leva ao esquecimento desse
portantes no pensamento de Heidegger: esquecimento. Heidegger diz que Platão foi
1) Os significados do tempo usados o primeiro responsável pela degradação da
no pensamento comum e na ciência (a da- metafísica a física. Os primeiros filósofos
tabilidade e a medida científica do tempo) (Anaximandro, Parmênides, Heráclito) con­
constituem tempo inautêntico, já que re­ ceberam a verdade como um desvelar-se do
metem à existência lançada entre as coisas ser, como provaria o sentido etimológico de
do mundo. alétbeia, onde lantháno (velar) é precedido
2) A existência autêntica é a existência do alfa privativo. Entretanto, Platão rejei­
angustiada, que vê a insignificância de todos tou a verdade como “ não-ocultamento” do
os projetos e fins do homem. Essa insignifi­ ser e subverteu a relação entre ser e verdade,
cância torna todos os projetos equivalentes. baseando o ser na verdade, no sentido de
Pondo o homem diante da equivalente nu- que a verdade estaria no pensamento que
lidade dos fins, a angústia dá ao indivíduo julga e estabelece relações entre os próprios
a possibilidade de aceitar o próprio tempo “ conteúdos” ou “ idéias” , e não no ser que
e a ele permanecer fiel, ou seja, assumir se desvela ao pensamento. Desse modo, o
como próprio o destino da comunidade ser deveria se finalizar e relativizar para
C a p í t u l o décim o pYimciTO - yV\arfÍKv -H e id e g g e r : d a fe n o m e n o lo g ia a o e x isten c ia lism o

a mente humana, aliás, para a linguagem a filosofia de sua deformação “ humanista”


dela. até o “ mistério” do ser, a seu desvelar-se
originário. M as onde ocorre esse desvelar-se
do ser? Diz Heidegger que o ser se desvela
y \ lin g u a g e m da poesia na linguagem, não na linguagem científica
própria dos entes, ou na linguagem inau-
como linguagem do ser
têntica do palavrório, e sim na linguagem
autêntica da poesia. Escreve ele na Carta
sobre o humanismo: “ A linguagem é a casa
Entretanto, o patrimônio de palavras, do ser. E nessa morada habita o homem. Os
de regras lógicas, gramaticais e sintáticas, pensadores são os guardiães dessa m orada” .
que é a linguagem, estabelece limites intrans­ N a forma aurorai da poesia, a palavra tinha
poníveis ao que podemos dizer. A linguagem caráter “ sacral” : língua originária, a poesia
do homem pode falar dos entes, mas não do deu nomes às coisas e fundou o ser.
ser. Por isso, a revelação do ser não pode Essa fundação do ser, porém, espe­
ser obra de um ente, ainda que privilegiado cificada por Heidegger em Hôlderlin e a
como o Ser-aí, mas só pode se dar através essência da poesia (1937), não é obra do
da iniciativa do próprio ser. Aí reside a “ re­ homem, e sim dom do ser. Na linguagem
viravolta” do pensamento de Heidegger. O do poeta, não é o homem que fala, e sim a
homem não pode desvelar o sentido do ser. própria linguagem — e, nela, o ser. Conse­
Ele deve ser o pastor do ser e não o senhor qüentemente, a justa atitude do homem em
do ente. E sua dignidade “ consiste em ser relação ao ser é a do silêncio para ouvi-lo;
chamado pelo próprio ser para ser o guarda o abandono (Gelassenheit) ao ser é o único
de sua verdade” . Por isso, é preciso elevar comportamento correto. O homem deve,

WAS HEISST DENKEN?


VON

MARTIN HEIDEGGER

Frontispícto de Was Heisst Denken?


(O que significa pensar?,),
de Martin Heidegger (1954).
A esta pergunta Heidegger
assim respondia:
“ Denken ist danken"
( “pensar é agradecer”).
Em uma reflexão,
o biblista G. Ravasi
comentava a respeito:
“ O louvor, o agradecimento
m ax n ie m e y e r verlàg t ü b in g e n
são a própria alma do pensamento.
O homem racional
é um homem orante”.
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia , éLxis+encialism o, tH erm enêu+ica

portanto, tornar-se livre para a verdade, ser “ metafísica” , transformou-se em senhor


concebida como desvelamento do ser. E, do ente.
assim, liberdade e verdade se identificam. A reviravolta operada por Platão no
E, como a verdade, também a liberdade é conceito de verdade e, com isso, no destino
dom do ser ao homem, uma iniciativa do ser. da metafísica, explica o destino do Ocidente
sm m e o primado da técnica no mundo moderno.
A técnica não é instrumento neutro
nas mãos do homem, que pode usá-la para
o bem ou para o mal, nem constitui acon­
d â l y \ té c n ic a tecimento acidental no Ocidente.
e o m u n do o cid en tal Para Heidegger, a realidade é que a téc­
nica é o resultado natural daquele desenvolvi­
mento pelo qual, esquecendo o Ser, o homem
São, portanto, os “ pensadores essen­ se deixou arrastar pelas coisas, tornando a
ciais” (como Anaxim andro, Parmênides, realidade puro objeto a dominar e a desfrutar.
Heráclito e Hõlderlin) as testemunhas ou E esse comportamento, que não se de-
os ouvintes da voz do ser, e não a metafísica terá sequer quando chega, como acontece
ocidental. O senhor do ente não é o pastor hoje, a ameaçar as bases da própria vida,
do ser. é comportamento que se tornou onívoro;
M as o homem ocidental, precisamente trata-se de uma fé, a fé na técnica como do­
por força daquela “ física” que pretendia mínio sobre tudo.
................................. 211
Cã pltulo decim o ptittieifO - A^ar+in H e i d e g g e r ! d a j-en om en olo gia a o e x iste n c ia lism o _____

Csta possibilidade mais própria, incondi-


cionada e insuperável, o ser-aí não a cria aces­
H e id e g g e r sória e ocasionalmente no decurso de seu ser.
Se o ser-aí existe, já é também jogado nesso
possibilidade. Cm primeiro lugar e em geral o
ser-aí não tem nenhum "conhecimento", explícito
D fl morte é "umo iminência ou teórico, de estar entregue à morte e que esta
faça parte de seu ser-no-mundo. O ser-jogado
ameaçadora e s p e c ífic a " na morte se lhe revela do modo mais originário
e penetrante na situação emotiva da angústia,
fl angústia diante da morte é angústia “dian­
"fí morte é para o ser-aí a possibilidade te" do poder-ser mais próprio, incondicionado
de não-poder-mais ser-aí [...]. fí morte é a e insuperável. [...] fl angústia não deve ser
possibilidade da pura e simples impossibi­ confundida com o medo diante do falecimento.
lidade do ser-aí. físsim, a morte se revela Cia não é de modo nenhum uma tonalidade
como a possibilidade mais próprio, incondi- emotiva de ''depressão", contingente, casual, à
cionada e insuperável". mercê do indivíduo; enquanto situação emotiva
fundamental do ser-aí, ela constitui a abertura
do ser-aí ao seu existir como ser-jogado para
fí morte ameaça o ser-oí. fl morte não é seu próprio fim. Torna-se claro, assim, o conceito
de fato uma simples presença que ainda não existencial do morrer como ser-jogado no poder-
foi atuada, não é um faltar último reduzido ad ser mais próprio, incondicionado e insuperável,
minimum, mas é, antes de tudo, uma iminência e se aprofunda a diferença em relação ao sim­
que ameaça, ples desaparecer, ao puro deixar de viver e à
Mas ao ser-aí, como ser-no-mundo, mui­ "experiência vivida" do falecimento.
tas coisas ameaçam. O caráter de iminência O ser-para-o-fim não é o resultado de uma
ameaçadora não é exclusivo da morte. Uma deliberação repentina e irregular, mas faz parte
interpretação do gênero poderia fazer crer que a essencial do ser-jogado do ser-aí, tal como
morte seria um evento que se encontra no mun­ se revela, em um ou outro modo, na situação
do, ameaçador em sua iminência. Um temporal emotiva [...].
pode ameaçar como iminente, fl reparação de fl interpretação pública do ser-aí diz: "mor­
uma casa, a chegada de um amigo, podem ser re-se”; mos, como se alude sempre a cada um
iminentes; coisas estas que são simples-presen- dos outros e a nós na forma do s e anônimo,
ças, ou utilizáveis ou co-presenças. fl ameaço subentende-se: de vez em quando não sou eu.
da morte não tem um ser deste gênero. Com efeito, o s e é o ninguém. O "morrer" é de
Porém, pode ameaçar o ser-aí, por exem­ tal modo nivelado a um ©vento que certamente
plo, também uma viagem, uma explicação com se refere ao ser-aí, mas não concerne a ninguém
outros, a renúncia a algo que o próprio ser-aí propriamente. Nunca como neste discurso a
pode ser: possibilidades, estas, que pertencem respeito da morte torna-se claro que o pala­
ao ser-aí e que se baseiam no ser com os outros. vreado é acompanhado sempre do equívoco.
fl morte é uma possibilidade de ser que O morrer, que é meu de modo absolutamente
o próprio ser-aí deve sempre assumir por si. Na insubstituível, confunde-se com um fato de
morte o ser-aí ameaça a si próprio em seu po­ comum acontecimento que sucede ao se. Csse
der-ser mais próprio. Nessa possibilidade isso discurso típico fala da morte como de um “caso"
ocorre para o ser-aí puramente e simplesmente que tem lugar continuamente. Cie foz passar a
por causa de seu ser-no-mundo. fl morte é para morte como algo que é sempre já "acontecido",
o ser-aí a possibilidade de não-poder-mais-ser- ocultando seu caráter de possibilidade e, por­
aí. Como nessa possibilidade o ser-aí ameaça tanto, as características de incondicionabilidade
a si próprio, ele é completamente remetido ao e de insuperabilidade. Com esse equívoco o
próprio poder-ser mais próprio. Csta possibilida­ ser-aí coloca-se na condição de perder-se no se,
de absolutamente própria e incondicionado é, justamente em relação ao poder-ser que mais
ao mesmo tempo, a extrema. Cm sua qualidade do que qualquer outro constitui seu si-próprio
de poder-ser, o ser-aí não pode superara possi­ mais próprio. O se fundamenta e aprofunda a
bilidade da morte, fl morte é a possibilidade da tentação de ocultar a si próprio em relação ao
pura e simples impossibilidade do ser-aí. Assim, ser-para-a-morte mais próprio.
a morte se revela como a possibilidade mais Csse movimento de driblar a morte, ocul­
própria, incondicionado e insuperável. Como tando-o, domino a tal ponto a quotidianidade
tal é iminência ameaçadora específica. [...] que, no ser-junto, “os parentes mais próximos"
Terceira parte - fenomenologia, Cxistencialismo, Hermenêutico

vão freqüentemente repetindo ao "moribundo" revela-se tal sem conhecer nenhuma medida,
que ele certamente escapará da morte e poderá nenhum mais ou menos, ou seja, revelo-se como
voltor à tranqüila quotidianidade do mundo da a possibilidade do incomensurável impossibili­
qual cuidava. Csse "cuidava" quer assim "con­ dade da existência. Cm conformidade com sua
solar" o "moribundo", fls pessoas se preocupam essência, tal possibilidade não oferece nenhum
em remetê-lo ao ser-aí, ajudando-o a esconder ponto de apoio para projetar-se na direção de
de si mesmo o possibilidade de seu ser mais algo, para "colorir" o real possível e, portanto,
própria, incondicionada e insuperável. O s e esquecera possibilidade. O ser-para-a-morte,
preocupa-se com uma constante tranquilização como antecipação da possibilidade, torna p o s­
em relação à morte. I\la realidade, isso nõo vale sível a possibilidade e a torna livre como tal.
apenas para o "moribundo'', mas igualmente O ser-para-a-morte é a antecipação de
para os "consoladores". C também em caso de um poder-ser daquele ente cujo modo de ser
falecimento, o público não deve ser perturbado é o próprio antecipar-se. Na descoberta ante-
em sua tranqüilidade e em seu preocupar-se cipatória deste poder-ser, o ser-aí se abre a si
despreocupado. Não é raro se ver no morte mesmo em relação à sua possibilidade extremo.
dos outros uma perturbação social ou até falta Mas projetar-se sobre o poder ser mais próprio
de tato, em relação à qual a vida pública deve significo: poder compreender o si próprio den­
tomar suas medidas. tro do ser do ente assim desvelado: existir. O
Com essa tranqüilizoção que subtrai ao antecipar-se revela-se como a possibilidade
ser-aí a sua morte, o s e assume o direito e a da compreensão do poder-ser mais próprio e
pretensão de regular tacitamente o modo com extremo, isto é, como a possibilidade da exis­
que se deve, em geral, comportar diante da tência autêntica. [...] fl morte é a possibilidade
morte. Já o "pensar na morte” é considerado mais própria do ser-aí.
publicamente um temor pusilânime, umo fraque­ fl posssibilidade mais próprio e incon­
za do ser-aí e uma fuga lúgubre do mundo. O dicionada é insuperável. O ser paro esta
se não tem a coragem da angústia diante da possibilidade faz o ser-aí compreender que
morte. O predomínio do interpretação pública sobre ele incumbe, como extrema possibilida­
do 50 já sempre decidiu a respeito da situação de de sua existência, a renúncia a si mesmo,
emotiva que deve predominar em relação à fl antecipação não evade a insuperabilidade,
morte. No ongústia diante da morte, o ser-aí assim como o faz o ser-para-a-morte inautên­
é conduzido diante de si próprio enquanto re­ tico, mas, ao contrário, torna-se livre para ela.
metido à sua possibilidade insuperável. O s e O antecipatório tornar-se livre para a própria
preocupo-se em transformar esta angústia em morte liberta do dispersão nas possibilidades
medo diante de um evento que sobrevirá, fl an­ que se apresentam casualmente, de modo que
gústia, banalizada equivocamente em medo, é as possibilidades efetivas, ou seja, situadas
apresentada como uma fraqueza que um ser-aí aquém da insuperável, podem ser compreendi­
seguro de si não deve conhecer. [...] das e escolhidas autenticamente, fl antecipação
O ser-aí, enquanto ser-jogado-no-mundo, manifesta à existência, como sua possibilidade
já foi sempre entregue à própria morte. Cxis- extrema, o renúncia o si mesma, dissolvendo
tindo para a própria morte, ele morre efetiva de tal modo todo solidificação sobre posições
e constantemente até que nõo tenha chegado existenciais alcançadas.
a seu próprio falecimento. Que o ser-aí morra fí situação emotiva que pode manter aber­
efetivamente significa, além disso, que ele já ta a constante e radical ameaça que incumbe
sempre decidiu, de um ou de outro modo, quan­ sobre o si-mesmo - ameaça que provém do
to a seu ser-para-a-morte. O desvio quotidiano mais próprio e isolado ser do ser-aí- é a angús­
e degenerativo diante da morte é o ser-para-a- tia. Nela o ser-aí encontra-se diante do nada do
morte inoutêntico. Mas a inautenticidade tem na possível impossibilidade da própria existência,
sua base a autenticidade possível, fl inauten­ fl angústia se angustia por causa do poder-ser
ticidade caracteriza um modo de ser em que o do ente assim constituído, e abre de tal modo
ser-aí pode extraviar-se - e no mais das vezes sua possibilidade extrema. Como a antecipação
se extraviou - mas no qual não é obrigado a isola totalmente o ser-aí e nesse isolamento foz
se extraviar necessária e constantemente. [...] com que ele se torne certo da totalidade de seu
fl morte, enquanto possibilidade, não poder-ser, a situação emotiva fundamental da
oferece nado "a realizar" para o homem e nado ongústio pertence o esta autocompreensão do
que ele posso ser como realidade atual. Cia é a ser-aí em seu próprio fundamento. O ser-para-
possibilidade do impossibilidade de todo com­ a-morte é essencialmente angústia.
portamento para..., de todo existir. Na antecipa­ M. bteictegger,
ção esto possibilidade se torna "sempre maior", Ser 0 tempo.
................................. 213
Cãpítulo décifflO ptiffieivo - M a r+ m 'H e id e g g e r : d a f e n o m e n o lo g ia a o e x is te n c ia lis m o — .—

época esteja ainda reservada uma reviravolta,


2
"No tempo esta poderá ocorrer apenas se o mundo se
revirar de cima até embaixo, isto é, caso se
do noite do mundo revire a partir do abismo. Na época da noite
o poeto conto o sagrado" do mundo o abismo deve ser reconhecido e
sofrido até o fundo. Mas, para que isso ocor­
ra, é preciso que haja aqueles que chegam
"Poetas são os mortais que [...] seguem ao abismo.
as pegadas dos deuses que fugiram, per­ fl reviravolta da época não acontece por­
manecem sobre e ssas pegodas, e assim que um novo Deus irrompe ou porque o velho
reencontram a direção da reviravolta para sai fora de seu esconderijo. €m que lugar po­
seus irmãos mortais". deriam se estabelecer se os homens não lhes
houvessem preparado um lugar? Como poderia
subsistir um lugar adequado para Deus se antes
não se difundisse o esplendor da divindade
"...6 por que os poetas no tempo da po­ sobre tudo aquilo que existe?
breza?", pergunta a elegia de Hõlderlin Pão e Os deuses “de antes" “voltam" apenas
vinho. Hoje compreendemos com dificuldade a no “tempo justo", isto é, apenas se os homens,
pergunta. Como poderemos entender a respos­ no que a eles se refere, tiverem realizado uma
ta que Hõlderlin dá? reviravolta no lugar justo e do modo justo. Por
“...£ por que os poetas no tempo da po­ isso Hõlderlin diz, no hino incompleto Mnemo-
breza?”. R palavra “tempo" alude à época da sine, composto pouco depois da elegia Põo
qual nós ainda hoje somos parte. Com a vinda e 0 vinho:
o sacrifício d<? Cristo teve início, segundo a con­
cepção histórica de Hõlderlin, o fim do dia dos ...Nem tudo
deuses. Caiu a tarde. Desde quando os “três é possível oos celestes. Com efeito,
que são um" - Hércules, Dioniso e Cristo - dei­ mois depresso chegom
xaram o mundo, a tarde do tempo mundano os mortais ao fundo do abismo.
caminha para a noite, fl noite do mundo estende Mas assim ocorre para eles a reviravolta.
suas trevas. Doravante a época caracteriza-se Longo é o tempo, mas realiza-se
pela ausência de Deus, pela “falta de Deus". a Verdade.
R falta de Deus, como é sentida por Hõlderlin,
não nega a persistência de um comportamento Longo é o tempo de pobreza da noite do
cristão para com Deus da parte dos indivíduos e mundo. Csta deve lentamente caminhar para
das Igrejas, e não avalia essa relação de modo seu meio. No meio dessa noite, a pobreza
negativo, fl falta de Deus significa que não há do tempo chega a seu ápice. Cntão o tempo
mais nenhum Deus que reúna em si, visível e mísero nem sequer percebe mais sua própria
claramente, os homens e as coisas, ordenando indigência. Csta incapacidade, pela qual a
com esta reunião a história universal 0 a estadia própria indigência da pobreza é esquecida, é
dos homens nela. Mas, na falta de Deus, ma­ a verdadeira e própria pobreza do tempo. R
nifesta-se algo ainda pior. Não só os deuses e pobreza é obscurecida completamente quan­
Deus fugiram, mas apagou-se o esplendor de do aparece apenas mais como necessidade a
Deus na história universal. O tempo da noite ser satisfeito. Mas a noite do mundo deve ser
do mundo é o tempo da pobreza porque se entendida como um destino que sobrevêm por
torna sempre mais pobre. Já se tornou tão po­ fora da alternativa de otimismo e pessimismo.
bre que não pode reconhecer a falta de Deus Talvez estejamos no momento em que a noite
como falta. do mundo caminha para a sua meia-noite.
Por causa desta falta também o mundo Talvez esta época do mundo esteja chegando
perde todo fundamento que fundamente, falta ao tempo da pobreza extrema. Mas talvez
de fundamento ou abismo é uma expressão não, talvez ainda não, talvez ainda não ainda,
que originariamente significa o terreno, o apesar da indigência ilimitada, apesar de todos
fundo para o qual, como extremo da profun­ os sofrimentos, apesar da miséria sem nome,
didade, algo pende ao longo da própria pen­ apesar da extenuante falta de paz, apesar do
dência. fl seguir o termo passa a significar a crescente extravio, longo é o tempo, porque até
falta completa de fundamento. O fundamento o terror, por si tomado como possível causa da
é o terreno sobre o qual enraizar-se e ficar de reviravolta, é ineficaz até que os mortais não
pé. fl época à qual falta o fundamento pende tiverem realizado a reviravolta. Mas a viragem
sobre o abismo. Posto que, em geral, a esta é realizada por parte dos mortais apenas se
Terceira parte - fenomenologia, Cxistencialismo, Hermenêutica

eles reencontram sua própria essência. Tal Hõlderlin responde timidamente pela boca
essência consiste no fato de que eles atingem do amigo poeta Heinse, a quem a pergunta é
o abismo mais depressa que os celestes. Caso dirigida:
se considere sua essência, eles aparecem
mais próximos da não-presença (Rb-uuesen) mas eles, dizes tu, são semelhantes aos
porque estão investidos pelo estar-presente sacerdotes sagrados do deus do vinho, errantes
(,fín-uuesen), ou seja, pelo ser, assim como é de terra em terra na santa noite.
chamado desde os tempos mais remotos. Como
o estar-presente no próprio tempo se esconde, Poetas são os mortais que, cantando
ele já é não-presença. Portanto, o abismo (ftb- gravemente o deus do vinho, seguem as pe­
grund) guarda e tudo retém. No Hino aos Titãs gadas dos deuses que fugiram, permanecem
(IV, 2 1 0 ), Hõlderlin designa o abismo como sobre essas pegadas, e assim reencontram a
"aquele que tudo retém". O mortal que precisa direção da reviravolta para seus irmãos mortais.
(.muss) chegar ao abismo antes e diversamente O éter, no qual apenas os deuses são deuses,
dos outros, descobre os sinais que o abismo é a divindade deles. O elemento deste éter,
mantém em si. Cstes sinais são, para o poeta, em que a própria divindade está presente, é
as pegadas dos deuses que fugiram. Segundo o sagrado. O elemento do éter para o retorno
Hõlderlin, Dioniso, o deus do vinho, deixa esta dos deuses, o sagrado, é a pegada dos deu­
pegada aos privados de Deus que jazem nas ses que fugiram. Mas quem estará em grau
trevas da noite do mundo. Com efeito, o Deus de reencontrar essa pegada? As pegadas,
da videira guarda na videira e em seu fruto a freqüentemente, são muito pouco visíveis, e
pertença recíproca originária de Terra e Céu, são sempre a herança de uma indicação apenas
como o lugar da celebração da união de homens pressentida. Ser poeta no tempo da pobreza
e deuses. Apenas nesse lugar - se em algum significa: cantando, inspirar-se na pegada dos
lugar - podem restar ainda para os homens deuses que fugiram, é por isso que no tempo
privados de Deus algumas pegadas dos deuses da noite do mundo o poeta canta o sagrado.
que fugiram. Cis porque, na linguagem de Hõlderlin, a noite
do mundo é a noite sagrada.
...6 por que os poetas no tempo da p o ­ M. Heidegger,
breza? Caminhos interrompidos.
..................... .......... ..... (^ a p íiu lo d é c im o segu n do .....................

Tm cos essenciais
e desenvolvimentos do exis+encialismo

I. P erspectivas g erais

• O existencialismo ou filosofia da existência se impõe na Europa no período


entre as duas guerras e se expande, por vezes até se tornar moda, nos dois decênios
sucessivos à Segunda Guerra Mundial.
Diversamente das filosofias otimistas - como o idealismo, o positivismo e o
marxismo - o existencialismo dirige sua atenção sobre um homem finito, "jogado
no mundo", imerso e dilacerado em situações problemáticas ou absurdas.
É do homem concreto que os existencialistas pretendem falar,
do homem na individualidade de sua existência. É a existência, a existência
com efeito, o modo de ser do homem: é um poder-ser, um sair é um
fora (um ex-sistere) para a decisão e a autoplasmação. As coisas "poder-ser"
e os animais são aquilo que são; mas o homem será aquilo que ^ § 7
decidiu ser. Portanto: a possibilidade é o modo de ser constitutivo
da existência. Existência aberta à transcendência, que, nas diferentes propostas
dos pensadores existenciais, se configurará como: Deus ou o mundo, a liberdade,
o nada.

• A raiz remota do existencialismo é o pensamento de Kierkegaard; a feno­


menologia, ao contrário, é sua raiz próxima. E entende-se bem como as temáticas
"existenciais" tenham se tornado objeto de tantos trabalhos lite­
rários (teatro e romances: Sartre, Camus, Mareei) que se apoiaram As raizes
nas obras mais refinadamente filosóficas. do
Os filósofos existenciais mais famosos são: M artin Heidegger existencialismo
e Karl Jaspers, na Alemanha; Jean-Paul Sartre, Gabriel Mareei, e seus maiores
Maurice Merleau-Ponty e Albert Camus, na França; Nicola Ab- ^ P °J ” íes
bagnano, na Itália. '

A existência duas décadas posteriores à Segunda Guerra


e* “ p o dJ e ^ - s e ^ //, is
• to
j_ e.,
/ M undial. Assim, se consideramos o tempo
de seu nascimento e de seu crescimento,
u\ncerfezciy risco e decisão” é fácil perceber que o existencialismo ex­
pressa e leva à conscientização a situação
histórica de uma Europa dilacerada física
O existen cialism o ou filo so fia da e moralmente por duas guerras; de uma
existência é a vasta corrente filosófica humanidade européia que, entre as duas
contemporânea que se afirma na Europa guerras, experimenta em muitas de suas
logo depois da Primeira Guerra M undial, popu lações a perda da liberdade, com
impõe-se no período entre as duas guerras regimes totalitários que, embora de confi­
e se desenvolve ainda mais e se expande guração diversa, atravessam-na dos Urais
até tornar-se m oda principalm ente nas ao Atlântico e do Báltico à Sicília.
Terceira parte - Fenom enologia/ E x is te n c ia lis m o , H e rm e n ê u tic a

A época do existencialismo é época de será o que ele decidiu ser. Seu modo de ser,
crise: a crise do otimismo romântico que, a existência, é um poder-ser, um sair para
durante todo o século X IX e a primeira dé­ fora em direção à decisão e à automoldagem,
cada do século X X , “garantia” o sentido da como escreveu Pedro Chiodi, um ex-sistere.
história em nome da razão, do absoluto, da A existência é, portanto, um poder-ser e, por
idéia ou da humanidade, “fundamentava” conseguinte, é “ incerteza, problematicidade,
valores estáveis e “assegurava ” um progres­ risco, decisão, impulso para a frente” . Mas
so certo e irreprimível. impulso em direção a quê? E precisamente aí,
O idealismo, o positivismo e o marxis­ diz ainda Chiodi, que começam a se dividir
mo são filosofias otimistas, que presumem as correntes do existencialismo, conforme as
ter captado o princípio da realidade e o respostas, que são: Deus, o mundo, o próprio
sentido progressivo absoluto da história. O homem, a liberdade, o nada.
existencialismo, porém, considera o homem
como ser finito, “ lançado no mundo” e con­
tinuamente dilacerado por situações proble­
máticas ou absurdas. E é precisamente pelo P V ess up ostos fôm otos
homem, o homem em sua singularidade, que e proxim os
o existencialismo se interessa.
O homem do existencialismo não é d o existencialism o
o objeto que exemplifica uma teoria, um
membro de uma classe ou um exemplar de
gênero substituível por outro exemplar qual­ Precisados esses traços conceituais,
quer do mesmo gênero. Da mesma forma, o ainda que brevemente, é preciso fixar mais
homem considerado pela filosofia da exis­ alguns pontos:
tência também não é um simples momento 1) N a perspectiva da história das
do processo de uma razão oniabrangente idéias, o existencialismo se apresenta como
ou uma dedução do sistema. A existência é uma das manifestações da grande crise do
indedutível, e a realidade não se identifica hegelianismo, manifestações que se expres­
com a racionalidade nem se reduz a ela. saram no pessimismo de Schopenhauer, no
A não identificação da realidade com humanismo de Feuerbach e na filosofia de
a racionalidade é acompanhada, como ele­ Nietzsche e que, por outro lado, encontram
mento característico, por três outros pontos sua correspondência na obra literária de
básicos do pensamento existencialista, que Dostoiewski e de Kafka, permeada de tão
são: profunda problematicidade humana.
1) a centralidade da existência como 2) N as raízes do existencialismo en­
modo de ser daquele ente finito que é o contra-se o pensamento de Kierkegaard. E o
homem; existencialismo apresentou-se como explíci­
2) a transcendência do ser (o mundo ta Kierkegaard-Renaissance. O Comentário
e/ou Deus) com o qual a existência se re­ à epístola aos Romanos, do teólogo Karl
laciona; Barth (1886-1968) é de 1919. E foi exata­
3) a possibilidade como modo de ser mente esse escrito que difundiu na Alemanha
constitutivo da existência e, pois, como ca­ algumas das temáticas kierkegaardianas,
tegoria insubstituível na análise da própria com seu tremendo sentido trágico da exis­
existência. tência e a lúcida consciência da radicalidade
M as de que modo se qualifica o con­ do mal e do nada.
ceito de existência dentro do existencialis­ 3) Se Kierkegaard é a raiz remota do
mo? A primeira coisa que se deve destacar existencialismo, a Fenomenologia é sua raiz
é que a existência é constitutiva do sujeito próxima. Com efeito, o existencialismo arti­
que filosofa, e o único sujeito que filosofa cula-se em contínuo exercício de análise da
é o homem; por isso, ela é exclusivamente existência e das relações da existência huma­
típica do homem, já que o homem é o único na com o mundo das coisas e o mundo dos
sujeito que filosofa. Além disso, a existência homens. A existência humana não pode e
é um modo de ser finito; e ela é possibilida­ não deve ser deduzida a priori; ao contrário,
de, isto é, um poder-ser. A existência não é ela deve ser escrupulosamente descrita assim
precisamente uma essência, coisa dada por como se manifestam suas variadas formas
natureza, realidade predeterminada e não da experiência humana efetiva.
modificável. As coisas e os animais são o que 4) A análise da existência não foi ob­
são e permanecem o que são. M as o homem jeto somente de obras filosóficas, como é o
Cãpltulo dédwO segundo - X r a ç o s e s s e n c ia is e d e s e n v o lv im e n t o s d o e x is t e n c ia lis m o

caso da analítica existencial realizada com o absoluto de Hegel com o homem-no-mundo;


método fenomenológico por Heidegger em Jean Hyppolite (1908-1968), que, por seu
Ser e tempo, mas também de vasta obra lite­ turno, sustentou (em Lógica e existência,
rária (teatro, romances) que, sobretudo com 1953) que “ o homem existe como o ser-aí
Sartre e Simone de Beauvoir, sublinhou os natural no qual aparece a consciência de si
traços menos nobres, mais tristes e doloro­ universal do ser” .
sos das vicissitudes humanas e, com Gabriel 4) O absurdo da existência humana se
Mareei, destacou os traços mais positivos expressa de modo apaixonante e envolvente
da experiência da pessoa, que se constitui no Mito de Sísifo (1943), de Albert Camus
na disponibilidade à transcendência e na (1913-1960). Este, com O homem em re­
comunhão com os outros. volta, de 1951, projetou a revolta metafísica
do homem, que “ se ergue contra a própria
condição e contra toda a criação” .
^ O s p en sad ores
m ais representativos
do existencialism o

1) Os representantes mais prestigiosos


do existencialismo são M artin Heidegger
(cujo pensamento foi tratado no capítulo
anterior) e K arl Jasp e rs, na Alem anha;
Jean-Paul Sartre, Gabriel Mareei, Maurice
Merleau-Ponty e Albert Camus, na França;
Nicola Abbagnano, na Itália.
2) N o panoram a do existencialismo
francês, não se deve esquecer que viveram
exilados em Paris os dois maiores represen­
tantes do existencialismo russo, isto é, Ches-
tov e Berdjaev. Lev Chestov (1866-1938),
polemizando contra as pretensões da razão e
da ciência, defendeu a idéia de uma fé incon-
dicionada. Nikolai Berdjaev (1874-1948),
contra o coletivismo comunista e contra o
hedonismo individualista burguês, procurou
fazer valer a idéia da pessoa humana como
interseção de um “ cristianismo autêntico”
e de um “ socialismo autêntico” .
3) Ainda na França, houve uma espécie
de “ renascimento existencialista” de Hegel,
daquele Hegel que, na Fenomenologia do
espírito, enfrenta os temas da existência,
como a finitude humana, a morte, a relação
com os outros etc. Foram expoentes desse
“ existencialism o h egeliano” Jean Wahl
(1888-1974), autor da obra A infelicidade Albert Camus é um dos pensadores
da consciência na filosofia de Hegel; Alexan- mais representativos do existencialismo.
der Kojève (1900-1968), que, em Introdu­ Em suas obras exprime-se, de modo apaixonante,
ção à leitura de Hegel (1947), identificou o o absurdo da existência humana.
Terceira parte - P e n o m e n o lo g ia , . E x i s t e n c i a l is m o , 'H e r m e n ê u t ic a

II. Karl ^ a s p e r s
e o naufrágio d a existência

• Médico e filósofo, Karl Jaspers (1883-1969) - professor de filosofia em Hei-


delberg até 1937 (quando foi expulso pelos nazistas) - publica em 1913 a Psico-
patologia geral; em 1919, a Psicologia das intuições do mundo. A obra principal
de Jaspers é a Filosofia (1932), em três volumes: Orientação filosófica no mundo;
Clarificação da existência-. Metafísica). De 1936 é Nietzsche; de 1938, a Filosofia
da existência.
Embora vindo da medicina, Jaspers não reduz de modo nenhum a filosofia
à ciência; a filosofia, em seus problemas e em suas tentativas específicas de solu­
ção, é autônoma em relação à ciência, mas não dela separada:
o conhecimento «a filosofia e a ciência não são possíveis uma sem a outra". E a
cientifico atitude científica - afirma Jaspers - "é a pronta disposição do pes-
cfsentido quisador a aceitar qualquer crítica às suas opiniões". Além disso,
do mundo deve-se salientar que a ciência não pode oferecer-nos valores ou
dar-nos o sentido da vida. "O conhecimento científico [...] não
estabelece valores válidos; [...] ele remete a outro fundamento
de nossa vida". A ciência é conhecimento de objetos, orientação
no mundo; ela não é conhecimento do ser, não dá o sentido do mundo. E quanto
mais a ciência avança em sínteses sempre mais amplas, a totalidade, o ser "sempre
retrocede e se afasta"; existe um tudo-que-abraça que sempre e continuamente
se anuncia a nós.

• Além do intelecto, ao qual está ligado o comportamento científico, há tam ­


bém a razão, fonte de iluminação-da-existência. A razão mostra que a existência
é não-objetivável (não é um indiferente dado de fato) e histórica (cada um vive
em sua situação). A existência consciente percebe que tudo tem um fim: "no fim
há o naufrágio".
E aqui encontramos as que Jaspers chama de cifras da trans­
As "cifras" cendência: coisas e instituições que passam e acabam não nos
da fazem conhecer a transcendência - esta não é cognoscível como
transcendência os entes do mundo - mas nos remetem a ela como ao Outro do
-> § 4-6 qual elas são portadoras. Também é necessário precisar aqui que
a transcendência se revela principalmente nas situações-limite:
estou sempre em uma situação, não posso viver sem luta e dor, sou destinado à
morte. Tais situações são imutáveis, intransformáveis, são um muro contra o qual
nos chocamos fatalm ente. E "quando o eu entra em falência em seu querer bastar
a si próprio, pode-se dizer que ele está pronto para aquilo que é o outro diante
dele, ou seja, para a transcendência". Uma transcendência que é sempre entrevista
e jamais conhecida.
Por conseguinte, o homem religioso será não dogmático e sempre respeitoso
em relação àquelas filosofias que buscam a única verdade que está além de todas as
verdades, que é o horizonte que transcende todas elas e para o qual todas se movem.

V id a e o b m s Laureado em medicina, Jaspers consi­


derava M ax Weber (que conheceu em 1909)
como seu mestre. Professor de filosofia na
Juntamente com Heidegger, Karl Ja s ­ Universidade de Heidelberg até 1937 (quan­
pers (Oldenburg, 1883 — Basiléia, 1969) é do foi expulso por seu antinazismo), depois
outro grande pensador do existencialismo de ter publicado em 1913 a Psicopatologia
alemão. geral (onde os fenômenos psicopatológicos
Cãpltulo décimo segundo - T r a ç o s e s s e n c ia is e d e s e n v o lv im e n t o s d o e x is t e n c ia lis m o

são analisados com o método fenomenoló­ nhecimento científico refere-se a objetos


gico), publicou em 1919 a Psicologia das determ inados; ele “ não sabe o que é o
intuições do mundo, obra que, contendo próprio ser” .
os temas fundamentais desenvolvidos por b) “ O conhecimento científico não está
Jaspers em seus trabalhos posteriores, pode em condições de dar nenhuma orientação
ser considerada como o primeiro escrito da para a vida. N ão estabelece valores válidos;
filosofia da existência. [...] ele remete a outro fundamento da nossa
A obra central e mais destacada de vida” .
Jaspers é Filosofia (1932), em três volumes: c) “ A ciência não pode dar nenhuma
1) Orientação filosófica no mundo; 2) E s­ resposta à pergunta relativa a seu verdadeiro
clarecimento da existência; 3) Metafísica. sentido: o fato de que a ciência existe baseia-
D epois, apareceram : R azão e existência se em impulsos que não podem ser, sequer
(1935), Nietzsche (1936), D escartes e a eles, dem onstrados cientificamente como
filosofia (1937), Filosofia da existência verdadeiros e como devendo existir” .
(1938), A verdade (1947), A fé filosófica O conhecimento científico, portanto, é
(1948), Origem e fim da história (1949) e objetivo no sentido de que vale para todos.
Introdução à filosofia (1950). Entretanto, não resolve todos os problemas;
Filósofo de elevada sensibilidade mo­ ao contrário, exclui precisamente os que
ral, ele se opôs corajosamente ao nazismo e, são os mais importantes para o homem.
convencido de que “ não há grande filosofia O conhecimento científico é conhecimento
sem pensamento político” , Jaspers escreveu dos objetos de fato, e Jaspers o chama de
sobre o problema da bomba atômica e so­ orientação no mundo. Como orientação no
bre a Culpa da Alemanha (1946), opúsculo mundo, a ciência é e permanece inconclusa,
que conclui recordando Jeremias, que não pois é sempre conhecimento de determinado
se desespera sequer depois da destruição objeto no mundo, e o mundo como “ totali­
de Jerusalém e da deportação dos judeus. dade” permanece sempre além dele. Escreve
Pergunta-se Jaspers: “ O que significa isso? Jaspers: “ Nenhum ser conhecido é o ser” .
Significa que Deus existe — e isso basta. Se
tudo desvanece, Deus existe: esse é o único
ponto firme para nós” .
Jaspers, portanto, chegou à filosofia
partindo da medicina. O interesse pela ciên­ 3 O se r com o Hon iabran 0 en+e//
cia foi sempre vivo em sua especulação,
tanto que chegou a dizer que, se não deve
existir “ turva contaminação” entre ciência Naturalmente, ocorrem sínteses cientí­
e filosofia, entretanto “ a filosofia e a ciência ficas cada vez mais amplas, caminha-se em
não são possíveis uma sem a outra” , mas direção a horizontes cada vez mais vastos,
cada uma tem necessidade da outra. mas esse movimento procede necessaria­
mente ao infinito, da mesma forma que o
caminho de quem quisesse alcançar o hori­
p ip ^ zonte físico, que se desloca, justamente, com
com o o rie n ta çã o no mundo quem caminha.
O sentido do ser e a com preensão
da totalidade oniabrangente determinam,
M as o que é a ciência, ou melhor, a pois, o “ m alogro” da pesquisa. O absoluto
atitude científica, de que fala Jaspers? Para está sempre além, além de todo horizonte
Jaspers, a atitude científica, antes de mais científico. Escreve Jaspers em sua Filoso­
nada, caracteriza-se pela consciência meto­ fia: “ Se eu quiser captar o ser enquanto
dológica dos limites de validade da ciência ser, estou irremediavelmente destinado ao
e, além disso, “ a atitude científica é a pronta naufrágio". E isso pela razão de que, “ no
disposição do investigador a aceitar toda processo da investigação objetiva, nós nos
crítica às suas opiniões” . aproximam os, a cada vez, de totalídades
Estabelecidas essas premissas, Jaspers aparentes, as quais, porém, nunca se nos
fixa com extrema lucidez os limites do saber demonstram como o ser pleno e autêntico,
científico. Esses limites podem ser brevemen­ mas, ao contrário, devem ser ultrapassadas
te caracterizados do seguinte modo: em extensões sempre novas” . Isso explica
a) “ O conhecimento científico o fato que “ o ser não pode nos ser dado
das
coisas não é conhecimento do ser” . O co­ fechado e os horizontes são ilimitados para
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia , E x is te n c ia lis m o , -H erm en êu tica

nós. O ser nos arrasta em todos os sentidos estudo, diz Jaspers, deixa e sempre deixará
em direção ao infinito” . fora de si a existência.
Q uerem os conhecer o ser, m as ele Em sua concretude, singularidade e
“ sempre recua e se afasta” . Jaspers chama irrepetível excepcionalidade, a existência
esse ser de o oniabrangente: “ O oniabran- não pode ser objeto ou exemplar indiferente
gente é, portanto, o que sempre e continua­ e substituível de teorias ou discursos univer­
mente se anuncia a nós — e se nos anuncia sais. A existência é sempre a minha existên­
não enquanto ele próprio vem até diante de cia, singular e inconfundível, como viram
nós, mas enquanto é a fonte de toda outra Kierkegaard e Nietzsche. Tal é, portanto, o
coisa” . primeiro resultado importante da filosofia
entendida como clarificação da existência:
a existência é não-objetivável; em sua auten­
4 n ã o -o b je tiv id a d e
ticidade, não pode ser identificada com um
Dasein (ser empírico), com um dado de fato
d a e x is tê n c ia compreensível pelo intelecto científico.
A existência não é um dado de fato
indiferente, mas “ uma questão pessoal” . O
Entretanto, além do intelecto (isto é, homem não é dado, não é um dado de fato;
a ciência), existe a razão. E é exatamente à ele pode ser.
razão que Jaspers confia aquela iluminação- M as o que o homem pode ser?
da-existência em que consiste a filosofia. Sua escolha, afirma Jaspers, está apenas
Escreve Jaspers: “ Existe um pensar no qual no reconhecimento e na aceitação daquela
nada se conhece que tenha validade universal possibilidade — na única possibilidade
e que force ao assentimento, mas que pode — que é a situação em que o homem se
revelar conteúdos que servem de sustentação encontra: “ Eu estou em uma situação his­
e norma para a vida. Esse pensar penetra e tórica se me identifico com uma realidade
abre caminho, iluminando e não mais co­ e com sua tarefa imensa [...]. Posso per­
nhecendo [...]. Nesse caso, o pensamento tencer somente a um único povo, posso ter
não me propicia conhecimentos de coisas apenas estes genitores e não outros, posso
até então estranhas para mim, mas me torna amar somente uma única mulher” . Claro,
claro o que eu verdadeiramente entendo, o eu posso trair. Todavia, se traio (tentando
que eu verdadeiramente quero e aquilo em pertencer a outro povo, amando outra mu­
que eu verdadeiramente creio. Nesse caso, lher, desconhecendo meus genitores), estou
o pensamento cria e determina para mim o traindo a mim mesmo, já que sou minha
fundo claro de minha autoconsciência” . situação e essa é realidade intranscendível.
N ão é difícil notar que Jaspers torna Posso tornar-me apenas aquilo que sou. E a
sua, interpretando-a com liberdade, a dis­ única escolha autêntica está na consciência
tinção hegeliana entre intelecto e razão. E, e na aceitação da situação em que se está.
com base nesta distinção, ele se distancia A liberdade não é o instrumento de alter­
tanto dos racionalistas que, em nome da ciên­ nativas, mas assemelha-se ao amor fati de
cia, rejeitam todo o resto (religião, moral Nietzsche.
etc.), jogando-o no reino da subjetividade
emotiva, arbitrária, instintiva, como dos
irracionalistas que “ levam às estrelas” o O n a u f r á g i o d a e x is tê n c ia
que é desprezado pelos racionalistas. Aos // . • //
e os s in a is
intelectualistas, Jaspers lembra que “ a exa­
tidão pura e simples não nos satisfaz” , e d a t r a n s c e n d ê n c ia
censura aos irracionalistas sua inconsistente
“ embriaguez de vitalismo” .
Portanto, “ a verdade é algo infinita­ A não-objetivabilidade da existência
mente maior que a exatidão científica” , e a e sua historicidade, portanto, são os dois
filosofia é a atitude ou atividade que aclara primeiros resultados a que leva a iluminação
a existência, levando-a à consciência de da existência. E isso mostra que existência e
si mesma e à comunicação com as outras razão “ não são duas potências em luta” , mas
existências. que “ cada qual existe em virtude da outra
O homem pode ser estudado (através e, no ato de se compenetrarem, conferem-se
da biologia, da psicologia, da sociologia reciprocamente realidade e clareza” . M as
etc.) como um objeto do mundo. M as esse as coisas não ficam aí, já que a existência
Cãpltulo d é c ifH O S B g U T td o - "T r a ç o s e s s e n c ia is e d e se n v o lv im e n to s d o existen c ia lism o

remete necessariamente à transcendência.


Com efeito, a existência consciente percebe
que toda coisa tem um fim. Nenhum fato
é eterno, nenhuma instituição resiste esta-
velmente no tempo. “N o fim, o que há é o
naufrágio” . O naufrágio está à espreita não
só para as coisas e as instituições, mas tam­
bém para tudo o “ que, em geral, é efetuado
e alcançado com o pensamento” .
Pois bem, diante da consciência do
naufrágio do mundo e dos entes do mundo,
afirma-se a evidência que estes podem ter
como sinais da transcendência. N ão nos
dão a conhecer a transcendência, já que esta
não é cognoscível como os entes do mundo,
porém, nos remetem a ela como ao “ O utro”
do qual são portadores. Nesse sentido, pela
existência “ aclarada” da razão, o mundo e
os entes do mundo constituem a linguagem
cifrada da transcendência.
A transcendência, porém , revela-se
principalmente naquelas que Jaspers cha­
ma de situações-limite, expressão na qual,
precisamente, o termo limite indica algo
que transcende a existência. Estou sempre
em situação, não posso viver sem luta e dor,
estou destinado à morte: essas situações são
imutáveis, definitivas, irredutíveis e não- Karl Jaspers (1883-1969) é, junto com Heidegger,
transformáveis, são como muro contra o grande expoente do existencialismo alemão.
qual nos chocamos fatalmente. A única coisa
que podemos fazer é clarificá-las.
E, na clarificação, vemos que, em tais
situações, “ o verdadeiro eu, aquele que
verdadeiramente quer ser ele mesmo, não 0 (Sxis+ência e com unicação
pode sustentar-se por si só ” . A existência
leva ao naufrágio. E “ quando o eu malo­
gra-se em seu querer bastar-se a si mesmo, A transcendência é inatingível para o
pode-se dizer que está pronto para o que é conhecimento científico. E, no entanto, ela
o outro diante dele, ou seja, para a trans­ se revela nos “ sinais” das situações-limite
cendência” . e do naufrágio da existência. M as essa
Com sua peremptoriedade, sua ina- linguagem cifrada deve ser lida. E é lida na
tingibilidade e sua definitividade, as situa- intimidade da própria existência. Por isso,
ções-limite deixam entrever, à existência enquanto a verdade científica é objetiva e
finita e destinada ao naufrágio, aquilo que anônima, a verdade filosófica é existencial
a transcende. Afirma Jaspers: “ Eu não sou e singular. “ Deus é sempre o meu Deus, e
eu mesmo sem a transcendência” . eu não o tenho em comum com os outros
A transcendência, precisam ente, é homens” .
entrevista e não conhecida; ela transcende Todavia, se a verdade filosófica tem
as normas do discurso científico; fala lin­ suas raízes no profundo da existência sin­
guagem diferente da ciência. A existência gular, como se pode transmiti-la aos outros
autêntica como que surpreende, nos “ sinais” e com quais razões pode ser selecionada e
da transcendência, a transcendência que aceita?
sempre lhe escapa. Para Jaspers, a “ verdade” , isto é, a
Para Jaspers, “ sem transcendência não transcendência, é buscada por todas as
há existência” . E, como escreve ele em sua filosofias, mas jamais é posse exclusiva de
Metafísica, “ a última questão [...] é a de um ponto de vista. Naturalmente, a verdade
saber se do fundo das trevas um ser pode está ligada à existência singular e, por isso,
brilhar” . é única-, eu sou a minha verdade.
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia , E x is te n c ia lis m o , 4"le^m enêutica

M as, se a verdade é única, ela é tam­ minho sem garantias, ele defende sempre
bém múltipla, já que a existência individual a possibilidade da comunicação entre as
existe juntamente com outras existências, verdades das existências singulares.
cada qual com sua própria verdade. Subs­ Justamente a partir de reflexões desse
tancialmente, a verdade alheia não é tanto tipo, Jaspers realiza sua crítica contra os
uma verdade oposta à minha, e sim muito sistemas totalitários (como o marxista e o
mais a verdade de outra existência que, jun­ nazista) e se alinha com o mundo livre. Os
tamente com a minha, procura aquela Única sistem as totalitários presumem conhecer
Verdade que está além de todas as verdades, todo o curso da história e “ fundamentam
é o horizonte que transcende todas elas e em sua planificação total com base nesse co­
direção ao qual todas se movem. nhecimento total. M as, como não é possível
Conseqüentemente, Jaspers evita tanto para ninguém, nem mediante o conhecimen­
o dogmatismo e o fanatismo de quem afirma to, nem mediante a ação, captar a totalidade
que sua própria verdade é a única verdade, do mundo, aquele que, apesar disso, tenta
como o relativismo e o ceticismo de quem fazê-lo deve, conseqüentemente, conquistar
sustenta que existem tantas verdades quan­ o mundo com a força, mas o fará como as­
tas são as existências. O filósofo atento “ não sassino que se apossa de um cadáver, e não
cai no erro da verdade total e completa” . como homem que procura entrar em relação
O que o filósofo dá, portanto, não é com outros seres humanos para construir
uma verdade definida; avançando por ca­ um mundo comum” .

Karl Jaspers em 1960,


retratado
na companhia de sua esposa.
Cãpltulo décimo segundo - X r a ç o s e s s e n c ia is e d ese n v o lv im e n to s d o e x isten c ia lism o

.. III. "Hannak ;Arendt;


uma d e fe sa inflexível d a dignidade
e d a liberdade do indivíduo

• Discípula de Martin Heidegger e Karl Jaspers, judia de nascimento, Hannah


Arendt (1906-1975) exerceu e exerce ainda forte influência sobre a cultura européia
e sobre a americana. Em 1933 abandona, por causa do nazismo, a Alemanha e se
refugia em Paris; e em 1941 emigra para os Estados Unidos. De­
pois de te r aí ensinado em várias Universidades, em 1967 assume
o ensino de filosofia política na New School for Social Research, „ v'
i w i e as obras
de New York. , § 72
A obra mais conhecida de Arendt é As origens do totalita­
rismo (1951). De 1958 é Vida ativa (título original: The Human
Condition). Em todo caso, seu livro mais conhecido é A banalidade do mal. Ei-
chmann em Jerusalém (1963). Este é um livro sobre o processo que teve lugar
em Jerusalém, e que viu como im putado um dos máximos responsáveis pelo
Holocausto.

• As origens do totalitarismo é uma obra dividida em três partes (O anti-se­


mitismo; O imperialismo; O totalitarismo). Arendt escreve: "O anti-semitismo (não
o simples ódio contra os judeus), o imperialismo (não a simples
conquista), o totalitarismo (não a simples ditadura) demonstra- o totalitarism o:
ram, um depois do outro, um mais brutalmente que o outro, que aniquilação
a dignidade humana tem necessidade de nova garantia, que se da dignidade
pode encontrar apenas em novo princípio político, em nova lei hu™ana
sobre a terra, destinada a valer para toda a humanidade". 5

• Os campos de concentração e de extermínio "servem ao regime totalitário


como laboratório para a verificação de sua pretensão de domínio absoluto sobre
o homem". A Alemanha de Hitler e a Rússia de Stalin quiseram
tornar "supérfluos os homens". E justamente contra as ideologias O homem:
que reduzem o homem a objeto e o esmagam sob as atrocidades fonte
das torturas ou o aniquilam nos vórtices do determinismo, Arendt espontânea
vê o homem como fonte espontânea de livre iniciativa, como início ?e. Iivre
de ações criativas que são sempre inter-ações: a ação humana é, miciativa
por excelência, atividade política.

lllllj 'H a n n a k a v id a Jaspers. Foi com Jaspers que se laureou em


1928, apresentando uma dissertação sobre
santo Agostinho.
Hannah Arendt nasce de família ju­ Em 1933 aban don ou a Alem anha
daica em Hannover, dia 14 de outubro nazista e se refugiou em Paris, onde entrou
de 1906. Entre 1924 e 1929 Arendt foi em contato com os pensadores mais conhe­
estudante universitária em M arburg e em cidos da época: A. Koyré, R. Aron, J.-P.
Freiburg na Brisgóvia, e sucessivamente em Sartre e A. Kojève. N a França foi ativa na
Heidelberg. Freqüentou os cursos de litera­ organização para a emigração na Palestina
tura grega, teologia e filosofia. Teve a sorte das crianças judias. Foi presa na primavera
de ter como professores Rudolf Bultmann, de 1940 e internada no Velodrome d’Hiver.
Edmund Husserl, Martin Heidegger e Karl Conseguiu, porém, fugir, e em 1941 foi para
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia / E x is te n c ia lis m o , \ - \ e .t 'v n e .v \ê .i\¥ \ c .a

os Estados Unidos da América. Escreveu ;Akvti-semitismo, im p e ria lism o


muito e em diversas revistas. Ensinou em
e to talitarism o
num erosas Universidades, entre as quais
Berkeley, Princeton, Columbia. Em 1967 foi
nomeada professora de filosofia política na
New School for Social Research em Nova As origens do totalitarismo é uma obra
York, a “ filial americana no exílio” , por que saiu em 1951 e divide-se em três partes:
assim dizer, da Escola de Frankfurt. Han- 1) O anti-semitismo-, 2) O imperialismo;
nah Arendt morreu em N ova York dia 4 de 3} O totalitarism o. Escreve Arendt: “ O
dezembro de 1975. Sua influência sobre a antisemitismo (não o simples ódio contra
cultura européia, assim como sobre a ame­ os judeus), o imperialismo (não a simples
ricana, foi e ainda é muito forte. conquista), o totalitarismo (não a simples
ditadura) dem onstraram , um depois do
outro, um mais brutalmente que o outro,
^As o b m s :
que a dignidade humana tem necessidade
de nova garantia, que se pode encontrar
wma filo so fia em d e fie s a apenas em um novo princípio político, em
d a lib e r d a d e nova lei sobre a terra, destinada a valer para
toda a humanidade [...]” . Em primeiro lugar,
todavia, é preciso compreender; e compreen­
A obra m ais conhecida de Arendt der “ significa [...] exam inar e carregar
saiu em 1951; trata-se de The Origins o f conscientemente o fardo que nosso século
Totalitarianism. De 1958 é o empenhativo nos colocou sobre as costas, não negar sua
trabalho filosófico The Human Condition. existência, não nos submeter supinamente a
Em 1963 Arendt publica aquele que se tor­ seu peso” . Arendt quer compreender como
nou seu livro mais conhecido: Eichmann o anti-semitismo “ tenha podido se tornar o
in Jerusalent: A Report on the Banality o f catalisador, primeiro do movimento nazista,
Evil. Este é um livro sobre o processo que depois de uma guerra mundial, e por fim da
teve lugar em Jerusalém, e que viu como criação da fábrica da morte” . Fundamental é
imputado um dos m áxim os responsáveis compreender, além disso, que os regimes to­
pelo Holocausto. O volume de 1969, Crises talitários baseiam sua política sobre a idéia
o f the Republic, contém os ensaios: Lying in de alcançar o fim último, que é “ a conquista
Politics; Civil Disobedience; On Violence; do mundo” ; e tal fim os tatalitaristas “jamais
Thoughts on Politics and Revolution. Foi a o perdem de vista, por mais remoto que pos­
publicação dos Pentagon Papers — os qua­ sa parecer, e por mais gravemente que suas
renta e seis volumes da História do processo exigências ‘ideais’ possam contrastar com a
decisional americano sobre a política no necessidade do momento” . Justamente por
Vietnam — que, segundo Arendt, fez com isso — afirma Arendt — “ eles não conside­
que “ o famoso vazio de credibilidade, que ram [...] nenhum país como perpetuamente
nos acompanhou por seis longos anos, tenha estrangeiro, mas, ao contrário, todo país
improvisamente se aberto tanto a ponto de como um potencial território seu” . E da
se tornar um abismo [...]. O ponto crucial “ questão judaica” serviram-se os nazistas
[...] não é apenas que a política da mentira para seu escopo: “ Obrigando-os [os judeus]
quase nunca haja se voltado contra o inimi­ a deixar o Reich sem passaporte e sem di­
go [...], mas também que estava destinada nheiro, se traduzia na realidade a lenda do
principalmente, senão exclusivamente, ao hebreu errante; e obrigando-os a assumir um
consumo interno, à propaganda nacional, comportanto de hostilidade intransigente
e tinha em particular a finalidade de enga­ contra o Terceiro Reich, os nazistas provi­
nar o Congresso” . Adversária irredutível denciavam o pretexto para imiscuir-se nos
dos regimes totalitários, Hannah Arendt assuntos internos de qualquer país estran­
foi fustigadora implacável das carências e geiro” . M ais em profundidade e mais em
tortuosidades das sociedades democráticas; particular, Arendt faz ver que “ os campos de
atenta para captar o novo, mas sem a ele concentração e de extermínio servem para
sucumbir, viu com bons olhos as lutas dos o regime totalitário como laboratórios para
estudantes, principalmente pelos direitos a verificação de sua pretensão de domínio
civis. Postumamente foi publicado o volume absoluto sobre o homem [...]. O domínio
incompleto The Life o f the Mind (A vida total, que visa a organizar os homens em sua
da mente). infinita pluralidade e diversidade como se
✓ ✓ • 79 Ç
Cãpltulo décifHO Segundo - T r a ç o s e s s e n c ia is e d e se n v o lv im e n to s d o e x isten c ia lism o

Alemanha de Hitler e a Rússia de Stalin qui­


seram tornar “ supérfluos os homens” . E por
trás de tudo isso encontra-se, justamente, a
ideologia totalitária-, ela exige a punição sem
o reato, o desfrutamento sem o proveito e
o trabalho sem o produto; é a justificação
de uma sociedade que é “ um lugar onde
quotidianamente se cria a insensatez” .

ação como atividade


política por excelência

Contra as ideologias que reduzem o


homem a objeto, esmagando-o sob as atro­
cidades das torturas, e contra as ideologias
que, como o materialismo histórico, o ani­
quilam nos abismos do determinismo e do
fatalismo, Arendt vê o homem como fonte
espontânea de livres iniciativas, como início
de ações criativas. Em The Human Condi-
tion ela escreve: “ Com o termo vita activa,
proponho designar três atividades humanas
fundamentais: a atividade trabalhadora, o
operar e o agir” . A atividade trabalhadora
“ corresponde ao desenvolvimento biológico
do corpo humano [...] e assegura não só a so­
brevivência individual, mas também a vida
Hannah Arendt (1906-1975)
da espécie” . O operar é a práxis não absorvi­
exerceu e ainda exerce forte influência da pelo ciclo vital e que produz um “ mundo
sobre a cultura européia e americana. artificial” de coisas, “ claramente distinto do
Adversária dos regimes totalitários, ambiente natural” . A ação — afirma Arendt
também foi crítica em relação — é “ a única atividade que põe em relação
às carências das sociedades democráticas. direta os homens sem a mediação de coisas
materiais [e] corresponde à condição huma­
na da pluralidade, ao fato de que mais ho­
todos juntos constituíssem único indivíduo, mens, e não o homem, vivem sobre a terra” .
é possível apenas se cada pessoa for reduzida São sempre os homens individuais que agem;
a imutável identidade de reações, de modo a ação é inter-ação: “ viver” e “ estar entre
que cada um destes feixes de reações possa os homens” (inter homines esse) eram sinô­
ser trocado com qualquer outro. É assim nimos para os romanos — lembra Arendt
— afirma Arendt — que o totalitarism o — , e para eles os sinônimos eram “ morrer”
procura fabricar algo que não existe, isto é, e “ deixar de estar entre os homens” (inter
um tipo humano semelhante aos animais, homines esse desinere). A ação significa
cuja única ‘liberdade’ consistiria em ‘pre­ iniciativa, nascimento ou início de algo de
servar a espécie’ ” . E chega-se a esse inferno novo, e “ uma vez que a ação é a atividade
(propagandeado como o paraíso) tanto com política por excelência, a natalidade, e não
a doutrinação das elites como com o terror a mortalidade, pode ser a categoria central
dos lager: os lager “ servem, além de ao do pensamento político enquanto se distin­
extermínio e à degradação dos indivíduos, gue do pensamento m etafísico". E é a ação
para realizar o horrendo experimento de — salienta Arendt — que cria e conserva
eliminar, em condições cientificamente con­ os organismos políticos, e deste modo ela
troladas, a própria espontaneidade como “ permite a lembrança, isto é, a história” . A
expressão do coportamento humano e de ação, além disso, desloca a vida do indivíduo
transformar o homem em um objeto, em sobre o lado público. Sem dúvida há coisas
algo que nem sequer os animais são ” . A “ que não podem suportar a luz violenta e
Terceira parte - P e n o m e n o io g ia , Ê x is+ e n c ia lism o , -H erm en êu tica

implacável da presença constante de ou­ contemplativa, e sim de vita activa, e “ como


tros sobre a cena pública” — pensemos no nossa sensibilidade em relação à realidade
amor: “ o amor, diferentemente da amizade, se funda sobretudo sobre a aparência, e
morre, ou melhor, apaga-se no momento em portanto sobre a existência de um domínio
que aparece em público” . Todavia, Arendt público em que as coisas podem emergir da
insiste sobre o fato de que a verdade não existência latente, também o lusco-fusco
encontra sua sede na profundidade íntima que ilumina nossas vidas privadas e íntimas
do homem; a verdade é antes um fato pú­ deriva em última análise da luz muito mais
blico, fruto não de introspecção, ou de vida forte do domínio público” . M3S 3T2]

- IV. 3 ean-Paul S>artre: —


d a liberdade absoluta
e inútil à liberdade kistórica

• Testemunha e pesquisador atento de nosso tempo, Jean-Paul Sartre (1905­


1980) comunicou seu pensamento em romances (A náusea, 1938; A idade da
razão, 1945), em escritos para o teatro (As moscas, 1943; De
Quando portas fechadas, 1945; Os seqüestrados de Altona, 1960), e em
o homem obras de natureza mais propriamente filosófica (O ser e o nada,
não tem 1943; O existencialismo é um humanismo, 1946; Crítica da razão
mais objetivos, dialética, 1960).
o mundo Influenciado pela fenomenologia de Husserl, Sartre afirma
torna-se que a consciência é abertura para o mundo, mas o mundo não é
privado a existência; e quando o homem não tem mais objetivos o mun­
de sentido do torna-se privado de sentido. E justamente a gratuidade das
§ 1-2 coisas e do homem reduzido a coisa é revelada pela experiência
da náusea. Isso é descoberto por Roquentin - o protagonista do
romance A náusea: "Não há nenhum ser necessário que possa explicar a existência
[...] tudo é gratuito. [...] E quando acontece de percebermos isso, nosso estômago
se revolta e tudo se põe a flutuar. [...] Eis a náusea".

• As análises que Sartre desenvolve em O ser e o nada mostram que o mundo


é o "em si", o dado opaco, "empastado de si mesmo", contingente e gratuito;
mas nenhum desses objetos é a consciência: a consciência "é um nada de ser";
diante do "em si" está a consciência, que Sartre chama de "por-si"; e o "por-si" é
tam bém "ser-para-outros", cujo "outro" revela-se naquelas experiências em que
ele invade o campo de minha subjetividade.
A consciência, portanto, está no mundo, mas é radicalmente
O homem diferente dele, é desvinculada do "em si". E exatamente aqui se
está enraíza a liberdade da consciência, que é a existência, isto é, o
condenado homem. A consciência não é um objeto, não é realidade; é pos­
a ser livre sibilidade, isto é, liberdade.
—>§ 3-6 "A liberdade - afirma Sartre em O ser e o nada - não é um
ser; mas é o ser do homem". A liberdade é constitutiva da própria
consciência: o homem está condenado a ser livre, estamos sozinhos sem desculpas.
Todos os valores existem porque o homem existe; mas isso quer dizer que eles não
têm nenhum fundamento. Se Deus não existe - afirma Sartre em O existencialismo
é um humanismo - "não encontramos diante de nós valores e ordens em grau
de legitimar nossa conduta". O homem é o demiurgo de seu próprio futuro; "o
Cãpltulo décimo segundo - T r a ç o s e s s e n c ia is e d e se n v o lv im e n to s d o e x isten c ia lism o

homem inventa o homem". Mas querendo sua liberdade, ele deve também que­
rer a liberdade dos outros. E, em nome da liberdade, Sartre - que havia aceito o
materialismo histórico - rejeitará - na Crítica da razão dialética - o materialismo
dialético. O marxista - diz Sartre-transform ou o marxismo em "um saber eterno";
o marxismo "não sabe mais nada; seus conceitos são Diktat, o princípio heurístico
"procurai o todo através das partes" transformou-se na prática terrorista: "liquidar
a particularidade".

Vid a e obras imaginação, 1936; Ensaio de uma teoria das


emoções, 1939; O imaginário. Psicologia
fenomenológica da imaginação, 1940). O
Testemunha atenta e arguta de nosso ensaio O existencialismo é um humanismo
tempo, Jean-Paul Sartre, nascido em Paris é de 1946, ao passo que em 1960 apareceu
em 1905, realizou seus estudos na Escola a Crítica da razão dialética.
N orm al Superior e ensinou filosofia nos
liceus de Le H avre e Paris até o início
da última guerra, exceto em um período 2 A náusea diante
que passou em Berlim (1933-1934), onde da gratuidade das coisas
estudou a fenom enologia e escreveu A
transcendência do Ego. Convocado para
o serviço militar, foi aprisionado pelos ale­ Sartre iniciou sua atividade de pensador
mães e levado para a Alemanha. Voltando com análises de psicologia fenomenológica
logo depois para a França, fundou o grupo relativas ao eu, à imaginação e às emoções.
de resistência intelectual “ Socialismo e Li­ Retoma de Husserl a idéia de intencionali­
berdade” , juntamente com Merleau-Ponty. dade da consciência, censurando-o, porém,
N o imediato pós-guerra, seu pensamento se por ter caído no idealismo e no solipsismo
impôs ao público mundial durante cerca de com o seu sujeito transcendental.
duas décadas (graças sobretudo a seu “ tea­ Em A transcendência do Ego, Sartre
tro de situações” ), influindo amplamente afirma que “ o eu não é um habitante da
na sociedade e nos costumes. N as últimas consciência” , pois ele “ não está na cons­
duas décadas de sua vida, Sartre não teve ciência, mas fora dela, no mundo: é um ente
descanso: as viagens políticas (como a via­ do mundo como o eu de outro” . O homem,
gem a Cuba, onde encontrou Fidel Castro e diz Sartre, é o ser cujo aparecimento faz com
Che Guevara, e a viagem a M oscou, onde foi que exista um mundo. O mundo não é a
recebido por Kruschev) não lhe impediram consciência. A consciência é abertura para
o frenético trabalho de filósofo, romancis­ o mundo; a consciência está encarnada na
ta, ensaísta, dram aturgo, conferencista e densa realidade do universo; o mundo pode
roteirista cinematográfico. Sartre morreu ser visto como um conjunto de utensílios.
em 1980. M as o mundo não é a existência. E quando
Sartre registrou seu pensamento seja o homem não tem mais objetivos, o mundo
em romances (A náusea, 1938; A idade da fica privado de sentido.
razão, 1945; O adiamento, 1945; A morte Essa é a tese expressa por Sartre em
na alma, 1949), seja em escritos para o tea­ A náusea, na qual o autor opõe o absurdo
tro (As moscas, 1943; A portas fechadas, aos valores positivos da filosofia clássica.
1945; A prostituta respeitosa, 1946; M ãos O herói do romance é Antoine Roquentin,
sujas, 1948; O diabo e o bom Deus, 1951; que, refletindo sobre as razões de sua própria
Nekrassov, 1956; Os seqüestrados de Al- existência e do mundo que o circunda, tem
tona, 1960), seja em panfletos políticos (O a experiência reveladora da náusea.
anti-semitismo, 1946; O s comunistas e a A náusea é o sentimento que nos invade
paz, 1952), além de obras de pura natureza quando descobrimos a contingência essen­
filosófica (das quais a mais importante é cial e o absurdo do real. E Roquentin põe
O ser e o nada. Ensaio de uma ontologia essa descoberta nas seguintes palavras: “ O
fenomenológica, 1943; não podemos ainda essencial é a contingência. Quero dizer que,
esquecer: A transcendência do Ego, 1936; A por definição, a existência não é a necessida­
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia , E x is te n c ia lis m o , -H e rm en ê u tica

de. Existir é estar ali, simplesmente; os seres vazia de ser, é possibilidade — e a possi­
aparecem, se deixam encontrar, mas nunca bilidade não é realidade. A consciência é
se pode deduzi-los [...]. N ão há nenhum ser liberdade.
necessário que possa explicar a existência: a Escreve Sartre em O ser e o nada: “ A
contingência não é falsa fisionomia, aparên­ liberdade não é um ser; ela é o ser do ho­
cia que pode se dissipar; é o absoluto e, por mem, isto é, o seu nada de ser” . A liberdade
conseguinte, a perfeita gratuidade” . é constitutiva da consciência: “ Eu estou
E a essa tese que Sartre queria chegar: condenado a existir para sempre além dos
“ Tudo é gratuito: este jardim, esta cidade, eu moventes e dos motivos de meu ato: estou
mesmo. E quando acontece de nos darmos condenado a ser livre” . Uma vez lançado
conta disso, nosso estômago se revira e tudo à vida, o homem é responsável por tudo
se põe a flutuar [...] eis a náusea” . o que faz do projeto fundamental, isto é,
A vida de Roquentin torna-se privada da sua vida. E ninguém tem desculpas: se
de sentido; nenhum objetivo consegue mais falirmos, falimos porque escolhemos a fa­
orientá-la; ele existe como uma coisa, como lência. Procurar desculpas significa estar de
todas as coisas que emergem, na experiên­ má-fé: a má-fé apresenta o desejado como
cia da náusea, em sua gratuidade e em seu necessidade inevitável.
absurdo: um sujeito sem sentido cancela O homem, portanto, se escolhe; sua
de repente o sentido de todas as coisas e liberdade não é condicionada; e ele pode
passam a faltar instruções para seu uso. A mudar seu projeto fundamental a qualquer
náusea de Sartre não está longe da angústia momento. E assim como a náusea constitui
de Heidegger. a experiência metafísica que revela a gra­
tuidade e o absurdo das coisas, da mesma
forma a angústia é a experiência metafísica
// •» do nada, isto é, da liberdade incondicionada.
L J em-si Com efeito, o homem, e só o homem, é “ o
// ■// ser para o qual todos os valores existem” .
e o pam-si ;
a // // j // Todavia, estabelecido isso, não é pre­
o se** e o y\c\c\cx
ciso muito para ver que, então, “ todas as
atividades humanas são equivalentes [...]
Se a experiência da náusea revela a e que todas estão destinadas em princípio
gratuidade das coisas e do homem reduzido à falência. N o fundo, é a mesma coisa em­
a coisa e submerso nas coisas, a análise de­ briagar-se na solidão ou conduzir os povos” .
senvolvida em O ser e o nada revela, antes As coisas do mundo são gratuitas, e um
de mais nada, que a consciência é sempre valor não é superior a outro. As coisas são
consciência de algo, de algo que não é cons­ desprovidas de sentido e fundamento, e as
ciência. Em outras palavras, o exame da ações dos homens são desprovidas de valor.
experiência mostra-nos que desde o início o Em suma, a vida é aventura absurda, onde
ser-em-si, isto é, os objetos que transcendem o homem se projeta continuamente além de
a consciência, não são a consciência. Eu te­ si mesmo, como que para poder tornar-se
nho consciência dos objetos do mundo, mas Deus. Escreve Sartre: “ O homem é o ser que
nenhum desses objetos é minha consciência: projeta ser Deus” , mas, na realidade, ele se
a consciência “ é um nada de ser e, ao mesmo mostra como aquilo que é, “ uma paixão
tempo, um poder nulificante, o nada” . O inútil” .
mundo é o “ em-si” , é o dado “ misturado
de si mesmo” , “ opaco a si mesmo porque
cheio de si mesmo” , absolutamente contin­
gente e gratuito (como precisamente revela 4 O '' s e r - p a r a - o u t f o s ”
a náusea).
Diante do “ em si” está a consciên­
cia, que Sartre denomina o “ para-si” . A O homem ou ser-para-si é também
consciência está no mundo, no ser-em-si, ser-para-outros (être-pour-autrui). O outro
mas é radicalmente diferente dele, não está não tem necessidade de ser inferido analo-
ligada a ele. A consciência, que vem a ser gicamente a partir de mim mesmo. O outro
a existência ou o homem, é, portanto, ab­ revela-se como outro naquelas experiências
solutamente livre. O “ em si” é “ o ser que em que ele invade o campo de minha sub­
é o que é” ; a consciência não é um objeto. jetividade e, de sujeito, me transforma em
O ser é pleno e completo; a consciência é objeto de seu mundo.
Capítulo décimo segundo - 1> a ç o s e s s e n c ia is e d e se n v o lv im e n to s d o e x isten c ia lism o

Jean-Paul Sartre (190.5-1980)


foi uma testemunha
atenta e aguda de nosso tempo.
Sua atividade frenética
foi diferenciada
em diversos setores:
foi filósofo, romancista,
ensaísta, dramaturgo
e cenógrafo cinematográfico.

Em suma, o outro não é aquele que é O existencialismo


visto por mim, mas muito mais aquele que
é wm kumanismo
me vê, aquele que se torna presente a mim,
para além de qualquer dúvida, manten­
do-me sob a opressão de seu olhar. Sartre
analisa com habilidade magistral aquelas N os anos seguintes a O ser e o nada,
experiências típicas do olhar-alheio, que Sartre atenuou sempre mais o tom desespe­
geralmente são as experiências da inferiori­ rado de sua filosofia inicial, como veremos a
dade, como a vergonha, o pudor, a timidez. seguir. A possibilidade de um sentido menos
Quando outro entra subitamente no mundo negativo da consciência humana já aparece
de minha consciência, minha experiência se no ensaio O existencialismo é um humanis­
modifica: não tem mais seu centro em mim, mo (1946). Nesse escrito, Sartre também
e vejo-me como elemento de um projeto que identifica o homem com sua liberdade; o
não é meu e não me pertence. homem não está de modo algum sujeito ao
O olhar de outro me fixa e me para­ determinismo; sua vida não se'assemelha
lisa, ao passo que, quando o outro estava à da planta, cujo futuro já está “ escrito”
ausente, eu era livre, isto é, era sujeito e não na semente; o homem é o demiurgo de seu
objeto. Quando aparece o outro, portanto, futuro.
nasce o conflito: “ o conflito é o sentido ori­ Em suma, o homem não é uma essência
ginal do ser-para-outros” . Diz ainda Sartre: fixa: ele é muito mais o que projeta ser. Nele,
“ Minha queda original é a existência do a existência precede a essência. Contudo,
outro” . E também faz uma das personagens “ se, na realidade, a existência precede a
de A portas fechadas pronunciar a famosa essência, nunca será possível explicá-la em
expressão: “ o inferno são os outros” . referência a uma natureza humana dada e
Terceira parte - F e n o m e n o l o g ia , E x is+ e n c ia lism o , 'He^me.nêu+ica

não modificável; em outras palavras, não há vicção de fundo de Sartre: “ O homem, sem
determinismo; o homem é livre, o homem nenhum socorro e apoio, está condenado a
é liberdade” . cada instante a inventar o homem [...]. O
Por outro lado, “ se [...] Deus não homem inventa o homem” .
existe, nós não encontramos diante de nós A liberdade é absoluta e a responsa­
valores e ordens em condições de legitimar bilidade é total. M as já estamos em 1946:
nossa conduta. Assim, nem atrás nem diante Sartre tem atrás de si uma guerra terrível e
de nós, em um domínio luminoso de valores, a experiência da Resistência; mas, diante
temos justificações ou desculpas. Estamos dele, está a grande questão da reconstrução.
sós, sem desculpas. É isso o que eu expres­ Todas essas coisas não passam em vão,
so com a afirmação de que o homem está deixando um traço em seu pensamento,
condenado a ser livre. Condenado porque onde se delineia uma moral social com base
não se criou por si mesmo e, no entanto, na relação entre a liberdade de cada um e
livre, porque, uma vez lançado ao mundo, a liberdade dos outros: “ eu sou obrigado
é responsável por tudo aquilo que faz” . — escreve ele — a querer ao mesmo tempo
A liberdade defendida por Sartre é uma minha liberdade e a liberdade dos outros,
liberdade absoluta, e a responsabilidade que e não posso tomar minha liberdade como
ele, conseqüentemente, atribui ao homem, fim se não tomar igualmente como fim a
é total. Estas palavras resumem bem a con­ liberdade dos outros” .

Sartre em idade avançada;


seu pensamento influenciou
amplamente
sobre a sociedade
e sobre os costumes,
principalmente
nos anos sucessivos
à Segunda Guerra Mundial.
C d p í t u l o d é c if flO s e g u f l d o - T r a ç o s e s s e n c ia is e d e se n v o lv im e n to s d o e x isten c ia lism o

_fi_ Crítica da razão dialética pode efetivamente existir, mas é preciso


MR reconhecer que não temos a mínima prova
disso” .
Minha liberdade, porém, não depende Em suma, Sartre não aceita as três leis
somente da liberdade dos outros. Ela tam­ da dialética propostas por Engels como
bém é condicionada por situações precisas, regras que guiariam o desenvolvimento da
com as quais os projetos fundamentais dos natureza, da história e do pensamento. A
homens têm de se defrontar. E com base admissão dessas leis gerais do devir impli­
nisso que Sartre enfrenta a questão das rela­ caria um otimismo ingênuo que proclamaria
ções entre seu existencialismo e o marxismo, um finalismo de tipo hegeliano e, o que é
como mostram vários ensaios escritos para a ainda mais inadmissível, reduziria o homem
revista “ Tempos modernos” (revista dirigida a simples instrumento passivo da grande
pelo próprio Sartre) e, sobretudo, a obra máquina dialética, incapaz de se subtrair ao
Crítica da razão dialética (da qual só apa­ mais rígido determinismo.
receu a primeira parte, Teoria dos conjuntos A doutrina da dialética é um dogma
práticos). N a realidade, afirma Sartre, “ dizer — e o dogma não hesita em se opor aos
de um homem o que ele é significa dizer o fatos. É essa a razão por que, diante de
que ele pode, e reciprocamente: as condições toda experiência possível, o marxista não
materiais de sua existência circunscrevem muda de opinião. O marxista transformou
o cam po de suas possibilidades [...], de o m arxism o em “ saber eterno” e, desse
modo que o campo do possível é o objetivo modo, “ a busca totalizadora deu lugar a
em direção ao qual o agente ultrapassa sua uma escolástica da totalidade” . O princípio
situação objetiva. E esse campo, por sua vez, heurístico “ procurai o todo através das par­
depende estritamente da realidade social e tes” transformou-se em prática terrorista:
histórica” . “ liquidar a particularidade” .
Com base nisso, podemos compreender Com base nessas premissas, podemos
por que Sartre afirma firmemente aderir sem compreender, diz Sartre, por que o marxis­
reservas à teoria do materialismo histórico, mo “ não sabe mais nada: seus conceitos
para a qual, como diz M arx, “ o modo de são Diktat; seu fim não é mais o de adquirir
produção da vida material domina em geral conhecimentos, mas de se constituir a priori
o desenvolvimento da vida social, política e como saber absoluto” .
intelectual” . Entretanto, se Sartre adere ao E como o m arxism o, com a teoria
materialismo histórico, ele rejeita, porém, dialética, dissolveu os homens “ em um
o materialismo dialético. Em suma, para banho de ácido sulfúrico” , “ o existencia­
Sartre, o marxismo não é de modo nenhum lismo pôde renascer e se manter porque
“ o materialismo dialético, se com este se afirmava a realidade dos homens, como
entende a ilusão metafísica de descobrir Kierkegaard afirmava sua própria realidade
uma dialética da natureza. Essa dialética contra Hegel” .
Terceira parte - P e n o m e n o lo g ia / E x is te n c ia lis m o / •H erm enêutica

"".. V. jV^aurice jVAerleau-T-^onty: ----


entre existencialismo e fenomenologia

• Estudante na École Normale Supérieure de Paris, militante na Resistência


durante a ocupação nazista da França, a partir de 1952 professor titular de filosofia
no Collège de France, Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) deixa obras importantes
como A estrutura do comportamento (1942) e A fenomenologia da percepção (1945).
Existencialista - sobre o qual deixaram sua marca a fenomenologia, a psi­
cologia científica e a biologia - , Merleau-Ponty concebe a existência como ser-
no-mundo, como "certa maneira de enfrentar o mundo". E o
Marx homem que enfrenta o mundo não é um ser composto de alma
está errado, e de corpo: "alma" e "corpo" indicam níveis de comportamento
mas Sartre e não substâncias separadas. "O espirito não utiliza o corpo, mas
também se faz através dele".
se engana
Daí a centralidade, no pensamento de Merleau-Ponty, da
•§1-2
percepção-, a percepção é a inserção do corpo no mundo. E, de­
senvolvendo o tem a das relações entre o homem e a sociedade,
Merleau-Ponty critica tanto a idéia de liberdade absoluta defendida por Sartre
quanto a teoria marxista do primado causai do fato econômico sobre a vida e as
ações do homem. O homem é livre, repete Merleau-Ponty; só que a liberdade do
homem é condicionada pelo mundo em que se vive e pelo passado que se viveu.
"Não há nunca um determinismo e não há jamais uma escolha absoluta; eu nunca
sou coisa nem jamais sou consciência nua".

1 rela ç ã o nismo e terror (1947), Senso e contra-senso


(1948), As aventuras da dialética (1955) e
entre a " c o n s c i ê n c i a "
Sinais (1960).
e o " c o r p o " , e entre M erleau-Ponty é um existencialista
//] // // | // sobre o qual são muito acentuadas as in­
o v\ovv\e.YY\. e. o n \u v \c \o
fluências tanto da fenomenologia como da
psicologia científica e da biologia.
Também para Merleau-Ponty a exis­
Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), tência é ser-no-mundo, isto é, “ certa m a­
depois de ter estudado na Ecole Normale neira de enfrentar o m undo” . M as esse
Supérieure de Paris, ensinou filosofia em ser-no-mundo é anterior à contraposição
escolas secundárias. Militante da Resistên­ entre alma e corpo, entre o psíquico e o
cia durante a ocupação nazista, depois da físico. A interpretação causai das relações
guerra tornou-se professor na Universidade entre alma e corpo é rejeitada por Merleau-
de Lião, depois na Sorbonne, posteriormente Ponty. Ele vê nessa relação muito mais uma
na Escola Norm al e, por fim, a partir de dualidade dialética de comportamentos.
1952, tornou-se titular de filosofia no Collè­ Ou melhor: alma e corpo indicam níveis
ge de France. Desde a fundação, participou de comportamento do homem, dotados de
do comitê de direção da revista “ Tempos significado diverso. Escreve Merleau-Ponty
modernos” , embora as suas relações com em A estrutura do comportamento: “ Nem
Sartre logo se tenham transform ado em o psíquico em relação ao vital, nem o es­
polêmica apaixonada. As principais obras piritual em relação ao psíquico podem ser
de Merleau-Ponty são: A estrutura do com­ considerados como substâncias ou mundos
portamento (1942) e A fenomenologia da novos” . N a realidade, escreve ele, “ trata-se
percepção (1945). Além disso, também são de ‘oposição funcional’ que não pode ser
notáveis suas coletâneas de ensaios: Hum a­ transformada em ‘oposição substancial’
Cãpltulo d é c iT Y lO segutldo - T r a ç o s e s s e n c ia is e d ese n v o lv im e n to s d o e x isten c ia lism o

N a representação das relações entre do qual, pouco a pouco, a ciência precisa


alm a e corpo, portanto, M erleau-Ponty as determinações” .
não aceita “ nenhum modelo materialista, Em tal programa de análises, torna-se
mas também nenhum modelo espiritualis­ central o conceito de corpo, já que “ meu
ta, como o contido na metáfora cartesiana corpo (...) é meu ponto de vista sobre o
do artesão e de seu utensílio. N ão se pode mundo” , “ o corpo é nosso meio geral de
comparar o órgão a um instrumento, como ter um mundo” . A percepção é a inserção
se ele existisse e pudesse ser pensado à parte do corpo no mundo.
de seu funcionamento integral, nem se pode E se, por um lado, a percepção tem o
comparar o espírito a um artesão que o use: caráter da “ totalidade” (basta pensar na
isso seria recair em uma relação puramente psicologia da forma), por outro lado ela per­
extrínseca [...]. O espírito não utiliza o cor­ manece sempre “ aberta” , remetendo sempre
po, mas se faz por meio dele [...]” . a um além de sua manifestação singular,
Compreende-se muito bem, por con­ prometendo-nos outros ângulos de visão e,
seguinte, a centralidade do tema da percep­ com isso, “ algo mais a ver” .
ção: “ Todas as ciências inserem-se em um Portanto, o significado das coisas no
mundo completo e ‘real’, sem se dar conta mundo e do próprio mundo permanece
de que a experiência perceptiva tem valor aberto ou, como diz Merleau-Ponty, am ­
constitutivo em relação a este mundo. As­ bíguo. E essa ambigüidade ou abertura é
sim, encontramo-nos diante de um campo constitutiva da existência.
de percepções vividas que são anteriores
ao número, à medida, ao espaço, à cau­
salidade e que, porém, não se apresenta _jL— liberdade “condicionada"
como visão prospectiva de objetos dotados
de propriedades estáveis, de mundo e de
espaço objetivos. O problema da percepção Se é errado conceber a relação entre a
consiste em ver como é que, através desse consciência e o corpo como relação causai
campo, chega-se ao mundo intersubjetivo, entre duas substâncias, também é errado,
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia , E x is te n c ia lis m o , H e r m e n ê u tic a

portanto, ter uma concepção análoga so­ escolhe” . Por isso, é desviante o dilema que
bre as relações entre o sujeito e o mundo. afirma que “ nossa liberdade [...] ou é total
M as, para Merleau-Ponty, também é errado ou não existe” .
conceber uma relação de causalidade entre A liberdade existe, “ não porque algo
o homem e a sociedade. Por isso, se Sartre me solicite, mas, ao contrário, porque de
está fora de rumo com sua idéia da liberdade repente estou fora de mim e aberto para o
absoluta, também é errada a teoria marxista mundo” . Ou seja, a liberdade existe, mas é
da primazia causai do fato econômico sobre condicionada, porque “ somos uma estrutura
a constituição do homem e da sociedade. psicológica e histórica” , porque “ estamos
N a o p in iã o de M erleau-P on ty, o misturados ao mundo e aos outros em con­
hom em é livre e não existe estrutu ra, fusão inextricável” .
como a econômica, que p o ssa anular sua N ossa liberdade, portanto, não destrói
liberdade con stitu tiva. M a s a lib e rd a ­ a situação, mas nela se insere. E é por essa
de do homem é liberdade condicionada: razão que as situações permanecem abertas,
condicionada pelo mundo em que vive e já que a inserção do homem nelas poderá
pelo passado que viveu. A ssim , “ jam ais configurá-las de um ou de outro modo,
existe determinismo e jamais existe escolha obviamente enquanto as situações o permi­
absoluta; eu jam ais sou coisa e jam ais sou tirem. E nesta dimensão a liberdade condi­
consciência nua” . A realidade é que “ nós cionada do homem assume um significado
escolhemos nosso mundo e o mundo nos construtivo positivo.

= VI. CÀo^oAe\ M a
e o Kieo-socmfismo cris+ão

• Para Gabriel Mareei (1889-1973), dramaturgo e filósofo, "o que importa é


o homem concreto", tema que ele explora e aprofunda continuamente em suas
obras: Diário metafísico (1927); Ser e ter (1935); Homo viator (1944); Mistério do
Ser (1951).
A filosofia de Mareei se configura como defesa da singulari­
"Crer dade irrepetível da existência e do mistério do Ser em relação às
ou verificar" pretensões de um racionalismo cientificista, que nega qualquer
ou experiência não cognoscível por meio do método da verificação
"crer empírica. O cientista racionalista apresenta sempre o dilema: ou
e verificar"? crer ou verificar, mas é exatamente esse dilema que Mareei nega;
-+§ 1-2 para ele o crer e o verificar não são antinômicos, mas assimétricos:
em suma, não se trata de um aut-aut, mas muito mais de um e t-e i
E isso é possível, bastando que se ponha a atenção na distinção nevrálgica entre
problema e metaproblema.

• O problema, simplificando um pouco as coisas, pode ser posto na forma


comum da mais simples equação algébrica: a x = b, onde devemos procurar a
incógnita a partir de dados conhecidos. Isso não é possível com o "problema" do
Ser: por que o ser ao invés do nada? qual o sentido da vida humana? Em uma
questão desse tipo não há dados conhecidos-, as coisas, os outros
A descoberta seres humanos, o universo inteiro, eu próprio que me interrogo:
do tudo é incógnita. O problema do ser, afinal, não é propriamente
metaproblema um problema, mas um metaproblema.
-^>§3-4 E essa descoberta nos faz entender que, além do problema
que compreendemos, há o mistério que nos compreende. Mistério
ao qual nos tornamos disponíveis libertando-nos da concupiscência do "ter", que
transforma a realidade em uma voragem de objetos a possuir. ,
C ã p l t u l o d é c i m o s e g u n d o - T r a ç o s e s s e n c ia is e d e se n v o lv im e n to s d o e x isten c ia lism o
235

defesa do concreto assimetria entre crer


e verificar
N o prefácio ao seu M istério do ser
(1951), Gabriel Mareei designa seu pensa­
mento com o nome de neo-socratismo. E, na Com base na idéia de que todo o saber
realidade, toda a sua filosofia está permeada possível é aquele e somente aquele obti­
por um elemento constante, que pode ser do e passível de ser obtido por meio dos
identificado “ em uma obstinada e incansável procedimentos da verificação científica, o
batalha contra o espírito de abstração” . racionalista rejeita a fé no mundo escuro
N ascido em Paris em 1889, Gabriel das emoções, isto é, no mundo da arbitra­
M areei, a exemplo de Sartre, além de fi­ riedade subjetivista. Seu dilema é o de “ crer
lósofo, foi também crítico e autor teatral. ou verificar” .
Para o dram aturgo e filósofo M areei “ o M areei, porém, se rebela contra tal
que importa é o homem concreto, deter­ dilema, que opõe, como se fossem antitéti-
minado, que se encontra em certa situação cos, o crer ao verificar, a fé à ciência. Com
[...]” . Essa atenção para com a concretude efeito, sua convicção é a de que o dilema do
do homem em suas situações é que explica racionalista “ deixa escapar o essencial da
a origem do Jornal metafísico, que Mareei vida religiosa e do pensamento metafísico
publicou em 1927 (o mesmo ano em que mais profundo” .
aparece Ser e tempo, de Heidegger), cujas O crer e o verificar, portanto, na opi­
primeiras anotações remontam até 1914. nião de Mareei, não são antinômicos, e sim
M as também explica a natureza de suas muito mais assimétricos. A verificação exclui
obras filosóficas posteriores (além de seu de si todo um mundo (Deus, a pessoa, o
teatro), que não pertencem tanto ao mundo conteúdo da fé) que, embora não-verificável,
dos sistemas, e sim muito mais ao mundo pode ser aproximado através do que Mareei
dos problemas. Além do Jornal metafísico chama de “ reflexão segunda” , que, embora
e de O mistério do ser, já citados, as obras não sendo um procedimento científico, seria
filosóficas de Mareei são: Ser e ter (1935), entretanto um procedimento racional.
D a recusa à invocação (1939), Homo viator A ciência (ou a verificação) não pode
(1944), Os homens contra o humano (1951) captar o objeto da fé que é Deus. Deus
e O homem problemático (1955). Mareei é o não-verificável. E o crente não pode
morreu em 1973. explicar Deus por meio de demonstrações
Se olharmos o pensamento de Mareei verificáveis, já que, como escreve Mareei no
em seu desenvolvimento de conjunto, não Jornal metafísico, Deus está além de todas
tardaremos a perceber que ele é atravessado as razões e além de toda relação causai.
por três motivos fundamentais que conti­ Deus é o outro da ciência que verifica; é o
nuamente se sobrepõem e se integram: absolutamente Outro.
1) a defesa da singularidade irrepetível Se o objeto da fé vai além da ciência,
do existente e do mistério do Ser contra as também o sujeito da fé, isto é, o indivíduo
pretensões de um racionalismo que preten­ irrepetível em sua situação insubstituível,
de reduzir a existência e toda a realidade à está fora do discurso científico verificável.
experiência conhecida através do método da Uma teoria científica pode ser verificada
verificação empírica; por M ário, Pedro ou José. M as o que conta
2) o reconhecimento da não-objetibili- no controle da teoria não é M ário em sua
dade fundamental do sentimento corpóreo; irrepetível individualidade, ou Pedro, igual­
com efeito, escreve Mareei no Jornal metafí­ mente na singularidade excepcional de sua
sico, “ se não posso exercer minha atenção, a existência: o que conta é a verificação da
não ser por meio de meu corpo, disso resulta teoria repetível por todos. E precisamente
que ele é, de certa forma, impensável para isso que não se pode dar na fé: diante de
mim, porque a atenção que se concentra Deus, eu não sou substituível por ninguém,
sobre ele, em última análise, o pressupõe” ; pois minha escolha é apenas minha.
3) a doutrina do mistério ontológico, N ão só o objeto da fé e o sujeito da fé
para a qual a existência torna-se autêntica na estão além da verificação, mas também o
participação no Ser, participação que pode fato ou a história religiosa, por sua natureza,
ser captada pela análise de alguns traços da transcendem as categorias historiográficas
experiência cristã, como a “ fidelidade” , a baseadas na verificação. A história religiosa
“ esperança” e o “ am or” . (isto é, o conteúdo do ato da fé) não pode
Terceira parte - P e n o m e n o lo g ia , (E x isten cia lism o, "H e rm en ê u tica

ser enjaulada na trama dos nexos causais. o problema do ser se amplia com base nos
O mundo visto com os olhos da fé é radi­ próprios dados, e se aprofunda no interior
calmente diferente do mundo lido com a do próprio sujeito que o propõe. E, com isso,
gramática da ciência. O mundo da ciência nega-se (ou se transcende) como problema
é “ o lugar de uma espécie de imensa e infle­ e transforma-se em um mistério” .
xível contabilidade” , ao passo que o mundo O problema do ser, portanto, não é
da fé é o mundo de radical contingência propriamente problema, mas um metapro­
metafísica. Para o homem profundamente blema. E, segundo Mareei, a descoberta do
religioso, “ tudo é perpetuam ente posto metaproblema nos faz entender que, além
em questão; nada é adquirido; e isso nada do problema que nós compreendemos, há o
mais é [...] do que um modo indireto de mistério que nos compreende. “ O problema
definir a esperança” . N ão há saber sobre a é algo que encontramos, que nos obstacu-
Providência. liza o caminho. Está inteiramente diante de
mim. O mistério, ao contrário, é algo em
que me encontro empenhado, cuja essência
Problema e metaproblema implica, portanto, que ele não se encontra
inteiramente diante de mim” .
Assim, para Mareei, o discurso sobre
N o fundo da assimetria entre verificar Deus não é factível por meio de argumenta­
e crer, Mareei insere a distinção — funda­ ções lógicas capazes de, por exemplo, chegar
mental em sua filosofia — entre problema e à demonstração da existência de Deus, mas
metaproblema. muito mais, por meio da descoberta do
A filosofia tradicional preferiu tratar o m etaproblemático, compreende-se que o
“ problema do ser” como se ele, apesar de mistério nos compreende. Nós não podemos
sua importância, fosse da mesma natureza compreender e dominar o mistério: o misté­
dos outros problemas. M as, assim fazendo, rio não pode ser entendido. O que podemos
ofuscou o caráter único e irredutível do fazer, porém, é realizar a análise de nossos
problema do ser, até que algumas correntes modos de participação nele, como é o caso
filosóficas contem porâneas o repuseram das experiências cristãs da fidelidade, da
entre os pseudoproblemas. esperança e do amor.
M as, para Mareei, as coisas são bem Em suma, o único modo de falar de
diferentes. Com efeito, quando nos defron­ Deus é a invocação, isto é, falar a Deus. Não
tamos com um problema, por exemplo, nas se demonstra Deus, invoca-se. ESBinTl
ciências físicas, em química ou em biologia,
encontramo-nos diante de um incógnita x,
que devemos encontrar a partir de certo lá® S e r e ter
número de dados conhecidos (a, b, c etc.),
aplicando aquele conjunto de normas de
procedimento da verificação que constituem Para que a pessoa redescubra a si mes­
o método científico. Desse modo, simplifi­ ma e, portanto, se torne disponível para o
cando um pouco as coisas, podemos dizer domínio do Ser, deve fazer uma reviravolta
que um problema científico encontra sua sobre si mesma e subverter a hierarquia que
formulação-padrão na fórmula da mais sim­ o mundo moderno e contemporâneo fixa­
ples equação algébrica: a x = b. Entretanto, ram entre a categoria do ter e a do ser.
quando nos propom os o problema do ser, Segundo a metafísica do ter, valemos
isto é, o problema do sentido da realidade e pelo que temos e não pelo que somos, en­
de nós mesmos, todos os dados desaparecem quanto o mundo e os outros são unicamente
enquanto tais, e tudo se torna problemático: objetos de posse sempre mais vasta.
a realidade, os outros, eu mesmo que me Segundo Mareei, não é estranha ao nas­
interrogo. Assim, porém, um problema em cimento e ao desenvolvimento dessa atitude
que todos os dados são incógnitos acaba por a mentalidade objetivante do racionalismo
desvanecer como problema. científico e técnico, para a qual “ o próprio
A exemplo de Heidegger, Mareei obser­ mundo tende [...] a aparecer por vezes como
va, em Ser e ter, que a reflexão sobre o pro­ simples cam po de exploração e às vezes
blema ontológico lhe descerra um abismo: como escravo adorm ecido” . Entretanto,
“ Eu mesmo, que me interrogo sobre o ser, enquanto aquele que possui tenta, por todos
não sei inicialmente se eu o sou, nem a for- os meios, manter, conservar e aumentar a
tiori o que sou [...]; assim, o que vemos é que coisa possuída, esta, sujeita ao desgaste e
C ã p í t u l o d é c i m o s e g u n d o - X r a ç o s e s s e n c ia is e d e se n v o lv im e n to s d o e x isten c ia lism o

às vicissitudes do tempo, pode escapar, tor­ Assim, a atitude espetacular e a visão


nando-se assim o centro dos temores e das objetiva estariam na base do mundo visto
ansiedades de quem quer possuí-la. como posse e, portanto, da alienação e do
Sob o signo da categoria do ter, a rea­ desespero. Afirma Mareei: “ A estrutura de
lidade deixa de ter vida, mistério e alegria nosso mundo é tal que o desespero absoluto
criadora, transformando-se em voragem de parece nele possível” . M as é exatamente
objetos que absorve inexoravelmente quem diante dessa “ tragédia do ter” , em face do
quer possuí-los. O mundo da categoria do desespero, que a metafísica deve tomar po­
ter é “ um mundo em frangalhos” , é o mun­ sição e, libertando-me da concupiscência da
do da alienação e da preocupação, de que posse das coisas, tornar-me disponível para o
a objetividade científica seria a transcrição ser. E é justamente este o modo positivo pelo
no plano lógico. qual se exorciza e se afugenta o “ desespero” .

Gabriel Mareei (1 889-1973),


filósofo e dramaturgo,
expoente principal
do existencialismo cristão,
com sua obra construiu
uma verdadeira e própria
“metodologia do inverifcável"
238 _ . . . . . „ .
__ _1 6 Y C 61T U p U T t6 - l-e n o m e n o lo g ia , ^Existencialism o, -H e rm en ê u tica

do saber, o saber mais radical do "não-saber",


isto é, o não saber o que é o próprio ser.
J aspers b) O conhecimento científico não está
em grau de dar nenhuma direção para a vida.
Não estabelece valores válidos; a ciência como

a Os limites do ciência
ciência não pode guiara vida; para sua clareza
e decisão ela remete a outro fundamento de
nossa vida.
c) fl ciência não pode dar nenhuma
“O conhecimento científico [...] nõo esta­ resposta à pergunta que se refere a seu
belece valores válidos; a ciência como ciência verdadeiro e próprio sentido: o fato de que a
nõo p od e guiar a vida". ciência exista baseia-se sobre impulsos que
não podem nem mesmo eles ser demonstrados
cientificamente como verdadeiros e como tais
para dever existir.
Nosso atividade filosófica atual está su­ Ao mesmo tempo, com os limites da ci­
bordinada às condições destas experiências ência se esclarecem a importância positiva e a
da ciência. O caminho que vai da desilusão indispensabilidade da ciência para a filosofia.
provocada pela falsa filosofia até as ciências 6m primeiro lugar, a ciência, metódica e
reais, e das ciências novamente para a verda­ criticamente purificada nestes últimos séculos,
deira filosofia, é de tal espécie que influi de mesmo que apenas raramente realizada pelos
modo decisivo sobre a maneira de filosofar hoje pesquisadores em sua totalidade, teve pela
possível, flntes de nos remetermos à filosofia primeira vez a possibilidade de reconhecer,
devemos determinar objetivamente a relação por meio de seu contraste com a filosofia, a
de nenhuma forma unívoca entre a filosofia turva contaminação entre filosofia 0 ciência e
atual e a ciência. €m primeiro lugar tornaram- de sup0rá-la.
se claros os limites da ciência; eles podem ser O caminho da ciência é indisponsáv©!
brevemente caracterizados assim: para a filosofia, porque apenas o conh0cim0nto
d0ss0 caminho impede qu© outra vez se afir­
a) O conhecimento científico das coisas
me, de modo pouco claro e objetivo, estar na
não é conhecimento do "ser"; o conhecimento filosofia o conhecimento objetivo das coisas
científico está particularmente dirigido sobre qu0, ao contrário, tem sua sed0 na pesquisa
objetos determinados, não é dirigido sobre a metodicamente exata.
própria realidade. Por isso a ciência representa Vice-versa, a clareza filosófica é indis­
do ponto de vista filosófico, justamente por meio pensável para a vida e para a pureza de uma
Cãpítulo décimo segundo - X f a ç o s e s s e n c ia is e d ese n v o lv im e n to s d o e x isten c ia lism o

ciência genuína. Sem filosofia a ciência não


compreende a si mesma e até os pesquisa­
dores, caso se sintam desorientados sem a
A rendt
guia da filosofia, abandonam a ciência em sua
totalidade, embora continuando a trazer à luz
conhecimentos especiais sobre a base do saber
conquistado pelos grandes iniciadores.
Portanto, se de um lado a filosofia e a D fi dignidade humana
ciência não são possíveis uma sem a outra, se contra toda forma
do outro sua turva contaminação não deve mais de totalitarismo e racismo
continuar, será nossa tarefa atual a de realizar
a verdadeira unidade entre elas, depois de sua
separação. R atividade filosófica não pode ser "Sempre considerei o foto de ser judio
nem idêntica nem antinômica em relação ao como um dos dados de Foto indiscutíveis de
pensamento científico. minha vida, que jam ais d esejei mudar ou
Cm segundo lugar, apenas as ciências que repudiar, sequer durante a infância".
pesquisam e, portanto, fornecem um conheci­
mento convincente dos objetos, nos colocam
diante dos dados de fato dos fenômenos; Gnus - Seu trabalho - a ele voltaremos de
apenas por meio delas eu aprendo a conhecer modo mais detalhado - é em grande parte dedi­
com clareza: assim, por exemplo, se ao filósofo cado às condições em que a ação e o comporta­
pesquisador faltasse a sintonia com as ciências, mento político são possíveis. Com tal atividade
ele permaneceria sem conhecimento claro do a senhora pretende influenciar também em um
mundo, como que cego. âmbito mais vasto, ou considera que em nossa
€m terceiro lugar, o filosofar que não é época isso não seja mais possível, ou então que
fabulação, mas pesquisa da verdade, deve este efeito sobre o público lhe é indiferente?
absorver em si a atitude científica e o modo Rbcndt - C de novo uma questão complica­
de pensar científico, é característica da atitu­ da. Se devo falar com toda sinceridade, devo
de científica a distinção permanente entre o dizer que quando trabalho não estou de modo
saber demonstrado e o saber unido ao saber nenhum interessada no efeito.
do método, que a ele nos conduz, isto é, ao Gnus - € quando o trabalho terminar?
saber dos limites de sua validade. Rlém dis­ RRêNDi-Ora, eu o termino. Veja, para mim
so, a atitude científica é a pronta disposição trata-se essencialm ente do seguinte: devo com­
do pesquisador a aceitar toda crítica às suas preender. N essa com preensão entra também a
opiniões. Para o pesquisador, a crítica é uma escrita, fl escrita é para mim parte e ssencial do
condição de importância vital: ele nõo pode ser pro cesso d e com preensão.
jamais suficientemente criticado, a fim de provar Gnus - Quando a senhora escreve, a escrita
sua perspicácia. Também a experiência de uma está a serviço de um conhecimento mais amplo.
crítica injustificada age de modo produtivo para flfiCNDi - Sim, porque nesse momento
um verdadeiro pesquisador. Rquele que se sub­ coisas determ inadas foram estabelecidas.
trai à crítica não quer "saber" no sentido próprio Suponhamos possuir memória tão boa que
da palavra: a perda da atitude e do modo de se consiga reter tudo aquilo que se pensa. €u
pensar científico é, ao mesmo tempo, a perda duvido muito, conhecendo minha preguiça, de
da veracidade da filosofia. ter conseguido anotar alguma coisa. O que me
Tudo influi para que a filosofia se una às importa é o próprio processo do pensamento.
ciências: a filosofia se impõe sobre as ciên­ Quando eu o exerço sinto-me muito contente.
cias de modo tal a tornar realmente presente Quando consigo expressá-lo de modo adequa­
o íntimo sentido delas, a filosofia que vive do na escrita, de novo sinto-me muito satisfeita.
nas ciências dissolve o dogmatismo sempre O senhor me pergunta se o efeito me interessa.
renovado da própria ciência (este sucedâneo Se me permite expressar-me de modo irônico,
tão pouco claro da filosofia); mas a filosofia esta é uma pergunta machista. Os homens
se torna, sobretudo, a garantia consciente querem sempre obter uma influência; mas eu
do espírito científico, contra a hostilidade da vejo tudo isso a partir do exterior. Obter eu uma
ciência. O viver filosoficamente é inseparável influência? Não, eu quero compreender. € quan­
da atitude que requer a absoluta liberdade do outros compreendem - no mesmo sentido em
da ciência. que eu compreendi - entõo experimento uma
K. Jaspers, satisfação comparável à que se experimenta
Filosofia da existência. quando nos sentimos em casa (Heimatgefühl).
Terceira parte - P e n o m e n o lo g ia , E x is te n c ia lis m o , "H erm en ê u tica

Gnus - Consegue escrever facilmente, Veja, as pessoas acabavam nas celas da Gesta­
exprimir aquilo que pensa? po ou nos campos de concentração. Rquilo que
R rcndt - Rlgumas vezes sim, outras não. então começava era terrível, e hoje é freqüen­
Mas, em geral, posso dizer que jamais escre­ temente ocultado por eventos sucessivos. Para
vo sem antes ter, por assim dizer, ponderado mim foi um choque imediato, e a partir daquele
aquilo que devo escrever. momento me senti envolvida. Isso significa
Gnus - Ou seja, depois de ter refletido que me tornei consciente de que não era mais
preliminarmente. possível limitar-se a ser expectadores. Procurei
R rcndt - Sim, sei exatamente aquilo que tornar-me útil de diversos modos. Mas aquilo
quero escrever. Rntes dessa fase, não escrevo. que imediatamente me convenceu a abandonar
Cu trabalho no mais das vezes um só texto. € a Rlemanha - caso deva falar disso - jamais
então a redação é relativamente rápida, porque o contei, porque doravante não tem nenhuma
depende apenas da velocidade com que bato importância...
à máquina. Gnus - Conte, por favor.
Gnus - R senhora trabalha principalmente Rrcndt - Cu tinha, de todo modo, intenção
com teoria política, com a ação e o comporta­ de emigrar. Imediatamente percebi que os ju­
mento político. Dito isso, parece-me particu­ deus não poderiam permanecer. Cu não tinha
larmente interessante o que a senhora diz em a intenção de circular na Rlemanha, por assim
um diálogo com o professor israelita Scholem. dizer, como cidadã de segunda classe, ou de
R senhora escreveu a ele, permita-me citá-la, qualquer outro modo. Rlém disso, considerava
que na juventude “não se interessava nem pela que as coisas se tornariam sempre piores.
política nem pela história". Senhora flrendt, a Todavia, não me retirei de modo totalmente
senhora abandonou a Rlemanha em 1 9 3 3 por pacífico. C devo dizer que isso me causou certa
ser judia, com a idade de vinte e seis anos. satisfação. Fui presa, tive de abandonar ilegal­
Cxiste uma relação causai entre seu interesse mente o país - logo lhe contarei isso - e disso
pela política, o envolvimento na política e na tirei certa satisfação. Cu pensava: ao menos fiz
história, e aqueles acontecimentos? alguma coisal Ro menos não sou inocente! Nada
Rrcndt - Sim, evidentemente. Cm 1 9 3 3 poderá ser-me reprovado! Ora, a ocasião para
o desinteresse não era mais possível. Mas jó tornar-me útil foi-me oferecida pela organiza­
anteriormente não era mais possível. ção sionista. Cu estava em estreitas relações
Gnus - € isso vai ia também para a senhora? de amizade com alguns dos dirigentes, e o
Rrcndt - Sim, sem dúvida. Cu lia com primeiro de todos era o então presidente Kurt
atenção os jornais e criei uma opinião. Mas Blumenfeld. Mas eu não era sionista. C ninguém
não estava inscrita em nenhum partido, por­ procurou tornar-me sionista. Cu sempre, em
que não sentia necessidade disso. Depois de certo sentido, fora influenciada pelo sionismo,
1 9 3 1 eu havia chegado à conclusão de que particularmente no que se refere à crítica, ou
os nazistas tomariam o poder. Havia discutido melhor, à autocrítica, que os sionistas haviam
continuamente sobre este problema com outras suscitado no povo judeu. Por isso havia sofrido
pessoas. Mas ocupei-me sistematicamente com certa influência, e também fiquei impressionada,
estas coisas apenas no momento da emigração. mas de um ponto de vista político eu não tinha
Gnus - Tenho uma pergunta a respeito do nada a ver com o sionismo. Ora, em 1 9 3 3 ,
que a senhora acaba de dizer. Partindo de sua Blumenfeld e os outros, que o senhor não pode
convicção sucessiva a 1 9 3 1 - que os nazistas conhecer, me procuraram e disseram que tinham
conquistariam o poder-, a senhora não tentou intenção de recolher todos os testemunhos
opor-se ativamente, aderindo, por exemplo, anti-semitas de baixo nível: nas associações,
a um partido, ou pensava que isso não teria nas profissionais e de outro tipo, em todas as
nenhum sentido? revistas especializadas, em poucas palavras,
R rcndt- Pessoalmente eu considerava que tudo aquilo que não era conhecido no exterior.
não tivesse sentido. Caso contrário - mas isto Organizar essa coletânea recaía então sob a
é difícil de dizer com o discernimento posterior assim chamada G reulpropaganda.] Nenhum
- teria feito alguma coisa. Mas parecia-me que membro da organização sionista podia dela se
a situação fosse desesperada. ocupar. Com efeito, se fosse preso, também a
Gnus - Rcaso se lembra se um evento organização se tornava exposta.
particular coincidiu com seu empenho político? Gnus - Naturalmente.
Rrcndt- Poderia recordar o dia 2 7 de feve­
reiro de 1 9 3 3 , o dia do incêndio do Reichstag,
e as prisões ilegais que ocorreram na mesma 'Propagando endereçada o desacreditar ou difamar
noite. Denominavom-se prisões preventivas. alguém.
241
Cãpltulo décimo segundo - T r a ç o s e s s e n c ia is e d ese n v o lv im e n to s d o e x iste n c ia lism o _ ..

Arçndt—é cloro. Perguntaram-me se queria Gflus - Seu pai morreu prematuramente?


ocupar-me com isso. C eu respondi: "Certamente”. Arcndt - Sim, meu pai morreu prematura­
Cu estava muito contente. Cm primeiro lugar con­ mente. O que segue pode parecer muito engra­
siderava que fosse algo muito justo, e depois pa­ çado. Meu avô era presidente da associação
recia que fosse um modo de fazer alguma coisa. liberal da cidade, e conselheiro municipal de
Gnus - Sua prisão foi causada por essa Hônigsberg. Todavia, a palavra "judeu” jamais
atividade? foi pronunciada em família quando eu era me­
Arsndt - Sim, de fato fui presa. Mas tive nina. Cu a conheci pela primeira vez por causa
muita sorte. Saí depois de oito dias, porque me das observações anti-semitas - não vale a pena
tornei amiga do funcionário de polícia que me citá-las - das crianças na rua. A partir daquele
prendera. Cra um tipo fascinante, flntes ele fazia momento fui, por assim dizer, "iluminada".
parte da polícia criminal, mas depois fora trans­ G rus - Foi um choque para a senhora?
ferido para a seção política. Não tinha nenhuma Arcndt - Não.
suspeita em relação a mim. Por que haveria de Gnus - A partir daquele momento sentiu
ter? - dizia-me sempre. "Cm geral, basta que eu que se encontrava em uma situação particular?
dê uma olhada para quem está sentado diante Arcndt - Considero objetivamente que isso
de mim para entender de que tipo se trata. Mas fosse acompanhado pelo fato de ser judia.
o que posso fazer com a senhora?" Como criança - embora não necessariamente
Gnus - Isso acontecia em Berlim? pequena - eu sabia, por exemplo, que tinha um
Arcndt - Sim, em Berlim. Infelizmente tive ar judaico, ou seja, que eu parecia diferente dos
de mentir para aquele homem. Cu não podia outros. Cstava muito consciente disso. Mas não
sem dúvida expor a organização. Contava-lhe no sentido de que me sentisse inferior. Cra mais
histórias fantasiosas. Cie dizia sempre: ”Cu a um dado de fato. Além disso, minha mãe, ou
trouxe aqui dentro, e farei de tudo para fazê-la melhor, as pessoas de minha família, eram um
sair. Não tome um advogado! Os judeus não têm pouco diferentes, como em geral acontece. Ha­
mais dinheiro. Poupe seu dinheiro". Cntrementes, via características tão particulares em minha fa­
a organização havia providenciado um advo­ mília, que para uma criança era muito difícil com­
gado para mim. Naturalmente era um de seus preender. C então, onde estavam as'diferenças?
membros, mas eu o despedi. O homem que me Gnus - Gostaria que a senhora me con­
prendera tinha um aspecto tão aberto e honesto. tasse quais seriam as características de sua
Confiava nele, e pensava que me ofereceria uma família. A senhora disse que sua mãe nunca
possibi lidade melhor do que qualquer advogado sentiu a necessidade de esclarecer - enquanto
amedrontado desde o primeiro momento. a senhora não teve a experiência disso na rua
Gnus - Assim a senhora saiu e pôde aban­ - o que significava ser judeus. Talvez sua mãe
donar a Alemanha? tivesse perdido a consciência do judaísmo que,
Arcndt - Saí de lá, mas tive de deixar ao contrário, a senhora reivindica no diálogo
o país clandestinamente, porque a devassa com Scholem? Não desempenhava mais nenhum
continuava. papel para sua mãe? Pode-se falar de uma
Gnus - No diálogo já citado, senhora Aren­ assimilação bem-sucedida, ou então sua mãe
dt, a senhora considera supérflua certa exorta­ tinha a ilusão de ser assimilada?
ção de Scholem a jamais esquecer sua pertença Arendt - Minha mãe não tinha muita dispo­
ao povo judeu. A senhora escreve, cito ainda: sição para a teoria. Não creio que tivesse idéias
“Sempre considerei o fato de ser judia como um particulares a respeito. Cia vinha do movimento
dos dados de fato indiscutíveis de minha vida, social-democrata, do círculo dos Sozialistischen
que jamais desejei mudar ou repudiar, sequer Monatshefte; meu pai também, mas principal­
durante a infância". A esse respeito eu teria mente minha mãe. Mas a questão do judaísmo
alguma pergunta. A senhora nasceu em 1 9 0 6 jamais teve um papel para ela. Cra evidente­
em Hannover, de pai engenheiro, e foi criada mente judia, e jamais teria me batizado. Imagino
em Hônigsberg. Poderia explicar-me, com base que me teria dado uns tapas se tivesse sabido
em suas lembranças, o que significava para que eu abandonara o judaísmo. Mas isso, por
uma criança, na Alemanha daquele tempo, na assim dizer, jamais esteve em discussão e,
época que precede a primeira guerra mundial, portanto, o problema nunca foi proposto. Sem
pértencera uma família judia? dúvida, o problema enquanto tal assumira na
Aréndt - Não posso dar a esta pergunta década de 1 9 2 0 , durante minha juventude, uma
uma resposta que tenha valor geral. No que se importância maior para mim do que para minha
refere às minhas lembranças pessoais, não to­ mãe. Quando me tornei adulta, o problema se
mei consciência em família do fato de ser judia. tornou para minha mãe muito mais importante
Minha mãe era totalmente não-religiosa. do que antes. Mas isso diz respeito às circuns­
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia , Ê -xis+encialism o, -H e rm en ê u tica

tâncias externos. Por exsmplo, nõo penso ter O existencialismo se opõe energicamente
jornais me considerado alemã, no sentido do a certo tipo de moral leiga que gostaria de
nacionalidade, da pertença a um povo 0 não eliminar Deus com o mínimo dano possível.
da cidadania, se é possível 0stab0l0cer essa Quando, por volta de 1 8 8 0 , alguns professores
diferença. Lembro-me, por 0X0mplo, de ter franceses tentaram constituir uma moral leiga,
tido a esse respeito discussões com Jaspers raciocinaram mais ou menos assim: Deus é uma
pelos anos de 1 9 3 0 . (Ele dizia: "Naturalmente hipótese inútil e custosa: eliminemo-la,- mas é
que você é alemã"; e eu: “D© modo nenhum, necessário, todavia, para que haja uma moral,
e isso S0 vêl". M as isso não teve nenhuma uma sociedade, um mundo civil, que certos
importância para mim. Jamais me senti em con­ valores sejam tomados a sério e considerados
dição de inferioridade, não era exatamente o como exist0nt0s a priori; é preciso que seja
caso. Permita-me voltar à peculiaridad© de meu obrigatório a priori ser honestos, não mentir, não
ambiente familiar. Veja, todas as crianças judias bater na própria esposa, ter filhos etc. Devemos
tiveram a ver com o anti-semitismo. Envenenou fazer, portanto, pequeno trabalho que permitirá
a alma de tantos crianças, fl diferença para mostrar que tais valores existem igualmente, em
nós era que minha mãe partia sempre deste um céu inteligível, mesmo que Deus não exista.
ponto d® vista: não se deve abaixar a cabeça! Cm outros palavras - e é a tendência de todo
é preciso sempre defender-sel Se meus profes­ aquele movimento que na frança denomina-se
sores tivessem feito observações anti-semitas radicalismo - nada mudará se Deus não existir;
- geralmente não em relação a mim, mas às reencontraremos as mesmás normas de hones­
outras estudantes judias, por exemplo, judias tidade, de progresso, de humanismo, e teremos
orientais -, eu fora instruída para levantar-me, feito de Deus uma hipótese ultrapassada, qu©
deixar a classe, voltar para casa e fazer uma re­ morrerá tranqüilamente por si só.
lação detalhada sobre o que havia acontecido. O existencialismo, ao contrário, pensa que
Minha mãe escrevia uma de suas tantas cartas é muito incômodo que Deus não exista, pois
registradas; e para mim o incidente estava com Deus desaparece toda possibilidade de
absolutamente encerrado. €u tinha um dia de reencontrar valores em um céu inteligível; não
férias a mais, 0 isso era muito gostoso. Mas, se pode mais haver um bem a priori porque não
as observações eram feitas por outras crianças, ©xiste nenhuma consciência infinita 0 perfeita
eu nõo devia contar nada em casa. Não valia para pensá-lo; não está escrito em nenhum
o peno. Com as crianças, devia me defender lugar que o bem ©xist©, que é preciso ser
sozinha. Assim, estas coisas não constituíam honestos, que não se deve mentir, e por esta
para mim nenhum problema. Cm minha casa precisa razão: que estamos sobre um plano em
existiam regras de conduta que me permitiam que há apenas homens.
mant0r e proteger absolutamente a dignidade. Dostoiewski ©screveu: "S0 D©us não 0xis-
H. Arendt, te, tudo é permitido". Cis o ponto de partida do
líng ua materna. existencialismo. Afetivamente, tudo é lícito se
Deus nõo existir 0, por conseguinte, o homem
torna-se "abandonado" porque não encontra
nem em si nem fora d e si uma possibilidade de
se ancorar. C em primeiro lugar não ©ncontra se­
quer d0sculpas. Se de fato a existência precede
S artr e a essência não se poderá jamais ch©gar a uma
©xplicação referindo-se a uma natureza humana
dada 0 determinada; ou melhor, não há determi­
nismo: o homem é livre, o homem é liberdade.
Se, por outro lado, Deus não 0xist0, não
0ncontramos diant0 d0 nós valores ou ord©ns
O homem que dêem o sinal da legitimidade de nossa
"é condenado conduta. Assim, não temos nem diante de nós
em todo momento nem atrás de nós, no luminoso reino dos valo­
res, justificativas ou desculpas. Estornos a sós,
a inventor o homem" sem desculpas. Situação que me parece poder
caracterizar dizendo que o homem é condenado
"O homem é cond<znodo a ser livre [...] a ser livre. Condenado porque nõo S0 criou por
porque, uma vez jog a d o no mundo, é res­ si só, 0 m0smo assim nem rronos livre porque,
ponsável por tudo aquilo que faz". uma vez jogado no mundo, é responsável por
tudo aquilo qu© faz.
Capítulo décimo segundo - T r a ç o s e s s e n c ia is e d e se n v o lv im e n to s d o e x isten c ia lism o

O existencialista não crê na força da Mas o que queremos dizer nós, deste modo,
paixão. Jamais pensará que uma bela paixão senão que o homem tem uma dignidade maior
é uma torrente impetuosa que leva o homem que a pedra ou a mesa? Porque queremos dizer
fatalmente a certas ações e que, portanto, que o homem em primeiro lugar existe, ou seja,
vale como desculpa. Considera o homem res­ que ele é em primeiro lugar aquilo que se lança
ponsável pela paixão. O existencialista não para o futuro e aquilo que tem consciência de
pensará sequer que o homem pode encontrar se projetar para o futuro.
auxílio em um sinal dado sobre a terra, a fim de O homem é, em primeiro lugar, um projeto
orientá-lo; ao contrário, pensa que o indivíduo que vive por si mesmo subjetivamente, em vez
interpreta por si o sinal a seu bel-prazer. Pensa, de ser musgo, podridão ou couve-flor; nada
portanto, que o homem, sem apoio ou auxílio, existe antes deste projeto: nada existe no céu
está condenado em cada momento a inventar inteligível; o homem será em primeiro lugar
o homem. aquilo que tiver projetado ser. Não aquilo que
J.-P. Sartre, quiser ser. Pois aquilo que em geral entendemos
O existencialismo é um humanismo. com o verbo “querer" é uma decisão consciente,
posterior, para a maior parte de nós, ao fato
de ser feitos por nós mesmos. Cu posso querer
aderir a um partido, escrever um livro, casar-
me: tudo isso não é mais que a manifestação
O homem é responsável de uma escolha mais originária, mais espontâ­
por ciquilo que pertence nea, daquilo que se chama de vontade. Mas,
a todos os homens se de fato a existência precede a essência, o
homem é responsável por aquilo que é. flssim,
o primeiro passo do existencialismo é pôr todo
"Nossa responsabilidade é muito maior homem na posse daquilo que ele é, e fazer
do que poderíam os supor, porque ela envol­ cair sobre ele a responsabilidade total por sua
ve o humanidade inteira''. existência. C quando dizemos que o homem é
responsável por si próprio, não entendemos que
o homem é responsável pela sua individualida­
Há duas espécies de existencialistas: uns de estrita, mas que ele é responsável por todos
que são cristãos, e entre estes eu colocaria Jas­ os homens, fl palavra “subjetivismo" tem dois
pers e Gabriel Mareei, este último de confissão significados com os quais nossos adversários
católica: e os outros que são existencialistas jogam. Subjetivismo quer dizer, de um lado,
ateus, entre os quais é preciso pôr Heidegger, escolha do sujeito individual por si próprio e, do
os existencialistas franceses e eu mesmo. [...] outro, impossibilidade para o homem de ultra­
O existencialismo ateu, que eu represento, passar a subjetividade humana. Cste segundo é
é mais coerente. Se Deus não existe, afirma, há o sentido profundo do existencialismo. Quando
ao menos um ser em que a existência precede dizemos que o homem se escolhe, entendemos
a essência, um ser que existe antes de poder que cada um de nós se escolhe, mas, com isso,
ser definido por algum conceito: este ser é o queremos também dizer que cada um de nós,
homem, ou, como diz Heidegger, a realidade escolhendo-se, escolhe por todos os homens.
humana. O que significa, neste caso, que a Com efeito, não há um só de nossos atos que,
existência precede a essência? Significa que o criando o homem que queremos ser, não crie ao
homem existe em primeiro lugar, se encontra, mesmo tempo uma imagem do homem tal qual
surge no mundo, e que se define depois. O julgamos que deva ser. Cscolher ser isto mais do
homem, segundo a concepção existencialista, que aquilo é afirmar, ao mesmo tempo, o valor
não pode ser definido pelo fato de que no início de nossa escolha, uma vez que não podemos
não é nada. Será a seguir, e será tal qual se jamais escolher o mal; isso que escolhemos é
houver feito, fissim, não há uma natureza hu­ sempre o bem, e nada pode ser um bem para
mana, pois não há um Deus que a conceba. O nós sem que o seja para todos. Se a existência,
homem é apenas, não só tal qual se concebe, por outro lado, precede a essência e queremos
mas tal qual se quer e precisamente tal qual existir ao mesmo tempo em que formamos
se concebe depois da existência, e tal qual se nossa imagem, essa imagem é validade para
quer depois deste impulso para a existência: o todos e para toda a nossa época, flssim, nossa
homem nõo é mais do que aquilo que ele se faz. responsabilidade é muito maior do que pode­
Cste é o princípio primeiro do existencialismo. C ríamos supor, pois ela envolve a humanidade
é também aquilo que se chama de subjetividade inteira. Se eu sou operário e escolho fazer parte
e que nos é reprovada com este mesmo termo. de um sindicato cristão em vez de ser comunista;
Terceira parte - T -e n om e n o lo gia , É x is te n c ia lis m o , 'H e r m e n ê u tica

se, com esto minha escolha, quero mostrar que jamais tenha traído, sente-se, pelo seu modo
o resignação é, no fundo, o solução que convém de ser fiel, que ele poderia trair: ele não toma
ao homem, que o reino do homem não é sobre parte nas coisas como os outros, falta ao seu
esta terra, eu não ponho em questão apenas o assentimento algo de sólido e de cornai. Cie
meu caso pessoal: eu quero ser resignado por não é um ser totalmente real.
todos e, por conseguinte, meu ato envolveu Uma diferença existe. Mas é a do filósofo
toda a humanidade. C se quero, fato ainda e do homem? Cia é mais, no próprio homem,
mais individual, casar-me, ter filhos, mesmo a diferença entre aquele que compreende e
que esse matrimônio dependa unicamente de aquele que escolhe, e todo homem, deste
minha situação, ou de minha paixão, ou de meu ponto de vista, está dividido como o filósofo. Há
desejo, desse modo eu empenho não só a mim muito convencionalismo no retrato do homem de
mesmo, mas a humanidade inteira sobre o ca­ ação que é contraposto ao filósofo: o homem
minho da monogamia. Assim, sou responsável de ação não é íntegro. O ódio é uma virtude
por mim mesmo e por todos, e crio certa imagem invertida. O obedecer de olhos fechados é o
do homem que escolho. Cscolhendo-me, eu início do pânico, e escolher em oposição àquilo
escolho o homem. que se compreende é o início do ceticismo, é
Isso nos permite compreender aquilo que preciso ser capazes de certa tolerância para
está sob certas palavras um pouco grandilo­ retroceder, a fim de empenhar-se de fato, que
qüentes, como angústia, abandono, desespero. é sempre um empenhar-se na verdade. Aquele
Como vocês verão, é extremamente simples. mesmo que pode ter escrito um dia que toda
No entanto, o que se entende por angústia? ação é maniqueísta, uma vez que entrou mais
O existencialista declaro de bom grado que o a fundo no ação, pode responder familiarmente
homem é angústia. Isso significa: o homem que a um jornalista que lhe recorda sua afirmação:
assume um empenho e está consciente de ser "toda ação é maniqueísta, mas não se deve
não só aquele que escolhe ser, mas também remeter-se a este juízo". Ninguém é maniqueu
um legislador que escolhe, ao mesmo tempo, diante de si próprio. C uma área que têm os
e por si e por toda a humanidade, não pode homens de ação, vistos do exterior, e que eles
escapar do sentimento de sua própria, completa conservam raramente em suas memórias. Se
e profunda responsabilidade. o filósofo deixa entender desde o início algo
J.-P. Sartre, que o grande homem diz apenas diante de si
O existencialismo é um humanismo. mesmo, o filósofo salva a verdade para todos,
e o salva também para o homem de ação, que
evidentemente tem necessidade dela, pois ne­
nhum governador de povos jamais aceitou dizer
que se desinteressa pela verdade. Mais tarde,
ou amanhã mesmo, o homem de ação reabilita­
M erleau- P o n ty rá o filósofo. Ouanto aos homens simplesmente
homens, que não são profissionais da ação,
estão bem longe de classificar os outros em
bons e maus, contanto que falem daquilo que
viram e o julguem de perto. C os encontramos,
Para que servem quando se quer tentar fazer a experiência disso,
de modo espantoso, sensívéis à ironia filosófi­
os filósofos? ca, como se nela reconhecessem seu silêncio e
suas reservas, porque, por uma vez, a palavra
"O Filósofo é o homem que desperto torna-se aqui deliberação.
e que Fala, e o homem tem em si, silen ­ A fraqueza do filósofo é sua virtude. A ver­
ciosam ente, os p a ra d o x o s da FilosoFia, dadeira ironia não é um álibi, mas uma tarefa,
porque, para ser de Fato homem, é preciso e a desapego do filósofo lhe permite certo tipo
ser um pouco mais e um pouco menos que de ação entre os homens. Como vivemos em
homem". uma das situações que Hegel chamava de di­
plomáticas, na qual o sentido de toda iniciativa
corre o risco de ser falseado, crê-se por vezes
Os maniqueus que se combatem na ação servir à filosofia proibindo-lhe os problemas
entendem-se melhor entre si do que com a de sua própria época, e também recentemente
filosofia: entre eles há uma cumplicidade, cada foi lembrado em honra de Descartes o fato de
um é a razão de ser do outro. Nessa luta fra­ que ele não tomou partido entre Galileu e o
terna o filósofo é um estrangeiro. Mesmo que Santo Ofício. O filósofo, como se diz, não. deve
245
Cãpítulo decimo segundo - T ra ço s e s s e n c ia is e d e s e n v o lv im e n t o s d o e x is t e n c ia lis m o ---------

escolher entre dois dogmatismos rivais. Cie se ser aquilo que sobem todos aqueles que fazem
ocupa do ser absoluto, para além do objeto proceder juntos suo alma e seu corpo, seu bem
do físico e da imaginação do teólogo. Mas é e seu mal? O que ensina sobre a morte, a não
esquecer que, recusando-se a falar, Descartes ser que está escondida na vida, assim como
recusa também fazer valer e fazer existir a o corpo na alma, e que isso faz de fato, como
ordem filosófica na qual é colocado: calando, dizia Montaigne, que morra um camponês, que
ele não supera dois erros opostos, mas os morram povos inteiros, assim como morre o
deixa em oposição, os encoraja e, de modo filósofo? O filósofo é o homem que desperta e
particular, encoraja o vencedor do momento. que fala, e o homem tem em si, silenciosamente,
Não é a mesma coisa calar e dizer por que não os paradoxos da filosofia, porque, para ser de
se quer escolher. Se Descartes o tivesse feito, fato homem, é preciso ser um pouco mais e um
não teria podido não estabelecer o relativo pouco menos que homem.
direito de Galileu contra o Santo Ofício, mesmo M. Merleau-PontY,
se isso tivesse terminado, no fim, com uma su­ Elogio do FilosoFia.
bordinação da física à teologia, fl filosofia e o
ser absoluto não estão acima dos erros opostos
que se opõem no século: estes jamais têm um
mesmo modo de ser erros, e a filosofia, que é
integração na verdade, tem a tarefa de dizer
aquilo que deles pode ser integrado. Para que M arcel
um dia pudesse se realizar uma situação no
mundo na qual fosse possível um pensamento
livre tanto do cientificismo como da imaginação,
não era suficiente a pretensão de superá-los
com o silêncio: era preciso tomor posição contra, Problema e metaproblema
e, no coso específico, contra a imaginação. O
pensamento físico tinha consigo, na questão de
Galileu, os interesses do verdade. O absoluto fís p á g in a s seg u in tes constituem os
filosófico não reside em nenhum lugar, e nunca Delineamentos da relação apresentada por
se encontra, portanto, em outro lugar, fllain dizia G abriel M arcel ò S ocied ade de estudos
a seus alunos: “fl verdade é momentânea, poro FilosóFicos d e Marselha no dia 2 1 de janeiro
nós que somos homens, que temos uma visão de 1933, sobre Posições e aproximações
curta. €stá em uma situação, em um instante; é concretas do mistério ontológico.
preciso fazê-la, dizê-la, naquele dado momento, fí análise leva Marcel a concluir que o
não antes nem depois, não fechando-a em má­ problema do ser é um problema que se e s ­
ximas ridículas; não muitas vezes, porque nada tende a seus próprios dados, enquanto põe
se repete muitas vezes". Aqui a diferença não em discussão a própria pessoa que pergunta,
se encontra entre o homem e a filosofia: ambos e deste modo "se nega (ou se transcende)
pensam a verdade no acontecimento: encon­ como problema e transForma-se em mistério",
tram-se juntos contra a pretensão arrogante que fí ciência enFrenta problemas; a metaFísica vai
pensa segundo princípios abstratos e contra a ao encontro do metaproblema, cuja solução
libertinagem que vive sem verdade. é “o mistério que se compreende".
No limite de uma reflexão que no início o
diminui, mas para fazer com que ele sinta melhor
as verdadeiras relações que o ligam ao mundo fí - Se considerarmos a posição atual do
e à história, o filósofo não encontra o abismo pensamento filosófico como se manifesta em
do eu ou do saber absoluto, mas uma imagem uma consciência que procura aprofundar suas
renovada do mundo, e a si mesmo naquela próprias exigências, somos levados a formular
imagem, no meio dos outros. Sua dialética, os seguintes observações.
ou sua ambigüidade, não é mais que um meio 1) Os termos tradicionais, com os quais
para expressar com palavras aquilo que todo alguns tentam ainda hoje enunciar o problema
homem sabe bem: o vôlor dos momentos em do ser, despertam em geral uma desconfiança
que de fato a vida se renova continuando-se, se insuperável, cuja origem deve ser procurada
retoma e se compreende ultrapassando-se, nos mais no fato de que alguns espíritos estõo
quais seu mundo privado torna-se um mundo embebidos com os resultados da crítica berg-
comum. O mistério está em todos da mesma soniana - e isso se constata também naqueles
forma como estó nele. O que diz o filósofo que não poderiam remeter-se ao bergsonismo
sobre os relações da alma com o corpo a não enquanto metafísica - do que em uma adesão
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia , E x is te n c ia lis m o , ■H erm enêutica

mais ou menos explícito o algumas teses kan- porque se refere apenas aos outros, e isso por
tianas. uma ilusão de que estes “outros" são vítimas,
2) ilusão que afirmo ter definitivamente superado.
Por outro lado, a atitude de abstenção
pura e simples diante do problema do ser por é necessário evitar toda confusão entre
parte de muitas doutrinas filosóficas contem­ o mistério e o incognoscível: na realidade, o
porâneas é, em última análise, insustentável. incognoscível é apenas um limite do proble­
Com efeito, tal atitude se reduz a uma espécie mático que nõo pode ser atualizado sem cair
de intervalo não justificável de direito que em contradição. O reconhecimento do mistério
deriva da preguiça ou do timidez. Essa atitude é, ao contrário, um ato essencialmente positivo
- como geralmente ocorre - pode também ligar- do espírito, o ato positivo por excelência, em
se, ainda que indiretamente, a uma negação função do qual toda positividade pode ser rigo­
mais ou menos explícita do ser, que encerra rosamente definida. Tudo parece desenrolar-se
uma oposição às exigências essenciais de um como se eu me beneficiasse de uma intuição
ser cuja essência concreta é a de ser de todo que possuo sem saber disso imediatamente:
modo empenhado. Pelo próprio fato de ser de uma intuição que, propriamente falando,
empenhado ele vem a se encontrar às voltas não poderia existir por si, embora compreen­
com um destino que deve não apenas sofrer, dendo-se por meio dos modos de experiência
mas também tornor seu, recriando-o de algum sobre os quais se reflete, e que ela ilumina por
modo a partir do interior. Essa negação do ser meio dessa própria reflexão. Um procedimento
nõo poderia ser na realidade a constatação metafísico essencial consistiria então em uma
de uma ausência, de uma falta; pode ser ape­ reflexão sobre esta reflexão; uma reflexão,
nas desejada e, portanto, pode também ser portanto, em segunda potência, com a quaf o
rejeitada. ^ pensamento se inclina no direção da recupe­
B - é oportuno notar como eu, que me ração de uma intuição que se perde à medida
ponho quesitos sobre o ser, não sei nem se que ele se realiza.
eu seja, nem a fortiori o que eu seja, nem o O recolhimento, cuja possibilidade efetiva
significado próprio do quesito: o que sou eu?, pode ser considerada como o sinal ontológico
que todavia me assimila. Nós vemos aqui que mais revelador que possuímos, constitui o meio
o problema do ser s e estende o seus próprios real com que se pode realizar essa recuperação.
dodos, e se aprofunda no seio do sujeito que 6 - 0 “problema do ser" será, portanto,
o põe. Deste modo se nega (ou se transcen­ uma exemplificação, ainda que em linguagem
de) enquanto problema, e transforma-se em inadequada, de um mistério que pode ser dado
mistério. apenas a um ser capaz de recolhimento, e cuja
C -Parece justamente que entre um misté­ característica consiste talvez no não coincidir de
rio e um problema haja uma diferença essencial. modo puro e simples com sua vida. Encontramos
Com efeito, um problema é algo que deparo, a confirmação ou a prova dessa não-coincidên-
que encontro diante de mim, mas que posso cia no fato de que avalio minha vida de modo
delimitar e transformar, enquanto um mistério é mais ou menos explícito. Na realidade, posso
algo em que estou empenhado e que, portanto, não só condená-la com uma sentença abstrata,
é pensável apenas como uma esfera em que mas pôr um termo efetivo se não a esta vida
a distinção entre o "em mim" e o “diante de considerada em profundidade, pelo menos à
mim" perde seu significado e seu valor inicial. expressão finita e material à qual sou livre de
Um problema autêntico depende de uma téc­ crer que esta vida se reduza. Na própria possi­
nica apropriada em função da qual se define, bilidade do suicídio há um elemento essencial
enquanto um mistério transcende por definição de todo pensamento metafísico autêntico. £
toda possibilidade de técnica. Sem dúvida é isso nõo só para o suicídio: o desespero, sob
possível (lógica e psicologicamente) degradar todas as suas formos, a traição, em todos os
um mistério para dele fazer um problema; mas seus aspectos, enquanto negações efetivas do
seria um processo substancialmente vicioso, ser, enquanto a alma se desespera, se fecha
cujas origens deveriam talvez ser procuradas também ela à garantia misteriosa e fundamental
em uma espécie de corrupção da inteligência. em que acreditamos encontrar o princípio de
Na realidade, aquilo que os filósofos chamaram toda positividade.
o problema do mal nos oferece um exemplo F - Nõo basta dizer que vivemos em um
particularmente instrutivo dessa degradação. mundo em que a traição é possível a cada
D - O mistério, enquanto pode ser reco­ instante, em toda medida, em todos os seus
nhecido como tal, pode ser também mal conheci­ aspectos; a própria estrutura de nosso mundo
do e ativamente negado: ele se reduz, portanto, a recomenda, para não dizer que o impõe.
a algo de que "ouvi falar", a algo que rejeito O espetáculo de morte que este mundo nos
Capítulo décimo segundo - T r a ç o s e s s e n c ia is e d e se n v o lv im e n to s d o e x isten c ia lism o

oferece, d© um d0t0rminado ponto d© visto de um permanente que implica ou exige uma


pod© s0r considerado como contínuo incitação história em oposição à permanência inerte e
o renegar, à defecção absoluta. Do resto, po- formal da pura validade, da lei. R fidelidade é
d0r-se-iQ dizer qu© o tempo © o espaço, como a perpetuação de um testemunho que a cada
modos conjugados da ausência, enquanto nos momento poderia ser cancelado ou renegado, é
reportam sobre nós mesmos, tendem a nos uma atestação não só perpetuada, mas criado­
expulsar na indigente instantaneidade do gozo. ra, tão mais criadora se for mais elevado o valor
Mas, ao mesmo tempo, o desespero, a traição, ontológico daquilo que elo testemunha.
a própria morte podem, ao menos parece, ser H - Uma ontologia assim orientada trans­
rejeitados, negados: 0 se o termo transcendên­ borda na direção de uma revelação que ela
cia tem um significado, nele está implícita esta não poderia nem exigir, nem pressupor, nem
negação ou, mais exatamente, esta superação integrar e sequer compreender, embora pre­
(Ueberuuindung, mais que fíufhebung). Com parando em certo sentido sua aceitação. Pode
afeito, a essência do mundo é talvez traição também ocorrer que essa ontologia possa de
ou, mais exatamente, no mundo não há nada foto desenvolver-se sobre um terreno preparado
cujo prestígio possa resistir seguramente aos precedentemente pela revelação. Isso não deve
assaltos de uma intrépida reflexão crítica. surpreender-nos e a fortiori escandalizar-nos;
. G - Cm tal situação, as aproximações o desenvolvimento de uma metafísica pode
concretas do mistério ontológico deverão ser se produzir apenas no seio de determinada
procuradas não no plano do pensamento situação que a suscita: ora, a existência de um
lógico, cuja obj0tivação suscita um problema dado cristão constitui um fator essencial desta
inicial, mas muito mais no esclarecimento de nosso situação. Convém renunciar para sempre
alguns dados propriamente espirituais, como à idéia ingenuamente racionalista de um siste­
a fidelidade, a esperança, o amor. Sobre este ma de afirmação válido para um pensamento
plano podemos ver o homem às voltas com a em geral, para uma consciência qualquer. Cste
tentação de renegar, de fechamento sobre si pensam ento é o sujeito do conhecimento
próprio, de endurecimento interior, sem que por científico, um sujeito que é apenas uma idéia,
isso o metafísico puro possa decidir se a causa flo contrário, o plano ontológico pode ser
dessas tentações resida na própria natureza reconhecido apenas com um ato pessoal, por
considerada em seus aspectos intrínsecos e meio da totalidade de um ser empenhado em
invariáveis, ou muito mais em uma corrupção um drama que é o seu, embora o transcenda
dessa própria natureza, ocorrido depois de infinitamente em todos os sentidos, um ser ao
uma catástrofe que, mais do que se inserir na qual foi concedida a singular qualidade de se
história, teria dado origem a ela. afirmar ou de se negar, quer afirme o Ser e se
No plano ontológico o fidelidade tem obra a ele, quer o negue e, portanto, se feche a
grande importância. Com efeito, ela é o reco­ ele.- com efeito, em tal dilema consiste a própria
nhecimento efetivo, e não teórico ou verbal, de essência da liberdade.
um permanente ontológico, de um permanente G.
que dura, e em relação ao qual nós duramos, Ser e ter, em Jornal metafísico.
C a p í+ w lo d é c i m o t e r c e i r o

-Hans <^\eo^0 (gadamer


e a teoria da hermenêutica

• Os intérpretes profissionais são os biblistas e os juristas, os problemas


os críticos literários e os epigrafistas. Contudo, nós todos inter- de uma
pretamos quando ouvimos um discurso ou lemos uma página de teoria da
um livro. E então: o que significa interpretar um texto? E quando hermenêutica
podemos estar tranqüilos sobre a adequação de uma interpre- -> § 1.1
tação nossa?
A perguntas desse tipo responde a teoria da hermenêutica ou da interpreta­
ção, cuja teoria encontra, em nossos dias, seu texto clássico em Verdade e método
(1960) do filósofo alemão Hans Georg Gadamer.

• Enfrentamos um texto com o conjunto de expectativas ou pré-conceitos


(Vor-urteile) que constituem nossa Vor-verstãndnis ou pré-compreensão.
E é ém base a esta pré-compreensão nossa que damos uma
primeira interpretação do texto; tal primeira interpretação do interpretações
texto não é mais que conjetura nossa sobre a mensagem ou con- e controles
teúdo do texto, sobre aquilo que o texto diz; e o intérprete põe destas
esta sua interpretação ao crivo sobre o texto e sobre o contexto (o interpretações
contexto é qualquer informação importante, apta a confirmar ou sobre o texto
a enfraquecer a interpretação proposta), e se esse controle mostra e sobre 0
que há um choque entre nossa interpretação e algum trecho do C0n} e.X j 0
f-
texto ou do contexto, então devemos propor um esboço posterior 5
de sentido, outra interpretação a ser submetida, por sua vez, ao
crivo do texto e do contexto. E se também esta segunda interpretação resultar
inadequada, experimentar-se-á uma terceira. E assim por diante, teoricamente ao
infinito, ainda que de fato nos detenhamos naquela interpretação que, vez por
outra, nos aparecerá como satisfatória.
É este, em poucas palavras, o círculo hermenêutico, o movimento do "com­
preender", o procedimento de qualquer atividade interpretativa nossa.

• O produto não é o produtor. E o autor de um texto é um elemento ocasional.


Com efeito, depois de vindo ao mundo, um texto vive uma vida autônoma: produz
seus efeitos. Assim, por exemplo, de uma teoria científica, com o tempo, se verão
conseqüências, erros, aplicações, desenvolvimentos, interpretações.
É claro que a história dos efeitos de um texto determina sempre
mais plenamente seu significado. Disso resulta que quem interpre- A história
ta um texto a distância temporal do nascimento do texto tem pos- d0Sse,!ellty S
sibilidades maiores de compreender mais plenamente seu sentido. §

• Os preconceitos que formam a pré-compreensão do intérprete são fruto de


elaborações do passado; idéias e ideais são-nos transmitidos pela tradição. Quanto
à tradição, Gadamer:
a) rejeita a atitude romântica feita de fé na autoridade;
b) sustenta que a proposta iluminista de querer crivar todo e qualquer pre­
conceito à luz da razão é uma pretensão justa;
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia , E x is te n c ia lis m o , -H erm en êu tica

Os iluministas c) afirma, porém, que dessa pretensão não brot


erraram, mas mente a rejeição indiscriminada de todo e qualquer preconceito,
os românticos da autoridade e da tradição; e isso pelo fato de que preconceitos
não tèm razão notáveis e preconceitos tradicionais podem resultar adequados
-■§111.1-4 e produtivos para o conhecimento: da verdade não se pergunta
a data de nascimento;
d) por conseguinte, a rejeição iluminista da tradição torna-se um preconceito
não adequado.

I. Estrutura d a ke-^menêutica

..^. todológicas, mas também como perspectiva


smwmmm > • >
de natureza filosófica que servisse de base
e objeto da hermenêutica
da consciência histórica e da historicidade
do homem.
Ligada ao âmbito da interpretação dos Entretanto, foi Heidegger quem com­
textos sagrados, por um lado, e ao campo preendeu o estatuto filosófico das concep­
da crítica textual, por outro, a hermenêu­ ções de Dilthey, no sentido de que viu a
tica (ou teoria da interpretação) tem longa hermenêutica ou “ o com preender” não
história. Sem falar das pistas identificáveis tanto como instrumento à disposição do
na antiguidade clássica, e prescindindo homem, e sim muito mais como estrutura
até do m ais breve aceno às concepções constitutiva do Dasein, como uma dimensão
medievais dos vários “ sentidos” que um intrínseca do homem. O homem cresce sobre
texto sagrado possui, podemos dizer que si mesmo, é um novelo de “ experiências” .
a hermenêutica brota das controvérsias E cada nova experiência é uma experiência
teológicas emergentes da Reforma e, pos­ que nasce sobre o fundo das anteriores e as
teriormente, se desenvolve tanto no campo reinterpreta.
da teologia como no âmbito dos filólogos,
dos historiadores e juristas, continuamente
às voltas com questões de interpretação: o
que significa este texto sagrado? Qual foi a 2 O que e o
iM
NMNUM
K // / I I //
verdadeira intenção do escritor sagrado? O círculo Hermenêutico
que quer dizer esta ou aquela inscrição? É
justa ou equivocada a interpretação usual
deste ou daquele trecho? Como interpretar Aluno de Heidegger, Hans Georg Gada­
esta ou aquela norma jurídica? Quando mer (1900-2002) — professor em Leipzig,
podemos estar seguros de que uma interpre­ depois em Frankfurt e, por fim, em Heidel-
tação qualquer é adequada ou não? Pode berg —, intérprete refinado e arguto, so­
haver interpretação definitiva de um texto, bretudo da filosofia antiga, mas também de
ou a função hermenêutica é tarefa infinita? Hegel e dos historicistas, publicou em 1960
Essas são algumas das interrogações técni­ uma obra hoje considerada clássica para a
cas às quais a teoria da hermenêutica deve teoria da hermenêutica, Verdade e método,
responder. onde tanto as questões técnicas como as
N o romantismo, E Schlegel e F. Sch- perspectivas filosóficas da hermenêutica
leiermacher pretenderam dar à hermenêutica fundem-se em um todo coerente.
lugar de destaque na filosofia. Depois deles, G ad am er p arte da d escrição que
W. Dilthey procurou estabelecer a herme­ Martin Heidegger, em Ser e tempo, faz do
nêutica como alicerce de todo o edifício das círculo hermenêutico: “ O círculo não deve
“ ciências do espírito” . ser degredado a círculo vitiosus e tampouco
Para dizer a verdade, Dilthey con­ considerado inconveniente ineliminável.
cebia a hermenêutica não somente como Nele se oculta uma possibilidade positiva
conjunto de questões técnicas, isto é, me­ do conhecer mais originário, possibilidade
Capítulo décimo terceiro - f-lc m s Ú À e o rg C ^ a d c u n e .^ e a t e o r i a d a h e r m e n ê u t ic a

que só pode ser captada de modo genuíno se reza o esquema de fundo do procedimento
a interpretação compreende que sua função hermenêutico, ou seja, do ato interpretati-
primeira, permanente e última é a de não vo. Existem textos providos de sentido que,
se deixar nunca impor pré-disponibilidade, por seu turno, falam de coisas; o intérprete
pré-vidências e pré-cognições do caso ou das se aproxima dos textos não com a mente
opiniões comuns, mas fazê-las emergir das semelhante a uma tabula rasa, mas com sua
próprias coisas, garantindo assim a cienti­ pré-compreensão (Vor-verstàndnis), isto é,
ficidade do próprio tema” . M T] com seus pré-juízos (Vor-urteile), suas pré-
suposições, suas expectativas; dado aquele
texto e dada a pré-compreensão do intérpre­
3 CD procedimento te, este esboça um significado preliminar de
tal texto, tendo-se esse esboço precisamente
kermervêu+ico
porque o texto é lido pelo intérprete com
como a+o in+erpre+a+ivo certas expectativas determinadas, que deri­
e seu esquema de furvdo vam de sua pré-compreensão.
E o trabalho hermenêutico posterior
consiste todo na elaboração daquele projeto
Esta, comenta Gadamer, é uma descri­ inicial, “ que é revisto continuamente com
ção extremamente concisa do círculo her­ base no resultado da penetração ulterior
menêutico. M as nela já se entrevê com cla­ do texto” .

■ C írculo h e rm e n ê u tic o . O intérprete é um indivíduo que no decorrer desua


vida absorveu (da linguagem comum, das leituras, de conversas, do que ouviu de
outros, dos professores etc.) um patrimônio cultural, talvez reelaborando-o aqui
e ali. Este patrimônio é aquilo que Gadamer chama de Vor-verstàndnis ou pré-
compreensão; pré-compreensão entendida como tecido das idéias, pressuposições,
teorias, mitos etc., tecido, portanto, de Vor-urteile ou pré-conceitos (entendendo
[ este último termo sem a conotação depreciativa atribuída pelos iluministas).
i p P o ic bem,
Pois hom o r \ iintérprete
n + ó r n r o t o coloca-se
r r Jr w a - c ia rdiante
l i a n t o do
r ln ftexto
o v t r » rcom
n m ci
suaia pré-compreensão
n r á .r r t m n r o a n c ã n o "r,
e, "com
base no sentido mais imediato que o texto lhe exibe, ele esboça preliminarmente ]jj
um significado do todo", ou seja, esboça uma primeira interpretação sua.
Este projeto inicial, porém, pode ser revisto se não encontrar confirmação no
texto e no contexto, isto é, caso se choque com alguma parte de texto ou de con- m
texto. Com efeito, "quem procura compreender está exposto aos erros derivados j j
de pré-suposições que não encontram confirmação no objeto". E se é isso que *
ocorre, será preciso então propor outro projeto de sentido, que, por sua vez, será
criado sobre o texto e sobre o contexto. E assim por diante, uma vez que a tarefa
hermenêutica é tarefa possível e infinita.
"Tarefa permanente da compreensão é a elaboração e a articulação de proje­
tos corretos, adequados, os quais, como projetos, são antecipações que podem 4
comprovar-se apenas em relação ao objeto [...]. O que é que distingue as pré-su­
posições inadequadas senão o fato de que, desenvolvendo-se, estas se revelam
:i inconsistentes?"
' O procedimento descrito é, exatamente, o círculo hermenêutico: a compreensão ■;
de um texto realiza-se propondo hipóteses sobre aquilo que o texto diz, sobre j
seu significado ou mensagem; hipóteses a serem colocadas no crivo sobre o texto
e o contexto; e se nossa interpretação se choca com o texto ou o contexto, isto
é, se for contradita por alguma parte do texto ou do contexto, devemos propor
outra; e assim por diante, teoricamente ao infinito, mesmo que na prática nos
detenhamos, vez por outra, na interpretação que parece adequada, de acordo
com os fatos conhecidos.


T c r c e i f ã p ã T t C - P e n o m e n o lo g ia , (z^xistencialism o, H e r m e n ê u tic a

jA interpretação não correto, se corresponde ou não ao que


o texto diz. E se essa primeira interpreta­
como tarefa possível/
ção se mostra em contraste com o texto,
mas infinita “ choca-se” com ele, então o intérprete
elabora um segundo esboço de sentido, ou
seja, outra interpretação, que depois põe à
O intérprete não é uma tabula rasa. prova em relação ao texto e ao contexto, a
Ele se aproxima do texto com sua Vor-vers- fim de ver se ela pode se mostrar adequada
tãndnis, isto é, com a sua pré-compreensão, ou não. E assim por diante, ao infinito, já
vale dizer, com os seus pré-juízos ou Vor- que a tarefa do hermeneuta é tarefa infinita
urteile. e possível.
Com base nessa sua memória cultural Com efeito, cada interpretação se
(linguagem, teorias, mitos etc.), o intérprete efetua à luz do que se sabe; e o que se sabe
esboça uma primeira interpretação do texto muda; no curso da história humana, mudam
(que pode ser um texto propriamente dito, as perspectivas (ou conjeturas ou pré-juízos)
antigo ou atual, mas também um discurso com que se olha um texto, cresce o saber so­
pronunciado, um manifesto etc.). Ou seja, bre o “ contexto” e aumenta o conhecimento
o intérprete diz: “ este texto significa isto ou sobre o homem, a natureza e a linguagem.
aquilo, tem este ou aquele significado” . Por isso, as mudanças, mais ou menos gran­
M as esse primeiro esboço de interpre­ des, que ocorrem em nossa pré-compreensão
tação pode ser mais ou menos adequado, podem constituir, conforme o caso, outras
justo ou errado. Então, como faremos para formas de releitura do texto, novos raios de
saber se nosso primeiro esboço de inter­ luz lançados sobre ele, em suma, novas hipó­
pretação é ou não adequado? Pois bem, teses interpretativas a submeter à prova. Eis
responde Gadamer, é a análise posterior por que a interpretação é tarefa infinita.
do texto (do “ texto” e do “ contexto” ) que In fin ita, pelo fato que uma inter­
nos dirá se esse esboço interpretativo é ou pretação que parecia adequada pode ser
Capítulo décimo terceiro - -l-lc m s C \e .o rg G a d a m e r e a t e o r i a d a k e r m e n ê u + ic a

d em o n strad a in co rre ta, e p o rq u e são sempre um “ choque” entre alguma parte da


sempre possíveis novas e melhores inter­ pré-compreensão do intérprete e o texto que
pretações. atrai sua atenção, “ seja quando o texto não
Possíveis porque, a cada vez, confor­ apresenta sentido algum, seja quando seu
me a época histórica em que vive o intér­ sentido contrasta irremediavelmente com
prete e com base no que ele sabe, não se nossas expectativas” .
excluem interpretações que, precisamente São esses choques, diz Gadamer, que
para aquela época e para o que na época se forçam o hermeneuta a se dar conta de seus
sabe, são melhores ou mais adequadas do próprios pré-juízos e a pôr em movimento
que outras. a cadeia das interpretações sempre mais
adequadas. Com efeito, “ quem procura
compreender fica exposto aos erros deriva­
Êstrutura e f u n ç ã o dos de pressuposições que não encontram
confirm ação no o b je to ” . Conseqüente­
dos ptó-conceitos mente, “ a compreensão de tudo o que se
e da pré-compreensão deve compreender consiste totalmente na
do intérprete elaboração desse projeto preliminar, que
obviamente é revisto continuamente com
base no resultado da penetração ulterior
O intérprete, portanto, não enfrenta o do texto ” • m
texto como tabula rasa; a mente do intér­
prete é muito mais uma tabula plena, cheia
de pré-conceitos, ou seja, de expectativas e 0 ;A “alteridade^do texto
de idéias. E é com esse Vor-verstàndnis que
o intérprete se aproxima de um texto. E é N a realização e na progressiva elabo­
ração do projeto inicial emerge a alteridade
do texto.
N ós descobrimos o que o texto diz e
chegamos a descobrir sua diversidade da
nossa mentalidade, ou talvez a distância
WÁHRHEIT da nossa cultura, apenas partindo daquelas
“ atribuições de sentido” que construímos a
UND partir de nossa pré-compreensão e que corri­
gimos e descartamos sob a pressão do texto.
METHODE Por isso, escreve Gadamer, “ quem quiser
compreender um texto deve estar pronto a
deixar que o texto lhe diga alguma coisa. Por
G ru n dzü gi em tr pktlotophuchen Hermeneuiík isso, uma consciência educada hermeneuti-
camente deve ser preliminarmente sensível
vem à alteridade do texto. Tal sensibilidade
não pressupõe uma ‘neutralidade’ objetiva
h á n s -g s o r g g a d a m e r
nem um esquecimento de si mesmo, mas
implica uma precisa tomada de consciência
das próprias pressuposições e dos próprios
preconceitos” .
Substancialmente, as pressuposições
ou preconceitos do intérprete não devem
amordaçar o texto, não devem silenciá-lo.
O intérprete deve ser sensível à alteridade
do texto: o texto não é pretexto para que
só o intérprete fale.
1*68 O intérprete deve falar para escutar o
J C H M O f t R ÍP A U I. SIERPXE1 TÜIH N GF.N texto, ou seja, deve propor um “ sentido”
após o outro, um “ sentido” melhor e mais
adequado do que o outro, para que o texto
Frontispício da edição original (1960) apareça sempre mais, em sua alteridade,
da obra de Gadamer, Verdade e método. como aquilo que realmente é.
Terceira parte - P e n o m e n o lo 0 Ía, éE^cis+encialismo,, -H e rm en ê u tica

II. J7nterpre+ação I
e^kis+ória dos efeitos'7

Vai ência kermenêu+ica do que o autor pretendia, sendo, portanto,


desprovidas de valor.
da kistória
Entretanto, aqui Gadamer observa bem
dos efeitos de um texto o fato de que o autor de um texto é “ um
elemento ocasional” . O autor não é o seu
produto e, uma vez gerado, um texto tem
N ão é raro que, diante de certas in­ vida autônoma. Assim, por exemplo, ele
terpretações de um texto, especialmente se tem efeitos sobre a história posterior, efeitos
esse texto foi objeto de muitas e diversas que o autor não podia prever nem imaginar.
interpretações ao longo de muitos séculos, E essas conseqüências do texto entram em
nós sejamos levados a dizer que o autor simbiose com outros produtos culturais.
nunca teria sonhado em dizer o que essas A história dos efeitos de um texto
interpretações vêem no texto. sempre determina mais plenamente o seu
Dizemos isso quase que para diminuir sentido. E o intérprete relê o texto também
o valor de tais interpretações: elas vão além à luz da história dos efeitos.

...... ....... ' 1


■ H istória dos e fe ito s ( W irk u n g sg e sch ich te ). Este é um conceito de importância f
fundamental na teoria da hermenêutica proposta por Gadamer. Escreve Gadamer: S
"Uma hermenêutica adequada deveria esclarecer a realidade da história também M
no próprio compreender". Uma obra de arte, um romance, uma teoria científica jj
têm sua "sorte", produzem seus efeitos, proíbem algumas direções de pesquisa, MÊ
desenvolvem outras, entrecruzam-se com algumas outras tradições etc. ■
Isso nos faz entender que um objeto a interpretar não nos é dado em sua imediatez, ||
mas o enfrentamos à luz da história dos efeitos. A llíada e a Odisséia são obras pes- M
quisadas dentro dos desenvolvimentos da "questão homérica", ou seja, dentro de m
interpretações e discussões doravante imprescindíveis na pesquisa sobre Homero. 'W Ê
"Por seus frutos os re c o n h e c e re is esta é uma idéia que vale também para a teoria | | j j
da interpretação. Aqui está a razão pela qual nos é bastante difícil de falar de um w
romance recentemente publicado ou de um novo movimento artístico; enquanto m
sabemos mais do "Barroco", e compreendemos - à luz da história dos efeitos - A
origem das espécies de Darwin muito melhor que o próprio Darwin.
Ainda Gadamer: "A consciência histórica deve tomar consciência do fato de que
na pretensa imediatez com a qual ela se põe diante da obra ou do dado histórico,
age também sempre, embora inconsciente e, portanto, não controlada, esta estru­
r tura da história dos efeitos. Quando nós, pela distância histórica que caracteriza
ti e determina em seu conjunto nossa situação hermenêutica, nos esforçamos para ■
compreender determinada manifestação histórica, estamos já sempre submetidos
aos efeitos da W irkungsgeschichte". Por conseguinte: a distância temporal que
separa o intérprete da obra ou do fato histórico a interpretar não é de modo ne-
r nhum um impedimento para a compreensão da obra ou do fato histórico, podendo i■
' ela, ao contrário, oferecer instrumentos para uma interpretação melhor. j
Para uma obra de arte ou uma teoria científica, ocorre o mesmo que para uma l|
pessoa: não se pode julgar; não se entende uma pessoa a partir de uma primeira f j j j
impressão; é preciso tempo, devemos ver as ações dessa pessoa em diversas situa- m
ções, é preciso observar seus comportamentos e prestar atenção em suas palavras; |
examinar o modo com que enfrenta e procura resolver os problemas, refletir sobre M
? escolhas difíceis etc.; e só então se poderá dizer algo sobre tal pessoa, e não de J
modo definitivo. Jj
Capítulo décimo terceiro - -H a n s £ Ã a d a m e ^ e a fe.o n a d a h e rm e n ê u tic a

Um cientista não vê todas as conse­ dos efeitos” (Wirkungsgeschichte). Uma


qüências da teoria que criou; não as vê obra gera efeitos, tem conseqüências que o
porque não pode vê-las, porque faltam-lhe autor não vê e não pode ver, mas que deter­
aquelas peças de saber que permitiriam sua minam aquela situação hermenêutica dentro
extração; assim, não vê o desenvolvimento da qual o intérprete interpreta a obra.
histórico de sua teoria. M as o historiador da Os efeitos da obra a interpretar estão
ciência, situado a uma relativa distância do entre as condições da própria interpretação
tempo da descoberta da teoria, vê mais e me­ da obra.
lhor do que o próprio criador da teoria. Ele Poderemos compreender isso ainda
vê coisas que este último sequer sonhava em melhor quando nos dermos conta do quanto
inserir no texto. E o historiador vê melhor a é difícil ou, de qualquer forma, problemático
teoria porque também a vê à luz da história interpretar obras contemporâneas, ou então,
dos efeitos da própria teoria. O que dissemos por exemplo, movimentos artísticos contem­
de uma teoria científica vale para qualquer porâneos: ainda não tiveram sua história,
obra humana, para qualquer texto. nós não conhecemos suas conseqüências e
seu entrelaçamento mais ou menos fecundo
com outros eventos da cultura. A interpre­
tação de uma obra é menos simples quando
J g i e fic á c ia não conhecemos a história de seus efeitos.
da distancia temporal n
para a c o m p r e e n s ã o
de um texto

Tudo isso nos faz compreender como a


distância temporal que separa o intérprete do
aparecimento do texto não é um obstáculo
para a compreensão do texto: quanto mais
nos afastam os cronologicamente do texto,
mais deveremos nos aproxim ar dele com
melhor compreensão, posto que aumentam
os dados de consciência que nos põem em
condição de descartar as interpretações er­
rôneas ou menos adequadas, e substituí-las
por interpretações novas e mais justas.
Com isso, não afirmam os que uma
interpretação é válida pela simples e única
razão de que ela é mais recente. Para a ver­
dade não se pergunta a data de nascimento.
O que queremos dizer é que uma interpreta­
ção é válida até termos outra melhor e que
o crescimento do saber comporta, a cada
vez, a eliminação dos suportes que tornam
válida uma interpretação e, com isso, a
urgência de formular e experimentar outra
(que talvez até já houvesse sido proposta no
passado, mas que, na época, foi descartada
por motivos talvez considerados válidos na
época).
Em toda compreensão, portanto, saiba­
mos ou não, está sempre presente a “ história Gadamer durante uma aula.
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia, ér^<is+encialismo, -H e rm en ê u tica

III. ^PVeconcei+c/, ^ ra z ã o ^ e V a d ição //

1 O s “idola"de Bacon de ‘preconceito’ adquire a conotação negati­


como preconceitos va que agora lhe está habitualmente ligada” .
Os iluministas distinguiam entre preconcei­
tos “ devidos ao respeito pela autoridade” e
Gadamer é o filósofo dos “ pré-concei- preconceitos “ devidos à precipitação” . O
tos” , isto é, das idéias que entretecem uma fato de a autoridade ser fonte de precon­
tradição ou uma cultura. Para Gadamer, ceitos é “ uma idéia conforme ao conhecido
“preconceito” não tem significado depreciati­ princípio do Iluminismo, que encontra sua
vo; eqüivale a “ idéia” , “ conjetura” , “ pressu­ formulação ainda em Kant: ‘tem a coragem
posição” . Os que hoje chamamos de “juízos” de servir-te de teu próprio intelecto’ ” .
amanhã serão pré-conceitos, e os pré-concei- E n tretan to, observa G adam er, “ a
tos de ontem ou de hoje poderão ser os juízos superação de todos os preconceitos, que
de amanhã. Por isso, diz ele, “os pré-concei­ é uma espécie de preceito geral do ilumi-
tos do indivíduo são mais constitutivos de nismo, apresenta-se ela própria como um
sua realidade histórica do que seus juízos” . preconceito, de cuja revisão depende a
Foi Bacon, afirma Gadamer, quem sub­ possibilidade de conhecimento adequado da
meteu à análise os preconceitos (ou idola) finitude que constitui não só nossa essência
que enjaulam nossa mente. Gadamer não de homens, mas também nossa consciência
nutre muita estima por Bacon enquanto me- histórica” .
todólogo: “ as propostas por ele formuladas O Iluminismo afirma, essencialmente,
desiludem” . a contraposição entre fé na autoridade e uso
Gadamer vê muito mais o resultado do da própria razão. Naturalmente, diz G ada­
trabalho de Bacon, percebendo-o no fato mer, “ à medida que o valor da autoridade
“ de ter indagado de modo global os precon­ toma o lugar de nosso juízo, a autoridade é
ceitos que aprisionam o espírito humano e de fato fonte de preconceitos” . Entretanto,
que o desviam do verdadeiro conhecimento e isto é importante, “ com isso não se exclui
das coisas; ou seja, de ter operado uma que ela (a autoridade) possa ser também
autopurificação metódica da mente, que re­ fonte de verdade — e foi o que o Iluminis-
presenta mais uma disciplina (no sentido la­ mo desconheceu com sua indiscriminada
tino) do que uma verdadeira metodologia” . difamação da autoridade” .
Em suma, Gadamer é da opinião que
a análise dos idola feita por Bacon é válida.
M as, para Gadamer, tal análise é válida 3 O conceito romântico
precisamente por motivos opostos àqueles de “trad ição"
pelos quais era válida para o próprio Bacon.
Depois de identificar e evidenciar os
idola, Bacon afirmava que era necessário Contra a posição iluminista, temos a
expurgar a mente desses idola; ao passo que concepção que os românticos têm da tradi­
Gadamer sustenta que, uma vez conscientes ção. Escreve Gadamer; “ Há uma forma de
de nossos idola, devemos submetê-los inces­ autoridade que foi particularmente defendi­
santemente à prova, corrigi-los e eventual­ da pelo romantismo: a da tradição. O que é
mente até eliminá-los, mas para substituí-los consagrado pela história e pelo uso se reveste
por outros melhores. de autoridade que já se tornou universal. E
nossa finitude histórica define-se precisa­
mente pelo fato de que também a autoridade
2 ;A superação do que nos é transmitido — e não só do que
de todos os preconceitos podemos reconhecer racionalmente como
válido — exerce sempre influência sobre
p r o p u g n a c l a pelos iluministas nossas ações e nossos comportamentos [...].
é um “preconceito" típico O romantismo pensa a tradição em oposição
à liberdade da razão, vendo nela um dado
análogo ao da natureza. E tanto por querer
É interessante ver como Gadamer mos­ negá-la com a revolução como querendo
tra que “ somente no Iluminismo o conceito conservá-la, a tradição lhe aparece como o
Cãpítulo d é c i m o te r c e iY O - -H ans G e o r g C Ã a d a m e f e a te o ria d a kerinenêu+ica

oposto exato da livre autodeterminação, já rada de tradições ou a criação deliberada de


que sua validade não necessita de nenhuma tradições novas, igualmente^prenhe de pre­
motivação racional, mas nos determina de conceitos e, na substância, profundamente
modo maciço e não problemático” . iluminista é a fé romântica nas ‘tradições
Essa, em suma, é a posição romântica arraigadas’, diante das quais a razão deveria
em relação à tradição. Diante de tal con­ apenas calar. N a realidade, a tradição é sem­
cepção, Gadamer observa justamente que pre um momento da liberdade e da própria
“ a crítica romântica contra o Iluminismo história. Até a mais autêntica e sólida das
certamente não pode valer como exemplo tradições não se desenvolve naturalmente
do fato de que a tradição se impõe de modo em virtude da força de persistência do que
indiscutido e óbvio, sem que aquilo que nela se verificou outrora, mas tem necessidade de
é transmitido seja atingido pela dúvida e pela ser aceita, de ser adotada e cultivada. Ela é
crítica. Tem, ao contrário, quando muito, essencialmente conservação, aquela mesma
o sentido de uma auto-reflexão crítica que conservação que está sempre ocorrendo ao
aqui, pela primeira vez, retorna à verdade da lado e dentro de toda mudança histórica.
tradição e procura renová-la, e que se pode M as a conservação é ato da razão, natu­
chamar de tradicionalismo” . ralmente um ato caracterizado pelo fato
de não ser aparente. Por isso, a renovação,
o projeto do novo, parece o único modo
de operar da razão. Isso, porém, é apenas
T^ela ç ã o e s t r u t u r a l aparência. Até onde a vida se modifica de
, //r a z a~o // e. //,t r a d i1ç- ã ~o // modo tempestuoso, como nas épocas de
revolução, na pretensa mudança de todas
as coisas conserva-se do passado muito
Em suma, contra os “ iluministas” , Ga­ mais do que qualquer um possa imaginar,
damer afirma os eventuais direitos da tradi­ solidificando-se junto ao novo para adquirir
ção, e contra os românticos faz valer a força validade renovada. Em todo caso, a con­
da tradição da razão. servação é ato de liberdade tanto quanto a
Por isso, Gadamer não vê de modo subversão e a renovação. Por isso, tanto a
algum entre tradição e razão o contraste crítica iluminista da tradição quanto sua rea­
absoluto visto por muitos. “ Por mais que bilitação romântica não captam a verdade
possa ser problemática a restauração delibe­ de sua essência histórica” . Textu
258
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia ,, E x is te n c ia lis m o / -H erm en êu tica

detido em seu objeto, superando todos as con­


fusões que provêm de seu próprio íntimo. Quem
G adam er se põe a interpretar um texto realiza sempre um
projeto. Sobre a base do mais imediato sentido
que o texto lhe exibe, ele esboça preliminar­
mente um significado do todo. € também o sen­
D O"círculo
que é o
hermenêutico"
tido mais imediato é exibido pelo texto apenas
enquanto ele é lido com certas expectativas
determinadas, fl compreensão daquilo que-se
dá a compreender consiste toda na elabora­
ção deste projeto preliminar, que obviamente
Nós interpretamos um texto à luz de é continuamente revisto com base naquilo
nossos preconceitos; e se uma interpretação que resulta da posterior penetração do texto.
nossa se choca contra o texto, devem os Gsta descrição é, bem entendido, um
procurar substituí-la por outra interpretação, esquema extremamente sumário: é preciso,
mais adequada, fí tarefa hermenêutica é com efeito, levar em conta que cada revisão
tarefa possível e infinita. do projeto inicial comporta a possibilidade de
esboçar um novo projeto de sentido; que pro­
jetos contrastantes podem se entrecruzar em
Voltemos, portanto, ò descrição heldegge- uma elaboração que no fim leva a uma visão
riana do círculo hermenêutico, paro esclarecer, mais clara da unidade de significado; que a
do ponto de vista de nossas intenções, o novo interpretação começa, com pré-conceitos que
e fundamental significado que assume aqui são pouco a pouco substituídos por conceitos
a estrutura da circularidade. "O círculo não mais adequados. Justamente esta contínua re­
deve ser degredado como círculo vitiosus nem novação do projeto, que constitui o movimento
considerado um inconveniente não eliminável. do compreender e do interpretar, é o processo
Nele esconde-se uma possibilidade positiva que Heidegger descreve. Quem procura com­
do conhecer mais originário, possibilidade que preender se expõe aos erros derivados de pré-
é apreendida de modo genuíno somente se suposições que nõo encontram confirmação no
a interpretação compreendeu que sua tarefa objeto. Tarefa permanente da compreensão são
primeira, permanente e última é a de não dei­ a elaboração e a articulação de projetos corre­
xar-se jamais impor pré-disponibilidades, pre­ tos, adequados, os quais, como projêtos, são
vidências e pré-cogniçõo a partir do acaso ou antecipações que podem se convalidar apenas
das opiniões comuns, mas de fazê-las emergir em relação ao objeto, fl única objetividade
das próprias coisas, garantindo assim a cienti­ aqui é a confirmação que uma pré-suposição
ficidade do próprio tema". pode receber por meio da elaboração. O que
flquilo que Heidegger diz aqui não é em é que distingue as pré-suposições inadequadas
primeiro lugar algo que queira valer como um senão o fato de que, desenvolvendo-se, elas
preceito para a prática do compreender, mas se revelam insubsistentes? Ora, o compreender
descreve o modo de realizar-se do próprio com­ chega à sua possibilidade autêntica apenas
preender interpretativo como tal. O essencial da se as pré-suposições das quais parte são
reflexão hermenêutica de Heidegger não é a arbitrárias. Há, portanto, um sentido positivo
demonstração de que aqui estejamos diante de em dizer que o intérprete não acessa o texto
um círculo, mas consiste em salientar que este simplesmente permanecendo no quadro das
círculo tem um significado ontológico positivo, pré-suposições já presentes nele, porém, muito
fl descrição em si mesma aparecerá de modo mais, na relação com o texto, põe à prova a
transparente a quem quer que se dedique à legitimidade, ou seja, a origem e a validade,
interpretação, sabendo aquilo que faz. Toda de tais pré-suposições.
interpretação correta deve se defender da ar­ £sta regra fundamental deve ser entendi­
bitrariedade e das limitações que derivam de da simplesmente como o radicalização de um
hábitos mentais inconscientes, olhando "para modo de proceder que de fato sempre realiza­
as próprias coisas" (as quais, para os filólogos, mos quando compreendemos. Diante de todo
são textos providos de sentido que por sua vez texto se nos impõe a tarefa de não pressupor
falam de coisas). O fato de submeter-se de tal simplesmente como óbvio que ele fale nossa
modo a seu objeto não é uma decisão que o linguagem, ou, no caso de uma língua estran­
intérprete toma de uma vez por todas, mas "a geira, a linguagem que aprendemos a conhecer
tarefa primeira, permanente e última", flquilo a partir de outros escritores ou do uso quotidia­
que ele tem a fazer, com efeito, é manter o olhar no. €stamos, ao contrário, bem conscientes de
Capítulo décimo terceiro - t-l ans £Ãe.org G a d a m e r e a t e o r i a d a k e rm e n ê w tic a

que devemos chegar à compreensão do texto compreendidas de modo arbitrário. Como nõo
partindo do uso específico que a linguagem podemos ignorar determinado uso lingüístico
tem naquela determinada época ou naquele sem que o sentido de seu conjunto se quebre,
determinado autor. Continua, naturalmente, o assim, quando compreendemos a opinião de
problema de como essa regra geral possa ser outro não podemos nos ater cegamente às nos­
concretamente realizada. No plano dos signi­ sos próprias pré-suposições sobre a questão.
ficados, com efeito, a ela se opõe o caráter Não é que quando alguém ouve algum outro ou
inconsciente do modo com que usamos a lingua­ vai a uma conferência deva esquecer todas as
gem que falamos. Como podemos efetivamente pré-suposições sobre o argumento do qual se
chegar a estabelecer uma diferença entre o trata e todas as próprias opiniões a respeito.
uso que fazemos da linguagem e o uso que o O que se exige é simplesmente que esteja
texto dela faz? aberto à opinião do outro ou ao conteúdo do
é preciso dizer que em geral aquilo que texto. Tal abertura sempre implica, porém, que
nos obriga a refletir, e chama nossa atenção a opinião do outro seja posta em relação com
sobre a possibilidade de um uso diverso da a totalidade das próprias opiniões, ou que
linguagem que nos é familiar, é a experiência de nos coloquemos em relação com ela. Ora, é
um “choque" que se verifica diante de um texto, verdade que as opiniões representam multi­
tanto se o texto não exibe nenhum sentido, plicidade de possibilidades (em confronto com
como se o sentido dele contrasta irredutivelmen- o acordo representado pela unidade de uma
te com nossas expectativas. Que todo aquele linguagem ou de um vocabulário), mas dentro
que fala minha língua assuma as palavras no desta variedade do opinável, ou seja, daquilo
mesmo sentido que elas têm para mim é um que um leitor pode encontrar provido de sentido
pré-suposto geral que pode se tornar proble­ e, portanto, pode se aplicar, nem tudo é possí­
mático apenas no caso particular; o mesmo se vel, e quem ouve aquilo que verdadeiramente
diga no que se refere às línguas estrangeiras: o outro diz, perceberá no fim que aquilo que
também aqui consideramos conhecer uma língua ele terá eventualmente entendido mal não se
estrangeira em um nível médio e, na interpre­ deixa sequer coordenar coerentemente com
tação de um texto, pressupomos sempre este sua própria expectativa multiforme. Aqui há,
uso médio dela. portanto, um critério, fí tarefo hermenêutica,
fiquilo que vale para esta pré-suposição em virtude de sua própria essência, assume a
sobre o uso da língua vale também, ao mesmo Fisionomia de um problema objetivo, e como tal
título, para as pré-suposições de conteúdo com também sempre se determina. Desse modo, o
que lemos os textos, e que constituem nossa empreendimento hermenêutico encontra-se na
pré-compreensão deles. C também aqui o pro­ posse de um terreno sólido sob os pés. Quem
blema que se põe é como em geral se possa quer compreender não poderá desde o início
sair do círculo das próprias pré-suposições pri­ abandonar-se à casualidade das próprias pres­
vadas. Não se pode certamente assumir como suposições, mas deverá se colocar, com a maior
norma geral que aquilo que um texto tem a coerência e obstinação possível, na escuta da
dizer-nos se adapte sem dificuldade às nossas opinião do texto, até o ponto que esta se faça
opiniões e às nossas expectativas. Mais ainda, entender de modo inequívoco e toda compreen­
aquilo que outro me diz, tanto no diálogo, como são apenas presumida seja eliminada. Quem
em uma carta, em um livro ou de outra forma, quer compreender um texto deve estar pronto a
se pressupõe sempre que seja justamente sua deixar que o texto diga alguma coisa. Por isso,
opinião e não a minha, que ele expressa e da uma consciência hermeneuticamente educada
qual devo cientificar-me, sem dever necessa­ deve ser preliminarmente sensível à alteridade
riamente compartilhá-la. Mas este pressuposto do texto. Tal sensibilidade não pressupõe nem
não é uma condição que facilita a compreensão, uma “neutralidade" objetiva nem um esqueci­
e sim que a torna mais difícil, pois minhas pró­ mento de si mesmo, mas implica uma precisa
prias pré-suposições, que determinam minha tomada de consciência das próprias pré-supo­
compreensão, podem igualmente escapar da sições e dos próprios preconceitos. £ preciso
atenção. C se elas dão lugar a mal-entendidos, estar consciente das próprias prevenções, para
como será possível que, diante de um texto, em que o texto se apresente em sua alteridade e
que não há a presença de alguém que de fato tenha concretamente a possibilidade de fazer
nos responda, se possa em geral perceber um valer seu conteúdo de verdade em relação às
mal-entendido? Como se deve fazer para pre­ pré-siposições do intérprete.
caver um texto de um mal-entendido? t uma perfeita descrição fenomenológico a
Se refletirmos mais a fundo, percebere­ que Heidegger deu com seu esclarecimento, na­
mos que também as opiniões nõo podem ser quilo que pretende ser um puro "ler" o que "está
Terceira parte - T -e n o m e n o lo g ia, E x is t e n c ia lis m o , "H e rm e n ê u tic a

escrito", o estruturo da pré-compreensão. [...] "Preconceito", portanto, nõo significa de


Um compreender realizado com consciência me­ fato juízo falso; o conceito impiica que ele pode
todológica não deve tender a levar simplesmen­ ser avaliado tanto positiva como negativamente.
te à realização as próprias antecipações, mas a Se nos reportamos ao latim praejudicium torna-
torná-las conscientes para podê-las controlar, se mais fácil ver como, ao lado do sentido ne­
e fundamentar assim a compreensão, sobre o gativo, a palavra possa ter também um sentido
próprio objeto a ser interpretado. € isso que positivo. Há préjugés légitimes. Isso está muito
Heidegger pretende quando exige que o tema longe do uso comum que o termo tem hoje. fl
da pesquisa seja "assegurado" sobre a base palavra alemã Vor-urteil, preconceito - como o
do próprio objeto por meio de uma elaboração préjugé francês, mas de modo mais acentuado
explícita das componentes pré-constitutivas da - parece ter sido reduzida, pelo Huminismo e
situação hermenêutica (pré-disponibilidade, por sua crítica da religião, a significar exclusi­
pré-vidência, pré-cogniçõo). vamente um “juízo infundado" [ou um "conceito
De modo nenhum se trata, portanto, de sem fundamento”]. Apenas a fundamentação,
pôr-se a seguro contra a voz que nos fala a partir a verificação conforme um método (e não em
do texto, mas, ao contrário, de manter distante primeiro lugar a pertinência concreta à situação),
tudo aquilo que pode impedir-nos de ouvi-la dá a um juízo sua dignidade. A falta de uma fun­
de modo adequado. São os preconceitos dos damentação neste sentido não dá lugar, para o
quais não estamos conscientes que nos tornam Huminismo, a outros tipos de certeza, mas sig­
surdos à voz do texto. nifica que o juízo não tem nenhum fundamento
H. G. Gadamer, no objeto, que ele é "infundado". €ssa é uma
. Verdade e método. conclusão de pura marca racionalista. Sobre ela
se fundamenta o descrédito em que caem os
preconceitos em geral e a pretensão de que o
conhecimento científico avança quando deles
prescinde completamente.
2 "Preconceito" H. G. Gadamer,
Verdade e método.
de modo nenhum
significo juízo falso

Gadam er reabilita o conceito de "pre­ 3 A idéia de


conceito" (Vor-urteil). Foi o Huminismo que "história dos efeitos"
desacreditou o conceito de "preconceito". Fl
crítica iluminista da religião acoplou ao con­
ceito de preconceito o significado de "juízo Conforme o princípio do UUirkungsges-
infundado". chichte, uma hermenêutica adequada deve
Gadamer reavalia o conceito de "precon­ estar consciente também da realidade de
ceito", entendendo como pré-conceitos as que o próprio compreender tem uma histó­
idéias que tecem nossa Vor-vertãndnis, isto ria. Há uma história da pesquisa sobre um
é, nossa pré-compreensão, as quais conti­ objeto histórico ou uma obra a nós trans­
nuamente subjazem ò prova da experiência. mitida, e sobre seu destino e seus efeitos:
trata-se, justamente, da história dos efeitos
(UUirkungsgeschichte). História dos efeitos
No uso jurídico, preconceito é uma decisão que "é sempre indispensável quando se quer
judiciária que prevê a verdadeira e própria esclarecer plenamente o significado autêntico
sentença definitiva. Para quem é chamado d e uma obra ou d e um dado histórico [...]“.
a juízo, a emanação de tal sentença prévia fí distância temporal do intérprete em rela­
contrária representa obviamente uma limitação ção à obra a se r interpretada não é, desse
das probabilidades de vencer. Préjudice, como modo, um obstáculo para a compreensão da
praejudicium, também significa, assim, simples­ própria obra.
mente limitação, desvantagem, dano, prejuízo.
Mas este caráter negativo é apenas uma con­
seqüência. 6 justamente a validade positiva, Um pensamento autenticamente histórico
o valor pré-judiciaI da decisão precedente deve estar consciente também de sua própria
- como, justamente, de um "precedente" - que historicidade. Somente assim não se reduzirá
fundamenta a conseqüência negativa. a perseguir o fantasma de um objeto histórico
'
Cãpltulo - ■ terceiro
dedmo ■ - Hans .
C íeorg CÃadamer e a teoria d a Hermenêutica
. 261

- aquele qu® seria objeto do umo pesquiso sempre submetidos aos efeitos da Uüirkun­
que se desenvolve progressivamente como gsgeschichte. Csta decide antecipadamente
a da ciência natural mas será um modo de sobre aquilo que se apresenta a nós como
reconhecer aquilo que é diferente de si, reco­ problemático e como objeto de pesquisa, e nós
nhecendo assim, com o outro, a si mesmo. O esquecemos a metade daquilo que é, ou me­
verdadeiro objeto da história não é de foto um lhor, esquecemos toda a verdade do fenômeno
objeto, mas a unidade destes dois termos, uma histórico se assumirmos tal fenômeno, em sua
relação em que consiste tanto a realidade da imediatez, como toda a verdade.
história, como, ao mesmo tempo, a realidade Na ingenuidade presumida de nossa
da compreensão histórica. Uma hermenêutica compreensão, na qual seguimos o critério da
adequada deveria esclarecer a realidade da compreensibilidade, o outro se mostra a tal
história também no próprio compreender. ChaJ ponto apenas em base àquilo que é nosso,
ma aquilo que forma o objeto desta exigência pois um e outro elemento não são mais nitida­
de UUirkungsgeschichte, história dos efeitos ou mente distinguíveis. O objetivismo historicista,
das determinações. O compreender é, em sua mantendo-se em sua metodologia crítica, fecha
essência, um processo que está inserido dentro os olhos diante da trama da história dos efeitos,
desta história e a deve levar em conta. em que a própria consciência histórica se encon­
Que o interesse histórico não se dirija tra envolvida. 0 e de fato elimina, por meio de
apenas ao fenômeno histórico como tal ou à seu método crítico, toda ocasião de arbitrário,
obra que nos foi transmitida pela história, iso­ casual ou demasiadamente desenvolvido tra­
ladamente entendida, mas também, em uma tamento do passado em base à atualidade;
tematização secundária, a seu “destino" e a todavia, modelando para si ao mesmo tempo
seus efeitos na história (que, em última aná­ uma boa consciência com a negação de todos
lise, compreendem também a própria história os pressupostos, também aqueles de modo
da pesquisa sobre aquele tema), é algo que nenhum arbitrários e casuais, que na realidade
se admite geralmente em termos de simples guiam sua compreensão, deixa escapar a ver­
complementação do delineamento de um pro­ dade que, embora no caráter finito de nossa
blema histórico, e que, do RaFfaello de Hermann compreensão, seria possível alcançar. O obje­
Grimm a Gundolf para diante, deu lugar a uma tivismo historicista pode ser nisso comparado
grande colheita de válidas obras históricas. à estatística, que é um tão poderoso meio de
Nestes termos, aquilo que chamei de história propaganda justamente porque deixa que os
dos efeitos não é nada de novo. Mas dizer que fatos falem e, desse modo, dá a ilusão de uma
tal história dos efeitos é sempre indispensável objetividade que na realidade depende da
quando se quiser esclarecer o significado au­ legitimidade de suas exposições iniciais.
têntico de uma obra ou de um dado histórico, Não se quer, todavia, afirmor que a his­
subtraindo-o a um estado em que oscila entre tória dos efeitos deva ser desenvolvido como
história e tradição, isto é na verdade algo de nova disciplina auxiliar das ciências do espírito;
novo, o enunciação de uma exigência - tornada mas que é preciso aprender o compreender
válida não tanto em relação à pesquisa, e sim à melhora si mesmos, reconhecendo que em toda
própria consciência metodológica - que deriva compreensão, estejamos ou não conscientes
como resultado necessário a partir da reflexão de modo explícito, sempre está em ação esta
sobre a consciência histórica. história dos efeitos. Onde ela for negada em
é claro que não se trata de um preceito base a uma ingênua fé absoluta na força do
hermenêutico no sentido do conceito tradicional método, pode acontecer que se tenham, como
de hermenêutica. Não se quer dizer, com efeito, conseqüência, verdadeiras e próprias defor­
que a pesquisa deva desenvolver tal história mações objetivas do conhecimento. Na história
dos efeitos, ao lodo do estudo da obra como da ciência temos exemplos de demonstrações
tal. O preceito tem, ao contrário, um significado irrefutáveis de algo que é claramente falso.
teórico. R consciência histórica deve tomar cons­ Mas no conjunto a força da história dos efeitos
ciência do fato de que na pretensa imediatez não depende do fato de ser reconhecida. Jus­
com a qual ela se põe diante da obra ou do tamente esta é a força da história em relação à
dado histórico, age também sempre, embora consciência finita do homem: ela triunfa também
inconsciente e, portanto, nãô controlada, essa ali onde o homem, por causa de sua fé no mé­
estrutura da história dos efeitos. Quando nós, todo, nega a própria historicidade. R exigência
a partir da distância histórica que caracteriza desta tomada de consciência da história dos
e determina em seu<conjuntó' nossa situação efeitos é urgente justamente pelo fato de ser
hermenêutica, nos esforçamos pará entender uma exigência essencial para a consciência cien­
determinada manifestação histórica, já estamos tífica. Isso não significa, porém, que o problema
262
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia , E x is t e n c ia lis m o , -H e rm en ê u tica

posto por ela posso ser resolvido de umo vez de novos horizontes etc. A linguagem filosófico,
por todos 0 de modo unívoco. Que do história a partir de Nietzsche e Husserl, empregou em
dos efeitos possamos nos tornar conscientes de particular esse termo para indicar o fato de que
umo vez por todas de modo completo é uma o pensamento está ligado à sua determinação
afirmação híbrido como a pretensão hegeliano finita e para salientar a gradualidade de todo
do saber absoluto, no qual o história teria che­ alargamento da perspectiva. Quem não tem um
gado à plena autotransparência e, portanto, à horizonte é um homem que não vê suficiente­
pureza do conceito. Mais que isso, a consciência mente longe e, por isso, supervaloriza aquilo
da determinação histórica (wirkungsgeschichtli- que está mais próximo. Ter um horizonte signi­
ches Beuuusstseiri) é um momento do próprio fica, ao contrário, não estar limitado àquilo que
processo da compreensão, já está presente na se encontra mais próximo, mas saber ver para
proposição correta do problema. além dele. Quem tem um horizonte sabe avaliar
fl consciência da determinação histórica corretamente dentro dei® o significado de cada
é, em prim©iro lugar, consciência da situação coisa segundo a proximidade ou distância,
hermenêutica, fl tomada de consciência de uma segundo as dimensões grandes e pequenas.
situação, porém, é sempre tarefa carregada £m conformidade com isso, elaborar a situação
d© dificuldade peculiar. O conceito de situa­ hermenêutica significa adquirir o justo horizonte
ção implica, de fato, como sua característica problemático para os problemas propostos com
essencial, que ela não é algo diante do qual os dados históricos transmitidos.
nos encontramos e do qual possamos ter um . H. G. Gadamer,
conhecimento objetivo, fl situação é algo dentro Verdade e método.
do qual estamos, no qual nos encontramos já
sempre a existir, e a clarificação dela é tarefa
que jamais se conclui. Isso vale também para a
situação hermenêutica, ou seja, para a situação
em que nos encontramos em relação ao dado
histórico transmitido, e que temos de compreen­
□ Teoria da tradição

der. Também a clarificação dessa situação, isto "Tanto a crítica iluminista da tradição
é, a reflexão sobre a história dos efeitos, não é como sua reabilitação romântica não cap­
algo que se possa concluir; tal impossibilidade tam a verdade de sua essência histórica''.
de concluir não é, porém, um defeito da refle­ Cnganam-se os românticos ao sacralizar
xão, mas está ligada à próprio essência do ser a tradição; enganam-se os iluministas ao
histórico que somos nós. Ser histórico significa desacreditá-la. Cada um d e nós já está
não p od er jam ais s e resolver totalmente em dentro dos "preconceitos" (idéias e ideais)
autotransparência. Todo saber de si surge em da própria tradição; preconceitos que serão
uma datação histórica, que podemos chamar, aceitos ou rejeitados e que, em todo caso,
com Hegel, de substância, enquanto constitui passam a cada dia no crivo da experiência.
a base de toda reflexão e comportamento do Da "verdade" não perguntamos a data de
sujeito e, portanto, define e circunscreve tam­ nascimento.
bém toda possibilidade, por parte do sujeito, de
entender um dado histórico transmitido em sua
alteridade. fl tarefa da hermenêutica filosófica Para isso podem os retomar a crítico
pode, portanto, sobre esta base, ser definida romântica do lluminismo. Há uma forma de
como a de remontar ao itinerário da Fenome­ autoridade que foi particularmente defendida
nologia do espírito hegeliano, até esclarecer pelo romantismo: a da tradição. Aquilo que é
em toda subjetividade a substancialidade que consagrado pela história e pelo uso é provido
a determina. de uma autoridade que doravante se tornou
Todo presente finito tem limites. O conceito universal, e nossa finitude histórica define-se
de situação pode ser definido justamente com justamente pelo fato de que também a autori­
base no fato de que a situação representa um dade daquilo que nos foi transmitido, e não só
ponto de vista que limita as possibilidades de aquilo que podemos racionalmente reconhecer
visão. Ao conceito de situação, portanto, está como válido, exerce sempre uma influência
essencialmente ligado o de horizonte. Horizon­ sobre nossas ações e sobre nossos comporta­
te é aquele círculo que abraça e compreende mentos. Toda educação se fundamenta sobre
tudo aquilo que é visível a partir de certo isso; e embora no caso da educação o "tutor",
ponto. Aplicando o conceito ao pensamento, com a maturidade da maioridade alcançada,
costumamos falar de limitação de horizonte, perca suo função, e a autoridade do educador
possível alargamento de horizonte, abertura deixe o lugar para o julgamento e a decisão
Capítulo décimo terceiro - -H an s G e o r g G a d a m e r e a t e o r i a d a k e r m e n ê u + ic a

do indivíduo, este chegar ò maturidade não deliberada de tradições ou a criação deliberada


significa d® modo nenhum que o homem se de tradições novas, igualmente carregada de
torne senhor de si mesmo no sentido de se preconceitos e, em substância, profundamen­
tornar livr® de toda tradição e de toda ligação te iluminista é a fé romântica nas "tradições
com o passado, fl realidade dos costumes, por enraizadas" diante das quais a razão deveria
exemplo, tem uma validade, em larga medida apenas calar. Na verdade, a tradição é sempre
ligada à transmissão e à tradição. Os costumes um momento da liberdade e da própria história.
são aceitos livremente, mas não são produzi­ Também a mais autêntica e sólida das tradições
dos nem fundamentados em sua validez por não se desenvolve naturalmente em virtude da
meio de uma decisão livre. Ao contrário, com força de persistência daquilo que uma vez se
o termo tradição nós indicamos exatamente verificou, mas tem necessidade de ser aceita, de
o fundamento de sua validade. De fato, é ao ser adotada e cultivada. €la é essencialmente
romantismo que devemos esta correção da conservação, a mesma conservação que está
proposta iluminista, motivo pelo qual além da em ação ao lado e dentro de toda mudança
motivação racional também a tradição possui histórica. Mas a conservação é um ato da razão,
certo direito e determina em larga medida sem dúvida um ato caracterizado pelo fato de
nossas posições e nossos comportamentos. 6 a não ser vistoso. Por isso a renovação, o projeto
superioridade da ética antiga sobre a filosofia do novo parece o único modo de operar da ra­
moral moderna caracteriza-se também pelo fato zão. Mas é apenas aparência. Até onde a vida
de que aquela fundamenta justamente sobre se modifica de modo tempestuoso, como nas
a base da não-prescindibilidade da tradição a épocas de revolução, na pretensa mudança de
passagem da ética para a "política", a arte de todas as coisas se conserva do passado muito
fazer boas leis. O Huminismo moderno, ao con­ mais do que se possa imaginar, e se solda junto
trário, tem neste sentido uma posição abstrato com o novo, adquirindo validade renovada. €m
0 revolucionária. todo caso, a conservação é um ato da liberdade
O conceito de tradição, todavia, tornou-s0 não menos do que a subversão e a renovação.
não m0nos ambíguo do qu0 o d© autoridade, e Por isso, tanto a crítica iluminista da tradição
pelas mesmas razões, uma vez que é a oposição como sua reabilitação romântica não captam a
abstrata ao princípio iluminista que determina verdade de sua essência histórica.
o modo romântico de entender positivamente Somos, portanto, levados a nos pergun­
a tradição. O romantismo pensa a tradição em tar se nas ciências do espírito não devam ser
oposição à liberdade da razão, e vê aí uma justamente reconhecidos fundamentalmente os
determinação análoga à da natureza. € quer se direitos da tradição. A pesquisa das ciências
queira depois negá-la com a revolução, quer se do espírito não pode pensar nossa relação de
queira conservá-la, a tradição lhe aparece como seres históricos com o passado em termos de
o oposto abstrato da livre autodeterminação, oposição simplista. €m todo caso, nossa relação
pois sua validade não tem necessidade de ne­ com o passado, na qual estamos continuamen­
nhuma motivação racional, mas nos determina te empenhados, não se define em primeiro
de modo maciço e não problemático. Mas a lugar pela exigência de uma separação e de
crítica romântica contra o Huminismo não pode uma libertação daquilo que foi transmitido. Ao
sem dúvida valer como um exemplo do fato de contrário, estamos constantemente dentro de
que a tradição se impõe de modo indiscutido tradições, e isso não é um comportamento ób-
e óbvio, sem que aquilo que nela é transmitido jetivante que se ponha diante daquilo que tais
seja atingido pela dúvida e pela crítica. Tem, ao tradições dizem como a algo diferente de nós,
contrário, o sentido de uma auto-reflexõo crítica, estranho; ao contrário, é algo que já sempre
que aqui pela primeira vez retorna à verdade sentimos como nosso, um modelo positivo ou
da tradição e procura renová-la, e que se pode negativo, um reconhecer-se, no qual o julgamen­
chamar de tradicional ismo. to histórico sucessivo não verá um conhecimen­
Parece-me, todavia, que entre tradição to, mas um livre apropriar-se da tradição.
e razão não exista tal contraste absoluto. Por H. G. Gadamer,
mais que possa ser problemática a restauração Verdade 0 método.
( S a p ít u lo d é c im o q u a r t o

Desenvolvimentos recentes
da teoria da Uermenêutica

mílio Bef+i
e. a hermenêutica como método geral
d a s ciências do espírito

• Emilio Betti (1890-1968), fundador - na Universidade de O intérprete


Roma em 1955 - do Instituto de teoria da interpretação, deve deve
ser recordado como autor de uma obra monumental de teoria re-conhecer
hermenêutica: Teoria geral da interpretação (1955). uma mensagem
Há um mundo inteiro a interpretar e entender: gestos, ações, presente
projetos, traços e testemunhos de idéias, de ideais e de suas reali­ no objeto
zações. Pois bem, para Betti a tarefa do intérprete é a de re-conhe­ ->§ 1-2
cer e re-construir a mensagem, as intenções, o sentido; em poucas
palavras, por exemplo: o pensamento que se encontra neste testamento ou naquela
lápide, em um gesto ou em um manifesto, ou então em uma página de jornal.

• Betti acusa certos teóricos da hermenêutica - como Heidegger, Gadamer e


Bultmann - de não levar na devida conta os direitos do objeto. Estes, na opinião
de Betti, impõem o sentido ao objeto (um papiro, um gesto, uma
descoberta arqueológica etc.), mais do que extraem do objeto o O sentido
sentido que nele está contido. não deve ser
Uma coisa - diz Betti - é uma doação de sentido (Sinngebung) imposto
ao objeto,
e outra coisa, bem diferente, é uma interpretação (Ausíegung) mas extraído
do sentido encarnado em um objeto. dele
Sensus nos est inferendus, sed efferendus: o sentido não deve -*§ 3 -4
ser imposto, mas extraído.

• Com o objetivo de delinear uma hermenêutica que garanta direitos ao ob­


jeto, Betti propõe quatro cânones do procedimento hermenêutico:
1) cânon da autonomia: "o sentido deve ser aquilo que se encontra no dado
e dele se extrai, e não um sentido que para ele se transfere a partir de fora";
2) cânon da totalidade: as partes de um texto são iluminadas pelo sentido do
texto inteiro, e o texto em seu conjunto se compreende no contínuo confronto
com suas partes;
3) cânon da atualidade do compreender: a atitude do intérprete não deve
ser "passivamente receptiva, mas factualmente reconstrutiva": isto quer dizer que
seria absurdo se a subjetividade do intérprete (e seus preconceitos,
suas expectativas) fosse cancelada; o importante é que não seja Quatro regras
imposta arbitrariamente sobre o objeto; para uma boa
4) cânon da adequação do compreender, o intérprete deve interpretação
estar congenialmente disposto em relação ao objeto a interpretar, - * § 5
no justo nível espiritual para uma compreensão adequada.
Terceira parte - F e n o m e n o lo 0 Ía, E x is te n c ia lis m o , -H e rm en ê u tica

yA vida e as obras à cifra e ao símbolo artístico, da declaração


ao comportamento pessoal, da expressão do
rosto ao estilo da postura e do caráter, tudo
Emílio Betti nasceu em Camerino no aquilo que nos chega do espírito de outrem,
dia 20 de ago sto de 1890. Laureou-se dirige um apelo à nossa sensibilidade e inte­
primeiro em direito em 1911, e depois em ligência para ser compreendido” . Isso é sa­
letras clássicas em 1913. Livre-docente em lientado por Betti em A hermenêutica como
1915, ensinou na Universidade de Camerino método geral das ciências do espírito.
e sucessivamente em M acerata, M essina, Existe, portanto, o mundo do espírito
Parma, Florença, M ilão e, por fim, a partir objetivo, isto é, de fatos e eventos humanos,
de 1947, em Roma. de gestos e de ações, de pensamentos e pro­
Sempre em Roma, começando de 1960, jetos e de vestígios e testemunhos de idéias,
foi professor de ius romanum na Pontifícia de ideais, de realizações. Todo este mundo
Universidade Lateranense. humano deve ser interpretado.
Betti deu cursos em diversas Universi­ A interpretação, escreve Betti, é “ um
dades estrangeiras. N a Faculdade de juris­ procedimento cujo objetivo e cujo resultado
prudência em Roma, Betti fundou, em 1955, adequado é um entender” . O intérprete de­
o Instituto de teoria da interpretação. verá reconhecer nas objetivações do espírito
Suas publicações jurídicas são numero­ “ o pensamento criativo que o anima” ; de­
síssimas — mais de duzentas — , e contem­ verá re-conhecer e re-construir um sentido,
plam os mais diversos campos: do direito evocar novamente a intuição que aí se revela.
romano ao direito processual, do civil e E, deste modo, ele atua uma inversão do
comercial à história e política internacional. processo criativo: “ uma inversão pela qual
Sua obra em âmbito hermenêutico é o intérprete, em seu iter hermenêutico, deve
monumental: Teoria geral da interpretação, percorrer novamente em sentido retrospec­
publicada em 1955. tivo o iter genético, repensando-o em sua
Em 1960 Gadamer publicou Verdade interioridade” .
e método. Dois anos depois, em 1962, Betti Em suma, “ a diferença crucial entre
publicou em alemão o ensaio Die Herme- o processo interpretativo e qualquer outro
neutik ais allgemeine Methodik der Geis- processo cognoscitivo, em que se encon­
teswissenschaften (A hermenêutica como tram de frente um sujeito e um objeto, está
método universal das ciências do espírito), no fato de que na interpretação o objeto é
e isso para tornar conhecidas na Alemanha constituído por objetivações do espírito;
as linhas fundamentais de sua Teoria geral ao intérprete cabe a tarefa de re-conhecer e
da interpretação que, ao aparecer, passara re-construir a mensagem, as intenções ma­
substancialmente inobservada entre os es­ nifestadas nas objetivações; é um processo
tudiosos alemães, e que será traduzida em de interiorização, em que o conteúdo destas
alemão em 1967. formas é transposto em uma subjetividade
Emílio Betti morreu no dia 11 de agos­ ‘outra’, diferente” .
to de 1968.

Jnterpretar é entendei y \ distinção entre


“interpretação do sentido”
e “atribuição de sentido"
“ N a d a é tão caro ao ser hum ano
quanto entender-se com seus semelhantes.
Nenhum apelo dirigido à sua inteligência Determinada assim a tarefa da inter­
é tão convincente quanto o que vem de pe­ pretação, é preciso logo dizer que Betti é
gadas humanas desaparecidas, que voltam crítico em relação aos desenvolvimentos da
à luz e lhe falam. Em todo lugar em que teoria hermenêutica em Heidegger, Gadamer
nos encontramos na presença de formas e Bultmann.
sensíveis por meio das quais outro espírito Certamente, também para Betti o intér­
fala a nosso espírito, aí entra em movimento prete “ não deve ser passivamente receptivo,
nossa atividade interpretativa, para entender mas factivãmente reconstrutivo” ; todavia,
que sentido têm aquelas formas. Todos, da Betti está persuadido de que “ ao salientar
palavra fugaz, falada no árido documento isso andou-se [...] demasiado além” . Hei­
e no mudo achado arqueológico, da escrita degger, Gadamer e Bultmann teriam ido
Cãpítulo d é c if flO C fU ã rtO - I^eser\vol vi ivu-?ntos r e c e n te s d a te o ria d a h e rm e n ê u tic a

demasiadamente além enquanto, na opinião é mais que um fantasma, isto é, “ a ilusão de


de Betti, teriam posto o sentido do objeto um modo de pensar objetivante, que tem sua
não no próprio objeto, e sim muito mais na razão de ser, mas não na ciência histórica” .
pré-compreensão do sujeito. E Betti anota: a A última expressão do trecho foi tirada por
pré-compreensão é “ fórmula de certo modo Betti de História e escatologia, de Rudolf
ambígua” , e Heidegger é “ mestre do sofisma Bultmann.
e da expressão hermética” .
A hermenêutica como método geral das
ciências do espírito leva o seguinte subtítu­ O s quatro cânones
lo: Ein Beitrag zum Unterschied zwiscken
do pro<ze.clim&nio
Auslegung und Sinngebung (Contribuição
para a diferenciação entre interpretação e Hermenêutico
atribuição de sentido). Pois bem, a herme­
nêutica existencial de Heidegger, Gadamer e
Bultmann, dando excessivo peso à pré-com­ São quatro os cânones ou critérios que
preensão, é uma hermenêutica que leva a devem ser seguidos no processo interpretati­
uma “ atribuição-de-sentido” (Sinngebung); vo. Dois deles, na opinião de Betti, referem-
mas aquilo a que devemos visar é o reencon­ se ao objeto que é interpretado, e os outros
tro do sentido que já está em uma inscrição, dois ao sujeito da interpretação.
em uma lápide, em um testamento, ou seja, 1) O primeiro cânon é o da autonomia
devemos oferecer uma interpretação (Aus­ hermenêutica do objeto e diz que o objeto a
legung) do objeto. interpretar é um produto do espírito de um
Em suma, o que é caro a Betti é a obje­ homem e, portanto, há nele uma “ intenção
tividade da interpretação. E a fórmula feliz formativa já no ato de sua gênese” ; e é este
que sintetiza este propósito central de toda sentido a ele imanente que o intérprete deve
a sua obra é aquela pela qual sensus non est procurar, respeitando sua alteridade, sua
inferendus, sed efferendus. EB3~í~1 autonomia hermenêutica. Sensus non est in­
ferendus, sed efferendus, repete Betti, o qual,
em Teoria geral da interpretação, escreve:
ém LAma kermenêutica 0 arante “ O sentido deve ser o que se encontra no
dado e dele se extrai, e não um sentido que
dos direitos do objeto
nele se transfere a partir de fora” .
2) O segundo cânon, sempre referente
ao objeto a interpretar, é o que Betti chama
O que dissemos eqüivale a afirmar que
de totalidade e coerência da consideração
no ato interpretativo o significado não deve hermenêutica. Deste critério, lembra Betti
ser introduzido e subrepticiamente imposto ainda em A hermenêutica como método
ao objeto; tal significado deve, ao contrário, geral das ciências do espírito, estava bem
ser extraído do objeto. A hermenêutica de consciente o jurista rom ano Celso e, na
Heidegger e Gadamer, diz Betti, é uma teo­ era romântica, Schleiermacher. Tal critério
ria de inspiração kantiana e neokantiana, e esclarece “ a recíproca relação e a coerência
dirige sua atenção sobre as estruturas trans­ presente entre as várias partes constitutivas
cendentais do sujeito; a hermenêutica de do discurso — como o pensamento em geral
Betti procura se colocar, por sua vez, sobre se comunica — e a referência comum ao
um plano de realismo que quer tornar-se todo do qual elas fazem parte [...]. O cânon
garante dos direitos do objeto. Betti aceita da totalidade, em palavras simples, diz que
a distinção idealista e historicista entre ciên­ as partes de um texto são iluminadas pelo
cias da natureza e ciências do espírito, e sentido do texto inteiro e que o texto em
repete com Dilthey que, diversamente das seu conjunto é compreendido no confronto
ciências do espírito, o objeto das ciências contínuo com suas partes e no contínuo
da natureza é “ um objeto essencialmente exame delas.
diferente de nós” . 3) Do objeto para o sujeito da inter­
Em todo caso, Betti é da opinião de que pretação Betti passa com o terceiro cânon,
“ deve-se decididamente rejeitar a conseqüên­ que ele chama de cânon da atualidade do
cia apressada que se tirou disso, ou seja, que compreender. Tal cânon nos mostra como
é impossível manter clara distinção entre o Betti está bem consciente — assim como o
sujeito que conhece e seu objeto, ou que a estão Bultmann e Gadamer — do fato de
objetividade dos fenômenos históricos não que, no processo interpretativo, o intérprete
Terceira pãrte - F e n o m e n o lo g ia , E x is te n c ia lis m o , -H e rm en ê u tica

não pode de fato despojar-se de sua subjeti­ de igual nível e congenialmente disposto
vidade; ao contrário, o intérprete dirige-se à encontra a via para caminhar com o es­
compreensão do objeto, partindo da própria pírito que lhe fala, e está em condição de
experiência, “ transpondo” o objeto da inter­ compreendê-lo de modo adequado” . Betti
pretação “ no círculo do próprio horizonte sustenta que não basta ao intérprete um
espiritual. A atitude do intérprete, em suma, interesse, ainda que vivo, para entender um
não deve ser “ passivamente receptiva, mas objeto; também lhe é necessária principal­
factivelmente reconstrutiva” . Por conse­ mente “ uma abertura espiritual” que lhe
guinte, “ a pretensão de que o intérprete permita “ colocar-se na perspectiva justa,
deva cancelar sua própria subjetividade é no mais favorável à descoberta e à compreen­
mínimo absurda: aquilo que ele deve fazer são ” . Ainda mais explicitamente, Betti diz
calar são unicamente os próprios desejos que se trata de uma disposição de espírito,
pessoais em relação aos resultados [...]. M as tanto moral como teórica, “ que poder-se-
a intelecção pressupõe a maior vitalidade ia definir negativamente como humildade
do sujeito e o m áxim o desenvolvimento e abnegação de si, que se manifestam com
possível de sua individualidade. sincera e decidida superação dos próprios
4) O quarto cânon é o da correspon­ preconceitos [...]; e que pode ser definida
dência de significado ou consonância her­ positivamente como abertura de visão e
menêutica ou, se quisermos, da adequação riqueza de interesses; capacidade de assumir
da intelecção. Escreve Betti: “ Se é verdade em relação ao objeto da interpretação uma
que apenas o espírito fala ao espírito, é atitude congenial animada por um senti­
verdade também que apenas um espírito mento de estreita afinidade” .

------ II. P a I R iCOÊMf*: ZZZZH


a falibilidade kwmana
e o cokv|1ifo d a s interpretações

• Paul Ricoeur - entre os mais conhecidos filósofos franceses - descreve assim


(em 1991) suas raízes filosóficas: "Se reflito, dando um passo para trás de meio
século [...], sobre as influências que reconheço ter sofrido, sou grato por ter sido
desde o início solicitado por forças contrárias e fidelidades opos-
Entre tas: de uma parte Gabriel Mareei, ao qual acrescento Emmanuel
existencialismo, Mounier; de outra, Edmund Husserl". Portanto: Ricoeur forma-se
personalismo em COntato com as idéias do existencialismo, do personalismo e
e fenomenologia da fenomenologia.
Suas obras importantes são: A filosofia da vontade (primeira
parte: O voluntário e o involuntário, 1950; segunda parte: Finitude
e culpa, 1960, em dois volumes: O homem falível e A simbólica do mal). De 1969
é O conflito das interpretações. Em 1975 apareceu A metáfora viva.

• Em O voluntário e o involuntário Ricoeur dirige a atenção


A relação sobre a relação recíproca entre voluntário e involuntário, assim
recíproca
como esta relação se configura na tríplice dimensão do decidir,
entre
voluntário
do agir e do consentir. Em poucas palavras: necessidades, emo­
e involuntário ções, hábitos premem sobre o querer que replica a eles por meio
-*§2 da escolha, do esforço e do consentimento. Escreve Ricoeur: "Eu
suporto este corpo que governo".

• Descendo ainda mais em profundidade no interior da existência humana,


Ricoeur vê que o homem concreto é vontade falível e, portanto, capaz de mal. A
Cãpítulo d é c ílflO quãrto - D e s e n v o lv im e n t o s r e c e n t e s d a t e o r i a d a h e r m e n ê u t ic a

antropologia de Ricoeur delineia um homem frágil, "despropor­


cionado", sempre sobre o abismo entre o bem e o mal. Um homem
falível
A fim de entender o mal e a culpa, o filósofo deve ouvir e
epecador
interpretar os símbolos que representam a confissão que a hu­
-*§ 3 -4
manidade fez de suas culpas; ou seja, deve compreender os mitos
que veiculam símbolos como a mancha, o pecado, a culpabilidade
etc. E, entre esses mitos, central, no pensamento de Ricoeur, é o mito de Adão: a
figura de Adão mostra a universalidade do mal enquanto Adão representa toda
a humanidade.

• A problemática da simbólica do mal leva Ricoeur ao tema da linguagem, ou


melhor, ao projeto da construção de uma grande filosofia da linguagem. Projeto
que encontra seus inícios com um escrito sobre Freud: Da inter­
pretação. Ensaio sobre Freud (1965). Os mestres
A psicanálise interpreta a cultura e simultaneamente a mo­ da suspeita:
difica; assim como marca duravelmente a própria idéia de consci­ Marx, Nietzsche
e Freud
ência. A realidade é que Freud, junto com Marx e Nietzsche, é um
dos três mestres da suspeita, que levaram a dúvida para dentro
da fortaleza cartesiana da consciência:
- para Marx não é a consciência que determina o ser, mas é o ser social que
determina a consciência;
- para Nietzsche a consciência é a máscara da vontade de poder;
- para Freud, finalmente, o Eu é um infeliz submisso aos três patrões que são
o Id, o superego e a realidade ou necessidade.

• A humanidade objetiva nos símbolos, nas diversas formas simbólicas, os


significados e os momentos mais importantes da vida e de sua história. Daí, se
quisermos compreender o homem, a necessidade da interpreta­
ção. E justamente a multiplicidade de modelos interpretativos em A análise das
conflito torna urgente um escrupuloso trabalho que, enquanto de interpretações
um lado bloqueia as pretensões totalizantes das interpretações em conflito
particulares, de outro lado dá razão do efetivo, embora limita­ -> § 6 -7
do, valor de tais interpretações particulares. Mais em particular
será necessário pesquisar, nos símbolos, o vetor arqueológico e o teleológico, ou
seja, as razões de suas raízes no passado e as motivações que os tornam úteis ou
necessários para o futuro.

• O sentido do trabalho filosófico de Ricoeur deve ser visto em uma teoria


da pessoa humana; conceito - o de pessoa - reconquistado no termo de longa
peregrinação dentro das produções simbólicas do homem e
depois das destruições provocadas pelos mestres da "escola da a reconquista
suspeita". Eis, a propósito, um pensamento do próprio Ricoeur da idéia
(1983): "Se a pessoa voltar, isso se dará porque ela continua o de "pessoa"
melhor candidato para sustentar as batalhas jurídicas, políticas, ->§ 8
econômicas e sociais".

1 A vida e as obras Convocado em 1939, é capturado pelos


alemães e permanece prisioneiro até 1945.
N a prisão estudou a filosofia de Jaspers e
Paul R icoeur n asceu em V alence esboçou uma tradução das Idéias de Ed-
dia 25 de fevereiro de 1913, de família mund Husserl.
protestante. Estudou no liceu de Rennes. Ao sair da prisão, ensinou filosofia no
Em 1935 laureou-se em filosofia, e suces­ colégio Cévenol, um centro de cultura cristã
sivamente ensinou durante alguns anos dirigido por protestantes e situado no alto
em liceus. Loire. Amigo de E. Mounier e colaborador
270 .
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia , < £ ^ < is + e n c ia lis m o , - H e r m e n ê u t ic a

da revista “ Esprit” , em 1952 Ricoeur sucede Essai sur Freud aparece em 1965; Le
a Jean Hyppolite na cátedra de história da conflit des interprétations é de 1969; La
filosofia na Universidade de Estrasburgo. métaphore vive é publicado em 1975. No
Em 1956 tornou-se professor de filosofia período 1983-1985 temos os três volumes
na Sorbonne. Transferindo-se a seguir para de Temps et récit. De 1986 é Du texte à
a nova faculdade de Nanterre nos anos difí­ Vaction. Essais d ’herméneutique II.
ceis da contestação, também foi seu decano. Paul Ricoeur morreu no dia 20 de maio
Tornou-se ainda docente na Divinity School de 2005, aos 92 anos.
da Universidade de Chicago, da qual foi
declarado professor emérito.
Ricoeur é um cristão de confissão pro­ swpocto este corpo
testante. Em 1968 a Universidade católica
que governo
de Nijm egen o distinguiu com a láurea
honor is causa.
Nessa ocasião o teólogo dominicano E.
Schillebeeckx pronunciou as significativas Le volontaire et Vinvolontaire oferece
palavras: “ O professor Ricoeur é um dos uma análise fenomenológica das estruturas
raros filósofos que, embora sendo filósofo do voluntário e do involuntário, dirigin­
na autonomia do pensamento responsável, do a atenção sobre sua relação recíproca,
recusam pôr entre parênteses sua condição que se configura na tríplice dimensão do
existencial de crentes cristãos, e para ele decidir, do agir e do concordar. Assim, por
crer é ouvir a interpretação. M as para ou­ exemplo, no plano do decidir, a estrutura
vir a interpretação é preciso interpretar a voluntária é o projeto de quem se empenha
mensagem” . responsavelmente na decisão, mas esta deci­
Em sua autobiografia intelectual es­ são encontra suas motivações nos “ valores
crita em 1991, Ricoeur recorda: “ Se reflito, vitais” , nos motivos introduzidos por meu
dando um passo para trás de meio século corpo, daquele involuntário primeiro que é
[...], sobre as influências que reconheço ter a existência. Aqui está o ponto central da
sofrido, sinto-me grato de ter sido desde o análise de Ricoeur: na tentativa de descrever
início instigado por forças contrárias e fideli- a relação entre voluntário e involuntário; em
dades opostas: de uma parte Gabriel Mareei, evidenciar a reciprocidade do involuntário
ao qual acrescento Emmanuel M ounier; e do voluntário.
de outro lado, Edmund Husserl” . Ricoeur, Escreve Ricoeur: “ A necessidade, a
portanto, formou-se em contato com idéias emoção, o hábito etc., adquirem um sentido
típicas do existencialismo, do personalismo completo unicamente em relação com uma
e da fenomenologia. vontade que eles solicitam, inclinam e em
Todavia, Ricoeur sempre acrescenta: geral influenciam, e que por sua vez estabe­
“N ão só não lamento ter sido impelido des­ lece seu sentido, ou seja, determina-os por
de o início de meu itinerário por solicitações meio de seu esforço e os adota por meio de
distintas, ou até divergentes, mas devo a seu consenso” .
esta polaridade inicial de influências o di­ E, tendo instituído a ligação decisões-
namismo propulsor de toda a minha obra. motivações, “ propõe-se a dualidade e a opo­
Rejeitando escolher entre meus mestres, eu sição [...] entre corpo sujeito e corpo objeto,
estava condenado a procurar meu próprio ou entre liberdade e natureza [...]. A decisão,
caminho desse modo, será o lugar da dialética de
De 1947 é Karl Jaspers et la philosophie atividade e passividade, centro de relações
de Vexistence (escrito com M. Dufrenne). complexas, resultado de tentativas falidas,
N o ano seguinte Ricoeur publica o ensaio de renúncias, de crises e de retom adas” (F.
Gabriel Mareei et Karl Jaspers. Philosophie Guerrera Brezzi).
du mystère et philosophie du paradoxe. De A partir disso vemos, então, que a
1955 é Histoire et vérité. existência humana configura-se como “ um
A primeira parte de sua grande obra diálogo com um involuntário múltiplo e
Philosophie de la volonté sai em 1950 com proteiforme — motivos, resistências, situa­
o título Le volontaire et Vinvolontaire; ções irremediáveis — , ao qual a vontade
a segunda parte em 1960, com o título replica por meio da escolha, do esforço e
Finitude et culpabilité, em dois volumes: do consenso” . Escreve Ricoeur: “ Eu suporto
L’homme faillible e L a symbolique du mal. este corpo que governo” . E, mais à frente:
De Vinterprétation. “ Querer não é criar” .
"
Capitulo "
décimo q U ã T tO - ID esen v olvim en tos r e c e n te s d a te o ria d a h e rm e n ê u tic a
271
..........

lAma vontade kumana pecado e da queda. Tais sentimentos [...] são


que erra e que peca
expressos mediante uma linguagem, median­
te a palavra” (F. Guerrera Brezzi).
É a esta linguagem e a esta palavra
A análise fenomenológica feita sobre as que o filósofo deve se voltar, uma vez que
estruturas do voluntário e do involuntário — escreve Ricoeur — “ a confissão traz a
tende a desenhar um m apa ideal, essencial, consciência do pecado à luz da palavra” , à
da existência humana. M as uma antropo­ luz de símbolos como a mancha, o pecado,
logia concreta do ser humano deve tomar a culpabilidade, ou melhor, à luz de mitos
em consideração o homem concreto que é constituídos pelos relatos que veiculam tais
vontade falível e, portanto, capaz do mal. símbolos.
Com o homem falível Ricoeur passa do O primeiro dos mitos analisados por
abstrato para o concreto, do mundo das Ricoeur é “ o mito da criação do mundo” ,
essências para o da existência, da “ eidética” onde o mal é o caos originário; o segundo
para a “ empírica” da vontade de uma pes­ mito é o do deus maligno, ciumento do he­
soa para a qual têm importância “ pecado e rói, que perde sem sua culpa; o terceiro mito
justiça, retidão e erro, força e fraqueza” (P. é “ o mito de A dão” , onde é o homem que é
Secretan). apresentado como origem do mal; o quarto
A idéia de uma vontade que erra e que e último mito tomado em consideração por
peca faz compreender que o mal moral é Ricoeur é o da “ alma exilada” em um cor-
constitutivo do homem. “ Dizer que o ho­ po-prisão: é este mito que cria o dualismo
mem é falível — escreve Ricoeur — significa antropológico de alma e de corpo.
dizer que o limite próprio de um ser que não Ê, entre estes mitos, central, na opinião
coincide com si mesmo é a fraqueza originá­ de Ricoeur, é o de Adão, onde a função
ria da qual se origina o m al” . “ Patética da universalizante do mito faz ver na figura
miséria” é a expressão usada por Ricoeur de Adão a universalidade do mal enquanto
para designar o sentimento que o homem ex­ Adão representa toda a humanidade: seu
perimenta a respeito de si próprio enquanto pecado é também nosso pecado; e o novo
ser frágil, falível, “ desproporcionado” entre Adão que deverá substituir o primeiro Adão
finitude e infinidade. O homem é limitado dá corpo à expectativa escatológica que
— como o testemunha principalmente sua anulará a queda.
fragilidade afetiva —; “ sinônimo da falibi­
lidade” , “ esta limitação é o próprio homem
[...]. O homem é a alegria do sim na tristeza ..5.. yA^escola da suspeita”
do finito” .
A análise do simbolismo do mal ter­
simbólica do mal mina com a afirmação: “ o símbolo dá o
que pensar” . Esta é uma fórmula que pode
sintetizar o sentido de toda a obra de Ri­
O fio condutor de O homem falível é, coeur, principalmente do modo como ela
justamente, o conceito de falibilidade, que se configurou a partir da década de 1960.
permite propor uma antropologia da qual A partir deste período, com efeito, Ricoeur
emerge um homem frágil, “ desproporciona­ entendeu sua obra como um contributo
d o ” e continuamente sobre o abismo entre para “ uma grande filosofia da linguagem” ,
o bem e o mal, capaz de pecado e de falhas. em grau de englobar as “ múltiplas funções
Pois bem, no segundo volume de Finitude do significar humano e de suas relações re­
et culpabilité, isto é, no La symbolique du cíprocas” . É sobre a linguagem — escreve
mal, Ricoeur olha para a humanidade do Ricoeur — que “ se entrecruzam as pesquisas
homem como para o “ espaço da manifes­ de Wittgenstein, a filosofia lingüística ingle­
tação do m al” . sa, a fenomenologia derivada de Husserl,
Todavia, para compreender o mal e a as pesquisas de Heidegger, os trabalhos da
culpa o filósofo deve remeter-se à linguagem escola de Bultamnn e das outras escolas de
que os manifesta, deve ouvir e interpretar os exegese neotestamentária, a literatura de
símbolos que representam a confissão que história comparada das religiões e antropo­
a humanidade fez de suas culpas, de seus lógica sobre o mito, o rito e a crença, e, por
pecados: “ A confissão [...] objetiva [...] a fim, a psicanálise” . E é justamente uma me­
angústia, a emoção, o medo, derivados do ditação sobre a obra de Freud seu livro Da
Terceira parte - F e n o m e n o l o g ia , E x is t e n c i a li s m o , - H e r m e n ê u t ic a

interpretação. Ensaio sobre Freud, de 1965. decifrar o sentido escondido no sentido evi­
Ricoeur volta a ler Freud porque Freud dente, ao desdobrar os níveis de significação
reinterpretou “ a totalidade das produções implícitos na significação literal” .
psíquicas que competem à cultura, do sonho Eis, então, que “ símbolo e interpreta­
à religião, compreendendo a arte e a mo­ ção tornam-se, deste modo, conceitos cor-
ral” . A psicanálise, diz Ricoeur, pertence à relativos; há interpretação onde há sentido
cultura moderna: “ Interpretando a cultura, múltiplo, e é na interpretação que a plurali­
ela a modifica; dando-lhe um instrumento dade dos sentidos se tornou manifesta” .
de reflexão, marca-a duravelmente” . E visto que o trabalho interpretativo
Assim como m arca duravelmente a se abre em uma multiplicidade de mode­
própria idéia de consciência, assim como foi los interpretativos em conflito, é preciso
pensada e nos foi transmitida por Descartes: um trabalho atento dirigido, de um lado,
“ o filósofo educado na escola de Descartes a bloquear as intenções totalizantes das
sabe que as coisas são dúbias, que não são interpretações particulares e, de outro, a
como aparecem ; mas não duvida que a dar razão do efetivo, circunscrito valor dos
consciência não seja assim como aparece diversos modelos interpretativos.
a si própria; nela, sentido e consciência do
sentido coincidem” . Pois bem, isto — sa­
lienta Ricoeur — hoje não é mais possível. yA realidade do símbolo
Os “ mestres da escola da suspeita” , ou entre o vetor " a r q u e o ló g ic o '
seja, M arx, Nietzsche e Freud, devastaram
também esta certeza: “ Depois da dúvida e o rtteleolÓ0 ÍcoA
sobre a coisa, para nós é a dúvida sobre a
consciência” . A dúvida entrou no próprio
coração da fortaleza cartesiana: a consciên­ M ais particularmente, na realidade do
cia é “ falsa” consciência. símbolo Ricoeur vê sempre presentes dois
Para M arx não é a consciência que vetores, o arqueológico e o teleológico, que
determina o ser, mas é o ser social que a interpretação tem a tarefa de esclarecer.
determina a consciência; para Nietzsche a “ Conforme ensina principalmente a her­
vontade de poder é a chave das mentiras e menêutica desm istificadora freudiana, o
das máscaras; para Freud, finalmente, o Eu homem é continuamente forçado ao ponto
é um infeliz “ submisso a três senhores: o Id, inicial do próprio processo de desenvolvi­
o superego e a realidade ou necessidade” . mento, porque não pode explicar sua pró­
E3CT21 pria atividade, compreendida a tipicamente
espiritual, sem repetir os esquemas fixados
nas primeiras fases do desenvolvimento;
por outro lado, todo retorno daquilo que
O conflito foi rem ovido representa evidentemente,
das interpretações vendo bem, sempre também um acréscimo
de sentido ou, conforme a fenomenologia
hegeliana, a realização de um momento
Ricoeur eleva ao ponto mais alto o m ais elevado na vida do esp írito ” (M.
projeto de uma filosofia como hermenêutica Buzzoni).
em Le conflit des interprétations, de 1969. O arché e o télos são o inconsciente e
E nos símbolos, nas diversas formas simbó­ o espírito na vida do homem; são os dois
licas, que o homem objetiva os significados pólos, o regressivo e o progressivo, que
e os momentos mais importantes da vida e a interpretação pesquisa nos sím bolos.
da história da humanidade. M as o símbolo, Ricoeur se pergunta: “ Existe, com efeito,
para ser compreendido, requer um traba­ um só sonho que não tenha também uma
lhoso exercício hermenêutico. “ Chamo de função exploradora, que não esboce ‘profe­
símbolo — escreve Ricoeur — toda estrutura ticamente’ um caminho de saída para nossos
de significação em que um sentido direto, conflitos? E vice-versa: existe um só grande
prim ário, literal, designa por acréscimo símbolo, criado pela arte e pela literatura,
outro sentido indireto, secundário, figurado, que não mergulhe e não volte a mergulhar
que pode ser apreendido apenas por meio no arcaísmo dos conflitos e dos dramas,
do primeiro” . individuais ou coletivos, da infância? O
D aí a necessidade da interpretação: verdadeiro sentido da sublimação não é
esta “ é o trabalho mental que consiste em talvez o de promover significados novos,
Cdpítulo décimo QUÜYtO - T)esenvolvimentos recentes da teoria da hermenêutica

mobilizando as energias antigas, primeiro Ricoeur disse em 1983: “ Se a pessoa


investidas em figuras arcaicas?” retorna, isto verifica-se porque ela continua
M ais recentemente, em La métaphore sendo o melhor candidato para sustentar as
vive (1975) e em Temps etrécit (1983-1985), batalhas jurídicas, políticas, econômicas e
Ricoeur, analisando a metáfora e o relato, sociais” . Com efeito, no confronto com a
quis explorar — contra o determinismo fe­ “ consciência” , com o “ sujeito” ou o “ eu” ,
chado dos estruturalistas — o poder criativo a pessoa é um conceito que sobreviveu e que
da linguagem. E se a metáfora poética abre hoje voltou a viver com força.
novos horizontes de significação e assim des­ Ainda Ricoeur: “ Consciência? Como
cobre e produz novos aspectos do real, com se poderia ainda crer na ilusão de trans­
a trama do relato histórico ou fantástico a parência associada a este termo, depois de
imaginação criativa oferece a perspectiva ins­ Freud e da psicanálise? Sujeito? Como se
trutiva dos sentidos escondidos ou possíveis. poderia alimentar ainda a ilusão de uma
fundação última em algum sujeito trans­
cendental, depois da crítica das ideologias
jA reconquista da pessoa efetuadas pela Escola de Frankfurt? O eu?
M as quem não sente com força a impotên­
cia do pensamento para sair do solipsismo
Se a esta altura quiséssem os tentar teórico [...]? Eis a razão — conclui Ricoeur
captar o sentido de todo este trabalho her­ — pela qual prefiro dizer pessoa em vez
menêutico de Ricoeur, poderíamos dizer que de consciência, sujeito, eu” . E a pessoa é
ele é “ o longo caminho” da reconquista da atenazada na dialética entre liberdade e
pessoa humana por meio de uma peregri­ culpa, e se sente só diante de Deus, como
nação fatigante na floresta das produções o cavaleiro da fé de que fala Kierkegaard,
simbólicas do homem, e depois das devas­ cavaleiro que, diante de Deus, “ não dispõe
tações produzidas na idéia de consciência em todo caso a não ser de si próprio, em
pelos mestres da “ escola da suspeita” . um isolamento infinito.

Paul Ricoeur reconquistou


o conceito de “pessoa ”
depois das destruições provocadas
pelos mestres da
“escola das suspeitas
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia / E x is t e n c i a li s m o , ■ H e rm e n ê u tic a

m . Luís T-^areyson
e a p e sso a como ó rgão d a v erdade

• Discípulo de Augusto Guzzo, Luís Pareyson (1918-1991), primeiro professor


por breve período em Pavia, e depois na Universidade de Turim, foi diretor da
"Revista de estética" de 1956 a 1984; e em 1985 fundou o "Anuário filosófico".
De 1940 é A filosofia da existência e Karl Jaspers; de 1943 são os Estudos sobre o
existencialismo.
A obra Existência e pessoa aparece em 1950. E eis o núcleo do discurso que
Pareyson desenvolve neste livro: Feuerbach e Kierkegaard criticaram Hegel ain­
da antes que categorias hegelianas como a de totalidade e de
Se Hegel errou progresso necessário aparecessem em toda a sua inconsistência,
o cristianismo Feuerbach fez ver que a história humana, mais que história do
não está espírito, é "história de necessidades materiais"; e Kierkegaard,
superado em sua apaixonada defesa do indivíduo, mostrou a irredutibili-
1 dade do indivíduo ao sistema, à sociedade ou a qualquer outra
coisa. Mas se Hegel errou, então o cristianismo não é mais um
momento superado do desenvolvimento da história humana: ele se representa
assim, indiscutivelmente, como fé que se propõe à nossa escolha.
Importantes são os estudos dedicados por Pareyson ao problema da arte:
Estética. Teoria da formatividade (1954); Teoria da arte (1965).
A defesa da filosofia como pesquisa autônoma da verdade é apresentada por
Pareyson em Verdade e interpretação (1971).

• Como é possível reconhecer ao pensamento filosófico um valor de verdade,


depois que desmistificadores - como Hegel, Marx, Nietzsche, Freud ou Dilthey
- evidenciaram o condicionamento histórico, ideológico, psicológico, cultural? E
possível evitar o relativismo sem cair no dogmatismol
Pois bem, a esta interrogação crucial Pareyson responde, em
A filosofia Verdade e interpretação, propondo uma idéia de filosofia que "é
á "tam bém " sempre, ao mesmo tempo, expressão de um tempo, interpretação
expressão pessoal e dotada de validade especulativa".
do tem po A filosofia é também expressão do tem po - ou seja, do am­
e é "ta m b é m " biente cultural - em que o filósofo define e põe os problemas
expressão e arrisca suas soluções: basta pensar no problema da pretensa
peSç°?al auto-evidência dos princípios da geometria euclidiana depois
5 de Lobatchevski; ou nos problemas referentes aos conceitos de
espaço e de tempo, depois de Einstein.
Além de ser também expressão de seu tempo, a filosofia é também expressão
pessoal; o filósofo está de tal modo empenhado e imerso em sua pesquisa que
"toda afirmação dele torna-se decisiva para ele [...], e não há resultado que lhe
possa ser indiferente".

• Existem, portanto, múltiplas filosofias, entendidas como interpretações


pessoais; e nenhuma delas pode apresentar-se como "exclusiva conhecedora da
verdade".
Eis, então, que "a filosofia é aquela em que todas as filosofias
A filosofia particulares se reconhecem". A filosofia, em outros termos, é um
é um diálogo trabalho incessante para a pesquisa da verdade. "A unidade da
entre vozes filosofia é a confilosofia".
que comunicam j oc|a filosofia autêntica é aberta para outra; é comunicação
í ul'g e discussão. O trabalho filosófico é um diálogo ininterrupto, uma
' pluralidade de vozes que comunicam discutindo. É assim, então,
Cãpítulo d é c if flO q U ã T tO - D e s e n v o lv im e n t o s r e c e n t e s d a t e o r i a d a h e r m e n ê u t ic a

que a pessoa, "em sua singularidade", é um "órgão revelador da verdade"; o ser


humano é, desde o início, um ser que interpreta: "toda relação humana, quer se
trate do conhecer ou do agir, do acesso à arte ou das relações entre as pessoas,
do saber histórico ou da meditação filosófica, tem sempre um caráter interpre-
tativo".

• A ontologia da liberdade, a problemática do mal são temas que, junto com


a hermenêutica do m ito, atraíram o interesse do último Pareyson.
Em um ensaio significativo com o título Filosofia e experiência religiosa, Pa­
reyson afirma sem meios-termos que a existência de Deus é objeto de fé, objeto
de uma escolha radical e profunda, e não o resultado de uma
demonstração. O Deus dos filósofos - escreve Pareyson - não O Deus
existe. E ao Deus dos filósofos ele contrapõe o Deus da experiên- dos filósofos
cia religiosa, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó. E esse Deus, nã0 existe
o Deus da experiência religiosa, não é atingível pelos conceitos 7'8
filosóficos. A metafísica peca por antropomorfismo: com efeito,
falar de Deus como Princípio, Ser, Causa, Bondade, Providência etc., significa con­
ferir à divindade atributos que são sempre de natureza antropomórfica.

• Bem diferentes aparecem as coisas com a linguagem do mito (Êxodo, Salmos,


Gênesis, livros dos Profetas): esta linguagem - a linguagem reveladora do mito - é
a mais adequada para falar da divindade: isso pelo fato de que,
contrariamente à linguagem demonstrativa da filosofia - que a linguagem
gostaria de capturar Deus, atribuindo-lhe conceitos predicáveis reveladora
do homem - , a linguagem do mito alude à divindade por meio do m ito
de imagens e formas sensíveis das quais quem delas faz uso sabe - * § 9
já de antemão que elas são incapazes de representá-la.

A A vida e as obras ainda antes que categorias como a de tota­


lidade e de progresso necessário da história
aparecessem em toda a sua inconsistência na
L u ís P arey so n n asceu em P iasco crise das filosofias historicistas. Feuerbach
(Cuneo), de uma família originária do Va­ mostrou que a história, mais que ser histó­
le d’O sta, no dia 4 de fevereiro de 1918. ria do espírito, é “ história de necessidades
Aluno de Augusto Guzzo, laureou-se em materiais” , e Kierkegaard nos fez ver que o
filosofia em Turim em 1939, discutindo indivíduo é irredutível às leis de um processo
uma tese sobre Karl Jasp ers. Por breve inelutável. M as, se Hegel errou, então não
período ensinou história da filosofia em podemos mais pensar que o cristianismo é
Pavia, e a partir de 1952 primeiro estética um momento doravante superado da histó­
e depois filosofia teórica na Universidade ria da humanidade. Desse modo, a posição
de Turim. Acadêmico dos Linceus, membro de Pareyson “ representa em toda a sua força
do Institut International de Philosophie, uma figura de pensamento cara a Kierkega­
Pareyson foi também diretor da “ Revista ard, a do aut aut em relação ao cristianismo,
de estética” , de 1956 a 1984. Em 1985 que continua a representar uma questão
fundou o “ Anuário filosófico” . Pareyson ineludível” (G. Vattimo).
morreu em 1991. Em poucas palavras, sobre a base do
De 1940 é A filosofia da existência e pensamento de Kierkegaard, a filosofia de
Karl Jaspers; os Estudos sobre o existen­ Pareyson coloca-se além do hegelianismo e
cialism o aparecem em 1943. Em 1950 propõe um personalismo ontológico em que
Pareyson publica Existência e pessoa, onde a pessoa é essencialmente abertura ao ser,
afirma que “ o existencialismo foi uma re­ órgão da verdade.
tom ada da dissolução do hegelianismo” . O tema da interpretação e da verdade
Feuerbach e Kierkegaard criticam Hegel é retomado, no volume de 1971, Verdade
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia , E x is t e n c i a li s m o , H e r m e n ê u t i c a

e interpretação, no mais amplo contexto (Sondicionalidade kis+ÓHca,


de uma defesa extrema e resoluta da ne­ cam+er pessoal e validade
cessidade e da autonomia da filosofia como
pesquisa da verdade, e contra as degene- especulativa da filosofia
rações do cientificismo, do fideísmo e do
pan-politicismo.
Pareyson deixou suas idéias sobre “ Como é possível filosofar se a filoso­
estética em im portantes volumes como: fia é sempre historicamente condicionada?
Estética. Teoria da form atividade (1954); Como conciliar a consciência histórica com
Teoria da arte (1965); O s problem as da a exigência especulativa? E ainda possível
estética (1965); e Conversações de estética reconhecer para o pensamento filosófico um
(1966). A arte tem como característica típi­ valor de verdade, depois que os desmistifica-
ca a da “ formatividade” , a arte é ao mesmo dores (Hegel, M arx, Nietzsche, Freud, Dil­
tempo invenção e produção ou, como es­ they) demonstraram sua condicionalidade
creve Pareyson, “ fazer com que enquanto histórica, material, ideológica, psicológica,
faz inventa o modo de fazer” , intervindo cultural?” Pareyson faz-se essas perguntas
“ sobre a matéria física com base na regra na Introdução à quarta edição de Existência
individual da obra a realizar” (F. Sossi). e pessoa. E continua: “ O reconhecimento
Devem ser lembrados tanto Fichte. O sis­ de uma multiplicidade essencial da filosofia
tema da liberdade (1965), como o trabalho não com prom eterá irremediavelmente a
mais recente Filosofia da liberdade (1989). unidade da verdade? E possível uma con­

Luís Pareyson (1918-1991),


filósofo católico,
interessado
no problema da arte;
sustentou que toda
autêntica filosofia
é aberta à outra,
é uma pluralidade de vozes
que comunicam discutindo.
' ' ■
C ã p í t u l o d é c it H O q u ã Y t O - X^esenvolvimervtos r e c e n te s d a te o r ia d a h e rm e n ê u tic a
277
. .

cepção pluralista mas não relativista da no sentido de que ela seja determinada pela
verdade? Qual é o ponto de vista em que história da qual emerge, mas no sentido de
pode validamente colocar-se uma afirmação que toda filosofia é sempre resposta a proble­
de prospectivismo, que consiga conciliar a mas históricos, que o próprio filósofo define
unicidade da verdade com a multiplicidade e põe, isolando-os dentro de sua experiência
de suas formulações?” histórica, de modo que por meio do trabalho
Pois bem, a tais perguntas Pareyson res­ do filósofo, que toma posição em relação a
ponde, evitando tanto o relativismo de quem seu tempo, esse tempo é também refletido
concebe as filosofias como “ conceitualiza- em sua filosofia” .
ções ideológicas de determinadas condições Por outro lado, a filosofia é também in­
históricas de existência” , como o dogmatis- terpretação pessoal: “ Com efeito, a própria
mo e a incomunicabilidade fechada de quem pessoa do filósofo está empenhada em sua
sustenta a excepcionalidade da filosofia, pesquisa: o filósofo não pode indagar o ser
e afirma que as filosofias particulares são sem indagar a si próprio porque ele próprio
isoladas uma da outra “ como perspectivas é: está de tal modo imerso em sua pesquisa
irrepetíveis e inconfundíveis, interpretações que toda afirmação sua torna-se decisiva
personalíssimas de situações individualís- para ele, toda pesquisa que empreende o
simas, sem qualquer passagem entre elas modifica a partir do interior, e também não
e, portanto, absolutas e incomunicáveis” . há êxito que possa deixá-lo indiferente” .
Estas posições são, na opinião de Pa­
reyson, propostas cripto-hegelianas para sair
da dissolução do hegelianismo. M as da dis­
solução do conceito hegeliano de totalidade iAn\c\ac\e. da filosofia
e de inelutável desenvolvimento progressivo jilosoj-k
e a contilosotia
da história não se sai com os conceitos de
historicidade ou de excepcionalidade da
filosofia; daí se sai — afirma Pareyson, em Todavia, se a filosofia é também inter­
Fichte — com “ a afirmação da condiciona- pretação pessoal, então — escreve Pareyson
lidade histórica da filosofia estreitamente — ter-se-á que, “ permanecendo única a
ligada com a da sua personalidade, e ambas verdade, a filosofia é necessariamente múl­
ligadas com a afirmação da validade espe­ tipla” . Contudo, lembra Pareyson, esta mul­
culativa da filosofia” . O que, em poucas tiplicidade de filosofias não pode significar
palavras, preme Pareyson, e constitui o multiplicidade da verdade, “ uma vez que
núcleo teórico de sua idéia de filosofia, é a não existem as verdades, nem, em relação
afirmação simultânea da condicionalidade a uma verdade, outras verdades: há, porém,
histórica, do caráter pessoal e da validade a verdade de outros, isto é, a verdade como
especulativa da filosofia: “ uma filosofia é foi procurada e formulada por outros que
sempre, ao mesmo tempo, expressão de um com-igo e como eu procuravam a verdade” .
tempo, interpretação pessoal e dotada de Desse modo, entender personalisticamente
validade especulativa” . a unidade da filosofia significa abandonar a
concepção de uma filosofia única, última e
definitiva capaz de oferecer a verdade total
>fi< e^também”
e absoluta. A verdade total — diz Pareyson
^ f i l osofia
— “ não se oferece ao homem como posse
expressão do tempo; alcançada e definitivamente conquistada,
e é^também” mas está presente nele como exigência e
norma: exigência que impele a buscar a
interpretação pessoa
verdade, e norma para julgar os verdadeiros
que tal pesquisa alcança” . Única é a verda­
de; múltiplas são as filosofias, entendidas
A filosofia não é apenas expressão de um como interpretações pessoais; nenhuma
tempo, porque, se assim fosse, ela perderia delas consegue ser “ exclusiva conhecedora
sua autonomia, suas pretensões de verdade, da verdade” : mas então eis que “ a filosofia
e seria reduzida a um instrumento prag­ é aquela em que todas as filosofias particu­
mático temporário. A filosofia, todavia, é lares se reconhecem” A filosofia, em suma,
também expressão do tempo, “ sem dúvida é um incansável e jamais completo trabalho
não no sentido de que sua validade esteja comum para a busca da verdade. Diz ainda
circunscrita ao tempo em que surge, nem Pareyson: “ As múltiplas filosofias não estão
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia , E x is t e n c i a li s m o , F le r m e n ê u + ic a

alinhadas para dar espetáculo cômodo e e a pessoa, “ em sua singularidade” , torna-se


fácil de si mesmas, nem se empenham na “ órgão revelador” da verdade, órgão “ que,
tarefa estéril de falarem e calarem-se mutua­ longe de querer se sobrepor à verdade, cap­
mente, mas, cônscias de fazer um trabalho ta-a em sua própria perspectiva” . Escreve
que não pode ser executado a não ser em Pareyson em Verdade e interpretação-. “Toda
primeira pessoa, colaboram por meio da relação humana, quer se trate do conhecer
discussão e, mesmo quando se põem umas ou do agir, do acesso à arte ou das relações
contra as outras, trabalham juntas, umas entre pessoas, do saber histórico ou da
com as outras, pela verdade. E esta é de meditação filosófica, sempre tem um cará­
fato a filosofia, que força todas as filosofias ter interpretativo. Isso não ocorreria se a
em um diálogo comum e ininterrupto: a interpretação não fosse em si originária: ela
unidade da filosofia é a confilosofia, sem a qualifica tal relação com o ser em que reside
qual nenhuma filosofia é verdadeiramente o próprio ser do homem; nela se manifesta a
tal e digna do nome” . primigênia solidariedade do ser com a verda­
de” . Em poucas palavras: “ [...] da verdade
não há mais que interpretação e [...] não há
interpretação a não ser da verdade
PI u ra lid a d e d e v o z e s A pessoa é órgão da verdade e o é pelo
q u e c o m u n ic a m d isc u tin d o fato de que o ser humano é um ser que in­
terpreta e, enquanto tal, órgão da verdade.
O homem — diz Pareyson — deve escolher
Existe, portanto, abertura de toda filo­ entre ser história, ou seja, identificar-se com
sofia às outras; há uma comunicação, feita suas circunstâncias históricas, ou então ter
também com discussão, que liga todas as história, isto é, dar uma revelação irrepetível
filosofias em uma colaboração que se abre da verdade; entre ser um produto ou uma
para caminhos novos e imprevisíveis: e o expressão de seu tempo, ou então “ tornar-
fundamento de tudo isso não pode ser mais se perspectiva viva da verdade” , capaz de
que “ a livre e gratuita inexauribilidade do autêntico pensamento revelador, o “ expert
infinito, que não se gradua em momentos da verdade, ontológico e pessoal ao mesmo
necessários, nem se divide em partes inte- tempo” . E isso consciente de que a verdade
gráveis, nem se revela a um conhecimento jamais será, em sua totalidade e definitivida-
privilegiado, mas suscita vozes infinitas que de, posse de uma perspectiva interpretativa
tentam, cada uma de seu modo, de captá- individual.
lo e desvelá-lo, e as suscita, mantendo-as
em sua autonomia, respeitando-as em sua
liberdade, reconhecendo-as em seu valor, de
;A o n to lo g ia d o in e s g o tá v e l
modo que cada uma delas é livre e autôno­
ma em sua própria determinação, é aberta c o n tra o m is tic is m o
e infinita em sua própria definição” . É com d o in e fáv e l
base em considerações como as que agora
foram expostas que Pareyson vê converter-se
a ambígua expressão “ unidade da filosofia A verdade, na opinião de Pareyson,
e multiplicidade de filosofias” na bem mais é não objetivável; e o é no sentido preciso
rica e prenhe fórmula “ inexaurível infinida­ de que ela “ se manifesta em ulterioridade
de da verdade e liberdade de quem sob seu irrefreável, motivo pelo qual a verdade se
estímulo se põe a buscá-la” . entrega às mais diversas perspectivas apenas
enquanto não se identifica com nenhuma de­
las [...]” . E justamente contra todos — junto
O kom em com Heidegger — os que gostariam, com
é um s e r in te rp re ta n te e, base em sua não-objetividade ou inexauribi­
lidade, entregar a verdade ao silêncio místico,
e n q u a n to tal,
Pareyson empenha-se por “ uma ontologia do
órgão d a verdade inexaurível” , oposta “ ao misticismo do ine­
fável” . N o fundo, para Pareyson, abandonar-
se ao mistério ou ao silêncio eqüivale a uma
O conceito de interpretação explica-se “ simples reviravolta do culto racionalista do
com a “ solidariedade original” existente en­ explícito” e a “ conservar toda a nostalgia”
tre pessoa e verdade. A existência é pessoa; deste culto: o m etafísico, desiludido em
Cãpítulo décimo CJUÜTtO - Desenvolvimentos decentes da teoria da hermenêutica

suas pretensões de possuidor da única, total para demonstrar eventualmente a existência


e definitiva verdade, se refugia no silêncio, de Deus [...]. A escolha entre a existência e
aceitando a lógica do “ tudo ou nada” . A a inexistência de Deus é um ato existencial
verdade, sustenta ao contrário Pareyson, vai de aceitação ou repúdio, em que o homem
sempre além de suas diversas formulações individual decide, com seu próprio risco,
históricas, uma vez que o ser é inexaurível; se para ele a vida tem sentido ou então é
essas formulações históricas, porém, essas absurda, uma vez que a esta opção se reduz
palavras, revelam verdade, falam-nos do no fundo e sem resíduo tal dilema” . Trata-
ser: “ se é fato que a palavra jamais pode ser se, certamente, de uma opção religiosa; e
enunciação exaustiva da verdade, também igualmente de modo seguro ela não é um
é fato que ela é a sede mais adequada para teorema filosófico.
acolhê-la e conservá-la como inexaurível, A filosofia, portanto, não tem voz no
uma vez que a verdade não tanto se subtrai assunto sobre a questão da existência ou não
a ela para retirar-se no segredo, mas muito existência de Deus. O Deus dos filósofos,
mais se concede a ela apenas estimulando-a diz Pareyson, não existe. E ao Deus dos
e permitindo-lhe novas revelações: a verdade filósofos ele contrapõe o Deus da experiên­
não é puramente inapreensível [...], mas é cia religiosa. O Deus da religião é algo
mais uma irradiação de significados, que se diferente do Deus dos filósofos: “ E o Deus
fazem valer não com uma desvalorização de Abraão, de Isaac e de Jacó, o Deus vivo
da palavra, mas com uma transvalorização e vivificante, é um Deus que se trata como
dela [...]” . tu e ao qual se ora, um Deus ao qual se diz
com estremecimento miserere mei, e com
desespero ne sileas, ao qual a pessoa dirige-
se perguntando angustiada quare me dereli-
8 | O D e u s d o s filó so fo s quisti? E suplicando com temor e tremor ne
e o D e u s d a e x p e riê n c ia avertas faciem tuam a me, ao qual na hora
suprema a pessoa se entrega, exclamando
re lig io sa in manus tuas commendo spiritum meum,
e implorando in te, Domine, speravi: non
confundar in aeternum” . B ffg lT l
A ontologia da liberdade e a proble­
mática do mal são temas que interessaram
vivamente o último Pareyson. E junto com 9 7^ lin g u a g e m
esses temas há, na sua mais recente tratação, r e v e l a d o r a d o m i+ o
o da hermenêutica do mito. Em Filosofia e
experiência religiosa Pareyson afirma: “ O
Deus dos filósofos é o Deus da filosofia O Deus da experiência religiosa não
objetivamente, resultado de pensamento é atingível pelos conceitos filosóficos. Por
direto. Este Deus propriamente não existe: é isso, nota Pareyson, “ pode nascer o projeto
puro nome que o filósofo pronuncia em vão, de buscá-lo e a perspectiva de encontrá-lo
um conceito vazio ao qual não corresponde em uma zona mais profunda e originária do
nenhuma realidade, e ao qual em todo caso pensamento; lá onde nenhuma perplexidade
seria necessário dar um conteúdo, coisa que ou hesitação pode nascer diante da idéia de
não se pode fazer a não ser recorrendo ao que, para o Deus da experiência religiosa,
mito, à experiência religiosa, à fé. Também muito mais que os conceitos especificamente
para o filósofo, portanto, e em geral para filosóficos aparecem adequados e significa­
todos, o Deus do qual se fala não pode ser tivos os símbolos da poesia e as figuras an-
mais que o da fé, que é o único Deus de tropomórficas do mito, como se encontram,
quem se possa falar” . A existência de Deus por exemplo, nas teofanias sensíveis do
— salienta Pareyson — é objeto de fé, ob­ Êxodo e dos Salmos, nos relatos do Gênesis
jeto de escolha radical e profunda, e não o e dos livros apocalípticos, nas grandiosas e
resultado de uma demonstração. flamejantes visões dos profetas” .
A filosofia, portanto, deve abandonar A linguagem do mito e da poesia pa­
a tradicional e ilusória pretensão fundante: receria, de certo modo, a menos adequada
“ sua tarefa não é demonstrativa, mas her­ para falar da transcendência, a qual seria,
menêutica” . Isso quer dizer que a filosofia ao contrário, capturável pelos conceitos
“ não intervém nem para escolher entre a “ não antropomórficos” da metafísica. Pa­
existência e a inexistência de Deus [...], nem reyson aqui inverte tal convicção usual: é a
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia , ^ E x is t e n c ia lis m o , - H e r m e n ê u t ic a

metafísica que peca por antropomorfismo imagem simbólica, justamente em virtude


e não a linguagem do mito. Conceber Deus de sua natureza sensível, toto coelo diferente
como Ser, Princípio, Causa, Pensamento, da natureza da divindade, presta-se otima­
Razão, Valor, Pessoa, Bondade, Providência mente para representá-la, porque desde o
significa conferir à divindade atributos de início reconhece sua inadequação total e,
natureza substancialmente, “ ainda que de reconhecendo-a, a supera e a resgata” . Em
form a larvar” , antropom órfica; significa poucas palavras: se o Deus autêntico é o
definir Deus “ com base em categorias ela­ Deus da experiência religiosa, e não o Deus
boradas pela mente humana e atribuir-lhe dos filósofos, então a linguagem mais ade­
propriedades que direta ou indiretamente quada para falar de Deus não é a linguagem
são inerentes ao homem, ainda que extre­ demonstrativa da filosofia (que desejaria
mamente afinadas e abstratas, e ainda que capturar Deus atribuindo-lhe conceitos
pensadas em sentido eminente e elevado ao predicáveis do homem), mas a linguagem
vértice” . A linguagem metafísica sobre Deus reveladora do mito (que alude à divindade
é, portanto, substancialmente antropomór­ por meio de imagens e formas sensíveis das
fica. As coisas ocorrem bem diversamente quais se sabe já de início que são incapazes
com a linguagem mítica; e isto porque “ a de representá-la).

IV. C \ ianKvi Vaf+imo:


ke-rmenêutica, pe.n sam e.n fo débil,
pós-mode.midade

• Estudioso de Nietzsche e de Heidegger, discípulo primeiro de Pareyson e


sucessivamente de Gadamer, Gianni Vattimo, professor na Universidade de Turim,
é autor de obras como: Poesia e ontologia (1967); Schleiermacher, filósofo da
interpretação (1968); Introdução a Heidegger (1971); As aventuras da diferença
(1981); O fim da modernidade (1985); Introdução a Nietzsche (1986); A sociedade
transparente (1989); Para além da interpretação (1995).
Vattimo é defensor daquilo que ele próprio chamou de "pen­
Em defesa do sarnento débil". O pensamento débil nos diz que doravante não
y .f n?,?mento é mais possível propor uma filosofia que presuma ter a posse de
? certezas e de fundamenta inconcussa para teorias sobre o homem,
" sobre Deus, sobre a história, sobre os valores.

• Os pressupostos teóricos do pensamento déb


Os pressupostos postos que tornam impossível uma filosofia fundacional - são
hermenêuticos encontráveis dentro da hermenêutica. Com efeito, o primeiro
do pressuposto da hermenêutica é a idéia de que o homem lê a rea-
"pensamento lidade dentro de horizontes lingüísticos que tornam a evidência
débil" relativa às categorias lingüísticas típicas de tais horizontes; o se-
$ 3'4 gundo pressuposto está no fato de que tais aparatos categoriais
não são fixos, mas históricos.

• Daí o fim da modernidade como fim de uma concepção da história guiada


por leis de progresso e de superação; e a manifestação de um tipo de racionalidade
(débil, justamente) que "não deve permanecer paralisada pela perda de referên-
. cia luminosa, única e estável, cartesiana". E, sempre como conse-
Fim da qüências do pensamento débil, contenção da violência, atenção
m odernidade eXperjências que um "olhar totalizante" exclui ou espezinha,
’ sempre mais tolerância, interferência com as culturas "diferentes".
281
Capítulo d é c ifH O C^uatto - D e s e n v o lv i m e s to s re c e n te s d a te o r ia d a h e rm e n ê u tic a

;A v id a e a s o b m s de tal evento são várias: o mundo do saber


se tornou tão complexo que é inverossímil a
existência de um saber que “ governe todos
Gianni Vattimo foi aluno de Luís Pa­ os outros de modo unitário, fundante” ; há
reyson. Vattimo nasceu em Turim no dia 4 uma especialização das esferas da existência,
de janeiro de 1936. Laureou-se na Univer­ e é óbvio que se imponham “ lógicas especí­
sidade de Turim em 1959. Sucessivamente, ficas nos vários setores da vida” ; os meios
estudou em Heidelberg com Gadamer, do de comunicação nos colocam continuamente
qual traduziu para o italiano Verdade e em contato com culturas diferentes, e todos
método. Estudioso de Nietzsche e Heideg­ nós temos “ uma experiência da multiplicida­
ger, Vattimo atualmente ensina filosofia de que torna sempre mais difícil a redução
teórica na Universidade de Turim. Dirige a de tudo a um único fundamento” ; hoje é
“ Revista de estética” . Entre suas numerosas ilusório voltar às evidências primeiras e
publicações devemos lembrar: Ser, história indiscutíveis, certificadas pela consciência;
e linguagem em Heidegger (1963); Poesia e seguindo Nietzsche, Vattimo afirma que “ a
ontologia (1967); Schleiermacher, filósofo voz da consciência não é mais que a voz do
da interpretação (1968); Introdução a Hei­ rebanho” ; a evidência, em suma, “ não deve
degger (1971); O sujeito e a máscara (1974); ser tomada como sinal da verdade, porque a
As aventuras da diferença (1981); junto evidência é produzida por hábitos, pressões
com Pier Aldo Rovatti organizou o volume sociais, convenções, truques da língua, de
coletivo: O pensamento débil (1983); O algum m odo” . ^ 3 4 1
fim da modernidade (1985); Introdução a
Nietzsche (1986); A sociedade transparente
(1989); Além da interpretação (1995); Acre­ O p ressu p o sto
ditar de crer (1996).
K erm en êu tico
d o p en sam en to débi
X O ' p e n s a m e n t o d é b il"

Existem, portanto, boas razões que


Justamente no Prólogo do volume O devastam as pretensões da filosofia funda-
pensamento débil, Prólogo, que Vattimo cional. Todavia, para além destas razões, o
escreveu junto com Rovatti, lemos que “ o motivo de maior peso que torna impossível
debate filosófico tem hoje ao menos um pon­ a filosofia fundacional é justamente dado
to de convergência: não há uma fundação pela hermenêutica, isto é, pela teoria que se
única, última, normativa” . E isso eqüivale refere ã relação entre linguagem e ser. N ão
a dizer que o pensamento se encontra “ no somos capazes de um acesso pré-categorial
fim de sua aventura metafísica” . Vattimo, ou transcategorial para o ser; existir signi­
em suma, insiste no fato de que doravante fica estar em relação com um mundo; e esta
não é mais possível propor uma filosofia que relação torna-se possível pelo fato de que se
pretenda certezas e fundamenta inconcussa dispõe de uma linguagem.
para as teorias sobre o homem, sobre Deus, E aqui — afirma Vattimo — é preciso
sobre a história, sobre os valores. N ão é mais insistir, com a hermenêutica, sobre a “ radical
possível propor uma filosofia fundacional; historicidade da linguagem” . Desse modo
a crise dos fundamentos doravante se des­ vemos que “ as coisas vêm ao ser apenas
locou dentro da própria idéia de verdade: dentro de horizontes lingüísticos, os quais
as evidências claras e distintas se ofuscaram. não são a priori eternos, estruturas da razão,
N o ensaio Dialética, diferença e pen­ mas acontecimentos historicamente qualifi­
samento débil (no volume O pensamento cados” . Categorias, conceitos, teorias (isto
débil) Vattimo escreve que “ a filosofia, em é: linguagem) não são estruturas eternas, fi­
seu núcleo mais autêntico, de Aristóteles até xadas a priori para sempre; constituem mais
Kant, é saber da fundação, saber primeiro” . horizontes lingüísticos “ epocalmente quali­
A filosofia, com Aristóteles, pretendia co­ ficados” , nem estáveis nem eternos, dentro
nhecer o estrato primeiro do ser; e com Kant, dos quais o homem, que neles é lançado,
os modos universais e fixos do conhecer. Pois lê e interpreta o ser e se relaciona com ele.
bem, depois de Nietzsche e Heidegger se M as, tratando-se de a priori temporalizados,
desvaneceu — afirma Vattimo — a idéia da ou seja, não eternos, é claro que desaparece
filosofia como saber fundacional. As razões toda pretensão à posse de um discurso ou
Terceira parte - P e n o m e n o lo g ia , E x is t e n c i a li s m o , 'H e r m e n ê u t ic a

teoria eterna e absoluta sobre Deus (ou sobre der que o ser se dá “ como transmissão de
sua não existência), sobre o homem, sobre aberturas de vez em quando diferentes,
o sentido da história ou sobre o destino da assim como são diferentes as gerações dos
humanidade. A aventura do pensamento homens” . E “ também e em primeiro lugar a
metafísico chegou a seu fim. consciência da multiplicidade das perspecti­
vas, dos universos culturais, dos a priori que
tornam possível a experiência é herança” .
4 O q u e sig n ific a "p e n s a r"; Os pilares do pensamento débil são, de
um lado, a idéia que o homem lê o mundo
o q u e s i g n i f i c a "s e .r" de dentro de horizontes lingüísticos que
tornam a evidência relativa a tais horizontes
ou aparatos categóricos, e, do outro, a idéia
O homem “ encontra-se desde sempre segundo a qual tais aparatos categóricos não
lançado em um projeto, em uma língua, em são fixos, mas históricos. Pois bem, à luz
uma cultura que herda” . O homem abre-se destes pressupostos se dissolvem: os funda­
ao mundo por meio da linguagem que fala; mentos certos, a idéia de um conhecimento
remontar a estas “ aberturas lingüísticas” total do mundo, a de um sentido unitário
que permitem a “ visão do mundo” significa da história, a idéia de uma verdade certa da
pensar; mas significa também compreen­ qual seriamos capazes. O pensamento débil

Gianm Vattimo,
um dos pensadores italianos
mais conhecidos pela ressonância de
suas propostas,
é o filósofo do “pensamento débil”
e da “pós-modernidade”.
C ã p l t u l o d é c if H O q u ã Y t O - D e s e n v o lv im e n t o s r e c e n t e s d a t e o r i a d a h e r m e n ê u t ic a

é “ o fim da estrutura estável do ser, portanto, histórias, os diversos níveis e modos de


também de toda possibilidade de enunciar reconstrução do passado na consciência
que Deus existe ou não existe” . O grito de e no imaginário coletivo, é difícil ver até
Nietzsche “ Deus está morto” deve ser assim que ponto a dissolução da história como
entendido, segundo Vattimo: entendido não disseminação das “ histórias” não é também
no sentido da enunciação m etafísica da um verdadeiro e próprio fim da história
não-existência de Deus, mas muito mais no como tal; da historiografia como imagem
sentido do fim de um discurso metafísico ainda que variada de um curso de eventos
que pretende dar-nos verdades últimas e unitários, o qual também, tirada a unidade
definitivas (também o ateísmo, e não só o do discurso que disso falava, perde toda
teísmo, é metafísico). consistência reconhecível” .

5 A A odem o e p ó s-m o d em o .M e ta m o r fo s e s d a id é ia
d e ra c io n a lid a d e

O pensamento débil é o fim da mo­


dernidade, daquele período que vai de As considerações precedentes levam
Descartes a Nietzsche e que é dominado a concluir que: com o pensamento débil
“ pela idéia da história do pensamento como muda a imagem da racionalidade: “ A ra­
progressiva ‘iluminação’ que se desenvolve cionalidade deve, em seu próprio interior,
com base na sempre mais plena apropriação se despotencializar, ceder terreno, não ter
e reapropriação dos ‘fundamentos’; estes medo de retroceder para a suposta zona de
são pensados também como as ‘origens’, som bra, não permanecer paralisada pela
de modo que as revoluções, teóricas e prá­ perda da referência luminosa, única e está­
ticas, da história ocidental se apresentam vel, cartesiana” . Sem dúvida, começa-se com
e se legitimam no m ais das vezes como uma perda ou, melhor, com uma renúncia:
‘recuperações’, renascimentos, retornos” . A renúncia a fundamentos certos e destinos
modernidade, em poucas palavras, secula- últimos. M as não se tarda a perceber que
riza a noção cristã de história da salvação, tal renúncia é “ também o afastamento de
e vê a história como progresso guiado por uma obrigação, a remoção de um obstácu­
leis de superação. Todavia, se para a mo­ lo” . Assim, no mundo do passado o pensa­
dernidade a história é progresso, processo mento débil aproxima-se do filtro teórico
de contínua superação, então o pensamento da pietas, que permite a uma inimaginável
débil é o pós-moderno, o “ fim da história” . quantidade de mensagens serem ouvidas
O desaparecimento das certezas fundacio- “ por um ouvido que se tornou disponível” ;
nais sobre a natureza humana ou sobre as no presente o pensamento débil dá atenção
leis que guiariam toda a história humana, aos setores da experiência humana que um
uma prática historiográfica mais consciente, “ olhar totalizante” deve, ao contrário, ex­
a multiplicidade de diferentes “ centros” de cluir ou até pisar em cima; em direção ao
história capazes cada um de visões unitárias futuro pode-se hipotetizar que a contenção
da história, dissolveram a idéia de uma do pensamento forte signifique também a
história como processo unitário e progresso contenção da violência e um pressuposto
universal e inelutável. para a construção de um espaço sempre
Em O fim da modernidade Vattimo mais aberto às iniciativas, à liberdade, à
escreve: “ Se [...] não há uma história unitá­ tolerância, a interferências com as culturas
ria, fundamental, e existem apenas diversas “ diferentes” .
284
___ Terceira parte - P e n o m e n o lo g ia y E x is t e n c ia lis m o / H e r m e n ê u t ic a

nentes de sua determinação originária, ou seja,


determinação à qual a obra deve corresponder,
B e tti do ponto de vista do autor (poder-se-ia dizer:
do demiurgo) e pela sua intenção formativa
no ato de sua gênese: e, portanto, não tanto
segundo sua idoneidade para servir o este ou
D Odevesentido de um texto
ser tirado
aquele objetivo extrínseco, que possa parecer
mais óbvio para o intérprete.
€. Betti,
R hermenêutica como método geral
do próprio texto das ciências do espírito.

Sensus non est inferendus, sed effe-


rendus: isto quer dizer que o signiFicado ou
sentido de um texto não deve se r introduzido
subrepticiamente nele, mas deve se r dele
escrupulosamente tirado. R ic o e u r
Betti está atento em respeitar o sentido
d e que o texto ê portador, evitando enFatizar
a pobreza de preconceitos do intérprete.
2 A escola da suspeita:
Dos critérios e dos cânones a seguir, que Marx, Nietzsche e Freud
poderemos chamar de cânones hermenêuticos,
alguns se referem ao objeto, e outros mais ao
sujeito da interpretação. Marx, Nietzsche e Freud são três pensa­
Quanto aos cânones relativos ao objeto, dores aos quais é comum a decisão de consi­
um primeiro cânone fundamental é imediata­ derara consciência como "Falsa consciência".
mente evidente. Com efeito, se as formas repre­ Para Descartes podem os duvidar das coisos,
sentativas, objeto da interpretação, são por sua mas não da consciência. Marx, Nietzsche e
natureza objetivações de uma espiritualidade e Freud levam a dúvida "no próprio coração da
especificamente manifestações de um pensa­ Fortaleza cartesiana".
mento, é evidente que devem ser entendidas se­
gundo o outro espírito que nelas se objetivou, e
não tanto segundo um espírito e um pensamento fl ©scola da susp©ita: ela é dominada por
diversos, e menos ainda segundo um significa­ três mestres que à primeira vista se excluem mu­
do que pode ser atribuído à forma nua, se ao tuamente: Macc, Nietzsche e freud. é mais fácil
considerá-la se fizesse abstração da função re­ mostrar sua comum oposição a uma fenomeno­
presentativa à qual ela serve em relação àquele logia do sagrado, entendida como propedêutica
determinado espírito e àquele pensamento. à "revelação'' do sentido, do que sua articulação
Cm uma época não muito distante da dentro de um único método de desmistificação.
nossa, os teóricos da hermenêutica formularam C relativamente fácil constatar não só que
incisivamente o seguinte cânone da mens dicen- 0st0s três empreendimentos têm em comum a
tis: Sensus non est inFerendus, s e d eíferendus, contestação do primado do "objeto" em nossa
ou seja, o significado de que se trata não deve representação do sagrado, mas também o
indevida e subrepticiamente ser introduzido na "preenchimento" do alvo intencional do s a ­
forma representativa, mas deve, ao contrário, grado por meio de uma espécie de onologia
ser tirado dela. entis que nos inseriria no ser em virtude de
Cu proporia chamar este primeiro cânone uma intenção assimiladora. Também é fácil
de cânone da autonomia hermenêutica do reconhecer qu© se trata de um exercício da
objeto, ou cânone da imanência do critério suspeita que para cada caso particular é di­
hermenêutico. ferente. Sob a fórmula negativa, "a verdade
Com isso queremos dizer que as formas como m0ntira", poder-se-ia colocar estes três
representativas devem ser entendidas em sua exercícios da suspeita. Mas o sentido positivo
autonomia, à maneira da própria lei de forma­ destes empreendimentos ainda estamos longe
ção, no contexto a que tendem, segundo uma de tê-lo assimilado, estamos ainda demasiado
sua necessidade interior, coerência 0 racionali­ atentos às suas diferenças e às limitações que
dade: d0V0m, portanto, ser avaliadas como ima- os preconceitos de seu tempo fazem com que
, , . . . . 285
Cãpítulo decitTlO C jllã Y tO - D esenvolvim entos recentes da teoria d a hermenêutica .. ....

seus sucessores sofram ainda mais do qu© os dogmatizando sobre o prospectivismo da


próprios 0mpr00ndim0ntos. Rinda S0 relega vontade de poder, Freud mitologizar com sua
Marx ao economicismo 0 à t0oria absurda da “censura", seu "vigilante" e seus "travestimen-
consciência-reflexo; remete-se Nietzsche a um tos": o essencial não está nessas dificuldades e
biologismo 0 a um prospectivismo incapaz d0 aporias. O essencial é que todos os três criam,
enunciara si próprio S0m se contradiz0r; 0 Fr0ud do modo que lhes é possível, isto é, com e
0 S0 gr0 gado à psiquiatria 0 50 lhe impinge um contra os preconceitos do tempo, uma ciência
pan-s0xualismo simplista. mediata do sentido, irredutível à consciência
50 remontarmos à sua intenção comum, imediata do sentido.
encontramos nela a decisão de considerar em O que todos os três tentaram, seguindo
primeiro lugar a consciência em seu conjunto caminhos diferentes, foi de fazer coincidir seus
como consciência “falsa". Com isso eles reto­ métodos "conscientes" de decifroçõo com 0
mam, cada um em registro div0rso, o problema trabalho "inconsciente" de colocação em cifra
da dúvida cartesiana, mas o tevam ao próprio que eles atribuíam à vontade de poder, ao ser
coração da fortateza cart0siana. O filósofo edu­ social, ao psiquismo inconsciente.
cado na escola de Descartes sabe que as coisas O que distingue, portanto, Marx, Freud e
são dúbias, que não são como aparecem; mas Nietzsche é a hipótese geral que se refere ao
não duvida de que a consciência não seja a s­ mesmo tempo ao processo da "falsa" consciên­
sim como aparece o si própria; nela, sentido e cia e ao método de decifração. As duas coisas
consciência do sentido coincidem; disso, depois caminham juntas, enquanto o homem que sus­
de Marx, Nietzsche e Freud, nós duvidamos. peita realiza em sentido inverso o trabalho de
Depois da dúvida sobre a coisa, é a vez para falsificação do homem que usa de astúcia.
nós da dúvida sobre a consciência. Freud penetrou no problema da falsa
Todavia, estes três mestres da suspeita consciência por meio do duplo átrio do sonho e
não são igualmente mestres de ceticismo; indu­ do sintoma neurótico; sua hipótese de trabalho
bitavelmente são três grandes "destruidores"; implica os mesmos limites do ângulo de ataque:
e, no entanto, também esse fato não nos deve tratar-se-á, como diremos mais amplamente a
enganar; a destruição, afirma Heidegger em Ser seguir, de uma economia dos instintos.
e tempo, é um momento de toda fundamen­ Marx enfrenta o problema das ideologias
tação nova, compreendendo a destruição da nos limites da alienação econômica, desta vez
religião, à medida que ela é, segundo Nietzs­ no sentido da economia política.
che, um "platonismo" para o povo". € além da Nietzsche, cujo interess© bas0ia-se no
"destruição" que se põe o problema de saber problema do “valor" - da valoração e da trans-
aquilo que ainda significam pensamento, razão valoração -, procura no aspecto da "força" 0 da
e até mesmo fé. "fraquoza" da vontad© de poder a chave das
Ora, todos os três liberam o horizonte para m0ntiras e das máscaras.
uma palavra mais autêntica, para um novo reino No fundo, a G en ea log ia da moral no
da verdade, não só pelo trâmite de uma crítica sentido d0 Nietzsche, a teoria das ideologias
"destrutiva", mas mediante a invenção de uma no sentido de Marx, a teoria dos ideais e
arte de interpretar. Descartes triunfa da dúvida das ilusões no sentido de Freud, representam
sobre a coisa com a evidência da consciência; procedimentos igualmente convergentes da
da dúvida sobre a consciência eles triunfam por desmistificação.
meio de uma exegese do sentido. Talvez ainda não seja esta a coisa mais
fl partir deles, a compreensão é uma forte que têm em comum; seu parentesco
hermenêutica; procurar o sentido não consiste subterrâneo vem de mais longe; todos os três
mais doravante em realizar a consciência do começam com a suspeita sobre as ilusões da
sentido, mas na decifroçõo das expressões. O consciência e continuam com a astúcia da deci­
confronto seria, portanto, feito não só entre uma fração, e, por fim, em vez de serem detratores
tríplice suspeita, mas entre uma tríplice astúcia. da “consciência", visam à sua extensão.
Se a consciência não é aquilo que ela crê ser, Aquilo que Marx deseja é libertar a práxis
entre o patente e o latente deve ser instituída por meio do conhecimento da necessidade; mas
nova relação, que corresponderia àquilo que tal libertação é inseparável de uma "tomada
a consciência instituíra entre a aparência e a de consciência" que replique vitoriosamente às
realidade da coisa, fl categoria fundamental mistificações da falsa consciência.
da consciência, para todos os três, é a relação O que Nietzsche deseja é o aumento do
oculto/mostrado ou, caso se prefira, dissimula­ pod er do homem, a restauração de sua Força-,
do/manifesto. Os marxistas podem se obstinar mas aquilo que quer dizer "vontade de poder"
na teoria do reflexo, Nietzsche se contradizer deve ser recuperado pela meditação das "cifras"
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia , E x is te n c ia lis m o , H e r m e n ê u tic a

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do "super-homem", do "eterno retorno" e de
"Dioniso", sem o que tal potência seria apenas mascarado". "O transcendente entrega-se de
a violência de agora. bom grado mais ao símbolo, que respeita sua
Rquilo que Freud deseja é que o ana­ inviolável reserva e invencível esquivonça, do
lisando, apropriando-se do sentido que lhe que ao conceito, com sua indiscreta vontade
era estranho, alargue seu próprio campo de de explicitação".
consciência, viva em melhores condições e seja
finalmente um pouco mais livre e, se possível,
um pouco mais feliz. Um dos primeiros reco­
nhecimentos prestados à psicanálise fala de O problema da experiência religiosa não
"cura por obra da consciência". R expressão é é o problema metafísico de Deus, como ao
exata. Com a condição de dizer que a análise invés supõe quem ainda se pergunta se Deus
pretende substituir a uma consciência imediata dov© ou não ser concebido como substância ou
e dissimuladora uma consciência mediata 0 causa ou qualquer outra coisa. Cste é, no caso,
instruída pelo princípio da realidade. Rssim, o "Deus dos filósofos", no qual poderá se inte­
justamente aquele que duvida, que representa ressar - ou, ao menos, ter-se interessado - a
o €u como um "infeliz" submisso a três senhores, filosofia, mas que não se refere, som dúvida,
o Id, o superego e a realidade ou n0 C0 ssidad 0 , à religião. O Deus da religião é outra coisa: é
0 também o exegeta qu© encontra a lógica do o Deus d e Rbraão, de Isaac e de Jacó, o Deus
reino do ilógico e que, com um pudor e uma dis­ vivo e vivificante, é um Deus a quem se trata
crição incomparáveis, tem a audácia de concluir de 'tu' e a quem se ora, um Deus ao qual so
seu ensaio sobre O Futuro de uma ilusão com a diz com trepidação miserere mei e com deses­
invocação do deus Logos, de voz débil mas in­ pero ne siieas, ao qual nos voltamos pedindo
cansável, do deus sem dúvida não onipresente, angustiados quare me repulistí? € suplicando
mas eficaz apenas com o tempo. com temor e tremor ne avertas Faciem tuam a
£sta última r0f0rência ao princípio da reo- me, ao qual na hora suprema nos entregamos,
lidad© 0 aos 0quival0nt0s em Nietzsche 0 Morx exclamando: in manus tuas commendo spiritum
- compreendendo nisso a necessidade, eterno meum e implorando in te, Domine, speravi: non
retorno no outro - esclarece o b0n0fício positivo conFundar in aeternum.
da OSC0S0 requerida por uma interpretação re- Pergunto-me, de resto, quem em concreto
dutora e destrutiva: o confronto com a realidade tenha hoje interesse em um Deus puramente
nua, a disciplina de Fnanke, da n0C0ssidad0. filosófico: em um Deus que se reduza a mero
. No próprio momento em que nossos três princípio metafísico, ou que, como realidade
mestres da suspeita encontram sua convergên- existente, deva de algum modo ser relacio­
cio positiva, 0I0S of0rec0m à f0nom0nologio do nado com o ser. R própria filosofia, creio, não
sagrado 0 a toda h0rm0nêutica, como medita­ pode se encontrar verdadeiramente interes­
ção do S0 ntido e como reminiscência do ser, a sada em uma realidade que, embora decla­
mais radical contraposição. rada suprema, se encontre em certo sentido
P. Ricoeur, subordinada como puramente ôntico, e o um
Do interpretação, Cnsoio sobre Freud. conceito que, embora considerado como a
pedra angular de um sistema racional, pela
sua abstração só possa se apresentar em uma
forma tão desencarnada e inerte. Parece-me
que se surgir algum interesse de levar ao
Deus filosófico, isso ocorre apenas à medida
P areyson que nele ainda vibre e trepide e esteja vigo­
roso algum aspecto do Deus da experiência
religiosa. [...]
Delineia-se então a possibilidade que
na noção de transcendência, de modo nenhum
desconhecida à filosofia, pensamento filosófico
Como falar de Deus e experiência religiosa tenham de se encontrar.
Ç, com efeito, pois o Deus autêntico da expe­
Qual é a linguagem mais adequada para riência religiosa não se alcança por conceitos
Falar de Deus? fí pretensão de Falar de Deus estritamente filosóficos de Deus, embora tão
com os conceitos metafísicos (Princípio, Cau­ interessantes para uma compreensão filosó­
sa, Razão etc.) é antropomorFismo "oculto e fica da realidade e da própria filosofia, pode
nascer o projeto de procurá-lo e a perspectiva
287
Cãpítulo decitno quarto - D e s e n v o lv im e n to s r e c e n te s d a te o r ia d a K erm en êu tica

de encontro-Io em umo zono mais profundo e mas é preciso r©conh©c©r que justamente sua
originário do pensamento; lá onde nenhumo imediata e aparente inadequação a destina a
perplexidade ou hesitação pode nascer diante um emprego tão ©vid©nt©mente emblemático e
da idéia de que para o Deus da experiência lhe confere um porte tão claram©nt© simbólico,
religiosa, muito mois que os conceitos espe­ d© modo a torná-la não só apta para tal ob­
cificamente filosóficos, pareçam adequados e jetivo, mas até a única apta, enquanto idônea
significativos os símbolos da poesia e as figuras a dizer coisas qu© não se podem dizer o não
antropomórficas do mito, tais como se encon­ ser daquele modo, e a representar coisas que
tram, por exemplo, nas teofanias sensíveis do não se podem representar de outra forma.
ê x o d o © dos S olm os, nos relatos do G ê n e s is Para captar o significado das fantasiosas 0
e dos livros apocalípticos, nas grandiosos e coloridas expressões não é de fato necessário
flamejantes visões dos profetas. submetê-las a um processo de demitização,
flssim pode-se dizer que imediatamente que, no ato de empobr©c©r a imagística © de
eloqüente para a experiência religiosa é o apagar seu brilho, apenas a destituiria não só
Deus que para comparecer prefere as nuvens de todo sentido, mas também de toda eficácia
0 as chamas, mostrando-se de dia como uma reveladora. Cias se encontram em tão pequeno
coluna de nuvem e de noite como uma coluna contraste com a transcendência divina, que
de fogo; que se manifesto a Moisés na sarça s© subtraem a toda demitização justamsnt©
ardente, in fío m m o ig n is d e m e d io rub i, e que, porque são as mais aptas a revelá-la; a ponto
t0ndo-o chamado do m0io de uma nuvem, d e de que quem as considera demasiado rústicas
m e d io c a lig in is , lhe aparece como um fogo de- para representar a divindade, arrisca ao invés
vorodor sobre o cimo do monte, no majestoso dar prova da rustícidad© d© seus próprios
cenário da montanha qu© ard© entre os chamas pensamentos.
até o céu escurecido por nuvens tenebrosas. De resto, não se vê com qual tipo de
Ou o Deus da grandiosa teofania do Salmo linguagem a demitização poderia substituir
1 8 , que aparece com os narinas fumegantes ©ssa linguagem imaginosa, que é eloqüen­
e a boca lançando línguas de fogo e carvões te justamente por ser mítica e simbólico, fl
ardentes, no ato de inclinar os céus para d es­ expressão que pretenda se despojar o mais
cer sobre as nuvens escuras, de cavalgar um possível desse caráter poético e antropomór-
querubim para voor sobre as asas do vento, fico, e que pretenda conseguir desse modo
de envolver-se com águas espessas 0 densa captar a divindade e tornar patente sua na­
nuv0m como de um manto d0 escuridão, d© tureza, arrisca-se a ser justamente a menos
fender o granizo fazendo, relampejar seu ful­ reveladora, porque em sua abstração não
gor, de orrastar todas as coisas com o brilho chega a penetrar a dialético por meio da qual
de seus raios e o fragor de seus trovões, de Deus, em sua inexorável e inacessível trans­
descobrir com o turbilhão qu© irromp© d© suas cendência, se esconde, e, escondendo-se, se
narinas o leito do oceano e os fundamentos revela, nem se revela a não ser ©scondendo-
do mundo. Ou o Deus que oge no terremoto, se, a ponto que de toda manifestação sua se
fazendo tremer a terra e abalar o solo, fundir deve dizer que ela vela no ato que desvela 0
como cera as montanhas ©saltar o líbano como vice-versa, e não se pode dizer que descubra
um vitelo. Ou o Deus que, para s© manifestar, mais do que sele, nem que oculte mais do que
prefere d© vez ©m quando o ímpeto do ciclone tudo o que não mostre. 6 absurdo crer que
ou a leveza da brisa: ora se revela no furacão, a abstração aumente a adequação: dada a
entre o ribombar dos trovões © o fulgor dos inatingibilidade do "referente”, ©ntre os dois
raios, no meio d© montes fumegantes, tendo termos só pode existir uma proporção inversa,
como voz para falar o trovão, e como trombeta fl linguagem abstrata e conceituai torna-s©
para anunciá-lo o vento; ou então, fazendo-s© ©xposto ao perigo da objetivoção, e, a menos
preceder pela violência da tempestade e pela que seja submetida a uma sutil e perspícua
fúria do terremoto, passa depois como um radiografia que refira em função a originária
sopro de leve brisa, s ib ilu s a u ra e te n u is . Ou natureza simbólica e a latente vocação de cifra,
ainda o Deus que t©m o céu como trono e a arrisca sempre ser objstivante, e de prender
terra como escobelo, e que esconde a visão a não-objetivável na estreita medida de uma
do trono em que se assenta estendendo sobre metafísica ôntica; ao passo que à elasticidade
ele uma nuvem. [...] do símbolo compete a capacidade de proje­
Pelo seu caráter imaginoso 0 sensív©l tar, em sua inseparabilidade, transcendência
©ssa linguag©m pode parecer totalmente ina­ e presença, ulterioridade e disponibilidade,
dequada para representar uma realidade tão ocultamento e revelação: o não-objetivável
transcendente e inatingível como a divindade, como g e h e im n is v o ll ofF enbar.
288
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia , E x is te n c ia lis m o , -H erm en ê u tica

fl soberba pretensão de atingir a divinda­ garantir e fornecer. O transcendente entrega-se


de com puros conceitos é contraproducente, e de bom grado mais ao símbolo, que respeita
distancia e rejeita aquilo que se queria captar e sua inviolável reserva e invencível esquivança,
penetrar, enquanto a tal fim consegue ser muito do que ao conceito, com sua indiscreta vontade
mais eficaz o fascinante encanto da imagem e de explicitação. [...]
muito mais captadora a delicada elegância do A linguagem conceitual, que visa à
símbolo. Sem dúvida, em relação à precisão explicitação completa, é ao contrário por si
e ao rigor do conceito e à fadiga que acom­ mesma uma violação da inefabilidade do
panha seu órduo caminho o símbolo só pode transcendente: sua palavra é a interrupção do
contrapor seu modesto aspecto sensível e a silêncio, a dissipação do mistério. €m relação
espontaneidade de seu nascimento poético; ao não-objetivável, ela não conhece outra
mas onde a indeterminação do objeto deve- alternativa para si mesma do que a cessação
se não à nebulosidade de uma idéia vaga e do discurso, ou seja, o misticismo: a inevitabi­
indistinta, mas à sua essencial e irredutível lidade sem descanso do silêncio, o abandono
ulterioridade, então a simples humildade do total ao mistério. Mas o simbolismo evita estas
símbolo encontra sua compensação à custa da duas saídas e supera sua alternativa: ele se
indébita e estéril hybris da razão, tornando-se subtrai à explicitação completa, sem por isso
por este caminho pronta para resgatar suo passar para a celebração do silêncio. Simbo­
completa remuneração. [...] lismo não é misticismo: o silêncio o preserva no
Não pretendo com isso descurar a pro­ próprio ato que profere a paiavra, porque sua
blemática da analogia, que percorreu toda palavra não é nem explícita nem muda, mas
a história da filosofia com os mais fecundos aberta, radiante, sugestiva; a inefabilidade
resultados nos diversos campos da metafísica, do transcendente a conserva no ato em que
da ontologia, da gnosiologia e da epistemo- paradoxalmente a transforma em falibilidades
logio, e que assim frutuosamente ainda hoje infinitas. O simbolismo sabe muito bem que
está presente no debate filosófico atual, tanto dizer Deus é possível ap en as deixando-o
mais que é em seu campo que entra o próprio não dito, e neste sentido ele é um contínuo e
conceito de símbolo tal como estou defenden­ infinito comentário à impenetrabilidade divina.
do. Aquilo que pretendo dizer é que também Cie revela e manifesta a coisa indizível, e ao
os aperfeiçoadíssimos instrumentos conceituais mesmo tempo revela e exprime o silêncio
elaborados pelo filosofia para fornecer uma que a acompanha, é assim que o simbolismo
norma para os procedimentos analógicos, por foge das conclusões da teologia negativa, e
exemplo, o método da afirmação-negação- o faz de modo bastante mais livre e eficaz do
eminência, dificilmente conseguem dominar e que o método analógico que se costuma usar
ordenar a riqueza da linguagem simplesmente para tal fim. Da teologia negativa ele é ao
poética e misteriosamente antropomórfica, que mesmo tempo reconhecimento e retificação,
com o símbolo e com o mito tem tanto lugar na enquanto conserva sua exigência no próprio
experiência religiosa. [...] ato que evita sua conseqüência: o mistério e
A transcendência divina tem uma pro­ o silêncio são respeitados, ou melhor, guar­
fundidade insondável, que torna inexauríveis, dados, mas dentro do próprio interior do ato
os abismos em que ela se esconde, e uma revelador. [...]
radical indizibilidade, que a isola em .cimos de Se pensarmos que a representação pu­
impenetrável e inaudito silêncio. Como se pode ramente conceitual da divindade nasceu com a
pensar que esta enexauribilidade e este silên­ exigência de superar a "fase" do antropomor-
cio possam ser de algum modo representados fismo e de "purificar" o pensamento filosófico
pelo conceito, que pela sua explicitação e pre­ de todo resíduo antropomórfico, não podemos
cisão é unidimensional, privado de espessura, deixar de ser atingidos pelo escasso sucesso
achatado sobre si mesmo? O próprio ato da do empreendimento, uma vez que o resultado
definição, com sua tendência à explicitação se encontra em contraste com as intenções
completa e à exata determinação, consuma primitivas. Conceber Deus em termos concei­
toda inexauribilidade e dissipa todo silêncio; e, tuais significa defini-lo em base a categorias
em virtude desta amputação substancial, tudo elaboradas pelo mente humana e atribuir-lhe
o que foi dito se resolve em uma objetivação propriedades que direta ou indiretamente sõo
exangue e deformante. Uma representação que inerentes ao homem, ainda que extremamente
queira guardar tal inexauribilidade e preservar refinadas e abstratas, e ainda que pensadas
tal silêncio deve conter em si própria uma mar­ em sentido eminente e elevadas ao ápice. Cm
gem, uma espessura, um espaço, como apenas tal sentido, conceber Deus como Ser, Princípio,
o simbolismo com sua dialética interna pode Causa, Pensamento, Razão, Valor, Pessoa,
, . . 28y
Cãpítulo décimo quarto - D esenvolvim entos recentes d a teoria d a kermenêutica

Bondade, Providência, e assim por diante, 0


todavia sempre um katánthropon legein, qu©
confere a tais conc0pçõ0s da divindade um ca-
V a t t im o
rát0r substancialmente antropomórfico, m0smo
qu0 larvar.
R fonte da qual o hom0m pode tirar
uma idéia de razão 0 de racionalidade, ou
de pessoa e de personalidade, é sua própria í l O "pensamento débil"
experiência interna, 0 em geral os conceitos como pensamento
filosóficos são pensados pela mente humana antífundacional
ex analogia hominis. Segue-se daí qu© d©finir
Filosoficamente Dsus como Razão ou Pessoa,
ou atribuir-lhe conceitualmenteo racionalidade O "pensamento débil" significa que "foi
ou a personalidade, ou em geral designá-lo consumada a concepção fundacional da
com um conceito filosófico ou pensá-lo com filosofia". Foram dissolvidos fundamentos
categorias filosóficas é, na realidade, muito últimos, princípios irrefutáveis, idéias claras
mais antropomórfico do que fazer de Deus uma e distintas, valores absolutos, evidências
representação claramente simbólica, talvez originárias e leis inelutáveis da história.
em forma vistosamente humana; pois os con­
ceitos e as categorias, embora se mostrando
como puramente racionais e completamente O que des0jo diz©r é que o destino da
desumanizados, não conseguem dissimular filosofia militante hoje e o destino público da
inteiramente, como gostariam, sua origem ana­ filosofia parecem-me estreitamente unidos. C
lógica, e em todo caso terminam por encerrar este é o motivo pelo qual, contra as atitudes
o não-objetivável no sistema das categorias que respeito, mas que não partilho, de outros
do pensamento humono de modo redutivo e colegas acadêmicos meus, filósofos, estou mui­
objetivante, enquanto a forma humana em seu to desejoso, disponível, interessado no contato
simbolismo é configurada justamente para ofe­ com um público não especializado, sem seguir
recer ao não-objetivável uma sede apropriada os parâmetros de uma conversação técnica.
para sua ulterioridade. O antropomorfismo [...] € isso é coerentemente possível apenas
conceituai resulta, portanto, tão mais antro­ se pensarmos em uma filosofia de algum modo
pomórfico do que o antropomorfismo simbólico militante que hoje - e este é o ponto do discurso
quanto mais este é expresso 0 professado, e sobre a secularização - nõo se pode pensar a
aquele inconfessado e oculto. não ser como discurso público, dirigido aos não
Cstas considerações abrem caminho para filósofos, como discurso que defino também,
a distinção de dois gêneros de antropomorfis­ polemicam0nt0, de odificação.
mo: o conceituai, oculto e calado, governado R filosofia militant© é ainda possív©! ©
pelo princípio da explicitação objetivante, e o d©v©, a msu v©r, d0s©nvolv0r-s0 na forma de
simbólico, consciente 0 declarado, dominado um discurso que não se dirige exclusivamente
pela solicitude da inexauribilidade. €m relação aos técnicos da filosofia. [...]
à divindade e em relação ao próprio coração R filosofia, em sou núcleo mais autêntico,
da realidade é bastante mais eloqüente, ex­ desde Aristóteles até Kant, é saber da fun­
pressivo 0 sugestivo o antropomorfismo mani­ dação, saber primeiro. Cm Rristóteles este se
festo, expresso pelo símbolo e pelo mito, do desenvolvia como individuação de um estrato
que o antropomorfismo oculto, encerrado nas do ser mais fundamental que todos os outros
concepções puramente conceituais e filosóficas estratos, para além do movimento, da figura, da
de Deus. Pode-se falar a respeito de um antro­ quantidade (objeto da matemática, da física),
pomorfismo simples e genuíno, qu© é o aberto dos quais é o suporte.
0 reconh0cido do símbolo 0 do mito, 0 de um C o ser enquanto tal. R filosofia é, por­
antropomorfismo d0t0riorado 0 ©xtraviado, tanto, o saber da substância, isto é, o saber
quo é o latente e oculto em certas doutrinas primeiro em relação o todos os outros.
filosóficas da divindade: apenas o primeiro, Csta noção de saber primeiro se manteve,
potente e declarado, é revelador, enquanto o ao menos fundamentalmente, até Kant. Para
segundo, oculto e mascarado é, na realidade, este, naturalmente, não se trata mais para o
falaz e mistificador. filósofo de conhecer um estrato do ser objeti­
vamente prioritário em relação aos outros. O
L. Pareyson, númeno em Kant é aquilo que se pode apenas
Filosofia 0 experiência religiosa. pensar, não experimentar. Continua, porém,
Terceira pcirtc - T -e n om e n o lo gia , E x is te n c ia lis m o , ■H erm enêutica

um saber fundamental porque é o saber do específicas nos vários setores do vida. Não só:
saber, uma espécie de consciência reflexa ao lado da articulação racional especialista da
das condições de possibilidade dos saberes cultura ocidental, tornam-se acessíveis, graças
sobre os objetos. Como estar ciente de saber, ao desenvolvimento dos meios de comunicação,
no fundo. outras culturas que aparecem também como
é duvidoso que Kant quisesse de fato esferas de existência pouco comensuráveis. No
fundar os saberes. Provavelmente, porém, ti­ início, essas culturas parecem simplesmente "pri­
nha já a exigência, que permanece em nós, de mitivas'', ainda não chegadas ao nosso grau de
filosofia, a exigência de referir de algum modo desenvolvimento. Cssa idéia, a seguir, começa a
os saberes técnicos, especiais, científicos, a vacilar. Aumentando o conhecimento desses po­
uma dominabilidade por porte do indivíduo. R vos se descobre que têm culturas refinadas que
crítica da razão pura não fundava a ciência, mas compreendem ritos religiosos, danças sagradas,
mais se apropriava dela, não paro dominá-la, complexas mitologias e máscaras rituais que
mas para humanizá-la. Cm todo caso, de Aris­ se tornam até fonte de inspiração para nossa
tóteles a Kant, a filosofia mantivera a idéia de arte. Começa a parecer, portonto, improvável e
ser um saber primeiro, um saber fundamental, simplista a idéia de uma única linha de desen­
no sentido objetivo ou no sentido, poderíamos volvimento sobre o qual é possível indicar quem
dizer, epistemológico, crítico, em Kant. Ou pelo está na frente e quem está atrás. Tem-se, ao
fato de conhecer o estrato primeiro do ser em contrário, uma experiência de multiplicidade que
Aristóteles, ou porque conhecia os próprios torna sempre mais difícil a redução de tudo a
modos do conhecer em Kant. um único fundamento. A crise da filosofia como
Depois de Nietzsche, porém, esto fisio­ metafísica, como pensamento da fundação, no
nomia fundacional da filosofia dissolveu-se. O mundo moderno verifica-se justamente por cau­
nome de Nietzsche simboliza, na realidade, um sa destes fenômenos inéditos: a organização
movimento complexo e vasto que disse respeito racional e sempre mais articulada da sociedade,
a grande parte do saber filosófico entre o século com conseqüente divisão do trabalho social; a
XIX e o século XX. Nietzsche, de resto, em mui­ especificação das esferas de existência, a mul­
tas de suas obras apenas expõe questões que tiplicação das linguagens científicas e a sempre
encontramos mais academicamente expostas, mais acentuada especialização. Portanto, se
com maior profissionalidade filosófica, em um há metafísica, não há mais sujeito em grau de
pensador como Dilthey, por exemplo, o qual praticá-la, porque não há ninguém que possa
trabalhou longamente em torno do problema saber tudo. Há outro aspecto da dissolução da
da formação e da dissolução da metafísica na idéia de fundação que é muito importante e que
tradição ocidental. está presente principalmente em Nietzsche, e é
Além de Dilthey, manifestações análogas a idéio da superficialidade da consciência.
do pensamento filosófico podem se encontrar Para que haja uma metafísica fundacional
nas discussões sobre os fundamentos da ciência é preciso que haja de um lado a possibilidade
no início do século XX, na fenomenologia em de agarrar um princípio, e do outro que este
alguma medida, e naturalmente em Heidegger não seja ilusório: é a evidência da consciên­
(que não é apenas um fenomenólogo). cia, a idéia clara e distinta de Descartes, que
Como então falta a imagem da filosofia também para não duvidar tem necessidade de
como saber fundacional, fundante? Podemos pensar em um Deus bom que não nos engane.
provavelmente indicar duas razões. A primeira Para poder pensar o pensamento como funda­
está diante dos olhos de todos: a complexifi- ção é preciso considerar que haja um princípio
cação do mundo do saber torno sempre mais primeiro (de tipo objetivo, como em Aristóteles,
inverossímil a existência de um saber que ou crítico-epistemológico, como em Kant), mas
governe todos os outros saberes de modo igualmente que o ato que o agarra seja também
unitário, fundante. ele primeiro, ou último de algum modo, isto é,
Ao lado da especialização dos saberes se que seja um ato do qual se deve não duvidar.
tem, além disso, a especialização das esferas Ora, a evidência da consciência, segundo
de existência, assim como a descreveu Max Nietzsche, é mais ou menos provocada pela má
UJeber, o sociólogo da modernidade. A organi­ digestão. Nietzsche escreve em algum lugar uma
zação racional da sociedade moderna europeu- frase muito impressiva: "Cnsinaram-me a duvidar
ocidental desenvolve-se por especificação de das idéias que nõo me pareciam claras e distin­
territórios. Um pouco como ocorre na indústria, tas; pois bem, eu vos digo que deveís duvidor
a sociedade se "desenvolve" por meio de uma principalmente das idéias que vos parecem mais
especialização à qual corresponde uma divisão evidentes", porque a voz da consciência não é
das esferas de existência: impõem-se lógicas mais que a voz do rebanho em vós.
Cdpltulo décimo quarto - D e s e n v o lv im e n to s r e c e n te s d a te o r ia d a h e r m e n ê u t i c a

Nõo devemos, portonto, tomar a evidência para afirmar que a filosofia não funda. Simples­
como sinal da verdade, porque a evidência é mente, a filosofia se transformou, tornou-se
produzida por hábitos, pressões sociais, con­ também um pensamento narrativo e nós en­
venções, truques da língua de algum modo. tão contamos histórias. R superficialidade da
Nietzsche chega a escrever que não poderemos consciência, porém, nõo foi teorizada apenas
jamais dispensar Deus até que não modifique­ por Nietzsche, mas também, como se sabe, por
mos a gramática. R teologia, a fé em Deus, Freud e por Marx, embora em formas diferentes.
está escrita na gramática, na própria estrutura Marx na noçõo de ideologia, Freud na noção
do sujeito e do predicado. de consciência como produto de ações de re­
fl dissolução da idéia fundacionol da filo­ moção, como domínio limitado por um domínio
sofia, dissolução que alguns negam, não é de- diferente que é o do inconsciente, que age de
monstrável de modo fundamentado. Seria pre­ algum modo sobre ela. fl consciência: em nossa
tender refutar a metafísica com outra metafísica, cultura não é instância última.
ato supremamente contraditório, fl fraqueza do Tudo isso leva àquilo que pode ser util­
pensamento é também o reconhecimento que mente definido, no início apenas em sentido
sucederam fatos que transformam a essência metafórico, como "secularização da cultura",
de nosso discurso em alguma outra coisa. Cstes fl filosofia perdeu as características "fortes" e
fatos, porém, justamente porque fatos, não são "elevadas", e isso é comparável à secularização
uma forma de legitimação coercitiva como a da vida, à perda do sagrado. [...]
demonstração fundamental. Nietzsche diz: “Deus Se Heidegger existe, é porque existiu a
está morto" e não "Deus não existe", e isso é, o tradição judeu-cristã, se Heidegger pôde pensar
meu ver, fundamental: a profissão de ateísmo é que o ser não existe, mas acontece, é porque
a resposta a uma série de acontecimentos que leu a Bíblia e, notadamente, o Novo Testamento.
me falam e que eu interpreto em certa direção, Quando Nietzsche afirma que Deus está
mas jamais posso demonstrar que há uma estru­ morto, diz também que seus fiéis o mataram. De
tura do ser em que Deus é excluído. Que Deus algum modo, conseqüentemente ao conteúdo
esteja morto quer dizer que eu não tenho o que da revelação religioso - não existe tudo isso em
fazer com uma estrutura do ser sempre igual, Nietzsche, mas é sugerido por ele -, a hipótese
de outra forma Deus existiria, seria justamente de Deus como supremo princípio metafísico se
aquela estrutura. Cm um labirinto mental que torna supérflua.
leva talvez à loucura. Provavelmente é verdade De algum modo, é graças a Deus que
o que sustentam os pregadores, que Nietzsche somos, à m edida que o somos, ateus, é
tenha finalmente enlouquecido. apenas como continuação de uma vocação
Cstes discursos parecem mais problemá­ profundamente escrita na tradição judeu-cristã,
ticos quando apresentados em um esquema que nos foi transmitida junto com as verdades
unitário. Mas basta ler os textos filosóficos do do pensamento grego, que nós pudemos co­
fim do século XIX e dos inícios do século XX para meçar a não pensar mais no ser em termos de
compreender como essas idéias circulam difusa­ princípio, autoridade, fundamento e, portanto,
mente em grande parte da filosofia. Consumou- também as estruturas da existência em termos
se a concepção fundacionol da filosofia, fala-se autoritários, rígidos, é apenas graças à pertença
de crise da razão. Ninguém jamais demonstrou a esta tradição que podemos pensar debilmen­
que não é mais assim, mas, de algum modo, te. No termo “secularização", no uso que dele
sente-se que não é mais assim, acumularam-se se faz neste livro, se condensam, explicam-se
anedotas, historietas, reflexões interiores que um pouco todos estes significados, justamente
levaram a dizer que não é mais assim. [...] com a intenção de abrir seriamente o diálogo
Sem dúvida, o pensamento da seculariza- da filosofia com a religião.
ção, o pensamento que governou Nietzsche e • G. Vattimo,
Heidegger, não tem argumentos tão coercitivos O pensam ento seculorízodo.
BERTRAND RUSSELL,
LUDWIG WITTGENSTEIN
E A FILOSOFIA
DA LINGUAGEM

“A filosofia não pode ser fecunda se estiver sepa­


rada da ciência”.
Bertrand Russell

“[...] ainda que todas as possíveis perguntas da


ciência recebessem uma resposta, os problemas
de nossa vida não seriam sequer tocados”.
Ludwig Wittgenstein

“O que é característico da filosofia é a penetração


na crosta esclerosada que é constituída pela tra­
dição e pela convenção, rompendo os laços que
nos vinculam a heranças precedentes, de modo a
chegar a um modo novo e mais poderoso de ver
as coisas”.
Friedrich Waismann

“Nenhuma conclusão imperativa pode ser valida­


mente deduzida de um conjunto de premissas que
não contenham ao menos um imperativo”.
Richard M. Hare
Capítulo décimo quinto

Bertrand Russell e Alfred North Whitehead___________


Capítulo décimo sexto

Ludwig Wittgenstein: do Tractatus logico-pbilosopbicus


às pesquisas filosóficas_________________________ _ _ _
Capítulo décimo sétimo

A filosofia da linguagem.
O movimento analítico de Cambridge e O xford______
( S a p ít u lo d é c im o q u in t o

Berfrcmd Russell
e yAljVed AJoHK WKitekead

— I. Ser+rand Russell: zz:


d a rejeição do idealismo
à crí+ica d a filosofia analítica

• Bertrand Russell (1872-1970) entra com dezoito anos como estudante no


Trinity College de Cambridge, onde conhece e se torna amigo de Trevelyan, Mc
Taggart, Sidgwick e Moore, e onde a seguir terá como discípulo Ludwig W itt­
genstein.
Foi justamente Moore que, por volta de 1898, libertou Russell da "gaiola"
idealista em que havia caído lendo Hegel e Bradley. Russel recorda: "Ele [Moore]
assumiu a guia da rebelião, e eu o segui com um sentimento de
libertação. Bradley havia sustentado que qualquer coisa em que
0 senso comum crê é mera aparência; nós passamos ao extremo Fu9a
oposto e pensamos que é real toda coisa que o senso comum, do idealismo
não influenciado pela filosofia e pela religião, supõe que seja
real".
Foi assim, portanto, que Russell voltou para a esteira tradicional da filosofia
empirista inglesa, à qual a seguir dará toda uma série de contribuições de primeira
1 in ha: Os problemas da filosofia (1912); A análise da mente (1921); O conhecimento
humano: seu objetivo e seus limites (1948).

• Os princípios da matemática são de 1903, e com eles Russell se propõe


mostrar que toda a matemática procede da lógica simbólica. Com os Principia
mathematica - três volumes escritos com Alfred North Whitehead e aparecidos,
respectivamente, em 1910,1912 e 1913 - ele quer levar a cabo o
programa de construção efetiva da matemática a partir dos con- a matemática
ceitos da lógica. Para Russell, em poucas palavras, "a matemática reduzida
pura é a classe de todas as proposições da forma "p implica q"; a lo9'ca
não existem conceitos típicos da matemática que não possam ser 5
reduzidos a conceitos lógicos (de lógica das classes).

• Contrário ao pragmatismo e aos neopositivistas - Neurath, por exemplo - , os


quais pareciam ter esquecido que o objetivo das palavras é o de ocupar-se de coisas
diferentes das palavras, Russell criticou duramente tanto o "segundo" Wittgenstein
quanto os filósofos de Oxford, uma vez que "discutir ao infinito
sobre aquilo que os idiotas entendem quando dizem idiotices contra
pode ser divertido, mas é muito difícil que seja importante". São os filósofos
duas as acusações que Russell lança contra a filosofia analítica: o analíticos
culto do uso comum da linguagem, e a estéril preocupação pelo -»§ 3-4
uso das palavras.
Quarta parte - R u s s e ll, W i t t g e n s t e i n e a f ilo s o f ia d a lin g u a g e m

Pacifista * Pac'^ sta coerente, intelectual sensível às injustiças sociais, o


corajoso agnóstico Russell criticou os que para ele eram os aspectos obscu-
§5 rantistas da moral cristã. De si próprio disse que havia empenhado
a vida por um mundo em que "o espírito criativo é vivaz, em que
a vida é uma aventura cheia de alegria e de esperança [...]".

influenciou profundamente. Durante alguns


1■.. fo
| r m a v-
ç ã o cultural anos, fui discípulo de Bradley, mas, em torno
e o encontro de 1898, mudei meus pontos de vista, em
grande parte por causa das argumentações
com CÃ. ]\A oore.
de G. E. M oore [...]. Ele assumiu a guia da
rebelião, e eu o segui com a sensação de
libertação. Bradley sustentava que qualquer
B ertran d A rthur W illiam R u sse ll
coisa em que o senso comum crê é mera apa­
nasceu em 18 de m aio de 1872 em Ra-
rência. N ós passamos ao extremo oposto:
venscroft, nas proxim idades de Tintern,
passamos a pensar que é real qualquer coisa
em M on m outhshire. D epois da m orte
que o senso comum, não influenciado pela
precoce de seus genitores, foi acolhido na
filosofia e pela religião, supõe que seja real.
casa de sua avó, “ Lady Jo h n ” , escocesa e
Com a sensação de escapar de uma prisão,
presbiteriana, que defendeu os direitos dos
nos permitimos pensar que a grama é verde,
irlandeses e atacou a política imperialista
que o sol e as estrelas existiriam ainda que
da Grã-Bretanha na África. Russell recebeu
ninguém tivesse consciência de sua existên­
sua educação inicial de preceptores particu­
cia [...]. E foi assim que o mundo, que até
lares agnósticos, aprendeu perfeitamente o
então fora sutil e lógico, de repente tornou-
francês e o alemão e, na biblioteca de seu
se rico, variado e sólido” .
avô, adquiriu gosto pela história e desco­
briu na geometria de Euclides as alegrias
que podem ser dadas pelo rigor e a clareza
da matemática. O atom ism o lógico
A infância de Russell não foi feliz. e o encontro com P e a n o
Aos dezoito anos, porém, ingressou como
aluno no Trinity College de Cambridge.
Cambridge lhe revelou “ um mundo novo” Foi desse modo, portanto, que Rus­
e ofereceu-lhe “ um período de infinita delí­ sell se libertou das cadeias do idealismo e
cia” . Foi lá que estreitou laços de amizade voltou à trilha do tradicional empirismo
com homens como Dickinson, Trevelyan, da filosofia inglesa. E passaria a contribuir
M c Taggart, Sidgwick e Moore. M ais tarde, para essa concepção empírica e realista
sempre no Trinity, teve como discípulo L. da filosofia com toda uma longa série de
Wittgenstein, o inspirador do neopositivis- livros relativos a vitais e difíceis questões de
mo do Círculo de Viena e mestre reconhe­ gnosiologia e epistemologia: Os problemas
cido do movimento analítico-lingüístico da filosofia (1912), N osso conhecimento
hoje conhecido como Cambridge-Oxford- do mundo externo (1914), Misticismo e
Philosophy. Falando do encontro com Witt­ lógica (1918), A análise da mente (1921),
genstein, Russell disse que representou para A análise da matéria (1927) e O conheci­
ele “ uma das aventuras intelectuais mais mento humano: seu objetivo e seus limites
excitantes de minha vida” . Posteriormente, (1948).
Russell e Wittgenstein afastaram -se cada Embora em um desenvolvimento que
vez mais, até romperem completamente a viu mudados alguns de seus pontos de vista,
amizade. Russell sempre sustentou que “ a filosofia
N o Trinity, sob influência de J. M. F. não pode ser fecunda se estiver afastada
M c Taggart, durante breve período, Russell da ciência” . E o Russell da década de 1960
foi hegeliano, de um hegelianismo transmi­ via sua própria concepção do mundo como
tido através de Bradley. M as em 1898, com “ uma concepção resultante da síntese de
a ajuda de M oore, libertou-se do idealismo. quatro ciências diferentes, ou seja, a física,
Escreve ele: “ Em Cambridge, li Kant e He­ a fisiologia, a psicologia e a lógica mate­
gel, bem como a Lógica de Bradley, que me mática” .
Capítulo décimo quinto - B e H - r a n d R u s s e ll e j A l f r e d A W + k W k i+ e k e a d

Russell fixa em 1899-1900 a data fun­ Em 1903 publicou Os princípios da


damental de seu trabalho filosófico: foi nessa matemática, onde se propõe “ a mostrar,
época que ele adotou “ a filosofia do atomis- em primeiro lugar, que toda a matemática
mo lógico e a técnica de Peano na lógica procede da lógica sim bólica, depois de
matemática [...]. A reviravolta desses anos descobrir, tanto quanto possível, quais são
representou uma revolução, ao passo que as os princípios da própria lógica simbólica” .
mudanças posteriores tiveram o caráter de Pois bem, enquanto ilustrava o primeiro
uma evolução” . O atomismo lógico preten­ objetivo com o livro citado, Russell preten­
dia ser uma filosofia emergente da simbiose deu desenvolver o segundo com os Principia
entre um empirismo radical e uma lógica mathematica, três grandes volumes elabora­
perspicaz. A lógica oferece as formas-padrão dos em colaboração com A. N. Whitehead,
do raciocínio correto e o empirismo oferece publicados respectivamente em 1910,1912
premissas, que são proposições atômicas ou e 1913.
proposições complexas, construídas a partir Como as concepções lógicas de Russell
das primeiras. A proposição atômica descre­ serão tratadas no capítulo sobre o desen­
ve um fato, afirma que uma coisa tem certa volvim ento das ciências m atem áticas e
qualidade ou que determinadas coisas têm físico-naturais no século X X , aqui diremos
certas relações. Um fato atômico, por seu somente que, juntamente com o alemão
turno, é o que torna verdadeira ou falsa uma Gottlob Frege, ele considera a) que a ma­
proposição atômica. “ Sócrates é ateniense” temática pode ser reduzida a um ramo da
é uma proposição atômica, que expressa lógica; b ) que “ a matemática pura é a classe
o fato de Sócrates ser cidadão ateniense. de todas as proposições da forma ‘p implica
“ Sócrates é marido de X an tip a” é outra q' ” ; c) que não existem conceitos típicos da
proposição atômica. “ Sócrates é ateniense e matemática que não possam ser reduzidos
marido de Xantipa” é proposição complexa a conceitos lógicos (de lógica das classes)
ou molecular. Veremos essas idéias retorna­ e d) que, com maior razão, não existem
rem no Tractatus logico-philosophicus, de procedimentos de cálculo e de derivação
L. Wittgenstein. dentro da matemática que não possam ser

Iiertrand Russell (1872-1970),


filósofo, lógico c matemático
entre os maiores do século XX.
QuãTtã parte - R u s s e ll , W i t t g e n s t e i n e a f ilo s o f ia d a lin g u a g e m

resumidos em derivações de caráter pura­ denotação ou intensão e extensão. As duas


mente formal. expressões têm o mesmo significado ou a
mesma denotação, ou seja, indicam o mes­
mo objeto, ao passo que o seu sentido ou
teoria d a s d e s c r iç õ e s conotação, isto é, o que dizem desse objeto,
é diferente.
Ora, Alexius Meinong também refletira
Próximo a Frege no programa logicista, sobre esses problemas e sobre o status de
Russell, em sua reação ao idealismo, tam­ certas frases como “ a montanha de ouro não
bém está de acordo com Frege ao sustentar existe” ou “ o círculo quadrado não existe” .
o realismo platônico para os objetos da ma­ Trata-se de proposições verdadeiras que, em
temática: os números, as classes, as relações alguns casos, podem também ser úteis. M as
etc., têm existência independente do sujeito eis o problema: como pode uma proposição
e da experiência. Uma relação como “ Se A ser verdadeira e ter significado se ela se refere
= B e B = C, então A = C ” existe indepen­ ao nada? Pensou-se então que deveria haver
dentemente do sujeito que a pensa: existe e algum sentido em que existam tanto as mon­
é sempre verdadeira. tanhas de ouro como os círculos quadrados,
Entretanto, há uma questão importan­ isto é, os objetos indicados pelas expressões
te sobre a qual, naquela época, Russell se denotativas. Em suma, ainda que não exis­
distanciou de Frege: trata-se da sua Teoria tam realmente, as montanhas de ouro, as
das descrições (1905). Frege fizera notar quimeras e os círculos quadrados devem de
que expressões como “ a estrela da m anhã” alguma forma ter algum tipo de existência
e “ a estrela vespertina” , embora indicando se as expressões que os denotam são parte
o mesmo planeta Vênus, dizem coisas di­ de enunciados que têm significado e são
ferentes, apresentando sentidos diferentes. verdadeiros, como é o caso da afirmação “ o
Conseqüentemente, ele distinguira entre círculo quadrado não existe” .
sentido (Sinn) e significado (Bedeutung) Russell se rebelou contra o reino das
ou, em termos clássicos, entre conotação e sombras de Meinong. E, para evitar os becos

Bertrand Russell
(aqui com a física francesa
lrène Joliot-Curie)
em Estocolmo em 1950,
por ocasião da entrega
do prêmio Nobel de literatura.
Capítulo décimo quinto - B efW and R u s s e ll e A l f r e d / M o r t k W k i f e k e a d

sem saída e os enigmas a que tais expressões as teorias disponíveis, o empirismo é a teoria
denotativas levam, propôs uma análise que melhor. Contrário ao pragmatismo, Russell
visava a fazer desaparecer tais expressões, também era avesso àqueles neopositivistas
de modo que, ao invés de dizer “ a monta­ (Neurath, Hempel e outros) que pareciam
nha de ouro não existe” , se possa dizer que ter esquecido que o objetivo das palavras
“ não há nenhuma entidade que, ao mesmo “ é o de se ocupar de coisas diferentes das
tempo, seja de ouro e seja montanha” . Tal palavras” .
análise elimina a locução “ uma montanha de M as Russell reservou seus ataques
ouro” e, conseqüentemente, elimina também mais ferozes ao “ segundo” Wittgenstein
qualquer razão de crer que o objeto por ela e à filosofia da linguagem. Como se verá
indicado tenha algum tipo de existência. nas páginas dedicadas tanto ao “ segundo”
A frase “ o círculo quadrado não existe” Wittgenstein como à filosofia analítica, as
torna-se “ jam ais é verdadeiro que x seja acusações de Russell caem substancialmen­
circular, y seja quadrado e não seja sempre te fora do alvo, já que a filosofia analítica
falso que x e y se identifiquem” . Como se vê, preocupa-se com as palavras, precisamente
nas reconstruções de Russell desaparecem porque a filosofia analítica está atenta para
as expressões denotativas, e desaparecem uma relação não enevoada ou ilusória entre
as formas do verbo “ existir” e do verbo as palavras e as coisas, ou melhor, entre as
“ ser” em função não-copulativa. Exposta palavras e a vida.
em 1905, essa teoria foi depois desenvolvida Sobre o movimento analítico em seu
nos Principia mathematica, onde Russell conjunto, disse Russell: “ Pelo que entendi,
distingue entre descrições indefinidas ou a doutrina consiste em sustentar que a lin­
ambíguas (“ um homem” , “ alguém que cami­ guagem da vida cotidiana, com as palavras
nha” etc.) e descrições definidas (“ o primeiro usadas em seu significado comum, basta
rei de R om a” , “ o assim e assado” etc.). Por para a filosofia, pois esta não teria neces­
esse caminho, Russell pensava eliminar os sidade de termos técnicos ou de mudanças
paradoxos metafísicos da “ existência” e os de significado nos termos comuns. N ão
paradoxos dos não-existentes. Em suma, a consigo absolutamente aceitar essa opinião.
teoria das descrições de Russell afirma essen­ Sou contrário a ela: a) porque é insincera;
cialmente que as expressões denotativas b) porque é suscetível de desculpar a igno­
são incompletas, ou seja, são incapazes de rância da matemática, da física e da neu­
ter significado por si sós e se distinguem rologia naqueles que tiveram somente uma
claramente dos nomes próprios (que, tom a­ educação clássica; c) porque é apresentada
dos isoladamente, têm significado). por alguns com o tom de retidão cerimonio­
sa, como se a oposição a ela fosse pecado
contra a democracia; d) porque torna es­
miuçada e superficial a filosofia; e) porque
"Russell c o n tm
torna quase inevitável a perpetuação entre
o ^seg u n d o * W ittgen stein os filósofos daquela atitude confusa que eles
e a filosofia analítica retomaram do senso comum” .
Em suma, Russell acredita que os filó­
sofos da linguagem estão praticando a místi­
Atento an alista da linguagem , du­ ca do uso comum. E rejeita o fato de que os
rante toda a sua vida Russell submeteu ao oxfordianos consideram a linguagem comum
“ microscópio da lógica” toda uma série de como o banco de prova de qualquer outra
questões filosoficamente relevantes e amiúde linguagem. Claro, na linguagem comum não
difíceis e complicadas. M as o fez preocupa­ queremos de modo algum “ ficar discorren­
do sempre com a relação que a linguagem do sobre o sol que surge e que cai. M as os
deve ter com os fatos, se deve haver conhe­ astrônomos acham melhor uma linguagem
cimento válido. diferente, e eu sustento que uma linguagem
Naturalmente, Russell tem consciência diferente também é preferível em filosofia” .
dos limites do empirismo. Com efeito, o em­ A outra acusação que Russell faz a
pirismo pode ser definido com a afirmação Oxford é que a filosofia que nela se faz “ pa­
de que “ todo conhecimento sintético baseia- rece uma disciplina desprovida de relevância
se na experiência” . M as esse princípio não se e de interesse. Discutir ao infinito o que os
baseia na experiência. Conseqüentemente, o tolos entendem quando dizem tolices pode
empirismo é uma teoria que mostra suas ina­ ser divertido, mas é muito difícil que seja
dequações. E, no entanto, diz Russell, entre importante” .
Quarta parte - R u s s e ll , W it+ g e n s + e m e a f ilo s o f ia d a lin g u a g e m

São duas, portanto, as acusações que R ussell” para desm ascarar os crimes de
Russell levanta contra a filosofia analítica: guerra contra o Vietnã.
por um lado, ela praticaria o culto ao uso Pacifista coerente e desmitificador co­
comum da linguagem, a despeito de toda rajoso, Russell pagou pessoalmente por seus
linguagem técnica; por outro lado, ao invés ideais. Foi processado várias vezes, esteve
de buscar o sentido das coisas e da realida­ preso, enfrentou a impopularidade, foi-lhe
de, ela se ocuparia de modo estéril com o tirada a cátedra de filosofia no City College
sentido das palavras. [2 ] de Nova Iorque.
Russell defendeu o amor livre. Casou-se
quatro vezes e, evidentemente, divorciou-se
5 "Russelli três vezes. Em 1927, juntamente com a se­
a moral e o cristianism o gunda mulher, Dora Winefred Black, chegou
a fundar uma escola baseada em princípios
educativos “ revolucionários” : nela, rapazes
Persuadido de que os valores não podem e moças liam aquilo que quisessem, nunca
ser deduzidos logicamente do conhecimento, eram punidos, tomavam banho juntos, e
Russell foi tenaz defensor da liberdade do corriam nus pelo parque. A escola faliu.
indivíduo contra toda ditadura e contra os N o fundo, para Russell, somente as
abusos do poder. Sensível às injustiças so­ afirmações tautológicas da matemática e as
ciais, Russell também foi convicto defensor afirmações sintéticas das ciências empíricas
do pacifismo. têm sentido. E, com base nesses funda­
Com suas dilacerações e seus sofri­ mentos, é óbvio que caem por terra toda
mentos, amiúde inúteis, a vida irredutível fé, toda visão metafísica do mundo e toda
e obstinada levou Russell do céu da m a­ religião. Como todas as outras religiões, ele
temática à terra dos homens sofredores. considerou o cristianismo do ponto de vista
Adversário das injustiças do capitalismo, teórico, como um conjunto de contra-sensos
Russell não foi menos duro em relação e, do ponto de vista ético, como implican­
aos métodos do bolchevismo. Em Teoria e do m oral desum ana e obscurantista. A
prática do bolchevismo (1920), podemos respeito desse ponto, porém, surge a forte
ler: “ O sectarismo e a crueldade mongólica suspeita de que Russell não tenha querido
de Lênin (com quem Russell manteve longa reconhecer outra interpretação histórica do
conversa em 1920) gelaram-me o sangue cristianismo diferente da visão imperante
nas veias” . Em 1952, Russell pediu ao go­ na Inglaterra, no cinzento período da época
verno norte-americano que fosse libertado vitoriana.
M orton Sobell (acusado por Rosenberg em Russell dedicou sua vida a um mundo
1951), que fora condenado a trinta anos de novo, no qual, como fazia questão de dizer,
prisão por espionagem. Em 1954, apoiado “ o espírito criativo é vivaz, e em que a vida
por Einstein, prom oveu uma cam panha é uma aventura cheia de alegria e de espe­
contra os armamentos atômicos. Durante rança [...], um mundo no qual o afeto tenha
a crise de Cuba, escreveu a Kennedy e a livre trânsito, e onde a crueldade e a inveja
Kruschev duas cartas memoráveis. Alguns tenham sido afugentadas pela felicidade e
meses mais tarde, escreveu ao Izvestia para pelo desenvolvimento livre e solto de todos
combater a hostilidade russa em relação aos aqueles instintos que constroem a vida e a
judeus. Pacifista durante a Primeira Guerra enchem de delícias intelectuais” . Russell
Mundial, colocou-se do lado dos aliados na também escreveu uma brilhante História
Segunda Guerra. Horrorizado com os crimes da filosofia ocidental (4 vols., 1934), onde
nazistas, criou posteriormente a “ Fundação tenta mostrar que “ os filósofos são o resul­
Atlântica da Paz” para despertar a consciên­ tado de seu meio social” . Bertrand Russell
cia das massas contra a guerra dos Estados morreu na noite de 3 de fevereiro de 1970,
Unidos no Vietnã, e inspirou o “ Tribunal uma segunda-feira. [1]
Capítulo décimo quinto - B e r t r a n d R u s s e ll e y M f r e d / \ J o r t k W lv + e k e a d

II. y\lfred /\]ortk Wkitek e a d :


p rocesso e realidade

• Alfred North W hitehead (1861-1947) - matemático que depois ensinará


filosofia em Harvard - é autor, com Bertrand Russell, dos Principia mathem ati-
ca. Entre suas obras filosóficas devemos recordar: A ciência e o
mundo moderno (1925); O futuro da religião (1926); Aventuras q universo
de idéias (1933). nãoé
W hitehead é convicto da necessidade de mútua relação en- máquina,
tre ciência e filosofia: "Cada uma das duas ajuda a outra". À luz mas um
desta convicção W hitehead propõe uma teoria metafísica onde organismo
toda a história do universo, e não só a da humanidade, aparece 5 1-2
como processualidade: o universo inteiro não é estático, mas
muito mais um processo; não é máquina mas organismo que "co-cresce", com um
sujeito, isto é, a autoconsciência, que não é o ponto de partida do processo, e sim
o ponto de chegada.

in t e r - r e la ç ã o ciprocamente, e cada qual fornece à outra o


material imaginativo. Um sistema filosófico
e n tre c iê n c ia e filosofiia
deveria apresentar a elucidação do fato
concreto que as ciências abstraem . E as
ciências deveriam encontrar seus princípios
Alfred N orth Whitehead nasceu em
nos fatos concretos que um sistema filosó­
Ramsgate, no Kent, em 1861. Sem deixar
fico apresenta. A história do pensamento
de lado as línguas clássicas e a história,
é a história da medida, da falência e do
dedicou-se ao estudo da matemática. Em
sucesso dessa empresa comum” . Em outros
1898, publicou o seu Tratado de álgebra
termos, afirma Whitehead em Aventuras
universal. Juntamente com Russell, escreveu
das idéias, “ a ciência pode apresentar fatos
os Principia matbematica (1910-1913). En­
irredutíveis e obstinados” contra os quais
sinou matemática em Cambridge e depois
chocam-se as generalizações filosóficas, ao
em Londres até 1924. Nesse ano, aposen­
passo que, por outro lado, vemos que “ in-
tou-se como professor de matemática, mas,
tuições filosóficas” se transformaram (e se
ao mesmo tempo, foi chamado a ensinar
transformam) em “ método científico” , e que
filosofia na Universidade de Harvard. Deu
“ o ofício próprio da filosofia é de desafiar as
aulas até 1937 e morreu em 1947. Suas
meias-verdades que constituem os princípios
obras filosóficas são numerosas: A ciência
primeiros da ciência” e de chegar à “ visão
e o mundo moderno (1925), O futuro da
orgânica” em que tais princípios são vistos
religião (1926), Aventuras de idéias (1933),
em suas relações recíprocas.
M odos do pensamento (1938). Sua obra
filosófica principal é Processo e realidade,
de 1929. O u n iv e rso co m o ir o c e s s o
Substancialmente, a intenção de fundo
de Whitehead é a de construir uma meta­
física ou visão de mundo que se baseie, se N a opinião de Whitehead, não só a
entrelace e esteja em mútua relação com vida da humanidade, mas toda a história do
as generalizações mais avançadas das ciên­ universo é processualidade no espaço e no
cias. H á uma inter-relação entre ciência tempo. N a realidade, nós não experimen­
e filosofia: “ Cada uma das duas ajuda a tamos substâncias e qualidades, mas muito
outra. A função da filosofia é trabalhar mais um processo constituído pela incessan­
pela concordância das idéias que aparecem te verificação de eventos uns em relação com
ilustradas pelos fatos concretos do mundo os outros. Portanto, não é a idéia de substân­
real. Í...1 Ciência e filosofia se criticam re­ cia o instrumento eficaz para compreender
Q uarta parte - R u s s e ll, W i+ í g e n s t e m e a f ilo s o f ia d a lin g u a g e m

o mundo, e sim a idéia de evento. A idéia de encarnam aqueles “ objetos eternos” que Pla­
substância, de “ matéria inerte” e de tempo e tão chamava de “ essências” ou “ form as” ,
espaço absolutos eram os conceitos da física que são potencialidades e possibilidades que
newtoniana. M as é a física contemporânea o processo da realidade seleciona e realiza.
que nos força a abandonar tais categorias e Desse modo, o processo é permanência e
falar de “ acontecimentos ligados por suas emergência.
relações espaciotemporais” . E Whitehead chama a totalidade dos
Assim, o universo inteiro não é mais objetos eternos de Deus. Ou melhor, como
coisa estática, mas um processo. Ele não natureza originária, Deus contém em si ob­
é uma máquina, mas um organismo que jetos eternos e, como natureza conseqüente,
“ co-cresce” , onde vemos que o sujeito não Deus é o princípio da realidade concreta,
é, como pretendem os idealistas, o ponto vive no processo, co-cresce com o universo.
de partida do processo, e sim um ponto de Escreve Whitehead: “ Deus não é o criador
chegada, no sentido de que a autoconsci­ do mundo, mas seu salvador” . As “ entida­
ência é aquele acontecimento bastante raro des atuais” realizam valores, isto é, objetos
que se realiza a partir de outro conjunto de eternos. E são estes — e, portanto, Deus
acontecimentos que é o corpo humano. — que dão sentido ao mundo. Como natu­
O universo é um organismo onde não reza originária, Deus é a harmonia de todos
se esquece o passado; pelo contrário, condi­ os valores; como natureza conseqüente, é a
ciona a criação de sínteses sempre novas, que realização do valor no processo.

Alfred Nortb Whitehead


(1861-1947)
propôs uma teoria metafísica
em que toda a história
do universo
aparece como processualidade.
. , . . 303
Cdpítulo dedtttO quinto - 3 e rtra n d T-Íussell e y\ljVed W KiteKead ____

dará maior peso à opinião mais provável,


embora conservando em sua mente, como
R u s s e ll hipóteses que provas sucessivas poderiam
demonstrar preferíveis, as outras opiniões
notavelmente prováveis. Isso, naturalmente,
presume que seja possível em muitos casos
D "ser
O que significa
verificar fatos e probabilidades com um método
objetivo, ou seja, um método que leve duas
racionais" pessoas quaisquer, mas determinadas, a um
mesmo resultado.
Rté aqui estamos considerando apenas
fí ra cio n a lid a d e nas o p in iõ e s está o lado teórico da racionalidade. O lado práti­
no "hábito d e lev a r em conta tod as as co, ao qual dirigimos agora nossa atenção, é
prova s im portantes an tes d e ch e g a r a mais difícil, fls divergências de opinião sobre
crer em uma c o isa ”; "a racionalidade, na problemas práticos nascem de duas fontes:
prático, p o d e s e r definida como o hábito primeiro, das diferenças entre os desejos dos
d e recordar todos os nossos desejo s im­ que disputam: segundo, das diferenças de
portantes, e nõo apenas aqu ele q u e no avaliação dos meios necessários para reali­
momento nos p a rece m ois forte do que zar seus desejos, fls diferenças da segunda
qualquer outro". espécie são na realidade teóricas, e apenas
em um segundo momento se tornam práticas.
Por exemplo, alguns técnicos sustentam que
nossa primeira linha de defesa deva ser for­
Costumo considerar-me racionalista, e ra- mada por navios de guerra, enquanto outros
cionolista, creio, deve ser quem quer que deseje por aviões. Neste caso a divergência existe
que os homens sejam racionais. Mas em nossos não sobre o fim proposto, isto é, a defesa
tempos a racionalidade sofreu diversos e duros nacional, mas apenas quanto aos meios, fl
golpes, de modo que é difícil saber o que se en­ discussão pode, portanto, desenvolver-se de
tende com essa palavra, ou, caso se saiba, se um modo puramente científico, uma vez que o
ela exprime algo que os seres humanos podem desacordo que causa a disputa vige apenas
alcançar. O problema da definição da raciona­ quanto aos fatos, presentes ou futuros, certos
lidade tem dois aspectos, um teórico, o outro ou prováveis, fl todos estes casos aplica-se
prático: o que é a opinião racional? C o que é aquela espécie de racionalidade que defini
a conduta racional? O pragmatismo salienta a como teórica, embora se trate de uma questão
irracionalidade da opinião, e a psicanálise a prática. [...]
da conduta. Um 0 outra induziram muitos a crer Permanece, todavia, algo que não pode
que não existe nenhum ideal de racionalidade ser tratado com métodos puramente intelec­
qo qual a opinião e a conduta possam proficua- tuais. Os desejos de um homem jamais se
mente se conformar. Pareceria seguir-se disso harmonizam completamente com os de outro
que, se tu e eu sustentamos opiniões diversas, homem. Dois concorrentes da Bolsa de valores
é inútil recorrer a uma discussão ou procurar o podem estar perfeitamente de acordo sobre
arbítrio de um estranho imparcial: não resta os efeitos desta ou daquela operação, mas
mais que lutar, com os métodos da retórica, da isso não produz harmonia prática, uma vez que
publicidade ou da guerra, segundo o grau de cada um deseja enriquecer-se à custa do outro.
nossa força financeira 0 militar. Csta convicção, a Mas também aqui a racionalidade pode evitar
meu ver, é muito perigosa e, a longo prazo, não a maior parte do dano que de outra forma
poderá deixar de ser fatal para a civilização. haveria. Dizemos que um homem é irracional
Procurarei por isso demonstrar que o ideal da quando ele age por paixão, quando quebra o
racionalidade não é minimamente tocado pelas nariz por despeito ao rosto. (; irracional porque
idéias que são consideradas fatais para ele, esquece que, cedendo ao desejo que mais
e que conserva toda a importância que uma fortemente se lhe dá de experimentar naquele
vez se lhe atribuía como guia do pensamento momento, obstaculiza outros desejos que com
e da vida. o tempo serão bem mais importantes para
Para começar com a racionalidade nas ele. Se os homens fossem racionais, olhariam
opiniões, eu deveria defini-la como o hábito para seus interesses de modo mais correto
de levar em conta todas as provas importantes do que aquele com que os olham hoje,- e se
antes de chegar a crer em uma coisa. Onde a todos os homens agissem sob o impulso de
certeza não é alcançável, o homem racional seu próprio iluminado interesse, o mundo seria
QudVtCl parte - R u s s e ll, W i+fgen s+ ein e a filosofia d a lin g u a g e m

um paraíso em relação àquilo que é agora.


Não digo que não haja nada de melhor do 2 O "segundo" Wittgenstein
que o interesse pessoal como motivo de ação;
mas digo que o interesse pessoal, como o
“cansou-se de pensar
altruísmo, é mais vantajoso quando iluminado seriamente"
do que quando é cego. Cm uma comunidade
ordenada é bastante raro que o interesse de
um indivíduo possa provocar dano aos outros. Bertrand Russell é contrário à Filosofia
Quanto menos o homem é racional, tanto mais analítica de Cambridge e de Oxford e, de
freqüentemente falta a percepção de como modo especial, ao modo de Filosofar do "se­
aquilo que danifica os outros danifica também gundo" UJittgenstein: esta Filosofia "se Fosse
ele próprio, pois o ódio e a inveja o cegam. Por verdadeira [...] seria, no pior dos casos, uma
isso, embora não pretendendo que o interesse ociosa brincadeira de salão".
pessoal iluminado seja a mais alta forma de
moralidade, sustento que, caso se tornasse
comum, faria do mundo um lugar infinitamente lendo as obras desta escola [dos filósofos
melhor do que é.. analíticos de Cambridge e de Oxford] experi­
fl racionalidade na prática pode se definir mento uma sensação curiosa, semelhante à que
como o hábito de recordar todos os nossos Descartes teria experimentado se fosse milagro­
desejos importantes, e não apenas aquele samente trazido à vida na época de Leibniz e
que no momento nos parece mais forte do de locke. Desde 1 9 1 4 dediquei grande parte
que qualquer outro. Como a racionalidade de meu tempo e de minha energia a matérias
na esfera da opinião, é uma questão de diferentes da filosofia. Durante o período suces­
medida. Fl racionalidade completa é indubita­ sivo a 1 9 1 4 três filosofias dominaram sucessi­
velmente um ideal inatingível, mas enquanto vamente o mundo filosófico britânico: primeiro
continuarmos a classificar como loucos alguns a do Tractatus de UJittgenstein, depois a dos
homens é claro que consideraremos alguns positivistas lógicos, e finalmente a das Philoso-
homens mais racionais do que outros. Creio phical Investigations, de UJittgenstein. Destas, a
que o único progresso consiste em aumentar primeira teve influência muito considerável sobre
a racionalidade, tanto prática como teórica. meu pensamento, ainda que agora não creio
Pregar uma moral altruísta parece-me inútil, que tal influência tenha sido totalmente positiva,
uma vez que a pregação teria efeito apenas fl segunda escola, a dos positivistas lógicos,
sobre aqueles que já experimentassem de­ teve em linha geral minha simpatia, embora
sejos altruístas. Mas pregar a racionalidade eu estivesse em desacordo com algumas de
é algo bem diverso, pois a racionalidade nos suas doutrinas mais características, fl terceira
ajuda a realizar nossos desejos no todo, sejam escola, que por comodidade indicarei com a
quais forem. Um homem é racional à medida sigla LUII para distingui-la das doutrinas do Trac­
que sua inteligência informa e controla seus tatus que chamarei de LUI, continua para mim
desejos. Creio que o controle de nossos atos completamente incompreensível. Os aspectos
por parte de nossa inteligência seja no fim positivos de tal doutrina me parecem óbvios; e
das contas aquilo que mais importa, e aquilo os negativos, infundados. Não encontrei nado
que unicamente tornará possível a continuação de interessante nas Philosophical Investigations
da vida social em um tempo em que a ciência de UJittgenstein, e não entendo porque uma
aumenta os meios à nossa disposição, para escola inteira encontre sabedoria autêntica nes­
nos danificarmos reciprocamente, fl escola, sas páginas, fl coisa é surpreendente do ponto
a imprensa, a política, a religião, em poucas de vista psicológico. O primeiro UJittgenstein,
palavras, todas as grandes forças do mundo, que eu conhecia intimamente, era um homem
estão no momento do lado da irracionalidade: dedicado de modo intenso e apaixonado ao
elas estão nas mãos de homens que adulam o pensamento filosófico, profundamente conscien­
povo soberano para conduzi-lo fora do cami­ te dos problemas difíceis de que eu, como ele,
nho justo. O remédio encontra-se não em algo percebia a importância, e em posse (ao menos
heroicamente catastrófico, mas nos esforços assim pensava eu) de um verdadeiro gênio
dos indivíduos em direção a uma concepção filosófico. O novo UJittgenstein, ao contrário,
mais sã e equilibrada de nossas relações com parece ter-se cansado de pensar seriamente e
o próximo e com o mundo. parece ter inventado uma doutrina apta a tornar
não necessária esta atividade. Não creio sequer
8. Russell, por um instante que a doutrina que tem estas
Ensaios céticos. conseqüências melancólicas seja verdadeira.
305
Cãpltulo décimo quinto - B e r t r a n d R u s s e ll e j A I f r e d ; \ o W l \ \ \ !I \ 1!t 11\!’ <u I .

Percebo, porém, que nutro uma prevenção ex­ se baseiam sobre ideais totalmente errados.
traordinariamente forte contra ela: com efeito, Apenas ideais totalmente diferentes poderão
se fosse verdadeira, a filosofia seria, no melhor impedir que continuem a ser fonte de sofrimen­
dos casos, um pequeno auxílio para os autores tos, destruições e pecados.
de vocabulários, e, no pior dos casos, uma Os ideais políticos devem b asear-se
ociosa brincadeira de salão sobre ideais para a vida individual. O objetivo
Admiro o Tractatus de LUittgenstein, mas dos homens políticos deveria ser o de tornar
não suas obras sucessivas, que me parecem melhor a vida dos indivíduos. O homem político
implicar uma renúncia a sua melhor inspiração, não deve levarem consideração, nem fora nem
muito semelhante às renúncias de Pascal e de acima, nada mais além dos homens, das mulhe­
Tolstoi. [...] res e das crianças que compõem o mundo. O
Analogamente a todos os filósofos pre­ problema da política é estabelecer as relações
cedentes a UUII, meu objetivo fundamental foi entre os seres humanos de modo que cada um
o de entender o mundo' da melhor maneira deles tenha em sua própria existência tanto bem
possível, e de distinguir aquilo que pode ter quanto seja possível. 6 esse problema requer
valor de conhecimento daquilo que deve ser antes de tudo a consideração daquilo que nos
rejeitado como hipótese sem fundamento. parece belo na vida individual.
Segundo UUII, eu não teria esclarecido esse Apenas para começar, não queremos que
objetivo, que teria dado como admitido. Agora todos os homens sejam iguais. Não queremos
nos contam, ao contrário, que não é o mundo estabelecer um sistema ou um tipo aos quais os
que devemos tentar entender, mas apenas as homens devam ser obrigados a uniformizar-se,
frases, e afirma-se que todas as frases podem de um modo ou de outro. [...]
ser tomadas como verdadeiras, exceto aquelas Não se quer um ideal só para todos os
pronunciadas pelos filósofos. Isto porém, talvez homens, mas um ideal separado para cada um
seja um exagero. dos homens: é preciso chegar a isso. [...]
B. Russel, (Existem duas espécies de impulsos, cor­
M inho vido em filosofia. respondentes às duas espécies de bens: os
impulsos possessivos, que visam a adquirir ou a
manter bens pessoais que não se podem repar­
tir e se concentram no impulso da propriedade. €
há impulsos criativos ou construtivos, que visam
3 "Ideais" para a política a levar para o mundo, e a tornar disponível para
o uso, o gênero de bens para os quais não
existe posse ou exclusividade.
A vida melhor é aquela em que os im­
"Rs instituições políticos e sociais devem pulsos criativos ocupam a parte mais vasta, e
se r julgados conforme o bem 0 o mal que fa­ os impulsos possessivos a mais restrita. €sta
zem aos indivíduos. Encorajam o criatividade descoberta não é nova. O €vangelho diz: "Não
mais que a avidez? Exprimem e alimentam se preocupem, pensando: O que comeremos?
o sentimento de reverência entre os seres O que beberemos? Com que nos vestiremos?".
humanos? Mantêm o respeito?" Os pensamentos que dedicamos a estas coisas
são desviados de argumentos de maior impor­
tância. €, o que é pior, o hábito mental gerado
Nos dias obscuros os homens têm ne­ por pensar nessas coisas é um hábito feio:
cessidade de fé clara e de esperança bem traz consigo concorrência, inveja, prepotência,
fundada; e, conseqüência destas, da coragem crueldade, e quase todos os males morais que
calma que não teme as dificuldades ao longo infestam o mundo. €m particular, leva ao uso da
do caminho. Os tempos que estamos atra­ força como meio para caçar a presa.
vessando [a guerra de 1 9 1 4 - 1 9 1 8 ] deram a Os bens materiais podem ser obtidos
muitos de nós a confirmação de tudo o que com a força e fruídos por aquele que deles se
acreditávamos. Vemos que as coisas que con­ apodera.
siderávamos mal são verdadeiramente mal e Os bens espirituais não podem ser obti­
sabemos, mais seguramente do que antes, as dos desse modo. € possível matar um artista
direções nas quais os homens devem se mover ou um pensador, mas não adquirir sua arte ou
para que um mundo melhor surja das ruínas seu pensamento. Pode-se condenor à morte
daquele que agora está se precipitando para um homem porque ele ama seus semelhantes,
a destruição. Vemos que os projetos políticos mas dessa forma não se adquire o amor que
dos homens, tanto de uns como dos outros, fazia a felicidade dele. Nestes casos a força
Q uarta parte - R u s s e ll, W ittg e n s te in e a filo sofia d a lin g u a g e m

é impotente; é eficaz apenas quando se trata Já está claro aquilo que deveremos dese­
d© bens materiais. Por essa razão os homens jar para os indivíduos; fortes impulsos criativos
que acreditam na força são os homens cujos que superem e absorvam o instinto de posse;
pensamentos e desejos são inspirados pelo reverência para com os outros; respeito pelo
interesse pelos bens. [...] impulso criativo fundamental em nós mesmos.
flqusles qu© percebem o mal que se pode Certa dose de auto-respsito ©d© orgulho natu­
fazer a outfos com o uso da força e o escasso ral é necessária para a vida; um homem, para
valor dos bens qu© se podem adquirir com a permanecer íntegro, não deve experimentar a
força, terão grande respeito pela liberdade dos sensação de uma absoluta derrota interior, mas
outros, não procurarão entravá-la ou limitá-la; deve ter a coragem, a esperança e a vontade de
serão lentos para o julgamento e rápidos na viver segundo o melhor que nele existe, sejam
compreensão; tratarão qualquer ser humano quais forem os obstáculos internos e externos
com uma espéci© de ternura, porque nele o que acaso aconteça de encontrar. Os homens
princípio do bem é ao mesmo tempo frágil e têm o poder de realizar as melhores possibili­
infinitamente precioso. Não condenarão aque­ dades de vida se possuem três coisas; impulsos
les que são diferentes; saberão ©sentirão que criativos mais que possessivos, reverência para
a individualidade requer a diversidade e que com os outros, e respeito pelo impulso funda­
a uniformidade significa morte. Desejarão que mental em si mesmos.
qualquer ser humano esteja o quanto mais fls instituições políticas e sociais devem
possível vivo e o menos possível seja produto ser julgadas conforme o bem e o mal que fazem
mecânico; amarão uns nos outros apenas as aos indivíduos. Cncorajam a criatividade mais
coisas que o contato brutal de um mundo de- que a avidez? Cxprimem e alimentam o senti­
sapiedado destruiria. Cm poucas palavras, em mento de reverência entre os seres humanos?
todas as suas relações com os outros serão Mantêm o. respeito?
inspirados por um profundo sentimento de B. Russell,
reverência. Minhas idéias políticas.

Bertrand Russell, além de filósofo e lógico,


foi também um pacifista convicto.
( S a p ft u lo d é c im o s e x t o

Ludwig Wif+genstem:
do 'V M c z ta fu s locfi<zo-p>hilosophi<^iAS
às pesquisas filosóficas

• Descendente de uma das mais importantes famílias vienenses, discípulo de


Bertrand Russell em Cambridge, prisioneiro dos italianos no fim da Primeira Guerra
Mundial, mestre de escola elementar de 1920 a 1926, a partir de
1930 docente de filosofia em Cambridge, Ludwig Wittgenstein Mestre de escola
(1889-1951) com o Tractatus logico-philosophicus (1921) influen­ elementar
e grande
ciará pesadamente os neopositivistas do Círculo de Viena, e com
filósofo
Pesquisas-filosóficas (e ainda mais com seu ensinamento) dará -->§1.1
enorme impulso à filosofia analítica.

• A tese central do Tractatus é que o pensamento ou proposição representa


projetivam ente o mundo. A cada elemento da realidade corresponde um elemen­
to da linguagem (ou pensamento). A realidade consta de fatos
que se resolvem em fatos atômicos, por sua vez compostos de A linguagem
objetos simples. Por sua vez, a linguagem consta de proposições representa
moleculares (ou complexas), compostas por proposições atômicas projetivamente
não mais divisíveis em outras proposições, as quais são combi­ o mundo
- > § 11. 1-2
nações de nomes correspondentes aos objetos. Nós, portanto,
fazemo-nos representações do mundo; e as representações que
têm sentido são unicamente as proposições da ciência natural, "e a filosofia não
é uma ciência natural". "A filosofia não é doutrina, mas atividade" que esclarece
nossa linguagem.

• O Tractatus foi interpretado pelos membros do Círculo de Viena como se


fosse a bíblia do neopositivismo, sobre a linha do princípio de verificação e no mais
estrito rigor antimetafísico. Todavia - conforme salientou Paul Engelmann, amigo
de Wittgenstein - Wittgenstein, como os neopositivistas, queria compreender o
funcionamento da linguagem da ciência, mas isso não porque pen­
sasse, como ao invés pretendiam os neopositivistas, que além da A C(ênc/a
ciência não houvesse nada a dizer; ao contrário dos neopositivistas, se ca/a
W ittgenstein se preocupava muito com aquilo que a ciência não sobre tudo
pode dizer: "Sentimos que, ainda que todas as possíveis perguntas o que para nós
da ciência recebessem uma resposta, os problemas de nossa vida é mais
não seriam sequer tocados". A ciência cala-se sobre tudo o que importante
para nós é mais importante: a ética e a religião. -> § H-3-4

• Em 1929 Wittgenstein volta a Cambridge. A volta para Cambridge é a volta


para a filosofia; para uma filosofia que parte de uma cerrada crítica da concepção
da linguagem como denominação de objetos. A teoria da representação alimenta
nosso cérebro com uma dieta unilateral; impele-nos a crer que
nós, com nossa linguagem, fazemos uma só coisa: denominamos. A linguagem
A verdade, porém, é bem diversa, uma vez que com nossa lin­ é um conjunto
guagem fazemos as mais variadas coisas: pedimos, agradecemos, de "jogos
saudamos, xingamos, descrevemos, inventamos histórias etc. São de língua "
inumeráveis os "jogos lingüísticos": "tipos inumeráveis diferentes -->§111.1-3
Q uarta parte - R u s s e ll, W it+ g e n s + e in e o f ilo s o f ia d a lin g u a g e m

de emprego de tudo aquilo que chamamos de 'sinais', 'palavras', 'proposições'


A linguagem é um conjunto de jogos de língua. "O significado de uma palavra é
o uso dela na linguagem". E o uso tem regras. Mas não raramente a linguagem
entra em férias, e então surgem os problemas filosóficos. Daí a necessidade de
uma filosofia como "terapia lingüística".

I. y \ vida

1 Professor de G. Frege, foi para Cambridge (Trinity


de escola elementar
College) para estudar os fundamentos da
matemática, sob a guia de Betrand Russell.
e grande filósofo Em 1914, com a explosão da Primeira
Guerra Mundial, alistou-se como voluntário
no exército austríaco. Preso pelos italianos
Ludwig Wittgenstein nasceu em Vie­ em 1918, passou quase um ano no campo
na, em 1889. Encaminhado pelo pai (Karl de prisioneiros de Cassino. Libertado em
Wittgenstein, fundador da indústria do aço agosto de 1919, encontrou-se logo depois
no império dos Hasburgos) para estudar com Russell na H olanda para discutir o
engenharia, inscreveu-se na Technische Ho- manuscrito do trabalho que seria publicado
chschule de Berlim-Charlottenburg (1906­ em 1921 com o título, proposto por G. E.
1907). Posteriormente (1908-1911), trans­ Moore, de Tractatus logico-philosophicus.
feriu-se para a Faculdade de Engenharia de De 1920 a 1926, ensinou como profes­
Manchester, de onde, em 1911, a conselho sor primário em três pequenas localidades

I^udwig Wittgenstein (1889-1951)


com o Tractatus
influenciou o neopositivismo e,
sucessivamente, na década de 1930,
foi o maior representante
da filosofia analítica.
Capítulo décimo sexto - L u d w i g W i+ tg e n s + e in

da Baixa Áustria. De 1926 a 1928, projetou dor de feridos no Guy’s Hospital de Lon­
e supervisionou os trabalhos de construção dres. Depois, trabalhou num laboratório
da casa vienense de uma de suas irmãs. médico em Newcastle. Deu suas últimas
Retornou a Cambridge em 1929, onde aulas em 1947. Transcorreu o ano de 1948,
lhe foi conferida a láurea em junho. Em em solidão, na Irlanda. Em 1949 foi para
1930 tornou-se professor no Trinity College, os Estados Unidos, em visita a seu ex-alu­
iniciando sua atividade de ensino superior. no e amigo Norm an M alcolm. Voltando
Em 1939, sucedeu a G. E. M oore na cátedra a Cambridge, descobriu que estava com
de filosofia. câncer. M orreu em 29 de abril de 1951
Durante a Segunda Guerra M undial, na casa de seu médico, o dr. Bevan, que o
por algum tempo trabalhou como carrega­ hospedara.

II. O ~Ür&(ZÍciiiAS lo g icz o -p h ilo so p h i^ u s

1 ;As teses fundamentais Realidade e linguagem

O Tractatus logico-philosophicus saiu À teoria da realidade corresponde a


em 1921, em alemão, nos “ Annalen der teoria da linguagem. Segundo o Wittgenstein
Naturphilosophie” (vol. XIV, 3-4, pp. 185­ do Tractatus (ou, como se diz, o “ primeiro”
262), e foi publicado em inglês em 1922, Wittgenstein), a linguagem é uma represen­
acompanhado do texto alemão, pelo editor tação projetiva da realidade. “ N ós fazemos
Kegan Paul de Londres, com uma introdu­ representações dos fatos” . “ A representação
ção de Bertrand Russell. é um modelo da realidade” . E “ o que a
As teses fundamentais do Tractatus são representação deve ter em comum com a
as seguintes: realidade para poder representá-la — exa­
“ O mundo é tudo o que acontece” . ta ou falsamente —, segundo seu próprio
“ O que acontece, o fato, é a existência modo, é a forma de representação” . Sem
dos fatos atôm icos” . dúvida, diz Wittgenstein, “ à primeira vista
“ A representação lógica dos fatos é o não parece que a proposição — assim como,
pensamento” . por exemplo, a que está estampada no papel
“ O pensamento é a proposição exata” . — seja representação da realidade de que
“ A proposição é uma função de verda­ trata. M as a notação musical também não
de das proposições elementares” . “ A forma parece, à primeira vista, representação da
geral da função de verdade é [r, x, N(x)]: música, assim como nossa escritura fonética
essa é a fórmula geral da proposição” . (ou letras) também não parece uma repre­
“ Aquilo de que não se pode falar, deve- sentação de nossa linguagem falada. E, no
se calar” . entanto, esses símbolos se revelam, também
Em uma primeira consideração, en­ no sentido comum do termo, como represen­
contramos no Tractatus uma ontologia: “ O tações daquilo que representam” . “ O disco
mundo divide-se em fatos” . M as o próprio fonográfico, o pensamento musical, a nota­
fato é divisível: “ Aquilo que acontece, o fato, ção, as ondas sonoras, estão todos, entre si,
é a existência de fatos atôm icos” . E os fatos naquela relação interior representativa que
atômicos, por seu turno, são constituídos se estabelece entre língua e mundo. O que
por objetos simples: estes são a substância é comum a todas essas coisas é a estrutura
do mundo. “ O fato atômico é uma combi­ lógica (como, na fábula, os dois jovens, seus
nação de objetos (entidades, coisas)” . “ O dois cavalos e seus lírios, que são todos, em
objeto é simples” . “ Os objetos constituem certo sentido, uma só coisa)” .
a substância do mundo. Por isso não podem Por conseguinte, o pensam ento ou
ser com postos” . “ O fixo, o consistente e o proposição representa ou espelha proje­
objeto são uma só coisa” . “ O objeto é o fixo, tivamente a realidade. E a cada elemento
o consistente; a configuração é o mutável, constitutivo do real corresponde outro ele­
o instável” . mento no pensamento. A realidade consta
310 . . ,
Q uarta pãttC - "R u s s e ll^ W if+ g e n s + e in e a f ilo s o f ia d a lin g u a g e m

de fatos que se resumem em fatos atômicos, deira ou falsa uma proposição atômica. O
compostos por seu turno de objetos simples. fato molecular é uma combinação de fatos
Analogamente, a linguagem é formada de atômicos que torna verdadeira ou falsa uma
proposições complexas (moleculares), que proposição molecular.
podem ser divididas em proposições simples
ou atôm icas (elementares), não ulterior-
mente divisíveis em outras proposições. ;A parte " m \ \ s W c c \ '‘
Essas proposições elementares constituem d o T r a c ía iu s
o correspondente dos fatos atômicos. E são
combinações de nomes, correspondentes aos
objetos: “ O nome significa o objeto. O obje­ São essas, em resumo, as idéias cen­
to é seu significado [...]” . Para exemplificar, trais do Tractatus. M as Wittgenstein se dá
“ Sócrates é ateniense” é uma proposição conta de que, embora a ciência represente
atômica, que descreve o fato atômico de que projetivamente o mundo, entretanto, além
Sócrates é ateniense; já “ Sócrates é ateniense da ciência e do mundo, “ há verdadeiramente
e mestre de Platão” é proposição molecular, o inexprimível. Mostra-se; é aquilo que é
que reflete o fato molecular de que Sócrates místico” . “ O que é místico não é como o
é ateniense e mestre de Platão. A proposição mundo é, mas que ele é” .
atômica é a menor entidade lingüística da “ O sentido do mundo deve se encon­
qual se pode proclamar o verdadeiro ou o trar fora dele. N o mundo, tudo é como
falso. O fato atômico é o que torna verda- é, e acontece como acontece: nele não há
nenhum valor — e, se houvesse, não teria
nenhum valor [...]” .
E “ nós sentimos que, ainda que todas
■ Proposição atôm ica. Esta é uma as possíveis perguntas da ciência recebessem
idéia central do Tractatus logico-phi-
losophicus de Wittgenstein.
Eis como Bertrand Russell, em sua
Introd u çã o ao Tractatus, esclarece
tal idéia: "Nós podemos explicar-nos,
dizendo que os fatos são aquilo que
torna as proposições verdadeiras ou
falsas. Os fatos podem conter, ou
não conter, partes que são elas pró­
prias fatos. Por exemplo: 'Sócrates
foi um sábio ateniense' consiste de
dois fatos: 'Sócrates foi um sábio', e
'Sócrates foi um ateniense'. Um fato,
que não tenha partes que sejam fa­
tos, é chamado por Wittgenstein um
Sachverhalt, um fato atômico. Um
fato atômico, embora não contendo
partes que são fatos, todavia contém
partes. Se podemos considerar 'Sócra­
tes é sábio' um fato atômico, percebe­
mos que ele contém os constituintes
'Sócrates' e 'sábio'. [...] O mundo é
descrito completamente se forem
conhecidos todos os fatos atômicos.
[...] Uma proposição (verdadeira ou
falsa) que afirma um fato atômico,
denomina-se de proposição atômica.
Todas as proposições atômicas são
logicamente independentes uma da
outra. Nenhuma proposição atômica
implica outra. Assim, toda a questão Wittgenstein cm divisa de oficial au stríaco
da inferência lógica refere-se a pro­ durante a Primeira (Suerra M u nd ial ( i íU4- l l> IS),
posições que não são atômicas: as em u m a f o to tirada d a carteira de identidade
proposições moleculares". de iuiiIjo de I I S,
com c arim bo do regim ento de artilLhina
na m on tan h a.
Capítulo décimo sexto - L u d w i g W it + g e n s t e in

resposta, os problemas de nossa vida não com efeito, o senhor não extrairá grande coi­
seriam sequer arranhados. Sem dúvida, não sa de sua leitura, essa é minha opinião exata.
resta então nenhuma pergunta — e esta é De fato, o senhor não o compreenderá; o
precisamente a resp osta” . “ O problem a tema lhe parecerá totalmente estranho. N a
da vida resolve-se quando se desvanece” . realidade, porém, ele não lhe é estranho, já
N essas afirmações consiste precisamente que o sentido do livro é um sentido ético.
a denominada parte mística do Tractatus. Certa vez, pensei em incluir no prefácio
B p ] uma proposição, que agora de fato não
está lá, mas que escreverei neste momento
para o senhor, porque talvez constitua para
o senhor uma chave para a compreensão
íá * * i- ^ p .e ta ç ã o
do trabalho. Com efeito, eu queria escrever
não-neopositivista que meu trabalho consiste em duas partes:
do ~ V r a c fa íiA S aquilo que escrevi e, além disso, tudo aquilo
que não escrevi. E precisamente esta segunda
parte é a importante [...]” .
Lido, discutido, pesquisado nos pressu­ Ou seja, o que não está escrito, o que
postos e nos diversos núcleos teóricos, inter­ não é dito porque não é dizível cientifica­
pretado com base em perspectivas diversas, mente é a parte mais importante: a ética e a
o Tractatus foi um dos livros filosóficos religião. E é assim que se reconciliam em um
mais influentes do século X X . E a influência todo consistente a “ lógica” e a “ filosofia”
mais consistente foi a que exerceu sobre os do Tractatus com a “ mística” do próprio
neopositivistas, que, embora rejeitando a Tractatus.
parte mística, aceitaram sua antimetafísica, N a opinião de A. Janik e S. Toulmin
retomaram a teoria da tautologicidade das (A grande Viena, 1973), este era o problema
assertivas lógicas, interpretaram as proposi­ de fundo de Wittgenstein: “ Poder encontrar
ções atômicas como protocolos das ciências um método qualquer para reconciliar a
empíricas e assumiram sua idéia de que a física de Hertz e Boltzmann com a ética de
filosofia é atividade clarificadora da lingua­ Kierkegaard e Tolstoi” .
gem científica e não doutrina. M as os neopositivistas, devido a seus
Tanto mediante a Introdução de Ber- interesses e perspectivas, não souberam
trand Russell ao Tractatus como mediante a ver esse problema profundo e condenaram
interpretação dos neopositivistas, o Tracta­ como contra-senso a mística de Wittgens­
tus foi visto pela maior parte dos estudiosos tein. Engelm ann com enta: “ Toda uma
como a bíblia do neopositivismo. Entretan­ geração de alunos considerou Wittgenstein
to, em nossos dias, essa imagem do Tractatus positivista, já que ele tinha em comum com
foi justamente abandonada. os positivistas algo de enorme importância:
Wittgenstein não apenas não foi mem­ traçara uma linha de separação entre aquilo
bro do Wiener Kreis e nunca participou das de que se pode falar e aquilo que se deve
sessões do Círculo, mas também nunca foi calar, coisa que os positivistas também ha­
neopositivista. Suas intenções eram bem viam feito. A diferença está apenas no fato
diversas das intenções dos neopositivistas, de que eles não tinham nada sobre o que
como nos revelam suas Cartas a Ludwig von calar. O positivismo sustenta — e esta é sua
Ficker (1969), as Cartas a Engelmann (1967) essência — que aquilo de que podemos falar
e as reflexões do próprio Engelmann. é tudo o que conta na vida. Wittgenstein, ao
N a realidade, em 1919 (portanto, três contrário, crê apaixonadamente que tudo o
anos antes que M . Schlick, o fundador do que conta na vida humana é precisamente
Wiener Kreis, fosse chamado a Viena), Witt­ aquilo sobre o qual, no seu modo de ver,
genstein escreveu uma carta a L. von Ficker, devemos calar. Apesar disso, quando ele
com o qual estava tratando da publicação do toma grande cuidado em delimitar o que
Tractatus. Entre outras coisas, podemos ler não é importante, não é a costa daquela ilha
nessa carta: “ Talvez lhe seja útil que eu lhe que ele quer examinar tão acuradamente, e
escreva algumas palavras sobre o meu livro: sim os limites do oceano” . [3]
Quarta pattc - R u s s e ll, Wi-H-gens+ein e a filosofia d a lin g u a g e m

III. ;As "P esq u i s a s f ilo s ó fia a s

1 A volta à filosofia ram Wittgenstein a assumir nova perspectiva


teórica na interpretação da linguagem.
E, em um esforço intenso, que vai
N o Prefácio ao Tractatus, Wittgens­ das Observações filosóficas (1929-1930)
tein escrevia que “ a veracidade das idéias — através da Gramática filosófica (1932­
aqui transmitidas é intocável e definitiva” e 1934), O livro azul e o livro marrom (1933­
pensava “ ter, no essencial, resolvido defini­ 1935), Observações sobre os fundamentos
tivamente os problemas” . Por conseguinte, da matemática (1937-1944) e D a certeza
Wittgenstein calou-se. Os problemas esta- (1950-1951) — às Pesquisas filosóficas
vam definitivamente resolvidos. Por isso, em (Parte I, 1945; Parte II, 1948-1949), Witt­
4 de julho de 1924, Wittgenstein escrevia a genstein afasta-se das soluções do Tractatus
J. M. Keynes (que, juntamente com o mate­ e elabora sua nova perspectiva filosófica, da
mático F. P. Ramsey, preocupava-se em fazer qual as Pesquisas filosóficas (Pbilosopbiscbe
o filósofo austríaco retornar a Cambridge): Untersucbungen) representam o documento
“ O senhor me pergunta se pode fazer algo mais elaborado.
para tornar-me novamente possível o traba­
lho científico. N ão, a esse respeito não há
mais nada a fazer; com efeito, não tenho 2 ;A teoria
mais nenhum forte impulso interior para
tal ocupação. Tudo o que eu realmente ti­
nha a dizer, já o disse. E, com isso, a fonte
se esgotou. Isso pode soar estranho, mas é As Pesquisas filosóficas se iniciam com
assim mesmo” . uma crítica cerrada ao esquema tradicional
N a realidade, não seria assim por muito de interpretação que vê a linguagem como
tempo. Com efeito, em janeiro de 1929 Wit­ um conjunto de nomes que denominam
tgenstein estava novamente em Cambridge. ou designam objetos, nomes de coisas e de
E o retorno a Cambridge era o retorno à pessoas, unidos pela aparelhagem lógico-
filosofia. Em suma, Wittgenstein percebeu sintática constituída por termos como “ e” ,
que os problemas filosóficos não haviam “ o ” , “ se... então” etc.
sido definitivamente resolvidos. Embora o É óbvio que, assim concebendo a
chamado a retomar o trabalho filosófico linguagem, o compreender se reduz a dar
pareça encontrar sua motivação em uma explicações que se resumem em definições
conferência que o matemático intuicionista ostensivas, que postulam toda aquela série
L. E. Brouwer pronunciou em Viena em mar­ de atos e processos mentais que deveriam
ço de 1928, com a presença de Wittgenstein, explicar a passagem da linguagem à realida­
não devemos esquecer três coisas em relação de. Como se vê, a teoria da representação,
a seu retorno à filosofia: o atomismo lógico e o mentalismo estão
a) os encontros que Wittgenstein man­ estreitamente conjugados.
teve com alguns membros do Círculo de N a realidade, porém, o jogo lingüístico
Viena — sobretudo Schlick e Waismann —, da denominação (Benennungsspracbspiel)
de cujas conversações temos hoje os relatos não é de modo nenhum prim ário. Com
que nos foram deixados por Waismann efeito, se eu digo, indicando uma pessoa
no livro Wittgenstein e o Círculo de Viena ou um objeto, “ este é M ário” ou “ isto é
(1967); vermelho” , haverá sempre para quem me
b) os “ inumeráveis colóquios” que Wit­ escuta certa ambigüidade, já que não sabe
tgenstein diz ter mantido com Ramsey, tendo a que propriedade da pessoa ou do objeto
por objeto a revisão dos Principia matbema- me referi. “ Dizendo ‘cada palavra desta lin­
tica e as teses do Tractatus sobre a lógica e guagem designa alguma coisa’, não dizemos
sobre os fundamentos da matemática; absolutamente nada [...]” , escreve Wittgens­
c) o contato com “ a linguagem real das tein nas Observações sobre os fundamentos
crianças” das escolas primárias. da matemática. “ Pensa-se que aprender a
Esses três fatos — a reflexão sobre a linguagem consista em denominar objetos,
matemática intuicionista, os colóquios com isto é, homens, formas, cores, dores, estados
Ramsey e a linguagem das crianças — leva­ de espírito, números etc. A denominação é
Capítulo décimo sexto - L u d w ig W ittg e n ste in

semelhante a pendurar em uma coisa um ‘sinais’, ‘palavras’, ‘proposições’. E essa


cartãozinho com um nome. Pode-se dizer multiplicidade não é algo fixo ou algo dado
que isso é uma preparação para o uso da de uma vez por todas, mas novos tipos de
palavra. M as para que nos prepara?” . linguagem, novos jogos lingüísticos, como
A teoria da representação sustenta que, poderíamos dizer, surgem continuamente,
com nossa linguagem, nós fazemos apenas enquanto outros envelhecem e são esqueci­
uma coisa: denominamos. M as Wittgenstein dos (uma imagem aproximada disso poderia
está persuadido de que, “ ao contrário, com ser dada pelas mudanças da matemática)” .
nossas proposições, fazemos as coisas mais
diversas. Basta pensar nas exclamações, com
suas tão diferentes funções:
Água! O princípio de uso
Fora!
Ai! e a filosofia
Socorro! como terapia lingüística
Lindo!
N ão!
E agora, ainda estás disposto a cha­ A linguagem é um conjunto de jogos de
mar essas palavras de ‘denom inação de linguagem. O significado de uma palavra é
objetos’ ?” . seu uso. E o uso tem regras. Por outro lado,
Com a linguagem, fazemos as coisas “ seguir uma regra é análogo a obedecer a
mais variadas. Os “ jogos lingüísticos” são uma ordem: somos adestrados para obede­
inumeráveis-. “ São inumeráveis os tipos dife­ cer à ordem” . “ Seguir uma regra, fazer uma
rentes de emprego de tudo o que chamamos comunicação, dar uma ordem ou jogar uma
Q uarta patte - R u s s e ll, W if+ g e n s+ e m e a filosofia d a lin g u a g e m

partida de xadrez são hábitos (usos, insti­ “ faz parte de nossa história natural, como
tuições)” . E essas regras que aprendemos o caminhar, o comer, o beber, o brincar” .
através do adestramento são públicas: “ N o A linguagem opera sobre o fundo de neces­
sentido em que existem processos (também sidades humanas, na determinação de um
pro cesso s psíquicos) característicos do ambiente humano. E como “ o significado
compreender, o compreender não é processo de uma palavra é seu uso na linguagem” , a
psíquico” . função da filosofia é puramente descritiva.
M as uma imagem nos mantinha pri­ Como na psicanálise, a diagnose é a terapia:
sioneiros. E ela fez com que o mundo de “ o filósofo trata uma questão como uma
nossa mente se povoasse de espectros, isto doença” .
é, de problemas filosóficos: “ Eles não são N ão busqueis o significado, buscai o
naturalm ente problem as empíricos, mas uso — repetia Wittgenstein em Cambridge.
problemas que se resolvem penetrando na E acrescentava: “ O que vos dou é a morfo-
operação de nossa linguagem de forma a logia do uso de uma expressão. Demonstro
reconhecê-la, contra uma forte tendência a que ela tem usos com os quais jamais havíeis
subentendê-la. Os problemas não se resol­ sonhado. Em filosofia, as pessoas sentem-se
vem mais produzindo novas experiências, forçadas a ver um conceito de determinado
mas sim ajustando aquilo que já nos é m odo. Pois o que faço é propor ou até
conhecido há tempo. A filosofia é batalha inventar outros modos de considerá-lo. Su­
contra o encantamento de nosso intelecto, giro possibilidades nas quais jamais havíeis
por meio de nossa linguagem” . pensado. Acreditáveis que só existisse uma
“ Os problemas filosóficos surgem [...] possibilidade ou, no máximo, duas. M as
quando falta a linguagem” . E esses proble­ eu vos fiz pensar em outras possibilidades.
mas se resolvem dissolvendo-os. “ Quando Além disso, mostrei que era absurdo esperar
os filósofos usam uma palavra — ‘saber’, que o conceito se adequasse a possibilidades
‘ser’, ‘objeto’, ‘eu’, ‘proposição’, ‘nome’ — e tão restritas assim. Desse modo, vos libertei
tentam captar a essência da coisa, devemos de vossa cãibra mental; agora, podeis olhar
sempre perguntar: essa palavra é efetiva­ em volta, no campo do uso da expressão,
mente usada assim na linguagem, na qual e descrever seus diversos tipos de uso” . Em
tem sua pátria?” suma, a filosofia é a terapia das doenças da
“ N ós utilizamos as palavras, no seu linguagem. “ Qual é o teu objetivo em filo­
emprego metafísico, na trilha do seu empre­ sofia? Indicar à mosca o caminho de saída
go cotidiano” . E isso porque a linguagem de dentro da garrafa” .
315
Capítulo décimo sexto - L u d w ig W ittg e n s te in --------

mostra que as coisas estão nessa relação uma


com a outra.
W it t g e n s t e in €ssa conexão dos elementos da imagem
será chamada estrutura da imagem; a possibi­
lidade da estrutura [será chamada] forma da
representação da imagem.
D fl linguagem represento 2 . 1 5 1 R forma da figuração é a possi­
projetivamente o mundo bilidade que as coisas estejam uma para a
outra na mesma relação que os elementos da
imagem. [...]
"fí proposição é uma imogem da reali­
dade"; "fí imagem concorda com a realidade 2.2 R imagem tem em comum com o figu­
ou não; ela é correta ou incorreto, verdadeira rado a forma lógica da figuração.
ou Falso"; “fí totalidade das proposições
verdadeiras é a ciência natural toda (ou a 2 . 2 0 1 R imagem figura a realidade, repre­
totalidade das ciências naturais) “; "fí filosofia sentando uma possibilidade da existência e da
não é uma das ciências naturais"; "Objetivo não existência de estados de coisas.
da filosofia é o esclarecimento lógico dos
pensamentos, fí filosofia não é uma doutri­ 2 . 2 0 2 R imagem representa uma possível
na, mas umo atividade [...]. fí filosofia deve situação no espaço lógico.
esclarecer os pensamentos que, de outra
forma, [...] seriam turvos e indistintos". 2 . 2 0 3 R imagem contém a possibilidade
da situação que ela representa.

1 O mundo é tudo aquilo qu® acontece. 2 . 2 1 R imagem concorda com a realidade


ou não; ela é correta ou incorreta, verdadeira
1.1 O mundo é a totalidade dos fatos, ou falsa.
não das coisas.
2 . 2 2 R imagem representa aquilo que
1.110 representa, independentemente da própria
mundo é determinado pelos fatos
e por serem eles todos os fatos. [...] verdade ou falsidade, por meio da forma da
figuração.
2 .0 Ó3 R realidade inteira é o mundo.
2 . 2 2 1 Rquilo que a imagem representa é
2. 1 Nós nos fazemos imagens dos fatos. o próprio sentido.

2 . 1 1 R imagem apresenta a situação no 2 . 2 2 2 Na concordância ou discordância do


espaço lógico, a existência e a não existência sentido da imagem com a realidade consiste a
de estados de coisas. verdade ou a falsidade da imagem.

2.12 R imagem é um modelo da reali­ 2 . 2 2 3 Para reconhecer se a imagem é


dade. verdadeira ou falsa devemos confrontá-la com
a realidade.
2 . 1 3 Ros objetos correspondem na ima­
gem os elementos da imagem. 2 . 2 2 4 R partir da imagem apenas, não
se pode reconhecer se ela é verdadeira ou
2 . 1 3 1 Os elementos da imagem são re­ falsa.
presentantes dos objetos na imagem.
2.225 Uma imagem verdadeira a priori
2.14R imagem consiste no fato de seus não existe.
elementos estarem em determinada relação
um com o outro. 3 R imagem lógica dos fatos é o pensa­
mento.
2.141 R imagem é um fato.
3.001 "Um estado de coisas é pensável"
Que os elementos da imagem e s­
2.15 quer dizer: "Nós podemos fazer dele uma
tejam em determinada relação um com o outro imagem".
Q uarta parte - R u s s e l l , W it+ g e n ste i n e a filo so fia d a lin g u a g e m

3 . 0 1 fl totalidade dos pensamentos ver­ 4 . 0 1 fl proposição é imagem da reali­


dadeiros é uma imagem do mundo. dade.
fl proposição é um modelo da realidade
3 . 0 2 O pensamento contém a possibili­ tal qual nós a pensamos.
dade da situação que ele pensa. Aquilo que é
pensável é também possível. 4 . 0 1 1 A primeira vista, a proposição - tal
como, por exemplo, está impressa sobre o pa­
3 . 0 3 Não podemos pensar nada de iló­ pel - não parece ser uma imagem da realidade
gico, pois, de outra forma, deveríamos pensar da qual trata. Todavia, nem a notação musical,
ilogicamente. [...] à primeira vista, parece ser uma imagem da
música, nem nossa grafia fonética (o alfabeto)
4 parece uma imagem dos fenômenos de nossa
O pensamento é a proposição provida
de sentido. linguagem.
No entanto, essas linguagens de sinais,
4 . 0 0 1 fl totalidade das proposições é a mesmo no sentido costumeiro desse termo, se de­
linguagem. monstram imagens daquilo que representam. [...]

4 . 0 0 2 O homem possui a capacidade de 4. 1 fl proposição representa a existência


construir linguagens, com as quais todo sentido e a não existência dos estados de coisas.
pode ser expresso, sem suspeitar como e o que
cada palavra signifique. Da mesma forma como 4 . 1 1 fl totalidade das proposições verda­
se fala sem saber como os sons particulares deiras é a ciência natural toda (ou a totalidade
são emitidos. das ciências naturais).
fl linguagem comum é uma parte do
organismo humano, e não menos complicada 4 . 1 1 1 fl filosofia não é uma das ciências
que ele. naturais.
é humanamente impossível extrair dela (fl palavra "filosofia" deve significar algu­
imediatamente a lógica da linguagem. ma coisa que está acima ou abaixo, e não junto
fl linguagem traveste os pensamentos. das ciências naturais).
€ precisamente de tal modo que, pela forma
exterior da veste, não se pode concluir sobre a 4 . 1 1 2 Objetivo da filosofia é o esclareci­
forma do pensamento revestido; porque a for­ mento lógico dos pensamentos, fl filosofia não
ma exterior da veste é formada para objetivos é uma doutrina, mas uma atividade.
bem diferentes que o de tornar reconhecível a Uma obra filosófica consta essencialmente
forma do corpo. de ilustrações. Resultado da filosofia não são
Os entendimentos tácitos para a compre­ "proposições filosóficas", mas o esclarecimento
ensão da linguagem comum são enormemente de proposições.
complicados. fl filosofia deve esclarecer e delimitar niti­
damente os pensamentos que, de outra forma,
4 . 0 0 3 fl maioria das proposições e ques­ eu diria, seriam turvos e indistintos. [...]
tões que foram escritas sobre coisas filosóficas
não é falsa, mas insensata. Por isso, a questões Ó. 5 3 O método correto da filosofia seria
desta espécie não podemos de fato responder, propriamente o seguinte: nada dizer senão
mas podemos apenas estabelecer sua insensa­ aquilo que se pode dizer; portanto, proposições
tez. fl maioria das questões e proposições dos da ciência natural - portanto, algo que nada
filósofos se funda sobre o fato de que nós não tem a ver com a filosofia -, e depois, toda
compreendemos nossa lógica da linguagem. vez que outro queira dizer algo de metafísico,
(£las são da espécie da questão de se o mostrar-lhe que não deu nenhum significado a
bem é mais ou menos idêntico ao belo). certos sinais em suas proposições. €sse método
Não é de admirar que os problem as seria insatisfatório para o outro - ele não teria
mais profundos propriamente nõo sejam pro­ a sensação de que lhe ensinamos filosofia -,
blemas. e apesar de tudo seria o único rigorosamente
correto.
4 . 0 0 3 1 Toda a filosofia é "crítica da lingua­
gem". (Não, porém, no sentido de Mauthner.) 6 . 5 4 Minhas proposições elucidam do
Mérito de Russell é ter mostrado que a forma seguinte modo: aquele que me compreende, no
lógica aparente da proposição não é necessa­ final as reconhece como insensatas, caso tenha
riamente sua forma real. subido por meio delas - sobre elas - para além
, , 317
Capítulo décimo sexto - L u d w ig W ittg e n s te in _____

delas. (€1® deve, por assim dizer, jogar fora a Nossa vida é tão sem fim, do mesmo modo
escada depois de por ela ter subido). que nosso campo visual é sem limites.
€le deve superar estas proposições, e
então verá o mundo corretamente. 6.4312 A imortalidade t0mporal da alma
do hom0m 0, portanto, sua 0t0rna sobrevivência
7 Sobre aquilo de que não se pode falar, mesmo depois da morte, não só não é de modo
deve-se calar. nenhum garantida, mas, quando a supomos,
L. UJittgenstein, não alcançamos de fato aquilo que, ao supô-la,
Tractatus logico-philosophicus sempre perseguimos. Talvez se torne resolvido
e Cadernos 1914- 1916. um 0nigma p0lo fato de que 0U sobreviva
0t0rnam0nt0? Não é talv©z 0sta vida 0t0rna
tão ©nigmática como a pres©nt0? A resolução
do ©nigma da vida no ©spaço 0 no t©mpo 0stá
foro do ©spaço e do tempo.
2 fl parte "mística" do T ra c ta tu s (Não são problemas de ciência natural
aqueles que aqui se procura resolver).

UJittgenstein, com seu Tractatus, havia-se 6.432 Flssim como o mundo é, é coisa de
proposto saber como era feito a ciência; nõo, fato indiferent© para aquilo que é mais elevado.
porém, porque pensasse que fora do ciência Deus não revela a si mesmo no mundo.
nõo houvesse noda de importante. Queria
sa b er como era feita a ciência - o dizível da 6 . 4 3 2 1 Os fatos pertencem todos apenas
ciêncio - para proteger o inefável (em rela­ ao problema, não à solução.
ção à ciêncio). fiquilo que a ciência não pode
dizer é o que mais importa para nós. 6 . 4 4 O místico não existe como o mundo
0xist0, mas que 0I0 ©xiste.

6.4 Todas as proposições são de igual valor. 6 . 4 5 Intuir o mundo sub specie aeternl é
intuí-lo como totalidade - limitada.
6 . 4 1 O sentido do mundo deve estar fora O místico é sentir o mundo como totali­
dele. No mundo tudo é como é, e tudo acontece dade limitada.
como acontece; não há nele nenhum valor, nem,
s© houv0ss0, t©ria um valor. 6.5 De uma resposta que não se pode
S© existe um valor que tem valor, deve formular também não se pode formular a per­
estar fora de todo devir e de ser-assim. Com gunta.
0f0ito, todo d0vir 0 ser-assim 0 acid0ntal. O enigmo não 0xist0.
flquilo qu© os torna não-acid0ntais não S0 uma p0rgunta pode ser levantada, ela
pod© ©star no mundo, pois, d0 outra forma, também pod e ter resposta. [...]
seria, por sua vez, acidental.
Deve ©star fora do mundo. 6 . 5 2 Sentimos que, mesmo depois que
todas as possíveis perguntas científicas tiverem
Ó. 4 2 Não podem, portanto, existir propo­ sido respondidas, nossos problemas vitais ain­
sições da ética. da não terão sido sequer tocados. Sem dúvida,
As proposições não podem exprimir nada então não restará mais nenhuma pergunta; e
que seja mais elevado. esta é justamente a resposta.

Ó. 4 2 1 6 claro que a ética não pode ser 6 . 5 2 1 A solução do problema da vida se


formulada. percebe quando ele desaparece.
A ética é transcendental. [...] (Não é talvez por isso que os homens,
cujo sentido da vida - após longas dúvidas
6.431 Como também o mundo, com- ase tornou claro, não souberam depois dizer
morte, não se altera, mas acaba. 0m qu© consistia tal S0ntido?).

6.4311 A mort© não é 0V0nto da vida. A 6 . 5 2 2 Cxiste d0 fato o in0fáv0l. Gle mostra
mort0 não s© viv©. a si mesmo, é o místico.
S0 por 0t0rnidad0 S0 entende não infinita
duração no tempo, mas intemporalidade, vive L. UJittgenstein,
eternamente aquele que vive no presente. Tractatus logico-philosophicus.
Q uarta parte - " R u s s e l l W ittg e n sfe iia e a -filosofia d a lin g u a g e m

Cm poucas palavras, creio que tudo aquilo


3 O sentido do sobre o que muitos hoje Falam à toa, eu em
meu livro o coloquei firmemente em seu lugar,
T ra c ta tu s lo g ic o - p h ilo so p h ic u s
simplesmente calando sobre isso. C, por isso,
"é um sentido ético" o livro, a menos que eu não me engane com­
pletamente, dirá muitas coisas que também o
senhor quer dizer, mas não percebe talvez que
Com esta carta escrita a Ludwig von Ficker já foram ditas nele.
entre o finol de outubro e os inícios de no­ Cu o aconselharia que lesse o prefácio e
vembro de 1919, UJittgenstein preciso que o a conclusão, pois são essas partes que levam
sentido de sei/Tractatus logico-philosophicus o sentido do livro à sua expressão mais ime­
"é um sentido ético". diata [...].
Comentando esta carta, Paul Cngelmann Receba as mais cordiais saudações de
- um amigo de UJittgenstein - escreveu: "O seu devoto
positivismo sustenta, e esta é sua essência, ludwig UJittgenstein
que aquilo de que podem os falar é tudo l. UJittgenstein,
aquilo que importa na vida. UJittgenstein, Corto a Ludwig von Ficker.
ao contrário, crê apaixonadam ente qu e
tudo aquilo que importa na vida humano
é justamente aquilo sobre o que, segundo
seu modo de ver, devemos colar. Quando,
apesar de tudo, ele se preocupo em delimitar □ fi teorio dos jogos-de-língua
aquilo que não é importante, não é a costa
daquela ilha que e le quer examinar com
tão meticuloso exotidõo, e sim os limites do fl teoria da linguagem como represen­
oceano". tação está erroda. Não devemos procurar o
significado de umo palavra, e sim seu uso: o
uso de uma palavra ou de uma expressão é
Caro Sr. v. Ficker, seu significado. Cxistem, em suma, funções
junto com esto corto, envio-lhe o manuscri­ diferentes das palavras, diferentes jogos-
to. Por que eu não pensei logo no senhor? Toda­ de-língua.
via, creia, desde o primeiro momento pensei no "Paro uma grande classe de casos - ain­
senhor. Mas isto, na verdade, aconteceu em um da que não para todos os casos - em que
tempo em que o livro não podia ser ainda pu­ deles nos servimos, a palavra 'significado'
blicado, dado que ele ainda não estava pronto. p o d e s e r definida: o significado de uma
6 , quondo ficou pronto, estávamos em guerra, e palavra é seu uso na linguagem".
assim de novo não podia pensar em uma ajudo fí filosofia tem exatamente a tarefa de
sua. Mas agora conto com o senhor. C talvez descrever o funcionamento dos diferentes
lhe seja de ajuda que eu lhe escreva algumas jogos-de-língua.
palavras sobre meu livro: da leitura dei®, com
efeito, o senhor, e ©sto é minha exata opinião,
não tirará grande coisa. O senhor, d® fato, não 1 1 . Pense nos instrumentos que se encon­
o entenderá; o assunto lhe parecerá totalmente tram em uma caixa de utensílios: há um martelo,
estranho. Na realidade, porém, ele não lhe é uma tenaz, um serrote, uma chave de fenda,
estranho, pois o sentido do livro é um sentido um metro, umo panelinha para a cola, a cola,
ético. Uma vez ®u queria incluir no prefácio uma pregos e parafusos. Sõo diferentes as funções
proposição, que agora de fato não há ali, mas destes objetos, assim como são diferentes as
que agora escreverei para o senhor, pois ela funções dos palavras. (C há semelhanças aqui
constituirá talvez para o senhor uma chave para e acolá).
a compreensão do trabalho. Com efeito, eu Naturalmente, o que nos confunde é a uni­
queria escrever que meu trabalho consiste de formidade no modo de apresentação das pala­
duas partes: daquilo que escrevi e, além disso, vras que nos são ditas, ou que encontramos e s­
de tudo aquilo que nõo escrevi. C justamente critas e impressas. Com efeito, seu emprego não
esta segundo parte é a importante. Por obra está diante de nós de modo igualmente eviden­
de meu livro, o ético é delimitado, por assim te. C especialmente quando fazemos filosofia!
dizer, a partir de dentro; e estou convicto de
que o ético deve ser delimitado rigorosamente 12. fissim como quando olhamos na cabine
apenas deste modo. . de uma locomotiva: nela há alavancas que têm
119
Capítulo décimo sexto - L u d w ig W ittg e n s te in ____

todos, mois ou menos, o mesmo aspecto. (Isso tipos de linguagem, novos jogos lingüísticos,
é compreensível, uma vez que todas devem como poderemos dizer, surgem e outros en­
ser pegas com a mão). Mas uma é a alavanca velhecem e são esquecidos, (fls mudanças da
de uma manivela que pode ser deslocada de matemática poderiam dela nos dar uma imagem
modo contínuo (regula a abertura de uma vál­ aproximativa).
vula); outra é a alavanca de um interruptor que Aqui a palavra “jogo lingüístico" destina-se
permite apenas duas posições úteis: para cima a pôr em evidência o fato de que o /b/ar uma
e para baixo; uma terceira é parte da alavanca linguagem faz parte de uma atividade, ou de
de freio: quanto mais fortemente é puxada, mais uma forma de vida.
energicamente se freio; uma quarta é a alavan­ Considere a multiplicidade dos jogos
ca de uma bomba: funciona apenas enquanto lingüísticos contidos nestes (e em outros)
a movemos para cima e para baixo. exemplos:

1 3 . Dizendo: "cada palavra desta lingua­ - mandar, e agir conforme a ordem;


gem designa alguma coisa" ainda não dissemos - descrever um objeto com base em seu
exatamente nada; a menos que tenhamos de­ aspecto ou em suas dimensões;
terminado qual distinção desejamos fazer. [...] - construir um objeto com base em uma
descrição (desenho);
1 4 . Imagine que alguém diga: "Todos os -•referir um acontecimento;
instrumentos servem para modificar alguma - fazer conjecturas a respeito do aconte­
coisa. O martelo, a posição de um prego; o cimento;
serrote, a forma de uma tábua etc.". - £ o que - elaborar uma hipótese e pô-la à prova;
modificam o metro, o recipiente da cola, os pre­ - representar os resultados de um experi­
gos? - “Nosso conhecimento do comprimento de mento por meio de tabelas e diagramas;
um objeto, da temperatura da cola, da solidez - inventar uma história e lê-la;
do caixa". Contudo, com esta assimilação da - recitar no teatro;
expressão ter-se-ia ganho alguma coisa? - cantar em uma roda;
- “matar" charadas;
1 5 . A palavra "designar" encontra talvez - fazer uma piada; contá-la;
sua aplicação mais direta nos casos em que o si­ - resolver um problema de aritmética
nal é colocado sobre o objeto que ele designa. aplicada;
Suponho que os instrumentos que Fl utiliza para - traduzir de uma língua para outra;
a construção tenham certos sinais. Se fí mostra - pedir, agradecer, xingar, saudar, orar.
ao ajudante um destes sinais, ele lhe trará o è interessante confrontar a multiplicidade
instrumento provido com aquele sinal. dos instrumentos da linguagem e de seus mo­
flssim, ou de modo mais ou menos se ­ dos de emprego, a multiplicidade dos tipos de
melhante, um nome designa uma coisa, e é palavras e de proposições, com aquilo que os
dado um nome a uma coisa. Freqüentemente, lógicos disseram sobre a estrutura da lingua­
enquanto filosofamos, revela-se útil dizer a gem. (C também o autor do Tractatus logico-
nós mesmos: “Denominar uma coisa é como philosophicus).
prender a um objeto um cartão que traz o nome
dele". [...] 24. Quem não tem presente a multiplicida­
de dos jogos lingüísticos tenderá, talvez, a fazer
1 8 . [...] Nossa linguagem pode ser con­ perguntas como esta: "O que é uma pergunta?”,
siderada como uma velha cidade: um labirinto é a constatação que não sei certa coisa assim e
de ruas e de praças, de casas velhas e novas, assim, ou a constatação que desejo que outro
e de casas com partes agregadas em tempos me diga...? Ou é a descrição de meu estado de
diferentes; e o todo circundado por uma rede espírito de incerteza? € o grito "Socorro!" - seria
de novos subúrbios com ruas retas e regulares, uma descrição desse tipo?
e casas uniformes. [...] Pense em quantas coisas disparatadas
são chamadas de "descrição": descrição da
23. posição dê um corpo por meio de suas co­
Todavia, quantos tipos de proposições
existem? Por exemplo: afirmação, pergunta e ordenadas; descrição de uma expressão do
ordem? Há inumeráveis tipos como esses, inu­ rosto; descrição de uma sensação tátil, de um
meráveis tipos diferentes de emprego de tudo humor.
aquilo que chamamos de “sinais", "palavras”, Naturalmente, podemos substituirá forma
"proposições". C essa multiplicidade não é algo costumeira da pergunta com a da constatação,
fixo, dado de uma vez por todas; mas novos ou descrição: "Quero saber se...", ou então:
QliUTtU parte - "R u sse ll/ W ittg e n s te in e a -filosofia d a lin g u a g e m

“Cstou em dúvido se..."; porém, desse modo semelhante a prender a uma coisa um cartão
os diferentes jogos lingüísticos nõo foram muito com um nome. Pode-se dizer que esta é uma
aproximados um do outro. preparação para o uso da palavra. Todavia,
fl importância d estas p o ssib ilid a d e s para o quê nos prepara?
de transformação, por exemplo, de todas as
proposições assertivas em proposições que 27. "Nós as denominamos de coisas, e
começam com a cláusula “Cu penso" ou "€u creio" assim podemos delas falar, referirmo-nos a elas
(e, portanto, por assim dizer, em descrições de no discurso". Como se com o ato de denominar
minha vida interior) aparecerá mais clara em já estivesse dado aquilo que faremos a seguir.
outro lugar. (Solipsismo). Como se houvesse uma só coisa que se chama
"falar das coisas". Ao contrário, com nossas
2 5 . Por vezes se diz: os animais não falam proposições, fazemos as coisas mais diversas.
porque carecem das faculdades espirituais. Pensemos apenas nas exclamações, com suas
€ isso quer dizer: "não pensam e, portanto, funções completamente diferentes.
não falam". Mas, exatamente: não falam. Ou Água!
melhor: não empregam a linguagem - se exce­ Fora!
tuarmos as formas lingüísticas mais primitivas Ah!
O mandar, o interrogar, o contar, o conversar Socorro!
fazem parte de nossa história natural, assim Belo!
como o caminhar, o comer, o beber, o brincar. Não!
Agora você ainda está disposto a cha­
2 6 . Pensamos que aprender a linguagem mar estas palavras de "denominações de
consiste em denominar objetos. Ou seja: ho­ objetos"?
mens, formas, cores, dores, estados de espírito, L. UJittgenstein,
números etc. Conforme foi dito, denominar é Pesquisas Filosóficas.
( C a p ít u lo d é c im o s é + im o

A fil osofia a a linguagem.


O movimen+o analítico
de (Sambridge e Oxford

I. A fil osofia analítica em íSamb^idg<

* A filosofia analítica inglesa ou filosofia da linguagem Asefilosofia


desenvolveu sobretudo em dois centros: Cambridge e Oxford. analítica
Tal filosofia é mais um movimento do que uma escola. Entre os é mais um
analistas (nem todos ingleses; mas em todo caso de língua in­ movimento
glesa) não há um corpus unitário de doutrinas; comum é, muito do que
mais, entre eles uma espécie de ofício, um tipo de trabalho que uma escola
se exerce "sobre" a língua para compreender melhor o funcio­ 1
namento da "linguagem" e, portanto, ver melhor no mundo e
nas experiências às quais a linguagem se refere.

• Os três grandes filósofos de Cambridge são Bertrand Russell, George E. M oo­


re (1873-1958) e Ludwig Wittgenstein. O interesse de Russell pela lógica e pela
linguagem da ciência, o princípio de uso e a teoria dos jogos de
língua do "segundo" Wittgenstein, e a filosofia de Moore estão O trabalho
na base da imponente tradição analítica de Cambridge, onde, de Russell
entre outras coisas, nasceu (em 1933) a revista "Analysis". e Wittgenstein;
O pensamento de Russell e Wittgenstein já foi exposto ante­ os núcleos
riormente. Da filosofia de Moore eis, a seguir, os pontos centrais: teóricos
rejeição do idealismo, defesa da verdade do senso comum; pro­ da filosofia
posta, na ética, da teoria intuicionista (segundo a qual o "bem" é de Moore
uma noção indefinível, como o "amarelo"); um trabalho de análise 7-2
que consiste no exame paciente e destrutivo (das "monstruosas"
afirmações dos filósofos: "o tem po é irreal", "não existe o mundo externo" etc.).
De Moore é preciso lembrar: A rejeição do idealismo (1903); Principia ethica (1903);
Defesa do senso comum (1925).

• Sucessor de M oore na cátedra de Cambridge foi W itt­


Wisdom
genstein, que depois de seu falecimento em 1951 foi sucedido e a função
por John Wisdom. Wisdom escreveu coisas interessantes sobre dos "paradoxos
"mentes alheias". Também revalorizou com muita agudez a metafísicos"
aventura metafísica. As afirmações metafísicas "são sintomas -^§3
de penetração lingüística"; e os "paradoxos metafísicos" têm a
função de abrir fendas entre os muros de nossos aparatos inte­
lectuais, de escancarar novos horizontes, pôr novos problemas. Wisdom é autor
de: Problemas da m ente e da matéria (1934); Outras mentes (1952); Filosofia e
psicanálise (1953).

• Em um olhar de conjunto, podemos dizer que a análise filosófica em Cam­


bridge se configura como uma espécie de "terapia lingüística". Para Moore muitas
confusões dos filósofos derivam do fato de que estes tentam dar respostas sem
Quarta parte - R u s s e ll, W if+ g e n s + e in e a f ilo s o f ia d a lin g u a g e m

A linguagem compreender as perguntas. Wittgenstein está persuadido de que


filosófica é uma "o filósofo trata uma questão como uma doença". E Wisdom
linguagem sustentou que uma perplexidade filosófica deve ser tratada como
doente que na psicanálise, no "sentido que o tratam ento é o diagnóstico e o
deve ser curada diagnóstico é a descrição completa dos sintomas".
-^§ 4

O s fil ósofos de íSambridge: qüentemente não há concordância quanto


aos resultados obtidos. O que existe de
Russell, ]\Aoore.
comum é uma espécie de ofício, uma men­
e Wit+gens+ein talidade, um tipo de trabalho, que se exerce
sobre a “ língua” para ver como funciona
a “ linguagem” , de modo que, entre outras
A filosofia analítica inglesa (ou, como coisas, o mundo (que para ser lido usamos
também se diz, filosofia da linguagem) de­ a linguagem) nos apareça mais claramente e
senvolveu-se em dois centros, Cambridge sempre mais profundamente. Em suma, na
e Oxford, tanto que se fala de Cambridge- Cambridge-Oxford Philosophy respira-se
O x fo rd Philosophy. E trata-se m ais de ar de família.
movimento do que de escola. Entre os ana­ Bertrand Russell foi estudante e profes­
listas (nem todos ingleses, mas, de qualquer sor em Cambridge. Além do seu, os nomes
forma, de língua inglesa), com efeito, não mais prestigiosos de Cambridge são os de G.
há um corpus unitário de doutrinas e fre­ E. M oore (1873-1958) e de L. Wittgenstein.
A filosofia de M oore centrou-se na rejeição
ao idealismo (A rejeição ao idealismo, 1903)
e na defesa da veracidade do senso comum
(Defesa do senso comum, 1925). Em filoso­
fia da ética (Principia ethica, 1903), Moore
combateu a “ falácia naturalista” (segundo
a qual o “ bem” é uma qualidade observável
nas coisas), e defendeu a que depois seria
uma das correntes mais influentes da me-
taética analítica, isto é, o intuicionismo, ou
seja, a idéia da indefinibilidade do “ bem” (o
“ bem” é noção indefinível, como o “ amare­
lo ” ). M oore foi substancialmente estranho
ao mundo da ciência. Entretanto, era atraí­
do pelas monstruosas afirmações daqueles
intérpretes solitários do universo que são os
filósofos (“ o tempo é irreal” , “ não existe o
mundo externo” etc.). E seu trabalho con­
sistiu na análise paciente dessas monstruosas
afirmações. Assim, Moore foi “ o filósofo dos
filósofos” e ensinou a fazer filosofia analítica.
Sucessor de Moore na cátedra de Cam­
bridge, L. Wittgenstein, cuja “ segunda”
filosofia (a primeira é a do Tractatus) está
centrada no princípio de uso e na teoria dos
jogos de língua. Wittgenstein costumava
repetir: “ N ão busqueis o significado, buscai
o uso” . E também: “ O significado de uma
palavra é o seu uso na língua” . E a língua, no
sentido já explicado acima, é um conjunto de
“ jogos de língua” aparentados um ao outro
Bertrand Russel por ocasiao da entrega de modos diferentes. A função da filosofia é
do prêmio Kalinga em Paris, 1958. a de descrever os usos que fazemos das pa­
Cãpltulo décimo sétimo - y\ f ilo s o f ia d a iin g u a g e m

lavras, e fazer emergir o conjunto das regras Para ele, “ a metafísica é paradoxo” , é
que regulam os diversos jogos de linguagem, “ tentativa de dizer o que não se pode dizer” ;
que operam sobre o fundo das necessidades as afirmações metafísicas são “ sintomas de
humanas, na determinação de um ambiente penetração lingüística” . Os paradoxos (pa­
humano. E isso com o objetivo de eliminar radoxos em relação aos padrões “ normais”
as “ cãibras mentais” originadas pelas con­ de nossos usos lingüísticos) m etafísicos
fusões dos jogos de linguagem e pelo fato — como as assertivas do solipsista, do de­
de se jogar um jogo com as regras de outro. fensor da irrealidade do mundo externo etc.
N ão se pode jogar xadrez com as regras do — têm a função de abrir brechas entre as
rúgbi. “ O filósofo trata uma questão como muralhas de nossos quadros intelectuais, de
uma doença” . A filosofia é a batalha contra abrir novos horizontes, de nos propor novos
o enfeitiçamento lingüístico do intelecto. problemas: com efeito, questões que não
encontram resposta podem gerar problemas
que têm solução.
.2.. A re v ista '/ X n a ly sis7 Em suma, o filósofo é um criador. Deve
ser “ como quem viu muito e não esqueceu
nada, e como quem vê cada coisa pela
Em Cambridge, portanto, Russell, M o­ primeira vez” . “ N ão apenas Cristóvão Co­
ore, Wittgenstein, M. E. Johnson, C. D. Bro- lombo e Pasteur realizaram descobertas, mas
ad e F. P. Ramsey, apesar das diversidades, também Tolstoi, Dostoiewski e Freud. N ão
sustentaram todos que a filosofia é análise, são apenas os cientistas com seus microscó­
clarificação da linguagem e, portanto, do pios que nos revelam coisas, mas também os
pensamento. E um produto dessa atmosfera poetas, os profetas, os pintores” . Wisdom
foi a revista “ Analysis” , que, dirigida por A. escreve: “ Os artistas que mais fazem por
Duncan-Jones, apareceu em 1933, e com a nós não nos falam somente de países de
qual colaboraram, entre outros, L. S. Steb- fadas. Proust, Manet, Bruegel, até Botticelli
bing, C. A. M ace e o oxfordiano G. Ryle. e Vermeer, nos mostram a realidade. E no
“ Analysis” se propunha a “ publicar breves entanto, por um momento nos dão alegria
artigos sobre questões filosóficas circunscri­ sem ansiedade, paz sem tédio [...]” .
tas e definidas com precisão, questões rela­
tivas à clarificação de fatos conhecidos, ao
invés de prolixas generalizações e abstratas
especulações metafísicas sobre fatos possí­ A a n á lis e filo s ó fic a
veis ou sobre o mundo em sua totalidade” . //
c o m o " t & r a p i a lingüística^
Em bora havendo acordo em torno
desse program a m áxim o, imediatamente
aflorou o problema: o que a análise analisa? Além de John Wisdom, é preciso re­
Foi assim que Srta. Stebbing e John Wisdom, cordar também G. A. Paul, M. Lazerowitz
que depois sucedeu a Wittgenstein na cáte­ e N. Malcolm.
dra de Cambridge, dedicaram-se a analisar É certamente difícil, senão impossível,
o conceito de análise. etiquetar o tipo de trabalho realizado em
Cambridge. M as, se o devêssemos fazer, di­
ríamos que a característica desse trabalho é
3 o k n W is d o m a análise filosófica concebida como terapia.
Moore estava persuadido de que mui­
e a s a fir m a ç õ e s m e ta fís ic a s
tas das confusões dos filósofos derivam do
com o " p a r a d o x o s fato de que eles tentam dar respostas sem
d e e x p lo r a ç ã o '7 antes ter analisado as perguntas às quais
respondem.
Para Wittgenstein, o filósofo trata de
Wisdom (nascido em 1904) é hoje o uma questão como de uma doença, e resolve
mais conhecido filósofo de Cambridge. Pro­ assim os problemas, desatando os intricados
fundamente interessado pelo problema da nós lingüísticos de nosso cérebro.
arte, da religião e das relações humanas, es­ E Wisdom é da opinião que uma per­
creveu coisas refinadíssimas sobre as “ mentes plexidade filosófica deve ser tratada como na
alheias” e analisou com simpatia a aventura psicanálise, “ no sentido de que o tratamento
metafísica, embora sem voltar às preten­ é a diagnose e a diagnose é a descrição com­
sões pré-neopositivistas dos m etafísicos. pleta dos sintomas” .
Quarta parte - T^ussell, W if+gen s+ein e a filosofia d a lin g u a g e m

II. A fil osofia analítica em O^fo^d

• N o segundo pós-guerra o cenário intelectual de Oxford foi dominado por


Gilbert Ryle e John L. Austin.
Ryle (1900-1976) é autor de um livro sobre Platão (O pro­
Ryle: gresso de Platão, 1966) e do mais conhecido volume O espírito
a argumentação como comportamento (1949; título inglês: The C onceptofM ind),
filosófica em que se tenta eliminar a idéia de que exista uma alma em um
é uma reductio corpo, o dualismo cartesiano de resextensa e res cogitans, o mito
ad absurdum
oficial do "espectro na máquina".
^§7 Preocupado com o tipo de trabalho exercido pelo filósofo,
Ryle tratou disso em Categorias (1937) e Argumentações filosófi­
cas (1945): aqui ele sustentou que o tipo de argumentação própria do pensamento
filosófico é a reductio ad absurdum.
Filósofo da linguagem comum, Ryle distinguiu bem entre uso da linguagem
comum e uso comum da linguagem; e a propósito veja-se o ensaio de 1953: Lin­
guagem comum.

• O apelo à linguagem comum adquire maior peso em John L. Austin (1911­


1960). A linguagem comum deve ser tomada em consideração porque é "rica" e,
portanto, pode constituir um instrumento útil de análise e comparação para o
filósofo que trabalha em áreas "filosoficamente quentes" e que
Austin: se desenvolveram talvez sob o signo da super-simpiificação.
A linguagem Assim, se na linguagem comum se encontram, digamos, se­
comum tenta expressões que graduam a atribuição de responsabilidade,
é a prim eira quem pode dizer que tal riqueza de linguagem - surgida porque
e não a últim a requerida por situações concretas - não poderá ser útil para o
palavra filósofo que está se ocupando da questão da responsabilidade?
em filosofia
Naturalm ente - observa Austin - este apelo à linguagem
-^ § 2
comum não é a última palavra em filosofia; mas, notemos, ela é
a primeira. "Utilizamos - escreve Austin em Uma defesa para as
desculpas, 1956 - uma refinada consciência dos termos para afinar nossa percepção
dos fenômenos". Em Como fazer coisas com palavras (1962) Austin examinou as
expressões (enunciandos performativos) com as quais nós não tanto falamos de
coisas e sim muito mais fazemos coisas (por exemplo: "Te prometo..."; "Declaro
aberta a manifestação").

• "Filósofos da linguagem comum", no sentido anteriorm ente precisado, os


filósofos de Oxford prestaram atenção:
- à linguagem ético-jurídica (basta recordar aqui A linguagem da moral,
1952, de Richard M. Hare; e Filosofia moral contemporânea, 1967, de Geoffrey J.
Warnock);
- à linguagem hístoriográfica (Patrick Gardiner:
Análise da explicação histórica, 1961; William Dray: Leis e explicações em
da linguagem história, 1957);
moral, - à linguagem religiosa (A. Flew, R. M. Hare, J. Hick, B. Mi-
historiográfica, tcheU etc.);
religiosa _ ^ Unguagem metafísica (P. F. Strawson, R. M.Hare, S.Hamp-
em ^ l
§ 3-6
c'sica shire, F. Waismann etc.).
'
' ✓• ^• - 325
C ãp ítu lo décifflO sétim o - jA filosofia d a lin g u a g e m

CÃ. "Ryle:
o trabalko do filósofo
como correção
dos^erros categoriais*

A partir de 1951, o movimento ana­


lítico de Oxford veio se afirmando sempre
mais, até quantitativamente, ao contrário
do de Cambridge, tanto que em 1953 havia
em Oxford cerca de um milhar de pessoas
interessadas em filosofia, enquanto em Cam­
bridge elas não passavam de trinta.
Em O xfo rd , a cena intelectual foi
dominada até duas décadas atrás por G.
Ryle e J. L. Austin. Formado na Escola do
realismo neo-aristotélico de Cook Wilson
e seus discípulos, Ryle (1900-1976) escre­
veu um livro sobre Platão (O progresso de
Platão, 1966), mas seu. ponto de partida
foi Aristóteles. Interessado pelas idéias de
Husserl e Meinong no início dos seus estu­
dos, estudou depois os positivistas lógicos.
Em 1932, publicou o ensaio Expressões
sistematicamente desviantes, onde, nas pe­
gadas do primeiro Wittgenstein, expressões C ilbert Ryle <19 0 0 - l l)7h)
e o filnsojo inglês con h ecida p o r sua critica
sistematicamente desviantes são aquelas
,)o d u a lism o cartesiano de " a l m a " e " c o r p o ” .
cuja form a gram atical não é correspon­
de à “ estrutura lógica dos fato s” , sendo
reconhecíveis quando se vê que as suas
conseqüências dão origem a antinomias e
paralogism os. j J . J_y \u s t in :
Em Categorias, de 1937, Ryle susten­ a linguagem c o m u m
ta que o ofício do filósofo deve se exercer
sobre a linguagem para descobrir, corrigir n ã o é a ultima palavra
e prevenir os erros lógicos, ou “ erros ca- em filosofia
tegoriais” , que consistem em atribuir um
conceito a uma categoria à qual ele efetiva­
mente não pertence, mas que apresenta com Filósofo da linguagem comum (cf.
ela unicamente afinidades gramaticais. Em Dilemas, 1966), Ryle distinguiu oportu­
1945, em Argumentações filosóficas, ele se namente entre uso da linguagem comum e
propôs “ mostrar a estrutura lógica de um uso comum da linguagem (cf. Linguagem
tipo de argumento próprio do pensamento comum, 1953). E o recurso à linguagem
filosófico” : para ele, esse tipo de argumento comum torna-se ainda mais relevante em J.
é a reductio ad absurdum. L. Austin (1911-1960).
Pois bem, o “ ofício do filósofo” , delinea­ Para Austin, com efeito, a linguagem
do nesses verdadeiros manifestos metodo­ comum deve ser tomada em consideração
lógicos e em outros ensaios, é exercido por em si mesma, porque é “ linguagem rica” , já
Ryle em seu livro mais conhecido, O espírito que a análise de áreas lingüísticas filosofica­
como comportamento, de 1949, onde se mente candentes (a percepção, a responsabi­
analisam os poderes lógicos dos conceitos lidade etc.) pode mostrar toda uma gama de
mentais e, através da reductio ad absurdum, expressões que existem porque são exigidas
procura eliminar aquele erro categorial que e, se são exigidas, é porque “ dizem algo” , ao
gerou o mito oficial do “ espectro da máqui­ passo que ficam de fora as super-simplifica-
n a” , ou seja, o mito dualista cartesiano de doras dicotomias dos filósofos. Assim, por
corpo e alma. exemplo, se na linguagem comum encontra­
Q uarta parte - R u sse ll, W it+ge.^s+em e a filosofia d a lin g u a g e m

mos cerca de setenta expressões que indicam certo vocabulário e determinada gramática,
gradações na atribuição de responsabilida­ cumpre-se um locutionary act. Por outro
des, por que o filósofo não deveria levá-las lado, ao dizer algo (by saying something)
em conta? E mais: a análise da linguagem realiza-se um illocutionary act direto a partir
comum nos mostra entidades lingüísticas daquilo que Austin chama de illocutionary
com as quais nós não tanto dizemos coisas, forces: pergunta, prece, informação, ordem
e sim fazemos coisas. etc. M as se in saying something se realiza
Em Como fazer coisas com palavras um específico illocutionary act, com o dizer
(1962), Austin justam ente desenvolve a algo (by saying something) nós realizamos
diferença entre enunciado constatativo ou um perlocutionary act, por meio do qual
indicativo e enunciado realizador ou execu­ produzimos sobre os outros determinados
tivo: o primeiro pode ser verdadeiro ou falso efeitos: nós os convencemos, surpreende­
(“ amanhã parto para São Paulo” ), o segun­ m os, inform am os, enganamos etc. Essas
do pode ser feliz ou infeliz (“ eu te prometo distinções já constituem patrimônio comum
q u e ...” , “ juro q u e ...” , “ declaro aberta a da filosofia analítica, assim como o sentido
manifestação” ). N o curso da análise, porém, de seu apelo à linguagem comum e à visão
essa distinção vai se diluindo, pois também da finalidade da análise. “ A linguagem co­
o enunciado indicativo parece ser realizador: mum não é a última palavra: em princípio,
com efeito, “ amanhã parto para São Paulo” ela pode ser sempre integrada, melhorada
não é equivalente ao realizador “ garanto e e superada. M as deve-se notar que ela é a
dou minha palavra de honra que amanhã primeira palavra” . E assim: “ Nós não con­
parto para São Paulo” ? sideramos somente palavras [...], mas tam­
Sendo assim, Austin enfrentou a ques­ bém a realidade, para falar da qual usamos
tão de outro ponto de vista. Realizando um palavras. N ós utilizamos uma consciência
ato rético, isto é, usando palavras segundo refinada dos termos para afinar nossa per-

J. L. A U S T IN

HOW TO DO THINGS
WITH WORDS

The William James Lectures


detíverei at Harvard Unhersity

« m s

Frontispício da primeira edição


da obra de John Langshaw Austin
(1911-1960)
Como fazer coisas com palavras, OXFORD L N IV E RS IT Y PRESS
que reúne um ciclo de aulas
LONDON OXFORD NEW YORK
dadas em 1955.
Capitulo de cimo sétiwio - y\ filosofia d a lin g u a g e m

cepção dos fenômenos” (Uma defesa para em nível introdutório, a natureza da própria
as desculpas, 1956). lógica form al” .
Seu livro mais conhecido, de 1959, é
Indivíduos. Ensaio de metafísica descritiva,
.A filosofia de Oxford onde, por “ metafísica descritiva” , Strawson
e a análise
entende exatamente a descrição dos concei­
tos de fundo com os quais nos relacionamos
da linguagem éfico-jurídica com a realidade. Essa metafísica descritiva
deve-se distinguir da metafísica revisionis­
ta, preocupada em mudar as estruturas de
Ao lado dos nomes de Ryle e Austin, leitura do mundo.
também destacam-se em Oxford os nomes O livro Indivíduos está dividido em
de R F. Strawson, A. J. Ayer, S. Hampshire, duas partes. “ A primeira parte procura
H. L. A. Hart, S. E. Toulmin, R. M. Hare, I. estabelecer a posição central que os corpos
Berlin, D. Pears, A. Montefiore, P. Nowell- m ateriais e as pessoas ocupam entre os
Smith e G. J. Warnock. Devido à diversidade particulares em geral. M ostra-se que, em
de formação desses pensadores, e à diferença nosso esquema intelectual, assim como ele
de seus âmbitos de investigação, também é, os particulares dessas duas categorias
aqui é difícil, se não impossível, dizer o que são particulares básicos ou fundamentais,
é comum a todos eles. M as, seja como for, que os conceitos de outros tipos de parti­
a atenção à linguagem comum é mais ou culares devem ser secundários em relação
menos constante na filosofia de Oxford. R. aos conceitos delas. N a segunda parte do
M . Hare, A. Montefiore, H. L. A. Hart, P. livro, o objetivo é o de estabelecer e explicar
Nowell-Smith, G. J. Warnock e, pelo menos a conexão entre a idéia de um particular
em grande parte, o próprio S. E. Toulmin, em geral e a de um objeto de referência ou
interessaram-se sobretudo (mas não exclu­ sujeito lógico” . Em suma, para Strawson,
sivamente) pelo problema ético, ou seja, a o conceito de pessoa é conceito primitivo.
análise da linguagem moral e, de quando em Ele está persuadido de que a concepção
vez, pela linguagem jurídica e política. comum ignora a noção cartesiana de esta­
N o livro Pensamento e ação (1960), S. dos de consciência estritamente privados.
Hampshire indagou a questão da liberdade E isso porque admite “ um tipo de entidade
humana e de sua relação com o conhecimen­ em que tanto os predicados que atribuem
to, tema ao qual voltou em 1965 com o livro estados de consciência como os predicados
Liberdade do indivíduo. Hampshire repele que atribuem características morais, uma
decididamente a idéia cristalizada de que situação física etc., são aplicáveis a todo
quanto mais conhecemos os mecanismos indivíduo desse tipo” .
da mente humana, mais se restringe a área
da decisão livre; na opinião de Hampshire,
ocorre o contrário, ou seja, quanto mais 5 S.-H ampsKiVe e A . 3 ■jAyer:
conheço minha mente, mais estou em condi­ um desacordo
ções de agir de modo livre e consciente.
sobre a volta a Kanf

I P. F. Strawson Como se vê, a metafísica descritiva de


e a metafísica descritiva Strawson é uma volta a Kant, realizada por
via lingüística: com efeito, o a priori de Kant
é projetado nas estruturas lingüísticas em
Peter F. Strawson é hoje uma figura Strawson. N essa questão Hampshire está
de primeiro plano entre os filósofos de muito próximo de Strawson. E a propósito
Oxford. Sua Introdução à teoria lógica é ele escreve que, “ como mostraram Kant e
de 1952, trabalho com o qual se propunha Wittgenstein [...], é preciso que comecemos
os seguintes objetivos complementares: “ O da situação real humana que condiciona
primeiro é o de destacar alguns pontos de todo nosso pensamento e linguagem” . E isso
contraste e de contato entre o comporta­ porque, na opinião dele, “ sob todas as gra­
mento das palavras na linguagem comum máticas particulares das diversas línguas, há
e o comportamento dos símbolos em um uma gramática mais profunda, que reflete os
sistema lógico; o segundo é o de esclarecer, aspectos universais da experiência humana.
Q uarta püYte - R u s s e ll, W it+ gen s+ ein e a filosofia d a lin g u a g e m

A tarefa que nos espera como filósofos é a de matemática, isto é, indicar suas regras, mas
penetrar nessa gramática mais profunda” . não baseá-la em algo. Ademais, o método
M as esse “ projeto” de Hampshire não de basear uma idéia sobre outra não pode
parece ter a concordância de A. J. Ayer, autor bastar para nós, o que deriva desta simples
daquele que foi um verdadeiro clássico do consideração: em algum ponto ele tem de
neopositivismo na Inglaterra, isto é, Lingua­ acabar, remetendo-nos a alguma idéia que,
gem, verdade e lógica (1936). Profundamen­ por seu turno, não pode se basear em nada.
te interessado pelos problemas do conhe­ A última base é constituída unicamente pela
cimento por ele analisados na e através da postulação. Tudo aquilo que tem o aspecto
linguagem, Ayer escreveu que “ há um perigo de uma fundamentação já contém algo de
em seguir Kant: é o perigo de sucumbir a um falso, o que não pode satisfazer” .
tipo de antropologia apriorística e presumir Esse convencionalismo permeia toda
que certas características fundamentais do a produção filosófica de Waismann. Aqui,
sistema conceituai próprio a nós são neces­ basta recordar seu ensaio Verificabilidade,
sidades de linguagem, que é o equivalente no qual Waismann sustenta que uma expe­
moderno da necessidade de pensamento” . riência “ fala por” ou “ fala contra” , “ mais
fortemente” , “ corrobora” ou “ enfraquece”
uma proposição, mas nunca a confirma
6 F.W a ismcmn: ou não a confirma. Analogamente, em sua
inacabada série de artigos sobre “ Analytic-
a filosofia não pode
Synthetic” , publicada em “ Analysis” (1949­
ter apenas 1952), Waismann se opõe à tendência “ dos
u m a tarefa terapêutica filósofos da linguagem comum” a acentuar
as “ regras” e a “ correção” . Ele tenta elimi­
nar as barreiras que separam tipos de pro­
N o espírito do convencionalismo lin­ posições: a correção, escreve ele, é o último
güístico também se situa o pensamento de F. refúgio daqueles que não têm nada a dizer.
Waismann, sempre elegante e agudo em seus E é precisamente por isso que Wais­
límpidos escritos. Waismann iniciou seu tra­ mann não quer atribuir à filosofia uma
balho em filosofia como assistente de Schlick função puramente terapêutica, vendo muito
e, portanto, como neopositivista. M as desde mais nela um elemento criativo, que a leva
o início ele se aproximou das perspectivas a destruir as ferrugens lingüísticas que nos
de W ittgenstein, com o testem unham o paralisam.
ensaio sobre a probabilidade publicado “ A filosofia — escreve Waismann — é
em “ Erkenntnis” em 1930 e sua Introdu­ visão. O característico da filosofia é a pene­
ção ao pensamento matemático, de 1936, tração na crosta enrijecida constituída pela
onde rejeita decididamente a idéia de que tradição e pela convenção, rompendo as
a matemática possa se “ basear na lógica” . amarras que nos vinculam a heranças ante­
Waismann afirma que “ a matemática não se riores, de modo a alcançar um modo novo
baseia em nada” : “ Nós podemos descrever a e mais poderoso de ver as coisas” .
Cãpítulo décifflO sétimo - ;A filosofia d a lin g u a g e m

= = m . A f i i osofia analítica ---


e a VedescobeH-a^do significado
d a linguagem metafísica

• Na atmosfera liberalizada a partir das cerradas criticas ao princípio de verifi­


cação (por meio do qual os neopositivistas vienenses haviam rejeitado como cúmulo
de não-sensos qualquer metafísica), a partir da introdução do princípio de uso do
"segundo" Wittgenstein, a partir do mesmo critério popperiano
de fasificabilidade (que é um critério de demarcação entre ciência A "redescoberta"
empírica e não-ciência, e não um critério de significância, árbitro da metafísica
do senso ou não-senso das proposições), e na convicção de que $ 7-2
a filosofia não pode ser apenas terapia, mas que ela, em suas
expressões maiores é, para dizer com Waismann, visão - em tal atmosfera e à luz
desta convicção em Oxford desapareceu a angústia em relação à metafísica.
Portanto, é um não senso afirmar que a metafísica é um não
senso; a metafísica é uma visão que nos permite ver a realidade o papel
de modo novo; é visão e, portanto "paradoxo", enquanto deve da metafísica
romper com os esquemas conceituais velhos; algumas metafísicas -»§ 3
podem gerar hipóteses científicas: "aquilo que começa como me­
tafísica pode term inar como ciência" (P. F. Strawson); no mais das vezes as teorias
metafísicas desenvolvem funções morais, políticas, de substituição ou negação ou
apoio de fés religiosas.

1 g r a n d e s p roblem as Estes são problemas (alguns “ clássi­


cos” ) que os filósofos da linguagem procu­
qw e o s filósofos an a lítico s
raram e procuram resolver.
pro cu ra ra m resolver

2 A) ova atitude
Pesquisas específicas foram realizadas em relação à
pelos filósofos analíticos não só sobre a lin­
guagem comum, mas também, por exemplo,
sobre a linguagem política, a ética, a histo- M as, em todo caso, é de grande im­
riográfica, a jurídica e a religiosa. portância ver como na filosofia analítica
- O que é típico de uma norma ética? tenha mudado a atitude iconoclástica que
Como a linguagem da ética se distingue da os neopositivistas tinham assumido em re­
das ciências empíricas? Como as normas lação à linguagem metafísica. Com efeito, os
éticas “ se fundamentam” ? filósofos do Wiener Kreis, equipados com o
- O historiador, quando escreve sobre princípio de verificação, sustentaram que os
história, constrói uma ciência como a físi­ discursos metafísicos são discursos privados
ca, ou a história é uma ciência sui generísl de significado próprio porque não verificá­
Que tipo de explicação é uma explicação veis e, portanto, não redutíveis à linguagem
histórica? Qual é a função das leis gerais na “ coisal” das ciências físico-naturalistas.
historiografia? O que é que transforma um O princípio de verificação, porém, deve
fato qualquer em um fato histórico? ter tido vida dura:
- Qual significado têm termos da lin­ 1) em primeiro lugar tal princípio pa­
guagem religiosa que não podem se referir a rece autocontraditório;
experiências observáveis? Que tipos de crité­ 2) em segundo lugar, não é preciso
rios é possível exibir para a aceitação de uma saber muito para compreender que ele, en­
fé religiosa? Como é possível falar de Deus? quanto tribunal de última instância, era
Q uarta parte - R u sse ll, W iffg e n s + e in e a filosofia d a lin g u a g e m

criptometafísico: quer-se jogar xadrez com modo de conceber as coisas. Como se tivesses
as regras do rúgbi; encontrado um novo modo de pintar; ou
3) e além disso ele— doente de finitismoentão
e um novo metro, ou um novo gênero
indutivismo — não se mostrou capaz de satis­ de canções” .
fazer as leis universais das ciências empíricas. 4) A metafísica é visão e, portanto,
E foi assim que todas estas críticas le­ paradoxo. Os paradoxos, ou seja, as asser­
varam de um lado à proposta, por parte ções metafísicas, são terremotos de nosso
de Popper, do critério de falsificabilidade establishm ent lingüístico-conceitual. As
como critério de demarcação (e não de sig- metafísicas proíbem a esclerose do pensa­
nificância, como era, ao contrário, o prin­ mento.
cípio de verificação) entre teorias empíricas 5) As funções realizadas pelas metafísicas
ou científicas e teorias não empíricas mas são tarefas morais, políticas, de asseguração
que todavia têm seu sentido, e do outro à psicológica, de apoio ou de substituição dos
introdução, por parte de Wittgenstein, do fins da religião.
princípio de uso. 6) As metafísicas podem desenvolver a
Pois bem, na atmosfera liberalizada importante função de gerar hipóteses cientí­
pelo critério de falsificabilidade e pelo prin­ ficas. São questões cientificamente insolúveis
cípio de uso, na filosofia de língua inglesa que põem, todavia, na maioria das vezes,
desapareceu a angústia neopositivista em problemas que encontram depois uma so­
relação à metafísica. Sem dúvida, as asser­ lução. De fato, disse Strawson, “ aquilo que
ções metafísicas não são nem tautológicas começa como metafísica pode acabar como
nem falsificáveis, mas não estão privadas ciência” . E isso porque “ uma reconstrução
de sentido. Também elas têm um uso, ou filosófica sistemática de conceitos e de for­
melhor, usos que é preciso individuar e não mas de linguagem pode por vezes ter uma
tanto condenar. aplicação em ramos de conhecimento dife­
rentes da filosofia” . E não diversamente de
Strawson pensa, a propósito de tal questão,
O s resultados K. R. Popper, para o qual “ a maior parte dos
mais significativos sistemas metafísicos pode ser reformulada
de modo tal a se tornarem problemas de
na reflexão
método científico” . A metafísica, portanto,
sobre a metafísica pode ser a aurora da ciência. Descartes gerou
Newton, Hegel alguns historiadores, e M arx
muita sociologia e muita historiografia.
Em síntese, os seguintes pontos repre­ 7) Se a m etafísica é visão, ou seja,
sentam os resultados mais significativos que, “ um modo de ordenar ou de organizar o
a partir da filosofia analítica, foram obtidos conjunto das idéias com as quais lemos o
na reflexão sobre a metafísica. mundo, então, se não somos reformadores
1) E um não senso afirmar que a meta­ metafísicos, uma tarefa útil é a de penetrar
física é um não senso. naquela gramática mais profunda que reflete
2) A “ cãibra mental” na reflexão sobre os pressupostos de todo nosso pensamento
a metafísica aparece quando pretendemos e experiência” . E com isso estamos naquela
que a metafísica seja “ informativa” da mes­ que Strawson chamou de metafísica descri­
ma forma que as ciências empíricas. tiva e da qual nos ofereceu um ensaio em
3) A metafísica é um new way ofseeing, Indivíduos.
um blick (o termo foi cunhado por Hare e 8) A metafísica não é um conjunto de
corresponde, grosso modo, a “ perspectiva” ), proposições ligadas aos dois extremos da
uma visão que nos permite olhar o universo eternidade. As metafísicas, em outras pa­
inteiro como se este se encontrasse em sua lavras, não devem ser vistas como animais
primeira manhã. Junto com o Wittgenstein em palhados, m as dinamicamente, como
das Pesquisas poderemos repetir ao metafí­ outros organismos que nascem, crescem,
sico: “ Descobriste, antes de tudo, um novo proliferam e morrem. fSTT-Fi 1 I 2 I 3 I
i n

Cãpítulo deciftlO setitno - jA filosofia d a lin g u a g e m --------

S trawson G rice, P ears , S trawson

D com
O que começa
o metafísica
2 O metafísico
"re-projeto
pode terminar como ciência todo o mapa
do pensamento"
Idéias que permaneceram, p o r p e río ­
dos mais ou menos longos, empiricamente fí metaFísica é um em preendim ento
incontroláveis - e, portanto, m etafísicas
teórico em que se tento re-ordenar ou re­
- sucessivamente se tornaram, com o cresci­ organizar o conjunto das idéias p o r meio
mento do sa b er de Fundo, teorias cientíFicas;
dos quais pensamos e lemos o mundo e a
o exemplo clássico é o do atomismo antigo.
realidade.
Uma concepção análoga à que Strauison d e ­
Fende aqui p od e se r encontrado também em
pensadores como Popper e em não poucos
O 0mpreendimento metafísico emerge,
historiadores da ciência.
principalmente, como tentativa de r0-ord0nar
ou de re-organizar o conjunto das idéias com
as quais pensamos o mundo; assimilando
O qu® dizer do aspecto imaginativo da uma à outra coisas que em geral distinguimos,
filosofia? Obviamente nem a habilidade no uso distinguindo outras delas qu0, ao contrário,
das técnicas para a construção dos sistemas normalm0nte assemelhamos, promovendo cer­
nem o olho arguto para os fatos lingüísticos é tas idéias a posições-chave, 0 d0gradando ou
de auxílio direto para a tarefa explicativa. Mas, eliminando outras, é em primeiro lugar um tipo
quando nos voltamos para o aspecto inventivo de revisão conceituai que o metafísico empreen­
ou construtivo - também se poderia dizer o a s­ de, um re-projetar o mapa do pensamento - ou
pecto metafísico - a coisa mostra-se diferente. parte dele - em novo plano. Naturalmente, tais
Rquele que constrói um sistema, guiado por revisões são freqüentemente empreendidas
ideais de elegância e exatidão quase mate­ dentro de s0tor0s particulares do p0nsam0nto
mática, fornece-nos os modelos dos modos humano 0, então, nõo são empreendimentos
segundo os quais poderíamos ter pensado 0 metafísicos. Mas a revisão qu0 o m0tafísico
falado, caso tivéssemos sido criaturas menos 0mpre0nd0, por mais qu© possa s©r ©mpreendi-
complexos e menos diferentes do que somos. da nos interesses - ou nos supostos interesses
Ro assim proceder, como já disse, ele pode - da ciência, ou à luz da história, ou por causa
lançar muita luz, tanto direta como indireta, de uma crença moral qualquer, é S0mpre de
sobre os asp0ctos fundam0ntais dos modos ordem diferente de uma revisão puramente
com que nós de fato pensamos e falamos. 6 s0torial. Com 0f0ito, entre os conceitos que ele
isso não é tudo. Uma reconstrução sistemática manipula há sempre alguns - como conheci­
dos concéitos e das formas lingüísticas, rea­ mento, existência, identidade, realidad0-qu0,
lizada pelo filósofo, por vezes pode ter uma como diss© Aristóteles, são comuns a todas os
aplicação em ramos do conh0cim0nto diversos disciplinas setoriais. Cm parte por esta razão,
da filosofia. Pode fornecer instrumentos úteis a revisão metafísica volta-se para a globalida-
e também indispensáveis para o progresso de, re-sistematiza tudo [...]. O metafísico par
da .matemática 0 das ciências a ela ligadas. C excellence [...] com mais ou menos temeridade,
nessa atividade de novo hó uma concordância ingenuidade e imaginação, re-proj0ta todo o
com as especulações inventivas da metafísica mapa [do p0nsam0nto].
mais tradicional. O que começa como metafísica
pode t0rminar como ciência. H. P. Grice,
D. F. Pears,
P. F. Strawson, P. F. Strawson,
Construção e análise, em W.fifl., Metaphysics, em W.Rfl.,
fí reviravolta lingüística The Nature
em FilosoFia. oF Metaphysics.
Q uarta parte - R u s s e ll, W ittg e n s t e m e a filosofia d a lin g u a g e m

Vamos dar um único exemplo de visão em


W aismann filosofia. UJittgenstein viu um grande erro de
seu tempo. Sustentava-se então por muitíssi­
mos filósofos que a natureza de coisas como a
esperança e o temor, ou como o entendimento,
o significado e o compreensão, pudesse ser
3 "é um nonsense dizer descoberta por meio da introspecção, en­
quanto outros, especialmente os psicólogos,
que a metafísica procuraram chegar a uma resposta por meio do
carece de sentido" experimento, tendo apenas noções obscuras
a respeito do significado de seus resultados.
UJittgenstein mudou todo o modo de enfrentar
fí característico mais essencial da meta­ a questão, dizendo: aquilo que estas palavras
física é que a filosofia é visão. Todo grande significam revela-se pelo modo com que são
Filósofo é guiado p elo sentido da visão: sem usadas: a natureza do compreender se revela
ele ninguém teria podido dar nova direção ao na gramática, e nõo no experimento. €sta foi
pensamento humano ou abrir janelas para o então uma autêntica revelação e veio-lhe, pelo
ainda-não-visto". que me lembro, de improviso.
fl concepção aqui sustentada é que no
centro vivo de toda filosofia há uma visão e que
Perguntar: "Qual é o vosso objetivo em fi­ ela deveria ser julgada conseqüentemente. As
losofia?" e responder: "Mostrar à mosca o cami­ questões realmente importantes que devem ser
nho de saída da garrafa", é... bem, por respeito, discutidas na história da filosofia não são se
vou calar aquilo que estava para dizer. 6cceto Leibniz ou .Kant fossem coerentes, como eram,
isto: existe algo de profundamente excitante em em seus raciocínios, mas muito mais o que se
torno da filosofia, e esse fato permanece incom­ esconde por trás dos sistemas que construíram.
preensível de um ponto de vista tão negativo. £ aqui desejo terminor, dizendo algo sobre a
Não é uma questão de "esclarecimento dos pen­ metafísica.
samentos", nem de “uso correto da linguagem", € carente de sentido dizer que a meta­
nem de qualquer outra dessas malditas coisas. física é carente de sentido. Dizendo isto não
O que é, então? fl filosofia é muitas coisas, e se reconhece o imenso papel desenvolvido,
não há fórmula capaz de compreendê-las todas. ao menos no passado, por aqueles sistemas.
Todavia, caso se peça para exprimir em uma só Por que sejam assim, por que eles tenham tal
palavra qual é sua característica mais essencial, influência sobre o mente humana, não tentarei
eu diria sem hesitação: a visão. No fundo de sequer discutir sobre isso. Os metafísicos, como
toda filosofia digna deste nome existe a visão, os artistas, são as antenas de seu tempo: têm o
e é daí que ela brota e toma sua forma visível. faro para farejar por qual caminho o espírito se
Quando digo "visão", é exatamente isso que move. (Sobre este assunto há uma poesia de
entendo: não quero fazer-me de romântico. O Ri Ike). Há algo de visionário nos grandes meta­
que é característico da filosofia é a penetração físicos, como se tivessem o poder de ver além
naquela crosta esclerosada que é constituída dos horizontes de seu tempo. Tomemos, por
pela tradição e pela convenção, rompendo exemplo, a obra de Descartes. Que ela tenha
aqueles laços que nos vinculam a preconceitos dado origem a infinitas cavilações metafísicas,
herdados, de modo a chegar a um modo novo é sem dúvida uma coisa que depõe em seu
e mais poderoso de ver as coisas. Sempre se desfavor. Todavia, quando se dá mais atenção
teve a sensação de que a filosofia devesse ao espírito do que às palavras, estou muito
revelar-nos aquilo que está escondido. (6 eu de inclinado a dizer que nela há certa grandeza,
fato não sou insensível aos perigos de uma con­ um aspecto profético da compreensibilidade
cepção desse tipo). Todavia, de Platão a Moore da natureza, uma corajosa antecipação daquilo
e UJittgenstein, todo grande filósofo foi guiado que muito mais tarde foi adquirido pela ciência.
por um sentido da visão: sem ele ninguém teria Os verdadeiros sucessores de Descartes foram
podido dar uma nova direção oo pensamento aqueles que traduziram o espírito daquela filo­
humano ou abrir janelas para o ainda-não-visto. sofia nos fatos, não Spinoza ou Malebranche,
[...] O que é decisivo é um novo modo de ver mas Neuuton e os fautores da descrição mate­
e, em concomitância com isso, a vontade de mática da natureza.
transformar todo o cenário intelectual. €ste é o
elemento essencial e qualquer outra coisa está F. Waismann,
subordinada a isso [...]. fínálise lingüístico e Filosofia.
ESPIRITUALISMO,
NOVAS TEOLOGIAS
E NEO-ESCOLÁSTICA

“O presente e o futuro, a experiência e a esperança


se contradizem na escatoiogia cristã, que não leva
o homem a resignar-se e pôr-se em acordo com
a realidade dada, mas o envolve no conflito entre
esperança e experiência.
Jürgen Moltmann

“Nosso passado inteiro nos segue em cada mo­


mento [...]; o que ouvimos, pensamos e quisemos
desde a primeira infância está lá, inclinado sobre o
presente, que está para absorver em si, premente
à porta da consciência”.
Henri Bergson

“Cristo não auxilia em virtude de sua onipotência,


mas em virtude de sua fraqueza, de seu sofrimento:
aqui reside a diferença determinante em relação a
qualquer outra religião”.
Dietrich Bonhoefer
Capítulo décimo oitavo

O espiritualismo como fenômeno europeu_________

Capítulo décimo nono

Henri Bergson e a evolução criadora______________


Capítulo vigésimo

A renovação do pensamento teológico no século X X

Capítulo vigésimo primeiro

A neo-escolástica, a Universidade de Louvain,


a Universidade Católica de Milão
e o pensamento de Jacques M aritain______________
( S a p ít u lo d é c im o o it a v o

O es pin+ual is mo
como jervômervo europeu

I. O espiníualismo: :
gênese; cam c+en sticas e expoentes

• O espiritualismo é um fenôm eno europeu; e é uma das formas da rea­


ção ao positivismo que teve lugar entre o século XIX e o século XX.
O propósito de fundo dos espiritualistas foi o de estabelecer
- contra o positivismo - a irredutibilidade do homem à natureza. A tarefa dos
espiritualistas:
Um programa desse tipo pressupõe que a filosofia não possa ser
defender
absorvida pela ciência, pois há problemas, soluções e procedi­ a irredutibilidade
mentos de pesquisas próprios dela. E focaliza a especificidade do do homem
homem em relação à natureza, pois o homem é interioridade e à natureza
liberdade, consciência e reflexão. 1-2
O instrumento de pesquisa - ignorado pelos positivistas
- é a escuta das vozes da consciência ou, para usar as palavras
de Plotino, "a volta da alma a si própria". Deus enquanto espírito absoluto e o
homem enquanto espirito finito constituem os dois núcleos mais consistentes da
filosofia espiritualista.

falar sobre o mundo do espírito, caminhos


4 » *ao rredwcionismo
Qf 0 . . . . .
positivista
ou procedimentos irredutíveis aos que são
próprios das ciências da natureza.
N ão que o positivismo desleixasse os
“ fatos humanos” ; pelo contrário. O que o
Entre o século X IX e o século X X ocor­ positivismo fazia era reduzir os fatos huma­
reu na Europa uma reação ao positivismo nos, todos os fatos humanos, à natureza. E
que teve em suas primeiras fileiras toda uma quem deveria se ocupar da natureza humana
gama de pensadores que podem muito bem e de seus produtos (jurídicos, morais, econô­
ser reunidos sob o nome de espiritualistas. micos, estéticos, religiosos etc.), com método
Em primeiro lugar, deve-se dizer logo que não muito diferente do das ciências naturais,
a preocupação mais premente do espiritua­ seria a sociologia ou a economia ou, por
lismo, em suas várias manifestações, é a de exemplo, a historiografia, entendidas como
estabelecer a irredutibilidade do homem à ciências positivas.
natureza, contrariamente ao positivismo. N ão existe nada fora dos fatos — dos
Esse programa voltou-se para a iden­ fatos positivos. E é preciso encontrar as leis
tificação de grupos de acontecimentos (va­ que determinam esses fatos positivos. Desse
lores estéticos, valores morais, liberdade da modo o positivismo, enquanto por um lado
pessoa, finalismo da natureza, transcendên­ cancelava a pretensão da filosofia tradicional
cia de Deus) que constituem o “ mundo do de se posicionar como conjunto de teorias
espírito” e para a elaboração de caminhos precisamente filosóficas (ou metafísicas) não
ou procedimentos típicos para indagar e redutíveis às da ciência, teorias filosóficas
Quinta parte - <£spiritual is m o, n o v a s te o lo g ia s e. n e o -e s c o lá s t ic a

construtíveis e justificáveis com métodos pelos estudiosos — a atitude própria da


diferentes dos da ciência, por outro lado filosofia espiritualista é muito antiga: bas­
negava precisamente esses “ fatos” (como a ta pensar em Plotino, em Agostinho e na
liberdade da pessoa humana, a interioridade “ verdade que habita na interioridade da
da consciência, a irredutibilidade dos valores alm a” , no “ cogito” de Descartes, no “ esprit
a fatos ou à transcendência de Deus) que, de finesse” de Pascal, na “ autoconsciência”
para o espiritualismo, são “ fatos” tão obs­ e na “ consciência” dos românticos, ou na
tinadamente reais quanto os fatos naturais, “ experiência interior” dos empiristas.
“ fatos” que é preciso tratar por caminhos 8) Deus enquanto espírito absoluto e o
independentes dos fatos da ciência. homem enquanto espírito finito são os pólos
de atração da filosofia espiritualista. E o ho­
mem é espírito, como escreve Louis Lavelle,
A s idéias b á sica s já que é a única atividade que merece esse
nome. Com efeito, enquanto toda outra
do espiritualismo
atividade material é causada e sofrida, o
homem é atividade causante e agente: “N ão
apenas o espírito é aquilo que nunca é coisa
Determinados esses dados, já não é ou objeto, existindo unicamente por força
difícil fixar alguns dos pilares em torno dos do seu próprio exercício, mas, além disso,
quais se articula o programa do espiritua­ sejam quais forem as condições que supõe,
lismo. ele é sempre livre iniciativa e primeiro co­
1) A filoso fia não pode, de m odo meço de si mesmo. Ele se cria a partir de si
nenhum, ser absorvida pela ciência. Ela se mesmo em cada instante” . E, produzindo-se
distingue da ciência pelos problemas de que a si mesmo, “ produz também, não as coisas,
trata, pelos resultados que obtém e pelos mas o sentido das coisas” .
procedimentos que adota.
2) Essa idéia de filosofia tem como
pressuposto a constatação da especificidade
do homem em relação a toda a natureza: o
homem é interioridade e liberdade, consciên­
cia e reflexão.
3) Essa especificidade do homem exige
instrumento de investigação desconhecido
aos positivistas, ou seja, ouvir as vozes da
consciência ou, para falar com Plotino, “ o
retorno da alma para si mesma” .
4) A realização dos objetivos do es­
piritualismo implica não somente a crítica
ao cientificismo positivista, mas também a
investigação sobre a estrutura e os limites do
saber científico propriamente dito.
5) Se o espiritualismo pode ser visto
como reação ao positivismo, em nome de
interesses morais e religiosos insubstituíveis,
ele também entra em confronto com o idea­
lismo romântico, que identifica o infinito
com o finito: o espiritualismo enfatiza a
transcendência do absoluto ou de Deus em
relação às consciências individuais.
6) Para o espiritualista, Deus também
é igualmente transcendente em relação à
natureza, que é causalmente determinada,
mas com base em desígnio finalista e provi­ Victor Cousin (1792-1867) é o filósofo francês
dencial superior. ao qual remonta o termo “espiritualism o".
7) O termo “ espiritualismo” remonta Aqui é reproduzido um retrato de L. H. Moucbot
a Cousin, mas — como foi bem ressaltado (Museu de Vcrsailles).
Cãpítulo décifflO oitãvo - O e s p ir itu a lis m o c o m o fe.noyne.no e u r o p e u

II. A s diversas m anifestações


do espiritualismo na. (Elu^opa.

• O representante mais conhecido do espiritualismo inglês é 0s e5pjrjtualistas


-a lé m do psicólogo James Ward (1843-1925)-C lem en t C. J. Webb na Inglaterra
(1865-1954), autor de Deus é personalidade (1919) e crítico, em _>§ i
nome de um Deus-pessoa, do absoluto impessoal dos idealistas.

• São muitos os filósofos espiritualistas na Alemanha: o filho de Fichte, Her­


mann Fichte (1796-1879); Eduard von Hartmann (1842-1906, autor da Filosofia do
inconsciente, 1869); Afrikan Spir (1837-1890); Rudolph Eucken (1846-1926, prêmio
Nobel em 1908, autor de A validade da religião, 1901).
Em todo caso, o mais influente espiritualista alemão foi Na Alemanha
Rudolph Hermann Lotze (1817-1881), médico e professor de 2
filosofia primeiro em Gõttingen e depois em Berlim. Autor de
uma Metafísica (1841) e de uma im portante obra em três volumes com o título
Microcosmo. Idéias sobre a história natural e sobre a história da humanidade
(1856-1864), Lotze aceita o mecanicismo; mas este é um fato que deve ser expli­
cado; e sua explicação leva a concluir que "todo o ser não pode existir assim como
é, a não ser pelas razões de que assim e não de outro modo nele se manifesta o
valor eterno do bem".

• Na Itália o espiritualismo encontra um expoente ilustre em um pensador,


grande conhecedor da filosofia contemporânea, e homem de nobre coerência
moral: Pedro Martinetti (1872-1943), um dos pouquíssimos profes­
sores universitários que souberam renunciar à cátedra em vez de Na Itália
jurar fidelidade ao fascismo. Suas obras de relevo são: Introdução - >§ 3
à metafísica (1904); A liberdade (1929); Razão e fé (1934); Jesus
Cristo e o cristianismo (1936).
"A religião, para M artinetti, é essencialmente mística, e, quando tende a en­
rijecer-se em fórmulas, tem necessidade da filosofia para rejuvenescer, renovando
seus símbolos" (V. Mathieu).

• A série dos espiritualistas franceses é cerrada e rica de valiosas idéias. Re­


cordamos apenas Jules Lequier (1814-1862), Félix Ravaisson (1813-1900), Émile
Boutroux (1845-1921) e Maurice Blondel (do qual falaremos à parte).
Boutroux quis defender o espiritualismo levando o ataque para dentro da
própria ciência. Ele - em um trabalho destinado a grande notoriedade: Da con­
tingência das leis da natureza (1874) - insiste sobre o fato de
que a ciência nos revela ordens de realidades irredutíveis-, assim, Na França
matéria, mundo orgânico e homem são ordens de realidade cada §4
uma das quais não é explicável com base na anterior, pelo fato de
que contém elementos originais, novos e, portanto, contingentes. Contingentes
no sentido de que não derivam necessariamente dos graus inferiores.
Desse modo Boutroux pode opor ao determinismo seu contingentismo: há um
salto da ordem química para a biológica; e há um salto da ordem biológica para
a espiritual: "a vida espiritual é irredutível à vida orgânica, ao menos porque, na
vida interior do homem, o motivo não é a causa necessitante".
Quinta parte - Ê s p iH tu a lis m o , n o v a s te o lo g ia s e n e o -e s c o lá s t ic a

CD espiritualismo Immanuel Hermann Fichte (1796-1879;


filho de Fichte; autor de muitos escritos,
n a Jrvglaterra
entre os quais uma Antropologia, 1856),
Afrikan Spir (1837-1890), Eduard von Har-
tmann (1842-1906; autor da Filosofia do
É verdade o que Lavelle escreveu, isto inconsciente, 1869), Rudolf Eucken (1846­
é, que “ a filosofia francesa é, por excelência, 1926; professor em Jena; prêmio Nobel
uma filosofia da consciência” . E também é em 1908; autor, entre outros livros, de A
verdade que o espiritualismo alcançaria seus validade da religião, 1901, e O sentido e o
resultados de maior relevância precisamente valor da vida, 1908), e Rudolph Hermann
na França (com Ravaisson, Boutroux, Blon­ Lotze (1817-1881; médico e professor de
del e, sobretudo, com Bergson). Entretanto, filosofia, primeiro em Gõttingen e depois
não podemos silenciar sobre um fato de em Berlim; autor de uma Metafísica, 1841,
notável importância, ou seja, que o espiri­ e de uma obra mais importante, intitulada
tualismo se configurou como grande fenô­ Microcosmo. Idéias sobre a história natural
meno europeu, envolvendo o pensamento e sobre a história da humanidade, 3 vols.,
inglês, alemão e italiano, além do francês. 1856-1858,1864).
Os representantes mais conhecidos do Para o Fichte júnior, uma função inadiá­
espiritualismo inglês são Arthur Jam es Bal- vel da filosofia está na defesa da concepção
four (1848-1930), Clement C. J. Webb (1865­ finalista do mundo, o qual se lhe apresenta
1954), o psicólogo James Ward (1843-1925) como “ uma série gradual de meios e fins” .
e Andrew Seth Pringle-Pattison (1856-1931). E essa ordem pressupõe um ordenador e
Este último desenvolveu seu espiritua­ criador do próprio mundo. Daí brota a idéia
lismo polemizando contra a abstração lógica de Fichte de que a ciência, “ que, em si, não
hipostatizada que é a “ consciência absoluta” é ateísta nem antiteísta” , constitui “ o mais
dos neo-idealistas como Green ou Bradley. sólido ponto de apoio para uma concepção
Webb tam bém criticou o absoluto teísta” , já que mostra claramente, em toda a
impessoal dos idealistas e afirmou (em tra­ natureza orgânica e psíquica, “ um finalismo
balhos como O s problemas da relação entre interno e ordenação total e completa” .
o homem e Deus, 1911, e Deus é persona­ Spir combateu com todas as forças,
lidade, 1919) que somente um Deus-pessoa de um lado, as filosofias materialistas e, do
satisfaz as exigências mais profundas de outro, as filosofias românticas que tendem a
experiência religiosa autêntica. E é por essa identificar o incondicionado com a natureza.
razão que Webb chega a definir a experiên­ Bem diferente das posições de Spir revela-se
cia religiosa como a certeza de uma relação a concepção filosófica de Eucken, embora
pessoal com Deus. também ele parta daquele contraste entre
James Ward (Naturalismo e agnosticis- espírito e natureza que se manifesta em
mo, 1899; O reino dos fins ou pluralismo e nossa consciência. Com efeito, nossa vida,
teísmo, 1911) voltou-se, por sua vez, contra por um lado, põe-se como continuação da
o naturalismo e o agnosticismo. Ward vê natureza sensível, mas, por outro, prorrom-
na natureza e na história a ação de mul­ pe em atividades estéticas, éticas e religiosas
tiplicidade de mônadas, que, em diversos que testemunham um estatuto ontológico
graus de desenvolvimento, tendem à auto- superior do homem em relação à natureza.
conservação, avançando finalisticamente na Von Hartmann, por sua vez, apresenta
direção de uma coordenação progressiva, o princípio de sua filosofia como síntese
que pressupõe, como já vira Leibniz, um do espírito absoluto de Hegel, da vonta­
teísmo, ainda que, para Ward, esteja claro de de Schopenhauer e do inconsciente de
que a única prova da existência de Deus, Schelling. O princípio do mundo é um abso­
como ocorria para Kant, baseia-se na vida luto espiritual inconsciente que se manifesta
moral e se resolve, portanto, no âmbito da no finalismo inconsciente da natureza, na
fé e não no âmbito do saber. organização do mundo orgânico, no ins­
tinto etc.
Apesar do sucesso de Spir, Eucken e
CD espiritualismo n a jAlemanka von Hartmann, o pensador mais articulado
e influente entre os espiritualistas alemães foi
certamente Lotze, o qual não pensa de modo
N a Alemanha o espiritualismo encon­ nenhum que as aspirações da alma estejam
trou seus mais autorizados defensores em em contraste com os resultados da ciência e
Cãpítulo décimo oitãvo - CD esp iritu a lism o c o m o j-enôm eno e u ro p e u

com a imagem mecanicista do mundo, que os sistem as filosóficos, em seu conjunto,


então a ciência pressupunha e reafirmava. O constituem uma progressiva ascensão ao
mecanicismo mostra que a natureza é regu­ conhecimento do divino. Nesse sentido, a
lada por leis necessárias, mas esse fato — o filosofia “ não é uma série de soluções, mas
mecanicismo — é explicável por seu turno, uma solução única, uma visão única” .
pois não se trata de fato último: ele só se Entretanto, essa ascensão em direção
torna compreensível como meio destinado a à unidade encontra um obstáculo naquele
realizar valores. Em suma, a ordem da m á­ mal, naquela “ obscura e incriada potência,
quina demonstra um plano racional. Assim inseparável do mundo, que devemos vencer
como o demonstraria um mecanicismo em em nós com a boa vontade e dissolver em
condições de provar que toda a realidade se torno de nós com a luz da verdade” . Esse
desenvolve em um processo evolutivo que profundo dualismo faz com que Martinet­
termina na vida espiritual do homem: este ti sinta-se próximo a Buda, a Kant (cujo
seria o fim, e a evolução um meio. E desse pensamento culmina “ em moral de caráter
modo que a matéria se espiritualiza: trans­ religioso” ), ou a Spir. Outras obras signifi­
formando-se em meio para os valores. E, na cativas de Martinetti, além das citadas, são
realidade, Lotze distingue três reinos: o dos Razão e fé (1934) e Jesus Cristo e o cristia­
fatos, o das leis universais e o dos valores. nismo (1936).
O m ecanicism o expressa aquela ordem Se o espiritualismo de Martinetti se
necessária do mundo, através da qual Deus aproxima do de Spir, o espiritualismo de
realiza os seus fins. Bernardino Varisco (1850-1935) revela-se
próximo à concepção de Lotze. Pantaleão
Carabellese (1877-1948) foi aluno de Va­
3 O espiritualismo n a CJtál ia risco. A partir de aprofundado estudo de
Kant, ele nega tanto o idealismo absoluto,
que exclui a multiplicidade dos sujeitos e re­
N a Itália, o espiritualismo se desenvol­ sume o ser na consciência, como o realismo
veu em período cronologicamente posterior absoluto, que põe o ser fora da consciência.
àquele em que se deu em outros países, po­ A realidade, portanto, não é constituída so­
lemizando não somente com o positivismo, mente pelos corpos materiais (como sustenta
mas também tendo de se defrontar com o o materialismo), e tampouco se resume em
idealismo, que, entrementes, se impusera puro sujeito (como afirma o idealismo), nem
na Itália. Pedro Martinetti (1872-1943) foi ainda nela devemos ver aqueles dois mundos
estudioso dos clássicos (Platão, Spinoza, paralelos que seriam a natureza e o espírito
Kant, Schopenhauer) e profundo conhece­ (como diz o realismo). Para Carabellese, a
dor da filosofia alemã contemporânea, que realidade é feita de concretos, e o concreto
ele difundiu na Itália, e foi um exemplo de é a unidade entre sujeito e objeto.
vida moral. Sua obra A liberdade é de 1929.
M as já em 1904 ele publicara a Introdução à
metafísica, onde, desde as primeiras páginas, 4 O espiritualismo n a I r r a n ç a
afirma existirem problemas urgentes aos e o contingentismo
quais as ciências particulares não respon­
dem, mas que esperam resposta racional: de Boutroux
“ O que sou? O que é a realidade que me
circunda? De que modo devo agir? [...]. O
próprio fato de aceitar determinado sistema Do início do século X IX é a filosofia
de vida é, de fato, aceitar determinada hi­ de Maine de Biran, pensador ao qual, em
pótese acerca da realidade das coisas e do seguida, se referiram todos os filósofos que
valor da vida humana” . constituiriam a numerosa e viva fileira dos
Para Martinetti, a metafísica não se dis­ espiritualistas franceses. Entre eles, não
tingue das outras ciências pelo método, e sim devemos esquecer Jules Lequier (1 8 1 4 ­
“ pela universalidade da função” : ela tenta 1862), Félix Ravaisson (1813-1900), Émile
aquela unificação total da experiência “ que, Boutroux (1845-1921), e principalmente
porém, por sua natureza, o intelecto nunca Maurice Blondel, que representa certa “ va­
poderá alcançar” . Por isso, é necessário o riante” e que, portanto, trataremos à parte,
exame gnosiológico das soluções históricas no próximo parágrafo.
propostas ao problema metafísico. E esse Discípulo de Ravaisson, cunhado e ami­
exame crítico e histórico mostrará que todos go de Poincaré, professor na École Normale
340
Quinta parte - ÊspiH+ual ism o, n o v a s teol o a ia s e n e o -e s c o lás+i c a

J f- .

Bernardino Varisco (1850-19 > >’),


junto com Pedro Martinetti
c Pantaleão Carabellese,
foi um dos maiores representantes
do espiritualismo italiano.

e na Sorbonne, Émile Boutroux procura Boutroux opõe ao determinismo seu contin-


chegar ao espiritualismo transportando a gentismo. O determinismo afirma que “ tudo
crítica para dentro da ciência e voltando-se o que acontece é um efeito proporcional à
para as dificuldades, em sua opinião evi- causa” , mas Boutroux sustenta que ordens
denciáveis, da ciência contemporânea. Essa de realidade inferiores não podem produzir
crítica à ciência constitui um elemento de as ordens superiores: com efeito, por um
novidade para o espiritualismo, novidade lado, “ as leis da fisiologia se apresentam [...]
que, depois, Bergson desenvolveria ainda irredutíveis” (às da física e da química) e,
mais. N a obra D a contingência das leis da por outro lado, “ a vida espiritual é irredutí­
natureza (1874), Boutroux aceita a classi­ vel à vida orgânica, ainda que pelo simples
ficação das ciências proposta por Comte, fato de que, na vida interior do homem, o
acrescentando-lhe apenas alguns retoques. motivo não é a causa necessitante” .
Entretanto, insiste sobre o fato de que cada O efeito, portanto, não é proporcional
ciência nos revela uma ordem da realidade à causa: nele há “ algo m ais” , de novo e
irredutível às outras ordens. Em outros imprevisível. Ele é, portanto, contingente.
termos, a matéria, o mundo orgânico e o A vida espiritual não se reduz à ordem
homem, por exemplo, são ordens de reali­ material das coisas, como também revela a
dade de tal tipo que cada uma delas não é originariedade da vida moral, que se baseia
explicável com base na anterior, pelo fato no dever-ser e no ideal. E a ciência não pode
de que contém elementos originais, novos incomodar em nada a fé religiosa, já que “ a
e, portanto, contingentes: contingentes no religião tem objeto diferente do da ciência” .
sentido de que não derivam necessariamente A religião não pretende ser “ a explicação
dos graus inferiores. dos fenômenos” e, por isso, “ não pode sen­
Existe um salto da ordem química para tir-se atingida pelas descobertas científicas
a ordem biológica, assim como há um salto relativas à natureza e à origem objetiva das
da ordem biológica para a ordem espiritual. coisas” .
Cãpítulo décimo oitavo - O esp iritu a lism o c o m o fe n ô m e n o e u ro p e u

III. yVlaunce Slondel


e a ^filosofia d a a ç ã o /

• A filosofia da ação é uma filosofia com resultados religiosos. O mais famoso


representante da filosofia da ação é Maurice Blondel (1861-1949), cuja obra mais
incisiva é A ação. Ensaio de uma crítica da vida e de uma ciência da prática (1893).
Escreve Blondel: "A ação, em minha vida, é um fato, o mais
geral e constante de todos". A experiência humana, em outros 0 métoc/o
termos, não se caracteriza pela razão, e sim muito mais pela ^a ímanênda
ação. E na ação o homem expressa o mais profundo de si: sua de Blondel:
vontade. reconhecer
Mas sempre, na própria experiência, o homem percebe na natureza
a desproporção entre a própria vontade e a obra. Assim, por finita
exemplo, primeiro entregamo-nos às sensações; estas, porém, são do homem
interpretadas e enquadradas em generalidades empíricas; mas
estas generalidades empíricas - que constituem a ciência - não de “ Deus
1-3
conseguem dar ao intelecto e à vontade a paz cheia da certeza
e do pleno sucesso prático. Não há paz sequer na ciência. Nem
a ciência está em grau de resolver o enigma do destino humano; a ciência, além
de tudo, está suspensa ao elemento subjetivo que "cria o mundo e os símbolos
da imaginação".
Se depois do universo do conhecimento nos deslocamos para o universo da
família e do social, ou seja, o universo dos valores, percebemos que o desacordo
entre ser e dever-ser, entre vontade que quer e realizações, mais se acentua do
que se extingue: o plano do finito não consegue satisfazer aquela que é uma
sede inextinguível. E preciso, portanto, transcender o plano do finito. "Querer
tudo aquilo que queremos com plena sinceridade de coração é pôr em nós o ser
e a ação de Deus".
Nisso consiste exatamente o método da imanência: em reconhecer na natureza
finita do homem a exigência de Deus. O reconhecimento da insuficiência da ordem
natural permite ao homem reconhecer e receber o sobrenatural. Afirma Blondel:
"Da mesma forma que nós, agindo, encontramos uma desproporção infinita em
nós próprios, somos obrigados a buscar a equação de nossa ação ao infinito".

• Ligado à filosofia da ação e ao m étodo da imanência de Blondel está o


modernismo, m ovim ento religioso condenado pelo papa Pio X com a Encíclica
Pascendi, de 8 de setembro de 1907. Os expoentes principais do
modernismo foram o abade Lucien Laberthonnière (1860-1932) o modernismo
e Alfred Loisy 1857-1940), na França; George Tyrrell (1861-1909)
na Inglaterra; e na Itália: A ntonio Fogazzaro (1842-1911), Rô-
molo M urri (1870-1944) e sobretudo Ernesto Bonaiuti (1881-1946), autor, entre
outras coisas, de um conhecido Programa dos modernistas (1911).

• Em O realismo cristão e o idealismo grego (1904) Laber- Laberthonnière:


thonnière afirma que a Escolástica, sob o peso das categorias a exigência do
lógico-metafísicas do mundo grego, teria perdido a descoberta sobrenatural
cristã da subjetividade e da interioridade. Nos Ensaios de filosofia está na natureza
religiosa (1903) Laberthonnière escreve: "É na natureza humana humana
que se encontram de novo as exigências do sobrenatural".
Quinta parte - E s p i r i t u a l is m o , n o v a s f e o lo g ia s e n e o - e s c o lá s + ic a

O s precedentes o filósofo John Henry Newman (1801-1890,


anglicano de origem, que se converteu ao
da filoso fia da ação
catolicismo em 1845, e tornou-se cardeal
em 1879).
Uma variante do espiritualism o é a Autor de um célebre Ensaio de uma
filosofia da ação. Como o espiritualismo, gram ática do assentimento (1870), New­
a filosofia da ação também é uma filosofia man sustentava que, quando uma idéia
de resultados decididamente religiosos. E, é verdadeiramente viva, ela não é pura e
como o espiritualismo, também a filosofia simples questão intelectual, mas envolve
da ação estabelece a consciência como base também a vontade humana. Para Newman,
da filosofia, que se exerce como escuta e des­ o cristianismo é precisamente a grande idéia
crição da vida da consciência. Somente que, que conquistou a humanidade e continua a
diversamente do que ocorre entre os outros plasmá-la em seu desenvolvimento.
espiritualistas, a consciência dos filósofos Por seu turno, em A certeza m oral
da ação não é contemplação teórica, e sim (1880), Ollé-Laprune defendeu a idéia de
muito mais vontade e ação. que, na vida do espírito, o predomínio cabe
O m aior representante da filosofia à vontade. Esta é certamente insuficiente e
da ação é Maurice Blondel (1861-1949). necessita da graça divina; entretanto, sua
Entretanto, deve-se recordar que ele deve a função verdadeiramente dominante está fora
orientação de suas pesquisas a seu mestre de discussão, inclusive no seio das atividades
Léon Ollé-Laprune (1830-1899), devendo- racionais. Com efeito, escreve Ollé-Laprune:
se recordar também que pode ser igualmente “ A vontade, a boa vontade, exerce em toda
considerado o iniciador da filosofia da ação parte, inclusive na pura ordem científica,

M a u r ic e B lo n d e l ( 1 8 6 1 - 1 9 4 9 )
fo i o m a io r rep re se n tan te
d a filo so fia d a a ç ã o :
u m a filo so fia d e r e su lta d o s
d e c is iv a m e n te r e lig io s o s
e in te r lig a d a c o m o m o v im e n to
d e p e n sa m e n to m o d e r n ista .
343
Cãpítulo decimo OltüVO - O espiritualismo como fenômeno europeu

uma influência que nada pode conseguir pelo cientista acabam por ser tão coerentes
substituir” . entre si e por ter tal eficácia [...] que o cien­
tista se vê fortemente tentado a considerar
todo esse simbolismo como imagem fiel da
;A dialética da vontade realidade, como a própria realidade” .
M as isso, diz logo Blondel, é “ erro
fundamental que se deve combater” . E é
Dito isso, vamos a Blondel. Em 1893, erro que devemos combater pelo fato de
ele publicou sua obra mais conhecida e im­ que também na ciência não há paz: o dis­
portante: A ação. Ensaio de uma crítica da sídio se apresenta nela, por exemplo, entre
vida e de uma ciência da prática. relações universais e intuições do particu­
O livro se abre com a seguinte in­ lar. Tampouco a ciência está em condições
terrogação: “ A vida humana tem ou não de resolver o enigma do destino humano.
tem sentido? O homem tem ou não tem Aliás, ao contrário, é o destino humano
destino?” Para poder responder à pergunta que fornece o sustentáculo para a ciência,
sobre o sentido da vida, devemos interrogar enquanto esta “ permanece como que sus­
a própria vida, diz Blondel. Entretanto, se pensa” ao elemento subjetivo. A consciência
interrogarmos a vida e tentarmos descrevê- — e, portanto, a ação — foge à ciência, “ já
la, devemos tomar consciência de que “ é que é precisamente ela que cria o mundo e
preciso transportar para a ação o centro os símbolos da imaginação” . N o fundo e
da filosofia, já que lá se encontra também o em sua essência, “ a ação é sempre um além
centro da vida” . A experiência humana não [...]. Para a frente e para o alto, só assim a
é tipificada pela razão, mas precisamente ação é ação” .
pela ação: “ Em minha vida, a ação é fato, M as a ação “ é uma função social por
o mais geral e constante de todos” . excelência [...]; agir quer dizer evocar outras
O homem age e deve agir. E na ação que energias, chamar testemunhas, oferecer-se
ele expressa o mais profundo de si mesmo, ou impor-se à sociedade dos espíritos” . E
sua vontade. E é precisamente na ação que a assim nasce a abertura para os outros na
filosofia deve procurar a orientação, o fim a família, na pátria e na humanidade. Desse
ela imanente. E é assim que o núcleo central m odo, tenta-se satisfazer aquele desejo
em torno do qual se articula A ação é dado único que é “ expandir-se e crescer” . Aqui,
pela dialética da vontade. porém, longe de se extinguir, acentua-se o
Com efeito, a dialética da vida não é a dissídio entre o dever-ser e o ser, entre von­
dialética da razão, como para Hegel, e sim da tade que quer e vontade querida: o plano
vontade. A vida é tecida pelo contraste entre
vontade que quer ( “quod. procedit ex volun-
tate” ) e vontade querida, isto é, o resultado
efetivo ( “quod voluntatis objectum fit” ).

■ M é to d o da im a n ê n c ia . É o mé­
todo feito justamente por Maurice
O método da imanência Blondel, Lucien Laberthonnière - e
não só por eles - para construir uma
apologética da fé cristã; apologética
Em sua própria experiência, por con­ que, tornando aguda a consciência da
seguinte, o homem sempre percebe a des­ natureza finita e constitutivamente
proporção entre a vontade e a obra, entre insatisfeita do homem, mostra que o
a vontade que quer e a vontade querida. E divino é imanente no homem, pelo
menos sob a forma de aspiração ou
o apoiar-se em um resultado logo se revela exigência.
ilusório, posto que tal resultado não tardará Blondel: "Querer tudo aquilo que
a m ostrar sua parcialidade, insuficiência queremos com plena sinceridade de
e provisoriedade. Assim, inicialmente nos coração é pôr em nós o ser e a ação
entregam os às sen sações, apesar de as de Deus".
sensações deverem ser interpretadas em e Laberthonnière: "É na natureza hu­
ligadas por generalidades empíricas. Essas mana que encontramos de novo as
generalidades empíricas que relacionam, exigências do sobrenatural".
interpretam e superam as sensações cons­
tituem a ciência, e “ os símbolos instituídos
Quinta parte - E s p ir itu a l ism o, n o v a s fe o lo g ia s e n e o -e s c o lá s + ic a

do finito não consegue aplacar uma sede cristão e o idealismo grego (1904), põe em
inextinguível. E, no fim, confessa Blondel, contraste a filosofia grega, que faz de Deus
encontro-me “ dividido entre o que faço sem uma idéia suprema e o arquétipo da natu­
querer e o que quero sem fazer” . Por isso, reza, e a descoberta cristã do sujeito. Essa
“ para querer-me a mim mesmo plenamente, intuição cristã essencial, isto é, a descoberta
é necessário que eu queira mais do que até da subjetividade e da interioridade, segundo
agora soube encontrar” , ou seja, é preciso Laberthonnière, ter-se-ia perdido quando a
transcender o plano do finito. Somente Deus Escolástica tornou suas as categorias lógico-
pode preencher o vazio entre minha vontade metafísicas do mundo grego. M as, diz ele
e suas realizações: “ Querer tudo o que que­ nos Ensaios de filosofia religiosa (1903), a
remos com plena sinceridade de coração é revelação não pode ser imposta ao homem de
pôr em nós o ser e a ação de Deus” . fora, recorrendo à autoridade ou por meio da
Com isso, chegamos plenamente ao demonstração racional. A verdade religiosa
método da imanência. Esse método (como deve brotar da interioridade do homem: a
Blondel esclarecerá na Carta sobre as exi­ verdade da revelação só tem valor para o ho­
gências do pensamento contemporâneo em mem na condição de que ele a recrie por sua
matéria de apologética, 1896) consiste em própria conta. É “ na natureza humana que
reconhecer na natureza finita do homem a se encontram as exigências do sobrenatural” .
exigência de Deus. E B É L jJ Exegeta e historiador do cristianismo,
Loisy é autor de obras famosas, como O
evangelho e a Igreja (1902), A religião de
Israel (1901), O quarto evangelho (1903) e
filosofia da ação Os evangelhos sinóticos (1907-1908). Loisy
e suas relações procurou distinguir a exegese puramente
crítica e histórica da exegese “ teológica e
com o modernismo pastoral” , que extrai das Escrituras respos­
tas adequadas às necessidades atuais dos
crentes. Ele sustentava que alguns livros da
Ligado à filosofia da ação e ao método Bíblia foram transformados e enriquecidos
da imanência de Blondel é o modernismo, por obra das gerações posteriores. E isso
movimento de pensamento religioso que também teria ocorrido no caso dos evan­
apareceu na França no início do século X X , gelhos sinóticos. Substancialmente, Loisy
e que foi logo depois condenado pelo papa sustenta que “ o Evangelho não entrou no
Pio X , com a encíclica Pascendi, de 8 de se­ mundo como absoluto incondicionado, que
tembro de 1907. Os principais expoentes do se resume em verdade única e imutável, mas
modernismo foram o abade Lucien Laber- como uma crença viva, concreta e comple­
thonnière (1860-1932) e Alfred Loisy (1857­ xa, cuja evolução procede, sem dúvida, da
1940). Edouard Le Roy, sucessor de Bergson força íntima que o tornou duradouro, mas
no Colégio da França, também se inseriu nem por isso deixou de ser influenciado em
no movimento modernista, tentando uma tudo, desde o início, pelo ambiente em que
síntese com o bergsonismo. N a Inglaterra, se produziu e no qual cresceu” . Daí brota a
as idéias modernistas foram difundidas por idéia segundo a qual o dogma tem uma his­
George Tyrrell (1861-1909), ao passo que tória. Portanto, o que conta, para Loisy, não
na Itália seus representantes foram Antônio é tanto a defesa de definições historicamente
Fogazzaro (1842-1911), R ôm olo M urri datadas, e sim muito mais a acentuação do
(1870-1944) e, sobretudo, Ernesto Bonaiuti significado moral da religião. Em poucas
(1881-1946), autor, entre outras coisas, de palavras, o m odernism o procurou uma
um Programa dos modernistas (1911). mediação do dogma com a subjetividade
Laberthonnière (diretor dos “ Anais humana e uma mediação da verdade supra-
de filosofia cristã” , que foram publicados histórica da revelação cristã com a evolução
de 1905 a 1913), em sua obra O realismo histórica da humanidade.
Cãpítulo décimo oitavo - O esp iritu a lism o c o m o fe n ô m e n o e u ro p e u

nós uma vontade superior às contradições da


vida e aos desmentidos empíricos.
B londel fl presença em nós daquilo que não é que­
rido põ© em evidência a vontade que quer em
toda a sua pureza; e esse mecanismo interno
não faz mais que manifestar a necessidade em
que se encontra a vontade de se querer e de
^1 O homem: s© pôr por si mesmo; o tanto de ser que pos­
umser finito que tende suímos nós o sofremos, mas apesar disso não
"naturalmente" podemos deixar de adotá-lo como de nossa
plena satisfação.
ao "absoluto" fl vida é mais sutil do que qualquer
análise, mais lógica do que qualquer dialé­
tica. [...]
fí idéia de Deus nasce necessariamente
Uma inquietação, uma aspiração natural
do dinamismo da vida interior: "fí pretensão
para o melhor, o sentimento de uma função a
que o homem tem de se bastar a si mesmo
realizar, a busca do significado da vida, portan­
cai no vazio [...]. O homem sente até a an­
to, ©is aquilo qu© marca a conduta humana com
gústia de não se r seu próprio autor e seu
um selo necessário. O homem sempre coloca
próprio senhor".
em seus atos, por mais obscura que seja a
consciência que tenha disso, esse caráter de
transcendência. Cste é o princípio que anima
O homem aspiro a ser plenamente aquilo todo o movimento da vida em nós; sob qualquer
qu® quer 0 não pode absolutamente sê-lo a forma, clara ou confusa, aprovada ou rejeitada,
despeito de si mesmo. Fl vontade só existe à confessada ou anônima que s© revele à cons­
medida que s© manifesta 0 S0 ratifica, à m0dida ciência a verdade desta presença, ela tem uma
qu0 p0n0tra, domina 0 suscita até s©us órgãos eficácia certa.
d© expressão. Naquilo qu© quer a vontade fl idéia de Deus, quer se saiba ou não,
©ncontra invencív0is obstáculos ou odiosos é o complemento inevitável da ação humana,
sofrim0ntos, naquilo qu® faz insinuam-s© incu­ mas a ação humana tem, além disso, a ine­
ráveis fraqu0zas ou culpas das quais não pode vitável ambição de alcançar e empregar, de
canc0lar as conseqüências; 0 a morte por si só definir e realizar em si esta idéia da perfeição.
compêndio todos estes ensinamentos. Não podemos conhecer Deus sem querer nos
Sofr0r aquilo qu© não se qu©r, não fazer tornarmos Deus de algum modo. fl idéia viva
tudo aquilo qu© se quer, fazer aquilo qu© não que dele temos é e continua viva apenas se
s© qu0r 0 acabar por qu0rê-lo; nunca escapa­ nos voltarmos para a prática, caso nossa ação
mos totalm0nt0 desta fatalidade humilhante 0 dela viva e dela se nutra, fl opção nos é im­
dolorosa. posta, mas é por meio dela que nos tornamos
Os atos fora d© nós agem s©m nossa aquilo que queremos; qualquer coisa qu© dela
intervenção, vivem e são indestrutíveis, fl ação resulte nós apenas a podemos atribuir a nós
é indelével; nenhuma ind0nização éjam ais uma mesmos, flssim, em última análise, não é a
reparação absoluta. Suas cons0qüências s© liberdade que se absorve no determinismo,
d0S0nvolv0m ao infinito, no t0mpo 0 no espaço. mas é o determinismo total da vida humana
S0 a incapacidade em que o homem se que se torna suspenso nesta suprema alter­
sente de levar a termo sozinho a mínima de suas nativa: ou excluir de nós toda outra vontade
obras o levou a todas as formas da supersti­ exceto a nossa, ou abandonarmo-nos ao ser
ção, a impossibilidade em qu© s© ©ncontra d© que não somos como ao único salvador. O
dirigir soberanamente a própria vida e de se homem aspira a representar-se como deus:
purificar sozinho lhe inspirou toda a verdade ser deus sem Deus e contra Deus, ou ser deus
das súplicas, das preces, dos sacrifícios propi- por meio de Deus e com Deus: eis o dilema.
ciatórios. Mais sabe mais tem, mais é e mais Por meio desta opção ele se torna aquilo que
n©le se aviva a consciência de não ter, de não quer, e de sua livre iniciativa depende sua
ser aquilo que quer. destinação.
Seja o qu© for qu© s© tiv©r ganho daquilo Diante do ser e do ser somente se aplica
que quisemos, a bancarrota, colocando-s© na a lei de contradição em todo o seu rigor e se
própria ordem das coisas queridas, é inevitável. exercita a liberdade com toda a sua força. Onde
O sentimento da aparente falência de nossa quer que se vá, ou para perder-se ou para
ação é um fato apenas enquanto implica em salvar-se, se terá querido.
Quinta parte - Ê sp iritw a lism o , n o v a s te o lo g ia s e n e o -e s c o lá s t ic a

fl necessidade poro o homem de optar contra si mesmo. Não poderá viver, portanto,
apenas manifesta sua vontade de ser aquilo a não ser renascendo para uma ação diferente
que quer; sua ação, portanto, tem um ser neces­ do sua.
sário, mas este ser, caso pretenda encontrá-lo M. Blondel,
ou conservá-lo todo em si mesmo, volta-se fí filosofia da ação.
C a p ít u lo d é c im o nono

f lt í n H B e r g s o n

e a evolução criadora

• Ensaio sobre os dados imediatos da consciência (1889); Matéria e memória


(1896); A evolução criadora (1907); As duas fontes da moral e da religião (1932):
são estas as obras mais significativas de Henri Bergson (1859-1941), o mais influente
filósofo francês no período entre as duas guerras; seu propósito
de fundo foi a defesa da criatividade e da irredutibilidade da uma filosofia
consciência ou espírito, contra toda tentativa reducionista de em defesa da
tipo positivista. irredutibilidade
De origem judaica, nos últimos anos de sua vida Bergson se da consciência
aproximou do catolicismo, que ele via como realização do judaís- — § 1
mo. Todavia, dado o anti-semitismo que proliferava na época, ele
renunciou à conversão verdadeira e própria: "Eu quis permanecer - assim havia
escrito em seu testamento - entre aqueles que amanhã serão os perseguidos".
Bergson faleceu em 1941, em uma Paris ocupada pelos nazistas.

• O estudo dos Primeiros princípios de Spencer leva Bergson diante de "uma


surpresa", ou seja, ao fato de que à mecânica foge o tempo da experiência con­
creta. No Ensaio sobre os dados imediatos da consciência Bergson mostra como o
tem po da mecânica é uma série de posições dos ponteiros do relógio: um instante
segue-se ao outro, cada instante é igual ao outro, nenhum instante é mais intenso
ou mais im portante que o outro. O tem po da mecânica é tempo espacializado
(medir o tem po eqüivale a controlar que o movimento de um
objeto em um espaço coincida com o movimento dos ponteiros Duraçao
dentro do espaço que é o quadrante do relógio). e liberdade
Bem diferente é o tem po da experiência concreta: se a espa- • § 2-3
cialidade é a característica das coisas, a duração é a característica
da consciência. A consciência capta imediatamente o tem po como duração. E
duração quer dizer que o eu vive o presente com a memória do passado e a an­
tecipação do futuro.
E exatamente sobre a idéia de duração Bergson baseia sua defesa da liberdade.
Se, com efeito, os eventos são um externo ao outro, em um tem po espacializado,
é possível determ inar o evento sucessivo por meio do precedente: é o que se faz
na ciência com a explicação das causas. Ora, isso é impossível para a consciência:
a vida da consciência foge do determinismo. A consciência conserva os traços do
próprio passado. Nela não existem dois átimos iguais, dois eventos idênticos: e
onde nada existe de idêntico, não existe nada de previsível.

• A oposição entre tem po espacializado e tem po da experiência concreta


se repercute na contraposição entre a m atéria e a m em ória; entre uma rea­
lidade externa jamais nova, mecânica e sempre repetitiva, e , .
uma realidade interna sempre criativam ente nova. Bergson a memória
identifica a m em ória com a consciência-, na memória todo o como esP,nt0-
nosso passado (experiências, pensamentos, avaliações etc.) nos p°rceocao°m0
segue inteiro e está aí "inclinado sobre o presente, que ele está ,§
para absorver".
Quinta parte - Ê spiei+u al ism o, n o v a s +eolo 0 Ías e h e o -e s c o lá s t ic a

A consciência é diferente da percepção: o corpo está orientado para a ação


sobre os outros corpos, e faz isso por meio da percepção. É a lembrança, como
imagem do passado, que orienta a percepção presente.
Memória, portanto, como espírito; percepção como corpo. Daí a necessidade
de notar que espírito e matéria constituem, para Bergson, dois pólos da mesma
realidade, e não duas realidades distintas. A vida - escreve Bergson em A evolução
criadora - "é uma realidade que se destaca nitidamente sobre a matéria bruta".
A vida é evolução criadora, impulso vital, criação livre e imprevisível.

• A evolução criadora é comparada por Bergson à explosão de uma granada


cujos fragmentos explodem por sua vez. A vida se espalhou em direções diferentes,
em bifurcações nas quais o impulso vital dispersa sua unidade originária.
A primeira bifurcação é a que existe entre as plantas e os animais; estes
"explodem" em direções posteriores, como a dos insetos onde o instinto alcança
formas excelentes, e como a do homem, onde aparece a inteligência.
E eis as diferenças que Bergson traça entre instinto e in-
As diferenças teligência. O instinto funciona por meio de órgãos naturais, a
entre instinto inteligência cria instrumentos artificiais; o instinto é hereditário,
e inteligência; a inteligência, ao contrário, não é; o instinto se dirige a uma coi-
e a intuição sa a inteligência é conhecimento das relações entre as coisas; o
como órgão instinto é repetitivo e rígido, a inteligência é criativa.
me(3 ™ ca a inteligência produz conhecimento, conhecimento científico
~ por meio de conceitos que estabelecem relações entre as coisas,
permitindo assim a previsão. Mas o conhecimento das relações
entre as coisas não é conhecimento das coisas. Estas podem ser conhecidas apenas
por meio da intuição. A intuição é o instrumento da metafísica. A intuição procede
por meio da simpatia: com ela nos faz entrar em contato com as coisas e nos faz
captar o que nas coisas há de único e inexprimível (pelos conceitos da ciência).

• O impulso vital se exprime no homem em atividades criadoras como a arte, a


filosofia, a moral e a religião. É em As duas fontes da moral e da religião que Berg­
son analisa a criatividade moral e religiosa. Na sua opinião, a moral tem duas fontes:
a) a pressão social;
^ m oral b) o impulso de amor.
da sociedade Na verdade, não há - como queriam os positivistas - apenas
aberta; a moral da sociedade fechada; há também - afirma Bergson - a
e a religião moral absoluta da sociedade aberta: a moral do cristianismo, dos
dos místicos sábios da Grécia e dos profetas de Israel. Dessa moral o funda­
-> § 8-9 rnento é a pessoa criadora; o fim é a humanidade; o conteúdo é
o amor por todos os homens.
Analogamente, ao lado da religião estática - entretecida de mitos e de fábu­
las que têm objetivos eminentemente vitais, como o reforço das ligações sociais
- Bergson põe a religião dinâmica, ou seja, a religião dos místicos (como são Paulo,
são Francisco de Assis, santa Teresa, santa Catarina de Sena, santa Joana D'Arc), nos
quais o amor de Deus é amor pelo homem. E da religião dos místicos tem urgente
necessidade a humanidade atual: esta ampliou - por meio da técnica - sua própria
ação sobre a natureza; podemos dizer assim que a humanidade cresceu seu corpo:
agora - afirma Bergson - este corpo crescido "espera um suplemento de alma".

1 y \ originalidade espiritualista. Ela constitui o ponto de refe­


rência do pensamento francês entre o fim do
do espiritualismo de Bergson
século X IX e as primeiras décadas do século
X X . Nessa filosofia, fundem-se os temas do
A filosofia de Henri Bergson pode ser espiritualismo antigo (como o de Agostinho)
definida com o nome de evolucionismo e os da tradição introspectivo-espiritualista
' lo décim
C ãp ítu - • o nono - -Henri 13e r 0 sor\ e a e v o lu ç ã o c r ia d o r a
349

francesa, que encontra suas maiores expres­ saram Bergson, então muito famoso, mas já
sões em Descartes e Pascal. Esses temas, em bastante doente, de se apresentar à vistoria
uma síntese rica e original, convergem com a que tinham de se submeter os judeus. Mas
as instâncias do evolucionismo spenceriano ele não aceitou, indo pessoalmente fazer
e com a crítica das “ verdades” científicas. sua ficha. Morreu em 1941, em uma Paris
Em linhas gerais, Bergson desenvolve o ocupada pelos nazistas.
espiritualismo de Maine de Biran e de R a­ O objetivo de fundo da filosofia de
vaisson e, ao mesmo tempo, seu pensamento Bergson é a defesa da criatividade e da
apresenta-se como continuação articulada irredutibilidade da consciência ou espírito,
das reflexões filosóficas de Boutroux. contra toda tentativa reducionista de matriz
Bergson é considerado como o mais positivista. M as a defesa do espírito elabo­
importante filósofo francês de sua época. rada por Bergson adquire sua peculiaridade
N a realidade, foi notável a influência de seu precisamente porque ele, a fim de entender
pensamento, não apenas sobre o pragmatis­ plenamente a vida concreta da consciência,
mo norte-americano no modelo de James,
mas também sobre a reflexão acerca da
ciência, da arte, da concepção de sociedade
e da religião.
Bergson nasceu em Paris em 1859.
Em sua juventude, cultivou estudos de
matem ática e mecânica. Posteriormente,
decidiu dedicar-se à filosofia e, na École
Normale, seguiu os cursos de Ollé-Laprune
e de Boutroux.
Depois de laureado, ensinou durante
alguns anos em diversos liceus. Em 1889
publicou sua tese de doutorado na Sor-
bonne: Ensaio sobre os dados imediatos
da consciência. O livro alcançou grande
sucesso. E sucesso ainda maior obteve seu
segundo trabalho, Matéria e memória, que
é d e 1896.
Em 1900, Bergson foi chamado para
a cátedra de filosofia do Collège de France,
cátedra que manteria até o ano de 1924.
Sua coletânea de ensaios O riso é de 1900.
O subtítulo dessa obra é Ensaio sobre o
significado do cômico. Em 1903 Bergson
publicou a Introdução à metafísica, sucinta
e brilhante síntese de suas idéias. A evolu­
ção criadora, a obra mais sistemática e de
maior relevância teórica de Bergson, saiu em
1907. Eleito membro da Academia France­
sa, em 1928 Bergson foi galardoado com o
prêmio Nobel de literatura. Em 1932, saiu
sua última obra: As duas fontes da moral e
da religião.
Bergson era de origem judaica, mas
nos últimos anos de sua vida aproximou-se
progressivamente do catolicismo, já que,
como declarou, ele constituía o elemento
que completava o judaísm o. Entretanto,
Henri Bergson (1859-1941)
devido ao anti-semitismo que se disseminava foi o teórico da fidelidade
naquela época, renunciou à conversão pro­ a uma realidade não reduzida
priamente dita, como depois se soube pelo nem distorcida nos estreitos “ fatos ” dos positivistas,
seu testamento: “ Eu quis permanecer entre mas aberta para a dimensão do espírito.
aqueles que amanhã serão perseguidos” . Aqui é retratado em 1883, em Clermont-Ferrand,
Quando os nazistas ocuparam Paris, dispen­ onde ensinava filosofia no liceu da cidade.
350
Q u i n t a p a r t e - E s p i r i t u a l is m o , n o v a s t e o lo g ia s e n e o - e s c o lá s + ic a

torna seus os resultados da ciência e não que podemos voltar atrás e repetir infinitas
minimiza em absoluto a presença do corpo vezes o mesmo experimento. Além disso,
e a existência do universo material. Escreveu para a mecânica, todo momento é externo
Bergson em A evolução criadora: “ O grande ao outro e é igual ao outro: um instante
erro das doutrinas espiritualistas foi o de se sucede ao outro e não há um instante
acreditar que, isolando a vida espiritual de diferente do outro, mais intenso ou mais
todo o resto, suspendendo-a o mais alto importante do que o outro.
possível sobre a terra, se estava colocando-a Ora, tais características do tempo da
ao abrigo de todo atentado” . mecânica não conseguem de modo algum
Entretanto, com tais operações, os espi­ dar conta do que é o tempo da experiência
ritualistas fizeram com que a vida espiritual concreta. Se a espacialidade é a característica
ficasse exposta a ser confundida “ com o das coisas, a duração é a característica da
efeito de uma miragem” . Para Bergson, as consciência. A consciência capta imediata­
coisas são diferentes: a consciência ou vida mente o tempo como duração. Duração quer
espiritual é irredutível à matéria; ela é uma dizer que o eu vive o presente com a memó­
energia criadora e finita, continuamente às ria do passado e a antecipação do futuro.
voltas com condições e obstáculos que po­ Fora da consciência, o passado não existe
dem bloqueá-la e degradá-la. Em suma, o mais e o futuro ainda não existe. Passado e
pensamento de Bergson é uma filosofia que futuro só podem viver em uma consciência
pretende ser fiel à realidade, mas onde a rea­ que os liga no presente. A duração vivida,
lidade não é concebida como reduzida nem portanto, não é o tempo espacializado da
envolvida pelos “fatos ” dos positivistas. mecânica.
Naturalmente, o tempo espacializado
e, portanto, quantitativo e mensurável,
O tempo espacializado cristalizado em uma série de momentos ex­
ternos uns aos outros, funciona bem para as
e o tempo como d u r a ç ã o finalidades práticas da ciência, que tem por
função construir teorias úteis porque ricas
de previsões, que se reduzem de tal modo
Justamente por ser fiel à realidade, em a instrumentos eficazes para controlar as
sua juventude Bergson se entusiasmou pela situações que, de quando em vez, devem
filosofia evolucionista de Spencer. E, como ser confrontadas. Se Bergson, de um lado,
confessará mais tarde, ele não queria então retoma a doutrina da economicidade da
nada mais que aperfeiçoar e consolidar os ciência proposta pelos empiriocriticistas, do
Primeiros princípios de Spencer, sobretudo outro ele percebe, na ciência da natureza e
no que se refere à mecânica. M as foi exata­ em seus métodos, uma total incapacidade
mente através desse trabalho que Bergson se e inadequação para o exame dos dados da
deu conta de que o positivismo não manteve consciência.
em absoluto sua promessa de fidelidade aos Para Bergson, a realidade apresen­
fatos, como se observa, por exemplo, no tra­ ta aspectos diversos, que, se quiserm os
tamento do problema do tempo. Dedicado permanecer fiéis à experiência, devem ser
a tal questão, Bergson diz que “ aqui nos estudados com método próprio. E aí que,
esperava uma surpresa” . em sua opinião, o positivismo falha: na con­
A surpresa consistia no fato de que cepção de que a natureza dos fatos é única
o tempo da experiência concreta escapa à e ao pretender julgar todos os fatos com o
mecânica. Como podemos ler no Ensaio mesmo método, I jf g g r n
sobre os dados imediatos da consciência,
para a mecânica, o tempo é uma série de
instantes, um ao lado do outro, como se Po r que a d u r a ç ã o funda
vê nas sucessivas posições dos ponteiros do a liberdade
relógio. Por isso, o tempo da mecânica é
tempo espacializado. E, com efeito, medir o
tempo significa comprovar que o movimento Bergson liga à idéia de duração, como
de certo objeto em um espaço determinado característica fundamental da consciência,
coincide com o movimento dos ponteiros sua defesa da liberdade e sua crítica ao
dentro daquele espaço que é o quadrante determinismo, quando este presume poder
do relógio. M as, além de espacializado, o explicar a vida da consciência. N a realidade,
tempo da mecânica é tempo reversível, já se os objetos “ não levam a marca do tem­
C c ip ltU - lo d e c i m o f i o t i o - "HenH 1 3e ^ g so n e a e v o lu ç ã o c^ ia d o ^ a

po transcorrido” , ou seja, se eles existem


um externamente ao outro em um tempo
espacializado, então a determ inação de ■ Duração. Este é o conceito fun­
um acontecimento posterior por meio de damental da filosofia de H. Bergson.
um acontecimento anterior, diferente dele, O tempo mensurável da ciência é
torna-se possível: primeiros acontecimentos o tempo da mecânica, ou seja, um
idênticos (as causas) explicam posteriores tempo espacializado, como o tempo
do relógio, que é um conjunto de
acontecimentos idênticos (os efeitos). M as
posições dos ponteiros sobre o qua-
o que é possível — e útil — no âmbito dos drante; este é um tempo reversível,
objetos espacializados revela-se logo impos­ no sentido de que em um fenômeno
sível para a consciência. mecânico é possível voltar atrás e par­
A consciência conserva os traços do tir novamente do início; no tempo da
próprio passado: nela nunca há dois acon­ mecânica cada momento é externo ao
tecim entos id ên ticos, razão por que a outro, é igual ao outro: um instante
determinação de acontecimentos idênticos segue o outro e nenhum instante é
sucessivos torna-se impossível. A vida da diferente, mais intenso ou mais im­
consciência não é divisível em estados dis­ portante que o outro.
tintos, e o eu é unidade em devir — e onde O tempo da experiência concreta é
uma coisa bem diferente do tempo
não há nada de idêntico, não há nada de da mecânica. E isso porque o tempo
previsível. concreto é "uma duração vivida, ir­
Tanto os deterministas como os susten- reversível, nova a cada instante [...]"
tadores da doutrina do livre-arbítrio, segun­ (V. Mathieu). A consciência capta ime­
do Bergson, estão errados, porque aplicam diatamente o tempo como duração.
à consciência as categorias típicas do que, E duração quer dizer que o eu vive o
ao contrário, é externo à consciência. Os presente com a memória do passado
deterministas buscam as causas determi­ e a antecipação do futuro.
nantes da ação, e não percebem que o único A imagem adequada do tempo con­
motivo profundo é a consciência toda, com creto da consciência é a de um novelo
de fio que cresce, conservando a si
sua história. Da mesma forma se comportam próprio na vida da consciência; com
os sustentadores do livre-arbítrio, que esta­ efeito, "nosso passado nos segue e
belecem a causa da liberdade na vontade. aumenta sem trégua com o presente
Substancialmente, tanto os defensores como que recolhe ao longo da estrada". E
os detratores da liberdade da consciência isso enquanto a concepção espacia-
pressupõem uma idéia de consciência como lizada do tempo encontra uma boa
uma soma de atos distintos, ao passo que comparação na imagem de um colar
o eu é unidade em devir, razão por que nós de pérolas, todas iguais e externas
“ somos livres quando os nossos atos ema­ umas às outras.
nam de toda a nossa personalidade, quando
a expressam ” .

]\A.cdé.r\a e memória quase se petrificar em situações de repetiti-


vidade mecânica.
A questão da passagem entre a realida­
N o Ensaio sobre os dados imediatos de externa (a matéria) e a interna (o espírito)
da consciência, o tempo espacializado da é enfrentada por Bergson no livro Matéria e
ciência se opõe à duração da consciência memória, onde procura “ captar mais clara­
ou tempo da experiência concreta. Essa mente a distinção do corpo e do espírito e
oposição repercute na outra contraposição penetrar mais intimamente no mecanismo de
entre uma realidade externa, mecânica, sua união” . Diz Bergson que, no que se re­
nunca nova por ser sempre repetitiva, e uma fere ao problema da relação entre a matéria
realidade interna, fundida na unidade do eu, ou o corpo e o espírito, alguns pensadores
sempre criativamente nova. Chegando a esse sustentam a teoria do paralelismo psicofísi-
ponto, Bergson não podia evitar o problema co, segundo a qual os estados mentais e os
da relação, ou melhor, da passagem entre as estados cerebrais são dois modos diversos
duas realidades. O problema se impunha de falar da mesma coisa ou processo. Contra
também pela razão de que, na consciência, a redução do espírito à matéria, Bergson
ele vira sua possibilidade de solidificar-se e propõe e reafirma a idéia de que o cérebro
Quinta parte - E sp ir itu a lis m o , K ovas +eolo 0 Ías e rv e o -e sc o lá stic a

não explica o espírito e que “ na consciência presente, pelo fato de agirmos sempre com
humana há infinitamente mais do que no base nas experiências passadas.
cérebro correspondente” . Assim, “ todo o passad o da pessoa
Para iluminar essa tese, Bergson assume encontra-se aberto” até o extremo, que é a
os dados das descobertas de psicofisiologia ação no presente. Em cada instante de nossa
efetuadas na época, e realiza uma análise vida temos, pois, uma ligação entre memória
aprofundada da atividade da consciência, e percepção, em vista da ação.
distinguindo três momentos distintos dela, Desse modo, a memória e a percepção
ou seja, a memória, a recordação e a percep­ se identificam respectivamente com o espí­
ção. A memória coincide e se identifica com rito e o corpo.
a própria consciência. E é precisamente pela A memória funde em uma totalidade a
e na memória que “ nosso passado inteiro vida vivida; a percepção consiste “ em des­
nos segue a cada momento” , e o que “ ouvi­ tacar, no conjunto dos objetos, a ação pos­
mos, pensamos e quisemos desde a primeira sível de meu corpo sobre eles. A percepção,
infância está lá, inclinado sobre o presente, por conseguinte, nada mais é do que uma
que está por absorver em si, premente à seleção” . Conseqüentemente, a liberdade
porta da consciência” . da consciência encontra suas limitações na
Dessa memória espiritual — que é a percepção. E a percepção, por seu turno,
“ duração” da consciência — podemos dis­ entra no fluxo da vida do eu, fundindo-se
tinguir a recordação. N osso ser mais verda­ na memória ou consciência. Eis, portanto,
deiro e mais profundo está na memória espi­ segundo Bergson, em que consiste a verda­
ritual, mas a vida nos impõe prestar atenção deira relação entre espírito e matéria e entre
ao presente e toma do passado unicamente alma e corpo: por um lado, a memória “ as­
o que é necessário para que possamos nos sume o corpo de uma percepção qualquer
orientar no presente. E essa obra de seleção em que ele se insere” e, por outro lado, a
da recordação útil e do esquecimento do percepção é reabsorvida pela memória e se
que não serve ao presente é realizada pelo torna pensamento, jgHSi 2
corpo e pelo cérebro: eles tiram do fluxo até
abissal da consciência aquelas recordações
funcionais para a inserção de nosso orga­ i m p u l s o vital
nismo na situação do presente, através das
percepções. Em suma, pelo cérebro passa e evolução cri adora
apenas uma parte, parte muito pequena,
daquilo que é o processo da consciência,
ou seja, passa unicamente o que pode se Bergson não vê o universo confor­
traduzir em movimento. Assim, podemos me Descartes, como dividido entre a res
compreender melhor Bergson quando diz cogitans e a res extensa. N o fundo, para
que na consciência há infinitamente mais do Bergson, o espírito e a matéria, assim como
que no cérebro correspondente. a alma e o corpo, são dois pólos da mesma
Para se realizar, a memória espiritual realidade e não duas realidades diferentes.
necessita dos mecanismos ligados ao corpo E precisamente em A evolução criadora
— já que é através do corpo que agimos (de 1907) — obra que James definiu como
sobre os objetos do mundo —, mas é inde­ “ uma aparição divina” — Bergson passa da
pendente do corpo, de modo que uma lesão análise dos dados imediatos da consciência
do cérebro não atinge a consciência, e sim para a elaboração de uma visão global da
muito mais a vinculação entre a consciên­ vida e da realidade, propondo a idéia de um
cia e a realidade: a consciência permanece evolucionismo cosmológico.
intacta, ainda que perdendo o contato com As teorias da evolução se distinguem
as coisas. Para Bergson, a realidade é que, em duas grandes classes: as mecanicistas e
“ sempre orientado para a ação, o corpo tem as finalistas.
como função essencial a de limitar a vida do O evolucionismo mecanicista explica a
espírito, tendo em vista a ação” . E faz isso evolução em termos da causa eficiente, o evo­
através da percepção, que é “ a ação possível lucionismo finalista com base na causa final;
de nosso corpo sobre os outros corpos” . um com base em razões que determinam a
A percepção é o poder de ação de nosso evolução por meio do passado, o outro com
corpo, que se move com destreza entre as base em razões que determinam a evolução
“ imagens” dos objetos. Como imagem do por meio do futuro. Por conseguinte, tanto o
passado, a recordação orienta a percepção evolucionismo mecanicista como o finalista
Capítulo décimo nono - - H e n n S e r g s o k A e a e v o lu ç ã o c r i a d o r a

são deterministas - e justamente por isso dei­ matéria nada mais é que o momento de pa­
xam escapar a realidade da evolução. Com rada desse impulso vital. A vida é o impulso
efeito, diz Bergson, a exemplo da vida da pelo qual ela tende “ a crescer em número
consciência, a vida biológica não é máquina e em riqueza, pela multiplicação no espaço
que se repete, sempre idêntica a si mesma, e pela complicação no tempo” ; trata-se de
mas é uma constante e incessante novidade, uma contínua criação de formas, onde o que
é criação e imprevisibilidade, é vida sempre vem depois não é de modo algum simples
nova que, englobando e conservando todo recombinação dos elementos que já antes
o passado, cresce sobre si mesma. existiam; ela é “ ação que continuamente se
A idéia de evolução criad o ra nos cria e se enriquece” , ao passo que a matéria
permite ir além das dificuldades e das fal­ é “ ação que se dissolve e desgasta” , que pro­
sidades do mecanicismo e do finalism o, gressivamente se despotencializa e degrada,
já que a vida “ é realidade que se destaca o que é atestado até pelo segundo princípio
claramente da matéria bruta” . A vida, em da termodinâmica.
suma, é evolução criadora, criação livre e Para Bergson, “ não há coisas, mas
imprevisível, é “ impulso vital” , que “ não apenas ações” . A matéria é impulso vital
precisa se distender para se estender” . E a degradado, impulso que perdeu em criativi­
354
Quinta parte - E sp ir itu a l ism o, n o v a s teol o g ia s e n e o -e s c o lá s + ic a

dade e que, desse modo, torna-se obstáculo na segunda ela leva à inteligência, embora
para o impulso seguinte, como a onda do certa “ franja de inteligência” acompanhe o
mar que, retornando, transforma-se em obs­ instinto e um “ halo de instinto” permanece
táculo para a onda que se levanta. A vida, em torno da inteligência.
ao contrário, é “ corrente que, atravessando M ais precisamente, porém, o que é o
os corpos que ela pouco a pouco organizou instinto, e em que consiste a inteligência?
e passando de geração em geração, dividiu- Como escreve Bergson, “ o instinto é a fa­
se entre as espécies e se dispersou entre os culdade de utilizar e também de construir
indivíduos [...]” . Para Bergson, a matéria é instrumentos orgânicos, a inteligência é a
um refluxo do impulso vital, que, a partir de faculdade de fabricar e empregar instrumen­
unidade originária, se irradia e recai em uma tos inorgânicos [...]. Instinto e inteligência
multiplicidade de elementos cujo impulso e representam, portanto, duas soluções diver­
cuja criatividade vão se extinguindo. gentes, mas igualmente elegantes, do mesmo
A evolução criadora, portanto, não é problema” .
um processo uniforme. Ela é comparável à E esse é o problema da vida (de modo
explosão de uma granada cujos fragmen­ que se compreende que, originariamente, o
tos, por seu turno, também explodem. Ela homem é bomo faber e não homo sapiens).
também se assemelha a um feixe de colunas, O instinto funciona por meio de órgãos na­
cada uma das quais representa um caminho turais, a inteligência cria instrumentos artifi­
diferente da evolução, uma das bifurcações ciais. O instinto é hereditário e a inteligência
na qual o impulso vital dispersa sua unidade não; o instinto volta-se para uma coisa, já
originária. Em outros termos, a evolução se a inteligência é conhecimento das relações
abre em leque, em direções divergentes, com entre coisas; o instinto é inconsciente, a
os seres vivos se especializando em funções inteligência consciente; o instinto é repeti­
específicas e precisas. A primeira bifurcação tivo, ao passo que a inteligência é criativa.
fundamental é a que se tem entre as plantas O instinto, justamente, é repetitivo e rígido,
e os animais. Enjauladas na noite da incons­ é hábito; ele apresenta soluções adequadas,
ciência e da imobilidade, as plantas armaze­ mas para um só problema, incapaz de variar.
nam energia potencial; os animais, móveis, Por seu turno, a inteligência não conhece as
vão à procura do alimento. E a consciência próprias coisas, mas as relações entre coisas.
nasce precisamente dessa busca. Os animais, Por isso, mediante os conceitos, ela conhece
por seu turno, se bifurcam ou “ explodem” as “ form as” e, afastando-se da realidade
em outras direções, uma das quais leva às imediata, pode prever a realidade futura. Por
formas mais perfeitas de instinto, como nos razões práticas, pois, a inteligência analisa e
himenópteros, ao passo que outra, a dos ver­ abstrai, classifica e distingue, subdividindo
tebrados, leva, com a inteligência humana, a duração real — como em uma película ci­
para além do instinto. A realidade é que “ em nematográfica — em uma série de diferentes
todos os outros pontos a consciência acabou estados. M as “ mil fotografias de Paris não
em um beco sem saída; apenas com o homem são Paris” .
ela prosseguiu seu caminho” . BISIIITI Assim, nem o instinto nem a inteli­
gência (e a ciência que esta produz) nos
dão a realidade: “ Há coisas que somente a
CJnstinto, inteligência, intuição inteligência é capaz de procurar, mas que
nunca encontrará por si só; somente o ins­
tinto poderia descobri-las, mas este não as
A vida animal não se desenvolveu em procurará jam ais” .
uma direção única. E em algumas dessas
direções, como aquela em que acabaram os
moluscos, ela encontrou becos sem saída. yj-!,. jA intuição como órgão
Entretanto, no que se refere à mobilidade e da metafísica
à consciência, encontrou seu maior sucesso
nos artrópodes e nos vertebrados. A evolu­
ção dos artrópodes manifesta sua melhor Entretanto, a situação não é deses-
expressão nos insetos, especialmente nos peradora. E não o é porque a inteligência,
himenópteros, ao passo que a dos verte­ que nunca está completamente separada do
brados se manifesta no homem. Enquanto, instinto, pode voltar conscientemente para
na linha dos artrópodes, a evolução leva a o instinto. E, quando isso acontece, temos
formas sempre mais perfeitas de instintos, a intuição, que é “ instinto que se tornou
C ãp ítu lo décim o tiotio - 'Henri B e r g s o n e a e v o lu ç ã o c r ia d o r a

desinteressado, consciente de si, capaz de filosofia, a moral e a religião. Em sua última


refletir sobre seu próprio objeto e de ampliá- obra, As duas fontes da moral e da religião
lo indefinidamente” . (1932), Bergson dirigiu sua atenção preci­
A inteligência gira em torno do ob­ samente para o tema da criatividade moral
jeto e toma o maior número possível de e religiosa do homem. Assim, partindo do
visões dele a partir do exterior, mas não estudo da consciência, ele, com A evolução
entra nele; mas, “ ao contrário, a intuição criadora, passa para uma teoria do universo
é que nos conduzirá ao interior da vida” . e conclui com uma teoria dos valores (mo­
A inteligência produz análise e despedaça rais e religiosos).
o devir. M as a intuição atua através da Em sua opinião, as normas morais
simpatia; e, com ela, “ nos transporta para têm duas fontes: a) a pressão social e b) o
o interior de um objeto para coincidir com impulso de amor.
o que tal objeto tem de único e, portanto, a) N o primeiro caso, as normas são
de inexprimível” (inexprimível através dos precisamente o fruto da pressão social e ex­
símbolos e conceitos da inteligência). A in­ pressam as exigências da vida associada dos
tuição “ é a visão do espírito pelo espírito” : diversos grupos humanos, assim como eles
ela é imediata como o instinto e consciente se deram e se dão na história. E é a história
como a inteligência. que nos ensina que o indivíduo se encontra
Que a intuição seja um processo real é em sua sociedade de modo análogo ao modo
demonstrado pela intuição estética, onde as em que uma célula está no organismo ou
coisas aparecem privadas de todos os laços uma formiga no formigueiro. Geralmente,
com as necessidades cotidianas e com as o indivíduo segue o caminho que encontra
premências da ação. E é também a intuição já trilhado pelos outros e codificado pelas
que nos revela a duração da consciência e o normas de sua sociedade, conforma-se às
tempo real, e que nos torna conscientes da regras dessa sociedade, exalta seus ideais
liberdade que somos nós mesmos. A intuição e procura se adequar a eles. O que está na
é o órgão da metafísica: a ciência analisa, base da sociedade é apenas o hábito de con­
mas a metafísica intui, fazendo-nos assim trair hábitos. E, em análise profunda, isso
entrar em contato direto com as coisas e com é o único fundamento da obrigação moral.
aquela essência da vida que é a duração. M as essa moral da obrigação e do hábito é
A intuição é sondagem da essência do a moral da sociedade fechada, onde o indi­
real e a metafísica é “ a ciência que se propõe víduo age como parte do todo e esse todo
superar a barreira dos símbolos construídos é um grupo determinado, como a nação, a
pelo intelecto” . A intuição, como escreve família ou o clube.
Bergson, “ alcança a posse de um fio: e ela b) Entretanto, segundo Bergson, a
própria deverá ver se esse fio sobe até o céu pressão social não é a única fonte da mora­
ou se se detém a alguma distância da terra. lidade e não consegue, como pretenderam os
N o primeiro caso, a experiência metafísica positivistas, explicar a vida moral do homem
se vinculará à dos grandes místicos — e eu em sua totalidade e em suas características
posso constatar, por minha conta, que essa é mais típicas. N a realidade, não existe so­
a verdade. N o segundo caso, as experiências mente a moral da obrigação e do hábito,
metafísicas permanecerão isoladas umas das isto é, a moral relativa às várias sociedades
outras, sem, no entanto, contrastar entre si. fechadas da história, mas também existe a
Em todo caso, a filosofia nos terá erguido moral absoluta, que é a moral da sociedade
acima da condição humana” . aberta. Essa é a moral do cristianismo, dos
sábios da Grécia e dos profetas de Israel.
Essa moral é obra criadora — criadora de
valores universais — de heróis morais como
Sociedade feckada Sócrates ou Jesus, que vão além dos valores
e sociedade aberta do grupo ou da sociedade a que pertencem
para ver o homem enquanto homem, a hu­
manidade inteira — e a humanidade inteira
O im pulso vital, que se detém nas é a sociedade aberta. O fundamento da
outras espécies vivas, enrijecendo-se na moral aberta é a pessoa criadora; seu fim é
repetição fixa de comportamentos sempre a humanidade; seu conteúdo é o amor para
idênticos, no homem supera os obstáculos, com todos os homens; sua característica é
expressando-se na atividade criadora hu­ a inovação moral, capaz de romper com os
mana, cujas principais formas são a arte, a esquemas fixos das sociedades fechadas. A
Quinta parte - Ê spiw +u al ism o; n o v a s te o lo g ia s e K \ eo -e sco!ásfica

moralidade aberta é algo que não se ensina: ciência de sua própria moralidade; conhece
é a moral dos grandes místicos e reveladores, a imprevisibilidade do futuro e a precarie­
e de todos os que seguem a inspiração que dade dos empreendimentos humanos. Com
os induz a segui-los. suas fábulas, seus mitos e suas superstições,
a religião reforça os laços sociais entre o
homem e seus semelhantes. Por isso, “ a re­
T^elig ião estática ligião primitiva [...] é uma precaução contra
o perigo que se corre, quando se começa a
e reliqião dinâmica pensar, a pensar somente em si” . Além disso,
a religião dá a esperança da imortalidade,
oferece ao homem a idéia de defesa contra a
Como na vida moral, também na vida imprevisibilidade e a precariedade do futuro,
religiosa Bergson distingue entre religião e lhe dá o sentido de proteção sobrenatural
estática e religião dinâmica. Tecida de mitos e a crença de poder influir sobre a realidade,
e fábulas, a religião estática é resultado do especialmente quando a técnica se mostra
que Bergson chama de função fabuladora, impotente.
que se desenvolve durante a evolução para Assim, a religião é a defesa da ameaça
objetivos eminentemente vitais. O ser huma­ da inteligência contra o homem e a socie­
no tem inteligência, que representa ameaça dade. Nesse sentido, ela é religião natural,
contínua, sempre pronta a voltar-se contra a fruto e função da evolução natural. Para
vida. O ser inteligente tende ao egoísmo e a Bergson, essa religião estática e natural é in-
infringir suas relações sociais; ele tem cons­ fra-intelectual. M as ela não é a única forma
Cãpítulo décimo nono - B e i*g so n e a e v o lu ç ã o c^ ia d o ^ a

de religião. Ao lado dela, há a religião supra- mundo. E, assim, o amor a Deus torna-se
intelectual, a religião dinâmica para a qual amor pela humanidade.
os dogmas são apenas cristalizações e que E, além disso, só a experiência mística
mergulha no impulso vital e o continua. Essa está em condições de fornecer a única prova
religião, a religião dinâmica, é o misticismo, da existência de Deus; a concordância dos
cujo resultado, como escreve Bergson, “ é a místicos, não somente cristãos, mas também
tomada de contato e, conseqüentemente, a de outras religiões, mostra precisamente a
coincidência parcial com o esforço criador existência real daquele Ser com o qual a
que a vida manifesta. Esse esforço é de Deus, intuição mística põe em contato.
se não for o próprio D eus” . O amor do A religião dinâmica ou aberta é a reli­
místico por Deus, na opinião de Bergson, gião dos místicos. E, como destaca Bergson,
coincide com o amor de Deus pelo próprio a hum anidade tem urgente necessidade
Deus: “ Deus é amor e objeto de amor: nisto de gênios místicos nos dias de hoje. Com
reside todo o misticismo.” efeito, a humanidade, através da técnica,
Enquanto o misticismo neoplatônico ampliou sua ação incisiva sobre a natureza
ou o misticismo oriental é contemplativo e, e, desse modo, podemos dizer que o corpo
por isso, não crê na eficácia da ação, Bergson do homem se engrandeceu além da medi­
vê o misticismo adequado naqueles místicos da. Pois bem, esse corpo engrandecido, diz
(como são Paulo, são Francisco de Assis, Bergson, “ espera um suplemento de alma,
santa Teresa, santa Catarina de Sena ou Jo a ­ e a mecânica exigiria uma mística” . Esse
na D ’Arc) para os quais o êxtase constitui suplemento de alma é necessário para curar
ponto superior de impulso para a ação no os males do mundo contemporâneo.
358
_1_ Quinta parte - E s p iH t u a l ism o , n o v a s t e o lo g i a s e n e o - e s c o l á s + ic a

das. Dentro de mim desenvolve-se um processo


de organização ou de mútua compenetração
B ergson dos fotos de consciência, que constitui a verda­
deira duração: represento para mim aquilo que
chamo de oscilações passadas do pêndulo,
no mesmo tempo em que percebo a oscilação
D a€mduração
que consiste
reol
atual, justamente porque persisto deste modo.
Suprimamos agora, por um instante, o eu que
pensa estas assim chamadas oscilações suces­
sivas; teremos apenas a duração heterogêneo
do eu, sem momentos externos uns aos outros,
"Dentro de mim se desenvolve um pro­ sem relação com o número. Assim, em nosso eu,
cesso de organização ou de compenetração há sucessão sem exterioridade recíproca; fora
mútua dos Fatos de consciência, que constitui do eu, exterioridade recíproca sem sucessão:
a verdadeira duração”. exterioridade recíproca, enquanto a oscilação
presente é radicalmente distinta da oscilação
precedente que não existe mais; mas ausên­
cia de sucessão, enquanto a sucessão existe
Mas paro nós é incrivelmente difícil re­ apenas para um expectador consciente, que
presentar a duraçõo em sua pureza originária; recorde o passado e justaponha as duas osci­
e isso sem dúvida provém do fato de que nós lações ou seus símbolos em um espaço auxiliar.
não somos os únicos a durar: as coisas externas Ora, entre esta sucessão sem exterioridade e
- parece - duram como nós, 0, considerado a esta exterioridade sem sucessão realiza-se
partir deste último ponto de vista, o tempo se uma espécie de troca, bastante similar à que os
assemelha muito a um meio homogêneo. Nõo físicos chamamos de fenômeno de endosmose.
só os momentos desta duração parecem ser Como cada uma das fases sucessivas de nossa
externos uns aos outros, como o seriam os vida consciente, que, todavia, se compenetram
corpos no espaço, mas o movimento percebido entre si, corresponde a uma oscilação do pên­
pelos nossos sentidos é, de algum modo, o dulo a ela simultânea, e como de outro lado
sinal tangível de uma duração homogênea e e ssas oscilações são claramente distintas,
mensurável. Mas há mais: o tempo entro nas pois quando uma se produz a outra não existe
fórmulas da mecânica, nos cálculos do astrôno­ mais, contraímos o hábito de estabelecer a
mo e até do físico, sob a forma de quantidade. mesma distinção entre os momentos sucessivos
M ede-se a velocidade de um movimento, o de nossa vida consciente: as oscilações do
que implica que também o tempo seja uma balanceiro a decompõem, por assim dizer, em
grandeza. € a própria análise que acabamos de partes externas umas às outras. Daqui a idéia
tentar deve ser completada, pois se a duração errônea de uma duração interna homogênea,
propriamente dita não é medida, o que medem análoga ao espaço, cujos momentos idênticos
então as oscilações do pêndulo? Rdmitir-se-á, se sucederiam sem se compenetrar. Mas, de
a rigor, que a duração interna, percebida pela outro lado, as oscilações pendulares, que são
consciência, se confunde com o encaixar-se distintas apenas porque quando uma aparece a
dos fatos de consciência uns nos outros, com outra se dissolve, tiram de algum modo vanta­
o enriquecimento gradual do eu; mas, dir-se- gem pela influência que assim exerceram sobre
á, o tempo que o astrônomo introduz em suas nossa vida consciente. Graças à recordação de
fórmulas, o tempo que nossos relógios dividem seu conjunto que nossa consciência organizou,
em pequeninas partes iguais, esse tempo é elas se conservam para depois se alinhar;
outra coisa, é uma grandeza mensurável e, em poucos palavras, criamos para elas uma
portanto, homogênea. Todavia, não é assim: quarta dimensão do espaço, que chamamos
um exame acurado dissipará também esta o tempo homogêneo, e que permite ao movi­
última ilusão. mento pendular, embora se produza sempre
Quando sigo com os olhos no quadrante no mesmo lugar, justapor-se indefinidamente
de um relógio o movimento do ponteiro que a si mesmo. €is, de fato, o que descobrimos
corresponde às oscilações do pêndulo, não agora, experimentando estabelecer qual papel
meço a duração, como poderia parecer; ao cabe exatamente ao real e qual, ao invés, ao
contrário, limito-me a contar simultaneidades, imaginário, dentro deste processo muito com­
coisa muito diferente, fora de mim, no espaço, plexo. Gciste um espoço real, sem duração, mas
há uma única posição do ponteiro e do pêndulo, em que certos fenômenos aparecem e desa­
enquanto não resta nada das posições passa­ parecem simultaneamente a nossos estados
Cãpítulo décítHO nono - ■Henri B e r g s o n e a e v o lu ç ã o c r i a d o m

de consciência. (Existe uma duração real, cujos


momentos heterogêneos se compenetram, O grande problema
mas cada momento da qual pode ser aproxi­
mado de um estado contemporâneo do mundo
da união
externo e, por causa do efeito desta própria entre alma e corpo
aproximação, separado dos outros momentos.
Do confronto dessas duas realidades gera-se
"€m todos os doutrinas o obscuridade
uma representação simbólica da duração,
do problema [da união entre alma e corpo]
extraída do espaço, fl duração assume assim
deriva da dupla antítese que nosso intelecto
a forma ilusória de um meio homogêneo, e a
estabelece entre o extenso e o inextenso,
ligação entre estes dois termos - o espaço e a
de um lodo, e, do outro, entre a qualidade
duração - é a simultaneidade, qu® se poderia
e a quantidade.
definir como a intersecção entre o tempo e o
espaço [...].
Dizíamos, portanto, que diversos estra­
tos de consciência se organizam entre si, se Salientamos ao longo do caminho um pro­
compenetram, se enriquecem sempre mais, blema metafísico que não gostamos de deixar
e que a um eu que ignorasse o espaço, eles em suspenso e, do outro, embora sejam antes
poderiam fornecer assim o sentimento da de tudo psicológicas, nossas pesquisas nos
duração pura; mas, já para empregar o termo deixaram entrever, mais de uma vez, se não um
“diversos", tínhamos isolado esses estados uns meio para resolver o problema, pelo menos o
dos outros e os tínhamos exteriorizado, um ®m lado pelo qual poder enfrentá-lo.
relação aos outros, em suma, nós os tínhamos Gsse problema é nada menos que o da
justapostos; e assim, a mesma expressão a união entre a alma e o corpo. €le se impõe a nós
que tivemos de recorrer, traía nosso hábito com força, para que distingamos profundamente
enraizado de desdobrar o tempo no espaço. a matéria do espírito. € não podemos conside­
€ é necessariamente a partir da imagem desse rá-lo insolúvel porque definimos o espírito e a
desdobramento, uma vez que ele se tenha rea­ matéria por meio de caracterizações positivas,
lizado, que tomamos de empréstimo os termos e não por meio de negações. 6, efetivamente,
destinados a exprimir o estado de um espírito é exatamente na matéria que nos colocaria a
que não o tenha ainda realizado: esses termos percepção pura, assim como, com a memória,
são, portanto, marcados por um vício originário, poderemos já penetrar realmente no próprio es­
e a representação de uma multiplicidade sem pírito. Mas, de outro lado, a mesma observação
relação com o número ou com o espaço, embora psicológica, que nos revelou a distinção entre
seja clara para um pensamento que entre em si a matéria e o espírito, põe-nos diante de sua
mesmo e se abstraia, não pode ser traduzida união, flssim, ou nossas análises estão marca­
na linguagem do senso comum. Todavia, se das por um vício originário, ou então devem nos
paralelamente não considerarmos aquilo que ajudar a sair das dificuldades que levantam.
chamamos de multiplicidade qualitativa, não £m todas as doutrinas a obscuridade
poderemos sequer formular a idéia de uma do problema provém da dupla antítese que
multiplicidade distinta. Não é talvez verdade nosso intelecto estabelece entre o extenso e
que, quando contamos explicitamente unida­ o inextenso, de um lado, e, do outro, entre a
des, alinhando-as no espaço, ao lado desta qualidade e a quantidade, è incontestável que
adição cujos termos idênticos se enfileiram o espírito se opõe à matéria em primeiro lugar
sobre um fundo homogêneo, nas profundida­ como uma unidade pura o uma multiplicidade
des do espírito essas unidades continuam a essencialmente divisível, e que, além disso,
se organizar umas com as outras, processo de nossas percepções se compõem de quanti­
fato dinâmico, bastante semelhante à represen­ dades heterogêneas, enquanto o universo
tação puramente qualitativa que uma bigorna percebido parece que se resolva em mudanças
sensível poderia ter do número crescente das homogêneas e calculáveis. Haveria, portanto,
batidas de um martelo? de um lado o inextenso e a qualidade, e, do
outro, a extensão e a quantidade. Rejeitamos
o materialismo, que pretende derivar o primeiro
termo do segundo; mas também não aceitamos
H. Bergson,
€nsaio sobre
o idealismo, que pretende que o segundo seja
os dados im ediatos simplesmente uma construção por parte do pri­
da consciência, meiro. Sustentamos, contra o materialismo, que
em O bras (1889-1896). o percepção ultrapassa infinitamente o estado
.
360 Quinta parte - E sp ir itu a lis m o , n o v a s t e o lo g ia s e rv e o -e sc o lá stic a

cerebral; mas, contra o idealismo, procuramos está precisamente a diferença entre os qualida­
estabelecer que a matéria supera de todos des heterogêneas que se sucedem em nossa
os lados a representação que dela temos, percepção concreta e as mudanças homogêneas
representação que o espírito, por assim dizer, que a ciência situa por trás dessas percepções
nela captou graças a uma escolha inteligente. no espaço? Rs primeiras são descontínuas e
€stas duas doutrinas opostas atribuem, uma nõo podem ser deduzidas umas das outras; as
ao corpo e a outra ao espírito, o dom de uma segundas, ao contrário, se prestam ao cálculo.
verdadeira e própria criação, a partir do mo­ Mas paro isso não há, de fato, necessidade de
mento que a primeira pretende que o cérebro transformá-las em quantidades puras: seria o
gere a representação, e a segunda que nosso mesmo que reduzi-los a nada. é suficiente que
intelecto delineie o plano da natureza. C, con­ sua heterogeneidode seja, de algum modo,
tra essas duas doutrinas, invocamos sempre o diluída o suficiente, a fim de que, de nosso
mesmo testemunho, o da consciência, a qual ponto de vista, se torne praticamente negligen-
nos mostra que nosso corpo é uma imagem ciável. Ora, se toda percepção concreta, por
como as outras, e que nosso intelecto é uma mais breve que a suponhamos, é já a síntese,
faculdade determinada de dissociar, de distin­ operada pela memória, de uma infinidade de
guir e de opor logicamente, mas não de criar "percepções puras'1 que se sucedem, não se
ou de construir, Rssim, prisioneiros voluntários deve talvez pensar que a heterogeneidode das
da análise psicológica e, por conseguinte, do qualidades sensíveis derive de sua contração
senso comum, parece que, depois de ter leva­ em nossa memória, e a homogeneidade relativa
do ao desespero os conflitos que o dualismo das mudanças objetivas de seu abrandamento
vulgar levanta, fechamos todas as saídas que natural? C então, assim como as considerações
a metafísica podia abrir para nós. sobre a extensão diminuíam o intervalo entre o
Todavia, exatamente porque rejeitamos extenso e o inextenso, as considerações sobre
ao extremo o dualismo, nossa análise talvez a tensão não poderiam talvez diminuir o inter­
tenha conseguido dissociar seus elementos con­ valo entre a quantidade e a qualidade?
traditórios. R teoria da percepção pura, de um
H. Bergson,
lado, e a da memória pura, do outro, abririam
M atéria e memória,
então o caminho para uma aproximação entre em Obras (1889-1896).
o inextenso e o extenso, entre a qualidade e
a quantidade.
Queremos considerar a percepção pura?
fazendo do estado cerebral o início de uma
ação e não a condição de uma percepção, re­ Impulso vital
jeitamos a imagem percebida das coisas para e adaptação ao ambiente
fora da imagem de nosso corpo e, portanto,
recolocamos a percepção nas próprias coisas.
Mas então, como nossa percepção faz parte "[...] Fi evolução não troço um cominho
das coisas, estas últimas participam da natureza único, mos empenho-se em vários direções,
de nossa percepção. R extensão material não aliás, sem visar a objetivos, e permanece
é, e não pode mais ser, a extensão múltipla inventivo em suas próprias adaptações".
de que fala o estudioso de geometria; ela se
assemelha mais exatamente à extensão indivisa
de nossa representação. O que significa que a Que a condição necessária da evolução
análise da percepção pura nos fez entrever na seja a adaptação ao ambiente, de modo ne­
idéia de extensão uma possível aproximação nhum o podemos negar. C demasiado evidente
entre o extenso e o inextenso. que, quando uma espécie não se submete às
Todavia, nossa concepção da memória condições de vida que lhe são colocadas, ela
pura nos deveria levar, por um caminho paralelo, desaparece. Mas outra coisa é reconhecer nas
a atenuar a segunda oposição, a que existe circunstâncias externos forças com as quais a
entre a qualidade e a quantidade. Com efeito, evolução deve se confrontar, e outra é ver aí as
separamos radicalmente a lembrança pura do causas determinantes da evolução. Csta última
estado cerebral que a prolonga e a torna eficaz. tese é própria do mecanicismo. Cia exclui abso­
R memória, portanto, não é, em nenhum nível, lutamente a hipótese de um impulso originário,
emanação da matéria; ao contrário, é a matéria, ou seja, de um ímpeto interior que levaria a vida,
do modo em que a captamos em uma percepção através de formas cada vez mais complexas, a
concreta, que ocupo sempre certa duração, que destinos sempre mais elevados. Csse impulso,
deriva em grande parte da memória. Ora, onde todavia, é constatável; e um simples golpe de
Capítulo décifHO nono - •HenH 3 e i* 0 S o n e a e v o lu ç ã o c r ia d o r a

vista sobre as espécies fósseis nos mostra que só as formas da vida, mas também as idéias
a vida teria podido deixar de evolver-se, ou que poderiam permitir que uma inteligência
evolver-se dentro de limites muito restritos, se as compreendesse, os termos que poderiam
tivesse tomado o partido, muito mais cômodo, servir para exprimi-las. Isso significa que seu
de se mumificar em suas formas primitivas. Cer­ futuro excede os limites de seu presente e não
tos foraminíferos nõo mudaram desde o período poderia desenhar-se nele em idéia.
siluriano até hoje, impassíveis testemunhas das Cste é o primeiro erro do finalismo. Cie
inumeráveis revoluções que abalaram a terra; as traz consigo outro ainda mais grave. Se a vida
língulas são hoje aquilo que eram nos tempos realizasse um plano, ela deveria manifestar
mois remotos da era paleozóica. fl verdade é uma harmonia tanto mais elevada à medida
que a adaptação explica as sinuosidades do que mais avança. Assim, a casa revela sempre
movimento evolutivo, mas não suas direções melhor a idéia do arquiteto à medida que as
gerais, e muito menos o movimento em si mes­ pedras são acrescentadas às pedras. Ao contrá­
mo. O caminho que leva ao povoado é, de fato, rio, se a unidade do vida se encontra totalmente
obrigado a subir encostas e descer declives: no impulso que a impele sobre o caminho do
ele se adapta às acidentalidades do terreno; tempo, a harmonia não estará na frente, mas
mas estas não sõo a causa do caminho nem lhe atrás. A unidade vem de uma vis a tergo: da-
imprimiram sua direção. Cm todo momento for­ se no início como um impulso, não posta no fim
necem-lhe o indispensável: o próprio solo sobre como um ponto de atração. Comunicando-se, o
o qual se estende; mas, caso se considere o impulso divide-se sempre mais. A medida que
caminho em seu conjunto e não mais cada um progride, a vida se dissemina em manifestações
de seus elementos, os acidentes do terreno que a comunhão de origem tornará sem dúvida
não parecem mais que obstáculos, ou causas complementores, sob certos aspectos, mas que
de retardo, porque o caminho apontava sim­ não deixarão, por isso, de ser antagonistas e
plesmente para o povoado, e teria querido ser incompatíveis entre si. Por isso a desarmonia en­
uma linha reta. O mesmo vale para a evolução tre as espécies se acentuará. C aqui enunciamos
da vida e as circunstâncias que ela atravessa; apenas a causa essencial; para simplificar, su­
com a diferença, todavia, que a evolução não pusemos que toda espécie acolhesse o impulso
traça um caminho único, mas empenha-se em recebido para transmiti-lo a outras, e que, em
várias direções, aliás, sem visar a objetivos, todos os sentidos em que a vida se evolve, a
e que permanece inventiva em suas próprias propagação tenha lugar em linha reta. Na rea­
adaptações. lidade, há espécies que se detêm e outras que
Todavia, se a evolução da vida é bem invertem o caminho. A evolução não é apenas
diferente de uma série de ad aptações a um movimento para frente: em muitos casos nós
circunstâncias acidentais, ela não é também a vemos marcar passo, mais freqüentemente
a realização de um plano. Um plano é dado ainda desviar-se, ou então voltar para trás. é
antecipadamente, é representado, ou ao me­ necessário que seja assim, como mais adiante
nos representável, antes de ser realizado nos mostraremos: as mesmas causas que dividem
particulares. Sua execução completa pode ser o movimento evolutivo fazem de fato com que
remetida a um futuro longínquo, e até retardada a vida, evolvendo-se, se desvie com freqüência
indefinidamente: sua idéia não deixa por isso de si mesma, fixando-se sobre a forma que, um
de ser formulável desde já em termos dados, momento antes, produziu.
flo contrário, se a evolução é uma criação H. BGrgson,
sempre renovada, ela cria pouco o pouco não R evolução criadora.
( S a p ít w lo v ig é s im o

jA ^ en o vcxçcxo do p e .n s a v n e .n t o teológico
n o se.cu Io XX

ZZI I. ;A renovação
d a teologia pro+es+an+e

• A teologia protestante do século XIX e da primeira metade do século XX foi


dominada pela teologia liberal, que encontra seus representantes de maior relevo
em Albrecht Ritschl (1822-1889) e em seu discípulo Adolf von Harnack (1851-1930),
autor da obra-prima que é A história dos dogmas (3 vols., 1886-1889). O que se tem
a dizer a respeito da teologia liberal é que ela, em linha geral, é
uma concepção em que se tende a mostrar um substancial acordo Barth:
entre cristianismo e cultura. Deus é
Contra tal posição levantou-se a voz de Karl Barth (1886­ "o totalmente
1968), chefe da teologia dialética: em seu comentário à Epístola outro"
aos Romanos de são Paulo - saído em 1919 e, em segunda edição, - > S 1
em 1922 - denuncia todas as tentativas de engaiolar a Palavra de
Deus nas redes da razão humana, reafirma a infinita distância qualitativa entre
o homem e Deus, salienta a oposição substancial entre Deus e tudo aquilo que é
humano. Deus é o "totalm ente outro", e não podemos alcançá-lo com a filosofia
ou a razão. A fé é, de um lado, a intervenção milagrosa de Deus na vida do homem
e, do outro, um abandonar-se existencial do homem a Deus.

• Também para Paul Tillich (1886-1965) - autor de Teologia


Tillich:
sistemática (3 vols., 1951-1963) - as provas racionais da existência
a fé é a resposta
de Deus não são válidas. ........................................................... de Deus
De acordo com Barth, Tillich escreve: "Se Deus é derivado do à pergunta
mundo, não pode ser aquele que o transcende infinitam ente". de um homem
Todavia, em desacordo com Barth, Tillich não pensa que a ontologicamente
fé seja obra exclusiva de Deus: a fé, com efeito, é a resposta de miserável
Deus à pergunta de um homem consciente de sua própria miséria ^§2
ontológica.

• Teórico da demitização é Rudolf Bultmann (1884-1976). Com


Bultmann:
a obra Novo Testamento e mitologia. O problema da demitização
descobrir
da mensagem neotestamentária (1941) ele pretendeu, justamen­ o conteúdo
te, "dem itizar" a narração evangélica, descobrir o significado essencial
profundo escondido sob as concepções mitológicas; quis distinguir do Evangelho
entre o conteúdo essencial do Evangelho e a forma mitológica para além da
assumida por esse conteúdo. forma
E o significado mais profundo da pregação de Jesus é - afir­ "mitológica "
ma Bultmann em Jesus Cristo e mitologia (1958) - que é preciso ^§3
estar abertos ao futuro de Deus, estar prontos "para receber este
futuro que pode sobrevir como um ladrão na noite [...]".
Quinta pUTtC - dEspirifualismo, n o v a s te o lo g ia s e n e o -e s c o lá s + ic a

• De Dietrich Bonhoeffer - nascido em 1906 e morto pelos nazistas no dia 9


de abril de 1945, com 39 anos - são conhecidos principalmente dois livros: Ética
(1949) e Resistência e submissão (1951). O mundo é autônomo
Bonhoeffer: e Deus não é um Deus-tapa-buracos: é o que o homem con­
Cristo ajuda temporâneo adverte. Deus se deixa expulsar do mundo e se faz
por causa de crucificar. O Deus cristão é impotente, mas aqui está a diferença
sua fraqueza do cristianismo em relação às outras religiões: "Cristo não ajuda
->§4 por causa de sua onipotência, mas por causa de sua fraqueza,
de seu sofrimento". E a Igreja - nota Bonhoeffer - é ela própria
quando participa da vida dos homens "não para dominá-los, mas para ajudá-los
e servi-los".

J l l Karl Bartk: Em 1919, Barth publicou seu comentá­


rio à Epístola aos Romanos, de são Paulo,
a ^teologia dialéticaA

saindo em 1922 a importante segunda edi­
contra a^teologia liberal" ção revista da obra. Referindo-se a Kierke­
gaard (para o qual existe “ infinita diferença
qualitativa” entre Deus e o homem, e que
A teologia protestante alemã do sé­ havia dito que, para o crente, a razão serve
culo X IX e da primeira metade do século unicamente para estabelecer que ele “ crê
X X foi dominada pela teologia liberal que, contra a razão” ), Barth, em apaixonado
inspirando-se em Schleiermacher, Hegel e protesto, denunciou todas as tentativas de
também em David Strauss, encontra em aprisionar a Palavra de Deus nas grades da
Albrecht Ritschl (1822-1889) e em seu dis­ razão humana. E, contra a teologia liberal,
cípulo Adolf von Harnack (1851-1930) seus que considerava a Revelação cristã como
representantes mais ilustres. A obra-prima termo final ou desenvolvimento harmôni­
de von Harnack é A história dos dogmas co da natureza e da razão humana, Barth
(3 vols., 1886-1889), que tem como idéia reafirmou não apenas a infinita distância
central a de que o método histórico-crítico é qualitativa entre o homem e Deus, mas
o único método que pode nos oferecer uma também a oposição substancial entre Deus
interpretação científica das Escrituras e da e tudo aquilo que é humano, vale dizer, a
Tradição. Trilhando esse caminho, embora razão, a filosofia, a cultura. Diz Barth que
permanecendo cristão convicto, ele chega a os teólogos liberais, com sua pretensão de
negar tanto os milagres como os dogmas. Em tornar a fé popular com a ajuda da ciência
sua opinião, os milagres seriam resultado da das religiões, do m étodo histórico e da
mentalidade mágica dos primeiros discípu­ filosofia, injuriaram a transcendência de
los, e os dogmas seriam fruto da helenização Deus. E “ uma canonização geral da cultura,
do cristianismo. Como quer que seja, em como a que foi feita por Schleiermacher, não
linhas gerais, a teologia liberal tendia a mos­ pode ser levada em conta por nós” . Deus é
trar um acordo substancial entre cristianismo “ o totalmente outro” , e é inútil pensar em
e cultura, quando não se arriscava à redução alcançá-lo com a razão, com a filosofia, com
do cristianismo à cultura. a religião ou com a cultura.
Essa teologia, ligada à cultura, isto é, à A razão da teologia liberal pretende
filosofia e, no fundo, à política de sua épo­ que a fé não seja um risco ou um salto.
ca, sofreu também o destino de sua época. M as Barth, ao contrário, quer preservar a
As agitações políticas das primeiras duas alteridade de Deus, o seu ser “ totalmente
décadas de nosso século, juntamente com o outro” . '
aparecimento de novas orientações filosófi­ A fé não se apóia na força da razão; ela
cas, como, por exemplo, o existencialismo, é muito mais o milagre da intervenção radi­
certamente contribuíram para o nascimento cal de Deus na vida do homem, ao passo que
e o desenvolvimento daquela revolução teo­ a submissão do homem a Deus é o paradoxo
lógica representada pela teologia dialética, “ irracional” de um abandono existencial. E
que encontrou em Karl Barth (1886-1968) é aqui que encontramos as motivações dos
seu mais eminente representante. ataques de Barth contra a analogia entis.
Cãpltulo v ig é s itH O - y\ r e n o v a ç ã o d o p e n sa m e n to te o ló g ic o no s é c u lo ,X,X

Para Barth, qualquer pretenso conhecimento 4 , f P a u lT ill i c k


racional de Deus constitui uma “ culpada
e o “p rin c íp io d a c o r r e la ç ã o ”
arrogância religiosa” . Entretanto, no mun­
do católico sustenta-se a teoria da analogia
entis, isto é, a idéia de que é possível dizer Assim como Barth, Paul Tillich (1886­
algo de Deus, de sua existência e de seus 1965) estava persuadido de que a teologia
atributos partindo do ser das criaturas e, natural não é válida. N as provas da exis­
portanto, partindo do conhecimento e da tência de Deus tenta-se derivar Deus do
linguagem do homem. mundo, mas, escreve Tillich em Teologia
M as Barth contesta essas teses. E na sistemática (3 vols., 1951-1963), “ se Deus
Dogmática eclesial (que começa a ser pu­ deriva do mundo, não pode ser aquele que o
blicada em 1932), ele escreve que, “ se nós transcende infinitamente” . Desde a Primeira
conhecemos Deus como Senhor (criador, Guerra Mundial (da qual participou como
reconciliador e redentor), não é porque capelão militar), Tillich rejeitou a imagem
conhecemos outros senhores e senhorias. tradicional de Deus.
Também não é verdade que o nosso co­ M as, então, como dar nova expressão
nhecimento de Deus como Senhor deve-se à mensagem cristã, expressão adequada e
em parte a nosso conhecimento de outros compreensível para o homem moderno?
senhores e senhorias, e em parte ã revelação. Também para Tillich a fé é dom de Deus.
N osso conhecimento de Deus como Senhor Entretanto, diferentemente de Barth, Tillich
deve-se total e exclusivamente à revelação não pensa que a fé seja obra exclusiva de
de Deus” . Conseqüentemente, não analogia Deus. Ao contrário, ele afirma que ela não
entis, e sim analogia fidei. IIIaM TI é possível sem a participação do homem. O

Karl Barth (1886-1968)


foi o maior teólogo
protestante do século X X ,
e concebeu a fé como o milagre
da intervenção vertical de Deus
na vida do homem.
Q u i n t a p a r t e - E s p ir itu a l is m o, n o v a s te o lo g ia s e n e o -e s c o lá s f ic a

homem é o sujeito da fé. A fé é uma “ pos­ tária. Por “ m ito” Bultmann entende “ a
sibilidade humana” . descrição do transcendente sob roupagem
A fé pressupõe que, consciente de sua hum ana, das coisas divinas como se se
própria miséria ontológica, o homem seja tratasse de coisas humanas” . Diz ele: “A re­
capaz de compreender “ o significado do presentação neotestamentária do universo é
último, do incondicionado, do supremo, mítica. Considera-se o mundo articulado em
do absoluto, do infinito” . A fé, portanto, é três planos. Ao centro encontra-se a terra,
a resposta de Deus à “ pergunta de uma vida acima dela o céu e abaixo dela os infernos.
não am bígua” . O céu é a morada de Deus e das figuras
Entre o hom em (ontologicam en te celestes, os anjos; o mundo subterrâneo é
miserável e psicologicamente desesperado) o inferno, o lugar dos tormentos. M as nem
que pede e Deus que dá, o que existe é uma por isso a terra é exclusivamente lugar do
correlação (e não aquele abismo afirmado acontecimento natural-cotidiano, ou seja,
por Barth). das solicitudes e do trabalho, onde reinam
a ordem e a norma: é também o teatro de
ação dos poderes sobrenaturais de Deus
e seus anjos, de Satanás e seus demônios
R “ d ° l f Bultmann: [...]” . E, acrescenta Bultmann, também “ a
o metodo representação do acontecimento da salva­
//K i s f ó r i c o - m o r | 'o l Ó 0 Í c o // ção, que constitui o conteúdo específico do
anúncio neotestamentário, é coerente com
e a “demitização" essa imagem mítica do mundo” .
Diante desse dado de fato, Bultmann,
distinguindo entre o conteúdo essencial do
Em bora Bultm ann (1884-1976) se Evangelho e a forma estrutural (mítica, me­
tenha imposto no campo das ciências reli­ tafísica, científica) que esse conteúdo pode
giosas como exegeta do Novo Testamento assumir, afirma que “ a pregação cristã” não
(H istória da tradição sinótica, 1921; O pode pretender do homem moderno que ele
Evangelho de João, 1941; O cristianismo reconheça como válida uma imagem mítica
primitivo no quadro das religiões antigas, do mundo. Por isso é preciso demitizar. E
1949), ele deve sua notoriedade no campo demitizar significa “ procurar descobrir o
filosófico-teológico à teoria da demitização, significado mais profundo que está oculto
com a publicação, em 1941, do escrito: sob as concepções mitológicas” .
Novo Testamento e mitologia. O problema E, escreveu Bultmann em Jesus Cristo
da demitização da mensagem neotestamen- e mitologia, de 1958, esse “ significado mais
profundo da pregação de Jesus é o seguinte:
estar aberto para o futuro de Deus, futuro
que, para cada um de nós, é verdadeiramente
iminente; estar preparado para receber esse
futuro, que pode vir como ladrão na noite,
H' - H no momento em que menos o esperamos;
: ■ Demitização. É um termo que o |
manter-se pronto, porque esse futuro será o
| pensamento teológico contemporâ- j
| neo deve a Rudolf Bultmann, para I juízo de todos os homens que estão apegados
| o qual "mítica" é uma narração de I ao mundo, que não são livres nem abertos
I acontecimentos em que "intervém •• para o futuro de Deus” .
| forças ou pessoas sobrenaturais ou \
í sobre-humanas". \
| Ora, a mensagem cristã é, segundo ;
I Bultmann, mensagem sempre atual % 4 D i^ ic K BonKoeffe,
.. mas que tem necessidade de ser I e o n\i\v\c\o scwdo
I "demitizada", no sentido de que ela,
• para captar sua autenticidade, deve f da “tutela de DeusA

í ser despojada das representações f
I mitológicas nas quais foi expressa na i
i pregação primitiva, e que chocam a § Dietrich Bonhoeffer nasceu em Breslau
; mentalidade científica dos homens | em 1906 e foi morto pelos nazistas dia 9 de
m. de nossos dias. S
:M abril de 1945, com 39 anos. São famosas sua
Ética (1949) e as cartas da prisão, publica­
das postumamente com o título Resistência
367
Cdpltlllo vigésimo - r e n o v a ç ã o d o p e n sa m e n to te o ló g ic o no sé c u lo

e subm issão, em 1951. Sua notoriedade momento. Com Deus e na presença de


cresceu de forma notável no pós-guerra. Deus, nós vivemos sem Deus. Deus deixa-
Escreveu Bonhoeffer: “ O problem a se expulsar do mundo: sobre a cruz, Deus é
que jamais me deixa tranqüilo é o de saber impotente e fraco no mundo, mas é assim e
o que é verdadeiramente para nós, hoje, o somente assim que ele permanece conosco e
cristianismo, ou até quem é Cristo” . E isso nos ajuda. Mateus 8,17 é claríssimo: Cristo
constitui problema hoje porque o homem não ajuda em virtude de sua onipotência,
moderno “ aprendeu a enfrentar qualquer mas sim em virtude de sua fraqueza, de
problema, até importante, sem recorrer à seu sofrimento — aqui está a diferença
hipótese da existência e da intervenção de determinante em relação a qualquer outra
Deus” . religião” .
O mundo é autônomo, e Deus não é E, com o Bonhoeffer deixa escrito
um tapa-buracos. O que importa, diz Bo­ em Anotações para um livro, se o cristão
nhoeffer, é ver que é “ o próprio Deus [que] “ encontra o Deus vivo participando dos
nos ensina que nossa vida de homens deve sofrimentos de Deus na vida do mundo” ,
prosseguir como se ele não existisse” . O “ a Igreja só é verdadeiramente ela própria
Deus que nos permite viver em um mundo unicamente quando existe para a humanida­
autônomo, “ o Deus que nos faz viver num de [...]; a Igreja deveria tomar parte da vida
mundo sem a hipótese de trabalho ‘Deus’, social dos homens, não para dominá-los, e
é o Deus em cuja presença estamos a cada sim para ajudá-los e servi-los” . 155ÜS1T1

Dietricb Bonhoeffer nasceu em 1906


e foi morto pelos nazistas
no dia 9 de abril de 1945;
aqui é retratado no cárcere de Tegel
em 1944.
Quinta parte - E s p ir itu a l is m o, n o v a s te o lo g ia s e n e o -e s c o lá s t ic a

: 11. A renovação :
d a teologia católica

• Karl Rahner (1904-1984) pensa a teologia como interpretação da Revela­


ção por meio de categorias filosóficas e, jesuíta aluno de Heidegger, usou em
suas pesquisas teológicas a filosofia de santo Tomás de Aquino,
Rahner: desenvolvendo-a, porém, em sentido antropocêntrico e não
o homem cosmológico (não se chega a Deus partindo do movimento, do
é abertura finalismo etc.).
a Deus Para Rahner o homem é espírito porque é o único ente que
se põe a pergunta sobre o sentido do ser. O homem - escreve
Rahner em Ouvintes da palavra (1941) - é tensão contínua para
o absoluto, é constitutivamente abertura para Deus. E por isso ele é "ouvinte da
palavra", enquanto é "pelo menos o ser que tem o dever de ouvir uma revelação
desse Deus livre em uma palavra humana".

• Derrubar os bastiões é a obra que o jesuíta Hans Urs von Balthasar (1905­
1988) publica em 1952. É urgente - diz ele - que a Igreja saia do fechamento das
muralhas que colocou entre si, de um lado, e a cultura e a ciência, do outro. Mas
para fazer isso é necessário fazer teologia. E fazer teologia significa falar da Reve­
lação de um ponto de vista, assim como ocorreu com a analogia
Von Balthasar: entis (Tomás e a Escolástica sustentam que a razão pode falar de
Deus fala Deus em analogia com os seres humanos, sem comprometer sua
na experiência transcendência), com o princípio antropológico (Rahner), com o
estética princípio de correlação (Tillich). Balthasar não avalia negativa-
52 mente essas tentativas, mas diz possuir um instrumento melhor
para tornar acessível e crível a Revelação aos homens de nossos
dias: esse instrumento é o conceito transcendental de beleza. A beleza - escreve
Balthasar em Glória (1961-1965) - é o modo com o qual se comunica a bondade
de Deus e no qual se exprime a verdade que Deus quer participar aos homens.

1 Karl T^aKrver santo Tomás, desenvolvendo-a, porém, em


e as “condições a priori//
sentido antropocêntrico (diversamente da
Escolástica).
da possibilidade Isso significa que Rahner, seguindo
da Revelação nesse ponto seu mestre Heidegger, propõe
os problemas filosóficos fundamentais não
partindo do mundo, e sim partindo do
homem. Rahner não parte do mundo (do
Karl Rahner (nascido em Friburgo na movimento, do finalismo etc.) para chegar a
Brisgóvia em 1904 e morto em Innsbruck Deus. A sua perspectiva, precisamente, não
em 1984) é certamente o teólogo católico é cosmocêntrica, e sim antropocêntrica.
hoje mais conhecido. Para ele, a obra do Depois do assalto à possibilidade da
teólogo consiste na interpretação da Re­ metafísica desferido por Hume e Kant, a
velação mediante conceitos filosóficos. E, teologia não pode mais evitar o seguinte
embora aprecie as concepções e tentativas da problema: como pode o homem ouvir Deus
filosofia moderna (que levam “ a estruturar e como pode o homem captar a Revelação?
o próprio sistema de modo novo e original São essas as interrogações que Rahner
e a superar todo formalismo estereotipado e procura resolver em Espírito no mundo
todo verbalismo” ), ele assume como válida (1939) e Ouvintes da palavra (1941). Pois
para seu trabalho teológico a filosofia de bem, para Rahner o homem é antes de mais
C a p í t u l o f i g é s i f f í O - jA r e n o v a ç ã o d o p e n sa m e n to te o ló g ic o no sé c u lo /C/K

nada “ espírito” . E o é porque o homem é o Lyon, onde conheceu também Paul Claudel,
único ente que se propõe a questão do sen­ von Balthasar encontrou o padre Henri De
tido do ser. M as, propondo-se essa questão, Lubac, que o introduziu na Patrística e na
o homem abre-se para o ser como para o história da teologia. (O padre De Lubac,
horizonte de toda realidade possível. que o teve como discípulo, considerou von
Ele é espírito que está essencialmente Balthasar “ o homem mais culto de nossa
à escuta da possível Revelação de Deus. época” .) M ais tarde, em Basiléia, ele terá
Escreve Rahner em Ouvintes da palavra: freqüentes contatos com Barth, sobre o
“ O homem é espiritual, isto é, vive sua vida qual escreveria uma obra considerada muito
em contínua tensão na direção do absoluto, penetrante pelo próprio Barth.
em abertura para Deus” . E isso não é um Em 1952, von Balthasar publicou Der­
fato acidental, e sim “ a condição que faz o rubar os bastiões, onde sustenta que a Igreja
homem ser aquilo que é e deve ser, estando deve sair do fechamento das muralhas que,
presente também nas ações banais da vida há séculos, ela pôs entre si e o mundo, entre
cotidiana. Ele é homem só porque está a ela de um lado, e a ciência e a cultura, do
caminho rumo a D eus” . Desse modo, na outro, entre os católicos e os outros cristãos.
concepção de Rahner, o homem se configura E precisamente por isso ele afirma a urgên­
como “ ouvinte da palavra” : “ Afirmamos cia de se fazer teologia. A teologia não foi
agora...] que o homem é pelo menos o ser feita de uma vez por todas. Trata-se de uma
que tem o dever de ouvir uma revelação atividade que não deve cessar nunca.
desse Deus livre em palavra hum ana” . M as, para fazer teologia, ou seja, para
Nessas idéias encontra-se o núcleo da falar da Revelação, é preciso ter um ponto de
“ metafísica transcendental” ou da “ antro­ vista. O passado nos mostra diferentes pon­
pologia transcendental” de Rahner. Assim tos de vista usados como instrumentos para
como Kant tomou a ciência e procurou ver aproximar-se da Escritura: a analogia entis,
as condições a priori que a tornam possível, o princípio antropológico, o princípio de
da mesma forma Rahner quis explorar as correlação etc.; von Balthasar aprecia essas
condições a priori que tornam possível a tentativas, mas, no entanto, sustenta estar de
teologia, justamente interrogando-se sobre posse de um instrumento melhor, capaz de
as condições da possibilidade da Revelação tornar a Revelação acessível e crível para os
em geral. R g g i 3 14 | homens de hoje: para ele, esse instrumento é
o conceito transcendental de beleza.
Somente na experiência estética é que
o objeto nos aparece mais próximo. Escreve
Hans IV s v o n Balthasar von Balthasar em Glória (Herrlichkeit), obra
e a estética teológica que, quando for concluída, constituirá a sua
Summa Theologica: “ N a luminosa figura
do belo, o ser do ente torna-se visível como
Von Balthasar (nascido em Lucerna em nenhuma outra parte; por isso, em todo
em 1905 e morto em Basiléia em 1988) foi conhecimento e tendência espiritual, deve
aluno de Erich Przywara, o célebre jesuíta estar presente um elemento estético” .
autor de Analogia entis (1932). Em seu livro, A beleza, como podem os ler ainda
Przywara faz ver por que a analogia entis em Glória, “ é a última aventura na qual a
constitui ponto básico da teologia católica. razão raciocinante pode se arriscar, já que a
Diz ele que é em virtude da analogia entre beleza nada mais faz do que circundar com
os vários graus do ser que nos é possível um impalpável esplendor a dupla fisionomia
subir do mundo para Deus, já que a razão da verdade e da bondade, e sua indissolúvel
pode falar de Deus analogicamente sem reciprocidade” . A beleza é o modo pelo qual
com prom eter sua transcendência (como a bondade de Deus se transmite e pelo qual
temia Barth). Foi com Przywara que von se expressa a verdade que Deus transmite
Balthasar aprendeu a conhecer o pensa­ aos homens. Glória é justamente a categoria
mento de santo Tomás. Posteriormente, em estética adequada ao amor de Deus.
Q u i f l t ã p ã t t C - E sp ir itu a lis m o , n o v a s te o lo g ia s e n e o -e s c o lá s t ic a

III. A "teologia d a morte de D e u s /;


e sua^supem ção^

• A teologia da morte de Deus foi um movimento de pensamento que se de­


senvolveu nos Estados Unidos nos inícios da década de 1960, cujos representantes
mais conhecidos são Gabriel Vahanian, William Hamilton, Thomas J. J. Altizer e
Paul M. van Buren.
Eles sustentaram que a sociedade secularizada, em que vivemos, é uma so­
ciedade livre de qualquer vínculo religioso, privada de qualquer ser sobrenatural;
e dessa premissa tiraram a conclusão de que o homem contem­
Pode-se crer porâneo, o homem que opera dentro da sociedade secularizada,
em Cristo, pode certamente continuar a crer em Cristo mas não pode mais
mas não crer em Deus.
em Deus O significado secular do Evangelho (1963), obra de Paul M.
1 van Buren, é talvez o texto mais conhecido da teologia da morte
de Deus, e nele o autor relê o Evangelho, tentando mostrar como
o discurso religioso não se refere a Deus, mas ao homem. Assim, por exemplo, a
criação não nos diz que Deus criou o mundo, mas que este mundo é aceitável; a
Revelação não seria o autodesvelamento de Deus, mas muito mais a aquisição da
liberdade cristã por obra da lembrança de Jesus Cristo.

• A superação desta posição - que relembra a de Feuerbach - foi tentada, em


anos sucessivos, pelo próprio Paul M. van Buren, que, em As fronteiras da lingua­
gem (1972) - munido de instrumentos hermenêuticos forjados no
van Buren: arsenal do "segundo" Wittgenstein (princípio de uso, teoria dos
a teologia jogos de lín g u a)-, oferece uma interpretação muito interessante
da morte do funcionamento da linguagem religiosa, uma linguagem que,
de Deus com seus "paradoxos" e seus "balbucios" e o próprio "silêncio",
ésuperada consegue guardar o senso do mistério.
— § 2 Alguns anos mais tarde, em 1974, em Teologia hoje van Buren
dirá que a salvação vem apenas de Deus: "Apenas aquilo que é
impossível e incoerente, empiricamente insignificante e irrelevante, pode libertar:
apenas o Deus que é graça".

Pod e-se c o n t i n u a r Os representantes m ais conhecidos


desse movimento são Gabriel Vahanian,
a cre.r em C^ris +o,
William Hamilton, Thomas J. J. Altizer e
mas n ã o em IDeus Paul M . van Buren. Sua idéia de fundo é a
de que o homem moderno, que vive em uma
época já secularizada, pode continuar a crer
A teologia radical ou teologia da morte em Cristo, mas não pode mais crer em Deus.
de Deus é (ou, melhor, foi) um movimento de Por “ secularização” , escreve H. Cox,
pensamento que se desenvolveu nos Estados entende-se “ a libertação do homem antes de
Unidos no último pós-guerra, movimento mais nada do controle religioso, e depois do
que, ligando-se à teologia da secularização controle metafísico sobre a mente e sobre sua
(sobretudo ao anti-sobrenaturalismo que linguagem [...]. A secularização é o homem
John A. T. Robinson expôs em Deus não é que retira sua atenção do outro mundo para
assim, 1963, e à politização dos conceitos concentrá-la neste mundo e neste tempo (sae-
bíblicos propostos por H. Cox em A cidade culum = a época presente)” . A sociedade se­
secular, 1965), sustentou o que foi chamado cularizada é uma sociedade despida de qual­
de “ ateísmo cristão” . quer vínculo religioso e privada de qualquer
Cãpítulo v ig é s ifT lO - r e n o v a ç ã o d o p e n s a m e n to teolÓ 0 Íco no sé c u lo

Ser sobrenatural. E, segundo esses teólogos, e sim muito mais como conquista da liber­
a secularização seria o fruto maduro do pró­ dade cristã, graças à recordação de Jesus
prio cristianismo, que, com a revelação da Cristo; a doutrina da criação não significa
transcendência absoluta de Deus, desvelou que Deus criou o mundo, mas que o mundo
para o homem um mundo dessacralizado é aceitável; a santificação representa o con­
e a total autonomia do próprio homem. vite para se fazer tudo o que Cristo fez, ou
A partir do pressuposto de que nós seja, a se comportar de determinado modo;
vivemos em um mundo e em uma sociedade a pregação faz com que quem escuta “ veja o
secularizados, os teólogos da morte de Deus mundo em que vive à luz de Jesus de Nazaré,
sustentaram que a teologia não deve se dei­ libertador de todo o mundo” .
xar seduzir pelas miragens do além, e que
sua função é mostrar que o discurso religioso
não é discurso que diz respeito a Deus, e sim A superação da tipologia
um discurso do homem relativo exclusiva­ da morte de Deus
mente ao homem e à sua vida aqui na terra.
Foi precisamente isso o que quis mostrar, em
seu livro O significado secular do evangelho Van Buren escrevera O significado
(1963), o mais conhecido dos teólogos da secular do evangelho com a convicção de
morte de Deus, isto é, Paul M. van Buren aplicar à teologia os instrumentos de inter­
(nascido em Norfolk, Virgínia, em 1924, e pretação criados pela filosofia da linguagem.
morto em 1998; aluno de Barth em Basiléia; Entretanto, logo teve de constatar que a
professor em Filadélfia). filosofia da linguagem por ele utilizada não
A Revelação, portanto, não deve ser ia além do princípio de verificação do neo-
entendida como autodesvelamento de Deus, positivismo. Assim, indo além das estreitezas

Harvey Cox,
teólogo protestante americano,
em sua obra A cidade secular
propõe a politização
dos conceitos bíblicos.
Quinta parte - E s p ir itu a l is m o, n o v a s feol o g ia s e n e o -e s c o lá s + ic a

e do dogmatismo do verificacionismo neo- Pilatos” , estamos nos movendo no centro


positivista, e utilizando o “princípio de uso” da plataforma; quando dizemos que “Jesus
segundo Wittgenstein, van Buren, com As morreu pela nossa salvação” , estamos na
fronteiras da linguagem (1972), apresenta periferia; mas, quando os evangelistas nos
nova e mais adequada interpretação da expe­ dizem que “Jesus ressuscitou dos mortos” ,
riência e da linguagem religiosas. Para tanto, então estamos na última fronteira. Nesse
constrói um modelo da linguagem humana, ponto afloramos o limite, e então o cristão
vendo-a como plataforma sobre a qual nos grita a palavra “ D eus” . E deve gritá-la,
movemos e que continuamente ampliamos. deve arriscar-se ao contra-senso, se quiser
N o centro dessa plataforma está a lin­ que a vida tenha algum sabor. Em suma, a
guagem na qual nos movemos bem, isto é, fé do cristão rompe o acinzentado de um
a linguagem “ regulada” pela ciência e pela mundo de “ fatos” todos iguais e sem senti­
vida cotidiana. Fora do centro, na periferia, do e, com seus paradoxos e suas violências
estendem-se as normas de uso válidas no contra a linguagem “ sensata” do centro da
centro, e temos então as metáforas, as ana­ plataforma, custodia o sentido do mistério e
logias etc. Aqui, a linguagem atua fora de aquela luz única que pode iluminar as trevas
casa, mas atua, pois ainda é regulada, tanto de nossos dias.
que podemos dizer que “ uma brincadeira é Com efeito, vemos que o cosmo tor­
pesada” , “ explodiu um problema” e assim nou-se um caos, e percebemos que nos apro­
por diante. Indo além, podemos ainda tentar ximamos sempre mais do momento em que
nos afastar da periferia, mas então corremos a terra não suportará mais uma vida vivida
o risco de cair. Permanecendo na periferia, tão estupidamente como insistimos em fazer
podemos dizer que “ um computador pen­ hoje. A década de 1970 nos adverte sobre
sa ” , mas poderíamos dizer “ o computador a precariedade da condição humana. Nela
nos am a” ? Será possível dizer que “ o cão podemos ler a frase “Memento mori” : é o
pensa em ter medo am anh ã?” Podemos que escreve van Buren em Teologia hoje, de
dizer que “ uma cidade cresce” , mas po­ 1974. A condição humana é uma condição
deremos dizer que “ uma pedra cresce?” de indigência ontológica. A humanidade não
Aqui, a corda se rompeu e a brincadeira é absoluta, pode desaparecer inteiramente. E
acabou. E caímos, caímos no contra-senso. nessa situação que a teologia deve dizer pa­
Obviamente, podemos decidir permanecer lavras de libertação e esperança. Esperança
no centro da plataforma, onde a vida esta­ e libertação que, embora se solidarizando
rá cheia de “ fatos” . M as, em torno desses com a libertação da mulher, com a libertação
homens que decidiram viver no centro da dos negros ou com a libertação dos oprimi­
plataform a, há outros para os quais essa dos, sejam bem mais radicais do que elas,
vida é insuportável: esses se sentirão atraídos no sentido de que estamos em condições
pelas fronteiras da linguagem, persuadidos de anunciar um sentido de vida que não
de que, “ quanto mais amplo é o espectro da pode ser construído de outro modo. Desse
linguagem que se adota, mais rico é o mundo modo, a teo-logia será “ serviço da palavra
no qual se encontra” . Esses homens amam de Deus” .
o “ paradoxo” e rompem com os esquemas E como o teólogo é incapaz de falar
usuais da linguagem: é o caso dos artistas, do que é totalmente transcendente, então
mas também dos humoristas. O que seria de seu esforço se transforma em cristologia.
uma vida sem amor? E, no entanto, também Pergunta-se van Buren: quem nos libertará
o apaixonado usa linguagem às vezes à beira deste corpo mortal? Ou seja, quem poderá
do precipício do contra-senso. E se podemos dar um sentido à aventura da humanidade
dizer com T. S. Elliot que a poesia é “ irrup­ sobre a face da terra, humanidade finita em
ção no inarticulado” , é certo que também sua inteireza? Ele próprio responde: “ N ão
o m etafísico, com seus conceitos e suas serão os homens, certamente. N ão serão os
teorias, nos força a caminhar nos limites de movimentos de libertação, ainda que seja
nosso pensamento, levando-nos à fronteira impossível não ser solidários com todos os
da linguagem. E exatamente aí, na fronteira que gritam sua raiva e sua frustração pelos
da linguagem, que vive e palpita o discurso horrores que estamos fazendo [...]. Somente
religioso. Os paradoxos, os balbucios e o o que é impossível e incoerente, empiri-
próprio silêncio do discurso cristão não camente insignificante e irrelevante, jDode
têm sentido no centro, e sim nas fronteiras libertar: somente Deus que é graça. E isso
da linguagem. Quando dizemos que “Jesus o que todos nós devemos recordar, se deve
m orreu durante o consulado de Pôncio haver para nós uma teologia hoje” .
Cupítulo vigésiiflO - ; A r e n o v a ç ã o d o p e n s a m e n t o t e o ló g ic o n o s é c u lo X X

IV. ;A teologia d a e sp e ra n ç a

• A teologia da morte de Deus é uma resposta da filosofia americana (empi-


rista, pragmatista, analítica) ao problema teológico; a teologia da esperança é, ao
contrário, a resposta que ao problema de Deus dá uma tradição
do pensamento europeu: a hegeliana-marxista. Moltmann:
O pioneiro da teologia da esperança é o teólogo protestante a teologia cristã
Jürgen Moltm ann, nascido em Hamburgo em 1926; professor em tem um único
Bonn, e autor do trabalho fundamental Teologia da esperança problema
(1964). Para Moltmann a teologia cristã tem um só problema: verdadeiro:
o do futuro
o problema do futuro. É a escatologia, portanto, o coração da
1
reflexão teológica de Moltmann, ou seja, a promessa divina das
"realidades últimas" que dão sentido à vida de cada homem
individual e de toda a história humana, e iluminam a vida presente, relativizando
todos os seus resultados e todas as suas instituições à luz da promessa do futuro.
E é claro que quem alimenta a esperança cristã "não poderá jamais se adaptar às
leis e às fatalidades inelutáveis desta terra".

•T am b ém W olfhardt Pannenberg - nascido em Stétin em Pannenberg:


1928 e professor de teologia em Munique - sustenta que a espe­ o Deus bíblico
rança cristã age sobre o mundo histórico em direção contestatária. é o Deus
E em O Deus da esperança (1967) ele estabelece sua distância das promessas
do Deus dos filósofos em favor do Deus bíblico: este é "o Deus que leva
das promessas, que conduz, na história, para um novo futuro, a um novo
futuro
Deus do reino futuro que cunhou a experiência do mundo e a
-*§2
situação humana".

• Dentro do mundo católico foi Johannes B. M etz, nascido Metz:


em 1928, e professor de teologia fundam ental em Münster, que as promessas
suscitam - com obras como Sobre a teologia do mundo (1968) escatológicas
e O futuro da esperança (1970) - a reflexão teológica sobre o da Bíblia
tem a da esperança. A velha metafísica, afirma M etz, não serve não se deixam
mais como instrumento de interpretação da Revelação; também privatizar
é inadequada a perspectiva existencialista, uma vez que tal pers­ - * § 3
pectiva "privatiza" a mensagem cristã e considera "dispensáveis"
a realidade social e o empenho político. A mensagem cristã, porém - e isso é o que
M etz mais preza -, não é uma questão privada: "As promessas escatológicas da
tradição bíblica - liberdade, paz, justiça - não se deixam privatizar. Elas nos remetem
necessariamente, incessantemente, diante de nossa responsabilidade social".

• Teólogo da esperança é também o dominicano holandês Schillebeeckx:


Edward Schillebeeckx, nascido em Anvers em 1914; professor o Deus
primeiro em Louvain e depois em Nijmegen, foi o principal ins­ que está
pirador do Novo catecismo holandês. em Jesus Cristo
O homem vive tenso para o futuro; seu interesse está exata­ nos dá
mente no futuro. E é justamente essa orientação para o futuro a possibilidade
- à luz da qual o homem de hoje olha sua história, a si próprio de tomar
e aos outros - que nos leva a redescobrir uma imagem de Deus tudo novo
autenticamente bíblica: "É a noção de Deus, entendido como - > § 4
'nosso futuro' [...], o Deus que em Jesus Cristo nos dá a possibili­
dade de tornar tudo novo".
374
Quinta parte - E s p ir itu a l ism o, n o v a s te o lo g ia s e. n e .o -esco lá stic

1 AAoltmann quase impossível desenvolver uma escatolo­


. gia em si mesma. E muito mais importante
e a contradição entre
mostrar que a esperança é o fundamento e
“esperança” e rtexperiênciaA o motor do pensamento teológico enquanto
tal, e introduzir a perspectiva escatológica
nas afirmações teológicas sobre a revelação
Se a teologia da morte de Deus é a de Deus, a ressurreição de Cristo, a missão
teologia que contabiliza e usa as categorias da fé e a história” . Todas essas reflexões
típicas da filosofia em pirista e analítica sobre a esperança nada mais significam do
anglo-americana, a teologia da esperança que o fato “ de que quem tem essa esperança
corresponde à filosofia hegeliana-marxista nunca poderá se adaptar às leis e às fatali­
do continente europeu: essencialmente, ela dades inelutáveis desta terra” .
pretende responder ao desafio m arxista,
permanecendo principalmente em estreito
contato com a obra de Ernst Bloch, em cujo Pannenberg:
O princípio esperança Jürgen Moltmann e,
"a prioridade pertence à fé,
com ele, muitos outros teólogos da espe­
rança viram o instrumento hermenêutico mas o p n m a*adc
o a esperança
adequado para a interpretação da Reve­
lação harmônica e compreensível para os
homens de nossos dias. Como dirá outro A ação da esperança cristã sobre o
teólogo da esperança, Wolfhardt Pannen- mundo histórico em sentido contestatário é
berg, foi o marxista Ernst Bloch que “ nos uma concepção que também pode ser encon­
ensinou a compreender novamente a força trada em Wolfhardt Pannenberg (nascido
maravilhosa de um futuro ainda aberto e da
esperança, que nela se baseia, para a vida e
o pensamento do homem” .
O fundador da teologia da esperança
foi o teólogo protestante alemão Jürgen ■ Escatologia. O termo (do grego
M oltm ann (nascido em H am burgo em éschata = as coisas últimas) indica,
1926, professor de teologia sistemática em no pensamento cristão, a parte da
Bonn). Em seu trabalho fundamental Teo­ teologia dogmática em que se tratam
logia da esperança (1964), Moltmann parte os novíssimos: morte, juízo, inferno
da escatologia, isto é, da promessa divina e paraíso.
No Antigo Testamento as expecta­
daquelas “ realidades últimas” que dão sen­
tivas escatológicas foram expressas
tido à história e iluminam a vida presente, nos livros de Isaías, Daniel, Ezequiel
relativizando todos os seus resultados à luz e Zacarias.
da promessa do “ futuro” . No cristianismo a ressurreição de
Moltmann afirma que a teologia cristã Cristo se tornou o evento escatológico
“ tem um único problema verdadeiro, que que marca a vitória sobre a morte, na
lhe é imposto por seu próprio objeto e que, espera do advento do Reino com a
através dela, é proposto para a humanidade segunda vinda de Cristo. Os primeiros
e para o pensamento humano: o problema cristãos acreditavam que a segunda
do fu tu ro ” . E isso pelo fato de que “ o vinda de Cristo seria iminente. E, dado
que isso não aconteceu, os trechos
elemento escatológico não é um dos com­
escriturísticos que falam de um fim
ponentes do cristianismo, mas, em sentido dos tempos muito próximo foram
absoluto, é o trâmite da fé cristã, é a nota reinterpretados diversamente, em
pela qual todo o resto se afina, é a aurora chave alegórica, por exemplo.
do esperado novo dia, que ilumina todas as Na tradição teológica, a escatologia
coisas com sua luz. Com efeito, a fé cristã foi identificada, como dissemos, com
vive da ressurreição de Cristo crucificado a tratação dos "novíssimos". Na teo­
e se projeta na direção das promessas do logia contemporânea o interesse pela
futuro universal de Cristo” . questão "escatológica" é muito vivo,
Todavia, precisa Moltmann, “ a esca­ especialmente entre os teólogos da
tologia não pode vagar nas nuvens, e sim esperança. O tema foi estudado prin­
cipalmente por Jürgen Moltmann.
formular suas afirmações de esperança em
contradição com a experiência presente do
sofrimento, do mal e da morte. Assim, é
' •* • 375
Capitulo vigésiwiO - j \ r e n o v a ç ã o d o p e n sa m e n to te o ló g ic o no sé c u lo ,XjX

em Stétin em 1928, professor de teologia teologia fundamental na Universidade de


em Munique). Münster) quem se empenhou na elaboração
A cristologia de Pannenberg põe des­ da teologia da esperança, que nele, depois,
de o início a esperança como seu fulcro. E adquiriu a fisionomia de teologia política.
esse fato aparece inteiramente explícito em Autor de Sobre a teologia do mundo (1968)
seu ensaio intitulado O Deus da esperança e de O futuro da esperança (1970), aberto
(1967). Afirma Pannenberg que o Deus do ao diálogo e influenciado por Rahner, mas
teísmo tradicional é “ um ser ao lado dos também por Ernst Bloch e pela Escola de
outros seres” e que, por isso, a crítica filo­ Frankfurt, Metz sustenta que, se a velha
sófica, de Nietzsche a Sartre, ataca a finitude metafísica (privada de autêntica dimensão
e o antropomorfismo do Deus dos filósofos. do futuro) é inadequada como instrumento
Entretanto, essa crítica não ataca em nada de interpretação da Revelação, também são
o conceito bíblico de Deus, isto é, “ o Deus inadequadas as concepções existencialista
das promessas, que leva a um novo futuro na e personalista de que se valeram muitos
história, Deus do Reino futuro que cunhou teólogos contemporâneos. E essas concep­
a experiência do mundo e a situação huma­ ções são inadequadas porque privatizam a
n a” . Substancialmente, para Pannenberg, mensagem cristã, reduzem “ a prática da fé
“ se o regnum venturum for biblicamente à decisão privada do indivíduo, afastado
caracterizado como reino de Deus, então do mundo” e, desse modo, nada mais vêem
teremos esse primado ontológico do futuro na realidade sociopolítica do que “ uma
do reino sobre todo o real presente e também realidade negligenciável” . Segundo Metz,
sobre o presente psíquico. Com efeito, bibli­ essa interpretação é equivocada pela simples
camente, o ser de Deus e o ser do reino são razão de que no cristianismo não existe uma
idênticos, porque o ser de Deus é seu poder” . salvação privada. A mensagem cristã não se
Em substância, na opinião de Pannen­ deixa privatizar porque “ as promessas esca-
berg, “ a fé diz respeito ao futuro. E, em sua tológicas da tradição bíblica — liberdade,
essência, o futuro é confiança: a confiança paz, justiça, reconciliação — não se deixam
volta-se essencialm ente para o futuro, privatizar. Elas nos remetem necessária e
sendo justificada ou frustrada pelo futuro. incessantemente à nossa responsabilidade
M as não se tem confiança cegamente, e social” .
sim com base em algo de tangível em que E é precisamente assumindo a “ espe­
consideramos poder confiar. A verdadeira rança” como centro de sua perspectiva que
fé não é credulidade cega. Os profetas pu­ a Igreja, “ portadora da memória subversiva
deram conclamar Israel a ter confiança nas da liberdade” , pode exercer função crítica
promessas de Javé porque Israel já havia sobre o mundo e, ao mesmo tempo, lançar
experimentado, durante uma longa histó­ propostas construtivas. A Igreja deve procla­
ria, que podia confiar nesse seu Deus. E o mar incessantemente “ a promessa escatoló-
cristão empenha sua confiança, sua vida e gica de Deus” diante dos sistemas políticos
seu futuro pelo fato de que Deus se revelou que tentam bloquear a história e proibir
na sorte de Jesus” . o futuro do homem: “ Com sua ‘promessa
Desse modo, o cristão torna-se partíci­ escatológica’, diante de toda concepção
pe da glória de Deus “ somente se deixar para abstrata do progresso e de todo ideal hu­
trás de si o que já é e o que encontra como manista abstrato, a Igreja faz cair por terra
condição de seu mundo. N ão por meio de as tentativas de considerar o indivíduo vivo
uma fuga do mundo, e sim por meio de uma no momento atual como material ou meio
mudança ativa do mundo, que é expressão de construção de um futuro tecnológico
do amor divino, do poder de seu futuro inteiramente planificado” .
sobre o presente, por meio de sua mudança
para a glória de D eus” .
Sckillebeeckx:
3 ./Vle+2: “Deus é aquele ue vira
a teologia da esperança
como feol ogia polí+ica O homem vive voltado para o futuro. O
futuro é seu interesse. Com efeito, ainda que
viva mergulhado no presente e esteja marca­
N o âmbito católico, foi Johannes B. do pelo passado, o homem não é de modo
M etz (n ascido em 1928; professor de nenhum prisioneiro do passado e transcende
Quinta parte - E s p ir itu a l ism o, n o v a s t e o lo g ia s e n e o -e s c o lá s t ic a

continuamente seu próprio tempo, como o dever, é também algo possível, já que não é
testemunha o incessante desenvolvimento difícil ver que, a cada estágio de desenvol­
que ele imprime à filosofia e à arte, e que vimento da humanidade e a cada cultura
realiza, por exemplo, na ciência e na tecno­ corresponde um modo específico de expe­
logia. Essa é a orientação do nosso mundo rimentar Deus.
e esse é o modo pelo qual o homem percebe A teologia, diz Schillebeeckx, “ é a fé
a si mesmo e à sua história. Então, sendo do homem que pensa; é reflexão sobre a fé” .
assim, escreve o teólogo católico Edward M as a fé não é a fé de homens que vivem
Schillebeeckx (dom inicano, nascido em fora da história e do tempo, não é a fé de
1914 em Anvers; autor, entre outras obras, todos e de ninguém, é a fé de homens que
de Deus e o homem; Revelação e teologia; constroem seu mundo e sua cultura e, atra­
O mundo e a Igreja: trata-se de livros que, vés dela, de quando em vez, vêem de modo
a partir de 1964, reúnem ensaios e artigos diverso o mundo, a história e a si mesmos.
publicados isoladamente), “ a situação exige E a orientação para o futuro, que é a pers­
que falemos de Deus de modo muito dife­ pectiva característica com que o homem
rente daquele que estávamos acostumados contemporâneo vê o mundo, a história e a si
a falar no passado. E se deixarmos de fazê- mesmo, nos leva a redescobrir a imagem de
lo [...], nosso testemunho e nosso discurso Deus que, profundamente bíblica, fora ocul­
sobre Deus serão recebidos pela maioria das tada posteriormente: “ E a noção de Deus
pessoas com incredulidade” . entendido como ‘nosso futuro’, o Deus que
Assim, para que o teólogo não se torne chega, ‘aquele que vem’; não o ‘totalmente
culpado da extinção da força da experiência outro’, mas o ‘totalmente novo’ que é nosso
religiosa em um mundo secularizado, deve futuro, o Deus que, em Jesus Cristo, nos dá
reinterpretar o conceito de Deus. E, sendo a possibilidade de tornar tudo novo” .
. . , . -- 377
Cupítulo vigésimo - ;A r e n o v a ç ã o d o p e n s a m e n t o t e o ló g ic o no s é c u lo XX -----

tianismo é abolido. Ge se tornou coisa leve e


superficial, a qual não fere de modo suficiente­
B arth mente profundo, nem cura, torna-se a invenção
especiosa de uma compaixão apenas humana,
que esquece a infinita diferença qualitativa
entre Deus e o homem" (Kierkegaard). fl fé
em “Jesus" é o radical "Apesar de tudo!", como
^1 "Nós pedimos fé, também seu conteúdo, a justiça de Deus, é um
nada mais radical "Apesar de tudo!", fl fé em Jesus é essa
coisa inaudita: sentir e compreender o amor de
e nada menos” Deus, dar o Deus, em sua total invisibilidade e
segredo, o nome de Deus. fl fé em Jesus é o
"Nõo pretendemos nosso Fé o partir de risco de todos os riscos. €ste "Apesar de tudo!",
outros homens; pois, se outros crerem, eles o este ato inaudito, este risco é o caminho que
Farão como nós mesmos, com o próprio risco indicamos.
e com promessa própria". . Nós pedimos fé, nada mais e nada menos.
Nós a pedimos, não em nosso nome, mas em
nome de Jesus, em quem essa exigência se
impôs a nós sem escapatória. Não pedimos fé
fl fé é q conversão, a radical nova orienta­ em nossa fé; pois sabemos que, em nossa fé,
ção do homem que está nu diante de Deus, qu® aquilo que é nosso é incrível. Não pretendemos
para adquirir a pérola de grande preço tornou- nossa fé para outros homens; pois, se outros
se pobre, que por causa de Jesus está pronto crerem, eles o farão como nós mesmos, com
para perder sua alma. Fl própria fé é fidelidade o próprio risco e com promessa própria. Nós
de Deus, sempre ainda e sempre de novo e s­ pedimos fé em Jesus. Nós a pedimos a todos,
condida atrás e acima das afirmações, e das a todos aqui e agora, no plano de vida em
boas disposições, das conquistas espirituais do que exatamente eles se encontram. Não há
homem em relação a Deus. fl fé, por isso, jamais nenhuma pressuposição humana (pedagógica,
está realizada, dada, assegurada, é sempre e intelectual, econômica, psicológica etc.) que
sempre de novo, do ponto de vista da psico­ deva ser preenchida como preliminar da fé.
logia, o salto no incerto, no escuro, no vazio, Não há nenhuma introdução humana, nenhum
fl carne e o sangue não nos revelam isso (Mt itinerário de salvação, nenhuma escala gra­
1 6 , 1 7 ): nenhum homem pode dizê-lo a outro, duada para a fé que deva ser de algum modo
nenhum pode dizê-lo a si mesmo, flquilo que percorrida. A fé é sempre o início, a pressupo­
ouvi ontem, devo ouvi-lo também hoje, deverei sição, o fundamento. Pode-se crer como judeu
ouvi-lo também amanhã, como uma coisa nova, e como grego, como criança e como ancião,
e sempre o revelador é o Pai celeste de Jesus, como homem culto e como ignorante, como
apenas ele. fl revelação em Jesus, exatamente homem simples e como homem complicado,
enquanto é revelação da justiça de Deus, é pode-se crer na tempestade e na bonança,
também a que envolve Deus no mais profundo pode-se crer em todos os graus de todas as
segredo e o torna incognoscível. £m Jesus, imagináveis escalas humanas. A exigência da fé
Deus se torna verdadeiramente mistério, faz- corta transversalmente todas as diferenças da
se conhecer como o Desconhecido, fala como religião, da moral, do conduta e da experiência
o eterno silencioso. Cm Jesus Deus se premune do vida, da penetração espiritual e da posição
contra toda confidencialidade indiscreta, toda social. A fé é para todos igualmente fácil e
impudência religiosa. Revelado em Jesus, Deus igualmente difícil. A fé é sempre o mesmo "Ape­
torna-se um escândalo para os judeus e uma sar de tudo!", a mesma coisa inaudita, o mesmo
loucura para os gregos. 6m Jesus a comunica­ empreendimento arriscado. A fé é para todos
ção de Deus começa com uma repulsa, com a a mesma necessidade e a mesma promessa.
abertura de um abismo intransponível, com a A fé é para todos o mesmo salto no vazio. 61a
oferta consciente do mais grave escândalo: "Se é possível a todos, porque é igualmente para
for tirada a possibilidade do escândalo, como todos impossível.
foi feito na cristandade, todo o cristianismo se K. Barth,
torna participação direta e então todo o cris­ Epístola aos Romanos.
378
____ Quifltu parte - £ s p iH + u a lis m o , n o v a s te o lo g ia s e. n e o -e s c o lá s + ic a

paixão. O fato de ser rejeitado tira da paixão


toda dignidade e glória. D 0 V 0 ser uma paixão
B onhoeffer infame. Sofrer 0 ser rej0itado é a expressão
que resume a cruz de Jesus. Morrer sobre a
cruz significa pad©cer e morrer sondo rejeita­
do, expulso. Jesus devo sofrer e ser rejeitado
por necessidade divina. Toda tentativa de
"Quem está ligado a Cristo impedir aquilo que deve acontecer é diabóli­
encontra-se seriamente co, mesmo e justamente se provém do círculo
dos discípulos, porque não quer permitir que
sob a cruz" Cristo seja o Cristo. O fato de que justamente
Pedro, a rocha da Igreja, aqui se torne culpável
Seguimento e cruz: "fl cruz é [...] sofrer e imediatamente depois da confissão de fé em
se r rejeitados. € também aqui no verdadeiro Jesus Cristo e depois de sua consagração por
sentido de se r rejeitados por causa de Jesus parte deste, indica que a própria Igreja, desde
Cristo, nõo por causa de outro comportamen­ o início, se escandalizou do Cristo sofredor.
to ou de outra fé''. Não quer um Senhor semelhante, e como
Igreja de Cristo não quer deixar-se impor a lei
da paixão. O protesto de Pedro vem de sua
recusa a aceitar a dor. C dessa forma Satanás
€ começou o lhes ensinar: ”é preciso que penetrou na Igreja; ele quer arrancá-la da cruz
o Filho do Homem sofro muitos coisas, que de seu Senhor.
seja rejeitado pelos anciãos, pelos sumos Por isso Jesus deve agora referir a ne­
sacerdotes e pelos escribas, que seja morto cessidade da paixão clara e inequivocamente
e que depois de três dias ressuscite". C dizia também para seus discípulos. Como Cristo
isso abertamente, Cntão Pedro, tomando-a à é o Cristo apenas se padece e é rejeitado,
porte, começou a reprová-lo. Mas ele, virando- também o discípulo é discípulo apenas se
se e vendo seus discípulos, reprovou Pedro padece e é rejeitado, se é crucificado com
e disse: "fifasta-te de mim, Satanás, porque seu Senhor. Seguir Jesus, isto é, estar ligado
não pensas conforme Deus, mas conforme os à pessoa de Jesus Cristo, quer dizer, para
homens". € depois de ter convocado a multi­ quem o segue, ser posto sob a lei de Cristo,
dão junto com seus discípulos, disse-lhes: "S0 isto é, sob o cruz.
alguém d0 vós quiser vir atrás de mim, renegue O anúncio desta verdade inalienável
a si mesmo, tome sua cruz e me siga. Porque aos discípulos começa estranhamente com a
quem quiser salvar sua vida a perderá, mas concessão do plena liberdade. Jesus diz: "Se
quem perder sua vida por causa de mim 0 por alguém quiser vir atrás de mim [...]". Não é
causa do evangelho a salvará. De que adianta, uma coisa óbvia sequer para os discípulos.
com efeito, ao homem ganhar todo o mundo Ninguém pode ser obrigado; mais ainda, isso
se perder sua vida? Porque, o que dará o ho­ verdadeiramente não pode sequer ser espe­
mem ©m troca de sua vida? Com efeito, quem rado de alguém; “se alguém", malgrado todas
se envergonhar de mim e de minhas palavras as outras ofertas que lhe são feitas, quiser
nesta geração adúltera e pecadora, também o seguir Jesus... Ainda uma vez tudo depende da
filho do Homem se envergonhará dele quando decisão; enquanto os discípulos se encontram
vier na glória de seu Pai com os santos anjos" já no seguimento de Jesus, mais uma vez tudo
(Mc 8 ,3 1 -3 8 ). é interrompido, tudo permanece em aberto,
não se espera nada, não se impõe nada; tão
O convite a seguir Jesus está ligado, radical é aquilo que agora será dito. Portanto,
n0sta passagem, com o anúncio da paixão d© mais uma vez, antes que seja anunciada a lei
J0sus. Jesus Cristo deve sofrer 0 S0r r0j0itado. da obediência, os discípulos devem reaver sua
é a necessidade do prom0ssa de Deus, a fim plena liberdade.
de que as Cscrituras se cumpram. Sofrer e ser "Se alguém quiser vir atrás de mim,
rejeitados não é o mesmo. Também na paixão renegue a si mesmo". Como Pedro, quando
J0SUS podia ainda ser o Cristo f0st0jado. fl renegou Cristo, disse: "€u não conheço este
paixão podia s©r ainda causa de profundo homem", da mesma forma, quem quiser seguir
compaixão 0 admiração por parte do mundo, Cristo, deve falar a si mesmo, fl renegação de
fl paixão em sua tragicidade poderia ainda si mesmos não pode jamais se exprimir em
ter um valor intrínseco, uma glória 0 dignidade uma quantidade, por maior que seja, de atos
intrínsecas. Mas Jesus é o Cristo rejeitado na particulares de martírio outo-imposto ou de
, . , . 379
Capítulo V Íg 6 S Íf H O - j A r e n o v a ç ã o d o p e n s a m e n t o t e o ló g ic o n o s é c u lo ______

exercícios ascéticos; nõo se trota de suicídio,


porque também nisso poderia prevalecer ainda R ahner
o egocentrismo do homem. Renegara si mesmo
quer dizer conhecer apenas Cristo, nõo mais
a si mesmos, ver apenas ele que precede, e
não mais o caminho que é demasiado difícil
para nós. Renegar a si mesmos significa: ele 3 Tarefo e compromissos
precede, apega-te a ele.
"[...] e tome sua cruz sobre si mesmo”. do teologia do futuro
Jesus, por graça, preparou seus discípulos
para esta palavra por meio das palavras da
renegação de si mesmos, flpenas se real e "fl teologia de omonhõ deverá [...] infun­
completamente nos esquecermos de nós, se dir nos cristãos e nos Igrejas a coragem de
não conhecermos mais a nós mesmos, pode­ tomar decisões, de realizar atos concretos
mos estar prontos paro carregar sua cruz por válidos naquela época determinada. Poderá
causa dele. Se conhecermos apenas ele, en­ fazê-lo do modo que lhe é próprio apenas
tão não conheceremos mais os sofrimentos de caso se atribua uma função de conselho e
nossa cruz, porque só vemos a ele. Se Jesus de advertência, de profecia e de estímulo,
não nos tivesse tão benevolamente prepa­ embora sempre reconhecendo à práxis sua
rado para esta palavra, nós não poderíamos inteligibilidade específica [...]".
suportó-la. fio contrário, dessa forma ele nos
pôs em grau de sentir também esta dura p a ­
lavra como graça. €le nos alcança enquanto fl teologia do futuro, permanecendo firme
o seguimos com alegria e nos confirma nesse a unidade do credo perene, será caracteriza­
caminho. da por um vasto e inevitável pluralismo das
fl cruz não é incômodo e duro destino, teologias. Hoje cada campo da história está
mas a dor que nos atinge apenas por causa estreitamente ligado a todos os outros, tanto
de nosso apego a Jesus Cristo, fl cruz não é como resultado da racionalidade moderna como
uma dor casual, mas é necessária, fl cruz não da técnica. Isso leva a uma cultura única e cós­
é a dor inerente em nossa existência normal, mica com forte diferenciação interna - terreno,
mas dor que depende do fato de ser cristãos, portanto, sobre o qual mais decisivamente as
fl cruz em geral não é apenas essencialmente teologias se diversificarão. Cias permanecerão
dor, mas sofrer e ser rejeitados; e também sempre ligadas à única fé da Igreja, mas seu
aqui no verdadeiro sentido de ser rejeitados método, sua estrutura e suas perspectivas,
por causa de Jesus Cristo, não por causa de terminologias e reflexos na ação resultarão
algum outro comportamento ou de outra fé. tão variados de modo a não se reconhecerem,
Uma cristandade que não tomava mais a sério sequer como denominador comum, em nenhuma
o compromisso de seguir Jesus, que tinha feito teologia homogênea. De resto, uma operação
do Cvangelho apenas uma consolação barata, deste gênero resulta impossível já pelo fato
e para a qual, de resto, a vida natural e a de que o indivíduo cristão e teólogo, com suas
vida cristã coincidiam sem nenhuma diferença, únicas forças e no breve arco de tempo de seu
devia ver na cruz o incômodo quotidiano, a trabalho, não estará em grau de reduzirá unida­
dificuldade e a angústia de nossa vida natural. de e integrar em sua própria teologia o enorme
Havia-se esquecido que a cruz significa sempre material científico, social e histórico sobre o qual
ao mesmo tempo ser rejeitados, que a vergo­ cada teologia particular deverá trabalhar.
nha da dor é parte da cruz. Uma cristandade O diálogo entre as várias teologias existi­
que não sabe distinguir vida civil de vida cristã rá sempre e será necessário, mas não existirá,
não pode mais compreender o sinal essencial ao contrário, uma teologia da Igreja, mas muitas
da dor da cruz, isto é, o ser na dor expulsos, teologias eclesiais, cuja distinção (não contradi­
abandonados pelos homens, como o salmista ção) em relação ao único credo será percebida
lamenta sem fim. com maior clareza pelas consciências dos fiéis
Cruz significa sofrer com Cristo, paixão de amanhã. Isso significa também que o ma­
de Cristo, flpenas quem está ligado a Cristo, gistério, legitimamente sempre empenhado na
como ocorre para quem o segue, encontra-se defesa da unidade do credo, deverá conceder
seriamente sob a cruz. às diversas teologias maior responsabilidade,
quando elas procuram sua relação específica
D. Bonhoeffer, com o credo perene. Csse pluralismo futuro
Seguimento. das teologias abrirá, consideramos, também
Q u i n t d p a t t S - E sp ir itu a lis m o , n o v a s te o lo g ia s e n e o -e s c o lá s t ic a

possibilidades novas para enfrentar sem falsos tualmente terminará por se tornar seu próprio
nivelamentos, em uma teologia falsamente e princípio estruturante? Não nos esqueçamos de
superficialmente unitária, o pluralismo confes­ que tais ciências hoje querem ser considerados
sional das teologias, de modo nenhum causa autônomas, porque a filosofia sempre mais
necessária de divisão entre as Igrejas. claramente se separa e se distancia das ciên­
fl teologia do futuro não poderá renunciar, cias, nem estas lhe permitem mais que ela se
sequer com seu pluralismo, à coragem de refle­ proponha como o único centro de elaboração
tir com todas as energias e todos os meios à da autocompreensão profana do homem, da
disposição do homem, ou seja, à coragem de revelação e da teologia. A teologia do futuro
fazer filosofia no sentido mais amplo do termo. deverá ser estruturada de modo diferente
M as a teologia do futuro não poderá mais também no que se refere a sua temática? Com
partir da premissa de uma filosofia comum, já efeito, como ocorre com as outras ciências, não
elaborada quase em todo particular e, como deverá talvez refletir com muito maior intensida­
tal, oferecendo-se ao início do trabalho teoló­ de e empenho sobre seus próprios métodos e
gico verdadeiro e próprio. €m certo sentido as sobre sua própria hermenêutica, até se tornar
teologias deverão criar sob sua própria respon­ em certo sentido também ela “metateologia",
sabilidade as filosofias sobre as quais depois embora dessa forma encontrando-se exposta
inserirão seu trabalho. Naturalmente não po­ a um perigo mortal: sufocar-se em uma reflexão
derão pressupor nem desenvolver uma filosofia estéril sobre si própria, sem jamais chegar à
que declaradamente se coloque em contradição coisa? A teologia do futuro deverá refletir com
com uma filosofia aceita ou elaborada pelas mais resolução de modo transcendental sobre
outras teologias eclesiais. Todavia, as teologias a historicidade formal da história da salvação,
ecJesiais de amanhã podem tranqüilamente à qual naturalmente sempre permanece ligada?
confiar em filosofias diversas, em certo sentido Ou poderá, no caso, com liberdade e esponta­
disparatadas e estranhas uma à outra, sendo neidade novas, confiar-se mais imediatamente
impossível, pensamos, uma integração superior à história e a seu caráter de história aberta
em um sistema único e considerado absoluto. para o futuro?
Tal pluralismo insuperável das filosofias, leva­ €is algumas perguntas sobre temas que
das adiante pelos próprios teólogos, constituirá talvez a teologia de amanhã acabará por privi­
um motivo e um. momento do pluralismo das legiar. £ muitas outras semelhantes poderíamos
teologias eclesiais. [...] colocar. Mas hoje é quase impossível encontrar
fl teologia do futuro terá marca ecumênica, uma resposta para elas. De resto, sua própria
fl teologia ecumênica nõo será amanhã uma multiplicidade nos recorda mais uma vez o plu­
disciplina ao lado das outras, mas se tornará um ralismo, que no futuro da teologia sem dúvida
momento que caracterizará profundamente todo se manifestará.
o pensamento e todo o trabalho do teólogo. £ A teologia do futuro, no modo que lhe
isso será necessário ao menos pelo motivo de é próprio, deverá infundir nos cristãos e nas
que toda disciplina deve estar a serviço da vida Igrejas a coragem de tomar decisões, de rea­
da Igreja, mas justamente tal vida é, sempre lizar atos concretos válidos naquela época
e em todo lugar, vontade ecumênica voltada determinada. Poderá fazê-lo do modo que lhe
para a unidade das Igrejas e para a múltipla é próprio apenas caso se atribua uma função
variedade dentro da única Igreja. [...] de conselho e de advertência, de profecia e de
Apresentará [a teologia do futuro] um ca­ estímulo, embora sempre reconhecendo à práxis
ráter antropocêntrico? Isso não deveria estar em sua inteligibilidade específico [...].
oposição com seu teocentrismo radical. Basta A teologia do futuro será mais consciente,
pensar, com efeito, que o homem realiza sua esperamos, de seu caráter de serva da existên­
própria essência teológica apenas se confia cia cristã e da realização religiosa que o homem
totalmente sua própria existência ao mistério deve dar a si próprio. Não é ciência com fim
inefável, que nós chamamos Deus. [...] em si mesma e, talvez, como tal, não deverá
Umq teologia do futuro será estruturada ser teologia apenas orante e genuflectente,
com base no empenho para uma contínua críti­ pois não pode eximir-se de se tornar crítica. 6,
ca das ideologias, voltada para as ideologias todavia, mais ainda do que nos últimos cem
profanas, para as falsas utopias sociais, mas anos, deveria brotar da oração, não se esgotar
também para uma desconfiança ideológica em unicamente na doutrina teológica, histórica ou
relação à mensagem do evangelho e da Igreja? teórico. Até aonde possível, deveria iluminar
A teologia do futuro realizará um diálogo com a existência do homem empenhado na vida
as ciências modernas, que será mais imediato real, infundir-lhe a coragem de se entregar em
e explícito do que o foi no passado, e even­ espírito de adoração à incompreensibilidade da
- . , . 381
Cãpítulo vigésimo - y \ r e n o v a ç ã o d o p e n s a m e n to te o ló g ic o no sé c u lo / ( / ( .........

existência, em cujo Fundo reino Deus com suo não mais européia, mas realmente marcada
graça; entregor-se o esso incompreensibilida- pelas várias culturas. Naturalmente isso não
d© com corajoso esperança e com o amor qu© significa que o problema esteja resolvido. Ao
abraço, unidos, Deus ©o homem. contrário: tem-se, por diversos lados, até a im­
H. Rahner, pressão de que Roma esteja demasiadamente
Novos ensoios. cauteloso o respeito. Por exemplo, reage com
muita desconfiança às solicitações que provêm
da teologia da libertação, na América do Sul.
Talvez o Vaticano ainda não compreendeu que
fl missão do Igreja: o cristianismo da Ásia oriental ou da África terá
uma configuração necessariamente diferente
indicar a salvação daquela da Curopa! Outro exemplo: evidente­
ao mundo inteiro mente, em Roma não se compreendeu sequer
com suficiência que também em relação à estru­
tura e à interpretação do matrimônio existem na
O cristianismo: umo religião poro toda África pressupostos completamente diferentes
a humanidade? Harl Rahner em diálogo com dos do mundo ocidental. Ou então: até hoje
Gujendoline Jarczyk (Paris, 1983). os textos litúrgicos das nações não ocidentais
foram simples traduções, em suas respectivas
línguas, dos elaborados na Curopa. Mas isso é
Nosso mundo otuol é composto pelo multi­ suficiente? Por que Roma se opõe a tentativos
plicidade de culturos. Com oé possível formular mais decididos por umo autêntico inculturação?
para tal mundo uma mensagem salvífica em Dependerá, sem dúvida, do desejo, por si mais
grau d e s e r compreendido e oceita p o r todas que compreensível, de salvaguardar a unidade
as culturas? em matéria de fé e de moral cristã. Por outro
lado, a situação atual do cristianismo é verda­
fl teologia moderna não pode e não deve deiramente novo do ponto de vista histórico.
s©r mais qu© teologia d© uma Igreja em nível é preciso considerar que até hoje, em
universal. Sem dúvida, é bastante difícil dar uma todo a história do mundo e da humanidade,
resposta à pergunta sobre a possibilidade de jamais existiu uma religião que não fosse ex­
uma inculturação autêntica do cristianismo nos clusivamente própria de determinada civilização.
continentes da África, da América do Sul ©, com Poder-se-ia observar que uma religião deveria
maior razão, do Ásia oriental. Cste problema assumir a configuração de um humanismo abs­
não foi levado p sla teologia em suficient© trato pora poder ser professada em todo o mun­
consid©raçõo. do. O cristianismo, todavia, não pode constituir
A parte as Igrejas orientais anteriores a o modelo de um humanismo desse tipo. Cie é,
Calcedônia, relativamente modestas, e as da com efeito, essencialmente a religião fundada
Ortodoxia também, porém, de cunho ociden­ sobre a revelação histórica de Deus, a qual, a
tal, até a metade do século XX existia apenas partir de Israel, se tornou aquilo que é hoje no
uma teologia européia que era “exportada" âmbito da civilização ocidental. Ora, como uma
paro todo o mundo. Cssas exportações natu­ religião desse tipo, que tem essencialmente
ralmente foram possíveis openas sob o onda uma origem histórica, posso se tornar religião
do colonialismo europeu. Hoje a coisa não é de todas os civilizações, sem perder sua própria
mais admissível: o acolhimento do cristianismo identidade é, como já dissemos, um problema
por parte de outras culturas não pode mais aberto para a Igreja e para sua teologia.
ser motivado pelo recurso à superioridade das Acrescente-se, no entonto, outro proble­
culturas européias e ocidentais, é necessário ma: o confronto com o ateísmo, que tem, hoje,
concretizar um cristianismo que posso de fato ser dimensão mundial. O cristianismo se encontra,
acolhido, em uma síntese interna e essencial, portanto, diante de dupla dificuldade, mesmo
pelas outros culturas. C já s© vêem os primeiros que esses dois aspectos estejam, em sentido
sinais desse processo. positivo, mais estreitamente ligados do que
é um dado de fato que o Concilio Vaticano estamos em grau de compreender. Mas, tam­
II, diversamente do Vaticano I, tenho sido não bém sobre isso, a meu ver, ainda não se fez
mais um concilio de bispos europeus com bis­ nenhuma reflexão na Igreja. Por este motivo,
pos de origem européia postos na chefio de há algum tempo pedi pessoalmente que o
dioceses ©m terras de missão, mas um Concilio Papa escreva ampla encíclica sobre o ateísmo.
que viu reunido um verdadeiro episcopado Compreendo muito bem que até agora tenha
mundial. Isso assinalou o início de umo teologia havido motivos justos e compreensíveis para
QuiTItã parte - E s p ir it u a lis m o , n o v a s t e o lo g i a s e n e o - e s c o l á s t i c a

nõo fazê-lo: o tarefa apresenta-se, d® fato, o às Igrejas cristãs, não é idêntico. Como já sabia
demasiadamente árduo. Todavia, todos os Agostinho, muitíssimos parecem estar dentro e,
homens, ap esar das diferenças culturais e na realidade, estão fora, e muitíssimos parecem
existenciais devidas às várias situações, estão estar fora e, ao contrário, pertencem à Igreja
®m relação com o mistério absoluto do Deus invisível daqueles que se encontram em estado
uno e eterno, e em grau de compreender que de graça. Neste sentido, a existência de “cristãos
se pode morrer em comunhão e união com o anônimos" é certa. Quantos estes sejam, no
único Jesus, crucificado e ressuscitado. Pode- momento em que, através da morte, entram no
se, portanto, exigir para todos os homens uma estado definitivo de sua existência? Como esses
única fé! Posso, com efeito, dizer a todo homem: homens, embora não pertencendo à Igreja visí­
“Cxiste o mistério incompreensível de Deus, e vel e não tendo uma fé explícita com conteúdos
nele deves morrer. Porém, em Jesus, que de especificamente cristãos, possam ser crentes?
resto foi um europeu, tens a promessa de qu® Perguntas desse tipo, obviamente, são difíceis,
este salto na incompreensibilidade de Deus terá fl teologia está longe de tê-los esclarecido sufi­
um resultado positivo". Nessa luz, apesar da cientemente. Todavia, é possível e urgente não
problemática acenada, é possível ter também digo saber, mas esperar que, prescindindo de
hoje a confiança serena de que a mensagem todas as diferenças ideológicas e do horror da
da Igreja pode ser ouvida em todo o mundo. história profana do mundo, em muitos e talvez
€m qual medida esta mensagem depois será até em todos os homens, vencerá a graça de
ou não de fato ouvida, é uma questão aberta, Deus, indébita, mas superabundante. Convicção
estreitamente ligada ao problema se o Igreja, esta que se pode e se deve ter.
sacramento fundamental d® salvação para todo Um luterano tradicional diria, talvez: "Não
o mundo e para todos os homens, d®va ter, for­ digo que possam ser salvos apenas os batiza­
çosamente, cá embaixo, uma valência numérica dos. Sobre,a salvação eterna dos não batizados
e histórica, ou possa renunciar a isso sem por nada sei". No passado, também a teologia
isso faltar automaticamente à suo missão de escolástico teria talvez respondido desse modo.
indicar a salvação ao mundo inteiro. Na Igreja, desde os tempos de santo Agostinho
e na prática até hoje, considerou-se comumente
O se n h o r sa lie n to sem p re q u e todo que apenas de modo excepcional se alcança a
homem tem a experiêndo da transcendência, salvação por meio da groça indébita de Deus.
mesmo que nõo conheça Deus e a Revelação. A perdição - permanecer na massa condenada,
Fl este propósito, o senhor sustenta que tam­ para usar a expressão de Agostinho - era consi­
bém entre os não crentes contam-se numerosos derada mais ou menos a norma, flpenas dentro
"cristãos anônimos". O que o senhor entende da multidão dos batizados, segundo essa visão,
com esse conceito? podia existir, talvez, uma relação ligeiramente
melhor entre perdidos e salvos. Hoje, porém,
De fato, não sei se fui eu ou outros que se deveria dizer: “Cspero que o resultado fi­
cunharam o termo de “cristão anônimo", ou se nal da história humana não deixará subsistir
primeiro foi inventada a idéia de "cristianismo para a eternidade aquele 'lixo' que a teologia
anônimo": entre as duas coisas, com efeito, há tradicional chama de 'inferno' ". Obviamente,
certa diferença. Sem dúvida minha teologia en­ não pretendo saber o modo com que no fim a
contra-se em estreita relação com este conceito. misericórdia infinita de Deus, exaltada também
Antes de tudo, porém, gostaria de dizer que o pelo Papa atual, poderá coexistir com sua justiça
termo em si não é de importância fundamental e com a possibilidade que um homem se perco
para mim. Se por um motivo qualquer de peda­ por sua livre decisão. Não pretendo ter encon­
gogia religiosa ou de outro gênero ele fosse trado uma síntese clara a respeito. Como católico
considerado como perigoso ou passível de comum e como teólogo digo que todo homem
equívoco, poderia também ser abandonado. deve tomar em consideração a possibilidade
Todavia, depois do Vaticano II não se pode, de da perdição eterna. Todayia, nada me obriga
foto, pôr em dúvida que os homens divinizados a afirmar que eu saiba com precisão que essa
pela graça na fé, esperança e caridade não indiscutível possibilidade será definitivamente
coincidem com o número daqueles que estão realizada! Posso dizer que espero uma coisa e
em uma relação de fé explícita com Jesus Cristo temo a outro. Temo as catástrofes particulares,
e são batizados. O número dos “justificados", definitivas, e espero na possibilidade, infeliz­
paro usar um termo escolástico, ou então, na mente sempre desmentida pela experiência
terminologia do Concilio Tridentino, dos "jus­ humana, de uma definitiva “opokatóstosis pon-
tificados na graça de Deus", e o número dos tôn" (salvação de todos). Com todo o respeito
batizados e pertencentes à Igreja Católica ou por santo Agostinho, eu precisaria perguntar-lhe:
383
Cupítulo vigésimo - y\ r e n o v a ç ã o d o p e n s a m e n t o te o ló g ic o no s é c u lo X X ------

"Como podes ter fé no vitória da cruz do filho política determina o destino dos homens, eles
eterno d® Deus e ao masmo tempo nõo perceber desejaram um radical compromisso político da
nenhum problema na hipótese segundo a qual igreja nas questões vitais do povo 0 da huma­
uma enorm® multidão de homens incorrerá na nidade dilacerada de hoje. Cies desejariam ver
perdição eterna? Não seria isso um sinal da a igreja como vanguarda política no caminho da
frieza indescritível de teu coração?" justiça e da liberdade no mundo dos conflitos de
Cntende-se que, depois de fluschujitz e interesse e nas lutas entre as potências. Para
depois de tantos fatos terríveis também de nos­ eles a igreja ideal torna-se o modelo moral de
sos dias, não é lícito engolir de modo simplista um mundo melhor.
um otimismo cristão tão liberal, fldmito que não Os outros, ao contrário, afirmam que uma
se pode afirmar de modo simplista que a his­ igreja social e politicamente atual e incidente
tória do mundo s® concluirá com uma harmonia extravia seu eu íntimo, seu propríum cristão. Cies
de maravilhosa bem-aventurança. flo mesmo não podem mais reconhecer a igreja de Cristo e
tempo, porém, não tenho sequer o direito de a igreja de seus pais em uma igreja que tenha se
renunciar à esperança para todos! tornado, por exemplo, uma instituição moderna
Nutro grande respeito pela teologia ge­ para a terapia social. Também eles percebem
nial de Tomás de Rquino. Todavia, não posso que o número daqueles que se reconhecem cris­
absolutamente assinar uma afirmação dei®. tãos praticantes torna-se sempre mais exíguo.
Tomás diz, com ®f®ito, que é possível esperar Mas a culpa desse fato eles nõo a atribuem
para si mesmos, mas não para os outros, fl à igreja ou a si mesmos, e sim ao espírito do
est® respeito só posso objetar: como homem mundo moderno. Caem no pânico e celebram
sou obrigado a amar os outros até o fim; por o pequeno número como a fileira dos últimos
isso tenho também o dever de esperar por fiéis em meio à apostasia de Deus, por parte
todos, e apenas por isso também tenho o di­ da humanidade do fim dos tempos. Retiram-se
reito de esperar para mim, pobre ® miserável em si próprios e no círculo daqueles que a pen­
pecador. sam da mesma maneira, a fim de encorajar-se
K Rahner, mutuamente. Cies fazem de-sua indigência uma
ConFirmar a Fé. virtude e transformam a igreja em seita. Mas
isso, diante da adaptação ativa ao mundo mo­
derno, não é mais que uma adaptação passiva.
Diante da maré crescente da incredulidade, que
eles lamentam, sua fé torna-se pusilanimidade.
M oltmann Cies confiam apenas no que crêem, nada mais.
Combatem pelo Papa e pela Igreja ou pela Bíblia
e pela confissão. Cies não querem “experimen­
tos", novas experiências e nada de diálogo com
os não-cristãos. No mais, combatem aqueles
n fé é escopo que, embora passando através da própria crise
de identidade, se comportam diversamente,
e nõo meio e assim provocam a dilaceração da igreja, fl
mentalidade de gueto continua o crescer. Cntre
"Se não For o Fim último e nõo tiver sen­ o auto-isolamento ortodoxo 0 o compromisso
tido e volor p or si mesmo, o religião de Foto que leva a se assimilar divide-se a consciência
não tem nenhum objetivo 0 volor''. da igreja, fl pergunta, para qu0 serve a igreja,
encontra uma infinidad0 d0 respostas à luz das
diversas necessidades, mas não mais uma res­
Para qu® serve a igreja, perguntam-se posta clara e inadiável.
muitos com admiração. Para alguns esta é uma Tempo atrás a igreja era considerada a
pergunta de despedida [...]. coroação da sociedade. O estado e os grupos
Para outros, esta é uma questão angus­ sociais existiam para a igreja do mesmo modo
tiante. Cies se identificaram plenamente com a que a igreja existia para Deus e para a neces­
igreja, motivo pelo qual, diante da crescente sária adoração de Deus sobre a terra. Mas, a
perda de importância da igreja, caem em uma seguir, os estados e os grupos se libertaram
crise de identidade. Aqueles que experimentam de seu objetivo religioso de adoração de Deus
sobre si esta crise podem ser comodamente e assumiram, com Maquiavel a seu serviço, a
divididos em dois grupos. religião e as igrejas. "Os chefes de um Cstado
Uns desejariam uma igreja mais moder­ livre ou de um reino devem conservar as colunas
na, mais atualizada e mais incidente. Como a da religião". Desse modo eles poderão conser­
QuifltCl purte - E sp ir itu a lis m o ,, n o v a s t e o l o g i a s e n e o - e s c o l á s t i c a

var mais facilmente "religioso e, portanto, bom e aos estreitos limites do poder do homem,
e unido seu Cstado, pois a religião traz grande fazendo apelo a um olho onividente e a um
contribuição para que os exércitos se mante­ poder infinito; ou de fazer ver como elo seja
nham no obediência, o povo no concórdia e os uma fé omigo e um„sustentáculo benéfico da
homens estejam bem", aconselhava Maquiavel moralidade". Com efeito, serio esta uma "bela
em seu célebre escrito O príncipe, muito lido por vantagem para ela, a celeste rainha, se pudes­
príncipes e políticos. Para Rousseau todo Cstado se atender de modo tão tolerável aos assuntos
tem necessidade de uma "religião citadina" como terrenos dos homens! [...] Portão pouco ela não
vínculo ideal e simbólico de comunhão entre seus desce o indo do céu para vós".
cidadãos, fl religião não é mais considerado na Se não for o fim último e se não tiver
óptica de seu fim peculiar, e sim apenas conde­ sentido e valor por si mesma, a religião de fato
nada ou valorizada conforme sua utilidade pora não tem nenhum objetivo e valor. Cia não dá
alcançar outros objetivos, fl religião é útil pora nenhuma resposta à questão a respeito de seu
manter o respeito poro com o autoridade dos valor de uso social e de sua utilidade moral. Sua
príncipes, dos juizes, dos mestres e dos pais. fl dignidade está justamente no fato de que é pre­
religião é útil para desfraldar diante de grupos e ciso deixar de lado essas questões preocupadas
partidos contestadores o imperativo supremo da consigo e com o ter, caso se queira compreendê-
unidade, fl religião é necessária para defender lo e dela fazer parte. Aqueles que querem defen­
o direito e a ordem, o costume e a moral da so­ der a religião, demonstrando sua necessidade e
ciedade. "Deixai ao povo a religião!", fl religião, suo utilidade, são no fundo seus inimigos mais
portanto, não é mois o fim último, mas apenas sem piedade. "Aquilo que é amado e apreciado
um meio para alcançor o fim; os fins, ao contrário, apenas por causa de uma vantagem que lhe é
são postos pela moral e pelo político. estranha pode sim ser necessário, mas não é em
Todavia, uma vez que a religião, a igreja si necessário: ele pode sempre permanecer um
e a fé tenham sido subordinadas ao ponto de pio desejo que não chega jamais à existência,
vista da oportunidade e do utilidade da socie­ e um homem razoável não lhe atribui nenhum
dade, elas se desintegram, tão logo se pense valor extraordinário, mas apenas o preço que
poder alcançar esses objetivos também com ou­ lhe é proporcional. € esse preço seria, para a
tros meios. Cntão se dirá: "O mouro realizou suo religião, bastante pequeno; eu pelo menos por
tarefa, o mouro pode ir embora". Não se terá ela ofereceria um bem pequeno, uma vez que
mais necessidade da fé em Deus para explicar - não posso deixar de confessar isso - nõo creio
o enigmo do natureza ou as debandadas da que tenhamos tanta necessidade dela para as
história. Poder-se-ão explicar naturezo e história ações más que ela deveria impedir e paro as
etsi Deus non doretur, mesmo que Deus não ações morais que ela deveria produzir". Assim
existisse. Não se terá mois necessidade da fé pensava Schleiermacher. A religião, portanto,
em Deus paro levar uma vida honesto, fl moral não comparece de novo no circuito universal do
e a responsabilidade ética brotarão das funções processo dos valores da sociedade moderna.
de um grupo. Não se terá mais necessidade da Se nela fosse inserida, ela se desagregaria e
igreja para afirmar a autoridade nos diversos se aniquilaria por si mesma.
campos da vida. As responsabilidades se de­ Todavia se, como freqüentemente se
mocratizarão e as autoridades se consolidarão escreveu, o mundo moderno do Cstado, o da
também sem a religião. [...] economia, da escola e da moral se emancipa­
A crise de identidade do cristianismo não ram da influência da religião, de Deus, do fé e
é de hoje. Cia foi discutida desde o início do da Igreja, e procuram funcionar autonomamente,
Huminismo europeu. De tal discussão retomamos então isso eqüivale indubitavelmente, em sen­
os idéias que Schleiermacher sustentou em seus tido negativo, ao fim da posição de privilégio
Discursos sobre a religião, de 1 7 9 9 , dirigindo- da religião, mas, em sentido positivo, devemos
se “às pessoas cultas que a desprezam". Sch­ também dizer que o religião, Deus, a fé e a igre­
leiermacher partia da idéia que a religião, vista ja estão finalmente liberados de suas funções
como meio pora alcançar os objetivos de outro, de suplência e podem se apresentar em seu ser
não pode ser mais que uma religião abusada genuíno. Não é necessário cair no pânico se des­
e falso. Não é essa religião que ele queria moronam para a religião aquelos velhas incum­
apresentar às pessoas cultas de seu tempo. bências. Deveríamos, ao contrário, refletir sobre
"Peço-vos apenas para não temer que eu re­ os possibilidades positivas surgidas com a nova
corra ainda ao meio costumeiro de apresentar situação. Cias podem se entrever na conversão
paro vós o quanto a religião seja necessária ogostiniana do relação entre a religião e o vida.
para conservar o direito e o ordem no mundo, J. Moltmann,
e de vir em auxílio do miopia da visão humana 6t? jo g o .
íS a p í+ u lo v ig é s im o p r i m e ir o

yA Kveo-escolastica,
a LAmve rs idade de Louvam,
a LAkviversidade (Safólica de ,/V^lão
e o pervsamervfo de Jacq u es TVlantairv

----- I. O r ig e n s e. sign ificad o zn zz^ z


d a filosofia n e o -e s c o là s fic a

• Devemos aqui logo precisar que filosofia neo-escolástica e filosofia cristã


não são a mesma coisa.
O Ocidente teve - desde Agostinho, e ainda antes dele, até Mounier, e até
nossos dias - muitas filosofias cristãs: filosofias que ou derivam do cristianismo ou
o suportam, ou ainda são compatíveis com ele.
A filosofia neo-escolástica (e o neotomismo que é uma espe- ,
cificação dela) é uma filosofia cristã que escolhe aquela que foi a™egUe sen ' °
uma filosofia cristã - a Escolástica - e, em um confronto com o escoiástica
pensamento moderno, dela retoma, muitas vezes reelaborando- ^ uma
os, os conceitos de fundo para interpretar e falar das "verdades de filosofia cristã
fé", ou para estabelecer os preambula fidei, ou para compreender §1
a natureza humana, ou para enuclear os fundamentos racionais
das normas éticas fundamentais.
A neo-escolástica é ciosa da autonomia da razão, embora considerando-se a
ancilla theologiae, cristãmente consciente de que "a filosofia não salva".

• Múltiplos foram e são os alvos polêmicos dos neo-esco-


lásticos; recordemos: o racionalismo de derivação iluminista; o polêrvicos dos
imanentismo
» i t aidealista; o materialismo
| ■ M positivista
i/j i e _o adialético ilcU oCU/dj t/Cwj
marxista; o laicismo e a secularizaçao; e, em política, todas as po­ - ^§1
sições que proíbem ou sufocam a liberdade da pessoa humana.

• Foram duas as encíclicas pontifícias que acompanharam o movimento neo-


escolástico: a A eterni Patris (1879), de Leão XIII, e a Pascendi (1907), de Pio X.
Com a Aeterni Patris Leão XIII quis "pôr novamente em uso a doutrina sagrada
de santo Tomás", persuadido de que a Escolástica era "o baluarte da fé" e que
Tomás, "acima de todos os doutores escolásticos, voa como guia e mestre".
A Pascendi, ao contrário, foi a condenação dos modernistas,
ou seja, dos católicos que tentavam uma apologética cristã L eãoxm
sobre bases diferentes da Escolástica. A Pascendi favoreceu escolhe a
a retom ada e o desenvolvimento do pensamento escolástico, neo-escolástica
mas enrijeceu o diálogo entre mundo católico e cultura con- como
tem porânea. "a sã filo s o fia "
A atenção ao diálogo com o mundo contemporâneo é um ->§2-3
traço característico do Concilio Vaticano II e do papa João Paulo
II, o qual se empenhou em precisar que a preferência da Igreja pelo tomismo não
compromete "a grande pluralidade das culturas": ò tomismo é uma filosofia do
ser e, portanto, está aberto a toda a realidade; o Papa vê o tomismo como uma
Q uinta parte - É s p ir i+ u a l ism o , n o v a s t e o lo g i a s e. n e o - e s c o lá s + ic a

filosofia em diálogo com as correntes filosóficas contemporâneas, que são "par­


ceiras dignas de atenção e de respeito".

• Foi o sacerdote belga Désiré Mercier (1851-1926) que sustentou que, para
combater a filosofia positivista e o idealismo, era necessário opor sistema a siste­
ma. E foi em Louvain que ele conseguiu fundar a mais florescente
escola européia de neo-escolástica. Em 1894 fundou também a
neo-escolástica "Revue Néoscolastique de Philosophie". Formou numerosos discí­
ea
pulos, entre os quais deram grandes contribuições ao pensamento
Universidade
de Louvain
neo-escolástico D. Nys, M. de Wulf, L. de Raeymaeker....................
-^§4 O trabalho mais importante de Mercier é a Criteriologia ge­
ral (1899), uma obra de teoria geral do conhecimento, em que o
argumento crucial é a descoberta de um critério para distinguir a
verdade do erro, e no qual o confronto com a filosofia moderna, e principalmente
com Kant, é cerrado.
E grande tentativa de superar a filosofia de Kant por meio de uma crítica
que parte das mesmas concepções de Kant encontra-se em O ponto de partida da
metafísica (1926), obra de outro importante pensador neo-escolástico, ou seja,
Joseph Maréchal (1878-1944).

• Além de Louvain, outro grande centro de estudos neo-escolásticos é a


Universidade Católica do Sagrado Coração de Milão. Foi o franciscano Agostinho
Gemelli (1878-1959), médico e depois psicólogo de grande fama,
quem fundou em 1909 a "Revista de filosofia neo-escolástica" e
neo-escolástica instituiu em 1921 a Universidade Católica do Sagrado Coração.
ea Aí atuaram docentes como Francisco Olgiati (1886-1962), Amato
Universidade Masnovo (1880-1955), e sucessivamente mestres como Gustavo
Católica
Bontadini (1903-1990) e Sofia Vanni Rovighi (1908-1990), à qual
do Sagrado
Coração devemos uma série de estudos históricos muito apreciados, tanto
de M ilão sobre o pensamento medieval quanto sobre a filosofia moderna
—> § 5 e contemporânea.

y\s r a z õ e s do renascim ento (como as provas da existência de Deus),


para compreender a essência do homem
do pe.n sayn e.n to escolás+ico
ou até a racionalidade das normas morais,
todas coisas que, na opinião dos neo-es­
colásticos, poderiam ser descobertas pela
Filosofia neo-escolástica e filosofia razão humana e não puras verdades de fé.
cristã , note-se bem, não são a mesma coisa. Para os neo-escolásticos, claro, a fé dá o
O Ocidente filosofou dentro do cristianis­ essencial: somente ela “salva”. Mas a razão
mo durante dois milênios. E, de Agostinho não é indiferente para a fé, e a philosophia
a Barth, Rahner ou Mounier, o leque das se configura como ancilla tbeologiae (serva
filosofias cristãs, isto é, dos sistemas filo­ de teologia).
sóficos que derivam do cristianismo e/ou São múltiplas as razões que levaram ao
dão suporte é bastante amplo. A filosofia renascimento do pensamento escolástico. Os
neo-escolástica (e aquele seu aspecto espe­ pensadores neo-escolásticos reagiram:
cífico que é o neotomismo) é filosofia cristã, a) ao racionalismo de origem ilumi-
mas filosofia que escolhe um “pensamento nista,
cristão” já construído na Idade Média, b) ao imanentismo idealista;
confronta-o com o pensamento contempo­ c) ao materialismo positivista e ao
râneo, explicita potencialidades suas que dialético marxista;
não se expressaram, e utiliza seus conceitos d) ao aspecto para eles sempre mais
para interpretar e falar das “verdades de inquietante do liberalismo político, isto é,
fé” , para estabelecer os pream bula fidei ao laicismo e à secularização;
Capítulo vigésimo prim eiro - J k neo-escolástica

e) às correntes culturais européias,uma filosofia inspirada no cristianismo,


sempre mais contrárias ao dado revelado e mas ofereceu aos pensadores cristãos de
à teologia cristã. todo o mundo novos espaços de pesquisa
e diálogo, favorecendo uma atitude de
grande atenção ao pensamento contem­
encíclicas porâneo, juntamente com a fidelidade
;Aeterni Patris^e^Pascendi” essencial à mensagem revelada. Os fiéis
são contemporaneamente convidados a
entrar em diálogo com as diversas formas
Duas encíclicas pontifícias acompanha­ de cultura, porque a Igreja é chamada a
ram o movimento neo-escolástico: a Aeterni estabelecer relação fecunda com as dife­
Patris de Leão XIII (1879), e a Pascendi de rentes culturas, para difundir e explicar a
Pio X (1907). A encíclica leonina teve a fun­ mensagem cristã.
ção de reagir à atonia dos católicos diante do Depois do Concilio, temos um famo­
vivaz dinamismo laico (científico, cultural, so discurso de João Paulo II por ocasião
industrial, imperialista) da Europa na segun­ do centenário da encíclica Aeterni Patris
da metade do século XIX. A encíclica Pas­ (1979), que reafirma a preferência da
cendi, ao invés foi uma condenação drástica Igreja católica pelo tomismo. Entretanto,
do movimento modernista, isto é, daquela afirma ele que o pensamento tomista não
“cultura” de católicos que pretendiam ado­ compromete “a justa pluralidade das cul­
tar as correntes de pensamento mais atuais turas”, precisamente porque é a filosofia
a fim de criar uma nova teologia. do ser, estando, portanto, aberta para
Leão XIII sugerira que se buscasse a toda a realidade, sem reduções, sem unila-
sabedoria de santo Tomás em suas próprias teralidade, sem possibilidade de absolutizar
fontes, para evitar os repensamentos dos elementos relativos. Na linha do Concilio,
seguidores do Doutor Angélico, repensa­ o Papa considera o tomismo como filosofia
mentos nem sempre oportunos e nem sempre em diálogo com as correntes filosóficas
esclarecedores. E, por fim, o Papa alertava contemporâneas, “parceiras dignas de
contra a excessiva sutileza dos filósofos es- atenção e respeito”. Segundo João Paulo II,
colásticos e contra todas as teorias medievais as filosofias contemporâneas são úteis para
que fossem claramente superadas. analisar o ser humano e seu lugar no mun­
Pio X, ao contrário, viu no modernis­ do: nesse sentido, são “aliadas naturais”
mo a síntese de todas as heresias e tentou de uma metafísica medieval mais atenta à
cortar a “erva daninha” pela raiz. Desse grande sistemática, caracterizada pela
modo, favoreceu indubitavelmente o movi­ visão orgânica de toda a experiência. Para
mento neo-escolástico, mas tornou difícil o ele, o próprio santo Tomás representa um
diálogo com a cultura contemporânea. testemunho dessa abertura para todas as
Pio XII (cujo pontificado foi de 1939 contribuições genuínas do pensamento,
a 1958) considerava que a sã filosofia, se­ pois afirmou: “ Ne respicias a quo sed quod
gundo a experiência de muitos séculos, se dicitur” , ou seja, “não olhes para quem
identificaria com o pensamento de santo fala, mas sim para aquilo que diz”.
Tomás, rico de método eficaz, bem funda­
mentado e bem harmonizado com os dados
da Revelação divina. Pio XII expressou a O cardeal A^ercier
mais profunda motivação de seu chamado
à sã filosofia quando acrescentou que seu e a neo-escolástica
dever “também era o de vigiar sobre as em Louvain
próprias ciências filosóficas, para que aos
dogmas católicos não advenha algum dano
de opiniões incorretas” . O sacerdote belga Désiré Mercier
(1851-1926) percebeu logo que a cultura
eclesiástica, fragmentária e por vezes caóti­
O (Soncílio V a t ic a n o D D ca, não bastava para enfrentar a imperante
e o p ó s - c o n c ílio filosofia positivista e o ainda influente sis­
tema idealista; ao contrário, era preciso
opor sistema a sistema. Mercier encontrou
O Concilio Vaticano II (1962-1965) nos primeiros neo-escolásticos italianos e
não enfrentou diretamente o problema de alemães a indicação justa para retomar um
Quinta parte - E sp ir itu a lis m o , n o v a s te o lo g ia s e n e o -e s c o lá s t ic a

sistema filosófico completo de inspiração vidade. Desse modo, Mercier professava o


cristã. Conseqüentemente, entregou-se realismo gnosiológico, a teoria da abstração,
com entusiasmo ao estudo do tomismo. o método da indução. Assim, ele se colocou
Nesse meio tempo, Leão XIII chamou por no extremo oposto a Descartes e de grande
algum tempo a Roma o jovem e promissor parte do pensamento moderno, centrado
filósofo belga, apostando em sua cultura na análise do sujeito cognoscente. E consi­
e em sua capacidade organizadora para derava estar dando um sólido fundamento
defender o neotomismo. Depois, voltando às ciências experimentais, libertando-as da
à Bélgica, Mercier conseguiu implantar na incerta gnosiologia positivista. Com efeito,
Universidade de Louvain a mais flores­ segundo Mercier, os positivistas eram maus
cente escola européia de neo-escolástica. defensores da ciência, porque restringiam
Em 1894 fundou também a “Revue Néo- todo nosso conhecimento unicamente à
scolastique de Philosophie” . E formou experiência sensível e, assim, podiam no
numerosos alunos, capazes de suceder-lhe máximo garantir certezas simples — como,
no ensino junto ao Institut Supérieur de com efeito, são todas as experiências sensí­
Philosophie (D. Nys, M. de Wulf, L. de veis — e não conceitos universais e teorias
Raeymaeker e outros). Outro prestigioso gerais. Diante dessas verdades de ordem
pensador neo-escolástico foi Joseph Ma- real, Mercier analisa também as proposições
réchal (1878-1944), que, em O ponto de de ordem ideal. E, nesse ponto, ele se mostra
partida da metafísica (5 vols., 1926), pro­ alinhado com o pensamento contemporâneo
curou superar a posição kantiana através mais avançado. As proposições de ordem
de uma crítica que nasce do interior das ideal são juízos analíticos-, nelas existe iden­
próprias concepções de Kant. tidade entre sujeito e predicado, no sentido
O núcleo central do pensamento de de que há “pertença objetiva do predicado
Mercier foi a criteriologia : esse foi o nome ao sujeito” .
dado por Mercier à gnosiologia. E Crite­ Contra Kant, Mercier mostra que os
riologia geral (1899) foi sua maior obra, juízos matemáticos são juízos analíticos
na qual é forte o confronto com a filosofia (que, porém, ampliam nosso conhecimento).
moderna, sobretudo com Kant. O filósofo E afirma também que as assertivas metafí­
belga considera que o problema da verdade sicas, como o princípio de causalidade, são
constitui a questão mais candente da pes­ assertivas analíticas. Quando estabelecemos
quisa filosófica e que, portanto, é preciso o princípio pelo qual “a existência do que é
absolutamente encontrar o critério para contingente exige uma causa”, somos força­
distinguir a verdade do erro. Com efeito, dos à concordância, já que nesse princípio
o que importa é “investigar se o espírito existe identidade entre sujeito e objeto (com
humano é capaz de verdade”. A verdade, efeito, “contingente” é o que exige uma
de qualquer modo, reside no juízo, isto é, causa, razão por que o princípio torna-se
em ver “a identidade entre o sujeito e o o seguinte: “o que exige uma causa, exige
predicado de um juízo, entre um sujeito uma causa” ).
atualmente apreendido e um dado abstrato Com base nesses fundamentos gnosio-
já conhecido antes” . lógicos, Mercier desenvolveu as outras teses
A verdade, portanto, devia ser conside­ típicas da neo-escolástica, como a distinção
rada como a relação entre os dois termos do entre matéria e forma e entre potência e ato;
juízo. Mas, nesse ponto, surgia forçosamen­ a alma como forma do corpo; as provas da
te uma pergunta: quem nos garante que os existência de Deus extraídas do movimento,
termos do juízo estão em correspondência da série de causas etc. Entretanto, o filósofo
adequada com as coisas? A resposta de belga perguntava-se, não retoricamente:
Mercier é a seguinte: “O objeto das formas “ Para quem queremos filosofar, se não
inteligíveis está contido nas formas sensíveis, para os homens do nosso tempo? E com
das quais em princípio ele foi tirado e às que objetivo filosofamos senão para propor
quais é presentemente aplicado pelo ato do uma solução para as dúvidas que assaltam
juízo. Ora, o objeto das formas sensíveis é nossos contemporâneos?” A filosofia to-
dotado de realidade. Assim, as formas inte­ mista, portanto, não deve ser considerada
ligíveis também são realidades objetivas”. como dissecação histórica de pensamentos
Em suma, a experiência dos fatos sensíveis, mortos. A filosofia tomista é uma filosofia
quando repetida, ou seja, quando verificada, viva e válida, ainda que, para Mercier, o
nos permite alcançar a forma inteligível das sistema tomista não devesse ser visto como
coisas e nos dá suficiente garantia de objeti­ irreformável.
Capítulo vigésimo prim eiro - A n e o -e s c o lá s t ic a

llj||j yA neo-escolástica Zamboni, U. A. Padovani, G. Bontadini, S.


Vanni Rovighi e outros ainda.
na LAniversidade
De modo particular, deve-se dizer que
íSa+ólica de ^Vlilão devemos a Vanni Rovighi toda uma série de
estudos históricos (muito apreciados e de
alto nível) sobre o pensamento medieval,
Um dos centros de estudos neo-esco­ sobre a filosofia moderna e contemporânea
lásticos mais importantes na Europa é o da (basta recordar aqui seus trabalhos sobre
Universidade Católica do Sagrado Coração Husserl) e sobre a história do problema gno-
em Milão. O franciscano Agostinho Ge- siológico (Gnosiologia, 1963). Também não
melli (1878-1959), embora sendo médico devemos esquecer que sobre os penetrantes
e depois psicólogo de grande prestígio mas escritos teóricos de Bontadini (Ensaio de
não propriamente um filósofo, pôs as con­ uma metafísica da experiência, 1938; Da
dições para criar uma escola filosófica de problematização à metafísica, 1952; Con­
alto nível, fundando em 1909 a “Revista de versações sobre metafísica, 2 vols., 1971)
filosofia neo-escolástica” e instituindo, em foram formados numerosos discípulos,
1921, a Universidade Católica do Sagrado alguns dos quais, como E. Severino (que
Coração. propõe uma volta integral a Parmênides),
O verdadeiro teórico da neo-esco­ tomaram caminhos em que o mestre não
lástica milanesa foi monsenhor Francisco se reconhece mais; enquanto outros, como
Olgiati (1886-1962), a quem logo se juntou Evandro Agazzi, deram contributos à filo­
Amato Masnovo (1880-1955). Seguiram-se sofia da ciência e sobre problemas da mais
filósofos agudos e mestres eficazes como G. ampla filosofia teórica.

RIVISTA

FILOSOFIA NE0 -8 C0 USHCA


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Frontispício do primeiro número


(13 de janeiro de 1909)
da “Revista de filosofia neo-escolástica ”.
O teórico da neo-escolástica milanesa
foi F. Olgiati, ao qual se uniram
A. Masnovo, G. Zamboni,
U. A. Padovani, G. Bontadini,
S. Vanni Rovighi.
Quinta parte - Ê sp ifi+ u a l ismoy n o v c x s +eol o g ia s e n e o -e s c o lá s t ic a

II. o p en sam en to
de Jacq u es kv

e a n e o -e s c o la s tic a na F v a n ça

• Jacques Maritain (1882-1973) é o filósofo francês mais conhecido entre os que


repropõem o tomismo como filosofia em grau de enfrentar e resolver problemas
de nosso tempo. A obra teórica principal de Maritain é Distinguir para unir: os
. . graus do saber (1932). Distinguir para unir: e isso por meio da lei
J. M aritain: jja analogia, que é lei da semelhança entre os diversos seres e que
°.ser.. . nos permite não naufragar na ilimitada variedade das realidades
í/s * 2 c*° un'verso' e ao mesmo tem po não pretende unificar todas as
' ' ' ’ coisas em uma totalidade indistinta e enganosa.

• Sobre a base de tais pressupostos aristotélico-tomistas, Maritain deu contri­


buições de relevo sobre três problemáticas do mais amplo interesse: a pedagogia,
a arte e a política. Educação na encruzilhada é de 1943. A arte da educação - es­
creve Maritain - deveria ser comparada à da medicina: "uma ars
A educação cooperativa naturae, uma arte ministerial, uma arte a serviço da
deve ser uma natureza. E assim é para a educação". E ele salienta que se a obra
ars cooperativa de guia intelectual do mestre constitui um fator dinâmico da edu-
naturae cação, todavia "o agente principal, o fator dinâmico primordial, a
->§1-3 força propulsora primeira na educação é o princípio vital imanente
no próprio sujeito a educar". Contrário à assim chamada educação
pela palmatória, Maritain também foi contrário a toda forma de permissivismo (a
autoridade moral e a guia positiva do mestre "são indispensáveis").

A arte • Em âmbito estético, são dois os trabalhos mais significativos


se enraiza c*e Maritain: Arte e escolástica (1920) e A intuição criativa na arte
no intelecto e na poesia (1953).
-> § 1.4 A arte, para Maritain, enraíza-se no intelecto. Por trás dos
fenômenos artísticos e da poesia há uma razão intuitiva, criativa,
animada pela imaginação e que mergulha suas raízes nos níveis inconscientes e
pré-conscientes da alma.

• A idéia de uma sociedade nova, animada e motivada por princípios cristãos, e


na qual simultaneamente as instituições leigas mantêm sua autonomia, é a proposta
„ ético-política que Maritain adianta naquele que, sem dúvida, é
Lad u!ria seu livro mais conhecido: Humanismo integral (1936).
em uma '9a A 'c*®'a c*üe e *e delineia é a de "cidade leiga em modo vital
sociedade cristã", ou de "Estado leigo constituído de modo cristão", ou seja,
cristã" de "um Estado no qual o profano e o temporal tenham plena-
§ 1.5 mente sua tarefa e sua dignidade de fim e de agente principal,
mas não de fim último e de agente principal mais elevado".
Adversário de qualquer forma de totalitarismo, Maritain era da opinião que não
há poder sem responsabilidade, isto é, todos os poderes devem prestar contas do que
fizeram. E salientou que "em democracia, o uso dos meios incompatíveis com a justi­
ça e com a liberdade deveria, por isso mesmo, ser uma operação de autodestruição".

. • Historiador valorizado e intérprete arguto do pensamento


o valorn tomista foi Étienne Gilson (1884-1978), autor de A filosofia na Ida-
do to m km o de Média desde as origens até o fim do século X IV (1922), mas cuja
§2 obra mais conhecida é O espírito da filosofia medieval (1932). Ele,
especialmente, salientou a distinção entre essência e existência,
considerando-a o núcleo mais significativo do tomismo.
Capítulo vigésimo prim eiro - A neo-escolástica

3 a c q w e s J\/\a r'ú a \v \'. para resolver os problemas característicos


os “graus do saber" de nosso tempo.
O lema que sintetiza seu pensamento
e o humanismo integral" é “distinguir para unir” (sua obra principal
intitula-se precisamente D istinguir para
unir: os graus do saber; 1932), porque o ser
abrange toda a realidade, mas é analógico
■ n jA g r a n d e e s c o lk a !
e, portanto, permite a unidade do todo jun­
v iv e r s e g u n d o a v e r d a d e
tamente com a distinção das partes.
A analogia é a lei da semelhança entre
Os jovens noivos Raissa e Jacques Ma­ os diversos seres, lei que permite não nau­
ritain viveram um momento trágico de luta fragar diante da ilimitada variedade presente
espiritual. Insatisfeitos com a cultura oficial no universo e, por outro lado, não pretende
parisiense, tomados de angústia metafísica, unificar todas as coisas em uma unidade
dispostos a aceitar uma vida dolorosa, mas indistinta e enganosa.
não uma vida absurda, decidiram-se por Em outras palavras, a analogia permi­
uma opção radical. tiria à razão a suprema empresa de falar de
Conta Raissa: “Durante uma tarde de toda a realidade, já que todos os seres são
verão estávamos passeando, Jacques e eu, semelhantes, mas, por outro lado, não per­
no Jardim Botânico, nome pleonástico de mite à razão confundir as naturezas diversas
lugares solitários e fascinantes [...]. Havía­ das coisas, porque todos os seres também
mos acabado de nos dizer naquele dia que, são dessemelhantes. A analogia, portanto, é
se a nossa natureza era tão desgraçada a
ponto de possuir somente uma pseudo-in-
teligência, capaz de alcançar tudo, menos a
verdade, se, julgando-se a si mesma, devia

*w
humilhar-se até esse ponto, então não po­
díamos pensar nem agir dignamente [...].
Antes de deixar o Jardim Botânico, tomamos
uma decisão solene que nos devolveu a paz:
não queríamos aceitar nenhuma máscara e
nenhuma manobra dos grandes homens,
adormecidos em sua falsa segurança [...].
Decidimos, portanto, depositar confiança
no incógnito ainda por algum tempo; es­
távamos por dar crédito à existência [...].
E se aquela experiência não tivesse êxito,
a solução teria sido o suicídio: o suicídio,
antes que os anos houvessem acumulado
seu pó, antes que nossas jovens forças se
houvessem consumido. Se não fosse possível
viver conforme a verdade, queríamos morrer
com uma rejeição livre”.

E O O e ix o c e n t r a l d o p e n s a m e n t o
d e A ^ a r ita in : "d is tin g u ir p a r a u n ir”

O episódio do Jardim Botânico de Pa­


ris mostra a sinceridade extrema com que
Jacques Maritain (1882-1973) enfrentou
os problemas filosóficos, a desilusão pro­
vocada pelas proposições especulativas
dos positivistas, o início daquele caminho
de conversão em que Bergson e Léon Bloy Jacques Maritain (1882-1973)
tiveram papel tão importante. c a figura de maior relevo -
Maritain é o filósofo francês mais co­ tanto por razões teóricas como por razões sociais
nhecido entre os que repropõem o tomismo - da neo-escolástica no século XX.
Quinta parte - Ê spiri+u al ism o, n o v a s te o lo g ia s e n e o -e s c o lá s t ic a

integral, 1936). Para Maritain, a educação é


uma sabedoria prática, que tende à formação
da pessoa. A educação é uma arte ministerial
que serve à natureza humana, para torná-la
mais livre. A educação procura alcançar a
plenitude pessoal e social, sendo, portanto,
formação para a vida democrática.
Os meios da educação não são a violên­
cia e a imposição, mas os valores humanistas
e científicos e, sobretudo, a ação moral do
próprio educador, que coopera com o edu­
cando: cooperação que é possível porque,
mais uma vez, encontramos semelhança de
natureza entre o educador e o educando.
Escreve Maritain: “A arte da educação
deveria mais ser comparada com a arte da
medicina. A medicina lida com o ser vivo,
com o organismo que possui vitalidade
interna e princípio interno de saúde [...].
Em outros termos: a medicina é ars coope­
rativa naturae, uma arte ministerial, arte a
serviço da natureza. E o mesmo se dá com
a educação [...].”
Disso, continua Maritain, deriva “que
a atividade natural da inteligência daquele
que aprende e a obra de guia intelectual
daquele que ensina constituem ambos fa­
tores dinâmicos da educação, mas o agente
Raissa Maritain (1883-1960), esposa de jacques. principal, o fator dinâmico primordial ou a
força propulsora primeira, na educação, é o
princípio vital imanente ao próprio sujeito
a educar”. E essa a razão por que Maritain
é inimigo declarado da chamada educação
aquele modo de julgar a realidade que vê nos
seres aspectos iguais e aspectos diversos.
com a palm atória: “Continua sendo ver­
dadeiro que a palmatória e o chicote são
Para Maritain, conhecer não é perma­
péssimos instrumentos de educação”.
necer aprisionado dentro do espetáculo de
sua própria consciência, e sim uma presença Entretanto, ele também rejeita toda
originária do ente (“conhecer é tornar-se forma de permissivismo, afirmando que o
educador “é causa eficiente e agente real
outro diferente de si m esm o”, intencio­
— ainda que somente auxiliar e colaborador
nalmente): no conhecimento, a coisa está
da natureza — , causa que verdadeiramente
imediatamente presente para o sujeito cog-
transmite, e cujo dinamismo, autoridade
noscente. E está presente não em adequação
moral e guia positiva são indispensáveis”.
absoluta, mas sempre sob algum aspecto.
Essencialmente, Maritain quer que o fruto
Nós não conhecemos uma representação da
da educação seja o homem “que existe de
coisa e sim “a própria coisa”, mas “captada
bom grad o ”, por se sentir respeitado em
sob esta ou aquela determinação dela”.
sua personalidade, reconhecer-se inserido
na comunidade humana sem ser esmagado,
K E 1 A concepção da e d u c a ç ã o e poder expressar seu próprio desejo de
e seus ^undame-v\tos verdade e sua própria tendência para o bem.
liis m
Inspirando-se nessa antiga ontologia
aristotélico-tomista, Maritain apresenta
K O jA c o n c e p ç ã o d a a r fe
estudos notáveis sobre três temas caracte­
rísticos de nossa cultura: a pedagogia (Edu­
cação na encruzilhada, 1943), a arte (Arte e No que se refere à arte, o pensamento
escolástica, 1920; A intuição criativa na arte estético de Maritain torna-se relevante quan­
e na poesia, 1953), a política (Humanismo do se opõe às estéticas românticas.
393
Capítulo vigésimo prim eiro - y\ neo-escolástica

Segundo Maritain, a arte está radicada liberdade. Na democracia, o uso de meios


no intelecto. E por isso que a arte moderna incompatíveis com a justiça e a liberdade
tenta libertar-se inutilmente da razão. Como seria por isso mesmo uma operação de
quer que seja, a razão que preside à arte autodestruição” . E, conseqüentemente, a
não é a razão lógica e discursiva, e sim a justiça e o respeito aos valores morais não
razão intuitiva, animada pela imaginação, são indicadores de fraqueza. A força não é
vitalizada por fatores inconscientes e pré- forte se for elevada a regra única da exis­
conscientes da alma. Há razão e razão. E o tência política: “Na realidade, a força só é
poeta se qualifica pela razão criativa, que decididamente forte se a norma suprema
se assenhoreia de todos os tesouros da terra for a justiça, não a força”. E o mal, a longo
para alimentar a centelha de sua própria prazo, é incapaz de alcançar êxito.
inspiração. Segundo Maritain, a derrota das potên­
Entretanto, para realizar seu objeto cias totalitárias na Segunda Guerra Mundial
de arte, o artista deverá recorrer à razão constitui o testemunho de que “o poder
conceitual e discursiva, mas essa razão terá das nações que combatem pela liberdade
função secundária e instrumental. também pode ser maior do que o poder
das nações que combatem pela servidão”.
Maritain acreditava profundamente na ne­
■ H u m an ism o in fe g r a l cessidade de valores morais para sustentar o
e c o n c e p ç ã o d a p olí+ica Estado e, precisamente por isso, não queria
que o Estado fosse considerado soberano.
Dando agora uma olhada às concep­ E nem mesmo o povo deve ser visto como
ções políticas de Maritain, podemos ver soberano: “Deus é a fonte verdadeira da
que, em Humanismo integral, ele distingue autoridade de que o povo reveste homens e
Igreja e Estado como duas instituições de fins órgãos, mas estes não são vigários de Deus.
diversos, autônomas em seu próprio campo Eles são vigários do povo; por isso, não
e inconfundíveis em sua natureza. podem ser separados do povo por nenhuma
Na Idade Média, também as institui­ qualidade essencial superior” .
ções tinham caráter sacro. Hoje, isso não O filósofo francês era inimigo dos po­
é mais possível. Desse modo, é necessário deres absolutos e dos poderes supremos. To­
pensar uma nova civilização, um humanis­ dos os poderes devem prestar contas de suas
mo integral, no qual a inspiração cristã seja ações: não há poder sem responsabilidade.
fator motivador e animador, mas onde as Há uma lei natural, não escrita, que todos
instituições leigas mantenham toda a sua devem respeitar. Pertence à lei natural “o
autonomia própria. direito do homem à existência, à liberdade
Mais uma vez, encontramos aqui a pessoal e à obtenção da perfeição da vida
unidade de duas realidades, Igreja e Estado, moral”. Os valores morais não dependem da
cooperando pela comunidade humana, mas hegemonia de um homem ou de uma classe,
em distinção muito clara das instituições. mas, ao contrário, julgam as ações de cada
Apenas Deus constitui a fonte da soberania. homem ou classe.
Ele investe primeiro o povo, de modo que
o Estado é instrumento nas mãos do povo
para a realização dos fins sociais. A Igreja Ê+ienne G \ \ s o v \ \
aprecia esses fins sociais e os serve, mas a por que n ã o se pode
seu modo.
E assim se precisa a idéia de “cidade eliminar o tomismo
leiga vitalmente cristã”, ou de “Estado leigo
cristãmente constituído”, isto é, de um “Es­
tado no qual o profano e o temporal tenham Étienne Gilson (1884-1978) foi apre­
plenamente sua função e sua dignidade de ciado historiador da filosofia medieval e
fim e de agente principal, mas não de fim intérprete agudo do pensamento tomista.
último e de agente principal mais elevado” . Sua obra mais conhecida é O espírito da
Maritain considerava que a democracia filosofia m edieval (1932), mas também
devia rejeitar os maquiavelismos e propor foi muito valorizada A filosofia na Idade
a questão moral: “No processo de racio­ Média, das origens até o fim do século X IV
nalização moral da vida política, os meios (primeira edição, 1922; segunda edição
devem ser necessariamente morais. Para a muito ampliada, 1945). São muito aprecia­
democracia, o fim é tanto a justiça como a dos também os estudos gilsonianos sobre
Q uinta parte - Ê sp iH +u a l ism o, n o v a s te o lo g ia s e n e o -e s c o lá s t ic a

Abelardo, Dante, são Boaventura e outros. inerte e vazia sem a intervenção do actus
Gilson chegou à especulação filosófica essendi, isto é, a existência entendida como
partindo de estudos de história moderna, concretização da essência. Gilson escreve em
já que a análise do pensamento cartesiano A filosofia da Idade M édia: “Todo ser é algo
levou-o a se interessar pelas fontes medie­ que é. E qualquer seja a natureza ou essência
vais da filosofia moderna; por fim, chegando da coisa considerada, ela jamais inclui sua
às teorias escolásticas, achou que o sistema existência. Um homem, um cavalo ou uma
tomista, mais que todos os outros, merecia árvore são seres reais, isto é, substâncias;
atenção e adesão. nenhum deles é a própria existência, mas
Segundo Gilson, santo Tomás descobriu apenas um homem que existe, um cavalo
a chave metafísica decisiva, desconhecida que existe ou uma árvore que existe. Assim,
para Aristóteles: a distinção entre essência pode-se dizer que a essência de todo ser real
e existência. Aristóteles distinguiu potência é distinta de sua existência. E, a menos que
e ato no devir, e matéria e forma no ser, mas suponhamos que aquilo que não existe por
não chegou a distinguir essência e existência. si mesmo possa dar a existência a si mes­
A isso chegou Tomás, porque a Revelação mo, o que é absurdo, deve-se admitir que
de um Deus criador permitiu-lhe pensar a tudo aquilo cuja existência é diversa de sua
natureza das coisas à espera de se tornarem natureza recebe de outro sua existência”.
existentes. Em outros termos, enquanto a Partindo dessa teoria e seguindo santo
filosofia grega vê em Deus aquele que dá for­ Tomás, Gilson chega à existência de Deus.
ma à matéria, Tomás vê em Deus o criador, Com efeito, todas as coisas que têm essência
que não é simplesmente uma essência, um distinta da existência exigem uma Causa
aliquid, mas o esse visto como actus essen- Primeira que exista em si mesma, isto é, um
di. A distinção entre essência e existência Ser cuja essência e existência sejam uma só
constitui o âmago de uma visão de mundo coisa: “O que existe por meio de outro não
dualista, perfeitamente harmonizável com as pode ter outra causa primeira senão o que
verdades cristãs. A essência é simplesmente existe por si mesmo [...]. E esse ser que nós
a natureza de cada coisa, mas é como que chamamos Deus”.
Í95
Capítulo vigésimo prim eiro - A n e o -e s c o lá s t ic a --------

Como desculpa, é às vezes válida. Mas, deixan­


do de lado esta espécie de consolação para
M a r it a in os educadores, as considerações simplicíssimas
que expus, ou agora parafraseando Tomás
de Aquino, são, a meu ver, importantíssimas
para a filosofia da educação. Penso que elas
iluminam todo o conflito que opõe os métodos
□ fissim como o medicino, de educação com a palmatória e os métodos
o educação é uma progressivos atuais que insistem sobre a liber­
dade e a vitalidade natural interna da criança,
a r s c o o p e r a tiv o n a tu r a e
e sobrê elas se concentram.
fl educação com a palmatória é positi­
"Fl palmatória e o chicote são p é s s i­ vamente má. Se, por amor de paradoxo, eu
mos instrumentos de educação [...], e uma tivesse algo a dizer em sua defesa, observaria
educação que considera o mestre como o apenas que ela foi capaz, de fato, de produzir
agente principal perverte a própria natureza algumas personalidades fortes, pois é difícil
da tarefa educativa". matar o princípio de espontaneidade interior
nas criaturas vivas, e porque este princípio se
desenvolve ocasionalmente de forma mais po­
derosa quando reage e alguma vez se revolta
fi arte do educação deveria ser [...] com­ contra a obrigação, o medo e as punições, mais
parada ò da medicina, fl medicina trata de um do que quando cada coisa lhe é tornada fácil,
sér vivo, com um organismo que possui vitali­ doce e ágil e psicotecnicamente acomodada, é
dade íntima e um princípio interior de saúde. O bastante estranho que nos possamos perguntar
médico exerce uma causalidade real na cura de se uma educação que se dobra completamente
seu doente, é verdade, mas de certa maneira à soberania da criança, e que suprime todo
particular, ou seja, imitando os caminhos da obstáculo o superar, não obtenha o resultado
própria natureza em sua maneira de operar, e de tornar os estudantes ao mesmo tempo in­
ajudando a natureza, prescrevendo uma dieta diferentes e demasiado dóceis, e demasiado
e remédios apropriados de que a própria natu­ passivamente permeáveis o qualquer coisa dita
reza se servirá, conforme seu próprio dinamismo pelo mestre. De todo modo continua sempre
em ação para o equilíbrio biológico. Cm outras verdadeiro que a palmatória e o chicote são
palavras, a medicina é ars cooperativa naturae, péssimos instrumentos de educação, e que
uma arte ministerial, uma arte a serviço da natu­ uma educação que considera o mestre como o
reza, € assim é a educação. Csta verdade tem agente principal perverte a própria natureza da
implicações que vão muito longe. tarefa educativa.
Contrariamente a tudo o que acreditava O mérito real das concepções da peda­
Platão, o conhecimento não existe de uma vez gogia moderna depois de Pestalozzi, Rousseau
por todas nas almas humanas. Mas o princípio e Kant foi a redescoberta desta verdade fun­
vital e ativo do conhecimento existe em cada um damental de que o agente principal e o fator
de nós. O poder íntimo de visão da inteligên­ dinâmico principal nõo é a arte do mestre, mas
cia, que naturalmente e desde o primeiro início o princípio íntimo de atividade, o dinamismo
percebe, dentro e através da experiência dos íntimo da natureza e da mente. Se tivéssemos
sentidos, as primeiras noções de que depende tempo, poderíamos demonstrar a este propósito
todo conhecimento, é justamente por isso capaz que a pesquisa de novos métodos e de uma
de proceder daquilo que já conhece para aquilo novo inspiração, sobre a qual insistem tanto a
que ainda não conhece, Um exemplo disso nós educação progressiva e aquilo que na Curopa
o temos em Pascal que descobre, sem o auxílio se choma de "escola ativa", deveria ser ava­
de qualquer mestre e em virtude de seu próprio liada, encorajada e ampliada, com a condição
gênio, as primeiras 3 2 proposições do primeiro de que o educação progressivo renuncie a seus
livro de Cuclides. Cste princípio vital interno é preconceitos de um racionalismo ultrapassado e
aquilo que o educador deve respeitar acima à sua filosofia utópica da vida, e não esqueça
de qualquer outro coisa. [...] que também o mestre é umo causa eficiente
Nós, professores e educadores, podemos e um agente real - embora apenas auxiliar
alguma vez consolar-nos de nossos insucessos e cooperador da natureza -, uma causa que
- pensando que eles sejam devidos à culpa do verdadeiramente dá, e cujo dinamismo, autori­
agente principal, do princípio interno no estu­ dade morol e guia positiva são indispensáveis.
dante - mais do que de nossas insuficiências. Se esse aspecto complementar é esquecido,
Q uinta parte - B s p í ritual ismoy n o v a s te o ló 0 Ías t' n e o -e s c o lá s t ic a

as melhores tentativos saídas do culto e da fl liberdade plástica e sugestionável da


veneração da liberdade da criança se perderão criança é danificada e dispersa ao a,caso se
na areia. não for ajudada e guiada. Uma educação que
fl liberdade da criança não é a espon­ desse à criança a responsabilidade de adquirir
taneidade da natureza animal, que desde a noções a respeito daquilo que ela não sabe que
origem move-se diretamente ao longo do trilho ignora, uma educação que se contenta de olhar
fixado pelo instinto (ao menos é desse modo o desenvolvimento dos instintos da criança, e
que habitualmente representamos o instinto que faça do mestre um complacente e supérfluo
animal, coisa que implica certa simplificação, assistente, seria tão-somente a bancarrota da
pois o instinto animal comporta um primeiro educação e da responsabilidade dos adultos
período de fixação progressiva), fl liberda­ em relação à juventude. O direito da criança
de da criança é a espontaneidade de uma de ser educada requer que o educador tenha
natureza humana e racional, e e ssa espon­ sobre si a autoridade moral, e esta autoridade
taneidade, amplamente indeterminada, tem não é mais que o dever do adulto para com a
seu princípio íntimo de determinação final liberdade da criança.
apenas na razão, que ainda não se desen­ J. Mciritain,
volveu na criança. fí educação na encruzilhada.

Jacques Maritain, recebido por Paulo VI na praça de Sao Pedro em Roma.


O PERSONALISMO

■ Mounier
■ Weil

“O personalismo é um esforço integral para com­


preender e superar a crise do homem do século
XX em sua totalidade”.
Emmanuel Mounier

“Não esqueçamos que queremos fazer do indiví­


duo, e não da coletividade, o valor supremo”.
Simone Weil
Capítulo vigésimo segundo

O personalismo: Emmanuel Mounier e Simone Weil


( 2 - a p 'ú u \ o v i g é s i m o s e g u n d o

O personalismo:
Êmmanwel e Simone Weil

I. O pei^so Kvalismo:
uma filosofia, m as n ã o um sistem a

• O personalismo nasce na França nos inícios da década de A idéja


1930, a partir da contribuição teórica fornecida por Emmanuel ^e "pessoa"
Mounier, o fundador da revista "Esprit" - cujo primeiro número , § 1-3
saiu em outubro de 1932.
O fulcro do pensamento personalista é exatam ente a idéia de pessoa,
considerada em sua não-objetivação, inviolabilidade, criatividade, liberdade e
responsabilidade; de uma pessoa encarnada em um corpo, situada na história e
constitutivamente comunitária. O personalismo apresenta uma possibilidade de
saída da crise na "revolução personalista e comunitária".

• Na França os representantes do pensamento personalista fhósoíos


(G. Izard, P. Ricoeur, N. Berdjaev, J. Maritain, E. Mounier, M. Né- personalistas
doncelle etc.) se reúnem em torno da revista "Esprit". de m aior
Fora da França o personalismo encontra expoentes de relevo saliência
na Inglaterra (J. B. Coates) e nos Estados Unidos (G. H. Howison, §4
E. S. Brightman, W. E. Hocking, e outros ainda).
Na Holanda o personalismo nasceu em um campo de prisioneiros e se desen­
volveu sucessivamente no plano político.
Defensores suíços das idéias personalistas se reúnem ao redor dos "Cahiers
Suisse Esprit".
Na Itália os dois maiores representantes do personalismo foram Armando
Carlini e Luís Stefanini.

{Samc+ensticas da^pessoa* Escreve um de seus expoentes mais repre­


sentativos, Jean Lacroix: “O personalismo,
de certa forma, gostaria de situar-se como
Como fenômeno histórico o persona­ sucessor das filosofias do eu para refutá-las
lismo nasceu na França, com Emmanuel no mundo físico e social” . E em nome da
Mounier, e desenvolveu-se em torno da pessoa e sob o signo dessa idéia, o per­
revista “Esprit” (fundada por Mounier), sonalismo se apresenta como análise do
cujo primeiro número saiu em outubro mundo moderno, impõe-se (escreve Mou­
de 1932. A idéia central do pensamento nier) como protesto contra “seu estado de
personalista é a idéia de pessoa, na sua putrefação avançada” e, considerando “a
não-objetivação, inviolabilidade, liber­ derrocada de sua estruturação verminosa”,
dade, criatividade e responsabilidade; de projeta uma saída para a crise através de
pessoa encarnada em um corpo, situada na uma “revolução personalista e comuni­
história e constitutivamente comunitária. tária”, fundamentada na fé cristã aceita
Sexta parte - O personalismo

para além de qualquer reserva e vivida sem sonalistas, mas também o centro de irradia­
compromissos. ção de uma série de iniciativas “políticas”
significativas, como a posição em favor dos
republicanos espanhóis, a breve posição de
2 O contex+o kistórico expectativa em relação ao governo de Vichy
em q u e surgiu e depois, ao contrário, a passagem para a
Resistência, o apoio à liberdade argelina e
o p ersonalism o depois ainda à revolução húngara.
De qualquer forma, como na raiz do
movimento personalista existe a intenção
O personalismo, afirma Mounier, “sur­
decidida de testemunhar a verdade em toda
giu da crise de 1929, que fez soar claramente circunstância, o personalismo não podia se
o fim da prosperidade européia e chamou a ligar - e não se ligou - aos particularismos
atenção para a revolução em curso. Diante táticos de um ou de outro partido. Ele nas­
das inquietações e desventuras que então ceu e se desenvolveu como movimento, feito
começavam, alguns deram uma explicação de idéias, críticas, estímulos, controvérsias e
puramente técnica, outros puramente moral. iniciativas, jamais pretendendo se esclerosar
Alguns jovens, porém, acharam que o mal na forma de partido, bloqueado em uma
era ao mesmo tempo econômico e moral, ideologia fixa e apriosionado pela máquina
inserido nas estruturas sociais e nos cora­ burocrática.
ções, e que o remédio para ele, portanto, Isso nos permite compreender melhor
não deveria prescindir nem da revolução a afirmação de Mounier no sentido de que
econômica, nem da revolução espiritual; e “o personalismo é uma filosofia, não uma
que, por fim, posto que o homem é constituí­ simples atitude; é uma filosofia, não, porém,
do assim como é, devia-se encontrar estreitas um sistema” .
conexões entre uma e outra. Era necessário,
antes de mais nada, analisar as duas crises
para desatravancar os dois caminhos”. / \ s r e g ra s e a s es+rafégias
“Esprit” não foi apenas o ponto de
reunião das contribuições teóricas dos per­ d o personalism o

E eis como Mounier estabelece, no


ensaio O personalismo e a revolução do
século X X , algumas normas da estratégia
| ■ Personalismo. Dentro do pensa- í
| mento contemporâneo o termo "per- J personalista.
| sonalismo" foi introduzido em 1903 j 1) “Pelo menos como ponto de partida,
| por Charles Renouvier (1815-1903) J uma posição de independência em relação
| para indicar uma concepção filosó- j aos partidos e aos agrupamentos consti­
I fica - a própria - para salvaguardar J tuídos torna-se necessária para uma nova
| os direitos, ou seja, a dignidade e o j avaliação das diversas perspectivas, sem
| valor, da pessoa humana em relação | com isso se afirmar uma posição anárqui­
{ ao panteísmo da filosofia idealista } ca ou um apoliticismo de princípio. Além
l alemã e do naturalismo positivista disso, onde quer que a adesão do indivíduo
francês. Com Emmanuel M ou n ie r-e a í,
a uma ação coletiva deixe a esse indivíduo
I contribuição de pensadores reunidos J
• em torno da revista "Esprit" (que co- 1 uma liberdade de ação suficiente, ela deve
í meça a sair em 1932)- o personalismo ;í ser preferida ao isolamento.
i caracteriza-se pela fusão do momento í 2) Como o espírito não é uma força
| personalista (independência, liberda- i absurda ou mágica, a simples afirmação
' de, responsabilidade, crescimento da | dos valores do espírito periga ser enganosa
| pessoa humana) com o co m u n itá rio l quando não se acompanha de rigorosa deli­
% (solidariedade); em claro e declarado % mitação da atividade e de seus meios.
I contraste com a "subversão da ordem : 3) A união estreita entre o ‘espiritual’
| econômica" que seria o capitalismo, e i e o ‘material’ implica em que, em toda
f com a negação da pessoa que seria o í
questão, deve-se levar em conta toda a pro­
\ coletivismo totalitário marxista. i
R . m blemática, que vai dos dados ‘vis’ aos dados
‘nobres’, com extremo rigor tanto em um
como em outro sentido. A tendência à confu­
Capitulo vigésimo S B g U t ld o - CD p e r s o n a lis m o : E m m a n u e l A ^ o w n ie ^ e S i m o n e W e i l 401

são é o primeiro inimigo de um pensamento construir sua própria personalidade e a


que parte de ampla perspectiva. personalidade alheia tendo em vista a
4) O sentido da liberdade e do real nos construção da humanidade” . Mas, para
impõe que, na investigação, nos libertemos esse objetivo, são insuficientes tanto o
de qualquer a priori doutrinário e estejamos marxismo, que aniquila o indivíduo nas
positivamente prontos para tudo, inclusive estruturas econômicas da história, como
a mudar de direção para permanecer fiéis à o existencialismo, que se transforma em
realidade e ao próprio espírito. solipsismo na teoria e em individualismo
5) A cristalização compacta da desor­ na prática. E esse o motivo por que Lacroix
dem do mundo contemporâneo levou alguns não hesita em se distanciar também de
personalismos a definirem-se como revolu­ Kierkegaard: “O tema da solidão é o mais
cionários [...]. O sentido da continuidade perigoso de todos. [...] O ‘nós’ não deriva
histórica nos impede de aceitar o mito da da concordância entre os vários ‘tu’, mas
revolução como ‘tabula rasa’, já que uma acompanha sua atividade” .
revolução nunca deixa de ser uma crise O personalismo encontrou a sua
morbosa, que não leva automaticamente a origem, no início da década de 1930, na
uma solução. Revolucionário significa uma França, em torno de Emmanuel Mounier
coisa muito simples, mas também significa e do grupo de “Esprit” , situando-se no
que não se remedia o caos tão radical e tão leito da tradição introspectiva típica da
tenaz de nosso tempo sem contramarcha, filosofia francesa de Descartes em diante,
sem profunda revisão de valores, sem reor­ apresentando precursores como Sócrates
ganização das estruturas e sem renovação (“o ‘conhece-te a ti mesmo’ foi a primeira
das classes dirigentes” . grande revolução personalista de que se
tem notícia”, escrevia Mounier), Leibniz e
Kant (aos quais o personalismo muito deve,
sempre segundo Mounier), Pascal (“o maior
re p re se n ta n te s
mestre” do personalismo), Maine de Biran
do pensamento personalista (“o moderno precursor do personalismo
francês” ); encontra concordâncias substan­
ciais com não poucas idéias de Max Scheler
Mas quem eram os jovens que pen­ e Martin Buber.
savam essas coisas? Em suma, por quem Fora da França, o personalismo era
era formado o grupo de “Esprit” ? Entre os defendido na Inglaterra pelo Personalist
primeiros colaboradores da revista, encon­ Group de J. B. Coates. Nos Estados Unidos,
tramos G. Izard, A. Délèage, G. Duveau, N. a filosofia personalista encontrou seus repre­
Berdjaev, M. Lefrancq, A. Philip, J. Mari­ sentantes em G. H. Howison, B. P. Bowne,
tain, René Biot, P. Verité e P.-A. íouchard. E. S. Brightman e W. E. Hocking; foram os
Mas não foram somente esses que aderiram alunos de Bowne e de Howison que funda­
ao movimento personalista, movimento que, ram a revista “The Personalist” .
além disso, se expressou em correntes diver­ Na Holanda, o personalismo nasceu
sificadas, como observa o próprio Mounier: em 1941, num campo de prisioneiros; de­
“Poderíamos identificar uma tendência senvolveu-se no plano político e procurou
existencialista do personalismo (que reuniria concretizar uma espécie de novo socialismo
Berdjaev, Landsberg, Ricoeur e Nédoncelle), através do “Movimento popular holandês”,
uma tendência marxista, freqüentemente que subiu ao poder depois da Libertação,
paralela à primeira, e uma tendência mais antes de unir-se ao partido socialista.
clássica, que se insere facilmente na tradi­ Na Suíça, as idéias personalistas en­
cional corrente introspectiva da filosofia contraram seu centro nos “Cahiers Suisse
francesa (Lachièze-Rey, Nabert, Le Senne, Esprit”.
Madinier e Jean Lacroix)”. Na Itália, Armando Carlini e Luís
Para Lacroix, o personalismo “ é a Stefanini foram os dois pensadores mais
própria intenção que anima o homem: representativos do personalismo.
Sexta parte - O personalismo

II. £m m anw eI A/lounier


e^a revolu ção p erson a lista e com unifária^

• Depois da habilitação, Emmanuel Mounier (1905-1950) escolheu ensinar


na escola não-estatal. Aos inícios da década de 1930 remontam seu encontro
com Jacques Maritain e seus contatos com Gabriel Mareei e Nicolai Berdjaev. Em
1932 inicia a publicação de "Esprit". Durante a guerra paga com
a prisão sua aversão ao nazismo. Eis os títulos de algumas obras
O p ro je to
de uma
suas: Tratado do caráter (1946); O que é o personalismo? (1947);
"revolução O personalismo (1949). Refazer a Renascença é o título do arf;igo
personalista detfundo do primeiro número de "Esprit", de 1932: assim como
e com unitária" a Renascença foi a solução da crise da Idade Média, da mesma
- ^§ 1 forma "a revolução personalista e comunitária" resolverá a crise
do século XX.

• A pessoa, para Mounier, está encarnada em um corpo e imersa na história,


e é comunitária por sua natureza. Todavia, permanece não objetivável, não pode
ser capturada por nenhuma definição, nenhuma descrição pode
A pessoa retratá-la em sua inteireza: "M inha pessoa - escreve Mounier
não é - não coincide com minha personalidade. Ela está além d
objetivável é uma unidade dada, não construída, mais vasta do que as visões
->§2 que dela tenho, mais íntima do que as reconstruções por mim
tentadas. Ela é uma presença para mim". A pesquisa da própria
vocação, o empenho em uma obra como sinal da própria encarnação, e a renúncia
a si próprios em favor dos outros: estes são os três exercícios essenciais da pessoa.

• Contrário ao moralismo ("mudai o homem e as sociedades


Os inim igos ficarão curadas!"), Mounier vê no individualismo o pior inimigo
da pessoa: do personalismo: o capitalismo é a metafísica do primado do pro­
moralismo, veito, é "uma subversão total da ordem econômica". E Mounier
individualismo, não cede também nem às sereias do marxismo, e isso porque:
capitalismo, a) o marxismo é outro tipo de capitalismo, capitalismo de
marxismo
Estado;
-> S 3 b) o marxismo exalta o homem coletivo e anula a pessoa;
c) o marxismo levou a regimes to talitário s..............................

• Mounier tende a uma nova sociedade: uma sociedade personalista na qual


a pessoa "toma sobre si, assume o destino, o sofrimento e a alegria, o dever dos
outros". Tratar-se-ia de uma sociedade onde "o Estado existe para
Por uma ° homem e não o homem para o Estado"; e de um Estado onde
sociedade - em defesa da pessoa contra os abusos do poder - existem pode-
personalista res divididos e contrapostos. E uma defesa da perigosa mitização
-> § 4-5 e absolutização de uma coletividade, de um partido, de um chefe,
a pessoa a encontra na tensão escatológica do cristianismo.

m k Vida e obm 1928, no exame de habilitação, obteve o


segundo lugar, depois de Raymond Aron.
Passou a ensinar filosofia em escola particu­
Nascido em Grenoble em 1905, Mou­ lar, primeiro no Colégio de Santa Maria de-
nier, depois de estudar filosofia com Jacques Neuilly e depois no Liceu Saint-Omer. Seu
Chevalier em Grenoble, prosseguiu seus encontro com Jacques Maritain remonta
estudos na Sorbonne, em Paris, onde, em ao início da década de 1930: freqüentando
Capítulo vigésimo segundo - O pe^scm ali m o: £ m m a n w £ ! J\A o u n ier e S im cm e We.il

Bruxelas, onde ensina no Liceu francês.


Convocado para o serviço militar em 1939,
foi feito prisioneiro pelos alemães. Liberta­
do, retoma em 1940 e 1941, entre muitas
dificuldades, a publicação de “Esprit”. Con­
trário ao governo de Pétain depois de breve
hesitação, Mounier foi preso. Reconquista­
da a liberdade, em agosto de 1941 “Esprit”
é supresso. Em janeiro de 1942 Mounier foi
preso novamente, sob a acusação de ser um
dos principais inspiradores do movimento
clandestino “Combat”. Libertado em 26
de fevereiro, foi preso outra vez em 21 de
abril, realizando então uma greve de fome.
Depois do processo e absolvição, passou a
viver sob nome falso até o fim da guerra,
quando retorna a Paris e retoma a publica­
ção de “Esprit” .
O período do pós-guerra foi de intensa
atividade para Mounier. Publicou o Tra­
tado do cárcere, Liberdade condicional e
Introdução aos existencialismos, todos em
1946; O que é o personalismo? é de 1947;
em 1949, saiu O personalismo, ao passo
que, em 1948, haviam sido publicados O
despertar da África negra e O pequeno medo
Emmanuel Mounier (1905-1950) do século X X .
foi o teórico da revolução Morreu de infarto cardíaco no dia 22
personalista e comunitária, de março de 1950.
contrária tanto ao capitalismo quanto ao marxismo.

y \ s d imewsões da "pessoa*

sua casa, participa dos encontros que ali se


realizam. E nessa época que entra em con­ Refazer a Renascença é o título do ar­
tato com Gabriel Mareei e Nicolai Berdjaev. tigo de fundo do primeiro número de “Es­
Nesse período, Mounier desenvolve intensa prit”, de 1932. Assim como a Renascença
atividade como publicista, sobretudo no saiu da crise da Idade Média e a resolveu,
campo do esforço cristão na escola. Colabo­ a “revolução personalista e comunitária”,
rou com a revista “Aux Dévidées”, dirigida segundo Mounier, resolverá a crise do século
pela srta. Silve, que fundara uma obra para X X: “O personalismo constitui o esforço in­
os professores cristãos das escolas leigas. tegral para compreender e superar a crise do
Em 1932, depois de vários encontros homem do século X X em sua totalidade”. E
preparatórios, Mounier publicou a revista isso só será possível na condição de se inserir
“Esprit” . Escolhera “ um caminho sem a pessoa no centro da discussão teórica e da
volta”, pelo qual sacrificou a carreira aca­ ação prática. Mas de que modo se poderia
dêmica, para influenciar sobre a sociedade clarificar a idéia de ‘pessoa’ ? Antes de mais
não tanto como professor, e sim muito mais nada, afirma Mounier em Revolução perso­
como publicista engajado. nalista e comunitária, “minha pessoa não é
Em 1935, reuniu seus principais es­ a consciência que eu tenho dela. Toda vez
critos publicados em “Esprit” no livro Re­ que eu realizo um ato de levantamento de
volução personalista e comunitária. Desse minha consciência, o que descubro? No mais
mesmo ano é o ensaio D a propriedade ca­ das vezes, se não me mantiver muito firme,
pitalista à propriedade humana, escrito que descubro somente fragmentos efêmeros de
delineia o programa social do movimento individualidade, lábeis como o ar do dia” .
personalista. Em mim, “tudo ocorre como se minha pes­
Ainda em 1935, Mounier casa-se com soa fosse um centro invisível, ao qual tudo se
Henriette Leclercq, passando a viver em reporta; bem ou mal, ela se manifesta através
404
Sexta parte - O p e r so n a li SM

de alguns sinais como hóspede secreto dos meditar sobre sua vocação, sobre seu lugar e
mínimos gestos de minha vida, mas não sobre seus deveres na comunhão universal.
pode ficar diretamente sob o olhar de minha Por outro lado, a pessoa está sempre encar­
consciência” . Por isso, “minha pessoa não nada em um corpo e situada em condições
coincide com minha personalidade. Ela se históricas precisas. Por conseguinte, “a ques­
encontra além do tempo, é uma unidade tão não está em se evadir da vida sensível e
dada, não construída, mais vasta do que particular, que se desenvolve entre as coisas,
as visões que eu tenho dela, mais íntima do no seio de sociedades limitadas, através dos
que as reconstruções por mim tentadas. Ela acontecimentos, e sim em transfigurá-la”.
é uma presença em mim” . Além disso, a pessoa só pode alcançar a si
Assim, Mounier especifica o que a pes­ mesma dando-se à comunidade superior,
soa não é. E realiza essa operação, visto que a que chama e integra as pessoas individuais.
pessoa é não-objetivável. Aquilo que se pode Decorre daí, segundo Mounier, que os três
dizer da pessoa é que ela “é o volume total do exercícios essenciais para alcançar a for­
homem [...]. Há em cada homem uma tensão mação da pessoa são: “a meditação, para a
entre suas três dimensões espirituais: aquela busca da minha vocação; o engajamento, a
que sai de baixo e a encarna em um corpo; adesão a uma obra, que é reconhecimento da
aquela que se dirige para o alto e a eleva própria encarnação; a renúncia a si mesmo,
em um universal; aquela que se volta para que é iniciação ao dom de si e à vida em
a amplidão e a leva para uma comunhão. outros”. Para Mounier, se a pessoa faltar em
Vocação, encarnação e comunhão são as relação a um desses exercícios fundamentais,
três dimensões da pessoa” . O homem precisa estará condenada ao insucesso. Texto U

MOUNIER
»■
ESPRIT
Aimt, - m m
Dírcet»«ir :
m. futàimg TiImPiafi,
Mnrmirr

i- mt. Rivoluzione
personalista e
ESPRIT. NOUVELLE SÉRIE
comunitaria
F kW ft. taçvmímr cte émtâtem êtaçm ê * ia vte
d « Zãpnt » ; !93ft, ftttf* cenfir* È'«spri! «te Muwch.
km cem tm t d u « V o & g m jt • w m e P *À . ToixbcaxL te
«oir m im * dh Mumch, IÍ3&4B .• fcitt# btèwt. troj»
fertw». pour áonrm m m m au é tm m m m m m f 1940-41 :
ftpà, m wxm nem oacupi». nem htetm a kmmmmmi m tr*
te tiHeâ miU coasbot dan» le émàm&m
m m m pmsSM»-, tte m dv&sàm antt U comltwt, àeeú
l i s » » m l kfidb; aoü* 1941 ; wtredtctlon, pat Vlcbr, pa*
*&mm frtknea.
i w >pu in oM <*ovm à c » bral rapp*} ete dat*« te

©
»i Êstfcmid* notro htetotó# etandnMmm: I ntmi pmm àé
pr'imnpaux qui a ’y m m tagat ém tm-
importante*, Um «st pm n atent *ém mm
parti# (tec <mfíém§ «n pumm, éaím m tm m «Ftetef*
nmmm m ê w m m tik p * m s é l A «pai bon?Nou» m-
ru m abiíiié* àm nous «ate# mm «*«* qui rtm tm t e*pc»é* D
m em á * cmtx qui fon! ré«B*ra«Tt m te goto. t t , á m
fcw»pmvènmi pt&Miegm, mimm KOmwm
Ou'<! m m d * portei-

Primeira página da nova série da revista “Esprit” de I o de dezembro de 1944,


e frontispício da tradução de Revolução personalista e comunitária,
organizada por L. Fuá para Edições de Comunidade em 1949.
Capítulo vigésimo segundo - O p e r s o n a lis m o : (£ m m anuel ^A ounier e S im o n e W e il 405

O personalismo con+ra 3) porque o marxismo professa “o


otimismo do homem coletivo que implica
o moralismo, o individualismo,
o pessimismo radical da pessoa”, coisa que
o capitalismo e o marxismo um personalista não pode aceitar;
4) porque o marxismo, no plano histó­
rico, levou a regimes totalitários;
A pessoa é inobjetivável; a pessoa está 5) porque não é inimaginável que, a
encarnada em um corpo e na história; a pes­ um imperialismo capitalista, se suceda um
soa, por sua natureza, é comunitária. Entre­ imperalismo socialista.
tanto, lembra Mounier, a solução biológica e Além disso, Mounier sempre afirmou
econômica de um problema humano conti­ claramente que “o cristão não pode dar
nuará frágil e incompleta se não se considera­ adesão doutrinária completa a uma filosofia
rem as mais profundas dimensões do homem. que negue ou subestime a transcendência,
Contrário ao moralismo (“mudai o avilte a interioridade e tenda a unir a crítica
homem, e as sociedades se curarão”) e, como fundamental da religião à justa crítica da
veremos, contrário ao marxismo (“mudai a evasão idealista”.
economia, e o homem será salvo” ), Mounier
considera o individualismo como o pior
inimigo do personalismo. Isso deve-se ao
<S-w\ direção
fato de que, no personalismo, a pessoa é
uma presença voltada para o mundo e para à nova sociedade
as outras pessoas: “As outras pessoas não a
limitam; ao contrário, permitem-lhe ser e se
desenvolver. Ela (a pessoa) só existe enquan­ Depois de tudo isso, não é difícil com­
to voltada para os outros, só se conhece atra­ preender por que Mounier considerava que
vés dos outros, só se encontra nos outros”. o personalismo, conforme a expressão de
Tudo isso é quase o mesmo que dizer que eu Nédoncelle, não é “uma filosofia para as
só existo enquanto existo para os outros e tardes de domingo”.
que, no fundo, “ser significa amar”. Mas, depois das críticas ao espiri­
Mounier vê no capitalismo “a sub­ tualismo, ao moralismo, ao individualismo,
versão total da ordem econômica” . O ao capitalismo e ao marxismo, que tipo de
capitalismo é a metafísica do primado do sociedade Mounier estaria em condições de
lucro. Um primado do lucro que “vive de anunciar e prenunciar?
dupla forma de parasitismo: um contra A sociedade pregada por Mounier é
a natureza, baseado no dinheiro; o outro precisamente a sociedade personalista e co­
contra o homem, baseado no trabalho” . O munitária. E um tipo de sociedade distante
capitalismo consagra o primado do dinheiro das agregações de indivíduos que correspon­
sobre a pessoa, do “ter” sobre o “ser”. No dem à massa (com a sua tirania do anônimo ),
capitalismo, afirma Mounier, o dinheiro à sociedade fascista (com seu chefe carismá­
transforma-se em tirania. Inimigo do traba­ tico e sua febre mística ), à sociedade fechada
lho digno da pessoa, o capitalismo também de tipo organicista-biológico, ou ainda à
é inimigo da propriedade privada, já que sociedade baseada no direito (ou seja, a
priva o assalariado de seu lucro legítimo e sociedade do jusnaturalismo iluminista, pois
defrauda regularmente o poupador através o contrato que está em sua base não é uma
de “especulações catastróficas” . relação interpessoal, e sim muito mais um
Nem por isso, contudo, Mounier caiu compromisso de egoísmos). O que Mounier
nos braços do marxismo. Embora reconhe­ põe no vértice da socialidade é a sociedade
cendo ao marxismo perspicácia em muitas personalista, baseada no amor que se realiza
análises, dedicação à causa dos mais fracos na comunhão, quando a pessoa “chama a si
e anseio de justiça, Mounier rejeita-o por e assume o destino, o sofrimento, a alegria
diversas razões: e o dever dos outros” .
1 ) porque o marxismo é filho rebelde Esse tipo de sociedade é uma idéia-
do capitalismo, mas apesar disso é seu filho, limite de natureza teológica (basta pensar
enquanto também o marxismo reafirma o na idéia cristã de corpo místico) que nunca
primado da matéria; poderá se realizar em termos políticos, mas
2 ) porque o marxismo substitui o capi­ que funciona como ideal normativo e crité­
talismo por outro capitalismo: o capitalismo rio de juízo para as mudanças políticas reais
de Estado; e para as possíveis.
Sexta parte - O p e r s o n a lis m o

Mounier pensava em um socialismo Pois o século X X também tem o seu medo,


que fosse obra dos próprios operários e em o grande medo de que toda a humanidade
uma sociedade onde “o Estado exista para o possa desaparecer. Mas, segundo Mounier,
homem e não o homem para o Estado” . Por­ esse medo não gera atividade operosa, e
tanto, “a pessoa deve ser protegida contra sim muito mais parece bloquear qualquer
os abusos do poder” , pois todo poder não iniciativa, lançando as consciências no atur-
controlado tende ao abuso, diz Mounier. dimento das evasões e nas jaulas do egoísmo.
A defesa personalista da pessoa se ex­ Por isso, embora em sua trágica vastidão, o
pressou por meio da idéia de um “Estado medo do século X X , para Mounier, é “um
pluralista”, “dotado de poderes divididos e pequeno medo”, medo mesquinho, que inibe
contrapostos, a fim de se garantirem mutua­ o amor e agiganta o ódio.
mente contra o abuso; mas a fórmula periga É a fé cristã, portanto, que pode trans­
parecer contraditória, pois seria preciso formar o “pequeno medo” do século X X em
falar muito mais de um Estado articulado a “grande medo” , cheio de iniciativas prenhes
serviço de uma sociedade pluralista” . Esse de força libertadora. Mas, para que a fé
seria o Estado mais próximo a serviço da possa readquirir tal força, o cristianismo
pessoa. contemporâneo deve acabar com os com­
promissos que constituem suas incrustações
históricas: “a velha tentação teocrática da
5 .0 cristianismo deve romper intervenção do Estado nas consciências;
i i i o conservadorismo sentimental que liga a
com todas as desordens sorte da fé à sorte de regimes já superados;
estabelecidas a dura lógica do dinheiro, que guia o que,
ao contrário, deveria servir”.
O cristianismo não se identifica e não se
A atitude do personalista em relação reduz a nenhuma ordem estabelecida, pois a
à história, para Mounier, é a do otimismo tensão escatológica do cristianismo não per­
trágico. O otimismo é dado pela convicção mite considerar nenhuma situação de fato
de que, de qualquer forma, a verdade está como perfeita ou absoluta. O importante,
destinada ao triunfo. A tragicidade desse por conseguinte, é que o cristianismo não
otimismo já depende da aceitação realista se torne o selo da esclerose das situações de
da crise em que somos chamados a atuar. O fato (regimes, partidos etc.). E mais essencial
otimismo trágico de Mounier é expressão da ainda é que o mundo não perca os valores
lucidez da inteligência diante da realidade cristãos, já que — e essa, segundo Mounier,
social e, ao mesmo tempo, da esperança de é uma lição evidente do século XIX — “onde
que a ação personalista influa sobre a crise quer que esses valores desapareçam, com
que assola o mundo. sua fisionomia cristã, as formas religiosas
Desse modo, o personalismo rejeita e reaparecem sob outros aspectos: diviniza-
contrasta com o que Mounier chama de “o ção do corpo, da coletividade, da espécie
pequeno medo” do século X X. Por volta em seu esforço ascensional, de um líder, de
do ano 1000, o medo dos medievais diante um partido etc.” Os traços característicos
do iminente fim do mundo constituiu o es­ da religião podem ser encontrados nessas
tímulo para a construção de uma sociedade coisas de forma degradada e danosa para o
melhor, foi um aguilhão que levou à melho­ homem. Todavia, justamente isso demons­
ria, para que os homens não tivessem de se tra, precisamente, a impossibilidade de re­
apresentar de mãos vazias diante de Deus. nunciar à dimensão religiosa.
Capítulo vigésimo segundo - O p e r s o n a lis m o : Ê m m a n u e I M o u n ie r e S im o n e W e il

= III. S i m one W e il: -----


en+re a ç ã o revolucionária
e e x p e riê n cia mística

••Vivam ente anti-religiosa quando jovem; operária na Re­ Uma vida


nault; presa, durante a guerra, sob a acusação de gaullista; na que dá
América, em 1942, e também aí próxima dos pobres, os do Harlem; testemunho
de novo na Europa para participar da Resistência francesa, Simone dos grandes
Weil morre no sanatório de Ashford dia 24 de agosto de 1943. valores
Nascera dia 3 de fevereiro de 1909, filha de um médico alsaciano § 1-2
de origem israelita e de mãe originária da Rússia.

••Weil vê que a sociedade já se tornou "máquina para com­


A sociedade
primir coração e espírito e para fabricar a inconsciência, a estu­ é "máquina
pidez, a corrupção, a desonestidade e principalmente a vertigem para
do caos". Na história humana duas foram e continuam a ser as com prim ir
principais formas de opressão: a escravidão exercida em nome da corpo
força; e a sujeição em nome da riqueza transformada em capital. E e espírito"
Weil pensava que estava para cair sobre os homens outra, e nova, ^§3
form a de opressão: "a opressão exercida em nome da função",
fruto maduro do trabalho fragmentado, típico do capitalismo.

••Pois bem, diante deste "estado doloroso", Simone Weil apela para uma
obrigação eterna: a dirigida ao ser humano enquanto tal. O homem não pode ser
objeto. O indivíduo é o valor supremo. Um valor pisado também pelos movimentos
que se remetem a Marx. E que vem, ao contrário, incrementado por aquela revolu­
ção que eqüivale a "invocar com os próprios desejos e ajudar com
as próprias ações tudo aquilo que pode, direta ou indiretamente, A revolução
aliviar ou eliminar o peso que esmaga a massa dos homens, as é um ideal,
cadeias que envilecem o trabalho; rejeitar as mentiras por meio um juízo
de valor,
das quais se quer mascarar ou desculpar a humilhação sistemátjca uma vontade
da maioria deles". A revolução é, portanto, um ideal, um juízo 4
de valor, uma vontade.

• A libertação da opressão social é sacrossanta porque o indivíduo é o valor


supremo. Esta libertação, porém, não é a redenção de sua infelicidade ontológica.
Infeliz é quem experimenta a ausência de Deus; quem está distante de Deus. E foi
justamente a cruz que aproximou Weil do Deus cristão. "A cruz é nossa pátria",
escreve Weil. "As religiões que apresentam uma divindade que
exerce seu domínio em todo lugar que lhe for possível, são falsas. A cruz é
Ainda que monoteístas, são idólatras". E, por fim: "Em qualquer "nossa p á tria "
época, em qualquer país, em todo lugar em que há um sofrimento, -> § 5-7
a cruz de Cristo é sua verdade".

jA vida e as obras “completo agnosticismo”, e no liceu foi aluna


de Ernest-René Le Senne. Estudou na Ecole
Normale Supérieure, onde obteve o título de
Simone Weil nasceu em Paris no dia 3 agrégée em filosofia em 1931. “Durante os
de fevereiro de 1909, filha de um médico al­ anos de estudo — recorda padre J. M. Perrin,
saciano judeu e agnóstico e de mãe originária que terá muitos encontros com Weil — de­
da Rússia. Em família, cresceu em clima de monstrou-se vivamente anti-religiosa; seu
Sexta parte - O p e r s o n a lis m o

rigor era tal que chegou a ponto de romper mone Weil] consegue dar à própria femi­
a amizade com uma companheira que se con­ nilidade, fisicamente, o menos, o mínimo,
vertera ao catolicismo. Foi nessa época que um corpo, que logo, depois dos vinte anos,
entrou em contato com o movimento sindica­ deixa emagrecer e murchar pelas fadigas,
lista e com as idéias da revolução proletária”. pelas apostas e desafios que lhe impõe: até
Atenta aos sofrimentos dos mais po­ o último desafio, isto é, quando consegue
bres, dividiu seu ganho como professora morrer de inanição na clínica londrina como
com os deserdados. E em 1934 decidiu viver solidariedade real e ideal com os judeus que
a condição operária: começa a trabalhar morrem incinerados nos lager nazistas”. As­
na Renault com a intenção de “participar sim escreve Nazareno Fabbretti em seu livro
da situação dos últimos”. Em 1936 toma Simone Weil: irmã dos escravos, livro que
parte na guerra civil espanhola, do lado dos começa com dois julgamentos sobre Weil,
republicanos, aos quais, todavia, aparece um do filósofo católico Gabriel Mareei e o
como “companheira incômoda” . Por ter-se outro de Charles De Gaulle. Mareei definiu
queimado com óleo fervente, teve de deixar Simone Weil como “testemunha do absolu­
o front. Entrementes, em 1939, estoura a Se­ to”. Charles De Gaulle, então chefe — na
gunda Guerra Mundial. Simone deixa Paris Inglaterra — da Resistência francesa contra
e se transfere para Marselha, onde as alcan­ os alemães, diante do esboço de um projeto
çam as medidas administrativas contra os idealizado por Weil para as enfermeiras na
judeus. No vale do Ródano conhece a dureza primeira linha, desacredita-a sem piedade,
do trabalho agrícola. Escreve também para dizendo: “Esta é louca!”
os “Cahiers du Sud”. E presa sob a acusação
de gaullismo; é interrogada longamente e
recebe a ameaça de ser jogada no cárcere j l l l l E s c r a v id ã o
— “a senhora, professora” — junto com em nome da f o r ç a
as prostitutas. Simone respondeu ao juiz:
“Sempre desejei conhecer esse ambiente, e o e escravidão
único modo de poder nele entrar seria para em nome da riqueza
mim justamente a prisão”. A essas palavras
— escreve padre Perrin — o juiz fez um ace­
no ao secretário para deixá-la em liberdade Em O p o sição e liberdade Simone
como uma louca inócua! Weil escreve: “Jamais o indivíduo foi as­
Dia 16 de março de 1942, junto com sim completamente abandonado a uma
os genitores, Simone Weil embarca para os coletividade cega, nunca os homens foram
Estados Unidos. Também em Nova Iorque mais incapazes, não só de submeter suas
a encontramos entre os mais pobres do Har- ações aos próprios pensamentos, mas até
lem. E sofre por ter abandonado a França. de pensar” . O indivíduo humano parece ter
Quer ir para Londres para se tornar ativa perdido sua humanidade. E a causa desse
da Resistência francesa. E chega a Londres “doloroso estado” é, na opinião de Weil, por
pelo fim de novembro de 1942. Pede para demais evidente: “Vivemos em um mundo
poder ser utilizada em alguma missão peri­ onde nada está na medida do homem; onde
gosa, pois queria sacrificar-se utilmente. Em há uma desproporção monstruosa entre o
abril de 1943 teve de se recuperar em um corpo do homem, seu espírito e as coisas
hospital; daí foi transferida para o sanatório que constituem atualmente os elementos da
de Ashford, onde morre no dia 24 de agosto, vida humana; onde, em uma palavra, tudo é
sempre de 1943. As obras de Simone Weil desequilíbrio”. Impotência e angústia expe­
apareceram postumamente, sob a organiza­ rimentam os homens dentro de uma socieda­
ção do padre J. M. Perrin e G. Thibon, com de que se tornou “máquina para comprimir
o auxílio de A. Camus. coração e espírito e para fabricar a incons­
ciência, a estupidez, a corrupção, a deso­
nestidade e sobretudo a vertigem do caos”.
G a b r i e l N \a r c z e \ Weil vê a história humana como “his­
e íSkarles De C Ã a u lie tória da escravização dos homens”. E são
duas, segundo ela, as formas principais da
julgam S i Weil opressão: “uma, a escravidão ou servidão,
exercida em nome da força armada; a
Filosofa, sindicalista, operária, guerri­ outra, em nome da riqueza transformada
lheira, camponesa, exilada, resistente [Si­ em capital” . E aqui Weil se pergunta se
Capítulo vigésimo segundo - O p e r s o n a lis m o : £ m m a h u e l .AAounier e S im o n e W e il 409

não estaria para cair sobre os homens força opressora? Os movimentos sociais
uma terceira, e totalmente nova, forma de inspirados em Marx estão “todos falidos”,
opressão: “a opressão exercida em nome da diz Weil; e isso ao menos pela razão de
função” , e que é o fruto maduro da divisão terem ignorado “a única idéia preciosa”
do trabalho e das especializações típicas do que se encontra na obra de Marx, ou seja,
capitalismo. o método m aterialista , o instrumento de
Diante de tal situação, Simone Weil análise dos fatos sociais por meio do recurso
apela para uma obrigação eterna: é a obri­ às causas econômicas.
gação para com o ser humano enquanto Se não podemos esperar uma me­
tal. “Existe obrigação para com cada ser lhoria da situação social pela ação dos
humano, pelo único fato de ser um ser hu­ movimentos que se apóiam em Marx,
mano, sem que nenhuma outra condição também não podemos nos enfileirar com
intervenha; e até quando nenhuma outra aqueles revolucionários que esperam, para
lhe seja reconhecida” . Essa obrigação deve um futuro próximo, “uma catástrofe feliz,
ser traduzida no dever preciso de “devolver uma subversão que realize cá embaixo
ao homem, isto é, ao indivíduo, o domínio parte das promessas do Evangelho, dan­
que é sua tarefa exercer sobre a natureza, do-nos finalmente uma sociedade onde os
sobre os instrumentos de trabalho, sobre últimos serão os primeiros” . Tal posição é
a própria sociedade” . É preciso, além fatalismo, desinteresse por quem sofre no
disso, dirigir a atenção sobre a “degra­ momento. Eis, então, que se compreendem
dante divisão do trabalho” em trabalho as razões pelas quais, para Simone Weil,
intelectual e trabalho manual. E mais que “ser revolucionário significa invocar com os
abolir a propriedade privada, esta deve ser próprios desejos e ajudar com as próprias
transformada em instrumento de trabalho ações tudo aquilo que pode, direta ou in­
livre e associado. O homem, em suma, não diretamente, aliviar ou suprimir o peso que
pode ser objeto: ele é sujeito. Afirma Weil: esmaga a massa dos homens, as correntes
“Não esqueçamos que queremos fazer do que envilecem o trabalho, rejeitar as men­
indivíduo, e não da coletividade, o valor tiras por meio das quais se quer mascarar
supremo” . Aqui está a verdadeira revo­ ou desculpar a humilhação sistemática da
lução: tornar o homem fim e não meio da grande maioria deles” . Entendida nestes
produção, e estabelecer que é a produção termos, a revolução é um ideal, um juízo
que deve ser o meio e não o fim: “o traba­ de valor, uma vontade-, e não tanto “uma
lho humano — escreve Weil em Reflexões interpretação da história ou do mecanismo
sobre as causas da liberdade e da opressão social”, mesmo que esta pressuponha um
social — deve se tornar o valor supremo, sério e aprofundado estudo da situação so­
não certamente pela sua relação com aquilo cial. E é também claro que o espírito revo­
que produz, e sim pela sua relação com o lucionário, considerado em tal perspectiva,
homem que o realiza” . “é tão antigo quanto a própria opressão,
e durará o tanto que ela durar, ou melhor,
ainda mais tempo [...]” .
O q u e significa
s e r revolucionários F om os c o lo c a d o s
a o s p es d
dca cru z
Pois bem, para chegar a estas altas
finalidades não é de modo nenhum sufi­
ciente Marx com sua idéia de uma “matéria A libertação da opressão social eqüi­
social” concebida como “máquina apta vale a uma revolução em grau de fazer do
a fabricar o bem” — diz ainda Weil em indivíduo o valor supremo. Esta libertação,
Opressão e liberdade. E acrescenta que “a todavia, não é a salvação do homem, não
matéria social” deixada a si mesma produz é a redenção de sua infelicidade constitu­
outras escravidões, transforma-se em falsa tiva. O infeliz é quem prova a ausência de
e opressiva divindade, entre outras coisas Deus, quem se sente coisa e coisa indigna
desviando o olhar do verdadeiro bem. O no vórtice imenso da grande máquina do
poder é força e se exerce com a força: o universo. E o infeliz caminha à beira de
proletariado no poder não exerceria esse um abismo: está pronto para a perdição,
poder com a força, não seria também ele mas pode tomar o caminho da salvação.
Sexta parte - O p e r s o n a lis m o

A infelicidade é um engenhoso dispositivo


da técnica divina excogitada para “fazer
entrar na alma de uma criatura finita a
imensidade da força cega, brutal e fria. A é um Deus
distância infinita que separa Deus da criatu­ que morre na cruz
ra concentra-se inteiramente em um ponto
para ferir a alma em seu centro” . O infeliz
é quem prova a ausência de Deus, quem A diferença entre o mundo (onde sa­
não vê nenhuma luz em sua vida, nenhum bemos que existe o mal) e Deus (que é bem)
sentido do sofrimento, nenhum escopo no está, na opinião de Weil, no fato de que o
esforço da humanidade. Escreve Weil, em Onipotente é fraco; mas é esta fraqueza que
O am or de D eus, que a alma ferida no exerce sobre ela uma força de arrebatadora
centro pela infelicidade “debate-se como atração. Lemos em Carta a um religioso :
uma borboleta que é espetada viva com “Se o evangelho omitisse qualquer aceno
um alfinete sobre um álbum”. O infeliz está à ressurreição de Cristo, a fé me seria mais
distante de Deus. Mas o próprio Deus no fácil. A cruz apenas me basta. A prova para
ato da criação se distanciou do criado para mim, a coisa verdadeiramente milagrosa,
que este pudesse existir, ser: “A criação é, é a perfeita beleza dos relatos da paixão,
da parte de Deus, um ato não de expansão unidos a alguma página fulgurante de Isaías:
de si, mas de limitação, de renúncia. Deus, ‘Injuriado, maltratado, não abriu a boca’;
com todas as suas criaturas, é algo de me­ e de são Paulo: ‘[...] Tornou-se obediente
nos que Deus sozinho [...]. Deus permitiu até a morte e morte na cruz [...]. Tornou-se
que existissem outras coisas, diferentes dele maldição’. É isso que nos obrigou a crer”. E
[...]. Com o ato criador ele negou a si mes­ se Cristo abdicou a si mesmo, também nós
mo, assim como Cristo nos ordenou para como ele devemos rejeitar a existência que
negarmos a nós mesmos” . Sendo assim, nos foi dada. A realidade é qué Deus, para
afirma Weil, para derrotar a infelicidade, Weil, deve ser pensado como um mendigo:
o homem deve eliminar esta distância em “Perpetuamente, ele mendiga junto a nós
relação a Deus, ou seja, deve realizar o esta existência que nos dá. Ele a dá para
caminho oposto ao da criação: deve pôr mendigá-la” . E a retoma, por exemplo,
em ato uma descriação, deve anular seu ser quando ele ama em nós os desventurados:
algo, destruir seu próprio eu. A anulação “No verdadeiro amor não somos nós que
do eu se tem no sofrimento, na humilhação, amamos os desventurados em Deus, é Deus
no esmagamento repentino, no embruteci- que os ama em nós. Quando estamos na des­
mento dos campos de concentração. Um ventura, é Deus em nós que ama aqueles que
eu que se anula é um eu com-crucificado. nos querem bem. A compaixão e a gratidão
Todavia, sobre a cruz, nessa aparente provêm de Deus, e quando elas são dadas
ausência de Deus, Deus está secretamente por meio de um olhar, Deus está presente no
presente. “A cruz — afirma Simone Weil ponto em que os dois olhares se encontram.
- é nossa pátria” . E é exatamente o grito O desventurado e o outro se amam partindo
de Cristo agonizante sobre a cruz — “Deus de Deus, por meio de Deus, mas não por
meu, por que me abandonaste?” — a fazer amor de Deus; amam-se por amor um do
com que Weil se convença da divindade 'do outro. E como esse amor é algo de impossí­
cristianismo: “As religiões que apresentam vel, apenas Deus pode suscitá-lo”.
uma divindade que exerce seu domínio em A força é o instrumento do poder e
todo lugar que lhe seja possível, são falsas. da violência. Trotski (que Weil hospedou
Mesmo que monoteístas, são idolátricas” . em sua casa) não podia compreender Weil.
É verdade que Simone Weil, além de ser Cristo não é a força-, Cristo é o contrário da
atraída pelo mistério da cruz (“perfeito força; Cristo é um Deus que morre na cruz.
sofrimento” ) é atraída também pelo mis­ E esta fraqueza dele é para Weil o sinal mais
tério da Trindade (“ alegria perfeita” ); indiscutível de sua divindade. BfSglT]
ela, porém, se apressa em dizer que neste
mundo “nós fomos colocados, pela con­
dição humana, infinitamente distantes da
Trindade, aos pés da cruz” . E ainda: “Em Um A
qualquer época, em qualquer país, em todo
lugar onde houver um sofrimento, a cruz Simone Weil recusou o batismo até o
de Cristo é sua verdade” . fim. Padre Perrin diz que Weil em todo caso
Capítulo vigésimo segundo - O p e rso n a li sm o ; E m m a n u e l ^A ounier e S im on e. W e il

se fez batizar, justamente no último instante, freqüentemente”, justamente na Porciúncula


por uma amiga sua, Simone Deitz, com água — confirma Weil — “algo mais forte do que
de torneira, no hospital. E Nazareno Fab- eu me obrigou, pela primeira vez em minha
bretti anota: “Seu breve, intenso, apaixona­ vida, a ajoelhar-me”.
do caminho de vida e de pensamento para Em 1938, em Solesmes, Weil segue as
o absoluto, para Cristo, não por acaso teve cerimônias da paixão. E foi aí que teve pela
a marca de uma radical pobreza de sinais primeira vez a idéia de uma força sobrena­
exteriores: o quarto de uma clínica, a água tural dos sacramentos, e a teve olhando “o
de uma torneira, uma leiga que a batizou” . esplendor verdadeiramente angélico” de
A vida de Simone Weil se consumou que parecia revestido o rosto de um jovem
no amor ao próximo, na expectativa de um inglês depois de ter comungado. Foi esse
aceno da parte de Deus. Na Espera de Deus jovem, o “mensageiro”, que a fez conhecer a
Weil escreve: “Não depende da alma crer na poesia Amor do poeta inglês George Herbert
realidade de Deus, se o próprio Deus não lhe (1593-1633). Pois bem, Weil aprende de cor
revela esta realidade” /Pois bem, em 1935, a poesia; recita-a durante as crises violen­
em uma aldeia portuguesa de pescadores, tas de dor de cabeça: “Acreditava recitá-la
Weil assiste a uma procissão durante a festa apenas como bela poesia, enquanto, sem
do padroeiro. “Lá — conta Weil — me foi saber, aquela recitação tinha a força de uma
impressa para sempre a marca da escravi­ oração. Foi justamente enquanto a recitava
dão, aquela que os romanos imprimiam que Cristo [...] desceu e me tomou [...]. Por
com ferro em brasa sobre a fronte de seus vezes também, enquanto recito o pai-nosso
escravos mais desprezados. Daí por diante ou então em outros momentos, Cristo está
sempre me considerei uma escrava [...]. As presente em pessoa, mas com uma presença
mulheres dos pescadores faziam em pro­ infinitamente mais real, mais tocante, mais
cissão o giro das barcas levando as velas, e clara, mais cheia de amor do que a primei­
cantavam cantos sem dúvida muito antigos, ra vez em que me tomou”. E ainda: “Em
de uma tristeza lancinante. Nada pode dar meus raciocínios sobre a insolubilidade do
uma idéia disso. Jamais ouvi um canto tão problema de Deus eu jamais havia previsto
doloroso, a não ser o dos bateleiros do Vol- esta possibilidade de um contato real, de pes­
ga. Lá, de repente, tive a certeza de que o soa para pessoa, cá embaixo, entre um ser
cristianismo é por excelência a religião dos humano e Deus [...]. Por outra parte, nem os
escravos, que os escravos não podem deixar sentidos nem a imaginação tiveram a mínima
de aderir a ele, e eu com eles” . parte nessa conquista repentina de Cristo;
Em 1937 Simone Weil passa “dois dias apenas senti, por meio do sofrimento, a
maravilhosos” em Assis. E na capela da Por- presença de um amor análogo ao que se lê
ciúncula, onde “são Francisco pregou tão no sorriso de um rosto amado” .
Sexta parte - O p e rso n a li s mo

consciência. flquele que não sabe ver senão as


coisas visíveis jamais conseguirá apoderar-se
M o u n ie r da pessoa, nem mesmo com as palavras, por­
que as palavras são feitas para uma linguagem
impessoal, fl pessoa se anunciará aos outros
como o resíduo vivo de todas as suas análises,
e se revelará quando estiverem mais atentos à
^ 1 Poro uma teoria sua vida interior.
do "pessoa humana" Se definirmos personalidade esse eterno
deslocado que a cada momento é em nós o vi-
cário da pessoa - isto é, um compromisso entre
"Vocação, encarnação e comunhão são o indivíduo, os personagens e as aproximações
as três dim ensões da pessoa''. mais sutis de nossa vocação pessoal - se, em
poucas palavras, definirmos personalidade
como a síntese no presente do trabalho de
Minha pessoa não é a consciência que personalização, minha p essoa nõo coincide
tenho dela. Toda vez que realizo um ato de com minha personalidade. €la está além, além
levantamento de minha consciência, o que des­ da consciência e além do tempo, é unidade
cubro? No mais das vezes, se não me mantiver determinada, não construída, mais vasta do
bem firme, apenas fragmentos efêmeros de que as visões que dela tenho, mais íntima do
individualidade, instáveis como o ar do dia, que as reconstruções por mim tentadas. €la é
Se eu for um pouco além, encontro perso­ uma presença em mim.
nagens que represento, nascidos do casamento Podemos, a p e sa r disso, descrever a
entre meu temperamento e algum capricho pessoa em base ao volume em que se ma­
intelectual,;ou alguma astúcia, ou alguma nifesta essa presença. Não basta imaginá-la
surpresa: personagens que fui no passado e simplesmente sob a forma de um ponto invisível
que sobrevivem por inércia ou por velhacaria: de convergência que esteja além de todas as
personagens que eu acredito ser, porque os suas manifestações, fl pessoa não é um lugar
invejo ou os represento, ou permito que me no espaço, um domínio circunscrito, que pode
modelem conforme queira a moda: personagens ser anexado a outros domínios do homem
que eu gostaria de ser e que me garantem uma que se lhe acrescentam de fora. fl pessoa
boa .consciência unicamente com a presença é o volume total do homem. 6 equilíbrio em
de minha aspiração que reflete sua imagem. comprimento, em largura e em profundidade,
Ora um ora outro me dominam, e nenhum me é é em cada homem uma tensão entre suas três
estranho, porque cada um aprisiona uma chama dimensões espirituais: a que sobe de baixo e
tirada do fogo invisível que queima em mim; a encarna em um corpo; a que se dirige para o
mas cada um é para mim um refúgio contra este alto e a eleva a um universal; a que se dirige
fogo mais secreto que poderia iluminar todos para a amplitude e a leva para uma comunhão.
as suas pequenas vidas. Vocação, encarnação e comunhão são as três
Despojemos os personagens, andemos dim ensões da pessoa.
mais a fundo. Cncontro meus desejos, minhas Minha pessoa é em mim a presença e a
vontades, minhas esperanças, meus anseios. unidade de uma vocação que não tem limites no
Basta isso pora fazer meu eu? Uns, que têm tempo, que me exorta a andar indefinidamente
tão belo aspecto, sobem de baixo. Minhas para além de mim mesmo, e opera, através da
esperanças, minhas vontades me parecem mais matéria que a refrata, uma unificação sempre
parecidas com pequenos sistemas obstinados imperfeita dos elementos que se agitam em
e limitados que se opõem à vida, ao abandono mim e que é preciso sempre recomeçar desde
e ao amor. Minhas ações, nas quais creio final­ o início, fl primeira missão de todo homem é de
mente encontrar-me, são também elas simples descobrir sempre mais este único número que
palavras e as melhores me parecem as mais designa seu lugar e seus deveres na comunhão
estranhas, como se no último momento outras universal, e de dedicar-se a esta obra de reu­
mãos tivessem substituído minhas mãos. nião, de recolhimento das próprias forças.
Tudo acontece, portanto, como se minha Minha pessoa está encarnada. Portanto,
pessoa fosse um centro invisível para o qual jamais pode se libertar completamente, nas
tudo converge; bem ou mal, ela se manifesta condições em que se encontra, da escravidão
por meio de tais sinais como um hóspede se ­ da matéria. Mas não basta: ela não pode se
creto dos mínimos gestos de minha vida, mas levantar a não ser apoiando-se sobre a matéria.
não pode cair diretamente sob o olhar de minha Querer fugir desta lei significa condenar-se de
41
Capitulo vigésimo segundo - O p e r s o n a lis m o : Ê m m a t w e l ;V\ounit5^ e S i m o n e W eil _

antemão ao insucesso; quem quer ser apenas nozes maravilhosas para que delas se sirva
anjo torna-se animal. O problema não está em em caso de necessidade. Cia anda errante
evadir da vida sensível e particular, que se de­ ainda por muito tempo. Cncontra finalmente
senvolve entre as coisas, no seio de sociedades um palácio onde está o príncipe, seu esposo,
limitadas, através dos acontecimentos, mas em sob sua forma humana. Mas ele a esqueceu
transfigurá-la. e está para se casar dentro de alguns dias
Minha pessoa, por fim, não alcança a com outra mulher. Fl princesa, depois de sua
si mesmo a não ser dando-se à comunidade viagem interminável, está em um estado mi­
superior que chama e integra as pessoas in­ serável, coberta de farrapos. Cntra no palácio
dividuais. como empregada de cozinha. Quebra uma das
Os três exercícios essenciais para che­ nozes, e nela encontra uma veste maravilhosa.
gar à formação da pessoa são, portanto: a Oferece a veste à noiva, em troca do privilégio
meditação, para a busca de minha vocação; o de passar uma noite inteira com o príncipe,
empenho, a adesão a uma obra que é reco­ fi noiva hesita, depois, seduzida pela veste,
nhecimento da própria erfcarnação; a renúncia aceita; mas faz com que o príncipe beba um
a si mesmo, que é iniciação ao dom de si e à narcótico que o mantém adormecido a noite
vida para outros. Se a pessoa carecer de um inteira. Cnquanto ele dorme, a empregada,
destes exercícios essenciais, está condenada que é sua verdadeira esposa, mantém-se a
ao insucesso. seu lado e canta sem parar:
£. Mounier,
Revolução personalista e comunitário. Far hae I sought ye, near am I brought
to ye-,
DearDuke o ' Norrouiay, uuill ye return and
. speak to me?

Distante te procurei, fui conduzida a teu


W e il lado,
caro duque de Noruega, queres virar-te e
falar comigo?

Cia canta till her heort uuas like to break,


2 Deus vem a nós and over again like to break, "tão longamente
que seu coração esteve a ponto de se despeda­
despojado de seu poder çar, e ainda a ponto de se despedaçar". Cie não
e de seu esplendor desperta, e pela aurora ela deve deixá-lo. Tudo
isso recomeça uma segunda noite, e depois
uma terceira. Cntão, logo antes do alvorecer,
6/s o núcleo do comentário que Simone
o príncipe desperta, reconhece sua esposa e
UJeil Faz da fábula escocesa do "Duque
manda a outra embora.
de Noruega": "Deus procura o homem com
sofrimento e Fadiga, e chega a ele como
Também esta fábula representa, a meu
mendigo".
ver, a busca da alma por parte de Deus. Tam­
bém esta busca contém os dois momentos
da captura do homem por porte de Deus. O
FAbuia escocesR do "Duçue dé Noruega” primeiro se realiza na noite da inconsciência,
quando a consciência do homem ainda é total­
(Csta fábula encontra-se no folclore russo, mente animal e sua humanidade permanece
alemão etc.) nele escondida: somente Deus quer trazê-la à
luz; o homem foge, desaparece para longe de
Um príncipe (chamado aqui de "duque ou Deus, o esquece e se prepara para uma união
norueguês") tem, de dia, forma animal e, ape­ adúltera com a carne. Deus procura o homem
nas de noite, forma humana. Uma princesa o com sofrimento e fadiga, e chega a ele como
desposa. Certa noite, cansada da situação, ela mendigo. Cie seduz a carne por meio da beleza
destrói a aparência animal de seu marido. Mas e obtém assim acesso à alma, mas encontra-a
então ele desaparece. Deverá procurá-lo. adormecida. Um tempo limitado é concedido à
Procúra-o ininterruptamente, caminhan­ alma para se despertar. Se a alma desperta um
do por bosques e vales. No decorrer de seu átimo antes que esse prazo expire, reconhece
vaguear encontra uma velha que lhe dá três Deus e o escolhe: estará salva.
414
5 z _____ Sexta parte - O personalismo

é mais que um infinitésimo em relação a todo


o conteúdo psicológico da alma. t isso que
indica, também no €vangelho, a comparação
do reino dos céus com o grão de mostarda, o
fermento, a pérola etc., como o gomo de romã
de Prosérpina.
O aspecto miserável da princesa, sua
entrada no palácio em vestes de emprega­
da de cozinha, indica que Deus vem a nós
completamente despojado não só de seu
poder, mas também de seu esplendor. Vem
a nós mascarado, e a salvação consiste em
reconhecê-lo.
Há outro tema de folclore que, sem dú­
vida, tem relação com a mesma verdade; é o
da princesa que parte, acompanhada por uma
escrava, para ir longe a fim de desposar um
príncipe (em certas fábulas, é um príncipe com
seu escravo que vai desposar uma princesa).
No decorrer da viagem um evento a obriga a
trocar de roupa e de trabalho com sua escrava,
e a jurar que jamais revelará sua identidade. O
príncipe se prepara para desposar a escrava,
e só no último instante reconhece sua verda­
deira noiva.
Os dois temas podem também ser con­
siderados como evocadores da paixão. Na
Simone Weil (1909-1943) fábula do "Duque de Noruega”, o caminho
denunciou, em seu breve e apaixonado interminável, desgastante, da esposa legítima,
caminho para Cristo que a faz chegar ao palácio do príncipe em
e mediante uma lúcida análise, condições precárias, descalça, coberta de far­
as profundas injustiças estruturais rapos, convém perfeitamente a esta evocação,
e o vazio espiritual da sociedade contemporânea.
fls palavras "distante te procurei, fui conduzida
a teu lado" adquirem então um significado
lancinante. 6 também as palavras: “€la cantou
tão longamente que seu coração esteve a
O fato de que o príncipe desperte apenas
ponto de se despedaçar, e ainda a ponto de
um átimo antes da terceira e última aurora, indi­ se despedaçar".
ca que no momento decisivo a diferença entre a 5 . Weil,
alma que se salva e aquela que se perde não fl Grécia e as intuições pré-cristõs.
LIBERDADE DO INDIVÍDUO
E TRANSCENDÊNCIA
DIVINA NA REFLEXÃO
FILOSÓFICA HEBRAICA
CONTEMPORÂNEA
■ Buber
■ Lévinas

“Tenho origem exatamente de minha relação com


o Tu; quando eu me torno Eu, então digo Tu”.
Martin Buber

“O termo Eu significa eis-me aqui, respondendo


sobre tudo e sobre todos”.
Emmanuel Lévinas
Capítulo vigésimo terceiro

M artin Buber e o princípio dialógico_________________________ 417

Capítulo vigésimo quarto

Emmanuel Lévinas e a fenomenologia da face do O u tr o _______ 423


íS a p ít u lo v ig é s im o t e r c e ir o

y\Aa^tirv B u b e i '4

e o p r iia c íp io d i a lo 0 Íc o

• Martin Buber (1878-1965) foi aluno, em Berlim, de Simmel e Dilthey. Estudioso


do hassidismo; sustefttador do sionismo entendido como "educação", como ânsia
de conhecimento das próprias raízes, e não tanto como doutrina
política a ser colocada como base deste ou daquele partido; a Por um sionismo
partir de 1938 Buber se transferiu para Israel, onde ensinou so- entendido
ciologia até 1951. Já ultrapassara os oitenta anos, quando teve de como
enfrentar uma intensa campanha antipopular, por causa do fato "educação"
de que manifestou sua contrariedade na execução de Eichmann, ^ 5 1
um dos máximos responsáveis pelo Holocausto.

• A obra filosófica mais conhecida de Buber remonta a 1923, e é O princípio


dialógico.
As palavras-chave do modo de ser do homem são duas: Eu-Tu e Eu-Esse. O Esse
é uma realidade objetivada, é o conjunto dos objetos da ciência e da tecnologia. O
Tu, ao contrário, não é um objeto, mas uma presença que irrompe
em minha vida. E é o Tu que me torna Eu; o Eu se constitui na o Eu
presença do Tu. E se na relação com o Esse, o Eu fala do Esse, na se constitui
relação com o Tu, o Eu fala ao Tu, dialoga com o Tu: a realidade na presença
humana é este diálogo. do Tu
E, em outro plano, encontra-se fora do caminho toda teolo- -Ȥ 2 5
gia que queira ser discurso-sobre-Deus, que queira reduzir Deus
a um objeto de conhecimento, a uma coisa. Mas o Deus-coisa, afirma Buber, é
um Deus falso: "pode-se falar com Deus; não se pode fa lar de Deus".

vida e as obras passa para a de Berlim, onde segue os cursos


de Georg Simmel e Wilhelm Dilthey. De Ber­
lim transferiu-se para Basiléia, e finalmente
Martin Buber nasceu em Viena no dia 8 para Zurique. Com vinte anos, em 1898,
de fevereiro de 1878. Com três anos, depois Buber adere ao movimento sionista, funda­
da separação dos genitores, foi confiado aos do por Theodor Herzl. E no ano seguinte,
avós que viviam em Lemberg (Leópolis), na 1899, delegado ao III Congresso Sionista de
Galícia. Aí ele viveu até a idade de quatorze Basiléia, Buber faz uma declaração na qual,
anos, e sofreu a forte influência do avô Sa- afastando-se das posições de Herzl, propõe
lomon, estudioso da tradição midráxica; e um sionismo como “educação”.
foi sempre em Lemberg que Buber conheceu Para ele o sionismo não é uma doutrina
o hassidismo, isto é, o movimento místico- política que possa sustentar este ou aquele
popular que, embora presente nos séculos partido. Para Buber o sionismo é ânsia de
anteriores em outros países, tinha um notá­ conhecimento das próprias raízes, consciên­
vel seguimento na Europa oriental — Podó- cia da profunda identidade hebraica em
lia, Volínia, Galícia, Ucrânia — a partir do grau de abrir o judeu ao compromisso e ao
século XVIII. Ainda jovem defronta-se com confronto no mundo. Sua idéia política foi
os textos de Pascal, Nietzsche e Kierkegaard. a de que os judeus deveriam em todo lugar
Inscreveu-se na Universidade de Leipzig; daí constituir uma comunidade “na forma de
Sétima parte - y \ re.flexSo filosójico Ki b r a ic a c o n te m p o r â n e a

como uma espécie de manifesto do sionis­


mo antinacionalista. No início da Primeira
Guerra Mundial Buber organiza em Berlim
; ■ Hassidismo. Com este termo (de 1 o comitê nacional para a assistência dos
; hassid, hebraico, que significa "pie- | hebreus das regiões orientais. De 1923 é sua
; doso") indica-se o movimento mís- | obra filosófica de maior relevo: Ich und Du
5 tico-popular judaico que, embora j (Eu e Tu — também chamada de O princípio
i presente em séculos anteriores em 1 dialógico). Em 1925 Buber inicia a tradu­
; outros países, teve influência notável 1 ção da Bíblia em alemão, que o empenhará
5 e amplo seguimento na Europa orien- I
por cerca de quarenta anos. Inicialmente a
? tal - Podólia, Volínia, Galícia, Ucrânia 1
t - a partir do século XVIII. 1 tradução foi obra comum de Buber e Franz
j Na Podólia o movimento foi iniciado § Rosenzweig. Rosenzweig, porém, morreu
i.por Israel ben Eliezer (ca. de 1700- | em 1929, e Buber continuou sozinho até
X 1760), chamado de Baal Shem Tov 1 completar todo o empreendimento, em
[ ("senhor do Nomejbom"). A mística * 1961. Também esse trabalho foi para Buber
f difundida pelo Baal Shem é mística “o exemplo de uma possibilidade de diálogo
í popular, compreensível a homens e 1 entre a cultura alemã e a tradição hebraica”
\ mulheres comuns, e centrada sobre a 1 (P. Ricci Sindoni). E da meditação sobre a
■ figura carismática do çaddiq ("o san- I tradição hebraica nascem livros importantes
[ to" ou "o justo"), que leva consigo os |
como: Kõnigtum Gottes, 1932 (A realeza de
ecadores até a união com Deus.
nfase sobre a salvação pessoal, Deus), Der Glaube der Propbeten, 1942 (A
f apego a Deus em toda ação da vida, fé dos profetas), Moses, 1945 (Moisés). En-
[ oposição à fuga do mundo: são estas trementes, por causa da perseguição nazista,
\ algumas características do hassidismo. . Buber, em 1938, havia deixado a Alemanha
í Existem em nossos dias grupos has- : e se transferira para Jerusalém. Aí ensinou
l sídicos, e o mais conhecido deles é ■ > sociologia até 1951. Dez anos depois,
■ o hassidismo Kabod que, ao lado do : quando já passara dos oitenta anos, Buber
f aspecto especulativo, de modo ne- ; enfrentou forte campanha antipopular, pois
• nhum descurou a atividade educativa ;
■ e social. ?

aj
■ Sionismo. Designa-se com este
estabelecimentos hebraicos na Palestina, \ termo o movimento cultural e políti- 1
que escolhessem como norma própria o l co hebraico, nascido pela metade do :
: século XIX, que tende à volta na e à
diálogo eu-tu, e que contribuíssem com
} reapropriação da terra de Israel, como
os árabes para transformar a mãe-pátria í traços constitutivos da identidade do
comum em uma república na qual ambos • povo judeu. Foi Moses Hess (1812- j
os povos tivessem a possibilidade de livre í 1875) que lançou a idéia de uma volta \
desenvolvimento” (F. Jesi). i à terra de Israel em seu livro Roma e ;
A partir de 1904, depois da ruptura i Jerusalém (1862). :
com Herzl, Buber dedica-se ao estudo do Em todo caso, o sionismo assumiu a |
hassidismo, passando do apreço estético f consistência de um movimento e de ]
dele para uma interpretação religiosa que vê [ um projeto com a obra de Theodor 1
nos textos dos relatos do hassidismo o senso | Herzl (1860-1904) e o primeiro con- ;
f gresso de Basiléia (1897). ;
sagrado da vida. Fruto deste seu intenso
; O projeto sionista se desenvolveu em
interesse são : Die Gescbichten des Rabbi ? mais de uma direção: sionismo "socia-
Nachman, 1906 (As histórias do Rabbi Na- i lista"; sionismo "espiritual"; sionismo ;
chman). Die Legende des B aal Shem, 1908 | "religioso"; sionismo "sintético". O ;
(A lenda do Baal Shem); Ekstatische Kon- j sionismo encontrou a oposição tanto =
fessionen, 1909 (Confissões estáticas)-, D a ­ í no judaísmo assimilado em outras ;
niel: Gesprãche von der Verwicklung, 1913 nações como na ortodoxia que con- ;
(Daniel: diálogos sobre a realização). sidera a diáspora como essencial à
Em 1909, 1910 e 1911 Buber faz três S condição hebraica. j
t ■ :à
discursos na organização hebraica dos estu­ W,r . ;■****, . f
dantes de Praga, discursos que foram vistos
419
Capítulo vigéssimo terceiro - M a r t in Bubet* e o princípio d ia ló g ic o ______

Martin Buber (1878-1965)


é o pensador judaico conhecido
pela elaboração
do “princípio dialógico” .

declarou sua contrariedade pela execução de [...]. Quando se pronuncia o Tu, com isso
Eichmann, um dos máximos responsáveis pronuncia-se também o Eu do par Eu-Tu.
pelo Holocausto. Buber morreu em Jerusa­ Quando se pronuncia o Esse, pronun­
lém no dia 12 de junho de 1965. cia-se também o Eu do par Eu-Esse [...].
Não há um Eu em si, mas apenas o Eu
do par Eu-Tu e o Eu do par Eu-Esse.
■pala das coisas Quando o homem diz ‘Eu’, entende um
mas dialoqa com o Tu desses dois [...]” .
Nesta página fundamental de O princí­
pio dialógico, Buber descreve os dois gêne­
Em O princípio dialógico Martin Bu­ ros de relações típicas da existência humana:
ber escreve: “O modo de ser do homem é dú- a relação com o mundo das coisas e a relação
plice, em cònformidade com o dualismo das com os outros seres humanos. No primeiro
palavras-base, que ele pode pronunciar. caso, na relação com o mundo (o Eu que
As palavras-base não são palavras sin­ se relaciona com o Esse), a pessoa humana
gulares, mas pares de palavras. encontra-se diante de um mundo de coisas,
Uma palavra-base é o par Eu-Tu. de objetos a serem conhecidos, investigados
Outra palavra-base é Eu-Esse; sem experimentalmente, utilizados; o Esse é rea­
mudar esta palavra-base, pode-se substituir lidade objetivada, é o complexo dos objetos
Esse também por Ele e Ela. da ciência e da tecnologia. No segundo caso,
Com isso também o Eu do homem tem na relação Eu-Tu, o Tu não é um objeto, é
duas faces. muito mais uma presença que irrompe em
Porque o Eu da palavra-base Eu-Tu minha vida. E a essência do Eu — afirma
não é o mesmo Eu da palavra-base Eu-Esse Buber — “é fundamentalmente relação com
Sétim a pavtc - /\ rej-lexão filosófica kebraica contem porânea

um Tu” . Um Tu que não é objeto de pesqui­ Buber afirma: “Eu tenho origem exatamente
sas, mas que “vem ao meu encontro”, e se de minha relação com o Tu; quando eu me
impõe a mim como presença. torno Eu, então digo Tu”.

;A d iferen ça Pode-se falar com Deus,


entre a relação "É u -Ê sse” não se pode falar de Deus
e a relação "&u-~Cu"

O Tu é uma presença não-objetivável;


Sobre a diferença existente entre a o Tu não pode se tornar um objeto qualquer
palavra-base “Eu-Esse” e a palavra-base entre outros objetos, um objeto de expe­
“Eu-Tu”, diz ainda Martin Buber: rimentação e de uso. O desaparecimento
“O Eu da palavra-base Eu-Esse aparece do Tu significaria simultaneamente o em-
como uma individualidade e adquire cons­ brutecimento e o desaparecimento do Eu.
ciência de si como sujeito (do experimentar Por isso a existência autêntica é a que está
e do utilizar). empenhada em não desvirtuar e sepultar no
O Eu da palavra-base Eu-Tu aparece mundo do Esse as presenças humanas que
como pessoa e adquire consciência de si se apresentam a seu Eu. Mas no mundo do
como subjetividade (sem um genitivo de­ Esse, no mundo dos objetos — e, portanto,
pendente). nossa presumida posse — Deus é reduzido
A individualidade aparece enquanto se pela teologia. A teologia quer ser discurso-
distingue de outras individualidades. sobre-Deus, conhecimento de Deus; é assim,
A pessoa aparece enquanto entra em então, que por ela Deus se torna objeto-de-
relação com outras pessoas [...]. conhecimento, um Deus-coisa. Pois bem,
A finalidade da relação é [...] o contato Deus reduzido a coisa, a objeto a ser possuí­
com o Tu; pois mediante o contato todo Tu do, não é — sustenta decisivamente Buber
capta um hálito do Tu, isto é, da vida eterna. — o Deus verdadeiro e vivo da Bíblia; não
Quem está na relação participa de é o Deus que nos chama à existência, que
uma realidade, isto é, de um ser, que não nos dá força, que nos envia ao mundo e que
está puramente nele nem puramente fora nos pedirá contas daquilo que fizemos neste
dele. Toda a realidade é um agir do qual eu mundo, de como usamos o tempo que ele
participo sem poder me adaptar a ela. Onde nos concedeu. A relação entre o homem e
não há participação não há realidade. A Deus não é uma relação Eu-Esse, mas uma
participação é tanto mais completa quanto relação Eu-Tu. E é exatamente no Tu eterno
mais imediato é o contato com o Tu”. que convergem e adquirem seu pleno valor
todas as possíveis relações. Diz Buber: “As
linhas das relações, prolongadas, se inter-
4 o Tu que me torna seccionam no eterno Tu. Todo Eu particular
é um canal de observação dirigido ao Tu
eterno. Através de cada Tu particular a pa-
Aqui é necessário salientar que o in­ lavra-base se endereça ao eterno”.
divíduo existe enquanto se distingue de Deus não é objeto; o Deus-coisa é um
outros indivíduos, e que o Eu (a pessoa) se falso Deus. O verdadeiro Deus é o Deus cuja
constitui unicamente entrando em relação presença pede a nós obediência, requer em­
com outras pessoas. É o Tu que me torna penho e garante o significado da existência.
Eu; é na presença do Tu que se constitui o “Pode-se falar com Deus; não se pode falar
Eu, que o Eu toma consciência de não ser de Deus” . E, portanto, “a revelação [...]
aquele Tu com o qual entrou em relação. não é uma comunicação de verdades sobre
E se, na relação com o Esse, o Eu fala do Deus, sobre o homem e sobre o mundo que
Esse, constrói sobre ele teorias e o utiliza; na possa ser cristalizada dogmaticamente ou
relação com o Tu, o eu fala ao Tu, dialoga reatualizada culturalmente; a revelação é
com o Tu: a realidade humana é esse diálogo, um evento, o acontecimento de uma pre­
essa relação. Quem diz Esse, possui; quem sença que não “captura” Deus dentro do
diz Tu, dialoga. O Tu não é um objeto; é mundo do Esse, mas escancara o caminho
sujeito desde o começo. E esse sujeito-Tu é do encontro, da relação entre o Eu e o Tu”
indispensável para que apareça o sujeito-Eu. (P. Ricci Sindoni). j
Capítulo vigésimo terceiro - yvWtin B u b e r e o princípio d ia ló g ic o

Deus e Redentor para mim sempre pareceu um


B uber dado de fato da máxima seriedade, que devo
procurar entender tanto em si mesmo como
para mim. Neste livro está depositado algum
resultado dessa minha vontade de entender.
Minha relação pessoal de abertura fraterna a
Jesus tornou-se sempre mais forte e mais pura,
A Jesus cabe e hoje olho para ele com um olhar mais intenso
um grande lugar na história e mais límpido do que nunca.
da fé de Israel Para mim é mais certo do que nunca que
a Jesus cabe um grande lugar na história da
fé de Israel, e que esse lugar não pode ser
Gs como Martin Buber, importante figura definido com nenhuma das categorias usuais.
do judaísm o, percebe^ o figura de Cristo: Por “história da fé" entendo a história da par­
"Minha relação pessoal de abertura fraterna ticipação humana (de nós conhecida) naquilo
a Jesus tornou-se sem pre mais forte e mais que ocorreu entre Deus e o homem. Por con­
pura, e hoje olho para ele com um olhar mais seguinte, por história da fé de Israel entendo
intenso e mais límpido do que nunca". a história da participação (de nós conhecido)
de Israel naquilo que aconteceu entre Deus e
Israel. Na história da fé de Israel há algo que
Há cerca d e cinqüenta a n o s tornei pode ser conhecido apenas a partir de Israel,
objeto conspícuo de meus estudos o Novo assim como na história da fé do cristianismo há
Testamento, e considero-me um bom leitor algo que pode ser conhecido apenas a partir do
que presta ouvidos sem preconceitos àquilo cristianismo, fl este último “algo" me dediquei
que é dito. apenas com o profundo e imparcial respeito
Desde a juventude percebi Jesus como daquele que ouve a palavra.
um grande irmão meu. O Pato de que o cristia­ M. Buber, Dois tipos de fé:
nismo o tenha considerado e o considere como fé hebraico e fé crístõ.

Jerusalém, a cidade santa dos judeus e cristãos, em uma gravura do século XIV.
.............. -........ ............ ( S a p í+ u lo v i g é s i m o q u a r t o .... ....... ................ .... .

Ê m n \ a n u e l .L é v in a s
e a fe n o m e n o lo g ia d a f a c e d o O u f r o

• Lituano de origem, Emmanuel Lévinas (1905-1995) com 12 anos está na


Ucrânia, onde, adolescente, é testemunha da revolução russa; no fim da década
de 1920 Lévinas está em Friburgo, na Brisgovia, para assistir às aulas de Husserl;
em Friburgo conhece também Heidegger E de um e do outro,
em primeiro lugar tornará conhecido o pensamento na França, A face
onde se estabelecera desde 1923. do Outro
A grande obra de Lévinas Totalidade e infinito sai em 1961, impõe
em grande parte dedicada à fenomenologia da face. responsabilidade
"A relação com a face é imediatamente ética". Com efeito, e justiça
a face do Outro vem ao teu encontro e te diz: "Não matarás". - f 7-5
A face do Outro entra em nosso mundo, é uma "visitação". É
responsabilidade: olha e volta a me olhar, torna-m e imediatamente responsável.
Responsável também do Outro a quem podes fazer mal: daqui nasce a necessidade
do Estado- não basta a caridade, e necessaria tambem a justiça.

lljlj ;A vida e a s o b ra s Husserl et Heidegger, aparecido na “Revue


philosophique de la France et de 1’étranger”.
Lévinas jamais desconheceu sua dívida em
Emmanuel Lévinas nasceu em Kaunas, relação a Heidegger. Todavia, não conseguiu
na Lituânia, em dezembro de 1905. Seu pai perdoar-lhe seu comprometimento com o
era papeleiro e livreiro. Desde muito jovem, nazismo. Dirá Lévinas: “A muitos alemães
portanto, Lévinas teve meios de familiarizar- se pode perdoar, mas há alemães aos quais é
se com os grandes escritores da literatura difícil perdoar. E difícil perdoar Heidegger”.
russa: Dostoiewski, Puskin e Gogol. Com Depois da guerra, Lévinas dirige a
12 anos está na Ucrânia, adolescente e tes­ Escola Normal Israelita Oriental. A partir
temunha da revolução russa. de 1957 Lévinas comenta o Talmud no
Em 1923 Lévinas se transfere para a decorrer dos “Colóquios” dos intelectuais
França; e em Estrasburgo segue os cursos hebreus franceses. Sua grande obra Totalité
de filosofia. Remonta a esse período a et infini (Totalidade e infinito) sai em 1961.
amizade entre Lévinas e Maurice Blanchot. Ensina primeiro na Universidade de Poitiers
Sucessivamente, em 1928-1929, Lévinas e depois, a partir de 1967, na de Nanterre.
dirige-se para Friburgo na Brisgovia para Desde 1973 foi professor na Sorbonne. De
assistir aos cursos de Husserl. Em Friburgo 1974 é Autrement qu’être ou au-delà de
teve meios de conhecer Heidegger. Tanto de Vessence (Diversamente que ser ou para
um como do outro, Lévinas estará entre os além da essência ). De 1982 é De Dieu qui
primeiros a tornar conhecidas as obras e o vient à Vidée (De Deus que vem à idéia).
pensamento na França. Traduz, juntamente Lévinas morreu em 1995.
com a srta. Peiffer, as Meditações cartesianas
de Husserl. Influenciado pelo “rigor radical”
de Husserl, Lévinas não o foi menos por Ser J t ° nd& "QSCe °
e tempo de Heidegger. E o primeiro estudo
em francês sobre Heidegger é justamente A Tbéorie de Vintuition aans ia phéno-
de Lévinas: En découvrant Vexistence avec ménologie de Husserl (Teoria da intuição na
Sétima parte - r e fle x ã o filo só fica k e b r a ic a co n ffii^ p o ^ â n e a

fenomenologia de Husserl) é de 1932. Este é horror do vazio” (S. Malka). E o existente


o primeiro livro francês que faz referência à sai da existência, o “sensato” nasce não da
obra de Husserl. A fenomenologia oferece, angústia — como quer Heidegger — mas
na opinião de Lévinas, “um método para a muito mais quebrando a neutralidade do
filosofia” . É uma reflexão sobre si mesmos ser. O ser, a realidade, é puro não-sentido;
que quer ser radical: “Ela não leva em conta quem tem sentido e quem dá sentido é o
apenas aquilo que a consciência espontâ­ existente, o homem. E o existente destaca-se
nea intenciona, mas pesquisa tudo aquilo de uma realidade amorfa, rompe com o ily a
que foi dissimulado na mira do objeto. Na que é o ser — aquilo que existe — mudo de
fenomenologia [...] o objeto é restituído a significado, apenas na relação inter-humana,
seu mundo e a todas as intenções esquecidas unicamente na “epifania” da face do Outro.
pelo pensamento que nele se imergia, segun­
do um modo de pensar concreto” .
De Vexistence à Vexistant é publicado
face do Outro
apenas depois da guerra, em 1947. Com o
cenário do pensamento de Heidegger, Lévi­ nos vem ao encontro
nas analisa a noção de il y a {há, existe) e e nos diz: "~Vu não matarás"
mostra como um existente surge e emerge da
existência neutra, anônima, impessoal. O il y
a , escreve Lévinas, é o ser em geral. O ily a A face do Outro não é um objeto de um
é “experiência do não-sentido; ou, melhor, a pensamento pelo qual o Outro é um dado;
experiência do ser como não-sentido, como não é um objeto capturável por uma ver­
não sendo o ser de nenhuma coisa; em um dade concebida como adequação. O Outro

Emmanuel Lévinas (1905-1995)


é o primeiro filósofo
que tornou conhecido na França
o pensamento
de Husserl e Heidegger,
e depois aprofundou
a relação ética inter-humana.
Capítulo vigésimo quarto - É m m n m e I L é v in a s e a fe n o m e n o lo g ia d a f a c e d o O u t r o

não é um “dado” que é agarrado, como se pensamento de Lévinas, como a estrutura


pudéssemos estender as mãos sobre ele. O originária do sujeito. Desde o início, “o Es­
Outro se impõe com sua irredutível alteri- tranho que ‘não concebi nem dei à luz’, já o
dade: o Outro me olha e se refere a mim, e tenho nos braços”. E minha responsabilidade
se desfaz da idéia que dele tenho em mente. em relação ao Outro chega até o ponto que
Escreve Lévinas em Totalidade e infinito eu me deva sentir responsável também pela
— uma obra em grande parte dedicada à responsabilidade dos outros. E isso comporta
fenomenologia da face — : “Nós chamamos a construção das instituições e também do Es­
de face o modo com o qual se apresenta tado. Com efeito, escreve Lévinas, “o Outro
o Outro, que supera a idéia do Outro em pelo qual sou responsável pode ser o algoz de
mim. Este modo não consiste em assumir, um terceiro que também é meu Outro”. Da­
diante de meu olhar, a figura de um tema, qui a necessidade de uma justiça e, portanto,
em mostrar-se como um conjunto de quali­ das instituições e do Estado. Disse Lévinas
dades que formam uma imagem. A face do em uma entrevista: “Se tivéssemos existido
Outro destrói a cada instante e ultrapassa em dois, na história do mundo teríamos pa­
a imagem plástica que ele me deixa”. Uma rado na idéia de responsabilidade. Mas, do
imagem, como na foto, vive sempre em um momento em que nos encontramos em três,
contexto. A face do Outro tem significado põe-se o problema da relação entre o segundo
por si mesma, impõe-se para além do con­ e o terceiro. À caridade inicial se acrescenta
texto físico e social: “A face é significação e uma preocupação de justiça e, portanto, a
significação sem contexto”. O Outro “não é exigência do Estado, da política. A justiça é
uma personagem no contexto”. Em poucas uma caridade mais completa”. ÍSSÊSÍT]
palavras: o sentido da face não consiste na
relação com alguma outra coisa: “ [...] a
face é sentido apenas para si. Tu és tu”. E 5 Quando o d u
assim, comenta Lévinas, “pode-se dizer que é refém do Outro
a face não é ‘vista’. Ela é aquilo que não
pode se tornar um conteúdo captável pelo
pensamento; é o incontível, e te leva para o Em Diversamente que ser ou para além
além” . A face do Outro sai do anonimato da essência Lévinas chega a ver na respon­
do ser. E faz sair de tal anonimato. sabilidade pelo Outro “uma designação a
E isso porque “a relação com a face é responder pelo Outro, uma expiação pelo
imediatamente ética”. A face do Outro vem Outro, uma substituição do Outro” . A
ao teu encontro e te diz: “Tu não matarás”. esse respeito, Lévinas afirma: “O sujeito é
Sem dúvida, apesar da proibição, pode ha­ refém”. E pouco mais adiante: “O termo
ver o assassínio, mas a malignidade do mal Eu significa eis-me aqui, respondendo por
reaparecerá nos remorsos da consciência tudo e por todos” . E é apenas por meio
do assassino. da condição de refém — escreve Lévinas
— que no mundo pode haver “piedade,
compreensão, perdão e proximidade” . E
«afã» ^ Outro me olKa por trás dessa posição ética, na opinião de
e se refere a mim Lévinas, está Deus: Deus está como inspira­
ção, embora não como desvelamento de si
mesmo. Salomon Malka comenta este ponto
A face do Outro entra em nosso mun­ da seguinte forma: “Deus — ou a palavra
do; ela é uma “visitação”; é responsabili­ de Deus — vem-me à idéia concretamente,
dade: ela me olha e se refere a mim. A face diante da face do outro homem em que leio
de Outro me impõe uma atitude ética: “é o o mandamento Tu não matarás. A proibição
pobre pelo qual posso tudo e ao qual devo escrita sobre a face não pode ser considera­
tudo” . E assim que a face se subtrai à posse; da como uma prova da existência de Deus.
a face do Outro — afirma Lévinas — “me Mas é a circunstância em que a palavra de
fala e me convida a uma relação que não tem Deus adquire sentido”. Lévinas continua:
medida comum com um poder que se exerce, “Eu não gostaria de definir nada por meiç
ainda que fosse prazer ou conhecimento” . de Deus, uma vez que conheço o humano. E
A face do Outro, portanto, me co-en- Deus que posso definir por meio das relações
volve, me põe em questão, torna-me ime­ humanas, e não o contrário”. Em Lévinas,
diatamente responsável. A responsabilidade a ética torna-se vigia de um Deus presente
na relação com o Outro se configura, no e inatingível, próximo e diferente.
Setiftlã p ã fte - ;A reflexão filosófica kebraica CLOY\+e.mporc\Y\e.a

Pergunta: fl relação Outros (Outrem) -Deus


constitui um elemento central de sua filosofia;
L é v in a s com insistência o senhor afirma que Outros não
é Deus, não é a imagem de Deus, não é Seu
ícone etc. Todavia, "Outros é justamente o lugar
da verdade metafísica, indispensável à minha

D O Outro nõo pode relação com Deus". Poderia esclarecer mais uma
vez o tipo de ligação que existe a seu ver entre
nos deixar indiferentes Outros e Deus e precisar esta afirmação: "Não é
uma metáfora: nos outros há uma presença real
de Deus [...]. Não é uma metáfora, não é apenas
€m d iá lo g o com Emmanuel Lévinas: uma coisa extremamente importante: é literalmen­
"a responsabilidade não é cedível, e é na te verdadeiro. Não digo que outros seja Deus,
responsabilidade que sou chamado como mas em seu Rosto eu sinto a palavra de Deus"?
único". r Resposta: Quando digo que não é metá­
fora pretendo dizer que não é uma metáfora de
simples semelhança; na realidade o literalmente
Pergunto: Cm uma entrevisto o senhor afir­ verdadeiro, o ser verdadeiro literalmente é outra
mou: "fl responsabilidade é uma individuação, metáfora! Outros não só é o próprio lugar de
um princípio de individuação. Cm relação ao fa­ minha relação com Deus, mas essa relaçãol
moso problema 'o homem se individua por meio Pergunta: Cm seus escritos mais recen­
da matéria ou por meio da forma?', eu afirmo tes, um tema parece assumir sempre mais
a individuação por meio da responsabilidade importância, o da Curopa e da Curopa cuja
por outros". Poderia precisar esta sua afirmação "herança bíblica implica a necessidade da he­
interessante? rança grega". Poderia precisar o sentido de tal
Resposta: Trata-se da individuação dos implicação que não depende, como o senhor
outros na unicidade do "amado", que é "único mesmo afirma, de "simples confluência de duas
em seu gênero"; individuação, por outro lado, correntes culturais"?
do eu responsável em sua não-intercambiabi- Resposta: C o tema da aparição do tercei­
Iidade de responsável que é uma “escolha", ro-, o "primeiro a vir" para mim e para o outro seria
fl responsabilidade não é cedível e é na res­ também o terceiro que nos reúne e que sempre
ponsabilidade que sou chamado como único. nos acompanha. O terceiro é também o meu
[...] Mas este proceder junto não é a unidade outro, o terceiro é também o meu próximo. Onde
de um gênero, mas a Não-ln-Diferença própria está a prioridade? é necessária uma decisão, fl
da alteridade (como, talvez, é a diacronia do Bíblia pede justiça e deliberação! Do seio do
tempo). amor, do seio da misericórdia, é preciso julgar
Pergunta: Cm seus escritos é possível e concluir: é necessário um saber, é necessário
encontrar várias vezes o termo "criação"; ele verificar, é necessária a ciência objetiva e o
parece intervir principalmente onde se trata de sistema. C preciso reunir os únicos do amor, exte­
esclarecer a idéia-chave de uma passividade riores a todo gênero, ò comunidade e ao mundo.
do sujeito mais passiva do que qualquer outra Primeiras violências na misericórdia! C preciso,
passividade, passividade irrecuperável, apesar por meio do amor do único, renunciar ao único,
de não ser simplesmente um defeito ou uma é necessário que a humanidade do Humano en­
negação. Qual função ocupa tal termo dentro contre um novo lugar no horizonte do Universal.
de sua reflexão? Instruir-se junto aos gregos e aprender seu verbo
Resposta: fl passividade do Cu, que não e sua sabedoria. O grego, inevitável discurso
é o Sujeito transcendental operante na síntese, da Curopa que a própria Bíblia recomenda.
não é, todavia, em sua humanidade, fraqueza C. Lévinas, Colóquio,
descurável, mas sacrifício "criador" "que oferece 5 . Petrosino e J. Rolland (orgs.),
mais do que aquilo que possui". em De Deus que vem à idéia.
O MARXISMO
DEPOIS DE MARX
E A ESCOLA
DE FRANKFURT

“Todo ser finito - e a humanidade é finita que se


-

pavoneia como o valor último, supremo e único,


torna-se um ídolo, que tem sede de sacrifícios de
sangue”.
Max Horkheimer

“Nem sequer o advento definitivo da liberdade


pode redimir aqueles que morrem sofrendo”.
Herbert Marcuse

“O que importa é aprender a esperar”.


Ernst Bloch
Capítulo vigésimo quinto

O m arxism o depois de M arx

Capítulo vigésimo sexto

A Escola de Frankfurt
íS a p ít u lo v ig é s im o q u in t o

O m a r x i s m o

d e p o is d e

. O '' Vevisiom sm o^do Veform is+a^


E d u a r d S e m s + e in

• A Primeira Internacional fora fundada por Marx em 1864; ela terminou


oficialmente com o Congresso de Filadélfia de 1876.
A Segunda Internacional cobre os anos que vão de 1889 a 1917: ela é guiada
substancialmente pela social-democracia alemã, cujo ideólogo reconhecido é Karl
Kautsky. No Congresso de Londres (1896) a Internacional decidiu a expulsão dos
anarquistas; e no Congresso de Amsterdam (1904) condena-se o
revisionismo de Eduard Bernstein. A Primeira,
Com a Primeira Guerra Mundial a Internacional mostrou a Segunda
todas as suas fraquezas, enquanto os partidos socialistas foram e a Terceira
incapazes de criar solidariedade de classe entre os trabalhadores Internacional
das diversas nações; e a guerra estourou também com a aprova­ *§ 1
ção, ou a neutralidade, de diversos partidos socialistas.
Em 1919 houve a repressão feita pelo partido social-democrata alemão, então
no governo, contra a revolução armada da esquerda socialista chefiada por Karl
Liebknecht e Rosa de Luxemburgo.
A Terceira Internacional foi fundada em 1919 e teve como partido-guia o
partido bolchevista (que havia levado a term o a revolução vitoriosa na Rússia) e
como doutrina de fundo a dialética.

• O "revisionismo" é um term o ligado principalmente à doutrina de Eduard


Bernstein (1850-1932). Em 1888 Bernstein está em Londres; e na Inglaterra ele
se liga em amizade com Friedrich Engels; e foi justamente a Bernstein e não a
Kautsky que Engels - falecido em 1895 - confiou os cuidados por
suas obras póstumas. Por que
No entanto, entre 1896 e 1898 Bernstein critica em uma série para Bernstein
de artigos aparecidos em "Tempo novo" ("Die neue Zeit") a or­ é urgente
todoxia marxista aceita pelo partido social-democrata, e começa "rever"
a defender a política reformista. a teoria de Marx
Bernstein percebera lucidamente que a história havia invali­ - § 2
dado a teoria marxista com claros fatos que haviam contradito as
previsões feitas por Marx a respeito do crescente pauperismo, da proletarização da
classe média, do acirramento de conflitos de classe, das crises econômicas repetidas,
do "desmoronamento" inevitável do capitalismo etc. Tudo isso tornava urgente
uma "revisão" da teoria marxista, o que Bernstein faz de modo sistemático com
o volume: Os pressupostos do socialismo e as tarefas da social-democracia (1889).

• Bernstein rejeita em primeiro lugar a concepção dialética da história: esta


"é o elemento falso da doutrina marxista"; e o é porque com ela Marx e Engels
Oitava parte - O m a ^ i s m o d e p o is d e ]\A c \r x e a E s c o l a d e T^ankfu^t

contrabandearam como uma necessidade histórica aquilo que era um valor a


buscar, um ideal de justiça e de igualdade. Rejeita como "cultura inferior" e como
"atavismo político" a ditadura do proletariado. Também não é
Reformas verdade que o Estado seja necessariamente órgão de opressão
e não e administrador dos interesses dos capitalistas; as lutas dos tra-
revolução balhadores, dentro das regras democráticas, levaram a reformas
§ 3~4 importantes das instituições e mais justiça, sem revolução e sem
derramamento de sangue. Reformas e não revolução: este é o
núcleo central da concepção política de Bernstein, que está persuadido de que "a
democracia é a alta escola do compromisso".

J L y \ Primeira, a Segunda os partidos socialistas, diante da ameaça


flHNHK ~. ~| I de guerra, a procurar impedi-la por todos
e aX erceira internacional
os meios e, se a guerra se desencadeasse, a
interferir com o objetivo de fazê-la terminar
A Primeira Internacional fora fundada o mais rápido possível. Entretanto, com
por Marx em 1864. Depois do insucesso da a aproximação da Guerra de 1914/1918,
Comuna de Paris, ela entrou em crise e, de a Segunda Internacional comprovou suas
fato, deixou de existir depois do Congresso fraquezas, visto que os partidos socialistas
de Haia (2-7 de setembro de 1872), ainda foram incapazes de pôr a solidariedade de
que, oficialmente, só tenha cessado suas classe entre os trabalhadores dos diversos
atividades com o Congresso de Filadélfia países acima dos “interesses” nacionais. E
de 1876. a guerra explodiu também com a aprova­
Com a Segunda Internacional (1889­ ção ou, pelo menos, com a neutralidade de
1917), a função de guia do movimento muitos partidos socialistas. A isso se devem
operário internacional foi assumida pela debitar as razões do fim (1917) da Segunda
social-democracia alemã, cujo ideólogo Internacional. Depois, em 1919, houve a
reconhecido é Karl Kautsky. No primeiro repressão desencadeada pelo partido so-
Congresso da Segunda Internacional, que cial-democrata alemão, então no governo,
se realizou em Bruxelas em agosto de 1891, contra a revolução armada da esquerda
foram apresentadas propostas para alcançar socialista, liderada por Karl Liebknecht e
objetivos como a jornada de trabalho de oito Rosa de Luxemburgo.
horas, adequada legislação trabalhista ou da Até aí, a evolução do ponto de vista
luta pela paz que deveriam ser desenvolvidas político. Na perspectiva da história das
pelos partidos socialistas. No Congresso de idéias, a Segunda Internacional apresenta
Londres, de 1896, a Internacional decidiu interpretações do marxismo que, enquanto
expulsar os anarquistas da organização e, se distanciam dos temas hegelianos do pró­
no Congresso de Amsterdam (1904), foi o prio marxismo, lêem essa doutrina mediante
revisionismo (Bernstein) a ser condenado. as categorias do positivismo e/ou mediante
Este foi um momento central da história do o ponto de vista da teoria evolucionista, ou
socialismo, já que assinala um dos primeiros então tentam “revê-lo” e “revisá-lo” a partir
atos do confronto que não mais cessaria da perspectiva e por meio dos instrumentos
entre a alma reformista e a alma totalitária conceituais do neokantismo.
do movimento operário que se reconhece na Com o nascimento da Terceira Inter­
“tradição” marxista. Outro Congresso de nacional (fundada em 1919, tendo como
grande relevo foi o sexto, que se realizou em partido-guia o partido bolchevique, que
Stuttgart em agosto de 1907, no qual, depois liderou a revolução vitoriosa na Rússia),
da falência da revolução russa de 1905, fo­ procurou-se superar essas orientações de in­
ram discutidos os problemas do militarismo terpretação com a releitura de Marx efetua­
e do colonialismo, a questão da greve geral da na ótica de Hegel. A conseqüência foi que
e o problema da atitude que os partidos so­ a temática da dialética voltou ao primeiro
cialistas deveriam assumir diante de eventual plano, em luta renhida contra as infiltrações
conflito. A propósito deste último ponto, positivistas, darwinianas, neokantianas e.
aprovou-se uma decisão que comprometia empiriocriticistas na “genuína” tradição
Cãpítulo Vigésimo quinto - O m a r x i s m o d e p o is d e ;V\í.:u'x

hegeliano-marxista. O advento do nazismo mento e foram desmentidas pela história:


e do fascismo, a Segunda Guerra Mundial, a “ O agravamento da situação econômica
posterior divisão política do mundo em dois não se realizou do modo representado pelo
blocos (pacto de Yalta) e as mais recentes Manifesto. Esconder isto não só é inútil, mas
vicissitudes sociopolíticas, como veremos, também verdadeira loucura. O número dos
assinalariam os desenvolvimentos do pen­ proprietários não diminuiu, e sim aumentou.
samento marxista. O enorme aumento da riqueza social não
foi acompanhado pela diminuição numérica
dos magnatas do capital, mas pelo aumento
íS d u a r d B erns+ ei n do número de capitalistas de todos os tipos.
e as razoes Os segmentos intermediários mudam suas
características, mas não desaparecem do
da falência do marxismo quadro social. Do ponto de vista político,
vemos que os privilégios da burguesia ca­
pitalista cederam gradualmente espaço às
O reformismo já aparecera no interior instituições democráticas em todos os países
do movimento operário social democrático desenvolvidos. Sob a influência destas e sob
desde quando se constituíra. E havia pro­ o impulso da agitação sempre mais vigorosa
vocado a crítica raivosa de Marx e Engels. do movimento operário, produziu-se uma
Entretanto, após a morte de Marx e Engels, reação social contra as tendências explo­
tem-se o desenvolvimento propriamente dito radoras do capital, que hoje, na verdade,
do reformismo com Eduard Bernstein (1850­ avança ainda muito timidamente e tateando,
1932). Depois de algumas experiências po­ mas continua existindo e atrai para sua área
líticas efetuadas no âmbito da democracia de influência setores sempre mais vastos
social, Bernstein emigrou para Londres em da vida econômica” . A história, portanto,
1888, onde viveu em estreita amizade com invalidou a teoria marxista, contradizendo
Engels até a morte deste, em 1895. E foi a suas previsões com os fatos: pauperismo
Bernstein e não a Kautsky que Engels con­ crescente, proletarização da classe média,
fiou a edição de suas obras póstumas. Berns­ aguçamento dos conflitos de classe, crises
tein só pôde voltar à Alemanha em 1901. econômicas repetidas, “derrocada” inevitá­
Mas, nesse meio tempo, sua permanência vel do capitalismo, e assim por diante. Para
na Inglaterra indubitavelmente influíra em Bernstein, a realidade é que o marxismo está
seu amadurecimento político e filosófico. dilacerado por insolúvel dualismo entre “a
Tanto é verdade que, entre 1896 e 1898, em influência determinante da economia sobre o
uma série de artigos publicados em “Novo poder político e uma verdadeira fé milagrosa
Tempo” (“Die neue Zeit” ), ele criticou a na virtude do poder político”.
ortodoxia marxista aceita sem discussão
pelo partido social-democrata, e se alinhou
em defesa da política reformista que os so- 3 Confra a Vevolução*
ciais-democratas já praticavam há tempo.
O trabalho em que Bernstein articulou de e a^di+adura
modo sistemático seu “reformismo ” foi Os do proletariado//
pressupostos do socialismo e as tarefas da
democracia social (1889). Suas concepções
reformistas, que “reviam” e corrigiam teses Bernstein rejeita, em primeiro lugar,
centrais do marxismo, foram precisamente a dialética (“o elemento falso da doutrina
chamadas com o nome de “revisionismo”. marxista, a insídia que macula toda consi­
E, com o acirramento da polêmica entre deração coerente das coisas” ). E a rejeita
“ ortodoxos” e “revisionistas”, Bernstein porque, com ela, Marx e Engels contraban­
acabou se tornando o símbolo do revisio­ dearam como necessidade histórica aquilo
nismo e do reformismo. Bernstein foi um que, ao contrário, era valor ideal, ou seja,
homem corajoso que, com lucidez sem igual, sua exigência de justiça e igualdade.
viu já então os pontos fracos do marxismo Bernstein também rejeita a ditadura
e soube extrair de suas críticas as devidas do proletariado: “A ditadura de classe per­
conseqüências. tence a uma cultura inferior e, prescindindo
Antes de mais nada, Bernstein mostra da utilidade e da viabilidade das coisas, o
que as previsões centrais feitas pela teoria surgimento da idéia de que a superação da
marxista revelaram-se privadas de funda­ sociedade capitalista pela sociedade socia­
Oitava parte - O m a ^ i s m o d e p o is d e f\A a v *x e a E s c o l a d e F rank furt

lista deva necessariamente se verificar nas são valores morais, em detrimento de uma
formas de desenvolvimento de uma época visão realista das situações e do mais sério
que ainda não conhecia de modo nenhum, compromisso ético. No plano da prática, a
ou somente de forma muito incompleta, os “revisão” da filosofia marxista por Berns­
métodos atuais de propagação e de obtenção tein leva-o à defesa coerente da política
das leis e carecia dos órgãos adequados para reformista.
esse fim, deve ser considerado somente como Reformas e não revolução. Reformas
recaída, ou seja, como atavismo político” . no interior de um Estado regulado pelas
A ditadura do proletariado, em suma, é instituições democráticas: “A democracia é
idéia que, na opinião de Bernstein, baseia-se início e fim ao mesmo tempo. Ela é o meio
em análise radicalmente errada da situação. para impor o socialismo e é forma de rea­
O Estado não é somente órgão de opressão lização do socialismo [...]. Em princípio,
e administrador delegado dos proprietários. a democracia é supressão do domínio de
Apresentá-lo sob essa ótica é o único cami­ classe, embora não seja ainda a supressão
nho de todos os elucübradores de sistemas efetiva das classes [...]. A democracia é a
anárquicos. O Estado não é necessariamente alta escola do compromisso” .
um instrumento de espoliação. Ele, sob o E, para Bernstein, “compromisso” não
impulso das lutas operárias, conheceu uma significa “a sujeira do oportunismo”, já
autêntica metamorfose. que “luta de classes e compromisso são tão
pouco antíteses absolutas quanto a estática
e a dinâmica ; são formas do movimento e o
próprio movimento é eterno”. O marxista
A democmcia como ortodoxo pensa em uma sociedade perfeita,
"o\\a escola acredita ter identificado “o objetivo final do
do compromisso” socialismo” e pensa assim realizar o paraíso
na terra, o melhor dos mundos possíveis. Já
o revisionista enfrenta os problemas reais,
Assim, no plano teórico, a filosofia e seu objetivo é o de fazer da sociedade em
marxista foi ao encontro dos mais severos que lhe cabe viver uma sociedade melhor,
desmentidos da história; tem dentro de si mais justa, mais culta, mais livre, e essa
componentes metafísicos e míticos, como a tarefa não tem fim.
dialética, que é preciso eliminar, ao menos O marxista ortodoxo é um totalitário,
para que não se chegue à deletéria confusão o revisionista é um reformista democrático.
dos fatos econômicos e sociais com os que E E E
Capítulo vigésimo quinto - O m a rx ism o d e p o is d e M a r x

II. O deba+e sob^e. o /Vefok4m ism o/

• Líder importante da Segunda Internacional, Karl Kautsky (1854-1938) foi


um decidido crítico do reformismo, e contra Bernstein pretendeu reforçar - por
meio de um determinismo evolucionista em campo social - a
tese marxista a respeito da inevitável queda do capitalismo. Isso Kaustky:
mesmo que o próprio Kautsky tenha sido obrigado a admitir, a critico do
respeito da relação entre estrutura e superestrutura, que "elas se reformismo
condicionam m utuam ente em interação continua". e também
Kautsky corrigiu também outro ponto fundam ental do mar­ da ortodoxia
xismo: mais que falar de desenvolvimento dialético, ele insistiu -»S r
sobre a interação entre o organismo e o ambiente.
Depois da conquista do poder na Rússia por parte dos bolcheulques, Kautsky
os combateu porque haviam pisoteado os princípios socialistas para manter-se no
poder. Lênin não tardou a atacar o "renegado" Kautsky.

• Contrária a Bernstein e a todo tipo de reformismo, crítica


em relação ao fatalismo evolucionista de Kautsky, Rosa de Lu­ Luxemburgo:
xemburgo (1870 ou 1871-1919) é autora de A acumulação do o socialismo
capital (1913), obra entendida como contribuição à crítica do é fru to
imperialismo. do proletariado
Para Luxemburgo o socialismo não é de modo nenhum uma ine­ organizado
lutável saída do desenvolvimento da história; é muito mais uma ten­ e consciente
-^§2
dência dentro deste desenvolvimento, tendência que poderá ser reali­
zada apenas pela ação de um proletariado organizado e consciente.
Em 1914, Rosa de Luxemburgo participou na fundação do Spartakus-Bund,
do qual nasceu o partido comunista alemão. Foi assassinada, junto com Karl
Liebknecht, no dia 15 de janeiro de 1919.

Karl KawfsUy ta de novos mercados através da expansão


colonial confirmam as previsões de Marx
e a ^or+odoxia”
sobre o aguçamento da crise econômica e
a necessidade histórica da passagem para a
Os ortodoxos tiveram em Karl Kautsky revolução. Kautsky chega até a enrijecer a
(1854-1938) um líder de grande prestígio na tese marxista da derrocada inevitável do ca­
crítica às teses do reformismo. Nascido em pitalismo e da inelutabilidade da revolução,
Praga em 1854, Kautsky estudou história e defendendo o determinismo evolucionista
ciências naturais em Viena. Depois transferiu- no campo social. Mas, para realizar essa
se para Zurique, onde foi redator do “Sozial- operação, Kautsky é obrigado a “rever” e
demokrat”. Em 1881, teve ocasião de visitar rejeitar alguns pontos fundamentais da teo­
Marx em Londres. E, em 1883, assumiu a di­ ria marxista. Assim, a propósito da relação
reção da “Die neue Zeit” (“Tempo Novo”), entre estrutura e superestrutura, ele dirá que
a recém-fundada revista teórica do partido “não podemos nos limitar à simples afirma­
social-democrata alemão. Foi ele quem re­ ção de que na estrutura há somente coisas
digiu a parte teórica do Programa de Erfurt materiais e na superestrutura só pensamen­
(1891). Seu comentário a esse novo progra­ tos e sentimentos. Não se pode negligenciar
ma do partido social-democrata constituiu em ambos os setores os objetos materiais
um verdadeiro catecismo para os simpati­ nem a atividade espiritual. Há mais, porém.
zantes e militantes da Segunda Internacional. Com efeito, não se pode sequer dizer que es­
Contra Bernstein, Kautsky (que, ante­ trutura e superestrutura estejam sempre em
riormente, colaborara com Bernstein) rea­ relação de causa e efeito-, ao contrário, elas
firmou a teoria marxista, e observou que o se condicionam uma à outra em interação
desenvolvimento do capitalismo e a conquis­ contínua".
434 .
... . O it ã V ã p ã f t C - O m a rx ism o d e p o is d e ]\Ac\ry< e a (E sc o la d e T^ankfuH"

Essa, portanto, é a revisão que Kautsky em 15 de janeiro de 1919, juntamente com


realiza do materialismo histórico. E a pro­ Karl Liebknecht.
pósito da dialética, Kautsky afirmará que, Contrária a Bernstein e a todo gêne­
“para a aplicação materialista (do esquema ro de reformismo, Rosa de Luxemburgo
dialético hegeliano), não se deve apenas também tinha posição crítica em relação
repô-lo de pé, mas também é necessário mu­ ao fatalismo evolucionista de Kautsky. Em
dar inteiramente o caminho trilhado pelos sua opinião, o socialismo não é resultado
pés” . Não mais desenvolvimento dialético, inelutável do desenvolvimento da história,
e sim interação entre organismo e ambiente: mas muito mais uma tendência no interior
nisso consiste o naturalismo de Kautsky ou, desse desenvolvimento, tendência que so­
se preferirmos, seu darwinismo social. mente a ação de um proletariado organizado
Depois da conquista do poder na Rús­ e consciente pode levar à realização.
sia pelos bolcheviques, Kautsky pôs-se a Com o desencadeamento da guerra, em
combater Lênin, suas idéias e as realizações 1914, Rosa de Luxemburgo ficou contra a
do bolchevismo (e Lêriin apressou-se logo posição dos socialistas em relação à questão
a atacar o “renegado” Kautsky). Kautsky da guerra, denunciou o “patriotismo social”
combatia os bolcheviques pelo fato de que da democracia social, e lançou um apelo
“eles se mantiveram no poder somente re­ em favor de manifestações revolucionárias
trocedendo um passo depois do outro, para em todos os países contra a guerra e contra
finalmente chegar ao pólo oposto daquele o sistema que deseja e alimenta a guerra.
que haviam pretendido alcançar. Para chegar Posteriormente, em um primeiro momento
ao poder começaram por lançar ao mar seus saudou com entusiasmo a Revolução de
princípios democráticos. E depois, para se Outubro. Depois, porém, escreveu aguda
manterem no poder, fizeram o mesmo com crítica em relação à teoria e à prática do
seus princípios socialistas” . Na opinião de bolchevismo, crítica que se configurou como
Kautsky, os bolcheviques sacrificaram seus autêntica acusação.
princípios; trata-se portanto de oportunis­
tas. Os bolcheviques triunfaram na Rússia
“precisamente porque ao socialismo coube
total derrota”.

T^osa d e L u xem b u rgo;


" a vitória do socialism o
n ã o cai do c é u ”

Rosa de Luxemburgo é uma das per­


sonalidades mais destacadas do movimento
marxista. Nascida de família judaica em
Zamosc, na fronteira russo-polonesa, em
1870 ou 1871 (a data é incerta), Rosa de
Luxemburgo estudou inicialmente em Zuri­
que e, depois, juntamente com Leo Jogiches,
dirigiu o partido socialista polonês. Crítica
do revisionismo (seu Reform a social ou
revolução? é de 1899), em 1903 bateu-se
pela greve geral como instrumento para
abrir o caminho do poder para o proletaria­
do. Em 1907 começou a ensinar economia
política na escola do partido em Berlim. Sua
obra principal, A acumulação do capital
(que representa notável contribuição à teoria
do imperialismo), é de 1913. Presa várias
vezes, em 1914 participa da fundação do Rosa de Luxemburgo (1870 ou 1871-1919).
Spartakus-Bund, do qual nasceu, em 1918, Para ela o socialismo não é um resultado inelutável
o partido comunista alemão. Foi assassinada do desenvolvimento da história.
Cãpítulo vigésimo quinto - O m a ^ i s m o d e p o is d e AAarx

A propósito, Rosa de Luxemburgo nada mais são do que paliativos”. O único


afirmava que Lênin “erra completamente caminho de recuperação “é a escola da
nos meios que utiliza. Decretos, poderes vida pública em si mesma, a mais ilimi­
ditatoriais aos diretores de fábricas, penas tada e mais ampla democracia e opinião
draconianas e governo baseado no terror pública” .

III. O aust^om a^xism o

• Os representantes de maior relevo do austromarxismo fo- 0s p ro b lemas


ram: Max Adler, O ttb Bauer, Karl Renner e Rudolf Hilferding. ^os
Sob a influência dos neokantianos (Windelband, Rickert, Co- austromarxistas
hen) e de Mach, mas também de Kelsen e da Escola austríaca de ~^§ 1
economia (Menger, Bõhm-Bawerk, Mises etc.), os austromarxistas
procuraram resolver principalmente:
a) o problema de quanta ciência há no marxismo ou de quanta ciência pode
dele derivar;
b) o problema da fundamentação dos valores do socialismo.

• Max Adler (1873-1937) é certam ente-junto Otto B a u e r-a figura mais impor­
tante do austromarxismo. Adler sustenta que o materialismo histórico - entendido
como doutrina segundo a qual a superestrutura "ideológica" é produzida pela es­
trutura "econômica" - não encontra uma base nos textos de Marx
e de Engels: "aí se encontra, ao contrário, a indicação contínua Materialismo
de que elas estão necessariamente ligadas uma à outra". histórico
Em outras palavras - afirma Adler em Problemas marxistas e materialismo
- o materialismo histórico não seria uma metafísica, e sim uma dialético
reduzidos
indicação programática a levar em conta, nas pesquisas histórico-
a regras
sociais, o aspecto econômico. de m étodo
A dialética marxista não seria, também, uma doutrina me­ científico
tafísica. Para Adler, a dialética não é mais que a constatação "da - ^ § 2
oposição existente entre o interesse próprio do indivíduo e as
formas sociais em que ele é comprimido".

• Ora, porém, uma vez que nos tenhamos desembaraçado da dialética, con­
siderada como lei inelutável da história na base de um processo que ao mesmo
tem po teria realizado um progresso, onde se fundariam os valores
socialistas? As razões
Aqui, justamente, temos a referência a Kant: a idéia política da referência
dos socialistas, seu empenho pela justiça e pela liberdade, se fun­ ao im perativo
damentam sobre o imperativo categórico de Kant, que "pretende categórico
que em cada um seja respeitada a humanidade e que ninguém de Kant
seja considerado apenas como um meio, e sim, ao mesmo tempo, - ^ § 3
tam bém como fim ".

Gênese e características especialmente a função de desencadear a


controvérsia entre o “espírito reformista” e
do austromarxismo
o “espírito totalitário” da democracia social,
já ao austromarxismo deve ser reconhecido
Se o revisionismo teve a função de sus­ sobretudo o mérito de ter delineado:
citar fortes dúvidas sobre a validade de a) a questão do que existe de ciência no
alguns pontos centrais da teoria marxista, marxismo ou de que ciência é dele derivável;
O i t ã V ã p a r t e - CD m a f^ is m o d e p o is d e ]\A a v ")< . e a £L scola d e TVcmUfurt

b) no começo da guerra. E as divergências au­


a tematização da questão referente
ao problema da fundamentação dos valores mentarão durante e depois da guerra, sobre
do socialismo. questões como a da guerra, da nacionalida­
Os austromarxistas propuseram-se de, da avaliação da Revolução Russa, ou a
o primeiro problema sob a influência da questão democracia-ditadura. A propósito
filosofia neokantiana e das concepções de da avaliação da Revolução Russa, Adler, em­
Mach. O segundo problema surgiu tanto bora pertencendo à esquerda da democracia
sob a influência dos neokantianos como pelo social austríaca, sustentava que “a ditadura
estímulo que eles receberam de pensadores bolchevique acabara por se transformar em
como Hans Kelsen. Tanto na primeira como ditadura dirigida contra grande parte do
na segunda problemática, os austromarxis­ proletariado” .
tas sofreram a influência de Carl Menger e
da “escola vienense de economia”.
Mas quem eram esses austromarxistas?
Um deles, Otto Bauer, descreve a gênese do
e o marxismo como
austromarxismo nos seguintes termos: “Sur­
giu [...] do movimento estudantil socialista " p r o g r a m a científico1
7
vienense uma jovem escola marxista, cujos
representantes de maior prestígio, no fim
da década de 1990, eram Max Adler, Karl Tendo precisado os traços de fundo
Renner e Rudolf Hilferding; a esses, pouco do austromarxismo, podemos agora des­
tempo depois, uniram-se Gustav Eckstein, cer a outros pormenores, analisando mais
Friedrich Adler e eu”. Eles haviam crescido particularmente as obras de Max Adler
em uma época em que neokantianos como (1873-1937). Pressionado pela premência de
Windelband, Rickert e Cohen, ou pensa­ dar fundamento teórico válido à sociologia,
dores como Kelsen, desenvolveram “uma distinguir a ciência (que descreve) da ética
crítica a Marx que, valendo-se de argumen­ (que prescreve), e eliminar os elementos
tos kantianos, gnosiocríticos, contesta a mítico-metafísicos do marxismo, Max Adler,
possibilidade de uma ciência de leis causais diante da tese marxista de que o desenvolvi­
do desenvolvimento social. Desse modo, a mento histórico fará acontecer o que é bom
teoria marxista da necessidade histórica e que aconteça, põe logo em evidência que “o
da inelutabilidade da revolução social devia progresso não é conceito pertinente às leis
ser superada e o socialismo reduzido a um da natureza, mas somente às leis do espíri­
postulado ético, a princípio de avaliação to, não podendo, portanto, ser explicado
e de ação no âmbito da ordenação social e demonstrado, mas apenas criado e crido
existente” . pelos homens” .
E isso o que diz Bauer a propósito Em suma, um processo ou desenvol­
do confronto entre o austromarxismo e o vimento histórico ainda não constitui um
neokantismo. Mas ele ainda nos informa progresso: ele torna-se tal se aquele evento
também o seguinte: “ Se Marx e Engels que ocorre realiza ou incrementa um da­
haviam partido de Hegel, e os marxistas queles valores (justiça, liberdade, igualdade
posteriores do materialismo, os mais jovens etc.) que os homens criam e nos quais crêem,
‘austromarxistas’ partiram em parte de Kant mas que não podem ser fundamentados e
e em parte de Mach. Por outro lado, nos demonstrados através de argumentações
meios universitários austríacos, eles deviam científicas. E, com efeito, existem explica­
se confrontar com a chamada escola austría­ ções científicas, mas não existem explicações
ca de economia - e esse confronto também éticas ou estéticas: existem apenas avaliações
influenciou o método e a estrutura de seu éticas ou estéticas.
pensamento. Por fim, na velha Áustria aba­ Então, o que explica o marxismo? A
lada pelos conflitos de nacionalidade, todos concepção marxista da história, por exem­
tiveram de aprender a aplicar a concepção plo, é científica, estando assim em condições
marxista da história a fenômenos comple­ de apresentar explicações abalizadas dos
xos, que não toleravam o uso superficial e acontecimentos históricos, ou então se trata
esquemático do método de Marx”. de hipóteses metafísicas não passíveis de
Foi assim, portanto, que se constituiu controle, construídas no ar?
a “comunidade espiritual” (Geistesgemeins- Posto diante desse problema ineludível
chaft) que ficou conhecida pelo nome de e central, Adler sustenta que o materialismo
austromarxismo. A comunidade se dividirá histórico, entendido como a teoria segundo
Capítulo vigésimo quinto - O m a rx ism o d e p o is d e / v W x

a qual a ideologia é produzida pela base simplesmente constata a oposição existente


econômica, é uma tese que “não pode se­ entre o interesse próprio do indivíduo e as
quer se referir à letra dos textos de Marx formas sociais às quais ele é forçado”. Adler
e Engels. Não encontramos neles sequer vê na dialética marxista um puro e simples
uma passagem que sustente que a situação “princípio de investigação” .
material produz ou tem por efeito a situação
espiritual. Mas, ao contrário, encontramos
continuamente a indicação de que elas estão
necessariamente vinculadas uma à outra” . O n e o k a n t is m o
Por isso, escreve Adler em Problemas mar­ dos auskomai*xistas
xistas (1920), “o ‘materialismo’ da con­
cepção marxista da história e da sociedade e a fu n da m en ta çã o
nada mais é do que a acentuação polêmica e dos valores do socialismo
programática do ponto de vista empírico” .
Portanto, na opinião de Adler, o mate­
rialismo histórico não é tanto uma metafísi­ Assim, o materialismo histórico e o
ca da história, mas muito mais a indicação materialismo dialético de Marx e Engels
programática que, na análise científica dos são interpretados por Adler como princípios
fatos históricos, relaciona-se ao aspecto heurísticos.
econômico. Não é só isso, porém. Como o marxis­
Esta, pois, é a primeira operação in- mo fundamenta os valores do socialismo? Se
terpretativa que Adler realiza a partir dos cair por terra a metafísica materialístico-dia-
textos de Marx e de Engels. lética, que fundia em um todo indistinto os
E ele realiza uma operação análoga a fatos e os valores, então onde estes últimos
propósito da dialética. Se entendermos por encontram seu fundamento? Ou deveremos
dialética “ um modo do ser”, ou seja, “o aceitar um relativismo extremo?
contraste entre as coisas como gênese de Na realidade, escreve Adler, “o conhe­
todo o acontecer”, então a dialética passa a cer teórico, sempre, só tem a ver com um
indicar “uma estrutura essencial do ser” e, ser ou acontecer das coisas. O problema da
conseqüentemente, é metafísica. Entretanto, ética, ao contrário, consiste na distinção
na opinião de Adler, a dialética em Marx e entre o bem e o mal” . Por conseguinte,
Engels não é de modo nenhum uma visão do “a idéia política do socialismo motiva-se
mundo, uma cosmovisão, ou uma metafísica; tão-somente naquela versão do imperativo
na forma em que se apresentaria em Marx e categórico que pretende que a humanidade
Engels, ela é “um princípio de investigação seja respeitada em cada um, e que ninguém
para o estudo da vida social”. Em suma, a seja considerado apenas como um meio,
dialética marxista “não tem mais nada a mas, ao mesmo tempo, também como fim”.
ver com a questão da natureza do ser, mas
Oitava parte - O m a ^ i s m o d e p o i s d e ]\Aarx e a á~-sco\a d e "Fran k fu rt

: IV. O m arxism o :
Kva LAnião 5ovietica

• Apóstolo do marxismo ortodoxo foi, na Rússia, Georgij Valentinovich Pleka-


nov (1856-1918). Em nome do materialismo histórico ele criticou Lênin: a história
tem suas leis subjetivas e imanentes; e Lênin fez mal ao forçar o
Plekanov: curso dos acontecimentos. Contra aqueles que "confundiam" a
defesa
dialética com a teoria vulgar da evolução, Plekanov quer resta­
da ortodoxia
e crítica a Lênin belecer os direitos da dialética. No último período de sua vida
- +§ 1 tomou distância também da Revolução de Outubro, por ele vista
cotyio um golpe de mão de tipo blanquista.

• Em O que fazer?-publicado em 1902-L ê n in (1870-1924) ataca, de um lado,


os revisionistas e, do outro, os teóricos da espontaneidade revolucionária da classe
operária, todos os que sustentavam que a consciência de classe e a revolução teriam
sido produto espontâneo do desenvolvimento do capitalismo.
Lênin: Lênin é decididamente contrário a tal concepção. O proletariado,
o partido a seu ver, não é capaz de chegar por si a uma consciência revo­
comunista lucionária; essa consciência, por meio da teoria revolucionária, o
como grupo proletariado a recebe de uma patrulha "aristocrática" de inte­
escolhido de lectuais burgueses que sabem e que, portanto, têm o direito e o
revolucionários
dever de se colocar como guia da humanidade na luta que esta
profissionais
-^ § 2
faz por sua libertação final. Luta que - contra o Estado burguês
e sem esperar o inevitável desmoronamento do capitalismo e a
revolução espontânea por parte das massas - deve ser confiada
ao partido, que Lênin vê como um grupo selecionado de homens "cuja profissão
é a ação revolucionária".
Em suma, "para obter sua emancipação, o proletariado - escreve Lênin em
Estado e revolução (1917) - deve derrubar a burguesia, conquistar o poder político,
instaurar sua ditadura revolucionária".

P le k an o v capitalismo). A história tem suas leis objeti­


vas e imanentes. E essas leis não podem ser
e a d ifu sã o d a ^ o rto d o x ia ”
ignoradas. E, na opinião de Plekanov, Lênin
fez mal ao forçar o andamento da história.
Quem difundiu o marxismo na Rús­ Assim, ortodoxo no que se refere ao
sia foi Georgij Valentinovich Plekanov materialismo histórico, Plekanov também
(1856-1918). Inicialmente partidário da o é no que se refere ao materialismo dialé­
organização populista “Terra e liberdade”, tico: “Muitos confundem a dialética com a
mais tarde passou a combater precisamen­ teoria da evolução. E, no entanto, ela difere
te o populismo, a partir da perspectiva do essencialmente da vulgar ‘teoria da evolu­
marxismo ortodoxo, depois de ter estudado ção’, que se baseia no princípio de que nem
Marx. Escreve ele nas Q uestões funda­ a natureza nem a história dão saltos e que
mentais do marxismo (1908): “Está fora todas as mudanças no mundo se realizam
de dúvida que as relações políticas influem gradualmente. Hegel já demonstrara que,
sobre o movimento econômico, mas também entendida nesse sentido, a teoria da evolução
está igualmente fora de dúvida que, antes de era inconsistente e ridícula”.
influir sobre tal movimento, elas foram por Crítico também dos “construtores de
ele criadas”. Deus”, isto é, dos que, como M. Gorkij, pen­
Esta é a razão por que se equivocam savam inserir o marxismo científico em um
os populistas (que pensam que a revolução misticismo religioso, Plekanov, no último pe­
na Rússia pode se realizar sem passar pelo ríodo de sua vida, também se distanciou do
Capítulo vigésimo quinto - O m a ^ i s m o d e p o is d e M a r x

partido “jacobino” e “ditatorial” de Lênin e todos os adversários da Revolução, embora


rejeitou a Revolução de Outubro, enquanto em certo momento tenha sido obrigado a
a via como golpe de mão de tipo blanquista, reintroduzir os mecanismos da economia de
como tentativa realizada em uma situação mercado (a NEP, Nova Política Econômica).
ainda não madura para o objetivo. Atingido por doença em 1922, morreu em
Voltando à Rússia depois da revo­ 21 de janeiro de 1924.
lução, Plekhanov foi acusado de traição Em 1902, Lênin publicou O que fazer},
pela maioria bolchevique, que traçou clara que constitui o ato de nascimento do bol-
distinção entre os “bons trabalhos” do pri­ chevismo. Nessa obra, por um lado ataca
meiro Plekanov e os “maus trabalhos” do o “revisionismo” (que, para ele, nada mais
Plekanov “revisionista” . é do que “oportunismo” , “ecletismo” e
“falta de princípios”; Bernstein deforma
“grosseiramente” e “monstruosamente” o
pensamento de Marx) e, por outro lado, os
teóricos da espontaneidade revolucionária
da classe operária. Estes últimos, seguido­
res ortodoxos do materialismo histórico,
B I o p a rtid o co m o v a n g u a rd a reduziam a política a reflexo da economia
a r m a d a d o p ro le ta ria d o e, portanto, sustentavam que a consciência
de classe e a revolução seriam o produto
Nascido em 1870 em Simbirsk, no mé­ espontâneo do desenvolvimento do capita­
dio Volga, Vladimir Ilic Ulianov (chamado lismo. Mas Lênin rebela-se contra essa idéia:
Lênin) foi o terceiro de seis filhos. Em 1887, afirma ele que a história mostra que, por si
seu irmão maior Aleksandr, em um grupo de só, o proletariado não está em condições de
estudantes niilistas, participou de atentado amadurecer uma séria consciência política
contra o czar. Descoberto, foi preso e exe­ revolucionária; por si só, chega unicamente
cutado. Esse trágico acontecimento deixou às reivindicações e não à revolução; mas
impressão enorme sobre o jovem Lênin, que “sem teoria revolucionária não pode haver
se convenceu de que o caminho anarquista movimento revolucionário” . E o proleta­
não era praticável para abater o czarismo. riado recebe a teoria revolucionária de um
Depois de formado, Lênin passou a “aristocrático” esquadrão de intelectuais
estudar os problemas econômicos da Rússia burgueses que a sabem e, sabendo-a, têm o
e começou a ler as obras de Marx e Engels. direito e o dever de colocar-se à frente da
Convencido da justeza de suas idéias, passou humanidade no processo de sua libertação
a combater os “populistas” e, depois de final. Somente assim, na opinião de Lênin, o
breve estadia na Suíça (1895) — onde con­ movimento operário poderia se tornar “um
tactou com alguns exilados, entre os quais movimento invencível”
Plekanov — , voltou para a Rússia, com a Para Lênin, a consciência política
intenção de dar vida ao partido social demo­ identifica-se com a ideologia marxista,
crata russo (filiado à Segunda Internacional). que é a doutrina oficial do partido revo­
Entretanto, foi preso e deportado para a lucionário, e que “é onipotente porque é
Sibéria, onde ficou três anos. Em 1900, Lê­ justa”, escreve Lênin em Três fontes e três
nin consegue sair do país, ficando durante partes integrantes do marxismo. E ela que
cinco anos na Europa Ocidental. Em 1903, o institui o partido, que por sua vez torna-
partido social democrata russo realizou um se a custódia de sua pureza. Ela não deve
congresso em Bruxelas e a corrente de Lênin ser criticada, já que “ toda diminuição da
conseguiu se impor, ainda que por pequena ideologia socialista, todo afastamento dela
margem. Desde então, essa corrente passou implica necessariamente o fortalecimento
a ser chamada bolchevique (bolche em russo da ideologia burguesa”. E isso significaria
significa “de mais” ), ao passo que o grupo abdicar do objetivo de fundo que é o de
adversário passou a ser chamado de men- derrubar a burguesia. Porém, insiste Lênin,
chevique (menche significa “de menos” ). A para derrubar a burguesia a classe operária
falência da revolução de 1905 obrigou Lênin deve ter uma direção, que deve ser confiada
a fugir novamente da Rússia, onde reentrara a um destacamento selecionado de homens
há pouco. Mas em 1917 foi protagonista de “cuja profissão é a ação revolucionária”,
vanguarda da Revolução de Outubro. Eleito como podemos ler em O que fazer? Pois
presidente do Conselho dos com issários bem, esse destacamento selecionado de
do povo, levou a fundo sua batalha contra revolucionários profissionais é o partido
440 .
Oitava pãftC - CD m a ^ i s m o d e p o is d e A^ap*j< e a E s c o l a d e F ran k fu rt

V ladim ir Ilich U lianoi


c h a m ad o L ênin ( 1870-1 L)2 4 ),
fo i o líder teó rico e p rático
d a R e v o lu ção de ( )u iu b ro .

comunista, entendido como o estado maior Agora, porém, as análises históricas e


do exército proletário, como vanguarda sociais levavam Lênin à conclusão de que,
armada do proletariado. por meio do Estado, a burguesia tinha total
controle econômico e cultural sobre o pro­
letariado, e que este não possuía nem meios
K SM (S stad o, revolu çã o,
econômicos, nem cultura, nem organização
d ita d u ra d o p ro le ta ria d o e m oral com unista
política. É nesse ponto, portanto, que Lênin
Lênin escreveu E stad o e revolução — rejeitando a tese marxista da inevitabi­
em 1917. Marx sustentava que o Estado lidade da derrocada do capitalismo e da
nada mais é do que “o poder organizado revolução espontânea pelas massas oprimi­
de uma classe para a opressão de outra”, das, teoriza o partido como destacamento
considerando-o simplesmente um “comitê selecionado de revolucionários profissionais,
que administra os assuntos de toda a classe temperados por férrea disciplina de tipo
burguesa como um todo” . Lênin assume militarista, com o objetivo de organizar
sem reservas essa teoria marxista: o Estado o proletariado e, mediante a violência e a
“é o instrumento de exploração da classe luta armada, derrubar o domínio classista
oprimida nas mãos da classe dominante”; da burguesia. Ainda em Estado e revolução,
o Estado de direito, em suma, é o gendarme escreve Lênin: “Para alcançar sua emancipa­
da propriedade privada e o policial pessoal ção, o proletariado deve derrubar a burgue­
da classe dos proprietários. “A sociedade sia, conquistar o poder político e instaurar
civil divide-se em classes hostis — e, mais sua ditadura revolucionária”.
ainda, inconciliavelmente hostis — , cujo E essa ditadura será a ditadura exercida
armamento espontâneo determina a luta “com mão de ferro” pelo partido em nome
armada entre elas” . do proletariado. M J]
Capítulo vigésimo quinto - O m ai-xism o d e p o is d e /VUu-x

V. o * m a^ ism o ocidental //
de .Lukács, KorscK e S lo c k

• A Terceira Internacional, sob a guia do partido bolchevique russo, levou a


reler Marx à luz de Hegel. A questão dominante torna-se o tema da dialética; isso
já se vê em obras como História e consciência de classe de Lukács
e Marxismo e filosofia de Korsch. Lukács:
Para o húngaro Giõrgy Lukács (1885-1971) a ortodoxia mar- a ortodoxia
xista refere-se exclusivamente ao método. O método correto para marxista
compreender as vicissitudes humanas é o marxista, ou seja, o esfá no
dialético. E isso significa que a sociedade deve ser estudada como método
um todo, como algo inteiro, procurando investigar as conexões 1.1-1-2
que ligam dialeticamente os eventos e seus aspectos.
Escreve Lukács: "A categoria da totalidade, o domínio determinante e onila-
teral do todo sobre as partes é a essência do método que Marx assumiu de Hegel,
reformulando-o de modo original e pondo-o na base de uma ciência inteiramente
nova". E a consciência de classe do proletariado é - segundo Lukács - o conheci­
mento da realidade social em sua totalidade, das contradições dessa realidade,
e da solução destas contradições em sua totalidade: "Apenas a consciência do
proletariado pode encontrar um caminho de saída da crise do capitalismo".

• Não devemos nos esquecer do Lukács autor de ensaios literários (Ensaio


sobre o realismo, 1948 e 1955); Thomas Mann, 1949 etc.) e do Lukács teórico do
realismo marxista em estética (Teoria do romance, 1920): a arte, da mesma forma
que a ciência, reflete "a totalidade da vida humana em seu mo­
vimento, em seu desenvolvimento e evolução". E o instrumento a estética
que permite refletir artisticamente a realidade é o "tipo": no realista
"tipo" o particular é iluminado pelo universal e o universal fala marxista
por meio do particular. "Na representação do tipo, na arte típica, -> § 1-3
fundem-se a concretude e a norma, o elemento humano eterno e
o historicamente determinado, a individualidade e a universalidade social. Por isso,
na criação de tipos, na apresentação de caracteres e de situações típicas, as mais
importantes tendências da evolução social recebem adequada expressão artística".

• Marxismo e filosofia de Karl Korsch (1886-1961) é de 1923. Nessa obra Korsch


critica Lênin por ter sustentado que a consciência de classe deveria ser levada de
"fora" para o proletariado; critica-o pela sua primitiva concepção gnosiológica
do "espelhamento" (o conhecimento seria "espelhamento" da matéria); critica-
o, além disso, por ter instaurado na Rússia não uma ditadura do
proletariado e sim muito mais uma ditadura sofare o proletariado. Korsch:
Em perspectiva propositiva Korsch refuta a validade da "dialética os erros de Lênin
materialista": a dialética constitui "o fundam ento metodológico §2
necessário do 'socialismo científico'

• Criticado pelos marxistas ortodoxos pelo seu revisionismo e suas "heresias",


Ernst Bloch (1885-1977) expôs seu mais maduro pensamento na obra O princípio
esperança (3 vols.: 1954, 1955, 1959).
"O que importa - escreve Bloch - é aprender a esperar". E Bloch: o
a verdade é, a seu ver, que o homem, "em forma originária, vive homem vive
unicamente em tensão para o futuro". Na raiz última das coisas, unicamente
Bloch encontra o possível, ou seja, o "não-ainda", o incompleto aberto ao
suscetível de realização; e esta abertura, esta incompletude, é uma futuro
condição positiva, é o caminho para a emancipação humana. ~>§3 _
Oitava parte - CD m a rx ism o d e p o is d e /VAarx e a E s c o l a d e FVcmkfurt

Daqui a relação que liga Bloch ao marxismo, apesar de todas as críticas que
lhe dirige e as dissensões com os teóricos do Diamat. também o marxismo é uma
filosofia dirigida ao futuro, uma filosofia que, em vez de contemplar o mundo,
procura transformá-lo; é uma teoria e uma proposta para libertar o homem das
cadeias da alienação. E nesse horizonte teórico o julgam ento marxista sobre a
religião como "ópio do povo" deve ser revisto, uma vez que "onde há esperança
há religião", afirma Bloch, que analisa a corrente "crítica" do cristianismo que é
contestação autêntica daquilo que existe. A propósito, vejam-se as obras Thomas
M ünzer como teólogo da revolução (1921) e Ateísmo no cristianismo (1968).

& G yorgy LukÂcs da pesquisa marxista, não significa um ‘ato


de fé’ nesta ou naquela tese de Marx e tam­
pouco a exegese de um livro ‘sagrado’. No
que se refere ao marxismo, a ortodoxia diz
m T o t a lid a d e e d ia lé tic a respeito exclusivamente ao método. Trata-se
da convicção científica de que, no marxismo
Se os marxistas da Segunda Interna­ dialético, descobriu-se o método correto
cional (1889-1917) interpretaram Marx de investigação” e que, embora tal método
à luz do positivismo e do darwinismo, os possa ser “potencializado, desenvolvido
austromarxistas leram Marx na perspectiva e aprofundado”, “todas as tentativas de
do neokantismo. A Terceira Internacional, superá-lo ou de ‘melhorá-lo’ tiveram e não
que nasceu em 1919 e que teve como parti- poderiam ter outro efeito senão o de torná-lo
do-guia o partido bolchevique russo, levou superficial, banal e eclético” . Conseqüente­
a uma releitura de Marx do ponto de vista mente, o método correto para compreender
de Hegel, repropondo firmemente o tema a história humana é o método marxista, isto
da dialética como questão dominante. Os é, o método dialético.
expoentes mais destacados dessa nova O método dialético nos proíbe de olhar
orientação são o húngaro Gyõrgy Lukács e para fatos fracionados, atomizados, não
o alemão Karl Korsch, que, no mesmo ano, vinculados a uma totalidade (o que faz a
1923, deram à luz as suas respectivas obras ciência social burguesa).
mais relevantes: H istória e consciência A afirmação de Marx, segundo a qual
de classe (Lukács) e M arxism o e filosofia as relações de produção de cada sociedade
(Korsch). formam um todo, “é a premissa metodológi­
Lukács (Budapeste, 1885-1971) desde ca e a chave do conhecimento histórico das
jovem se interessou por literatura. Depois relações sociais”. Em suma, a sociedade deve
de dois anos de permanência na Itália, a ser estudada como um todo; não a compreen­
partir de 1912 passou a viver em Heidel- deremos se estudarmos somente este ou
berg, onde, como aluno e amigo de Max aquele aspecto, mas somente se soubermos
Weber, aproximou-se do neokantismo e perceber as conexões profundas que ligam
da sociologia. Atraído por Kierkegaard e dialeticamente fatos e acontecimentos entre
Dostoweski, sobre os quais escreveu ensaios, si. Quando se rejeita ou dissolve o método
iniciou a leitura de Hegel por estímulo de dialético, “ perde-se ao mesmo tempo a
Ernst Bloch, daí passando ao estudo das cognoscibilidade da história” .
obras de Marx. Em 1918, aderiu ao par­ A categoria da totalidade, portanto,
tido comunista húngaro, participando da não suprime os aspectos ou elementos indi­
experiência da República Soviética de Bela viduais de um acontecimento, mas, muito
Kún. Depois da derrota dessa experiência, mais, tende a subtraí-los de seu isolamento,
passou a viver em Viena, onde, precisamente não os considerando mais como átomos va-
em 1923, apareceu sua coletânea de ensaios gantes no processo histórico e não os vendo
História e consciência de classe. como estáticos, autônomos ou independen­
Nessa obra, o que Lukács pretende pôr tes um do outro, porém considerando-os
em primeiro plano é o marxismo ortodoxo. como “momentos dialético-dinâmicos de
Entretanto, “o marxismo ortodoxo não um todo que, ele próprio, também é dialé-
significa a aceitação crítica dos resultados tico-dinâmico” .
Capítulo vigésimo quinto - O m o d i s m o d e p o is d e M a r x

E o ponto de vista do todo, a perspec­ que “a crescente compreensão da essência da


tiva da totalidade, “determina a forma de sociedade, na qual se reflete a lenta luta da
objetualidade de cada objeto do conheci­ burguesia com a morte, representa constante
mento”. Para especificar esse ponto, Lukács aumento de poder para o proletariado. Para
cita mais uma vez Marx: “Um negro é um o proletariado, a verdade é uma arma que
negro. Somente em determinadas condições leva à vitória, e isso tanto mais quanto mais
é que se torna escravo. A máquina de fiar despreconceituosa ela for”. BgffTdl
algodão é máquina de fiar algodão. Somen­
te em determinadas condições ela se torna
E E I C la s s e e c o n s c iê n c ia d e c la s s e
capital. Subtraída a essas condições ela não
é mais capital, do mesmo modo que o ouro
em si e por si não é dinheiro, e o açúcar não As ciências da natureza se diferenciam
é o preço do açúcar”. Eis, portanto, um dos das ciências histórico-sociais não somente
pilares da filosofia de Lukács: “A categoria pelo objeto, mas também pelo método (e
da totalidade, o domínio determinante e aqui Lukács censura Engels por ter esten­
multilateral do todo sobre as partes é a dido indevidamente a dialética ao mundo
essência do método que Marx assumiu de da natureza). E, para Lukács, as ciências
Hegel, reformulando-o de modo original histórico-sociais teriam um método diverso
e pondo-o na base de uma ciência inteira­ enquanto assumem a perspectiva da totali­
mente nova” . dade. A sociedade deve ser estudada como
Desse modo, Lukács chegou à solução um todo; a realidade só pode ser captada,
do problema das relações entre estrutura e no além das aparências, apenas em sua
superestrutura: estas estão em relação dialé­ totalidade. Mas quem pode compreender
tica. Naturalmente, “na luta pela consciên­ e penetrar a sociedade em sua totalidade?
cia, cabe um papel decisivo ao materialismo Responde Lukács: “ Somente um sujeito
histórico”, mas, também, devemos sublinhar que seja ele próprio uma totalidade está em

Gyôrgy Lukács (1885-1971),


ligado às categorias
da dialética e da totalidade,
dirigidas à compreensão
do mundo histórico-social,
construiu uma estética
marxista articulada.
444 .
Oitava parte - O m a rx ism o d e p o is d e e a E s c o l a d e T ^ankfurt

condições de realizar essa penetração” . E cultura progressista”, Lukács afirma que,


esse sujeito é a classe: “somente a classe pode para o marxismo, arte é reflexo da realida­
penetrar a realidade social, através da ação, de, teoria que não é absolutamente nova na
e modificá-la em sua totalidade” . história de nossa cultura.
O sujeito da história, portanto, é o Para o materialismo dialético, tomar
proletariado consciente, isto é, a consciên­ consciência do mundo externo — que existe
cia de classe. E só o proletariado pode ter a independentemente de nossa consciência
verdadeira consciência de classe, ao passo — significa que a realidade se reflete e se
que a consciência da burguesia chegou espelha nos pensamentos, representações e
à consciência clara das contradições que sensações dos homens. Pois bem, “a criação
inevitavelmente dilaceram a sociedade capi­ artística, enquanto é uma forma de espelha­
talista, mas não pode eliminá-las sob pena mento do mundo externo na consciência
de desaparecer, já que é sobre elas que a humana, insere-se, portanto, na teoria geral
burguesia baseia seu domínio. Conseqüen­ do conhecimento própria do materialismo
temente, tenta de todos os modos negar dialético”.
tais contradições, abafá-las, escondê-las. A estética marxista, portanto, “situa
“ O limite que torna ‘falsa’ a consciência de o realismo no centro da teoria da arte”. E
classe da burguesia é objetivo: é a própria o realismo marxista é contrário tanto ao
situação de classe” . “naturalismo”, que pretende fazer a cópia
O proletariado, ao invés, tende a ne­ fotográfica da superfície da realidade, como
gar-se a si mesmo enquanto proletariado ao “formalismo”, que se propõe a perfeição
e a construir uma sociedade sem classes: das formas, prescindindo da realidade ou
sua consciência de classe é o conhecimento pretendendo transformá-la ou então estili­
da realidade social em sua totalidade, das zá-la. A exemplo da ciência, a arte espelha
reais e profundas contradições da realidade sempre a realidade, reflete “a totalidade da
social, da solução dessas contradições em vida humana em seu movimento, em seu
sua totalidade. E essa consciência é verda­ desenvolvimento e evolução”. E o instru­
deira porque não defende os interesses de mento que permite refletir artisticamente a
ninguém, porém muito mais a liberdade realidade é o “tipo”.
de todos: “Somente a consciência do pro­ “Na representação do tipo — escreve
letariado pode encontrar uma saída para Lukács — na arte típica, fundem-se a concre-
a crise do cap italism o ” . Com efeito, o tude e a norma, o elemento humano eterno
proletariado “não pode se subtrair à sua e o historicamente determinado, a indivi­
missão. Trata-se apenas de saber o quanto dualidade e a universalidade social. Por
ele ainda deve sofrer antes de alcançar a isso, na criação de tipos e na apresentação
maturidade ideológica, o justo conhecimen­ de características e situações típicas, as mais
to de sua situação de classe: a consciência importantes tendências da evolução social
de classe” . recebem adequada expressão artística”. A
concepção marxista do realismo, portanto,
afirma que a arte é criação de “tipos”, onde
KO e s té tic a m arxista o particular é iluminado pelo universal e o
e o V e a lis m o ”
universal fala através do particular. Por isso,
a fantasia não é proibida, ao contrário, des­
No campo da estética, Lukács empe­ de que consiga construir o “tipo” e, através
nhou-se na construção de uma verdadeira dele, fazer falar a realidade: “Até o mais
estética marxista. Entre os seus ensaios es- desenfreado jogo da fantasia poética e a mais
tético-literários devemos recordar, além do fantasiosa representação dos fenômenos são
trabalho juvenil Teoria do romance (1920), plenamente conciliáveis com a concepção
também os Ensaios sobre o realismo (1948 e marxista do realismo” .
1955), Thomas Mann (1949), Realistas ale­ E precisamente por meio da idéia de
mães do século X IX (1951), Contribuições “tipo” que Lukács consegue recuperar boa
à história da estética (1953), O romance parte da grande arte do passado: um escritor
histórico (1955), Sobre a categoria da par­ (por exemplo, Balzac) pode pertencer à clas­
ticularidade (1957), e os dois volumes da se burguesa, mas sua arte pode ser realista
Estética (1963). e progressista se, como exatamente no caso
Persuadido de que a concepção de de Balzac, ele consegue construir “tipos” e,
mundo do proletariado está em condições por meio deles, captar “as mais importantes
“de acolher criticamente toda a herança da tendências da evolução social”. 1B5B1T1
C ãp ítu lo V ig é sÍT H O quinto - (D m a ^ i s m o d e p o is d e ]\A a r x

2 K a A K. o r s c K tando mais a criticar Kautsky e o marxismo


, // | . | /,. n // . ^ • // ortodoxo, mas também atacando duramente
e ^ fr e d ia lé tic a e c iê n c ia
Lênin, especialmente por ter considerado a
teoria e a consciência de classe como algo
Em um pós-escrito a M arxism o e que deve ser levado “de fora” para a prá-
filosofia (1923), Karl Korsch (1886-1961) xis do proletariado. Também o critica em
registrou o seguinte: “Somente enquanto relação à teoria gnosiológica do “reflexo”,
escrevia este ensaio é que apareceu o livro enquanto essa teoria representa somente
de Gyõrgy Lukács História e consciência de uma “ concepção primitiva, pré-dialética
classe. Pelo que pude constatar até agora, e até pré-transcendental da relação entre
não posso deixar de aprovar com alegria consciência e ser” . Sustenta, além disso, que
as exposições do autor, fundamentadas a ditadura instaurada por Lênin na Rússia
em base filosófica mais ampla, que muitas não é ditadura do proletariado, mas dita­
vezes abordam questões de que trato neste dura sobre o proletariado; que ela não é a
meu ensaio”. ditadura de uma classe, e sim “do partido e
E o livro de Korsch também foi con­ da cúpula do partido”, constituindo “uma
denado pelas mesmas razões pelas quais foi forma de constrição ideológica”.
condenado o livro de Lukács pela Terceira Korsch faz todas essas críticas em nome
Internacional. Em 1925 ele acabou expulso do que ele considera o núcleo autêntico da
do partido comunista alemão. filosofia de Marx, ou seja, a dialética. E
Em 1930, Korsch publicou a segunda “a essência da [...] ‘dialética materialista’
edição de M arxismo e filosofia, não se limi­ do proletariado consiste [...] precisamente
Oitava paTte - O m a rx ism o d e p o is d e M a r x e a íS s c o la d e F rank furt

no fato de resolver concretamente a con­ e Jaspers, freqüentou o círculo de Max


tradição material existente entre riqueza Weber. Com o advento do nazismo, Bloch,
burguesa (o ‘capital’) e miséria proletária, que se inscrevera no partido comunista, foi
com a supressão dessa sociedade burguesa obrigado a um longo exílio, que o vê passar
e de seu Estado na realidade material da por Zurique, Viena, Praga e Cambridge
sociedade comunista sem classes. A dialética (Massachussets, EUA). Em 1949, quando
materialista, portanto, enquanto ‘expressão se constituiu a República Democrática Ale­
teórica’ da luta histórica do proletariado mã, Bloch tornou-se professor em Leipzig.
por sua libertação, constitui o fundamento Entretanto, por divergências com os teóri­
metodológico necessário do ‘socialismo cos do Diam at (maíerialismo dialético), foi
científico’ obrigado a deixar sua cátedra.
Isso, porém, significa dizer e implica Criticado por seu revisionismo e por
que a dialética não pode ser concebida, nas suas “heresias”, acusado de corromper a
pegadas de Engels, como teoria a ser ensi­ juventude, foi-Íhe retirada a direção da
nada: “A ‘dialética materialista’ do proleta­ “Revista alemã de filosofia” e, além de ser
riado não pode ser ensinada abstratamente confiscado seu livro O princípio esperança,
ou servindo-se dos chamados ‘exemplos’, foi-lhe proibido publicar outros livros. Seus
como se se tratasse de uma ‘ciência’ parti­ amigos e melhores alunos foram presos. W.
cular, dotada de objeto particular. Pode-se Harich foi condenado a dez anos de prisão,
apenas aplicá-la concretamente, na práxis G. Zehm a quatro, M. Hertwig a dois. Em
da revolução proletária e em uma teoria 1961, ano em que foi erguido o muro de Ber­
que é um componente imanente e real dessa lim, Bloch, que naquele período se encontra­
práxis revolucionária”. Portanto, a superes­ va na Bavária, pediu asilo político e decidiu
trutura ideológica e, com ela, a filosofia, não não voltar mais à Alemanha Oriental. Aceita
têm caráter fictício; pelo contrário, Korsch ensinar na Universidade de Tübingen, cida­
insiste na “influência e no peso das ideolo­ de onde residiu até sua morte, ocorrida em
gias na vida dos homens e das sociedades, 1977. Dez anos antes, em 1967, fora-lhe
influência e peso que fazem delas não um conferido o Prêmio da Paz pelos editores
eterno supramundo, mas uma força real, alemães, honra que, antes dele, já coubera,
um agente histórico” . entre outros, a personagens como Romano
Guardini, Paul Tillich, Karl Jaspers, Martin
Buber e Gabriel Marcel.
Durante a Primeira Guerra Mundial,
íSmst Block pacifista convicto que era, Bloch se retirara
para a Suíça, onde escreveu a primeira de
suas obras importantes, Espírito da utopia
E U 7^ v id a d e um "utopis+a” (1918), trabalho que contém in nuce os
conceitos de fundo daquela visão filosófica
Ao “neomarxismo” de Lukács e Korsch que depois encontrará sua articulação mais
(avessos às interpretações positivistas, “me- madura em O princípio esperança (3 vols.,
canicistas” e anti-humanistas do marxismo) 1954,1955 e 1959). Seu estudo sobre Tho­
está ligada a original filosofia da esperança mas Münzer como teólogo da revolução é
de Ernst Bloch, com sua apaixonada insis­ de 1921; a coletânea de ensaios (escritos
tência no futuro, entendido como a mais entre 1924 e 1933) intitulada Herança deste
autêntica dimensão do homem. tempo é de 1935. A obra Sujeito-objeto. Co­
Bloch nasceu em Ludwigshafen, em mentário a Hegel foi publicada em 1949. Em
1885, de genitores pertencentes à burguesia 1961 saiu Questões filosóficas fundamentais
média judaica. Muito jovem ainda, já havia para uma ontologia do não-ainda-ser, e de
lido Hegel, por quem conservaria por toda 1968 é Ateísmo no cristianismo.
a vida elevado respeito. Escreverá ele, em
1949, em Sujeito-objeto. Com entário a | a " O q ue impo^fa
Hegel: “Quem subestima Hegel no estudo e ap^en de^ a e s p e ^ /
da dialética histórico-materialista não tem
nenhuma possibilidade de conquistar intei­ A esperança não é questão de pouca mon­
ramente o materialismo histórico-dialético”. ta na vida humana. Ao contrário, ela é a pri­
Bloch laureou-se em Würzburg sob a direção meira coisa fundamental que o homem tem a
de Külpe. Em Berlim, teve Simmel por mes­ aprender. Escreve Bloch em O princípio espe­
tre. Em Heidelberg, juntamente com Lukács rança: “O que importa é aprender a esperar”.
Capítulo vigésimo quinto - O m ai-xism o d e p o is d e A W *

E rn st Bloch (1 8 8 5 -1 9 7 7 ),
expoente da
“filosofia da esperança ",
sustentou que
“o homem é a criatura que,
p o r e s s ê n c ia ,
projeta-se no possível.

Outros filósofos puseram no centro princípio da esperança não é simples questão


de suas reflexões o ser, o conhecimento, o psicológica: é princípio ontológico genuíno,
Estado, a consciência, e assim por diante. é o princípio da ontologia do “não-ainda-
Bloch, ao contrário, centrou sua filosofia ser”. Com efeito, na raiz última das coisas,
na esperança. E o fez por estar persuadido Bloch encontra o possível, isto é, o “não-ain-
de que o homem, “originariamente, vive da”, ou seja, o ainda não realizado passível
unicamente direcionado para o futuro; o de realização: “uma abertura, conseqüência
passado só chega mais tarde e o verdadeiro de condição não ainda inteiramente suficien­
presente ainda não chegou”. te e, portanto, que se projeta como mais ou
O homem vive em tensão para o futuro. menos inadequada”.
Bloch é de opinião que, em toda a realidade, E essa abertura, esse estado incomple­
não somente na realidade humana como to, não é condição negativa. Pelo contrário,
também na realidade natural, está presente é muito mais condição positiva, constituin­
e ativo um impulso originário que a impele do o caminho para o cumprimento, para a
adiante, em direção à novidade do futuro, emancipação humana: o impulso de esperar
que a guia para a realização do possível. “amplia o horizonte do homem, longe de
Bloch chama de fome a dimensão cósmica restringi-lo” . Mas, para que esse horizonte
desse impulso, e de esperança ou desejo se amplie mais, precisamos de “homens que
suas manifestações na vida humana. Conse­ se lancem ativamente dentro do devir do
qüentemente, podemos ver que, em Bloch, o qual são parte” .
Oitava patte - O m a rx ism o d e p o is d e fs A a r x e a (S s c o la d e . "Frankfurt

E li “CD mai'xie>mo d ev e- s e f1 | ielm en te presente. O “calor vermelho” do futuro im­


a m p lia d o ” pele o homem a transcender incessantemente
as situações presentes e a superar os resul­
“A função utópica do projetar e mo­ tados adquiridos; impele-o a conteúdos de
dificar consciente do homem representa a esperança, em direção a mundos possíveis,
sentinela mais avançada e ativa do trabalho­ no rumo da “utopia”. E uma “corrente de
so direcionamento para a aurora que aflige calor” que agita a esperança indestrutível de
o mundo, do dia cheio de sombras em que vida nova, de um novum ultimum.
todas as marcas do real, ou seja, as formas
do processo, ainda ocorrem e têm lugar” . O
homem projeta e modifica conscientemente t l f “O n d e . k á e s p e c a n ç a ,
o mundo e a si mesmo — e o faz no “espaço k á r e l ig i ã o ”
da utopia” .
E exatamente nesse ponto que, ba­ A religião, na opinião de Bloch, não é
seando-se em pressupostos marxistas, a apenas a expressão da alienação do homem.
filosofia de Bloch ao mesmo tempo tende Essa, por exemplo, é a idéia de Feuerbach e
a desenvolver conseqüências que Marx Marx. Mas também nesse ponto Marx, ou
não viu. Se a esperança é o elemento de melhor, o marxismo vulgar, que interpreta a
impulsão e de fundo da vida humana, se o religião como ópio do povo, deve ser revisto
homem é chamado a se superar continua­ e ampliado.
mente, projetando e criando o futuro, e se “ Onde há esperança, há religião” ,
ele “é a criatura que, por essência, se projeta afirma Bloch, que, em Thom as Münzer
no possível que está diante de si”, então como teólogo da revolução e depois no mais
se pode compreender muito bem qual é o recente Ateísmo no cristianismo, distingue
nexo que vincula Bloch a Marx: também a a dimensão “teocrática” do cristianismo de
filosofia marxista propõe-se como objetivo sua dimensão “herética”. A primeira aniqui­
inadiável o de transformar o mundo, não la o homem, destruindo sua abertura para
contemplá-lo. O marxismo também é uma o novo, ao passo que a segunda é dimensão
filosofia voltada para o futuro, para o que subversiva, é contestação do existente, é o
ainda não é. “fio vermelho” que atravessa toda a Bíblia,
A filosofia da esperança, portanto, a onde explode “ [...] o sofrimento de quem
exemplo da filosofia marxista, é filosofia do não quer permanecer assim, a espera pre­
futuro. E, analogamente à filosofia marxis­ mente do êxodo, das reparações, do tornar-
ta, tem como fundamento a tese de que o se diferente”. No Antigo Testamento existe
homem encontra-se em estado de alienação. a revolta do homem contra Deus: nô-lo
Entretanto, enquanto a alienação de que fala mostra o pecado original ou, por exemplo,
Marx brota de motivos econômicos, Bloch o livro de Jó. E o que mais conta no Novo
faz sua alienação remontar a razões mais Testamento é o anúncio escatológico que
profundas e universais, a razões ontológicas. Jesus faz do Reino — e o Reino é “um
O homem é alienado porque é incompleto, acontecimento do cosmo, que se abre para
incompleto como o universo de que é parte: a nova Jerusalém” .
“O homem é a criatura que, por essência, Naturalmente, a escatologia mencio­
projeta-se no possível [...]”. nada por Bloch não vai além da terra; é
Por outro lado, o marxismo deve ser completamente intraterrena. E, no entanto,
ampliado. E deve ser ampliado pelo fato de como já vimos, alguns dos mais engajados
que o exame fenomenológico da subjetivi­ teólogos contemporâneos foram buscar ele­
dade humana nos mostra que o homem não mentos do instrumental conceituai de Bloch
se reduz a seu passado nem é absorvido pelo para seu trabalho.
Cãpítulo vigésimo quinto - (D m a fx is m o d e p o is d e AAarx

VI. O neomarxismo na. FVança

• Convicto de que os erros do sistema soviético (a invasão da Tchecoslováquia,


a repressão dos intelectuais dissidentes na URSS, as sanções econômicas contra a
China, o anti-semitismo na Polônia e em Leningrado etc.) eram conseqüências do
próprio sistema, Roger Garaudy (1913-1996) - filósofo que também foi secretário
do partido comunista francês - quis propor um Marxismo huma­
nista como alternativa ao leninismo stalinista. Garaudy:
Em A alternativa (1972) Garaudy afirma que "nossa sociedade um encontro
com os cristãos
está a ponto de se desintegrar", e que para sair de tal crise "é
para uma
necessária uma transformação dos fundamentos". É necessária alternativa
mudança radical não çó no plano da propriedade e das estrutu­ ao leninismo
ras do poder, mas também no plano "da cultura e da escola, da stalinista
religião e da fé, da vida e de seu sentido". -§1
Claro sobre as diferenças entre a concepção marxista e a
cristã, Garaudy - que na tardia maturidade se tornou muçulma­
no - realizou com os cristãos um diálogo fecundo, com a esperança de que uma
colaboração com os comunistas sobre problemas concretos levasse os cristãos a
encontrar "sobre a nossa terra um início do céu deles".

• Radicalmente contrário à interpretação "humanista" de Marx foi Louis Al-


thusser (1918-1990). Autor de Para Marx (1965) e, em colaboração, de Lero Capital
(1965), Althusser - contra as tentativas de extrapolar a teoria marxista com Hegel
ou com Husserl - pretende voltar ao verdadeiro Marx.
E o verdadeiro Marx é o filósofo do anti-humanismo. "O Althusser:
sujeito - escreve Althusser em Ler o Capital - não é mais que contra o mito
o suporte das relações de produção. Sua realidade não é mais de um
consistente do que a de um suporte sutil". É possível conhecer homem livre,
o homem - lemos em Para M arx - apenas com a condição de criador
que abandonemos o mito filosófico de um homem livre, criador, do proprio
senhor de seu destino e da história humana. Nessas idéias está a destino
razão pela qual a obra de Althusser é no mais das vezes enqua­
drada dentro do estruturalismo.

R o g e r (g a ra u d y da Tchecoslováquia e dos crimes da ‘norma­


lização’, depois da inquisição intelectual
na União Soviética, do processo Siniavski
à campanha de desonra contra Solgenitsin,
O s e r r o s d o sisfem a sovié+ico depois da explosão de anti-semitismo na
Polônia e a seguir em Leningrado, depois do
“Depois da excomunhão da Iugoslávia massacre dos operários poloneses em greve
em 1948, depois da revelação dos crimes — e deixo o resto de lado — , depois de tudo
do período stalinista no X X Congresso do isso não é possível dizer, como se fez até
Partido Comunista Soviético, depois das agora ao fim de cada catástrofe: trata-se de
revoltas dos operários de Berlim e de Po- ‘erros’. O que nós consideramos ‘erros’ não
znan em 1956, depois do levante húngaro serão conseqüências do próprio sistema?
de 1956, quando os estudantes e operários Não do sistema socialista, mas do sistema
insurgiram-se contra o modelo stalinista de soviético tal como foi concebido de Stálin
Rakosi, que ofereceu suas melhores cartas a Breznev? E não deveríamos refletir sobre
à contra-revolução, depois das sanções eco­ a necessidade de proceder a uma grande
nômicas contra a China em 1958 e as cam­ inversão, tentando conceber um socialismo
panhas de calúnias que levaram a um cisma que não seja construído só do ‘alto’, mas
no movimento comunista, depois da invasão também de ‘baixo’ ?”
Oitava parte - CD m a rx ism o d e p o is d e A ^a rx e a íS s c o la d e F ran k fu rt

Essas palavras foram pronunciadas revolução convulsionada e uma revolução


por Roger Garaudy em 23 de janeiro de construtiva” .
1971, expressando muito bem o desafio
que o filósofo francês (1913-1996) lançou
contra os “novos czares” do Kremlin, com TVla^xisírvo e cris+ianismo
o objetivo de libertar o marxismo daquelas
deformações stalinistas que transformaram Em 1960 (em M oral cristã e moral
a ditadura do proletariado em ditadura marxista), Garaudy afirmava: “Em relação
sobre e contra o proletariado, impedindo a ao marxismo, a teologia cristã representa
teoria marxista de se desenvolver em seus o que a alquimia medieval representa em
elementos vitais e bloqueando a participa­ relação à física nuclear moderna: o sonho
ção consciente e responsável das massas impotente da transmutação da matéria
na construção do socialismo. Na opinião tornou-se a realidade de nossas técnicas,
de Garaudy, os dirigentes soviéticos afer- exatamente como as exigências escato­
raram-se a um centralism o burocrático lógicas de amor e de dignidade humana
sufocante, incapaz de aceitar o menor “im­ encontram no marxismo as condições para
pulso de baixo”, mas, ao contrário, pronto sua encarnação, não mais em outro mundo,
para rechaçar toda tentativa de renovação. duplicação ilusória do primeiro, e sim em
Assim, tornaram-se responsáveis pela dege- nosso mundo” . Três anos mais tarde, em
neração teórica do marxismo e pela prática 1963, no ensaio O que é a moral marxista?,
criminosa exercida pelo onipotente poder Garaudy evidencia dois pontos essenciais
policialesco na Rússia e nos países satélites. da moral cristã.
Em poucas palavras, o que os soviéticos a) Em primeiro lugar, “o cristianismo
temem e combatem é o socialismo de rosto criou uma nova dimensão do homem: a
humano. 6 dimensão da pessoa humana. Essa noção
era tão estranha ao racionalismo clássico
que os Padres gregos se encontraram na
y\ a ltern a tiva impossibilidade de achar na filosofia grega
as categorias e palavras para expressar essa
Desse modo, Garaudy leva ao pleno nova realidade. O pensamento helênico
amadurecimento a corrente do marxismo não estava em condições de conceber que o
“personalista” que, de certa forma, havia infinito e o universal pudessem se expressar
encontrado, antes e além de Garaudy, seus em uma pessoa”.
antecessores em Henri Lefebvre (1901­ b) A segunda contribuição do cristia­
1979), Lucien Goldmann (1913-1970) nismo, prossegue Garaudy, “consiste na
e, depois, sobretudo, em Sartre. grande aspiração por um mundo em que
Garaudy propõe e defende um mar­ reine perfeita reciprocidade das consciên­
xismo humanista. Mais em pormenores, cias, no qual nenhuma pessoa seja um meio
porém, e com maior clareza, o que propõe para a outra”.
Garaudy? Qual é a sua alternativa ao leni- Não se pretende que o cristão se torne
nismo stalinista? Escreve Garaudy, justa­ marxista ou que o marxista se torne cristão.
mente em A alternativa (1972), que “nossa As diversidades continuam, como podemos
sociedade está a ponto de se desintegrar” . ler em Do anátem a ao diálogo (1965):
Por isso, “é necessária uma transformação “Cristãos e marxistas vivem a exigência do
de suas bases, a qual, porém, não é pos­ mesmo infinito, só que, para os primeiros,
sível com os métodos tradicionais. Para o infinito é presença, mas para os outros é
ser resolvida, uma crise de tal amplitude ausência.” Para os cristãos, o homem não
precisa de algo mais que revolução: exige é tal sem Deus; para os marxistas, só existe
transformação radical, não somente no o homem. Entretanto, para além das dife­
plano da propriedade e das estruturas do renças, é possível um diálogo fecundo. Por
poder, mas também da cultura e da escola, isso, diz Garaudy, “nós comunistas não des­
da religião e da fé, da vida e de seu sentido. prezamos nem escarnecemos do cristão por
E preciso mudar o mundo e mudar a vida sua fé, por seu amor, por seus sonhos, por
[...]. A única hipótese a excluir é continuar suas esperanças. Nossa tarefa é trabalhar e
no caminho atual”. Não é preciso “criar um lutar para que tais coisas não permaneçam
partido, mas um espírito”, conscientes de eternamente distantes ou ilusórias [...], para
que “não temos a possibilidade de escolha que os próprios cristãos encontrem sobre a
entre a ordem e a mudança, mas entre uma nossa terra um início do céu deles”.
C ã p í t u l o v ig é s itT lO q u i n t o - O m a rx ism o d e p o is d e ]\A a r x

ginário; o humanismo fixa o “homem” no


centro e não percebe que ele desenvolve
papel decididamente secundário. Em Ler
M SM ;A'VupHit*a ep is+ em o ló g ica "
o Capital, Althusser afirma: “ O sujeito
d o /v/lai*x d e "1845
nada mais é do que o suporte das relações
de produção [...]. Sua realidade não é mais
consistente do que a de um sutil suporte” .
Radicalmente contrário à interpretação Em suma, é preciso compreender que “não
“humanista” de Marx é Louis Althusser, temos a ver com homens concretos, mas
nascido em 1918 em Birmandreis (nas pro­ com homens enquanto exercem certas
ximidades de Argel). Aluno de Bachelard, funções determinadas na estrutura: porta­
foi depois professor na École Normale Su­ dores de força de trabalho, representantes
périeure de Paris até 1981, ano em que foi do capital [...]. Os homens aparecem na
tragicamente colhido pela doença mental. teoria apenas sob forma de suporte das
Faleceu em 1990. É aytor de dois livros relações implicadas na estrutura, e as for­
bem conhecidos: Para M arx (1965) e, em mas de sua individualidade como efeitos
colaboração, Ler o Capital (1965). particulares da estrutura [...]. Os indiví­
Posicionando-se contra a revalorização duos são apenas os efeitos da estrutura”.
do “jovem Marx” dos Manuscritos, contra Essa, portanto, é a razão por que O Capital
as tentativas de camuflar Marx com Hegel constitui autêntica ruptura com as idéias
ou com Husserl, com o risco de não mais se marxistas anteriores a ele: O Capital nos
reconhecer o verdadeiro Marx, Althusser de­ dá os princípios necessários a fim de definir,
terminou-se a evidenciar a especificidade da para o modo de produção capitalista, “as
teoria marxista. E o faz usando instrumentos diversas formas de individualidade exigidas
intelectuais provenientes do estruturalismo e produzidas por esse modo de produção,
e da epistemologia de Bachelard. segundo as funções das quais os indivíduos
Antes de mais nada, no prefácio ao são suportes ” .
livro Para M arx, ele mostra que, por longo O anti-humanismo teórico de Marx,
período, a filosofia marxista desenvolveu, portanto, é a condição para o conhecimento
de maneira exclusiva, três funções: do mundo humano e para sua transforma­
1) a função apologética (no sentido de ção prática. Em Para M arx podemos ler:
que era praticada a fim de justificar uma “Não é possível conhecer alguma coisa
política bem precisa e uma práxis bem de­ sobre os homens a não ser sob a absoluta
terminada); condição de reduzir a pó o mito filosófico
2) a função exegética (consistindo no (teórico) do homem. Desse modo, todo
comentário a textos reputados como verda­ pensamento que se remetesse a Marx para
des definitivas); restaurar de um ou de outro modo uma
3) a função prática (tendendo a “di­ antropologia ou um humanismo filosóficos
vidir o mundo com corte claro”, com base teoricamente nada mais seria do que pó” .
na contraposição das classes, introduzindo O marxismo, porém, “em virtude da única
essa divisão na própria ciência, que assim
ruptura epistemológica que o fundamenta”,
era cindida em “ciência burguesa” e “ciência não somente é anti-humanismo, mas é tam­
proletária” ). bém “anti-historicismo”.
Althusser reage a esses usos da filosofia
A história não se desenvolve de modo
marxista. Ele não distingue mais entre ciên­ linear, nem se aproxima progressiva e inevi­
cia burguesa e ciência proletária, e sim entre
tavelmente de uma meta prefixada. Althus­
ciência e ideologia (e, para ele, a ideologia
ser sustenta que Marx só teria herdado de
não é uma teoria descritiva da realidade, e Hegel a idéia de que a história é “processo
sim muito mais “uma vontade [...], ou uma
sem sujeito”, e não a doutrina da dialética.
esperança, ou uma nostalgia”, dispondo-se
A história não se realiza conforme um plano
então a “buscar a nova concepção de ciência
ou, de qualquer modo, de maneira unili-
na qual se baseia O Capital” .
near, e sim por rupturas sucessivas. Não é
a dialética, mas a sobredeterminação que
W SM q u e o m arxism o constituiria “a especificidade da contradi­
é." an ti-\\u m an \sv n o " e." an¥\-W isior\c\sm o" ção marxista” . E a sobredeterminação é o
efeito gerado pelo conjunto das circunstân­
O humanismo é ideologia, porque cias concretas ou, se assim se preferir, pela
fala de um “homem” completamente ima­ convergência dos elos estruturais. Por isso,
452 Oitava parte - O m a rx ism o d e p o is d e M a r x e a é ^ sc o la d e F ran k fu rt

Louis Altbusser (1918-1990),


autor de Para Marx,
foi radicalmente contrário
à interpretação “humanista " de Marx.

a contradição econômica é “determinante, essas coisas são ideologia porque, nelas, “a


mas ao mesmo tempo determinada pelos função prático-social prevalece sobre a fun­
diversos níveis e pelas diversas instâncias ção teórica (ou função de conhecimento)”.
da formação social que anima”. E é “no seio dessa inconsciência ideológica
Por conseguinte, pode parecer que, (que) os homens conseguem modificar suas
mesmo não negando o caráter fundamental relações vividas com o mundo ” . Mas não se
do momento econômico, Althusser, preci­ deve pensar que são o homem e a ação de
samente em razão do seu anti-historicismo, uma classe que fazem a história, nem que
tende a atenuar o economicismo marxista. esta se dirija de modo necessário em direção
Por outro lado, continua afirmando Al­ a um fim progressivo (entre outras coisas,
thusser, se é verdade que a ciência não é os fatos não são valores). Para Althusser,
ideologia, também é verdade que nenhuma a história deve ser vista muito mais como
sociedade humana pode prescindir da ideo­ série descontínua de conjunturas de várias
logia. A ideologia é “a relação vivida pelos estruturas, e os indivíduos, como as classes,
homens com o m undo” . A ideologia é a não são compreensíveis fora das estruturas
moral, a religião, a arte, a política. E todas e de suas conjunturas.
Capítulo vigésimo quinto - O m a rx ism o d e p o is d e JV ia r x

VII. o neoma^xismo v\c\ ia

• Antônio Labriola (1843-1904) foi estudioso e difusor do marxismo na Itália.


Aluno de Spaventa em Nápoles e depois professor em Roma, autor da obra Do
materialismo histórico (1897), Labriola não nega a tese central
do materialismo histórico, ou seja, a tese da primariedade da es- Labriola:
trutura econômica sobre a superestrutura das idéias; ele, todavia, a relação entre
adverte sobre o fato de que tal tese "não pode, à guisa de talismã, estrutura e
valer continuamente, e à primeira vista, como meio infalível" para superestrutura
compreender os fatos sociais. As formas de consciência também é "bastante
são história, e a relação de derivação delas da estrutura é "bas- complicada"
tante complicada" e nem sempre decifrável". 1

• Antônio Gramsci (1891-1937), o mais original pensador marxista italiano,


esteve, em 1921, entre os fundadores do partido comunista. Preso pela polícia
fascista em novembro de 1926, em 1928 Gramsci foi condenado a vinte e quatro
anos de prisão na casa penal de Turi. Tendo-lhe sido reduzida a pena, Gramsci foi
liberto em abril de 1937; doravante, porém, fisicamente debili- .
tado, consumiu-se em uma clínica romana, alguns dias depois de Gram^ci: r .
ter obtido a liberdade. Cheias de humanidade são suas Cartas do u,m adversano
cárcere. O pensamento de Gramsci - uma das reelaborações mais f°sçfs%me
notáveis do marxismo neste século - foi desenvolvido principal- $2 1
mente nos Cadernos do cárcere.

• Querendo inserir o marxismo dentro da tradição cultural italiana, Gramsci


foi obrigado a confrontar-se com a presença maciça, na cultura italiana, da filo­
sofia de Benedetto Croce. Gramsci explica o sucesso das idéias de Croce pelo fato
de que, relativamente a outras filosofias "especulativas", a de
Croce expressou "maior aderência à vida", ou seja, aos proble- a filosofia
mas assim como historicamente se dão. Em todo caso, mesmo a da práxis:
de Croce é, na opinião de Gramsci, uma "filosofia especulativa", uma concepção
uma metafísica da história. E a ela Gramsci opõe sua filosofia da vida.
da práxis, concepção imanentista, sem dúvida, mas reduzida a "reduzida
pura história, privada, portanto, de elementos metafísicos; e, 3
portanto, contrária a conceber a estrutura econômica de modo ' ’ ‘
especulativo e doutrinário como se fosse "um deus oculto". O ........................
materialismo histórico é um erro. A alma do marxismo é o método dialético, que
permite compreender as contradições sociais, as situações concretas em que vivem
homens concretos. É esta a lição que tiramos de Lênin: como sintetizar teoria e
práxis de modo a chegar à conquista do poder, qual estratégia usar para pene­
trar na cidadela do comando e dela se apoderar. A lição de Lênin é importante
- sustenta Gramsci - não porque devamos repeti-la, e sim pela razão de que ela
delineia o caminho para construir - em condições históricas a serem analisadas de
quando em vez - a sociedade socialista. E é sobre essas premissas que se insere a
teoria gramsciana da hegemonia.

• A sociedade divide-se em classes; e para que uma classe possa se tornar su­
jeito histórico, ou seja, guia da sociedade, deve tornar-se classe dirigente. A classe
dirigente é aquela que - pela força de sua própria organização, de sua própria
ideologia, de uma superioridade moral e da capacidade de resolver os problemas
- obtém o consenso das outras classes, formando assim um bloco histórico, e dessa
forma está pronta para se tornar classe dominante.
Em poucas palavras, "a supremacia de um grupo social - escreve Gramsci
- manifesta-se de dois modos, como 'dom ínio' e como 'direção intelectual
O i t ã V ã parte - CD m a ^ i s m o d e p o is d e AAarx e a éE-scola d e F rank furt

e m oral'". E apenas entrando na sociedade civil (a imprensa,


^ teoria da a escola, os sindicatos etc.) e difundindo-se com um trabalho
hegemonia incansável as próprias crenças e os próprios ideais, a classe que
-> § 2 A- 2.6 tende à hegemonia pode lançar as bases de seu domínio. Aqui
insere-se a figura do intelectual orgânico, o qual, no pensamento
de Gramsci, se identifica com o dirigente ou responsável de partido; e o partido
comunista - que é a encarnação da vontade revolucionária jacobina - "representa
a totalidade dos interesses e das aspirações da classe trabalhadora".

1 ^Antônio .Labriola KE9 y\ c o n c e p ç ã o m aterialista


d a kistória

E aqui se inserem as convicções de


■ n « o m a r x is m o n ã o é p o s ifiv is m o
Labriola sobre a i'exata quaestio que, no
n e m n a t u r a li s m o ^
desenvolvimento do marxismo, diz respeito
às relações entre estrutura e superestrutura.
O pensador mais original do neomar- Somente “o amor pelo paradoxo, sempre
xismo italiano, sem dúvida, foi Antônio inseparável do zelo dos divulgadores apai­
Gramsci (1891-1937). Entretanto, antes xonados de uma doutrina nova, pode ter
dele, o marxismo fora estudado, interpre­ induzido alguns à crença de que, para escre­
tado e difundido sobretudo por Antônio ver a história, basta evidenciar unicamente
Labriola (1843-1904), que foi aluno de o ‘momento econômico’ (freqüentemente
Spaventa em Nápoles e depois professor ainda não identificado e muitas vezes não
em Roma. Aproximando-se de Hegel identificável em absoluto) para se poder
por influência de Spaventa, Labriola, em atirar fora todo o resto, como fardo inú­
um segundo momento — nas décadas de til”. Engels (com quem Labriola manteve
1870/1880 — , manifestou acentuado in­ correspondência) já evidenciara que os fatos
teresse por Herbart, até que, por volta de históricos são explicáveis por meio da estru­
1880, converteu-se ao marxismo. O escrito tura econômica a eles subjacente apenas “em
Em memória do manifesto dos comunistas última instância”.
é de 1896, e Sobre o materialismo histórico Com isso não se está de modo algum
é de 1897. dizendo que Labriola rejeita a tese central
Antes de mais nada, Labriola procura do materialismo histórico. Ao contrário,
acentuar a distinção entre marxismo e po­ escreve ele, “é indiscutível [...] para nós o
sitivismo. Do positivismo, Labriola aceita princípio de que não são as formas da cons­
o método científico, mas rejeita a visão ciência que determinam o ser do homem,
materialista do universo. A palavra matéria, mas que é precisamente o modo de ser que
escreve ele, “é sinal ou recordação de uma determina a consciência”. Mas, prossegue
cogitação metafísica ou [...] é expressão do Labriola, “ essas form as da consciência,
último substrato hipotético da experiência como são determinadas pelas condições de
naturalista” . Entretanto, o materialismo vida, constituem também a história, que
histórico não é metafísica da matéria nem não é somente anatomia econômica [...]”.
opera “no campo da física, da química, da A teoria do materialismo histórico, isto é, a
biologia” . teoria da primariedade da estrutura econô­
Em suma, o marxismo não é ma­ mica sobre a superestrutura das idéias, “não
terialismo metafísico nem naturalismo. pode, à maneira de talismã, valer continua­
Insiste Labriola: a cultura não é natureza, mente e à primeira vista como meio infalível
ainda que os dois momentos se entrelacem para resumir em elementos simples a imensa
continuamente. Não se trata “de indagar maquinaria e a complicada engrenagem da
sobre o viver humano, isto é, estudar “as sociedade”. E isso pelo fato de que “a estru­
condições explícitas do viver humano, no tura econômica subjacente, que determina
sentido de que ele não é mais simplesmente todo o resto, não é um simples mecanismo
animal” . do qual brotam, como efeitos automáticos
Capítulo vigésimo quinto - O m ai-xism o d e p o is d e A W x

Antônio Gramsci (1891-1937) teve


como intenção de fundo
a de inserir Marx na tradição italiana,
e sustentou que
a Revolução de Outubro
foi uma revolução contra O Capital.

e maquinais imediatos, as instituições, leis, bre as camadas intelectuais italianas, sobre


costumes, pensamentos, sentimentos e ideo­ as formas de greve e os conselhos operários,
logias. Daquele substrato para todo o resto, sobre a filosofia de Benedetto Croce.
o processo de derivação e mediação é muito Nascido em Ales (na província de
complexo, freqüentemente sutil e tortuoso, Cágliari) em 1891, Gramsci, que provinha
nem sempre decifrável” . de família pobre, conseguiu se matricular
na Universidade de Turim, depois de con­
cluídos seus estudos secundários, graças a
_X_ A n tô n io G m tn s c i
uma bolsa de estudos. Por volta de fins de
1914, porém, deixou a universidade para
se dedicar à atividade política. Juntamente
m \ v id a e a ob**a com outros, foi promotor da experiência tu-
rinense dos “conselhos de fábrica”. Sempre
Desenvolvido sobretudo nos seus Ca­ mais insatisfeito com a política do partido
dernos do cárcere, o pensamento de Antônio socialista, em 1921 estava entre os funda­
Gramsci constitui uma das mais notáveis re- dores do partido comunista. Já em 1919,
elaborações do marxismo neste século, seja juntamente com Palmiro Togliatti, dera vida
por sua constante referência a problemas ao “Nova Ordem”, inicialmente semanário
sociais, culturais e políticos concretos, seja e depois diário. Em 1922, convidado pela
por sua intenção de inserir o marxismo na Internacional para ir a Moscou, Gramsci
tradição italiana. A esse objetivo, precisa­ conheceu Lênin. Voltando à Itália em 1924,
mente, correspondem, por exemplo, seus es­ foi eleito deputado e passou a dirigir o “Uni-
tudos sobre Maquiavel, sobre a Renascença tà”, órgão do partido comunista. Preso pela
italiana, sobre a questão meridional, sobre polícia fascista em novembro de 1926, foi
os católicos, sobre suas instituições e organi­ condenado em 1928 pelo tribunal especial a
zações, sobre os movimentos operários, so­ vinte e quatro anos de prisão, a serem cum­
OitãVã parte - O m a rx ism o d e p o is d e A ^ a rx e a íE so o la d e F ran k fu rt

pridos na penitenciária de Turi. Obtendo fosse “um deus oculto”. A estrutura, ao con­
redução da pena, Gramsci foi libertado em trário, deve ser concebida “historicamente
abril de 1937, mas sua condição física já como o conjunto das relações sociais em que
era muito precária. Morreu em uma clínica os homens reais se movem e agem [...]”.
romana uma semana depois de ter obtido As filosofias especulativas idealistas
a liberdade. não servem, portanto, para compreender a
Suas Cartas da prisão são profudamen- história, mas também são inadequados os
te humanitárias. esquemas simplistas do marxismo vulgar.
A compreensão da história necessita de
MSM jA "filosofia d a p rá x is " um método próprio: o método dialético,
c o n tra a "filosofia e s p e c u la tiv a "d e íS ro c e que foi domesticado por Croce, não foi
compreendido pelos marxistas vulgares e
Assim, uma das intenções de fundo da foi ignorado pelos sociólogos. Somente a
reflexão filosófica de Gratnsci foi a de inserir dialética nos permite compreender o que é
o marxismo na tradição italiana. Foi por a realidade, enquanto ela é a consciência das
essa razão que, antes de mais nada, ele teve contradições sociais em que vivem homens
de se defrontar com a filosofia de Benedetto reais e que, em situações concretas, devem
Croce e com a hegemonia que essa filosofia ser enfrentadas por homens reais, que têm
conquistara na cultura italiana. Gramsci às suas costas uma tradição específica e não
achava que um dos motivos do sucesso do outra qualquer.
historicismo croceano foi o fato de Croce ter
lutado com eficácia “contra a transcendên­ B I .A te o ria d a k eg em o n ia
cia e a teologia em suas formas peculiares ao
pensamento religioso-confessional”. Ligado Com base nisso, não é difícil perceber
a isso também se encontra o fato de que que a filosofia da práxis de Gramsci consti­
a filosofia de Croce, em comparação com tui uma concepção do marxismo contrária
as outras filosofias tradicionais, expressou às interpretações de cunho positivista e
“maior adesão à vida”, afirmando que “a mecanicista. E uma concepção na qual os
filosofia deve resolver os problemas que, em acontecimentos estruturais se entrelaçam e
seu desenvolvimento, o processo histórico interagem com elementos humanos como a
apresenta a cada vez” . vontade e o pensamento. Essa, portanto, é
Entretanto, na opinião de Gramsci, a lição que se deve aprender de Lênin: como
Croce permanece ligado a uma “filosofia sintetizar dialeticamente teoria e práxis de
especulativa”, a uma metafísica da história, modo a chegar à conquista do poder por
pela qual “no processo dialético se pressu­ uma força emergente que visa à criação de
põe ‘mecanicamente’ que a tese deva ser uma nova civilização. A lição de Lênin é im­
‘conservada’ pela antítese para não destruir portante não porque devamos repeti-la, mas
o próprio processo, que assim é ‘previsto’, porque nos indica a estratégia para penetrar
como uma repetição ao infinito, mecânica (em condições diversas, a serem analisadas)
e arbitrariamente prefixada”. na cidadela, a fim de criar a sociedade so­
Desse modo, a filosofia de Croce é cialista. É precisamente aqui que se insere a
uma “filosofia especulativa” e Gramsci lhe teoria gramsciana da “hegemonia”.
opõe sua Filosofia da práxis ou historicismo A sociedade se estrutura em classes.
absoluto, entendido como “a mundanização Ora, para que uma classe possa se colocar
e terrenidade absolutas do pensamento, como sujeito histórico, isto é, como motor
um humanismo absoluto da história”. Em que guia e plasma a sociedade inteira, deve
outros termos, “a filosofia da práxis deriva “distinguir-se” e conquistar “autoconsciên-
certamente da concepção imanentista da cia crítica” , ou seja, deve configurar-se
realidade, mas depurada de todo aroma como força que, com base na própria ideo­
especulativo e reduzida a pura história, his- logia, na própria organização e na própria
toricidade ou puro humanismo” . B 3 T 1 superioridade moral e intelectual, possa
configurar-se como classe dirigente. Ora,
E U 0 " m é t o d o d ia lé tic o " uma classe torna-se dirigente quando, tendo
forjado as energias e capacidades necessárias
A filosofia da práxis elimina “todo resí­ e percebendo seu direito de dirigir a socie­
duo de transcendência e de teologia”. E, por dade inteira, obtém o consentimento das
outro lado, não pode conceber a estrutura de classes subalternas, fundando assim um bloco
maneira especulativa e doutrinária, como se histórico, isto é, um sistema articulado e
Capítulo vigésimo quinto - O marx ismo depois de Marx

orgânico de alianças sociais ligadas por uma


ideologia comum e por uma cultura comum.
Escreve Gramsci: “Nunca existiu um Estado
sem hegemonia” e, em substância, a luta | ■ H e g e m o n ia (te o r ia d a h e g e - |
entre duas classes pelo domínio é “luta entre | m o n ia ). Com esse conceito Gramsci I
duas hegemonias” . Por tudo isso, devemos % denota a capacidade de direção que ;
distinguir entre a classe dominante e a classe | - graças à própria organização, à j

dirigente: “A supremacia de um grupo social | sua própria superioridade moral e f


| intelectual - uma classe que aspira ao í
manifesta-se de dois modos: como ‘domí­
| poder fará valer com o fim de obter J
nio’ e como ‘direção intelectual e moral’ | o necessário consenso, que fará com f
O comando entra em crise quandof a que ela se torne classe dominante. J
classe dominante perde a capacidade de | E uma classe jamais poderá ser diri- -.
encontrar as soluções dos novos problemas. | gente e depois dominante sem orga- I
E ela a perde porque nesse meio tempo | nizar-se; e não há organização sem j
nasceu e se desenvolveu uma nova classe f intelectuais, ou seja, sem organiza- f
dirigente e hegemônica que, todavia, ainda | dores e dirigentes, isto é, "sem que o |
não é dominante, mas que, percebendo com | aspecto teórico da ligação teoria-prá- J
prepotência seu direito de sê-lo, ela assim se f ticasedistingaconcretamenteemum !
| estrato de pessoas'especializadas'na j
tornará e, se for preciso, com a violência.
| elaboração conceitual e filosófica". j
I Essas pessoas "especializadas" na 1
| elaboração conceitual e filosófica são J
S o c ie d a d e p olítica
os intelectuais orgânicos, os quais dão §
e s o c ie d a d e civil | ao proletariado "a consciência de sua j
| missão histórica" e, ao mesmo tempo, f
Mas deve-se ir além; a distinção entre | as armas que permitirão a ele conquis- J
domínio e hegemonia permite a Gramsci | tar as várias instituições da sociedade j
traçar outra distinção significativa: entre | c/V/V (imprensa, escola, sindicatos etc.),
sociedade política e sociedade civil. A so­ f até que a Cidadela de comando caia !
| em mão socialista. :
ciedade política é dada pelo Estado, isto
é, pelo poder como força, ou seja, pela r- ■ - r '
máquina jurídico-coercitiva; já a sociedade
civil é dada pela trama das relações que os
homens estabelecem em instituições como os
sindicatos, os partidos, a Igreja, a imprensa,
a escola e assim por diante.
E é exatamente nas instituições da
E O O intelectual “o rg â n ic o ",
sociedade civil que a classe que tende à
e o p a rtid o c a m a " p r ín c ip e m o d e r n a "
hegemonia deve difundir, através de ação
cotidiana e incessante, seus valores, suas
crenças, seus ideais, criando assim a uni­ O grupo social que pretende conquistar
dade moral e intelectual entre os diversos a Cidadela, portanto, deve, antes de mais
grupos sociais, e criando o consenso em nada, elaborar uma cultura própria, uma
torno de uma cultura que se apresenta com visão de mundo e um conjunto de ideais que
os sinais da validade universal e com a for­ o ponham em condições de apresentar sua
ça persuasiva da capacidade de resolver os candidatura à direção da sociedade nacio­
problemas prementes da vida nacional. E, nal. Mas isso não basta, já que também deve
criando consenso, o grupo social hegemô­ se organizar para difundir essa cultura entre
nico cria a base do domínio. Desse modo, as massas e fazê-la transformar-se em pa­
a história não é mais concebida, segundo o trimônio nacional. Ao mesmo tempo, deve
esquema clássico marxista, como a história dar vida a um organismo autônomo que
do desenvolvimento das forças produtivas, discipline de modo férreo as forças sociais
e sim muito mais como a história (densa interessadas na mudança e que pretendem
de contrastes, de inter-relações, de crise de instituir nova organização social.
diversos tipos) da gênese e da expansão de Aí estão precisamente as raízes das
princípios hegemônicos ou modelos cultu­ duas grandes questões enfrentadas por
rais diferentes, ou até antagônicos. Portanto, Gramsci: a função dos intelectuais e a na­
no desenvolvimento da história é a superes­ tureza do partido. E isso pelo fato de que
trutura que se torna fundamental. “a ‘massa’ não se ‘distingue’ e não se torna
O i t ã V ã parte - (D m a ^ is i t io d e p o is d e e a Ê s c o l a d e T=VcmkfuH'

‘independente’ sem se organizar. E não há diante, não souberam unificar culturalmente


organização sem intelectuais, isto é, sem a sociedade e, como Croce e Gentile, preten­
organizadores e dirigentes, ou seja, sem que deram representar a “alta cultura” oposta à
o aspecto teórico do nexo teoria-prática se e separada da “cultura popular”, o intelec­
distinga concretamente em uma camada tual marxista é, ao contrário, um intelectual
de pessoas ‘especializadas’ na elaboração orgânico. Na realidade, escreve Gramsci,
conceituai e filosófica”. “toda relação hegemônica é necessariamen­
Os intelectuais, portanto, são necessá­ te uma relação pedagógica”. N a visão de
rios para a construção do socialismo: eles Gramsci, portanto, o intelectual orgânico
são os “representantes da ciência e da técni­ tende a se identificar com. o dirigente ou o
ca” que dão “ao proletariado a consciência responsável do partido. E o próprio partido,
de sua missão histórica” . Desse modo, o interpretando os interesses e as aspirações
intelectual não é mais o desinteressado pes­ dos seus membros e oferecendo-lhes “todas
quisador da verdade; ele configura-se como as satisfações que encontravam antes em
agente do partido. DeVe transformar-se, uma multiplicidade de organizações”, tende
escreve Gramsci, “em político, em dirigente a situar-se como intelectual orgânico por
orgânico de partido”. excelência. “O partido comunista representa
O intelectual é um “funcionário” , a totalidade dos interesses e das aspirações
um “persuasor permanente”, um “agente da classe trabalhadora”, é a encarnação da
da classe dominante”. Mas, enquanto os vontade coletiva revolucionária jacobina; é,
intelectuais italianos, da Renascença em portanto, o príncipe moderno. ST81

Fotografia
da redação de
“Nova Ordem ”,
da qual Gramsci
foi um
dos fundadores.

[
459
Capítulo vigésimo quinto - O m a ^ i s m o d e p o is d e y V W x .

de terras e do mais rico capitalista. Os impos­


tos iridiretòs^sofreram uma redução constante,
B ernstein e os diretos um aumento constante (em 1 8 6 6
foram recolhidos 100 milhões de marcos em
cifra redonda de impostos sobre rendimentos;
em 1 8 9 8 , 3 3 0 milhões, aos quais se acrescen­
D "fl democracia tam como mínimo entre 8 0 a 100 milhões de
marcos de entradas suplementares devidas
é a arte elevada ao aumento do imposto de sucessão), fl legis­
lação agrária se libertou do temor reverenciai
do compromisso" pelo absolutismo proprietário, e o direito de
expropriação, até agora reconhecido apenas
"fí democracia é ao mesmo tempo meio por motivos de viação e de higiene, ogora
e Fim [...]; e o direito çfe voto se torna o investe também em linha de princípio as trans­
instrumento para transformar realmente os formações econômicas. € conhecido depois o
representantes do povo, de patrões em quanto tenha radicalmente mudado a política
servidores do povo". do €stado o respeito dos trabalhadores por
ele direta ou indiretamente ocupados, e qual
extensão tenha sofrido a legislação de fábrica
fl democracia é ao mesmo tempo meio a partir de 1 8 7 0 . Todas estas medidas, e a
e fim. G o meio do luta pelo socialismo, e é a imitação que em grau variado elos tiveram no
forma da realização do socialismo. €la não pode continente, foram devidas não exclusivamente,
fazer milagres, é verdade. Não pode, em um mas sem dúvida substancialmente, à democra­
país como a Suíça, cujo proletariado industrial cia ou àqúela margem de democracia efetiva
representa a minoria da população (nem meio de que dispõem os respectivos países. € se é
milhão contra dois milhões de adultos), entre­ fato que para questões particulares a legisla­
gar a este proletariado o poder político. Não ção dos países politicamente avançados não
pode sequer, em um país como a Inglaterra em procede com a mesma rapidez que por vezes
que o proletariado representa há muito tempo se encontra em países que, embora estando
a classe mais numerosa da população, fazer em condições políticas relativamente mais
deste proletariado o patrão da indústria, se o atrasadas, foram estimulados por monarcas ou
próprio proletariado em parte não tem nenhu­ ministros empreendedores, em troca, porém,
ma vontade de se tornar isso, e em parte não nos países de democracia enraizada, jamais
se sente ou ainda não se sente maduro para há um regresso nessa direção.
as tarefas que lhe são inerentes. Todavia, na O princípio da democracia é a supressão
Inglaterra e na Suíça/na frança e nos €stados do domínio de classe, fala-se, e em certos
Unidos, nos países escandinavos etc., ela se aspectos justamente, do caráter conservador
demonstrou uma alavanca poderosa do pro­ da democracia. O absolutismo ou o semi-
gresso social, fl quem nõo dó importância òs absolutismo engana fautores e adversários
etiquetas, mas ao conteúdo, bastará passar em sobre o entidade de seu poder. De onde, nos
revista a legislação inglesa a partir da reforma países em que ele domina ou suas tradições
eleitoral de 1 8 ó 7 , que concedeu o direito ao sobrevivem, os projetos extravagantes, a lin­
voto para trabalhadores urbanos, para consta­ guagem forçada, a política tortuosa, o medo
tar que importante progresso se fez na direção da revolução e a esperança na opressão.
do socialismo, ou até no socialismo. € dessa Na democracia os partidos, e as classes que
época que existe em três quartos do país a estão por trás dos partidos, aprendem logo a
escola elementar pública, enquanto até então conhecer os limites de seu poder e a delinear
existiam apenas as escolas privadas e clericais, toda vez apenas aquelas ações que eles e s­
fl freqüência à escola abrangia em 1 8 7 2 4 ,3 % peram poder razoavelmente realizar com base
da população, mas em 1 8 9 6 havia subido para nas circunstâncias objetivas. Mesmo quando
1 4 ,2 %; em 1 8 7 2 o €stado expendia apenas 1 5 impelem suas reivindicações para além de
milhões de marcos por ano somente para as seu pensamento secreto, para poder ceder
escolas elementares; em 1 8 9 6 , ■1 2 7 milhões, no momento do inevitável compromisso - e a
fl administração da escola e da assistência democracia é a elevada escola cio compromisso
pública, nos condados e nas comunas, deixou - fazem-no sempre com moderação, é assim
de ser monopólio dos proprietários e dos privi­ que em democracia a própria extrema esquerda
legiados, e a massa dos trabalhadores tem o aparece no mais das vezes em uma luz conser­
mesmo direito de voto que o maior proprietário vadora, e a renovação, porque mais uniforme,
Oitava parte - O m a r x is m o d e p o i s d e A ^ a rx e a í S s c o l a d e F r a n k fu r t

aparece mais lento do qu® é no realidade. este processo, a social-democracia não tem
Mas sua direção é inconfundível. O direito de instrumento melhor do que aquele de se pôr
voto, em democracia, toma virtualmente seu sem reticências, também no plano doutrinai, no
titular participante da coisa pública, e essa terreno do sufrágio universal e da democracia,
pórticipação virtual deve-se traduzir, a longo com todas as conseqüências que daí derivam
prazo, em uma participação efetiva. Para uma para sua tática.
classe operária numérica e intelectualmente Praticamente, ou seja, em seus atos, a
não desenvolvida, o direito de voto pode social-democracia, no fundo, sempre fez isto:
parecer por muito tempo ainda o direito de freqüentemente não o fizeram e ainda hoje
escolher para si seu próprio “açougueiro", mas, não o fazem seus representantes literários
com o desenvolvimento numérico e intelectual em suas declarações, frases formuladas em
dos trabalhadores, ele se torna o instrumento um período em que em todo lugar na €uropa
pára transformar realmente os representantes dominava sem contrastes o privilégio da pro­
dò povo, de patrões em.servidores do povo. priedade - e que, portanto, eram explicáveis
Sé, nas eleições parlamèntares, os operários e em certa medida também justificadas naque­
ingleses votam para os membros dos velhos las circunstâncias, mas que hoje são apenas
partidos, e isso os faz parecer formalmente um peso morto - são tratadas com tal temor
como cauda dos partidos burgueses, resta o reverenciai, como se o avanço do movimento
fato de que nas circunscrições eleitorais indus­ dependesse delas e não do conhecimento
triais é sobretudo essa "cauda" que faz mover vivo daquilo que se pode fazer e é urgente
a cabeça, e não o contrário. Prescindindo de- fazer. Ou talvez tem um sentido, por exemplo,
ppis do fato de que a extensão do direito de agarrar-se à frase da ditadura do proletariado
voto realizada em 1 8 8 4 , unida à reforma das em um período em que, em todo lugar, os
representações comunais, adquiriram para a representantes da social-democracia se põem
social-democracia na Inglaterra o direito de praticamente no terreno da ação parlamentar,
cidadania como partido político. da representação proporcional e da legisla­
€ é substancialmente diferente a situação ção pública, coisas todas que contradizem a
em outros lugares? O sufrágio universal na ditadura? Hoje aquela frase sobreviveu a si
Rlemanha pôde também servir transitoriamente própria a tal ponto que a única possibilidade
para Bismarck como instrumento, mas no fim de conciliá-la com a realidade é despojar o
obrigou Bismarck a servir ele próprio como termo "ditadura" de seu significado efetivo,
instrumento para o sufrágio universal; pôde e de atribuir-lhe um sentido mais matizado.
temporariamente favorecer os Junker do €lba Toda a atividade prática da social-democracia
oriental, mas há muito se tornou sua besta dirige-se à criação de situações e de pressu­
negra; pôde permitir a Bismarck, em 1 8 7 8 , postos que tornam possível e garantem uma
forjar a arma da lei sobre os socialistas, mas ultrapassagem sem rupturas violentas da or­
foi justamente sobre o sufrágio universal que dem social moderna para uma ordem superior.
essa arma se embotou e se enfraqueceu, e foi Se pela consciência de serem os pioneiros de
justamente mediante o sufrágio universal que uma civilização superior os sociais-democratas
se conseguiu finalmente fazê-la cair das mãos atingem o entusiasmo que os inflama, sobre
de Bismarck. Se, em 1 8 7 6 , Bismarck, em vez de tal consciência apóia-se também, em última
fazer uma lei excepcional policialesca, tivesse análise, a justificação ética da expropriação
feito, com a maioria de que dispunha então, social a que eles visam, fi ditadura de classe,
uma lei excepcional política que excluísse de ao contrário, pertence a um nível de civiliza­
novo os operários do direito de voto, ele teria ção mais atrasado, e também abstraindo da
desferido na social-democracia, por longo pe­ racionalidade e da realizabilidade da coisa,
ríodo, um golpe mais forte do que aquele que apenas uma recaída no atavismo político pode
lhe desferiu com a outra. Todavia, não há dúvida evocar a idéia de que a passagem da socie­
de que nesse caso teria atingido também outras dade capitalista para a sociedade socialista
pessoas. O sufrágio universal, como alternativa deva necessariamente realizar-se dentro de
para a revolução, tem dois gumes. formas evolutivas de uma época que ainda
• Mas o sufrágio universal é apenas um não conhecia, ou conhecia apenas imperfeita­
fragmento de democracia, mesmo.que seja um mente, os métodos atuais de propagação e de
fragmento que, a longo prazo, é destinado a conquista das leis, e que carecia dos órgãos
atrair os outros, como o ímã atrai os fragmen­ aptos para tal escopo.
tos de ferro, é um processo que certamente €. Bernstein,
avança mais lentamente do que muitos de­ Os pressupostos do socialismo
sejam e, todavia, está em ato. Para favorecer e as tarefas da social-democracia.
461
Capítulo vigésimo quinto - O m a r x is m o d e p o i s d e M a r x -.

Com efeito, o progresso não é de modo nenhum


o resultado de uma capacidade de impor-se
A d le r de modo definitivo que caracterize o ideal da
humanidade, nem em geral de uma atividade
finalista dos homens conscientemente nelo
inspirada, e nem sequer de uma obra da pro­
vidência ou do supremo amor divino, mas muito
Onde Marx mois o resultado necessário e cego justamente
se assemelha a Kant dos instintos vulgares do humanidade, de todos
os seus nus e crus instintos d® conservação e
das paixões dirigidas a satisfazer os próprios
Paro Rdler a concepção do historio pro­ interesses. O progresso se verifica não tanto
posto porHont é assimilável oo moteriolismo por meio de, e sim, por assim dizer, contra a,
dialético d e Marx: "é principalmente o con­ e em todo caso (ao menos até agora) sem a
ceito kantiano do antoqpnismo que mostra vontade da humanidade. O mesmo mecanismo
não só uma semelhança extrínseco com o que regula conforme uma ordem sublime a
conceito marxista da dialético, mas deve até história notural do céu apenos graças a suas
ser diretamente indicado como o lodo interior, Forças materiais, sem nenhuma intervenção de
psicossociol, desta última". uma divindade ou de outros poderes conscien­
tes, cria também na história dos homens uma
ordem finalista, tirando-a do caos das forças
puramente humanas.
fl concepção do história, como em Marx, Já a partir destas lapidares idéias funda­
também em Kant constitui parte integral de sua mentais o socialismo moderno, construfdo pelo
concepção geral, embora em ambos os casos pensamento de Marx e de Cngels, sente-se
jamais seja exposto de modo sistemático, mas atraído de modo particular. Com efeito, algu­
encontra-se entrelinhada um pouco em todo mas das idéias fundamentais da concepção
lugar nas obras dos dois pensadores. Hant, materialista da- história estão aqui já expres­
todavia, delineou um esboço bastante signi­ sas com clareza extraordinária e também com
ficativo de sua concepção da história em um agudez polêmica: que a história é um processo
breve mas notabilíssimo escrito, que apenas puramente humano, conforme a leis causais
nos últimos anos assumiu maior importância, (mesmo que de tipo particular); que nesse
ou seja, no ensaio Idéia para uma historio uni­ processo têm importância decisiva justamen­
versal do ponto de vista cosmopolítico ( 1 8 7 4 ). te aquelas tendências que estão dirigidas à
Aqui, a idéia fundamental que penetra todo o conservação da existência; que na história
pensamento kantiano do ponto de vista teórico abre caminho uma conformidade a leis, que
(isto é, compreender tudo aquilo que ocorre sob é completamente diferente da dos esforços
leis) é pela primeira vez aplicada à história de da vontade dos indivíduos; e que junto com
modo grandioso. O conceito de uma "história todo interesse particular do agir humano vai-
universal" deveria compreender tudo e apenas se, todavia, manifestando uma solidariedade
aquilo que vale para toda e qualquer história, sempre maior entre os homens. Mas, se exa­
aquilo que, portanto, refere-se à conformidade minarmos o modo com que Kant pensa a ação
a leis dos acontecimentos históricos que se das forças humanas na produção dessa con­
desdobram em representações tão variadas de formidade peculiar a leis, desse mecanismo do
povos e governos de diferentes tipos. Partindo progresso, então obteremos, por assim dizer,
daqui, a história doravante não é mais concebi­ uma complementação da concepção marxista
da como mistura desordenada de casualidade da história, que aprofundo o aspecto interior
e heroísmo, como a interligação de ação de e sociopsicológico desse problema, por Marx
sábios legisladores, grandes capitães e massas pouco tratado. [...] No aprofundamento desse
desenfreadas, mas como processo, isto é, como problema, Kant encontra uma contradição par­
um desenvolvimento que progride segundo leis. ticular entre as disposições naturais do caráter
C esse desenvolvimento não é carente de meta, humano, que determinam o querer. [...] Cssa
mas permite reconhecer um progresso contínuo, contradição fundamental e característica nas
dirigido a uma progressão sempre maior da disposições naturais humanas, ou seja, a con­
cultura da sociedade humana. O modo pelo tradição entre o ser social e o ser não-social,
qual, porém, conforme Kant, esse processo se não se deve entender tão simplesmente como
realiza constitui o elemento verdadeiramente se no comportamento do homem se aproximas­
grande e operante em sua teoria da história. sem alternativamente dois estados de espírito
Oitava parte - O m a rx is m o d e p o is d e yW:i>'x e a Ê s c o l a d e F ra n k fu rt

opostos, um altruísta e humanitário, 0 o outro cossocial, desta última. Se a dialética em Marx


friam0nt0 0goísta. Isso eqüivaleria, de fato, a mostra como o desenvolvimento social se rea­
degradar à trivial idade aquela que é, ao con­ liza quando as formas dos níveis de produção
trário, uma noção sociológica profunda. Além econômica pouco a pouco conquistados entram
disso, com 0sso contradição entende-se o fato em contradição com as forças produtivas que
de que essas tendências contrapostas entre si nelas se desdobram, esta vida, em si própria
estão contemporaneamente umo 00 lodo do aparentemente mística, das categorias econô­
outro em toda ação do homem, o qual, como micas é reconduzida, por meio do antagonismo
diz Kant, “não pode suportar seus consócios, kantiano, à sua célula germinal psicossocial, na
mas também não pode estar sem eles". Por natureza sociável-insociável da vida espiritual
isso, essa contradição não deve ser entendida individual. Gsta natureza humana, com seu fun­
em geral em sentido psicológico (como se com damental caráter antagônico de uma tendência
ela se pretendesse uma qualidade do caráter não-social à conservação e à expansão, que
de um ser humano, por meio da qual ele seria apesar de tudo pode se manifestar apenas
ora egoísta, ora altruísta)*;, mas muito mais em em formas sociais 0, embora isso a danifiqu©,
sentido sociológico, como Forma comum de subjaz até à própria desaprovação, constitui a
todo o seu agir em geral, que, tanto 0m suas inc0ssante força motora, por assim dizer, aquela
ações humanitárias quanto nas misantrópicas irritabilidade nas engrenagens do mecanismo
é, por assim dizer, tecido em uma formo funda­ social, que permite um movimento apenas no
mental do agir humano 0m geral, que consiste sentido das formas sociais, isto é, apenas
na tensão entre o interesse egoísta e o con­ com a transferência contínua do egoísmo para
dicionamento social. Por isso Kant chama de formas sempre mais elevadas de existência,
antagonismo essa contradição, indicando com de modo que a tal propósito possa delas de­
esse termo o fato de estar mutuamente ligado, rivar um progresso. € justamente porque Marx
a inseparável polaridade dos opostos; o quo, eliminou a forma metafísica da dialética como
de resto, é depois expresso ainda mais plas- ainda subsistia em Hegel, reduzindo-a a um
ticamente na esplêndida fórmula da insociável processo humano, ao movimento de homens
sociabilidade. Ga é, portanto, o meio mediante ligados entre si por vínculos econômicos, o
o qual desenvolve-se todo movimento da his­ antagonismo kantiano entre os homens apa­
tória, e representa 0 principal conformidade a rece apenas como contribuição posterior para
leis, por assim dizer, o esquema fundamental a humanização da própria dialética, mas ao
de toda causalidade que age no processo da mesmo tempo também como confirmação, tanto
história, por meio da qual, finalmente, realiza- mais apreciável enquanto alcançada a partir de
se o p rogresso histórico. [...] é, portanto, a um ponto de partida completamente diferente,
própria natureza que garante, justamente por deste conceito fundamental da concepção ma­
meio do mecanismo das disposições naturais terialista da história.
do homem, dentro do qual apenas todas as M as também os outros elementos da
forças históricas podem desdobrar sua eficácia, concepção kantiana da história mostram uma
um progresso na história, direcionado para concordância fundamental com a orientação
formos sempre mais vastos de socialização, mental de Marx nesse campo. Isso deve ser dito
para constituições sempre mais livres, poro a principalmente da idéia, que constitui a essência
paz perpétua na federação dos povos. O jogo autêntica da filosofia kantiana da história, ou
dos antagonismos opero como "máquina" na seja, que o objetivo da história brota de sua
história, e sua meta é a de introduzir entre os causalidade, e que, portanto, a teleologia da
povos uma ligação tal que eles possam con­ história não está em contraste com sua lega­
viver unidos entre si mediante seus próprios lidade causai, e sim muito mais é justamente
interesses e sem atritos, justamente "como um um resultado inevitável procedente dos fatores
mecanismo automático pode se manter por si dessa mesma legalidade. Como para Marx, a
mesmo". história não é dominada por uma idéia supe­
Toda essa grandiosa série de idéias da rior, por uma razão, e sim a razão se realiza,
filosofia kantiana da história mostra uma ex­ sem dúvida de modo definitivo e necessário,
traordinária e, à primeira vista, surpreendente mas apenas depois de um processo evolutivo
afinidade com as idéias fundamentais da con­ bastante longo e atormentado. Aquilo que
cepção materialista da história, é -sobretudo o Marx e íng els tão freqüentemente salientaram
conceito kantiano do antagonismo o que mostro é também a opinião de Kant: os homens fazem
não só uma semelhança extrínseca com o con­ sua história, mas não conscientemente, não com
ceito marxista da dialética, mas deve até ser base em pressupostos escolhidos por eles mes­
diretamente indicado como o lado interior, psi- mos e com resultados por eles desejados. Dela
.............................. 463
Cupítulo vigésimo quinto - O m a rx is m o d e p o i s d e _____

broto sempre alguma coisa diferente daquilo desfrutadores. Ou então, ao invés de deduzir
qu® havíamos previsto 0 desejado, mas essa a moral dos mandamentos da ética, dos man­
alguma coiso nos leva a todos necessariamente damentos de Deus, ©Ia 0 deduzida d0 frases
para um progresso comum. idealistas ou semi-idealistas que, 0m última
M. fldter, análise, têm sempre a máxima semelhança com
Hant 0 o socialismo. os mandamentos de Deus.
Nós rejeitamos toda moral desse tipo,
estranha à humanidade, estranha às classes
sociais. Dizemos que ela não é mais qu© men­
tira, engano, embutimento de crânios para os
operários e os camponeses, no interesse dos
L ê n in proprietários fundiários 0 dos capitalistas.
Dizemos que nossa moral é completa­
mente subordinada aos interesses da luta de
classe do proletariado. Nossa moral descende
dos interesses da luta de classe do proleta­
3 O ideal ético dos comunistas riado.
R velha sociedade estava fundada sobre
a opressão dos operários e dos camponeses
R moro! comunista "está subordinada por parte dos capitalistas e dos proprietários
completamente aos interesses da luta de fundiários. Nós devíamos destruí-lo, d0víamos
classe do proletariado". Cste é o núcleo do abater s0us dominadores, 0 para ©ss© fim
discurso pronunciado por Lênin no dia 2 de d0víamos nos unir. O bom D©us não cria uma
outubro de 1920 , no terceiro Congresso da união como aquela d e que tínhamos neces­
Juventude comunista russa. sidade.
flpenas as fábricas, as oficinas, o proleta­
riado educado e sacudido de seu antigo letargo
podiam dar-nos essa união.
€m primeiro lugar m0 ocuparei do ques­ flpenas d0pois da formação da classe
tão da moral comunista. D0veis dar-vos uma proletária começou o movimento de massa
educação comunista. R tarefa da Federação que desembocou na reviravolta de qu© hoje
jovem é de regular sua atividade prática de somos testemunhas, na vitória da revolução
modo que os jovens qu© a formam, estudando, prol©tária ©m um dos países mais fracos ©
organizando-se, cerrando as fileiras, comba­ ond©, apesar de tudo, a revolução já resistiu
tendo, dê0m o si próprios 0 aos jov0ns que por três anos às agressões da burguesia de
os segu0m uma educação comunista. Todo o todo o mundo. € vemos a revolução proletária
trabalho d0 educação, de ensino e de cultura se avolumar em todo o mundo, fl experiência
d0ve inculcar na juventude contemporânea a nos autoriza agora a dizer que apenas o pro­
moral comunista. letariado podia constituir a força homogênea
€xiste, porém, uma moral comunista? que os camponeses disseminados e esparsos
Sem dúvida. Imaginamos freqüentemente S0gu©m, e que resistiu a todos as ofensivos
que não t0mos nossa moral própria, e a burgue­ dos dosfrutadores. Apenas essa classe pode
sia, nos reprova muitas vezes, a nós, comunis­ ajudar as massas trabalhadoras a se reunir, a
tas, do repudiar toda moral, é um modo como se unir, a instaurar definitivamente, a consoli­
outro de falsificar as idéias, de jogar areia nos dar definitivamente, a edificar para sempre a
olhos dos operários e dos campones0s. sociedade comunista.
€m qu© S0ntido repudiamos a moral? Por isso dizemos: a moral concebida in­
l\lo sentido da moral pregada pela burgue­ dependentemente da soci©dad0 humana não
sia, que a deduz dos mandamentos d e Deus. ©xiste para nós, é uma mentira, fl moral está
Naturalmente, nós dizemos que não cremos em subordinada aos interesses da luta de classe
D0US, qu0 sabemos muito bem que o clero, os do proletariado.
proprietários fundiários, a burguesia, invocam Lênin,
a divindade para defender seus interesses de Sobre a religião.
O itã V ã p ã f t e - O m a r x is m o d e p o i s d e ]\\arx e. a E s c o l a d e PrankfwH-

realmente essos contradições na realidade


social.
L ukács Desse ponto de vista, a própria luta entre
o método dialético e o método crítico (ou ma­
terialista vulgar, machista etc.) é um problema
social. O ideal cognoscitivo das ciências naturais
que, aplicado à natureza, serve justamente de
fl sociedade modo único ao progresso da ciência, quando é
não pode ser referido ao desenvolvimento social apresenta-
se como meio da luta ideológica do burguesia.
compreendida Para esta é uma questão de vido, de um lado,
com o método compreender a própria ordenação produtiva
das ciências naturais como s® a forma dela fosse determinada por
categorias válidas fora do tempo e, portanto,
destinadas por leis eternos da natureza e da
fí consideração dialética da totalidade razão para uma permanência eterna e, do outro
"é o único método para captar a realidade lado, avaliar como meros fenômenos de su­
e reproduzi-la no pensamento". perfície, em vez de inerentes à essência dessa
ordenação da produção, as contradições que
inevitavelmente reemergem.
fl .totalidade concreta é [...] a categoria G. lukács.
autêntico da, realidade, fl justeza desta con­ Historio e consciência de closse.
cepção, todavia, revela-se claramente apenas
quando pomos nó centro de nossa atenção o
substrato real, material, de nosso método, a
sociedade capitalista, com o antagonismo que
lhe é imanente entre forças de produção e re­
lações de produção. O método das ciências da O papel do "tipo"
natureza, o ideal metodológico de toda ciência na estética realista
reflexiva e de todo revisionismo, não conhece
nenhuma contradição, nenhum antagonismo no
próprio material. Se entre teorias particulares fí categoria Fundamental da literatura
não subsiste nenhuma contradição, isso é realista é o "tipo": "aquela síntese particular
apenas um sinal do-grau ainda imperfeito até que, tanto no campo das características
agora alcançado pelo conhecimento. As teo­ como no das situações, une organicamente
rias que parecem contradizer-se mutuamente o genérico e o individual".
devem encontrar nessas contradições seus
limites, e ser por isso assumidas, depois de ter
sofrido transformações oportunas, dentro de Realismo significa reconhecimento do
teorias mois gerais, das quais as contradições fato de que a criação não se funda sobre uma
definitivamente desapareceram. €m relação à “média'1abstrata, como crê o naturalismo, nem
realidade social, ao contrário, estas contra­ sobre um princípio individual que dissolve a
dições não são sinais de uma compreensão si próprio e desaparece no nada, sob uma
científico da realidade ainda imperfeita, mas expressão exasperada daquilo que é único
pertencem muito mais de Forma inseparável à e irrepetível. fl categoria central, o critério
essência da própria realidade, à essência da fundamental da concepção literária realista é
so cie d a d e capitalista. No conhecimento da o tipo, ou seja, aquela síntese particular que,
totalidade elas não são superadas o ponto tanto no campo das características como no das
de cessar de serem contradições. Ao contrário, situações, une organicamente o genérico e o
elas são compreendidas como contradições individual, O tipo torna-se tipo não pelo seu
necessárias, como fundamentos antagônicos caráter médio, e nem apenas pelo seu caráter
dessa ordenação do produção, fl teoria, como individual, por mais que seja aprofundado, e
conhecimento da totalidade, pode mostrar um sim pelo fato de que nele confluem e se fundem
cominho para a superação dessàs contradi­ todos os momentos determinantes, humana
ções, para sua supressão, apenas enquanto e socialmente essenciais, de um período his­
indica as tendências reais do processo de tórico: pelo fato de que ele apresenta esses
desenvolvimento social que, no decorrer desse momentos em seu desenvolvimento máximo,
desenvolvimento, estão destinadas a suprimir na plena realização de suas possibilidades
, 465
Capítulo vigésimo quinto - O m a w is m o d e p o i s d e A W * ____

imanentes, em uma extrema representação


de extremos, que concretiza tanto os vértices
como os limites do completitude do homem e
G araudy
do época.
O verdadeiro grande realismo representa
[...] o homem completo e a sociedade com­
pleta, em vez de se limitar o alguns de seus 6 Refutação do stalinismo
aspectos [...].
O problema estético central do realismo
é a reprodução artística adequada do “homem "Depois d e todo catástrofe ou depois de
total". Mas, como em toda filosofia profunda da todo crime [...] entrou o costume de dizer: fo­
arte, o ponto de vista estético, coerentemente ram cometidos erros-, nõo é este o socialismo
pensado até o fundo, leva à superação da que construiremos. Doravante, esta práxis
estética pura: o princípio artístico, justamente nõo é mais possível".
em sua mais profunda pureza, está saturado
de momentos sociais, morais, humanistas, fls
exigências da criação realista do tipo se opõem
tonto às correntes em que toma um relevo ex­ € impossível, hoje, subtrair-se a um exame
cessivo o lado fisiológico da existência humana crítico radical do "modelo" de socialismo ela­
e do amor (como em Zola e na escola), quanto borado nos tempos de Stalin, conservado em
àquelas que sublimam o homem em processos substância na União Soviética sob Breznev, e
puramente psíquicos. Tal posição no plano da imposto aos outros países socialistas por meio
avaliação estética formal seria indubitavelmen­ de pressões econômicas, ideológicas e milita­
te arbitrária, porque - unicamente do ponto res. Como se poderio crer que se trata apenas
de. vista do “belo escrever" - não se poderia de erros marginais, depois da excomunhão e
compreender porque o conflito erótico, com os do boicote econômico da Jugoslávia em 1 9 4 8 ,
inerentes conflitos morais e sociais, deve ser depois das insurreições operárias de Poznan e
de ordem superior em confronto com a espon­ de Berlim e da revolta húngara, em 1 9 5 6 , dos
taneidade elementar da pura sexualidade, estudantes e dos operários contra o modelo
flpenas quando consideramos o conceito do stalinista de Rakosi que ofereceu à contra-
homem completo como tarefa social e histórico revolução o pretexto mais plausível, revolta
atribuída à humanidade, apenas quando en­ esmagada no fim apenas pelos carros armados
trevemos a função do arte em fixar as etapas soviéticos; depois das sanções econômicas e
mais importantes no caminho daquela tarefa, técnicas contra a China, ém 1 9 5 8 ; e a odiosa
em toda a riqueza dos fatores nelas operantes; componha de calúnias que determinaram um
apenas quando a estética estabelece para a terrível cisma no movimento revolucionário mun­
arte a tarefa de iluminar e guiar a humanidade, dial. O enfraquecimento do movimento é tão
apenas nesse caso o conteúdo do vida poderá preocupante que numerosos partidos, como o
se dispor em planos mais essenciais e menos italiano e o espanhol, o rumeno ou o jugoslavo,
essenciais, em planos que esclarecem o tipo e têm agora intenção de reatar os laços com a Chi­
indiquem o caminho, e outros que necessaria­ na e de cumprir sua tarefa de internacionalismo
mente os deixem no escuro, flpenas neste caso proletário, a despeito dos dirigentes soviéticos
se compreenderá que uma descrição, por mais preocupados exclusivamente em conservar sua
também particularizada e literalmente perfeita, hegemonia.
de processos puramente fisiológicos - mesmo Depois da intervenção militar que recu­
que se trate do ato sexual ou de tormentos e perou, sob a etiqueta da “normalização", o
sofrimentos comporta um nivelamento da Tchecoslováquia; depois da inquisição cultural
essência social histórica e moral das figuras. na União Soviética, do processo Siniavski à
€la não é um meio, e sim um obstáculo no campanha contra Solgenitsin; depois do de-
caminho de exprimir de modo artístico os con­ sencadeamento anti-semita que se manifestou
flitos humanos mais essenciais, mais indicativos em Leningrado, onde a ausência de toda
e mais intimamente ligados com a causa do prova contra os acusados levou a um processo
humanismo, e de exprimi-los em toda a sua a portas fechadas, como no pior período dos
complexidade e plenitude. processos de Moscou e das "confissões" de Rqjk
e de london; depois do massacre de operários
poloneses em greve, não é mois possível evitor
G. umalukács,
reflexão de fundo para definir o “modelo"
Ensaios sobre o realismo. de socialismo que propomos ao povo francês,
O it d V Ü parte - (D m a r x is m o d e p o i s d e M a r x e a Ê s c o l a d e F r a n k fu r t

para que se tornem claros as providências que rizou o conceito de problema filosófico, e dessa
pretendemos tomar para Fugir a essa perversão. formo negou que o pensamento produz outro
Depois de toda catástrofe ou depois de todo pensamento, abstratamente, e afirmou que os
crime, e principalmente depois da queda do problemas que o filósofo deve resolver não são
dirigente que antes era responsável (e cujas uma filiação abstrata do pensamento filosófico
teses, de Rakosi o Gomulka, foram aceitas e precedente, mas são propostos pelo desen­
aprovadas até o último dia) entrou o costume volvimento histórico atual etc. Croce chegou até
de dizer: foram cometidos erros; não é este o a afirmar que sua ulterior e recente crítica da
socialismo que construiremos. filosofia da práxis está justamente ligada a esta
Doravante esta práxis não é mais possível. sua preocupação antimetafísica e antiteológica,
Quando Copérnico constatou certo número de enquanto a filosofia da práxis serio teologizante
"erros" nas trajetórias das estrelas, assim como e o conceito de "estrutura” não serio mais que a
eram traçadas conforme o sistema ptolomaico, representação ingênua do conceito de um "deus
ele se perguntou se se tratava de fato de um escondido", é preciso reconhecer os esforços
conjunto de “erros” ou s ç ao contrário, justa­ de Croce para fazer aderir à vida a filosofia
mente o “sistema" não era a fonte de todos os idealista, e entre suas contribuições positivas
inconvenientes. Dessa forma, mudou o "siste­ para o desenvolvimento da ciência dever-se-á
ma", partindo da hipótese de que a terra girasse incluir a luta contra a transcendência e a teolo­
em torno do sol, e não vice-versa. gia em suas formas peculiares ao pensamento
Hoje é necessária uma revisão dolorosa religioso-confessional. Mas que Croce tenha
desse tipo. Nõo para pôr em discussão o "sis­ conseguido sua intenção de modo conseqüen­
tema" socialista, mas sua versão soviética e a te não é possível admitir: a filosofia de Croce
exportação de to! versão nos países socialistas. permanece uma filosofia "especulativa", e nisso
Não é preciso talvez tentar conceber um socia­ não existe apenas um traço de transcendência e
lismo que não se edificará apenas "do alto”, de teologia, mas existe toda a transcendência
mas "de baixo"? e a teologia, apenas libertas da mais grosseira
R. GcirciudY, casca mitológica, fl mesma impossibilidade em
Reconquisto do esperança. que Croce parece se encontrar para compreen­
der o assunto da filosofia da práxis (de modo
tal a dar a impressão de que se trata não de
uma grosseira ignorantia elenchi, mas de um
ardil polêmico, mesquinho eadvocatício) mostra
como o preconceito especulativo o cega e o
G ram sci desvia, fl filosofia da práxis deriva certamente
da concepção imanentista da realidade, mas
dela enquanto depurada de todo perfume
especulativo e reduzida a pura história ou his-
toricidade, ou a puro humanismo. Se o conceito
7 Rs razões da crítica de estrutura é concebido "especulativamente",
sem dúvida ele se torno um "deus escondido";
a Croce mas justamente ele não deve ser concebido es-
peculativqmente, e sim historicamente, como o
"é preciso reconhecer os esforços de Cro­ conjunto das relações sociais em que os homens
ce poro Fazer aderir à vida a filosofia idealista reais se movem e operam, como um conjunto
[...]. M as que Croce tenha conseguido sua de condições objetivas que podem e devem
intenção de modo conseqüente não é p o s­ ser estudadas com os métodos da “filologia"
sível admitir: o filosofia de Croce permanece e não da "especulação". Como um “certo" que
uma filosofia especulativa"'. será também "verdadeiro", mas que deve ser
examinado antes de tudo em sua "certeza" para
ser examinado como “verdade", fl filosofia da
práxis está ligada nõo só ao imanentismo, mas
Croce aproveita toda ocasião para pôr também à concepção subjetiva da realidade,
em relevo como ele, em sua atividade de enquanto justamente a revira, explicando-a
pensador, tenha estudiosamente procurado como fato histórico, como "subjetividade histó­
eliminar de sua filosofia todo traço e resíduo rica de um grupo social", como fato real, que
de transcendência e de teologia e, portanto, se apresento como fenômeno de "especulação"
de metafísica, entendida no sentido tradicional, filosófica e é simplesmente um ato prático, a
flssim ele, diante do conceito de "sistema”, valo­ forma de um conteúdo concreto social e o modo
, 46"
Capítulo vigésimo quinto - O m o d i s m o d e p o i s d e ;V W x ____

de conduzir o conjunto do sociedade o modelar conceito de hegemonia representa um grande


pora si uma unidade moral, fl afirmação de progresso filosófico além de político-prático,
que se trato de "aparência" não tem nenhum porque necessariamente envolve e supõe uma
significado transcendental e metafísico, mas é unidade intelectual e uma ética conforme a uma
a simples afirmação de suo “historicidade", de concepção do real que superou o senso comum
seu ser "morte-vida", de seu tornar-se caduca e se tornou crítica, embora dentro de limites
porque uma novo consciência social e moral ainda restritos.
está se desenvolvendo, mais compreensiva, Todavia, nos mais recentes desenvolvi­
superior, que se põe como único "vida", como mentos do filosofia do práxis, o aprofundamento
único “realidade", em confronto com o passado do conceito de unidade da teoria 0 da prática
morto e duro de morrer ao mesmo tempo, fl oinda se encontro em fose apenas inicial: per­
filosofia da práxis é o concepção historicista da manecem ainda resíduos de mecanicismo, pois
realidade, que se libertou de todo resíduo de fala-se de teoria como "complemento", “acessó­
transcendência e de teologia, mesmo em suo rio" da prática, de teoria como serva da prática.
última encarnação especàlotiva; o historicismo Parece justo que também esta questão deva
idealista de Croce permanece ainda na fase ser delineada historicamente, ou seja, como um
teológico-especulativa. [...] aspecto da questão política dos intelectuais.
Croce combate com demasiado furor o Autoconsciência crítica significa histórico e poli­
filosofia da práxis [...]. Csse furor é suspeito, ticamente a criação de uma elite de intelectuais:
e pode revelar-se um álibi para negar uma a massa humana não se "distingue" e não se
prestação de contas, é preciso, ao contrário, torno independente “por si" sem se organizar
comparecer a esta prestação de contas, do (em sentido largo), e não há organização sem
modo mais amplo e aprofundado possível. Um intelectuais, isto é, sem organizadores e diri­
trabalho de tal gênero, um fínti-Croce que no gentes, ou seja, sem que o aspecto teórico da
atmosfera cultural moderno pudesse ter o signi­ ligação teorio-prático se distingo concretamente
ficado e a importância que teve o flnti-Dühring em um estrato de pessoas "especializadas" na
paro a geração que precedeu a guerra mundial, elaboração conceitual e filosófica. Mas este
valeria a peno que todo um grupo de homens processo de criação dos intelectuais é longo,
dedicasse a isso dez anos de atividade. difícil, cheio de contradições, de avanços e re­
fl. Gramsci, trocessos, de dispersões e de reaproximações,
f l filosofia d e Benedetto Croce, em que a "fidelidade" da massa (e o fidelidade
em Cadernos d o cárcere, vol. II. e a disciplina são inicialmente a forma que as­
sume a adesão da massa e sua colaboração
para o desenvolvimento de todo o fenômeno
cultural) põe-se por vezes em dura provo. O
8 fl função dos intelectuais processo de desenvolvimento está ligodo a
uma dialética intelectuais-massa; o estrato
dos intelectuais desenvolve-se quantitativa
"fl mossa humana não se 'distingue' e e qualitativamente, mas todo solto para uma
não s e torna independente 'por s i’, sem se nova "amplitude" e complexidade do estrato
organizar [...] e não há organização sem dos intelectuais está ligodo a um movimento
intelectuais, ou seja, sem organizadores e análogo da massa de pessoas simples, que
dirigentes". se elevo a níveis superiores de cultura e alarga
simultaneamente seu círculo de influência, como
indivíduos de ponta ou também de grupos mais
fl consciência de ser parte de uma deter­ ou menos importantes para o estrato dos inte­
minada força hegemônico (isto é, a consciência lectuais especializados. No processo, porém,
política) é a primeira fase para uma posterior repetem-se continuamente momentos em que,
e progressivo autoconsciência em que teoria e entre mossa e intelectuais (ou certos deles,
prática finalmente se unificam. Também a unida­ ou um grupo deles) forma-se uma separação,
de de teoria e prática não é, portanto, um dado uma perda de contato e, portanto, a impressão
de fato mecânico, mas um devir histórico, que de "acessório", de complementar, de subor­
tem sua fase elementar e primitiva no sentido dinado. Insistir sobre o elemento "prático" da
de “distinção", de “destaque", de independên­ ligação teoria-prática, depois de ter dividido,
cia apenas instintiva, e progride até a posse separado e nõo apenas distinguido os dois
real e completa de uma concepção do mundo elementos (operação meramente mecânica e
coerente e unitário. Cis por que se deve colocar convencional) significa que se atravessa uma
em relevo como o desenvolvimento político do fase histórica relativamente primitiva, uma
Oitava parte - O m a r x is m o d e p o i s d e ]\\cx>'X e a É s c o l a d e P r a n k fu r t

fase ainda econômico-corporativa, em que se pensar. Por isso pode-se dizer que os partidos
transforma quantitativamente o quadro geral da são os elaboradores das novas int0l0ctualida-
"estrutura", 0 a qualidade-superestrutura a d e ­ d es integrais e totalitárias, ou seja, o cadinho
quada está em via de surgimento, mas não S0 da unificação de teoria e prática, entendida
©ncontra ainda organicamente formada. Dev0- como processo histórico real, e se compreende
S0 ressaltar a importância 0 o significado que, como é necessário a formação para uma adesão
no mundo moderno, os partidos políticos têm na individual 0 não do tipo "trabalhista" porqu©,
0laboração 0 difusão das conc0pçõ0s do mundo caso S0 trat0 d0 dirigir organícamont© "toda
enquanto 0SS0ncialm 0nte elaboram a ética 0 a m assa 0conomicam0nt0 ativa", trata-se de
a política conforme a elas, ou seja, funcionam dirigi-la não segundo velhos esquemas, mas
q u a se como "experim entadores" históricos inovando, e a inovação não pode S0 tornar d0
d 0 ssa s concepções. O s partidos setecionam massa, 0m S0US primeiros estágios, a não S0r
individuolm0nt0 a mossa op0rant0, 0 a S0l0ção para o trâmte d0 uma elite em que a concepção
ocorre tanto no campo prático como no t0Órico implícita na atividad0 humana já t©nha S0 torna­
d e modo conjunto, com èítna relação tonto mais do, ©m C0rta m0dida, consciência atual, coeren­
estreita entre t0oria 0 prática quanto mais a te 0 sist0mática, 0 vontad© precisa e decidida.
conc0pção é vital e radicalment© inovadora 0 fl. Gramsci,
antagônica 0m relação ao s velhos modos de Cadernos do cárcere, vol. II.
C a p ít u lo v ig é sim o se x to

A E s c o la d e F r a n k fu r t

I. 6\êhese. desenvolvimentos
e program a d a E s c o la de Frankfurt

• A Escola de Frankfurt surgiu do Instituto de Pesquisa Social, fundado em


Frankfurt nos inícios da década de 1920. Em 1931 Max Horkheimer torna-se di­
retor do Instituto; com ele a Escola se caracterizou como centro de elaboração e
propagação da teoria crítica da sociedade.
De orientação "socialista" e "materialista", a Escola elaborou a teoria crítica:
suas teorias e desenvolveu suas pesquisas à luz das categorias de uma ligação
totalidade e de dialética: a pesquisa social não se dissolve em entre
pesquisas especializadas e setoriais; a sociedade deve ser pesqui- hegelianismo,
sada "como um todo" nas relações que ligam uns aos outros os marxismo
âmbitos econômicos com os culturais e psicológicos. e fr^ dlsmo
É aqui que se instaura a ligação entre hegelianismo, marxismo 5
e freudismo, que tipificará a Escola de Frankfurt.
A teoria crítica pretende fazer emergir as contradições fundamentais da so­
ciedade capitalista e aponta para "um desenvolvimento que leve a uma sociedade
sem exploração".

• Com a tom ada do poder por parte de Hitler o grupo de Frankfurt emigra
primeiro para Genebra, depois para Paris e, finalmente, para Nova York.
Depois da Segunda Guerra Mundial Marcuse, Fromm, Lõwen-
thal e Vittfogel permanecem nos Estados Unidos; ao passo que Diasporae volta
Adorno, Horkheimer e Pollock voltam para Frankfurt, onde, em ^ í™ ur
1950, renasce o Instituto para a pesquisa social.

Totalidade e dialética austríaco, historiador da classe operária.


Sucedeu-lhe inicialmente Friedrich Pollock
como categorias
e mais tarde, em 1931, Max Horkheimer.
fundamentais E foi precisamente com a nomeação de
da pesquisa social Horkheimer como diretor que o Instituto
passou a adquirir importância sempre maior,
assumindo a fisionomia de uma Escola, que
A Escola de Frankfurt teve sua origem elaborou o program a que passou para a
no Instituto de Pesquisa Social fundado história das idéias com o nome de “teoria
em Frankfurt no início da década de 1-920, crítica da sociedade” .
com um legado de Félix Klein, homem A revista do Instituto era o “Arquivo
abastado e progressista. O primeiro diretor de história do socialismo e do movimento
do Instituto foi Karl Grünberg, marxista operário”, onde não apareciam somente
Oitava pãYte - O m a rx ism o d e p o is d e ]\A a t*x e a Ê s e o la d e F ran k fu rt

estudos sobre o movimento operário, mas mas tende a examinar as relações que ligam
também escritos de Karl Korsch (inclusive reciprocamente os âmbitos econômicos com
seu trabalho M arxismo e filosofia), Gyõrgy os históricos, bem como os psicológicos e
Lukács e David Riaznov, diretor do Instituto culturais, a partir de uma visão global e
Marx-Engels de Moscou. crítica da sociedade contemporânea.
Em 1932, porém, Horkheimer deu E aqui que se instaura o laço entre
vida à “Revista de pesquisa social”, que hegelianismo, marxismo e freudismo que
pretendia retomar e desenvolver a temática caracteriza a Escola de Frankfurt e que,
do “Arquivo”, mas que se apresentava com embora nas diversas variantes apresentadas
um posicionamento certamente “socialista” pelos vários pensadores da Escola, viria a ser
e “materialista” , cuja tônica, porém, era um constante ponto de referência da teoria
posta na totalidade e na dialética: a pes­ crítica da sociedade.
quisa social é “a teoria da sociedade como Na intenção de Horkheimer, a teoria
um todo”; ela não se resume ou se dissolve crítica da sociedade surge para “encorajar
em investigações especializadas e setoriais, uma teoria da sociedade existente considera­
da como um todo”, mas precisamente uma
teoria crítica, ou seja, capaz de fazer emergir
a contradição fundamental da sociedade
capitalista. Em poucas palavras: o teórico
crítico é “o teórico cuja única preocupação
■ Teoria crítica da sociedade. É a consiste no desenvolvimento que conduza à
teoria proposta e desenvolvida pela sociedade sem exploração”. A teoria crítica
Escola de Frankfurt, contrária ao tipo pretende ser uma compreensão totalizante
de trabalho da sociologia empírica e dialética da sociedade humana em seu
americana. conjunto e, para sermos mais exatos, dos
Para os de Frankfurt (Adorno, Hork­
heimer, Marcuse etc.), a sociologia mecanismos da sociedade industrial avan­
não se reduz nem se dissolve em pes­ çada, a fim de promover sua transformação
quisas setoriais e especializadas, em racional que leve em conta o homem, sua
pesquisas de mercado (típicas, estas, liberdade, sua criatividade, seu desenvolvi­
da sociologia americana). mento harmonioso em colaboração aberta
A pesquisa social para eles é, ao con­ e fecunda com os outros, ao invés de um
trário, "a teoria da sociedade como sistema opressor e de sua perpetuação.
um todo", uma teoria posta sob o Para compreendê-las corretamente, as
signo das categorias da totalidade e teorias da Escola de Frankfurt devem ser
da dialética, e dirigida ao exame das adequadamente enquadradas no arco do
relações existentes entre os âmbitos
econômicos, psicológicos e culturais período histórico em que foram elaboradas:
da sociedade contemporânea. trata-se do período do pós-guerra, que fez
Tal teoria é crítica enquanto dela a experiência do fascismo e do nazismo
emergem as contradições da socieda­ no Ocidente, e a do stalinismo na Rússia;
de industrializada moderna e particu­ que depois foi atravessado pelo furacão da
larmente da sociedade capitalista. Segunda Guerra Mundial e que assistiu ao
Para maior precisão: o teórico crítico desenvolvimento maciço, onipresente e irre­
"é o teórico cuja única preocupação freável da sociedade tecnológica avançada.
consiste em um desenvolvimento Desse modo, podemos encontrar no
que leve a uma sociedade sem ex­
centro das reflexões da Escola de Frankfurt
ploração".
O primeiro trabalho importante da tanto as mais importantes questões políticas
Escola de Frankfurt é o volume co­ como também os problemas teóricos sobre
letivo Estudos sobre a autoridade e os quais se delongara o marxismo ociden­
sobre a fam ília (1936): a família - as­ tal (Lukács, Korsch), em contraste com
sim como a escola ou as instituições pensadores como Dilthey, Weber, Simmel,
religiosas - é vista aqui como trâmite Husserl ou os neo-kantianos, contraste que
da autoridade e da inserção desta na os francofortianos ampliarão também para
estrutura psíquica dos indivíduos. o existencialismo e o neopositivismo.
Um trabalho análogo será sucessiva­ O fascismo, o nazismo, o stalinismo,
mente projetado na América: seus re­ a guerra fria, a sociedade opulenta e a
sultados estão publicados no volume
A personalidade autoritária.
revolução não realizada, por um lado; e,
por outro lado, a relação entre Hegel e o
marxismo e entre este e as correntes filo­
Capítulo vigésimo sexto - y\ Ê s c o l a d e F rankfurt

sóficas contemporâneas, como também a primeiro para Genebra, depois para Paris e,
arte de vanguarda, a tecnologia, a indústria por fim, para Nova York. Mas, apesar das
cultural, a psicanálise e o problema do indi­ peripécias e dificuldades, foi nesse período
víduo na sociedade moderna são temas que que apareceram alguns dos trabalhos de
se interligam na reflexão dos expoentes da maior destaque da Escola de Frankfurt,
Escola de Frankfurt. como os Estudos sobre a autoridade e a
família (Paris, 1936) e A personalidade au­
toritária (obra que seria ultimada em 1950).
D a ^ le m a n K a Este último trabalho coletivo (de Adorno e
p a ra os Êstados lAnidos colaboradores) é desenvolvimento muito
sagaz dos Estudos sobre a autoridade e a
família.
Mas quem são esses expoentes da Esco­ Entretanto, também por causa dos
la de Frankfurt? Os primeiros membros do exemplos escolhidos somente entre os
grupo foram os economistas Friedrich Pollo- estudantes norte-americanos, este último
ck (autor da Teoria marxista do dinheiro, trabalho apresenta-se como obra certamente
1928, e da Situação atual do capitalismo e menos estimulante do que a primeira, onde,
perspectivas de reordenação planificada da ao contrário, o leque das temáticas típicas
economia, 1932), e Henryk Grossmann (au­ da Escola de Frankfurt encontra tratamento
tor de A lei da acumulação e da derrocada muito preciso. Ela, com efeito, discute a
no sistema capitalista, 1929), o sociólogo centralidade e a ambigüidade do conceito de
Karl-August Wittfogel (célebre autor de autoridade, a família como lugar privilegia­
Economia e sociedade na China, 1931, e do do para a reprodução social do consenso, a
escrito sobre o Despotismo oriental, 1957, aceitação pelos homens de condições insu­
ensaio no qual analisa também a sociedade portáveis vividas como naturais e imodificá-
soviética), o historiador Franz Borkenau e veis, a crítica da racionalidade tecnológica, a
o filósofo Max Horkheimer, aos quais se necessidade de uma colocação metodológica
uniria pouco depois o filósofo, musicólogo em condições de neutralizar os defeitos das
e sociólogo Theodor Wiesengrund Adorno. pesquisas setoriais “positivistas”, e assim
Entrariam depois para o grupo o por diante.
filósofo Herbert Marcuse, o sociólogo e Depois da Segunda Guerra Mundial,
psicanalista Erich Fromm, o filósofo e crítico Marcuse, Fromm, Lõwenthal e Wittfogel
literário Walter Benjamin (autor, entre ou­ ficaram nos Estados Unidos, ao passo que
tras coisas, de A origem do drama barroco Adorno, Horkheimer e Pollock voltaram para
alemão, 1928, e de A obra de arte na época Frankfurt. Aliás, em 1950 renasceu o “Insti­
de sua reprodutibilidade técnica, 1936), o tuto de pesquisa social”, dele saindo sociólo­
sociólogo da literatura Leo Lõwenthal (au­ gos e filósofos como Alfred Schmidt, Oskar
tor de Sobre a situação social da literatura, Negt e Jürgen Habermas, o mais conhecido
1932) e o politólogo Franz Neumann. de todos (de cujas obras deve-se recordar
Com a tomada do poder por Hitler, o pelo menos A lógica das ciências sociais,
grupo de Frankfurt foi obrigado a emigrar, 1967, e Conhecimento e interesse, 1968).
OitãVã parte - O m a rx ism o d e p o is d e A ^c^X e a £ s c o l a d e F rank furt

II. ~TKeod or W iesengrund jAdorno

• É com Dialética negativa (1966) que Adorno (1903-1969) rejeita a dialética


da síntese e da conciliação; e escolhe a dialética negativa, uma perspectiva que
desengonça as pretensões da filosofia de agarrar, com a força do pensamento,
toda a realidade, e de revelar seu "sentido" escondido e profundo. Apenas ne­
gando a identidade de ser e pensamento é possível desmascarar
Adorno os sistemas filosóficos (idealismo, positivismo, marxismo oficial,
e a dialética iluminismo etc.) que "eternizam " o estado presente, proíbem
negativa qualquer mudança e tentam ocultar aquilo que, ao contrário, a
-> § 1 dialética negativa traz à luz: o individual, o diferente, o marginal,
o marginalizado.
A teoria crítica quer ser uma defesa do individual, do qualitativo. E coloca-se
como denúncia de uma cultura "culpada e miserável": "toda a cultura depois de
Auschwitz [...] é varredura".

• Adorno é tenaz e duro crítico da cultura contemporânea, uma vez que


ela serve ao poder ao invés de dar voz à realidade arruinada da sociedade ca­
pitalista. Dialética do Iluminismo (1949) é um livro que Adorno escreve junto
com Horkheim er para combater aquele tipo de razão que de Xenófanes em
aiante pretendeu racionalizar o mundo para torná-lo mani-
Crítica_ pulável e subjugável por parte do homem; essa razão é razão
da razão instrumental: cega em relação aos fins; prepara instrumen-
mstrurnentai tos para at ingjr fins desejados e controlados pelo "sistema".
' Assim como acontece com a indústria cultural, ou seja, com
o aparato poderoso, constituído essencialmente pelos mass-
media (cinema, televisão, rádio, discos, publicidade, material ilustrado etc.), por
meio do qual o poder impõe valores e modelos de comportamento, cria neces­
sidades e estabelece a linguagem. O homem desejado pela indústria cultural é
um ser funcional, "é o absolutamente substituível, o puro nada". E é exatamente
pelo motivo do fato de que esta é a situação, que aquilo que então é preciso é
"conservar, estender, ampliar a liberdade, em vez de acelerar [...] a corrida para o
mundo da organização".

1 .A"dialética negativa" Em seu trabalho de 1931 {A atuali­


dade da filosofia) Adorno já dissera que
“quem escolhe hoje o trabalho filosófico
Em Dialética negativa (1966), Adorno como profissão deve renunciar à ilusão da
(1903-1969) faz uma opção precisa pelo He­ qual partiam anteriormente os projetos
gel “dialético” em contraposição ao Hegel filosóficos: a ilusão de que, por força do
“sistemático”; escolhe o potencial crítico pensamento, é possível captar a totalidade
(ou “negativo” ) da dialética desenvolvida do real” . Trata-se precisamente de uma
na Fenomenologia do espírito, rejeitando ilusão, como o demonstra a falência das
a dialética como sistema, assim como ela metafísicas tradicionais, da fenomenologia,
se delineia na L ógica e na Filosofia do do idealismo, do positivismo, do marxismo
Direito. Contra a dialética da síntese e da oficial ou do Iluminismo. Quando essas teo­
conciliação, Adorno baseia-se na dialética rias se apresentam como teorias positivas,
da negação, na dialética negativa, isto é, elas se transformam em ideologias, como
na dialética que nega a identidade entre escreve Adorno: “A filosofia, como hoje é
realidade e pensamento e que, portanto, apresentada, serve apenas para mascarar a
desbarata as pretensões da filosofia de Captar realidade e eternizar seu estado presente”.
a totalidade do real, revelando seu “sentido” Somente afirmando a não-identidade
oculto e profundo. entre ser e pensamento é que se pode ga­
Capítulo vigésimo sexto - A E - s c o la d e F rankfurt

real, não por sua própria impotência, mas


porque o real não é razão” . Por isso, é fun­
ção da dialética negativa subverter as falsas
seguranças dos sistemas filosóficos, trazendo
à luz o não-idêntico que eles reprimem, e
chamando a atenção para o individual e o
diferente que eles deixam de lado.
Em suma, a d ialética negativa de
Adorno procura quebrar as “totalidades”
em filosofia e na política. Trata-se de uma
/ 3 salvaguarda das diferenças, do individual e
do qualitativo. Pretende ser defesa contra
uma cultura “culpada e miserável”, já que,
como diz Adorno em Dialética negativa,
ninguém pode esconder o fato de que,
“depois de Auschwitz, toda a cultura é [...]
varredura” . B5SIT1

y \d o m o
e sua colaboração
com 'Horkkeimer:
a dialética do D Iummismo

Uma vez entendida a intenção de fundo


da dialética negativa, não é mais difícil com­
preender o modo como Adorno se defronta
não somente com as correntes da filosofia
moderna e contemporânea, mas também
com as concepções políticas, os movimentos
artísticos e as mudanças sociais de nossa
Tbeodor 'Wiesengrund Adorno (1903-1969) época.
foi filósofo e musicólogo, Declaradamente próximo ao marxis­
expoente entre os mais significativos filósofos mo, Adorno também não deixa de rejeitar
da Escola de Frankfurt.
todas as suas formas dogmáticas que, a prio­
ri, sabem em que prateleira devem catalogar
um fenômeno, sem, porém, nada conhecer
rantir a não-camuflagem da realidade, que do fenômeno. Contrário à sociologia de tipo
não se nos apresenta em absoluto de forma humanista (“a sociologia não é ciência do
harmônica ou, de qualquer modo, dotada de espírito”, já que seus problemas não são os
sentido: nós vivemos depois de Auschwitz, e da consciência ou do inconsciente, porém
“o texto que a filosofia deve ler é incomple­ problemas referentes “à relação ativa entre
to, cheio de contrastes e lacunas, onde muito o homem e a natureza e às formas objetivas
pode ser atribuído ao gênio maléfico”. da associação entre homens, não redutíveis
Somente afirmando a não-identidade ao espírito como estrutura interior do ho­
entre ser e pensamento podemos esperar des­ mem” ), Adorno criticou duramente, como
mascarar os sistemas filosóficos que tentam veremos melhor adiante, a sociologia de
“eternizar” o estado presente da realidade tipo empirista (ou positivista), pois ela seria
e bloquear qualquer ação transformadora e incapaz de captar a peculiaridade típica dos
revolucionária. fatos humanos e sociais em relação aos fatos
A dialética é a luta contra o domínio do naturais.
idêntico, é a rebelião dos particulares contra Esse ataque frontal (às vezes violento,
o mau universal. Na verdade, escreve Ador­ às vezes injusto, mas só raramente pouco in­
no nos Três estudos sobre Hegel (1963), teressante) contra a cultura contemporânea,
“a razão torna-se impotente para captar o com efeito, é ataque contra aquelas imagens
OítãVU parte - CD marxismo depois de A^arx e a (Escola de Frankfurt

que Adorno considera imagens desviantes levam a nível jamais alcançado o domínio
da realidade, para onde tudo volta; imagens da sociedade sobre a natureza. Enquanto o
que, assim, não desenvolvem outra função indivíduo desaparece diante da máquina a
senão a de servir ao poder, ao invés de dar que serve, é por ela aprovisionado melhor
voz a uma realidade desordenada como a do que jamais o fora. No Estado injusto,
da sociedade capitalista. a impotência e a dirigibilidade da massa
E é exatamente dessa sociedade capi­ crescem com a quantidade de bens que lhe
talista, ou melhor, da sociedade moderna, são fornecidos”. ESS1T]
capitalista e comunista, que Adorno e
Horkheimer nos apresentam seu juízo na
conhecida obra Dialética do Iluminismo ^ 'ndúslria cultural
(1949), que se apresenta como análise da
sociedade tecnológica contemporânea.
Por Iluminismo os dois autores não Para alcançar sua funcionalidade, o
entendem somente o jnovimento de pen­ “sistema”, que é a sociedade tecnológica
samento que caracterizou a era das luzes; contemporânea, entre seus principais ins­
eles pensam muito mais em um itinerário trumentos, pôs em funcionamento uma
da razão, que, partindo já de Xenófanes, poderosa máquina: a indústria cultural.
pretende racionalizar o mundo, tornando-o Esta é constituída essencialmente pela
manipulável pelo homem. “O Iluminismo, mídia (cinema, televisão, rádio, discos, pu­
no sentido mais amplo de pensamento em blicidade etc.). E com a mídia que o poder
contínuo progresso, sempre perseguiu o impõe valores e modelos de comportamento,
objetivo de tirar o medo dos homens e tor­ cria necessidades e estabelece a linguagem. E
ná-los senhores de si próprios. Mas a terra esses valores, necessidades, comportamentos
inteiramente iluminada resplandece sob a e linguagem são uniformes porque devem al­
égide de triunfal desventura”. cançar a todos; são amorfos, assépticos; não
Com efeito, o Iluminismo vai ao en­ emancipam, nem estimulam a criatividade;
contro da autodestruição. E isso ocorre pelo contrário, bloqueiam-na, porque habi­
porque ele ficou “paralisado pelo medo da tuam a receber passivamente as mensagens.
verdade”. Prevaleceu nele a idéia de que o “A indústria cultural perfidamente realizou
saber é mais uma técnica do que uma crítica. o homem como ser genérico. Cada qual
E o medo de afastar-se dos fatos “é coisa é cada vez mais somente aquilo pelo qual
estreitamente unida ao medo do desvio so­ pode substituir qualquer outro: ser consu-
cial”. Desse modo perdeu-se a confiança na mível, apenas exemplar. Ele próprio, como
razão objetiva, pois o que impqrta não é a indivíduo, é o absolutamente substituível, o
veracidade das teorias, e sim sua funciona­ puro nada [...]”.
lidade, funcionalidade em vista de fins sobre E isso pode ser visto também no diverti­
os quais a razão perdeu todo direito. mento, que não é mais o lugar da recreação,
Em outros termos, a razão é pura razão da liberdade, da genialidade, da verdadeira
instrumental. Ela é inteiramente incapaz de alegria. E a indústria cultural que fixa o
fundamentar ou propor em discussão os divertimento e seus horários. E o indivíduo
objetivos ou finalidades com que os homens se submete. Como também submete-se às re­
orientam suas próprias vidas. A razão é ra­ gras do “tempo livre”, que é tempo progra­
zão instrumental porque só pode identificar, mado pela indústria cultural. “A apoteose
construir e aperfeiçoar os instrumentos ou do tipo médio pertence ao culto daquilo que
meios adequados para alcançar fins estabe­ é barato”. Desse modo, a indústria cultural
lecidos e controlados pelo “sistema” . não vincula propriamente uma ideologia: ela
Nós vivemos em sociedade totalmente própria é ideologia, a ideologia da aceitação
administrada, na qual “a condenação natural dos fins estabelecidos por “outros”, isto é,
dos homens é hoje inseparável do progresso pelo sistema.
social”. Com efeito, “o aumento da produ­ Foi assim que o Iluminismo transfor­
tividade econômica, que, por um lado, gera mou-se no seu contrário. Queria eliminar
condições para um mundo mais justo, por os mitos, mas criou-os desmedidamente. Na
outro lado propicia ao instrumental técnico definição de Kant, “o Iluminismo é a saída
e aos grupos sociais que dele dispõem imensa do homem de um estado de menoridade do
superioridade sobre o resto da população. qual ele próprio é culpado. Menoridade é
Diante das forças econômicas, o indivíduo a incapacidade de valer-se de seu próprio
é reduzido a zero. Estas, ao mesmo tempo, intelecto sem a guia de outro”. Entretan­
Capítulo vigésimo sexto - A Ê s c o la de Frankfurt

to, hoje o indivíduo é zero e é guiado por ram, advertindo que, “se o Iluminismo não
“outros” . Outrora, dizia-se que o destino capta a consciência desse momento regressi­
do indivíduo estava escrito no céu; hoje, vo, está assinando sua própria condenação”,
podemos dizer que é fixado e estabelecido o que não deve acontecer, pois o que é ne­
pelo “sistema”. cessário é “conservar, ampliar e desdobrar a
Para Adorno e Horkheimer, portanto, a liberdade, ao invés de acelerar [...] a corrida
situação está assim. Mas eles não se desespe­ em direção ao mundo da organização” .
Oitava parte - O m a rx ism o d e p o is d e J^ A c x r jz e a (S s c o la d e F rank furt

III. jSAayc 'Fl orkkeimer:


o eclipse d a razão

• Para Max Horkheimer (1895-1973) o perfil desejado pelos capitalistas e o


controle do plano desejado pelo comunismo sempre geraram maior repressão. E
tudo isso aconteceu - escreve Horkheimer em Eclipse da razão. Crítica da razão
instrumental (1947) - porque a cultura industrial moderna está
>4 razão, viciada por uma razão que renunciou à sua autonomia e que é
doravante, doravante ancilla administrationis (serva da administração).
é apenas uma A razão, hoje, não oferece mais verdades objetivas univer­ e
ancilla sais às quais poder-se agarrar; proporciona unicamente instru­
administrationis mentos para objetivos estabelecidos por quem detém o poder.
-»S T-3 Estamos em plena decadência do pensamento; uma decadência
que favorece a obediência aos poderes constituídos, "sejam estes
representados pelos grupos que controlam o capital ou por aqueles que controlam
o trabalho". E nessa situação desesperada, o melhor serviço que a razão pode
prestar à humanidade é precisamente "a denúncia daquilo que é comumente
chamado razão".

• E é uma razão habilidosa e consciente aquela que, na opinião de Horkheimer,


não nos permite absolutizar nada, nem mesmo o marxismo.
Nós, homens, somos seres finitos e não podemos absolutizar
A esperança nenhum produto nosso (uma política, uma teoria, um Estado).
de que a Mas é justamente desta nossa finitude e precariedade e, ao
injustiça mesmo tempo, da constatação das tantas injustiças sofridas no
não seja a passado e no presente que desemboca a nostalgia do totalmen­
última palavra te Outro. Neste sentido, "a teologia é [...] a esperança de que,
- >§4
apesar dessa injustiça que caracteriza o mundo, possa acontecer
que a injustiça não seja a última palavra".

substituiu o do lucro, mas os homens con­


■b °"1wcro*e o "planejamento”
como ge.ra clo re .s tinuam como objetos de administração, de
administração centralizada e burocratizada.
de ^ep^essão O lucro por um lado e o controle do
plano por outro geraram repressão sempre
maior. Portanto, o que estrutura a sociedade
Em 1939, Horkheimer (1895-1973) industrial é uma lógica pérfida. E a inten­
afirma que “o fascismo é a verdade da so­ ção do trabalho de Horkheimer intitulado
ciedade moderna”. Mas acrescenta logo que Eclipse da razão. Crítica da razão instru­
“quem não quer falar do capitalismo deve mental (1947) é a de “examinar o conceito
calar também sobre o fascismo” . E isso por­ de racionalidade que está na base da cultura
que, em sua opinião, o fascismo está dentro industrial moderna, e procurar estabelecer
das leis do capitalismo: por trás da “pura lei se esse conceito não contém defeitos que o
econômica” — que é a lei do mercado e do viciam de modo essencial” .
lucro — , está a “pura lei do poder”.
E o comunismo, que é capitalismo de
Estado, constitui uma variante do Estado
2 ;A r a z ã o instmmeiatal
totalitário. As organizações proletárias
de massa também constituíram estruturas Digamos logo que, segundo Horkhei­
burocráticas e, na opinião de Horkheimer, mer, o conceito de racionalidade que está na
nunca foram além do horizonte do capita­ base da civilização industrial é podre na raiz:
lismo de Estado. Aqui, o princípio do plano “A doença da razão está no fato de que ela
Capítulo vigésimo sexto - A E s c o l a d e F rankfurt

nasceu da necessidade humana de dominar 2) “O pensamento que não serve aos


a natureza interesses de um grupo constituído ou aos
Essa vontade de dominar a natureza, objetivos da produção industrial considera-
de compreender suas “leis” para submetê- se inútil e supérfluo”.
la, exigiu a instauração de uma organização 3) Essa decadência do pensamento
burocrática e impessoal, que, em nome do “favorece a obediência aos poderes constituí­
triunfo da razão sobre a natureza, chegou a dos, sejam eles representados pelos grupos
reduzir o homem a simples instrumento. Ao que controlam o capital, ou pelos grupos
progresso dos recursos técnicos, que pode­ que controlam o trabalho”.
riam servir para “iluminar” a mente do ho­ 4) A cultura de massa “procura ‘ven­
mem, acompanha um processo de desumani- der’ aos homens o modo de vida que já le­
zação, de tal modo que o progresso ameaça vam e que odeiam inconscientemente, ainda
destruir precisamente o objetivo que deveria que o louvem com palavras”.
realizar: a idéia do homem. E a idéia do 5) “Não só a capacidade de produção
homem, isto é, sua humanidade, sua emanci­ do operário é hoje comprada pela fábrica e
pação, seu poder de crítica e de criatividade subordinada às exigências da técnica, mas
acham-se ameaçados porque o desenvolvi­ também os chefes dos sindicatos estabelecem
mento do “sistema” da civilização industrial sua medida e a administram”.
substituiu os fins pelos meios e transformou 6) “A deificação da atividade industrial
a razão em instrumento para atingir fins, não conhece limites. O ócio é considerado
dos quais a razão não sabe mais nada. uma espécie de vício, quando vai além da
Em outros termos, “o pensamento pode medida do que é necessário para restaurar
servir para qualquer objetivo, bom ou mau. as forças e permitir retomar o trabalho com
E instrumento de todas as ações da socie­ maior eficiência”.
dade, mas não deve procurar estabelecer as 7) O significado da produtividade é me­
normas da vida social ou individual, que se dido “com critérios de utilidade em relação
supõe serem estabelecidas por outras forças”. à estrutura de poder, não mais em relação
A razão, portanto, não nos dá mais ver­ às necessidades de todos”.
dades objetivas e universais às quais possa­ Nessa situação desesperada, “o maior
mos nos agarrar, mas somente instrumentos serviço que a razão poderia prestar à hu­
para objetivos já estabelecidos. Não é ela manidade” seria o da “denúncia do que é
que fundamenta e estabelece o que sejam o comumente chamado de razão” . Escreve
bem e o mal, como base para orientarmos ainda Horkheimer: “Os verdadeiros in­
nossa vida; quem decide sobre o bem e o divíduos de nosso tempo são os mártires
mal é agora o “sistema”, ou seja, o poder. que passaram por infernos de sofrimento e
A razão é agora ancilla administrationis e, degradação em sua luta contra a conquista
“tendo renunciado à sua autonomia, a razão e a opressão, não mais as personagens da
tornou-se um instrumento. I3E1T1 cultura popular, infladas pela publicidade.
Aqueles heróis, que ninguém cantou, ex­
puseram conscientemente sua existência
A filo so fia c o m o d e n ú n c i a individual à destruição sofrida por outros
d a r a z ã o instrum ental sem ter consciência disso, como vítimas dos
processos sociais. Os mártires anônimos dos
campos de concentração são o símbolo de
Diante desse vazio terrível, procura- uma humanidade que luta para vir à luz. A
se remediá-lo voltando a sistemas como a função da filosofia é a de traduzir o que eles
astrologia, a ioga ou o budismo; ou então fizeram em palavras que os homens possam
são propostas adaptações populares de ouvir, ainda que suas vozes mortais tenham
filosofias clássicas objetivistas ou, ainda, sido reduzidas ao silêncio pela tirania”.
“recomendam-se para o uso moderno [...]
as ontologias medievais” .
As panacéias, porém, não deixam de A n o s ta lg ia
ser panacéias. A realidade, no entanto, é que: d o ^totalmente O u t r o ”
1) “A natureza é concebida hoje, mais
do que nunca, como simples instrumento
do homem; é o objeto de exploração total, Marxista e revolucionário quando jo­
à qual a razão não atribui nenhum objetivo vem, Horkheimer foi se afastando pouco a
e que, portanto, não conhece limites”. pouco de suas posições juvenis.
OitãVã parte - O marxismo depois de AAarx e a íEscola de Frankfurt

Não podemos absolutizar nada (deve- política, uma teoria, um Estado — seja algo
se recordar que Horkheimer é de origem absoluto. Nossa finitude, ou seja, nossa
judaica) e, portanto, também não podemos precariedade, não demonstra a existência
absolutizar o marxismo. “Todo ser finito de Deus. Entretanto, existe a necessidade
— e a humanidade é finita — que se pavo- de uma teologia, não entendida como ciên­
neia como o valor último, supremo e único, cia do divino ou de Deus, e sim como “a
torna-se ídolo, que tem sede de sacrifícios consciência de que o mundo é fenômeno e,
de sangue” . portanto, não a verdade absoluta que só a
Marxista por ser contrário ao na- realidade última pode ser. A teologia — e
cional-socialismo, Horkheimer desde o aqui devo me expressar com muita cautela
início nutriu dúvidas sobre o fato de “se a — é a esperança de que, apesar dessa injusti­
solidariedade do proletariado pregada por ça que caracteriza o mundo, possa acontecer
Marx era verdadeiramente o caminho para que essa injustiça não seja a última palavra”.
chegar a uma sociedade justa” . Na realida­ Assim para Horkheimer, portanto, a teolo­
de — observa Horkhèimer em A nostalgia gia é “expressão de uma nostalgia segundo
do totalmente Outro (1970) — as ilusões a qual o assassino não possa triunfar sobre
de Marx logo vieram à tona: “A situação sua vítima inocente”.
social do proletariado melhorou sem a re­ Portanto, “nostalgia de justiça per­
volução, e o interesse comum não é mais a feita e consumada” . Esta jamais poderá
transformação radical da sociedade, e sim ser realizada na história, diz Horkheimer.
a melhor estruturação material da vida” . E, Com efeito, “ainda que a melhor sociedade
na opinião de Horkheimer, existe uma soli­ viesse a substituir a atual desordem social,
dariedade que vai além da solidariedade de não será reparada a injustiça passada e
determinada classe: é a solidariedade entre não se anulará a miséria da natureza cir-
todos os homens, “a solidariedade que de­ cunstante” .
riva do fato de que todos os homens devem Entretanto, isso não significa que
sofrer, devem morrer e são finitos” . devamos nos render aos fatos, como, por
Se assim é, então “todos nós temos em exemplo, ao fato de que nossa sociedade
comum um interesse originariamente huma­ torna-se sempre mais sufocante. Nós, diz
no: o de criar um mundo no qual a vida de Horkheimer, “ainda não vivemos em uma
todos os homens seja mais bela, mais longa, sociedade automatizada [...]. Ainda pode­
mais livre da dor e, gostaria de acrescentar, mos fazer muitas coisas, mesmo que mais
mas não posso acreditar nisso, um mundo tarde essa possibilidade venha a ser-nos
que seja mais favorável ao desenvolvimento tirada”.
do espírito” . E o que o filósofo deve fazer é criticar
Diante da dor do mundo e diante da “a ordem constituída” para “impedir que
injustiça, não podemos ficar inertes. Mas os homens se percam naquelas idéias e na­
nós, homens, somos finitos. Por isso, embora queles modos de comportamento que a so­
não devamos nos conformar, também não ciedade lhes propicia em sua organização”.
podemos pensar que algo histórico — uma E S Í W 21
Capítulo vigésimo sexto - A É s c o l « d e F rankfurt

IV. Fl erbert yVlarcuse


e a rcmde iAe c u s a ,;

• Para Freud a história do homem é história de sua repressão; isso no sentido


preciso de que a cultura e a civilização foram possíveis e sobrevivem apenas graças
a constrições sociais e biológicas suportadas pelos indivíduos particulares.
A repressão dos instintos e a transformação do princípio do
prazer em princípio da realidade são os pressupostos necessários
da civilização; e o progresso é fruto de duro trabalho. Uma dúvida
Escreve Marcuse (1898-1979) a propósito dessa perspectiva sobre Freud:
a civilização
de Freud: "A convicção de que uma civilização não-repressiva seja
deve ser
impossível é uma pedra angular da construção teórica freudiana". necessariamente
Mas - pergunta-se Marcuse em Eros e civilização (1955) - é de "repressiva"?
fato verdade que não é possível uma civilização sem repressão? - ^§ 1
É de fato verdade que a repressão dos instintos em função da
civilização deve ser eterna?

• A tal interrogação Marcuse responde negativamente; e fundamenta a res­


posta dele sobre o fato de que o progresso tecnológico gerou as premissas para a
libertação da sociedade da obrigação do trabalho, para uma dilatação do tempo
livre: "O reino da liberdade, expandindo-se sempre mais, torna-se
verdadeiramente o reino do jogo, do livre jogo das faculdades Critica
individuais". da "sociedade
Apesar de tudo, a utopia, doravante tecnicamente possí­ de uma
vel, permanece inatingível. E isso pelo motivo de que - é o que dimensão"
Marcuse sustenta em O homem de uma dimensão (1964) - uma -»§ 2-3
filosofia de uma dimensão (negação do pensamento crítico) é
posta a serviço de uma sociedade de uma dimensão (sem oposição e entregue ao
exercício do poder total), na qual vivem homens de uma dimensão, cujas ocupações,
necessidades e aspirações são determinantes do universo tecnológico-político da
sociedade industrial avançada. Uma sociedade, esta, que poderá ser questionada
apenas a partir do exterior, pela grande massa dos rejeitados e dos estrangeiros,
dos explorados e dos perseguidos de outras raças e outras cores, pelos desocupa­
dos e pelos inaptos.

& impossível monogâmica, ao sistema constituído das


// . .I . - leis e da ordem. O sacrifício metódico da
uma civilizaçao
libido e seu desvio imposto inexoravelmen­
não-repressiva//? te, para atividades e expressões socialmente
úteis, são a cultura”. Na opinião de Freud,
a história do homem é a história de sua
Eros e civilização (1955) desenvolve repressão. A cultura ou civilização impõe
um dos temas mais importantes do pensa­ constrições sociais e biológicas ao indiví­
mento de Freud, ou seja, a teoria freudiana duo, mas essas constrições são a condição
de que a civilização baseia-se na repressão preliminar do progresso. Deixados livres
permanente dos instintos humanos. Como para seguir seus objetivos naturais, os
escrevia Freud, “a felicidade não é um va­ instintos fundamentais do homem seriam
lor cultural”. E, comenta Marcuse (1898­ incompatíveis com toda forma duradoura
1979), isso no sentido de que “a felicidade de associação: “ Os instintos, portanto,
está subordinada a um trabalho que ocupa devem ser desviados de sua meta, e inibi­
toda a jornada, à disciplina da reprodução dos em seu objetivo. A civilização começa
O i t ã V ã parte - CD m a rx ism o d e p o is d e e a E s c o l a d e F rank furt

quando se renuncia eficazmente ao objetivo


primário: a satisfação integral das necessi­
dades” . Essa renúncia ocorre na forma de
deslocamento:

de: -> para:


satisfação satisfação
imediata adiada
prazer limitação do prazer
alegria (jogo) fadiga (trabalho)
receptividade - h' produtividade
ausência de repressão -> segurança

Marcuse diz que “Freud descreveu


essa mudança como a transformação do
princípio do prazer em princípio de reali­
d ade”, e as vicissitudes dos instintos são as
vicissitudes da estrutura psíquica na civi­
lização. E “com a instituição do princípio
de realidade, o ser humano — que, sob o
princípio do prazer, fora pouco mais do que Herbert Marcuse (1898-1979).
mistura de tendências animais, tornou-se Sua filosofia “quer se manter fiel àqueles que,
Eu organizado” . Para Freud, a modificação sem esperança, deram
repressiva dos instintos é conseqüência “da e dão a vida por causa da grande recusa
eterna luta primordial pela existência [...]
que continua até nossos dias”. Sem a mo­
dificação, ou melhor, o desvio dos instintos,
não se vence a luta pela existência e não "G-fos" libertado
seria possível nenhuma sociedade humana
duradoura. Entretanto, diz Marcuse, Freud
“considera ‘eterna’ a luta primordial pela O progresso tecnológico gerou as
existência”, acreditando, com isso, num premissas para a libertação da sociedade
antagonismo eterno “entre o princípio do em relação à obrigação do trabalho, pela
prazer e o princípio de realidade [...] A ampliação do tempo livre, pela mudança da
convicção de que é impossível uma civili­ relação entre tempo livre e tempo absorvido
zação não repressiva representa uma pedra pelo trabalho socialmente necessário (de
angular da construção teórica freudiana” . modo que este se torne apenas meio para a
Precisamente contra essa eternização e ab- libertação de potencialidades hoje reprimi­
solutização do contraste entre o princípio das): “Expandindo-se sempre mais, o reino
do prazer e o princípio de realidade é que da liberdade torna-se verdadeiramente o
se voltam os golpes críticos de Marcuse, reino do jogo, do livre jogo das faculdades
no sentido de que, em sua opinião, esse individuais. Assim libertadas, elas geram
contraste não é metafísico ou eterno, de­ formas novas de realização e de descoberta
vido a certa misteriosa natureza humana do mundo, que, por seu turno, darão nova
considerada em termos essencialistas. Esse forma ao reino da necessidade e à luta pela
contraste é muito mais produto de uma or­ existência”. O reino da necessidade (cen­
ganização histórico-social específica. Freud trado no princípio do desempenho e da
mostrou que a falta de liberdade e a cons- eficiência, que suga toda a energia humana)
trição foram o preço pago por aquilç» que será então substituído por uma sociedade
se fez, pela “civilização” que se construiu. não repressiva, que reconcilia natureza e
Mas disso não deriva necessariamente que civilização, na qual se afirma a felicidade
o preço a ser pago seja eterno. do Eros libertado.
Capítulo vigésimo sexto - jA <Bsc.a\a de Frankfurt

No progresso tecnológico, portanto, forma de opulência e liberdade, estende-se


estão as condições objetivas para a transfor­ a todas as esferas da vida privada e pública,
mação radical da sociedade. No entanto, o integra toda oposição genuína e absorve em
progresso tecnológico não fica abandonado si toda alternativa”. Em suma, a sociedade
a si mesmo: é controlado e guiado; cons­ tecnológica avançada cria um verdadeiro
ciente das possibilidades da derrocada do universo totalitário; “em uma sociedade
sistema, o poder sufoca as potencialidades madura, mente e corpo são mantidos em
libertadoras e perpetua um estado de ne­ um estado de mobilização permanente para
cessidade doravante não mais necessário. a defesa desse mesmo universo”.
E assim, já tecnicamente possível, a utopia Por tudo isso, a luta pela mudança
permanece inalcançável. Daí a importância deve tomar outros caminhos, não mais os
da filosofia, que, embora sem dizer como indicados por Marx: “As tendências totali­
será o reino da utopia, no entanto o anun­ tárias da sociedade unidimensional tornam
cia, ao mesmo tempo em que denuncia os ineficazes os caminhos e meios tradicionais
obstáculos em seu caminho. de protesto”. Seja como for, a questão, po­
rém, não se apresenta como desesperadora,
pois, “abaixo da base popular conservadora,
O homem de uma dimensão existe a camada dos marginalizados e dos
estrangeiros, dos explorados e perseguidos
de outras raças e de outras cores, dos de­
O escrito mais conhecido de Marcuse é sempregados e dos deficientes. Eles ficam
O homem de uma dimensão, de 1964. fora do processo democrático. Sua presença,
O homem de uma dimensão é o homem mais do que nunca, prova quanto é imediata
que vive em uma sociedade de uma dimen­ e real a necessidade de pôr fim a condições
são, sociedade justificada e coberta pela filo­ e instituições intoleráveis. Daí por que sua
sofia de uma dimensão. A sociedade de uma oposição é revolucionária, ainda que sua
dimensão é sociedade sem oposição, ou seja, consciência não o seja. Sua oposição golpeia
sociedade que paralisou a crítica através da o sistema de fora dele e, por isso, não é
criação de um controle total. A filosofia de desviada pelo sistema; é uma força elemen­
uma dimensão é a filosofia da racionalida­ tar que infringe as regras do jogo e, assim
de tecnológica e da lógica do domínio; é a fazendo, mostra tratar-se de um jogo com
negação do pensamento crítico, da “lógica cartas marcadas. Quando eles se reúnem e
do protesto”; é a filosofia “positivista” que andam pelos caminhos, sem armas e sem
justifica “a racionalidade tecnológica”. proteção, para reivindicar os mais elementa­
Na sociedade tecnológica avançada, res direitos civis, sabem que têm de enfrentar
“a máquina produtiva tende a se tornar cães, pedras e bombas, prisão, campos de
totalitária enquanto determina não somente concentração e até a morte [...]. O fato de
as ocupações, as habilidades e os comporta­ que eles começam a se recusar a tomar parte
mentos socialmente requeridos, mas também no jogo pode ser o fato que marca o início
as necessidades e as aspirações individuais” . do fim de um período”.
E, como universo tecnológico, a sociedade Isso não quer dizer, em absoluto, que as
industrial avançada “é um universo político, coisas serão assim. O que se diz é que “o fan­
o último estágio da realização de um projeto tasma está novamente presente, dentro e fora
histórico específico, ou seja, a experiência, a das fronteiras das sociedades avançadas”. E
transformação e a organização da natureza o que a teoria crítica da sociedade pode fazer
como mero objeto de domínio”. é o seguinte: ela “não possui conceitos que
Ela alcança a mais alta produtividade possam preencher a lacuna entre o presente
e a utiliza para perpetuar o trabalho e o e seu futuro; não tendo promessas a fazer
esforço; nela, a industrialização mais efi­ nem resultados a mostrar, ela permanece
ciente pode servir para limitar e manipular negativa. Desse modo, ela quer manter-se
as necessidades. Escreve Marcuse: “Quando fiel àqueles que, sem esperança, deram e dão
se alcança esse ponto, a dominação, sob a a vida pela grande recusa”. fURfirsl
O i t ã V ã p ã Y t e - CD m a rx ism o d e p o is d e J\A a ^ x e a (E sc o la d e FW m kfurt

v. F^omm
e a ^cidade do s e /

• Em Fuga da liberdade (1941) Erich Fromm (1900-1980) mostra como, sob


o peso da liberdde e da responsabilidade, o homem não raramente ceda ao
"conformismo gregário", não encontrando assim sua identidade e perdendo sua
saúde mental. Olhando, porém, o caminho histórico do homem,
A liberdade Fromm relembra - em A desobediência como problema psicoló­
é capacidade gico e moral (1963) - que "não só o desenvolvimento espiritual
de (do homem) tornou-se possível a partir do fato de que nossos
desobedecer semelhantes ousaram dizer não aos poderes em ato em nome da
- ^§ 1 própria consciência ou da própria fé, mas que também seu desen­
volvimento intelectual depende da capacidade de desobedecer:
desobedecer às autoridades que tentassem reprimir novas idéias e à autoridade de
crenças há muito tem po existentes, e segundo as quais toda mudança era carente
desentido".

• Um dos livros mais conhecidos de Fromm é Ter ou ser? (1976), onde ele
examina "as duas modalidades basilares de existência: a modalidade do ter e a
modalidade do ser".
Para a primeira modalidade o verdadeiro ser do homem é o
O homem ter, razão pela qual "se alguém não tem nada, não é nada".
novo da Buda, Jesus, Mestre Eckhart, o Marx humanista radical (e
Cidade do Ser não aquele contrabandeado pelo comunismo soviético), ao con-
§2 trário, nos indicam, em contextos diferentes, as características da
modalidade do ser: "a independência, a liberdade e a presença
da razão crítica". Ser significa principalmente ser ativos, isto é, dar expressão aos
próprios talentos, renovar-se, crescer, amar, sair da prisão do próprio eu isolado,
"prestar atenção, dar". E o homem que é é o homem novo, o cidadão da Cidade
do Ser, de uma cidade onde-assim lemos em A arte de am ar (1 9 5 6 )- "a natureza
social e amante do homem não seja separada de sua existência social, mas torne-se
uma só coisa com ela".

1 y \ desobediência cendo cegamente a normas estabelecidas e


agregando-se a um grupo (e considerando
é de fato um vício?
como inimigos os outros homens e os ou­
tros grupos). Desse modo, o homem que
vai em busca de sua identidade só encontra
Na opinião de Fromm (1900-1980), o sucedâneos e então se perde, perdendo sua
homem nasce quando “é arrancado à união saúde mental.
originária com a natureza que caracteriza Em A desobediência como problema
a existência animal” . Todavia, quando psicológico e m oral (1963), Fromm afir­
esse evento se realiza, o homem permanece ma que durante séculos reis, sacerdotes,
fundamentalmente só. A realidade, como senhores feudais, magnatas da indústria e
evidenciou Fromm em Fuga da liberdade genitores proclamaram que a obediência é
(1941), é que o homem que se afasta do virtude e a desobediência é vício. Mas, a essa
mundo físico e social, ou seja, o homem posição, Fromm contrapõe a perspectiva de
que se torna livre e responsável por seus que “a história do homem começou por um
próprios atos, por sua própria opção e por ato de desobediência, e é muito improvável
seus próprios pensamentos, nem sempre que se conclua com um ato de obediência” .
consegue aceitar o peso da liberdade, e então Adão e Eva “estavam dentro da natureza
cede ao “conformismo gregário”, obede­ assim como o feto está dentro do útero da
Capítulo vigésimo sexto - A & s c o la d e F rank furt

mãe” . Todavia, seu ato de desobediência dores modernos se etiquetam a si mesmos


rompeu o laço original com a natureza e os com a seguinte expressão: eu sou = aquilo
tornou indivíduos: “Longe de corromper o que tenho e aquilo que consumo. Diante
homem, o ‘pecado original’ tornou-o livre; desse modo de existência individual e social,
foi o início de sua própria história. O ho­ Fromm recorda Buda, que ensinou que não
mem teve de abandonar o paraíso terrestre devemos aspirar às posses; Jesus, para quem
para aprender a depender de suas próprias de nada adianta ao homem ganhar o mundo,
forças e tornar-se plenamente humano” . E mas perder-se a si mesmo; mestre Eckhart,
como nos ensina o messianismo dos profe­ que ensinava a não ter nada; Marx, que
tas, como nos ensina o “delito” de Prometeu afirmava que “o luxo é vício, exatamente
(que rouba o fogo dos deuses e “constrói os como a pobreza”, e que devemos nos propor
alicerces da evolução humana” ), como nos como meta o ser muito, não o ter muito.
ensina a caminhada histórica do homem, Refiro-me aqui — precisa Fromm — ao
“o homem continuou a se desenvolver me­ verdadeiro Marx, ao humanista radical, e
diante atos de desobediência. Não apenas não à sua contrafação vulgar constituída
seu desenvolvimento espiritual tornou-se pelo ‘comunismo’ soviético” .
possível pelo fato de nossos semelhantes te­ Assim, se no modo do ter um homem é
rem ousado dizer ‘não’ aos poderes vigentes, o que tem e o que consome, os pré-requisitos
em nome de sua própria consciência ou de do modo do ser são “a independência, a
sua própria fé, mas também seu desenvolvi­ liberdade e a presença da razão crítica” . A
mento intelectual dependeu da capacidade característica fundamental do modo do ser
de desobedecer: desobedecer às autoridades consiste “em ser ativo”, o que não deve ser
que tentassem reprimir novas idéias e à entendido no sentido de atividade externa,
autoridade de crenças existentes há longo de estar atarefado, e sim de atividade in­
tempo, segundo as quais toda mudança era terna, do uso produtivo de nossos poderes
desprovida de sentido” . humanos. Ser ativo significa dar expressão
Uma pessoa torna-se livre e cresce por às suas faculdades e talentos próprios, à
meio de atos de desobediência. A capacidade multiplicidade de dotes que todo ser huma­
de desobedecer, portanto, é a condição da no possui, embora em graus diversos. Sig­
liberdade, que representa a capacidade de nifica renovar-se, crescer, expandir-se, amar,
desobedecer: “Se tenho medo da liberdade, transcender a prisão do próprio eu isolado,
não posso ousar dizer ‘não’, não posso ter a interessar-se, “prestar atenção, dar”.
coragem de ser desobediente. Com efeito, a Delineados esses dois modos de exis­
liberdade e a capacidade de desobedecer são tência, Fromm afirma: “A cultura tardio-
inseparáveis”. E são elas que estão na base medieval tinha por centro motor a visão da
do nascimento e do crescimento do homem Cidade de Deus. A sociedade moderna se
enquanto tal. Pois bem, diz Fromm, “na fase constituiu porque as pessoas partiram da
histórica atual, a capacidade de duvidar, visão do desenvolvimento da Cidade terre­
de criticar e de desobedecer pode ser tudo na do progresso. Em nosso século, porém,
o que se interpõe entre um futuro para a essa visão foi se deteriorando até se reduzir
humanidade e o fim da civilização” . à da Torre de Babel, que já começa a ruir e
arrisca envolver a todos em sua derrocada.
Se a Cidade de Deus e a Cidade Terrena
'X.e.v- o u set^? constituem a tese e a antítese, uma nova sín­
tese representa a única alternativa ao caos:
a síntese entre o núcleo espiritual do mundo
Foi precisamente à análise da crise da tardio-medieval e o desenvolvimento, ocor­
sociedade contemporânea e à possibilidade rido a partir da Renascença, do pensamento
de resolvê-la que Fromm dedicou um de racional e da ciência. Essa síntese constitui
seus livros mais lidos: Ter ou ser? (1976), a Cidade do Ser” . Essa Cidade do Ser será a
onde examina os “dois modos basilares de cidade do homem novo, ou seja, será a so­
existência: o modo do ter e o modo do ser". ciedade “organizada de modo tal — escrevia
Quanto ao primeiro modo, diz-se que a Fromm em A arte de amar (1956) — que
verdadeira essência do ser é o ter, razão por a natureza social e amante do homem não
que “se alguém não tem nada, não é nada”. seja separada de sua existência social, mas
E é com base nessa idéia que os consumi­ se torne uma coisa única com ela” .
Oitava parte - O m a r x is m o d e p o i s d e JSAarx e a £ s c o l a d e F r a n k fu r t

elas e se põe a pensar, fresca e alegre, a torto


e o direito, torna-se uma prerrogativa impoten­
A dorno te, a sombra da religião dominical, cheia de
sombras. Portanto, se a filosofia perdeu toda
reputação junto à ciência especializada, isso
não deve ser atribuído à limitação desta última,
D fl filosofia não pode e sim a uma inevitabilidade objetiva.
A partir do movimento do próprio pensa­
se reduzir a ciência mento filosófico pode-se entrever o que lhe
ocorre com o progresso intransigente de seu
controle e autocontrole científico. Com o tornar-
Há tendências no pensamento contem­ se mais verdadeiro, o pensamento renuncia à
porâneo de reduzir todo o conhecimento o verdade. Quem reflete com plena liberdade so­
ciência - basta pensor no neopositivismo. bre objetos requeridos pela ciência organizada
Todavia, diz fídorno, "o pensamento cientiFi- pode talvez fugir às vezes ao taedium scientiae;
cizado está submetido à divisõo do trabalho"; em troca, porém, não só é pago com o ultrajante
e, cego em relaçõo aos Fins, p ro íb e-se o elogio às suas capacidades intuitivas ou ao seu
compreensão de seus pressupostos sociais. ter fornecido sugestões, mas deve ainda tole­
O ideal da ciência, portanto, se tronsFormou rar que lhe seja demonstrada tanto a falta de
em "uma escravidão que proíbe o pensa­ competência, como a inferioridade daquilo que
mento de pensor" e de dirigir o olhar sobre a é logo torcido em hipóteses e triturado entre as
"totalidade", sobre o qual apenas a FilosoFia duas mós de moinho do "Onde está a prova?"
p o d e sensatamente Falar. e "Onde está a novidade?". Se, ao contrário, a
filosofia, para fugir desse perigo, se retira em
si mesma, cai no jogo conceitual vazio ou então
O trabalho da ciência sempre interferiu no escolástico não-vinculante, mesmo que o
no campo da metafísica tradicional. Desde a esconda por trás de patéticos neologismos do
especulação cosmológica, a ciência subtraiu tipo daqueles que, segundo De Maistre, são te­
à metafísica uma parte sempre maior daquilo midos pelos grandes escritores. O pensamento
que ela considerava sua propriedade estrita, e que procura às apalpadelas entender - e sobre
ao mesmo tempo esboçou um ideal de certeza o próprio entender se estende, entretanto, o
indubitável diante da qual a metafísica, onde tabu da não cientificidade - encontra já tudo
não se servisse de uma disciplina científica, ocupado. Não apenas é posto de sobreaviso
parecia vã e dogmática. Como é possível uma contra o diletantismo, o complemento do esper­
metafísica como ciência: esta formulação não to, mas até paralisado sem sequer poder-se
parafraseia apenas o tema da crítica kantiana limitar ao menos a confessar a ligação espiri­
da razão enquanto teoria do conhecimento, tual entre tudo aquilo que constatou, de que
mas exprime também o impulso motor de toda Fausto lamenta a falta. Com efeito, a "síntese",
a filosofia moderna. Todavia, desde o início que se contenta com descobertas científicas já
isso não sustenta apenas um "problema" a ser disponíveis, permanece exterior à referência
resolvido em tranqüilo progresso, por exemplo, espontânea do pensamento ao objeto e é ela
a purificação da filosofia em relação a seus própria um ato parcial daquela organização que
conceitos pré-científicos por meio da reflexão se ilude de revogar. O ideal da ciência que a um
sobre si mesma, fl transformação da filosofia em tempo havia ajudado a filosofia a libertar-se dos
ciência, e que também fosse, como freqüente­ laços ideológicos, posto em conserva, tornou-se
mente se aduziu como escapatória com intenção entrementes também ele uma escravidão que
apologética, em ciência primeira e fundante proíbe ao pensamento de pensar. Isso, porém,
das ciências particulares ou então suprema e não é simples desenvolvimento falso como não
coroante, não é uma feliz maturação na qual o é aquele, de análogos entendimentos, da
o pensamento se despoje de seus rudimentos sociedade à qual é intrínseca a filosofia, e por
pueris, de desejos e de projeções subjetivas: isso não se deixa corrigir à vontade por meio
mas desestabiliza ao mesmo tempo também da compreensão e da decisão. O pensamen­
o próprio conceito da filosofia. Até que ela se to cientificizado está submetido à divisõo do
esgota no culto daquilo que "é o caso" (con­ trabalho. Ou procede segundo os esquemas
forme a formulação de UJittgenstein), entra em pré-indicados, e poupando esforços supérfluos,
competição com as ciências às quais, em sua das disciplinas particulares estabelecidas, ou
cegueira, se assimila, embora permanecendo então se estabelece como disciplina particular
sempre na retaguarda; todavia, se rompe com suplementar que se afirma sobre o mercado
485
Capítulo vigésimo sexto - < £ s c o la d e F r a n k fu r t ____

porque diferente dos outras. O pensar que se levar Gide ao cristianismo. Gide escreve qu® Ih®
opõe à divisão do trabalho regride em relação é impossível crer nos dogmas do cristianismo,
ao desenvolvimento das forças, e se comporta e Claudel lhe responde mais ou menos assim:
como "arcaico"; porém, caso se enquadre como "Cntõo não creia, mas vá à igreja e faça aquilo
ciência entre as ciências, renuncia a seu pró­ que é prescrito; o resto virá".
prio impulso motor justamente onde dele teria é uma atitude semelhante à dos hebreus,
maior necessidade. Cl® permanece estático, que por séculos observaram suas prescrições.
permanece mera reconstrução de algo já pré- Um rabino talvez possa dizer: deixe em paz a
formado pelas categorias sociais e, por fim, fé, mos faça aquilo que está prescrito.
pelas relações da produção mesmo quando Por isso o catolicismo está mais próximo
presume julgar sobre assim chamadas ques­ do hebraísmo do que o protestantismo, por­
tões de princípio, como a relação entre sujeito que no catolicismo a ação tem um papel muito
e objeto, fl ciência coisifica enquanto declara mais decisivo do que a fé. O conceito da fé é
que o trabalho espiritual incorporado, o saber propriamente uma invenção do protestantismo,
inconsciente de suas mediações sociais, é o para evitar a alternativa entre ciência ® supers­
saber ut sic. Isso é expresso por todas as suas tição. Para salvar a religião encontrou-se para
exigências e todas as suas proibições. a alternativa um terceiro ângulo, a fé.
T. LU. Adorno, Cste problema não existe para o hebraís­
Sobre o metacrítica da gnosiologia. mo. As prescrições determinam toda a vida do
hebreu praticante. Cste fato manteve unido o
hebraísmo, porque, onde quer que estivesse
um hebreu, seus companheiros de fé viviam
segundo os mesmos mandamentos.
G umnior - Cm poucas palavras, o que é
H o r k h e im e r decisivo é a ação, o fazer: não é importante,
ao contrário, que Deus exista, que se creia ou
não se creia nele.
HoRmeiMCR - Do ponto de vista dialético é
importante e ao mesmo tempo não importante.
R nostalgia Não é importante, porque, conforme já disse,
do "totalmente Outro" nós nõo podemos dizer nada sobre Deus, e nõo
é crível a doutrina cristã de que exista um Deus
onipotente e infinitamente bom, haja vista a dor
R teologia é "expressão de uma nostal­ que há milênios domina a terra, C importante,
gia, segundo a qual o assassino não pode porque por trás de toda açõo humana está a
triunfar sobre sua vítima inocente". teologia. P®nse ®m tudo o que nós, Adorno e
eu, escrevemos na Dialética do Iluminismo. Lá se
diz: uma política que não conserve em si, ainda
G umnior - O senhor fala de hebraísmo. que em forma extremamente não-reflexa, uma
Onde está a ligação com a teoria crítica? teologia, em última análise, por mais hábil que
HoRmeiMCR - O hebreu religioso hesita, por possa ser, permanece especulação.
exemplo, se deve escrever a palavra Deus. Cm G umnior - O que significa aqui teologia?
seu lugar faz um apóstrofo, porque para ele HoRmeiMCR - Procurarei explicar. Do ponto
Deus é o "inominável", porque Deus não se de vista do positivismo não é possível deduzir
deixa representar sequer por uma palavra. nenhuma política moral. 5 ® olharmos as coisas
G umnior - M as essa relutância em repre­ do ponto de vista estritamente científico, o ódio,
sentar Deus remonta ao mandamento divino, apesar de todas as diferenças de função social,
que, segundo a Bíblia, foi dado a M oisés s o ­ não é pior do que o amor. Não há nenhuma
bre o monte 5 inai: não faças para ti nenhuma motivação lógica premente, se para mim não
imagem de Deus. há nenhuma vantagem na vida social.
Horkhqmcr - Naturalmente. Mas não nos G umnior - O positivismo pode, portanto,
devemos perguntar o porquê desse mandamen­ se bem entendi, dizer como no sentido de Geor-
to? Nenhuma outro religião, fora do hebraísmo, ge Orujell: a guerra é boa ou má como a paz:
conhece essa prescrição. Cu creio que este man­ a liberdade é boa ou má como a escravidão e
damento existe, porque no hebraísmo aquilo que a opressão.
importa não é como Deus é, mas como o homem é. Horkhcimcr - Cxatamente. Com efeito,
Penso na correspondência entre Paul como é possível fundar exatamente que não
Claudel e André Gide, na qual Claudel procura devo odiar, quando isso me deixa cômodo?
O itã V ã parte - O m a rx is m o d e p o i s d e yW n 'X e a < £ sc o l a d e F r a n k fu r t

------------------------------------------------
O positivismo nõo ©ncontra nenhuma instância
que transcenda o homem, qu© ponha uma fatos. €stá "paralisado p elo medo do verda­
clara distinção entre prontidão em socorrer e de". € sobre a autodestruição do Iluminismo
anseio por lucro, entre bondade e crueldade, que Horkheimer e fldorno dirigem sua aten­
entre cupidez e doação de si. Também a lógica ção. "Não temos a mínima dúvida [...] de que
permanece muda; ela não reconhece nenhum a liberdade na sociedade é inseparável do
primado para a atitude moral. Todas as tentati­ pensamento iluminista. M as consideramos
vas de fundação da moral sobre uma sabedoria ter compreendido, com igual clareza, que
deste mundo em vez de sobre a referência a o próprio conceito deste pensamento, não
um além - mesmo Kant nem sempre contradisse menos que as formas históricas concretas,
esta inclinação - repousam sobre ilusões de das instituições sociais às quais está e s ­
concordâncias impossíveis. Tudo aquilo que tem treitamente ligado, implicam já o germe da
relação estreita com a moral, remete em última regressão que hoje se verifica em todo lugor.
análise à teologia. Toda moral, pelo menos nos Se o Iluminismo não acolhe em si a consciên­
países ocidentais, funda-se sobre a teologia, cia deste momento regressivo ele assina
com boa paz de todos os esforços para tomar sua própria condenação", fl realidade, com
as devidas distâncias em relação à teologia. efeito, é que "o aumento da produtividade
G umnior - Rindo a mesmo pergunto, s e ­ econômica, que gera, de um lado, as condi­
nhor Horkheimer: o que significo aqui teologia? ções de um mundo mais justo, propicia, do
Horkhqmsr - De nenhum modo aqui teolo­ outro lado, para o aparoto técnico e para
gia significa ciência do divino ou, talvez, ciência os grupos sociais que dele dispõem, uma
de Deus. imensa superioridade sobre o resto da p o ­
Teologia significa aqui a consciência de pulação. O indivíduo, diante das potências
que o mundo é fenômeno, que não é a verdade econômicqs, é reduzido a zero". €is, entõo,,
absoluta, a qual apenas é a realidade última. A que é urgente reafirmar a idéia de que ‘Pioje
teologia é - devo me exprimir com muita cautela se trata de conservar, estender, desdobrara
- a esperança de que, apesar dessa injustiça liberdade, em vez de acelerar, mesmo que
que caracteriza o mundo, não possa ocorrer que medianamente, a corrida para o mundo da
a injustiça possa ser a última palavra. organização".
G umnior - Teologia como expressão de
uma esperança?
Horkhcimcr - €u preferiria dizer: expressão Que a fábrica higiênica e tudo aquilo que
de uma nostalgia; de uma nostalgia, segundo a a ela se liga, utilidades e palácio do esporte,
qual o assassino nõo possa triunfar sobre sua liquidem obtusamente a metafísica, seria ainda
vítima inocente. indiferente; mas que eles, na totalidade social,
M. Horkheimer, se tornem por sua vez metafísica, uma cortina
fí nostalgia do totalm ente Outro. ideológica por trás da qual se adensa a des­
graça real, isso não é indiferente, é daqui que
se movem nossos fragmentos. [...]
A condenação da superstição sempre
significou, junto com o processo do domínio,
também o desmascaramento do mesmo. O
H o r k h e im e r - A d o r n o Iluminismo é mais que Iluminismo; natureza que
se faz ouvir em seu estranhamento.
Mas reconhecer o domínio, até dentro do
pensamento, como natureza não-conciliada,
poderia deslocar tal necessidade, de que o
3 é necessário frear próprio socialismo admitiu demasiadamente
depressa a eternidade, em homenagem ao
o corrido poro o mundo common sen se reacionário. €levando a ne­
da organização cessidade como "base" para todos os tempos
futuros, e degradando o espírito - conforme
o modo idealista - como vértice supremo, ele
"O Iluminismo volta a converter-se em conservou demasiado rigidamente a herança da
mitologia": o Iluminismo s e transformou em filosofia burguesa. Assim, a relação da necessi­
pensam ento especializado, resolve-se na dade para com o reino da liberdade continuaria
economia d e mercado, é uma rendição aos puramente quantitativa, mecânica, e a natureza,
posta de fato como estranha, como na primeira
487
Capítulo vigésimo sexto - A focola d e F rank furt

mitologia, tornar-se-ia totalitária 0 acabaria por prio domínio. Cm cuja dissolução pode, portanto,
absorver a liberdade junto com o socialismo. ultrapassar o saber, em que indubitavelmente
Renunciando ao pensamento, qu0 so vinga, consistia, conforme Bacon, a "superioridade do
©m sua forma coisificada - como matemática, homem". Todavia, diante desta impossibilidade,
máquina, organização - do homem esquecido o Huminismo, a serviço do presente, transforma-
dele, o Huminismo renunciou à sua própria rea­ se no engano total das massas.
lização. Disciplinando tudo aquilo que é indivi­ M. Horkheimer - Th.LU. fidorno,
dual, ele deixou não compreendida a liberdade Dialética do Huminismo.
de se retorcer - a partir do domínio sobre as
coisas - sobre o ser 0 sobre a consciência dos
homens. Mas a práxis qu© inverte depende da
intransigência da teoria para a inconsciência
com que a sociedade deixa o pensamento se
endurecer. O que torna difícil a realização não M arcuse
são seus pressupostos mat0riais, a técnica
desencadeada como tal. Csta é a tese dos so­
ciólogos, que procuram agora um novo antídoto,
talvez de marca coletivista, para d0scobrir o
antídoto. Responsável é um complexo social de Q Para "outra"
cegueira. O mítico respeito científico dos povos
pelo dado que eles produzem continuamente e "mais humana” sociedade
acaba por se tornar, por sua vez, um dado
de fato, a fortaleza diante da qual também a Fi alternativa "é uma so cieda de sem
fantasia revolucionária so envergonha de si guerra, sem desfrute, sem opressão, sem
mesma como utopismo e degenera em passiva pobreza e sem desperdícios".
crença na tendência objetiva da história. Como
órgão desta adaptação, como pura construção
de meios, o Huminismo é tão destrutivo como Cntrcvistrdor - Ç u al é então o modelo
afirmam seus inimigos românticos. Cie chega a alternativo de sociedade?
si próprio apenas denunciando o último acordo MfiRcuse - fl questão da alternativa sempre
com eles e ousando abolir o falso absoluto, me pareceu e até agora me parece bastante
o princípio do domínio cego. O espírito desta fácil. Aquilo que os jov0ns hoje querem é uma
teoria intransigente poderia inverter, justamente sociedade sem guerra, sem desfrute, sem
para seu objetivo, o inexorável do progresso. opressão, sem pobreza e sem desperdícios,
Seu arauto, Bacon, sonhou mil coisas "que os fl sociedade industrial avançada possui atual­
reis com todos os seus tesouros não podem mente os recursos técnicos, científicos e naturais
adquirir, sobre as quais sua autoridade não que são necessários para satisfazer e pôr na
comanda, das quais seus emissários e informan­ realidade tais aspirações. O que impede tal
tes não dão notícias". Conforme augurava, elas libertação são simptesrronte o sistema existente
cabem aos burgueses, aos herdeiros iluminados e os interesses que operam sem cessar em de­
dos reis. Multiplicando a violência por meio da fesa dele, empregando para tal objetivo meios
mediação do mercado, a economia burguesa sempre mais poderosos. Parece-me, assim,
multiplicou também seus próprios bens e suas que o modelo alternativo não seja demasiado
próprias forças a ponto de não haver mais difícil de se determinar. Quanto à sua fisiono­
necessidade, para administrá-los, não só dos mia concreta, é outra questão. Mas creio que
reis, mas sequer dos burgueses: simplesmente sobre a base de uma eliminação da pobreza e
de todos. Cies aprendem, finalmente, a partir do desperdício de recursos se possa encontrar
do poder das coisas, a passar sem o poder. O umo forma de vida em que os homens consigam
Huminismo se realiza 0 se tolhe quando os obje­ determinar sua própria existência.
tivos práticos mais próximos revelam-se como a Cntrcvistroor - € qual é o caminho para
distância alcançada, e as terras "de quem seus chegar a tal sociedade?
emissários e informantes não dão notícias", isto M arcusc - O caminho para chegar a isso é
é, a natureza desprezada da ciência patronal, naturalmente alguma coisa que se pode concre­
são recordadas como as da origem. Hoje que tizar apenas no processo da luta necessária para
a utopia de Bacon - “comandar a natureza por trazer tal sociedade ao ser. Devemos, porém,
meio da práxis" - se realizou em escala telúrica, logo precisar umo coisa: tal caminho será bas­
torna-se óbvia a essência da obrigação que ele tante diferente nos diversos países, conforme
imputava à natureza não dominada. Cra o pró­ seu grau de desenvolvimento, da evolução de
O itã V ã pãTtS - O m a r x is m o d e p o i s d e ;V \ai'x e a Ê s c o l a d e F r a n k fu r t

suas forças produtivas, d® sua consciência, do poderes externos, sobre os quais o indivíduo
suas tradições políticas etc. Gostaria, em todo não tem nenhum controle,- o desenvolvimento
caso, de limitar minhas indicações aos £stados e a satisfação deles têm caráter heterônomo.
Unidos, porque é o país que melhor conheço. Não importa em qu© medida tais necessidades
[... ] €xiste, obviamente, o problema do sujeito da possam ter-se tornado as próprias do indivíduo,
transformação, isto é, a pergunta: quem é o sujei­ reproduzidas 0 reforçadas pelas suas condições
to revolucionário? Para mim este é um problema de existência; não importa até que ponto ele se
sem sentido, pois o sujeito revolucionário pode identifica com elas, 0 se encontra no ato de sa­
se desenvolver apenas no próprio processo da tisfazê-las. Gas continuam a ser aquilo que eram
transformação. Não é algo preexistente e que desde o início, os produtos de uma sociedade
se deva apenas rastrear neste e naquele lugar. cujos interesses dominantes pedem formas de
H. repressão. [...] A cultura industrial avançada é,
Marcuse,
Revolução ou reformas? em sentido específico, mois ideológica do que a
precedente, enquanto no presente a ideologia
é inserida no próprio processo de produção. De
forma provocatória, esta proposição revela os
fi categoria aspectos políticos da racionalidade tecnológica
que hoje predomina. O aparato produtivo, os
dos "folsos necessidades" bens e os serviços que ele produz, "vendem"
ou impõem o sistema social como um todo.
Rs folsos necessidades são "os produtos Os meios de transporte e de comunicação de
de uma sociedade cujos interesses dominan­ massa, as mercadorias que se usam para ha­
tes requerem formas de expressão". bitar, alimentar-se ©vestir-se, o fluxo irresistível
da indústria do divertimento e da informação,
trazem consigo atitudes e hábitos prescritos,
é possível distinguir entre necessidades determinadas reações intelectuais e emotivas
verdadeiras 0 necessidades falsas, As neces­ que ligam os consumidores, mais ou menos
sidades "falsas" são as que se impõem sobre agradavelmente, aos produtores, e, por meio
o indivíduo por parte de interesses sociais destes, ao conjunto. Os produtos doutrinam e
particulares que premem sua repressão: são as manipulam, promovem uma falsa consciência
necessidades que perpetuam a fadiga, a agres­ que é imun© pela própria falsidade. € à medi­
sividade, a miséria e a injustiça. Pode ser que o da que estes produtos benéficos são postos
indivíduo encontre extremo prazer em satisfazê- ao alcance de um número de classes sociais,
las, mas essa felicidade não é uma condição a doutrinação de qu© são veículo deixa de
que deva ser conservada 0 protegida, caso sirva ser publicidade: torna-se um modo de viver,
para frear o desenvolvimento da capacidade é um bom modo de viver - bastante melhor
(sua e de outros) de reconhecer a doença do do que um tempo -, © como tal milita contra a
conjunto 0 d© agarrar as possibilidades que se mudança qualitativa. Por tal caminho ©mergem
oferecem para curá-la. O resultado é, portanto, formas de pensamento e de comportamento
uma euforia no meio da infelicidade. A maior em umo dimensão ©m qu© idéias, aspirações
parte das necessidades que hoje prevalecem, © objetivos que transcendem, como conteúdo,
a necessidade de se relaxar, de se divertir, de o universo constituído do discurso e da ação
se comportar e.de consumir de acordo com os são rejeitados ou reduzidos aos termos de tal
anúncios publicitários, de amar e de odiar aquilo universo. €les são definidos de modo novo por
que outros amam 0 odeiam, pertencem a esta obra da racionalidade do sistema em ato e de
categoria de falsas necessidades. sua extensão quantitativa.
Tais necessidades têm um conteúdo e H. Marcuse,
uma função sociais que são determinados por O homem de uma dimensão.
B i b l i o g r a f i a d o v o lu m e vr

Cap. 1. Nietzsche Para Windelband e Rickert: C. R osso, Figure e


dottrine delia filosofia dei valori. Guida, Nápoles,
1973.
Textos
Nietzsche: Cosi parlò Zaratustra. Bocca, M ilão,
1935; Ecce homo. Bocca, M ilão, 1943; L a nascita Cap. 3. O historicismo alemão
delia tragédia. Laterza, Bari, 1967; L a mia vita.
Scritti autobiografici 1856-1869. Adelphi, Milão, Textos
1977; II caso Wagner-, Crepuscolo degli idoli;
Windelband, Rickert, Simmel, Troeltsch: Lo Stori-
L’Anticristo. M ondadori, M ilão, 1981; Schope­
cismo tedesco, P. Rossi (org.). Utet, Turim, 1977.
nhauer come educatore. Newton Compton, Roma,
1982. Dilthey: Critica delia ragione storica, Pietro Rossi
(org.). Einaudi, Turim, 1954.
Literatura Spengler: Urfragen. Longanesi, M ilão, 1971; II
G. Colli, Scritti su Nietzsche. Adelphi, M ilão, 1980; tramonto delVOccidente, trad. de P. Rossi, na an­
C. P. Janz, Vita di Nietzsche, 3 vols. Laterza, Roma- tologia L o Storicismo contemporâneo. Loescher,
Bari, 1980-1982; K. Lõwith, Nietzsche e Veterno Turim, 1972.
ritorno. Laterza, Roma-Bari, 1982; G. Dalm asso, Meinecke: Le origini dello Storicismo, M. Biscione,
II ritorno delia tragédia. Essere e inconscio in Niet­ C. Gundolf e G. Zamboni (orgs.). Sansoni, Florença,
zsche e Freud. F. Angeli, M ilão, 1983; G. Vattimo, 1954; L‘idea di ragion di Stato nella storia moderna.
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1985; G. Penzo, Invito al pensiero di Nietzsche.
M ursia, M ilão, 1990. Literatura
Para o Historicismo alemão em geral: P. Rossi, Lo
Cap. 2. Neocriticismo, Escola de M arburgo, Storicismo tedesco contemporâneo. Einaudi, Turim,
1971; D. Antiseri, L a metodologia delia storiografia
Escola de Baden
nello Storicismo tedesco contemporâneo. Bottega
di Erasm o, Turim, 1972; G. Brescia, Questioni
Textos dello storicismo, 2 vols. Galatina, 1980-1981; F.
Cassirer: Filosofia delle forme simboliche, 4 vols., Tessitore, Introduzione alio storicismo. Laterza,
E. Arnoud (org.). La Nuova Italia, Florença, 1961­ Roma-Bari, 1991.
1966; Saggio sull’uomo, L. Lugarini (org.). Arman­ Para Dilthey: C. Vicentini, Studio su Dilthey. Mur­
do, Rom a, 1968. sia, Milão, 1974; G. Cacciatore, Scienza e filosofia in
Dilthey, 2 vols. Guida, Nápoles, 1976; G. Cacciato­
Literatura re - G. Cantillo, W. Dilthey. Critica delia metafísica
Para Cassirer: M. Lancellotti, Funzione, simbolo e e ragione storica. II Mulino, Bolonha, 1985; M. A.
struttura. Saggio su E. Cassirer. Studium, Roma, Pranteda, Individualità e autobiografia in Dilthey.
1974; G. Raio, Introduzione a Cassirer. Laterza, Guerini e Associati, Milão, 1991.
Roma-Bari, 1991.

Cap. 4. Weber

‘Para a presente bibliografia não nos propusemos, Textos


obviamente, nenhuma pretensão de ser completos, mas Weber: II metodo delle scienze storico-sociali, P.
procuramos fornecer uma plataforma de partida suficien­
Rossi (org.). Einaudi, Turim, 1958; L’etica prote­
temente ampla para qualquer aprofundamento posterior
sério. stante e lo spirito dei capitalismo. Sansoni, Flo­
Foram excluídas, de propósito, citações de revistas. Os rença, 1965; Economia e società, P. Rossi (org.).
volumes elencados estão todos exclusivamente em língua Comunità, Milão, 1968; II lavoro intellettuale come
italiana: é por isso que nunca indicamos, para os autores professione, G. Cantimori e A. Giolitti. Einaudi,
estrangeiros, que se trata de traduções. Turim, 1973.
S ib lio 0 ra fia d o s e x to volum e

Literatura . Guzzo e A. Plebe (orgs.). Sei, Turim, 1964. Para as


VY.AA., M ax Weber e la sociologia oggi. Jaca Bodk, obras de De Sanctis veja-se alguma boa história da
M ilão, 1967; P. Rossi (org.), M ax Weber e Vanalisi literatura italiana.
dei m ondo m oderno. Einaudi, Turim, 1981; F. Croce: As Opere complete (em uma série de volu­
Ferrarotti, Uorfano di Bismarck. M ax Weber e il mes verdadeiramente imponente) são editadas por
suo tempo. Editori Riuniti, Roma, 1982; R Rossi, Laterza, Roma-Bari, e muitos escritos são do fim da
M ax Weber. R azionalità e razionalizzazione, I I década de 1980, em curso de publicação por Adel-
Saggiotore, M ilão, 1982; S. Segre, M ax Weber e il phi, M ilão; o Epistolario foi editado pelo Istituto
capitalismo. Ecig, Gênova, 1983. Italiano per gli Studi Storici de Nápoles.
Gentile: A edição completa dos Scritti, pela Fon-
Cap. 5. O pragmatismo dazione Gentile, foi iniciada em 1957 por Sansoni,
Florença.
Textos Bradley: Apparenza e realtà, D. Sacchi (org.). Ru-
Peirce: Caso, amore e logica. Taylor, Turim, 1956; sconi, Milão, 1984.
Come rendere chiare le nostre idee, D. Antiseri
(org.). Minerva Italica, Bérgamo, 1972. Literatura
W. Jam es: Principi di psicologia, G. Preti (org.). Para o neo-idealismo: U. Spirito, L’Idealismo ita­
Principato, M ilão, 1950; os trechos de Jam es são liano e i suoi critici. Le Monnier, Florença, 1930;
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