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G. Reale - D.

Antiseri

HISTÓRIA
DA FILOSOFIA
De Nietzsche
6 à Escola de Frankfurt
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Reale, G.
História da filosofia, 6: de Nietzsche à Escola de Frankfurt / G. Reale, D. Antiseri; [tradução
Ivo Storniolo]. — São Paulo: Paulus, 2006. — (Coleção história da filosofia; 6)

Titulo original: Storia delia filosofia, volume III.

ISBN 85-349-2431-7

1. Filosofia - História l. Antiseri, D. II. Título. III. Série.

05-6197 CDD-109

índices para catálogo sistemático:


1. Filosofia: História 109

Título original
S to ria d e lia filo s o fia - Volum e III: D a l R o m a n tic is m o a i g io rn i n o s tri
© Editrice LA SCUOLA, Brescia, Itália, 1997
ISBN 88-350-9273-6

Tradução
Ivo S to rn io lo

Revisão
Z o lfe rin o Tonon

Impressão e acabamento
PAULUS

© PAULUS - 2006
Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 São Paulo (Brasil)
Fax (11) 5579-3627 • Tel. (11) 5084-3066
www.paulus.com.br • editorial@paulus.com.br
ISBN 85-349-2431-7
jK prase.v\\c\<^c\o

* * *
Existem teorias, argumentações e dis­
putas filosóficas pelo fato de existirem pro­ A história da filosofia é a história dos
blemas filosóficos. Assim como na pesquisa problemas filosóficos, das teorias filosó­
científica idéias e teorias científicas são ficas e das argumentações filosóficas. É
respostas a problemas científicos, da mes­ a história das disputas entre, filósofos e
ma forma, analogicamente, na pesquisa dos erros dos filósofos. É sempre a his­
filosófica as teorias filosóficas são tentativas tória de novas tentativas de versar sobre
de solução dos problemas filosóficos. questões inevitáveis, na esperança de
Os problemas filosóficos, portanto, conhecer sempre melhor a nós mesmos e
existem, são inevitáveis e irreprimíveis; de encontrar orientações para nossa vida
envolvem cada homem particular que e motivações menos frágeis para nossas
não renuncie a pensar. A maioria desses escolhas.
problemas não deixa em paz: Deus existe, A história da filosofia ocidental é
ou existiríamos apenas nós, perdidos neste a história das idéias que inform aram,
imenso universo? O mundo é um cosmo ou ou seja, que deram forma á história do
um caos? A história humana tem sentido? Ocidente. É um patrimônio para não ser
E se tem, qual é? Ou, então, tudo - a gló­ dissipado, uma riqueza que não se deve
ria e a miséria, as grandes conquistas e os perder. E exatamente para tal fim os pro­
sofrimentos inocentes, vítimas e carnífices blemas, as teorias, as argumentações e
- tudo acabará no absurdo, desprovido as disputas filosóficas são analiticamente
de qualquer sentido? E o homem: é livre explicados, expostos com a maior clareza
e responsável ou é um simples fragmento
possível.
insignificante do universo, determinado * * *
em suas ações por rígidas leis naturais? A
ciência pode nos dar certezas? 0 que é a Uma explicação que pretenda ser clara
verdade? Quais são as relações entre razão e detalhada, a mais compreensível na me­
científica e fé religiosa? Quando podemos dida do possível, e que ao mesmo tempo
dizer que um Estado é democrático? E ofereça explicações exaustivas comporta,
quais são os fundamentos da democracia? todavia, um "efeito perverso", pelo fato
E possível obter uma justificação racional de que pode não raramente constituir um
dos valores mais elevados? E quando é que obstáculo ã "memorização" do complexo
somos racionais? pensamento dos filósofos.
Eis, portanto, alguns dos problemas Esta é a razão pela qual os autores
filosóficos de fundo, que dizem respeito pensaram, seguindo o paradigma clás­
às escolhas e ao destino de todo homem, sico do Üeberweg, antepor à exposição
e com os quais se aventuraram as mentes analítica dos problemas e das idéias dos
mais elevadas da humanidade, deixando- diferentes filósofos uma síntese de tais
nos como herança um verdadeiro patrimô­ problem as e idéias, concebida como
nio de idéias, que constitui a identidade e instrumento didático e auxiliar para a me­
a grande riqueza do Ocidente. morização.
.A p r e s e n t a ç ã o

* * * * * *

A firm ou-se com justeza que, em Ao executar este complexo traçado,


linha geral, um grande filósofo é o gênio os autores se inspiraram em cânones psico-
de uma grande idéia: Platão e o mundo pedagógicos precisos, a fim de agilizar a
das idéias, Aristóteles e o conceito de Ser, memorização das idéias filosóficas, que
Plotino e a concepção do Uno, Agostinho são as mais difíceis de assimilar: seguiram o
e a "terceira navegação" sobre o lenho da método da repetição de alguns conceitos-
cruz, Descartes e o "cogito", Leibniz e as chave, assim como em círculos cada vez
"mônadas", Kant e o transcendental, Hegel mais amplos, que vão justamente da síntese
e a dialética, Marx e a alienação do traba­ à análise e aos textos. Tais repetições, re­
lho, Kierkegaard e o "singular", Bergson e petidas e amplificadas de modo oportuno,
a "duração", Wittgenstein e os "jogos de ajudam, de modo extremamente eficaz, a
linguagem", Popperea "falsificabilidade" fixar na atenção e na memória os nexos
das teorias científicas, e assim por diante. fundantes e as estruturas que sustentam
Pois bem, os dois autores desta obra o pensamento ocidental.
propõem um léxico filosófico, um dicioná­ * * *
rio dos conceitos fundamentais dos diversos Buscou-se também oferecerão jovem,
filósofos, apresentados de maneira didá­ atualmente educado para o pensamento
tica totalmente nova. Se as sínteses iniciais visual, tabelas que representam sinotica-
são o instrumento didático da memoriza­ mente mapas conceituais.
ção, o léxico foi idealizado e construído Além disso, julgou-se oportuno enri­
como instrumento da conceitualização; e, quecer o texto com vasta e seleta série de
juntos, uma espécie de chave que permita imagens, que apresentam, além do rosto
entrar nos escritos dos filósofos e deles dos filósofos, textos e momentos típicos da
apresentar interpretações que encontrem discussão filosófica.
pontos de apoio mais sólidos nos próprios
textos. •k ★ ★
* * * Apresentamos, portanto, um texto cien­
tífica e didaticamente construído, com a
Sínteses, análises, léxico ligam-se,
intenção de oferecer instrumentos adequa­
portanto, à ampla e meditada escolha dos
dos para introduzir nossos jovens a olhar
textos, pois os dois autores da presente
para a história dos problemas e das idéias
obra estão profundamente convencidos
filosóficas como para a história grande,
do fato de que a compreensão de um fi­
fascinante e difícil dos esforços intelectuais
lósofo se alcança de modo adequado não
que os mais elevados intelectos do Ociden­
só recebendo aquilo que o autor diz, mas
te nos deixaram como dom, mas também
lançando sondas intelectuais também nos
como empenho.
modos e nos jargões específicos dos textos
filosóficos. G iovanni R eale - D ario A ntiseri
C T ^ d ic e g e r a l

índice de nomes, XVII I. O nascimento do neocriticismo, 22; 2. A Es­


índice de conceitos fundamentais, X X I cola de Marburgo, 23; 2.1. Hermann Cohen:
a filosofia crítica como metodologia da ciên­
cia, 23; 2.2. Paul Natorp: “ o método é tudo” ,
Primeira parte 24; 3. A Escola de Baden, 24; 3.1. Wilhelm
Windelband e a filosofia como teoria dos
A FILOSOFIA valores, 24; 3.2. Heinrich Rickert: conhecer
é julgar com base no valor de verdade, 24.
DO SÉCULO XIX
II. Ernst Cassirer e a filosofia
AO SÉCULO XX das formas simbólicas_____ 26
1. Substância e função, 26; 2. A filosofia das
Capítulo primeiro formas simbólicas, 28; 3. “ Animal rationa-
Friedrich Nietzsche. le” e “ animal symbolicum” , 28.
Fidelidade à terra T e x t o s - E. Cassirer: 1. O homem é um
e transmutação “animal simbólico” , 30.
de todos os valores__________ 3
1. A vida e a obra, 5; 2. O “ dionisíaco” , Capítulo terceiro
o “ apolíneo” e o “ problema Sócrates” , 6; O historicismo alemão,
3. Os “ fatos” são estúpidos e a “ saturação
de história” é um perigo, 8; 4. O afastamen­
de Wilhelm Dilthey
to em relação a Schopenhauer e Wagner, 8; a Friedrich Meinecke________ 33
5. O anúncio da “ morte de Deus” , 10; 6. O
I. Gênese, problemas,
Anticristo, ou o cristianismo como “ vício” ,
10; 7. A genealogia da moral, 12; 8. Niilis- teorias e expoentes
mo, eterno retorno e “ amor fati” , 13; 9. O do historicismo alemão ____ 33
super-homem é o sentido da terra, 15. I. Os grandes historiadores e as grandes
M a p a c o n c e i t u a l - D o dionisíaco ao super­ obras históricas do século XIX, 34; 2. O nas­
homem, 16. cimento do historicismo, 34; 3. Idéias e pro­
blemas fundamentais do historicismo, 35.
T e x t o s - F. Nietzsche: 1. A sublime ilusão
metafísica de Sócrates, 17; 2. O anúncio da II. Wilhelm Dilthey
morte de Deus, 18; 3. A “moral dos senho­ e a “crítica
res" e a “moral dos escravos” , 19.
da razão histórica” ________ 36
1. Rumo à crítica da razão histórica, 37;
Capítulo segundo 2. A fundamentação das ciências do espírito,
O neocriticismo. 38; 3. A historicidade constitutiva do mundo
A Escola de Marburgo humano, 38.
e a Escola de B aden _________ 21 III. O historicismo alemão
I. Gênese, finalidade e centros entre Wilhelm Dilthey
de elaboração do neocriticismo _ 21 e Max Weber____________ 40
ZT^vclice g e ^ a l

1. Windelband e a distinção entre ciências no- cedimentos para fixar as “crenças” , 80; 3. De­
motéticas e ciências idiográficas, 41; 2. Rickert: dução, indução, abdução, 81; 4. Como tornar
a relação com os valores e a autonomia claras nossas idéias: a regra pragmática, 82.
do conhecimento histórico, 42; 3. Simmel:
os valores do historiador e o relativismo II. O empirismo radical
dos fatos, 42; 4. Spengler e o “ o caso do de William Jam es_________ 84
O cidente” , 42; 5. Troeltsch e o caráter 1. O pragmatismo é apenas um método, 85;
absoluto dos valores religiosos, 44; 6. Mei- 2. A verdade de uma idéia se reduz à sua
necke e a busca do eterno no instante, 44. capacidade de “ operar” , 85; 3. Os princípios
T e x t o s - W. Dilthey: 1. “Reviver” para da psicologia e a mente como instrumento
“compreender”, 46; 2. As ciências do espírito da adaptação, 86; 4. A questão moral: como
entendem o sentido de um mundo humano escolher entre ideais contrastantes?, 86;
histórico e objetivado, 47; W. Windelband: 5. A variedade da experiência religiosa e o
3. Ciências nomotéticas e ciências idiográ­ universo pluralista, 87.
ficas, 48; H. Rickert: 4. Aprendizado gene- III. Desenvolvimentos
ralizante e aprendizado individualizante,
50; G. Simmel: 5. O “terceiro reino” dos
do pragmatismo__________ 88
produtos culturais, 51; F. Meinecke: 6. D is­ 1. Mead: continuidade entre o homem e o uni­
tinção entre civilização e cultura, 53. verso, 88; 2. Schiller: o pragmatismo como
humanismo, 89; 3. Vaininger e a filosofia
do “ como-se” , 89; 4. Calderoni: distinção
Capítulo quarto entre juízos de fato e de valor, 89; 5. Vailati:
M ax Weber: o pragmatismo como método, 90.
o desencantamento do mundo T e x t o s - Ch. S. Peirce: 1. Abdução, dedu­
e a metodologia ção, indução, 91; 2. A regra pragmática,
das ciências histórico-sociais___ 55 92; W. James: 3. “ O pragmatismo é apenas
um m étodo” , 93; G. Vailati: 4. Crítica do
1. Vida e obras, 57; 2. A questão da “referên­ materialismo histórico, 93.
cia aos valores” , 58; 3. Ateoria do “tipo ideal” ,
59; 4. O peso das diferentes causas na reali­
zação dos eventos, 60; 5. A polêmica sobre a Capítulo sexto
“ não-avaliabilidade” , 61; 6. A ética protes­ O instrumentalismo
tante e o espírito do capitalismo, 61; 7. Weber de John D ew ey_____________ 95
e Marx, 62; 8. O desencantamento do mundo, 1. A experiência não se reduz à consciência
63; 9. A fé como “ sacrifício do intelecto” , 64.
nem ao conhecimento, 96; 2. Precariedade e
M a p a c o n c e i t u a l - Metodologia das ciên­ risco da existência, 97; 3. A teoria da pesquisa,
cias histórico-sociais, 65. 98; 4. Senso comum e pesquisa científica: as
idéias como instrumentos, 99; 5. A teoria dos
T e x t o s - M . Weber: 1. A objetividade
valores, 100; 6. A teoria da democracia, 101.
cognoscitiva das ciências sociais, 66; 2. Ética
da convicção e ética da responsabilidade, M a p a c o n c e itu a i. - Método científico: Ética,
67; 3. Possibilidade objetiva e causação ade­ política, pedagogia, 103.
quada, 69; 4. A política não combina com a T e x t o s - J. Dewey: 1. A experiência não é
cátedra, 70; 5. Em busca de uma definição consciência, mas história, 104; 2. N ão há
de “capitalismo”, 72; 6. A ética protestante nada mais prático do que uma boa teoria,
e o espírito do capitalismo, 74; 7. O desen­ 105; 3. A relação entre passado e presente
cantamento do mundo, 75; 8. A ciência se na pesquisa histórica, 106; 4. A ciência e o
fundamenta sobre uma escolha ética, 77. progresso social, 108.

Capítulo quinto Capítulo sétimo


O pragmatismo_____________ 79 O neo-idealismo italiano,
I. O pragmatismo lógico Croce e Gentile,
de Charles S. Peirce________ 79 e o idealismo anglo-americano_ 109
1. O pragmatismo é a forma que o empiris- I. O idealismo na Itália
mo assumiu nos Estados Unidos, 80; 2. Os pro­ antes de Croce e Gentile____ 109
I. Augusto Vera, 109; 2. Bertrando Spaven-
ta, 109; 3. Outros expoentes italianos do Segunda parte
hegelianismo, 110.
II. Benedetto Croce
O CONTRIBUTO
e neo-idealismo como DA ESPANHA
“ historicismo absoluto”____ 111 À FILOSOFIA
1. Vida e obras, 112; 2. “ Aquilo que está DO SÉCULO XX
vivo e aquilo que está morto na filosofia de
Hegel” , 114; 3. A dialética como relação
dos distintos e síntese dos opostos, 115; 4. A Capítulo oitavo
estética croceana e o conceito de arte, 116; Miguel de Unamuno
4.1. A arte é “ aquilo que todos sabem o que
seja” , 116; 4.2. A arte como conhecimento
e o sentimento trágico da vida _ 157
intuitivo, 117; 4.3. A arte como expressão 1. A vida e as obras, 158; 2. A essência da Es­
da intuição, 117; 4.4. A intuição estética panha, 159; 3. Para libertar-se do “ domínio
como sentimento, 117; 4.5. A relação entre dos fidalgos da razão” , 159; 4. A vida “ não
intuição e expressão artística é uma “ sínte­ aceita fórm ulas” , 160; 5. Unamuno: um
se estética a priori” , 118; 4.6. O caráter de “ Pascal espanhol” encontra o “ irm ão ”
universalidade e cosmicidade da arte, 119; Kierkegaard, 161.
4.7. O que a arte não é, 119; 4.8. Alguns
T e x t o s - M. de Unamuno: 1. A vida vai
corolários da estética croceana, 119; 5. A ló­
gica croceana, 120; 5.1. A lógica como ciên­ além da “razão” , 162.
cia dos conceitos puros, 120; 5.2. Os pseu-
doconceitos e seu valor de caráter utilitarista Capítulo nono
(econômico), 121; 5.3. Coincidência de con­
ceito, juízo e silogismo, 122; 5.4. Identifica­ José Ortega y Gasset
ção entre juízo definitório e juízo individual, e o diagnóstico filosófico
e suas conseqüências, 122; 6. A atividade da civilização ocidental______ 165
prática, econômica e ética, 122; 7. A his­
tória como pensamento e como ação, 123. 1. A vida e as obras, 166; 2. O indivíduo
M apa c o n c e it u a l - A s formas do espírito, 1 2 5 . e sua “ circunstância” , 167; 3. Gerações
cumulativas, gerações polêmicas e gerações
III. Giovanni Gentile decisivas, 167; 4. A diferença entre “ idéias-
e o neo-idealismo invenções” e “ idéias-crenças” , 168; 5. O
como atualismo__________ 126 tesouro dos erros, 168; 6. O controle sem
fim das teorias científicas, 169; 7. O “ ho-
1. Vida e obras, 127; 2. A reforma gentiliana mem-massa” , 169.
da dialética hegeliana, 127; 3 .0 pensamento
como “ autoconceito” e “ forma absoluta” , T e x t o s - J. Ortega y Gasset: 1. Como distin­
129; 4. O “ mal” e o “ erro” , 129; 5. A “ natu­ guir as “crenças” das “idéias-invenções” , 171.
reza” como objeto do “ autoconceito” , 130;
6. Os três momentos do “ autoconceito” , 130;
7. Natureza do atualismo gentiliano, 131. Terceira parte
M a p a c o n c e i t u a l - O pensamento como
“autoconceito” e “forma absoluta” , 133.
FENOMENOLOGIA
EXISTEN ClALISMO
IV. O neo-idealismo na Inglaterra
e na América____________ 134 HERMENÊUTICA
1. Os precedentes: Carlyle e Emerson, 134;
2. Bradley e o neo-idealismo inglês, 135; Capítulo décimo
3. Royce e o neo-idealismo na América, 136. Edmund Husserl
T e x t o s - B. Croce: 1. O que é a arte, 137; e o movimento fenomenológico _ 175
2. A concepção da história, 144; G. Gentile:
3. O s problemas essenciais do atualismo e I. Gênese e natureza
suas implicações, 147. da fenomenologia_________ 175
Ctadice g e m i

I. A fenomenologia: um método para “ vol­ como linguagem do ser, 209; 11. A técnica
tar às próprias coisas” , 176; 2. A fenome­ e o mundo ocidental, 210.
nologia é descrição das essências eidéticas,
176; 3. Direção idealista e direção realista TExros - M. Heidegger: 1. A morte é “uma imi­
da fenomenologia, 177; 4. Às origens da nência ameaçadora específica ”, 211; 2. “No
fenomenologia, 177; 4.1. Bolzano e o valor tempo da noite do mundo o poeta canta o
lógico-objetivo das “ proposições” , 177; sagrado” , 213.
4.2. Brentano e a intencionalidade da cons­
ciência, 178. Capítulo décimo segundo
II. Edmund Husserl__________ 179 Traços essenciais
1. Vida e obras, 180; 2. A intuição eidética,
e desenvolvimentos
181; 3. Ontologias regionais e ontologia do existencialismo___________ 215
formal, 181; 4. A intencionalidade da cons­
ciência, 182; 5. “Epoché” ou redução feno-
I. Perspectivas gerais_________ 215
menológica, 183; 6. A crise das ciências I. A existência é “ poder-ser” , isto é, “ incer­
européias e o “ mundo da vida” , 184. teza, risco e decisão” , 215; 2. Pressupostos
remotos e próximos do existencialismo, 216;
III. Max Scheler_____________ 185 3. Os pensadores mais representativos do
1. Contra o form alism o kantiano, 186; existencialismo, 217.
2. Valores “ materiais” e sua hierarquia, 187;
3. A pessoa, 187; 4. A simpatia, o amor e a
II. Karl Jaspers
fé, 188; 5. Sociologia do saber, 188. e o naufrágio da existência_ 218
1. Vida e obras, 218; 2. A ciência como
IV. Desenvolvimentos orientação no mundo, 219; 3. O ser como
da fenomenologia________ 190 “ oniabrangente” , 219; 4. A não-objetivi-
1. Nicolai Hartmann e a análise fenomeno- dade da existência, 220; 5. O naufrágio da
lógica dirigida ao “ ser enquanto tal” , 191; existência e os “ sinais” da transcendência,
1.1. A concepção da ética, 191; 1.2. A proble­ 220; 6. Existência e comunicação, 221.
mática ontológica, 191; 2. Rudolf Otto e a fe­
nomenologia da religião, 191; 3. Edith Stein: III. Hannah Arendt:
o problema da empatia e a tarefa de uma filo­ uma defesa inflexível
sofia cristã, 192; 3.1. A vida e as obras, 192; da dignidade
3.2. Teoria fenomenológica da empatia, 193; e da liberdade do indivíduo _ 223
3.3. A tarefa de uma filosofia cristã, 194.
1. Hannah Arendt: a vida, 223; 2. As obras:
T e x t o s - E. Husserl: 1. A intencionalidade uma filosofia em defesa da liberdade, 224;
do conhecimento, 195; 2. A epoché fenome­ 3. Anti-semitismo, imperialismo e totalita­
nológica, 196; 3. “As meras ciências de fatos rismo, 224; 4. A ação como atividade polí­
criam simplesmente homens de fato ” , 198; tica por excelência, 225.
M. Scheler: 4. Quando uma idéia religiosa
torna possível a ciência, 200. IV. Jean-Paul Sartre:
da liberdade absoluta
e inútil à liberdade histórica_ 226
Capítulo décimo primeiro
Martin Heidegger: 1. Vida e obras, 227; 2. A náusea diante da
gratuidade das coisas, 227; 3. O “ em-si” e
da fenomenologia o “para-si” , o “ ser” e o “nada” , 228; 4. O
ao existencialismo___________ 201 “ ser-para-outros” , 228; 5. O existencialismo
1. Vida e obras, 202; 2. Da fenomenologia é um humanismo, 229; 6. Crítica da razão
ao existencialismo, 203; 3. O Ser-aí e a ana­ dialética, 231.
lítica existencial, 203; 4. O ser-no-mundo, V. Maurice Merleau-Ponty:
205; 5. O ser-com-os-outros, 205; 6. O ser-
para-a-morte, existência inautêntica e exis­ entre existencialismo
tência autêntica, 206; 7. A coragem diante e fenomenologia__________ 232
da angústia, 207; 8. O tempo, 207; 9. A 1. A relação entre a “consciência” e o “ cor­
metafísica ocidental como “ esquecimento p o ” , e entre o “ homem” e o “ mundo” , 232;
do ser” , 208; 10. A linguagem da poesia 2. A liberdade “ condicionada” , 233.
c e 0 ei*al ,,^^r

VI. Gabriel Mareei Capítulo décimo quarto


e o neo-socratismo Desenvolvimentos recentes
cristão__________________ 234 da teoria da hermenêutica____ 265
1. A defesa do concreto, 235; 2. A assimetria I. Emílio Betti
entre crer e verificar, 235; 3. Problema e e a hermenêutica
metaproblema, 236; 4. Ser e ter, 236.
como método geral
T e x t o s - K . Jaspers: 1. Os limites da ciência, das ciências do espírito_____ 265
238; H. Arendt: 2. A dignidade humana
I. A vida e as obras, 266; 2. Interpretar é
contra toda forma de totalitarismo e ra­
entender, 266; 3. A distinção entre “ interpre­
cismo, 239; J.-P. Sartre: 3. O homem “é
condenado em todo momento a inventar o tação do sentido” e “ atribuição de sentido” ,
homem” , 242; 4. O homem é responsável 266; 4. Uma hermenêutica garante dos di­
por aquilo que pertence a todos os homens, reitos do objeto, 267; 5. Os quatro cânones
243; M . Merieau-Ponty: 5. Para que servem do procedimento hermenêutico, 267.
os filósofos?, 244; G. Mareei: 6. Problema II. Paul Ricoeur:
e metaproblema, 245.
a falibilidade humana
e o conflito
Capítulo décimo terceiro das interpretações_________ 268
Hans Georg Gadamer 1. A vida e as obras, 269; 2. “ Eu suporto
e a teoria da hermenêutica____ 249 este corpo que governo” , 270; 3. Uma von­
tade humana que erra e que peca, 271; 4. A
I. Estrutura da hermenêutica__ 250 simbólica do mal, 271; 5. A “ escola da sus­
peita” , 271; 6. O conflito das interpretações,
1. Origens e objeto da hermenêutica, 250; 272; 7. A realidade do símbolo entre o vetor
2. O que é o “ círculo hermenêutico” , 250; “ arqueológico” e o “ teleológico” , 272; 8. A
3. O procedimento hermenêutico como ato reconquista da pessoa, 273.
interpretativo e seu esquema de fundo, 251;
4. A interpretação como tarefa possível, III. Luís Pareyson
mas infinita, 252; 5. Estrutura e função e a pessoa
dos pré-conceitos e da pré-compreensão
do intérprete, 253; 6. A “ alteridade” do
como órgão da verdade___ 274
texto, 253. 1. A vida e as obras, 275; 2. Condiciona-
lidade histórica, caráter pessoal e validade
II. Interpretação especulativa da filosofia, 276; 3. A filosofia é
e “história dos efeitos” ____ 254 “ também” expressão do tempo; e é “também”
interpretação pessoal, 277; 4. A unidade da
1. Valência hermenêutica da história dos filosofia é a “ confilosofia” , 277; 5. Plurali­
efeitos de um texto, 254; 2. Eficácia da dis­ dade de vozes que comunicam discutindo,
tância temporal para a compreensão de um 278; 6. O homem é um ser interpretante e,
texto, 255. enquanto tal, órgão da verdade, 278; 7. A
ontologia do inesgotável contra o misticismo
III. “Preconceito” , do inefável, 278; 8. O Deus dos filósofos
“razão” e “tradição” _____ 256 e o Deus da experiência religiosa, 279; 9. A
1. Os “ idola” de Bacon como “ preconcei­ linguagem reveladora do mito, 279.
to s” , 256; 2. A superação de todos os pre­
conceitos propugnada pelos iluministas é IV. Gianni Vattimo:
um “ preconceito” típico, 256; 3. O conceito hermenêutica,
romântico de “ tradição” , 256; 4. Relação pensamento débil,
estrutural entre “ r a z ã o ” e “ tra d iç ã o ” , pós-modernidade________ 280
257.
1. A vida e as obras, 281; 2. O “ pensamento
T e x t o s - H . G. G adam er: 1. O que é débil” , 281; 3. O pressuposto hermenêutico
o “círculo hermenêutico”, 258; 2. “Precon­ do pensamento débil, 281; 4. O que significa
ceito” de modo nenhum significa juízo falso, “ pensar” ; o que significa “ ser” , 282; 5. M o­
260; 3. A idéia de “história dos efeitos” , derno e pós-moderno, 283; 6. Metamorfoses
260; 4. Teoria da tradição, 262. da idéia de racionalidade, 283.
.ITnclice g e m i

T e x t o s - E . Beti: 1 . 0 sentido de um texto deve Tractatus, 310; 4. A interpretação não-neo-


ser tirado do próprio texto, 284; P. Ricoeur: positivista do Tractatus, 311.
2. A escola da suspeita: Marx, Nietzsche e
Freud, 284; L. Pareyson: 3. Como falar de III. As Pesquisas filosóficas _312
Deus, 286; G. Vattimo: 4. O “pensamento dé­ 1. A volta à filosofia, 312; 2. A teoria dos
bil” como pensamento antifundacional, 289. “ jogos de língua” , 312; 3. O princípio de uso
e a filosofia como terapia lingüística, 313.
T e x t o s - L. Wittgenstein: 1. A linguagem
Q uarta parte representa projetivamente o mundo, 315;
2. A parte “mística” do Tractatus, 317; 3. O
BERTRAND RUSSELL, sentido do Tractatus logico-philosophicus
LUDWIG WITTGENSTEIN “é um sentido ético”, 318; 4. A teoria dos
jogos-de-língua, 318.
E A FILOSOFIA
DA LINGUAGEM Capítulo décimo sétimo
A filosofia da linguagem.
Capítulo décimo quinto O movimento analítico
Bertrand Russell e de Cambridge e Oxford______ 321
Alfred North Whitehead_____ 295 I. A filosofia analítica
I. Bertrand Russell: em Cambridge____________ 321
da rejeição do idealismo I. Os filóso fo s de Cam bridge: R ussell,
à crítica da filosofia analítica _ 295 M oore e Wittgenstein, 322; 2. A revista
“ A nalysis” , 323; 3. John W isdom e as
I. A formação cultural e o encontro com G.
afirmações metafísicas como “ paradoxos
E. M oore, 296; 2. O atomismo lógico e o
de exploração” , 323; 4. A análise filosófica
encontro com Peano, 296; 3. A teoria das
como “ terapia lingüística” , 323.
descrições, 298; 4. Russell contra o “ segun­
d o ” Wittgenstein e a filosofia analítica, 299; II. A filosofia analítica
5. Russell: a moral e o cristianismo, 300. em Oxford_______________ 324
II. Alfred North Whitehead: 1. G. Ryle: o trabalho do filósofo como cor­
processo e realidade_______ 301 reção dos “ erros categoriais” , 325; 2. J. L.
Austin: a linguagem comum não é a última
1. A inter-relação entre ciência e filosofia, palavra em filosofia, 325; 3. A filosofia de
301; 2. O universo como “ processo” , 301. Oxford e a análise da linguagem ético-ju-
T e x t o s - B. Russell: 1. O que significa “ser rídica, 327; 4. P. F. Strawson e a metafísica
racionais” , 303; 2. O “segundo” Wittgens­ descritiva, 327; 5. S/H am p sh ire e A. J.
tein “cansou-se de pensar seriamente” , 304; Ayer: um desacordo sobre a volta a Kant,
3. “Ideais” para a política, 305. 327; 6. F. Waismann: a filosofia não pode
ter apenas uma tarefa terapêutica, 328.

Capítulo décimo sexto III. A filosofia analítica


Ludwig Wittgenstein: e a “redescoberta”
do Tractatus logico-philosophicus do significado da linguagem
às pesquisas filosóficas_______ 307 metafísica_______________ 329
1. Grandes problemas que os filósofos ana­
I. A v id a___________________ 308 líticos procuraram resolver, 329; 2. Nova
I. Professor de escola elementar e grande atitude em relação à metafísica, 329; 3. Os
filósofo, 308. resultados mais significativos na reflexão
sobre a metafísica, 330.
II. O Tractatus T e x t o s - P. F. Strawson: 1. O que começa
logico-philosophicus________ 309 como metafísica pode terminar como ciência,
1. As teses fundamentais, 309; 2. Realidade 331; H. P. Grice, Pears, Strawson: 2. O me­
e linguagem, 309; 3. A parte “ mística” do tafísico “re-projeta todo o mapa do pen-
-7 A-
*_mdice gera lI .XI11

sarnento” , 331: F. Waismann: 3. “É um T e x t o s - H. Bergson: 1. Em que consiste a


nonsense dizer que a metafísica carece de duração real, 358; 2. O grande problema da
sentido” , 332. união entre alma e corpo, 359; 3. Impulso
vital e adaptação ao ambiente, 360.

Q uinta parte
Capítulo vigésimo
ESPIRITUALISMO, A renovação
do pensamento teológico
NOVAS TEOLOGIAS no século X X _______________ 363
E NEO-ESCOLÁSTICA
I. A renovação
da teologia protestante_____ 363
Capítulo décimo oitavo I. Karl Barth: a “teologia dialética” contra
O espiritualismo a “ teologia liberal” , 364; 2. Paul Tillich e o
como fenômeno europeu_____ 335 “ princípio da correlação” , 365; 3. Rudolf
Bultmann: o método “ histórico-morfológico”
I. O espiritualismo: e a “ demitização” , 366; 4. Dietrich Bonhoeffer
gênese, características e o mundo saído da “tutela de Deus” , 366.
e expoentes_______________ 335 II. A renovação
I. A reação ao “ reducionismo” positivista, da teologia católica_______ 368
335; 2. As idéias básicas do espiritualismo, 336.
1. Karl Rahner e as “ condições a priori” da
II. As diversas manifestações possibilidade da Revelação, 368; 2. Hans
do espiritualismo Urs von Balthasar e a estética teológica, 369.
na Europa_______________ 337 III. A “teologia da morte de Deus”
1. O espiritualismona Inglaterra, 338; 2. O e sua “ superação” ________ 370
espiritualismo na Alemanha, 338; 3. O espiri­ 1. Pode-se continuar a crer em Cristo, mas
tualismo na Itália, 339; 4 .0 espiritualismo na não em Deus, 370; 2. A superação da tipo­
França e o contingentismo de Boutroux, 339.
logia da morte de Deus, 371.
III. Maurice Blondel IV. A teologia da esperança___ 373
e a “ filosofia da ação” _____ 341
1. Moltmann e a contradição entre “ esperan­
1. Os precedentes da filosofia da ação, 342; ça” e “ experiência” , 374; 2. Pannenberg: “ a
2. A dialética da vontade, 343; 3. O método prioridade pertence à fé, mas o primado à
da imanência, 343; 4. A filosofia da ação e esperança” , 374; 3. Metz: a teologia da espe­
suas relações com o modernismo, 344. rança como teologia política, 375; 4. Schille-
T e x t o s -M . Blondel: 1. 0 homem: um ser finito beeckx: “ Deus é aquele que virá” , 375.
que tende “naturalmente” ao “absoluto”, 345. T e x t o s - K. Barth: 1. “N ós pedimos fé,
nada mais e nada menos” , 377; Bonhoeffer:
2. “Quem está ligado a Cristo encontra-se
Capítulo décimo nono seriamente sob a cruz” , 378; K. Rahner:
Henri Bergson 3. Tarefa e compromissos da teologia do
e a evolução criadora________ 347 futuro, 379; 4. A missão da Igreja: indicar
a salvação ao mundo inteiro, 381; J. M olt­
1. A originalidade do espiritualism o de mann: 5. A fé é escopo e não meio, 383.
Bergson, 348; 2. O tempo espacializado e
o tempo como duração, 350; 3. Por que a
duração funda a liberdade, 350; 4. Matéria Capítulo vigésimo primeiro
e memória, 351; 5. Impulso vital e evolu­ A neo-escolástica,
ção criadora, 352; 6. Instinto, inteligência, a Universidade de Louvain,
intuição, 354; 7. A intuição como órgão
da metafísica, 354; 8. Sociedade fechada e
a Universidade Católica de Milão
sociedade aberta, 355; 9. Religião estática e o pensamento
e religião dinâmica, 356. de Jacques M aritain_________ 385
Ó v \d ic e g e ^ a l

I. Origens e significado e o marxismo, 405; 4. Em direção à nova


da filosofia neo-escolástica__ 385 sociedade, 405; 5. O cristianismo deve rom­
per com todas as desordens estabelecidas,
I. As razões do renascimento do pensamen­ 406.
to escolástico, 386; 2. As encíclicas“ Aeterni
Patris” e “ Pascendi” , 387; 3. O Concilio III. Simone Weil:
Vaticano II e o pós-concílio, 387; 4. O car­ entre ação revolucionária
deal Mercier e a neo-escolástica em Louvain,
387; 5. A neo-escolástica na Universidade e experiência mística______ 407
Católica de M ilão, 389. 1. A vida e as obras, 407; 2. Gabriel Mareei
e Charles De Gaulle julgam Simone Weil,
II. O pensamento 408; 3. Escravidão em nome da força e es­
de Jacques Maritain cravidão em nome da riqueza, 408; 4. O que
e a neo-escolástica significa ser revolucionários, 409; 5. Fomos
na França________________ 390 colocados aos pés da cruz, 409; 6. Cristo é o
contrário da força: é um Deus que morre na
1. Jacques Maritain: os “ graus do saber” e cruz, 410; 7. A presença de Cristo, ^10.
o “ humanismo integral” , 391; 1.1. A grande
escolha: viver segundo a verdade, 391; 1.2. O T e x t o s - E. Mounier: 1. Para uma teoria
eixo central do pensamento de Maritain: da “pessoa humana” , 412; S. Weil: 2. Deus
“ distinguir para unir” , 391; 1.3. A concep­ vem a nós despojado de seu poder e de seu
ção da educação e seus fundamentos, 392; esplendor, 413.
1.4. A concepção da arte, 392; 1.5. H u­
manismo integral e concepção da política,
393; 2. Etienne Gilson: por que não se pode Sétima parte
eliminar o tomismo, 393.
T e x t o s - J . Maritain: 1. Assim como a me­
LIBERDADE
dicina, a educação é uma ars cooperativa DO INDIVÍDUO
naturae, 395.
E TRANSCENDÊNCIA
DIVINA
Sexta parte NA REFLEXÃO
O PERSONALISMO FILOSÓFICA
HEBRAICA
Capítulo vigésimo segundo CONTEMPORÂNEA
O personalismo:
Emmanuel Mounier
e Simone Weil ______________ 399 Capítulo vigésimo terceiro
Martin Buber
I. O personalismo: e o princípio dialógico_______ 417
uma filosofia, 1. A vida e as obras, 417; 2. O Eu fala das
mas não um sistem a_______ 399 coisas mas dialoga com o Tu, 419; 3. A dife­
I. Características da “ pessoa” , 399; 2. O rença entre a relação “ Eu-Esse” e a relação
contexto histórico em que surgiu o perso­ “ Eu-Tu” , 420; 4. É o Tu que me torna Eu,
nalismo, 400; 3. As regras e as estratégias 420; 5. Pode-se falar com Deus, não se pode
do personalismo, 400; 4. Os representantes falar de Deus, 420.
do pensamento personalista, 401. T e x t o s - M. Buber: 1. A Jesus cabe um gran­
II. Emmanuel Mounier de lugar na história da fé de Israel, 421.
e “ a revolução personalista
e comunitária” ____________ 402 Capítulo vigésimo quarto
1. Vida e obra, 402; 2. As dimensões da Emmanuel Lévinas
“ pessoa” , 403; 3. O personalismo contra o e a fenomenologia
moralismo, o individualismo, o capitalismo da face do Outro____________ 423
1. A vida e as obras, 423; 2. Onde nasce o 1. Gyòrgy Lukács, 442; 1.1. Totalidade e
existente, 423; 3. A face do Outro nos vem dialética, 442; 1.2. Classe e consciência de
ao encontro e nos diz: “ Tu não m atarás” , classe, 443; 1.3. A estética marxista e o “rea­
424; 4. O Outro me olha e se refere a mim, lismo” , 444; 2. Karl Korsch entre “ dialética”
425; 5. Quando o Eu é refém do Outro, e “ciência”, 445; 3. Emst Bloch, 446,3.1. A vida
425. de um “ utopista” , 446; 3.2. “ O que importa
é aprender a esperar” , 446; 3.3. “ O mar­
T e x t o s - F. Lévinas: 1. O Outro não pode xismo deve ser fielmente ampliado” , 448;
nos deixar indiferentes, 426. 3.4. “ Onde há esperança, há religião” , 448.
VI. O neomarxismo na França _ 449
O itava parte 1. Roger Garaudy, 449; 1.1. Os erros do
sistema soviético, 449; 1.2. A alternativa,
O MARXISMO 450; 1.3. M arxism o e cristianismo, 450;
DEPOIS DE MARX 2. Louis Althusser, 451; 2.1. A “ ruptura
epistem ológica” do M arx de 1845, 45.1;
E A ESCOLA 2.2. Por que o marxismo é “ anti-humanis-
DE FRANKFURT m o” e “ anti-historicismo” , 451.
VII. O neomarxismo na Itália__453
1. Antônio Labriola, 454; 1.1. “ O marxismo
Capítulo vigésimo quinto não é positivismo nem naturalismo” , 454;
O marxismo depois de Marx _429 1.2. A concepção materialista da história,
454; 2. Antônio Gramsci, 455; 2.1. A vida e a
I. O “revisionismo” obra, 455; 2.2. A “filosofia da práxis” contra a
do “reformista” “ filosofia especulativa” de Croce, 456; 2 .3 .0
Eduard Bernstein _________ 429 “ método dialético” , 456; 2.4. A teoria da he­
I. A Primeira, a Segunda e a Terceira In­ gemonia, 456; 2.5. Sociedade política e socie­
ternacional, 4 3 0 ; 2. Eduard Bernstein e dade civil, 457; 2 .6 .0 intelectual “orgânico”,
as razões da falência do marxismo, 431; e o partido como “ príncipe moderno” , 457.
3. Contra a “ revolução” e a “ ditadura do T e x t o s - E. Bernstein: 1. “A democracia é a
proletariado” , 431; 4. A democracia como arte elevada do compromisso", 459; Adler:
“ alta escola do comprom isso” , 432. 2. Onde Marx se assemelha a Kant, 461; Lê­
nin: 3. O ideal ético dos comunistas, 463; G.
II. O debate Lukács: 4. A sociedade não pode ser compreen­
sobre o “reformismo” _____ 433 dida com o método das ciências naturais,
1. Karl Kautsky e a “ ortodoxia” , 433; 2. R o­ 464; 5. O papel do “tipo” na estética realista,
sa de Luxemburgo: “ a vitória do socialismo 464; R. Garaudy: 6. Refutação do stalinismo,
não cai do céu” , 434. 465; A. Gramsci: 7. As razões da crítica a
Croce, 466; 8. A função dos intelectuais, 467.
III. O austromarxismo_______ 435
1. Gênese e características do austromarxis­ Capítulo vigésimo sexto
mo, 435; 2. M ax Adler e o marxismo como A Escola de Frankfurt _______ 469
“ programa científico” , 436; 3. O neokantis-
mo dos austromarxistas e a fundamentação I. Gênese, desenvolvimentos
dos valores do socialismo, 437. e programa
IV. O marxismo da Escola de Frankfurt_____ 469
na União Soviética________ 438 I. Totalidade e dialética como categorias
1. Plekanov e a difusão da “ ortodoxia” , fundamentais da pesquisa social, 469; 2. Da
438; 2. Lênin, 439; 2.1. O partido como Alemanha para os Estados Unidos, 471.
vanguarda arm ada do proletariado, 439; II. Theodor Wiesengrund
2.2. Estado, revolução, ditadura do prole­
tariado e moral comunista, 440. Adorno__________________ 472
1. A “ dialética negativa” , 472; 2. Adorno e sua
V. O “marxismo ocidental” colaboração com Horkheimer: a dialética do
de Lukács, Korsch e Bloch___441 Iluminismo, 473; 3. A indústria cultural, 474.
tíJ^dice. 0e»*al

III. M ax Horkheimer: V. Erich Fromm


o eclipse da raz ão ________ 476 e a “cidade do ser” _______ 482
1. O “lucro” e o “planejamento” como ge­ 1. A desobediência é de fato um vício?, 482;
radores de repressão, 476; 2. A razão ins­ 2. Ter ou ser?, 483.
trumental, 476; 3. A filosofia como denúncia
T e x t o s - T. W. Adorno: 1. A filosofia não
da razão instrumental, 477; 4. A nostalgia
pode se reduzir a ciência, 484; M. H ork­
do “ totalmente O utro” , 477.
heimer; 2. A n o sta lg ia do “ totalm ente
IV. Herbert Marcuse O utro” , 485; M . Horkheimer - Adorno:
3. É necessário frear a corrida para o mun­
e a “grande recusa” _______ 479 do da organização, 486; H. Marcuse: 4. Para
1. E impossível uma “ civilização não-repres- “outra” e “mais hum ana” sociedade, 487;
siva” ?, 479; 2. “ Eros” libertado, 480; 3. O 5. A categoria das “falsas necessidades” ,
homem de uma dimensão, 481. 488.
JVidfce de cornes*

B a u e r O ., 4 3 5 , 4 3 6 Breda, H. van, 180


B e a u v o ir , S. d e , 2 1 7 B ren ta n o F., 175, 176, 177, 178,
Abbagnano N., 2 3,205,215,217 B e c k e r O ., 1 7 7 179, 180,195, 196
A b e la r d o P., 394, B e l o c h K. J., 3 3 , 3 4 Breznev L., 449, 465
A d a m s o n R., 23 B e n ja m i n W ., 4 7 1 B r i d g m a n R W., 83
A d l e r F., 436 B e r d j a e v N . ,2 1 7 , 3 9 9 ,4 0 1 , 4 0 2 ,4 0 3 B r i g h t m a n E. S., 399, 401
A d l e r M . , 4 3 5 , 4 3 6 - 4 3 7 , 461 -463 B e r g s o n H .,9 5 , 9 7 , 3 3 3 , 3 3 4 , B r o a d C. D., 323
A d o r n o T. W., 4 6 9 , 470, 4 1 7 , 4 7 2 , 338, 3 4 0 , 3 4 4 , 3 4 7 - 3 5 7 , 358­B r o u w e r L. E., 312
4 7 3 - 4 7 5 , 484-486 3 6 2 , 391 Bruegel R, 323
A g a z z i E ., 3 8 9 B e r k e l e y G., 8 0 , 9 3 B r u n o G., 148, 152
A g o s t i n h o d e H ip o n a ,336, 348, B e r l i n I ., 3 2 7 B r u n s c h v i c g L., 21, 23
382, 385, 386 B e r n s t e i n E., 4 2 9 - 4 3 2 , 4 3 3 , 4 3 4 , B u b e r M . , 401,415,416,417-420,
A l a i n E. A . , 245 4 3 9 , 459-460 421,446
Atbérès R. M., 160 B e t t i E., 1 7 3 , 2 6 5 - 2 6 8 , 284 B u b e r S., 417
Afonso XIII, 158 B i o t R., 4 0 1 Bülow, C. von, 5
Alighieri D., 120, 138, 142, 394 B i r a n , M. d e , 339, 349, 401 B u l t m a n n R., 223,265,266,267,
A l t h u s s e r L., 449, 451-452 Bismarck, O. von, 60, 460 271, 363, 366
A l t i z e r T . J. J., 370 Black D. W., 300 Burckhardt/., 3, 5, 33, 34
A n a x i m a n d r o , 91, 202, 208, B l a n c h o t M., 423 B u r e n , R M. v a n , 370, 371, 372
210 B l o c h E., 374,375,427,441,442, Buzzoni M., 272
A r e n d t H . , 223-226, 239-242 44 6 -4 4 8
Ariosto L., 142 B lo n d e l M., 337, 338, 339, 341­
A r i s t ó t e l e s , 7,27,83,91,93,147, 344, 345-346
148, 149, 178, 189, 202, 208, B l o y L., 391

281, 289, 290, 325, 331, 394 Blumenfeld K., 240 C a ir d E., 135
A r n i m , H. v o n , 34 B o a v e n t u r a , são, 394 C a ld e r o n i M., 80, 88, 89
A r o n R., 223, 402 Bocchini A., 121 C a m p a n e l l a T., 148
A u s t i n J. L., 324, 325-327 B õ h m - B a w e r k , E. v o n , 435 C a m u s A., 166, 215, 217, 408
A y e r A . J., 327-328 B o l t z m a n n L., 311 C a n t o n i C ., 21, 23
B o l z a n o B ., 1 7 5 , 1 7 7 C a r a b e l l e s e R, 339, 340
B o n a i u t i E., 341, 344 Carducci G., 113
B o n h o e f f e r D., 333, 364, 3 6 6 ­ Carlini A., 399, 401
B 3 6 7 , 378-379 C a r l y l e T . , 134, 135
B o n t a d i n i G., 386, 389 C a s s i r e r E., 1,21,23,26-29,30-31
B a c h e la r d G., 451 B o p p F., 34 Castro F., 227
B acon F., 80, 256, 487 B ó r g ia C., 11 Catarina d e Sena, santa, 348, 357
B a l f o u r A. J., 338 B o r k e n a u F.,471 C h e s t o v L., 217
B a l t h a s a r , H. U. v o n , 368, 369 Botticelli S., 323 C h ild E. B., 101
Balzac, H. de, 444 B o u t r o u x E., 3 3 7 , 3 3 8 , 3 3 9 , Cbiodi P., 216
B a n f i A., 23 340, 349 C l a u d e l R, 369, 485
B a r t h K., 216,363,364-365,369, B o w n e B. R, 401 C o a t e s J. B., 399, 401
371, 377, 386 B r a d l e y F. H . , 1 3 4 , 1 3 5 - 1 3 6 , 2 9 5 , C o h e n H., 21, 23, 24, 26, 165,
B a r z e l l o t t i T., 21, 23 296, 338 166, 435, 436

* Neste índice:
-reportam -se em versalete os nomes dos filósofos e dos homens de cultura ligados ao desenvolvimento
do pensamento ocidental, para os quais indicam-se em negrito as páginas em que o autor é tratado de
acordo com o tema, e em itálico as páginas dos textos;
-reportam -se em itálico os nomes dos críticos;
-reportam -se em redondo todos os nomes não pertencentes aos agrupamentos precedentes.
XVIII -y i. ,
*_mdice d e cornes

Coleridge S. T., 134 Ficker, L. von, 311, 318 114, 115, 116, 122, 123, 126,
Colombo C., 323 F i n c k E., 177 128, 134, 138, 139, 144, 147,
C o m t e A., 4, 8, 91, 167, 189, F i o r e n t i n o F., 21, 23 148, 150, 151, 167, 202, 208,
198, 340 F l e w A., 324 217, 231, 244, 250, 262, 274,
C o n r a d - M a r t i u s E., 177, 192 F o g a z z a r o A., 341, 344 275, 276, 295, 296, 330, 343,
Corneille P., 142 Francisco de Assis, são, 68, 348, 364, 430, 436, 438, 441, 442,
C o u s i n V., 144, 336 357 443, 446, 449, 451, 454, 462,
Cox H., 370, 371 F r e d e r ic o o G r a n d e , 60 470, 472
C r e i g h t o n J., 136 F r e g e G ., 297, 298, 308 H e i d e g g e r M., 174, 176, 177,
C r o c e B., 109, 110, 111-124, F r e u d S., 269,271,272,273,274, 179, 201-210, 211-214, 215,
126, 127, 128, 131, 137-146, 276, 284, 285, 286, 291, 323, 217,218, 2 2 1 ,2 2 3 ,2 2 8 ,2 3 5 ,
147, 148, 453, 455, 456, 458, 479, 480 236, 243, 250, 258, 259, 260,
466, 467 F r i e s J. F., 22 265, 266, 267, 271, 278, 280,
F r o m m E., 469, 471, 482-483 281,285, 290, 291, 368, 423,
424
V H e l m h o l t z , H ., 21, 22, 29
H e m p e l C. G., 299
H e r á c l i t o , 95, 97, 132, 202,
D a r w in C. R., 254
D e G a u lle C., 408 G a d a m e r h . G . , 173, 174, 249­ 208,210
257, 258-263, 265, 266, 267, H e r b a r t J. F., 22, 113, 454
D e S a n c t i s F . , 109,110, 113
D é l è a g e A., 401 280, 281 Hertwig M., 446
G a l i l e i G . , 29, 180, 184, 244, H e r t z H . R., 311
D e s c a r t e s R., 48, 180, 184, 197,
244, 245, 272, 283, 284, 285, 245 Herzl T., 417, 418
G a l l u p p i R, 110, 148 H e s s M., 418
290, 304, 330, 332, 336, 349,
G a r a u d y R., 449-450, 465-466 H i c k J., 324
352, 388, 401
G a r d i n e r R, 324 H i c k s G. D ., 21, 23
D e w e y J., 80, 88,95-102,104-108
Gaus, 239, 240, 241 H i l f e r d i n g R., 435, 436
D i c k i n s o n , 296
D i e l s H., 34 G e i g e r M., 177 Hitler A., 223, 225, 469, 471
D i l t h e y W., 1, 22, 25, 33, 34, 36­ G e m e l l i A., 386, 389 Hobbes, 94
G e n t i l e G . , 109, 110, 111, 114, H o c k i n g W. E., 399, 401
39, 40,41, 45, 46-48, 59,250,
126-132,147-154, 458 H o d g s o n S. H ., 21, 23, 93
267, 274, 276, 290, 417, 470
G i l s o n E., 390, 393-394 H ò l d e r l i n F., 210, 213, 214
D o s t o i e w s k i F. M., 6, 216, 242,
323, 423, 442 G i o b e r t i V . , 110, 148 Homero, 254
G o e t h e J. W., 50, 124,134, 168 H o r k h e i m e r M., 427, 469, 470,
D o y l e , 75
D r a y W., 324 Gogol N., 423 471, 472, 473, 474, 475, 476­
D r o y s e n G., 33, 34 G o l d m a n n L., 450 478, 485-487
G r a m s c i A., 453, 454, 455-458, H o w i s o n G. H ., 136, 399, 401
D u n c a n - J o n e s A., 323
466-468 H u m b o l d t , W. v o n , 119
D ü r e r A., 47
G r e e n T. H., 135, 338 H u m e D ., 80, 93, 368
D u v e a u G., 401
G r i c e H. R, 331 H u s s e r l E., 173, 174, 175, 176,
Grimm H., 261 177, 178, 179-184, 185, 186,
G r i m m J., 34 190, 192, 193, 195-200, 201,
G r o s s m a n n H., 471 202, 205, 223, 226, 227, 262,
G u a r d i n i R., 446 268, 270, 271, 325, 389, 423,
E c k h a r t ( M e s t r e ) J., 482, 483
Guarini B., 142 424, 449, 451, 470
E c k s t e i n G., 436
Guerrera Brezzi F., 270, 271 H y p p o l i t e J., 217, 270
E i n s t e i n A., 29,198, 274, 300
Guevara C., 227
E liezer, I. b e n , 418
Gumnior, 485, 486
E lio t T. S., 372
Gundolf F., 261
E m e r s o n R. W., 134, 135, 136
G uzzo A., 274, 275
E n g e l m a n n R, 307, 311,318 Infantino, L., 166
E n g e l s F., 231, 429, 431, 435, I z a r d G., 399, 401
436, 437, 439, 443, 446, 454,
f-l
461,462
E p i c t e t o , 28, 30
E u c k e n R., 337, 338
H a b e r m a s J., 471 3
H a m e l i n O ., 21, 23
E u c l i d e s , 296, 395
H a m i l t o n W., 370 J a c in i S., 142
E u r íp id e s , 3, 7
H a m p s h i r e S., 324, 327-328 A., 193
J a e g e r s c h m id
H a r e R. M., 293, 324, 327, 330 J a i a D ., 109, 110, 126, 127
Harich W., 446 J a m e s H., 349
P . H a r n a c k , A. v o n , 363, 364 J a m e s W., 79, 80, 84-87, 88, 89,
H a r r i s W. T., 136 90, 93, 99,104,134, 349, 352
F e u e r b a c h L., 4, 8,216,274,275, H a r t H . L. A., 327 J a n i k A., 311
370, 448 H a r t m a n n N., 177, 190, 191 J a r c z y k G., 381
F i c h t e H., 337, 338 H a r t m a n n , E. v o n , 377, 338 J a s p e r s K., 173, 215, 217, 218­
F i c h t e J. G., 22, 68, 146, 150, H e g e l G. W. F., 22, 34, 35, 36, 38, 222, 223, 238-239, 242, 243,
337, 338 4 8,95,97,10 9 ,1 1 0 ,1 1 1 ,1 1 3 , 269, 275, 446
D n c lia e - de n o m e s

Jesi P., 418 Lope de Vega F., 142 M o u n ie r E., 2 6 8 , 2 6 9 , 2 7 0 , 3 8 5 ,


Joana d’Arc, santa, 348, 357 L o t z e R. H., 337, 338, 339 386, 397, 398, 399, 400, 401,
João da C r u z , são, 194 L õ w e n t h a l L ., 469, 471 4 0 2 - 4 0 6 , 412-413
João Paulo II, papa, 190,192,193, L o y o l a , I. d e , 157, 160 M u r r i R., 3 4 1 , 3 4 4
385,387 L u b a c , H. d e , 369
J o h n s o n M . E., 323 L u k á c s G., 7 6 ,4 4 1 , 4 4 2 - 4 4 4 , 445,
J o l i o t - C u r i e I., 298 446, 464-465, 470
L u t e r o M., 12, 46, 47
L u x e m b u r g o , R. d e , 429, 430, N a b e rt, 401
K 433, 4 3 4 - 4 3 5 N a to rp P., 21,23,24,26,165,166
N é d o n c e l l e M.,399, 401, 405
Kafka F., 216 N e g t O., 471
K a n t I., 21, 22,23, 3 5 ,4 0 ,4 2 , 76, M N e u m a n n F., 471
88, 89, 109, 129, 147, 148, Neumann O., 60
185, 186, 187, 256, 281,289, M a c e C. A., 323 N e u r a t h O., 295, 299
290, 296, 327, 328, 332, 338, M a c h E., 90, 121, 435, 436 N e w m a n J. FL, 342
339, 368, 369, 386, 388, 395, M a d i n i e r G., 401 N e w t o n I., 29,198, 330, 332
401, 436, 461, 462, 474, 486 M a l c o l m N., 309, 323 N i e b u h r B. G., 33, 34
K a u t s k y K ., 429, 430, 431, 4 3 3 ­ M a l e b r a n c h e N., 332 N i e t z s c h e F., 1, 3-15, 17-20, 34,
4 3 4 , 445 Malka S., 424, 425 ' 166, 202, 208, 216, 220, 262,
Kegan P., 309 M a n e t E., 3 2 3 269, 272, 274, 276, 280, 281,
K e l s e n H., 435, 436 M a q u i a v e l N., 122,383,384,455 2 8 3 ,2 8 4 ,2 8 5 ,2 8 6 , 290, 291,
Kennedy J., 300 M a r c e l G., 173, 177, 215, 217, 375,417
K e y n e s J. M., 312 234-237, 243, 245-247, 268, N o w e l l - S m i t h P., 327
K i e r k e g a a r d S., 157, 161, 215, 270, 402, 403, 408, 446 N y s D., 386, 388
216, 220, 231, 273, 274, 275, M a r c u s e H.,427, 469, 470, 471,
3 1 1 ,364,377, 401,417, 442 479-481, 487-488
K o j è v e A., 217, 223 M a r é c h a l ]., 386, 388 O
K o r s c h K ., 441, 442, 4 4 5 - 4 4 6 Marias J., 166
K o y r é A., 223 M a r i t a i n J., 3 3 4 , 3 8 5 , 390-393, O c k h a m , G . d ’, 83
K r i e s , J. v o n , 69, 70 395-396, 3 9 9 , 4 0 1 , 4 0 2 O lg ia t i F., 386, 389
Kruschev N., 227, 300 M a r i t a i n R ., 3 9 1 O l l é - L a p r u n e L ., 3 4 2 , 3 4 9
K ü l p e O., 446 M a r t i n e t t i P., 3 3 7 , 3 3 9 , 3 4 0 O rte g a y G asset ]., 155, 156,
K u n B., 442 M a r x K., 4 5 , 1 1 0 , 1 1 1 , 1 6 7 , 1 6 9 , 1 5 9 , 1 6 5 - 1 7 0 , 171-172
231, 269, 272, 274, 276, 284, O t t o R., 1 7 9 , 1 8 2 , 1 9 0 , 191-192
285, 286, 291, 330, 409, 428,
L 429, 430, 431, 433, 435, 436,
437, 438, 439, 440, 441, 442, P
341,343,344
L a b e r t h o n n i è r e L ., 443, 445, 448, 449, 451, 455,
L a b r io la A., 111, 113, 453, 4 6 1 ,4 6 2 , 4 7 8 , 4 8 1 ,4 8 2 , 4 8 3 P a c i E., 180, 184
4 5 4 -4 5 5 M a s n o v o A., 3 8 6 , 3 8 9 P a d o v a n i U. A., 389
L a ch iè z e -R e y P., 401 M a t h i e u V., 3 3 7 , 3 5 1 P a n n e n b e r g W., 373, 374-375
L a c r o ix J., 399, 401 M a t t e o t t i G., 1 1 4 , 1 2 7 P a p in i G., 80, 88, 89
L a n d g r e b e L ., 177 M a t u r i S., 1 0 9 , 1 1 0 P a r e y s o n L., 2 7 4 - 2 8 0 , 281,286-289
L a n d s b e r g P., 401 M auth ner, 316 P a r m ê n i d e s , 202, 208, 210, 389
L a n g e F. A., 23, 89 M a x w e l l J. C., 2 9 P ascalB , 157,161,185,187,305,
Laterza G., 142 M e a d G. H., 8 0 , 88-89 336, 349,395, 401,417
L a v e l l e L ., 336, 338 P a s t e u r L., 323
M e i n e c k e F ., 3 3 ,3 4 , 3 5 ,4 1 , 4 4 ,4 5 , 5 3
L a z e r o w i t z M . , 323 M e i n o n g A., 2 9 8 , 3 2 5 P a u l G. A., 323
Leão XIII, papa, 385, 387, 388 M e n g e r C., 4 3 5 , 4 3 6 P a u l J., 116
L e R o y E., 344 M e r c i e r D., 3 8 6 , 387-388 Paulo de Tarso, 11, 348, 357
L e S e n n e E. R ., 401, 407 M e r l e a u -P o n t y M . , 1 7 3 , 1 7 7 ,2 1 5 , Paulo VI, papa, 396
L e f e b v r e H., 450 217, 2 2 7 , 232-234, 244-245 P e a n o G., 90, 296, 297
L e f r a n c q M., 401 M e t z B., 3 7 3 , 375 Pears D. F., 327, 331
L e i b n i z G. W., 304, 332, 338, 401 M e y e r E., 6 0 , 6 9 , 7 0 P e i f f e r S r t a . , 423
L ê n i n N ., 300, 433, 434, 435, M i c h e l e t J., 1 4 4 P e i r c e C. S ., 1, 79, 8 0 - 8 3 , 85, 88,
438, 4 3 9 - 4 4 0 , 445, 453, 455, M i l l J . S., 7 1 , 1 0 5 89, 90, 91-92
456, 463 M i s e s , L. v o n , 4 3 5 Pellicatii L., 167, 170
L e q u i e r J., 337, 339 M i t c h e l l B., 3 2 4 Perrin J. M., 407, 408,410
L e s s i n g , G. E., 17, 141 M o l t m a n n J., 3 3 3 , 3 7 3 , 374, Pestalozzi, 395
L é v i n a s E., 415,416, 4 2 3 - 4 2 5 , 426 383-384 Pétain H.-P.-O., 403
L i e b k n e c h t K., 429,430,433,434 M o m m s e n T., 3 3 , 3 4 P f a n d e r A . , 177
L i e b m a n n O., 21, 22 M o n t a ig n e , M . d e , 2 4 5 P h i l i p A., 401
L o b a t c h e v s k i N. I., 274 M o n t e f i o r e A., 3 2 7 Pio X, papa, 341, 344, 385, 387
L o c k e J., 49, 80, 93, 304 M o o r e G. E., 2 9 5 , 2 9 6 , 3 0 8 , 3 0 9 , Pio XII, papa, 387
L o i s y A., 341, 344 3 2 1 , 322, 3 2 3 , 3 3 2 P i r r o , 183
London, 465 M o u c h o t L. H., 3 3 6 P l a n c k M., 29,198
J n d ic e d e nom es

P la tã o , 4, 7, 53, 91, 148, 189, S c h ille b e e c k x E., 2 7 0 , 373,


202, 208, 210, 302, 324, 325, 375-376
u
332, 339, 395 S c h i l l e r F. C. S ., 80, 88, 89
P l e k a n o v G. V., 438-439 S c h l e g e l F., 250 U e x k ü ll,J. v o n , 3Q
P l o t i n o , 335, 336 S c h l e i e r m a c h e r F., 192, 250, U nam uno, M. d e , 80, 155, 156,
P o i n c a r é H., 339 267, 364, 384 157-161, 162-163, 166
P o l l o c k F., 469, 471 S c h l i c k M., 311, 312, 328 U s e n e r H., 34
Pôncio Pilatos, 11 S c h m i d t A., 471
P o p p e r K. R., 45, 83, 330, 331 S c h o p e n h a u e r A., 3, 4, 5, 6, 7, 8,
P r e z z o l i n i G., 80, 88, 89 9, 2 2 ,2 1 6 ,3 3 9 V
Primo de Rivera M., 158, 159 Secretan P., 271
P r i n g l e - P a t t i s o n A. S., 338 S e v e r i n o E., 389 V a h a n ia n G., 370
P r o t á g o r a s , 15, 88 Shakespeare W., 120, 138 V a ih in g e r H., 80, 88, 89
Proust M., 323 S i d g w i c k H., 295, 296 V a i l a t i G., 1, 80, 88, 89, 90,
P r z y w a r a E., 369 S i l v e S r t a . , 403 93-94
Puskin S., 423 S i m m e l G., 33, 34, 40,41, 42, 51­ V a n n i R o v i g h i S., 386, 389
52, 417, 446, 470 V a r i s c o B., 339, 340
Siniavski A. D., 449 V a t t i m o G., 204, 206, 275, 280­
"R Sobell M., 300 283, 289-291
S ó c r a t e s , 3, 4, 6, 7, 8 ,1 7 ,1 8 , 93, V e r a A., 109
R aeym aeker, L. d e , 386, 388 297, 355, 401 V e r i t é P., 401
R ahner K., 368-369, 375, 379­ SOMBART W., 57 Vermeer J., 423
383, 386 Sossi F., 276 Vico G. B., 110, 113, 116, 127,
R a j k , 465
S p a v e n t a B., 109-110, 111, 113, 148
Rakosi M., 449, 465 126,127, 453, 454
R a m s e y F. P., 312, 323
S p e n c e r H., 97, 347, 350
R a n k e L., 33, 34
S p e n g l e r O., 33, 34, 40, 41, 42­ w
R a v a i s s o n F., 337, 338, 339, 349
43, 45
Ravasi G., 209 S p i n o z a B., 48, 109, 332, 339 W a g n e r R., 3, 4 , 5, 8, 9, 141
R e i n a c h A., 177
S p i r A . , 337,338, 339 Wa h l J .,2 1 7
R e n n e r K., 435, 436
S t a lin J ., 223, 225,449, 465 W a is m a n n F., 293, 312, 324, 328,
R e n o u v i e r C., 21, 23, 400
S t e b b i n g L. S ., 323 329, 332
Ricci Sindoni P., 418, 420 S t e f a n i n i L., 399, 401 W a r d J., 337, 338
R i c k e r t H., 2 1 ,2 2 ,2 3 ,2 4 ,2 5 ,3 3 ,
S t e i n E., 177, 179,190,192-194 W a r n o c k G. J., 324, 327
34, 35, 4 0 ,4 1 ,4 2 , 45, 50-51, S tein R., 193 W e b b C. C .J., 337, 338
59, 202, 435, 436 S t i r l i n g J. H., 134, 135 Weber Marianne, 64
R i c o e u r P., 268-273, 284-286,
S t r a u s s D. F., 4, 8, 364 W e b e r M a x , 1,25, 33, 34,40,41,
399, 401 S t r a w s o n P. F., 324, 327, 329, 45, 55-65, 66-78, 218, 290,
R i e h l A., 23
330, 331 442, 446, 470
Rilke R. M., 332
W e i l S., 397, 398, 399, 407-411,
R i t s c h l A., 363, 364
413-414
R o b i n s o n J. A. X , 370
T W h i t e h e a d A. N., 87, 294, 295,
R o h d e E., 8, 34
301-302
Rosenberg J., 300
J. M c , 135, 295, 296 W i l a m o w i t z - M õ l l e n d o r f f , U.
R o s e n z w e i g F., 418 T a g g a rt,
91 v o n , 8, 34
R o s m i n i A., 110, 148 T a le s ,
Tasso T., 142 W i l s o n C., 325
R o u s s e a u J.-J., 30,169, 384, 395
T e l é s i o B., 148 W i n d e l b a n d W ., 21, 22, 23, 24,
R o v a t t i P. A., 281
Teresa d’Ávila, santa, 348, 357 33, 34, 35, 40, 41, 42, 45, 48­
R o y c e J., 134,136
Thibon G., 408 50, 435, 436
R u s s e l l B., 293, 294, 295-300,
W i s d o m J., 321, 322, 323
301, 303-304, 307, 308, 309, T i l l i c h P., 363, 365-366, 368,
446 W i t t f o g e l K. A., 469, 471
3 1 0 ,311,316, 321,322, 323
T occo F., 21, 23 W i t t g e n s t e i n L., 271, 293, 294,
R y l e G., 323, 324, 325, 327
Toller E., 58 295, 296, 297, 299, 304-305,
Tolstoi L., 64, 75, 77, 305, 311, 307-314, 315-320, 321, 322,
s 323
T o m á s d e A q u i n o , 190,194, 368,
323, 325, 327, 328, 329, 330,
332, 370, 372, 484
Sachs H., 47 369, 383, 385, 387, 394, 395 Wordsworth W., 134
W u l f , M . d e , 386, 388
S a r t r e J.-P, 173, 177, 215, 217, Touchard P. A., 401
223, 226-231, 232, 234, 235, T o u l m i n S. E., 311, 327 Wust P., 192
242-244, 375, 450 T r a n D u c T a o , 177
Savignano A., 167 T r e v e l y a n G. M., 295, 296
S a v i g n y , F. C. v o n , 34 Treves R., 165, 166 2
S c h e l e r M., 175, 177, 179, 182, T r o e l t s c h E., 33, 34, 41, 44,
185-189, 190, 191,200, 401 45, 53 Z am boni G., 389
S c h e l l i n g F. W., 22, 48, 134, T r o t s k i L., 410 Z ehm G., 446
138, 139 T y r r e l l G., 341, 344 Z e l l e r E., 33, 34
CJndice de conceitos
j-uKvdamervtais

abdução, 83 instrumentalismo, 99
am or fati, 13
angústia, 207
autoconceito (conceptus sui), 129
método da imanência, 343

círculo hermenêutico, 251


conhecimento intuitivo, 117 neocriticismo (ou neokantismo), 23

dejeção, 205 ôntico - ontológico, 206


demitização, 366
dialética, 128
desencantamento do mundo, 63
duração, 351 personalismo, 400
proposição atômica, 310

epocbé, 183
escatologia, 374 regra pragmática, 83
existentivo - existencial, 204 ressentimento, 11

falibilismo, 83 sionismo, 418


filosofia das formas simbólicas, 29 super-homem (Übermensch), 14

teoria crítica da sociedade, 470


hassidismo, -rio
nassiuisinu, 418 • -J„„l /rn
hegemonia (teoria da hegemonia), 457 *P° 1 ’
história, 124 __
história dos efeitos (Wirkungsgeschichte), 254 __________________MSM______
historicismo, 45
homem-massa, 169 universal concreto,120
DE NIETZSCHE
À ESCOLA DE FRANKFURT

o.

o
> .
A FILOSOFIA
DO SÉCULO XIX
AO SÉCULO XX

“Sócrates foi um equívoco: toda a moral do perfec­


cionismo, até mesmo a cristã, foi um equívoco
Friedrich Nietzsche

“Estamos abertos à possibilidade de que o sentido


e o significado surjam apenas no homem e em sua
história. Mas não no homem individual, e sim no ho­
mem histórico. Porque o homem é um ser histórico”.
Wilhelm Dilthey

“Sermos superados no plano científico é[...] não só


nosso destino, de todos nós, mas também nosso
escopo”.
Max Weber

“O homem não vive mais em um universo simbóli­


co. A linguagem, o mito, a arte e a religião são parte
deste universo, são os fios que constituem o tecido
simbólico, a emaranhada trama da experiência hu­
mana. Todo progresso no campo do pensamento
e da experiência reforça e aperfeiçoa esta rede”.
Ernst Cassirer

“Uma hipótese está, para a mente científica, sem­


pre em prova”.
Charles S. Peirce

“Todoerronosindicaumcaminhoaevitar,aopassoque
nem toda descoberta nos indica um caminho a seguir”.
Giovanni Vailati
Capítulo primeiro

Friedrich Nietzsche.
Fidelidade à terra e transmutação de todos os valores

Capítulo segundo

O neocriticismo.
A Escola de M arburgo e a Escola de B a d e n ________

Capítulo terceiro

O historicismo alemão
de Wilhelm Dilthey a Friedrich M einecke__________

Capítulo quarto

M ax Weber:
o desencantamento do mundo
e a m etodologia das ciências histórico-sociais ______

Capítulo quinto

O pragm atism o__________________________________

Capítulo sexto

O instrumentalismo de John D e w e y _______________

Capítulo sétimo

O neo-idealismo italiano, Croce e Gentile


e o idealismo anglo-am ericano____________________
íS a p í+ u lo p n m e i^ o

Friedrick A)i^+2scke.
Fidelidade à terra
e tratas mutação de todos os valores

• Crítico impiedoso do passado e profeta "inatual" do fu ­


turo, dessacralizador dos valores tradicionais e propugnador do ^ essa,c^ /iz, r
homem que ainda está por vir, Friedrich Nietzsche (1844-1900) °°adidonais
é um pensador cuja obra deixou marca decisiva. Aos vinte e e p r ofeta
quatro anos, professor de filologia na Universidade de Basiléia, ^ homem
Nietzsche estreita amizade com o famoso historiador Jakob Bur- novo
ckhardt. Nesse período encontra Richard Wagner, em cuja obra -> § 1
musical Nietzsche via o instrumento apto para renovar a cultura
contemporânea. Logo, porém, ele se afastará de W agner e de Schopenhauer, cujo
M undo como vontade e representação ele havia lido alguns anos antes.
Em 1879 Nietzsche deixa a Universidade por motivos de saúde - mas também
porque a filologia não era seu "destino" - e inicia sua peregrinação de pensão em
pensão, entre a Suíça, a Itália e a França meridional. Em 1882 conhece Lou Salomé,
jovem russa de 24 anos; enamora-se, e pretende desposá-la; ela, porém, o rejeita
e se casa com Paul Rée, amigo e discípulo de Nietzsche. Em 1883, em Rapallo,
Nietzsche concebe sua obra mais importante: Assim falou Zaratustra, trabalho que
term inou, entre Roma e Nice, dois anos depois. Acredita ter encontrado morada
satisfatória em Turim. Mas, no dia 3 de janeiro de 1889 torna-se presa da loucura,
lançando-se ao pescoço de um cavalo cujo dono estava espancando diante de sua
casa. Entregue primeiro aos cuidados da mãe e depois aos da irmã, Nietzsche morre
dia 25 de agosto de 1900, sem poder ficar inteirado do sucesso que estavam tendo
os livros que ele havia impresso à própria custa.

• Fascinado pela leitura de Schopenhauer, Nietzsche vê a vida como irracio­


nalidade cruel e cega, destruição e dor. E pensa que apenas a arte possa oferecer
ao indivíduo força e capacidade para enfrentar a dor da vida, fazendo-o dizer
sim à vida. De 1872 é O nascimento da tragédia: aí Nietzsche
afirm a que a civilização grega pré-socrática explodiu em uma £ a tragédia
aceitação vigorosa da vida, em uma exaltação corajosa dos valo- ãtica
res vitais. E individua o segredo desse mundo grego no espirito que une
de Dioniso: Dioniso é o símbolo da força instintiva e da saúde, espirito
de uma humanidade em pleno acordo com a natureza. A arte dionisíaco
grega, todavia, deve seu desenvolvimento não só ao instinto e espirito
dionisíaco, mas tam bém ao apoiineo: visão de sonho, senso da apolineo
medida e de límpido equilíbrio. E se o apolíneo se exprime nas §2
artes figurativas, o dionisíaco explode na música. Os dois instintos
caminham um ao lado do outro, "no mais das vezes em aberta discórdia", até
quando, "por causa de um milagre metafísico da 'vontade' helênica", aparecem
acoplados, gerando a obra de arte, igualmente dionisíaca e apolínea, que é a
tragédia ática.

• Eis, porém, que chega Eurípedes, que procura eliminar da tragédia o elemen­
to dionisíaco em favor dos elementos morais e intelectualistas. E surge Sócrates,
Primeira parte - A filosofia d o s é c u lo a o sé c u lo

Sócrates com sua *ouca presunção de dominar a vida com a razão. Estamos
e Platão em Pjena decadência. Sócrates e Platão são "sintomas de deca-
são dência, os instrumentos da dissolução grega, os pseudogregos, os
"pseudogregos" antigregos". Sócrates - continua Nietzsche - "foi apenas alguém
e "a ntig reg os" longamente enferm o". Foi hostil à vida. Destruiu o fascínio dio-
§2 nisíaco. A racionalidade a todo custo é uma doença.

• Contra a exaltação da ciência e da história, Nietzsche, entre 1873 e 1876,


escreve as Considerações inatuais: Strauss, Feuerbach e Comte são medíocres filis-
teus; Strauss, mais precisamente, é "autor de um evangelho de cervejaria".
Nietzsche combate a saturação de história e a idolatria do
. fato (os fatos "são estúpidos"; apenas as teorias que os interpre-
dema * d tam Poc*em ser inteligentes), e afirma que quem crê no "poder da
to m a'3 a história" será hesitante e inseguro, "não pode crer em si mesmo",
"hesitantes e ser^ então súcubo do existente, "seja ele um governo, uma
e inseguros" opinião pública, ou a maioria numérica".
~> § 3 Nietzsche rejeita a história monumental (de quem procura no
passado modelos e mestres) e a história antiquáría (a que busca
os valores sobre os quais a vida presente se enraíza) e torna-se
partidário da história crítica: esta é a história de quem julga o passado, procurando
abater os obstáculos que proíbem a realização dos próprios ideais.

• Nietzsche havia dedicado a W agner o Nascimento da tragédia, vendo em


Wagner "seu insigne precursor no campo de batalha". No entanto, porém, ele vinha
amadurecendo sua separação tanto de W agner como de Schopenhauer, como é
testemunhado por obras como Humano, demasiadamente huma-
Schopenhauer no (1878), Aurora (1881) e A gaia ciência (1882). Schopenhauer
foge da vida "não é outra coisa que o herdeiro da tradição cristã"; o seu é "o
e W agner pessimismo dos que renunciam, dos falidos e dos vencidos"; é,
"est une justamente, o pessimismo resignado do romantismo, fuga da vida.
névrose" E, por outro lado, W agner - deve adm itir Nietzsche - não é de
§4 fato o instrumento da regeneração da música; ele - escreve Niet­
zsche em O caso Wagner (1888) - "lisonjeia todo instinto niilista
(-budista) e o camufla com a música, bajulando toda cristandade W agner é
uma doença: "est une névrose".

• O afastamento de seus dois "mestres" comporta (ou caminha paralelamente


com) o afastamento de Nietzsche em relação ao idealismo (que cria um "anti-
mundo"), ao positivismo (com sua louca pretensão de dominar
a vida com pobres redes teóricas), aos redentores socialistas, e
Somos ao evolucionismo ("mais afirmado que provado"). O desmasca-
os assassinos ramento, porém, não termina aqui. E justamente em nome do
de Deus instinto dionisíaco, em nome do homem grego sadio do século
5 VI a.C., que "ama a vida", Nietzsche anuncia a "morte de Deus"
e desfere um ataque decisivo contra o cristianismo.
Deus está morto: “Nós o matamos; eu e vós. Somos seus assassinos!". Elimi­
namos Deus de nossa vida; e, ao mesmo tempo, eliminamos aqueles valores que
eram o fundam ento de nossa vida; perdemos os pontos de referência. Isso eqüivale
a dizer que desapareceu o homem velho, mesmo que o homem novo ainda não
tenha aparecido. Zaratustra anuncia a morte de Deus; e sobre suas cinzas exalta
a idéia do super-homem, repleto do ideal dionisíaco, que "ama a vida e que, es­
quecendo o 'céu', volta à sanidade da 'terra'

• O anúncio da morte de Deus caminha lado a lado com a "maldição do


cristianismo". É verdade que Nietzsche sente-se fascinado pela figura de Cristo:
"Cristo é o homem mais nobre". Mas o cristianismo não é Cristo. O cristianismo
Capítulo primeiro - A Jie+zscke. F id eli d a d e à te r r a e tr a n s m u ta ç ã o d e tod o s o s v a lo re s

- lemos no Anticristo - é uma conjuração "contra a saúde, a beleza, a constituição


bem-sucedida, a vontade de espírito, a bondade da alma, contra a própria vida".
Eis a razão pela qual é preciso a transmutação de todos os valores, dos valores que
"dominaram até hoje".
Esses temas são difusamente tratados por Nietzsche em Além Transmutação
do bem e do mal (1886) e em Genealogia da moral (1887). A moral de todos
da tradição é a m oral dos escravos, dos fracos e mal-sucedidos os valores
que, não podendo dar maus exemplos, dão bons conselhos. E -*§ 6 -7
esses bons conselhos, a moral, são fruto do ressentimento: é o
ressentimento contra a força, a saúde, o amor pela vida que faz com que se tor­
nem dever e virtude comportamentos como o sacrifício de si ou a submissão. E o
todo justifica-se por metafísicas que, apresentando-se como objetivas, inventam
"mundos superiores" para poder "caluniar e emporcalhar este mundo", volunta­
riamente reduzido a aparência.

• Com a morte de Deus e o desmascaramento da metafísica e dos valores que


até agora nos sustentavam, o que resta é nada: nós nos precipitamos no abismo do
nada. Em tudo o que acontece não há um sentido, não existem totalidades racionais
que se mantenham de pé, nem existem fins consistentes. Caem
"as mentiras de vários milênios" e o homem permanece sozinho #
e espantado. Permanece um mundo dominado pela vontade de ° anúncio
aceitar a si próprio e de repetir-se. Esta é a doutrina do eterno do
retorno: o mundo que aceita a si mesmo e que se repete. E a essa suP^r_h° mem
doutrina t- que Nietzsche retoma da Grécia e do Oriente - ele liga '
sua outra doutrina do am or fati: amar o necessário, aceitar este
mundo e amá-lo. O am or fa ti é aceitação do eterno retorno e da vida e, ao mesmo
tem po, anúncio do super-homem. O super-homem é o homem novo que, rompi­
das as antigas cadeias, cria um sentido novo da terra; é o homem que vai além do
homem, o homem que ama a terra e cujos valores são a saúde, a vontade forte, o
amor, a embriaguez dionisíaca. Esse é o anúncio de (Nietzsche) Zaratustra.

jj]. ;A vida e a ob^a Em 1872, saiu O nascimento da tragé­


dia. Entre 1873 e 1876 Nietzsche escreveu as
quatro Considerações inatuais. Nesse meio
Friedrich Nietzsche nasceu em 15 de tempo, por motivos pessoais e por razões
outubro de 1844, em Rõcken, nas proximi­ teóricas rompeu sua amizade com Wagner.
dades de Lutzen. Estudou filologia clássica O testemunho desse rompimento pode ser
em Bonn e em Leipzig. Em Leipzig leu O encontrado em Humano, muito humano
mundo como vontade e representação, de (1878), onde o autor também toma distância
Schopenhauer, leitura destinada a deixar da filosofia de Schopenhauer.
marca decisiva no pensamento de Nietzsche. N o ano seguinte, em 1879, por ra­
Com vinte e cinco anos apenas, Nietzsche zões de saúde, mas também por motivos
foi chamado, em 1869, a ocupar a cátedra mais profundos (a filologia não era seu
de filologia clássica na Universidade de Ba­ “ destino” ), Nietzsche demitiu-se do ensino
siléia, onde estreitou amizade com o famoso e iniciou sua irrequieta peregrinação de
historiador Jakob Burckhardt. pensão a pensão pela Suíça, a Itália e o sul
E desse período seu encontro com Ri- da França.
chard Wagner, que naqueles dias vivia com Em 1881 publicou a Aurora, onde já
Cosima von Bülow em Triebschen, no lago tomam corpo as teses fundamentais de seu
dos Quatro Cantões. Nietzsche se converteu pensamento. A Gaia ciência é de 1882: aqui,
à causa de Wagner, que sentiu como “ seu o filósofo prometeu novo destino para a
insigne precursor no campo de batalha” , humanidade. Escreveu esses dois livros em
passando a colaborar com ele na organiza­ Gênova, onde também teve oportunidade de
ção do teatro de Bayreuth. ouvir a Carmen, de Bizet, que o entusiasmou.
Primeira parte - A filosofia d o s é c u lo X J X a o s é c u Io X X

Ainda em 1882 Nietzsche conhece Lou 3 de janeiro de 1889 cai vítima da loucura,
Salomé, jovem russa de vinte e quatro anos. lançando-se ao pescoço de um cavalo que o
Acreditando nela, queria desposá-la. M as dono estava espancando diante de sua casa
Lou Salomé o rejeitou e se uniu a Paul Rée, em Turim.
amigo e discípulo de Nietzsche. Inicialmente, foi confiado a sua mãe
Em 1883, em Rapallo, ele concebe sua e, quando esta faleceu, à irmã. Morreu em
obra-prima: Assim falou Zaratustra, obra Weimar, imerso nas trevas da loucura, em 25
que foi concluída entre Roma e Nice, dois de agosto de 1900, sem poder se dar conta
anos depois. Em 1886, publicou Além do do sucesso que estavam tendo os livros que
bem e do mal. A Genealogia da moral é de mandara publicar à própria custa.
1887. N o ano seguinte, Nietzsche escreve:
“ O caso Wagner, O crepúsculo dos ídolos,
O Anticristo, Ecce homo. Do mesmo perío­
do é também o escrito Nietzsche contra
Wagner.
Nesse período, ainda, lê Dostoiewski. e o “p r o b le m a S ó c r a t e s ”
Entrementes, parece-lhe ter encontrado
lugar satisfató rio em Turim, “ a cidade
que se revelou como a minha cid ad e ". É Em Leipzig, conforme salientam os,
em Turim que ele trabalha em sua última Nietzsche leu O mundo como vontade e
obra, a Vontade de poder, que, no entan­ representação, de Schopenhauer, e ficou
to, não conseguiu concluir. Com efeito, em fascinado, a ponto de mais tarde o julgar

Friedrich Nietzsche
aos vinte anos.
Nietzsche (1844-1900)
foi um crítico
impiedoso do passado
e profeta “inatual"
de nossos dias.
Cãpítulo primeiro - /\) ie tz s c h e , F id eli d a d e à te r r a e tr a n s m u ta ç ã o d e to d o s o s v a lo r e s

como “ um espelho, no qual vi [...] o mundo, em relação à vida se transforma em super­


a vida e meu próprio espírito” . ficialidade silogística: surge então Sócrates,
A vida, pensa Nietzsche nas pegadas de com sua louca presunção de compreender
Schopenhauer, é cruel e cega irracionalidade, e dominar a vida com a razão e, com isso,
dor e destruição. Só a arte pode oferecer ao temos a verdadeira decadência.
indivíduo a força e a capacidade de enfrentar Sócrates e Platão são “ sintomas de
a dor da vida, dizendo sim à vida. decadência, os instrumentos da dissolução
E em O nascimento da tragédia, que é grega, os pseudogregos, os antigregos” .
de 1872, Nietzsche procura mostrar como a “ Sócrates — escreve Nietzsche — foi um
civilização grega pré-socrática explodiu em equívoco: toda a moral do aperfeiçoamen­
vigoroso sentido trágico, que é aceitação ex­ to, inclusive a cristã, foi um equívoco [...].
tasiada da vida, coragem diante do destino A mais crua luz diurna, a racionalidade a
e exaltação dos valores vitais. A arte trágica qualquer custo, a vida clara, prudente, cons­
é corajoso e sublime sim à vida. ciente e sem instintos, em contraste com os
Com isso Nietzsche subverte a imagem instintos, isso era apenas doença diferente
romântica da civilização grega. Entretanto, a — e de modo nenhum retorno à ‘virtude’,
Grécia de que fala Nietzsche não é a Grécia à ‘saúde’, à felicidade” . “ Sócrates apenas
da escultura clássica e da filosofia de Sócra­ esteve longamente doente” . Disse não à
tes, Platão e Aristóteles, e sim a Grécia dos vida; abriu uma época de decadência que
pré-socráticos (séc. VI a.C.), a Grécia da esmaga também a nós. Ele combateu e des­
tragédia antiga, na qual o coro era a parte truiu o fascínio dionisíaco que liga homem
essencial, senão talvez tudo. a homem e homem a natureza, e desvela o
De fato, Nietzsche identifica o segredo mistério do uno primigênio. Texto
desse mundo grego no espírito de Dioniso.
Dioniso é a imagem da força instintiva e da
saúde, é embriaguez criativa e paixão sen­
sual, é o símbolo de uma humanidade em Ke
plena harmonia com a natureza.
Ao lado do dionisíaco, diz Nietzsche, o
desenvolvimento da arte grega também está GEBURT DER TRAGÔDIE.
ligado ao apolíneo, que é visão de sonho e
tentativa de expressar o sentido das coisas
Ofef
na medida e na moderação, explicitando-
se em figuras equilibradas e límpidas. “ O
desenvolvimento da arte está ligado à di- Gritclolhia mi fm w tim
cotomia do apolíneo e do dionisíaco, do
mesmo modo como a geração provém da
dualidade dos sentidos, em contínuo con­ Vo»
flito entre si e em reconciliação meramente
periódica [...]. Em suas [dos gregos] duas FRIEDRICH NIETZSCHE.
divindades artísticas, A poio e D ioniso,
baseia-se nossa teoria de que no mundo
grego existe enorme contraste, enorme pela
origem e pelo fim, entre a arte figurativa, a
de Apoio, e a arte não figurativa da música, H§u§
que é especificamente a de Dioniso. Os dois mtt dtm V«r*uoh elner S«lb»tkrltik.
instintos, tão diferentes entre si, caminham
um ao lado do outro, no mais das vezes em
aberta discórdia [...], até que, em virtude de
um milagre metafísico da ‘vontade’ helênica,
apresentam-se por fim acoplados um ao
outro. E nesse acoplamento final gera-se a U IK 16.
obra de arte, tão dionisíaca quanto apolínea, Veta* w l W . FrtUich.
que é a tragédia ática” .
Entretanto, quando, com Eurípides,
tenta-se eliminar da tragédia o elemento Frontispício da obra
dionisíaco em favor dos elementos morais e O nascimento da tragédia,
intelectualistas, então a luminosidade clara de Nietzsche (Leipzig, 7872j.
Primeira purte - filo sofia d o s é c u lo a o sé c u lo ,X,X

|||jjf "\a\os"s ã o estúpidos do ‘lógico’ ou da ‘idéia’, que nos ajoelhemos


logo, então, e percorramos ajoelhados a
e a^satw^ação de kistóna”
escada dos sucessos” .
é um pengo São três as atitudes que Nietzsche dis­
tingue diante da história.
a) Existe a história monumental, que
O Nascimento da tragédia foi escrito é a história de quem procura no passado
sob a influência das idéias de Schopenhauer, modelos e mestres em condições de satisfazer
mas também sob a das idéias de Wagner. suas aspirações.
Com efeito, Nietzsche vislumbrava em Wag­ b) Existe a história antiquaria, que é
ner o protótipo do “ artista trágico” desti­ a história de quem compreende o passado
nado a renovar a cultura contemporânea. E de sua própria cidade (as m uralhas, as
dedicou a Wagner o Nascimento da tragédia, festas, os decretos municipais etc.) como
assim escrevendo no fim da dedicatória: fundamento da vida presente; a história
“ Considero a arte como a tarefa suprema antiquária procura e conserva os valores
e como a atividade metafísica própria de constitutivos estáveis nos quais se radica a
nossa vida, segundo o pensamento do ho­ vida presente.
mem ao qual pretendo dedicar esta obra c) E, por fim, existe a história crítica,
como a meu insigne precursor no campo que é a história de quem olha para o pas­
de batalha” . sado com as intenções do juiz que condena
Logo que saiu, embora defendida pelo e abate todos os elementos que constituem
próprio Wagner e por Erwin Rohde, a obra obstáculos para a realização de seus pró­
de Nietzsche foi violentamente atacada, em prios valores. Esta última foi a atitude de
nome da seriedade da ciência filológica, pelo Nietzsche diante da história.
grande filólogo Ulrich von Wilamowitz- E essa é a razão pela qual ele combate
M õllendorff, o qual escreveu que “ com o o excesso ou “ saturação de história” : “ Os
Nietzsche apóstolo e metafísico não preten­ instintos do povo são perturbados por esse
do ter nada a ver” , e o acusou de “ ignorân­ excesso e o indivíduo, não menos que a to­
cia e escasso amor pela verdade” . talidade, é impedido de amadurecer” .
M as, entre 1873 e 1876, contra a
exaltação da ciência e da história, Nietzsche
escreve as Considerações inatuais. Aqui o
velho hegeliano D. F. Strauss, juntamente afastamento
com Feuerbach e Comte, passa pela en­ ém °
em delação a S c kope.nWaiAe.r
carnação do filisteísmo e da mediocridade:
“ autor de um evangelho de cervejaria” , e Wagner
ele é o homem desejado e inventado por
Sócrates. Ao mesmo tempo, Schopenhauer
é exaltado como precursor da nova cultura Nesse meio tempo, porém, Nietzsche
“ dionisíaca” . vinha amadurecendo seu afastamento de
Aqui Nietzsche também combate o que Schopenhauer e m ais ainda de Wagner.
ele chama de saturação de história. N ão que Esse distanciamento é testemunhado por
negue a importância da história: ele combate obras como Humano, muito humano, a
mais a idolatria do fato, por um lado, e as Aurora e Gaia ciência. São dois os tipos de
ilusões historicistas, por outro, com as impli­ pessimismo:
cações políticas que elas comportam. Antes a) o primeiro é o romântico, ou seja,
de mais nada, na opinião de Nietzsche, os “ o pessimismo dos renunciantes, dos falidos
fatos são sempre estúpidos: eles necessitam e dos vencidos” ;
de intérprete. Por isso, só as teorias são in­ b) o outro é o de quem aceita a vida,
teligentes. Em segundo lugar, quem crê “ no embora reconhecendo sua dolorosa tragi-
poder da história” torna-se “ hesitante e in­ cidade.
seguro, não podendo crer em si mesmo” . E, Pois bem, em nome deste último pes­
em terceiro lugar, não crendo em si mesmo, simismo Nietzsche rejeita o primeiro, o de
ele será dominado pelo existente, “ seja ele Schopenhauer, que por toda parte cheira a
um governo, uma opinião pública, ou ainda resignação e renúncia, e que é mais fuga da
uma maioria numérica” . N a realidade, “ se vida do que “vontade de tragicidade” . Scho­
todo sucesso contém em si uma necessidade penhauer “ nada mais é do que o herdeiro
racional, se todo acontecimento é a vitória da interpretação cristã” .
Capítulo primeiro - /\ )ie tz s c k e . F id e lid a d e à t e ^ a e tr a n s m u ta ç ã o d e to d o s o s v a lo re s

Friedrich Nietzsche fotografado


na companhia da mãe.

Por outro lado, o afastam ento em muflagens metafísicas do homem e de sua


relação a Wagner foi um acontecimento história que são:
ainda mais significativo e doloroso para 1) o idealismo (que cria um “ anti-
Nietzsche. Ele vira na arte de Wagner o mundo” );
instrumento da regeneração, mas logo teve 2) o positivismo (cuja pretensão de en­
de admitir que estava iludido. Em O caso jaular solidamente a vasta realidade em suas
Wagner, podem os ler: Wagner “ lisonjeia pobres malhas teóricas é ridícula e absurda);
todo instinto niilista (-budista) e o camufla 3) os redentorismos socialistas das mas­
com a música, brandindo toda cristandade, sas ou através das massas;
toda forma de expressão religiosa da déca- 4) e também o evolucionismo (aliás,
dence” . Wagner é uma doença; “ ele adoece “ mais afirmado do que provado” ).
tudo o que toca — ele adoeceu a m úsica” . Desse modo, Nietzsche parece basear
Wagner é “ um gênio histriônico” , ele “est suas reflexões em raízes iluministas. E, com
une névrose” . efeito, é o que acontece. A desconfiança em
O afastamento de Nietzsche em rela­ relação às metafísicas, a abertura a respeito
ção a seus dois grandes mestres significou das possíveis interpretações “ infinitas” do
o afastamento e distanciamento crítico em mundo e da história e, portanto, a elimina­
relação ao romantismo, com seu falso pessi­ ção da atitude dogmática, o reconhecimento
mismo, a resignação e a ascese quase cristã do limite e da finitude humana, e a crítica à
de Schopenhauer, com a retórica daquele religião são elementos que fazem Nietzsche
“ romantismo desesperado que murchou” , dizer em Humano, muito humano: “ Pode­
que era Wagner. Significou distanciamento mos levar novamente adiante a bandeira do
e crítica daquelas pseudojustificações e ca­ Iluminismo” .
Primeira purte - jA -filosofia d o s é c u lo ,X.IJ,X a o sé c u lo

N a Gaia ciência, o homem louco anun­


cia aos homens que Deus está morto: “ O que
MENSCHLICHES, houve com Deus? Eu vos direi. N ós o ma­
tamos — eu e vós. N ós somos os assassinos
ALLZÜMENSCHUCHES. dele!” Pouco a pouco, por diversas razões,
a civilização ocidental foi se afastando de
Em B uch f Or freie G eister . Deus: foi assim que o matou. M as, “ matan­
d o ” Deus, eliminam-se todos os valores que
I)cm Andcnkcn Vokairc** serviram de fundamento para nossa vida e,
conseqüentemente, perde-se qualquer ponto
xur Gedâchlniss-Feier seines TodMtagM,
de referência.
fk% 30. Uai t jji .
Por conseguinte, com Deus desapare­
ceu também o homem velho, mas o homem
Von
novo ainda não apareceu. Diz o louco em
Friedrich Nietache. G aia ciência: “ Venho cedo demais, ainda
não é meu tempo. Esse acontecimento mons­
truoso ainda está em curso e não chegou aos
ouvidos dos homens” .
CII*Ritt H7» A morte de Deus é fato que não tem
V*rt>c vgu £rnM Ichn w tonf ♦
paralelos. E acontecimento que divide a his­
mcwrui» wWHSl.
J lKK
iwwmm K NttlOOirf 7Mii tória da humanidade. N ão é o nascimento
de Cristo, e sim a morte de Deus, que divide
nv-?nt
(.■TtlWlfc i0fi9i
*>**!• »W?t a história da humanidade.
E esse acontecimento, a morte de Deus,
anuncia antes de mais nada Zaratustra, que,
depois, sobre as cinzas de Deus, erguerá a
Frontispício idéia do super-homem, do homem novo,
da primeira edição (1878) impregnado do ideal dionisíaco que “ ama
da obra Humano, demasiadamente humano.
a vida” e que, voltando as costas para as
quimeras do “ céu” , voltará à “ sanidade da
terra” .

c x n iA n c À o
I // 1 I *T'>i
d a morte de U e . i \ s
//
i f i i l ^ T ^ rv tic risto ,
ow o c r i s t i a n i s m o
a * • //
A crítica ao idealismo, ao evolucionis- como vicio

mo, ao positivismo e ao romantismo não


cessa. Essas teorias são coisas “ humanas,
muito humanas” , que se apresentam como A morte de Deus é um evento cósmico,
verdades eternas e absolutas que é preciso pelo qual os homens são responsáveis, e
desmascarar. que os liberta das cadeias do sobrenatural
M as as coisas não ficam nisso, uma que eles próprios haviam criado. Falando
vez que Nietzsche, precisamente em nome sobre os padres, Zaratustra afirma: “Tenho
do instinto dionisíaco, em nome daquele pena desses padres [...], para mim eles são
homem grego sadio do século VI a.C., que prisioneiros e marcados. Aquele que eles
“ ama a vida” e que é totalmente terreno, chamam de redentor os carregou de gri­
por um lado anuncia a “ morte de Deus” e lhões de falsos valores e de palavras loucas!
por outro realiza profundo ataque contra Ah, se alguém pudesse redimi-los de seu
o cristianismo, cuja vitória sobre o mundo redentor!”
antigo e sobre a concepção grega do homem Esse, precisamente, é o objetivo que
envenenou a humanidade. E, por outro lado Nietzsche quer alcançar com o Anticristo,
ainda, vai às raízes da moral tradicional, que é uma “maldição do cristianismo Para
examina sua genealogia, e descobre que ela ele, um animal, uma espécie ou um indivíduo
é a moral dos escravos, dos fracos e dos é pervertido “ quando perde seus instintos,
vencidos ressentidos contra tudo o que é quando escolhe e quando prefere o que lhe
nobre, belo e aristocrático. é nocivo” .
Capitulo primeiro - A ^ ie tz s c k e . F id e lid a d e à te r r a e tr a n s m u ta ç ã o d e to d o s o s v a lo re s

Abo I'
.
'
" '
■ R essentim ento. O conceito de
ressentimento, na reflexão moral,
\
\
;

sprach Zarathustra. :

:
encontra-se na Genealogia da moral.
Para Nietzsche o ressentimento está
na base da m oral dos escravos, isto é,
i
;
j
i dos fracos e mal-sucedidos impoten- !
Em Biack ; tes que traduzem - travestem - em
«te ; "ideais morais" seu ódio contra tudo ;
: aquilo que é alegria, beleza, força,
Alie und Keinen. saúde, contra aquilo que não são ou
»- que não têm. ;
i A moral dos ressentidos configura-se '
F r lid r ls k V tit iiB lib como um instrumento de domínio dos ■
; fracos sobre os fortes; é vontade de ;
■ aniquilação da m oral dos senhores, I
. isto é, da moral cujos valores são a *
: força, a alegria, a saúde. ;
Ch*mruu 1888. A moral cristã, para Nietzsche, é a ;
v«n»g ««• K m l S ck a tiU a rr.
típica moral dos escravos: humilda- ■
c .» r« | de, piedade, compaixão, são valores
r r iir ■ antivitais, prédicas de quem, não !
' podendo dar maus exemplos, dá bons j
conselhos. É do ódio dos mal-sucedi- \
\ dos que surge sua moral, a moral dos |
; escravos, isto é, dos ressentidos. t
Frontispício , Trabalhando na química das idéias,
da primeira edição (1883) da obra
: Nietzsche chega à conclusão de que
Assim falou Zaratustra. tam bém valores éticos propostos
: como sacrossantos são apenas más-
i caras do ódio, da inveja e do ressen- <
timento. Na Genealogia da moral, ele
Todavia, pergunta-se Nietzsche, o que escreve: "A revolta dos escravos, na
fez o cristianismo senão defender tudo o ■ ética contemporânea, começa quan­
que é nocivo ao homem? O cristianismo do o próprio ressentimento se torna
considerou pecado tudo o que é valor e criador e gera valores; o ressentimen-
prazer na terra. Ele “ tomou partido de tudo : to dos indivíduos aos quais é negada a ;
verdadeira reação, aquela ação e que,
o que é fraco, abjeto e arruinado; fez um portanto, só encontram compensação i
ideal da contradição contra os instintos de em uma vingança imaginária".
conservação da vida forte” . O cristianismo
é a religião da compaixão. “ M as a pessoa
perde força quando tem compaixão [...]; a I ■

com paixão bloqueia maciçamente a lei do


desenvolvimento, que é a lei da seleção” .
Nietzsche vislumbra no Deus cristão “ a
divindade dos doentes [...]; um Deus de­ tianismo, isto é, em ódio e ressentimento
generado a ponto de contradizer a vida, ao contra tudo o que é nobre e aristocrático:
invés de ser a transfiguração e o eterno sim “ Paulo foi o maior de todos os apóstolos
dela [...]. Em Deus, está divinizado o nada, da vingança” .
está consagrada a vontade do nada!” N o N ovo Testamento Nietzsche en­
Apesar de tudo isso, Nietzsche é ca­ contra apenas um personagem digno de ser
tivado pela figura de Cristo (“ Cristo é o elogiado, Pôncio Pilatos, em virtude de seu
homem mais nobre” ; “ o símbolo da cruz é sarcasm o em relação à “ verdade” . M ais
o símbolo mais sublime que jamais existiu” ) tarde, na história de nossa civilização, a
e faz distinção entre Jesus e o cristianismo. Renascença tentou a transvalorização dos
Cristo morreu para mostrar como se deve valores cristãos, procurou levar à vitória os
viver. Cristo foi um “ espírito livre” , mas valores aristocráticos, os nobres instintos
com Cristo morreu o Evangelho: também terrenos. Feito papa, César Bórgia teria sido
o Evangelho ficou “ suspenso na cruz” , ou grande esperança para a humanidade. M as
melhor, transformou-se em Igreja, em cris- o que aconteceu? Ocorreu que “ um monge
Primeira parte - yv f i lo s o f i a d o s é c u lo /'CIT.X a o s é c u lo /'■CX

alemão, Lutero, veio a Roma. Trazendo den­


tro do peito todos os instintos de vingança
de padre frustrado, esse monge, em Roma,
indignou-se contra a Renascença [...]. Lu­
tero viu a corrupção do papado, quando se Juntamente com o cristianismo, aliás,
podia tocar com a mão justamente o con­ condenando o cristianismo, Nietzsche tam­
trário: na cadeira papal não estava mais a bém submete a moral a cerrada crítica. Essa
antiga corrupção, o peccatum originale, o é a “ grande guerra” que Nietzsche trava
cristianismo! Que boa é a vida! Que bom em nome da “ transformação dos valores
o triunfo da vida! Que bom o grande sim a que dominaram até hoje” . E essa revolta
tudo o que é elevado, belo e temerário! [...] contra “ o sentimento habitual dos valores”
E Lutero restaurou novamente a Igreja [...] ele a explicita especialmente em dois livros:
Ah, esses alemães, quanto nos custaram !” Além do bem e do mal e Genealogia da
São dessa natureza, portanto, as razões moral. Escreve Nietzsche: “ Até hoje, não
que levam Nietzsche a condenar o cristianis­ se teve sequer a mínima dúvida ou a menor
mo: “ A Igreja cristã não deixou nada intacto hesitação em estabelecer o ‘bom ’ como
em sua perversão; ela fez de cada valor um superior, em valor, ao ‘m au’ Como?
desvalor, de cada verdade uma mentira, de E se a verdade fosse o contrário? Como?
toda honestidade uma abjeção da alm a” . O E se no bem estivesse inserido também um
além é a negação de toda realidade e a cruz sistema de retrocesso ou então um perigo,
é uma conjuração “ contra a saúde, a bele­ uma sedução, um veneno?”
za, a constituição bem-sucedida, a valentia Essa é a questão proposta pela Ge­
de espírito, a bondade da alma, contra a nealogia da moral. E é aí que Nietzsche
própria vida” . começa a indagar os mecanismos psicoló­
Assim, o que devemos esperar senão gicos que iluminam a gênese dos valores:
que este seja o último dia do cristianismo? a compreensão da gênese psicológica dos
E “ a partir de hoje? A partir de hoje, trans- valores, em si mesma, será suficiente para
valorização dè todos os valores” , responde pôr em dúvida sua pretensa absolutez e
Nietzsche. indubitabilidade.
13
Capítulo primeiro - A JietzscK e. F id e lid a d e à te rr a e tra n sm u ta ç ã o , d e to d o s o s v a lo re s

Antes de mais nada, a moral é máquina


construída para'dom inar os outros e, em
segundo lugar, devemos logo distinguir entre
a moral aristocrática dos fortes e a moral
■ A m o r fa ti. Esta expressão é usada
por Nietzsche para indicar a atitude
dos escravos. Estes são os fracos, os mal- do super-homem que, com espírito
sucedidos. E, como diz o provérbio, os que dionisíaco, aceita a vida entusiasti­
não podem dar maus exemplos dão bons camente em todos os seus aspectos,
conselhos. É assim que os constitutivamen- até nos cruéis. O super-hòmem não
te fracos agem para subjugar os fortes. E apenas suporta aquilo que é neces­
Nietzsche prossegue: “ Enquanto toda moral sário, mas o aceita e o ama. O am or
aristocrática nasce da afirmação triunfal de fa ti é aceitação da vida e do eterno
si, a moral dos escravos opõe desde o co­ retorno.
meço um não àquilo que não pertence a ela
mesma, àquilo que é diferente dela e cons­
titui o seu não-eu — este é seu ato criador.
Essa subversão [...] pertence propriamente
ao ressentimento” . É o ressentimento contra
a força, a saúde e o amor à vida que torna A Jiilism o ,
dever e virtude e eleva à categoria de bons e te m o re to m o
comportamentos o desinteresse, o sacrifício
de si mesmo, a submissão. e "a m o f fa ti"
E essa moral dos escravos é legitimada
por metafísicas que a sustentam com bases
presumidamente “ objetivas” , sem que se O niilismo, diz Nietzsche, é “ a con­
perceba que tais metafísicas nada mais são seqüência necessária do cristianismo, da
do que “ mundos superiores” inventados para moral e do conceito de verdade da filosofia” .
poder “ caluniar e sujar este mundo” , que elas Quando as ilusões perdem a máscara, então
querem reduzir a mera aparência. ........... o que resta é nada: o abismo" do nada.

Retrato de Nietzsche
nos últimos anos de sua vida.
A interpretação
que tenta fazer de Nietzsche
um “profeta do nazismo ”
é, à luz de uma
historiografia correta,
carente de fundamentos.
Primeira parte - jA filosofia d o s é c u lo ^CZ7,X a o sé c u lo ,X X

“ Como estado psicológico, o niilismo


torna-se necessário, em primeiro lugar, quan­
do procuramos em todo acontecimento um
‘sentido’ que ele não tem, até que, por fim, ' ■ S u p e r-h o m e m ( Ü b e rm e n s c h ) .
começa a faltar coragem a quem procura” . ! Com este termo Nietzsche designa
Aquele “ sentido” podia ser a realização ou : sua mensagem a respeito do homem
o fortalecimento de um valor moral (amor, ■ novo que deve vir, que quebrará as
harmonia de relações, felicidade etc.). M as ( velhas cadeias e criará um sentido
o que devemos constatar é que a desilusão ; novo da terra. O homem deve in­
quanto a esse pretenso fim é “ uma causa ventar o homem novo, exatamente
o super-homem, o homem que vai
do niilismo” .
■ além do hom em , um homem que
Em segundo lugar, “ postulou-se uma -voltando as costas para as quimeras
totalidade, uma sistematização e até uma ■ do "céu" - voltará para a sanidade
organização em todo o acontecer e em sua da terra, um homem cujos valores
base” . Entretanto, o que se viu é que esse são a saúde, a vontade forte, o amor,
universal, que o homem construíra para a embriaguez dionisíaca e um novo
poder crer no seu próprio valor, não existe! i orgulho.
N o fundo, o que aconteceu? “ Alcançou-se "Um novo orgulho - diz Zaratustra
o sentimento da falta de valor quando se . - me ensinou o meu Eu, e eu o ensi­
compreendeu que não é lícito interpretar no aos homens: não mais escondam
o caráter geral da existência nem com o ; a cabeça na areia das coisas celestes,
! mas levem-na livremente: uma ca­
conceito de ‘fim’, nem com o conceito de ' beça terrestre, que cria ela própria
‘unidade’, nem com o conceito de ‘ver­ : o sentido da terra". O super-homem
dade’.” enfrenta a vida aceitando-a com am or
Caem assim “ as mentiras de vários fa ti, anuncia a morte de Deus e a
milênios” e o homem permanece sem os 1 transmutação de todos os valores de
enganos das ilusões, mas permanece só. N ão f que a tradição nos carregou. O super-
há valores absolutos; aliás, os valores são ■ homem é o homem que reconquistou
desvalores; não existe nenhuma estrutura o espírito de Dioniso.
racional e universal que possa sustentar o : Houve intérpretes que viram no
esforço do homem; não há nenhuma provi­ super-homem de Nietzsche o fulcro
í da idéia nazista da superioridade
dência, nenhuma ordem cósmica. f da raça ariana e, em Nietzsche, por­
N ão há uma ordem, não há um sen­ tanto, um profeta do nazismo, mas
tido. M as há uma necessidade: o mundo tais interpretações são erradas. Foi
tem em si a necessidade da vontade. Desde i. a irmã de Nietzsche, Elisabeth Fõrs-
a eternidade, o mundo é dominado pela i ter-Nietzsche, curadora dos escritos
vontade de aceitar a si próprio e de repe- : do irmão e fautora da idéia de uma
tir-se% palingenesia universal a ser confiada
E essa a doutrina do eterno retorno que à nação alemã, que interveio pesada­
Nietzsche retoma da Grécia e do Oriente. O ; mente sobre as páginas manuscritas
| de A vontade de p o d e r (obra que
mundo não procede de modo retilíneo em
: Nietzsche não conseguiu levar a
direção a um fim (como acredita o cristia­ i termo), fazendo aparecer o irmão
nismo), nem seu devir é progresso (como como negador do humanitarismo e
pretende o historicismo hegeliano e pós- da democracia.

I
hegeliano), mas “ todas as coisas retornam Eis dois pensamentos de Nietzsche
eternamente e nós com elas; nós já existimos sobre o Estado: " 'Estado' se chama
eternas vezes e todas as coisas conosco” . o mais frio de todos os monstros".
Toda dor e todo prazer, todo pensamen­ O Estado é um ídolo que cheira mal:
to e todo suspiro, toda coisa indizivelmente "Seu ídolo cheira mal - o monstro frio
pequena e grande retornarão: “Voltarão até
essa teia de aranha e este raio de lua entre - e todos estes adoradores do ídolo
as árvores, até este idêntico momento e eu cheiram mal [...]. Apenas onde o Esta­
mesmo” . do deixa de existir começa o homem
não inútil". Nietzsche faz Zaratustra
O mundo que aceita a si próprio e que dizer essas coisas. E no Crepúsculo
se repete: é esta a doutrina cosmológica de dos ídolos (1888) temos: "A cultura e
Nietzsche. E a ela Nietzsche vincula sua o Estado são antagonistas".
outra doutrina, a do amor fati: amar o ne­
cessário, aceitar este mundo e amá-lo.
Capítulo primeiro - A lie + z s c k e . F id e lid a d e à e t m n s m u t a ç ã o d e to d o s o s v a lo re s

O supe^-komem homens: não deveis mais esconder a cabeça


é o sentido d a terra
na areia das coisas celestes, mas mantê-la
livremente: uma cabeça terrena, que cria ela
própria o sentido da terra” .
O super-homem substitui os velhos
O am or fati é aceitação do eterno re­ deveres pela vontade própria. “ O homem
torno, é aceitação da vida. M as não se deve é uma corda estendida, estendida entre o
ver nele a aceitação do homem. A mensagem bruto e o super-homem, uma corda esten­
fundamental de Zaratustra, com efeito, está dida sobre um abism o” . Ele deve procurar
em pregar o super-homem. novos valores: “ O mundo gira em torno dos
E o homem, o homem novo, que deve inventores de novos valores” .
criar um novo sentido da terra, abandonar Assim como para Protágoras, também
as velhas cadeias e cortar os antigos troncos. para Nietzsche o homem deve ser a medida
O homem deve inventar o homem novo, isto de todas as coisas, deve criar novos valores
é, o super-homem, o homem que vai além do e pô-los em prática. O homem embrutecido
homem e que é o homem que ama a terra e tem a espinha curvada diante das ilusões
cujos valores são a saúde, a vontade forte, cruéis do sobrenatural.
o amor, a embriaguez dionisíaca e um novo O super-homem “ ama a vida” e “ cria
orgulho. Diz Zaratustra: “Um novo orgulho o sentido da terra” , e é fiel a isso.
ensinou-me o meu Eu, e eu o ensino aos Aí está sua vontade de poder.
Primeira parte - A filosofia do século XJX ao século

________________________
DO DIONISÍACO AO SUPER-HOMEM

A vida é irracionalidade cruel e cega, dor e destruição.


Seus dois instintos fundamentais são

O D IO N ISÍA C O : O A P O L ÍN E O :
imagem da força instintiva e da saúde, visão de sonho, tentativa de expressar o sentido
embriaguez criativa e paixão sensual: das coisas com medida e moderação:
Dioniso é o símbolo da humanidade Apoio é o símbolo da humanidade que se explicita
que “diz sim à vida”, em pleno acordo com a natureza em figuras equilibradas e límpidas

Considerando a história sob o perfil crítico,


Dois tipos de pessimismo: São três os pontos de vista
o dionisíaco e o apolíneo “ milagrosamente” sobre a história:
ROMÂNTICO se ligaram apenas na época da Grécia pré-socrática,
o pessimismo na TRAGÉDIA ÁTICA: MONUMENTAL
dos que renunciam, a arte trágica foi um corajoso e sublime “ dizer sim à vida” de quem procura no passado
dos falidos e dos vencidos - expressão do autêntico pessimismo trágico modelos e mestres;
{como Schopenhauer - ANTIQUÁRIO
e Wagner, de quem entende o passado
em um primeiro tempo como fundamento
M as com SÓCRATES o apolíneo prevaleceu:
considerados por Nietzsche da vida presente,
com a louca presunção socrática
como artífices conservando seus valores
de entender e dominar a vida com a razão
do renascimento constitutivos;
começou a verdadeira decadência da humanidade
do dionisíaco
na modernidade); CRÍTICO
de quem olha o passado
TRÁGICO sob o ponto de vista
o pessimismo O CRISTIANISMO contribuiu do juiz que abate
de quem aceita a vida, para, posteriormente, envenenar a humanidade: e condena todos
embora conhecendo considerou pecado todos os valores e os prazeres da terra, os elementos
sua dolorosa tragicidade: fazendo de Cristo, verdadeiro “ espírito livre” , que obstaculizam
este leva adiante a bandeira um símbolo de ressentimento contra tudo aquilo que é nobre a realização
de um novo Iluminismo dos próprios valores

A m oral dos escravos - Daqui a im posição, sobre a m oral aristocrática dos fortes, - A MORAL
opõe da m oral dos escravos, legitimada pela METAFÍSICA, é em geral
desde o princípio que pretendeu dar-lhe uma presumida base “ objetiva” , máquina construída
um não àquilo inventando um “ mundo superior” para reduzir para dominar
que é diferente de si: a mera aparência “ este m undo” , o único que existe os outros.
é o ressentimento A m oral aristocrática
contra a força, a saúde, dos fortes
o am or pela vida nasce de uma triunfal
A decadência da civilização ocidental culmina
com a m o r t e d e D e u s , afirmação de si
com a eliminação de todos os valores que foram
fundamento da humanidade: evento cósmico
pelo qual os homens são responsáveis,
esta morte os liberta das cadeias daquele sobrenatural
que eles próprios haviam criado,
m as os deixa sem outros pontos de referência

/ Z a r a t u s t r a é o p r o fe ta d o amor fati c o m o
a c e ita ç ã o d o etern o r e to rn o d a s c o is a s
Conseqüência necessária é e transvalorização de todos os valores, e a n u n cia
o N IIL ISM O :
não há valores absolutos, não há nenhuma
providência, nenhuma ordem cósmica:
o advento do SU PER -H O M E M ,
resta apenas o abismo do nada (nihil):
que ama a vida e cria o sentido da terra:
o ETER N O R E TO R N O do universo e da vida
nele reemerge o dionisíaco como vontade de poder
, . . 17
Cdpítulo primeiro - /v iie fz s c k e . F id e lid a d e à t e r r a e f ^ n s m w t a ç â o d e f o d o s o s v a lo r e s ____

Q u e m percebe claramente, como depois


de Sócrates, o mistagogo da ciência, as escolas
N ie t z s c h e filosóficas se sucederam uma à outra como onda

a
atrás de onda; como uma universalidade jamais
suposta da ânsia de saber no domínio mais am­
plo do mundo culto e como missão verdadeira
e própria para cada um dos melhores dotados
fi sublime ilusão metafísico levou a ciência ao alto-mar, do qual não pôde
de Sócrates mais a seguir ser completamente removida;
como por esta universalidade foi estendida pela
primeira vez uma rede comum do pensamento
Contra Sócrates, "o mistagogo da ciên­ sobre o globo terrestre inteiro, com perspecti­
cia": a fé socrático em umo razão capaz de vas até sobre a legislação de um sistema solar
penetrar "nos mais profundos abism os do todo; quem se lembra de tudo isso, juntamente
ser" é "uma profunda ilusão". com a pirâmide prodigiosamente alta do saber
atual, não pode se abster de ver em Sócrates
o único eixo e fundamento da história universal.
Pora demonstrar também para Sócrates Pois se alguém imaginasse toda essa indeci­
a dignidade de tal posição diretiva, basta frável soma de força que foi empregada para
reconhecer nele o tipo de uma formo d e exis­ aquela tendência universal, não a serviço do
tência antes dele inaudita, o tipo do homem conhecimento, mas reduzida a fins práticos,
teórico, do qual é nossa tarefa imediata isto é, egoístas, dos indivíduos e dos povos, o
chegar a entender a significação e o objeti­ prazer instintivo da vida estaria provavelmente
vo. [...] tessing, o mais honesto dos homens tão enfraquecido em lutas generalizadas de
teóricos, ousou declarar que a ele importava extermínio e em contínuas migrações de povos,
mais a pesquisa da verdade do que a própria que, com o hábito do suicídio, o indivíduo deve­
verdade: com isso foi descoberto o segredo ria talvez sentir o último avanço do sentimento
fundamental da ciência, para espanto, ou me­ do dever ao estrangular, como o habitante das
lhor, a despeito dos cientistas. Ora, ao lado ilhas Fidgi, como filho os próprios pais e como
desse reconhecimento isolado, como excesso amigo o próprio amigo: pessimismo prático, que
de honestidade ou mesmo de presunção, está poderia gerar também uma ética cruel do mas­
sem dúvida uma profunda ilusão, a qual veio sacre dos povos por piedade, o que de resto
pela primeira vez ao mundo na pessoa de Só­ existe e existiu em todo lugar no mundo, onde
crates - a fé inabalável de que o pensamento, não apareceu a arte em uma forma qualquer,
seguindo o fio condutor da causalidade, alcaru especialmente como religião e como ciência,
ce até os mais profundos abismos do ser, e como remédio e defesa contra aquele sopro
de que o pensamento esteja em grau não só pestilencial.
de reconhecer, mas até de corrigir o ser. £sta Diante deste pessimismo prático Sócrates
sublime ilusão metafísica é dada como instinto é o protótipo do otimista teórico, que na própria
à ciência e a remete sempre e sempre a seus fé na perscrutabilidade da natureza das coisas
limites, sobre os quais ela deve se converter em si atribui ao saber e ao conhecimento a força
em arte: ò quol propriamente se mira com esse de um remédio universal, e no erro vê o mal
mecanismo. em si. Penetrar nesses fundamentos e separar
Olhemos agora Sócrates, com a tocha o verdadeiro conhecimento da aparência e do
deste pensamento: ele nos aparece como o erro pareceu ao homem socrático a mais nobre,
primeiro, que soube com a guia do instinto da ou melhor, a única vocação verdadeiramente
ciência não só viver, mas também - e isso é humana: assim como o mecanismo de conceitos,
muito mais - morrer; e por isso a imagem do juízos e argumentações de Sócrates para frente
Sócrates moribundo, como do homem subtraído foi considerado a afirmação suprema e o dom
pelo saber e pelos raciocínios ao medo da mor­ mais maravilhoso da natureza, acima de todos
te, é o brasão que sobre a porta de entrada da as outras faculdades, flté as ações morais mais
ciência recorda a cada um a destinação dela, sublimes, os movimentos da compaixão, do
ou seja, a de mostrar a existência inteligível e, sacrifício, do heroísmo e a serenidade da alma
portanto, justificada: a cujo objetivo certamente, semelhante à serenidade do mar, tão difícil
se os raciocínios não atingem, deve por fim ser­ de atingir e que o grego apolíneo chamou de
vir também o mito, que eu pouco antes designei soFrosine, desde Sócrates e dos sucessores e
até como conseqüência necessária, ou melhor, seguidores até a época presente derivaram
como objetivo da ciência. da dialético do saber e, por conseguinte foram
Primeira parte - y\ ] lloso-fin d o s é c u lo ,X.r7,X a o sé c u lo

designados como possíveis de aprender. Quem "Perdeu-se como uma criança?", disse outro. "Ou
provou em si o prazer de um conhecimento estaria bem escondido? Tem medo de nós? Teria
socrático e intui como este procure abraçar o embarcado? Cmigrou?" -, gritavam e riam em
mundo inteiro dos fenômenos, não sentirá ne­ grande confusão. O homem louco pulou no meio
nhum estímulo, capaz de impelir à existência, deles e os fulminou com seus olhares: "Para
mais violentamente do que aquele que não onde foi Deus?, gritou. Quero dizer-lhesl Fomos
sinta o anseio de realizar tal conquista e de te­ nós que o matamos-, vós e eu! Todos nós somos
cer a rede inpenetravelmente fechada. A quem seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como
está em tal disposição de espírito o Sócrates podemos esvaziar o mor bebendo-o até a última
platônico aparece então como o mestre de uma gota? Quem nos deu a esponjo para dissipar
forma totalmente nova da "serenidade grega" e todo o horizonte? Que faremos para desamarrar
da beatitude da existência, forma que procuro esta terra da corrente de seu sol? Onde é que
efundir-se em ações e encontrará esta efusão se move agora? Onde é que nos movemos?
mais em influências maiêuticas e educativos fora, totalmente sozinhos? O nosso não é um
exercidas sobre jovens nobres, com o objetivo eterno precipitar? C para trás, pelos lados, na
de por fim suscitar o gênio. frente, de todos os lados? Existe ainda um alto
Todavia, incitada por sua potente ilusão, a e um baixo? Não estamos talvez vagondo como
ciência corre agora sem trégua até seus limites, através de um nada infinito? Não sopra sobre
onde seu otimismo oculto na essência da lógica nós um espaço vazio? Não se tornou mais frio?
se encalha. Uma vez que a periferia do círculo da Não continua a vir noite, sempre mais noite?
ciência tem infinitos pontos, e enquanto não se Não devemos acender lanternas de manhã?
pode ainda de fato ver de que modo o círculo Não ouvimos nada do estrépito dos coveiros,
poderia ser completamente medido, também enquanto sepultam Deus? Não farejamos ain­
o homem nobre e de talento ainda antes de da o cheiro da divina putrefação? Também os
chegor ao meio de sua existência toca inevi­ deuses se decompõem! Deus está morto! Deus
tavelmente tais pontos de limite da periferia, continua morto! € nós o matamos! Como nos
onde se enrijece, fixando o olhar no inexpli­ consolaremos, nós, os assassinos de todos os
cável. Quando neste ponto vê com espanto assassinos? Tudo o que de mais sagrado e de
como a lógica nesses confins se enrola sobre mais poderoso o mundo possuía até hoje se
si mesma e por fim morde suo própria cauda, esvaiu em sangue sob nossos punhais; quem
então prorrompe a nova forma de conhecimen­ limpará de nós este sangue? Com qual água
to, o conhecimento trágico, o qual, para poder poderemos nos lavar? Quais ritos expiatórios,
ser apenas tolerado, tem necessidade da arte quais jogos sagrados deveremos inventar? Não
como proteção e como remédio. é demasiado grande, para nós, a grandeza des­
F. Nietzsche, ta ação? Não devemos nós mesmos nos tornar
deuses, para parecer ao menos dignos dela?
Jamais houve uma ação maior: todos aqueles
que virão depois de nós pertencerão, por causa
2 O anúncio desta ação, a uma história mais elevada do que
o foram todas as histórias até hoje!"
da morte de Deus Nesse momento o homem louco calou-se
e de novo dirigiu o olhar sobre seus ouvin­
tes: também eles calavam-se e o olhavam,
"Deus está morto! [...]€ nós o matamos! espantados, finalmente atirou no chão sua
[...] Jamais houve uma oçõo maior: todos lanterna, que se despedaçou e se apagou.
aqueles que virõo depois de nós pertence­ “Venho muito cedo - continuou - ainda não é
rão, p o r causa desta ação, a uma história meu tempo. Cste enorme acontecimento ainda
mais elevada do que o Foram todas as his­ está a caminho e fazendo seu caminho: ainda
tórias até hoje!" . não chegou até os ouvidos dos homens. Raio
e trovão requerem tempo, o luz das constela­
ções requer tempo, as ações requerem tempo,
Ouvistes falar daquele homem louco que mesmo depois de terem sido realizadas, para
acendeu uma lanterna à luz clara da manhã, que sejam vistas e ouvidas. Csta ação ainda
correu ao mercado e se pôs a gritar sem parar: está sempre mais distante dos homens do que
"Procuro Deus! Procuro Deus!" 6 como justamente as mais distantes constelações: todavia, foram
lá se encontravam reunidos muitos daqueles eles que a realizaram!' Conta-se também que o
que não acreditavam em Deus, provocou gran­ homem louco tenha irrompido, naquele mesmo
de riso: "Perdeu-se, talvez?", disse um deles. dia, em diversas igrejas e aí tenha entoado
, . . , 19
Cãpítulo primeiro - A J ie tz sc k e . F id e lid a d e à te r r a e tr a n s m u ta ç ã o d e to d o s o s v a lo r e s ____

seu Réquiem aeternam Deo. Tendo delas sido a si mesmo como aquele que determina o valor,
expulso 0 interrogado, dizem que limitou-se não tem necessidade de receber aprovação;
q responder invariav0lm0nt0 d0st0 modo: “O seu julgamento é "aquilo qu© 0 prejudicial a
qu© mois sõo estos igrejas, senão as covos 0 mim, é prejudicial ©m si mesmo", conh©c© a si
os sepulcros de Deus?" m©smo unicamente como aquele que confere
F. Nietzsche, dignidade às coisas, ele é criador de valores.
R gaia ciência. Honram tudo aquilo que sabem que pertence
a si: tal moral é autoglorificação. €m primeiro
plano encontra-s© o sentido da plenitude, do
poder qu® quer transbordar, a felicidade da
máximo tensão, a consciência de uma riqueza
3 A "moral dos senhores" que gostaria de dar 0 conceder: também o
e a "moral dos escravos" homem nobre presta socorro ao desventurado,
mas não ou quase não por piedade, e sim muito
mais por impulso gerado pela superabundância
"fí moro! aristocrático dos senhores é o de poder. O homem nobre honra em si mesmo
de todos os que dizem sim à Forço, à alegria, aquele que possui, e também aquele que sabe
à soúde. R moroI dos escravos é, 00 contrá­ falar e calar, qu© exerce com gosto severidade
rio, o moroI dos Fracos e dos mal-sucedidos, 0 dureza contra si mesmo e nutre veneração
dos ressentidos contra o saúde, a beleza, o por tudo o que é severo e duro. "Um duro co­
amor aos volores vitais. ração UJotan colocou em meu peito", se diz ©m
uma antiga saga escandinava: deste modo a
alma de um soberbo viquingue encontrou sua
Çxiste uma morol dos senhores e uma moral exata expressão poética. Tal tipo de homens é
dos escravos [...]. Fts diferenciações morais de soberbo justamente pelo fato de não ser feito
valor surgiram ou em meio a uma estirp© domi- para a piedade, razão pela qual o herói da
nant0, qu0 com um senso de bem-estar adquiria saga acrescenta, em tom de advertência: “quem
consciência do própria distinção em relação à não tem duro coração desde jovem, não 0 terá
dominada, ou então em meio aos dominados, jamais”. Nobres e valorosos que pensam deste
os escravos 0 os subordinados d© todo grau. modo estão muito distantes daquela moral que
No primeiro caso, quando são os domi­ vê precisamente na piedade ou no agir altruísta
nadores que d0t0rminom a noção de "bom", ou no désintéressement o elemento próprio da­
são os estados de ©lovação e de altivoz de quilo que é moral; a fé em si mesmos, 0 orgulho
alma que são percebidos como traço distintivo de si, uma inimizade radical e ironia para com o
0 qualificador da hiorarquia. O horrom nobre "desinteresse", ©stão compreendidos na moral
separa de si os indivíduos nos quais se exprime aristocrática, exatamente cio mesmo modo com
o contrário de tais estados de elevação e de que competem a ela um lev© desprezo e um
altivez: ele os despreza. Note-se logo que neste senso d© reserva diante dos sentimentos d©
primeiro tipo de moral o contraste "bem” e "mal" simpatia 0 de "calor do coração”. São os pod©-
tem o mesmo significado de “nobre" e "des­ rosos aqu©l0s qu© sobem atribuir honra, esta é
prezível"; o contraste entre "bom" e "mau" tem a arte deles, seu domínio inventivo, fl profunda
outra origem. 6 desprezado o vil, o medroso, o veneração pela idade avançada e pela tradi­
mesquinho, aquele qu© pensa em sua estreita ção - todo o direito repousa sobre esta dupla
utilidade; da mesmo formo o desanimado, com veneração -, a fé e a opinião preconcebida em
seu olhar servil, aquele que se torna abjeto, a favor dos antepassados e em desfavor pelos
espécie canina de homens que s© deixa mal­ pósteros são um elemento típico na moral dos
tratar, o m0ndicant© adulador 0 principalmente poderosos; e se, no oposto, os homens das
o mentiroso: é convicção fundamental de todos "idéias modernas" crêem, quase por instinto,
os aristocratas que o populacho seja mendaz. no "progresso" e no “futuro", e sempre estão
"Nós, os v0rdadeiros" - assim os nobres deno­ privados d© respeito pela idade vetusta, tudo
minavam-se na antigo Grécia, é fato evidente isso já é um indício suficiente da origem não no­
que as designações morais de valor sempre bre daquelas "idéias". Mas principalmente uma
foram em todo lugar primeiramente atribuídas a moral dos dominadores é estranha ao gosto
*homens, e apenas de modo derivado e sucessi­ dos contemporâneos e para eles desagradá­
vo a ações: motivo pelo qual é erro grave qu© vel pelo rigor de seu princípio, que há deveres
os historiadores da moral tomem como pontos unicamente para com os próprios semelhantes;
de partida problemas como “por que foi louvada que em relação aos indivíduos de posição in­
a ação piedosa?" O homem de tipo nobre sente ferior e de todos os estranhos seja lícito agir
Primeira parte - y\ filosofa do século X^X qo século XX

por própria conta ou "como quer o coração", 0 cos meios para suportar o peso da existência.
em todo caso "além do bem 0 do mal": é sob A moral dos escravos é essencialmente moral
©ste último asp0cto que pod0m ter seu lugar a utilitária. €is o lar em quo nasceu o famoso
compaixão ou outras coisas do gênero, fl capa­ contraste entre "bom" e "mau": no íntimo do
cidade 0 a obrigação de uma longa gratidão 0 mal percebem-se o poder e a periculosidade,
de uma longa vingança - as duos coisas estão certa terribilidade, fineza e força, que sufocam o
d©ntro da esfera dos próprios semelhantes desprezo nas raízes. Conforme a moral dos es­
a sutileza na represália, o refinamento da idéia cravos, o “mau" suscita portanto temor; segundo
de amizade, certa necessidade de ter inimigos a moral dos senhores é precisamente o bom que
(como canal d© d0fluxo, por assim dizer, paro suscita e quer suscitar temor, enquanto o homem
as paixões da inveja, do litígio, da insolência: "mau" é sentido como desprezível. O contraste
no fundo, para ser bons amigos): todas estas atinge seu ponto culminante quando, conside­
são caract0rísticas típicos da moral aristocrá­ rando as implicações da moral dos escravos,
tica, a qual, conforme acenei, não é o moral também sobre os "bons" desta moral acaba
das "idéias modernas", 0 é por isso qu© hoje por cair uma sombra desse desprezo - por
s0 torna difícil senti-la ainda, como também mais leve e benévolo que possa ser -, uma
d0S0nt0rrá-la ou descobri-la. vez quo o bom, no campo do modo de pensar
Rs coisas são diferentes no qu© se refere dos escravos, deve ser em todo caso o homem
ao segundo tipo de moral, a moral dos escra­ inócuo: este é bonachão, facilmente enganável,
vos. Uma v0z que os oprimidos, os despreza­ um pouco ©stúpido talvez, um ingênua. Gm todo
dos, os sofredores, os não livres, os inseguros e lugar em que a moral dos escravos se imponha,
cansados d e si próprios fazem moral, qual será a língua revela certa tendência de aproximar
o elemento homogêneo em suas estimativas d0 uma da outra os palavras "bom” e "estúpido".
valor? Provavelmente encontrará expressão uma Uma última diferença fundamental: o desejo
suspeita p0ssimista para com toda a condição de liberdade, o instinto dirigido à felicidade 0
humana, talv0z uma condenação do homem, às finezas do senso de liberdade pertencem
juntamente com sua condição. O escravo não tão necessariamente à moral e à moralidade
vê com bons olhos as virtudes dos pod0rosos: dos escravos, quanto a arte e o entusiasmo da
é céptico e desconfiado, tem a Fineza da des­ veneração, da dedicação, são o indício normal
confiança de tudo o qu0 de "bom" seja tido em de um modo aristocrático de pensar e de ava­
honra no meio deles, gostaria de estar persua­ liar. fi partir disso é sem dúvida compreensível
dido de que entre eles o própria felicidade a razão de o amor como paixão - é a nosso
não é genuína. No oposto, são evidenciadas especialidade européia - s©r absolutamente
e inundados de luz as quolidad0s qu© S0rvem de origem nobre: sabe-se que sua descoberta
poro aliviar a existência dos sofredores: são, cabe aos poetas cavaleiros provençais, àque­
n0st0 caso, a piedade, a mão que se compraz les esplêndidos engenhosos homens do “gaio
e socorre, o calor do coração, a paciência, a saber" ao qual a Curopa deve tantas coisas, e
operosidade, a humildade, o gentileza que são quase que totalmente a si mesma.
colocados em honra, uma vez que são estas, F. Nietzsche,
agora, as qualidades mais úteis 0 quase os úni­ Poro olém do bem e do mol.
C a p ítu lo s e g u n d o

O neocH+icismo.
yA Ê sco la de ]\/\c\Á ? ía^q o
e a Ê sco la de Baderv

I. (g ê n e s e , fm a lid a d e
e ceKvfros d e e la b o r a ç ã o d o Kveocn+icismo

• Uma retomada sistemática da filosofia de Kant teve lugar


Neocriticismo:
na Alemanha a partir da segunda metade do século XIX. Tal re­ análise
tom ada partiu e se desenvolveu como reflexão sobre os métodos, das condições
os fundamentos e os limites da ciência, para depois se estender de validade
a outras atividades humanas como a moral, o mito, a religião, a da ciência,
arte e a linguagem. Distante da metafísica, tanto a espiritualista da moral,
como a idealista, crítico do fetichismo positivista do "fato" e do da arte
cientismo, o neocriticismo pretendeu repropor uma filosofia em e da religião
termos rigorosamente kantianos, ou seja, como análise das con­ 7
dições de validade da ciência e de outros produtos humanos (a
moral, a arte e a religião).

• Trabalhos de inspiração kantiana foram os de O tto Liebmann (1840-1912)


e os do grande pesquisador Hermann Helmholtz (1821-1894). Neokantianos apa­
recerão na Inglaterra (Shadworth H. Hodgson, George D. Hicks),
na Itália (Carlos Cantoni, FélixTocco, Francisco Fiorentino e Tiago O neokantismo:
Barzellotti) e na França (Charles Renouvier, Otávio Hamelin e Léon fenômeno
Brunschvicg). Todavia, os centros mais importantes de elaboração europeu
do neocriticismo foram de um lado Marburgo, com Hermann Co- -»§ 1
hen, Paul Natorp e seu discípulo Ernst Cassirer (do qual falaremos
à parte); e, do outro, Heidelberg e Friburgo - duas cidades situadas na região do
Baden (e daí a Escola de Baden) com W ilhelm Windelband e Heinrich Rickert.

• Hermann Cohen (1842-1918), contrário à concepção positi­ Cohen


vista, afirma em A teoria de Kant da experiência pura (1871) que e a filosofia
a ciência não é um acúmulo de sensações ou de fatos observados, como análise
que o fundam ento da objetividade da ciência está no a priori, e dos elementos
que a filosofia tem como tarefa a pesquisa dos elementos puros, a priori da ciência
isto é, a priori, do conhecimento científico. -->§2.1

• Em Os fundamentos lógicos das ciências exatas (1910) Paul


Natorp:
Natorp (1854-1924), estudando não tanto a atividade psíquica do o objeto do
cognoscente e sim mais os conteúdos do conhecimento, afirma conhecimento
que o conhecimento é síntese que deve ser submetida a contínua é um p on to
análise, onde se revêem e corrigem os conhecimentos preceden­ de chegada
tes, de modo a aperfeiçoar sempre mais as determinações dos que sempre
objetos. O objeto, no conhecimento científico, não é um dado, não se desloca
é um ponto de partida, mas um ponto de chegada que sempre se — > § 2.2
Primeira parte - .A filo sofia d o s é c u lo X ^ 7X s é c u lo X X

desloca. O obiectum é um proiectum: é conhecimento sempre mais determinado


que se projeta sobre a realidade.

• A "volta a Kant" significa para Wilhelm Windelband (1848­


W indelband
e a filosofia
1915) que a filosofia é análise dos princípios a priori; contudo, na
como análise sua opinião, tal tipo de análise se estende também à moralidade e
dos princípios à arte, e tais princípios a priori devem ser tipificados como valores
a priori universais e necessários, de natureza normativa: é com o valor da
necessários verdade que se confrontam os juízos científicos, é o valor do bem
e universais aquilo com que se avalia se o agir humano tem validade universal
da pesquisa, e necessária, é o valor da beleza aquilo com que julgamos se uma
da m oral obra de arte possui ou não validade universal e necessária. Os dois
e da arte volumes dos Prelúdios são de 1884; História da filosofia moderna,
-->§3.1
também em dois volumes, é dos anos 1878-1880.

• Por sua vez, Heinrich Rickert (1863-1936) é da opinião que conhecer é julgar,
isto é, aceitar ou rejeitar, o que pressupõe o reconhecimento de um valor, de um
dever ser que aparece como fundam ento do conhecimento. Sem esta norma, isto
é, sem este valor ou.dever ser, estaríamos na impossibilidade de
Rickert: form ular qualquer juízo, até o juízo que nega. Rickert aqui está
o sujeito falando do valor da verdade. Quando se julga, "o juízo que eu
cognoscente formulo, embora verse sobre representações que vêm e vão, tem
é o "sujeito um valor duradouro, pois não poderia ser diverso daquilo que é".
transcendental" No momento em que se julga, pressupõe-se algo que vale eter-
^ 3.2 namente. Eis, portanto, que enquanto para Dilthey o sujeito que
conhece‘é um ser histórico, para Rickert o que deve ser julgado
é o sujeito transcendental, a consciência em geral. E esta "consciência em geral"
não é apenas lógica, mas também ética e estética.

O n a sc im e n to Para o neocriticismo a filosofia deve


voltar a ser o que era com Kant: análise das
d o n e o c r itic ism o
condições de validade da ciência e dos outros
produtos humanos, como a moral, a arte ou
a religião. Disso torna-se clara a razão pela
A partir da metade do século X IX assis­ qual os neokantianos propõem uma filosofia
tiu-se, sobretudo na Alemanha, à retomada dominada por problemas gnosiológicos ao
sistemática da filosofia kantiana, no sentido invés de problemas empírico-factuais ou
preciso de reflexão sobre os fundamentos, os metafísicos.
métodos e os limites da ciência. E, posterior­ N a verdade, inclusive no período de
mente, essa retomada levaria à ampliação hegemonia do idealismo, a tradição kantia­
dos âmbitos de exercício da reflexão crítica, na nunca havia desaparecido inteiramente
que não se limitariam mais ao campo da na Alemanha. Entretanto, em 1865, Otto
ciência, mas abrangeriam também outros Liebmann (1840-1912) publicou um livro,
produtos da atividade hum ana, como a Kant e os epígonos, onde examinava as
história e a moral e, depois, a arte, o mito, quatro orientações da filosofia alemã pós-
a religião, a linguagem. kantiana (o idealismo de Fichte, Schelling e
Da mesma forma que o espiritualismo, Hegel; o realismo de Herbart; o empirismo
o criticismo pretende combater o fetichismo de Fries; as concepções de Schopenhauer) e,
positivista do “ fato” e a idéia da ciência ao término da análise de cada uma dessas
metafisicamente absoluta. Entretanto, o neo- orientações, concluía com o lema: “ Deve­
criticismo é contrário a qualquer metafísica, mos, portanto, retornar a Kant” .
tanto de tipo espiritualista como idealista. E, Por sua própria conta, já retornara a
igualmente, é avesso a toda redução da filo­ Kant o grande cientista Hermann Helmholtz
sofia à ciência empírica (trate-se da fisiologia (1821-1894), que, com base em estudos de
ou da psicologia), à teologia ou à metafísica. fisiologia e de física (Sobre a vista humana,
'
Capítulo segundo - O neocritici sm o . E s c o l a d e ^/\arbur 0 o e a E s c o l a d e 13 a d e n
23

(como a da filosofia de Simmel e, depois, do


marxismo). M as, antes de Banfi, já haviam
■ N eocriticism o (ou n eokan tism o ). retornado a Kant também Carlos Cantoni
Com neocriticismo ou neokantismo (1840-1906) e Félix Tocco (1845-1911),
entende-se "a volta a Kant" da fi­ além de Francisco Fiorentino (1834-1884)
losofia alemã - e não apenas alemã e Tiago Barzellotti (1844-1917).
- por volta da metade do século XIX. Foi notável e influente a presença
Tal "volta a Kant" implica uma crítica do neocriticismo na França. Aqui basta
decisiva tanto do positivismo como
mencionar Carlos Renouvier (1815-1903),
do idealismo e uma reabilitação da
tarefa da filosofia já fixada por Kant, para quem o único fim da filosofia está no
tarefa que consiste na análise das estabelecimento de leis gerais e dos limites
condições de validade da ciência e do conhecimento; Otávio Hamelin (1856­
dos outros produtos humanos como 1907); e Léon Brunschvicg (1869-1941),
a moral, a arte, a religião. que, na obra O idealismo contemporâneo
O neokantismo é um movimento (1905), fez questão de sustentar que não
de pensamento que se orientou em cabe à filosofia aumentar a quantidade do
mais de uma direção. Eis como Nicola saber, já que a filosofia nada mais faz do
Abbagnano delineia os traços comuns
que refletir sobre a qualidade do saber. E
das correntes do neocriticismo:
" 1. A negação da metafísica e a redu­ como o saber humano está em contínuo
ção da filosofia a uma reflexão sobre desenvolvimento histórico, então, afirma
a ciência, isto é, a uma teoria do Brunschvicg, a história do saber humano é
conhecimento; “ o laboratório da filosofia” .
2. a distinção entre o aspecto psico­
lógico e o aspecto lógico-objetivo do
conhecimento [...];
3. a tentativa de remontar das estru­ y \ Escola de ]S/\a.À?i r g c
turas da ciência, tanto a da natureza
como a do espírito, para as estruturas
do sujeito que a tornariam possível".
EDI ■Hecmann a filosofia crítica
co m o m e to d o lo g ia d a c iê n c ia

O fundador reconhecido da Escola


de M arburgo foi Hermann Cohen (1842­
1855; D outrina das sensações sonoras, 1918), professor em Marburgo e autor, entre
1863; Os fatos da percepção, 1879), chega­ outros, dos seguintes trabalhos: A teoria de
ra à tese segundo a qual nossa estrutura fisio- Kant da experiência pura (1871), O funda­
psíquica é uma espécie de a priori kantiano. mento da ética kantiana (1871), A influência
Também chegaram autonomamente de Kant sobre a cultura alemã (1883) e O
ao criticismo Friedrich Albert Lange (1828­ fundamento da estética kantiana (1889).
1875), autor de História do materialismo A ciência e, mais precisamente, a física
(1866), e Alois Riehl (1844-1924), autor de matemática, assume papel de máxima im­
O criticismo filosófico e seu significado para portância na concepção de Cohen. Cohen
a ciência positiva (1876-1887). aceita a ciência como válida e concebe a
Os dois centros de elaboração do neo­ filosofia exatamente como o estudo das
criticismo foram M arburgo, com Cohen e condições de validade da ciência.
N atorp, aos quais se liga Cassirer, e Heidel- Ora, o positivismo tinha visto o valor da
berg, com Windelband e Rickert. ciência no fato sagrado, absoluto e intocável;
Entretanto, embora tenha alcançado para o positivista, em suma, objetivo é o fato,
na Alemanha seus resultados mais significa­ objetiva é a sensação, isto é, o a posteriori.
tivos, o neocriticismo não foi uma filosofia Cohen retorna a Kant, invertendo a concep­
apenas alemã. ção positivista. Como escreve ele em A teoria
N a Inglaterra o neokantismo foi de­ de Kant da experiência pura, o fundamento
senvolvido por S. H. Hodgson (1832-1912), da objetividade da ciência está no a priori.
Robert Adamson (1852-1902) e George D. Com efeito, a ciência não é e não se desen­
Hicks (1862-1941). volveu como caos de percepções, nem é acú­
N a Itália foi Antônio Banfi (1886­ mulo de sensações ou de fatos observados.
1957) quem adotou as teses do neocriti­ A realidade é que a ciência não se cons­
cismo, juntamente com outras instâncias tituiu tanto pela acumulação de fatos, e sim
Primeira parte - ;A filo sofia d o s é c u lo X^X q ° s é c u lo XX

muito mais pela unificação dos fatos por e Friburgo, cidades situadas na região de
meio de e sob hipóteses, leis e teorias. M as Baden) foram Wilhelm Windelband (1848­
nós não extraímos leis e teorias dos fatos, 1915) e Heinrich Rickert (1863-1936), de
e sim as impomos aos fatos: a teoria é o a quem falaremos também no capítulo sobre
priori. E a filosofia indaga exatamente os o historicismo, no que se refere às suas re­
elementos “ puros” , ou seja, os elementos flexões sobre a fundação da historiografia
a priori, do conhecimento científico. A como ciência. Aqui, falaremos a propósito
filosofia, portanto, deve ser metodologia de sua filosofia dos valores, que, embora
da ciência. os tornando expoentes de primeiro plano
do neocriticismo, os diferencia, porém, da
Escola de M arburgo.
W SM P a wl /SJatorp: "o m étod o é tu d o ”
Em seu “ retorno a Kant” , Windelband
certamente atribui à filosofia a função de
O outro prestigioso representante buscar os princípios a priori que garantem
da Escola de M arburgo é Paul N atorp a validade do conhecimento. Entretanto,
(1 8 5 4 -1 9 2 4 ), estu d io so de am plos in ­ são duas as coisas novas que ele introduz
teresses, autor de A doutrina platônica nessa questão:
das idéias (1 9 0 3 ), de O s fundam entos a) por um lado, esses princípios são
lógicos das ciências exatas (1910) e tam ­ interpretados como valores necessários e
bém de escritos de pedagogia, psicologia universais, tipificados pelo caráter norma­
e política, como G uerra e paz (1916) e tivo independente de sua realização efetiva;
A m issão m undial dos alem ães (1918). b) por outro lado, diferentemente da
A exemplo de Cohen, N atorp afirma Escola de M arburgo, Windelband se liber­
que a filosofia não é ciência das coisas; das ta da referência privilegiada ao âmbito do
coisas falam precisamente as ciências, ao pas­ conhecimento para considerar a atividade
so que a filosofia é teoria do conhecimento. humana também nos campos da moralidade
Entretanto, a filosofia não estuda o e da arte.
pensamento subjetivo, ou seja, ela não inda­ Portanto, a filosofia não tem por objeto
ga sobre a atividade cognoscente, sobre uma os juízos de fato, mas Beurteilungen, isto
atividade psíquica, e sim sobre conteúdos. é, juízos valorativos do tipo “ esta coisa é
E estes são determinações progressivas do verdadeira” , “ esta coisa é boa” , “ esta coisa
objeto. Em O s fundamentos lógicos das é bela” . E é assim que os valores — que têm
ciências exatas, podemos ler que o conhe­ precisamente validade normativa — distin-
cimento é síntese e a análise consiste no guem-se das leis naturais: a validade das leis
controle das sínteses já efetuadas. Sínteses naturais é a validade do Müssen, a validade
que devem ser submetidas a reelaboração empírica de não poder ser de outro modo-, a
contínua, de modo a aperfeiçoar sempre validade das normas ou valores é a do Sol-
mais as determinações dos objetos. Por isso, len, isto é, do dever ser. Concluindo, deve-se
o objeto não é um dado, não é um ponto dizer, portanto, que, para Windelband, a
de partida, mas um ponto de chegada que filosofia consiste na teoria de valores; que
sempre se desloca. a função da filosofia, mais especificamente,
Em suma, o obiectum é um proiectum: está em estabelecer quais são os valores
é conhecimento sempre mais determinado que estão na base do conhecimento, da
que se projeta sobre a realidade. E não há moralidade e da arte; que a teoria do conhe­
termo para essa determinação; portanto, o cimento, para além da concepção de alguns
objeto está sempre in fieri, é tarefa infinita. neokantianos de Marburgo, é apenas uma
parte da teoria dos valores.

;A éEscola d e B a d e n
M SB -Heinrick R ic k e rt:
c o n k e c e r é ju lg a r com b a s e
n o v a lo r d e v e r d a d e
W ilk e lm W in d e lb a n d
e a filo so fia co m o te o ria d o s v a lo re s Rickert retoma de Windelband a con­
cepção da filosofia como teoria dos valores
Os representantes mais prestigiosos da e, ao mesmo tempo, os resultados mais
Escola de Baden (assim chamada porque válidos de sua investigação metodológica.
teve seus pontos centrais em Heidelberg Entretanto, ele tenta sistematizar resulta­
Capitulo S C g U n d o “ (D r\eocn+icismo. y\ E s c o l a d e A A arbu^go e a E s c o l a d e 3 a d e ^

dos semelhantes em concepção orgânica da dicionamento de espaço e de tempo; é a cons­


teoria do conhecimento e procura fundar ciência em geral (Bewusstsein überhaupt); e
(ao invés de, mais ou menos simplesmente, essa “ consciência em geral” não é somen­
registrar) a autonom ia do conhecimento te lógica, m as tam bém ética e estética.
histórico. Desse modo, sendo os valores transcen­
Conhecer quer dizer julgar, isto é, acei­ dentes as consciências individuais e sendo
tar ou rejeitar, aprovar ou reprovar, o que o sujeito do conhecimento entendido como
implica o reconhecimento de um dever ser sujeito transcendental, é óbvio que as in­
que está na base do conhecimento. Negar vestigações de Rickert, diferentemente das
o dever ser, isto é, a norma, eqüivaleria a de M ax Weber, se colocam em um plano
ratificar a impossibilidade de qualquer juízo, que abstrai completamente as condições e
inclusive daquele que nega. os problemas efetivos dos processos de pes­
Um juízo não é verdadeiro porque quisa, sejam estes científicos ou históricos.
expressa aquilo que é; pode-se afirmar, ao Segundo Rickert, a filosofia não tem em
invés, que algo é somente se o juízo que o absoluto a função de se interessar por tais
expressa é verdadeiro por força do seu dever problemas; ela deve muito mais cumprir a
ser. E o dever ser, isto é, os valores, ou seja, função de estabelecer de que modo as ciên­
as normas, são transcendentes em relação a cias generalizantes e as individualizantes
cada simples consciência empírica. Para Dil- encontram a garantia de sua validade uni­
they, o sujeito do conhecer é o homem como versal e necessária, tendo em vista os valores
ser histórico. Já para Rickert é o sujeito que constituem seus princípios a priori e o
transcendental, para além de qualquer con­ fundamento.

Vista de Heidelberg, em uma estampa do século X IX .


Esta cidade, junto com Eriburgo,
foi centro cultural de primeiríssimo plano
e sede da Escola do Baden.
Primeira parte - A ■filosofia d o s é c u lo X ^ X a o s é c u lo X X

' II. íz^mst C a ssir e r '


e a filosofia d a s fo rm a s sim bólicas

• Discípulo de Cohen e Natorp em Marburgo, Ernst Cassirer (1874-1945) pri­


meiro foi professor em Berlim e depois em Marburgo. Obrigado a emigrar em
1933, foi primeiro para a Inglaterra, depois para a Suécia e por fim para os Esta­
dos Unidos, onde ensinou na Universidade de Yale e a seguir na
As ciências Universidade de Colúmbia. É autor de famosas obras históricas
buscam (entre as quais O problema do conhecimento na filosofia e na
relações ciência da era moderna, em quatro volumes) e teóricas (entre as
funcionais quais A filosofia das formas simbólicas, em três volumes: 1923,
e não 1925, 1929; e o Ensaio sobre o homem, 1944).
substâncias
Em 1910 Cassirer publicou O conceito de substância e o con­
-»S 1 ceito de função, onde, com rara competência, ele mostra que o
desenvolvimento do pensamento científico nos obriga a passar
do conceito de substância para o conceito de função: as ciências progrediram
justamente porque deixaram de buscar substâncias e se dirigiram à pesquisa de
leis, de relações funcionais.

• Cassirer submeteu à análise filosófica não só a ciência, más


As "formas
também as formas fundamentais da compreensão do mundo, que
simbólicas" são "formações simbólicas", como o mito, a arte, a linguagem.
são formas Estas formas simbólicas "dão forma e sentido", ou seja, organizam
da compreensão a experiência, constituem modos de ver o mundo, criam mundos
do mundo de significados. A aparição do sistema simbólico transformou toda
-> § 2 a situação existencial do homem: o homem doravante vive não só
em uma realidade mais vasta, mas até em "uma nova dimensão
da realidade".

• O homem, com efeito, com sua atividade simbólica "superou os limites da


vida orgânica". Os animais têm sinais; o homem produz símbolos. Ele "não vive
mais em um universo apenas físico, mas em um universo simbólico. A linguagem,
o mito, a arte e a religião são parte deste universo". É um dado de fato que "o
homem não se encontra mais diretamente diante da realidade; por assim dizer,
ele não pode mais vê-la face a face. A realidade física parece re­
D efin ir troceder à medida que a atividade simbólica do homem avança".
o homem Eis, então, que o homem deve ser definido não mais como animal
como animal rationale e sim como animal symbolicum. Sem dúvida, esclarece
rationale Cassirer, a definição de homem como animal rationale "mantém
eqüivale seu valor"; contudo, ela pretende trocar a parte pelo todo. Em
a trocar a parte poucas palavras: a "razão" é um term o pouco adequado "se
pelo todo
-^§3
quisermos abraçar em toda a sua riqueza e variedade as formas
da vida cultural do homem".

S u b s t â n c ia e. f u n ç ã o como livre-docente e, depois, em Hambur­


go. Em 1933, forçado a emigrar, vai primei­
ro para a Inglaterra, depois para a Suécia,
Ernst Cassirer (1874-1945) nasceu em e finalmente para os Estados Unidos, onde
Breslau, de família judaica de boas condi­ ensinou na Universidade Yale e, em seguida,
ções. Estudou filosofia sob a guia de Cohen e na Universidade de Colúmbia. Interessado
Natorp. De 1906 a 1919 ensinou em Berlim pela história das idéias filosóficas, que vê en­
Capitulo SegUfldo - O n eocriticism o. y\ íS s c o la d e A A a rb u rgo e a E s c o l a d e S a d e n

trelaçadas com as idéias científicas, Cassirer lam os objetos do conhecimento científico


é autor de obras famosas, como O problema (e do conhecimento comum) são produtos
do conhecimento na filosofia e na ciência da do pensamento, que tornam “ possível a
época moderna (vols. I e II, 1906-1907; vol. priori" o conhecimento, estabelecendo suas
III, 1920; vol. IV, 1940, publicado postuma­ condições de possibilidade. E o fato de que
mente), Indivíduo e cosmo da Renascença a ciência consiste em teorias ou relações
(1927), A filosofia do Iluminismo (1932). construídas pelo homem e que os objetos da
E a consciência histórica acompanhará sem­ ciência sejam instituídos por esses pontos
pre até as obras mais caracteristicamente de vista, por essas teorias, não significa de
teóricas de Cassirer: “ O uso [...] de pôr modo algum cair no subjetivismo. Escreve
[...] no vazio os próprios pensamentos, sem Cassirer: “ N ós não conhecemos os objetos,
pesquisar sua relação e sua conexão com o como se eles fossem dados e determinados
trabalho de conjunto das ciências filosóficas, como objetos, antes e independentemente
nunca me pareceu oportuno e fecundo” . En­ de nosso conhecimento. Ao contrário, nós
tre as obras de natureza teórica de Cassirer, conhecemos objetivamente, já que, no trans­
podemos recordar: O conceito de substância correr uniforme dos conteúdos da expe­
e o conceito de função (1910); A filosofia riência, criamos determinadas delimitações
das formas simbólicas (3 vols., 1923-1925­ e estabelecemos determinados elementos
1929); A teoria einsteniana da relatividade duráveis e determ inadas ligações entre
(1921); Determinismo e indeterminismo eles” .
na física moderna (1937); Ensaio sobre o
homem (1944).
Em 1910, portanto, Cassirer publica
O conceito de substância e o conceito de
função. Nesse trabalho, através de seguro
domínio da história da ciência, ele realiza
uma investigação sobre o conhecimento
matemático, geométrico, físico e químico,
a fim de mostrar que esses conhecimentos
não buscam a substância, e sim a lei, a re­
lação, isto é, a função. Relações e funções
instituem os entes matemáticos e constituem
as expressões geométricas. N o conhecimen­
to científico e também no conhecimento
comum encontramos muito mais do que
dados sensíveis. Olhamos as coisas atra­
vés de pontos de vista, teorias, leis, isto é,
relações. Em suma, o desenvolvimento do
pensamento científico nos leva a passar do
conceito de substância ao de função. A me­
tafísica de Aristóteles falava de um mundo
de coisas das quais era preciso abstrair as
características comuns, a essência. M as,
por um lado, enquanto esse método levou a
toda uma massa de resultados estéreis (entre
outras coisas, não há garantia alguma de
que o comum seja o essencial), por outro
lado, viu-se que as ciências progrediram
porque se matematizaram (na matemática
não entra o conceito de substância, mas o
de função); progrediram porque deixaram
de buscar substâncias e voltaram-se para a Ernst Cassirer (1874-1945)
é um dos mais representativos pensadores
busca de relações funcionais entre os obje­
do neokantismo, historiador penetrante
tos. E assim como as funções matemáticas do pensamento moderno,
não se obtêm por abstração, mas são cons­ autor justamente famoso
truídas pelo pensamento, da mesma forma de A filosofia das formas simbólicas.
também os pontos de vista, as teorias ou E dele a definição do homem
relações funcionais que instituem e vincu­ como animal symbolicum.
Primeira parte - y\ f ilo s o f ia d o sé.c-iA loXJX a o sécLA loXX

2 ;A filosofia O homem é animal symbolicum. Com


a sua atividade simbólica, ele superou “ os
das formas simbólicas limites da vida orgânica” . E agora “ não
se pode fazer nada contra essa subversão
da ordem natural. O homem não pode se
Cassirer não submeteu à análise filo­ subtrair às condições de existência que ele
sófica somente as ciências. Indo além dos próprio criou: deve se conformar a elas.
marcos das “ duas culturas” , ele também N ão vive m ais em um universo apenas
pretendeu, com A filosofia das formas sim­ físico, e sim em um universo simbólico. A
bólicas, “ delimitar as diversas formas funda­ linguagem, o mito, a arte e a religião são
mentais da ‘compreensão’ do mundo umas partes integrantes desse universo, são os
em relação às outras, e captar cada uma delas fios que constituem o tecido simbólico, a
o mais claramente possível em sua tendência intricada tram a da experiência humana.
peculiar e em sua forma espiritual peculiar” . Todo progresso no campo do pensamento e
Essas formas fundamentais de “ com­ da experiência fortalece e refina essa rede” .
preensão” do mundo são “ formações sim­ De fato, afirma Cassirer, está fora de qual­
bólicas” como o mito, a arte, a linguagem quer dúvida que “ o homem não se encontra
ou também o conhecimento. Somos nós que mais diretamente diante da realidade; por
plasmamos o mundo com nossa atividade assim dizer, ele não pode mais vê-la face a
simbólica, criando e fazendo mundos de ex­ face. A realidade física parece retroceder à
periências: “ o mito e a arte, a linguagem e a medida que a atividade simbólica do homem
ciência são [...] sinais que tendem a realizar avança. Ao invés de se defrontar com as
o ser” , direções da vida humana, formas próprias coisas, em certo sentido o homem
típicas da ação humana. E uma filosofia do está continuamente em colóquio consigo
homem, escreve Cassirer, deveria ser “ filo­ mesmo. Cercou-se de formas lingüísticas,
sofia que faça conhecer a fundo a estrutura de imagens artísticas, de símbolos míticos e
fundamental de cada uma dessas atividades de ritos religiosos a tal ponto que não pode
humanas e que, nesse meio tempo, faça por mais ver e conhecer nada senão por meio
onde entendê-las como um todo orgânico” . dessa mediação artificial” . E a situação é a
As formas simbólicas — isto é, a linguagem, mesma no campo teórico e no campo prá­
a arte, o mito e a ciência — “ dão forma e tico. Também no campo prático o homem
sentido” , vale dizer, estruturam o modo de não vive em um mundo de puros fatos; ele
ver o mundo, criam mundos de significados, vive muito mais “ entre emoções suscitadas
organizam a experiência. Com efeito, “ in­ pela imaginação, entre medos e esperanças,
serido entre o sistema receptivo e o sistema entre ilusões e desilusões, entre fantasias e
relativo (encontráveis em todas as espécies sonhos. Como disse Epicteto, ‘aquilo que
anim ais), existe no homem um terceiro perturba e agita o homem não são as coisas,
sistema, que se pode chamar de sistema sim­ e sim suas opiniões e fantasias em torno das
bólico, cujo aparecimento transforma toda coisas’
a sua situação existencial. Confrontado com
os animais, observa-se que o homem não
somente vive em uma realidade mais vasta,
mas também, por assim dizer, em uma nova T^nimal ra+ionale”
dimensão da realidade” . O homem é animal
cultural, diriam os etólogos. E Cassirer o cha­ e^animal symbolicumA
ma de “ animal symbolicum” . Os animais
têm sinais, o homem produz símbolos. “ A
diferença entre linguagem proposicional e Chegando a esse ponto, Cassirer é da
linguagem emotiva constitui o verdadeiro opinião de que se pode e se deve corrigir
limite entre o mundo humano e o mundo a definição tradicional de homem. N a ­
anim al” . E o nascim ento da linguagem turalmente, a definição de homem como
descritiva ou proposicional que desencadeia animal rationale “ mantém seu valor” , não
o desenvolvimento da “ cultura” , isto é, da obstante pretenda ela trocar a parte pelo
“ civilização” . Com efeito, escreve Cassirer, todo, “ pois, além da linguagem conceituai,
“ é inegável que o pensamento e o compor­ existe uma linguagem do sentimento e das
tamento simbólicos são os aspectos mais emoções; além da linguagem lógica e cien­
característicos da vida humana e que todo o tífica, existe a linguagem da imaginação
progresso da cultura baseou-se neles” . poética. A linguagem não expressa somente
Capitulo segundo - CD neocH+icismo.tSscol a de AAarLmrgo e a £scola de 13aden

pensamentos e idéias, mas, em primeiro lu­


gar, sentimentos e afetos” . Os filósofos que
definiram o homem como animal rationale
■ F ilo so fia das fo rm a s sim bólicas.
não eram empiristas, observa Cassirer, e Eis como Cassirer, no Ensaio sobre o
não pretenderam “ dar explicação empírica hom em , esclarece a tarefa de uma
da natureza humana. Com essa definição, filosofia das formas simbólicas. |
eles propuseram muito mais um imperativo "A característica principal do homem,
m oral” . Em suma, a razão é termo pouco aquilo que o distingue, não é sua
adequado se quisermos abraçar em toda a natureza física ou metafísica, e sim |
sua riqueza e variedade as formas da vida sua obra. É essa obra, isto é, o sistema |
cultural do homem. “ Essas formas são es­ das atividades humanas, que decifra e I
sencialmente formas simbólicas. Ao invés determina a esfera da humanidade". I
A linguagem, o mito, a religião, a arte
de definir o homem como animal rationale, e a história são os elementos constitu­
dever-se-ia, portanto, defini-lo como animal tivos dessa esfera, os setores que ela
symbolicum. Desse m odo, indicar-se-á o compreende. Assim, uma "filosofia
que verdadeiramente o caracteriza e o que do homem" deveria ser uma filosofia
o diferencia em relação a todas as outras que faça conhecer a fundo a estrutu­
espécies, podendo-se entender o caminho ra fundamental de cada uma destas
especial que o homem tomou: o caminho atividades humanas e que ao mesmo
para a civilização” . N esse caminho, na tempo "forneça o modo de entendê-
opinião de Cassirer, a ciência corresponde à las como um todo orgânico".
Nas formas simbólicas - linguagem,
última fase do desenvolvimento intelectual
arte, religião, ciência - "o homem
do homem, “ podendo ser considerada como descobre e demonstra um novo po­
a mais elevada e significativa conquista da der, o poder de construir um mundo
cultura. E produto muito raro e refinado, próprio, um mundo 'ideal'
que só pôde tom ar form a em condições Nas formas simbólicas a análise filo­
especiais” . O trabalho científico de Galileu sófica é chamada a descobrir o homem:
e Newton, de Maxwell e Helmholtz, de Plan- "pelos seus produtos o reconhecereis".
ck e Einstein, não consistiu em simples coleta
de fatos: “ foi trabalho teórico, mas cons­
trutivo” , fruto daquela “ espontaneidade e
produtividade que estão verdadeiramente
no centro de todas as atividades humanas” .
Com a linguagem, a religião e a ciência, o
homem construiu o próprio universo, uni­ a multiplicidade, a variedade e a peculiari­
verso simbólico que o põe em condições dade estrutural de cada forma simbólica, a
de compreender e interpretar, de articular filosofia, diz Cassirer, não pode renunciar à
e organizar, de sintetizar e universalizar busca da unidade fundamental desse mundo
sua experiência. E desse modo, na cultura ideal. “ Todas as funções se completam e se
tomada em seu conjunto, “ pode-se observar integram mutuamente. Cada uma descerra
o processo da autolibertação progressiva do novo horizonte e mostra novo aspecto da
homem. A linguagem, a arte, a religião e a humanidade. O dissonante está em har­
ciência são fases desse processo. Em todas monia consigo mesmo; os contrários não
elas, o homem descobre e demonstra novo se excluem reciprocamente, mas dependem
poder, o poder de construir um mundo um do outro; é a ‘harmonia no contraste,
próprio, um mundo ‘ideal’ ” . Sem esconder como no plectro e na lira
I*Y ÍtT ie ÍT (l p U T t C - ;A filo sofia d o s é c u lo ^CITX cxo s é c u lo .X X

os animais percebe-se que o homem não só vive


em uma realidade mais vasta, mas também, por
C a s s ir e r assim dizer, em uma nova dimensão da reali­
dade. Cxiste uma diferença evidente entre as
reações orgânicas e as respostas humanas. No
primeiro caso o estímulo externo provoca uma
D éO um
homem
"animal simbólico"
resposta direta e imediata, no segundo caso a
resposta é deferida. 0 a é retida e retardada
depois de lento e complexo processo mental. A
primeira vista esta dilação das reações poderia
parecer uma vantagem bastante discutível. Com
"6/7? vez de definir o homem como um efeito, muitos filósofos aconselharam o homem
animal rationale dever-se-io [...] defini-lo a desconfiar de tal pretenso progresso: "O
como um animal symbolicum". homem que medito - disse Rousseau - é um
homem depravado'-, a superação dos limites
da vida orgânica levaria não à melhoria, e sim
Para 0I0 [o biólogo Johannes von Uexküll] à deterioração da natureza humana.
a vida é p0rf0ita em todo lugar; é a rrosma tanto Todavia, não se pode fazer nada contra
no p0qu0no como no grand0. Todo organismo, esta inversão da ordem natural. O homem não
compr00ndendo aqu 0 l0 5 que se encontram na podo mais s© subtrair às condições de exis­
extremidade inferior da escala biológica, não tência que ele próprio criou para si; deve se
só 0, 0m s0nso lato, adaptado (angepasst) a conformar a elas. Não vive mais em um universo
s0u ambiente, mas encontra-se também orga­ apenas físico, mas em um universo simbólico. R
nicamente nele inserido (eingepasst). Conforme linguagem, o mito, a arte e a religião são parte
sua estrutura anatômica particular 0I0 possui um deste universo, são os fios que constituem o
Merhnetz 0 um UJirknetz, ou seja, um sistema tecido simbólico, a emaranhada trama da ex­
r0C0ptivo 0 certo sistema qu© Ih0 permite agir. periência humana. Todo progresso no campo do
Sem o acordo 0 a cooperação dest0s dois pensamento e da experiência reforça e refina
sist0mas o organismo não pod0ria sobreviver. essa rede. O homem não se encontra mais
Cm todo caso, em dada espécie biológica o diretamente diante da realidade; por assim
sistema receptivo que transmite os estímulos dizer, ele não pode mais vê-la face a face. R
externos 0 o sistema qu© p0rmite reagir a tais realidade física parece retroced0r à medida qu©
estímulos estão intimamente ligados. São anéis a atividad© simbólica do homem avança. Cm vez
d0 uma única cadeia que Uexküll chama de de ter o que fazer com as próprias coisas, em
círculo funciono! (o Funktionskreis) do animal certo sentido o homem está continuamente em
em questão. ' diálogo consigo mesmo. Circundou-se de formas
fiqui não é o caso de discutir as concep­ lingüísticas, de imagens artísticas, de símbolos
ções biológicas de Uexküll. Referimo-nos a míticos e de ritos religiosos a um ponto tal de
©Ias e à terminologia correspondente apenas não poder ver e conhecer mais nada a não ser
para delinear um problema de carót0r g0ral. por meio dessa mediação artificial. R situação
é possível usar o esquema proposto por esse é a mesma no campo teórico e no prático.
autor para uma descrição e uma caracterização Também no campo prático o homem não vive
do mundo humano? Obviamente, este mundo em um mundo de fatos puros segundo suas
não constitui uma 0xc0ção, é dirigido p0las necessidades e seus desejos mais imediatos.
mesmas leis biológicas em ação em todos os Vive muito mais entre emoções suscitadas pela
outros organismos. Todavia, no mundo humano imaginação, entre medos e esperanças, ilusões
encontramos também algo de característico e desilusões, entre fantasias e sonhos. “Rquilo
quo o distingue do de qualquer outra forma de que perturba e agita o homem - disse Cpicteto
vida. Não só o círculo funcional do homem 0 - não são as coisas, mas suas opiniões e suas
quantitativamente mais amplo, mas ele apre­ fantasias a respeito das coisas".
senta também uma diferença qualitativa. Por R este ponto pode-se corrigir e ampliar a
assim dizer, o homem descobriu um modo novo definição clássica do homem [...]. Os grandes
de adaptar-se ao ambiente. Inserido entre o pensadores que definiram o homem como ani­
sistema receptivo 0 o reativo (encontráveis em mal rationale não eram empiristas e não preten­
todos as espécies animais), no homem há um diam dar uma explicação empírica da natureza
terc0iro sistema qu© se pode chamar de sistema humana. Com tal definição eles puseram muito
simbólico, cuja aparição transforma toda a sua mais um imperativo moral. R razão é um termo
situação existencial, fazendo um confronto com pouco adequado, se quisermos abraçar em toda
Capítulo Segundo - O n e o cH ticism o . / \ É s c o l a d e ]\A a Á > u .r g o e a (E & c o \a de B aden

q suo riqueza e variedade as formas da vida deiramente o caracteriza e que o diferencia em


cultural do homem, êstas formas são essencial­ relação a todas as outras espécies, e se poderá
mente formas simbólicas. €m vez de definir o compreender o caminho especial que o homem
homem como um animal rationale dever-se-ia, tomou: o caminho para a civilização.
portanto, defini-lo como um animal symbolicum. €. Cassirer,
Para tal objetivo indicar-se-á aquilo que verda­ €nsaio sobre o homem.
C Z a p í+ u lo t e r c e i r o

O KisioHci smo alemão,


de WilKelm Dil+key
a Pnednck A^e^ ecl<e

I. (^êrvese, prob lem as,


teoria s e e x p o e n te s
do kistoricism o a le m ã o

•A s histórias da política e da economia, da religião e da arte, O século XIX


da filosofia e da filologia têm no século XIX alemão, chamado alemão:
o "século da história", seu século de ouro. Aqui bastará relem­ "o século
brar apenas os nomes de Barthold Niebuhr (1776-1831), Leopold da história "
Ranke (1795-1886), Gustav Droysen (1808-1884), Eduard Zeller -*§1
(1814-1908), Theodor Mommsen (1817-1903), Jakob Burckhardt
(1818-1897) e de Karl Julius Beloch (1854-1929).

% Pois bem, diante deste desenvolvimento portentoso de Gênese


saber histórico constitui-se o diversificado movimento filosófico e expoentes
conhecido sob o nome de historicismo, cuja intenção de fundo do historicismo
consiste na pesquisa - de tipo substancialmente kantiano - das alemão
condições de possibilidade, isto é, de autonomia e de validade -^§ 2
cognitiva das ciências históricas. Que tipo de saber é o histórico?
Qual é seu método? Estes são não só alguns dos problemas enfrentados pelos his-
toricistas alemães (Dilthey, Simmel, W eber etc.) ou por filósofos muito próximos a
eles como os neokantianos Windelband e Rickert. Outras questões se referirão à
concepção das civilizações (Spengler) e à corrida a reparos para conter o relativismo
transbordante (Troeltsch e Meinecke).

•Traços essenciais do historicismo alemão são:


a) a idéia de que a história é obra dos homens, de suas ações e relações si­
tuadas em contextos precisos, e não o resultado de leis inelutáveis;
b) com os positivistas os historicistas têm em comum a exigência de que a
pesquisa verse sobre fatos empíricos concretos;
c) os historicistas estendem a crítica kantiana ("como é possí- perspectivas
vel a ciência?") para além das ciências físico-naturais, isto é, para teóricas
as ciências histórico-sociais; do historicismo
d) para os historicistas o pesquisador não é o sujeito trans- alemão
cendental com categorias a priori, fixadas para a eternidade, mas §3
é um homem concreto, historicamente condicionado.
Primeira purte - y\ filosoj-ia d o s é c u lo X - ^ X a o s é c u lo X X

de seu sentido da tradição, de seu culto


db °e ass g gr ar na dn ed. se s k oi sUt o aHs a d o ^ e s pela consciência coletiva dos povos, de sua
tentativa de reviver o passado em sua pró­
k is + ó n c a s d o s é c u lo pria posição histórica. E, por outro lado,
justamente com a abstração de sua filosofia
da história, Hegel ensinara a ver a história
O século X IX foi o século dos grandes não como um amontoado de fatos separados
historiadores alemães. E útil lembrar os uns dos outros, e sim como totalidade em
nomes mais significativos. desenvolvimento dialético. E isso constitui
1) Barthold Niebuhr (1776-1831) es­ um de seus contributos mais importantes.
creveu uma famosa História romana.
2) Leopold Ranke (1795-1886) foi au­
tor de uma História dos papas nos séculos
X V I e X V II e de uma História da Alemanha 2 O n a sc im e n to
nos tempos da Reforma. d o n isto n c ism o
3) Gustav Droysen (1808-1884), autor
de uma História do helenismo.
4) Eduard Zeller (1814-1908), cuja Com base nesses elementos, não é difí­
Filosofia dos gregos em seu desenvolvimento cil compreender a gênese e o desenvolvimen­
histórico continua ainda hoje, ao menos sob to do movimento filosófico conhecido com o
alguns aspectos, um ponto de referência. nome de historicismo e cujos representantes
5) Theodor Mommsen (1817-1903), mais conhecidos, além de M ax Weber (do
autor de monumental História romana. qual falaremos à parte, dada a relevância, a
6) Jakob Burckardt (1818-1897) escre­ complexidade e a válida e grande influência
veu a obra justamente famosa A civilização de sua obra), são Wilhelm Dilthey (1833­
da Renascença na Itália. 1911), Georg Simmel (1858-1918), Oswald
7) Karl Julius Beloch (1854-1929) es­ Spengler (1 8 8 0 -1 9 3 6 ), Ernst Troeltsch
creveu uma importante História grega. (1865-1923) e Friedrich Meinecke (1862­
As histórias da política e da econo­ 1954). A esses, costuma-se acrescentar os
mia, da religião e da arte, da filosofia e da nomes de Wilhelm Windelband (1848-1915)
filologia encontram no século X IX alemão e de Heinrich Rickert (1863-1936), que es-
seu século de ouro, que foi chamado de “ o
século da história” . Erwin Rohde (1845­
1898) e Ulrich W ilamowitz-M õllendorff
(1848-1931), dois grandes filólogos, foram
protagonistas de um debate sobre as teorias
que Nietzsche havia proposto a propósito
do mundo grego.
N ão devemos esquecer que é nesse pe­
ríodo que se realiza o paciente trabalho de
coleta sistemática e recuperação dos textos
literários e papíricos relativos aos epicuris-
tas (Hermann Usener), aos estóicos (Hans
von Arnim) e aos pré-socráticos (Hermann
Diels).
O século X IX também assistiu a um
portentoso desenvolvimento da lingüística
histórica e da lingüística comparada (fala­
mos de Franz Bopp e de Jacob Grimm).
Além disso, foi intenso o interesse pela
história do direito na “ escola histórica” de
Karl Friedrich von Savigny (1779-1861),
que quis mostrar como as instituições ju­
rídicas não são fixadas para a eternidade,
e sim produtos de processos evolutivos
freqüentemente não programados.
Nesse interesse pela história certamente Retrato de Barthold G. Niebuhr,
descobre-se a influência do romantismo, autor de uma conhecidíssima História humana.
Cdpitulo terceiro - O kis+oricism o a le m ã o , d e W ilk e lm X^il+key a ^NAeinecke

tão ligados mais propriamente à “ filosofia de ciências que Kant não considera, ou seja,
dos valores” dentro do neocriticismo, mas as ciências histórico-sociais. E por isso que
dos quais não se pode deixar de falar, por uma exposição sobre o historicismo não
razões que explicitaremos, em uma exposi­ pode excluir Windelband e Rickert, ou seja,
ção sobre o historicismo. os neocriticistas, que haviam proposto a si
O historicismo surge nos últimos dois mesmos e nos mesmos termos o problema
decênios do século X IX e se desenvolve até das ciências histórico-sociais.
a vigília da Segunda Guerra Mundial. 5) É fundamental para o historicismo
a distinção entre história e natureza, como
também o é o pressuposto de que os objetos
do conhecimento histórico são específicos,
J d é i a s e p r o b le m a s no sentido de serem diferentes dos objetos
fim d a m e n + a is d o h isto n c ism o do conhecimento natural.
6) O problema cardeal em torno do
qual gira o pensamento historicista alemão
O historicismo alemão não é uma filosofia é o de encontrar as razões da distinção das
compacta. Entretanto, entre suas várias ex­ ciências histórico-sociais em relação às ciên­
pressões, é possível detectar certo “ ar de cias naturais, e investigar os motivos que
fam ília” , identificável nos seguintes pontos: fundamentam as ciências histórico-sociais
1) Como diz Meinecke, “ o primeiro como conjuntos de conhecimentos válidos,
princípio do historicismo consiste em subs­ isto é, objetivos.
tituir a consideração generalizante e abstrata 7) O objeto do conhecimento histórico
das forças histórico-humanas pela conside­ é visto pelos historicistas como residindo
ração de seu caráter individual” . na individualidade dos produtos da cultura
2) Para o historicismo, a história não é hum ana (m itos, leis, costum es, valores,
a realização de um princípio espiritual infi­ obras de arte, filosofias etc.), individualidade
nito (Hegel) ou, como queriam os românti­ oposta ao caráter uniforme e repetível dos
cos, uma série de manifestações individuais objetos das ciências naturais.
da ação do “ espírito do m undo” que se 8) Se o instrumento do conhecimento
encarna em cada “ espírito dos povos” . Para natural é a explicação causai (o Erklãren),
os historicistas alemães contemporâneos, a o instrumento do conhecimento histórico,
história é obra dos homens, ou seja, de suas segundo os historicistas, é o compreender
relações recíprocas, condicionadas pela sua (o Verstehen).
pertença a um processo temporal. 9) As ações humanas são ações que
3) D o positivism o, os historicistas tendem a fins, è os acontecimentos humanos
rejeitam a filosofia comtiana da história e a são sempre vistos e julgados na perspectiva
pretensão de reduzir as ciências históricas de valores precisos. Por isso, mais ou menos
ao modelo das ciências naturais, apesar de elaborada, sempre há uma teoria dos valores
os historicistas concordarem com os positi­ no pensamento dos historicistas.
vistas na exigência de pesquisa concreta dos 10) Por fim, deve-se recordar que, se
fatos empíricos. o problema cardeal dos historicistas é um
4) Com o neocriticismo, os historicis­ problema de natureza kantiana, no entanto,
tas vêem a função da filosofia como função para os historicistas, o sujeito do conheci­
crítica, voltada para a determinação das mento não é o sujeito transcendental, com
condições de possibilidade, isto é, o funda­ suas funções a priori, e sim homens concre­
mento, do conhecimento e das atividades tos, históricos, com poderes cognoscitivos
humanas. O historicismo estende o âmbito condicionados pelo horizonte e pelo contex­
da crítica kantiana a todo aquele conjunto to histórico em que vivem e atuam.
Primeira parte - y\ f i lo s o f i a d o s é c u lo a o s é c u lo X X

zzzz: II. Wilkel m Dil+key zzzzz


e a^crí+ica d a razão kistóHca '7

• Historiador das idéias e filósofo, Wilhelm Dilthey (1833­


O problem a
de Dilthey: 1911) teve, em sua vida de estudioso, uma preocupação constante:
como a da fundamentação da autonomia e da validade das ciências do
fundam entar espírito.
a autonom ia Tal preocupação é testemunhada por escritos como: Intro­
das ciências dução às ciências do espírito (1883); Idéias para uma psicologia
do espírito descritiva e analítica (1894); Contribuições para o estudo da
-^§1 individualidade (1895-1896); Estudos para a fundamentação das
ciências do espírito (1905); A construção do mundo histórico nas
ciências do espírito (1910). A contribuição principal de Dilthey
consistiu, de fato, em uma "crítica da razão histórica".

A diversidade • Tal crítica da razão histórica encontra seus inícios na Intro­


dos objetos dução às ciências do espírito. 1
tratados
Nessa obra Dilthey distingue as ciências do espírito das ciên­
como base
da prim eira
cias da natureza com base na diversidade dos objetos por elas
distinção tomados respectivamente em consideração: os fatos das ciências
entre ciências do espírito se apresentam à consciência "originalmente a partir
da natureza do interior, enquanto os das ciências da natureza se apresentam
e ciências à consciência, ao contrário, a partir do exterior".
do espírito
1 • A seguir Dilthey põe a psicologia analítica
mento das ciências do espírito; afirma que estas estudam tanto
as uniformidades como os fatos individuais, e que o "tipo" tem a
função de ligar estas duas realidades opostas do mundo humano; e salienta, sem­
pre sobre o tem a da compreensão dos outros, o papel fundamental do entender
(Verstehen), que consiste no "reviver" e no "reproduzir".
Em todo caso, na opinião de Dilthey, a solução mais ade­
A relação quada do problema referente à autonomia e à fundamentação
entre Erleben das ciências do espírito pode ser encontrada nos Estudos para a
(expressão) fundamentação das ciências do espírito e em A construção do
e Verstehen mundo histórico nas ciências do espírito.
(entender) O que caracteriza os fenômenos do mundo humano e que
como
reúne as ciências do espírito e fundam enta sua autonomia é a
fundam ento
das ciências relação - que não se dá no interior do mundo da natureza e das
do espírito ciências de caráter natural - entre Erleben (expressão) e Verstehen
-->§2-3 (entender): a vida dos indivíduos torna-se espírito objetivo, se
exprime e se objetiva em eventos e instituições (Estados, Igre­
jas, movimentos religiosos, textos filosóficos, teorias científicas,
sistemas éticos etc.) que o cientista social procura entender captando seu lado
interno; isso é bem possível, uma vez que entender é "um reencontro do eu no
tu ". E tal entender é um compreender obras e instituições de homens históricos,
que produzem valores e realizam objetivos, e cujas obras não são, portanto, como
em Hegel, espírito objetivo, fruto de uma razão absoluta.
Capitulo terceiro - CD his+oricism o a le m ã o / d e W rlk e lm D iltk e y a ^Vleirvecke

1 K u m o a o^iTioa ciências da natureza e as ciências do espírito


m s se diferenciam, antes de mais nada, por seu
d a c a z ã o k isté n c a
objeto. O objeto das ciências da natureza
é constituído pelos fenômenos externos ao
homem, ao passo que as ciências do espíri­
A obra de Wilhelm Dilthey (1 833­ to estudam o mundo das relações entre os
1911) representa uma articulada e tenaz indivíduos, mundo do qual o homem tem
tentativa de construção de “ crítica da razão consciência imediata.
histórica” . Em outros termos, a intenção de A diferença dos objetos de estudo
Dilthey é a de fundamentar a validade das implica uma diferença gnosiológica: é a
ciências do espírito (Geisteswissenschaften). observação externa que nos dá os dados das
E não devemos de modo nenhum esquecer ciências naturais, ao passo que é a observa­
que ele próprio foi historiador, como ates­ ção interna, isto é, o Erlebnis (“ experiência
tam seus trabalhos Vida de Schleiermacber vivida” ), que nos dá os dados das ciências
(1867-1870), A intuição da vida na Renas­ do espírito.
cença e na Reforma (1891-1900), A história E também são diferentes as categorias
do jovem Hegel (1905-1906), Experiência ou conceitos de que se servem as ciências do
vivida e poesia (sobre o romantismo, 1905) e espírito: as categorias de significado, objeti­
As três épocas da estética moderna (1892). vo, valor e assim por diante não pertencem
Já na Introdução às ciências do espírito às ciências da natureza, mas ao mundo
(que é de 1883), Dilthey sustentava que as humano, que tem seu centro no indivíduo
Primeira parte - y\ f ilo s o f ia d o s é c u lo X ^ X a o s é c u lo X X

e se configura — através das relações dos continuamente em sons, em gestos do ros­


indivíduos — em sistemas de cultura e de to, em palavras, e têm sua objetividade em
organizações sociais que possuem existência instituições, Estados, Igrejas e institutos
histórica. A estrutura do mundo humano, científicos: precisamente nessas conexões é
portanto, é uma estrutura histórica. que se move a história” .
Em Idéias para uma psicologia descri­ E o nexo entre Erleben, (“ expressão” )
tiva e analítica (1894) e nas Contribuições e Verstehen (“ entender” ) que institui a pecu­
ao estudo da individualidade (1895-1896), liaridade do mundo humano e fundamenta
Dilthey enfrenta respectivamente o pro­ a autonomia das ciências do espírito. Esse
blema da psicologia analítica (diferente da nexo não pode ser encontrado na natureza
psicologia explicativa de tipo positivista) nem nas ciências naturais. A vida, o Erleben,
como fundamento das outras ciências do torna-se espírito objetivo, isto é, se objetiva
espírito, e o problem a da relação entre em instituições (Estados; Igrejas; sistemas
uniformidade e identificação histórica: as jurídicos; movimentos religiosos, filosóficos,
ciências do espírito estudam tanto as leis literários e artísticos; sistemas éticos etc.).
e a uniformidade dos fenômenos como os E o entender, na referência retrospectiva,
acontecim entos em sua singularidade, e dá origem às ciências do espírito, que têm
o “ tipo” tem a função de ligar esses dois como objeto “ a realidade histórico-social do
opostos. Por outro lado, neste último es­ homem” . Realidade que tem, de fato, um
crito, Dilthey parece persuadido de que o lado externo investigável pelas ciências na­
Erlebnis não pode ser considerado como turais, mas cujo lado interno — o significado
fundamento exclusivo das ciências do espí­ ou essência — só pode ser alcançado pelas
rito: a experiência interna deve ser integrada ciências do espírito. E pode ser alcançado
com o Verstehen (entender), que é reviver porque, através do entender — que é “ um
(Nacherleben) e reproduzir (Nachbilden), encontro do eu no tu” —, o homem pode
porque só assim se terá a compreensão dos compreender as obras e as instituições dos
outros indivíduos. homens. Em suma, o entender é possível por­
que “ a alma anda pelos caminhos habituais,
nos quais já gozou e sofreu, sofreu e agiu em
situações de vida semelhantes” . Através de
f u n c la m e - n ia ç ã o
uma “ transferência interior” , que implica
d a s c iê n c ia s d o e s p írito um “ com sentimento” (Mitfühlen) e uma
“ penetração simpatética” , o homem pode
reviver várias outras existências.
Como se vê, à medida que avança, o
pensamento de Dilthey amplia seus horizon­
tes e os problemas se multiplicam, ligando-se
uns aos outros. Entretanto, o núcleo para o ; A k is to r ic id a d e constitutiva
qual todos esses problemas convergem e do d o m u n d o Inumano -
qual partem é sempre o da fundamentação
das ciências do espírito. Dilthey pergunta-
se nos Estudos para a fundamentação das A objetivação da vida é a primeira
ciências do espírito (1905): “ De que modo característica da estrutura do mundo histó­
as ciências do espírito podem ser delimitadas rico, devendo-se atentar para o fato de que
pelas ciências da natureza?” Onde estão a es­ o espírito objetivo de Dilthey não é, como
sência da história e sua diferença em relação para Hegel, a manifestação de uma razão
às outras disciplinas? Pode-se alcançar um absoluta, mas é o produto da atividade de
saber histórico objetivo? N a obra citada e homens históricos. Tudo saiu da atividade
em outra, intitulada A construção do mundo espiritual dos homens e, portanto, diz Dil­
histórico nas ciências do espírito (1910), ele they, tudo é histórico.
apresenta em forma definitiva seu projeto de A segunda característica fundamental
fundamentação das ciências do espírito. do mundo humano é a que Dilthey chama
Operando uma distinção entre Erlebnis de “ conexão dinâmica” , que se distingue da
e Erleben (o Erlebnis é uma etapa do Erle- conexão causai da natureza enquanto pro­
ben, isto é, da vida), Dilthey sustenta que duz valores e realiza objetivos. O indivíduo,
aquilo que é comum às ciências do espírito, as instituições, as civilizações e as épocas
ou seja, o que constitui seu domínio, é isto: históricas são conexões dinâmicas. E, assim
“ Os estados de consciência se expressam como o indivíduo, da mesma forma todo
A obra de Dilthey (aqui em uma fotografia nos anos da maturidade)
é tentativa articulada e tenaz de construir uma “crítica da razão histórica".

sistema de cultura e toda comunidade tem O homem, conclui Dilthey, é um ser


seu próprio centro em si. E essa “ autocentra- histórico. E históricos são todos os seus
lidade” , intrínseca a toda unidade histórica, produtos culturais, inclusive a filosofia e,
faz com que essas unidades históricas (os sis­ portanto, também a metafísica.
temas de cultura, os sistemas de organização Uma função do filósofo consciente é a
social, as épocas históricas) se caracterizem de dar vida a uma “ filosofia da filosofia” ,
por um horizonte fechado, que torna as entendida como exame crítico das possibi­
diversas histórias irredutíveis, tornando-as lidades e dos limites da filosofia. E é assim
singularmente compreensíveis apenas com que a razão histórica se transform a em
a condição de que possamos compreender crítica “histórica” da razão. N ão existem
os valores e os objetivos particulares que as filosofias que valham sub specie aeternitatis.
tipificam. '
Primeira parte - yv filosofia d o s é c u lo a o s é c u lo X X

III. O ki s+oricismo a le m ã o
eKvtre.WilKe.lm D iltkey e ]\Ac\yc W e b e r

• Contrapor a "natureza" ao "espírito", como fez Dilthey, é simplesmente


um erro: é o que afirma o neokantiano Wilhelm Windelband (1848-1915) em His­
tória e ciência natural (1894). Tal distinção é uma insustentável
W indelband: tese metafísica; e à distinção das ciências operada por Dilthey
as ciências sobre uma base objetiva (mundo humano, mundo da natureza),
distinguem-se W indelband contrapõe uma distinção sobre base metodológica
sobre base e distingue as ciências em ciências nomotéticas (as que buscam
m etodológica determinar a regularidade dos fenômenos) e ciências idiográfkas
->S 1 (atentas à especificidade dos fenômenos particulares). E qualquer
evento - pertinente ao mundo da natureza ou ao mundo humano
- pode ser estudado ou como caso particular de uma uniformidade ou então para
compreender seu caráter único e irrepetível.

• Para Heinrich Rickert (1863-1936), a mesma re


Rickert:
o papel
se natureza quando "a consideramos em relação a© geral, e se
de referência torna história quando, ao contrário, a consideramos em relação
aos valores ao particular". Esta é a tese sustentada por Rickert em Os limites
no trabalho da formação dos conceitos científicos (1896-1902). E uma posterior
do historiador e importante idéia de Rickert, que veremos também em Weber, é
-> § 2 que no oceano sem fim dos eventos e das instituições humanas o
historiador escolhe como objeto de estudo os fatos e os aconteci­
mentos investidos e, portanto, tornados "interessantes" pelos valores da civilização
à qual ele pertence. Trata-se, justamente, da "relação aos valores".

• Georg Simmel (1858-1918) é um estudioso de grande fôlego e são múltiplas


as temáticas por ele tratadas. Pois bem, no que se refere à historiografia, ele põe o
problema em termos kantianos: como é possível a história? Quais
Simmel: são as condições que tornam possíveis e fundamentam autono­
"Um fato mia e validade das ciências histórico-sociais? A tal interrogação
é im portante Simmel responde, diversamente de Kant e dos neokantianos,
porque que as categorias da pesquisa histórica não são a priori válidas
interessa para a eternidade, pois elas próprias são produtos históricos de
a quem homens históricos, produtos que mudam com a história. Por
o considera " conseguinte, não tem nenhum sentido falar de fatos históricos
-^§3 "objetivamente" importantes. "Um fato - escreve Simmel - é
importante porque interessa a quem o considera".

• “As civilizações são organismos-, a história universal é sua biografia complexi-


va": lemos isso no Ocaso do Ocidente, a obra que tornou famoso Oswald Spengler
(1880-1936). Toda civilização é um organismo; e, como os organismos, as civilizações
"aparecem, amadurecem, fenecem e não voltam mais". Toda civilização-acrescenta
Spengler - é um mundo fechado: com sua moral, sua filosofia e
Spengler: seu direito próprios. E as civilizações, como os organismos, estão
as civilizações destinadas ao ocaso. Uma vez realizado seu ciclo, "a civilização
são como se enrijece repentinamente, dirige-se para a morte, seu sangue
os organismos: se coagula, suas forças faltam e ela torna-se uma civilização em
nascem,
declínio". E este era o caso, aos olhos de Spengler, da civilização
crescem
e depois morrem
ocidental, doravante em seu ocaso por causa da prevalência da
-> § 4 democracia e do socialismo, e da veneração, na democracia, do
dinheiro e do poder.
Capitulo terceiro - CD k is + o r ic is m o a le m ã o , d e W i lK e l m X ^ il+ K e y a

• Um dos problemas fundamentais da especulação filosófica de Ernst Troeltsch


(1865-1923) consistiu na tentativa de conciliar o condicionamento histórico de toda
forma de religião com a pretensão de toda religião de possuir uma
validade universal. Ele chegou à conclusão, em A absolutez do Troeltsch:
cristianismo e a história das religiões (1902), de que a historicidade como conciliar
de uma religião não a priva de modo algum do valor universal e historicidade e
de sua relação com a transcendência. E ainda, em O historicismo universalidade
dos valores
e sua superação (1928), Troeltsch afirma que os critérios absolutos
religiosos
que são a norma moral e a Revelação cristã não se dissolvem em ^ § 5
suas múltiplas e diversificadas manifestações históricas.

• Um dique contra o relativismo expansível gerado pelo historicismo pretende


ser tam bém a filosofia de Friedrich Meinecke (1862-1954). Contrário ao "veneno
corrosivo" do relativismo, Meinecke - autor de Razão de Estado
na história moderna (1924) e de A origem do historicismo (1936) Meinecke:
- rejeita as soluções que se movem em direção horizontal (abso- o "relativo",
lutizar o passado, como o fazem os românticos; ou absolutizar o visto como
futuro, como fazem os sacerdotes do progresso); ele sustenta que desejado
o caminho para neutralizar o veneno do historicismo é o caminho p o r Deus,
vertical. É preciso sair da corrente para olhar a história a partir do torna-se como
alto, como desejada por Deus. Toda época, embora historicizada, que "abso luto'
—> § 6
"está em relação imediata com Deus".

W in d e lb a n d e a d istin ç ã o podia permanecer estranha ao desenvolvi­


e n tre c iê n c ia s n o m o té tic a s
mento portentoso das ciências históricas,
sob pena de correr o risco de se defasar
e c i ê n c i a s id io 0r á f i c a s em relação a efetivas aquisições científicas.
M as podem-se considerar satisfatórios os
resultados conseguidos por Dilthey em seu
Depois de Dilthey, a crítica da razão trabalho? Sobre quais bases sólidas Dilthey
histórica daria passos substanciais adiante apoiava a distinção entre ciências da natu­
— que ainda causam impacto por sua ori­ reza e ciências do espírito?
ginalidade e validade — com M ax Weber. Windelband rejeita com firmeza tal dis­
M as, entre Dilthey e Weber, situa-se um tinção, por se tratar de distinção metafísica
grupo de pensadores que, movendo-se em infundada que contrapõe a “ natureza” ao
torno dos problemas levantados e discutidos “ espírito” . Conseqüentemente, Windelband
por Dilthey, introduzem algumas novidades contrapõe à distinção de base objetual (na­
metodológicas (como é o caso de Windel­ tureza e mundo humano) de Dilthey uma
band e de Rickert), ou então levam às últi­ distinção de método.
mas conseqüências o relativismo de Dilthey Windelband distingue as disciplinas
(o que fazem Simmel e Spengler), ou ainda científicas em ciências nomotéticas e ciências
reagem a esse relativismo propondo valores idiográficas. As primeiras são as que procu­
absolutos (caminho trilhado sobretudo por ram determinar as leis gerais que expressam
Troeltsch e Meinecke, mas também pelo a regularidade dos fenômenos; as segundas,
último Windelband e por Rickert). ao invés, são as ciências que voltam sua
W ilhelm W indelband (1848-1915) atenção para o fenômeno singular, visando
— representante da Escola de Baden jun­ compreender sua especificidade e indivi­
tamente com Rickert, como já sabem os dualidade. E qualquer evento — pertença
— enfrenta o problema do conhecimento ele ao mundo da natureza ou ao mundo
histórico como neocriticista: para ele “ a humano, isto é, ao mundo do espírito — só
ciência histórica constitui o problema da pode ser pesquisado como um caso particu­
crítica, a exemplo da pesquisa natural” . Em lar de uma lei geral, de uma regularidade, ou
1894, no escrito História e ciência natural, então para compreender seu caráter único,
ele faz questão de precisar que a filosofia não peculiar, irrepetível. gffST T I
Primeira parte - y\ filo so fia d o s é c u lo j)CI7,X a o sécu Io XX

jglp "RicUert: Todavia, no início, concordando com os


a relação com os valores neocriticistas da Escola de Baden, ele ha­
via, por exem plo, atribuído ao dever ser
e a a u fo n o m ia a independência em relação às situações
do conKecimento Kistórico históricas. E nos P roblem as fundam en­
tais de filosofia (1910), além do sujeito
e do objeto, Simmel propõe um terceiro
A autonom ia do conhecimento his­ reino das idéias, e um quarto reino do
tórico é o problema de fundo de Heinrich dever ser.
Rickert (1863-1936). Rickert retoma de Simmel põe a questão da história, em
W indelband a distin ção entre ciências termos kantianos, como o problema das
nomotéticas e ciências idiográficas, assim condições que tornam possível e funda­
escrevendo em O s limites da form ação mentam as ciências histórico-sociais em sua
dos conceitos científicos (1896-1902): “A autonomia e validade. M as, contra Kant
mesma realidade torna-se natureza quando e os neokantianos, Simmel afirma que os
a consideramos em referência ao geral, e elementos do conhecimento se encontram
torna-se história quando a consideramos na experiência. Em suma, a possibilidade
em referência ao particular” . da história não reside em condições a priori
Nesse ponto, porém, surge um proble­ independentes da experiência. As catego­
ma posterior: nem todos os acontecimentos rias da pesquisa histórica são produto de
individuais suscitam o interesse do histo­ homens históricos, e elas próprias mudam
riador, mas apenas os que têm particular com a história. Desse modo, a realidade
importância ou significado. O historiador histórica pode ser interpretada à luz de di­
deve escolher. Todavia, com base em qual versas categorias. N ão há sentido, portanto,
critério ele pode operar suas escolhas? em falar de fatos históricos “objetivamente”
Para Rickert, o critério de escolha está importantes. Escreve Simmel: “ Um fato
na relação dos fatos individuais com o valor. é importante porque interessa a quem o
É a relação com os valores que constitui a considera” .
base da elaboração conceituai da história. O Portanto, também para Simmel é a
historiador descura tudo o que não tem valor. relação com o valor que atua como critério
Isso não significa que o historiador de escolha dos fatos históricos, só que esses
deve pronunciar juízos de valor sobre o valores não são inerentes aos fatos, e sim
que pesquisa, e sim que ele reconstrói um são os valores do historiador, j j j g j j s ]
acontecimento somente porque este tem
valor. “ O conceito de individualidade his­
tórica é constituído pelos valores captados uJLm Spengler
e tornados próprios pela civilização à qual mÊÊÈm, u
ele pertence. O procedimento histórico é e o ocaso
referência contínua ao valor” . Em suma, do Ociden+e”
o conhecimento histórico encontra o seu
fundamento na relação com os valores. Por
isso, o objeto do conhecimento histórico é Decadência do Ocidente foi a obra
definido como Kultur (cultura), e os valores que tornou famoso Oswald Spengler (1880­
aos quais ele se refere são definidos como 1936). Nela, a ruína da Alemanha tornou-se
Kulturwerte (valores culturais). São esses o “ ocaso da civilização ocidental” . Spengler
os valores que o homem realiza no devir torna metafísica a distinção entre natureza
histórico. K ffg fõ l e história. A natureza é dominada por uma
necessidade mecânica, a história por uma
necessidade orgânica. E é precisamente
por isso que a história pode ser entendida
Simmel: através da experiência vivida ou Erlebnis,
os valores do kis+oriador vista como a penetração intuitiva das for­
mas assum idas pelo desenvolvimento da
e o rela+ivismo dos jatos história. Diz Spengler: “ A humanidade não
tem nenhum fim, nenhuma idéia, nenhum
plano, do mesmo m odo como não têm
O resu ltad o fin al da filo so fia de um fim a espécie das borboletas ou a das
Georg Simmel (1858-1918) é o relativismo. orquídeas. A ‘humanidade’ é conceito zoo­
Capítulo terceiro - O k isfo H r ism o a le m ã o , d e W ilk e lm D ilfk e y a A ^ e in e ck e

lógico ou então é uma palavra desprovida que são inteiramente diversos dos valores
de sentido” . das outras civilizações.
Em lugar “ daquele desolado quadro Nisso consiste o absolutismo relativo
da história universal como desenvolvimento dos valores defendidos por Spengler: os
linear” , Spengler vê “ o espetáculo de uma valores são absolutos no interior de uma
pluralidade de civilizações poderosas que civilização, mas referem-se apenas a essa
florescem com força primigênia do útero da civilização. E as civilizações, como os orga­
terra materna” . “As civilizações são orga­ nismos, destinam-se à decadência: “ Quando
nismos; a história universal é sua biografia o fim é alcançado e a plenitude das possibili­
total” . dades interiores chega a se realizar comple­
Toda civilização, portanto, é um or­ tamente em direção ao exterior, a civilização
ganismo. E, assim como os organismos, as se enrijece repentinamente, encaminha-se
civilizações “ aparecem, amadurecem, de­ para a morte, seu sangue se coagula, suas
caem e não voltam m ais” . E toda civilização forças lhe faltam e ela se torna civilização
tem um sentido fechado em si mesmo: uma em declínio” .
moral, uma ciência, uma filosofia e um di­ Aos olhos de Spengler parecia em de­
reito têm sentido absoluto dentro da própria clínio a civilização ocidental, em virtude da
civilização, mas, fora dela, não têm nenhum. crise da moral e da religião, pela prevalência
Diz Spengler: “ Há tantas morais quantas da democracia e do socialismo e devido à
são as civilizações, nem mais nem menos” . equiparação, na democracia, entre dinheiro
Toda civilização cria seus próprios valores, e poder político.

Oswald Spengler (1880-1936)


em um desenho de Grossmann.
Spengler alcançou notoriedade
repentina com a publicação do livro
Ocaso do Ocidente,
no qual a queda da Alemanha
é identificada com o ocaso
de toda a civilização ocidental.
Primeira parte - f ilo s o f i a d o s é c u lo X ^ ? X s é c u lo X X

A ^ e in e c U e
l â i i ~^^o e ^ s c ^
e o caráter absoluto e a busca do eterno
dos valores religiosos no instante

N o quadro do historicismo foram Er- Friedrich Meinecke (1862-1954) não


nst Troeltsch e Friedrich Meinecke que en­ está muito distante da posição de Troeltsch.
frentaram a temática complexa das relações Historiador da Alemanha moderna, Meine­
entre o devir histórico e os valores eternos cke, mediante importante estudo sobre a Ra­
da religião. zão de Estado na história moderna (1924),
Substancialmente, a questão funda­ defronta o problema do historicismo. E o
mental de Troeltsch (1865-1923) é a que problema do historicismo é que ele suscitou
brota, por um lado, da consciência histórica um relativismo que considera toda forma­
que nos mostra o condicionamento de toda ção histórica individual, toda instituição,
forma de religião e, por outro lado, da pre­ toda idéia e toda ideologia somente como
tensão da religião de possuir uma validade momento transitório no curso infinito do
absoluta. Troeltsch rejeita tanto a solução devir. Para o historicismo, portanto, todas
positivista, que fazia da religião o estágio as coisas, sem exceção, só têm valor relativo.
primitivo da humanidade, como a solução N o historicismo, portanto, “ há veneno
romântico-idealista, que via nas diversas reli­ corrosivo” . N a opinião de Meinecke, há ape­
giões a realização de uma essência universal. nas três caminhos para neutralizar esse veneno.
Para Troeltsch, as religiões são fatos a) O primeiro é a fuga romântica no
históricos individuais, inclusive o cristianis­ passado.
mo. M as, como ele observa em O caráter b) O segundo é a fuga para o futuro.
absoluto do cristianismo e a história das O caminho romântico absolutiza uma época
religiões (1902), a condicionabilidade de um do passado (a época de ouro), ao passo que
fenômeno histórico não o priva de validade. o outro expressa o otimismo do progresso.
A religião é historicamente condicionada e, M as ambos os caminhos estão na corrente
apesar de tudo, ela, na opinião de Troeltsch, da história, diz Meinecke. Tanto indo contra
mostra — por meio de fenômenos como o a corrente como indo no rumo da corrente,
surgimento do cristianismo e da Reforma sempre se está procedendo em direção hori­
— uma causalidade autônoma. zontal, sempre dentro da corrente.
Essa independência da religião em re­ c) N a opinião de Meinecke, porém,
lação à causalidade natural é interpretada há um terceiro caminho para neutralizar o
por Troeltsch como a presença de Deus veneno do historicismo: é o caminho verti­
no finito. E, segundo ele, o cristianismo é cal. E preciso sair da corrente para olhá-la
superior às outras religiões precisamente de cima. O “ relativo” , visto como desejado
pelo seu reconhecimento explícito da ação por Deus, apresenta-se como “ absoluto” .
de Deus na história.
Capítulo terceiro - CD k isto H cism o ale m Ô o , d e W ilh e lm D iltk e y a A A e m e ck e

■ H isto ricism o . A primeira acepção atribuída a este termo é a de que a


realidade é história e esta história é guiada por alguma lei necessitante. Uma
doutrina desse tipo encontra-se em Hegel: é o historicism o absoluto. Com a
teoria dialética invertida, Marx propôs um historicism o m aterialista.
A história é desenvolvimento de eventos;
e existe uma lei que determina seu curso.
Entendendo o historicismo nessa acepção
- isto é, como a pretensão de ter captado as
leis que determinam o desenvolvimento da
história humana em sua totalidade -, Karl
Popper o tornou objeto de suas devastado­
ras críticas, enquanto prova que é impossí­
vel a previsão do futuro e que, portanto,
é ilusório crer ter chegado à posse de leis
inelutáveis do curso da história humana.
Há também um historicism o fideístico, como
o proposto, entre outros, por Meinecke
e por Troeltsch, para os quais na história
agem valores transcendentais aí inseridos
por Deus. Este é um historicismo metafísico
ou, melhor, te oló gico.
Como metafísico, embora em uma direção Friedrich Meinecke
com pletam ente diversa, o h is to ric is m o
re la tiv o é defendido - como se viu nas páginas precedentes - por Oswald
Spengler, para o qual toda civilização é um organismo, uma configuração
compacta e fechada, com sua moral, sua filosofia e seu direito próprios:
"Há tantas morais - afirma Spengler - quantas são as civilizações, nem mais
nem menos".
Diferentes dos agora acenados são os problemas discutidos pela corrente
de pensamento denominada historicism o crítico, problemas que se referem,
kantianamente, às condições de possibilidade, autonomia e validade das
ciências histórico-sociais.
Dilthey discute sobre a diferença entre ciências da natureza e ciências do
espírito, e no fim encontra na relação entre Erleben, expressão , e Verstehen,
e nte nd e r, a característica essencial do mundo humano e ao mesmo tempo
o fundamento das ciências do espírito.
Windelband, e com ele Rickert, traça a importante distinção entre ciências
nomotéticas e ciências idiográficas.
Weber delineia a teoria do "tipo ideal",
discute sobre o peso das diversas causas
particulares de um evento, intervém com
extrema clareza sobre o problem a da
"avaliabilidade" nas ciências histórico-
sociais, des-dogmatiza o materialismo his­
tórico.
E problemas que atravessam o historicismo
crítico são o da referência aos valores, o do
Verstehen (compreender) em oposição ao
Erklàren (explicar causalmente), o da empa­
tia (e de suas críticas), e outros ainda. Mas
o que foi dito é suficiente para estabelecer
a diversidade específica do h is to ric is m o
crítico de outros tipos de historicismo, com
os quais, por outro lado, pouco a pouco ele
entrou em contato. Heinrich Rickert
Primeira parte - jA filosofia d o s é c u lo X^X q° s é c u lo XX

consentimento e de penetração simpatética,


embora seja evidente sua conexão pelo fato
D il t h e y de que o consentimento reforça a energia dp
reviver. Nós olhamos para a importante função
desse reviver pela nossa possibilidade de nos
apropriarmos do mundo espiritual. 61a repousa
sobre dois momentos. Todo pressentimento
E l "Reviver" vivo de um ambiente e de uma situação ex­
para "compreender" terna suscita em nós o reviver, e a fantasia
pode reforçar ou diminuir o peso das formas dê
comportamento, das forças, dos sentimentos,
O "reviver" eqüivale ò "nossa possibilida­ das tendências, das direções ideais contidôs
de de nos apropriarmos do mundo espiritual". em nossa ligação de vida, reproduzindo assim
''Diante dos limites impostos pelas circuns­ toda vida psíquica de outrem. [...]
tâncias se abrem a ele [ao homem] outras € nesse reviver está uma parte importante
belezas do mundo e outros regiões da vida, da aquisição de coisas espirituais, das quais
que ele jam ais pod e alcançar". somos devedores ao historiador e ao poeta.
O curso da vida produz em todo homem uma
constante determinação em que são limitadas
Sobre a base desta transferência interior, as possibilidades que aí estão contidas. A
desta transposição, apresenta-se agora a for­ formação de seu ser determino sempre todo
ma mais elevada em que a totalidade da vida seu desenvolvimento posterior. £m poucas pa­
psíquica age no entender: a reprodução ou o lavras, ele experimenta sempre, ele pode tomar
reviver. O entender é em si uma operação inver­ em exame o modo em que está constituída sua
sa ao cursa dinâmico: uma penetração completa situação ou a forma de sua ligação adquirida,
está ligada ao fato de que a compreensão de modo que o âmbito de novos olhares sobre
proceda sobre a mesma linha do devir. €la a vida, e sobre as modificações externas de
avança, procedendo continuamente, com o curso sua existência pessoal, é limitado. O entender
da vida, e assim se alarga o processo de trans­ abre-lhe amplo campo de possibilidades, as
ferência interior, de transposição. O reviver é o quais não existiam na determinação de sua vida
mover-se sobre a linha do devir. Dessa forma real. A possibilidade de viver imediatamente,
seguimos a história, ou um acontecimento em em minha existência, estados religiosos é para
uma terra longínqua ou alguma coisa que ocorre mim como para a maior parte dos homens de
no espírito de um homem que esteja próximo hoje bastante restrita. Mas quando folheio as
de nós. Sua completude é atingida quando o cartas e os escritos de Lutero, os relatos de
acontecimento é animado pela consciência do seus contemporâneos, as atas das conferências
poeta, do artista ou do historiador, e está pre­ religiosas e dos concílios, assim como de sua
sente em forma durável diante de nós, fixado narração oficial, eu vivo um processo religioso
em uma obra. de tal força eruptiva, de tal energia, que na
A poesia lírica torna assim possível, na vida e na morte isso está além de toda possi­
sucessão de seus versos, reviver uma conexão bilidade de drlebnis para qualquer homem de
de Çrlebnisse: não a real que anima o poeta, nossos dias. Mas posso, porém, revivê-lo. €u
mas a que, sobre sua base, o poeta põe na me transfiro em tais circunstâncias, e tudo nele
boca de uma pessoa ideal. A sucessão das impele a um desenvolvimento extraordinário
cenas em uma obra teatral torna possível revi­ da vida religiosa do espírito. Vejo nos claustros
ver suas partes com base no curso da vida das uma técnica de contato com o mundo invisível,
pessoas que aí se apresentam. A narração do que dá às almas dos monges uma constante
romancista ou do historiador, que segue o curso orientação para as coisas transcendentes:
histórico, suscita em nós um reviver: o triunfo do as controvérsias teológicas se tornam aqui
reviver acontece quando nele os fragmentos de questões de existência interior. Vejo como no
um curso de vida são completados de modo mundo leigo se prepara em inumeráveis canais
tal que acreditamos ter diante de nós uma - púlpitos, confessionários, cátedras, escritos
continuidade. - aquilo que se elabora nos claustros; e ob­
Todavia, sobre o que se apóia este revi­ servo como concílios e movimentos religiosos
ver? O processo nos interessa aqui apenas em tenham aberto, em todo lugar, o caminho para
sua função, e não deve ser dada uma explica­ a doutrina da igreja invisível e do sacerdócio
ção psicológica dele. Por isso não ilustramos universal, como ela está em relação com a
sequer a relação deste conceito com os de libertação da personalidade na vida mundana;
, . 47
Capitulo terceiro - O k is to n c is m o a le m ã o , d e W ilh e tm U iltk e y a yVtí’ ii\i'í‘ l<L' ----- „

0 como tudo isso S0 afirme no solidão dos c0las O indivíduo, as comunidades e as obras
0 nas lutas dos forças agora d0scritas diante em que se transpuseram a vida e o espírito,
dos ©stímulos da Igr0ja. O cristianismo como constituem o domínio externo do espírito. Cssas
forço capaz d® incidir sobre a própria vida da manifestações da vida, assim como aparecem
família, na profissão, nas relaçõ0s políticas: no mundo externo diante da compreensão,
0Sta é uma potência nova qu© s© apresenta estão quase inseridas na ligação da natureza.
q o 0spírito da época nas cidad0s ou em todo Sempre nos circunda esta grande realidade
lugar em qu® S0 r0aliz0 um trabalho superior, externa do espírito, a qual é uma realização do
©m Hans Sachs ou 0m Dür0r.1 Çnquanto Lutero espírito no mundo sensível, da fugaz expressão
pertence ao ápice desse movimento, podemos até o domínio secular de uma constituição ou de
viv®r imediatamente seu desenvolvimento com um texto jurídico. Toda manifestação particular
base em uma conexão que remonta daquilo da vida representa, no campo de tal espírito
que é geralmente humano para a esfera reli­ objetivo, um elemento comum. Toda palavra,
giosa e desto, por meio de suas determinações todo proposição, todo gesto e toda fórmula
históricas, até suo individualidade. € assim esse de cortesia, toda obra de arte e todo fato
processo nos desvela um mundo religioso que histórico são compreensíveis apenas enquanto
está presente nele e em seus companheiros uma comunhão une quem neles se exprime com
dos primeiros tempos da Reforma, ampliando quem os entende; o indivíduo vive, penso e age
nosso horizonte por m0io de possibilidades continuamente em uma esfera de comunhão, e
de vida qu© apenas de tal modo se tornam apenas nela pode penetrar. Tudo aquilo que
acessíveis a nós. O homem determinado pelo é entendido traz consigo, por assim dizer, a
interior pode, portanto, viver na imaginação marca de sua cognoscibil idade sobre a base
várias outras existências: diante dos limites im­ de tal comunhão: vivemos nessa atmosfera, que
postos pelas circunstâncias abrem-se para ele nos circunda constantemente, e nela estamos
outras belezas do mundo e outras regiões do imersos. ím todo lugar estamos em casa neste
vido, que ele jamais pode alcançar. €m termos mundo histórico a ser entendido, penetramos
gerais, o homem ligado e determinado pela seu sentido e seu significado, estamos nessas
realidade da vida liberta-se não só por meio mesmas relações comuns.
da arte - o que aconteceu com muita freqüên­ A mutação das manifestações da vida,
cia - mas também mediante a compreensão que agem sobre nós, nos impele continuamen­
daquilo que é histórico. te a uma nova compreensão; mas elo tem, ao
UJ. Dilthey, mesmo tempo, lugar também no entender, pois
Novos estudos sobre as ciências do espírito. toda manifestação da vida e sua compreensão
estão ligadas a outras, dando lugar a um mo­
vimento que acontece segundo as relações de
afinidade dos indivíduos dados com o todo. 6,
crescendo as relações entre aquilo que é afim,
aumentam ao mesmo tempo as possibilidades
As ciências do espírito de generalização já encerradas na comunhão
entendem o sentido como determinação daquilo que é entendido.
No entender está presente também uma
de um mundo humano qualidade posterior da objetivaçõo da vido,
histórico e objetivado que determina tanto a articulação conforme o
afinidade como a tendência da generalização.
A objetivaçõo da vida contém em si uma multi­
Objetivaçõo do mundo do vido e ciêndo plicidade de relações articuladas. Da distinção
do espírito: "Tudo oqui surgiu pela atividade das raças até a diversidade das formas de
espiritual [...]. Da repartição das árvores em expressão e dos costumes em um tronco de
um parque, da ordem das casas em uma rua, povo, aliás em uma cidade, há uma articulação
do instrumento do trabalhador manual até a de diferenças espirituais condicionado natural­
sentença no tribunal, tudo ao nosso redor, mente. Diferenças de outro tipo se apresentam
em todo momento, aconteceu historicamen­ nos sistemas de cultura, e outras separam as
te". 6 este mundo da vida objetivado é o épocas entre si: em poucas palavras, muitas
mundo que as ciências do espírito procuram
compreender: "Seu âmbito se estende como
o entender, e o entender tem seu objeto
'Hans Sachs (1494-1576), poeta e mestre cantor em
unitário na objetivaçõo da vida". IMuremberga, a cidade em que viveu o grande pintor fílbrecht
Dürer (1471-1528).
Primeira pcirtc ;A filosofia d o s é c u lo X^X a o s é c u lo XX

linhos que delimitam o partir d® algum ponto d® produzida independentemente da atividade do


visto âmbitos devida afins atravessam o mundo ©spírito. Tudo aquilo ©m que o homem, operan­
do espírito objetivo e nele se entrecruzam. A do, imprimiu sua marco, constitui o objeto das
plenitude da vida se manifesta em inumeráveis ciências do espírito.
nuanças e é compreendida por meio do recurso £ também a expressão "ciência do espírito"
a tais diferenças. recebe neste ponto suo justificação. €stamos no
Por meio da idéia de objetivação da vida discurso passado do espírito das leis, do direito,
chegamos pela primeira vez a lançar um olhar da constituição: agora podemos dizer que tudo
na essência daquilo que é histórico. Tudo aqui aquilo em que o espírito se objetivou entra no
surgiu da atividade espiritual e traz, portanto, âmbito das ciências do espírito.
o caráter de historicidade, inserindo-se, como UJ. Dilth®Y,
produto da história, no próprio mundo sensível. f l construção do mundo histórico
Do repartição das árvores em um parque, da nos ciências do espírito,
ordem das casas em uma rua, do instrumento em Crítico da razão histórico.
do trabalhador manual até a sentença no tri­
bunal, tudo ao nosso redor, em todo momento,
aconteceu historicamente. Aquilo que o espírito
insere hoje de seu caráter na própria manifes­
tação de vida, amanhã, quando está diante, é
história. Gnquanto o tempo procede, estornos WlNDELBAND
cercados pelas ruínas de Roma, pelas catedrais,
pelos castelos independentes. A história não é
nada de separado da vida, nado de distinto do
presente por sua distância temporal.
Olhemos o resultado: as ciências do e s­
3 Ciências nomotéticas
pírito têm, como seu dodo complexivo, a obje­ e ciências idiográficas
tivação da vida. Mas, enquanto o objetivação
da vida se torna para nós algo de entendido,
ela encerra sempre, enquanto tal, a relação H divisão das ciências, com base na di­
do exterior com o interior. Por isso tal objeti­ versidade dos objetos pesquisados, em ciên­
vação está em todo lugar ligada no entender cias da natureza e ciências do espírito não se
ao €rleben, em que a unidade da vida se dá mantém, fí psicologia é ciência da natureza
a própria forma e pode ser distinto de todas ou ciência do espírito? Fundada e válida
as outros. A partir do momento que aqui se é, ao contrário, a divisão das ciências com
encontra o dado das ciências do espírito, veri­ base metodológica em ciências nomotéticas
fico-se também que tudo aquilo que é estável 0 ciências idiográficas: "umas são ciências
e estranho, em relação às imagens do mundo da lei, as outras ciências do acontecimento;
físico, deve ser pensado como algo de dado aquelas ensinam aquilo que sem pre existe,
nesse campo. Todo o dado aqui brotou fora 0, estas aquilo que uma vez existiu.
portanto, é histórico: é entendido e, portanto,
contém em si um elemento comum: é conhecido
enquanto é entendido, e contém em si uma Quanto ò divisão destas disciplinas diri­
reunião do múltiplo, pois já a interpretação gidas ao conhecimento do real, hoje é familiar
da manifestação da vida no entender superior a todos a distinção entre ciências naturais e
apóia-se sobre ele. Também o procedimento ciências do espírito: eu não a considero, nesta
de classificação de tais manifestações está, forma, feliz. Natureza e espírito é uma antítese
portanto, já encerrado dentro dos dados dos objetiva que prevaleceu no ocaso do pensa­
ciências do espírito. mento antigo e nos primórdios do medieval, e
£ aqui se completa o conceito dos ciências que em toda a suo aspereza foi conservado no
do espírito. Seu âmbito estende-se como o metafísica recente desde Descartes e Spinoza
entender, e o entender tem seu objeto unitário até Schelling e Hegel. Porém, se interpreto
no objetivação da vida. Assim, o conceito de justamente a otitude da filosofia moderna e as
disciplina espiritual é determinado, conforme conseqüências da crítica teórica, esta separa­
o âmbito dos fenômenos que caem sob ela, ção, embora tendo permanecido no modo geral
por meio da objetivação da vida no mundo de pensar e de se exprimir, não seria agora
0xt0rno. Apenas aquilo que o espírito criou, mais admitida com tão tranqüila segurança de
ele o entende. A natureza, isto é, o objeto modo a poder constituir sem mais a base de
do conhecimento natural, encerra a realidade uma classificação. Além disso, a esta antítese
, . 49
Capítulo terceiro - O kisto ricism o a le m ã o , d e W ilK e lm D iltK ey a AAei n ecU e - —

dos objetos nõo corresponde uma igual antítese apodítico; a das outras, a proposição geral
dos modos do conhecimento. assertiva. [...]
Com efeito, também locke levou o dua­ Assim podemos dizer: as ciências empí­
lismo cartesiano para a fórmula subjetiva que ricas procuram no conhecimento do real ou o
contrapõe a percepção externa à percepção geral na forma da lei de natureza, ou o particular
interior - sensation e réfíection - como dois em sua figura historicamente determinada; ora
órgãos distintos para o conhecimento, de um consideram a forma estável, ora o conteúdo par­
lado do mundo físico exterior, da natureza, do ticular, determinado em si mesmo, do acontecer
outro do mundo interno do espírito; ora, a crítica real. Umas são ciências da lei, as outras são
do conhecimento faz vacilar temerosamente ciências do acontecimento; aquelas ensinam 0
esta concepção e põe em dúvida que se possa que sempre existe, estas aquilo que uma vez
admitir uma "percepção interna” como modo existiu. O pensamento científico é - se posso
de conhecimento particular, e muito menos que compor uma expressão nova - no primeiro caso
unicamente sobre elo se fundem as assim cha­ nomotético-, no segundo, idiográfico. Se preferir­
madas ciências do espírito. Mas a incongruência mos, ao contrário, servirmo-nos de expressões
da divisão objetiva e formal é evidente, prin­ familiares, podemos falar do contraste entre
cipalmente por outro motivo. Acontece, com as ciências naturais e as disciplinas históricas,
efeito, que uma ciência empírica de primeiro porém sempre tendo presente que se classifi­
plano, como a psicologia, não possa ser ligada ca a psicologia, sempre do ponto de vista dò
nem às ciências da natureza nem às ciências do método, sem nenhuma dúvida entre as ciências
espírito: em relação a seu objeto deveria ser naturais.
caracterizada apenas como ciência do espírito, M as o contraste metodológico define
e em certo sentido muito mais como a base de apenas a tratação e nõo o conteúdo do saber.
todas as outras, enquanto, ao contrário, seu Permanece possível, ou acontece efetivamente,
procedimento e método inteiro é de cima a que as mesmas coisas possam ser objeto de
baixo o próprio das ciências naturais. Por isso uma pesquiso nomotético e ao mesmo tempo
a psicologia foi chamada de "ciência natural do também de uma pesquisa idiográfico. Isso se
sentimento interno", ou até "ciência natural do verifica porque o contraste entre o imutável e
espírito". [...] o particular é, em certo sentido, relativo. Aquilo
Por outro lado, a maioria das doutrinas que por longo espaço de tempo não sofre
empíricas que ainda são definidas como ciên­ nenhuma mudança imediatamente sensível,
cias do espírito tende decisivamente a poder e pode por isso ser tratado nomoteticamente
descrever de modo verdadeiramente completo por suas formas invariáveis, a um olhor mais
e exaustivo um acontecimento, mais ou menos circular pode parecer válido apenas por um
extenso, da realidade particular limitada no período de tempo limitado, pode parecer algo
tempo. Também aqui os objetos e os artifí­ de particular. Assim, uma língua segue sempre
cios particulares usados para assegurar sua em todas as suas estruturas as próprias leis
compreensão são extremamente múltiplos. formais que, embora os termos possam mudar,
Trata-se ou de um acontecimento singular ou de permanecem as mesmas, mas de outro lado
uma série de ações e de vicissitudes, da índole esta mesma língua toda particular, com seu
e da vida de um homem individual ou de todo sistema de leis formais igualmente particular,
um povo, dos características e do desenvolvi­ é também apenas um fenômeno particular, um
mento de uma língua, de uma religião, de um fenômeno passageiro na história das línguas
direito, de um produto da literatura, da arte ou humanos. A mesma coisa se pode dizer da
da ciência, 0 cada um destes objetos requer fisiologia, da geologia, em certo sentido oté
uma tratação correspondente à própria índole. da astronomia. 6 eis então que o princípio
Mas o fim científico é sempre o de reproduzir histórico se introduz no campo das ciências
e de entender em sua própria realidade um naturais. [...]
fenômeno da vida humana que se apresentou Pergunta-se o que seria mais útil para
exatamente com fisionomia única. o objetivo de conhecer: descobrir as leis ou
Agora nos encontramos, portanto, diante individuar os acontecimentos? Compreender
do problema de construir uma subdivisão das o ser universal sem tempo, ou os fenômenos
ciências empíricas puramente metodológica particulares no tempo? € desde o princípio é
sobre conceitos lógicos certos. Princípio da claro que se pode responder a esta pergunta
subdivisão é o caráter formal de seus fins cientí­ apenas tendo presente as metas últimas da
ficos : umas procuram leis gerais; as outras, fatos pesquisa científica. [...]
históricos particulares. Para usar a linguagem da Sem dúvida hó também diferenças positi­
lógica formal: a meta de umas é o juízo geral vas, e todavia puramente teóricas, no valor das
Primeira parte - jA filo sofia d o s é c u lo XJX < *° s é c u lo XX

coisas em relação ao fim do conhecimento, mos captar freqüentemente no sinal, e compreender


nõo há outro medido o não ser o grau em que em profundidade seus heróis e as ações por
contribuem poro o conhecimento total, fl coisa eles realizados.
particular permanece objeto de curiosidades UJ. UJindelbcind,
ociosas, caso nõo possa servir de pedra na Prelúdio.
construção da estrutura geral. €m sentido
científico, portonto, o "fato" já é um conceito
teleológico. Nem todo ente real é um fato para
a ciência, mas apenas aquele do qual a ciência
pode, para usar palavras pobres, aprender al­
guma coisa. Observem a história. Muitas coisas R ic k e r t
acontecem sem constituir um fato histórico. Que
Goethe no ano 1 7 7 0 tenha mandado fabricor
uma campainha de portão e uma chave, e no
dia 2 2 de fevereiro uma caixa paro bilhetes, é
documentado por um conto de ferreiro artesão Aprendizado general izante
absolutamente autêntico e, portanto, é coisa
veríssima e certo, mas não é um foto histó­ e aprendizado
rico e não interesso nem para a história da individualizante
literatura nem para a sua biografia. 6 preciso,
portanto, refletir que dentro de certos limites é
impossível dizer de início se a coisa particular fí lógico do ciência histórico nos impõe
que se oferece à observação e se presta a distinguir:
ser transmitida tenha ou não o valor de “fato". - entre aprendizado generalizante (por
Por isso a ciência deve fazer como Goethe em meio do qual chegamos o olhar os objetos do
idade avançada: armazenar, acumular tudo mundo sob os categorias da identidade e do
aquilo de que se pode apoderar, alegre por repetição, articulando assim "a multiplicidade
não descurar nada daquilo que poderia ser-lhe e a policromia da realidade", e tornando des­
útil um dia, e da confiança de que o trabalho se modo possível nelo nos orientarmos);
das gerações futuras, nõo sendo prejudicado - e aprendizado individualizante (que
pelas circunstâncias externas da transmissão, leva ao conhecimento da individualidade de
como um grande crivo conservará o utilizável e um objeto; tal conhecimento, todavio, nõo é
deixará cair o inútil. cópia do objeto, no sentido de conhecimento
Por outro lado, porém, as ciências idio- de "todo o multiplicidade de seu conteúdo",
gráficas têm necessidade a cada passo das mas é escolha de "um conjunto de elementos
proposições gerais que apenas os disciplinas que, nessa composição porticular, pertence
nomotéticas podem lhes dar em uma forma apenas àquele único objeto determinado").
absolutamente correta. Toda explicação cousal
de um evento histórico qualquer pressupõe
necessariamente idéias gerais sobre o curso Se dessas determinações gerais da tarefa
do real, e quando se querem aduzir provas de uma lógica das ciências particulares nos
históricas em forma puramente lógica se põem voltamos para os conceitos fundamentais que
sempre como suas premissas supremas as leis a lógica da ciência histórica deve desenvolver
naturais do acontecer, e principalmente do d0 modo particular, será necessário em primeiro
acontecer espiritual. Quem nõo tivesse a míni­ lugar trazer à consciência a máxima antítese for­
mo idéia de como os homens pensam, sentem mal presente em nossa concepção da realidade
e querem, faliria não apenas na tentativa de empírica, ou seja, perguntar o que significa
reunir juntos os diversos acontecimentos poro logicamente essa antítese e indicar qual termo
conhecer a vicissitude complexiva, mas já na da antítese é determinante para a representa­
tentativa de estabelecer criticamente os fatos ção histórica da realidade. Que hajo dois tipos
particulares. Sem dúvida, é muito estranho como substancialmente diversos de aprendizado da
são no fundo débeis as premissas psicológicos realidade, pode-se talvez compreender de
do ciência histórica. Como se sobe, as leis da modo melhor olhando os conhecimentos pré-
vida espiritual foram formuladas até agora com científicos que possuímos de uma parte mais
extrema imperfeição, mas isso jam ais criou ou menos grande do mundo. Seria ilusório crer
obstáculos para os historiadores: graças ao ter aqui uma cópia da realidade tal qual ela é.
seu conhecimento natural dos homens, à sua Antes que a ciência se disponha a seu trabalho
sensibilidade e por intuição eles souberam já surgiu sempre alguma espécie de elabo­
Cüpltulo terceiro - O k is+ on cism o a le m ã o , d e W ilk e lm D iltk e y a A ^ e in e ck e

ração conceituai, e o ciência encontra como portanto, distinguir a individualidade que diz
material próprio os produtos dessa elaboração respeito a qualquer coisa ou evento - cujo
conceituai pré-científica, nõo a realidade livre conteúdo coincide com suo realidade, e cujo
de interpretações, A máxima distinção formal conhecimento não pode ser alcançado nem
nessa elaboração conceituai pré-científica é, merece ser objeto de aspiração - da individua­
porém, a seguinte. A maior parte das coisas e lidade para nós significativa, e que consiste em
dos eventos nos interessa apenas por aquilo elementos determinados; e devemos ter cloro
que têm em comum com outros e, portanto, que essa individualidade em senso estrito (a
damos a atenção o esse elemento comum, única o que de costume se olude) não constitui
mesmo que de fato toda parte da realidade uma realidade, como o conceito de gênero, mas
seja individualmente diferente de todo outra, é apenas um produto de nosso aprendizado
e nada no mundo se repete exatamente. Uma do realidade, de nosso elaboração conceituai
vez que a individualidade da maior parte dos pré-científica.
objetos nos é totalmente indiferente, nós não H.
a conhecemos; para nós esses objetos não lógico do ciêncio histórico.
são mais que exemplares de um conceito de
gênero, que podem ser substituídos por outros
exemplares do mesmo conceito: mesmo que
nunca sejam idênticos, nós os vemos como tais
e, portanto, os designamos apenas com nomes
de gênero. €sta delimitação, conhecida de S im m e l
todos, do interesse por aquilo que é geral (no
sentido daquilo que é comum a um grupo de ob­
jetos), ou aprendizado generalizante, sobre cuja
base consideramos erradamente que no mundo
existe algo como a identidade e a repetição, 5 O "terceiro reino"
é paro nós ao mesmo tempo de grande valor
prático. €le articulo de um modo determinado
dos produtos culturais
a multiplicidade e a policromia da realidade,
e nos torna possível nela nos orientarmos. Todos os conteúdos religiosos e jurídicos,
Por outro lado o aprendizado generali- científicos ou tradicionais, éticos ou artísticos
zante nõo esgota de nenhum modo aquilo que existem. São "espírito objetivo"e determinam
nos interessa em nosso ambiente e, portanto, "toda a evolução histórica do humanidade".
aquilo que dele conhecemos. Este ou aquele
objeto é mais tomado em consideração justa­
mente por aquilo que lhe é peculiar, e que o Na história do gênero humano Foi d e­
distingue de todos os outros objetos. Nosso senvolvida uma longa série de criações que,
interesse e nosso conhecimento se referem, surgidas pela genialidade ou pelo trabalho
portanto, justamente à sua individualidade, psicológico subjetivo, adquirem uma típica e
àquilo que o torna insubstituível, e mesmo que objetiva existência espiritual, acima das cons­
saibamos que ele se deixa captor, como os ciências particulares que originariamente. os
outros objetos, como exemplar de um conceito produziram e que novamente as reproduzem.
de gênero, todavia não queremos considerá-lo A estas criações pertencem as proposições do
idêntico a outras coisas, mas queremos extraí- direito, as prescrições morais, as tradições em
lo expressamente de seu grupo; isso encontra todos os campos, a língua, as produções da
sua expressão lingüística na designação com arte e da ciência, a religião. Sem dúvida, elas
um nome próprio em vez de um substantivo de encontram-se ligadas a alguma forma exterior,
gênero. Também este tipo de articulação, ou à palavra ou à escritura, a dados dos sentidos
aprendizado individualizante da realidade, é ou do sentimento. Mas esta base material ou
tão corrente que não requer uma análise pos­ pessoal não esgota, em sua condicionalidade
terior. M as uma coiso é importante e deve ser temporal, a objetividade dos fatos espirituais
salientada: o conhecimento da individualidade e a forma particular de suo existência. O e s­
de um objeto não constitui de modo nenhum pírito que está incorporado em um livro está
uma cópia no sentido de que conhecemos toda sem dúvida nele, pois dele pode ser extraído;
a multiplicidade de seu conteúdo, mas também também pode estar apenas enquanto tal livro
aqui se realiza um complexo de elementos que, acolhe em si o espírito do autor, o conteúdo de
nesta particular composição, pertence apenas seus processos psíquicos. Mas o autor morreu,
àquele único objeto determinado. Devemos, seu espírito não pode subsistir como processo
Primeira parte - jA filo sofia d o s é c u lo a o s é c u lo X X

psíquico originário, mas apenas para o leitor, própria manifestação. O conteúdo do pensa­
cuja dinâmica espiritual, a partir d® traços 0 mento é verdadeiro, tanto se ele for ou não
sinais sobre o papel, reconstrói o 0spírito. pensado, como na csntralidade de ser falso,
Tal processo, porém, tem como condição a 50 0I0 for ou não pensado. A isso corresponde,
existência do livro e, de um modo totalmsnt© do outro lado, o princípio essencial, ou seja,
divorso 0 mais im0diato do que 0I0 não tenha, que ess© cont0Údo não é de modo nenhum a
o fato de que o sujeito que reproduz respira 0 cópia naturalista do objeto, p0lo qu0 ele vale.
sabe ler. O conteúdo, ao qual o leitor dá ©m O pensam0nto idealista da discrepância entre
si a forma d© processo vivo, 0stá no livro d0 a representação 0 o s©r 0m si da coisa perma­
modo objetivo, 0 o leitor o "apreende". Mas, se nece aqui fora de discussão: que os objetos
também ele não o apreende, o livro não perde não possam passar em nossa consciência pode
esse conteúdo, e sua verdade ou falsidade, ser ©xato, mas, para o ponto d0 vista presente,
sua nobreza ou vulgaridade não dependem o problema é a priori outro. Pois aqui uma re­
evidentsment© do fato d e que o significa­ alidade qu© não é imediatamente constatável
do do livro tenha sido recriado em ©spíritos como dado dos sentidos, nem pode ser com-
subj0tivos com maior ou m0nor freqüência 0 pre0ndida em seu ser por nenhum proc0sso d0
compre0nsão. Uma forma igual de existência pensamento, 0 oposta ao conhecer, o qual, por
têm todos os conteúdos religiosos ou jurídicos, sua vez, não a reproduz como uma cópia de
científicos ou tradicionais, éticos ou artísticos. gesso reproduz o original, mas 50 movimenta
Cies afloram historicamente 0 são, ao longo da em formas absolutamente diferentes, vive por
história, vez por outra reproduzidos, mas, entre assim dizer uma vida diferente em relação à da
©stas duas realizações psíquicas, eles têm uma realidad©. O s©r real dos elementos químicos
existência de forma diversa, mostrando assim co0xist0ntes sem relações recíprocas nada tem
que, também nessas formas subjetivas de rea- a ver com a lei das proporções múltiplas ou
Iidad0, subsist0m como algo qu0 n0las não com o sistema de M0nd0l0ieff; os movimentos
se esgota e é por si mesmo significativo, sem das estrelas não contêm absolutam0nte nada
dúvida, como espírito que, enquanto espírito da I0Í de. gravitaçõo. €ssas fórmulas, aliás,
objetivo, cujo significado concreto p0rman0C0 transportam na realidad© uma língua qu© não
intacto acima de sua vitalidade subjetiva nesta encontra nela correspondência nem sequer de
ou naquela consciência, não tem realmente uma voz. Portanto, se aquele terceiro reino
nada a fazer com seus pontos de apoio sen­ do qual as "leis naturais" podem servir como
síveis. (Esta categoria que permite conservar o o 0X0mplo mais simples, ou talvez como o
supermaterial no material e o supersubjetivo no símbolo, é sem dúvida distinto do processo
subjetivo determina toda a evolução histórica repres0ntativo que o traduz na forma da psiqui-
da humanidade; este ©spírito obj0tivo p0rmit0 dade, 0I0 é também distinto das substâncias 0
qu0 o trabalho da humanidad© conserve S0US dos movimentos que o traduzem na forma da
resultados acima das pessoas individuais e das realidad©. Para o surgimento da polaridade
reproduções individuais. [...] , de sujeito ©d© obj©to, o ser divid©-s© ©m dois
levanta(-se), sobre as realidades opos­ reinos, cujas qualidades ou funções são sem
tas do mundo, sujeito e objeto, um reino de dúvida incomparáveis. Sua relação, porém, que
conteúdos ideais, que não é nem subjetivo nem chamamos de conhecim©nto, torna-se possível
objetivo. €sses conteúdos têm valor e signifi­ porque realiza-se na forma de um como do
cado apenas em si e por si, mas, justamente outro o mesmo conteúdo, o qual, em si © por
por isso, podem formar como que a matéria si, transcende essa oposição. Tal concepção da
comum que entra, de um lado, na forma da unidade d© sujeito ©de objeto é, em s©u prin­
subjetividade 0, do outro, na da obj0tividad0, cípio, muito diferente da spinoziana, segundo
0 assim m0d0ia a relação 0ntre os dois 0 re­ a qual os dois termos, por seu próprio ser, se
presenta sua unidade. Pod0r-s0-ia, portanto, perdem na unidade da substância absoluta,
indicar 0ssa t0oria como a do "t0rc0iro reino", exprimindo apenas as duas formas em que
0m que-entra aquilo qu© 0xpus, traçando as se realiza sua real existência metafísica, flqui,
linhas essenciais do pensamento hegeliano, ao contrário, sujeito © obj©to permanecem em
sobre a doutrina do espírito objetivo. O que sua ©ssência também mais separados, mas o
importa é, d© um lado, o p0nsam0nto que, no cosmo ideal dos conteúdos que se realizam sob
conhecimento, não só se realiza em nós um uma ou sob a outra destas categorias, ©difica,
processo psicológico, e é experimentado inte- sobre a diferenciação destes sistemas reais,
riorm0nt0 um ©stado d0 consciência, mas esse a unidad© daquilo qu© justamente neles se
proc0sso 0 0ssa consciência têm um cont0údo realiza, e assegura assim a possibilidade da
que vale também independentemente de sua verdode. fl descoberta deste terceiro reino,
Capítulo terceiro - O k isto H cism o a le m ã o / d e W ilk e lm I^il+key a AAí‘ int’ í [<í1

embora confusamente formulada e privada de mos um com o outro, fl Zivilisation levanta-se


fundamento gnosiológico, é a grande obra de além da pura natureza: esta é reorganizada
Platão, que em sua teoria das idéias expôs pelo intelecto impelido pela vontade de vida,
uma das soluções típicas do problema sujeito- orientado para o útil. O âmbito inteiro das in­
objeto. venções técnicas pertence em primeiro lugar a
G. Simmel, isso. Como invenções, como produções de um
Os problem as fundam entais d a Filosofia. cérebro espiritualmente produtivo 0 original elas
são também produções culturais. Todavia pode-
se explicá-las também biologicamente, com
base naquilo que se chama de “adaptação". O
próprio ato das invenções tem, portanto, uma
componente biológica e uma de tipo cultural.
M e in e c k e 6 uma vez produzidas, aplicadas e difundidas,
elas ameaçam, quando uma vida espiritual
independente não as sustenta, recair na pura
naturalidade, porque uma espécie de técnica
aplicada encontra-se também junto aos animais.
B Distinção entre civilização Tentei representar esse âmbito intermediário do
utilitário em um exemplo, a razão de Cstado.
e cultura O historiador terá de ocupar-se continuamente
disso, não só porque a maior parte das causa-
f) Zivilisation (civilização) é a reorga­ lidades, que ele deve pesquisar, pertencem a
nização da notureza efetuada p o r um inte­ ele, mas também porque os desenvolvimentos
lecto (com suas invenções) "impelido pela de fatos nele pod0m, com freqüência de modo
vontade d e vida, orientado paro o útil". Fl imperceptível, se tornar produções culturais.
Kultur (cultura) se tem onde o homem "cria Deve - sim, não temos outra palavra - fazer a
ou procura alguma coisa de bom e de belo alma vibrar, para que o puro útil se torne algo
p o r si mesmo, ou então procura o verdadeiro de belo ou de bom. De outra forma ele perma­
p or si mesmo". nece pura produção intelectual, sem alma, sem
espírito, pura Zivilisation e não cultura, fl cultura
entra apenas onde o homem, com toda a sua
Nós distinguimos, com Troeltsch, dos interioridade, não apenas com o querer e o in­
valores de vida inferiores, puramente animais, telecto, empreende a luto com a natureza; onde
que para o historiador podem ser considerados ele age avaliando, no sentido mais elevado do
apenas os superiores, valores espirituais de termo; onde ©le cria ou procura algo de bom
vida ou valores culturais, que formam a esfe­ ou de belo em si mesmo, ou então procura o
ra de interesses própria do historiador, cuja verdadeiro em si mesmo. Tudo aquilo qu© ele,
compreensão constitui sua meta mais elevada, neste sentido, faz, avaliando, toma-se precioso
Não compreendemos sob o termo espírito sim­ também para o historiador, atesta-lhe a conti­
plesmente o psíquico, e sim, no sentido antigo, nuidade e a fertilidade do elemento espiritual
a vida psíquica superiormente desenvolvida, na história, mostra-lhe o caminho que o desdo­
exatamente aquilo que distingue, escolhe e bramento daquele mesmo elemento tomou até
julga, e por meio da qual brota a cultura. Cultu­ ele. Mas, para compreendê-lo totalmente, ele
ra é, portanto, manifestação e irrupção de um deve, como dizíamos, pesquisar também todo
elemento espiritual dentro da conexão causai o âmbito do desenvolvimento causai dos fatos,
universal. Cntre a vida humana de tipo cultural que em grande parte não têm nada a ver com a
0 a de tipo natural encontra-se um âmbito cultura. Cm sua representação, se esta procede
intermediário que participa de ambos, que retamente, aquilo que está ligado aos valores e
indicamos com o nome que está se tornando é provido de valor brilhará apenas vez ou outra,
sempre mais geral de civilização (Zivilisation), exatamente como na vida, como uma flor rara
e o distinguimos do mais elevado de Hultur naquilo que cresce comumente.
espiritual, no sentido mais completo do termo,
F. Meineck
enquanto um uso lingüístico muito incerto, mas Páginas de historiografia
também muito difundido, mistura os dois ter­ e de filosofia da história.
C a p ítu Io q u a r to

J\ A a x W e b e r :

o desencan+amento do mundo
e a metodologia
das ciências kistónco-sociais

• Historiador, sociólogo, metodólogo, economista e político, Max Weber


(1864-1920) é um dos pensadores de maior relevo na passagem entre o século XIX
e o século XX: a influência de suas idéias até hoje está bem presente sobre todo
o arco dos estudos sociais, além da metodologia. Sua produção
científica é muito vasta. Weber
De seus trabalhos, lembramos: A ética protestante e o espíri- e a enorme
to do capitalismo (1904-1905); A objetividade “cognoscitiva " da influência
ciência social e da política social (1904); O trabalho intelectual de suas teorias
como profissão (1919); Escritos de sociologia da religião (3 volu- §1
mes, 1920-1921); Economia e sociedade (1922).

• Para Weber há uma só ciência, uma vez que único é o critério para estabelecer
a cientificidade das diversas disciplinas: temos o conhecimento científico - tanto
nas ciências naturais como nas histórico-sociais - quando conseguimos produzir
explicações causais: scire est scire per causas. Ora, porém, a realidade apresenta
aspectos infinitos, pode ser estudada dos mais disparatados pontos de vista, ou
seja, a partir das mais diversas perspectivas.
O sociólogo ou o historiador da realidade sem limites que O cientista
se apresenta diante deles operam seleções, escolhem tratar um social
argumento ao invés de outro, um aspecto de um evento ao invés não glorifica
de outro: por exemplo, um historiador decide interessar-se pela e não condena,
Revolução Francesa mais do que pelas expedições de Xerxes e mas para ele
escolhe o estudo das relações entre Revolução e Igreja católica, é indispensável
de preferência, apenas para exemplificar, a realizar pesquisas a "referência
aos valores"
sobre o funcionamento dos tribunais.
Como é que, portanto, acontece tudo isso? Com quais cri­ - > 5 2
térios o sociólogo ou o historiador fazem as escolhas dos argu­
mentos a tratar ou decidem quais aspectos e problemas enfrentar? Pois bem, tais
escolhas e decisões ocorrem - afirma W eber - com base na referência aos valores.
É o valor da justiça que guia a escolha do estudo dos tribunais no período da
Revolução Francesa; é o valor da eficiência que impele a pôr a atenção sobre a
máquina burocrática; e assim por diante. A referência aos valores é um princípio
de escolha; ele serve para estabelecer quais serão os problemas, os aspectos dos
fenômenos, isto é, o campo de pesquisa dentro do qual a investigação procederá
depois de modo cientificamente objetivo com a finalidade de chegar a explicações
causais dos próprios fenômenos.

• O cientista social trabalha com conceitos como "economia


citadina", "capitalismo", "seita", "igreja" etc. A fim de introduzir "Tipos ideais"
rigor na pesquisa histórico-social, Weber propõe a teoria do "tipo como
ideal"; o tipo ideal é uma construção intelectual com objetivos instrumentos
heurísticos. heurísticos
Acentuam-se, por exemplo, alguns traços da "economia - » §3
citadina", do "padre católico" etc., traços "difusos e discretos,
Primeira parte - y\ filo sofia d o s é c u lo X ^ X a o s é c u lo X X

existentes aqui em maior medida e ali em menor, e por vezes também ausentes",
e assim fazendo surge um modelo, um tipo-ideal ou modelo ideal-típico da eco­
nomia citadina, ou do padre católico etc.; e tal tipo ideal serve para ver o quanto
a realidade efetiva se afasta ou se aproxima do tipo ideal. O "tipo ideal" é um
instrumento heurístico.

Como • Instrumento heurístico é também a outra idéia de Weber


determinar sobre a possibilidade objetiva. Um fato histórico-social explica-se
o peso em geral por meio de uma constelação de causas; e justamente
específico a fim de determinar o maior ou menor peso de uma causa par­
das causas ticular, o historiador imagina um possível desenvolvimento do
particulares evento, excluindo justamente tal causa, e se pergunta o que teria
de um evento acontecido se essa causa não tivesse existido.
social Por exemplo: os fuzilamentos que na noite de março de
-> § 4 1848, em Berlim, iniciaram a revolução foram determinantes, ou
a revolução teria igualmente acontecido? Em poucas palavras:
constroem-se possibilidades objetivas, ou seja, juízos sobre como as coisas podiam
acontecer, para compreender melhor como aconteceram.

• A referência aos valores não eqüivale nem implica minimamente que o


homem de ciência, enquanto cientista, deva emitir juízos de valor: o juízo que
glorifica ou condena não tem lugar na ciência. A ciência explica e não avalia. W e­
ber distingue claramente entre juízos de fato e juízos de valor,
Juízos de fato entre "aquilo que é" e "aquilo que deve ser".
e juízos de valor; E em base a tal distinção ele toma posição sobre o problema
a "avaliabilidade" da avaliabilidade nas ciências sociais. E uma tomada de posição
das ciências que, dentro de seu trabalho, assume dois significados:
histórico- - um significado-epistemológico, que consiste na liberdade
sociais
da ciência em relação a avaliações ético-políticas e religiosas;
—>§ 5
- e outro significado ético-pedagógico, que consiste na defesa
da ciência em relação às incursões dos assim chamados "socialistas
de cátedra", que subordinavam a cátedra a ideais políticos, a verdade à política.
Não é a ciência que deverá dizer-nos o que devemos fazer. O médico poderá cuidar
de nós e tam bém curar-nos; mas não lhe cabe, enquanto médico, estabelecer se
vale ou não vale a pena viver.

• De 1904-1905 é A ética protestante e o espírito do capitalismo. O proble­


ma da predestinação é grande problema para os calvinistas. Estes viram o sinal
da certeza da salvação no sucesso mundano em sua profissão,
Quando uma sobretudo no sucesso econômico.
concepção Para vencer a angústia da predestinação, o indivíduo é,
religiosa portanto, impelido a trabalhar, ao sucesso e - portanto - a eco­
produz nomizar o tem po e a racionalizar os métodos de trabalho. A ética
um fenômeno protestante, além disso, impõe ao crente praticar uma conduta
econômico ascética, não dissipar o lucro, mas reinvesti-lo. Estamos, assim,
—»§ 6
dentro do espírito do capitalismo.

• Eis, então, invertida a tese do materialismo histórico de Marx, segundo o


qual seria a estrutura econômica o fator determinante da superestrutura das idéias.
W eber desdogmatiza a posição de Marx, mostrando sua injustificada unilatera-
lidade. Ele - no ensaio A objetividade “cognoscitiva" da ciência
Weber inverte social e da política social (1904) - distingue entre:
a tese - fenômenos econômicos verdadeiros e próprios (um banco,
do materialismo por exemplo);
histórico - fenômenos economicamente importantes (por exemplo,
—>§ 7
os processos da vida religiosa);
Capítulo quarto - M ax W e b e r e a s c iê n c ia s K is+ órico -sociais

- e fenômenos condicionados economicamente (por exemplo, os fenômenos


artísticos).
A concepção marxista a respeito da relação unidirecional da estrutura eco­
nômica que determinaria o mundo das idéias, a superestrutura, é uma teoria que
- escreve W eber - "sobrevive hoje apenas nas cabeças carentes de competências
científicas e de diletantes".

• O mundo, assim como W eber o vê, é um mundo desen- Razá0/ ciência


cantado: não é preciso mais agradar os espíritos para resolver e técnica
os problemas; bastam razão e meios técnicos. Isso, mesmo que "desencantam
seja necessário adm itir que a própria ciência funda-se sobre uma o mundo"
escolha irracional da razão. Mas, em todo caso, W eber é da opi- -»§ 8
nião que a decisão por uma fé religiosa eqüivaleria, neste nosso
mundo desencantado, ao "sacrifício do intelecto".

fora chamado, a fim de ensinar economia


política, em 14 de junho de 1920.
A obra de M ax Weber, complexa e
M ax Weber nasceu em Erfurt, em 21 profunda, constitui um monumento da
de abril de 1864. Por meio do pai, que foi compreensão dos fenômenos históricos e
deputado do Partido Nacional Liberal, We­ sociais e, ao mesmo tempo, da reflexão sobre
ber teve oportunidade de entrar bem cedo o método das ciências histórico-sociais. Os
em contato com ilustres historiadores, filó­ trabalhos de Weber podem ser classificados
sofos e juristas da época. Estudou história, em quatro grupos:
economia e direito nas universidades de 1) Estudos históricos:
Heidelberg e Berlim. Laureou-se em Gõt- a) Sobre as sociedades mercantis da
tingen, em 1889, com uma tese de história Idade Média (1889);
econômica sobre a História das sociedades b) H istória agrária rom ana em seu
comerciais na Idade Média. significado para o direito público e privado
Em 1892 conseguiu a livre-docência (1891);
com A história agrária romana em seu sig­ c) As condições dos camponeses na
nificado para o direito público e privado. Alemanha oriental do Elba (1892);
Em 1894 tornou-se professor de economia d) As relações agrárias na antigüidade
política na Universidade de Friburgo. Em (1909).
1896 passou a ensinar em Heildelberg. 2) Estudos de sociologia da religião:
De 1897 a 1903 sua atividade científi­ a) A ética protestante e o espírito do
ca e didática ficou bloqueada por causa de capitalismo (1904-1905);
grave doença nervosa. Nesse meio tempo, b) Escritos de sociologia da religião (3
em 1902, juntamente com Werner Som- vols., 1920-1921).
bart, tornara-se co-diretor da prestigiosa 3) Tratado de sociologia geral: Econo­
revista “Archiv für Sozialwissenschaft und mia e sociedade (1922).
Sozialpolitik” (“ Arquivo de ciência social e 4) Escritos de metodologia das ciências
de política social” ). Em 1904 realizou uma histórico-sociais:
viagem aos Estados Unidos. a) A “objetividade” cognoscitiva da
Durante a Primeira Guerra Mundial, ciência social e da política social (1904);
defendeu as “ razões ideais” da “ guerra ale­ b) Estudos críticos acerca da lógica das
m ã” e prestou serviço como diretor de um ciências sociais (1906);
hospital militar. Acompanhou com preocu­ c) Algumas categorias da sociologia
pação angustiada a ruína moral e cultural da abrangente (1913);
Alemanha, jogada pelo imperador e por seus d) O significado da “avaliabilidade”
ministros no beco sem saída da pura política das ciências socioló gicas e econôm icas
de poder. Depois da guerra participou da (1917);
redação da Constituição da República de e) O trabalho intelectual como profis­
Weimar. Morreu em Munique, para onde são (1919).
Primeira parte A filosofia d o s é c u lo s é c u lo }ÇK

Historiador, sociólogo, economista e naturais como nas ciências histórico-sociais,


político, Weber trata dos problemas meto­ temos conhecimento científico quando con­
dológicos com a consciência das dificuldades seguimos produzir explicações causais.
que emergem do trabalho efetivo do histo­ Entretanto, não é difícil ver que toda
riador e do sociólogo, mas principalmente explicação causai é somente uma visão frag­
com a competência do historiador, do soció­ mentária e parcial da realidade investigada
logo e do economista. (por exemplo, as causas econômicas da
Primeira Guerra Mundial). E como, além
disso, a realidade é infinita, tanto extensiva
;A q u e stã o como intensivamente, é óbvio que a regres­
são causai deveria ir até o infinito: para o
d ía referen
4 cia a o s valores conhecimento exaustivo do objeto, os efeitos
seriam estabelecidos “ desde a eternidade” .
Todavia, nós nos contentamos com cer­
Para Weber temos uma “ só ” ciência tos aspectos do devir, estudamos fenômenos
porque é “ único” o critério de cientificida- precisos e não todos os fenômenos, em suma
de das diversas ciências: tanto nas ciências realizamos uma seleção, tanto dos fenôme­

Max Weber (1864-1920) foi sociólogo, economista e teórico do método das ciências histórico-sociais.
Nesta fotografia de 1919 vemo-lo com barba e chapéu,
enquanto discute com o dramaturgo e pacifista comunista Ernst Toller.
Capítulo quarto - A W W e b e r e a s c iê n c ia s k is+ ó W co -so cia is

nos a estudar como dos pontos de vista a mais uma vez, mostra o absurdo da preten­
partir dos quais os estudamos e, conseqüen­ são de que as ciências da cultura poderiam
temente, das causas de tais fenômenos. N ão e deveriam elaborar um sistema fechado de
pode haver dúvidas sobre tudo isso. conceitos definitivos. i?yr?grTT2~|
M as como se realiza, ou melhor, como
funciona essa seleção? Com uma expressão
tomada de Rickert, Weber responde a essa A teoria d o "tip o id ea l"
pergunta dizendo que a seleção se realiza
tendo como referência os valores.
E aqui é preciso que nos entendamos N a opinião de Weber, com freqüência
com muita clareza. Antes de mais nada, a linguagem do historiador ou do sociólogo,
a referência aos valores (Wertbeziehung) diferentemente da linguagem das ciências
não tem nada a ver com o juízo de valor naturais, funciona mais por sugestão do que
ou com a apreciação de natureza ética. por exatidão. E precisamente com o objeti­
Weber é explícito: o juízo que glorifica ou vo de dar rigor suficiente a toda uma gama
condena, que aprova ou desaprova, não tem de conceitos utilizados nas investigações
lugar na ciência, precisamente pela razão histórico-sociais, Weber propôs a teoria
de que ele é subjetivo. Por outro lado, a do “ tipo ideal” . Escreve ele: “ O tipo ideal
referência aos valores, em Weber, não tem obtém-se pela acentuação unilateral de um
nada a dividir com um sistema objetivo e ou de alguns pontos de vista pela conexão
universal qualquer de valores, um sistema de certa quantidade de fenômenos difusos
em condições de expressar uma hierarquia e discretos, existentes aqui em maior e lá
de valores unívoca, definitiva e válida sub em menor medida, por vezes até ausentes,
specie aeternitatis. Dilthey já constatara a correspondentes àqueles pontos de vista
moderna “ anarquia de valores” ; e Weber unilateralmente evidenciados, em um qua­
aceita esse relativismo. dro conceitual em si unitário. Em sua pureza
A referência aos valores, portanto, não conceitual, esse quadro nunca poderá ser
eqüivale a pronunciar juízos de valor (“ isto encontrado empiricamente na realidade;
é bom ” , “ aquilo é justo” , “ isto é sagrado” ), ele é uma utopia, e ao trabalho histórico se
nem implica o reconhecimento de valores apresenta a tarefa de verificar, em cada caso
absolutos e incondicionais. Então, o que pre­ individual, a maior ou menor distância da
tende Weber quando questiona a “referência realidade daquele quadro ideal, estabelecen­
aos valores” ? Para sermos breves, devemos do, por exemplo, em que medida o caráter
dizer que a referência aos valores é um prin­ econômico das relações de determinada
cípio de escolha; ele serve para estabelecer cidade pode ser qualificado conceitualmen-
quais os problemas e os aspectos dos fenô­ te como próprio da economia urban a” .
menos, isto é, o campo de pesquisa no qual Pode-se ver, portanto, que o “ tipo
posteriormente a investigação se realizará ideal” é instrumento metodológico ou, se
de modo cientificamente objetivo, tendo em assim se preferir, expediente heurístico ou
vista a explicação causai dos fenômenos. de pesquisa. Com ele, construímos um qua­
A realidade é ilimitada, aliás, infinita, dro ideal (por exemplo, de cristianismo, de
e o sociólogo e o historiador só acham inte­ economia urbana, de capitalismo, de Igreja,
ressantes certos fenômenos e aspectos desses de seita etc.), para depois com ele medir ou
fenômenos. E estes são interessantes não por comparar a realidade efetiva, controlando a
uma qualidade intrínseca deles, mas apenas aproximação (Annàherung) ou o desvio em
em referência aos valores do pesquisador. relação ao modelo.
Segue-se daí que ao historiador cabe Brevemente, pode-se dizer que:
exclusivamente a explicação de elementos e 1) a tipicidade ideal não se identifica
aspectos do acontecimento enquadrável em com a realidade autêntica, não a reflete nem
determinado ponto de vista (ou teoria). E os a expressa;
pontos de vista não são dados de uma vez 2) ao contrário, em sua “ idealidade” , a
por todas: a variação dos valores condiciona tipicidade ideal afasta-se da realidade efetiva
a variação dos pontos de vista, suscita novos para afirmar melhor seus vários aspectos;
problemas, propõe considerações inéditas, 3) a tipicidade ideal não deve ser con­
descobre novos aspectos. É o feixe do maior fundida com a avaliação ou com o valor,
número de pontos de vista definidos e com­ “ este filho da dor de nossa disciplina” ;
provados que nos permite ter a idéia mais 4) o tipo ideal, repetindo, pretende ser
exata possível de um problema. Tudo isso, instrumento metodológico ou instrumento
Primeira parte - J K f ilo s o f i a d o s é c u lo X J X o » s é c u lo X X

heurístico: os conceitos ideais-típicos são


uniformidades limites.
■ Tipo ideal. No contexto das refle­
xões metodológicas de Max Weber,
a do tip o ideal é uma idéia destina­
4 O p e s o d a s d ife re n te s
da a funcionar como instrumento
c a u s a s n a re a liz a ç ã o heurístico, com a finalidade de uma
determinação e maior rigorização
d o s ev en to s
dos conceitos utilizados nas pesquisas
histórico-sociais - conceitos como:
seita, capitalismo, ética protestante,
A pesquisa histórica é individualizante, cristianismo, cidade comercial na
isto é, diz respeito às individualidades his­ Idade Média etc.
tóricas (a política agrária romana, o direito Pois bem, o cientista social metodo-
comercial na Idade M édia, o nascimento do logicamente hábil constrói modelos
capitalismo, as condições dos camponeses ideais-típicos dos fenômenos aos quais
na Alemanha oriental do Elba etc.). O his­ estes conceitos se referem, utilizando
toriador quer descrever e dar conta dessas traços efetivamente existentes de
individualidades. M as dar conta delas signi­ tais fenômenos, acentuando outros
fica explicá-las. E, para explicá-las, necessi­ também eles existentes, introduzindo
ta-se de conceitos e de regularidades gerais traços talvez inexistentes; construído
pertencentes às ciências nomológicas. Entre de tal modo um quadro unitário do
fenômeno, ele se aproxima do fe­
elas, vistas como instrumentos de explicação nômeno histórico concreto para ver
histórica, Weber considerou especialmente a como e quanto a realidade efetiva
sociologia. Em outros termos, para explicar se aproxima ou se desvia do modelo
os fatos históricos precisa-se de leis, que o ideal-típico.
historiador vai buscar principalmente na
sociologia, que descobre “ conexões e regu­
laridades” nos comportamentos humanos.
Deve-se notar, porém, que, quando o
historiador explica um fato, geralmente o
faz referindo-se a uma constelação de causas.
M as, a seus olhos, nem todas as causas têm
igual peso. Eis, portanto, a questão: como
pode o historiador determinar o peso de uma
causa na ocorrência de um acontecimento?
Para bem compreender a questão, Weber se
remete a algumas opiniões do historiador
Eduard Meyer, para quem o desencadeamen-
to da segunda guerra púnica foi conseqüência
de uma decisão voluntária de Aníbal, assim
como a explosão da guerra dos sete anos ou
da guerra de 1866 foram, respectivamente,
conseqüências de uma decisão de Frederico,
o Grande, e de Bismarck. Meyer também afir­
mara que a batalha de Maratona foi de gran­
de importância histórica para a sobrevivência M ax Weber
da cultura grega e, por outro lado, que os retratado por Otto Neumann.
fuzilamentos que, na noite de março de 1848,
deram início à revolução em Berlim não fo­
ram determinantes, pelo fato de que, dada
a situação na capital prussiana, qualquer historiador constrói ou imagina um desen­
incidente teria podido fazer explodir a luta. volvimento possível, excluindo uma causa
Opiniões desse tipo atribuem a certas para determinar seu peso e sua importância
causas importância maior que a outras. E no devir efetivo da história. Assim, em rela­
essa desigualdade de significado entre os ção aos exemplos anteriores, o historiador
vários antecedentes do fenômeno pode ser se propõe, pelo menos implicitamente, a
detectada, diz Weber, já que, com base nos pergunta: o que teria acontecido se os per­
conhecimentos e nas fontes à disposição, o sas houvessem vencido, se Bismarck não
Cãpítulo quarto - ]\A a x W e b e f e a s c iê n c ia s k is + ó n c o -s o c ia is

houvesse tomado aquela decisão e se não Com base nisso, é oportuno fixar em
houvesse ocorrido o fuzilamento em Ber­ alguns breves pontos as considerações de
lim? Da mesma forma que um penalista, o Weber sobre a questão da avaliabilidade:
historiador isola mentalmente uma causa 1) O professor deve ter claro quando faz
(por exemplo, a vitória de M aratona ou o ciência e, ao contrário, quando faz política.
fuzilamento nas ruas de Berlim), excluindo-a 2) Se o professor, durante uma aula,
da constelação de antecedentes, para depois não pudesse se abster de produzir avalia­
se perguntar se, sem ela, o curso dos aconte­ ções, então deveria ter a coragem e a probi­
cimentos teria sido igual ou diferente. dade de indicar aos alunos aquilo que é puro
Desse modo, constroem-se possibili­ raciocínio lógico ou explicação empírica,
dades objetivas, isto é, opiniões (baseadas e aquilo que se refere a apreços pessoais e
no saber à disposição) sobre como as coisas convicções subjetivas.
podiam ocorrer, para se compreender me­ 3) O professor não deve aproveitar de
lhor como elas ocorreram. Prosseguindo no sua posição de professor para fazer propa­
exemplo, se os persas houvessem vencido, ganda de seus valores; os deveres do pro­
então é verossímil (ainda que não necessá­ fessor são dois:
rio, pois Weber não é determinista) que eles a) de ser cientista e de ensinar os outros
houvessem imposto na Grécia, como fizeram a se tornarem também;
em toda parte onde venceram, uma cultura b) de ter a coragem de pôr em discussão
teocrático-religiosa baseada nos mistérios seus valores pessoais e de pô-los em discus­
e nos oráculos. Esta é uma possibilidade são no ponto em que se pode efetivamente
objetiva e não gratuita, para que compreen­ discuti-los, e não onde se pode facilmente
damos que a vitória de M aratona é causa contrabandeá-los.
muito importante para o desenvolvimento 4) A ciência é distinta dos valores, mas
posterior da Grécia e da Europa. Já os não está separada deles: uma vez fixado o
fuzilamentos diante do castelo de Berlim, objetivo, a ciência pode nos dar os meios
em 1848, pertencem à ordem das causas mais apropriados para alcançá-lo, pode pre­
acidentais, pelo fato de que a revolução teria ver quais serão as conseqüências prováveis
explodido de qualquer forma. BffÉinri do empreendimento, pode nos dizer qual é
ou será o “ custo” da realização do fim a que
nos propomos, pode nos mostrar que, dada
uma situação de fato, certos fins são irreali-
;A polêmica záveis ou momentaneamente irrealizáveis, e
s o b r e a //^ A ã o - a v a lia b > ilid a d e ,, pode nos dizer também que o fim desejado
choca-se com outros valores.
Em todo caso, a ciência nunca nos dirá o
Weber distingue claramente entre co­ que devemos fazer, e como devemos viver. Se
nhecer e avaliar, entre juízos de fato e juízos propusermos essas interrogações à ciência,
de valor, entre “ o que é” e “ o que deve ser” . nunca teremos resposta, porque teremos
Para ele a ciência social é não-valorativa, no batido à porta errada. Cada um de nós deve
sentido de que procura a verdade, ou seja, buscar a resposta em si mesmo, seguindo sua
procura apurar como ocorreram os fatos e inspiração ou sua fraqueza. O médico pode
por que ocorreram assim e não diferente­ até nos curar, mas, enquanto médico, não
mente. A ciência explica, não avalia. está em condições de estabelecer se vale ou
Dentro do trabalho de Weber, tal toma­ não vale a pena viver. H gQ Rn
da de posição tem dois significados:
a) um, epistem ológico, consiste na
defesa da liberdade da ciência em relação a A ética protestante
avaliações ético-político-religiosas (uma teo­ e o espírito do capitalismo
ria científica não é católica nem protestante,
não é liberal nem marxista);
b) o outro significado, ético-pedagógi- Tanto em seu grande tratado Econo­
co, consiste na defesa da ciência em relação mia e sociedade (ver o capítulo: “Tipos de
às deformações demagógicas dos chamados comunidade religiosa” ) como nos Escritos
“ socialistas de cátedra” , que subordinavam de sociologia da religião, Weber estudou a
o valor da verdade a valores ético-políti- importância social das formas religiosas de
cos, isto é, subordinam a cátedra a ideais vida. O ponto de partida da história reli­
políticos. giosa da humanidade é um mundo repleto
Primeira parte - ;A filo sofia d o s é c u lo X^X a ° s é c u lo XX

de sagrado e, em nossa época, o ponto de 2) esse Deus, onipotente e misterioso,


chegada é aquilo que Weber chama de desen­ predestinou cada um de nós à salvação ou
canto do mundo: “ A ciência nos faz ver na à danação, sem que, com nossas obras,
realidade externa unicamente forças cegas, possam os modificar um decreto divino já
que podemos dispor a nosso serviço, mas estabelecido;
não pode fazer sobreviver nada dos mitos 3) Deus criou o mundo para sua glória;
e da divindade com que o pensamento dos 4) esteja destinado à salvação ou à da­
primitivos povoava o universo. Nesse mun­ nação, o homem tem o dever de trabalhar
do desprovido de encantos, as sociedades para a glória de Deus e criar o reino de Deus
humanas evoluem para uma organização sobre esta terra;
mais racional e sempre mais burocrática” . 5) as coisas terrenas, a natureza huma­
N ã o pod em os nos deter aqui nos na, a carne, pertencem ao mundo do pecado
interessantíssim os problem as levantados e da morte; a salvação para o homem é
no grande tratado Economia e sociedade. tão-somente um dom totalmente gratuito
Entretanto, é obrigatório pelo menos acenar da graça divina.
ao famoso livro de Weber A ética protestante Esses diferentes elementos podem-se
e o espírito do capitalismo, de 1904-1905. encontrar dispersos em outras concepções
Weber está persuadido de que o capita­ religiosas, mas a combinação de tais elemen­
lismo moderno deve sua força propulsora à tos, precisa Weber, é original e única, com
ética calvinista. A concepção calvinista em conseqüências verdadeiramente de grande
questão é a que se pode encontrar no texto importância. Antes de mais nada, encontra
da Confissão de Westminster de 1647, resu­ aqui sua conclusão aquele grande processo
mida por Weber nos cinco pontos seguintes: histórico-religioso de eliminação do elemento
1) mágico do mundo, processo que se iniciou
existe um Deus absoluto e trans­
cendente, que criou o mundo e o governa, com as profecias judaicas e prosseguiu com
mas que o espírito finito dos homens não o pensamento grego. N ão há comunicação
pode captar; entre o espírito finito e o espírito infinito de
Deus. Em segundo lugar, a ética calvinista
está ligada a uma concepção anti-ritualista
que leva a consciência ao reconhecimento
G esam m elte A ufsãtze de uma ordem natural, que a ciência pode e
deve explorar.
zur Além disso, há o problema da predesti­
nação. Os calvinistas viram no sucesso mun­
R e lig io n s s o z io lo g ie dano na própria profissão o sinal da certeza
da salvação. Em substância, as seitas calvi­
voo
nistas acabaram por encontrar no sucesso
temporal, sobretudo no sucesso econômico,
a prova da eleição divina. Em outros termos,
Max Weber o indivíduo é impelido a trabalhar para
superar a angústia em que é mantido pela
L incerteza de sua salvação.
Há mais, porém: a ética protestante
ordena ao crente desconfiar dos bens deste
mundo e praticar conduta ascética. A essa al­
tura, está claro que trabalhar racionalmente
em função do lucro e não gastar o lucro,
mas reinvesti-lo continuamente, constitui
t comportamento inteiramente necessário ao
desenvolvimento do capitalismo. CSB51 5 161

Tftbinftn 7 W e b e r e /vA arx


Verta* v.«i J. C. H Mofcr f f W Stetxxk)
*f*e
Do materialismo histórico Weber rejei­
Frontispício dos Escritos de sociologia da religião ta o pressuposto m arxista de uma direção
(Tübingen, 1920). determinada de condicionamento que vai da
Capítulo quarto - W e b e r e a s c iê n c ia s k is + ó n c o -s o c ia is

estrutura para a superestrutura e que tenha ritualidade, igualmente abstrata: “ Ambas


o caráter de interpretação geral da história. são possíveis, mas ambas igualmente são
E, contrariamente à posição m arxista do de pouca serventia para a verdade histórica,
inelutável condicionamento do momento caso se pretendam não uma preparação, mas
econômico sobre qualquer outro estado pes­ uma conclusão da investigação” .
soal ou social, material ou imaterial, Weber
propõe, no escrito A “objetividade” cognos-
citiva da ciência social e da política social, O d esen can tam en to
uma divisão dos fenômenos sociais com do m undo
base em sua relação com a economia (para
esse propósito fala-se de fenômenos econô­
micos verdadeiros e próprios, de fenômenos N o escrito A ciência como profissão,
economicamente importantes, por exemplo, depois de afirmar que “ ser superados no
os processos da vida religiosa, e de fenôme­ plano científico é [...] não somente nosso
nos condicionados economicamente, como, destino, de todos nós, mas também nosso
por exem plo, os fenôm enos artísticos). escopo” , M ax Weber se propõe o problema
Como bem se pode ver, Weber procura do significado da ciência.
ampliar e desdogmatizar a posição marxista, Trata-se do problema do significado
mostrando sua unilateralidade intencional e de uma atividade que “ não alcança e jamais
dogmática. poderá alcançar seu fim” . Em todo caso,
Weber, portanto, aceita de bom grado para Weber “ o progresso científico é uma
uma explicação em termos econômicos da fração, sem dúvida a mais importante, da­
história. O que ele rejeita é a metafisiciza- quele processo de intelectualização ao qual
ção e a dogm atização de tal perspectiva. estamos sujeitos há séculos” .
A propósito disso, escreve: “ A concepção O significado profundo dessa intelec­
materialista da história do velho sentido tualização e racionalização progressivas,
genialmente primitivo, que se apresenta, segundo Weber, está “na consciência ou na
por exemplo, no Manifesto comunista, hoje fé de que basta querer para poder; em prin­
só sobrevive na cabeça de pessoas privadas cípio, qualquer coisa pode ser dominada pela
de competência específica e de diletantes. razão. O que significa o desencantamento do
Entre essa gente, ainda se pode encontrar
de forma extensa o fato de que sua necessi­
dade causai de explicação de um fenômeno
histórico não encontra satisfação enquanto
não se mostram (ou não aparecem) em jogo,

I
de algum modo ou em algum lugar, causas . D e s e n c a n ta m e n to d o m u n d o . O 1
econômicas. Todavia, precisamente nesses desencantamento do mundo é, para 1
casos eles se contentam com hipóteses de
malhas mais am plas e formulações mais
gerais, enquanto sua necessidade dogmática
é satisfeita ao considerar que as forças ins­
Max Weber, o resultado do "processo ;í
tintivas econômicas são as forças próprias,
de intelectualização ao qual estive- \
as únicas verdadeiras e, em última instância, mos submetidos há séculos". |
as forças sempre decisivas” . O significado profundo desta progres- "
Para concluir, podemos dizer que Weber: s siva intelectualização e racionalização ;
a) aceita a perspectiva m arxista nos j consiste, na opinião de Weber; "na j
limites em que ela, vez por outra, é adotada \ consciência ou na fé que basta apenas •
como conjunto de hipóteses explicativas a [ querer para po d e r; toda coisa, em :
serem comprovadas caso por caso; j linha de princípio, pode ser dominada í
b) rejeita a perspectiva marxista quan­ \ pela razão. O que significa o desen- í
do se transforma em dogma metafísico e, I cantamento do mundo. Não é preciso j
| mais recorrer à magia para dominar 1
simultaneamente, apresenta-se como con­
J ou para agradar os espíritos, como J
cepção científica do mundo; . faz o selvagem, para o qual existem í
c) não é intenção de Weber, como \ tais poderes. A isso suprem a razão e j
escreve em A ética protestante e o espírito [ os meios técnicos". j
do capitalismo, a de “ substituir” uma inter­ I Em um mundo assim desencantado, •
pretação causai da civilização e da história, | "a tensão entre a esfera dos valores 1
abstratamente materialista, por outra espi­ I da 'ciência' e a da salvação religiosa j
I é incurável". 1
Primeira parte - y \ f i lo s o f i a d o s é c u lo X ^ ? X a° s é c u lo X X

mundo. N ão é mais preciso recorrer à magia 9 A fé c o m o


para dominar ou para obter as graças dos es­ “ s a c r i f í c i o d o i r v f e l e c t o ;/
píritos, como faz o selvagem para quem tais
potências existem. Isso é suprido pela razão
e pelos meios técnicos. E sobretudo esse o Então, a qual dos valores em luta deve­
significado da intelectualização como tal” . mos servir? Bem, é preciso dizer, sentencia
Todavia, admitido esse desencantamen- Weber, que a resposta a essa pergunta “ cabe
to do mundo, Weber então se pergunta qual a um profeta ou a um redentor” . M as, neste
será o significado da “ ciência como voca­ nosso mundo desencantado, não existe o
ção ” . E escreve que a resposta mais simples invocado profeta ou redentor. E “ os falsos
a essa interpretação é oferecida por Tolstoi: profetas das cátedras” , com seus sucedâ­
a ciência “ é absurda, porque não responde neos, não bastam para cancelar o fato fun­
à única pergunta importante para nós: o damental que o destino nos impõe de viver
que devemos fazer, como devemos viver?” em época sem Deus e sem profetas. Para
Além de pressu por a validade das quem não está em condições de enfrentar
normas da lógica e do método, a ciência virilmente esse destino da nossa época, We­
também deve pressupor que “ o resultado do ber aconselha que volte em silêncio, sem a
trabalho científico é importante no sentido costumeira conversão publicitária, mas sim
de ser ‘digno de ser conhecido’ ” . pura e simplesmente, aos braços das antigas
M as é evidente que, por seu turno, igrejas, ampla e misericordiosamente aber­
“ esse pressuposto não pode ser demonstrado tas. Elas não dificultam seu caminho. “ Em
com os meios da ciência” e “ menos ainda todo caso, é preciso realizar — é inevitável
se pode demonstrar se o mundo por elas (as — o ‘sacrifício do intelecto’, de um modo ou
ciências) descrito é digno de existir: se tenha de outro. Se ele for realmente capaz disso,
um ‘significado’, ou se haja sentido existir não o censuraremos” .
nele” . Com isso as ciências naturais “ não Em toda teologia “ positiva” , o crente
se preocupam” . Apenas para exemplificar, chega a um ponto em que é válida a máxima
a “ ciência médica não se propõe a questão famosa: “ Credo non quod, sed quia absur-
se, e quando, a vida vale a pena ser vivida. dum” . Para Weber, aí está o “ sacrifício do
Todas as ciências naturais dão resposta intelecto” : isso “ leva o discípulo ao profeta
a esta pergunta: o que devemos fazer se e o crente à igreja” . E, sendo assim, Weber
quisermos dominar tecnicamente a vida? sustenta que “ está claro que [...] a tensão
M as se querem os e devemos dominá-la entre a esfera dos valores da ‘ciência’ e a
tecnicamente, e se isso, em última instância, esfera da salvação religiosa é incurável” .
tem verdadeiramente um significado, elas
o deixam inteiramente suspenso ou então
o pressupõem para seus fins” . Da mesma
forma, as ciências históricas “ nos ensinam
a entender os fenômenos da civilização
— políticos, artísticos, literários ou sociais
— nas condições de seu surgimento. Elas
pressupõem que haja interesse em participar,
através de tal procedimento, na comunidade
dos ‘homens civis’. M as elas não estão em
condições de demonstrar ‘cientificamente’
que as coisas são assim, e o fato de elas o
pressuporem não demonstra de modo ne­
nhum que isso seja evidente. E, com efeito,
não o é em absoluto” .
Essencialmente, a ciência pressupõe a
escolha da razão científica. E essa escolha
não pode ser justificada cientificamente. A
afirmação de que “ a verdade científica é um
bem” não é uma afirmação científica.
Nem pode sê-lo, já que a ciência, em­
bora pressupondo valores, não pode funda­
mentar os valores, e não pode igualmente /V lií.v C SIUI ■d Ahiri
rejeitá-los. I7 18 {icrcii d e I S {)2 l .
Capítulo quarto - A A a* W e b e r e a s ciêrvcias k is+ ó rico -so cia is

SBiafttM
WEBER
METODOLOGIA DAS CIÊNCIAS HISTÓRICO-SOCIAIS

O objetivo da CIÊNCIA é a verdade


e único é o critério de cientificidade das várias ciências
(tanto naturais, como histórico-sociais):
chegar a produzir explicações causais dos fenômenos

Como a regressão causai vai ao infinito,


é preciso realizar sobre os fenômenos
e sobre as teorias mediante as quais os estudamos
uma seleção em relação aos valores

A R E FE R E N C IA A O S V A LO RES
é um princípio de escolha que serve para estabelecer o campo de pesquisa
em que sucessivamente a pesquisa procederá de modo cientificamente
objetivo, em vista da explicação causai dos fenômenos _____ .

A variação dos valores condiciona Instrumento metodológico


A ciência, portanto, fundamental
a variação dos pontos de vista,
suscita novos problemas, explica, não avalia: é o TIPO IDEAL:
descobre novos aspectos: exprime juízos de fato, modelo de realidade obtido
não pronuncia com a acentuação unilateral
garante, portanto,
o progresso científico juízos de valor de um ou de alguns pontos de vista,
e mediante a conexão
de uma quantidade
de fenômenos particulares
a AVALIABILIDADE DAS CIÊNCIAS correspondentes
garante a liberdade da ciência àqueles pontos de vista em um quadro
em relação às avaliações ético-político-religiosas conceituai unitário em si

SSÜlfHS
O DESENCANTAMENTO DO MUNDO

Oponto de partida da humanidade é um mundo povoado pelo sagrado,


pelo ELEMENTO MÁGICO desenvolvido por meio
das profecias judaicas e continuado pelo pensamento grego.
F o r m eio

^ A K> e da ÉTICA CALVINISTA


do progresso científico : j qUe procJUz de modo não intencional
. \ o espírito do capitalismo
.............. •» ____ ______ .
o ponto de chegada em nossa época é o
DESENCANTAMENTO DO MUNDO:
a fé de que toda coisa, em linha de princípio, pode ser dominada pela razão-,
mas essa “fé” não pode ser justificada cientificamente.
O destino nos impõe viver em uma época sem Deus e sem profetas,
e a fé religiosa se configura apenas como SACRIFÍCIO DO INTELECTO:
l tensão entre a esfera dos valores da ciência e a da salvação religiosa é incurável”
Primeira parte - .A filosofia do século X^X ao século XX

e também a indicação dos conseqüências que


lógica e praticamente derivam de sua realiza­
W eb er ção, deve ser válida para qualquer um, também
para um chinês, uma vez admitido que tenha
tido êxito. 6 isso enquanto a ele pode faltar a
"sensibilidade" para com nossos imperativos
g fl éticos, e enquanto ele pode rejeitar e certa­
■ U fí objetividade cognoscitiva mente rejeitará freqüentemente o ideal e as
das ciências sociais avaliações concretas que dele derivam, sem
incidir de tal modo sobre o valor científico de
qualquer análise conceitual. [...]
; Scire est scire per causas. 6, assim como Do que foi dito até agora resulta, portanto,
há conhecimento dos Fatos da natureza, que é carente de sentido uma tratação “obje­
também há conhecimento objetivo dos Fa­ tiva" dos processos culturais, para o qual devo
tos históricos e dos eventos sociais,- Fatos valer tomo objetivo ideal do trabalho científico
e eventos evidenciados p elos valores do a redução daquilo que é empírico a “leis". €la
pesquisador e explicados p o r meio de "leis não está carente de sentido, como muitos vezes
sociais se considerou, porque os processos culturais ou
também os processos espirituais se comportam
"objetivamente" de modo menos legal, e sim
pelos seguintes motivos: 1) porque o conheci­
A capacidade de realizara distinção entre mento das leis sociais não é conhecimento do
o conhecer e o avaliar, ou seja, entre a realiza­ realidade social, mas é conhecimento apenas
ção do dever científico de ver a verdade dos fa­ de um dos diversos instrumentos de que nosso
tos e a realização do dever prático de defender pensamento tem necessidade para tal objetivo;
os ideais próprios, este é o programa ao qual 2) porque não se pode conceber um conheci­
pretendemos nos manter firmemente fiéis. mento de processos culturais a não ser sobre
€m toda época há e sempre permane­ o fundamento do significado que tem para nós
cerá - isto é o que nos toca - uma diferença o realidade da vida, sempre individualmente
intransponível entre uma argumentação que se atuada, em determinadas relações particulares.
dirige ao nosso sentimento e à nossa capaci­ €m que sentido e em quais relações isso aconte­
dade de nos entusiasmarmos por fins práticos ce, não nos é desvelado por nenhuma lei, uma
concretos ou para formas e conteúdos culturais, vez que isso é decidido pelas idéias de valor em
ou então também para nossa consciência - no bose às quais consideramos no caso particular
caso em que esteja em questão a validade o "cultura”, fl "cultura” é uma secção finita da in­
das normas éticas - e uma argumentação que finidade carente de sentido do devir do mundo,
se dirige ao contrário a nosso poder e à nossa à qual atribui-se sentido e significado do ponto
necessidade de ordenar conceitualmente a de vista do homem. 61a é tal também para os
realidade empírica de modo tal a pretender homens que se contrapõem a uma cultura con­
uma validade de verdade empírica. € esta creta como a um inimigo mortal, e que aspiram a
proposição permanece correta apesar de que uma "volta à natureza". Pois eles podem chegar
os "valores" supremos que estão na base do a esta tomada de posição apenas enquanto
interesse prático sejam e permaneçam sempre referem a cultura concreta a suas idéias de
de importância decisiva, como ainda se escla­ valor, e acham-na "demasiadamente leviana",
recerá, por causa da direção que a atividade é esse fato puramente lógico-formal que se
ordenadara do pensamento assume a cada tem presente quando aqui se fala da conexão
momento no campo das ciências da cultura, é logicamente necessária de todos os indivíduos
e permanece verdadeiro, com efeito, que uma históricos com "idéias de valor". Pressuposto
demonstração científica correta no campo das transcendental de toda ciência da cultura não
ciências sociais, conduzida de formo metódica, é tanto que consideremos como provida de
deve ser reconhecida como justa, quando ela valor uma determinada, ou também em geral
tiver realmente atingido seu próprio objetivo, uma "cultura" qualquer, mas que nos tornemos
mesmo por um chinês. O que quer dizer, mais seres culturais, dotados da capacidade e da
precisamente, que ela deve em todo caso a s ­ vontade de assumir conscientemente posição
pirar a esse fim, embora talvez não plenamente nas relações com o mundo e de atribuir-lhe um
atuável por causa da insuficiência do material, e sentido. [...]
que a análise lógica de um ideal, considerado fl validade objetivo de todo saber empíri­
em seu conteúdo e em seus axiomas últimos, co se apóia sobre o fato, e apenas sobre o fato
.
Cãpítulo quarto -
. . .
A 'la x W e b e f e a s c iê n c ia s h is tó r ic o -s o c ia is
67
_

de qu® o realidade dada ordeno-se segundo


categorias que são subjetivas em um sentido do mundo p o d e prescindir do Fato de que o
específico, ou seja, enquanto representam o alcance dos Fins 'bons' é o mais das vezes
pressuposto de nosso conhecimento, e que acompanhado pelo uso de meios suspeitos
estão vinculadas ao pressuposto do valor da­ ou pelo menos perigosos, e pela possibilida­
quela verdade que apenas o saber empírico nos de ou também pela probabilidade do concur­
pode dar. Aquele que não considere provida de so de outras conseqüências más
valor esta verdade - e a fé no valor da verdade
científica é, de fato, produto de determinadas
culturas, e não tanto algo dado naturalmente Todavia, qual é a relação real ©ntre a ética
- não temos nada a oferecer com os meios de e o política? São talvez elas, como por vezes
nossa ciência. €m vão ele andará em busca de se disse, de fato estranhas uma para a outro?
outra verdade que possa substituir a ciência Ou, vice-versa, é verdadeiro que a "mesma"
naquilo que apenas ela pode fornecer: concei­ ética vale para a ação política assim como
tos e juízos que não são a realidade empírica, para todos as outras? Por vezes considerou-se
e que também não a reproduzem, mas que que entre estas duas afirmações se pusesse
permitem ordená-la conceitualmente de modo uma alternativa: justa seria uma ou outra. Mas
válido. No campo das ciências sociais empíricas seria verdadeiro então que uma ética qual­
da cultura, como vimos, a possibilidade de um quer poderia estabelecer normas de conteúdo
conhecimento provido de sentido daquilo que idêntico para todo tipo de relações, eróticas e
para nós é essencial na quantidade infinita do de negócios, familiares e de trabalho, paro a
devir aparece vinculada ao emprego constante mulher e para o feirante, o filho e o concorrente,
de pontos de vista de caráter específico, os o amigo e o adversário? Para as exigências da
quais, por sua vez, podem ser empiricamente ética em relação à política seria de fato tão
constatados e vividos como elementos de todo indiferente o fato de que esto opera com um
agir humano provido de sentido, mas não tanto meio bem específico como o poder, por trás
fundados validamente em base ao material do qual esconde-se a violência? Não vemos
empírico. A "objetividade" do conhecimento da talvez que os ideólogos bolchevistas, justa­
ciência social depende muito mais de que o mente enquanto aplicam à política este meio,
dado empírico está continuamente dirigido em chegam exatamente aos mesmos resultados de
vista das idéias de valor que, sozinhas, lhe for­ um ditador militar qualquer? £m que, a não ser
necem um valor cognoscitivo, e entende-se em justamente na pessoa de quem detém o poder
seu significado sobre o base delas, mas todavia e em seu diletantismo, o domínio dos conselhos
não se torna jamais um pedestal para a prova, dos operários e dos soldados se distingue do
empiricamente impossível, de sua validade. de um senhor absoluto do antigo regime? 6 em
M. UJeber, que se distingue a polêmica de qualquer outro
O m étodo das ciências histórico-sociais. demagogo daquela que contra seus adversários
desencadeiam a maior parte dos representan­
tes da presumida nova ética? £la se distingue
pela nobreza da intençãol Assim se responde.
Bem. Mas aqui fala-se dos meios, e quanto à
2 ética do convicção nobreza dos fins últimos, também os odiados
adversários pretendem tê-la de seu lado e,
e ético do responsabilidade subjetivamente, em perfeita boa-fé. "Quem com
a espada fere, pela espada perece", e a luto é
sempre luta. € a ética do Sermão da Montanha?
A/estos páginas célebres, tiradas de O Gm relação a esta - e entendemos com ela a
trabalho intelectual como profissão, M ax ética absoluta do evangelho - a coisa é mais
UJeber traça a distinção entre ética da con­ séria do que crêem aqueles que hoje citam
vicção e ética da responsabilidade. R ética com prazer seus preceitos. Não é brincadeira.
da convicção é a ética absoluta que não se Vale para ela aquilo que foi dito a propósito
preocupa com as conseqüências (fiat iustitia, da causalidade na ciência: não é uma carrua­
pereat mundus,). R ética da responsabilidade gem de praça de que se possa dispor para
é, ao contrário, a ética daquele que, atento nela montar ou dela descer ao bel-prazer. Ao
às conseqüências d e suas ações, rejeita os contrário, seu significado é ou tudo ou nada, se
meios perigosos do ponto de vista ético (fiat dela se quiser tirar algo a mais do que simples
iustitia ne pereat mundus). "Nenhuma ética banalidades. Assim, por exemplo, a parábola
do jovem rico, "o qual se afastou tristemente,
Primeira parte - A f i lo s o j- ia d o s é c u lo X J X ao s é c u lo X X

porque possuía muitas riquezas". O preceito convicção podereis expor com a máxima força
evangélico é incondicionado e preciso: entrega de persuasão que sua ação terá como conse­
aquilo que possuis, tudo, absolutamente. O qüência aumentar as esperanças da reação,
político observará: "Uma pretensão socialmente agravar a opressão de sua classe e impedir
absurda, enquanto não for atuada por todos". sua ascensão: isso não o deixará minimamente
€, portanto, taxações, expropriações, confiscos, impressionado. Se as conseqüências de uma
em uma palavra, ordens e coerções para todos. ação determinada por uma convicção pura são
Mas a lei moral não exige nada de tudo isso, e más, delas será responsável, segundo este,
nisso reside sua essência. Ou então, tomemos a não o agente, e sim o mundo ou a estupidez de
ordem: “Dá a outra face": incondicionadamente, outrem, ou a vontade divina que os criou tais.
sem perguntar qual direito tem o outro de bater. Quem, ao contrário, raciocina segundo a ética
Uma ética da falta de dignidade, a menos que da responsabilidade leva justamente em conta
se trate de um santo. €ste é o fato: é preciso os defeitos presentes na média dos homens;
ser um santo em tudo, ao menos na intenção: ele não tem nenhum direito - como justamente
é preciso viver como Jesus, como os apóstolos, disse Fichte - de neles pressupor bondade e
como são Francisco e seus confrades, e ape­ perfeição, não sente-se autorizado a atribuir a
nas então essa ética tem um sentido e uma outros as conseqüências de sua própria ação,
dignidade. De outra forma, não. Com efeito, até onde podia prevê-la. €ste dirá: “estas con­
onde, como conseqüência da ética do amor, se seqüências serão imputadas ao que eu fiz". O
ordena: “Não resistir ao mal com a violência", homem moral segundo a ética-da convicção se
o preceito que vale vice-versa para o político sente “responsável'' apenas quanto ao dever
é o seguinte: "Deves resistir oo mal com o vio­ de manter acesa a chama da convicção pura,
lência, de outro modo serás responsável se ele por exemplo, a do protesto contra a injustiça
prevalece". Quem quiser agir segundo a ética da ordem social. Reavivá-la continuamente, é
do êvangelho, abstenha-se das greves - pois este o objetivo de suas ações absolutamente
elas constituem uma coerção - e se inscreva irracionais-julgando por seu possível resultado
nos sindicatos pelegos. Mas, principalmente, as quais podem e devem ter um valor apenas
não fale de "revolução", uma vez que essa ética de exemplo. , .
não ensinará sem dúvida que seja exatamente Todavia, nem sequer com isso o problema
a guerra civil a única guerra legítima. O pacifista esgota-se. Nenhuma ética do mundo pode pres­
que age segundo o €vangelho recusará pegar cindir do fato de que o alcance de fins “bons"
em armas ou então os jogará fora, como era é o mais das vezes acompanhado pelo uso de
recomendado na Alemanha, considerando isso meios suspeitos ou pelo menos perigosos, e
um dever moral, com o objetivo de pôr fim à pela possibilidade ou também pela probabi­
guerra e com isso a toda guerra. [...] € finalmen­ lidade do concurso de outras conseqüências
te: o dever da verdade. Para a ética absoluta más, e nenhuma ética pode determinar quando
trata-se de um dever incondicionado. [...] A e em que medida o objetivo moralmente bom
ética absoluta não se preocupa com as con­ "justifica" os meios e as outras conseqüências
seqüências. €ste é o ponto decisivo. Devemos igualmente perigosas. [...] Aqui, sobre este
perceber claramente que todo agir orientado problema da justificação dos meios mediante
em sentido ético pode oscilar entre duas máxi­ o fim, também a ética da convicção em geral
mas radicalmente diversas e inconciliavelmente parece destinada a falir. 6, com efeito, ela não
opostas, ou seja, pode ser orientado segundo tem logicamente outro caminho a não ser o de
a "ética da convicção” [gesinnungsethisch], ou recusar toda ação que opere com meios perigo­
então segundo a "ética da responsabilidade" sos do ponto de vista ético. Logicamente. Sem
[verantujortungsethisch]. Não que a ética da dúvida, no mundo da realidade fazemos conti­
convicção coincida com a falta de responsa­ nuamente a experiência que o fautor da ética
bilidade e a ética da responsabilidade com da convicção transforma-se repentinamente no
a falta de convicção. Não se quer certamente profeta milenarista, e que, por exemplo, aque­
dizer isso. Mas há uma diferença intransponí­ les que pouco antes pregaram opor “o amor à
vel entre o agir segundo a máxima da ética força", um instante depois apelam à força, à
da convicção, a qual - em termos religiosos força última, a qual deveria levar à abolição de
- soa: "O cristão age como justo e entrega o toda força possível, assim como nossos chefes
resultado nas mãos de Deus", e agir segundo a militares a cada nova ofensiva diziam aos sol­
máxima da ética da responsabilidade, segundo dados: "Gsta é a último, nos levará à vitória e,
a qual é preciso responder pelas conseqüências portanto, à paz”.
(previsíveis) das próprias ações, fl um convicto M. LUeber,
sindicalista que se regule conforme a ética da O trabalho intelectual como profissão.
.............................. 69
Capítulo quarto - fiAax Webe** e as ciências kis+ó^ico-sociais _

domínio, e do outro a vitória do livre mundo


3 Possibilidade objetiva espiritual helênico, orientado para este mundo,
o qual nos deu os valores culturais de que ainda
e causação adequada hoje nos alimentamos; e que essa "decisão"
aconteceu por meio de um combate de reduzi­
R idéia d e "possibilidade objetivo" é dos dimensões como a "batalha" de Maratona
um instrumento heurístico, um expediente que, por sua vez, representou a indispensável
d e pesquisa, apto a descobrir a ''causação "condição preliminar" do surgimento da frota
adequada" de um evento. ateniense e, portanto, do curso sucessivo da
O mecanismo funciono assim: da cons­ luta pela liberdade, da salvação da autonomia
telação das condições de um evento tiro-se da cultura helênica, do estímulo positivo levodo
uma d e tais condições e s e estabelece, oo início da específica historiografia ocidental,
portanto, "qual efeito" se deveria esperar, do pleno desenvolvimento do drama e de toda
em bose a "regras de experiência", perma­ a singular vida espiritual que se desdobrou
necendo as outras condições. 6 desse modo naquela tribuna - se medida apenas quantita­
que o cientista social faz uso de "experimen­ tivamente - da história universal.
tos mentóis". € que tal batalha tenha trazido consigo,
ou tenha influenciado de modo essencial a
"decisão" entre as "possibilidades", é obvia­
mente apenas o fundamento sobre o qual
fl teoria da assim chamada "possibilida­ nosso interesse histórico - nós, que não somos
de objetiva", de que pretendemos tratar aqui, atenienses - refere-se em geral a ela. Sem o
apóia-se sobre os trabalhos do insigne fisiólogo avaliação de tais "possibilidades" e dos insubs­
J. von Kries. I\la metodologia das ciências sociais tituíveis valores culturais que são “legados",
as noções de von Kries foram até agora adota­ como resulta de nossa análise retrospectiva,
das apenas pela estatística. Que exatamente àquela decisão, seria impossível determinar o
os juristas, e em primeiro lugar os criminalistas, “significado". [...]
tenham enfrentado o problema, é coisa natural, O que quer dizer, porém, quando falamos
pois a questão da culpa penal, implicando o de mais "possibilidades"? [...]
problema da determinação das circunstâncias Se considerarmos [...] de modo ainda mais
sob as quais pode-se afirmar que alguém "cau­ preciso estes “juízos de possibilidade" - isto é,
sou" por meio de seu agir certa conseqüência as asserções sobre aquilo que “teria" acontecido
externa, é pura questão de causalidade, e no caso de uma exclusão ou de umo mudança
obviamente reveste a mesma estrutura lógica de certas condições - e se nos perguntarmos em
da causalidade histórica. [...] primeiro lugar como nós propriamente chegamos
M as a imputação causai realiza-se na a eles, não poderá restar nenhuma dúvida de
forma de um processo conceitual, que implica que se trata sem exceções de procedimentos de
uma série de abstrações, fl primeiro, e decisiva, isolamento e de generalização; isso quer dizer
é justamente a que realizamos pensando uma que decompomos o “dado" em "elementos", até
ou algumas das componentes causais objetivas que cada um destes possa ser inserido em uma
do processo mudadas em determinada direção, "regra da experiência" e se possa, portanto,
e perguntando-nos se, nas condições assim estabelecer qual efeito se “teria esperado" da
mudados do evento, seria “de se esperar" a parte de cada um deles, subsistindo os outros
mesma conseqüência (nos pontos "essenciais"), como "condições", conforme uma regra da ex­
ou então qual outra. Tomemos um exemplo da periência. [...]
práxis historiográfica de Cduard Meyer. Ninguém O "saber" sobre o qual fundamenta-se
como ele ilustrou prática e claramente o "porte" tal juízo para a justificação do "significado" do
histórico-universal dos guerras persas para o batalha de Maratona é, segundo todas as con­
desenvolvimento cultural do Ocidente. Mas siderações precedentes, de um lado um saber
como aconteceu isto, considerado logicamente? relativo a determinados "fatos” verificáveis em
Essencialmente enquanto foi desenvolvida a bose às fontes, e pertinentes à "situação histó­
tese de que houve uma "decisão" entre duas rico" (saber “ontológico"), do outro - conforme
“possibilidades'' - de um lado o desenvolvi­ vimos - um saber relativo a determinadas regras
mento de uma cultura religiosa-teocrática, cujos da experiência já conhecidas, em particular ao
princípios residem nos mistérios e nos oráculos, modo em que os homens costumam reagir a
sob a égide do protetorado persa que em dadas situações (saber “nomológico"). [...]
todo lugar utilizava o mais possível a religião fl consideração do significado causai de
nacional, como entre os judeus, como meio de um fato histórico começará em primeiro lugar
Primeira parte - filosofia do século XJX ao século XX

com q seguinte questão; se, excluindo-o do de possibilidade", de modo o penetrar com


complexo dos fatores considerados como o auxílio de regras empíricas o "significado"
condicionantes, ou então mudando-o em de­ causai dos elementos singulares do acontecer.
terminado sentido, o curso dos acontecimentos Para compreender as conexões causais reais,
teria podido, em base a regras gerais da ex­ construímos irreais.
periência, assumir uma direção de olgum modo Max UJeber,
diversamente configurada nos pontos decisivos O m étodo dos ciências histórico-cuiturois.
para o nosso interesse. Pois a nós interessa
apenas o modo com que aqueles "aspectos"
do fenômeno, que nos interessam, são tocados
por seus elementos condicionantes particulares.
£, certamente, se deste delineamento substan­
Q fl político não combina
cialmente negativo nõo se chega a um corres­ com a cátedra
pondente "juízo de possibilidade negativa”, ou
seja, se em base à situação de nosso saber, "fl cátedra nõo é para os proFetas e os
excluindo ou mudando aquele fato, o curso da dem agogos"; "a cátedra nos é conferida
história devia "ser esperado" segundo as regras apenas como mestres".
gerais da experiência exatamente ossim como
se desenvolveu, em seus pontos "historicamente
importantes", ou seja, interessantes paro nós,
entõo aquele fato resulta causalmente privado Flfirma-se - e eu assino isso - que a polí­
de significado, e não pertence, portanto, à tica não combina com a cátedra. Não combina
cadeia que o regresso causai da história quer, por parte dos estudantes. €u deploro, por
e deve, estabelecer. [...] - exemplo, que na sala de aula de meu antigo
Queremos, em relação ao uso lingüístico colega Dietrich Schãferem Berlim, os estudantes
da teoria da causalidade jurídica estabelecido pacifistas se amontoassem ao redor da cátedra
depois dos trabalhos de Hries, designar estes e fizessem um barulho parecido àquele que de­
casos de relação entre determinados complexos vem ter encenado os estudantes antipacifistas
de “condições", reunidos em unidade e consi­ diante do professor Foerster, de cujas opiniões
derados isoladamente pela análise histórica e as minhas divergem radicalmente em muitos
o “efeito" que se apresenta, com o nome de pontos. Mas nem sequer por parte dos mestres
causação "adequado" (dos elementos do efeito a política combina com a sala de aula. Mais
por parte daquelas condições); e como o faz ainda quando o mestre se ocupa de política do
também Meyer - o qual, porém, não formula ponto de vista científico. Já que a atitude política
claramente o conceito -, falamos de causação na prática e a análise científica de formações
"acidentai' onde, sobre os elementos do efeito, e partidos políticos são duas coisas diferentes.
que caem sob a consideração histórica, atuaram Quando alguém fala sobre a democracia em
fatos que produziram uma conseqüência que uma reunião popular, não faz mistério sobre a
nõo era neste sentido "adequada" a um com­ própria atitude pessoal; ao contrário, é esta a
plexo de condições pensadas como reunidas danada obrigação e dever, tomar partido de
em unidade. modo claramente reconhecível. Rs palavras de
Para voítar, portanto, aos exemplos an­ que nos servimos não são neste caso meios
tes aduzidos, o "significado" da batalha de para a análise científica, e sim de propaganda
Maratona deveria ser logicamente determina­ para atrair os outros para o nosso lado. Rquelas
do, conforme o parecer de Meyer, nõo tanto palavras não são um vomitar para fecundar o
dizendo que uma vitória persa devia ter como terreno do pensamento contemplativo, e sim
conseqüência um desenvolvimento totalmente espadas contra os adversários, instrumentos de
diferente da cultura helênica e da mundial - um luta. Mas em uma palestra ou em uma sala de
juízo desse tipo seria simplesmente impossível aula tal uso da palavra seria sacrílego. Se aí se
- e sim dizendo que aquele desenvolvimento di­ falar de “democracia", deverão ser observadas
ferente "teria" sido a conseqüência “adequada" as diversas formas, delas se analisará o modo
de tal acontecimento. [...] £sta antítese jamais em que elas funcionam, se estabelecerá quais
constitui diferenças de causalidade "objetiva" sejam as conseqüências particulares de uma
do curso dos processos históricos e de suas ou de outra na vida prática, e depois a elas se
relações causais; trata-se, porém, simplesmente contraporão as outras formas não democráticas
do fato de que isolamos abstratamente uma da organização política, e se procurará chegar
parte das “condições" encontradas na "matéria" até o ponto em que o ouvinte esteja em grau
do acontecer e as tornamos objeto de "juízos de poder tomar posição segundo os próprios
Cãpttulo quarto - A W Weber e a s ciências kistórico-sociais

ideais supremos. Mas o verdadeiro mestre evi­ uma atitude pessoal. Mas isso nõo é tudo. A
tará impeli-lo, do alto da cátedra, a tomar uma impossibilidade de apresentar "cientificamente"
atitude qualquer, tanto de modo explícito como uma atitude prática - exceto o caso da discus­
por sugestão: uma vez que é o método mais são sobre os meios para um objetivo que se
desleal, o de "fazer os fatos falarem". pressupõe já dado - deriva de razões bem
Todavia, por qual razão, precisamente, mais profundas. Semelhante empreendimento
devemos nos abster disso? Adianto que diver­ é substancialmente absurdo, enquanto entre
sos entre meus estimadíssimos colegas são do os diversos valores que presidem a ordem do
parecer de que tal discrição não seja exeqüível mundo o contraste é inconciliável. O velho Mill,
e que, mesmo que o fosse, seria loucura pre­ cuja filosofia não pretendo por outro lado louvar,
tendê-la. Ora, a ninguém pode-se demonstrar mas que sobre este ponto tem razão, diz em
cientificamente qual seja seu dever de professor certo lugar: partindo da pura experiência chega-
universitário. Dele pode-se pretender apenas a se ao politeísmo. [...] Mudado sob o aspecto,
probidade intelectual, por meio da qual saiba acontece como no mundo antigo, ainda sob o
compreender como a verificação dos fatos, das encanto de seus deuses e de seus demônios:
relações matemáticas ou lógicas e da estrutura como os gregos sacrificavam ora a Afrodite e ora
interna das criações do espírito de um lado, e a Apoio, e cada um em particular aos deuses de
do outro a resposta à questão a respeito do sua própria cidade, assim é ainda hoje, sem a
valor da civilização e de seus conteúdos parti­ magia e o revestimento daquela transfiguração
culares - e, portanto, a respeito do modo com plástica, mítica, mas intimamente verdadeira.
o qual se devo agir no âmbito da comunidade Sobre estes deuses e sobre suas lutas domina o
civil (Hulturgemeinschaft) e das sociedades destino, e sem dúvida não a "ciência'', é possível
políticas - sejam dois problemas absolutamente somente entender o que seja o divino em um
heterogêneos. Se depois ele pergunta por que ou no outro caso, ou então em uma ordem ou
não deva tratá-los ambos na universidade, na outra. Mas com isso a questão está absolu­
eis a resposta: porque a cátedra não é para tamente fechada a qualquer discussão em uma
os profetas e os demagogos. Ao profeta e sala de aula pela boca de um mestre, ainda que
ao demagogo foi dito: "Sai pelas ruas e fala de fato naturalmente não esteja de modo ne­
publicamente”. Fala, isto é, onde é possível a nhum fechado o enorme problema de vida q.ue
crítica. Na aula, onde se está sentado diante nela está contido. Aqui, porém, a palavra cabe
dos próprios ouvintes, a estes cabe calar-se e a outras forças e não às cátedras universitárias.
ao mestre falar, e reputo uma falta de sentido Quem desejará tentar "refutar cientificamente" a
de responsabilidade aproveitar tal circunstância ética do Sermõo da Montanha, por exemplo, a
- por meio da qual os estudantes são obrigados máxima: "não fazer resistência ao mal", ou então
pelo programa de estudos a freqüentar o curso a imagem de dar a outra face? Apesar disso é
de um professor onde ninguém pode intervir claro que, de um ponto de vista mundano, aí
para contestá-lo - para inculcar nos ouvintes se prega uma ética da falta de dignidade: é
as próprias opiniões políticas ao invés de tra­ preciso escolher entre a dignidade religiosa,
zer-lhes subsídios, como o dever impõe, com que é o fundamento desta ética, e a dignidade
os próprios conhecimentos e as próprias expe­ viril, que prega algo bem diverso: "Deves fazer
riências científicas. Pode certamente ocorrer que resistência ao mal, de outra forma és também
o indivíduo consiga apenas imperfeitamente responsável se este prevalecer". Depende da
esconder suas próprias simpatias subjetivas. própria atitude em relação ao fim último que
6ntão ele se expõe à crítica mais impiedosa um seja o diabo e o outro o deus, e cabe ào
diante do tribunol de sua consciência. € isso indivíduo decidir qual seja para ele o deus e
por outro lado não prova nada, uma vez que qual o diabo. 6 assim ocorre para todos os
também outros erros puramente de fato são ordenamentos da vida. [...]
possíveis, e nõo podem contrastar o dever de M as o destino de nossa civilização é
procurar a verdade. €u me recuso a admiti-lo justamente este, de nos termos tornado hoje
também e precisamente pelo interesse pura­ novamente e mais claramente conscientes
mente científico. €stou disposto a provar sobre daquilo que um milênio de orientação - que
as obras de nossos historiadores que, toda vez se presume ou se afirma exclusiva - para o
que o homem de ciência adianta seu próprio grandioso pothosda ética cristã havia ocultado
juízo de valor, cessa a inteligência perfeita do a nossos olhos.
fato. Todòvia, isso extrapola o tema deste dis­ Todovia, basta agora desses problemas
curso e exigiria longa explicação. [...] que nos levam demasiado longe. Pois, quando
Até agora falei apenas dos motivos prá­ uma parte de nossos jovens quisesse dar a tudo'
ticos que aconselham evitar a imposição de isso esta resposta: "Sem dúvida, mas viemos à
Primeira parte - jA filo sofia d o s é c u lo XJX a o s é c u lo XX

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aula para encontrar uma experiência que não
consista apenas em análises e constatações 6 ainda: "Um ato econômico capitalista sig ­
de fato", eles incorreriam no erro de procurar nifica poro nós um ato que se baseia sobre
no professor algo de diverso daquilo que está a expectativa de ganho, qu e deriva do
diante deles, ou seja, um chefe e não um mestre. desfrutar habilmente as conjunturas da troca
fl cátedra nos é conferida apenas como mestres. e, portanto, das probabilidades de ganho
Trata-se de duas coisas bem diferentes, e disso formalmente pacíficas".
é fácil nos convencermos. Permitam-me conduzi-
los mais uma vez à América, onde estas coisas
podem ser vistas freqüentemente em sua mais Apenas o Ocidente produziu os parla­
crua originalidade. Ojovem americano aprende mentos de "representantes do povo”, eleitos
incomparavelmente menos que o nosso. Ape­ periodicamente, os demagogos, e o domínio
sar de uma incrível quantidade de exames, o dos chefes de partido na vesto d0 ministros
sentido de sua vida de escola ainda não se parlamentarmente responsáveis, embora, na­
tornou tal para fazê-lo passar por um "tipo de turalmente, em todo o mundo tenham assistido
exames’' (€xamessmensch), como acontece com partidos para a conquista do poder político. €
ojovem alemão. Isso porque lá se está apenas o Cstado, sobretudo, com o significado de um
nos inícios da burocracia, que exige o diploma instituto político, com uma Constituição racional­
de exame como bilhete de ingresso no reino mente promulgada, com um direito racionalmen­
dos ganhos burocráticos. O jovem americano te constituído, com uma administração dirigida
nõo respeita nada nem ninguém, nenhuma tra­ por empregados especializados segundo regras
dição e nenhuma profissão, além de sua obra racionalmente enunciadas, apenas o Ocidente
diretamente pessoal: tal é para o americano a moderno o conhece nessa combinação, para
"democracia". Por mais disforme que seja da nós importante, das várias características de­
realidade, este é seu modo de pensar e aqui terminantes, fora de todas as tentativas em tal
devemos levar isso em conta. Do mestre que sentido de outros tempos e de outros países.
está diante dele, o jovem americano tem esta C assim acontece com a maior força de
opinião: ele me vende suas noções e seus mé­ nossa vida moderna: o capitalismo.
todos em troça do dinheiro de meu pai, assim fl sede d© .lucro, a aspiração o ganhar
como o feirante vende couve para minha mãe. dinheiro o mais possível, nõo tem em si mesma
Com isso, tudo está dito. Todavia, se o mestre é nada em comum com o capitalismo. Csta aspi­
por acaso um campeão de futebol, nesse campo ração encontra-se nos camareiros, médicos,
ele é também um chefe. Mas se não for tal (ou cocheiros, artistas, coristas, empregados corrup­
algo de semelhante em outros esportes), ele tíveis, soldados, bandidos, nos cruzados, nos
é simplesmente um mestre e nada mais, e a freqüentadores de casas de jogo, nos mendi­
nenhum jovem americano ocorrerá que ele lhe gos; pode-se dizer em ali sorts and conditions of
venda "concepções do mundo" (UJeltanschauun- men, em todas as épocas de todos os países da
geri) ou normas de conduta. terra, onde havia e há a possibilidade objetiva.
M. UUsber, Deveria já entrar nos mais rudimentares
O trabolho intelectual como profissão. elementos da educação histórica o abandono
de uma vez para sempre dessa ingênua defi­
nição do conceito de capitalismo.
fl ânsia desmedida de ganho não é de
5 €m busca de uma definição modo nenhum idêntica ao capitalismo, e muito
menos corresponde ao "espírito" deste.
de "capitalismo" O capitalismo pode aliás se identificar com
uma disciplina, ou pelo menos com um tempero
O que é o "capitalismo"? "R ânsia d es­ racional de tal impulso irracional. Cm todo caso,
medida de ganho nõo é de fato idêntica ao o capitalismo é idêntico com a tendência ao
capitalismo, e muito menos corresponde ao ganho em uma empresa capitalista racional
'espírito' dele. O capitalismo p od e aliás se e contínua, ao ganho sempre renovado, ou
identificar com uma disciplina, ou pelo me­ seja, à rentabilidade. € assim ele deve ser.
nos com um tempero racional de tal impulso Cm uma ordem capitalista de todo a economia,
irracional. €m todo coso, o capitalismo é idên­ um empreendimento capitalista particular, que
tico à tendência de ganho em uma racional não se orientasse segundo a eventualidade de
0 contínuo empresa capitalista, ao ganho alcançar a "rentabilidade", seria condenado a
sem pre renovado, isto é, à rentabilidade". perecer. Definomo-lo mais exatamente do que
geralmente se faz.
73
Capítulo quarto - A W W e b e r e a s c iê n c ia s h is tó r ic o -s o c ia is ...

Um o to econômico capitalista significa para obriguem a um cálculo preciso. Mas estes são
nós um ato que se baseia sobr® a expectativa elementos que se referem apenas ao grau da
de ganho que deriva do desfrutar habilmente racionalidade do proveito capitalista.
as conjunturas da troca, portanto, de proba­ Para o conceito, importa apenas que o
bilidades de ganho formalmente pacíficas, fl confronto entre o resultado calculado em di­
aquisição violenta (formal e atual) segue suas nheiro e a entrada calculada em dinheiro, em
leis particulares, e não é útil - mesmo que não qualquer forma, por mais primitiva que seja,
se possa proibir de fazê-lo - colocá-la sob a determine o ato econômico. Neste sentido
mesma categoria da atividade orientada se ­ houve "capitalismo" e “empresas capitalistas"
gundo as probabilidades de ganho na troca. também com certa racionalidade no cálculo
Quando se tende de modo racional ao ganho do capital em todos os países civilizados do
capitalista, a ação correspondente orienta-se mundo; pelo menos até onde remontam os do­
conforme o cálculo do capital. cumentos econômicos que possuímos. Na China,
Isso quer dizer que ela ordena-se segundo na índia, na Babilônia, no Cgito, na antiguidade
um emprego preestabelecido de prestações mediterrânea, na Idade Média e na era moder­
reais ou pessoais como meios para conseguir na. Existiram não só empresas isoladas, mas
um proveito, de modo tal que a consistência também complexos econômicos que se basea­
patrimonial estimada em dinheiro no encerra­ vam sobre empresas capitalistas particulares
mento das contas supere o capital, ou seja, o sempre novas, e também empresas contínuas;
valor estimado, posto na balança, dos bens embora o comércio por longo tempo não tivesse
instrumentais reais empregados na aquisição o caráter de nossas empresas continuativas,
por meio da troca. No caso de uma empresa mas muito mais o de uma série de atos singu­
contínua a consistência patrimonial em dinhei­ lares e apenas lentamente, na atividade dos
ro calculada periodicamente na balança deve grandes comerciantes, penetrasse uma ligação
periodicamente superar o capital. Tanto se se íntima, com a instituição de várias seções. €m
tratar de um complexo de mercadorias in natu- todo modo, a empresa e o empreendedor
ra entregues em consignação a um mercador capitalista, não só de ocasião mas também
viajante cujo proveito final pode consistir em com atividade contínua, são antiquíssimos e se
outras mercadorias in natura, como de uma difundiram em todo lugar. Mas o Ocidente tem
fábrica cujas instalações particulares, edifícios, um grau de importância que não se encontra
máquinas, reservas de dinheiro, matérias-pri­ alhures. € desta importância dão a razão as
mas, produtos acabados e semitrabalhados espécies e formas e direções do capitalismo
representam exigências às quais correspondem que não surgiram em outros lugares. Cm todo
compromissos: o importante é que seja feito um o mundo houve estados mercantes dedicados
cálculo do capital expresso em dinheiro, tanto ao comércio por atacado e por varejo, local e
de modo moderno, com livros regulares, como em países distantes, houve empréstimos de
também de modo primitivo e superficial. toda espécie, eram muito difundidos bancos
C no início da empresa tem lugar um ba­ com funções bastante diversas, mas pelo me­
lanço inicial, como antes de todo ato comercial nos semelhantes em substância às dos bancos
particular um cálculo para o controle e um ensaio de nosso século XVI; empréstimos marítimos,
da correspondência do ato com o objetivo pre­ negócios e sociedades em comodato, consig­
fixado e, no encerramento, para verificar aquilo nações, eram profissionalmente muito difundi­
que se ganhou, tem-se um cálculo retrospectivo: dos. Sempre, onde houve finanças em base
o balanço de encerramento. O balanço inicial de monetária dos entes públicos, esteve presente
uma consignação é, por exemplo, o acerto de o banqueiro; na Babilônia, na Grécia, na (ndia,
valor expresso em dinheiro que devem ter as na China e em Roma; para o financiamento em
mercadorias para as partes contraentes, caso primeiro lugar das guerras e da pirataria, para
sejam elas ainda não em si mesmas dinheiro; provisões e trabalhos de todo tipo, na política
o balanço de encerramento é a estimativa final colonial como colonizadores, plantadores ou
que é fundamento da repartição do ganho e portadores de concessões a escravos ou com
da perda. Um cálculo está como fundamento trabalhadores forçados de várias formas; para
de todo ato particular do consignatário, desde o concessão de empreitada de propriedades,
que este aja racionalmente. Que não se tenham de profissões, e principalmente de impostos,
um cálculo e uma estimativa realmente exatos; para o financiamento de chefes-de-partido para
que se proceda a modo de estimativa ou então as eleições e de chefes de mercenários poro
tradicional e convencionalmente, são coisas que a guerra civil; em suma, como especuladores
acontecem ainda hoje em toda forma de empre­ sobre probabilidades de todo tipo avaliáveis
sa capitalista, sempre que as circunstâncias não em dinheiro. Csta espécie de empreendedores,
PtÍ1fl€ÍTCil parte - y\ filo sofia d o s é c u lo X *-7 X a o sé c u lo X X

os aventureiros copitolistos, existiu em todo o dos fatores técnicos decisivos; em suma, pelo
mundo. fundamento de um cálculo exato; o que, na rea­
Suas possibilidades eram - com exceção lidade, significa o caráter particular da ciência
do comércio e dos negócios de crédito 0 do européia, especialmente das ciências naturais
banco - ou de caráter puramente irracional, es­ com fundamento racional, experimental e mate­
peculativo, ou eram orientadas para a aquisição mático. O desenvolvimento dessas ciências e da
pela violência, para a predação, tanto como técnica que sobre elas se baseia recebeu, por
butim ocasional de guerra ou butim crônico 0 sua vez, e recebe até agora, impulsos decisivos
fiscal, ou seja, a espoliação dos súditos. O ca­ das probabilidades de rendimento capitalista,
pitalismo colonial dos grandes especuladores, que se ligam ò sua aplicação econômica como
e o capitalismo financeiro moderno do tempo "prêmios”.
de paz, mas principalmente e d© modo espe­ M. Weber,
cífico o capitalismo de guerra, levam também fí ético protestante
hoje no Ocidente essa marca; e alguns ramos e o espírito do capitalismo.
- mas apenas alguns - do comércio internacio­
nal, tanto hoje como em qualquer tempo, os
seguem de perto.
Mas o Ocidente conhece na época moder­ 6 R ética protestante
na uma espécie de capitalismo bem diferente,
e que por outro lado jamais se desenvolveu: a
e o espírito do capitalismo
organização racional do trabalho formalmente
livre, fl mesma organização do trabalho não "Fl voloroçõo religioso do trobolho pro­
livre chegou a certo grau de racionalidade fissional leigo, incansável, contínuo, sistemá­
apenas nas plantações e, em medida muito tico, como do mais oito meio ascético, e ao
limitada, nas colônias penais da antiguidade; mesmo tempo como da mais alta, segura e
e teve um grau de racionalidade ainda menor visível confirmação do homem regenerado
nas curtes e fábricas e indústrias domésticas e da sinceridade de sua fé, devia s e r o
das grandes propriedades agrícolas com o fermento mais poderoso que s e pudesse
trabalho dos escravos e dos servos da gleba pensar paro a expansão daquela concepção
no princípio da era moderna. Pora o trabalho de vido, que definimos como 'espírito do
livre estão documentadas, fora do Ocidente, capitalismo' ".
verdadeiras e próprias "indústrias domésticas"
apenas em casos isolados, e o emprego de
assalariados diaristas que naturalmente se en­ Quanto maior se torna a propriedade, tan­
contra em todo lugar, fora exceções muito raras to mais grave se torna - se a disposição ascética
e particularíssimas, todavia bem distantes das supera a prova - o sentimento da responsabi­
organizações industriais modernas (trotava-se lidade para mantê-la intacta para a glória de
especialmente de monopólios de €stado), não Deus e de aumentá-la com um trabalho sem
produziu jamais grandes manufaturas e nem trégua. Também a gênese deste estilo da vida
sequer uma organização racional de profissão remonta com tais raízes, como tantos elementos
de tipo patronal no modelo da de nossa Idade do espírito capitalista moderno, à Idade Média,
Média, fl organização racional da indústria mas apenas na ética do protestantismo ascético
orientada conforme as conjunturas do mercado encontrou seu conseqüente fundamento moral.
e não conforme probabilidades políticas ou irra­ Sua importância para o desenvolvimento do
cionalmente especulativas não é, porém, o único capitalismo é evidente.
fenômeno particular do capitalismo ocidental, fl ascese leiga protestante - assim po­
fl organização racional moderna da atividade demos resumir aquilo que dissemos até aqui
capitalista não teria sido possível sem outros - agiu com grande violência contra o gozo
dois importantes elementos de seu desenvolvi­ desmedido da propriedade, e restringiu o con­
mento: a separação da administração doméstica sumo, principalmente o consumo de luxo. Por
da empresa, que doravante domina a vida outro lado liberou, em seus efeitos psicológicos,
econômica hodierna; e, estreitamente ligada a a aquisição de bens dos obstáculos da ética
esta, a capacidade racional dos livros. [...] tradicionalista, enquanto não só a legalizou,
O capitalismo especificamente ocidental mas até, no sentido que expomos, a viu como
foi, evidentemente, determinado em grande desejada por Deus. fl luta contra os prazeres da
medido tombém pelo desenvolvimento das pos­ carne e o apego aos bens exteriores não era,
sibilidades técnicas. Sua racionalidade é hoje como atesta expressamente, com os puritanos,
fortemente condicionada pela calculabilidade também o grande apologeta dos Quakers,
75
Capítulo quarto - M w W e b e f e a s c iê n c ia s k is + ó fic o -s o c ia is ------

Barclay, uma luta contra o ganho racional, e sim uma exata determinação em cifras quão forte
contra o emprego irracional da propri0dad0. 6 tenha sido esse efeito. Na Nova Inglaterra a
isso consistia no alto apreço, condenado como ligação aparece tão evidente, que naturalmente
idolatria, das formas ostensivas do luxo que não fugiu ao olho de um historiador excelente
oram tão próximas do modo de sentir f0udal, 0m como Doyle. Mas também na Holanda, que
v®z do emprego desejado por Deus, racional e foi dominada pelo calvinismo rigoroso apenas
utilitário, para os fins da vida do indivíduo e da por sete anos, a maior simplicidade da vida
coletividade. Não se queria impor ao proprietá­ que dominava nos grupos religiosamente mais
rio a maceração, mas o uso d© sua riqueza para sérios, ligada às 0norm©s riquezas, levou a uma
coisas necessárias 0 de utilidade prática. ansiedade excessiva de acumular capitais.
O conc0ito de comfort alarga de modo M. Weber,
característico o círculo dos fins, moralmente ft ética protestante
lícitos, em que a riqueza pode ser empregada, e o espírito do capitalismo.
e naturalmente não é um acaso que se tenha
observado justamente entre os mais conse­
qüentes seguidores de toda esta concepção, os
Quakers, um desenvolvimento mais precoce e O desencantamento
mais manifesto do estilo de vida, que s© remete
a ess© conceito. Contra as brilhantes aparências do mundo
da pompa cavalheiresca, que, apoiando-se
sobre bases econômicas pouco sólidas, prefere é destino de nosso époco, "com suo ca­
uma exígua elegância na simplicidade modesta, racterística racionalização e intelectualização,
0I0S opõ0m como ideal a limpa e sólida como­ e sobretudo com seu desencantamento do
didade do home burguês. mundo", o de ser uma época sem Deus 0
No campo da produção da riqueza priva­ sem profetas. 6 isso impõe o coda um fazer
da, a ascese combatia contra a desonestidade com coragem as próprias escolhas e seguir "o
e contra a avidez puramente impulsiva qu© demônio que segura os fios de sua vida".
cond©nava como covetousness 0 “mamonismo’';
ou S0ja, o esforço tenso para a riqueza, pelo
único escopo final d© s©r rico. Mas a ascese Que a ciência hoje seja uma "profissão"
©ra a força "qu© quer continuamente o bem e especializado, posta a serviço da consciência
continuamente o mal", isto é, cria aquilo que, de si e do conhecimento d© situações de fato,
segundo sua própria interpretação, é mal: a © não uma graça de visionários e profetas,
riqueza e suas tentaçõ©s. dispensadora de meios de salvação e de
Pois ©Ia não soment© via, com o flntigo revelações, ou um elemento da meditação de
Testamento e em plena analogia com o apreço sábios e filósofos sobre o significado do mundo,
ético das “obras boas", no esforço para a rique­ é certamente um dado de fato, inseparável de
za como fim a si mesma, uma coisa reprovável nossa situação histórica, à qual, se quisermos
em máximo grau, e na conquista, ao contrário, permanecer fiéis a nós mesmos, não podemos
da riqueza, como fruto do trabalho profissio­ escapar. € s© novamente surge em vós o Tolstoi
nal, a bênção de Deus. Mas, coisa ainda mais qu© pergunta: “Se, portanto, não é a ciência que
importante: a avaliação religiosa do trabalho o faz, quem responde então à pergunta: o que
profissional leigo, incansável, contínuo, siste­ devemos fazer? € como devemos regular nossa
mático, como o mais elevado meio ascético, e vida?",, ou então, na linguagem que há pouco
ao mesmo t©mpo como a mais ©levada, segura usamos: “Fl qual dos deuses em luta devemos
e visível confirmação e prova do homem rege- servir? Ou talvez algum outro, e, nesse caso,
nsrado ©da sinc0ridad© d© sua fé, devia ser a quem?", é preciso dizer que a resposta cabe a
alavanca mais poderosa que se pudesse pensar um profeta ou a um redentor. Se este não se
para a expansão daquela concepção da vida, encontra entre nós, ou se o anúncio dele não
que definimos como "espírito do capitalismo". é mais crido, sem dúvida não adiantará fazê-lo
€ se ligarmos a limitação do consumo com este descer sobre esta terra em que milhares de
desencadeamento do esforço dirigido ao ga­ professores tentem roubar-lhe o papel em suas
nho, o resultado exterior é evidente: formação aulas, como pequenos profetas privilegiados
do capital por meio de uma constrição ascética ou pagos pelo €stado. Isso servirá apenas
à poupança. Os obstáculos que se opunham para esconder toda a enorme importância e o
ao consumo daquilo que se tinha adquirido significado do fato decisivo, ou seja, qu© o pro­
deviam aumentar seu emprego produtivo como feta, que tantos de nossa mais jovem geração
capital de investimento. Naturalmente foge a invocam, não existe. O interesse interior de um
Primeira parte - jA filo sofia d o s é c u lo XJX a o s é c u lo XX

homem de foto "musical" em sentido religioso tenha um significado)? Todavia, as teologias


nunca e jamais estará satisfeito, creio, com o não se contentam em geral com esse pressu­
expediente pelo qual se procura esconder-lhe posto (pertinente essencialmente à filosofia da
com um sucedâneo, como são todos estes religião), flo contrário, elas partem em geral do
falsos profetas na cátedra, o fato fundamental prossuposto ainda mais remoto pelo qual deter­
de que o destino lhe impõe viver em uma épo­ minadas "revelações" devem ser absolutamente
ca sem Deus e sem profetas, fl seriedade de cridas enquanto fatos que revestem uma impor­
seu sentimento religioso deveria, parece-me, tância para a salvação - como tais, ou seja, que
rebelar-se diante disso. Ora, sereis induzidos a por si conferem um pleno significado à conduta
perguntar: mas como nos comportamos diante na vida - e pelo fato de que determinados mo­
do fato da existência da "teologia" e de suas dos de ser e de agir possuem a qualidade da
pretensões a se apresentar como “ciência"? Nõo santidade, ou seja, constituem uma conduta de
nos atormentemos para encontrar uma respos­ vida de significado plenamente religioso ou são
ta. "Teologia" e “dogmas" sem dúvida não se os elementos desta, fl pergunta que a teologia
encontram sempre e em todo lugar, mas nem se faz é, portanto, a seguinte: como podem
sequer exclusivamente no cristianismo. Nós os ser interpretados, no âmbito de uma imagem
encontramos (olhando para trás, no passado) complexiva do cosmo ( Gesamtuueltbild), esses
em formas muito desenvolvidas também no pressupostos que devem ser aceitos de modo
Islã, no maniqueísmo, na gnose, no orfismo, absoluto? Tais pressupostos encontram-se,
no parsismo, no budismo, nas seitas hindus, portanto, para a teologia, além daquilo que é
no taoísmo, nos upanixades e, naturalmente, "ciência". Cies não são um "saber" no sentido
também no judaísmo. Como é natural, d e­ corrente, e sim um "possuir". Não podem ser
senvolveram-se sistematicamente em medida substituídos - a fé ou os outros estados de
bastante diversa. € não é por acaso que não só graça - por nenhuma teologia, para quem não
o cristianismo ocidental os tenha construído, ou os "possua". Muito menos ainda, portanto, por
tenda a construí-los de modo mais sistemático outra ciência. Ou melhor, em toda teologia “po­
- diversamente daquilo que a teologia é, por sitiva" o crente chega ao ponto onde é válida
exemplo, para o judaísmo - mas também que a máxima agostiniana: "Credo non quod, sed
seu desenvolvimento tenha tido aqui um signi­ quio absurdum est". fl capacidade de realizar
ficado histórico muitíssimo mais importante. Cste esse extremo "sacrifício do intelecto" constitui o
é um produto do espírito grego, do qual deriva caráter decisivo do homem que pertence a uma
toda a teologia do Ocidente, assim como (evi­ religião positiva. C, assim estando as coisas,
dentemente) toda a teologia oriental deriva do é claro que, para desonra (ou melhor, como
pensamento indiano. Toda a teologia consiste conseqüência) da teologia (que desvela esse
no racionalização intelectual do potrimonium estado de coisas), a tensão entre a esfera dos
salutis. Nenhuma ciência é absolutamente valores da "ciência" e a da salvação religiosa
privada de pressupostos, e nenhuma pode é insanável.
estabelecer o fundamento do próprio valor O "sacrifício do intelecto" levo, como é
para quem rejeite tais pressupostos. Contudo, natural, o discípulo ao profeta e o crente à
toda teologia introduz alguns pressupostos igreja. Mas ainda não surgiu uma nova profecia
específicos relativamente à própria atividade e, simplesmente pelo fato de que muitos intelec­
portanto, à justificação da própria existência. Cm tuais modernos (retomo aqui de propósito esta
vários sentidos e com diferente alcance. Para imagem que provocou muitas suscetibilidodes)
toda teologia, por exemplo, também para a tenham sentido a necessidade de decorar, por
induísta, vige este pressuposto: o mundo deve assim dizer, sua alma com objetos antigos g a­
ter um significado; e a questão a ser resolvida rantidos como originais, e se tenham lembrado
é a seguinte: como é preciso interpretá-lo, para nessa ocasião que entre estes há também a
que isso possa ser pensado? De modo total­ religião, que eles certamente não possuem,
mente semelhante à teoria do conhecimento mas que substituem com uma espécie de capela
de Kant, que portia do pressuposto de que há privada enfeitada como de brincadeira com
um conhecimento científico e este é válido, e, imagens sacras de todos os países, ou então
portanto, se perguntava: em virtude de quais com todo tipo de experiências de vida às quais
condições do pensamento isso é possível (para conferem a dignidade de um meio místico de
que tenha um significado)? Ou então, como os salvação e que vão vender na praça. Cm tudo
estetas modernos que (explicitamente - como, isso trata-se simplesmente de charlatanice ou
por exemplo, G. von lukács - ou então de fato) de auto-ilusão. Mas não é de fato uma charlata­
partem do pressuposto: “Há obras de arte", e nice, e sim algo muito sério e sincero - embora
se perguntam: como isso é possível (para que não ausente, por vezes, de um mal-entendido
Capitulo quarto - 7V\a* W e b e r e a s c iê n c ia s h is tó r ic o -s o c ia is

o respeito de seu próprio significado - o fato sem ter compreendido que entre as paredes
de que muitas dessas associações de jovens, da sala de aula uma só virtude tem valor: a
surgidas no silêncio destes últimos anos, dêem simples probidade intelectual. €la nos impõe
às suas relações comuns, humanas, o sentido colocar às claras que hoje todos aqueles que
de uma ligação religiosa, cósmica ou mística. Se vivem na espera de novos profetas e novos
for verdade que todo ato de genuína irmandade redentores se encontram na mesma situação
pode se ligor com a consciência de que com isso descrita no belíssimo canto da escolta iduméia
é de algum modo acumulado em um domínio durante o período do exílio, que se lê no oráculo
ultrapessoal algo que não será perdido, ainda de Isaías: "Uma voz choma de Seir em £dom:
assim me parece duvidoso que a dignidade das Sentinela! Quanto durará ainda a noite? 6 a
relações propriamente humanas entre os mem­ sentinela responde: Virá a manhã, mas ainda
bros de umo comunidade se torne elevada por é noite. Se quiserdes perguntar, voltai outra
meio de tais interpretações religiosos. Todavia, vez". O povo, ao qual era dado essa resposta,
isso também nõo combina com nosso tema. perguntou e esperou bem mais de dois milê­
é o destino de nossa época, com sua nios, e sabemos de seu trágico destino. Disso
característica racionalização e intelectualização, desejamos extrair a advertência de que anelar
e principalmente com seu desencantamento do e esperar não basta, e nos comportaremos de
mundo, que exatamente os valores supremos outra maneira: realizaremos nosso trabalho e
e sublimes se tenhom tornado estranhos ao cumpriremos a "tarefa quotidiana" - em nossa
grande público, para refugiar-se no reino extra- qualidade de homens e em nossa atividade
mundano do vido místico ou na fraternidade das profissional. Isso é simples e fácil, quando cada
relações imediatas e diretas entre os indivíduos. um tiver encontrado e seguir o demônio que
Não é por acaso que nossa melhor arte seja ín­ segura os fios de suo vido.
tima e não monumental, e que hoje apenas, no M. UJeber,
seio dos mais restritas comunidades, na relação O trabalho intelectual como profissão.
d e homem para homem, no pianissimo, palpite
aquele indefinível que há um tempo penetrava e
fortificava como um sopro profético e uma chama
impetuosa as grandes comunidades. Provemos 8 fl ciência se fundamenta
forçar e “suscitar" um sentido monumental da
arte, e eis nascer um aborto lamentável como sobre uma escolha ética
o de numerosos monumentos comemorativos
dos últimos vinte anos. Algo de semelhante se
Pi ciência nõo pod e responder à única
reproduz na esfera interior, com efeitos ainda
mais deletérios, caso se procure cogitar novos pergunta importante para nós: "O que deve­
mos fazer? Como devemos viver?" C, além do
formas religiosas sem uma novo e genuína
mais, a própria ciência é o resultado de uma
profecia. € a profecia formulada pela cátedra
escolha - da escolha que seus resultados
poderá talvez dar vida a seitas fanáticas, mas
sejam para nós "dignos de serem conheci­
nunca a umo comunidade autêntica. A quem não
dos". M as "este pressuposto nõo p od e ser
esteja em grau de enfrentar virilmente esse des­
por sua vez demonstrado com os meios da
tino de nossa época é preciso aconselhar que
ciência”. "
volte em silêncio, sem a costumeira conversão
publicitário, e sim fronca e simplesmente, para
os braços das antigas igrejas, larga e misericor­
diosamente abertos. Cias não lhe tornam difícil Voltemos ao ponto de partida. Dados e s­
a passagem. £m todo caso, é preciso realizar tes pressupostos intrínsecos, vejamos qual é o
- é inevitável - o "sacrifício do intelecto", de um significado do ciência como vocação, o partir do
ou de outro modo. Não o reprovaremos, caso momento em que naufragaram todas as ilusões
seja realmente capaz disso. Pois semelhante precedentes: "meio para o olcance do verda­
sacrifício do intelecto em favor de uma incon- deiro ser", "da verdadeira arte", “da verdadeira
dicionoda entrega religioso é sempre algo de natureza", "do verdadeiro Deus", "da verdadeira
moralmente diferente daquele modo de evitar felicidade". A resposta mais simples foi dada
a simples probidade intelectual que se verifica porTolstoi com estos palavras: ”€ absurda, por­
quando, nõo tendo o coragem de perceber que nõo responde à única pergunta importante
claramente a própria posição última, se alivia poro nós: o que devemos fazer? como devemos
esse dever por meio do refúgio no relativo. G viver?" O fato de que nõo responda a isso é
o considero também mais respeitável do que absolutamente incontestável. Trata-se apenas
aquela profecia que se proclama da cátedra de perguntar-se em que sentido não dê "ne­
Primeira parte - filosofia do século X»I?X ao século XX

nhuma resposta", ©S0 0m lugar desta ©Ia não tos da medicina © o código penal impedem
puder por acaso dar qualqu0r auxílio a quem que o médico desista, fl ciência médica não
S0 colocar a questão em s0us termos exatos. se pergunta se 0 quando a vida valha a pena
Hoje se qu0r fr0qüentemente falar d0 ciência ser vivida. Todas as ciências naturais dão uma
"sem pressupostos". (Existirá alguma? Depende resposta a esta pergunta: o que devemos fazer
daquilo que se queira entender. Pressuposto de se quisermos dominar tecnicamente a vida? Mas
qualquer trabalho científico é sempre a validade se queremos e devemos dominá-la tecnica­
das regras da lógica e do método: fundamentos mente, 0 s© isso, d0finitivam0nte, tiver de fato
gerais d0 nossa orientação no mundo. Ora, um significado, 0las o deixam totalmente em
tais pressupostos, ao menos quanto ò nossa suspenso ou então o pressupõem por seus fins.
qu0stão particular, não são minimam0nt0 pro­ Tomemos, se quiserdes, uma disciplina como
blemáticos. Pressupõe-se, além disso, que o a crítica da art©. O fato de qu© haja obras d©
resultado do trabalho científico seja importante art© constitui, para a estética, um pressuposto.
no sentido que seja "digno de ser conhecido" Cia procura ©stab©l©c©r ©m quais condições
(uiissensiuert). C aqui evident0mente têm sua isso s© vsrifiqu©. Mas não s© põ© a p©rgunta
raiz todos os nossos problemas. Uma vez que s© o domínio da art© não seria por acaso um
este pressuposto não pod0 ser por sua vez reino d© magnificência diabólica, um reino deste
demonstrado com os meios da ciência. Pode ser mundo, ©por isso intimamente oposto ao divino
apenas explicado em vista de seu significado 0, por seu caráter intrinsecamente aristocráti­
último, qu© será preciso acolher ou rejeitar co, ao espírito de fraternidade. Cia, portanto,
conforme a posição pessoal última assumida não se pergunta se devam ©xistir obras d©
diante da vida. art©. Ou então, tomemos a jurisprudência:
Bem diverso, além disso, é o tipo de rela­ ©Ia estabelece aquilo que é válido segundo
ção do trabalho científico com est0s s0us pres­ as regras do pensamento jurídico, em part©
supostos, conforme sua estrutura. Rs ciências imperativamente lógico e em parte vinculado
naturais como a física, a astronomia, a química, por esquemas convencionais; em outras pa­
pressupõem como evidente em si qu© as l©is lavras, estabelsc© se são reconhecidas como
últimas do acontecer cósmico - construtíveis, obrigatórias determinadas regras jurídicas e
até onde chega a ciência - sejam dignas d0 s0r determinados métodos para sua interpretação.
conh0cidas. Não só porqu© com estas noções Não decide se deva haver 0 direito e se devam
se podem atingir sucessos técnicos, mas - se ser formuladas exatamente aquelas regras;
devem ser "vocação" - "por. si mesmas". Cste ela pod© indicar apenas isto: caso se queira
pressuposto, por sua vez, não é absolutamente atingir um resultado, o meio para alcançá-lo
demonstrável; e muito menos se pode demons­ nos é dado por esta regra jurídica, conforme
trar se o mundo por elas descrito seja digno de as normas de nosso pensamento jurídico. Ou
existir: se tenha um “significado", e S0 haja um tomai ainda as ciências históricas (historischen
S0ntido nele existir. Com isso as ciências não Hulturuuissenschafterí). Cias nos ensinam a en­
se preocupam. Ou então tomai uma t0cnologia tender os fenômenos da civilização (Hulturers-
prática tão desenvolvida ci0ntificom0nt0 como a cheinungerí) - políticos, artísticos, literários ou
medicina moderna. O “pressuposto'' geral desta sociais - nas condições de seu surgimento. Mas
atividad© 0 - em palavras pobres - qu© seja não respondem em si à pergunta a respeito do
considerada positiva, unicamente como tal, a valor positivo destes fenômenos, ©nem à outra
tarefa da conservação da vida e da redução da questão, se valha a pena conhecê-los. Cias
dor ao mínimo. £ isso é problemático. O médico pressupõem qu© haja interesse em participar,
procura com todos os meios conservar a vida do por meio de tal procedimento, da comunidade
moribundo, m0smo qu© ©ste implore ser liberto dos "homens civis” (Hulturmenschen). Mas que
da vida, mesmo qu© sua morto é e deva ser assim estejam as coisas, a ninguém elas estão
d0S0jada - mais ou menos conscientemente em grau de demonstrar “cientificamente”, e que
- por seus familiares, para os quais sua vida elas o pressuponham nõo demonstra de fato
não tem mais valor enquanto insuportáveis são que isso seja evidente. C, com efeito, de modo
os ônus para conservá-la, e eles lhe auguram nenhum o é.
a lib©rtação das dores (trata-s®, digamos, do M. UJeber,
caso d© um pobre louco). Mas os pressupos­ O trabalho intelectual
como profissão.
íS a p í+ u Io q u in to

CD pragmatismo

I. CD pra g m a tism o lógico


d e (ZX\c\Aes S . Pei rce

• O pragmatismo é a forma que o empirismo tradicional o praqmatismo


assumiu nos Estados Unidos. E enquanto o empirismo tradicional 7
viu na experiência a progressiva acumulação e sistematização
dos dados sensíveis e das observações passadas ou presentes, no pragmatismo a
experiência é abertura para o futuro, previsão e projeção, regra de ação.

• Menos conhecido que William James, Charles Sanders Peirce (1839-1914)


exerceu sobre as pesquisas semiológicas e metodológicas sucessivas uma influência
muito mais incisiva e durável do que as já notáveis de James.
Peirce foi estudioso de lógica e semiólogo sofisticado ("todo pensamento é
um signo e participa essencialmente da natureza da linguagem"; "não é possível
pensar sem signos"; "todo pensamento é signo"); ele afirma que o conhecimento
é pesquisa; que a pesquisa parte da dúvida: é a irritação da dúvida que causa a
luta para obter o estado de crença. E são quatro, na opinião de Peirce, os métodos
para fixar a crença:
1) o método da tenacidade' Peirce:
2) o método da autoridade (de quem procura impor suas o método
próprias idéias com a ignorância ou o terror); correto
3) o método do a priori (este é o método de diversas metafísi­ para fixar
cas, e "não difere de modo essencial do método da autoridade"); as "crenças"
4) o método científico. éapenas
Os três primeiros métodos - escreve Peirce no ensaio A fixação o científico
da crença (1877) - não funcionam. Apenas o método científico é ^ § 2
o método correto se quisermos alcançar crenças válidas.

• Na ciência temos três modos diferentes de raciocínio: de­


dução, indução e, diz Peirce, abdução. A abdução:
A dedução é o raciocínio que de premissas verdadeiras não um raciocínio
pode levar a conseqüências falsas. para explicar
A indução é o raciocínio que, sobre a base de certos mem­ os fatos
bros de uma classe com certas propriedades, conclui que todos os ^ § 3
membros daquela classe terão as mesmas propriedades.
A abdução é o raciocínio que nos diz que, para encontrar a solução de um fato
surpreendente, devemos inventar uma hipótese da qual deduzir as conseqüências,
que devem ser controladas empiricamente, isto é, indutivamente.

• Não nos é lícito pensar que uma hipótese bem verificada seja segura para
sempre: "uma hipótese é, para a mente científica, sempre in prova". Nossos co­
Primeira parte - jA filo sofia d o s é c u lo /K.D/K. a o s é c u lo ^C,X

nhecimentos continuam desmentíveis, "falíveis", escreve Peirce.


Uma regra
para E se o método válido para fixar as crenças é o científico, a regra
estabelecer para estabelecer o significado dos conceitos, ou seja, para tornar
o significado claras nossas idéias, é a regra pragmática: um conceito se reduz
dos conceitos a seus efeitos experimentais concebíveis. Eu sei o que quer dizer
—»§ 4 "leão", isto é, conheço o significado do term o "leão", quando sei
comportar-me diante do animal designado pelo termo "leão";
da mesma forma, conheço o significado de "vinho" quando sei o que fazer com
o objeto designado pelo conceito "vinho".

O pragmatismo é a forma versos de pragmatismo, que, vez por outra,


se diferenciavam na teoria do conhecimento,
que o empirismo assumiu
na teoria da verdade, na teoria do significado,
nos é^stados lAnidos na teoria dos valores. Desse modo, a gama
de significados do conceito de pragmatismo
se estende do “ pragmatismo lógico” de Peir­
O pragm atism o nasceu nos Estados ce e Vailati até a formas de voluntarismo e
Unidos nas últimas décadas do século pas­ de vitalismo irracionalistas e incontroláveis.
sado, e sua força de expressão, tanto na
América quanto na Europa, chegou a seu
ponto máximo nos primeiros quinze anos de O s procedimentos
nosso século. Do ponto de vista sociológico, para fixar as “crenças*
o pragmatismo representa a filosofia de uma
nação voltada com confiança para o futuro,
enquanto do ponto de vista da história das Se o pragmatismo de William James teve
idéias ele se configura como a contribuição mais sucesso na época, no entanto o prag­
mais significativa dos Estados Unidos à fi­ matismo de Charles S. Peirce (Cambridge,
losofia ocidental. O pragmatismo é a forma Massachussets, 1839-Milford, 1914) exer­
que o empirismo tradicional assumiu nos ceu e ainda em nossos dias exerce influência
Estados Unidos. Com efeito, enquanto o decididamente mais importante sobre as
empirismo tradicional, de Bacon a Locke, pesquisas m etodológicas e semiológicas.
de Berkeley a Hume, considerava válido o Para Peirce, o conhecimento é pesqui­
conhecimento baseado na experiência e a ela sa. E a pesquisa se inicia com a dúvida. E a
redutível — concebendo a experiência como irritação da dúvida que causa a luta para se
a acum ulação e organização progressiva obter o estado de crença, que é um estado
de dados sensíveis passados ou presentes de calma e satisfação. E nós procuramos
— , para o pragm atism o a experiência é obter crenças, já que são esses hábitos que
abertura para o futuro, é previsão, é norma determinam as nossas ações.
de ação. Pois bem, por quais caminhos ou pro­
Os representantes mais prestigiosos do cedimentos se passa da dúvida à crença?
movimento pragmatista foram: Charles Peir­ N o ensaio de 1877 The Fixation o f Belief
ce, William Jam es, George Herbert Mead (A fixação da crença), Peirce sustenta que
e John Dewey nos Estados Unidos; Ferdi- os métodos para fixar a crença são substan­
nand Schiller na Inglaterra (Schiller, porém, cialmente redutíveis a quatro:
concluiu seus estudos em Los Angeles, nos 1) o método da tenacidade;
Estados Unidos); Giovanni Papini, Giuseppe 2) o método da autoridade;
Prezzolini, Giovanni Vailati e M ario Calde- 3) o método do a priori;
roni na Itália; Hans Vaihinger na Alemanha 4) por fim, o método científico.
e Miguel de Unamuno na Espanha.
A simples relação desses pensadores 1) O método da tenacidade é o compor­
já mostra quão complexo e variado foi o tamento do avestruz, que esconde a cabeça
movimento pragmatista de pensamento. N a na areia quando se aproxima o perigo; é o
realidade, em 1908, Arthur O. Lovejoy já caminho de quem está seguro somente na
classificava nada menos que treze tipos di­ aparência, ao passo que, em seu interior, está
Capitulo quinto - O pi*Qjjmatismo

espantosamente inseguro. E tal insegurança sições fundamentais estão de acordo com


emerge quando ele se defronta com outras a razão. Entretanto, observa Peirce, a ra­
crenças, reputadas igualmente boas por zão de um filósofo não é a razão de outro
outros. O impulso social, escreve Peirce, é filósofo, como o demonstra a história das
contra esse método. idéias metafísicas. O método a priori leva
2) O m étodo da autoridade é o de ao insucesso, porque “ faz da pesquisa algo
quem, com a ignorância, o terror e a in­ semelhante ao desenvolvimento do gosto” ,
quisição, quer alcançar a concordância de visto ser método que “ não difere de modo
quem não pensa igual ou não pensa em essencial do método da autoridade” .
harmonia com o grupo ao qual pertence. 4) Assim, por um ou outro motivo, os
Este é um método que tem “ incomensurá- três métodos precedentes (da tenacidade, da
vel superioridade mental e moral sobre o autoridade e do a priori) não se sustentam.
método da tenacidade” , e seu sucesso tem Se quisermos estabelecer validamente as
sido grande e “ de fato sempre apresentou nossas crenças, segundo Peirce, o método
os mais m ajestosos resultados” ; este é o correto é o método científico.
método das fés organizadas. M as nenhuma
de tais fés organizadas permaneceu eterna;
na opinião de Peirce, a crítica as corroeu e I ^ e d u ç ã o , in d u ç ã o , a b d u ç ã o
a história as redimensionou e, de qualquer
forma, as particularizou.
3) O m étodo do “a-p rio ri” é o de Ora, na ciência, temos três diferentes
quem considera que suas próprias propo­ modos fundamentais de raciocínio:

Charles Sanders Peirce


( 1839- 1914),
representante maior
do pragmatismo lógico,
deu contributos
que ainda são de grande
atualidade para a lógica,
a semiótica
e a filosofia da ciência.
Primeira parte - y\ filo sofia c io s é c u lo X*-^X a o s é c u lo XX

a) a dedução; desmentir as conseqüências de nossas con­


b) a indução; jecturas: “Para a mente científica, a hipótese
e aquela que Peirce chama de c) abdução. está sempre in prova” . EEBIITI

a) A dedução é o raciocínio que não


pode levar de premissas verdadeiras a con­
clusões falsas. 4 C o m o torn ar c la ra s
b) A indução é “ argumentação que, a n o s s a s id é ia s:
partir do conhecimento de que certos mem­
bros de uma classe, escolhidos ao acaso, pos­ a re g ra p ra g m á tic a
suem certas propriedades, conclui que todos
os membros da mesma classe igualmente
as terão” . A indução, diz Peirce, move-se O método válido para fixar as crenças,
na linha de fatos homogêneos; classifica e portanto, é o método científico, que consiste
não explica. em formular hipóteses e submetê-las a verifi­
c) O salto da linha dos fatos para a das cação, com base em suas conseqüências. Por
suas razões, ao contrário, temos com o tipo outro lado, a regra válida para a teoria do
de raciocínio que Peirce chama de abdução, significado — assim como Peirce a apresenta
cujo esquema é o seguinte: também em Como tornar claras nossas idéias
(1878) — , isto é, a regra adequada para
1. Observa-se C, um fato surpreen­ estabelecer o significado de um conceito,
dente. é a regra pragmática, segundo a qual um
2. M as, se A fosse verdadeiro, então C conceito se reduz a seus efeitos experimentais
seria natural. concebíveis-, estes efeitos experimentais se
3. Portanto, há razões para suspeitar reduzem, por sua vez, a ações possíveis (ou
que A seja verdadeiro. seja, a ações efetuáveis no momento em que
se apresentar a ocasião); e a ação se refere ex­
Esse tipo de argum entação nos diz clusivamente a aquilo que atinge os sentidos.
que, para encontrar a explicação de um Do que foi dito torna-se evidente que
fato problemático, devemos inventar uma o pragm atism o de Peirce não reduz de
hipótese ou conjectura, da qual se deduzam modo algum a verdade à utilidade, mas se
conseqüências, que, por seu turno, possam estrutura muito mais como uma lógica da
ser verificadas indutivamente, isto é, expe­ pesquisa ou uma norma metodológica que
rimentalmente. Esse é o modo pelo qual a vê a verdade como por fazer, no sentido de
abdução mostra-se intimamente relacionada considerar verdadeiras as idéias cujos efeitos
com a dedução e a indução. concebíveis são comprovados pelo sucesso
Por outro lado, a abdução mostra que prático, sucesso jamais definitivo e absoluto.
as crenças científicas são sempre falíveis, já A verdade, escreve Peirce, jaz no futuro.
que as provas experimentais sempre poderão Texto
m
Capítulo quinto - O p m g m a tis in o

■ A b d u ç ão . Na antiguidade Aristóteles indicava com abdução - apagoghé


- o tipo de silogismo no qual a premissa maior é certa, a premissa menor é
incerta e, portanto, a conclusão tem uma certeza ou inferior ou igual à da
premissa menor.
Em Peirce a abdução é usada para um tipo de raciocínio onde, a fim de encontrar
uma explicação de um fato surpreendente - isto é, de um fato problem ático,
de um problem a - inventa-se uma hipótese como tentativa de solução, de cuja
idéia ou hipótese se deduzem as conseqüências que devem ser submetidas ao
controle empírico ou indutivo dos fatos. Peirce esquematiza do seguinte modo
o raciocínio abdutivo.
1) Observamos C, um fato surpreendente.
2) Mas, se A fosse verdadeiro, C seria natural.
3) Há, portanto, razão de suspeitar que A seja verdadeiro.
O raciocínio abdutivo liga dentro de si a dedução e a indução:
- a dedução é utilizada para forçar as conseqüências da hipótese A proposta
como tentativa de solução do "fato surpreendente" C;
- a indução funciona como verificação experimental do conteúdo da hipótese
A, isto é, como controle factual de suas conseqüências.
Digno de nota é que aquilo que Peirce chama de "fato surpreendente" é o
problema. Um fato é "surpreendente" quando se choca contra alguma nossa
idéia ou teoria ou expectativa precedente, criando assim o problema.

■ F a lib ilis m o . Este é um termç que freqüentemente se usa para indicar a


concepção da ciência de Peirce. É o próprio Popper - o teórico por excelência
do falibilismo em nosso século-que afirma: "Esta expressão ('falibilismo'), pelo
que eutaiba, encontra-se pela primeira vez em Charles Sanders Peirce".
E Peirce diz: "O falibilismo é a doutrina segundo a qual nosso conhecimento
jamais é absoluto, mas nada sempre, por assim dizer, em um continuum de
incerteza e de indeterminação". "Não podemos estar absolutamente certos de
nada". "Há três coisas que jamais podemos esperar obter por meio do raciocínio,
isto é, a certeza absoluta, a exatidão absoluta, a universalidade absoluta".
É interessante notar que, bem antes de Popper, Peirce usou não só o termo
"falibilismo" e o conceito de refutação, mas também o termo-conceito de fal­
sificação como oposto de verificação: "A proposição hipotética pode, portanto,
ser falsificada por um estado de coisas particular".

■ R egra p ra g m á tic a . Proposta por Peirce, a regra pragmática representa uma


rigorosa navalha de Ockam para estabelecer o significado de um conceito.
Escreve Peirce: "Um conceito, isto é, o significado racional de uma palavra ou
de outra expressão, consiste exclusivamente em seus reflexos concebíveis sobre
a conduta de vida; de modo que, a partir do momento que obviamente nada
daquilo que pode não resultar do experimento possa ter um reflexo direto
qualquer sobre a conduta, se alguém pode acuradamente definir todos os
fenômenos experimentais concebíveis que a afirmação ou a negação de um
conceito podem implicar, terá, por conseguinte, uma definição completa do
conceito, e nele não há absolutamente outra coisa".
O significado de um conceito define-se em termos de efeitos concebíveis;
estes eqüivalem à ação possível: uma crença é uma regra de ação, implica um
hábito. Com efeito, "nossa ação refere-se exclusivamente àquilo que atinge
nossos sentidos, nosso hábito tem o mesmo alcance que a ação, a crença tem
o mesmo que o hábito e o conceito o mesmo que a crença".
Com toda clareza, é "impossível que tenhamos uma idéia em nossa mente que
se refira a outra coisa a não ser aos concebíveis efeitos sensíveis das coisas.
Nossa idéia de uma coisa é a idéia de seus efeitos sensíveis, e se imaginamos
ter outra, enganamos a nós mesmos".
A regra pragmática liga o pensamento de Peirce ao neopositivismo e, sobre­
tudo, ao operacionismo de Bridgman.
Primeira parte - A filo sofia d o s é c u lo xax ao sécu Io XX

II. O empirismo radical


d e W ill iam j j a m e s

• Foi William James (1842-1910) que, no fim do século XIX, tornou conhecido
ao mundo o pragmatismo como nova filosofia. "O pragmatismo, afirma James,
é apenas um método". É antes de tudo um convite a afastar o olhar das "coisas
primeiras" (princípios, "categorias", pretensas necessidades) para dirigir a aten­
ção sobre as "coisas últimas" (os fatos). Em segundo lugar é um
método para obter a clareza das idéias; método que nos ordena
O pragmatismo
como método considerar os efeitos práticos concebíveis implicados por esta ou
e a concepção aquela idéia, "quais sensações devemos esperar e quais reações
instrumental devemos preparar". E uma idéia é verdadeira, na opinião de
da verdade James, "até quando nos permite ir à frente e levar-nos de uma
-»§ 1-2 parte para outra de nossa experiência, ligando as coisas de modo
satisfatório, operando com segurança, simplificando, economi­
zando a fadiga".
A abraçada por James é uma concepção instrumental da verdade: a verdade
- que é um processo e não uma posse - identifica-se com sua capacidade de ope­
rar, com sua utilidade para melhorar ou para tornar menos dificultosa e menos
precária a vida dos indivíduos.

• Os Princípios de psicologia são de 1890. James é contrário à velha psicologia


racional para a qual a alma era uma substância separada do corpo e auto-suficiente;
critica o associacionismo e sua pretensão d e /ed u zir a vida psíquica à combinação
de sensações elementares. É contrário aos materialistas que crêem
poder identificar os fenômenos psíquicos com movimentos da
A mente matéria cerebral. Para James a mente é um instrumento dinâmi­
é o instrumento
co e funcional para a adaptação ao ambiente. Concepção que o
da adaptação
ao ambiente leva a falar não só da percepção e das atividades intelectivas, mas
-^ § 3 também de fenômenos como o hipnotismo e o subconsciente, ou
ainda dos condicionamentos sociais.

• Daí a atenção ao problema ético, tratado por James em O filósofo moral e a


vida moral (1891) e em A vontade de crer (1897): o bem e o mal não são fatos; não
nos dizem como estão as coisas, mas como estas deveriam estar.
Um critério Pr°klemas éticos implicam escolhas por parte dos homens; e,
para escolher segundo James, devem ser preferidos os ideais que comportem,
os valores se realizados, a destruição do menor número de outros ideais e.,
§4 ao mesmo tempo, favoreçam o universo mais rico de possibili­
dades.

• E a concentração da riqueza da experiência humana leva James - diver­


samente dos positivistas - a tom ar em séria consideração e a avaliar de modo
positivo a experiência religiosa: esta põe os homens em contato
Avaliação com ° sagrado e muda sua existência. James chega a defender
positiva da filosofia a experiência mística, uma experiência que potência
da experiência e alarga o campo perceptivo e que abre para possibilidades des-
religiosa conhecidas no exercício da racionalidade. A influente obra de
-> § 5 James A variedade da experiência religiosa é de 1902.
Capítulo quinto - O p r a g m a tism o

*L . ° p ™ 9 m ah s™ °
e a p e n a s um m éto d o

Se com Peirce temos a versão lógica do


pragmatismo, com Jam es temos a versão
moral e religiosa, apesar de James ser lau­
reado em medicina e ter ensinado fisiologia
e anatomia em Harvard.
Foi James (Nova Iorque, 1842 — Cho-
corua, New Hampshire, 1910) — quem lan­
çou o pragmatismo como filosofia em 1898.
Foi sob a sua liderança que o pragmatismo
tornou-se conhecido no mundo. O prag­
matismo de fato foi recebido e conhecido
pelo público mais amplo nas concepções
propostas por James.
Afirma Jam es: “ O pragmatismo é ape­
nas m étodo” que se configura, em primeiro
lugar, como uma atitude de pesquisa, como
“ a disposição de afastar o olhar das coisas
primeiras, dos princípios, das ‘categorias’,
das pretensas necessidades e, ao contrário, William James (1842-1V10)
voltar os olhos para as coisas últimas, os representa a versão psicológica, moral e religiosa
resultados, as conseqüências, os fatos” . do pragmatismo.
O pragmatismo é método para alcançar
a clareza das idéias que temos dos objetos.
E esse método nos impõe “ considerar quais segurança, simplificando, economizando
efeitos práticos concebíveis essa [idéia] pode esforços” .
implicar, quais sensações podemos esperar Esta, diz ainda Jam es, “ é a concepção
e quais reações devemos preparar. N ossa ‘instrumental’ da verdade, ensinada com
concepção desses efeitos, tanto imediata tanto sucesso em Chicago, a concepção
como remota, é então toda a concepção tão brilhantemente difundida em Oxford:
que temos do objeto, enquanto ela tiver a veracidade de nossas idéias significa sua
capacidade de ‘operar’ ” . Desse modo, a
significado positivo” . B U Z ]
veracidade das idéias era identificada com
sua capacidade de operar, com sua utilidade,
tendo em vista a melhoria ou a tornar menos
-2^ v e r d a d e d e u m a id é ia precária a condição vital do indivíduo.
Além disso, para James “ a verdade de
se reduz à su a c a p a c id a d e
d // )) uma idéia não está em sua estagnante pro­
e o p erar priedade” . Há um processo de verificação
que torna verdadeira uma idéia. “Uma idéia
torna-se verdadeira, é tornada verdadeira
A este ponto, parece que as idéias de pelos acontecimentos. Sua veracidade é de
Jam es sobre o pragmatismo (expostas no fato acontecimento, processo: mais exata­
ensaio Pragmatismo, de 1907) não diferem mente, o processo de seu verificar-se, sua
das de Peirce. N o entanto, as coisas não verificação” . As idéias verdadeiras, segun­
são bem assim: para Jam es, “ as idéias (que do Jam es, “ são as que podemos assimilar,
são parte da nossa experiência) tornam-se ratificar, confirmar e verificar. E falsas são
verdadeiras à medida que nos ajudam a aquelas em relação às quais não podemos
obter relação satisfatória com as outras fazer o mesmo” .
partes de nossa experiência, e a resumi-las As idéias ou teorias verdadeiras, para
por meio de esquem as conceituais [...]. Jam es, são aproximações melhores do que
Uma idéia é verdadeira quando nos permi­ as idéias anteriores, resolvendo os proble­
te andar adiante e leva-nos de uma parte mas de modo mais satisfatório. E “ a posse
a outra de nossa experiência, ligando as da verdade, longe de ser fim, é apenas meio
coisas de modo satisfatório, operando com para outras satisfações vitais” .
Primeira parte - A filo sofia d o s é c u lo XJX a o sé c u lo XX

d L O s princípios da psicologia ceptivos e intelectivos, e sim também aos


e a mente como instrumento
condicionamentos sociais ou fenômenos
como os concernentes ao hipnotismo, à
da adaptação dissociação ou ao subconsciente. James não
apenas realizou análises refinadas e críticas
agudas sobre esses tem as, m as também
Em 1890, Jam es publicou os dois vo­ prenunciou muitas doutrinas que depois
lumes que constituem os Princípios de psi­ seriam desenvolvidas pelo comportamen-
cologia. Jam es considera que uma fórmula talismo, pela psicologia da Gestalt e pela
que prestou amplos serviços à psicologia psicanálise.
foi a fórmula spenceriana, segundo a qual
“ a essência da vida mental e a essência
da vida corporal são idênticas, ou seja, ‘a
adaptação das relações internas às exter­ 4 A questão moral:
nas’ Essa fórmula pode ser considerada como escolKer
a encarnação da generalidade — comenta
Jam es — mas, “ como considera o fato de entre ideais contrastantes?
que as mentes vivem em ambientes que
agem sobre elas e sobre as quais elas por
Presente em diversos escritos de James,
seu turno reagem, já que, em suma, ela põe a questão ética é enfrentada explicitamente
a mente no concreto de suas relações, tal em dois escritos fundamentais para sua
fórmula é imensamente mais fértil do que
a velha ‘psicologia racional’, que conside­
rava a alma como coisa separada e auto-
suficiente, e pretendia estudar somente sua
natureza e prioridade” .
N a realidade, Jam es faz da mente um
instrumento dinâmico e funcional para a
CVLTVRA.
adaptação ambiental. A vida psíquica ca­ DELL' ANIM A
racteriza-se por finalismo que se expressa
como energia seletiva já no ato elementar
da sensação.
Por isso tudo, a velha noção de alma
já não servia para Jam es. M as ele também
criticava os associacionistas, que reduziam
a vida psíquica à combinação das sensações
elementares, e criticava os materialistas, com
sua pretensão de identificar os fenômenos
psíquicos com os movimentos da matéria
cerebral.
A consciência se apresenta para J a ­
mes como corrente contínua: ele fala de
uma stream o f tbought (uma corrente de
pensam ento). E a única unidade que se
pode detectar na stream o f consciousness é
aquela pela qual o pensamento “ difere em
cada momento do momento anterior, apro­
priando-o juntamente com tudo o que este ftC A R A B B A , E D JT O R E
último chama de seu” . A “ experiência pura”
aparece para ele como “ o imenso fluxo vital La n c ia n o
que fornece o material para a nossa reflexão
ulterior” . Para Jam es, a relação sujeito-ob-
jeto é derivada.
Conceber a mente como instrumento Frontispício da edição italiana
de adaptação ao ambiente foi a idéia que dos Ensaios pragmáticos de William James,
levou Jam es à ampliação do objeto de es­ publicada por Carabba em 1919
tudo da psicologia: esse objeto não diria com um prefácio e uma bibliografia
mais respeito somente aos fenômenos per- de Giovanni Papini.
Capítulo quinto - O ptAa 0 m atism o

concepção pragm ática: O filósofo moral variedade


e a vida moral, de 1891, e  vontade de
d a e x p e r ie n c ia re lig io sa
crer, de 1897. Neste último ensaio, James
levanta questões como a dos valores, que e o u n iv e rso p lu ra lista
não podem ser decididas recorrendo às ex­
periências sensíveis: “ As questões morais,
antes de tudo, não são tais que sua solução Outra grande obra de William James, de
possa esperar prova sensível. Com efeito, 1902, é A variedade da experiência religiosa,
uma questão moral não é uma questão do onde o autor propõe antes de mais nada uma
que existe, mas daquilo que é bom ou seria rica fenomenologia da experiência religiosa.
bom que existisse” . Jam es é contrário aos positivistas, que liga­
A ciência pode nos dizer o que existe vam a religião a fenômenos degenerativos.
ou não existe. M as, para as questões mais O empirista radical James não quer que a
urgentes, devemos consultar as “ razões do identificação das riquezas das experiências
coração” . H á decisões que todo homem humanas seja bloqueada por um juízo de
não pode deixar de tomar: dizem respeito valor qualquer. A vida religiosa é inconfun­
ao sentido último da vida, ao problema dível; ela põe os homens em contato com
da liberdade humana ou de sua falta, da uma ordem invisível e muda sua existência.
dependência ou não no mundo em relação Segundo Jam es, o estado místico é o
a uma inteligência ordenadora e regente, momento mais intenso da vida religiosa e
da unidade monística ou não do mundo, age como se ampliasse o campo perceptivo,
todas questões teoricamente insolúveis, que abrindo-nos possibilidades desconhecidas
só se podem enfrentar mediante escolha ao controle racional. E a atitude mística não
pragmática. pode se tornar garantia de uma determinada
Voltemos, porém, aos valores. Os fatos teologia. Aliás, para Jam es, a experiência
físicos existem ou não existem e, enquanto mística deve ser defendida pela filosofia.
tais, não são bons nem maus: “ O ser melhor Aqui podemos ver como Jam es passa da
não é relação física” . A realidade é que o descrição à avaliação da experiência mística,
bem e o mal só existem em referência ao considerada como acesso privilegiado, ina­
fato de que satisfazem ou não as exigências cessível pelos meios comuns, ao Deus que
dos indivíduos. Refletindo variedade enorme potencializa nossas ações e que é “ a alma e a
de necessidades e impulsos diversos, essas razão interior do universo” , de um universo
exigências geram um universo de valores pluralista, onde Deus (que não é o mal nem
freqüentemente em contraste. o responsável pelo mal) é concebido como
Então, como unificar e hierarquizar pessoa espiritual que nos transcende e nos
tais ideais, variados e muitas vezes contras­ convoca a colaborar com ele.
tantes? A resposta de Jam es a essa pergunta Um universo pluralista (1909) é uma
crucial é que se devem preferir os ideais que, das últimas obras de Jam es, onde ele tenta
se realizados, impliquem a destruição do libertar a experiência religiosa da angústia
menor número de outros ideais e o universo do pecado — angústia arraigada na tradi­
mais rico de possibilidades. Naturalmente, ção puritana da Nova Inglaterra — e onde,
tal universo não é dado de fato, não é ab­ precisamente, Deus é concebido como ser
solutamente garantido, e se propõe como finito. Para Jam es, Deus não é o todo;
simples norma que caracteriza a vontade usando a imagem de Whitehead, ele é um
moral enquanto tal. Deus-companheiro.
Primeira parte - y\ filosofia do século X^X ao século XX

III. T) e s envolvimentos
do pragm atism o

• Os Estados Unidos, além da obra de Peirce e de James, podem se orgulhar


tam bém da de George Herbert Mead (1863-1931), o qual - colega de Dewey na
Universidade de C hicago-trabalhou com ele sobre temas comuns. Mead concebe
um universo não dividido e uma continuidade entre o universo e o
Mead e Schiller homem, cujas experiências, por outro lado, têm todas um caráter
nos Estados social. Os trabalhos de maior relevo que Mead nos deixou são: A
Unidos filosofia do presente (1932); Espírito, eu e sociedade (1934).
5 1-2 Na América, e precisamente na Universidade de Los Ange­
les, ensinou - depois de ter sido professor em Oxford - também
Ferdinand Cunning Scott Schiller (1864-1937), para o qual uma "razão pura", des­
ligada dos requisitos da ação, é mutação destinada a ser eliminada; e, igualmente,
encontram um filtro na mais ampla sociedade gostos e avaliações do indivíduo
particular.

• Na Alemanha uma concepção próxima do pragmatismo é a proposta pela fi­


losofia do como~se de Hans Vaihinger (1852-1933), estudioso de Kant e sustentador
-justam ente, na Filosofia do como-se, 1911 - da tese segundo a
Vaihinger qual conceitos, princípios e teoria do saber comum, da ciência e da
na Alemanha filosofia nos servem para padronizar a realidade (entendida, por
-> 5 3 sua vez, como conjunto de representações): são "ficções" úteis, e
sua utilidade faz com que as consideremos como verdadeiras.

• Giovanni Papini (1881-1956) e Giuseppe Prezzolini (1882-1982) propuseram


um pragmatismo que exaltava a vontade de crer, por meio da revista "O Leonardo"
(1903-1907), que serviu, junto com "Voz" (1908) e "Lacerba" (1913-1915), para
rejuvenescer a cultura italiana.
Bem diferente é, ao contrário, o pragmatismo defendido
Papini, por M ario Calderoni (1879-1982) e Giovanni Vailati (1863-1909),
Prezzolini, cujas concepções se inspiraram substancialmente nas propostas
Calderoni teóricas de Peirce.
e vf í a.P Para Vailati o pragmatismo possui um caráter utilitário en-
na htaha quanto - por meio da regra pragmática - leva a descartar toda
' uma série de questões inúteis. Convicto da extrema utilidade cul­
tural, científica e didática da história da ciência, Vailati esclareceu
a função do erro dentro da pesquisa científica: "Todo erro nos indica um escolho
a evitar, enquanto nem toda verdade nos indica um caminho a seguir".

1 AAead; de núcleos problem áticos comuns. Para


M ead, a função da filosofia é a de mostrar
continuidade
um universo não cindido, do qual emerja a
entre o komem e o universo continuidade entre o universo e o homem.
Aspecto fundamental no pensamento de
M ead é que existe relação de condicionali-
Ao lado de Peirce e Jam e s, outro dade recíproca entre condicionante e con­
prestigioso pragm atista norte-americano dicionado-. assim, por exemplo, o presente
foi George Herbert M ead (1863-1931), é condicionado pelo passado, mas, por seu
colega de Dewey na Universidade de Chi­ turno, o presente “ reescreve o seu passa­
cago, onde colaborou com ele em torno d o ” . Outro tema de fundo da filosofia de
Capítulo quinto - O p r a g m a t is m o

M ead é o de caráter social de todo aspecto do como-se, de Hans Vaihinger. Iniciando


da experiência humana. M ead é autor de como estudioso de Kant e do neocriticista
muitos escritos, reunidos em três volumes Friedrich Albert Lange, Vaihinger, na Filo­
depois de sua morte: A filosofia do presente sofia do como-se (1911), tenta mostrar que
(1932), Espírito, eu e sociedade (1934) e A todos os conceitos, princípios e hipóteses
filosofia do ato (1938). que constituem o saber comum, as ciências
e a filosofia são ficções, que não possuem
validade teórica nenhuma, mas que são
aceitos e defendidos somente porque são
S c k ille ^ : úteis, embora freqüentemente sejam até
contraditórios.
o pragmatismo
Para Vaihinger, o objetivo do conheci­
como Humanismo mento é a vida. E ele leva até a exasperação
o contraste entre valor teórico e valor vital
da ficção. Nesse sentido, também são ficções
Ferdinand Cunning Scott Schiller as teorias filosóficas que não podem nos
(1864-1937) foi inicialmente professor em propor a elaboração de visões verdadeiras
O xford e depois, na América, na Univer­ do mundo, e sim muito mais concepções
sidade de Los Angeles. O pragmatismo de capazes de tornar a vida mais digna e mais
Schiller apresenta-se com o hum anismo. intensa.
Para ele, todo conhecimento postula um
aspecto emocional e toda argumentação
encerra uma urgência prática: na opinião de
Schiller, o procedimento efetivo da ciência Calderoni:
obedece ao critério da utilidade. Uma lei distinção entre juízos de fato
natural seria uma fórmula econômica e uma
função conveniente para descrever o com­ e de valor
portamento de séries de acontecimentos.
Para ele, uma “ razão pura” afastada das
exigências da ação é mutação destinada a
O pragm atism o italiano surgiu com
ser eliminada.
Persuadido, com Protágoras, de que o o “ L eon ard o” (1903-1907), fam osa re­
homem é a medida de todas as coisas, Schil­ vista com a qual colaboraram , além de
ler sustenta que os gostos e as apreciações Giovanni Papini (1881-1956), Giuseppe
de cada indivíduo encontram na sociedade Prezzolini (1882-1982), Giovanni Vailati e
um filtro seletivo: também neste caso são a M ário Calderoni, e também Jam es, Schil­
utilidade e a eficiência que determinam sua ler e Peirce. Enquanto Papini e Prezzolini
aceitabilidade. A filosofia de Schiller pode exaltavam (com James) a vontade de crer,
ser qualificada como espécie de relativismo M ário Calderoni (Ferrara, 1879 — Imola,
radical. 1914) e Giovanni Vailati (Crema, 1863
Entre as obras mais notáveis de Schiller, — Rom a, 1909) mostravam-se mais pró­
devem-se destacar: Os enigmas da Esfinge ximos de Peirce.
(1891 — trata-se de estudo sobre a filosofia Convicto defensor da distinção entre
da evolução), Estudos sobre o humanismo juízos de fato e juízos de valor, Caldero­
(1907), Problemas da crença (1924), Lógica ni afirm ou que a filosofia m oral “ pode
para o uso: introdução à teoria voluntarista modificar poderosamente o conjunto de
do conhecimento (1930), Devem os filóso­ crenças e previsões que se misturam con­
fos divergir? e outros ensaios (1934), e As tinuamente — e freqüentemente sem que
nossas verdades humanas (1939). tenhamos consciência disso — com nossas
apreciações, acrescentando novas crenças
e previsões às conseqüências de nossos
atos; pode nos mostrar a incompatibilidade
Vaikirvger
prática de certos ideais com outros ideais
e a filosofia do*como-se1 que consideramos superiores, de certos sen­
timentos com outros ‘melhores’, de certas
tendências nossas com outras mais ‘fortes’;
N a Alemanha, uma concepção filosó­ e, assim, influir consideravelmente sobre
fica análoga ao pragmatismo foi a filosofia nossa conduta” .
Primeira parte - y\ filosofia d o s é c u lo a o s é c u lo ,X,X

Vailati; vemos recordar que ele examinou grande


número de problemas, apresentando válidas
o pragmatismo como método
contribuições clarificadoras. Análise de
questões algébricas, geométricas e lógicas;
estudos de metodologia científica; análise
Laureado em matemática (1884) e em dos conceitos de causa e efeito aplicados às
engenharia (1886) em Turim (onde tam ­ ciências históricas; exame do problema dos
bém foi assistente de Peano), desde o início termos teóricos nas ciências empíricas e das
Vailati esteve do lado de Peirce, muito mais relações entre linguagem comum e linguajar
do que de Jam es, e logo compreendeu o técnico, e assim por diante.
valor metodológico exato da norma prag­ E ainda outro ponto importante. Vaila­
mática. Escrevia Vailati: “ A norma metó­ ti nos deixou estupendos ensaios de história
dica enunciada por Peirce, longe de estar da ciência. De acordo com Mach, Vailati
voltada para tornar mais ‘arbitrária’, mais escreveu o seguinte sobre a importância
‘subjetiva’ e mais dependente do parecer e dessa disciplina: “ Sejam verdadeiras, sejam
do sentimento individual a distinção entre falsas, as opiniões são fatos apesar de tudo
opiniões verdadeiras e opiniões falsas, ao e, como tais, merecem e exigem ser tomadas
contrário, tem objetivo perfeitamente opos­ como objetos de investigação, verificação,
to. Essencialmente, ela nada mais é do que confronto, interpretação e explicação, pre­
um convite a traduzir nossas afirmações em cisamente como qualquer outra ordem de
uma forma na qual possam ser mais direta fatos e com o mesmo objetivo [...]” . Eis,
e facilmente aplicáveis a elas precisamente pois, a enorme importância do mundo de
aqueles critérios de veracidade e de falsida­ papel. “ Eu diria que a história das teorias
de que são mais ‘objetivos’, isto é, menos científicas sobre determinado tema não deve
dependentes de qualquer im pressão ou ser concebida como a história de uma série
preferência individuais” . Substancialmente, de tentativas sucessivas, todas sem sucesso,
para Vailati, a norma pragmática constitui exceto a última [...]. Ao contrário, a história
uma linha de demarcação entre questões nos apresenta uma série de acontecimentos,
sensatas e questões sem sentido: “ A questão em que cada qual supera e eclipsa o anterior,
de determinar o que queremos dizer quando assim como o anterior, por sua vez, superara
enunciamos dada proposição não é apenas e eclipsara os que o haviam precedido [...].
uma questão completamente diferente da Encontramo-nos sempre ou quase sempre
questão de decidir se essa proposição é ver­ diante de um processo de aproxim ações
dadeira ou falsa: é questão que, de um ou de sucessivas, com paráveis a uma série de
outro modo, precisa ser decidida antes que explorações em região desconhecida, cada
se possa sequer começar a tratar da outra” . uma das quais corrige ou precisa melhor
Desse modo, o pragmatismo tem caráter os resultados das explorações anteriores e
utilitário, “ enquanto leva a descartar certo torna sempre mais fácil, para as explorações
número de questões inúteis: inúteis, porém, que se seguem, a consecução do objetivo que
pela simples razão de que são apenas ques­ todas tiveram em vista” . Desse modo, Vailati
tões aparentes ou, mais precisamente, não precisava também a função do erro na his­
são questões de modo nenhum” . Assim, por tória da pesquisa científica: “ Uma afirmação
exemplo, as intermináveis discussões sobre errônea ou um raciocínio inconcludente de
o tempo, sobre a substância, sobre o infinito um cientista de tempos passados podem ser
etc., que ocupam tanto espaço em certas dis­ tão dignos de consideração quanto uma des­
cussões filosóficas, “ fornecem numerosos e coberta ou uma intuição genial, se também
característicos exemplos das várias espécies servirem para lançar luz sobre as causas que
de ‘questões fictícias’ ” , questões que se asse­ aceleraram ou retardaram o progresso dos
melham à da criança que perguntava ao pai conhecimentos humanos, ou para evidenciar
onde está o vento quando não está soprando. o modo de agir de nossas faculdades inte­
Portanto, análise da linguagem e tera­ lectuais. Cada erro nos indica um escolho
pia lingüística. Voltando-nos para a parte a evitar, ao passo que nem toda descoberta
construtiva do pensamento de Vailati, de­ nos aponta um caminho a seguir” . W 5à2SÃ\
91
Capítulo q u if lt O - O p r a g m a tism o .

e Fora atingido pelo fato de que há diversos


modos incompatíveis entre si para explicar
P e ir c e os mesmos fatos. Por fim, a circunstância que
uma hipótese, embora possa fazer-nos prever
corretamente certos fatos, possa no futuro
levar-nos a expectativas errôneas em relação
a outros fatos - esta mesma circunstância, que
^ 1 Abdução, dedução, indução não podemos negar uma vez que nos tenha
saltado aos olhos, impressionou de tal forma
os cientistas, primeiro na astronomia e depois
Peirce chama d e abdução o "passo infe- nas outras ciências, que se tornou indiscutível
rencial" que leva um pesquisador a adotar
que uma hipótese adotada por abdução deve
uma hipótese como tentativa de solução ser adotada apenas provisoriamente, e deve
d e um "fato surpreendente"; uma vez que ser experimentada.
a hipótese tenha sido formulada, dela se
deduzem as conseqüências; conseqüências
que serão indutivamente controladas sobre fldedução
os fatos.
Quando tudo isso for reconhecido como se
deve, a primeira coisa a fazer, uma vez adotada
uma hipótese, será extrair dela as prováveis
f l abdução conseqüências experimentais. Cste passo é a
dedução. Notarei de passagem uma regra de
Se aceitarmos a conclusão de que uma
abdução sobre a qual Auguste Comte insiste
explicação é necessária quando surgem fatos
muito, ou seja, que toda hipótese metafísica
contrários àquilo que havíamos esperado, deveria ser excluída; e por hipótese metafísica
segue-se daí que a explicação deve ser uma
entende uma hipótese que não tem conse­
proposição em grau de prever os fatos ob­
qüências experimentais. [...]
servados como conseqüências necessárias ou
pelo menos prováveis naquelas circunstâncias,
fl este ponto deve-se adotar uma hipótese, fl indução
que seja em si verossímil e torne verossímeis
os fatos. O passo de adoção de uma hipótese Ora, tendo tirado por dedução de uma
enquanto sugerida pelos fatos é aquilo que hipótese as previsões dos resultados de um
defino como abdução. Considero-a uma forma experimento, procedamos a saborear uma hipó­
de inferência, por mais problemática que seja a tese executando o experimento e confrontando
hipótese adotada. Quais são as regras lógicas as previsões com os resultados efetivos dele. O
a seguir para realizar esta adoção? Não seria experimento é uma empresa muito custosa em
racional impor regras e dizer que devem ser se ­ dinheiro, tempo e pensamento, de modo que
guidas até que nõo esteja claro que o objetivo será uma poupança de despesa iniciar com as
da hipótese as requeira. Analogamente, parece previsões positivas da hipótese verossimilmente
que os primeiros cientistas, Tales, Anaximandro menos passíveis de confirmação. Isto porque,
e os outros, considerassem esgotada a tarefa se um experimento particular pode refutar de­
da ciência, uma vez que fosse sugerida uma finitivamente a mais válida das hipóteses, uma
hipótese verossímil. Com isto homenageio seu hipótese fixada por um só experimento seria
sólido instinto lógico pela hipótese. Também verdadeiramente de escasso valor. Quando,
Platão, no Timeu e em outros lugares, não he­ por fim, vemos que uma hipótese verifica-se
sita em afirmar claramente a verdade de tudo experimentalmente, previsão depois de previ­
aquilo que parece tornar razoável o mundo, e são, apesar de se ter dado precedência à prova
este mesmo procedimento, ainda que em forma das previsões menos plausíveis, sem nenhuma
modificada, está na base da moderna crítica modificação ou com modificações puramente
histórica. Tudo caminhou bem até que não se quantitativas, entõo começamos a atribuir-lhe
percebeu que tal procedimento pode interferir dignidade entre os resultados científicos. Cste
na utilidade da hipótese. Aristóteles afasta- tipo de inferência por experimentos que provam
se em parte desse método. Suas hipóteses as previsões baseadas sobre uma hipótese é
sobre a natureza são igualmente infundadas, o único que pode de fato ser definido como
mas a elas acrescenta sempre um "talvez". indução.
Isto, a meu ver, acontecia porque Aristóteles Ch. 5 . Peirce,
era conhecedor profundo dos outros filósofos, História e abdução.
Primeira parte - ;Afilo sofia d o s é c u lo X « U X a o s é c u lo xx

apenas um estágio da ação mental, um efeito


2 fl regra pragmática do pensamento sobre nossa natureza, efeito tal
que influirá sobre o pensamento futuro.
fl essência da crença é a fixação de um
O significado de um conceito denomina­ hábito (the establishment of o habit) e crenças
do p or uma palavra se reduz - para Peirce diferentes se distinguem pelos diversos modos
- q o conjunto d e nossos ações práticos de ação a que dão origem. Se as crenças não
concebíveis com ou em presença do objeto diferem deste ponto de vista, se aplacam a
ao qual o conceito s e refere. "Nossa idéia de mesma dúvida produzindo as mesmas regras
algo é a idéia de seus efeitos sensíveis". de ação, então simples diferenças dos modos
com os quais se percebem não as tornam cren­
ças diferentes, assim como tocar um trecho de
Vimos que o açõo do pensamento (the música em chaves diversas não produz peças
oction of thought) é estimulada pela irritação diferentes. [...] Para entender o significado de
da dúvida e cessa quando a crença é alcan­ uma coisa, devemos, portanto, unicamente de­
çada; d® modo que a produção da crença é terminar quais hábitos ela produz, pois aquilo
a única função do pensamento. [...] fl alma e que uma coisa significa é simplesmente o hábito
o significado do pensamento, purificados dos por ela implicado. € a identidade de um hábito
outros elementos que os acompanham, embora depende de quais ações nos levará a realizar,
possam ser voluntariamente frustrados, jamais nõo somente nas circunstâncias que provavel­
poderão se orientar para nenhuma outra coisa mente se apresentarão, mas também naquelas
a não ser a produção da crença. O pensamen­ que, com escassa probabilidade, surgirão. O
to em ação (thought: in oction) tem como seu que é um hábito depende, em outras palavras,
único motivo possível alcançar o pensamento do quando e do como nos levará a agir. Naquilo
em repouso {thought ot resf)-, e qualquer outra que se refere ao quando, todo estímulo à ação
coisa que nõo se refira à crença não faz parte deriva da percepção; e naquilo que se refere
do próprio pensamento. ao como, todo objetivo da ação é o de produzir
€ o que é, então, a crença? é a meia algum resultado sensível. Assim, desçamos ao
cadência que encerra uma frase musical na tangível e ao prático, ou seja, desçamos à raiz
sinfonia de nossa vida intelectual. Vemos que de toda verdadeira distinção de pensamento,
tem três propriedades: 1) é algo de que somos por mais que esta possa ser sutil; e não há
conscientes; 2) aplaca a irritação da dúvida; distinção de significado tão refinada que não
3 ) implica a fixação, em nossa natureza, de consista senão em uma possível diferença de
uma regra de açõo, ou, em poucos palavras, atividade prática. [...] Nossa idéia de algo é a
de um hábito (habit). Quando ela aplaca a idéia de seus efeitos sensíveis, e se imaginar­
irritação da dúvida, que é o móvel do pensar, mos ter dela uma outra, nós enganaremos a nós
o pensamento se relaxa, e pára um momento, mesmos e confundiremos a simples sensação
quando se alcança a crença. Mas, como a crença que acompanha o pensamento com uma parte
é uma regra para a ação (b s lie i is o rule for do próprio pensamento.
oction), cuja aplicação implica ulteriores dúvidas Parece, portanto, que a regra para alcan­
e ulteriores pensamentos, ao mesmo tempo em çar o terceiro grau de clareza de apreensão é
que ela é um ponto de chegada, é também um assim formulável: consideramos quais efeitos,
ponto de partida para o pensamento. € é por que podem ter concebivelmente conseqüências
tal razão que me permiti chamá-la de pensa­ práticas, pensamos que o objeto de nossa
mento em repouso, embora o pensamento seja concepção tenha. €ntão, a concepção destes
essencialmente uma atividade. O resultado Final efeitos é todo a nossa concepção do objeto.
do pensar é o exercício da volição, e o pensa­ Ch. 5 . Peirce,
mento não faz mais parte disso; mas a crença é Como tornar daras nossas idéias.
, 93
Capítulo quinto - O pragmatismo __

para os resultados, conseqüências, fatos. 6


basta isso para o método pragmático! Podereis
J am es objetar que elogiei mais do que expliquei, mas
agora eu o exporei abundantemente, mostran­
do-o em ação em tais problemas familiares.
6 ntrementes a palavra "pragmatismo" foi usada
em sentido mais vasto, de modo a indicar certa
B "O pragmatismo teoria da verdade.
é apenas um método" UJ. James,
Progmotism.

O pragmatismo é um método que consis­


te, segundo James, na "disposição de tirar o
olhar das coisas primeiras, dos princípios, das
'categorias', das pretensas necessidades,
e olhar ao contrário para as coisas últimas, V a il a t i
paro os resultados, conseqüências, fatos".

Não há absolutamente nada de novo


no método pragmático. Sócrates aderia a 4 Crítica do
ele. Aristóteles o praticava, locke, Berkeley e
Hume trouxeram, por meio dele, importantes
materialismo histórico
contribuições à verdade. Shadiuorth Hodgson
afirma que as realidades são como se conhe­
cem. Mas estes precursores do pragmatismo o Fl concepção materialista da história erra
empregaram fragmentariamente, limitando-se a ao considerar determinante o fator econômi­
introduzi-lo. Apenas hoje ele se generalizou e co para a gênese e o desenvolvimento dos
tornou-se consciente de uma missão universal, eventos históricos e sociais. R realidade
e se dirige a um destino como conquistador. 6u -p recisa Vailati com um espírito rigorosamen­
creio nesse destino e espero podê-lo levar a te científico - é que "mais do que uma relação
cabo inspirando-vos com minha fé. de causa e efeito trata-se aqui [...] de uma
O pragmatismo representa uma atitude relação de mútua dependência, análoga à
totalmente familiar em filosofia, a empirista, que existiria, p o r exemplo, entre as posições
mas a representa a meu ver de forma mais de duas esferas pesadas, sustentadas por
radical e menos criticável do que no passado. uma superfície côncava [...]“.
Um pragmático volta resolutamente as costas,
de uma vez por todas, a um grande número de
posições caras aos filósofos de profissão. 61® A concepção materialista da história [...]
foge da abstração, das soluções verbais, das consiste para muitos em considerar as condições
más razões a priori, dos princípios fixos, dos econômicas como os únicos fatores eficazes do
sistemas fechados, dos falsos absolutos. 6le se desenvolvimento e dos transformações sociais,
dirige à concretude e à adequação, aos fatos, e em qualificar todas as outras manifestações
à ação e ò força. Isso significa fazer prevalecer da vida coletiva, e particularmente as mais ele­
uma atitude empirista sobre a racionalista, a vadas, como simples superestruturas ou reflexos
liberdade e a possibilidade contra o dogma, o ideológicos daquelas, privadas em si próprias
artifício e a pretensão de umo verdade defini­ de qualquer eficácia ou impulso diretivo.
tiva. O pragmatismo também não toma posição Também contra os mantenedores desta
por algum resultado particular. 6 apenas um teoria se poderia observar, como no caso pré-
método. Mas seu triunfo comportaria mudança cedente, que admitira influência preponderante
enorme naquilo que chamei de “temperamento" de relações econômicas, na formação e no
da filosofia. [...] desenvolvimento das espécies particulares d®
Nenhuma doutrina particular, em suma, atividade às quais dá lugar a convivência huma­
mas apenas uma atitude de pesquisa: eis o que na, não implica qu® estas últimas não possam
significa o método pragmático. A disposição de por sua vez agir como causas modificadoras
tirar o olhar das coisas primeiros, dos princípios, da estrutura e da própria vida econômica da
das "categorias", das pretensas necessidades, sociedade em que se manifestam. Mais que de
e a olhar ao contrário para as coisas últimas, uma relação de causa e efeito, trata-s® aqui,
Primeira parte - y\ filosofia do século X J X ao século X X

como é mérito principalmente dos economistas a pesquisa das causas é apta freqüentemente
da escola matemática ter feito salientar, de a levar a conseqüências de fato diversas, con­
uma relação de mútua dependência, análoga forme sentimentos ou preocupações políticas e
a que existiria, por exemplo, entre as posições morais do pesquisador.
de duas esferas pesadas sustentadas por uma Cste se deixa induzir, mais ou menos cons­
superfície côncava, cada uma das quais pode cientemente, a limitar sua atenção e a qualificar
ser qualificada como causa da posição que a como causas apenas as que, entre as condições
outra ocupa, no sentido de que cada uma delas de um dado fato, para cuja modificação ele
obriga a outra a assumir uma posição diferente crê que seria necessário ou útil prover caso se
da que assumiria se estivesse sozinha. quisesse provocar ou impedir o fato em questão
Há, todavia, razões que podem, dentro ou outros de índole análoga, ou modificá-los no
de certos limites, justificar nossa tendência modo por ele desejado.
a aplicar mais a um do que a outro de dois Nem esta espécie de parcialidade deve
fatos mutuamente dependentes a qualificação ser considerada como ilegítima, ou confundida
de causas. Tais razões são precisamente as com a que consiste em permitir às nossas pai­
mesmas pelas quais, quando nos encontramos xões e aos nossos interesses influir sobre a
diante de um complexo de condições que juntas avaliação das provas dos fatos e das teorias.
concorrem para a produção de um dado efeito, Cnquanto esta segunda espécie de parcialida­
somos induzidos a escolher uma parte apenas de é radicalmente incompatível com o caráter
delas para aplicar-lhes, excluindo as restantes, científico de qualquer espécie de pesquisa, a
o nome de "causas". outra é perfeitamente legítima, nas ciências
Com efeito, nem todas as condições de históricas da mesma forma que nas ciências
cujo concurso depende, a verificação de um naturais. C, deste ponto de vista, ouvir falar, por
dado fato apresentam para nós o mesmo inte­ exemplo, de um volume de história socialista,
resse, e também aqui o exemplo das ciências em contraste com outro, por exemplo, de história
físicas é útil para esclarecer os motivos e os conservadora, não deveria parecer mais estra­
critérios pelos quais determina-se tal diferença nho que ouvir falar de um manual de química
de interesse. para os tintureiros, completamente diferente de
fi distinção entre causa e efeito, e isso é um tratado de química para os farmacêuticos e
verdade ainda mais para as ciências sociais e para os agrônomos.
históricas do que para as ciências físicas, é uma fi verdade é uma só, mas as verdades
distinção essencialmente de origem prática, e são muitas, e muitos são os objetivos para
que se relaciona, em um grau mais ou menos cujo alcance nossos conhecimentos podem
direto, à representação que fazemos do mundo eventualmente ser aplicados. C preocupar-se
e da ordem em que deveremos ou quereremos com um mais do que do outro de tais objetivos
proceder para modificar o andamento dos fatos é, também nas ciências históricas como em
de que se trata, e adaptá-los a nossos fins e qualquer ramo de pesquisa, de fato compatível
a nossos desejos. com a mais serena imparcialidade na avaliação
é por isso que, como observa Hobbes, das provas e dos testemunhos.
"quaeruntur causae non eorum quae sunt, sed G. Vailati,
eorum quae e sse possunt". C esta é também a Sobre o aplicabilidade dos conceitos
razão pela qual nas ciências históricas e sociais de c q u s o e efeito.
d a p í f u l o sex+o

O m s + m m e ^ + a lis m o

de 3 o h n Dewey

• John Dewey (1859-1952) - o mais significativo filósofo americano do século


XX - chamou de instrumentalismo sua própria filosofia. E nessa filosofia é funda­
mental um conceito de experiência diferente do típico do empirismo.
No empirismo a experiência é simplificada e ordenada, é
consciência clara e distinta. Para Dewey, ao contrário, "a ex- a experiência
periência não é consciência, mas história". Ele escreve isso em nàoé
Experiência e natureza, de 1925. E acrescenta que a experiência consciência,
não se reduz sequer ao conhecimento; com efeito, ela inclui mas história
tam bém "os sonhos, a loucura, a doença, a morte, a guerra, a •§ 1
confusão, a ambigüidade, a mentira e o horror; inclui os sistemas
transcendentais e também os empíricos, a magia e a superstição, da mesma forma
que a ciência. Inclui a inclinação que impede de aprender da experiência, como a
habilidade que tira partido de seus mais fracos indícios".

• A experiência é, portanto, história: história dirigida ao futu­


Criticas
ro em um mundo precário, instável e cheio de perigos. Primeiro o das filosofias
homem tentou enfrentar este mundo adverso apelando a forças da história
mágicas e construindo mitos; sucessivamente filósofos como He- super-
ráclito, Hegel ou Bergson pensaram ter captado as leis necessá­ simplificadoras
rias e universais da mudança, crendo assim exorcizar o medo. A e desresponsa-
verdade, nota Dewey, é que essas filosofias não conseguiram seu bilizadoras
intento. São apenas "filosofia do medo", super-simplificadoras e ^ § 2
desresponsabilizadoras:
super-simplificadoras, porque voluntariamente ignoram toda uma grande
quantidade de fatos e eventos que elas não conseguem explicar;
desresponsabilizadoras, porque apresentam como progresso indiscutível
aquilo que pode ao contrário ser apenas o resultado do empenho humano lúcido
e tenaz.

• São necessários instrumentos bem diferentes para enfrentar um mundo e


uma existência tão difíceis e precários. Aqui entra em jogo o instrumentalismo de
John Dewey: dentro de uma concepção evolutiva, ele considera o pensamento,
isto é, o processo de pesquisa que produz conhecimento, como
um instrumento ou uma forma de adaptação ao ambiente, instru­
mento para a solução dos problemas que o ambiente - entendido conhecimento
no sentido mais amplo - nos impõe enfrentar. como
A função do pensamento reflexivo - escreve Dewey em Lógi­ instrum ento
ca: teoria da pesquisa (1938) - é "a de transformar uma situação da adaptação
na qual se tenham experiências caracterizadas por obscuridade, ao am biente
dúvida, conflito, perturbações, em suma, em uma situação que >§3-4
seja clara, coerente, ordenada, harmoniosa". As dúvidas se des­
fazem e volta a luz se nossas hipóteses, adiantadas como tentativas de solução
de "situações perturbadas", encontram confirmação nos fatos, na prática, nos
experimentos. A inteligência é constitutivamente operativa; é uma força ativa
Primeira parte - y \ f ilo s o f ia d o s é c u lo X J X ao s é c u lo X X

apta a transformar o mundo. E o conhecimento científico é a busca do conheci­


mento engastado no senso comum. A verdade de uma idéia se identifica com "o
comprovado poder de guia" de tal idéia. Mesmo que seja necessário notar que,
no decorrer da evolução humana, o conhecimento se afasta sempre mais das ne­
cessidades imediatas. Não ganhamos muito, com efeito, se mantivermos o próprio
pensamento preso ao tronco do uso com uma corrente demasiadamente curta.

• Assim como as idéias e teorias científicas, também as idéias éticas e as pro­


postas políticas deverão mostrar seu valor sobre suas conseqüências práticas; e
serão aceitas, rejeitadas òu corrigidas exatamente com base nessas conseqüências.
E a proposta política que Dewey torna própria e que defendeu
Para uma com rigor por toda a vida é a da sociedade democrática. Longe
sociedade de impor um fim único da vida, a democracia permite e estimula
"que se a discussão sobre todo fim; a democracia é debate sem fim; é
planifica colaboração; é participação "na formação dos vaiores que regu­
constantemente' lam a vida dos homens associados". O oposto da democracia é a
-> § 5 -6 sociedade totalitária, caracterizada pela planificação centralizada,
manobrada a partir de cima.
E eis como Dewey traça a diferença entre uma sociedade planificada e uma
sociedade democrática, ou seja, uma sociedade que se planifica constantemente:
"A primeira requer objetivos finais impostos a partir de cima e que, portanto, se
entregam à força, física e psicológica, para obter que as pessoas a eles se confor­
mem. A segunda significa libertar a inteligência por meio da forma mais vasta de
intercâmbio cooperativo".

• Finalmente, não devemos esquecer os contributos de Dewey


ao problem a pedagógico. Poucos filósofos dedicaram tanta
A contribuição
atenção a isso. Basta aqui mencionar trabalhos como: Escola e
de Dewey
para os sociedade (1899); Democracia e educação (1916); Experiência e
problemas educação (1938); Problemas de todos (1946). O ideal educativo
da educação de Dewey tende a "libertar e liberalizar a ação", em contínua
atenção para com a natureza ativa da aprendizagem e para com
a finalidade social de toda a educação.

A e x p e riê n c ia n ão s e re d u z e erro, reduzida a estados de consciência


claros e distintos.
ã c o n sc iê n c ia
Dewey, em Experiência e natureza
n em a o c o n k e c im e n to (1925), sustenta que “ a experiência não é
consciência, e sim história” ; ou seja, ela não
se reduz a um estado de consciência claro e
A filosofia de John Dewey (Burlington, distinto. A experiência não se reduz tampou­
Vermont, 1859 — New York, 1952), que co ao conhecimento, ainda que o próprio
foi o mais significativo filósofo americano conhecimento seja parte da experiência, seja
de nosso século, foi definida como “ natu­ uma experiência. Ela, de fato, inclui “ os so­
ralism o” . E uma filosofia que se move no nhos, a loucura, a doença, a morte, a guerra,
leito do pragmatismo e se situa no quadro a confusão, a ambigüidade, a mentira e o
da tradição empirista. horror; inclui os sistemas transcendentais, e
Entretanto, Dewey optou por chamar também os sistemas empíricos; inclui tanto a
sua filosofia de instrumentalismo, que, em magia e a superstição como a ciência. Inclui
primeiro lugar, se diferencia do empirismo tanto a inclinação que impede de aprender
clássico quanto ao conceito fundamental de da experiência como a habilidade que tira
experiência. A experiência dos empiristas partido de seus mais fracos acenos” .
clássicos é simplificada, ordenada e puri­ Dewey propõe substancialmente a idéia
ficada de todos os elementos de desordem de experiência capaz de dar a mesma atenção
Capitulo seXtO - O irvstmmeiatalismo d e D ew ey
97

que se tem para aquilo que é “ nobre, honro­ relevo é o seu caráter precário e arriscado” .
so e verdadeiro” também para o que, na vida Diz Dewey: “ O homem vive em mundo
humana, existe de “ desfavorável, precário, aleatório; para dizê-lo cruamente, sua exis­
incerto, irracional e odioso” . Afirma ele: tência implica o acaso. O mundo é o palco
“ Considerando o papel que a antecipação do risco: é incerto, instável, terrivelmente
e a memória da morte desempenharam na instável” . Claro, seria fácil e confortante
vida humana, da religião às companhias de insistir na boa sorte e nas alegrias inespe­
seguro, o que se pode dizer de uma teoria radas. A comédia é tão genuína quanto a
que define a experiência de tal modo a ponto tragédia. M as, observa Dewey, é sabido que
de fazer seguir-se logicamente que a morte “ a comédia atinge uma nota mais superficial
nunca seja matéria de experiência?” que a tragédia” . E o homem teme porque
Há mais, já que a não identificação vive em um mundo temível, em um mundo
entre experiência e conhecimento permite que dá medo. O próprio mundo é precário
a Dewey realizar a tentativa de solução do e perigoso: “ N ão foi o temor em relação aos
problema gnosiológico: com efeito, “ há duas deuses que criou os deuses” .
dimensões das coisas experimentadas; uma O homem vive neste mundo: a natureza
é a de tê-las, outra é a de conhecê-las para não existe sem homem, nem o homem existe
tê-las de modo mais significativo e seguro” . sem a natureza. O homem está imerso na
N a realidade, não é fácil conhecer as coisas natureza. E, no entanto, ele é uma natureza
que temos ou somos, sejam elas o sonho, o capaz de, e destinada a, mudar a própria
saram po, a virtude, uma pena, o vermelho. natureza e dar-lhe significado.
O problema do conhecimento é “ o proble­ E precisamente para se garantir contra
ma de como encontrar o que é necessário a instabilidade e a precariedade da existência
encontrar em torno dessas coisas para ga­ o homem, primeiro, recorreu a forças mági­
rantir, retificar ou evitar o fato de tê-las ou cas e construiu mitos que, depois de terem
o de sê-las” . Desse modo, escreve Dewey, caído, logo procurou substituir por outras
enquanto o ceticismo pode verificar-se (a fim idéias tranqüilizadoras, como a imutabilida­
de nos tornar curiosos e indagadores) em de do ser, o processo universal, a racionali­
qualquer momento em relação a qualquer dade inerente ao universo, o universo regido
crença ou conclusão intelectual, no entanto por leis necessárias e universais.
ele é impossível acerca das coisas que nós “ De Heráclito a Bergson, há muitas
temos e somos. “ Um homem pode duvidar filosofias ou metafísicas do universo. Somos
se está com sarampo, porque o sarampo é gratos a essas filosofias, que mantiveram
termo intelectual, classificação, mas não vivo aquilo que as filosofias clássicas e
pode duvidar do que tem empiricamente ortodoxas deixaram de lado. M as as filo­
— não, como se diz, porque está imediata­ sofias do fluxo normal também indicam
mente certo dele, mas porque não é matéria a intensidade com que se deseja o que é
de conhecimento, não é de modo algum seguro e estável. Elas deificaram a mudan­
questão intelectual, não é caso de verdade ça, tornando-a universal, regular e segura
ou falsidade, de certeza ou de dúvida, mas [...]. Considerai o modo completamente
somente de existência” . íflfTl laudatório com o qual Hegel, Bergson e
os filósofos evolucionistas do devir consi­
deraram a mudança. Para Hegel, o devir é
processo racional que define uma lógica,
jJL, "Precariedade mesmo nova e estranha, e um absoluto,
e risco da existência também este novo e estranho, Deus. Para
Spencer, a evolução é somente um processo
transitório para obter o equilíbrio estável e
A experiência é história, história vol­ universal de ajustamento harmonioso. Para
tada para o futuro, prenhe de futuro. E a Bergson, a mudança é a operação criadora
filosofia, diferentemente da antropologia de Deus ou é o próprio D eus” .
cultural, “ tem a função do desm em bra­ Para Dewey, essas filosofias são fi­
mento analítico e da reconstrução sintética losofias do medo, hiper-simplificadoras e
da experiência” . Os fenômenos da cultura, des-responsabilizadoras. Elas transformam
apresentados pelo antropólogo, constituem um elemento da realidade na realidade em
o material para o trabalho do filósofo. seu todo, confinando assim na aparência
Pois bem, “ uma característica da exis­ (no secundário, epifenomênico, errôneo,
tência que os fenômenos culturais põem em ilusório etc.) tudo o que não se revela
P v Íffl6 ÍT C l P ü T t& - y\ filosofia d o s é c u lo a o sé c u lo /K,X

compatível com seu respectivo esquema de A te o ria d a p e s q u is a


imutabilidade, ordem, racionalidade, neces­
sidade ou perfeição do ser ou da realidade.
Além disso, são des-responsabilizadoras, A luta para enfrentar o mundo e a exis­
já que presumem garantir metafisicamente tência tão difíceis exige comportamentos e
a ordem, o progresso ou a racionalidade, operações humanas inteligentes e responsá­
que, ao contrário, constituem a tarefa fun­ veis. E aí que se inserem o instrumentalismo
damental da condução inteligente da vida de Dewey e sua teoria da pesquisa.
humana. Segundo a maior parte dos sistemas
Em suma, para Dewey, é preciso ter filosóficos tradicionais, a verdade é estática e
a coragem de denunciar a falácia filosófica definitiva, absoluta e eterna. Dewey, porém,
de m etafísicas consoladoras e ilusórias, não pensa assim. Dado seu interesse pela
que iludem precisamente a respeito da per­ biologia, ele vê o pensamento como processo
manência estável de bens e valores, posse de evolução; segundo Dewey, o conhecimen­
exclusiva de uma camada privilegiada. São to é processo chamado pesquisa, que, no
metafísicas que aparentemente repelem a fundo, consiste em uma forma de adaptação
irracionalidade, a desordem, o mal, o erro, ao ambiente. O conhecimento é prática
coisas que não são aparências, e sim reali­ que tem êxito. Êxito no sentido de que
dades que precisamos dominar e controlar, resolve os problemas postos pelo ambiente
embora com a consciência de que a existên­ (entendendo este no sentido mais amplo).
cia permanece, sempre e de qualquer modo, Em sua grande obra Lógica: teoria da
precária e cheia de riscos. investigação (1938) Dewey sustenta que “ a

John Dewey (1859-1952)


foi o teórico
do instrumentalismo,
uma filosofia que surgiu
no interior
do pragmatismo americano.
Capítulo S C X tO - O in sfm m e^+a l ism o d e D ew ey

tentativa de solução, ainda que vaga, já que


caso contrário se teria o caos, e de que seja
possível intelectualizar essa vaga sugestão,
■ In s tru m e n ta l ism o. Com este ter- formulando o problema dentro de uma idéia
■ mo John Dewey quis distinguir seu i que consista em antecipação ou previsões do
pragmatismo do de James. , que pode acontecer.
Para Dewey a "lógica" é teoria da ■ A idéia proposta desenvolve-se em seus
: pesquisa; e toda pesquisa tem como ;
significados pelo raciocínio, que identifica as
resultado um instrumento para a ;
: ação. Os conhecimentos levam, com conseqüências da idéia, pondo-a em relação
; efeito, a modificações das condições com o sistema das outras idéias e esclarecen­
; de fato e, portanto, são planos de do-a assim em seus aspectos mais diversos. A
operações sobre a realidade, instru- \ solução do problema, inserida e antecipada
: mentos teóricos de aspecto prático: i na idéia que depois foi desenvolvida pelo
não há nada mais prático do que : raciocínio, dirige e articula o experimento.
uma boa teoria. As idéias que têm E será precisamente o experimento que dirá
sucesso são instrumentos de solução ■■ se a solução proposta deve ser aceita ou
dos problemas ("teóricos" e "prá- rejeitada ou, ainda, corrigida, a fim de dar
; ticos").
• Em A busca da certeza (1930) Dewey
conta dos fatos problemáticos.
■ escreve: "A essência do instrumenta- , A propósito dos fatos, diferentemente
lismo pragmático está em conceber í do antigo empirismo, Dewey observa que
■ tanto o conhecimento como a prática eles não são puros dados, “ pois não existem
como meios para tornar seguros, na dados em si. N ada constitui um dado senão
existência experimentada, os bens, em relação com uma idéia ou com um pla­
isto é, as coisas excelentes de qual- ■ no operativo que possa ser formulado em
quer espécie". Toda pesquisa é a pro- ; termos simbólicos, desde os da linguagem
posta de idéias e projetos para passar ; comum até os mais precisos e específicos da
de uma situação de dúvida para uma matemática” , da física ou da química.
■ situação "coerente, ordenada, har- ;
Em suma, Dewey é da opinião de que
: moniosa". A inteligência é constitu- ;■
tivamente operativa, uma máquina | tanto as idéias como os fatos são de natureza
que cria sem cessar instrumentos | operacional. As idéias são operacionais por­
para nos adaptarmos aos problemas * que não são mais que propostas e planos de
. que continuamente emergem de um | operação e intervenção sobre as condições
"ambiente" mutável. f existentes; e os fatos são operacionais no
sentido de que são resultados de operações
de organização e de escolha.

função do pensamento reflexivo é [...] a de


transformar uma situação na qual se tem e. pesquisa científica:
experiências caracterizadas por obscurida­ as idéias como instrumentos
de, dúvida, conflito, em suma, experiências
perturbadas, em uma situação que seja
clara, coerente, ordenada e harm oniosa” . A inteligência, portanto, é constitutiva-
Em poucas palavras, a investigação parte mente operativa. A razão não é meramente
dos problem as, isto é, de situações que contemplativa: é força ativa cham ada a
implicam incerteza, perturbação, dúvida transformar o mundo em conformidade com
e obscuridade. E Dewey se declarava des­ objetivos humanos.
concertado diante do fato de que “pessoas A contem plação, sem dúvida, é ela
sistematicamente empenhadas nas investi­ própria uma experiência, mas, para Dewey,
gações sobre questões e problemas (como ela constitui a parte final, na qual o homem
certamente são os filósofos) sejam tão pouco desfruta do espetáculo de seus processos. O
curiosas acerca da existência e da natureza processo cognoscitivo não é contemplação,
dos problem as” . e sim participação nas vicissitudes de um
Situações desse tipo, isto é, de dúvida mundo que deve ser mudado e reorganizado
e obscuridade, tornam-se problem áticas sem descanso.
quando se tornam objeto de pesquisa, no Dewey comenta que o método expe­
sentido de que seja possível avançar alguma rimental é novo como recurso científico ou
Primeira parte - y \ f i lo s o f i a d o s é c u lo X > ^ X a° s é c u lo X X

como meio sistematizado de criar o conheci­ vendo-se ter em vista que essa garantia não
mento e de garantir que seja conhecimento; é absoluta nem eterna, já que os resultados
entretanto, “ como expediente prático, ele é da pesquisa científica, bem como de toda
tão antigo quanto a própria vida” . E é pre­ operação humana, são continuamente corri­
cisamente por essa razão que Dewey insiste gíveis e aperfeiçoáveis em relação às novas e
na continuidade entre conhecimento comum cambiantes situações em que o homem virá
e conhecimento científico. a se encontrar em sua história, tflggl 2
N o escrito A unidade da ciência como
problema social (1938), ele diz que “ a ciên­
cia, em sentido especializado, é a elaboração yA teoria dos valores
de operações cotidianas, ainda que essa
elaboração assuma freqüentemente caráter
muito técnico” . E, ainda na Lógica, Dewey
reafirma o fato de que “ a ciência tem seu Se as idéias comprovam seu valor na
ponto de partida necessário nos objetos qua­ luta com os problemas reais, e se cada in­
litativos, nos processos e nos instrumentos divíduo tem o direito-dever de dar sua con­
do senso comum, que é o mundo do uso, tribuição à elaboração de idéias capazes de
da fruição e dos sofrimentos concretos” . guiar positivamente a ação humana, então
Depois, porém, “ pouco a pouco, através está claro que as idéias morais, os dogmas
de processos mais ou menos tortuosos e ini­ políticos ou os preconceitos do costume
cialmente desprovidos de uma linha diretriz, também não se revestem de autoridade es­
formam-se e são transmitidos determinados pecial: também eles devem ser submetidos
procedim entos e instrum entos técnicos. à verificação de suas conseqüências na prá­
Vão sendo reunidas informações sobre as tica e devem ser responsavelmente aceitos,
coisas, sobre suas propriedades e seus com­ rejeitados ou mudados com base na análise
portamentos, independentemente de cada de seus efeitos.
aplicação imediata particular. Vamo-nos Dewey é relativista, não considera
afastando sempre mais das situações origi­ possível fundamentar valores absolutos. Os
nárias de uso e fruição imediatos [...]” . valores são históricos e a tarefa do filósofo
N ão se ganha muito mantendo o pró­ é a de examinar as “ condições generativas”
prio pensamento ligado ao tronco do uso (isto é, as instituições e os costumes ligados
com uma corrente muito curta, sentencia a estes valores) e de avaliar sua funcionali­
Dewey. O importante é que, como quer que dade na perspectiva de uma renovação, em
seja, o pensamento, isto é, as idéias, estejam relação às necessidades que pouco a pouco
ligadas à prática, porque as idéias — tanto irrompem da vida associada dos homens.
lógicas como científicas — estão sempre Com efeito, existem valores de fato, isto é,
em função de problemas reais, ainda que bens imediatamente desejados, e valores de
abstratos, e porque é sempre a prática que direito, isto é, bens razoavelmente desejá­
decide do valor de uma idéia. veis. E precisamente função da filosofia e da
E as idéias são exatamente instrumen­ ética promover a contínua revisão crítica,
tos em nossa investigação: são instrumentos voltada para a conservação e o enriqueci­
para resolver os problemas e para enfrentar mento dos valores de direito. E está claro
um mundo ameaçador e uma existência pre­ que, na perspectiva de Dewey, sequer estes
cária. E, por serem instrumentos, há muito últimos podem ter a pretensão de dignidade
pouco sentido em pregar a veracidade ou a meta-histórica, já que todo sistema ético
falsidade deles. As idéias são instrumentos é relativo ao meio em que se formou e se
que podem ser eficazes, relevantes ou não, tornou funcional.
danosos ou econômicos, mas não verdadei­ A ética de Dewey é histórica e social:
ros ou falsos. E o juízo final que se dá em como na teoria da pesquisa, nela também
todo processo de pesquisa nada mais é do desponta aquele sentido de interdependência
que uma “ afirmação garantida” . e de unidade inter-relativa dos fenômenos,
Eis, portanto, o significado genuíno que se explicitará no conceito de interação
do instrumentalismo de Dewey: a verdade entre indivíduo e meio físico e social. Assim,
não é mais adequação do pensamento ao os valores também são fatos tipicamente
ser, mas se identifica muito mais com “ o humanos: são planos de ação, tentativas de
poder comprovado de guia” de uma idéia resolver problemas que brotam da vida as­
e, em última análise, com “ o corpo sempre sociada dos homens. E constitui objetivo da
crescente das afirmações garantidas” , de­ filosofia educar os homens “ a refletir sobre
Capitulo S e X tO - (D instm m en+alis»no de 3 ° ^ D ew ey

os valores humanos mais elevados, da mes­ que não queira ser vã fantasia, ainda que
ma forma como eles aprenderam a refletir nobre e sugestiva. E as coisas que parecem
sobre aquelas questões que se inserem no fins são, com efeito, unicamente previsões
âmbito da técnica” . ou antecipações do que pode ser levado à
Há, sem dúvida, o problema da deter­ existência em determinadas condições. Por
minação dos fins. Escreveu Dewey: “ A ciên­ isso, em Teoria da avaliação (1939), Dewey
cia é indiferente ao fato de suas descobertas escreve que não existe problema de avalia­
serem utilizadas para curar as doenças ou ção fora da relação entre meios e fins, o que
difundi-las, para acrescer os meios para a vale não somente na ética, mas também na
promoção da vida ou para fabricar material arte, onde a criação dos valores estéticos (a
bélico a fim de aniquilá-la” . arte é natureza transformada e não existe
Por vezes, Dewey parece indicar como distinção entre belas-artes e artes úteis) requer
fim último da vida dos homens um reino de a utilização de meios adequados. illB É T I
Deus visto como justiça, amor e verdade.
Entretanto, é preciso insistir em um ponto
de capital importância no pensamento de
Dewey: trata-se da não possibilidade de 6 A teoria da democracia
distinguir entre meios e fins.
Para Dewey todo fim é também meio e
todo meio para atingir um fim é desfrutado Dewey é um relativista pelo fato de
ou percebido também como fim. A atividade que, em sua opinião, não existem métodos
que produz meios e a atividade que inventa racionais para a determinação dos fins últi­
e consuma os fins estão intimamente liga­ mos. Por isso Dewey é decididamente con­
das uma à outra. O fim alcançado é meio trário aos filósofos utópicos que, projetando
para outros fins. E a avaliação dos meios é suas visões ideais, não se preocuparam em
fundamental para todo fim real e genuíno, dedicar uma investigação acurada aos meios
Primeira parte - y \ f i lo s o f i a d o s é c u lo X ^ X a o s é c u lo X X

necessários para sua realização, e sequer em social que se estende a todo campo e a todo
avaliar atentamente sua desejabilidade mo­ caminho da vida, pelo qual as forças indi­
ral efetiva. A utopia gera normalmente o ce­ viduais não deveriam ser simplesmente li­
ticismo ou o fanatismo. O que é necessário, bertadas de constrições mecânicas externas,
segundo Dewey, é propor metas concretas mas deveriam ser alimentadas, sustentadas
e descer dos fins remotos para os mais pró­ e dirigidas” .
ximos, realizáveis em condições históricas Com base nisso tudo, pode-se compre­
efetivas. Portanto, Dewey projeta o operar ender a aversão de Dewey pela sociedade
contínuo tendo em vista maior consciência planejada. O que ele almeja e defende é a
e maior liberdade, no sentido de que a liber­ sociedade que se planeja constantemente
dade conquistada hoje cria situações graças a partir de seu interior, atenta, portanto,
às quais haverá mais liberdade amanhã, e no ao controle social mais amplo e articulado
sentido de que minha liberdade faz crescer dos resultados. A diferença existente entre
a dos outros. a sociedade planejada (a planned society), e
Conseqüentemente, Dewey é avesso à a sociedade que se planeja constantemente
sociedade totalitária e convicto defensor da (a continuously planning society) é definida
sociedade democrática. Para ele, a pressu­ por Dewey nos termos seguintes: “ A primei­
posição de um fim absoluto trunca a discus­ ra requer desígnios finais impostos de cima
são, ao passo que a democracia representa e que, portanto, se baseiam na força, física
discussão inteiramente livre, é método que e psicológica, para fazer com que nos con­
permite discutir toda finalidade, é debate formemos a eles. A segunda significa libertar
sem fim, é colaboração, é participação em a inteligência mediante a forma mais vasta
finalidades conjuntas. A democracia é aquele de intercâmbio cooperativo” .
modo de vida em que “ todas as pessoas m a­ Ligada à teoria da investigação, à teo­
duras participam da formação dos valores ria dos valores e à teoria da democracia de
que regem a vida dos homens associados” , Dewey encontra-se sua teoria da educação,
modo de vida que “ é necessário tanto do entendida como reconstrução e reorgani­
ponto de vista do bem social como da ótica zação contínua da experiência, visando a
do desenvolvimento pleno dos seres huma­ aumentar a consciência dos vínculos entre
nos como indivíduos” . Em Liberalismo e as atividades presentes, passadas e futuras,
ação social (1935), Dewey afirma que “ o nossas e alheias, e aumentar a capacidade
problema da democracia [...] torna-se o dos indivíduos para dirigir o curso da ex­
problema daquela forma de organização periência futura. E M
C a p í t u l o S e x t O - O ins+m m en+alism o d e 3 ° ^ D ew ey

MÉTODO CIENTÍFICO

A e x p e r iê n c ia é h istó r ia v o lta d a p a r a o futuro-.


n ã o é c o n s c iê n c ia , n e m c o n h e c im e n t o , m a s e xistê n cia ,
cu ja s ca ra cterística s fu n d a m e n ta is sã o :
a p r e c a r ie d a d e , a p e ric u lo sid a d e , a a d a p t a ç ã o a o a m b ie n te

a PESQUISA Para enfrentar a instabilidade e o acaso do mundo e da existência


p a rte d e p r o b le m a s , é preciso desmascarar os sistemas metafísicos, consoladores e ilusórios, e
fo r m u la h ip ó te se s p r o m o v e r o c o n h e c i m e n t o n ã o c o m o c o n te m p la ç ã o ,
(id éia s) d e s o lu ç ã o ----------------------------------- m as c o m o p r o c e s s o d e p e sq u isa ,
e, p o r m e io a qual é uma forma de adaptação ao ambiente
d o rac io c ín io ,
d irige e a rticu la T
o e x p e rim e n to ,
In s tr u m e n ta lis m o :
q u e d irá se
as id éia s s ã o in stru m e n to s d e n o ssa p e sq u isa p a ra re s o lv e r o s p ro b le m a s
a s o lu ç ã o p r o p o s ta
e é sem p re a p rá tica q u e d e cid e seu v a lo r
d e v e ser aceita
o u rejeita d a

A v e r d a d e é o “ c o m p r o v a d o p o d e r d e g u ia ” d e u m a id éia :
sua ga ra n tia n ã o é a b s o lu ta n e m etern a , p o r q u e o s re su lta d o s d a p e sq u isa h u m a n a
sem p re sã o co r rig ív e is e a p e rfe iço á v e is e m re la çã o às n o v a s situ a çõ e s e m q u e o h o m e m
v e m a en con tra r-se em sua h istória

Todo SISTEMA ETICO Como também as idéias morais


é relativo ao ambiente devem ser submetidas ao controle
em que se formou e foi funcional de suas conseqüências sobre a prática,
a filosofia deve promover uma contínua revisão crítica
dirigida ao enriquecimento
dos v a lo r e s d e d ire ito

V a l o r e s d e fato :
Não e x is t e m f in s ú l t i m o s :
o s ben s q u e sã o im e d ia ta m e n te d e se ja d o s
TODO FIM ALCANÇADO
É UM MEIO PARA OUTROS FINS
Va l o r e s d e d i r e i t o :
o s ben s q u e sã o ra z o a v e lm e n te desejáveis
em d e te rm in a d a s itu a çã o

T
É p r e c is o c o n stitu ir u m a d e m o c r a c i a c o m o s o c ie d a d e q u e se p la n ific a co n sta n te m en te,
em q u e a in telig ên cia se liberte em u m in te rcâ m b io c o o p e r a t iv o q u e tra ba lh e s o b r e m etas co n cre ta s,
rea lizá veis nas c o n d iç õ e s h is tórica s efetiv a s, e e m q u e se atue

a educação c o m o r e c o n s t r u ç ã o e r e o r g a n iz a ç ã o co n tín u a d a e x p e riê n cia ,


em g ra u d e a u m en ta r a c o n s c iê n c ia d o s v ín cu lo s entre as n ossa s a tiv id a d es e as d o s o u tr o s ,
e d e a u m en ta r a c a p a c id a d e d o s in d iv íd u o s d e d irigir o c u r s o d a e x p e r iê n cia fu tu ra
Primeira parte - y \ f ilo s o f i a d o s é c u lo X ^ X o o s é c u lo X X

são justamente as coisas que o assim chamado


empirismo, com sua redução da experiência a
D ew ey estados de consciência, nega à experiência. €
importante para umo teoria da experiência sa ­
ber que em certas circunstâncias o homem tem
em estima aquilo que é distinto e claramente
evidente. Mas não é menos importante saber
fl experiência que, em outras circunstâncias, floresce aquilo
não é consciência, que é crepuscular, vago, obscuro e misterioso.
Que crimes intelectuais tenham sido cometidos
mas história em nome do subconsciente, não é uma razão
para recusar admitir que aquilo que não está
"fl ignorância, o hábito, o radicar-se Fatal explicitamente presente constitui uma parte
no passado, são justamente as coisas que muito mais vasta da experiência do que aquele
o chamado empirismo, com sua redução da campo da consciência ao qual os pensadores
experiência a estados de consciência, nega foram tão devotos.
à experiência". Quando a doença, a religião, o amor ou
o próprio conhecimento são experimentados,
estão envolvidas forças e conseqüências po­
fl via de acesso que parte daquilo que tenciais que não estão diretamente presentes
está mais à mão, em vez de dos produtos bem nem diretamente implicadas. Cias estão "na"
acabados da ciência, nem por isso começa com experiência tão verdadeiramente como estão
os resultados da ciência psicológica mais do presentes mal-estares e exaltações. Conside­
que dos da ciência física. Com efeito, o material rando a parte que a antecipação e a memória
psicológico está mais distante da experiência da morte exerceram na vida humana, da reli­
direta do que o da física. Essa via implica que gião às companhias de seguros, o que se pode
se comece mais para trás de qualquer ciência, dizer de uma teoria que define a experiência
com a experiência em seus traços toscos e ma­ de modo tal que dela faz logicamente seguir
croscópicos. fl ciência então interessará como que a morte jamais é matéria de experiência?
uma das fases da experiência humana, mas não fl experiência não é uma corrente, mesmo que
mais que a magia, o mito, a política, a pintura, o corrente dos sentimentos e das idéias que
a poesia e os penitenciários. O domínio sobre corre em sua superfície seja a parte que os
os homens exercido pela rêverie e pelo desejo filósofos gostam de atravessar, fl experiência
pertence à teoria filosófica da natureza não inclui as margens duradouras da constituição
menos do que a física matemática; a imagina­ natural e dos hábitos adquiridos, além da cor­
ção não deve ser considerada menos que a rente. O momento fugaz é sustentado por uma
observação refinada, é um fato da experiência atmosfera que não escapa, mesmo quando
que alguns homens, como Sontayana observou mais vibra.
a respeito de Shelley, são imunes em relação Quando dizemos que a experiência é um
à ''experiência" porque conservam intacta a ponto de acesso à explicação do mundo no qual
atitude da infância. € para um empirista radi­ vivemos, entendemos por experiência algo que
cal, a mais transcendente das filosofias é um seja vasto, profundo e pleno ao menos tanto
fenômeno empírico. 0 a nõo pode demonstrar quanto toda a história sobre esta terra; uma
intelectualmente aquilo que seu autor supõe história que (pois a história não acontece no
que ela demonstre, mas mostra algo a respeito vazio) inclui a terra e os correlatos físicos do
da experiência, talvez algo de valor imenso para homem. Quando assimilamos a experiência à
umo interpretação sucessiva da naturezo à luz história mais que à fisiologia dos sensações,
da experiência. indicamos que a história denota ao mesmo
fl experiência é, portanto, algo de comple­ tempo as condições objetivas, as forças, os
tamente diferente da "consciência", que é aquilo eventos, e o registro e a avaliação desses
que aparece qualitativamente e focalmente eventos feitos pelo homem, fl experiência
em um momento particular. O homem comum denota tudo aquilo que é experimentado, tudo
não tem necessidade que se lhe recorde que aquilo que se sofre e se prova, e também os
a ignorância é um dos principais aspectos da processos do experimentar. Como é próprio
experiência; e que tais são os hábitos aos quais da história ter significados ditos subjetivos
nos entregamos sem consciência, tanto que eles e objetivos, assim ocorre com a experiência.
agem de modo hábil e seguro. Todavia, a igno­ Conforme disse LUilliam James, ela é um fato
rância, o hábito, o radicar-se fatal no passado, "com face dupla". Sem o sol, a lua, as estre-
105
C ü p í t u l o SextO - O ins-frum entalism o d e ^/aí\n D e w e y ....................

Ias, as montanhas e os rios, as floretas e as um fator inevitável em toda a nossa conduta,


minas, o solo, a chuva e o vento, a história não mas não é experimento a não ser enquanto
existiria. Cstas coisas não são condições exter­ são notadas as conseqüências, e enquanto são
nas da história e da experiência, mas fazem usadas para fazer predições e projetos para
integralmente parte delas. Mas do outro lado, situações semelhantes no futuro. Quanto mais
sem as atitudes e os interesses humanos, sem se colhe o significado do método experimental,
o registro e a interpretação, estas coisas não mais a nossa prova de certo modo de tratar os
seriam história. recursos e os obstáculos materiais que se nos
J. Dew®y, apresentam compreende um uso precedente
Experiência e natureza. da inteligência. Aquilo que chamamos de
magia era sob muitos aspectos o método ex­
perimental do selvagem; mas, para ele, tentar
significava tentar sua sorte, e não suas idéias.
O método científico experimental é, ao contrá­
2 Não há nada mais prático rio, um saborear idéias; por isso, mesmo que
entre em falência na prática, ou imediatamente,
do que uma boa teoria é intelectualmente fecundo, pois aprendemos
de nossos insucessos quando nossos esforços
são seriamente reflexivos.
O método cientíFico-experímental con­ O método experimental é novo come re­
siste em "saborear idéias". "No mais, seu curso científico ou como meio sistematizado de
significado s e considera conFinado a certos criar o conhecimento, embora como expediente
problem as técnicos e unicamente Físicos. prático seja tão velho como a própria vida. Por
Sem dúvida será preciso muito tempo para isso não é de se maravilhar se os homens não
qu e s e com preenda qu e e le vale igual­ reconheceram todo o seu raio de ação. No mais,
mente para a Formação e a verifícação das seu significado se considera confinado a certos
idéias no campo dos problem as sociais e problemas técnicos e unicamente físicos. Sem
morais". dúvida será preciso muito tempo para que se
compreenda que ele vale igualmente para a
formação e a verificação das idéias no campo
dos problemas sociais e morais. Os homens
O desenvolvimento do método experi­ querem ainda a marca do dogma, das crenças
mental enquanto método de obter o conheci­ estabelecidas por via de autoridade, para
mento e de assegurar que seja conhecimento, e ficarem livres tanto da fadiga de pensar como
não só opinião, - método tanto de descoberta da responsabilidade de dirigir sua atividade
quanto de confirmação, - é a grande força com o pensamento. Cies tendem a confinar seu
que permanece para provocar uma transfor­ pensamento à pergunta sobre qual sistema
mação na teoria do conhecimento. O método dogmático, entre aqueles que se contendem no
experimental tem dois lados. De uma parte, campo, eles devem aceitar. Por isso as escolas
significa que não temos nenhum direito de estão mais aparelhadas para fazer discípulos do
chamar algo de conhecimento a não ser onde que pesquisadores, como disse John Stuart Mill.
nossa atividade realmente produziu certas Mas, quanto mais o método experimental vê
mudanças físicas nas coisas, que entrem em crescer sua influência, ele contribuirá certamente
acordo com a concepção que delas se tinha, e a para destronar os métodos literários, dialéticos
confirmem. Fora dessas mudanças específicas, e autoritários na formação das crenças, que
nossas crenças não são mais que hipóteses, dirigiram as escolas do passado, e a transferir
teorias, sugestões, e é preciso considerá-las seu prestígio para métodos que promovam um
como incertas e utilizá-las como indicações interesse ativo pelas coisas e pelas pessoas,
de experimentos a serem tentados. Por outro dirigidos por objetivos de porte temporal maior,
lado, o método experimental do pensamento e que desenvolvam maior riqueza de coisas no
significa que o pensamento é útil; que é útil espaço. Com o tempo a teoria do conhecimento
justam ente à medida que a previsão das deverá ser derivada da prática que mais conse­
conseqüências futuras é feita em base a uma gue criar conhecimento; e então tal teoria será
completa observação das condições atuais, fl empregada para melhorar os métodos menos
experimentação, em outras palavras, não eqüi­ rentáveis.
vale à reação cega. Tal atividade suplementar
- suplementar em relação àquilo que foi obser­ J. Dew®Y,
vado e agora é previsto - é verdadeiramente Democracia e educação.
P tÍffl6 ÍT C l parte - ;A filosofia d o s é c u lo X^X c \o s é c u lo XX

treinada poderia segui-los e destrinçá-los. Não


3 fi relação há dúvida de que este princípio seja psicologi­
camente sólido. Mas dele se abusa, quando
entre passado e presente é empregado paro dar um relevo exagerado
na pesquiso histórico às ações de alguns indivíduos sem referência
às situações sociais que representam. Quando
se faz uma biografia consistir apenas em um
fí história 0 a vida so cia l atual: "O
relatório das ações de um homem, isoladas
verdadeiro ponto de partida da história é
das condições que o promoveram e às quais
sem pre alguma situação atual com seu s
suas atividades foram uma resposta, não te­
problemas".
mos um estudo de história, pois não temos um
estudo de vida social, a qual é um problema
de indivíduos associados. Não temos mais que
fl segregação que mata a vitalidade da um incentivo falaz para ingerir fragmentos de
história é a separação dos modos e dos interes­ informação.
ses atuais da vida social. O passado, apenas Prestou-se muita atenção recentemente à
como passado, não mais nos diz respeito. Se vida primitiva como introdução à aprendizagem
verdadeiramente estivesse acabado e morto da história. Também aqui há um modo justo e
haveria uma só atitude razoável para com ele. um errado de considerar seu valor. O caráter
Deixai que os mortos enterrem seus mortos. Mas aparentemente já formado e a complexidade
o conhecimento do passado é a chove para das condições atuais são um obstáculo quase
compreender o presente, fl história pesquisa insuperável para lançar luz sobre sua natureza.
o passado, mas este passado é a história do Recorrendo aos primitivos se podem obter os
presente. Um estudo inteligente da descoberta, elementos fundamentais da situação presente
do exploração e da colonização da América, em uma forma infinitamente simplificada, é como
do movimento dos pioneiros para o oeste, da se se desenrolasse uma tela de tecido tão
imaginação etc., seria um estudo dos Cstados complicada e tão próxima dos olhos que não
Unidos assim como são hoje; do país no qual se pode ver seu desenho, até que apareçam os
hoje vivemos. €studá-lo no processo de sua primeiros traços mais grosseiros e maiores. Não
formação torna de fácil compreensão muito do podemos simplificar as situações atuais com um
que seria demasiadamente complicado para experimento deliberado, mas o recurso à vido
ser apreendido diretamente. O método g e­ primitiva nos oferece o tipo de resultados que
nético foi talvez a principal conquista científica desejaríamos de um experimento. As relações
da última metade do século XVIII. Seu princípio sociais e os métodos de ação organizada re­
é que o modo de penetrar qualquer produto duziram-se a seus termos mais elementares.
complexo é o de seguir o processo de seu Se, porém, se descuida deste objetivo social, o
fazer-se, e de seguir os estágios sucessivos estudo da vida primitiva torna-se simplesmente
de seu crescimento. Aplicar este método à his­ uma evocação dos aspectos sensacionais e
tória apenas no significado grosseiro de que o excitantes da vida selvagem.
estado social atual não pode ser separado de A história primitiva dá elementos para
seu passado serio unilateral. Significa também entender a história da produção. Pois uma das
que os acontecimentos passados não podem razões principais de recorrer a condições mais
ser separados do presente vivo sem perder seu primitivas para resolver o presente em fatores
significado. O verdadeiro ponto de partida da mais facilmente perceptíveis é que possamos
história é sempre alguma situação atual com com preender como foram enfrentados os
seus problemas. problemas fundamentais de providenciar o
Cste princípio geral pode ser brevemente alimento, o abrigo e a proteção; vendo como
aplicado a uma consideração de suo relação esses problemas foram resolvidos nos primei­
com um grande número de pontos. Recomen­ ros tempos da raça humana, podemos formar
da-se geralmente o método biográfico como uma idéia do longo caminho que se teve de
sistema de aproximação natural para o estudo percorrer, e das sucessivas invenções com
histórico. As vidos dos grandes homens, dos as quais a raça progrediu na civilização. Não
heróis e dos pioneiros, tornam concretos e vitais temos necessidade de entrar em discussão a
episódios históricos que seriam de outro modo respeito da interpretação econômica da história
abstratos e incompreensíveis. €les condensam, para compreender que a história industrial da
em imagens vivas, séries de acontecimentos humanidade lança uma luz sobre duas fases
complicados e intrincados tão extensos no e s­ importantes da vida social, como não o pode
paço e no tempo que apenas uma mente muito fazer nenhum outro período da história. €la nos
, 107
C d p l t u l o SeX tO - O in stm m e d ta lism o d e D ew ey _____

foz conhecer os invenções sucessivos por meio controlada e em desenvolvimento, e os artistas


dos quois o ciência teórico foi aplicada ao con­ e os poetas que celebraram suas lutas, seus
trole do natureza, no interesse da segurança e triunfos, suas derrotas em umo língua que, seja
do prosperidade da vida social. Desta formo, ela pictórico, plástica ou escrita, tornou suo
elo revelo as causas sucessivas do progresso compreensão universalmente acessível aos
sociol. Outro serviço nos prestou, o de mostrar- outros. Uma das vantagens da história indus­
nos os coisos que interessam fundamentalmente trial, como história da adaptação progressiva
a todos os homens em geral; as ocupações que o homem fez dos forças naturais aos usos
e os valores ligados com o ganho da vida. fl sociais, é o ocasião que oferece à consideração
história econômica pesquisa os atividades, a do progresso dos métodos e dos resultados do
carreira e os destinos do homem comum como conhecimento. Hoje os homens estão habitua­
nenhum outro ramo da história, fl única coisa dos a louvara inteligência e a razão em termos
que todo indivíduo deve fazer é viver; a única gerais; insiste-se sobre sua fundamental impor­
coisa que deve fazer o sociedode é obter de tância. Mas os alunos freqüentemente saem
cada indivíduo suo justa contribuição ao bem- do estudo convencional da história pensando
estar geral, e providenciar para que lhe seja que o intelecto humano é uma quantidade
dada uma compensação justa. estática que não progride com a invenção de
fl história econômico é mais humana, mais métodos melhores, ou que a inteligência é um
democrática, e por isso mais libertadora do que fator histórico descurável, ou então exibição
a história político. Não considero o surgimento e de astúcia pessoal. Certamente o melhor modo
o decadência dos principados e das potências, de instilor um sentido genuíno do parte que o
mas o desenvolvimento dos liberdades reais do mente deve ter no vida é o estudo da história
homem graças ao seu domínio sobre o natureza que torna claro como todo o progresso do
comum paro a qual existem os potências e os humanidade, do estado selvagem para cima,
principados! até a civilização, remonta às descobertas e às
fl história industrial oferece também um invenções intelectuais, e torna claro até que
caminho mais direto poro nos aproximarmos ponto as coisos que geralmente chamam mais
do compreensão do nexo íntimo que liga à a atenção nos escritos históricos não foram mais
natureza lutas, sucessos e falências do homem, que coisas secundárias, ou até obstáculos que
mois do que a história política o faça, para nõo a inteligência teve de superar.
falar do história militar, na qual transborda tõo Se a história se fizesse deste modo, ela
facilmente o política quando reduzido ao nível exerceria naturalmente gronde eficácia ético no
do compreensão dos meninos. Pois a história ensino. Uma penetração inteligente das formos
industrial é essencialmente uma narração do atuais da vida associada é necessária para um
modo com que o homem aprendeu a utilizar caráter cujo moralidade não se limita a uma ino­
a energia natural, desde o tempo em que os cência sem cor. O conhecimento histórico ajuda
homens desfrutaram mais plenamente as ener­ a providenciar esta penetração. € um órgão
gias musculares de outros homens, até o tempo poro analisor a urdidura e a trama do tecido
em que, como promessa ou como atuação, os social atual, e para tornar conhecidas as forças
recursos da natureza vieram a estar assim ao que teceram o desenho. O uso da história para
comando do homem de modo o lhe permitir cultivar uma inteligência socializada constitui
estender seu domínio sobre elo. Quando não seu significado moral, é possível empregá-la
se leva em conto a historio do trabalho, dos como espécie de reservatório de anedotas do
condições do uso do solo, dos florestas, das qual extrair para inculcar lições morais especiais
minas, do cultivo e da criação dos sementes a respeito desta virtude ou daquele vício. Mas
e dos animais, da fabricação e distribuição, tal ensino nõo é tanto um uso ético da história
a, história tende a se tornar apenas literária: quanto um esforço de criar impressões morais
romance sistematizado de uma humanidade por meio de um material mais ou menos autên­
mítica que vive sobre si própria em vez de tico. No melhor das hipóteses produz um fogo
sobre a terra. emotivo temporário; na pior, uma indiferença
Talvez o ramo mais descurado da histó­ insensível à moral. O auxílio que a história pode
ria na educação geral é a história intelectual. dar para uma compreensão mais inteligente e
Começamos apenas agora a perceber que os interessada das situações sociais do presente,
grandes heróis que fizeram progredir o destino do qual participam os indivíduos, é uma vanta­
humano não são os homens políticos, os ge­ gem moral permanente e construtiva.
nerais e os diplomatas, mas os descobridores
científicos e os inventores, que puseram na mão J. D0W0Y,
do homem os instrumentos de uma experiência Democracia e educação.
Primeira parte - j A f i lo s o f i a d o s é c u lo X ^ X ao s é c u lo X X

teria importância sem as milhares de invenções


D R ciência menos sensacionais [...] a serviço de nossa vida
quotidiana.
e o progresso social é preciso admitir que em grande parte
o progresso assim obtido foi apenas técnico;
"O problema do uso educativo da ciência proporcionou meios mais eficazes de satisfazer
é [...] o de criar uma inteligência que esteja desejos preexistentes, mais do que modificar a
plenamente convencida da possibilidade de qualidade dos propósitos humanos. Não há, por
dirigir com ela os assuntos humanos". exemplo, uma civilização moderna que possa
igualar a cultura grega, sob todos os aspectos.
A ciência é ainda demasiadamente recente para
Assumindo qu® o desenvolvimento do ter sido transformada em disposição imaginativa
conhecimento direto conquistado no decorrer e emotiva. Os homens se movem mais rapida­
de ocupações de interesse social seja levado mente e com mais segurança para a realização
a uma forma lógica aperfeiçoada, surge a de seus fins, mas seus fins permanecem mais
questão a respeito de seu lugar na experiência. ou menos aqueles que eram antes da instru­
Cm geral, a resposta é que a ciência atesta a ção científica. Cste fato confere à educação a
emancipação da mente da entrega a objetivos responsabilidade de usar a ciência de modo a
habituais, e torna possível a busca sistemática modificar a atitude habitual da imaginação e
de novos fins. é o agente do progresso em do sentimento, e de não deixá-la como simples
ação. O progresso é algumas vezes conside­ extensão de nosso ser físico.
rado como consistindo no aproximar-se de fins O progresso da ciência já modificou os
já procurados. Mas esta é uma forma menor de pensamentos dos homens sobre os objetivos
progresso, pois requer apenas a melhoria dos e sobre os bens da vida de modo bastante
meios de açõo ou o avanço técnico. Os modos vasto para dar uma idéia da natureza desta
mais importantes de progresso consistem em responsabilidade e dos modos de enfrentá-la.
enriquecer os objetivos precedentes e em for­ A ciência, com seus efeitos sobre a atividade hu­
mar novos. Os desejos não são uma quantidade mana, abateu as barreiras materiais que antes
fixa, nem o progresso significa apenas quanti­ separavam os homens, alargou imensamente a
dade maior de satisfação. Com o aumento da área das relações entre os homens, criou uma
cultura e com o novo domínio sobre a natureza interdependência de interesses sobre vastíssi­
nascem novos desejos, exigências de novas ma escala. Trouxe consigo uma convicção firme
qualidades a satisfazer, pois a inteligência da possibilidade de controlar a natureza para os
percebe novas possibilidades de ação. Cste interesses da humanidade, e assim induziu os
projeto de novas possibilidades leva à busca homens a olhar para o futuro em vez de para o
de novos meios de execução e se realiza no passado. A coincidência do ideal do progresso
progresso, enquanto a descoberta de objetos com o desenvolvimento científico não é apenas
que ainda não são usados leva à sugestão de uma coincidência. Antes deste desenvolvimento
novos fins. os homens tinham posto a era de ouro em uma
Que o ciência seja o meio principal de antiguidade remota. Agora eles enfrentam o fu­
aperfeiçoar o controle dos meios de ação é turo com a firme convicção de que a inteligência
demonstrado pela grande quantidade de in­ usada eficazmente pode eliminar males que
venções que se seguiram ao domínio intelectual outrora eram considerados inevitáveis. Subjugar
sobre os segredos da natureza. A transforma­ uma doença devastadora não é mais apenas
ção maravilhosa da produção e da distribuição um sonho, a esperança de abolir a pobreza não
conhecida sob o nome de revolução industrial é uma utopia. A ciência familiarizou os homens
é o fruto da ciência experimental. A ferrovia, com a idéia do desenvolvimento, que se realiza
a navegação a vapor, os motores elétricos, o praticamente com a melhoria gradual e contínua
telefone e o telégrafo, os automóveis, os aero- do estado da humanidade comum.
planos e os dirigíveis sõo provas evidentes da J. DcuueY,
aplicação da ciência à vida. Mas nenhum deles Democracia e educação.
( S a p ít u lo s é t im o

O Kveo-idealismo italiano,
C ^ o c e e (^ À e n + ile ,

e o idealismo anglo-americano

I. O idealismo n a J7+àlia
an+es de (Sroce e (MeK\+ile

• Nápoles foi a cidade que em certo sentido constituiu o berço do idealismo


italiano. Na Universidade de Nápoles, de fato, ensinaram Augusto Vera (1813-1885)
e Bertrando Spaventa (1817-1883), que foram os protagonistas
da difusão do hegelianismo na Itália. 0 idealismo
Im p ortante é principalm ente a contribuição teórica de na Itália
Spaventa, que repensou Hegel com o objetivo de operar uma antes de Croce
simplificação e uma rigorização de sua filosofia. e Gentile
Muitos homens de cultura na Itália, na segunda m etade ->§ 1-3
do século XIX, foram atraídos pelo hegelianismo, e entre estes
sobressai Francisco De Sanctis (1817-1883) que, ao traçar o plano geral de sua
história literária da Itália, se inspira no conceito hegeliano de espírito.
A Spaventa ligam-se Donato Jaia (1839-1914), Sebastião Maturi (1843-1917) e,
sobretudo, Giovanni Gentile. Croce, que chegou tarde ao hegelianismo, inspirou-
se, ao contrário, em De Sanctis.

“I y\ugwstoVera hegelianismo, apresenta fisionomia mais


teórica e vigorosa. Spaventà se formara em
seminário, mas uma crise religiosa o afastara
Nápoles foi, em certo sentido, o berço dramaticamente da fé na transcendência.
do idealismo italiano. Com efeito, foi na Entretanto, manteve certo tom teologizante
Universidade de N ápoles que ensinaram em sua problemática.
Augusto Vera (1813-1885) e Bertrando Seus escritos mais interessantes são
Spaventa (1817-1883), os protagonistas da Preâmbulo e introdução às lições de filoso­
difusão do verbo hegeliano na Itália. fia na Universidade de Nápoles, de 1862, e
Augusto Vera seguiu as posições da os Princípios de filosofia, de 1867. Esses e
direita hegeliana, destacando-se pela sua muitos outros escritos de Spaventa foram
preparação filosófica e pelo conhecimento depois republicados ou editados pela primei­
preciso dos textos hegelianos. Entre suas ra vez por Gentile, que, como veremos, a ele
obras, podemos recordar: Introduction à la se remete. Deve-se recordar ainda o até há
philosophie de Hegel, Paris, 1855; Logique pouco inédito, intitulado Sobre o problema
de Hegel, Paris, 1859, e Essai de philosophie da cognição e em geral do espírito, de 1858,
hegelienne, Paris, 1864. muito interessante e claro.
Spaventa estava convicto de que a
2 Bertrando Spaventa filosofia moderna nascera na Itália, com
os pensadores da Renascença, mas que os
frutos desse pensamento amadureceram
O pensamento de Bertrando Spaven­ fora da Itália, com Spinoza, Kant e Hegel.
ta, que tentou fatigosamente a reforma do Depois de um período de perplexidade, no
Primeira parte ~ y\ filosofia do século X^X ao século XX

qual pareceu-lhe que nada de bom houvesse da Itália, que tem como fundo a convicção
acontecido na Itália depois da Renascença, de que a poesia seria o espírito universal
mudou de opinião e convenceu-se de que, que se realiza no particular, adquirindo
ainda que de modo imperfeito e parcial, desse modo consciência de si. Sua História
Vico podia ser considerado como o precur­ da literatura italiana (1870-1872) e seus
sor da “ filosofia da mente” , Galluppi foi ensaios sobre literatura italiana constituem
um pensador do qual se pode reconhecer obras-primas, que se impõem e merecem
o mérito de haver tratado de modo novo ser lidas ainda hoje, inclusive por causa da
“ o problema do conhecer” , Rosmini che­ elevada consciência social, moral e política
gou a debater a questão do conhecer em de De Sanctis.
sentido kantiano, e Gioberti em sentido Remetem-se a Spaventa Donato Jaia
hegeliano. (1839-1914) e Sebastião M aturi (1843­
Portanto, já desencadeara na Itália 1917). Jaia tornou-se célebre por ter sido
uma “ circulação” do pensamento europeu professor de Gentile em Pisa.
e, agora, era preciso levá-la adequadamen­ Assim, o atualismo de Gentile derivou
te a seu termo. A contribuição teórica de do hegelianismo de Spaventa. Benedetto
Spaventa consiste em ter empreendido o Croce, ao contrário, fez outro trajeto. Ao
repensamento de Hegel, com o objetivo invés de aproximá-lo de Hegel, a leitura
de realizar a simplificação e a rigorização de Spaventa (ao qual, entre outras coisas,
do mesmo. Visto que distinguia idéia-na- como veremos, era ligado por laço de pa­
tureza-espírito, Hegel mostrava que ainda rentesco) afastou-o dele, pelo menos em
não havia conquistado completamente a um primeiro momento. A primeira nutri­
perfeita identidade e m ediação entre Eu ção espiritual de Croce veio de De Sanctis
e Não-eu, e que ainda não havia “ menta- (que ele considerava seu mestre). Croce
lizado” perfeitamente o real, ou seja, que chegou ao Hegel filósofo só mais tarde,
ainda não o havia perfeitamente reduzido meditando sobre M arx e o marxismo, pela
à consciência. N o inédito de 1858, que necessidade de remontar às fontes, como
citamos acima, Spaventa assim resume sua logo veremos.
concepção do Absoluto como autocriação
ex nibilo: “ Pode-se dizer verdadeiramente
que a criação seja ex nihilo; ela é tal enquan­
to o último, o ato do pensar, o espírito, o
criador é o verdadeiro primeiro, ao passo
que o primeiro é o último. E o primeiro na
produção é o ser = nada [alusão aos dois
momentos da primeira tríade dialética da
Lógica de Hegel]. E a criação é livre, porque
é o pressuposto de que o pensar, o espírito,
faz-se a si próprio; é amor, amor a si mesmo,
bem etc.” N o espírito, “ a criação é sua pró­
pria criação” . Esse “ ato de pensar” que, ao
se autocriar, cria também o ser, constituiria
o ponto de partida para o desenvolvimento
da filosofia de Gentile.

O u tr o s e x p o e n te s italianos
d o kegelianism o

N a segunda metade do século X IX


muitos homens de cultura na Itália foram
atraídos pelo hegelianismo. Entre eles des­
taca-se Francisco De Sanctis (1817-1883),
que se inspirou no conceito hegeliano de
espírito para traçar o esboço geral de sua Francisco De Sanctis
grandiosa reconstrução da história literária quando era Ministro da Educação (1861).
Capítulo sétimo - O rv eo-id ealism o i+alicmo e o id ea lism o cm glo-am ericaK \o

II. B enedetto (Sroce


e Kveo-idealismo como historicismo absolu+o^

• Benedetto Croce nasceu em Pescasseroli (L'Aquila) em 1866, de uma rica


fam ília de proprietários de terras, e freqüentou as escolas secundárias em Nápoles
em um colégio mantido por religiosos. Em 1883, depois do terrem oto na ilha de
ísquia em que se encontrava de férias, perdeu o pai, a mãe e a irmã. Foi acolhido
em Roma pelo tio Sílvio Spaventa, irmão de Bertrando, e aí conhe­
ceu o marxista Labriola. Em 1886 voltou a Nápoles: ocupou-se dos Croce
negócios de família, viajou e leu muito, mas não quis obter títulos e suas obras
acadêmicos. De 1895 a 1899 ocupou-se de Marx, criticando seus 1
pontos fracos e, depois de ter fundado em 1903 com Giovanni
Gentile a revista "A crítica", a partir de 1905 começou o repen-
samento sistemático de Hegel. Foi senador em 1910 e Ministro da Educação em
1920-1921. Antifascista, rompeu com Gentile, e depois da queda do fascismo foi pre­
sidente do partido liberal e membro da Assembléia Constituinte. Morreu em 1952.
Entre suas obras, são fundamentais: Estética como ciência da expressão e lin­
güística geral (1902); Lógica como ciência do conceito puro (1905); Teoria e história
da historiografia (1917); A história como pensamento e como ação (1938).

• Segundo Croce, Hegel descobriu a autêntica dimensão do pensamento


filosófico, o qual é conceito universal concreto, ou seja, conceito universal como
síntese de opostos; Hegel, porém, depois usou desatinadamente sua dialética, co­
m etendo toda uma série de erros que dependem de um só: de não ter entendido
que a realidade não é feita apenas de opostos (que se sintetizam), mas também
de distintos. A nova dialética deve, portanto, ser relação de distintos, além de
síntese de opostos.
A realidade do espírito é compreendida apenas atentando a crítica
para a relação particular de unidade-distinção, que é uma im- a Hegel
plicância recíproca na diferenciação. Em particular, o espírito e a dialética
tem duas atividades fundamentais, cognoscitiva e voütiva, que, como relação
conforme se dirijam ao particular ou ao universal, dão origem a dos distintos
quatro "distintos" (ou categorias), em cada um dos quais, depois, e síntese
ocorre a oposição: dos opostos
1) fantasia (= oposição belo/feio; objeto da Estética); 5
2) intelecto (= oposição verdadeiro/falso; objeto da Lógica);
3) atividade econômica (= oposição útil/nocivo; objeto da Economia);
4) atividade moral (= oposição bem/mal; objeto da Ética).
Os quatro graus são inseparáveis e implicam-se reciprocamente, e nesse dis-
tinguir-se-implicando-se e implicar-se-distinguindo-se está a vida do espírito, uma
história que é como um círculo em que nenhum dos momentos é início absoluto,
porque todos têm igual função no âmbito do espírito.

• Segundo Croce, todos os homens têm uma espécie de compreensão das ver­
dades de fundo, porque é sempre o mesmo espírito que pensa e age no homem
comum e no filósofo. Isso, portanto, também vale para a arte, e a definição de Croce
de "arte" mostra justamente aspectos que no fundo todos os homens pressupõem
quando falam de arte. As teses fundamentais da estética de Croce são:
a) a arte é conhecimento intuitivo, e como tal é autônoma, _
porque a intuição é uma categoria irredutível a outras; concepção
b) toda intuição estética é sempre, ao mesmo tempo, também manifestação
"expressão"; a atividade intuitiva tanto intui quanto exprime, e do espirito
pertence a todos os homens; ->§4
Primeira parte - A f ilo s o f i a d o s é c u lo a o s é c u lo

c) a intuição estética é caracterizada pelo "sentimento", que é um "estado


de espírito" e é liricidade;
d) a arte tem um caráter de "universalidade" e de "cosmicidade"; na repre­
sentação artística, o indivíduo palpita da vida do todo, e o todo está na vida do
indivíduo.

• Para Croce a lógica é ciência do conceito puro, isto é, do "universal concreto",


o qual, do ponto de vista formal, é único, enquanto a multiplicidade dos concei­
tos se refere simplesmente à variedade dos objetos que são pensados segundo
tal forma única. Além disso, o conceito tem o caráter de expressividade, é obra
expressa e falada do espírito; a clareza da expressão é o espelho exato da clareza
do pensamento. O conceito puro não deve ser confundido com
A lógica as representações empíricas (por exemplo: "cão") nem com os
como ciência conceitos abstratos empregados nas ciências ("triângulo" etc.);
do conceito eles são pseudoconceitos, porque não correspondem a nada de
puro verdadeiramente universal e real; todavia, não devem ser eli­
—>§ 5 minados, porque servem para coordenar nossas experiências e
agilizar a memória.
Além da coincidência entre o conceito único, o juízo e o silogismo, a tese típica
da lógica de Croce é a identificação do "juízo definitório" e do "juízo individual",
no sentido de que o juízo definitório, na realidade, não é mais que o predicado do
juízo individual: por conseguinte, a filosofia e a história vêm a coincidir, porque o
pensamento, criando a si próprio, qualifica a intuição e cria a história.

• A forma da atividade prática do espírito é produtora não de conhecimentos,


mas de ações dirigidas a um fim. As duas esferas da atividade prática são:
1) a atividade econômica, a qual deseja e atua
A atividade correspondente apenas às condições de fato em que o indivíduo
prática se encontra; os fins da economia (em cuja esfera Croce faz entrar
e também o direito e as leis, a atividade política e a própria vida
do Estado) são individuais;
2) a atividade ética, que quer e atua aquilo que, embora sendo correspondente
às condições de fato em que o indivíduo se encontra, refere-se ao mesmo tempo
a algo que o transcende; o homem moral se dirige ao espírito, à realidade real, à
vida verdadeira, à liberdade.

• Dado que para Croce o juízo filosófico coincide com o juízo histórico, então,
seja qual for a época à qual nos referimos no conhecer histórico, ela se torna sem­
pre atual: toda história é sempre "história contemporânea", porque revive e se
atua no presente do espírito. A história, portanto, é o verdadeiro
o "historicismo conhecimento do real, do universal concreto, e o conhecimento
absoluto" histórico é todo o conhecimento.
7 Este é o "historicismo absoluto", segundo o qual a história
e o juízo histórico são necessários, no sentido da racionalidade
imanente. O tribunal da história não condena nem absolve, não zomba nem elogia,
mas conhece e compreende; e o conhecimento histórico é catártico, é estimulador
de ação e, ao mesmo tempo, estimulado pela ação: é uma relação de "pensamento"
e "ação" que se explica de modo circular como o espírito.

princípios morais, mas muito conservadora


e de visão político-social estreita, ainda
ligada aos Bourbons. Freqüentou a escola
Benedetto Croce nasceu em Pescassero- secundária em N ápoles, em um colégio
li (na região de L’Aquila) em 1866, em rica de religiosos, pouco aberto culturalmente.
família de proprietários de terras, de sadios M as desde então já começaram suas leitu­
Cüpítulo sétimo - O n e o - id e a lis m o i t a li a n o e o id e a lis m o a n g l o - a m e r ic a n o

ras de De Sanctis e Carducci, destinados a


se tornarem para ele dois firmes pontos de
referência. Em 1883, por causa do terre­
moto que destruiu Casamicciola (na ilha de
ísquia), onde passava férias, perdeu o pai, a
mãe e a irmã. Ele próprio, como nos relata,
permaneceu “ sepultado por várias horas
debaixo dos escombros, com várias partes
do corpo quebradas” .
O tio Sílvio Spaventa, irmão de Ber­
trando, tornou-se seu tutor e o acolheu em
sua casa em Roma, superando com nobre
gesto os dissabores que tivera com os Croce
(que se haviam afastado dele, censurando-o
por ter abraçado o liberalismo que detes­
tavam, assim como se haviam afastado de
Bertrando por ser apóstata). N a casa de
Sílvio Spaventa, Croce conheceu políticos
d estacad o s, encontrou L ab rio la (então
herbartiano) e começou a freqüentar suas
aulas com bastante proveito. Os livros de Benedetto Croce (1866-1952),
Bertrando Spaventa que havia na casa, como sobre o fundo de um hegelianismo repensado
sabemos, não só não o interessaram, mas o em sentido historicista,
aterrorizaram por sua dificuldade, criando- formulou uma doutrina estética
lhe a idéia de que Hegel devia ser algo quase entre as mais sugestivas do século X X ,
incompreensível. que exerceu grande influência
Em 1886 voltou a Nápoles, onde, dei­ tanto na Itália
como em outros países.
xando para trás a “ politiqueira sociedade
romana, acre de paixões” , encontrou uma
sociedade mais bem composta e freqüentou
sábios e eruditos, amantes da pesquisa e
investigação. Ocupou-se dos assuntos do­ espiritual e os conhecimentos de Croce
mésticos somente o mínimo indispensável. e, como já observamos, em conseqüência
Viajou e leu muito. N ão quis obter títulos dessas experiências, ele sentiu necessidade
acadêmicos. de rem ontar a Hegel. N a Contribuição
Uma reviravolta importante em sua à crítica de mim mesmo, escreve nosso
trajetória foi constituída pelo interesse filósofo: “ O fermento do hegelianism o
repentino que se acendeu nele pelas idéias chegou a meu pensamento bastante tarde:
do m arxism o, que Labriola (que, nesse da primeira vez, através do marxismo e do
meio tempo, havia abandonado a filosofia materialismo histórico, que, como haviam
de Herbart) deu-lhe a conhecer em 1895. aproximado meu mestre, Labriola, a Hegel
M as foi um amor que durou pouco tem­ e à dialética, também me fizeram perceber
po. Croce estudou a fundo os ensaios de quanta concretude histórica havia, embora
Labriola, de que falaremos mais adiante, em meio a tantos arbítrios e artifícios, na
leu livros de economia, revistas e jornais filosofia hegeliana” .
italianos e alemães de inspiração socialista, M as p a ra ele ain d a não estavam
e assim surgiu nele a paixão política que maduros os tempos para o repensamento
duraria para sempre, ainda que em outra sistemático de Hegel, que ocorreu em 1905
dimensão. M as Croce logo descobriu os (e cujos frutos se encontram em Aquilo que
pontos fracos do marxismo e, entre 1895 e está vivo e aquilo que está morto na filosofia
1899, expressou sua crítica a eles, “ crítica de Hegel, de 1906, agora incluído no Ensaio
tanto mais grave” , escreveu, “ porque que­ sobre Hegel) e que, posteriormente, o levou
ria ser a defesa e a retificação” do próprio à redescoberta de Vico e à sua revaloriza­
marxismo. ção em nova ótica. Entrementes, houve a
Esses ensaios foram reunidos sob o longa gestação da Estética, obra que saiu
título M aterialismo histórico e economia em 1902 e que impôs Croce na Itália e no
marxista. Essa fase de interesse pelo marxis­ mundo inteiro, permanecendo como sua
mo enriqueceu notavelmente o patrimônio obra-prima.
Primeira parte - A f i lo s o f i a d o s é c u lo X J X a o s é c u lo X X

N o verão de 1902, Croce amadureceu tam-se 54 volumes de “ Escritos de história


o projeto da revista “ A Crítica” (que come­ literária e política” e outros 12 volumes de
çou a ser publicada em 1903), juntamente “ Escritos diversos” .
com Giovanni Gentile, que ele conhecera
quando este ainda era estudante em Pisa e
com o qual colaborou até que sua amizade se
rompeu e se transformou em inimizade, por flfai -7^ cIu ^0 c\ue- & s iá vivo
causa da adesão de Gentile ao fascismo. Cro­ e aquilo q u e es+á morto
ce foi senador em 1910 e Ministro da Edu­
n a filosofia d e -H egel”
cação em 1920-1921. Projetou uma reforma
escolar, que, no entanto, não levou a termo,
precisamente porque não quis aderir ao fas­
cismo, mas que Gentile retomou e realizou. A reforma que Croce promoveu no
Depois do caso M atteotti, Croce assu­ idealismo e suas motivações estão contidas
miu firm e p o siçã o a n tifa scista e reuniu no ensaio Aquilo que está vivo e aquilo que
muitos dissidentes em torno de si. Depois está morto na filosofia de Hegel, que cons­
da queda do fascism o, foi presidente do titui verdadeira jóia, modelo de discurso
Partido Liberal e membro da Assembléia filosófico, em que o autor esclarece de modo
Constituinte. Em 1947, fundou o Institu­ exemplar sua posição.
to de E stu d o s H istó ric o s. M orreu em Croce já se encontrava “no meio do
1952. caminho da nossa vida” , podendo assim
Recordem os ainda seus méritos no esclarecer a si e aos outros sua própria
campo cultural que se explicam por meio identidade filosófica de modo plenamente
das atividades editoriais da editora Laterza, consciente.
principalmente com a publicação de muitos Segundo Croce, Hegel descobriu a di­
clássicos da filosofia, alguns dos quais iné­ mensão autêntica e a estatura verdadeira do
ditos na Itália. pensamento filosófico. Essa descoberta pode
Croce foi escritor muito fecundo e ser resumida na fórmula segundo a qual esse
incansável. Suas obras filosóficas foram pensamento é a) conceito, b) universal e
ordenadas e sistematizadas por ele mesmo, c) concreto.
do seguinte modo: a) E “ conceito” e não intuição, senti­
I) Filosofia do espírito: mento ou algo de imediato;
1) A estética como ciência da expressão b) é “ universal” e não simples genera­
e lingüística geral, 1902; lidade, como a que é própria das noções das
2) A lógica como ciência do conceito ciências empíricas;
puro, 1905; c) é “ concreto” , enquanto capta a
3) Filosofia da prática. Econômica e realidade em sua própria linfa vital e em
ética, 1909; toda a sua riqueza. Essa fórmula eqüivale
4) Teoria e história da historiografia a esta outra: o universal concreto é síntese
(1917). de opostos.
II) Ensaios filosóficos (todos reeditados Com essas teses Hegel superava tanto
várias vezes): a posição daqueles que reduziam os opostos
1) Materialismo histórico e economia a uma coincidentia oppositorum, enfraque­
marxista (1900); cendo-os e anulando-os, como a posição
2) Problemas de estética (1910); daqueles que, dualisticamente, os cindiam,
3) A filosofia de G iam battista Vico contrapondo-os com o irredutíveis. Eis,
(1911); então, o sentido da descoberta hegeliana:
4) Ensaio sobre Hegel (1912); “ Como todas as afirmações verdadeiras,
5) N ovos ensaios de estética (1920); a dialética de Hegel não toma o lugar das
6) A poesia (1936); verdades anteriores, m as as confirm a e
7) A história como pensamento e como enriquece. O universal concreto, unidade
ação (1938); na distinção e na oposição, é o princípio
8) O caráter da filoso fia m oderna verdadeiro e completo de identidade, que
(1941); não deixa subsistir separadam ente, nem
9) Discursos de filosofia (1945); como seu companheiro nem como seu rival,
10) Filosofia e historiografia (1949). o princípio das velhas doutrinas, porque
A esses escritos filosóficos, que se esten­ o resolveu em si, transformando-o em seu
dem por todo o arco de sua vida, acrescen­ próprio sumo e sangue” .
Capítulo sétimo - (D K \ e o - id e a lis m o i t a li a n o e o id e a lis m o a ^ g lo - a m e n c a n o

Assim, por exemplo, fantasia e intelecto


Í A d ialética com o re la ç a o
i i. ■ são distintos e não opostos. Analogamente,
d o s distintos
atividade econômica e atividade moral são
e sín tese d o s o p o sto s distintos e não opostos. Em suma, no espí­
rito existem “ categorias” que se distinguem,
não sendo lícito por nenhuma razão tratá-las
Hegel, entretanto, utilizou despropo- como opostos.
sitadamente sua dialética, até o limite do Ora, segundo Croce, a nova dialética
inverossímil, cometendo uma série de erros. deverá ser “relação de distintos”, além de
Segundo Croce, todos esses erros dependem “síntese de opostos” . Aliás, para ele, só se
de um só, que está em sua base. compreende propriamente a realidade do
Esse erro consiste em não ter com ­ espírito atentando para esse nexo particular
preendido que a realidade não é feita só de unidade-distinção, que é uma recíproca
de opostos (que se sintetizam), mas é feita implicação-na-diferenciação.
também de distintos, que Hegel desconhe­ Eis um esquema que servirá para escla­
ceu inteiramente e tratou como se fossem recer esses distintos e seus nexos, bem como
opostos. sua posição em relação aos opostos: ▼

Assim, fica clara a dedução do quadro Atividades cognoscitiva e prática não


dos distintos. O espírito tem duas atividades são opostas e não são dialetizáveis como
fundamentais, a cognoscitiva e a volitiva, tais; conseqüentemente, também não são
que, enquanto se dirigem ao particular ou ao opostos fantasia e intelecto, atividade eco­
universal, dão origem a quatro “ distintos” nômica e ética ou qualquer desses membros
(ou categorias): em relação aos outros. A oposição, ao con­
1) fantasia; trário, se dá no interior de cada distinto.
2) intelecto; Conseqüentemente, cada um dos membros
3) atividade econômica-, que constituem opostos no interior de cada
4) atividade moral. distinto não pode constituir um oposto em
Primeira parte - / \ f i lo s o f i a d o s é c u lo X J X ao s é c u lo X X

por uma razão muito importante, ou seja,


porque, para Croce, o oposto negativo,
tomado em si mesmo, não tem autonomia,
m as acom pan ha o outro com panheiro
“ como a sombra acompanha a luz” . E, as­
sim, a recíproca também é verdadeira. O que
significa que “ o oposto não é distinto de seu
oposto” , e sim uma abstração da verdadeira
realidade. E, depois, significa que cada uma
das categorias ou dos distintos, enquanto
determina a realidade ou é momento da
realidade, concretiza-se como realidade
que supera uma oposição, um negativo,
tornando-o verdadeiro em um positivo. E
esta é a vida: o caminhar (diz Croce com
o poeta romântico Jean Paul) é “ contínuo
cair” : o termo positivo desapareceria sem
o negativo.
Esta, portanto, é a nova dialética, a
dialética da relação dos distintos, que torna
possível a síntese dos opostos em sua justa
medida, resgatando-a dos erros e dos arbí­
trios de Hegel.
O esquema que traçamos acima tam­
bém esclarece a divisão da filosofia croceana
do espírito:
a) o estudo do momento teórico-intui-
tivo é a Estética;
b) o estudo do momento teórico-inte-
Este livro de Benedetto Croce sobre Hegel,
lectivo é a Lógica;
que é de 1907, é um verdadeiro “manifesto ”
c) o estudo da atividade prática voltada
do neo-idealismo italiano.
Também do ponto de vista estilístico para o particular é a Economia’,
e comunicativo aparece no ápice d) o estudo da atividade prática voltada
da produção de Croce. para o universal é a Ética.
Por fim, Croce examinará o espírito
em seu conjunto, que é pensamento-e-ação,
em Teoria e história da historiografia e na
relação a nenhum dos termos que estão no História como pensamento e como ação.
interior de outros distintos. O belo não é
oposto ao verdadeiro e nem ao falso, como
também ao útil ou ao inútil, ao bom ou ao
mau; o feio não é oposto ao verdadeiro etc. e sté tic a c ro c e a n a
O espírito, portanto, tem duas formas e o co n c eito d e a rte
fundamentais, que se ritmam em quatro
“ graus” inseparáveis, também na distinção,
porque se implicam reciprocamente, já que K O I ^ arte. é
um não pode existir sem o outro. E nesse “a q u ilo q u e tod os sa b em o q u e s e ja ”
distinguir-se-implicando-se e implicar-se-
distinguindo-se está a vida do espírito, que N o início do Breviário de estética
pode ser chamada, com termo que Croce (inclusive nos Novos ensaios de estética),
tom a de Vico, “ história ideal e eterna” , Croce tem uma afirmação intencionalmente
com suas “ idas e vindas” eternas: história provocatória: “ À pergunta ‘o que é a arte?’
que é como um círculo, em que nenhum dos poder-se-ia responder, gracejando (mas não
momentos é começo absoluto, porque todos seria gracejo tolo), que a arte é aquilo que
têm igual função no âmbito do espírito. todos sabem o que seja. E, verdadeiramente,
Um esclarecimento ainda se torna in­ se de algum modo não se soubesse o que
dispensável sobre os opostos. N o esquema é, não se poderia sequer propor aquela
acima traçado, grifamos o oposto negativo pergunta, porque toda pergunta importa
Capítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o italiano e o id ea lism o a n g lo -a m e r ic a n o

certa informação sobre a coisa da qual se filosóficas nas tragédias, sentenças postas na
pergunta, designada na pergunta e, portan­ boca das personagens nos romances etc.) é
to, qualificada e conhecida” . assumido no elemento intuitivo geral, como
Essa afirm ação provocatória não é sua parte integrante, vindo assim a ser parte
simples brincadeira, visto que Croce está dele. Essa intuição não deve ser confundida
profundamente convencido de que o homem com a percepção, que é a apreensão de fatos
tem uma espécie de compreensão (ou pré- ou acontecimentos reais, ao passo que, na
compreensão) das verdades de fundo, e que arte, a realidade ou irrealidade das coisas
a filosofia, quando é autêntica filosofia, na não tem relevância (na arte, tudo é real e
realidade nada mais faz do que levar à cla­ tudo é irreal). E importante observar ainda
reza crítica aquelas vagas compreensões. que aquilo que intuímos na arte tem sempre
Com efeito, é o mesmo espírito que “ caráter ou fisionomia individual” .
pensa e age no homem comum e no filósofo.
E o filósofo nada mais faz do que propor
as perguntas e dar as respostas “ com maior fcSM a v te
co m o e ^ p ^ e s s ã o d a intuição
intensidade” .
Eis então a resposta croceana, que se
A segunda proposição fundamental
apresenta precisamente como a resposta
da estética de Croce é que toda intuição
que deveria dizer “ com maior intensidade”
estética é sempre, ao mesmo tempo, também
o que, no fundo, todos entendem quando
“ expressão” .
falam de arte.
Tanto se intui quanto, ao mesmo tem­
po, se expressa: a expressão surge espon­
E S 3 jA a ft e taneamente a partir da intuição (e não se
co m o co n k ecim en to m+uifivo acrescenta extrinsecamente), porque uma e
outra são a mesma coisa.
A proposição fundamental da estética Quem diz, por exemplo, “ tenho den­
croceana é a seguinte: a arte é “ conhecimen­ tro de mim intuições de certas coisas, mas
to intuitivo” . Croce destaca o fato de que, não sei expressá-las” , está, na realidade,
no mais das vezes, pensava-se que a intuição dizendo uma tolice; na verdade, não sabe se
fosse alguma coisa cega e que o intelecto expressar porque não tem aquela intuição
deveria lhe prestar socorro. M as este é um que pensa ter.
erro grave, já que o conhecimento intuitivo Portanto, tanto se intui como se ex­
é perfeitamente autônomo. pressa.
Só se compreende bem essa posição Todavia, esse paradoxo, que encerra
tendo-se presente a dialética croceana dos efetivam ente uma verdade profunda, é
distintos, na qual a intuição é uma categoria perfeitamente inteligível em seu significado,
irredutível a outras. mas apenas quando ligado ao paradoxo,
N a arte, que é, portanto, intuição, em certo sentido oposto, que o esclarece e
qualquer outro elemento presente (máximas integra. Com efeito, Croce considera que a
intuição artística não é uma prerrogativa
exclusiva dos grandes artistas, dos gênios, e
sim que pertence a todos os homens: a dife­
rença entre um homem comum e um gênio
é apenas de quantidade e não de qualidade;

Í
i C o n h e c im e n to in tu itiv o . É o co- I
nhecimento do individual e é objeto ! caso contrário, o gênio não seria homem e
| da estética de Croce. O conhecimento 5 os homens não o entenderiam.
f intuitivo é perfeitamente autônomo, Por isso, cada um de nós é um pequeno
| não redutível às outras três categorias ; poeta, pequeno músico, pequeno pintor etc.,
\ do espírito (lógica, econômica, ética), j que não sabe criar, mas que certamente sabe
ü: e é constitutivo da arte. ; recriar e desfrutar, na mesma dimensão do

I
* A arte, portanto, é intuição em que ; gênio, da dimensão da criação do gênio.
todo outro elemento presente é subs- !
sumido no elem ento in tu itiv o geral i
I O ;A intuição está tica
| como parte integrante. A atividade !
co m o sentim ento
i intuitiva, além disso, é essencialmente I
| e necessariamente expressão.
N o Breviário de estética, Croce precisa
que (além dos dois pontos destacados na
P r i m e i r a p d v t c - filosofia d o s é c u lo /Kj ^X a o s é c u lo X X

grande Estética, já expostos) o que carac­ A relação entre intuição e expres­


teriza a intuição estética é o “ sentimento” são, que, como vimos, é estruturalmente
(que é um “ estado de espírito” ): “ A intuição indissolúvel, é representada de modo cor­
é verdadeiramente tal porque representa um respondente à kantiana “ síntese a priori” ,
sentimento e só pode surgir dele ou sobre mais precisamente como “ síntese estética
ele. N ão é a idéia, mas o sentimento aquilo a priori” .
que confere à arte a leveza aérea do símbolo: A arte não é arte pelo seu conteúdo
uma aspiração encerrada no círculo de uma ou pela sua form a, mas apenas por sua
representação, eis a arte; e, nela, a aspiração síntese.
significa apenas a representação, e a repre­ Eis a passagem que se tornou um dos
sentação apenas a aspiração” . pontos básicos das análises estéticas poste­
O sentimento é liricidade. riores: “ Porque a verdade é precisamente
E dizer que a “ intuição é lírica” não esta: o conteúdo e a forma devem ser bem
significa qualificar a intuição com um adje­ distinguidos na arte, mas não podem, sepa­
tivo predicativo, e sim expressar a mesma radamente, ser qualificados como artísticos,
coisa, como uma hendíadis, pois liricidade precisamente por ser artística somente a
é sinônimo de intuição. relação deles, isto é, sua unidade, entendida
não como unidade abstrata e morta, mas
como a unidade concreta e viva própria da
E S ;A r e la ç ã o ent(“e intuição síntese a priori; e a arte é verdadeira síntese
e e x p r e s s ã o a rtística estética a priori de sentimento e imagem na
é u m a "sm tese e s té tic a a p rio ri" intuição, da qual se pode repetir que o sen­
timento sem a imagem é cego, e a imagem
Ainda no Breviário, Croce acrescenta sem o sentimento é vazia. Fora da síntese es­
aos princípios já expostos um esclarecimen­ tética, o sentimento e a imagem não existem
to decisivo. para o espírito artístico: terão existência,

BEXEDETTO OROCK
LA CRITICA
ESTETICA R IV ÍST A
D( LtrrtUTVKA STOKU t FILOSOFIA
CUXK SCIBNJÍA DELL* KS1*KKSSI0NF,

E LINüHSTICA GENKKALK
DOUETTAM B. CROCE
1. TcnitJA, II. Stü*U,

Amo 1, Inc. 1.
Ip A M

|;KMu MMtCiiX Khl S“ l* WREBONK


V9r* Vto Airí. ijf

Frontispícios da primeira edição da obra Estética como ciência da expressão e lingüística geral
(Sandron, 1902) e do primeiro fascículo da revista "A crítica" (20 de janeiro de 1903).
C ãpítulo sétifflO - O n e o -id e a lis m o ifalrano e o id ea lism o ü h g lo -a m e ^ ic a n o

diversamente colocados, em outros campos a intuição pura ou representação artística


do espírito; então, o sentimento será o as­ repugna com todo o seu ser à abstração;
pecto prático do espírito que ama e odeia, aliás, nem ao menos repugna, porque a igno­
deseja e repugna, e a imagem será o resíduo ra, precisamente por seu caráter cognosci-
inanimado da arte, a folha seca à mercê do tivo ingênuo, que chamamos de ‘aurorai’.
vento da im aginação e dos caprichos da Nela, o singular palpita na vida do todo,
sorte. M as isso não atinge o artista nem o e o todo está na vida do singular. E toda
esteta, porque a arte não é o vão fantasiar, clara representação artística é ela própria
nem a passionalidade tumultuada, e sim a e o universo, o universo naquela forma
superação desse ato através de outro ato individual, e aquela forma individual como
ou, se assim se preferir, a substituição desse o universo. Em cada verso de poeta e em
tumulto por outro tumulto, com o anseio cada criatura de sua fantasia estão todo o
da form ação e da contemplação, com as destino humano, todas as esperanças, as
angústias e as alegrias da criação artística. ilusões, as dores e alegrias, as grandezas e
Por isso é indiferente ou é questão de mera misérias humanas, o drama inteiro do real,
oportunidade terminológica apresentar a que se torna e cresce perpetuamente sobre
arte como conteúdo ou como forma, desde si mesmo, sofrendo e alegrando-se".
que se entenda sempre que o conteúdo é
form ado e a form a é preenchida, que o
sentimento é sentimento figurado e a figura ESI o q u e ck a**+e não é.
é figura sentida” .
Além de definições positivas, para
tornar seu conceito de arte mais bem enten­
dido, Croce também procedeu com base em
E O O c a r á t e r d e u n iversa lid a d e determinações negativas, visando a dissipar
e c o s m ic id a d e d a a rte as muitas confusões de que está cheia a his­
tória da estética.
Por tudo o que se disse, torna-se clara Então, o que não é a arte?
então a conseqüência importantíssima de M ais uma vez, a resposta revela-se
que a arte tem caráter de universalidade e muito simples se retornarmos ao esquema
de cosmicidade. traçado das categorias e dos graus do espí­
Com efeito, o sentimento artístico rito. As muitas páginas que Croce dedica a
“ não é um conteúdo particular, mas todo o esse tema podem ser resumidas dizendo que
universo visto sub specie intuitionis” . Con­ a arte não é tudo o que as outras categorias
ceito, esse, reafirmado no escrito O caráter implicam e que elas contêm. “ A arte não
de totalidade da expressão artística (inseri­ expõe conceitos ou doutrinas, dado que esta
do nos N ovos ensaios de estética), do qual é a função da lógica, inserindo-se, portanto,
esta passagem é o mais eloqüente exemplo: no segundo grau do espírito (quem sustenta
“ N o que se refere ao caráter universal ou o contrário, peca por intelectualismo). A
cósmico que é justamente reconhecido à arte não é atividade prática e, portanto, não
representação artística (e talvez ninguém o tem finalidades econômicas ou morais. Em
tenha evidenciado tão bem quanto Wilhelm suma, a arte é independente, tanto da ciência
H umboldt no ensaio sobre Hermann und como da economia e da ética, e tem fim em
Dorothee), sua demonstração está naquele si mesma, teoria que se resume na fórmula
mesmo princípio, considerado com aten­ ‘a arte pela arte’ ” .
ção. Pois o que será um sentimento ou um
estado de espírito? Será algo que possa K frfc yM guns c o ro lá rio s
ser separado do universo e desenvolver-se d a e s té tic a c.\*oc.e.av\a
por si mesmo? Será que a parte e o todo,
o indivíduo e o cosmo, o finito e o infinito Por fim, recordemos alguns corolários
têm realidade um longe do outro, um fora úteis para completar o quadro da estética
do outro? Haverá quem esteja disposto a croceana:
consentir que todo distanciamento e todo a) Para Croce, não existem “ gêneros
isolam ento dos dois term os da relação literários” . A arte é sempre única em todas
nada mais poderiam ser do que obra da as m anifestações. As distinções do tipo
abstração, para a qual existe somente a “ gênero cômico” , “ gênero épico” , “ gênero
individualidade abstrata, o finito abstrato, a lírico” etc., são simplesmente esquemas
unidade abstrata e o infinito abstrato. M as comodistas que o intelecto introduz para
PvitTieiva parte - jA filo sofia d o s é c u lo X«^7X a o s é c u lo XX

fazer uma classificação que, enquanto tal, é expusemos acima, onde explicamos a refor­
estranha à arte. Trata-se, portanto, de uma ma do hegelianismo e as novidades trazidas
intromissão indébita da categoria lógica na por Croce. M as ainda restam alguns pontos
categoria estética. E, se nos obstinarmos a muito importantes a completar e algumas
considerar os gêneros literários como es­ doutrinas a integrar.
teticamente relevantes, caímos no erro do A lógica é “ ciência do conceito puro” .
intelectualismo. E o conceito puro, como vimos, é o univer­
b) N ão existe beleza física (beleza da sal concreto no sentido já definido. Croce
natureza, das coisas etc.), porque o belo o chama também de transcendental. Do
pertence apenas à atividade do espírito já ponto de vista lógico, “ o conceito não dá
descrita. As coisas naturais que chamamos lugar a distinções, porque não existem
“ belas” são como o material, que somente muitas formas no conceito, mas uma só
no crisol da criação artística pode receber a form a” , enquanto uma só é a forma teórica
verdadeira marca da beleza. universal do espírito (vide o esquema já tra­
c) N ão se deve confundir a expressão çado). Portanto, o conceito é único quanto
da arte com a sua extrinsecação. Diz Croce: à forma, e “ a multiplicidade dos conceitos
“ N ós, como artistas, não podemos deixar só pode ser referida à variedade dos obje­
de querer nossa visão estética: naturalmente, tos que são pensados naquela form a” . Por
podemos querer ou não exteriorizá-la, ou exemplo, posso pensar conceitualmente (ou
melhor, conservar e transmitir ou não aos
outros a exteriorização produzida” . Assim,
as “ técnicas artísticas” pertencem a essa
extrinsecação e não à expressão artística
enquanto tal, que é o todo unido à intui­
ção. Desse modo, as técnicas artísticas não
■ Universal concreto. O universal
pertencem à atividade estética enquanto
concreto é o objeto da lógica de Cro-
tal, mas à atividade prática (extrinsecação, ce, é o conceito puro, cujos elementos j
fixação, comunicação). ; são:
d) Para Croce, o poeta como personali­ ; a) a racionalidade, e não a intuição,
dade (ou melhor, como pessoa) desaparece: o sentimento ou em todo caso algo j
“ o poeta nada mais é do que sua poesia” ; de imediato; |
Dante e Shakespeare são “ sua obra poética” . b) a universalidade, que é engastada §
Isso só pode ser compreendido com base no no particular e não é simples genera- \
conceito idealista segundo o qual é o espírito lidade como a das noções das ciências i
que age através do homem. empíricas; \
c) a concretude, enquanto ele capta ;
e) Por fim, Croce sustentou a identida­
a realidade em sua própria linfa vital i
de entre lingüística e estética. Com efeito, a e em toda a sua riqueza. 1
linguagem é essencialmente expressão, pre­ O universal concreto é síntese de ‘
cisamente como a arte. Em outros termos, a opostos e, do ponto de vista formal,
linguagem é criação estética. A forma lógica é único, enquanto a multiplicidade
da linguagem e as distinções gramaticais são dos conceitos se refere simplesmen- ■
necessariamente introduzidas pelo intelecto, te à variedade dos objetos que são ;
que intervém naquele organismo vivo que pensados segundo a forma única; '
é a língua com as suas análises e suas siste- além disso, ele tem o caráter da ex-
matizações. E g S l Xl ; pressividade, é obra expressa e falada ,
do espírito. ;
i O conceito puro não deve ser confun- ;
dido com as representações empíricas ■
-7^ lógica cro ce a n a (por exemplo, "cão") nem com os
conceitos abstratos empregados nas >
; ciências ("triângulo" etc.), que são ;
| pseudoconceitos, porque não corres- í
B I A l ó g rc a co m o c iê n c ia pondem a nada de verdadeiramente *
d o s concet+os pu^os ; universal e real, e todavia não devem
ser eliminados, porque servem para ;
O objeto da lógica croceana é constituí­ ordenar nossas experiências e agilizar ’
do pela segunda categoria do espírito e, mais a memória.
em geral, pelo estudo da estrutura geral do
espírito. Em ampla medida, portanto, já a
Capítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o ital ia ^ o e o id ea lism o a n 0 lo-am eklican o

seja, na forma do conceito) o bem, o útil, o que extraio de um grupo de gatos como
verdadeiro etc. Isso é possível, diz Croce, em símbolo que representa todos os gatos. O
virtude do fato de que, estruturalmente, o mesmo se dá quando digo “ rosa” . Trata-se
espírito é unidade-e-distinção, e o conceito de um esquema cômodo, mas, obviamente,
se move exatamente segundo esse esquema, inadequado. Analogamente, quando digo
de modo que o conceito abrange toda a área “ triângulo” ou “ movimento livre” , penso
da filosofia do espírito, pensando todas as em algo, mas o que penso e assim como o
distinções que lhe são próprias. penso não tem realidade correspondente,
Além disso, o conceito tem o caráter porque “ um triângulo geométrico jamais
de expressividade, o que significa que ele existe na realid ad e” , assim como “ não
é “ obra cognoscitiva” e, como tal (assim existe na realidade um movimento livre,
como a arte), é obra expressa e falada e pois todo movimento real realiza-se em
não ato mudo do espírito, como o são as condições determinadas e necessariamente
atividades práticas da economia e da ética. entre obstáculos” .
Também no caso do conceito (analogamen­ Entretanto, esses pseudoconceitos, que
te ao que dissera sobre a intuição estática), Croce divide em empíricos (“ gato” , “ rosa”
Croce assevera que, sendo o pensar tam ­ etc.) e puros (“ triângulo” , “ movimento”
bém um falar, “ quem não expressa ou não etc.), não devem ser eliminados.
sabe expressar um conceito, não o possui” . O valor deles não é de caráter lógico,
A clareza da expressão é o espelho e sim de mera utilidade e, portanto, de ca­
exato da clareza do pensamento. ráter econômico (ou seja, eles se inserem na
terceira categoria do espírito). Eles servem
para ordenar nossas experiências e facilitar
E Z f l Os p s e u d o c o n c e i t o s a memória. Para Croce, portanto, todas as
e s e u v a l o r d e c a r á t e r u tilita ris ta ciências empíricas e matemáticas são destituí­
(e c o n ô m ic o ) das de valor teórico e pertencem à atividade
prática do espírito, à econômica.
O conceito puro não deve ser con­ Com essa teoria (que lembra, em parte,
fundido com as representações empíricas, idéias defendidas por Mach), Croce afasta-se
por exemplo, de “ cã o ” ou de “ ro sa ” , e da tese dos românticos alemães, para quem
tampouco com todos os conceitos abstratos os que ele chama de “ pseudoconceitos” eram
de que fazem uso as ciências, inclusive as obra do intelecto, ao passo que os conceitos
matemáticas. puros eram obra da razão. Os idealistas
Estes são “ pseudoconceitos” , porque alemães não haviam compreendido que, na
não correspondem a nada de verdadei­ realidade, os conceitos empíricos e abstratos
ramente universal e real. Q uando digo não são obra do intelecto, mas de uma facul­
“ gato” , erijo um grupo de características dade não teórica. Por conseguinte, deve-se

REON0 DMTAUA

MINÍSTERO DELL’ INTERNO


D 1 9 F A C C IO T W U U » A £ f C £ , . .
C Ar » A TF--. 21015
tiSBBTAÍâ -J ~ -■ ’■ • - 1
n.s, ALTO «BSaSSâtJU» «WOU / .>/■
k. MJO-P.F. íregMl dlaporr» oh. Tlgilwun ml tXQuato,
n s M e n e sx *t% *n «a o rru M M * Um despacho,
rmei. intenolfie>t* «t eu» qmaaini «v®n:oal« p«t«ut* assinado pelo chefe
t u k -iP O ll jFrc«U-.io '.«nater» wng» da polícia fascista, tíocchim,
org»ntl 3l=o . *u;310 '..itil: taro xniiv**» 1«K»«0 solicita que o alto comissário
de polícia de Nápoles
C A » ÍO U IU
intensifique a vigilância
ÍNSCCiilItt em relação
a Benedetto Croce.
Primeira parte - jA filosofia d o s é c u lo X*^X sé c u lo XX

dar ao intelecto toda a sua dignidade e deve condicionam reciprocamente, mas até se
ser considerado como sinônimo de razão. identificam. A síntese a priori, que é a con-
cretude do juízo individual e da definição, é
E O (C oin cid ên cia d e co n ceito,
ao mesmo tempo a concretude da filosofia e
ju ízo e. silogism o
da história. E o pensamento, criando-se a si
mesmo, qualifica a intuição e cria a histó­
Croce retoma de Hegel a idéia de que ria. Nem a história precede a filosofia, nem
o juízo não deve ser entendido como o era a filosofia precede a história: uma e outra
tradicionalmente, porque, na realidade, é nascem do mesmo parto” .
“ o próprio conceito em sua efetividade”
(enquanto é o universal concreto).
Aliás, visto que, como vimos, pensar ;A atividade prática,
um conceito quer dizer “ pensá-lo em suas e c o n ô m i c a e ética
distinções, pô-lo em relação com os outros
conceitos e unificá-lo com eles no conceito
único” (na única forma conceituai), temos
então uma silogização. Portanto, conceito, Antes de passar à doutrina croceana
juízo e silogismo coincidem. da história, devemos falar brevemente da
Esta é uma doutrina que deriva da con­ filosofia prática, que, porém, constitui talvez
cepção do conceito como atividade dinâmica a parte mais fraca do pensamento de nosso
em sentido idealista e que retoma a teoria filósofo.
da “ proposição especulativa” que já vimos A forma da atividade prática do espí­
em Hegel. E evidente que ela só tem sentido rito é a atividade que se diferencia da mera
contemplação teórica, não sendo produtora
no contexto do espírito como processo, e
só deve ser interpretada e julgada segundo de conhecimentos, e sim de ações. A ativi­
dade prática coincide com a vontade: agir é
essa ótica.
querer; não há volição sem ação, nem ação
sem volição.
M i B dTdenti fic a ç ã o Ora, quando se quer, se quer um fim.
en tre ju íz o defini+ório e ju íz o individual, Se o fim é individual, temos a atividade eco­
e suas c o n s e q ü ê n c ia s nômica; se o fim, ao contrário, é universal,
temos a atividade ética. Eis a definição de
M as a tese talvez mais típica da lógica Croce: “ Atividade econômica é aquela que
croceana é a identificação do “ juízo defini- quer e concretiza aquilo que corresponde
tório” (exemplo: “a arte é intuição lírica” ) e somente às condições de fato em que o indi­
do “ juízo individual” (exemplo: “o Orlando víduo se encontra. Atividade ética é aquela
furioso é uma obra de arte” ). que quer e concretiza aquilo que, embora
E isso também pode ser bem compreen­ correspondendo àquelas condições, refere-se
dido no contexto croceano: com efeito, é ao mesmo tempo a algo que as transcende.
precisamente o juízo individual que concre- À primeira, correspondem aqueles que cha­
tamente nos faz conhecer e possuir o mundo. mamos fins individuais; à segunda, os fins
À medida que um juízo de fato atribui um universais — em uma, fundamenta-se o juízo
predicado a um objeto, dá-lhe valor, decla­ sobre a maior ou menor coerência da ação,
rando-o partícipe da universalidade. tomada em si mesma; na outra, fundamenta-
Pode-se também dizer que o juízo de- se o juízo sobre a maior ou menor coerência
fmitório, na realidade, nada mais é do que da ação em relação ao fim universal, que
o predicado do juízo individual. (Quando transcende o indivíduo” .
digo que o Orlando é uma obra de arte, N a esfera da economia, como já vi­
digo que ele, precisamente, é aquilo que se mos, inserem-se todos os pseudoconceitos
definiu como obra de arte, dando um juízo e todas as ciências particulares. M as Croce
definitório, ou seja, que é intuição lírica.) atribui a essa esfera também o direito e as
Assim, o ato lógico de julgar é síntese leis, a atividade política e a própria vida do
lógica a priori, pelos motivos explicados. Estado. O Estado, portanto, não tem esta­
A conseqüência importantíssima que tura ética, mas utilitária, econômica (essa é
daí brota é que a filosofia e a história acabam a posição que Maquiavel, por exemplo, já
por coincidir, como escreve expressamen­ assumira).
te Croce: “ Filosofia e história já não são E a ética? Já vimos que, para Croce,
duas formas, e sim uma só forma, e não se é a volição do universal. M as o que é esse
Capítulo sétimo - CD n e o -id e a lis m o i+aliano e o id ea lism o a n g lo -a m e r ic a n o

universal? Eis a resposta: o universal é o uma necessidade prática, para responder às


próprio espírito, “ a realidade enquanto necessidades da situação presente. Assim, o
verdadeiram ente real com o unidade de juízo histórico que damos (seu significado)
pensamento e querer; é a vida, colhida em torna-se “ presente” . Neste sentido toda
sua profundidade como aquela mesma uni­ história é sempre “ história contemporânea” ,
dade; é a liberdade, se uma realidade assim uma história que “ vive em nós” .
concebida é perpétuo desenvolvimento, cria­ O homem — diz Croce — é um mi­
ção, progresso. [...] E, no querer universal, crocosmo, não em sentido naturalista, mas
ou seja, aquilo que o transcende enquanto em sentido histórico, compêndio da história
indivíduo, o homem moral volta-se para o universal” .
espírito, para a realidade real, para a vida A história, portanto, é o verdadeiro
verdadeira, para a liberdade” . Como icas- conhecimento do real, isto é, aquela “ sínte­
ticamente diz ainda Croce, é “ um negar-se se a priori” de que falamos anteriormente,
e superar-se enquanto indivíduo isolado, e entre intuição e categoria. A história é o
servir a Deus” . v erdadeiro conhecim ento do universal
Esta é uma resposta que o próprio H e­ concreto. E não somente todo juízo histó­
gel teria podido subscrever plenamente. rico é conhecimento, mas o conhecimento
histórico “ é todo o conhecimento” . Isso é
o “ historicismo absoluto” .
A história e o juízo histórico são,
y \ k istó ria c o m o p e n sa m e n to
portanto, necessários. M as não o são no
e com o a ç ã o sentido mecanicista em que os materialistas
entendiam a “ necessidade” , e tampouco no
sentido de força transcendente que, de fora,
Se, como vimos acima, o juízo filosófico mova a história (a Providência de Deus-fora-
coincide com o juízo histórico, então, seja do-mundo), mas no sentido da racionalidade
qual for o período a que nos referirmos no imanente. __
conhecer histórico, ele se torna atual. Com O “ se” histórico é ridículo. E ridícu­
efeito, nós operamos o juízo histórico por lo, por exemplo, dizer “ se Napoleão não
Primeira parte - filosofia do século X^X ao século XX

houvesse cometido o erro de ir à R ússia” ,


porque isso suporia a impotência do espíri­
to, negando o nexo lógico e racional íntimo
do universal concreto, que é a substância da ■ História. A história não é crônica,
história. Por isso, referindo-se ao indivíduo, nem arte, nem retórica, mas é o ver­
o “ se” histórico é um contra-senso. N ão se dadeiro conhecim ento do real, ou
seja, a síntese a priori entre intuição e
pode dizer “ se não tivesse cometido aquele categoria, e "a síntese a priori, que é
erro” . Com efeito, tu és o que és preci­ a concretude do juízo individual e da
samente porque cometeste aquele erro, e definição, é ao mesmo tempo a con­
podes dizer o que dizes porque o cometeste cretude da filosofia e da história".
e, cometendo-o, conheceste o verdadeiro e Para Croce, portanto, filosofia e
superaste o momento do erro. história coincidem: a história é o
Todavia, em história também não tem verdadeiro conhecim ento do u n i­
sentido o juízo de louvor e de censura, por­ versal concreto, e não só todo juízo
histórico é conhecimento, mas o
que louvor e censura cabem aos indivíduos
conhecimento histórico "é todo o co­
no momento em que agem; mas, uma vez nhecimento".
tornados acontecimentos históricos, não As características fundamentais da
podem mais ser julgados uma segunda vez. história são:
O tribunal da história não condena nem a) a atualidade, razão pela qual toda
absolve, não censura nem louva: o tribunal história é história contemporânea,
da história conhece e compreende. juízo histórico que revive e se atua
Além disso, o conhecimento histórico no presente do espírito;
é catártico. Com efeito, nós somos produ­ b) a necessidade, mas não em sentido
mecanicista nem em sentido trans­
zidos pelo passado e podemos nos resgatar cendente, e sim como racionalidade
do passad o, precisamente conhecendo-o imanente;
historicamente. Escrever história, como já c) o efeito catártico, porque conhecer
dizia Goethe, é um modo de tirar das costas ^ historicamente o passado significa
o passado e de libertar-se dele. resgatar-se e libertar-se dele;
Assim como o espírito é teórico e prá­ d) a relação de pensamento e ação,
tico na unidade-distinção, do mesmo modo porque o conhecimento histórico é,
o conhecimento histórico é estimulador de ao mesmo tempo, estimulador de
ação e estimulado pela ação.
ação e, ao mesmo tempo, é estimulado pela
ação, é ligação de “ pensamento” e “ ação”
que se exerce de modo circular, precisamente
como o espírito. Texto Q
Capítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o i+al iano e o id ea lism o a n g lo -a m e r ic a n o

AS FORMAS DO ESPÍRITO

T E O R IA P ráxis
Kl ONÔMK a:
Ari n relativa apen.is
intuição c expressão, as> condições de tato
caracterizada pelo sentimento em que o indivíduo
universal e cósmico se encontra
da liricidade

In d iv id u a l id a d e In d iv id u a l id a d e

U n iv e r s a l id a d e Un iv e r s a l id a d e

L ó g ic a : " ..■'É t i c a :
ciência do conceito puro, relativa a fins universais
isto é, do universal concreto que vão além
do homem individual

T eoria P r á x is

O F IM D O R E A L C O N S IS T E N A T O T A L ID A D E C IR C U L A R D E S T A S Q U A T R O F O R M A S ,
O U S E JA , A P E N A S O E S P ÍR IT O É O F IM D O E S P ÍR IT O

RICISMO ABSOLUTO

0 juízo Como o pensamento autêntico é pensamento UNIVERSALV -


individual------ do universal concreto, CONCRETO: i
nos faz e como o juízo definitório coincide com o juízo individual, | a realidade
concretamente filosofia e história coincidem do espírito
conhecer em sua seiva vital
e possuir o mundo, universal
e seu predicado ▼ = e em toda a sua
não é mais í A HISTÓRIA É O VERDADEIRO CONHECIMENTO DO UNIVERSAL . riqueza:
que \ c o n c r e t o , e o conhecimento histórico é todo o conhecimento síntese de opostos,
o juízo unidade na
definitório distinção
T
F. como o juízo histórico responde sempre a uma necessidade prática atual

___T
TO D A H ISTÓRIA É HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA
que revive e se realiza no presente do espírito

' ▼ "
O conhecimento histórico é catártico,
é estimulador de ação e, ao mesmo tempo, estimulado pela ação:
é uma ligação de “pensamento” e “ação”
que se explica de modo circular como o espírito
Primeira parte - y \ f i lo s o f i a d o s é c u lo X ^ J X s é c u lo X X

III. G, iovanni (A an file


e o neo-idealismo como atualismo

• Giovanni Gentile nasceu em Castelvetrano, na Sicília, em 1875. Discípulo de


Donato Jaia em Pisa, apreciou o pensamento de Spaventa. Depois de ter ensinado
nos liceus, tornou-se professor na Universidade de Palermo; em 1914 sucedeu Jaia
em Pisa e a partir de 1917 se transferiu para a Universidade de
Gentile Roma. Aderiu ao fascismo, e isso foi causa de sua ruptura com
e suas obras Croce. Em 1922 foi eleito senador e, como Ministro da Educação,
1 levou a term o a reforma escolar. Em 1925 tornou-se diretor do
Instituto Treccani e publicou a famosa Enciclopédia. Não se desli­
gou do fascismo nem em 1943, e em 1944 foi morto por um desconhecido, diante
de sua casa em Florença.
Suas obras teóricas mais importantes são: O ato do pensamento como ato puro
(1912); A reforma da dialética hegeliana (1913); A teoria geral do espírito como
ato puro (1916); Sistema de lógica como teoria do conhecer (1917-1922).

• O coração do sistema de Gentile está no repensamento do conceito de


"dialética", definida como "ciência das relações conceituais". Há duas formas de
dialética, absolutamente inconciliáveis:
a) a dialética antiga, de tipo platônico, que é dialética do
A dialética pensado ("dialética da morte"), porque considera as idéias como
segundo objetos que são diferentes em relação ao pensamento;
Gentile b) a dialética moderna, nascida da reforma kantiana, que é
§2 dialética do pensar ("dialética da vida"), isto é, da própria ativi­
dade do pensamento que pensa.
A dialética moderna, que em Hegel encontra sua expressão mais madura, não
chegou ainda à sua perfeição, porque nela permanecem resíduos da velha dialéti­
ca. A reforma da dialética hegeliana consistirá então em eliminar todo resíduo da
dialética do pensado e em rigorizar a dialética, tornando-a uma dialética do puro
pensar. Há um só e único conceito, e este é ato puro, autoconceito, e nele toda a
realidade se resolve. Nasce assim o atualismo.

• O atualismo é a forma de idealismo segundo o qual o espírito, enquanto


ato, põe seu objeto como multiplicidade de objetos, e em si os reabsorve como o
próprio momento do próprio fazer-se. O atualismo, sustenta Gentile, se resume
em duas posições fundamentais:
a) o verdadeiro conceito da realidade m últipla, o conceito
do sujeito centro de todas as coisas, é a u to c o n c e ito (con-
O pensamento ceptUS SUÍ);
c° mo . n b) no ato espiritual, toda a matéria é absorvida inteiramente
"autoconceito" na f orma como atividade (formalismo absoluto).
absoluta" última análise, as duas posições coincidem, porque con­
e a necessidade ceber o pensamento como forma absoluta eqüivale a concebê-lo
do "m a l" como conceptus sui. Ora, o espírito encontra diante de si, como
_> § 3.4 seu momento essencial, negação de si que deve ser negada, o mah
o espírito é bem e verdade exatamente superando e vencendo
o inimigo interior.

• O autoconceito realiza-se como posição: a) de si enquanto sujeito; b) de


si enquanto objeto (natureza); a realidade espiritual, com efeito, é desdobrar-se
como si mesma e como outro, e reencontrar-se no outro. O autoconceito que se
auto-realiza e se autoconhece, portanto, implica três momentos:
Capítulo sétimo - O n e o -id e o lis m o italiano e. o id ea lism o a n g l o -a m e n c a ^ o

1) a realidade do sujeito, puro sujeito; . A natureza


2) a realidade do objeto, puro objeto; ea
3) a realidade do espírito, como unidade ou processo do realização do
pensamento, e a imanência do sujeito e do objeto no espí­ "autoconceito'
rito. mediante
A verdadeira realidade, portanto, é a do pensamento, ou seus três
seja, do espírito,'síntese vivente eterna, monotríade justamente momentos
enquanto se desenvolve em três momentos. A história do mundo, —> § 5-7
ou seja, o caminho da humanidade através do espaço e do tempo,
é a representação empírica e exterior da vitória eterna imanente do espírito sobre
a natureza; é, diz Gentile com fórmula de Vico, "história ideal eterna".

Vi d Suas obras teóricas mais importantes são:


O ato do pensamento como ato puro (1912);
A reforma da dialética begeliana (1913); Su­
Giovanni Gentile nasceu em Castel- mário de pedagogia como ciência filosófica
vetrano (na Sicília) em 1875. Foi aluno (1913-1914); A teoria geral do espírito como
de Donato Jaia na Escola Norm al de Pisa, ato puro (1916); Sistema de lógica como
que o fez conhecer e amar o pensamento teoria do conhecer (1917-1922); Discursos
de Spaventa, que seria o ponto de partida de religião (1920) e Filosofia da arte (1931).
de seu atualismo. Depois de alguns anos de Sua obra que teve mais sucesso foi A
ensino em liceus, tornou-se professor na teoria geral do espírito como ato puro, mas a
Universidade de Palermo; em 1914, sucedeu que, ao contrário, os estudiosos consideram
a Jaia em Pisa e, a partir de 1917, transfe­ como a mais profunda é o Sistema de lógica.
riu-se para a Universidade de Roma. Da
colaboração com Croce e do rompimento
posterior, já falamos. Em 1922 tornou-se
senador e, como M inistro da Educação, A ^ reforma ge.nf\liana
levou a cabo a reforma escolar iniciada por da dialética kegeliana
Croce e que se demonstraria sólida durante
décadas. Sua adesão ao fascismo sobreviveu
ao delito Matteotti, ainda que Gentile tenha O cerne do sistema gentiliano está, sem
procurado tomar a devida distância em rela­ dúvida, no repensamento do conceito de
ção ao caso. Em 1925 tornou-se diretor do dialética e em ter levado a cabo o processo
Instituto fundado pelo senador Treccani e de sua “ mentalização” , que Bertrando Spa­
projetou, elaborou e publicou uma Enciclo­ venta preconizara.
pédia que, durante muitos anos, constituiu A essência da dialética, diz Gentile, está
ponto de referência para todos os italianos, na relação que liga os conceitos, de modo que
sendo ainda hoje de útil consulta. Em 1943 a dialética pode ser definida como “ ciência
Gentile não se afastou do fascismo, e aderiu das relações” . Ora, existem duas formas de
ao chamado “ governo fantoche” . Este, sem dialética: a) a antiga, de tipo platônico, e b)
dúvida, foi ato de fidelidade àquele regime a moderna, nascida da reforma kantiana.
do qual fora o líder cultural e, em última a) A dialética antiga é dialética do pen­
análise, um ato de coerência moral. Em 1944 sado, porque considera as idéias precisamen­
foi assassinado por mão desconhecida diante te como objetos diferentes do pensamento e
de sua casa, em Florença. o condicionam;
São numerosas as obras de Gentile. A b) a dialética moderna, pelo contrário,
“ Fondazione Gentile” preparou uma edição é a dialética do pensar, ou seja, da própria
completa de suas obras, em cinqüenta e atividade do pensamento que pensa.
cinco volumes, divididos em: As duas dialéticas são absolutamente
a) obras sistemáticas (vols. 1-9); inconciliáveis, pois existe um abismo entre
b) obras históricas (vols. 10-35); elas: o abismo que divide o idealismo mo­
c) obras diversas (vols. 36-45); derno do antigo.
d) fragmentos (vols. 46-55); M as a dialética moderna, que encontra
e) um epistolário em vários tomos. em Hegel sua expressão mais madura, ainda
Primeira parte - y\ filo sofia d o s é c u lo a o s é c u lo X X

não alcançou sua perfeição. Com efeito,


em Hegel permanecem alguns resíduos da b
velha dialética. De fato, Hegel distinguia a
■ D ialética. A dialética é definida j
fenomenologia da lógica pura e, além disso, | por Gentile como "ciência das rela- 1
introduzia a tripartição entre lógica, filosofia f ções conceituais". Há duas formas í
da natureza e filosofia do espírito também [ de dialética, absolutam ente incon- 1
na esfera da ciência pura, contradizendo-se I ciliáveis: :
manifestamente, ou seja, como que recain- ; a) a dialética antiga, de tipo platôni- -
do em um platonism o (embora parcial), j co, que é dialética do pensado, por- :
enquanto o “ pensam ento” estudado na que considera as idéias como objetos %
lógica e a “ natureza” constituem momentos ; que são diferentes em relação ao 1
pensamento e o condicionam; j
anteriores (ainda que idealmente) ao espírito 1
b) a dialética moderna, nascida da ;
e, portanto, mantendo ainda uma espécie de I reforma kantiana, que é dialética do '
dialética do pensado. | pensar, isto é, da própria atividade do j
A reforma da dialética hegeliana con- I pensamento que pensa. 1
sistiria, então, em eliminar todo resíduo da \ E enquanto a dialética antiga é "dialé- j
dialética do pensado e em rigorizar a dialéti- j tica da morte", porque a realidade aí \
ca, tornando-a uma dialética do puro pensar. \ se encontra como determinada para I
Pode-se objetar, porém: Croce já não 1 a eternidade, a dialética moderna, ^
trabalhara nessa direção? Ele já não reduzira | que encontra em Hegel sua expressão j
mais madura mas ainda não perfeita, ■
toda a dialética a dialética do espírito? Sem f é a "dialética da vida", porque cons- j
dúvida, Croce já se movera nesse sentido, I titui o processo do real "e o processo 1
mas introduzira, com seus “ distintos” , um ; do real não é mais concebível a não j
sistema de categorias (os quatro graus do | ser como a história do pensam ento". \
espírito), que Gentile não aceita. A catego- $ Para Gentile a dialética é a dialética í
ria é uma só: a do espírito. Existe um só e do autoconceito. |
único conceito, e este é propriamente ato »
puro, autoconceito, e nele resume-se toda a p ■ . . . :I
i ■ ‘"N*, C.fl
realidade. Assim nasce o atualismo.

\*
é
Giovanni Gentile (1875-1944)
% repensou o hegelianismo,
reformando sua dialética de modo radical,
e criando o atualismo que constitui
a forma extrema assumida
pelo idealismo ocidental.
C a p í t u l o s é t íff íO - (D n e o -id e a lis m o italiano e o id ea lism o a n g lo -a m e r ic a n o

O p en sam en to é intrinsecamente determinado, mediato,


desenvolvido em toda a multiplicidade de
c o m o ^ a u to c o n c e ito *
seus momentos positivos. Por conseguinte,
e #[ o i * m a a b s o l u t a ” como a unidade é do sujeito que concebe o
conceito, a multiplicidade dos conceitos das
coisas não pode ser senão a casca superfi­
O atualismo é a forma de idealismo cial de um núcleo que é um só conceito: o
que afirma que o espírito como ato põe seu conceito de sujeito como centro de todas as
objeto como multiplicidade de objetos, e os coisas. De modo que o verdadeiro conceito,
reabsorve em si como momento do próprio que existe propriamente, é autoconceito
fazer-se. O espírito se autopõe, pondo dia- (conceptus sui)” .
leticamente o objeto e resumindo-o plena­ b) O segundo ponto é o do formalismo
mente em si: “ O pensamento não conhece absoluto. Se por matéria e forma se entende
a não ser realizando-se a si mesmo, e o que o que Kant assim denominou, então deve-
conhece nada mais é do que essa mesma se dizer que toda a matéria é inteiramente
realidade que se realiza” . absorvida na forma: “ A matéria (da expe­
Como diz Gentile na Teoria geral do riência) é posta e resumida na forma. De
espírito como ato puro, o atualism o ba­ modo que a única matéria que pode existir
seia-se e resume-se em dois conceitos, que no ato espiritual é a própria forma como
constituem a) o “ princípio primeiro” e b) o atividade. N ão o positivo enquanto posto
“ termo último” da doutrina. [...], mas o positivo enquanto se põe, a
a) N ã o existem m uitos con ceitos
própria form a” .
(como já observam os), m as apenas um Em última análise, esses dois conceitos
só, porque não há m uitas realidades a coincidem, porque conceber o pensamento
com preender, m as uma só, em bora em como forma absoluta eqüivale a concebê-lo
multiplicidade de momentos. Portanto, “ o como conceptus sui. O espírito é o pôr-se
verdadeiro conceito da realidade múltipla (o autopor-se) enquanto pensar, e tudo se
não deve consistir em uma multiplicidade resume na dialética do pensar.
de conceitos, e sim em conceito único, que

â /?~\ // I // // //
LJ m al e o e rro

Segundo Gentile, o atualismo explica o


que sempre repugnou ao espírito humano:
■ A u to c o n c e ito (c o n c e p tu s s u i). É o mal e o erro.
o verdadeiro único conceito da reali­ O mal é aquilo que o espírito encon­
dade múltipla, o conceito do sujeito tra diante de si como negação de si. M as o
centro de todas as coisas, enquanto espírito nega essa negação — e sua vida é
"a multiplicidade dos conceitos das
coisas não pode ser senão o esboço
precisamente esse negar a negação. Portan­
superficial de um núcleo que é um to, o mal assim entendido é como “ a mola
conceito só". ; interna pela qual o espírito progride — e ele
O autoconceito é atividade, enten­ vive com a condição de progredir” .
dida como form alism o absoluto, que O mesmo vale para o erro. O conceito
absorve inteiramente toda a matéria; não é o “ já posto” , mas “ o positivo que se
em sua auto-realização e autoco- j autopõe” ; como diz Gentile, é “ um processo
nhecimento implica três momentos de autóctese (= posição de si mesmo) que
dialéticos: tem como seu momento essencial a própria
1) a realidade do sujeito, puro su­ negação, o erro contra o verdadeiro” . O
jeito; erro é apenas um momento do verdadeiro;
2) a realidade do objeto, puro ob­
jeto; . aliás, só é reconhecido como erro ao ser
3) a realidade do espírito, como uni­ referido ao verdadeiro. E o que vale para
dade ou processo do pensamento, e o erro teórico vale também para o erro
a imanência do sujeito e do objeto prático-moral.
no espírito. Em suma, diz Gentile, mal e erro são
como que o “ combustível” de que a chama
do espírito necessita para queimar: o fogo
alimenta-se do combustível, mas o queima.
Primeira parte - y \ f ilo s o f i a d o s é c u lo X ^ X a o s é c u lo X X

E, assim, o espírito é bem e verdade, preci­


samente superando e vencendo o inimigo
interior e consumindo-o.
GIORNALE CRITICO
DELLA

gjjjgl y W a t u i * e 2 a #c o m o o b je + o
F IL O S O F IA IT A L IA N A
d o ^ a u + o c o n c e i+ o * D IR E TTO DA

GIOVANNI GENTILE

Conforme Gentile, o atualismo expli­


ca tam bém a natureza com o objeto do
autoconceito. Com efeito, o autoconceito
se realiza como posição de si mesmo como
sujeito e de si mesmo como objeto. Escreve
Gentile: “ Isto é o Eu, a realidade espiritual:
identidade de si consigo mesmo, não como
identidade imediatamente posta, mas como
identidade que se põe, como reflexão: du­
plicar-se como si mesmo e como outro — e
encontrar-se no outro. O Si-mesmo que fosse
‘si’ sem ser o outro evidentemente não seria
nem si mesmo, porque só o é enquanto é o
outro. Nem o outro também seria o outro se
DIR F.7.IONE: RO M A. VIA PALISTRO j* «t 4
não fosse ele mesmo, porque o outro não é m iu im a , cm a K xnoc* o. m u n c i m i o
pensável a não ser como idêntico ao sujeito,
ou seja, como o mesmo sujeito como este
encontrar-se diante de si mesmo, pondo-se
realmente” . Frontispício do primeiro fascículo da revista
“Jornal crítico da filosofia italiana ”
(janeiro de 1920).
O s t rè s m o m e n to s
cio " a u t o c o n c e i t o ”
Conseqüentemente, observa Gentile
na Teoria geral do espírito, a história do
Ora, com base nessa estrutura dialéti­ mundo, ou seja, o caminho da humanida­
ca, o autoconceito que se auto-realiza e se de através do espaço e do tempo, “ nada
autoconhece implica três momentos: mais é do que a representação empírica e
1) a realidade do sujeito, puro su­ exterior da vitória eterna imanente (plena
jeito; e absoluta vitória) do espírito sobre a na­
2) a realidade do objeto, puro ob­ tureza, da resolução imanente da natureza
jeto; no espírito” . Como diz Gentile com fórmula
3) a realidade do espírito, como unida­ viquiana, é “ história ideal eterna” . E assim,
de ou processo do pensamento, e a imanên- analogamente, também a natureza, vista
cia do sujeito e do objeto no espírito. exteriormente, é “ como que o eterno passa­
M as note-se bem: o sujeito deve existir, do de nosso eterno presente” . Nessa ótica,
porque, do contrário, não existiria quem natureza e história coincidem.
pensa; o objeto deve existir, porque, do Uma última observação, para com ­
contrário, o pensamento não seria nada. pletar o quadro. Aos três momentos acima
M as a verdadeira realidade é a do pensa­ distinguidos na categoria única do espí­
mento, isto é, do espírito, pois nele e por ele rito, Gentile faz corresponder, respectiva­
existem sujeito e objeto: “ nada é real fora mente:
do pensamento” . O primeiro e o segundo 1) ao primeiro (o da subjetividade),
momento só têm realidade no terceiro, que a arte;
é a síntese viva eterna. N o Sistema de lógica, 2) ao segundo (o da objetividade), a
Gentile denominou essa unidade que se de­ religião;
senvolve em três momentos usando o termo 3) ao terceiro (o da síntese), a filo­
“ monotríade” . sofia.
131
Cãpítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o italiano e o id ea lism o a n g lo -a m e r ic a n o

/\)a + u r e z a d o a tu a lism o abstrato. M as, diz Gentile, pensar a unidade


mediante as diferenças é próprio de todas as
g e n f iIla
ic n o filosofias: com efeito, foram os eleáticos que
começaram a “ unicizar” e, de vários modos,
todos os filósofos prosseguiram nesse cami­
N as páginas conclusivas de sua obra nho. Nesse sentido, pode-se dizer que “ todo
maior, o Sistema de lógica, Gentile toma homem, saiba ou não, é panlogista” .
posição contra algumas tentativas polêmicas Outros, por seu turno, consideraram
de determinar a natureza de sua filosofia. E o atualism o como “ panteísm o” . Gentile
o faz de modo muito esclarecedor. rejeita vivamente essa qualificação, susten­
Croce lhe objetara que seu atualismo tando que o panteísmo concebe Deus como
era uma “ mística” . Gentile respondeu que, natureza, ao passo que o atualismo diz o
da mística, o atualismo mantém o positivo, contrário, sendo “ a crítica peremptória
porque só considera real o absoluto e só jul­ de todo panteísmo” . N a verdade, porém,
ga a Deus como realidade verdadeira. M as, Gentile entende aqui o panteísmo no sentido
ao mesmo tempo, elimina o defeito do mis­ spinoziano restrito. M as, se por panteísmo
ticismo, porque não cancela as distinções, se entende a negação da transcendência e a
mas as considera não menos necessárias que redução do mundo a Deus, ainda que em
a identidade. termos dialéticos, então Gentile é panteísta,
A lguns co n sid eraram o atu alism o dado que ele afirma claramente que “ a coisa
como árido “ panlogismo” , que resolve todas finita (e, portanto, o mundo) é sempre a
as diferenças na unidade de um pensamento realidade de Deus” .

Giovanni Gentile
fotografado durante uma conferência na década de 1920.
Primeira parte - y\ f >lo so fia d o s é c u lo ao sécu Io XX

Giovanni Gentile no cargo de Ministro da Educação discute com Severi,


seu chefe de gabinete.

Outros acusaram o atualismo de ser uma mal nisso, considerando que, mais do que o
“ filosofia teologizante” . Gentile responde pensamento dos teólogos, Deus é também e
que aceita essa qualificação por aquilo que principalmente o pensamento constante de
ela tem de verdadeiro. E o que ela tem de todo homem que não se compraz em jogos
verdadeiro resume-se do seguinte modo no de inteligência, mas vive seriamente sua vida
trecho que encerra sua obra maior: “ Fi­ em que está envolvido o universo e que, por
losofia teologizante, portanto? E por que isso, lhe faz sentir o peso de uma responsa­
não? Só que a teologia dos teólogos nunca bilidade divina. Além disso, o que importam
falou propriamente de Deus, já que os teó­ os nomes, as etiquetas, as características?
logos nunca conheceram Deus, tendo-o O importante é pensar: ‘o pensar é a maior
sempre pressuposto, confundindo-o com virtude’, já dizia Heráclito” .
sua sombra. Pois, se teologizar significar de E, algumas páginas antes, Gentile escreve­
qualquer modo falar com Deus, não haverá ra: “ Pensar é viver a vida imortal” . EfSlTTI
Capítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o i+al iano e o id ea lism o a n g lo -a m e r ic a n o

GENTILE
O PENSAMENTO
COMO "AUTOCONCEITO" E "FORMA ABSOLUTA"

O espírito é
autoconceito,
verdadeiro único conceito
da realidade múltipla

Toda a matéria é absorvida totalmente


na forma absoluta,
que é ato espiritual,
é o positivo que põe a si próprio (au tóctise)

O autoconceito se auto-realiza e se autoconhece


DIALÉTICA:
segundo uma dialética triádica (m onotríade ): -
ciência
1. realidade do sujeito das relações
2. realidade do objeto
3. realidade do espírito a dialética
antiga
era dialética
do pensado
a dialética
A verdadeira realidade é m oderna
a realidade do pensamento que se autopensa, é dialética
ou seja, do espírito: do pensar
bem e verdade,
síntese viva eterna,
que tem como seu momento essencial
a própria negação (a natureza),
o erro contra o verdadeiro,
o mal contra o bem

_____________ . I ........
A história do m undo é a representação empírica e exterior
da imanente vitória eterna do espírito sobre a natureza,
da imanente resolução da natureza no espírito

.1
A É H IS T Ó R IA ID E A L E T E R N A
V E R D A D E IR A H IS T Ó R IA
que se reúne no eterno ato do pensar
Primeira parte - jA . f ilo s o f i a d o s é c u lo a o s é c u lo X X

IV. o Kveo-idealismo na. CMgla+e^a


e Kva ;A.ménca

Predecessores • O neo-idealismo surgiu na Inglaterra e na América como


do reação ao predomínio do empirismo e, portanto, foi um fenômeno
neoidealismo inesperado, ainda que tivesse encontrado nos literatos filósofos
anglo- Carlyle e Emerson - respectivamente na Inglaterra e na América
americano - precedentes significativos.
>§1
• O neo-idealismo inglês encontra seu representante máxi­
mo em F. H. Bradley, que se empenhou em uma demonstração
O neoidealismo
sistemática dos múltiplos aspectos contraditórios da experiência
inglês
—> § 2
e demonstrou a necessidade de uma referência a uma realidade
absoluta, em alguma medida imanente em cada homem.

O neoidealismo • A problemática de Bradley da relação entre o homem e o


americano absoluto encontrou um eco consistente no americano J. Royce,
- 5 3 que repropôs - em chave filosófico-idealista - o conceito paulino
de corpo místico.

.1 p re c e d e n te s: neo-hegelianos ingleses e norte-americanos,


(S a rly le e Ê m e f s o n
tanto na Inglaterra como na América alguns
influentes “ literatos filósofos” , como os dois
poetas Samuel Taylor Coleridge (1772-1834)
e William Wordsworth (1770-1850) e, de­
Contra a tradição empirista e psicolo- pois, Thomas Carlyle (1795-1881) na Ingla­
gista, desenvolve-se na segunda metade do terra e Ralph Waldo Emerson (1803-1882)
século X IX e nas primeiras duas décadas na América, haviam preparado o terreno
do século X X , tanto na Inglaterra como na e o clima propício para o aparecimento e
América, um forte movimento neo-idealista. também para o sucesso do neo-hegelianismo
Tratava-se de um movimento que pretendia anglo-americano. O pensamento de Schelling
contrastar longa e bem arraigada tradição. foi o inspirador dos ensaios literários e de
Por isso, além dos apoios e de críticas ine­ muitas poesias de Coleridge e Wordsworth.
vitáveis, também não deixou de suscitar Por seu turno, Carlyle tornou conhecida
surpresa. A propósito dele escreveu William na Inglaterra a literatura romântica alemã.
Jam es: “ E um estranho acontecimento essa Além disso, de 1837 é seu trabalho histórico
ressurreição de Hegel na Inglaterra e aqui sobre A Revolução Francesa, onde encon­
(nos Estados Unidos) depois de seus funerais tram os adm irada exaltação das grandes
na Alemanha. Penso que sua filosofia terá in­ personagens da Revolução. E em Os heróis
fluência importante sobre o desenvolvimen­ (1841), Carlyle delineia uma concepção da
to de nossa forma liberal de cristianismo. história vista como resultado e expressão
Tal filosofia apresenta aquela ossatura quase da ação dos heróis. N a trilha de Goethe,
metafísica de que essa teologia sempre teve escreve Carlyle em Sartor Resartus (1834)
necessidade” . E se olharmos a obra de Jacob que o universo é “ a roupagem de Deus” , um
Hutchinson Stirling (1820-1909), que é O “ tempo místico do espírito” , um símbolo
segredo de Hegel (1865), devemos dizer que daquele poder divino que se torna patente
Jam es não estava de modo nenhum errado. na personalidade dos “ heróis” . Simultanea­
Stirling foi o primeiro a apresentar a filosofia mente, Carlyle mostra-se muito afastado
de Hegel na Grã-Bretanha “ de forma relati­ em relação à ciência, que considera inútil
vamente inteligível e coerente” (J. Passmore). para a solução dos problemas filosóficos.
A bem da verdade, deve-se recordar que, N o mesmo período em que Carlyle
antes ainda que aparecessem as obras dos atuava na Inglaterra, Ralph Waldo Emer­
Capítulo sétimo CD n e o -id e a lis m o i+aliano e o id ea lism o a n g lo -a m e c ic a n o

Ralph Waldo Emerson


(1803-1882)
foi o promotor
do idealismo panteísta
na América.

son, nos Estados Unidos, fazia-se paladino .2 Bradley


de um idealism o panteísta que vê uma
“ superalm a” com o força encarnada em
toda a realidade. Tudo procede do mesmo
espírito: os homens e o mundo. E enquanto
o corpo humano é guiado por uma vontade, Depois de Stirling, os representantes
o mundo é “ uma encarnação de Deus mais destacados do idealismo inglês foram, sem
baixa e mais distante” : o mundo é “ uma dúvida, Thomas Hill Green (1836-1882),
projeção de Deus no inconsciente” . A ordem Edward Caird (1835-1908) e John M cT ag-
do mundo, testemunha do espírito divino, gart (1866-1925); todavia, a figura de maior
não pode ser violada pelo homem. E quando destaque é certamente a de Francis Herbert
enveredamos pelo caminho que nos leva a Bradley (1846-1924), cuja obra principal,
infringir a ordem da natureza, não é difícil Aparência e realidade, é de 1893.
perceber que “ nos tornamos estranhos na Para Bradley, o mundo de nossa expe­
natureza” . O afastam ento em relação à riência é contraditório e incompreensível.
natureza é alienação em relação a Deus. A Da forma como nos aparece, o mundo se
exemplo de Carlyle, Emerson também é da despedaça sob as bordoadas da análise fi­
idéia de que a história é feita e plasmada losófica.
por grandes homens. Seu trabalho Homens Com efeito, se olharmos para a dis­
representativos é de 1850. tinção antiga entre qualidades primárias e
Primeira parte - y\ filo s o -p a d o s é c u lo X ^ X a o s é c u lo X X

qualidades secundárias, podemos ver, escre­ Royce (1855-1916). Autor muito fecundo,
ve Bradley, que “ o raciocínio que demonstra Royce registrou os melhores frutos de seu
que as qualidades secundárias não são reais pensamento em O mundo e o indivíduo
possui a mesma força quando o aplicamos (2 vols., 1900-1902) e em O problema do
às qualidades primárias” , que também “ nos cristianismo (1913).
vêm unicamente da relação com um órgão Antes de mais nada, Royce sustenta
do sentido” . que não é possível nos acomodarmos em
N ão é válido distinguir as coisas das nossos conhecimentos, sempre limitados e
qualidades, já que “ não podemos descobrir parciais. Exigimos verdade absoluta, um juiz
nenhuma unidade real existente independen­ infinito, que esteja em condições de julgar, de
temente das qualidades” . uma vez por todas, para toda a eternidade,
O mundo de nossa experiência está o erro e o mal.
cheio de contradições, é inconsistente. Ele Em suma, o homem finito postula uma
é apenas aparência. “ A realidade definitiva consciência absoluta. E essa consciência
é aquela que não deve se contradizer” . N ão absoluta é Deus, no qual se integra o que é
há um só aspecto do mundo finito que se fragmentário, e no qual encontram lugar e
salve da contradição e que possa, portanto, sentido até os erros, as derrotas, os defeitos e
ser considerado real. Conseqüentemente, a todos os esforços das consciências finitas.
realidade absoluta transcende toda tentativa A partir dessas premissas, no que se
humana de alcançá-la. Por outro lado, o refere à sociabilidade, Royce deduz uma
homem finito, que não consegue chegar à doutrina que guarda analogias estreitas com
realidade absoluta, mas que distingue a apa­ a doutrina cristã do corpo místico. Escreve
rência da realidade, possui essa realidade ab­ ele: “ N ós som os apenas pó, se a ordem
soluta como imanente, de modo que “ todo social não nos dá a vida. Se considerarmos
ato de experiência, toda esfera ou grau do a ordem social como um instrumento nos­
mundo é fator necessário do absolu to” . so e nos preocuparmos unicamente com
N o absoluto nada se perde, mas tudo se nossas sortes privadas, então ela se torna
transforma. “ O absoluto não tem história, desprezível para nós [...]; mas, se modifi­
embora contenha inumeráveis histórias” . carmos nossa atitude e servirmos a ordem
social, mais do que só a nós mesmos, então
perceberemos que aquilo que servimos é
3 R oyce
simplesmente nosso mais elevado destino
espiritual em forma corpórea” .
e o n e o - i d e a l is m o Este é o ideal que Royce proclama dian­
n a ^ A m é r ic a te de uma sociedade que impele as pessoas
ao individualismo e diante de Igrejas que,
em sua opinião, afastaram-se sempre mais
Depois de Emerson, o neo-idealismo do ideal paulino do corpo místico. Royce,
foi significativamente defendido na América portanto, sustenta que a sociedade que pode
por William Torrey Harris (1835-1909), G. fazer o indivíduo sair de sua finitude não é
H. Howison (1834-1916) e James Creighton tanto uma sociedade real, e sim muito mais
(1861-1924). M as o filósofo americano neo- uma sociedade ideal, que está na base de
idealista mais influente e conhecido éjo siah todas as comunidades históricas.
137
Capítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o if a íi a n o e o id ea lism o a n g lo -a m e r ic c m o

2. fl arte não é um fato físico


C roce €la nega em primeiro lugar qu© a arte
seja um fato físico; por exemplo, certas cores
determinadas ou relações de cores, certas
formas determinadas de corpos, certos sons
determinados ou relações de sons, certos fe­
D O que é o arte nômenos de calor ou de eletricidade, em suma,
qualquer coisa que se designe como “física". Já
no pensamento comum se tem o pretexto para
R concepção crociona do arte foi a que este erro de fisicizar a arte, e, como as crianças
impôs o filósofo em âmbito nacional e inter­ que tocam a bolha de sabão e gostariam de
nacional, e que difundiu seu pensamento tocar o arco-íris, 0 espírito humano, admirando
também nos círculos dos literatos e dos as coisas belas, dirige-se espontaneamente
artistas em geral. para rastrear seus motivos na natureza externa,
R arte é conhecimento intuitivo que impli­ e experimenta pensar ou crê ter de pensar como
ca um sentimento que se exprime justamente belas certas cores e feias certas outras, belas
p or imogens. R arte é uma espécie de síntese certas formas de corpos e feias certas outras.
a priori estética de sentimento e imagem na Mas de propósito, e com método, esta tentativa
intuição. foi depois executada mais vezes na história do
R arte enquanto tal não tem necessi­ pensamento: dos "cânones" que os artistas e
dade de modo nenhum de que o intelecto teóricos gregos e da Renascença fixaram para
lhe preste socorros, nem da economia nem a beleza dos corpos, das especulações sobre
da ética. relações geométricas e numéricas determináveis
R arte é, em resumo, o primeiro dos nas figuras e nos sons, até as pesquisas dos
"distintos" do espírito, e nesta óptica deve estetas do século XIX [...] e as “comunicações",
se r entendida. que nos congressos de filosofia, de psicologia
Nas páginas seguintes, além de passos e de ciências naturais de nossos dias os inex­
q u e indicam justam ente a determ inação perientes costumam apresentar a respeito das
precisa da arte em relação aos outros três relações dos fenômenos físicos com a arte. ê
"distintos", há também trechos em qu e caso perguntemos por qual razão a arte não
emergem alguns corolários importantes da pode ser um fato físico, é preciso em primeiro
estética crociona: a negação dos gêneros lugar responder que os fatos físicos não têm
literários e do belo natural, e a afirmação da realidade, 0 que a arte, à qual tantos consa­
indentidade entre lingüística e estética. gram sua vida inteira e que a todos enche de
divina alegria, é sumamente real; de modo que
ela não pode ser um fato físico, que é algo de
irreal.
1. fí arte é intuição
fl arte é visão ou intuição. O artista produz 3. fl arte não é um ato utilitário
uma imagem ou fantasma; 0 aquele qu0 sabo­ Outra negação está implícita na defini­
reia a arte dirige o olho ao ponto qu© o artista ção da art© como intuição: ou seja, que, se
Ih© indicou, olha pela espiral que o artista lhe ela é intuição, e se intuição vale como teoria
abriu 0 reproduz em si a imagem. “Intuição", "vi­ no sentido originário de contemplação, a arte
são", "contemplação", “imaginação", “fantasia", não pode ser um ato utilitário; e, como um ato
"figuração1', “representação", e daí por diante, utilitário visa sempre a alcançar um prazer e
são palavras que voltam continuamente como por isso a afastar uma dor, a arte, considerada
sinônimos no discorrer em torno da arte, e todas em sua própria natureza, não tem nada a ver
elevam nossa mente ao mesmo conceito ou à com o útil, e com prazer e com a dor, enquanto
mesma esfera de conceitos, indício de consenso tais. Conceder-se-á, de fato, sem demasiada
universal. resistência, que um prazer como prazer, um
Mas esta minha resposta, que a arte seja prazer qualquer, não é em si artístico: não é
intuição, atinge ao mesmo tempo significado e artístico o prazer de uma bebida de águo que
força a partir de tudo aquilo que ela implicitamen­ dessedenta, de um passeio ao ar livre que de-
te nego e de que distingue a arte. Quais nega­ sentorpece nossos membros e faz nosso sangue
ções estão aí compreendidas? Indicarei as prin­ circular mais levemente, do alcançar um lugar de
cipais, ou pelo menos aquelas que para nós, em trabalho suspirado que põe em ordem nossa
nosso momento cultural, são mais importantes. vida prática, e daí por diante. Rté nas relações
Primeira parte - y\ f ilo s o f i a d o s é c u lo XJX cxo s é c u lo xx

qu® se desenvolvem entre nós e as obras da Shakespeare), quanto julgar moral o quadrado
arte, salta aos olhos a diferença entre o prazer ou imoral o triângulo.
e a arte, porque a figura representada pode
ser cara para nós e despertar as mais delei-
5. fl arte não tem o caráter
táveis recordações, e, todavia, o quadro pode
de um conhecimento intelectual
ser feio; ou, ao contrário, o quadro pode ser
belo e a figura representada odiosa ao nosso Ainda (e esta é a última, e talvez a mais
coração: ou o próprio quadro, que aprovamos importante, das negações gerais que me con­
como belo, despertar raiva ou inveja porque vém recordar de propósito), com a definição da
obra de um nosso inimigo ou rival, ao qual arte como intuição nega-se que ela tenha cará­
trará vantagem e conferirá nova força: nossos ter de conhecimento conceituai. O conhecimento
interesses práticos, com os correlativos prazeres conceituai, em sua forma pura que é a filosó­
e dores, se misturam, por vezes se confundem, fica, é sempre realista, visando a estabelecer
perturbam-no, mas nunca se juntam com nosso a realidade contra a irrealidade ou a abaixar
interesse estético, filém do mais, para sustentar a irrealidade, incluindo-a na realidade como
mais validamente a definição da arte como o momento subordinado da própria realidade.
agradável, se afirmará que ela não é o agra­ Mas intuição quer dizer, justamente, indistinção
dável em geral, e sim uma forma particular de de realidade e irrealidade, a imagem em seu
agradável. Mas esta restrição não é mais uma valor de mera imagem, a pura idealidade da
defesa e é aliás um verdadeiro abandono imagem; e, contrapondo o conhecimento intui­
naquela tese, porque, uma vez que a arte seja tivo ou sensível ao conceituai ou inteligível, a
uma forma particular de prazer, seu caráter estética à noética, visa-se a reivindicar a auto­
distintivo seria dado não pelo agradável, mas nomia desta mais simples e elementar forma
por aquilo que distingue aquele agradável dos de conhecimento, que foi comparada ao sonho
outros agradáveis, e a esse elemento distintivo (ao sonho, e não ao sono) da vida teórica,
- mais que agradável ou diferente do agradável em relação ao qual a filosofia seria a vigília.
- conviria dirigir a pesquisa. €, verdadeiramente, toda pessoa que, diante
de uma obra de arte, pergunta se isso que o
artista expressou é metafísica e historicamente
4. fl arte não é um ato moral
verdadeiro ou falso, levanta uma pergunta sem
Uma terceira negação que se realiza significado, e entra no erro análogo ao de quem
graças à teoria da arte como intuição é que quer traduzir diante do tribunal da moralidade
a arte seja um ato moral; ou seja, a forma de as imagens aéreas da fantasia. [...]
ato prático que, embora se unindo necessa­ €sta reivindicação do caráter alógico da
riamente com o útil e com prazer e dor, não arte é, conforme eu disse, a mais difícil e im­
é imediatamente utilitária e hedonista e se portante das polêmicas incluídas na fórmula da
move em uma esfera espiritual superior. Mas arte-intuição; porque as teorias, que tentam ex­
a intuição, enquanto ato teórico, é oposta a plicar a arte como filosofia, como religião, como
qualquer prática, e, na verdade, a arte, con­ história e como ciência e, em grau menor, como
forme observação antiquíssima, não nasce por matemática, ocupam, com efeito, a parte maior
obra de vontade: a boa vontade, que define o na história da ciência estética, e se enfeitam
homem honesto, não define o artista. €, como com os nomes dos maiores filósofos. Na filosofia
não nasce por obra de vontade, ela se subtrai do século XIX, exemplos de identificação ou
igualmente a toda discriminação moral, não confusão da arte com a religião e com a filo­
porque lhe seja permitido um privilégio de sofia são oferecidos por Schelling e por Hegel;
isenção, mas simplesmente porque a discri­ da confusão dela com as ciências naturais, por
minação moral não encontra o modo de a ela Taine; da confusão com a observação histórica
se aplicar. Uma imagem artística retratará um e documentária, pelas teorias dos veristas
ato moralmente louvável ou reprovável; mas a franceses; e da confusão com a matemática,
própria imagem, enquanto imagem, não é nem pelo formalismo dos herbartianos. Mas seria
louvável nem reprovável moralmente. Não só vão procurar em todos esses autores, e nos
não há código penal que possa condenar à pri­ outros que se poderia lembrar, exemplos puros
são ou à morte uma imagem, mas nenhum juízo destes erros, porque o erro nunca é "puro", pois,
moral, dado por uma pessoa razoável, pode se assim o fosse, ele seria verdade. 6 por isso
fazê-la seu objeto: tanto valeria julgar imoral também as doutrinas da arte, que por brevida­
a francesca de Dante ou moral a Cordélia de de chamarei de "conceituai istas", contêm em si
Shakespeare (que têm mera função artística e elementos dissolventes, tanto mais numerosos
são como notas musicais da alma de Dante e de e eficazes quanto mais enérgico era o espírito
Capítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o italiano e o id ea lism o a n g lo -a m e r ic a n o

do filósofo que os professava; 0 por isso em como conseqüência de um princípio filosófico,


ninguém tão numerosos e eficazes como em mas por efeito de uma classificação empírica e
Schelling e em Hegel, os quais tiveram tão viva naturalista, que formou os dois grupos de fatos
consciência da produção artística que sugeriram, internos e fatos externos (como se os internos
com suas observações e seus desenvolvimentos não fossem ao mesmo tempo externos e os ex­
particulares, uma teoria oposta à que existe ternos pudessem existir sem interioridade), de
na afirmação de seus sistemas. De resto, as almas e corpos, de imagens e de expressões;
próprias teorias conceitualistas, não só são su­ e sabe-se que é vão esforço reunir em sínteses
periores, enquanto reconhecem o coráter teórico superiores aquilo que foi distinguido não tanto
da arte, às outras examinadas anteriormente, filosófica e formalmente, mas apenas empírica
müs trazem também sua contribuição à verda­ e materialmente, fl alma é alma enquanto é
deira doutrina, graças à exigência que contêm corpo, a vontade é vontade enquanto move
de uma determinação das relações (que, se pernas e braços, ou seja, é ação, e a intuição
forem de distinção, são também de unidade) enquanto é, no próprio ato, expressão. Uma
entre a fantasia e a lógica, entre a arte e o imagem não expressa, que não seja palavra,
pensamento. canto, desenho, pintura, escultura, arquitetura,
6 aqui já se pode ver como a simplicíssima palavra pelo menos murmurada de si para
fórmula de que "a arte é intuição", - a qual, si mesmo, canto pelo menos que ressoa no
traduzida em outros vocábulos sinônimos (por próprio peito, desenho e cor que se veja na
exemplo: que "a arte é obra da fantasia"), se fantasia e colore de si toda a alma 0 o orga­
ouve das bocas de todos aqueles que discorrem nismo, é coisa inexistente. Pode-se asserir sua
quotidianamente sobre a arte, e se encontra existência, mas não se pode afirmá-la, porque a
com vocábulos mais velhos ("imitação", "fic­ afirmação tem como único documento que aque­
ção”, “fábula" etc.) em tantos livros antigos -, la imagem esteja corporificada e expressa. €sta
pronunciada agora no contexto de um discurso profunda proposição filosófica da identidade de
filosófico, se encha de um conteúdo histórico, intuição e expressão se encontra, de resto, no
crítico e polêmico, de cuja riqueza se pôde dar bom senso comum, que ri daqueles que dizem
apenas alguma amostra. ter pensamentos mas não sabem expressá-los,
8. Croce, de ter idealizado uma grande pintura, mas de
Breviário de estético. não sabê-la pintar, fíem tene, verbo sequentur.1
se não existem os verbo, muito menos a res.
6. Intuição e expressão Tal identidade, que se d©v0 afirmar para todas
as esferas do espírito, na da arte tem uma
Um dos problemas que em primeiro lugar evidência e uma saliência que talvez faltem em
se apresentam, tendo definido a obra de arte outros lugares. I\la criação da obra de poesia,
como “imagem lírica", refere-se à relação entre assiste-se como que ao mistério da criação do
“intuição" e “expressão" e o modo da passagem mundo; e daí a eficácia que a ciência estética
de uma para a outra. €ste, substancialmente, é exerce sobre toda a filosofia, para a concepção
o mesmo problema que se apresenta em outras do Uno-Todo. Fl estética, negando na vido da
partes da filosofia, como o de interno e externo, arte o espiritualismo abstrato e o dualismo que
de espírito e matéria, de alma e corpo, e, na daí se segue, pressupõe e, ao mesmo tempo,
filosofia da prática, de intenção e vontade, de de sua parte exige o idealismo ou espiritualismo
vontade e ação, e semelhantes. Nestes termos, absoluto.
o problema é insolúvel, porque, separando o
interno do externo, o espírito do corpo, a von­ 7. €xpressão e comunicação
tade da ação, a intuição da expressão, não há
modo de passar de um para o outro dos dois As objeções contra a identidade de intui­
termos ou de reunificá-los, salvo se a reunifi­ ção e expressão provêm comumente de ilusões
cação for posta em um terceiro termo, que por psicológicas em que se crê possuir, em todo mo­
vezes foi apresentado como Deus ou como o mento, imagens concretas e vivas em profusão,
Incognoscível: o dualismo leva necessariamente quando se possuem quase que apenas sinais e
ou à transcendência ou ao agnosticismo. Mas, nomes; ou de casos mal analisados, como os de
quando os problemas se mostram insolúveis artistas dos quais se crê que exprimam apenas
nos termos em que foram colocados, não resta fragmentariamente todo um mundo de imagens
mais que criticar os próprios termos, e indagar que têm na alma, quando na alma justamente
como se tenham gerado, e se a gênese deles
é logicamente legítima. Fl pesquisa neste caso
leva ò conclusão de que eles nasceram não '"Retém a coisa, e os palavras seguir-se-ão”.
Primeira parte - y\ filo so fia d o s é c u lo X - T X a o s é c u lo xx

nõo têm mais qu® aqueles fragmentos, e junto vernizes, ou as que tratam dos modos de obter
com estes não aquele mundo suposto, mas a boa pronúncia e declamação, e semelhantes.
no mais das vezes a aspiração ou a obscura Os tratados de técnica não são trotados de
labuta na direção dele, ou seja, na direção de estética, nem partes ou seções destes tratados.
uma imagem mais vasta e rica, que talvez se Isso, bem entendido, sempre que os conceitos
forme ou não. Tais objeções, porém, também forem pensados com rigor e as palavras em­
se alimentam da troca entre a expressão e a pregadas com propriedade em relação àquele
comunicação, esta última de fato distinta da rigor de conceitos e, sem dúvida, não valeria a
imagem e de sua expressão, fl comunicação pena debater sobre a palavra "técnica” quan­
se refere à fixação da intuição-expressão em do é empregada, ao contrário, como sinônimo
um objeto que diríamos material ou físico por do próprio trabalho artístico, no sentido de
metáfora, uma vez que, efetivamente, não s® "técnica interior", que é, portanto, a formação
trata nem mesmo nesta parte de material e de da intuição-expressão; ou então no sentido de
físico, mas de obra espiritual. Todavia, uma vez “disciplina", ou seja, da ligação necessária com
que esta demonstração a respeito da irrealida­ a tradição histórica, da qual ninguém pode se
de daquilo que se chama físico e sua resolução desligar, embora ninguém permaneça simples­
no espiritualidade tem d® fato interesse primário mente ligado a ela. fl confusão da arte com a
para a concepção filosófica total, mas apenas técnica, a substituição desta por aquela, é um
indireto para o esclarecimento dos problemas partido assaz almejado pelos artistas impoten­
estéticos, podemos, por brevidade, deixar tes, que esperam das coisas práticas, e das
aqui correr a metáfora ou o símbolo, e falar de excogitações e invenções práticas, o auxílio e
matéria ou d® natureza, é claro que a poesia já a força que não encontram em si mesmos.
existe inteira quando o poeta a expressou em
palavras, cantando-a dentro de si; e qu®, ao 8. Os objetos artísticos:
passar a càntá-la com voz expressa para que a teoria das artes particulares
outros a ouçam, ou a procurar pessoas que a e o belo por natureza
aprendam d® cor e a recantem a outrem como
em uma scholo cantorum, ou a colocá-la em O trabalho da comunicação, ou seja, da
sinais de escrita e de impressão, entra-se em conservação e divulgação das imagens artísti­
novo estágio, certamente de muita importância cas, guiado pela técnica, produz, portanto, os
social e cultural, cujo caráter não é mais estético, objetos materiais que se dizem por metáfora
mas prático. O mesmo deve-se dizer no coso do "artísticos" e "obras de arte"; quadros e escul­
pintor, o qual pinta sobre a madeira ou sobre a turas e edifícios, e depois também, de modo
tela, mas não poderia pintar se em todo estágio mais complicado, escritas literárias e musicais,
de seu trabalho, da mancha ou esboço inicial e, em nossos dias, aparelhos de som e discos,
até o acabamento, a imagem intuída, a linha que tornam possível reproduür vozes e sons.
e a cor pintadas na fantasia não precedessem Todavia, nem estas vozes e sons, nem os sinais
o toqu® do pincel; tanto é verdade que, quan­ da pintura, da escultura e da arquitetura são
do aquele toque se antecipa à imagem, el® obras de arte, as quais não existem em nenhum
é cancelado e substituído na correção que o outro lugar a não ser nas almas que as criam
artista faz de sua obra. O ponto da distinção ou os recriam. Tirando a aparência de parado­
entre expressão e comunicação é certamente xo desta verdade da inexistência de objetos
bastante delicado de captar no foto, porque no 0 coisas belas, será oportuno lembrar o caso
fato os dois processos se aproximam em geral análogo da ciência econômica, a qual sabe bem
rapidamente e parece que se misturam; mas é que em economia não existem coisas natural e
claro em idéia, e é preciso mantê-lo bem firme. fisicamente úteis, mas apenas necessidades
Do fato de tê-lo descurado ou deixado vacilar e trabalho, dos quais as coisas físicas tomam
provêm as confusões entre arte e técnica, das como metáfora o adjetivo. Quem em economia
quais a última não é uma coisa intrínseca à arte, quisesse deduzir o valor econômico das coisas
mas liga-se justamente ao conceito da comuni­ a partir das qualidades físicas delas, cometeria
cação. fl técnica é, em geral, uma cognição ou uma grosseira ignoratio etenchi.
um complexo de cognições dispostas e dirigidas € apesar de tudo esta ignoratio elenchi
a uso da ação prática, e, no caso da arte, da foi cometida, e ainda tem sucesso, na estética,
ação prática que molda objetos e instrumentos com a doutrina das artes particulares e dos
para a lembrança e a comunicação das obras limites, ou seja, do caráter estético próprio de
de arte; quais seriam as cognições a respeito cada uma. As divisões das artes são meramente
da preparação dos quadros, das telas, dos técnicas ou físicas, ou seja, conforme os objetos
murais a pintar, das matérias colorantes, dos artísticos consistem em sons, em tons, em obje­
Capítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o ifaliano e o id ea lism o a n g lo -a m e r ic a n o

tos coloridos, em objetos incisos ou esculpidos, aquele fio de erva que, posto na boca, per­
em objetos construídos e que nõo parecem mitia entender as palavras dos animais e das
encontrar correspondência em corpos naturais plantas. Com "belo por natureza" se designam
(poesia, música, pintura, escultura, arquitetura verdadeiramente pessoas, coisas, lugares, que
etc.). Perguntar qual seja o caráter artístico de por seus efeitos sobre os espíritos devem se
cada uma destas artes, aquilo que cada uma aproximar da poesia, da pintura, da escultura
possa ou nõo possa, quais ordens de imagens e das outras artes; e não há dificuldade de
se exprimem em sons e quais em tons e quais admitir tais “coisas artísticas naturais", porque
em cores e quais em linhas, e daí por diante, o processo de comunicação poética, como se
é como perguntar em economia quais coisas realiza com objetos artificialmente produzidos,
devam por suas qualidades físicas receber assim também pode se realizar com objetos
um preço e quais nõo, e qual preço devam ter naturalmente dados, fl fantasia do enamorado
umas em relação às outras, quando é claro que cria a mulher para ele bela e a personifica em
as qualidades físicas nõo entram na questão laura; a fantasia do peregrino, a paisagem
e toda coisa pode ser desejada e exigida, e encantadora ou sublime e a personifica na
receber um preço maior do que outras ou de cena de um lago ou de uma montanha; e estas
todas as outras, conforme as circunstâncias e criações poéticas se difundem por vezes em
os necessidades. Colocando inadvertidamente mais ou menos largos círculos sociais, dando
o pé sobre este resvaladouro, até um lessing origem às "belezas profissionais" femininas,
foi impelido a conclusões tão estranhas como a admiradas por todos, e aos "lugares de vista"
que à poesia cabem as "ações" e à escultura os famosos, diante dos quais todos se extasiam
"corpos”; e também um Richard UJagner se pôs mais ou menos sinceramente, é verdade que
a matutar sobre uma arte complexiva, a Opera, estas formações são efêmeras: o gracejo por
que reunisse em si, por agregação, as potências vezes as dissipa, a sociedade as deixa cair, õ
de todas as artes particulares. Quem tem senso capricho da moda as substitui; e, diversamente
artístico, em um verso, em um pequeno verso das obras artísticas, não permitem interpreta­
de poeta, encontra ao mesmo tempo toda a ções autênticas. O golfo de Nápoles, visto do
musicalidade, pictoricidade, força escultórica alto de uma das mais belas "vilas" do Vômero,
e estrutura arquitetônica, e, da mesma forma, foi, depois de alguns anos de incansável visão,
em uma pintura, a qual jamais é uma coisa de declarado pela dama russa que adquirira aque­
olhos, mas sempre de alma, e na alma não la "vila" uma cuvette bleue, tão odioso em seu
está apenas como cor, mas também como som azul engrinaldado de verde, que a induziu a
e palavra, até como silêncio que, a seu modo, revendera "vila". Também a imagem da cuvette
é som e palavra. Todavia, onde se experimenta bleue ,2 era, de resto, uma criação poética, a
agarrar separadamente aquela musicalidade respeito da qual nõo há o que discutir.
e aquele pitoresco e as outras coisas, elas lhe
escapam e se transmutam uma na outra, fun­ 9. Os gêneros literários
dindo-se na unidade, mesmo que se costume e as categorias estéticas
separadamente chamá-las por modo de dizer,
ou seja, experimenta-se que a arte é uma e não Bastante maiores e mais deploráveis con­
se divide em artes. Uma, e ao mesmo tempo seqüências teve na crítica e na historiografia lite­
infinitamente variada; mas variada não tanto rária e artística uma teoria de origem um pouco
conforme os conceitos técnicos das artes, e sim diversa, mas análoga, a dos gêneros literários
conforme a infinita variedade das personalida­ e artísticos. Também esta, como a precedente,
des artísticas e de seus estados de espírito. tem como fundamento uma classificação que,
fi esta relação e a esta troca entre tomada em si, é legítima e útil: aquela, os
as criações artísticas e os instrumentos da agrupamentos técnicos ou físicos dos objetos ar­
comunicação ou "coisas artísticas" devemos tísticos; esta, as classificações que se fazem das
recolocar o problema que se refere ao belo obras de arte, conforme seu conteúdo ou motivo
por natureza. Deixemos de lado a questão, sentimental, em obras trágicas, cômicas, líricas,
que assoma em alguns estetas se, além do heróicas, amorosas, idílicas, romances, e d a í por
homem, outros seres sejam na natureza po­ diante, dividindo e subdividindo. Na prática é
etas e artistas: questão que merece resposta útil distribuir segundo estas classes as obras de
afirmativa, não só por devida homenagem um poeta na edição que dele se faz, colocando
aos pássaros cantores, mas ainda mais em
virtude da concepção idealista do mundo, que
é todo vida e espiritualidade, mesmo que,
como naquele conto popular, tenhamos perdido 2”Concho azul”.
Primeira purte - y \ f i lo s o f i a d o s é c u lo X ^ X a o s é c u lo X X

em um volume os líricos, em outro os dramas, Pareceu que das divisões dos gêneros
em um terceiro os poemas, em um quarto os se devia salvar, dando-lhe valor filosófico, ao
romances; e é cômodo, ou melhor, indispensá­ menos uma; a de "lírica", “épica" e "dramática",
vel, citar com estes nomes as obras e os grupos interpretando-a como três momentos do proces­
de obras ao discorrer sobre elas em voz alta e so da objetivação, que da lírica, efusão do eu,
por escrito. Mas também aqui devemos declarar vai à épica, em que o eu separa de si o sentir,
indevido e negar a passagem destes conceitos narrando-o, e desta para a dramática, em que
classificatórios às leis estéticas da composição deixa que ele molde por si os próprios porta-
e aos critérios estéticos do juízo; como se faz vozes, as dramatis personae. Mas a lírica não
quando se quer determinar que a tragédia deva é efusão, não é grito ou pranto; ao contrário, é
ter tal ou tal argumento, tal ou tal qualidade de ela própria objetivação, pela qual o eu vê a si
personagens, tal ou tal andamento de ação, mesmo como espetáculo e se narra e se dra­
e tal ou tal extensão; e diante de uma obro, matiza; e este espírito forma a poesia do epos
em vez de procurar e julgar a poesia que lhe é e do drama, que, portanto, não se distinguem
própria, põe-se a pergunta se ela é tragédia da primeira a não ser em coisas extrínsecas.
ou poema, e se obedece às "leis" de um ou de Uma obra que seja totalmente poesia, como o
outro “gênero", fi crítico literária do século XIX Macbeth ou o fíntônio e Cleópatra, é substan­
deve seus grandes progressos em grande parte cialmente uma lírica, da qual os personagens
por ter abandonado os critérios dos gêneros, e as cenas representam os vários tons e as
nos quais permaneceram como que aprisiona­ estrofes consecutivas.
das a crítica da Renascença e a do classicismo Nas velhas estéticas, e ainda hoje na­
francês, como comprovam as disputas que então quelas que continuam seu tipo, se dava des­
surgiram em torno da Comédia de Dante e dos taque às assim chamadas categorias do belo;
poemas de flriosto e de Tasso, do Pastor Fido o sublime, o trágico, o cômico, o gracioso, o
de Guarini, do Cid de Corneille, dos dramas de humorístico, e semelhantes, que os filósofos,
lope de Vega. Não igual vantagem tiraram os marcadamente alemães, não só começaram a
artistas da queda destes preconceitos, porque, tratar como conceitos filosóficos (quando são
negados ou admitidos que tenham sido em simples conceitos psicológicos e empíricos),
teoria, permanece como fato que aquele que mas desenvolveram com aquela dialética que
tem gênio artístico passa através de todos os diz respeito unicamente aos conceitos puros ou
vínculos de servidão, e até mesmo das correntes especulativos, isto é, às categorias filosóficas,
faz para si instrumento de força; e aquele que onde se entretiveram, dispondo-os em uma
disso é escasso ou privado, converte em nova série de progresso fantástico, culminante oro
servidão a própria liberdade. no belo, ora no trágico, ora no humorístico. Gn-

D a esquerda para a direita:


Stefano Jacini, Benedetto Croce e Giovanni Laterza em uma foto da década de 1920.
14
Capítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o italiano e o id ea lism o a n g lo -a m e r ic a n o ------

tendendo tais conceitos por aquilo que se disse no fundo desta distinção de forma lógica e de
que eles são, deve-se notar sua correspondên­ forma metafórica, de dialética e retórica, ela era
cia substancial com os conceitos dos gêneros a necessidade de construir ao lado da ciência
literários e artísticos, dos quais, com efeito, e da lógica uma ciência da estética; mas infeliz­
principalmente das "instituições literárias", se mente se fazia o esforço de distinguir as duas
verteram na filosofia. Gnquanto conceitos psico­ ciências no campo da expressão, que pertence
lógicos e empíricos, não pertencem à estética, a uma só delas.
e em seu conjunto designam nada mais que a Por uma necessidade não menos legítima,
totalidade dos sentimentos (empiricamente dis­ naquela parte da didática que é o ensino das
tintos e reunidos), que são a matéria perpétua línguas começou-se desde a antiguidade a
da intuição artística. dividir as expressões em períodos, proposições
e palavras, e as palavras em várias classes, e
10. Retórica, gramática em cada uma a analisá-las segundo suas varia­
e Filosofia da linguagem ções e composições em radicais e sufixos, em
sílabas e em fonemas ou letras; daí nasceram
Que todo erro tenha um motivo de verda­ os alfabetos, as gramáticas, os vocabulários,
de e nasça de uma combinação arbitrária de como, analogamente, para a poesia houve
coisas em si legítimas, confirma-se pelo exame as artes métricas, e para a música e as artes
que se fizer de outras doutrinas errôneas, as figurativas e arquitetônicas, as gramáticas mu­
quais tiveram grande campo no passado e sicais, pictóricas, e assim por diante. Todavia,
ainda hoje têm um, embora mais restrito. € nem mesmo os antigos conseguiram evitar que
perfeitamente legítimo valer-se, para o ensino também nesta parte se realizasse um daqueles
do escrever, de divisões como as do estilo nu trânsitos indevidos ob intellectu ad rem, das
e do figurado, da metáfora e de suas formas, abstrações à realidade, da empiria à filosofia,
e perceber que em tal lugar ajuda falar sem que observamos nos outros casos; e nisso se
metáfora e em tal outro por metáfora, e que em veio a conceber o falar como agregação de
tal outro a metáfora empregada é incoerente palavras e as palavras como agregação de
ou é mantida demasiado longamente, e que sílabas ou de raízes e sufixos: onde o prius
aqui conviria uma figura de "preterição" e lá é justamente o falar como um continuum,
uma "hipérbole" ou uma “ironia". Mas quando semelhante a um organismo, e as palavras e
se perde a consciência da origem de fato didá­ as sílabas e as raízes são o posterius, o pre­
tica e prática destas distinções, e filosofando parado anatômico, o produto do intelecto que
se teoriza a forma como distinguível em uma abstrai, e não justamente o fato originário e
forma “nua" e em uma forma “ornada", em real. Transportada a gramática assim como a
uma forma “lógica" e em uma forma “afetiva” e retórica no seio da estética, disso proveio um
semelhantes, se transporta no seio da estéti­ desdobramento entre “expressão" e “meios" da
ca a retórica e se vicia o conceito genuíno da expressão, que é uma reduplicação, porque os
expressão, fl qual nunca é lógica, mas sempre meios da expressão são a própria expressão,
afetiva, ou seja, lírica e fantástica, e é sempre, triturada pelos gramáticos. €ste erro, combi­
e por isso mesmo não é nunca, metafórica, e nando-se com o outro de uma forma "nua” e de
por isso sempre própria; nunca é nua para se uma forma “ornada", impediu que se visse que
dever cobrir, nem ornada para dever-se libertar a filosofia da linguagem não é uma gramática
de coisas estranhas, mas sempre resplande­ filosófica, mas está além de toda gramática,
cente de si própria [...]. Também o pensamento e não torna filosóficas as classes gramaticais,
lógico, também a ciência, enquanto se exprime mas as ignora, e, quando as encontra contra
torna-se sentimento e fantasia, que é a razão si, as destrói, e que, em suma, a filosofia da
pela qual um livro de filosofia, de história, de linguagem é uma com a filosofia da poesia e
ciência pode ser não só verdadeiro, mas belo, da arte, com a ciência da intuição-expressão,
e de todo modo é julgado não só conforme uma com a estética, a qual abraça a linguagem em
lógica, mas também conforme uma estética, e se toda a sua extensão, que compreende a lin­
diz por vezes que um livro é equivocado como guagem fônica e articulada, e em sua realidade
teoria ou como crítica ou como verdade histórica, intacta, que é a expressão viva e de sentido
mas permanece, pelo afeto que o anima e que realizado.
nele se exprime, na qualidade de obra de arte. B. Croc®,
Quanto ao motivo de verdade que se elaborava Flesthetica in nuce.
Primeira parte - j A f i lo s o f i a d o s é c u lo a ° s é c u lo X X

b. fl liberdade é a própria vida da história


2 fl concepção e não pode jamais vir a faltar

do história Nada mais freqüente do que ouvir em


nossos dias o anúncio jubiloso ou a admissão
resignada ou a lamentação desesperada de
fl realidade, paro Croce, é vida que se que a liberdade tenha doravante desertado
desenvolve por meio do pensamento e da o mundo, que seu ideal se tenha posto no
oção, em uma unidade que é a realização e horizonte da história, com um crepúsculo sem
a atualização do universal concreto. promessa de aurora. Rqueles que assim fa­
6ste realizar-se do espírito é o história. lam, escrevem e publicam, merecem o perdão
fl história é, portanto, o realizar-se do motivado com as palavras de Jesus: porque
espírito na unidade-distinção, que se escon­ não sabem o que dizem. Se o soubessem, se
de na síntese dos opostos, a qual se explica refletissem, perceberiam que afirmar que a li­
de modo circular. M as este escandir-se do berdade está morta é o mesmo que afirmar que
espírito é, ao mesmo tempo, um explicar-se está morta a vida, quebrada sua mola íntima.
e realizar-se da liberdade, justamente por €, por aquilo que se refere ao ideal, provariam
meio da síntese dos opostos. Tal liberdade grande embaraço com o convite de enunciar o
do espírito, portanto, realiza -se através ideal que substituiu, ou poderio substituir, o da
dos contrastes e das oposições. Rssim se liberdade: e também aqui notariam que não
verificou no decorrer da história, e assim se há nenhum outro que se emparelhe com ele,
verificará sempre, sem exceções. nenhum outro que faça o coração do homem
Croce afirma, além disso, a contempo- bater em sua qualidade de homem, nenhum
raneidade da história em todos os seus outro que responda melhor ò própria lei da
momentos. Com efeito, em se u sistema, vida, que é história e lhe deve por isso corres­
toda forma e momento de história é sempre ponder um ideal no qual a liberdade seja aceita
história que, conhecendo-se, s e revive e se ® respeitada e posta em condição de produzir
realiza no presente do espírito. obras sempre mais altas.
O s trechos que aqui reproduzimos ilus­
tram bem estes dois pontos. c. Os exemplos da história que pareceriam negar
o domínio da liberdade
são uma confirmação disso
Sem dúvida, ao opor às legiões dos
que pensam diversamente ou diversamente
1. fl história como história da liberdade falam estas proposições apodíticas, estamos
bem conscientes de que elas sõo justamente
o. fl liberdade como eterna formadora daquelas que podem fazer sorrir ou mover a
da história caçoadas contra o filósofo, o qual parece que
Qu® q história ssja história da liberdade caia no mundo como um homem do outro mun­
é um famoso dito d® Hegel, repetido um pouco do, ignaro daquilo que a realidade é, cego e
de ouvido e divulgado em toda a Curopa por surdo às suas duras feições e à sua voz e a
Cousin, Michelet e outros escritores franceses, seus gritos. Também sem se deter sobre acon­
mas que em Hegel e em seus repetidores tem tecimentos e sobre condições contemporâneas
o significado [...] de uma história do primeiro em que, em muitos países, as ordens liberais,
nascimento da liberdade, de seu crescer, de seu que foram a grande aquisição do século XIX e
tornar-se adulta e estar firme nesta alcançada pareceram uma aquisição perpétua, desmoro­
era definitiva, incapaz de ulteriores desen­ naram e em muitos outros alarga-se o desejo
volvimentos (mundo oriental, mundo clássico, desse desmoronamento, toda a história mostra,
mundo germânico = um só livre, alguns livres, com breves intervalos de inquieta, insegura e
todos livres). Com intenção diversa e diverso desordenada liberdade, com raros lampejos de
conteúdo esse dito é pronunciado aqui, não uma felicidade mais entrevista qu® possuída,
para atribuir à história o tema da formação de um amontoar-se de opressões, de invasões
uma liberdade que antes não existia e que um bárbaras, de depredações, de tiranias profa­
dia existirá, mas para afirmar a liberdade como nas e eclesiásticas, de guerras entr® os povos
a eterna formadora da história, sujeito próprio e nos povos, de perseguições, de exílios e de
de toda história. patíbulos. C, com esta visão diante dos olhos,
Como tal, ela é, por um lado, o princípio o dito de que a história é história da liberdade
explicativo do curso histórico e, pelo outro, o soa como uma ironia ou, afirmado seriamente,
ideal moral da humanidade. como uma tolice.
' / setimo
Capitulo ' - O neo-idealism o italiano e o idealismo anglo-am ericano 145
„™™™.

Todavia, a filosofia nõo está no mundo aos poucos verdadeiramente falam os grandes
para deixar-se dominar pela realidade tal filósofos, os grandes poetas, os homens gran­
qual se configura nas imaginações feridas e des, toda qualidade de grandes obras, mesmo
perdidas, mas para interpretá-la, libertando quando as multidões os aclamam e deificam,
as imaginações, flssim, pesquisando e inter­ sempre prontas para abandoná-los por outros
pretando, ela, que bem sabe que o homem ídolos, para fazer barulho ao seu redor e para
que torna escravo o outro homem desperto no exercitar, sob qualquer lema e bandeira, a
outro a consciência de si e o anima à liberdade, natural disposição à cortesania e servilidade;
vê serenamente suceder a períodos de maior e, por isso, por experiência e por meditação,
outros de menor liberdade, porque quanto o homem pensa e diz a si próprio que, se nos
mais estabelecida e não disputada for uma tempos liberais se tem a grata ilusão de gozar
ordem liberal, tanto mais decai para o hábito, de uma rica companhia, e se naqueles não
e, reduzindo para o hábito a consciência vigi­ liberais se tem a oposta e ingrata ilusão de se
lante de si próprio e a prontidão da defesa, encontrar em solidão ou em quase solidão, ilu­
se dá lugar a uma vichiono repetição daquilo sória era certamente a primeira crença otimista,
que se acreditava que nõo iria mais reaparecer mas, por sorte, ilusória é também a segunda,
no mundo, e que por sua vez abrirá um novo pessimista.
curso. Vê, por exemplo, as democracias e as
repúblicas, como as da Grécia no século IV ou d. fl vida da liberdade
de Roma no I, em que a liberdade permanecia como formadora da história sempre foi
e sempre será vido de combatente
nas formas institucionais mas não mais na alma
e no costume, perder também aquelas formas, £stas, e tantas outras coisas semelhantes
como aquele que não soube ajudar-se e que em a estas, ela vê, e daí conclui que se a história
vão procurou se endireitar com bons conselhos não é exatamente um idílio, também não é
é abandonado à áspera correção que a vido uma "tragédia de horrores1', mas é um droma
dele fará. Vê a Itália, exausta e derrotado, em que todas as ações, todos os personagens,
depositada pelos bárbaros na tumba com sua todos os componentes do coro são, em sentido
pomposa veste de imperatriz, ressurgir, como aristotélico, "medíocres", culpáveis-inculpáveis,
diz o poeta, ágil marinheira em suas repúblicos mistos de bem e de mal, e, todavia, o pensa­
do Tirreno e do Adriático. Vê os reis absolutos, mento diretivo nela é sempre o bem, ao qual
que abateram as liberdades do baronato e do o mal acaba por servir como estímulo; a obra é
clero, tornadas privilégios, e que superpuseram da liberdade que sempre se esforça para res­
a todos o seu governo, exercido por meio de tabelecer, e sempre restabelece, as condições
uma burocracia e sustentado por um exército sociais e políticas de mais intensa liberdade.
próprio, preparar uma bem mais larga e mais Quem desejar em breve persuadir-se de que
útil participação dos povos na liberdade política; a liberdade não pode viver diversamente de
e um Napoleõo, também ele destruidor de uma como foi vivida e viverá sempre na história,
liberdade tal apenas de aparêncio e de nome e de vida perigosa e combatente, pense por
à qual retirou aparência e nome, arrasador de um instante em um mundo de liberdade sem
povos sob seu domínio, deixar atrás de si estes contrastes, sem ameaças e sem opressões de
mesmos povos ávidos de liberdade e tornados nenhum tipo; e logo delo se desviará apavo­
mais espertos do que verdadeiramente eram, rado, como da imagem, pior que a da morte,
e ativos para implantar, como pouco depois do náusea infinita.
fizeram em toda a Europa, seus institutos. £la
a vê, também nos tempos mais sombrios e gra­ 2. Toda história é sempre
ves, fremir nos versos dos poetas e afirmar-se "história contemporânea"
nas páginas dos pensadores e arder solitária
e soberba em alguns homens, não assimiláveis a. Há sempre uma necessidade prótica
pelo mundo que os envolve, como naquele como fundamento de todo juízo histórico
amigo que Vittorio Rlfieri descobriu na Siena R necessidade prática, que está no fundo
setecentista e grõ-ducal, "espírito libérrimo" de todo juízo histórico, confere a toda história
nascido "em dura prisão", onde estava "como o caráter de “história contemporânea", porque,
leão que dorme", e para o qual ele escreveu o por mais remotos e remotíssimos que pareçam
diálogo da virtude desconhecida. €la a vê em cronologicamente os fotos que nela entram,
todos os tempos, tanto nos propícios como nos ela é, na realidade, história sempre referida
adversos, genuína, robusta e consciente apenas à necessidade e à situação presente, na qual
nos espíritos de poucos, embora apenas esses aq u e le s fatos propagam suas vibrações.
depois historicamente contam, como apenas Rssim, se eu, para inclinar-me e recusar-me a
Primeira parte - ? \ filosofia d o s é c u lo X J X o » s é c u lo X X

um oto de expiação, recolho-me mentalmente possíveis, como se observo em certos processos


poro entender do que se troto, isto é, como doentios dos quais saímos desmemoriados e
se tenho formado e transformado este insti­ diferentes, como criaturas de fato novos e e s­
tuto ou este sentimento até assumir um puro tranhas ao mundo ao qual antes pertencíamos.
significado moral, também o bode expiatório Perceba-se de passagem que esta verdade da
dos hebreus e os múltiplos ritos mágicos dos história entrevista, que não nos é dada a partir
povos primitivos soo parte do drama presente do exterior, mas vive em nós, foi um dos motivos
de minha olmo neste momento e, fazendo que extraviaram os filósofos do era romântico
expressamente ou de forma subentendida a (Fichte e outros) na teoria da história o ser
história deles, faço o da situação em que me construída a priori, graças à pura e abstrata
encontro. lógico e fora de toda documentação; embora
depois eles, contradizendo-se (Hegel e outros),
b. O homem é um microcosmo e tornando extrínseca a síntese, requeressem
não em sentido naturalista, uma colaboração entre o pretenso o priori que
mas em sentido histórico,
vinha de um lado, e o pretenso a posteriori, ou
como compêndio da história universal
o documento, que sobrevinha do outro.
Da mesma forma, a condição presente de
minha alma, sendo a matéria, é por isso mesmo c. R historiografia deve representar a vida vivida
o documento do juízo histórico, o documento em forma de conhecimento
vivo que carrego em mim mesmo. Aqueles que Se a necessidade prática e o estado
se chamam, no uso historiográfico, documentos, de espírito em que se exprime é a matéria
escritos esculpidos ou figurados ou aprisionados necessária, mas apenas a matéria bruta da
nos fonógrafos ou talvez existentes em objetos historiografia, o conhecimento histórico não
naturais, esqueletos ou fósseis, não operam pode, como também nenhum conhecimento
como tais, e tais não são, a não ser enquanto pode, consistir em presumida reprodução ou
estimulam e reafirmam em mim recordações cópia daquele estado de espírito, pela razão
de estados de espírito que estão em mim; e elementar que esta seria uma duplicação de
em todo outro aspecto restam tintas coloridas, fato inútil e, portanto, estranha à atividade
papel, pedras, discos de metal ou de vinil, e espiritual, que não tem, entre suas produções,
similares, sem nenhuma eficácia psíquica. Se em a do inútil. Daí se esclarece a vaidade, que
mim não existe, ainda que dormente, o senti­ existe nos programas (nos programas, mas
mento da caridade cristã ou do salvação pela não nos fotos, que naturalmente saem diferen­
fé ou da honra cavalheiresca ou do radicalismo tes) daqueles historiógrafos que se propõem
jacobino ou da reverência pela velha tradição, apresentar a vida vivida em sua imediação,
em vão me passarão sob os olhos as páginas fl historiografia, ao contrário, deve superar a
dos evangelhos e das epístolas paulinas, e vida vivida para representá-la em forma de
da epopéia carolíngia, e dos discursos que se conhecimento. Além do mais, e mal significando
faziam na Convenção nacional, e das líricas, dos sua intenção, os escritores que crêem trabalhar
dramas e romances que expressaram a nostal­ como historiógrafos, tendem a transformar a
gia do século XIX pela Idade Média. O homem matéria passional em obra de poesia. Mas,
é um microcosmo, não em sentido naturalista, embora efetivamente a matéria passional
mas em sentido histórico, compêndio da história posse sempre mais ou menos rapidamente
universal. € parte bem pequena nos parecerão através da esfera da fantasia e da poesia (e,
no complexo os documentos, aqueles, assim quando aí se demora e se estende, nasce a
especificamente chamados pelos pesquisa­ poesia propriamente dita, a poesia em sentido
dores, quando se pensar em todos os outros específico), a historiografia não é fantasia,
documentos sobre os quais continuamente nos mas pensamento. Como pensamento, ela não
apoiamos, como a língua que falamos, os cos­ dá apenas marco universal à imagem, como
tumes que nos são familiares, as intuições e os a poesia o faz, mas liga intelectivamente a
raciocínios feitos em nós quase que de forma imagem ao universal, distinguindo e unificando
instintiva, as experiências que carregamos, ao mesmo tempo no juízo.
por assim dizer, em nosso organismo. Sem tais B. Croce,
documentos específicos, bastante mais difíceis, R história como pensam ento
ou até proibitivas, seriam nossas lembranças e como ação.
históricas; mas, sem estes, seriam de fato im­
147
Capítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o italiano e o id ea lism o a n g lo -a m e H c a n o ......

G e n t il e

3 Os problemas essenciais do atualismo e suas implicações

Não é Fácil encontrar nos escritos dos FilósoFos algumas páginas em que sintética e clara­
mente eles resumam seu próprio pensamento. Gentile, Felizmente, as deixou em sua Introdução
à filosofia, onde, justamente na parte introdutória, ele apresenta um mapa dos problemas em
torno dos quais gira todo o seu sistema e evidencia igualmente uma série de implicações que
eles têm.
Depois de ter indicado as origens do atualismo na reviravolta impressa no pensamento
FilosóFico da FilosoFia alemã que vai de Hant a Hegel, e ter salientado alguns precedentes na
FilosoFia renascentista e do ressurgimento italiano, Gentile toma distância em relação a Croce,
salientando como sua própria FilosoFia tenha parecido afím com a de Croce mais do que de
Fato era.
Passa entõo a apresentar o princípio básico de sua FilosoFia, que é o d o imanência absoluta,
entendida não no sentido tradicional, mas como imanência de todo o real no ato do pensar,
além do qual nõo há nada de independente.
Cste ato do pensar nõo deve ser conFundido com o ato do pensar como, por exemplo, o
do motor imóvel de Aristóteles ou da metaFísica tradicional, que, segundo Gentile, são meras
abstrações, mas é o ato de pensar que coincide com nosso pensamento.
Ém nós, enquanto somos ato ou atividade do pensar, está compreendida a totalidade do
real: nõo somos nós (como pensamento) que estamos contidos no espaço, mas é o espaço
que está contido em nosso pensamento; e, assim, nõo somos nós que estamos na natureza,
mas é a natureza que está em nós (como pensamento).
Csta atividade do pensamento, além de infinita (porque inclui todos as coisas) é livre,
enquanto autoridade suprema no julgor e distinguir verdadeiro e Falso, bem e mal.
Cxatamente na dimensão do ato do pensar descobrimos dentro de nossa humanidade
empírica uma humanidade profunda, que é aquela por meio do qual procuramos os outros e
con-sentímos com os outros. Por esta humanidade profunda nós somos os outros e os outros
são nós, em sentido global.
O pensamento atual é tudo, e o próprio Cu particular é, em certo sentido, uma abstração,
porque, como tudo o mais, está imanente no ato espiritual.
O método do atualismo é a dialética do novo sentido, ou seja, nõo a dialética das realida­
des pensadas, como o era na metaFísica dos antigos, mas a dialética da atividade pensante.
O próprio Hegel, que havia reFormado a dialética antiga, deve se r posteriormente reFormodo,
porque, com suas distinções sistemáticas de idéia, natureza e espírito (com suas implicações) e
com suo concepção da lógica, permaneceu condicionado por uma série de resíduos da dialética
do pensado. £ a própria reForma da dialética hegeliano operada por Croce, segundo Gentile,
deve serpuriFicada, eliminando os "distintos", fí unidade do pensamento em sua subjetividade,
como autoconceito, que absorve a totalidade do real exatamente nesta sua atividade, constitui
o coração da dialética do atualismo.
Gentile aFirma, portanto, que o atualismo tem um caráter proFundamente religioso, enquan­
to, dialeticomente, no ato do pensamento concretamente resolve os problemas que o religião
sem pre se colocou. O mal é um momento dialético do bem; o erro é um momento dialético
do verdadeiro; o bem é aquilo que concretamente se Faz, desobrochando de seu contrário;
o verdadeiro é aquilo que concretamente se realiza, superando seu contrário. O espírito é a
natureza que s e torna espírito.
O corpo nõo é apenas aquilo que está dentro de nossa pele. Também cada membro de
nosso corpo p od e se r pensado isoladamente do resto do corpo, mas apenas por abstração;
separado do corpo perderia qualquer signiFicado e valor. Rssim é para nosso corpo, o qual é
correlotivo a todo o resto do mundo Físico. Dizer corpo é como dizer corpo do universo.
Primeira parte - A fi lo s o j- ia d o s é c u lo X ^ ? X ao s é c u lo X X

O auto-sentir-se do corpo é o germe de onde derivo todo o vido espiritual. Fl experiência é


tão-somente o desenvolvimento sistemático deste princípio. Dizer que o experiência é medida
de todas os coisas significa dizer que o pensamento é a medido de todos os coisas; a medida
do pensamento é o próprio pensamento.
Fl próprio história, como toda a realidade sem exceção, é atividade do pensamento pen­
sante, e neste sentido toda história é história contemporânea, e o possodo está eternamente
presente na atividade pensante.
O atualismo nõo p od e de modo nenhum se confundir com o solipsismo. Fl redução ao Eu
do sólipsista consiste na redução de tudo ao Eu empírico particular. Fio contrário, o Eu de que
fala o atualismo é princípio da progressiva universalização do próprio Eu; é posição de limites
para superá-los, e, portanto, é retirada de qualquer limite.
O atualismo está, conforme Gentile, bem longe de ser anticristõo e ateu. físsim como Cristo
é homem-Deus, também o atualismo quer ser síntese de humano e divino; o atualista, bem longe
de negar Deus, repete como os espíritos mais religiosos do passado: "Deus está em nós".

1. Origem da filosofia atualista se definir “método da imanência absoluta",


profundamente diversa da imanência de que se
fl filosofia atualista historicamente relacio­
fala em outras filosofias, antigas e modernas, e
na-se com a filosofia alemã de Kant a Hegel,
também contemporâneas, fl todas elas falta o
diretamente e por meio dos seguidores, exposi­
conceito da subjetividade irredutível da realida­
tores e críticos que os pensadores alemães da­
de, à qual se encontra imanente o princípio ou
quele período tiveram na Itália durante o século
a medida da própria realidade. Aristóteles foi
XIX. Mas liga-se também à filosofia italiana da
imanentista em relação ao idealismo abstrato
Renascença (Telésio, Bruno, Campanella), ao
de Platão, cuja idéia na filosofia aristotélica
grande filósofo napolitano Giambattista Vico,
torna-se forma da própria natureza - forma
e aos renovadores do pensamento especulati­
inseparavelmente ligada à matéria, na síntese
vo italiano da era do Ressurgimento nacional:
do indivíduo concreto, do qual a idéia, seu
Galluppi, Rosmini e Gioberti.
princípio e medida, não pode ser separada, a
Os primeiros escritos em que a filosofia
não ser por abstração. Mas o indivíduo natural
atualista começa a se delinear remontam aos
paro a filosofia atualista é ele próprio alguma
últimos anos do século XIX. 61a foi se desen­
coisa de transcendente: porque em concreto
volvendo nos primeiros decênios deste século,
não é concebível fora daquela relação em que
paralelam ente à "filosofia do espírito" de
ele, objeto de experiência, está indissoluvel-
Benedetto Croce. Minha assídua colaboração
mente ligado com o sujeito desta, no ato do
com o revista que em 1 9 0 3 foi fundada por
pensamento mediante o qual a experiência se
Croce, fí Crítico, e que por muitos anos na Itália
realiza. Todo o realismo, até o criticismo kan-
chefiou vitoriosamente uma luta tenaz contra
tiano, permanece sobre o terreno desta trans­
as tendências positivistas, naturalistas e racio­
cendência. Nele permanece toda filosofia que,
nal istas do pensamento e da cultura, e o fato
mesmo que reduza tudo à experiência, entenda
de que a "filosofia do espírito" amadureceu
esta como algo de objetivo, e não como o ato
cerca de um decênio antes, desde o princípio
do Cu pensante enquanto pensa, realizando a
atraindo sobre si a atenção universal, fizeram
realidade do próprio Cu: uma realidade fora da
aparecer geralmente as duas filosofias muito
qual não é dado pensar nada de independente
mais afins do que a princípio não pareciam.
e existente em si.
Mas as divergências se tornaram naturalmente
Cste é o ponto firme ao qual se liga o
mais claras passo a passo que os princípios das
idealismo atual. A única realidade sólida, que
duas filosofias expuseram suas conseqüências.
me é dado afirmar, e com a qual deve por isso
€ hoje, também por circunstâncias contingentes,
ligar-se toda realidade que eu possa pensar,
que aqui não ocorre lembrar, aparecem muito
é a mesma que pensa, a qual se realiza e é
mais as divergências do que as afinidades e os
assim uma realidade, apenas no ato que se
motivos que têm certamente em comum.
pensa. Portanto, a imanência de tudo o que é
pensável ao ato do pensar; ou, tout court, ao
2. O princípio da filosofia atualista
ato; pois de atual, por aquilo que se disse, não
fl filosofia atualista é assim chamada a há mais que o pensar em ato; e tudo aquilo
partir do método que propugna e que poderia que se pode pensar como diverso deste ato,
Capítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o italii a n o e o i d eali: cmglo- a m e f ic a n o

atua-se 0m concroto enquanto é imon0nt0 ao espaço e no tempo, eu compreendo a natureza


próprio oto. dentro de mim. € dentro de mim ela deixa de
ser aquela natureza espacial e temporal, que é
3. O ato como logos concreto mecanismo, e se espiritualiza e se atua também
ela na vida concreto do pensamento.
O oto cte qu0 s© fala nesta filosofia, por­
tanto, nõo é confundível com o ato (energheia) 5. Liberdade do €u
d© Aristóteles 0 da filosofia escolástica. O ato
oristotélico é tombém p0nsamento puro, mas Por meio desta sua infinidade, à qual tudo
um pensamento transcendente, pressuposto a 0 imanente, o €u é livre. €, sendo livre, pode
partir de nosso pensamento. O ato do filosofia querer e conhecer 0 escolher sempre entre
atualista coincide justamente com nosso pensa­ os opostos contraditórios em que se polariza
mento; e, para esta filosofia, o ato oristotélico, o mundo do espírito, que tem valor porque
em sua transcendência, é simplesmente uma se contrapõe a seu oposto. Liberdade não
abstração, e não um ato: é logos, mas um lo­ compete à natureza em seu aspecto abstrato;
gos abstrato, cuja concretitude se tem apenas mas não compete a nenhuma forma do logos
no logos concreto, que é o pensamento que abstrato: nem à verdade lógico, nem à verda­
atualm0nt0 s0 penso. de de fato, nem à lei, que se representa ao
Não só o ato oristotélico, mas também querer com a necessidade coarctante de umo
a idéia platônico, e em geral toda realidade força natural: a nada enfim que, contrapondo-
metafísica ou empírica, que realisticamente se no pensamento ao sujeito quo pensa o sou
se pressuponha do pensamento, é, segundo objeto, o define e encerra em certos termos,
o atualismo, logos abstrato, que tem um sen­ e fixa, e priva daquela vida que é própria do
tido apenas na atualidade do logos concroto. realidade espiritual atual. Não é livre o homem
Mesmo que este se represente e tem razão enquanto se considera e representa como parte
do representar-se como independente do do natureza, um ser que ocupa certo espaço
Sujeito, existente em si, coisa em si, estranho por certo tempo, que nasceu e que morrerá, e
ao pensamento e condição do pensamento, que é limitado em todo sentido, e na própria
Sempre se trata de logos obstrato, cujos deter­ sociedade é circundado por elementos que nõo
minações são sempre um produto da atividade estão em seu poder e agem sobre ele. Contu­
originária do Cu que, no pensamento, se atua do, por mais que ele se mova nessa ordem de
como logos concreto. Todo realismo, por isso, idéias, e ponha em relevo os próprios limites,
tem razão; com a condição, porém, de que e minimize e empobreça suas próprias possibi­
não se pretenda esgotar todos as condições lidades, e entre em suspeita de que a própria
do pensar. As quais, de fato, restará sempre liberdade não é mais que uma ilusão, e que ele
0 acrescentar, a fim de que seja superada a nada verdadeiramente pode nem para dominar
transcendência e olcançada a terra firme do o mundo e nem mesmo paro conhecê-lo, ele,
realidade efetiva, oquela que será o condição no auge do desespero, não poderá deixar de
fundamental de todo pensabilidode, a ativi­ reencontrar e reafirmar no fundo de si mesmo
dade pensante. a desconhecido liberdade, sem a qual não lhe
seria possível pensar o tanto que ele pensa.
Hoc unum seio, me nihil scire} Mas, ainda que
4. Infinidade do €u
limitado, este saber importa à capacidade de
A atividade pensante, contudo, poro conhecer a verdade; a qual não seria tal se não
sustentar a carga infinita e a infinita respon­ se distinguisse do falso, e não se concebesse
sabilidade de toda realidade pensável, que é e não se percebesse nesta sua distinção, que
pensável apenas enquanto é imanente ao mun­ é oposição. O que não serio possível sem li­
do espiritual que tal atividade realiza, não deve berdade, ou seja, infinidade de quem concebe
mais ser concebida materialmente, como atuan­ e percebe, julgando aquilo que é verdadeiro,
do no tempo e no espaço. Tudo está em mim, e pronunciando este juízo com autoridade
enquanto tenho em mim o tempo e o espaço suprema, contra a qual não é admissível um
como ordens de tudo aquilo que se representa apelo. Autoridade que não poderia competir
na experiência. Portanto, longe de estar contido evidentemente a quem estivesse encerrado
no espaço e no tempo, eu contenho o espaço e dentro de determinados limites.
o tempo. 6 longe de eu próprio estar compreen­
dido, como vulgarmente se pensa, apoiando-se
em uma imaginação falaz, na natureza que é
o sistema de tudo aquilo que é ordenado no '"Sei apenas isto: que não sei nada".
___ Primeira parte - / \ filosofia do século X^X íu ■século XX

6. Humanidade profunda falando e manifestando-se, sai fora de si, se


objetiva e se desnaturo, deixando de ser aquilo
Portanto, dentro da humanidade empírica
que ele é por si mesmo. Cie é enquanto se rea­
todo homem possui uma humanidade profun­
liza; e, realizando-se, se manifesta. € por isso
da, que está na base de todo o seu ser, e de
o pensamento atual é tudo; e fora do pensa­
todo ser que ele possa distinguir de si. flquela
humanidade por meio da qual ele tem consciên­ mento atual o próprio €u é uma abstração a ser
relegada ao grande armário das excogitações
cia de si, e pensa e fala e quer; e, pensando,
metafísicas: entidades puramente racionais e
pensa a si mesmo e ao restante; e pouco a
nõo subsistentes. O £u não é alma-substância;
pouco se forma um mundo, que sempre mais
não é uma coisa, a mais nobre das coisas. €le
se enriquece de particulares e sempre mais se
é tudo porque não é nada. Sempre que houver
esforça por conceber como um todo harmônico,
alguma coisa, é um espírito determinado: uma
como um organismo de partes que se buscam
personalidade que se atua em um mundo seu;
reciprocamente, ligadas por uma unidade inte­
uma poesia, uma ação, uma palavra, um siste­
rior. Mas a este mundo está sempre presente
ma de pensamento. Mas esse mundo é real,
ele próprio, que o represento e procura reduzi-
enquanto a poesia está se compondo, a ação
lo sempre mais conforme às suas exigências,
se realiza, a palavra se pronuncia, o pensamen­
aos seus desejos, à sua própria natureza: ele
to se desenvolve e se torna sistema, fl poesia
que diante de si tem não só o mundo, mos
não existia, e nõo existirá; ela existe sempre
a si próprio, o um em relação com o outro, e
enquanto se compõe, ou, lendo-se, torna-se
ambos postos nesta relação por ele, artífice e
a compor. Deixada aí, ela cai no nada. Sua
ao mesmo tempo guardião, ator e expectador,
realidade é um presente que jamais se põe no
infatigável e insone.
passado e que não teme futuro. € eterna, com
Não é esta a humanidade que sustenta o
aquela imanência absoluta do oto espiritual, em
indivíduo particular, mas associa os indivíduos
que não há momentos sucessivos do tempo que
no pensamento, quero dizer, no sentir e no
não sejam co-presentes e simultâneos.
pensar, no poetar e no agir, na civilização que é
a vida do espírito, ligando em um só homem as
gerações e as estirpes diversas; em um homem, 8. O método do atualismo: a dialética
que não conhece obstáculos a não ser para Tudo isso quer dizer que a atualidade eter­
superá-los, não conhece mistérios a nõo ser na (sem passado e sem futuro) do espírito não
para desvendó-los, não conhece mal a não ser é concebível por meio da lógica da identidade
para emendá-lo, não conhece escravidão o não própria da velha metafísica da substância, e
ser para dela se libertar, não conhece misérias sim apenas com a dialética. Com a dialética,
a não ser para socorrê-las, nõo conhece dores bem entendido, tal qual a filosofia moderna
a não ser para medicá-las? Cssa humanidade a pode conceber: conceito não do ser objeto
profunda é a que à primeira vista não percebe­ do pensamento, mas do pensamento em sua
mos nem nos outros nem em nós: mas é aquela própria subjetividade: a rigor, não conceito,
pela qual é possível que um procure o outro, mas autoconceito (não BegriFF, mas Selbstbe-
e lhe dirija a palavra, e lhe estenda a mão. é griff). Se o pensamento como ato é o princípio
aquela que quando uma verdade nos ilumina do atualismo, seu método é a dialética. Não
a mente, e um sentimento se apodera de nós dialética platônico, nem hegeliano: mas uma
e nos comove e nos inspira, a nossa língua é, dialética novo e mais propriamente dialética,
como diz o poeta italiano, como que por si pró­ que é uma reforma da dialética hegeliano. fl
pria movida; e não sabemos não falar e nossa qual já se contrapunha à platônica porque esta
alma se expande, e diz, e canta; e ainda que era uma dialética estática das idéias pensadas
ninguém de fato nos escute, pode-se dizer que (ou, em todo caso, objeto do pensamento), e
uma multidão invisível esteja ao nosso redor Hegel em sua Ciência da lógica considerou a
para escutar: vivos, mortos, não nascidos, uma dialética, ao contrário, como o movimento das
multidão anônima de juizes que não têm rosto, idéias pensantes, ou categorias com as quais
mas pensam e sentem como nós, e estão pro­ o pensamento pensa o seu objeto.
priamente em nós, mais ainda, propriamente, Dialética do pensado, portanto, e dialética
são nós mesmos; e nos escutam, porque somos do pensar: esta dialética do pensar, cujo pro­
nós que, falando, nos escutamos. blema começou a ser colocado por Fichte, mas
foi Hegel que em primeiro lugar enfrentou com
7. fl atualidade do €u
Csta humanidade não é um Deus abscon-
ditus ,2 não é um €u secreto inacessível que, 2"Deus escondido”.
151
Capítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o ital iano e o id ea lism o a n g lo -a m e r ic a n o _____

plena consciência da necessidade de uma nova fato da experiência. Oro, uma coerente con­
lógica o ser contraposta à analítica aristotélica, cepção religiosa do mundo deve ser otimista,
ou seja, à lógica do platonismo ossim como de sem negar a dor e o mal e o erro; deve ser
toda a antiga filosofia, Hegel se propôs o pro­ idealista sem suprimir a realidade com todos
blema, mas não o resolveu, porque, a começar os seus defeitos, deve ser espiritualista sem
das primeiras categorias (ser, não-ser, devir) fechar os olhos sobre a natureza e sobre as
deixou-se escapar a absoluta objetividade do férreas leis de seu mecanismo. Mas todas as
pensar, e trotou sua lógica como movimento dos filosofias e todas as religiões, apesar de todo
idéias que se pensam e, por isso, se devem esforço idealista e espiritual, estão destinadas
definir. Movimento absurdo, porque as idéias a falir, ou por abandonar-se a um dualismo ab­
se pensam, ou sejo, se definem enquanto se fe­ surdo ou por fechar-se em um abstrato e, por
cham no círculo de seus termos, e permanecem isso, insatisfatório e, portanto, ele próprio um
paradas. £ essa é a razão pela qual as idéias monismo absurdo, caso se limitem à lógica da
platônicas são de fato todas ligadas entre si e, identidade, pela qual os opostos se excluem, e
por isso, obrigam o pensamento subjetivo que onde o ser não é o não-ser, e vice-versa.
queira pensar uma delas, a pensar também Com a lógica da identidade as antinomias
todas as outras, e a mover-se, por isso, de uma da vida moral e da consciência religiosa, do
para outra sem descanso, mas elas permane­ mundo e do homem, tornam-se insolúveis.
cem paradas, como o estádio sobre o qual os 6 não há fé na liberdade humana, na razão
ginastas correm. humana, na potência do ideal ou na graça de
Permanecem paradas, mas são logos abs­ Deus que possa salvar o homem e, finalmente,
trato, que é preciso reconduzir ao pensamento levantá-lo em sua vida, todo pervodida, como
real e atual. Que é enquanto não é, e não está ela é, pelo pensamento, que é pesquisa e dú­
jamais parado, e sempre se move; e de fato vida, e perpétua interrogação para quem a vida
define, e se espelha no objeto definido, mas é resposta. Somos ou não somos imortais? Há
para voltar a definir de outra forma, sempre uma verdade para nós? C verdadeiramente há
mois adequadamente à necessidade incessante lugar no mundo para a virtude? C há um Deus
em cuja satisfação se encontra seu realizar-se. que governa tudo? € vale a pena esta vida
O pensamento é dialético por este seu devir, que nos custa viver? Cstas perguntas voltam
que é, não pensado unidade de ser e não-ser, sempre a surgir e ressurgir do fundo do cora­
conceito em que se ensimesma o conceito do ção humano, e por isso os homens pensam e
ser e o conceito oposto do não-ser, mas é uni­ têm necessidade da filosofia, a fim de que os
dade realizada do próprio ser do pensamento conforte para viver com uma resposta qualquer.
com seu real não-ser. Nós podemos, de foto, Cada um que vive procura como pode uma res­
definir o conceito desta unidade; mas nossa posta para si. Mas uma resposta lógica, firme,
definição não é uma imagem, ou um duplicado razoável, não é possível se o pensamento não
lógico de uma realidade transcendente em re­ se retrai dos objetos que vez por vez pensa e
lação ao ato lógico: é todo um e uma só coisa solda em férrea corrente como o sistema de seu
com este ato.3 mundo e não se volta sobre si próprio, onde
toda realidade tem sua raiz e de onde retira,
9. Caráter religioso da concepção dialética por isso, sua vida: onde o ser ainda não é, mas
vem a ser, não sendo o princípio, imediatamen­
Na dialética do pensamento encontra-se te: onde saber é aprender, e toda vez, mesmo
a resposta às milhares de dúvidas céticas e às que já se saiba, aprender do início; onde o
milhares de perguntas angustiantes, que sur­ bem não é aquilo que foi feito, e já existe, mas
gem da experiência e dos contrastes da vida: aquilo que não se fez e, por isso, se faz; onde
contrastes entre o homem e a natureza, a vida a alegria não é o que se gozou, mas aquela
e o morte, o ideal e a realidade, o prazer e a que brota de seu contrário, e não se detém,
dor, a ciência e o mistério, o bem e o mal etc. caindo na monotonia da náusea, que estagna
Todos os antigos problemas que foram o tor­ e gera a morte, mas se renova e reconquista
mento da consciência religiosa e da vida morol como novo anseio e nova fadiga e, por isso,
de todos os homens, as ânsias da teodicéia por meio de novas dores; onde, finalmente, o
como o cruz da filosofia, fl concepção atualista espírito arde eternamente, e na combustão fla-
é uma concepção espiritualista e profundamente
religiosa, embora sua religiosidade não possa
satisfazer quem está habituado a conceber o ! Cf. dois escritos meus no vol. fí reform o d o dialético
divino como um transcendente abstrato, ou a hegeliana, Principoto, Messina, 19232, pp. 1-74 e 209-240.
confundir o ato do pensamento com o simples [Noto de Gentile]
Primeira parte - j A f i lo s o f i a d o s é c u lo X^X a o s é c u lo XX

meja e cintila, destruindo toda escória pesada, 11. espiritualidade da natureza


inerte e morta. Aí, dizer ser é dizer não-ser: aí, Dizer ''corpo", portanto, é dizer todo o
saber é ignorância, bem é mal, alegria é dor, universo corpóreo, em que se nasce e se mor­
conquista é fadiga, paz é guerra, e o espírito re, do qual surgem e no qual recaem todos os
é natureza que se torna espírito. indivíduos viventes particulares. Mas o que é
este corpo? Onde e como se tem o sentido dele
10. O corpo e o unidade do natureza e se aprende a conhecê-lo? Cu disse antes: no
primeiro princípio de nosso sentir, quando ainda
A natureza, a natureza real primordial, o não sentimos nada de particular, mas sentimos
eterna geradora da qual falava Bruno, antes de porque nos sentimos: e somos o sentido de
ser aquela que nós esquematizamos no espaço nós mesmos, aquele mesmo que depois se
e no tempo, e analisamos em todos as suas desenvolverá sempre mais como consciência
formas por meio da experiência e do constru­ de nós (autoconsciência). Aí, no primeiro e
ção do intelecto, é aquela natureza profundo originário germe de nosso vida espiritual, há
que encontramos em nosso corpo e por meio já um princípio que sente e alguma coisa que
de nosso corpo: nõo como aquele conjunto de é sentida (e o corpo é justamente aquilo que
abstrações, em que para pensá-la a decompõe, é sentido). Há uma síntese destes dois termos,
esmiúço, pulveriza e torna impalpável o pensa­ cada um dos quais existe para o outro; e juntos
mento, sistematizando-a no logos abstrato, mas realizam o ato do sentir, a síntese fora da qual
aquela unidade não multiplicável que é a fonte seria vão procurar tanto o princípio que sente
inexaurível infinita de toda realidade múltiplo como o termo sentido.
que se desdobra no espaço e no tempo. Cia
é -antes de tudo aquele corpo que cada um
12. fl experiência como medida do real
de nós, em sua consciência de si, sente como
o objeto primeiro e irredutível de sua própria Êsta imanência originária da essência
consciência: aquele corpo por meio do qual do corpo no núcleo primitivo do espírito, esto
sentimos e acolhemos na consciência toda qua­ originária e fundamental espiritualidade e
lidade das coisas externas e todo particular que idealidade do corpo e, portanto, em geral, da
é possível individuar em todo o universo físico. naturezo, é o razão pela qual o pensamento
O qual se percebe porque está em relação com encontro no experiência imediota a medida
nosso corpo, que é objeto imediato e direto de da existência que é próprio da realidade, que
nosso sentir; mas está nesta relação em sua não seja abstrata construção do pensamento.
totalidade, nada se podendo pensar no mundo Não que o pensamento tenha sua medida fora
físico que não seja correlativo a todo o resto de si próprio, em uma fantástica realidade
do próprio mundo físico. Assim, é evidente que externa, com a qual ele se ponha em relação
nossa cabeça cairia no chão se não estivesse por meio da experiência sensível. A medida do
sustentada pelo tronco, e este pelas pernas; pensamento está no próprio pensamento. Mas
mas também é evidente que suprimindo um só o pensamento como sujeito, autoconsciência, é
grão de areia no fundo do oceano não só desa­ antes de tudo sentido de si, alma de um corpo,
bariam os grãos contíguos por ele sustentados, isto é, do corpo, da natureza. C tudo aquilo que
mas na verdade o universo ruiria. Vivemos em não se liga a este princípio do pensamento e,
nosso planeta; mas este planeta faz parte de por isso, não se realiza como desenvolvimento
um sistema, fora do qual não teríamos sobre deste princípio, é como um edifício que se cons­
a terra aquela luz e aquele calor com os quais trua sem os fundamentos necessários e que, por
nela vivemos. C tudo se mantém no universo; e isso, se encontre destinado a desmoronar.
nosso corpo, como efetivamente o sentimos, é O pensamento é sempre um círculo, cuja
um centro de uma circunferência infinita: é um linha não se afasta de seu ponto inicial a não
elemento vivo de um organismo vivo, o qual ser para aí voltar e aí se fechar. Onde o fim não
está presente e age e se faz sentir em cada coincide com o princípio, meu pensamento não é
um de seus elementos. Considerar como nosso pensamento meu. Não me reencontro mais. Isso
corpo apenas aquela parte da naturezo física não tem valor. l\lão é verdade. O ponto em que
que está dentro de nossa pele é uma abstração o círculo do pensamento se fecha e se firma, é
análogo àquela pela qual, olhando nossa mão, o €u que pensa e se realiza no pensamento;
podemos também fixá-la, abstraindo de fato do de modo que aquele mesmo pensamento que
braço ao qual elo está necessariamente ligada, ele produz (o conceito) seja a concreta e efe­
e tirada do qual ela, por isso, estaria privada tiva existência do próprio €u (autoconceito). fi
não só da força que tem, mas de sua própria personalidade de todo homem está, portanto,
estrutura material. em sua obra.
15 3
Capítulo sétimo - O n e o -id e a lis m o italiano e o id ea lism o a n g lo -a m e r ic a n o

13. fl atualidade da história íntima que é a própria essência do pensamento


como consciência de si que pensa. Uma energia que nega e supera o
limite, porque o limite é aquele que ela põe a si
Nõo só o natureza, quando não se olhe a
mesma à medida que se determina, fl começar
partir do exterior e em abstrato, mas a própria
pelo sentido de si, razão pela qual, sentindo o
história conflui toda e desemboca na atualidade
€u, se desdobra nos dois termos do sujeito e do
do pensamento que pensa. Também a história
objeto do sentir, e como sujeito ocaba, portanto,
é autoconceito. 0 a não é consciência que o
sendo enfrentado e, por conseguinte, limitado
homem tenha do operar de espíritos diversos
pelo objeto, o €u manifesta sua energia infinita,
daquele que ele atua em sua consciência histó­
pondo e negando incessantemente seu limite.
rica, ou dos ações de homens que não existem
Tal negação não é destruição. O limite,
mais, ou do passado, que é mera idealidade
por ser negado, como é entendido por nós,
em que o pensamento distingue o presente
deve ser conservado; mas deve interiorizar-se
que existe, e que só é real, e conta, e é eter­
na consciência da infinidade do sujeito. Amar
no, daquilo que não existe e não conta e por
o próximo de modo cristão é negar os outros
isso não é presente, e é expulso do mundo do
como limite externo de nossa personalidade;
eterno (onde estó tudo aquilo que conta do
mas não é, por isso, suprimir a personalidade
ponto de vista do espírito), fl história é, como
de outrem, mas entendê-la e senti-la como
todo pensamento, consciência de si. € por isso
interna em nossa própria personalidade mais
foi dito que toda história é história contempo­
profundamente concebida. Tal é o significado da
rânea, pois reflete por meio da representação
conversão imanente do logos abstrato no logos
de eventos e paixões passadas os problemas,
concreto, de que se trata na lógica atualista.
os interesses e a mentalidade do historiador e
de seu tempo.
Os assim chamados achados e documen­ 15. Atualismo e cristianismo
tos do passado são elementos da cultura, ou
Finalmente, esta filosofia tão radicalmente
seja, da vida intelectual presente; e se reavivam
imanentista seria uma filosofia atéia? A acu­
por causa do interesse que os faz buscar, criticar,
sação mais insistente hoje é feita a ela pelos
interpretar; e falam e se fazem valer por meio do
pensadores católicos e tradicionalistas, que não
trabalho historiográfico, que é um pensamento
conseguem perceber a distinção que existe na
atual, que não se explica a não ser adquirindo
unidade do ato espiritual. € são eles os verda­
sempre mais aguda e couta consciência de
deiros ateus na sede da filosofia. Porque, se
si. Os mortos estariam bem mortos e seriam
realmente se tivesse de conceber a separação
cancelados do quadro do realidade, que é a
absurda entre o ser divino e o humano, toda
divina realidade, se não existissem os vivos,
relação entre os dois termos se tornaria de fato
que falam deles, evocando-os novamente em
impossível. € eu penso firmemente que esta
seu coração e ressuscitando-os na atmosfera
atitude dos pensadores seja atéia, porque
viva de seu próprio espírito.
anticristã. Cstou de fato convencido de que o
cristianismo, com seu dogma central do Homem-
14. Crítica do solipsismo. Deus, tem este significado especulativo: que,
O limite do €u e a negação do limite como fundamento da distinção necessária entre
Seria isto solipsismo? Não. O Gu do solip- Deus e o homem, se deve pôr uma unidade, que
sista é um €u particular e negativo que, por isso, nõo pode ser mais que a unidade do espírito;
pode sentir sua solidão e a impossibilidade de que será espírito humano enquanto espírito
sair dela. Por isso o solipsista é egoísta. Nega divino, e será espírito divino enquanto também
o bem, assim como nega a verdade. Mas seu espírito humano. Quem tremer e se amedron­
6u é negativo porque é idêntico a si mesmo, ou tar ao acolher no espírito esto consciência da
seja, coisa, e não espírito. Sua negatividade é responsabilidade infinita em que o homem se
a negatividade do átomo, que é sempre o mes­ ograva, reconhecendo e sentindo Deus em si
mo, incapaz de qualquer mudança; que pode mesmo, nõo é cristão e - se o cristianismo não
absolutamente excluir de si os outros átomos e é mais que uma revelação, isto é, uma cons­
ser reciprocamente por eles excluído, justamen­ ciência mais aberta que o homem adquire de
te porque não tem a força de negar a si mesmo sua próprio natureza espiritual - não é sequer
e mudar. Mas a dialética do €u, assim como homem. Quero dizer homem consciente de sua
é concebida pelo atualismo, é o princípio da humanidade. £ como poderá ele sentir-se livre
universalização progressiva e infinita do próprio e, por isso, capaz de reconhecer e cumprir um
€u, o qual em tal sentido é infinito, e nada exclui dever, e de aprender uma verdade, e de entrar
de si. Todo limite é superável por esta energia finalmente no reino do espírito, se ele no fundo
154
Pnmeira parte - jA filo sofia d o s é c u lo XJX a o sé c u lo XX

de seu próprio ser nõo sente recolher em si e socorrer a capacidade espontânea do espírito,
pulsor o história, o universo, o infinito, tudo? que não seja um auxílio querido e valorizado
Poderia ele com as forças limitadas, que em e, por isso, livremente procurado e atuado. G
qualquer momento de sua existência ele de fato nada, finalmente, nos vem do exterior que aju­
percebe que possui, enfrentar, como ele faz e de a saúde da alma, o vigor da inteligência, a
deve fazer, o problema da vida e da morte, que potência do querer.
se lhe apresenta terrível com a potência inelutá­ Por isso, o atualista não nega Deus, mas,
vel das leis da natureza? Todavia, se ele deve junto com os místicos e com os espíritos mais
viver uma vida espiritual, é preciso que triunfe religiosos que existiram no mundo, repete: Deus
desta lei, e tanto no modo da arte como no da in nobis e st4
moralidade, com a açõo e com o pensamento, G. Gentile,
participe da vida das coisas imortais, que são introdução à Filosofia.
divinas e eternas. 6 nisso participe por si, livre­
mente; pois não há auxílio externo que possa 4"Deus está em nós”.
O CONTRIBUTO
DA ESPANHA
À FILOSOFIA
DO SÉCULO XX

“A vida é o critério para julgara verdade”.


Miguel de Unamuno

“O homem de ciência deve continuamente tentar


duvidar de suas próprias verdades”.
José Ortega y Gasset
Capítulo oitavo

Miguel de Unamuno e o sentimento trágico da vida


Capítulo nono

José Ortega y Gasset


e o diagnóstico filosófico da civilização ocidental
O a p í+ u lo o it a v o

M iguel de LÁncxm uno


e o senfimenfo +^a0Íco da vida

• Miguel de Unamuno (1864-1936) realiza seus estudos em Salamanca, e desta


prestigiosa Universidade será professor e também reitor.
Em 1902 publica Em torno do casticismo, livro sobre a essência da Espanha, em
que o autor desencadeia seu primeiro assalto significativo contra o intelectualismo,
contra os discursos de intelectuais e políticos que deixam o povo indiferente. A
idéia que estes têm da Espanha é uma decoração intelectualista,
um "fantasma" do qual foge a vida real das pessoas, de todos "os Contra o
que se levantam com o sol e vão para seus campos para continuar intelectualismo
sua tarefa obscura e silenciosa, cotidiana e eterna". 5 J'2

• A batalha contra o intelectualismo não pára aqui; Unamuno vai mais a fundo
e na Vida de Dom Quixote e de Sancho (1905) afirma que a vida é inexaurível para
a inteligência, que "não é a inteligência, mas a vontade que constrói o mundo
para nós". Eis, então, que da "peste do bom senso" é possível se
curar apenas por obra da "autêntica loucura" que, ao contrário, a loucura
"está faltando para nós". Dom Quixote, portanto, torna-se louco heróica
"unicamente por maturidade de espírito". contra
A vida é enriquecida pela loucura heróica e não pela miséria a miséria
do bom senso; pelos livros de cavalaria e não pelas propostas do bom senso
presunçosas do intelectualismo, do cientismo e do racionalismo
supersimplificador de tanta filosofia.
Unamuno se pergunta: o cavaleiro de Cristo que foi Inácio de Loyola foi de
fa to tão diferente de Quixote? A aventura de um não pode ser considerada em
paralelo com a aventura do outro? Para Unamuno existe apenas o homem concreto,
e o homem concreto "está acima de todas as razões". Logo: "a verdade racional
e a vida estão em oposição"; e ainda: "Eu não me submeto à razão, e me rebelo
contra ela".

• "Tudo aquilo que é vital é irracional, enquanto tudo aquilo que é racional
é antivital": isso é escrito por Unamuno em Do sentimento trágico da vida (1913).
A vida "não aceita fórmulas"; aliás, a ciência existe porque sus­
tentada por uma "insustentável" fé na razão. o Deus
E devemos ainda dizer que o desprezo que Unamuno ali- de Unamuno
menta diante das construções intelectualistas e doutrinais, ele o é ° "Deus vivo"
estende também ao racionalismo teológico da tradição tomista. de Pascal
O Deus de Unamuno não é o Deus dos filósofos e dos teólogos; e . ,
é, muito mais, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, como para _[er ^ í aa
Pascal e Kierkegaard: é um Deus que fala ao coração e não a ’
conclusão de uma série de silogismos.
Segunda parte - O c o n t r ib u t o d a < z L s p a n i\ a à j- ilo s o f ia d o s é c u Io XX

1 A vida e a s ot>ras De 1910 é Minha religião e outros en­


saios. Segue-se uma longa série de ensaios,
coletados depois em mais volumes. A obra
filosófica mais representativa de Unamuno
Miguel de Unamuno nasceu em 29 de — D o sentimento trágico da vida — é de
setembro de 1864 em Bilbao, onde freqüen­ 1913. Este livro representa um dos testemu­
tou a escola primária e a secundária. Os es­ nhos mais lúcidos do desmoronamento do
tudos universitários naquele tempo duravam otimismo filosófico do fim do século, da crise
na Espanha apenas três anos. E, assim, em da intelectualidade positivista e idealista.
1884, com vinte anos, Unamuno já era dou­ Em 1914, tendo-se declarado a favor
tor em língua basca. Depois de sete anos de dos Aliados, Unamuno é destituído do cargo
ensino privado em Bilbao, em 1891 Unamu­ de reitor; todavia, conserva a cátedra até
no é assumido como professor de grego na 1924. Em 1923, com um golpe de Estado,
Universidade de Salamanca. Desta prestigio­ sobe ao poder o ditador Primo de Rivera.
sa Universidade Unamuno foi eleito reitor Unamuno, em uma conferência em Bilbao,
em 1901. 1901 é também o ano em que ele critica tanto o rei Afonso XIII como o di­
passa do ensino do grego para o de literatura tador. Foi assim que, em fevereiro de 1924,
espanhola. N o entanto, em 1902, publica ele é preso e levado ao exílio nas Canárias,
sua primeira obra — escrita alguns anos na ilha de Fuerteventura. Daí ele foge. E, na
antes — Em torno do casticismo. A vida de França, em Paris, vive os dias mais amargos
Dom Quixote e de Sancho aparece em 1905. do exílio, e escreve A agonia do cristianismo.

Miguel de Unamuno
(1864-1936)
foi um dos mais originais
pensadores
dos inícios do século X X ,
crítico agudo das construções
intelectualistas e doutrinárias:
para ele a vida
“não aceita fórm ulas".
Capitulo oitavo - 7V\>gwe! d e L \y \a n \tA V \o e o sen tim en to tr á g ic o d a vid a

De Paris Unamuno se transfere a Hen- humana que existe” ; e aqueles que falam de
daye, na costa basca, diante de Bilbao. Em regeneração da Espanha se esquecem jus­
Hendaye Unamuno permanece até 1930, tamente do destino individual dos homens
isto é, até a queda do ditador Primo de Rive- individuais.
ra. Volta para Salamanca e lhe é devolvida a Unamuno olha o povo de carne e osso.
cátedra. Em 1931 é proclamada a República, Esse povo não é um fantasma intelectua­
e Unamuno é nomeado deputado. Em 1936 lista ou uma reconstrução historiográfica.
explode a guerra civil espanhola: Unamuno E gente que trabalha, pensa, sofre e canta
não esconde sua escolha franquista. suas canções sobre determinado pedaço de
A morte o colhe em 31 de dezembro terra, sob determinado céu e diante deste
do mesmo ano de 1936. Comemorando mar. É gente que vive na tradição. E aquilo
Unamuno, Ortega y Gasset dirá: “Unamuno que Unamuno procura é a tradição espa­
sempre esteve na companhia da morte, sua nhola eterna: eterna porque humana, mais
perene amiga-inimiga. Sua vida inteira e que espanhola. E, então, que sentido possui
toda sua filosofia foram [...] uma meditatio tentar regenerá-la, europeizá-la? Um povo
mortis. A nossos olhos uma inspiração desse é atrasado? Pois bem, responde Unamuno,
tipo triunfa em todo lugar, mas, em todo “ deixemos que os outros corram; também
caso, devemos dizer que Unamuno foi o seu eles, antes ou depois, se deterão” . O povo
precursor!” . passa sua vida na ignorância? Pois bem, o
povo “ sabe tantas coisas que os homens
públicos ignoram” e “ a ignorância é uma
ciência divina: é mais que ciência — é sa­
2 A essência da Êspanka
bedoria” . E ainda: o camponês de Toboso
— pergunta-se Unamuno — não vive e não
morre mais feliz que um operário de Nova
Em torno do casticismo é de 1895. Este York? “ M alditas as vantagens de um pro­
livro sobre a essência da Espanha é uma gresso que obriga-nos a nos dilacerar de afã,
decidida e lúcida tomada de posição contra de trabalho, de ciência!”
os literatos que representam a “ geração de Em torno do casticismo é o primeiro
1898” , que, desiludidos pela perda de Cuba, assalto significativo de Unamuno contra o
falavam a todo instante da “ regeneração da intelectualismo, contra imagens que pre­
Espanha” . Estes discursos de intelectuais e tendem passar por realidade, contra idéias
políticos, todavia, deixam o povo indiferen­ de Deus que querem substituir os ímpetos
te. E isso ocorre — nota Unamuno — porque místicos dos fiéis, contra tantos, para além
o povo goza de “ saúde cristã” . Unamuno das estatísticas e dos gráficos econômicos
denuncia, com aguda previsão, os perigos e sociológicos, que não conseguem ver a
do nacionalismo; mas ele não se deixa se­ fome e os sofrimentos de multidões de seres
quer fascinar pela idéia que os intelectuais humanos.
e políticos fazem da Espanha: tal idéia é
uma decoração intelectualista da qual foge
a vida real do povo. A Espanha não é “ um
fantasm a” sobre uma tela pintada ou uma IP a r a liber+ar-se
visão de origem livresca. A Espanha é a vida do^domínio dos fidalgos
de milhões e milhões de homens e não aquilo da r a z ã o "
que dela contam os jornais ou que dela diz
a história: “ os jornais não dizem nada da
vida silenciosa de milhões de homens sem
história que, em qualquer hora do dia e em N a Vida de Dom Quixote e de Sancho
todo lugar, em todos os países do mundo, se Unamuno escreve: “ N ão é a inteligência,
levantam com o sol e vão para seus campos mas a vontade que constrói para nós o mun­
a fim de continuar sua tarefa obscura e si­ do e, ao velho aforismo escolástico ‘nihil
lenciosa, quotidiana e eterna [...] que lança volitum quin praecognitum’, ou seja, ‘nada
as bases sobre as quais se levantam as ondas se quer que não seja antes conhecido’, é pre­
da história” . O mais caro para Unamuno ciso fazer uma correção, lendo assim: ‘nihil
não é uma idéia da Espanha ou a retomada cognitum quin praevolitum’, ou seja: ‘nada
da história da Espanha. Para Unamuno se conhece que antes não seja querido’ ” .
conta apenas “ o destino individual de cada A vida, afinal de contas, é inexaurível para a
homem” , uma vez que esta é “ a coisa mais inteligência. E há mais: a razão vem depois
Segunda püYte - O contributo d a ér^spanka à filosofia d o s é c u lo X X

da ação; a inteligência segue a vontade. “ É coisas que põem a vida em risco e, portanto,
a vida — sentencia Unamuno — o critério nelas existe a verdade. E, por outro lado,
para julgar a verdade, e não a concordân­ aquele cavaleiro de Cristo que foi Inácio de
cia lógica, que é apenas critério de razão. Loyola foi tão diferente de Dom Quixote?
Se minha fé me leva a criar ou a aumentar A aventura de um não pode ser vista em
a vida, para que pretender outra prova de paralelo com a aventura do outro?
minha fé? Quando as matemáticas servem
apenas para matar, também as matemáticas
se tornam mentira. Se, enquanto caminhais
morrendo de sede, vedes uma miragem que y\ vida
vos representa vivamente aquilo que cha­
" n ã o a c e i f a fó c m u la s
mamos de água, e vos lançais a beber e vos
sentis renascidos porque a sede se aplacou,
aquela miragem era verdade, e verdade era
aquela água. Verdade é tudo aquilo que, Nem o humano nem a humanidade
impelindo-nos a agir de um ou de outro têm uma existência real. Para Unamuno, o
modo, faz com que o resultado de nossa que existe é apenas o homem concreto. E a
ação resulte conforme nosso propósito” . existência, a vida do homem concreto não
Contra “ a peste do bom senso que encontra justificação, “ está além de todas as
nos mantém a todos sufocados e compri­ razões” . Lemos em D o sentimento trágico
m idos” , Unamuno sente que dessa peste da vida que “ tudo aquilo que é vital é irra­
podemos ser curados apenas por “ aquela cional, enquanto tudo aquilo que é racional
autêntica loucura” que, ao contrário, “ nos é antivital” . A vida “ não aceita fórmulas” ; o
está faltando” . Em uma época dominada homem concreto “ é absolutamente instável,
pelo cientificismo positivista, ele, escreven­ absolutamente individual” ; não é capturável
do a seu “ bom am igo” sobre a necessidade por esta ou por aquela definição teórica. Por
de libertar o sepulcro de Dom Quixote, conseguinte, afirma Unamuno, “ eu não me
afirma que é preciso desconfiar da ciência: submeto à razão, e me revolto contra ela” .
“ deve bastar-te a tua fé. Tua fé será tua arte; O que a ciência pode dizer sobre o sentido
tua fé será tua ciência” . E ainda é preciso da vida, sobre nossas mais profundas ne­
desconfiar das letras “ que degeneram em cessidades volitivas, sobre nossa fome de
literatura, naquela nojenta literatura que é imortalidade? E justamente por isso que, a
a aliada natural de todas as escravidões e de seu ver, “ a verdade racional e a vida estão em
todas as misérias” . E eis então que aparece oposição” . Unamuno, em outras palavras,
em todo seu esplendor e valor “ a santa “ considera que o pensamento, a razão e o
cruzada” que impele a resgatar o sepulcro intelecto fossem demasiado restritos para
de Dom Quixote “ das mãos dos sabichões, compreender clara, total e seguramente as
dos padres e dos barbeiros, dos duques e coisas que procuram abraçar. Nem por isso
dos eclesiásticos que dele se apoderaram ” . renunciou a eles: tornou-os “ trágicos” e
O sepulcro do “ cavaleiro da loucura” deve “ agônicos” , ou seja, conforme a etimologia
ser, portanto, resgatado “ do domínio dos grega, “ em luta” (R. M. Albérès). A vida,
fidalgos da razão” . a existência vai além de qualquer tentativa
Dom Quixote, diz Unamuno, torna- da razão de dar-se conta. Um pensamen­
se louco “ unicamente por maturidade de to demasiadamente seguro de si constrói
espírito” . Ele alimentou sua alma com os unicamente dogmas vãos. Se, ao contrário,
empreendimentos daqueles valorosos ca­ alguém está consciente dos limites da razão,
valeiros que, “ desapegando-se da vida que de suas presunções e de seus erros, do fato
passa, aspiram à glória que permanece” . Foi de que existem realidades que a ultrapassam,
o desejo de glória e de imortalidade que os então teremos pensadores que, em contínua
impeliu a agir. E, desse modo, ele, perdendo vigilância, se encontrarão em luta contra si
seu próprio juízo, nos deixou “ um eterno próprios, contra as pretensões de seu pró­
exemplo de generosidade espiritual” . Per­ prio intelecto. E, portanto, para Unamuno,
gunta-se Unamuno: “ com o juízo no lugar, “ o verdadeiro intelectual é [...] aquele que ja­
teria ele sido tão heróico?” A loucura herói­ mais está satisfeito consigo mesmo, nem com
ca contra a miséria do bom senso; os livros os outros. A noção de ‘trágico’ se opõe à de
de cavalaria contra as pretensões do inte- certeza e de comodidade” (R. M. Albérès).
lectualismo cientificista e do racionalismo Com tais premissas é fácil compreender
supersimplificador das filosofias: são estas as a desconfiança de Unamuno em relação aos
161
C a p i t u l o o i t a v o - AAiguel d e ÍA n a m u n o e o sen tim en to tr á g ic o d a vid a

sistemas filosóficos criados por maníacos do vale mais que todas as provas racionais.
desejosos de reduzir o todo a matéria ou a E a descoberta da morte, a incapacidade de
idéia ou a força ou a espírito. A verdade, resignar-se a abandonar a vida, é afinal esse
diz Unamuno, é que nossos desejos, nossas sentimento trágico da vida, que leva o ho­
volições, nossos afetos, nossos sentimentos, mem “ a gerar o Deus vivo” . E é justamente a
nossas angústias vêm antes da inteligência, insistência sobre a imortalidade o traço pelo
não nascem da inteligência: as doutrinas fi­ qual Unamuno mais aprecia o catolicismo,
losóficas são tentativas de justificar depois, a apesar do racionalismo da escolástica: o
posteriori, nossa conduta e os aspectos mais eixo do protestantismo é a justificação; o
importantes da vida. A própria ciência não é do catolicismo é a esperança.
um valor diante do qual devamos nos ajoe­ “ Ninguém — escreve Unamuno em
lhar. Por trás da ciência existe a fé na razão; Minha religião e outros ensaios — conse­
e “ a fé na razão está destinada a aparecer, guiu me convencer por meio de argumentos
no plano racional, tão insustentável quanto racionais a respeito da existência de Deus,
qualquer outra fé” . E, depois, “ a ciência nem de sua inexistência” . E os raciocínios
existe unicamente na consciência pessoal, e dos ateus lhe parecem até “ mais superficiais
graças a ela” . Em outras palavras, existem e mais fúteis” do que os de seus adversários.
filósofos e cientistas que criam, e mudam O problema de Deus é inadiável. N ão é pos­
idéias: instrumentos nas urgências das lutas sível voltar-lhe as costas, como o agnóstico, e
interiores que atormentam as consciências dizer: “N ão sei. É verdade — afirma Unamu­
dos indivíduos. |,É5,3 i no — que talvez jamais poderei saber, mas
quero saber. Quero, e isso me basta!” .
Cristão porque percebia em seu co­
ração “ uma forte tendência para o cristia­
lÁ nam iA no1.
nism o” , Unamuno declarava considerar
um “P a s c a l e s p a n K o l" cristão “ todo aquele que invocar com res­
e n c o n fr a peito e amor o nome de Cristo” . O Deus
de Unamuno, portanto, é um Deus que
o “ i ^ m ã o // K . i e r k e g a a r d
fala ao coração; é o Deus de Abraão, de
Isaac e de Jacó, e não o Deus dos filósofos
e dos teólogos. E o Deus vivo de Pascal e
O desprezo que Unamuno nutre em re­ de Kierkegaard. E, justamente na Agonia do
lação às construções doutrinárias se lança cristianismo, Unamuno percebe em si pró­
também contra o racionalismo teológico prio “ um Pascal espanhol” ; assim como al­
tom ista. Esta filosofia — escreve ainda guns anos antes havia chamado de “ irm ão”
Unamuno em D o sentimento trágico da vida aquele pensador que vivera “ em perpétuo
— pôde triunfar pelo fato de que “ a fé, isto desespero interior” , que foi Kierkegaard.
é, a vida, não se sentia mais segura de si” . E como vida e luta — e, portanto, agonia
A existência de Deus não é, para Unamuno, — Unamuno concebe o cristianismo: este
o resultado de uma prova racional. Para ele não é pensamento, é vida, é fé que morre e
Deus existe porque há em nós vontade inex- ressuscita sem cessar dentro da consciência
tirpável de sobrevivência: este desejo profun­ humana.
162
..■■ •* Segunda pãfte - O con lH b u to d a & s p a n \ \ a à filo sofia d o s é c u lo X X

Aqui entre nós já não se compreende mais


sequer a loucura. Até do louco dizem que, se
U namuno o for, deve ter uma vantagem ou motivo para
isso. O motivo oculto da loucura é doravante um
fato consumado para todos estes miseráveis.
Se nosso senhor Dom Quixote ressuscitasse e
Dl A vido voi além da "rozõo" voltasse a esta sua Cspanha, certamente se
afanariam em busca de uma secreta intenção
pora seus nobres desatinos. Se alguém denun­
€m uma época dominada p elo cientifí- cia um abuso, se persegue a injustiça, se açoita
cismo positivista, Unamuno se rebela contra a vilania, os escravos se perguntam: "O que ele
"a lógica suja" 0 a "peste do bom senso que estará procurando? Ao que aspira?". Por vezes
nos mantém a todos sufocados e refreados". crêem e dizem que o faz para que lhe tapem a
€ tudo isso porque a vida é inesgotável para boca, enchendo-a de ouro; outras vezes, que
a inteligência, "é a vida o critério para julgar é pelos vis sentimentos e as baixas paixões
a verdade; nõo a concordância lógica, que é de um invejoso vingativo; outras ainda, que o
apenas critério de rozõo". 6, de modo ainda faz unicamente para fazer as pessoas falarem
mais paradoxal: "Se, enquanto caminhais e andarem na boca de todos, satisfazendo sua
morrendo de sede, vedes uma miragem que própria vanglória; outras ainda, que o faz para
vos representa ao vivo aquilo que chamamos distrair-se e para passar o tempo, por esporte.
d e água, e vos lançais a b eb er e vos sentis Pena, porém, que sejam tão poucos os que se
renascidos porque a sed e se aplacou, aquela deleitam com tal esportel
miragem era verdade, e verdade era aquela Olha e observa. Diante de um ato qual­
água". R "loucura" de que Unamuno tece o quer de generosidade, de heroísmo, de pura
elogio mais apaixonado significa a abun­ loucura, a todos estes sabichões estúpidos,
dância transbordante da vida em relação a párocos e barbeiros de nossos dias, não vem
uma encolhida e dogmático rozõo de estilo à mente mais que uma pergunta: "Por que ele
positivista. fará isso?" 6 logo que consideram ter desco­
berto o motivo daquele ato - seja ou não o
motivo que supõem -, eles se dizem: "8ah! G e
fez isso por esta ou por aquela rozõo". Pelo
Tu me perguntas, meu bom amigo, se próprio fato de que uma açõo tem uma razão
conheço o modo de desencadear um delírio, de ser e eles a conhecem, a coisa perdeu todo
uma vertigem, uma loucura qualquer sobre estas valor. Para esse objetivo lhes serve o lógica, a
pobres folhas ordenadas e tranqüilas que nas­ lógica suja... [...]
cem, comem, dormem, se reproduzem e morrem. "Por que faz isso?" Por acaso Sancho per­
"Nõo haverá um meio", me dizes, "de renovar guntou alguma vez por que dom Quixote fazia
a epidemia dos flagelantes ou dos convulsio- as coisas que fazia?
nários?" C me falas depois do fatídico milênio. Mas voltemos à questão, à tua pergun­
Também eu, como tu, experimento com ta, à tua preocupação: "Que tipo de loucura
freqüência a nostalgia da Idade Média; como coletiva poderíamos inculcar nestas pobres
tu, também eu gostaria de viver entre os e s­ multidões? Que tipo de delírio?"
pasmos do ano mil. Se fosse possível fazer Tu próprio te aproximaste da solução, em
crer que em determinado dia, por exemplo, dia uma das cartas em que me assaltaste com as
2 de maio de 1 9 0 8 , no centenário do grito de perguntas. Gscrevias: “Não crês que se poderia
independência, a Cspanha deve acabar para tentar uma nova cruzada?"
sempre, que naquele dia seriamos divididos Pois bem, sim. Creio que se possa tentara
como cordeiros, penso que dia 3 de maio seria santa cruzada de ir resgatar o sepulcro de Dom
o maior de toda a nossa história, a aurora de Quixote das mãos dos sabichões, dos padres e
uma nova vida. dos barbeiros, dos duques e dos cônegos que
fl que hoje vivemos é uma miséria, uma dele se apossaram. Creio que se possa tentar
completa miséria, fl ninguém importa mais nada a santa cruzada de ir resgatar o sepulcro dos
de nada. 6 quando alguém procura debater cavaleiros da loucura do domínio dos nobres
isoladamente este ou aquele problema, esta da razão.
ou aquela questõo, logo as pessoas pensam Defenderão, se compreende, aquilo que
que seja apenas uma questõo de trocados, usurparam, e procurarão provar com muitos e
ou certa mania de ostentação e desejo de se bem construídos raciocínios que justamente a
distinguir dos outros. eles tocam a guarda e a defesa daquele sepul­
Capítulo oitavo - M ig u e l d e lA n a m u n o e o sen tim en to tr á g ic o d a vid a

cro. £ o guardam, com efeito, mas apenas para enquanto marchamos?" O quê? Lutar! Lutar, e
que o Cavaleiro não tenha de ressuscitar, com todas as forças!
fl esse tipo de raciocínios é preciso res­ "Como?" Topais com alguém que desem-
ponder com insultos, com pedradas, com gritos bucha idiotices, mas que uma imensa multidão
de paixão, com golpes de lança. Não é preciso ouve de boca aberta? Gritai à multidão: “€s-
pôr-se a discutir com eles. Se tentares racioci­ túpidosl”, e em frente! Cm frente, sempre em
nar em conflito com seus raciocínios, estarás frente! [...]
perdido. [...] 6 se alguém vier te dizer que sabe construir
fl caminho, portanto. 6 cuide bem para pontes e qu® talvez haverá ocasião em que con­
que não entrem no esquadrão sagrado cru­ virá recorrer às suas noções para atravessar um
zados nem sabichões, nem barbeiros, nem rio, manda-o embora! fora com o engenheiro!
padres, nem cônegos, nem duques travestidos fltravessareis os rios a vau ou a nado, mesmo
como tantos Sanchos. Não faças nada para que metade dos cruzados tiver de restar aí,
que te peçam ou não ilhas; teu dever é de afogada. Que o engenheiro vá fazer pontes
expulsá-los quando vierem te perguntar qual em outro lugar! Haverá necessidade disso. Mas
é o itinerário da marcha, quando te falarem do para ir em busca do sepulcro basta a fé para
programa, quando te murmurarem ao ouvido, servir de ponte.
maliciosamente, pedindo-te que lhes digas Se tu, meu caro amigo, queres realizar ple­
em que lugar permanece o sepulcro. Segue namente a tua missão, desconfia da ciência, ou
a estrela. € faz como o cavaleiro: endireita a pelo menos daquelas que se costumam chamar
tortuosidade que encontrares em teu caminho. de “arte" e de "ciência", mas que não são mais
Agora, o que convém agora; aqui, aquele que que pálidas macaquices da arte e da verdadeira
se encontra aqui. ciência, fl ti deve bastar a tua fé. Tua fé será a
Colocai-vos em caminho! Tu me perguntas tua arte; tua fé será a tua ciência.
para onde andais? A estrela o dirá a vás: “Para M. de Unamuno,
o sepulcro!" “Que faremos ao longo do caminho, Vido de Dom Quixote e de Sancho.
(C-ap'di\\o nono

3 ose CVtega y G asset


e o diagnóstico filosófico
da civilização ocidental

• José Ortega y Gasset (1883-1955) é, sem dúvida, o mais significativo filósofo


espanhol do século XX. Formando-se na Alemanha, na escola dos neokantianos
Hermann Cohen e Paul Natorp, Ortega publica em 1914 as Meditações sobre o
Quixote; em 1920, Espanha invertebrada. Em 1923 funda a "Re­
vista do Ocidente" e publica O tema de nosso tempo. Em 1930 a "voz
sai a obra mais famosa e mais difundida de Ortega, A rebelião de advertência"
das massas, obra que - escreve Renato Treves foi para a Europa de A rebelião
"uma voz de advertência". De 1933 é o livro Em torno de Galileu; das massas
de 1940, Idéias e crenças; de 1941, História como sistema. §1

• "Eu sou eu e minha circunstância", escreve Ortega nas Meditações sobre


o Quixote. A circunstância é o ambiente físico e social em que cada um de nós
é jogado desde o nascimento. E, partindo justamente dos problemas que a cir­
cunstância lhe coloca, o homem constrói sua própria existência, tenta realizar o
projeto que escolheu ser. Em poucas palavras: o homem inventa o
homem e - por meio da fantasia, uma força que torna o homem "Eu sou eu
ser que projeta - inventa a cultura e a história. Em todo caso, não e minha^
é a humanidade que age, são apenas os indivíduos que agem na circunstância"
história; e os indivíduos são sempre elementos de uma geração, a -> § 2'3
qual incorpora pessoas que, no mesmo espaço e no mesmo tem ­
po, vivem no mesmo horizonte de expectativas, e devem enfrentar dificuldades e
problemas comuns. E as gerações se distinguem em gerações cumulativas (isto é,
não inovadoras), em gerações polêmicas (as contrárias à tradição), e em gerações
decisivas (as que efetivamente conseguem dar nova configuração à sociedade).

• São os indivíduos que agem. Sem dúvida, o homem é mais do que seu pen­
samento, uma vez que ele é também paixão, medo, desejo, angústia. Todavia,
se quisermos resolver os problemas práticos da "circunstância", necessitaremos
de idéias. E aqui Ortega traça a distinção entre idéias-invenções
(as que produzimos, sustentamos e discutimos) e idéias-crenças idéias
(idéias herdadas do passado, previsíveis, e que confundimos "que tem os"
com a própria realidade; por exemplo, andamos pela rua e evi- e idéias
tamos os edifícios, sem que em nossa mente surja a idéia: "as "que somos"
paredes são impenetráveis"). As idéias-crenças, todavia, não são $ 4~6
imunes de dúvidas, e o mesmo ocorre com as idéias-invenções.
O homem cria idéias, imagina possibilidades, inventa hipóteses; e quando estas
não têm sucesso, ele muda de caminho, aprende dos erros. Os erros cometidos,
individuados e eliminados constituem para o homem um autêntico tesouro: o
tesouro dos erros.

• Em A rebelião das massas Ortega sustenta a tese de que a civilização ocidental


está enferma com a grave doença que é o homem-massa. O homem-massa é um
tipo ideal, um modo de ser que permeia todas as classes; o homem-massa é um
homem irresponsável, um especialista incapaz de enfrentar um problema geral.
Segunda pavte - O c o n t r ib u t o d a í E s p a n k a à f ilo s o f ia d o s é c u lo X X

decidido na rejeição da discussão; é "inerte como a massa". E se


O homem-
massa,
gaba, diz Ortega, desta monstruosa novidade: "o direito de não
o tipo ideal ter razão, a razão da não-razão".
do homem O homem-massa deu as costas aos valores liberais e ao
"inerte individualismo sobre o qual a civilização ocidental cresceu. O
como a massa' fascismo e o bolchevismo são exatam ente movimentos de ho-
^§7 mens-massa muitas vezes guiados por homens cruéis e privados
de cultura.

vida e as o b r a s M arias, funda o Instituto de Humanidades.


Morre em M adri no dia 17 de outubro de
1955.
Albert Camus definiu Ortega como “ o
José Ortega y Gasset nasceu em M a­ maior escritor europeu depois de Nietzs­
dri no dia 9 de maio de 1883. Seu pai era che” . Renato Treves escreveu, a propósito
diretor do jornal de orientação liberal “ El de A rebelião das m assas, que essa obra foi
Imparcial” . Estudou com os jesuítas, e em para a Europa “ uma voz de advertência” .
1898 inscreve-se no Instituto de Estudos Su­ Do ponto de vista teórico — afirma L. In-
periores de Deusto (Bilbao). Sucessivamente fantino — “ o problema de Ortega foi o da
transferiu-se para M adri, onde se laureou
em filosofia em 1904. Entrementes, no ano
anterior, em 1903, conhecera Unamuno. Em
1905, terminando os estudos universitários,
Ortega foi para a Alemanha, onde, antes
se inscreveu na Universidade de Leipzig, e
depois em Berlim. E, sucessivamente, em
M arburgo segue as aulas dos neokantianos
Hermann Cohen e Paul Natorp. Voltando
a M adri — estamos em 1907 —, Ortega
ensina na Escola Superior de Magistério. Em
1910 é nomeado professor de metafísica na
Universidade de Madri. As Meditações sobre
Quixote — “ o primeiro grande ponto de
chegada da reflexão orteguiana” (L. Infanti-
no) — aparecem em 1914. Em 1920 Ortega
publica Espanha invertebrada, e em 1923
O tema de nosso tempo. Ainda em 1923
funda a “ Revista de Ocidente” . Em 1929 o
ditador de Rivera manda prender diversos
estudantes, que haviam se rebelado às ten­
tativas de politização da vida universitária.
Ortega, em protesto, renuncia à cátedra.
N o entanto, em 1930, sai A rebelião das
m assas, obra que obtém vasta ressonância
internacional.
Em 1 9 3 6 exp lo d e a gu erra civil.
Ortega vai para o exílio: Paris, Holanda,
Argentina e depois para Lisboa. Escreve
ensaios de grande importância: A respeito
de Galileu (1933), Idéias e crenças (1940),
H istória como sistema (1941). Em 1946 José Ortega y Gasset (1883-1955) realizou,
Ortega, em meio à consternação de seus na obra A rebelião das massas,
amigos e discípulos, aceita a permissão do um atento diagnóstico da grave doença
governo franquista para voltar à Espanha. (o “ homem-massa ”) que atingiu
Em M adri, junto com seu discípulo Julian a civilização ocidental.
(Zdpítulo nOflO - O ^ e g a y l a s s e i e o d ia g n ó s tic o d a c iv iliz a ç ã o o cid en tal

“ reforma da filosofia” . Ele incansavelmente ção. O homem é o ser condenado a traduzir


repetiu que “ a razão deve ser colocada em a necessidade em liberdade” .
um lugar diferente daquele que a carolice
intelectualista lhe havia atribuído” . E no
campo político — nota L. Pellicani — Or- lg |ll C À e .r a ç õ e . s cumulativas,
tega foi um pensador que longamente lutou
“ para ver realizada uma dem ocracia de ge m çõ e s polêmicas
tipo novo, na qual as liberdades individuais e gera çõ es decisivas
fossem garantidas e efetivas, a riqueza so­
cializada, o nível cultural do homem médio
o mais possível elevado, as aristocracias O homem, porém, não exercita sua
intelectuais e morais numerosas e diversa­ liberdade no vazio, e ele toma suas decisões
mente articuladas” . dentro de instituições com usos aceitos, pa­
péis e expectativas estabelecidos, hierarquias
reconhecidas: usos, papéis, expectativas e
hierarquias selecionados por “ gente” do
O indivíduo
passado e impostos à “ gente” do presente.
e sua^circwnstancia" Em poucas palavras, o destino do homem é
a ação: a ação que, informada por crenças e
idéias, transforma a realidade física e social,
“ Eu sou eu e minha circunstância” . sem que por outro lado o homem alcance um
N essa fórmula Ortega — nas Meditações ponto firme sobre o qual se apoiar. A felici­
sobre o Quixote — encerra sua concepção dade jamais poderá ser posse do homem; o
do homem. E a circunstância não é apenas homem é constitutivamente um ser históri­
o ambiente físico; é também o ambiente co, cuja natureza é sua história, aquilo que
social: “ Todas as coisas e os seres do uni­ se tornou operando. Em suma, “ o homem
verso que nos circunda [...] formam nossa deve livremente projetar-se e autofabricar-se
circunstância” . N o ssa circunstância é o [...]” (A. Savignano).
lugar, o tempo, a sociedade em que cada São sempre e apenas os indivíduos
um de nós é lançado desde o nascimento. que agem; mas toda vida individual é um
Ela se impõe a todo homem como reali­ elemento de uma geração; uma geração
dade física e social estranha, como fonte incorpora pessoas que, dentro do mesmo
perene de preocupações e de problemas. espaço e do mesmo tempo, condividem o
E, procurando resolver estes problemas, o mesmo horizonte de expectativas, dificulda­
homem é forçado a construir sua própria des e problemas. E se existem gerações cu­
existência, a realizar o projeto que escolheu mulativas, ou seja, não inovadoras, também
ser. O homem luta com as dificuldades em existem gerações polêmicas, contrárias ao
que tropeça inventando não só idéias e legado de quem as precedeu. Sem dúvida,
instrumentos, mas também papéis, estilos lembra Ortega, as mudanças coletivas não
de vida: partindo de sua “ circunstância” , o têm em geral tempos breves, a ruptura com
homem inventa o homem, e inventa também o passado freqüentemente é mais aparente
a cultura e a história. que real, e todavia não se exclui a aparição
E realiza isso por meio da fantasia: uma das gerações decisivas, de fato revolucioná­
força que torna o homem ser que projeta, rias, que subvertem tudo e todos, imprimin­
um ser que procura mudar a si mesmo e o do uma configuração nova à coletividade.
ambiente circunstante e que, sem trégua, E, dentro de uma geração, são sempre
põe em confronto os projetos elaborados minorias escolhidas, indivíduos dotados
em seu mundo interior com a situação do de fantasia e de coragem, que impõem a
mundo externo. E a fantasia, portanto, que multidões passivas (massas miméticas) suas
se encontra na base da liberdade do indi­ propostas inovadoras. A história, portanto,
víduo: este inventa sua própria existência, se move. M as seu desenvolvimento não
não é determinado, é continuamente estável. é enquadrável nos esquemas determinís-
Viver é sentirmo-nos obrigados “ a exercitar ticos de filosofias da história como as de
a liberdade, a decidir aquilo que devemos ser Comte, Hegel e M arx. O da história é um
neste mundo” . E é ainda Ortega que fala: “ O desenvolvimento compreensível a partir
sentido da vida consiste em cada um aceitar — quando existe — da ação criativa de
sua própria circunstância inexorável e, ao indivíduos empreendedores, que, sabendo
aceitá-la, convertê-la em sua própria voca­ interpretar as necessidades e expectativas
Segunda parte - O cotrtribu+o d a éÜspanlv* à filosofia d o sé c u lo

das m assas, conseguem transformar suas de nós está em casa e decide sair: ele vai pa­
idéias e costumes. ra a porta, gira a chave para abrir a porta,
desce as escadas. Tudo isso tem o caráter
da deliberação consciente. M as a coisa mais
y \ d ife r e n ç a importante, o pressuposto que lhe permitiu
decidir interveio sem que ele pensasse nisso:
entee //idéias-invenções/ trata-se da crença que fora da soleira existe
e "id é ia s -c re n ç a s /; uma rua. N ós “ vivemos, nos movemos e
existim os” dentro de crenças do gênero.
Assim, Ortega exemplifica ainda: “ Quando
O homem é mais do que seu pensa­ caminhamos pela rua não tentamos passar
mento, pois ele é também paixão, medo, através dos edifícios: evitamos autom atica­
angústia, desejo. Todavia, escreve Ortega, mente trombar neles, sem que em nossa
“ sem idéias [...] o homem não poderia mente surja necessariamente a idéia: ‘As pare­
viver. Quando Goethe disse ‘no princípio des são impenetráveis’. Em todo momento
era a ação’, dizia uma frase pouco medita­ nossa vida apóia-se sobre um enorme re­
da, porque evidentemente uma ação não é pertório de crenças semelhantes” . ggflPI
possível sem que antes exista o projeto, o
esboço dessa ação” . O homem sem idéias
não existe; às idéias lhe são necessárias para
O tesouro dos erros
resolver os problemas que continuamente
surgem da condição humana, para sair do
abismo das dúvidas. O homem, em poucas
palavras, deve conhecer sua circunstância, Em todo caso, não é que as crenças
se não quiser viver cegamente. sejam certas, absolutamente seguras e ina­
E se a filosofia, para Ortega, é análi­ baláveis. Elas são apenas “ pensamentos
se e clarificação das propostas éticas, dos consolidados” , usados inconscientemente.
mundos de valores e de ideais por meio dos M as não é raro o caso — nota Ortega — que
quais os homens procuram orientar-se na “ na área fundamental de nossa crença se
vida e se agarram a tudo o que para eles vale abram, aqui e ali, como alçapões, enormes
a pena ser vivido, a ciência, por sua vez, é o abismos de dúvidas” . Encontramo-nos sem
instrumento mais eficaz e mais válido que chão sob os pés, em um “ mar de dúvidas” ,
permite ao homem ser informado sobre o quando estamos “ presos entre duas crenças
mundo e sobre o ambiente em que ele vive antagonistas que se chocam mutuamente e
e deve agir. nos fazem balançar de uma para outra” . E
Uma distinção importante, no campo onde uma crença é infringida ou se enfraque­
dos pensam entos, é a que Ortega traça ceu, o homem “ se agarra ao intelecto como
entre crenças e idéias-invenções. “ Idéias- a um salva-vidas” e procura inventar novas
invenções, e nelas incluindo as verdades idéias. As novas idéias, as idéias científicas,
mais rigorosas da ciência, podemos dizer são fantasias que têm sucesso: “ o triângulo e
que as produzimos, que as sustentamos, as o amuleto têm o mesmo pedigree. São filhos
discutimos, as propagamos [...]. São obra da louca da família” , isto é, da fantasia. O
nossa e por isso mesmo pressupõem já nossa homem — escreve Ortega — “ está condena­
vida, que se funda mais sobre idéias-crenças do a ser um narrador” : ele cria suas idéias,
não produzidas por nós, idéias que em geral imagina possibilidades, isto é, inventa hipó­
nós sequer formulamos, que obviamente não teses e teorias, que depois põe à prova, des­
discutimos, não propagamos, não sustenta­ cartando as que resultam erradas e contando
m os” . As crenças são idéias fundamentais, com o fato de que o dos erros cometidos,
herdadas do passado e que constituem, por individuados e eliminados, é um verdadeiro
assim dizer, um patrimônio tácito, previsto: e próprio tesouro. Tudo aquilo que o homem
elas “ não são idéias que temos, mas idéias obteve — salienta Ortega — “ custou milênios
que so m o s” ; são “ o conteúdo de nossa e milênios, e o obteve à força de erros, ou
vida” ; “ nós as confundimos com a própria seja, embarcando em fantasias absurdas que
realidade, constituem nosso mundo e nosso resultaram em becos sem saída dos quais
ser” . Ortega escreve isso no ensaio Idéias e teve de voltar atrás machucado [...]. Hoje,
crenças, onde acrescenta que nós estamos ao menos, sabe que as figuras do mundo que
nas crenças, e que, enquanto “pensamos as imaginava no passado não são a realidade.
idéias, contamos com as crenças” . Alguém À força de errar, está delimitando a área do
Capítulo tlO flO - O r t e g a y ( g a s s e t e o d ia g n ó s tic o d a c iv iliz a ç ã o oc id en ta l 169

êxito possível. D a í a importância de não


esquecer os erros, e isto é história” .
■ O h o m em -m assa. Em A rebelião
das massas, Ortega nos apresenta um
perfil penetrante do "homem-massa".
controle sem fim Este é o personagem típico do tempo
lÉ l» °
d a s teorias científicas de crise. É um "bárbaro vertical", que
recusa "trâmites, normas, cortesia,
hábitos intermediários, justiça, razão"
e que, diante do universo cultural, se
A idéia, na opinião de Ortega, tem ne­ pergunta: "Como é que se criou tanta
cessidade da crítica assim como os pulmões complicação?" O "homem-massa"
têm necessidade do oxigênio. A crítica mais declara caídas as regras da cultura; pe­
forte se tem em geral por meio do confronto sam-lhe demasiadamente e vê em sua
com os fatos. Os fatos da ciência, porém, "abolição a licença para jogar tudo às
não são fatos nus e crus, mas são realidades urtigas e para deixar a libertinagem à
já elaboradas pelas teorias; “ a realidade não solta". Mas de onde vem o "homem-
é dada, não é algo de dado, de presenteado, massa"? O século XIX introduziu uma
inovação radical no destino humano.
mas é uma construção feita pelo homem Criou-se "novo cenário para a existên­
com o material de que dispõe” . Inventamos cia do homem, novo materialmente e
idéias e as provamos sobre fatos que já são civilmente. Três princípios tornaram
interpretações (“ A verdade suprema é a da possível esse mundo novo: a democra­
evidência, mas o valor da evidência é, por cia liberal, a experiência científica e a
sua vez, mera teoria, idéia, combinação in­ industrialização. Os últimos dois po­
telectual” ); aprendemos a partir de nossos dem se resumir em um, a técnica. Ne­
erros. E as idéias ou teorias confirmadas não nhum destes princípios foi descoberto
permanecem fora de dúvida: “ O homem de pelo século XIX; ao contrário, provêm
dos dois séculos anteriores. O erro do
ciência — escreve Ortega no ensaio A respei­ século XIX não consiste em sua desco­
to de Galileu — deve continuamente tentar berta, e sim em sua introdução". No
duvidar de suas próprias verdades. Estas são passado, "também para o rico e para o
verdades do conhecimento, apenas à medida poderoso, o mundo era um âmbito de
que resistem a toda dúvida possível. Vivem, pobreza, dificuldade, perigo". A situa­
portanto, em um conflito permanente com ção de hoje, porém, é bem diferente.
o ceticismo. Tal conflito chama-se prova” . O mundo que desde seu nascimento
Esta, em poucas palavras, é a epistemologia circunda o homem é um mundo rico,
de Ortega, epistemologia que não deve ser que não conhece mais as privações
de um tempo. Mas é justamente aqui
minimamente confundida com a posição que a razão caiu em grande ilusão. Em
pragmática. Sem dúvida, algumas verdades vez de tornar o homem consciente dos
podem resultar úteis, e fatores práticos in­ benefícios e das vantagens da nova
tervém na formação de diversas convicções sociedade, em vez de fazer refletir
nossas; todavia, a verdade não pode “ ser sobre os esforços gigantescos dos
relativa às condições de um sujeito, seja ele quais a nova ordem nasceu e sobre
um indivíduo ou uma espécie. N ão existe os esforços necessários para mantê-lo
uma verdade para um e a verdade para em vida, irresponsavelmente fez acre­
outro” . ditar que qualquer coisa é possível.
Nasceu assim o "homem-massa", um
"menino viciado", cujo "diagrama
psicológico" caracteriza-se pela "livre
expansão de seus desejos vitais, isto é,
o % omem-massa de sua pessoa, e absoluta ingratidão
para com tudo o que tornou possí­
vel a facilidade de sua existência".
Escreveram que “ aquilo que o Contra­
to social de Rousseau foi para o século XVIII
e o Capital de M arx foi para o século X IX ,
A rebelião das m assas de Ortega deveria
sê-lo para o século X X ” . Tal civilização aparece a Ortega doente da
Com este famoso livro Ortega realiza o grave enfermidade que é o homem-massa. O
diagnóstico da civilização ocidental na épo­ crescimento quantitativo da população e um
ca que segue-se à primeira guerra mundial. bem-estar sempre mais largamente difundi-
Segunda parte - O contribu to d a ê s p a n k a à filosofia d o s é c u lo XX

do — fenômenos por trás dos quais há, na para a imposição daquilo que se deseja” . O
opinião de Ortega, o desenvolvimento da homem-massa é um novo bárbaro que “ não
técnica e da indústria — são acompanhados se limita a considerar-se excelente enquanto
pela destruição do valor sobre o qual cresceu é vulgar, mas pretende impor a vulgaridade
a civilização ocidental: o individualismo. como direito e o direito à vulgaridade” (L.
Escreve Ortega: “ Foi aquilo que se Pellicani). Em poucas palavras, escreve Or­
define como individualismo que enriqueceu tega, nosso tempo pode se orgulhar dessa
o mundo e todos os homens do mundo; e monstruosa novidade: “ o direito de não ter
foi essa riqueza que tão fundamentalmente razão, a razão da não-razão” . Novidade esta
multiplicou a planta humana M ais tanto mais clara se considerarmos o fato de
idéias, mais fés, mais estilos artísticos e uma que o homem-massa confiou totalmente sua
experimentação em todo âmbito da vida e vida ao poder público, ao Estado. O fascis­
do pensamento construíram uma civilização mo e o bolchevismo representam exatamen­
que no indivíduo contraposto ao coletivo te movimentos de homens-massa dirigidos
viu seu mais alto valor. O mundo moderno por homens por vezes rudes e privados de
cresceu, em suma, sobre a fé segundo a qualquer cultura. O homem-massa, em ou­
qual “ todo ser humano deve ser livre para tros termos, é um homem que “ deu as costas
preencher seu destino individual e não aos valores da tradição liberal e introduziu
transferível” . Eis, porém, que justamente no na vida pública um estilo de ação baseado
seio da civilização moderna vem à luz um sobre a sistemática agressão e cancelamento
homem-massa, um homem-massa que é tal do outro, sobre a idolatria do chefe caris­
não tanto porque elemento estandardizado mático e sobre o estatismo totalitário” . (L.
de uma m assa, e sim “ porque inerte como Pellicani). O Ocidente pode, em todo caso,
a m assa” . salvar-se, afirma Ortega. E o caminho da
O hom em -m assa não designa uma salvação foi por ele profeticamente indicado
classe social; é um ideal-tipo por meio do na formação dos Estados Unidos da Euro­
qual Ortega delineia “ um modo de ser que pa, ou seja, na criação de uma Europa com
hoje se encontra em todas as classes” . O uma alma antinacionalista, e fundada sobre
homem-massa não percebe que a cultura e princípios liberais, em grau, de um lado, de
as instituições em que vive são realidades contrastar o estatismo, a burocratização e
precárias; é, portanto, um irresponsável; é o intervencionismo destrutivos da criativi­
um especialista incapaz de enfrentar um pro­ dade e da responsabilidade dos indivíduos
blema geral; é decidido em rejeitar a discus­ e, do outro, de satisfazer as exigências fun­
são: “ detesta-se toda forma de convivência damentais da justiça social, uma vez que a
que por si mesma comporta o respeito de liberdade de todos os cidadãos se resolve em
normas objetivas [...]. Suprimem-se todos os uma ficção hipócrita, se depois faltam “ os
trâmites normativos e se corre diretamente meios para exercitá-la e assegurá-la” .
Capítulo tlOflO - O r t e g a y l a s s e i e o d i a g n ó s t i c o d a c i v iliz a ç ã o o c id e n ta l

como tais. Isso significa que toda a nossa “vida


intelectual" vem depois da real ou autêntica e,
O rteg a y G asset em relação a esta, constitui apenas uma dimen­
são virtual ou imaginária. Perguntareis então
qual seria o valor da verdade das idéias, das
teorias. Respondo: a verdade ou a falsidade de
uma idéia é uma questão de "política interior",
K l Como distinguir as "crenças" no âmbito do mundo imaginário de nossas
das "idéias-invenções" idéias. Uma idéia é verdadeira quando corres­
ponde à idéia que temos da realidade. Nossa
idéia da realidade, porém, não coincide com
Rs crenças são os pressupostos de fundo a realidade. £sta é constituída por tudo aquilo
com que olhamos o mundo e vivemos; confia­ sobre o que de fato contamos. Pois bem, não
mos nelas, "estamos em uma crença"; como temos a mínima idéia da maior parte das coisas
na crença de que, saindo d e casa, encontra­ com as quais de fato contamos e, se a temos
mos ainda o caminho. Rs idéias-invenções - graças a um esforço particular de reflexão so­
são, ao contrário, idéias que vêm ò nossa bre nós mesmos -, ela nos é indiferente porque
mente ou na mente de outros, idéias que não é realidade enquanto idéia, mas, ao contrá­
conscientemente construímos juntos e talvez rio, é realidade à medida que, para nós, não é
abandonamos. €m todo caso, tanto umas apenas idéia, mas crença infra-intelectual. [...]
como as outras sõo atacadas p e lo ácido O homem tem clara consciência do fato de
da dúvida. € quando s e abrem as brechas que seu intelecto se exerce apenas sobre maté­
da dúvida, eis que intervém a fantasia para rias discutíveis, que a verdade de suas idéias se
produzir novas idéias como tentativas d e ‘ alimenta de sua incerteza. Por isso, tal verdade
soluções; idéias que depois serão colocadas é constituída pela prova que pretendemos dar
no crivo ou na prova dos Fatos. delas. A idéia tem necessidade da crítica como
"O homem de ciência - afirma Ortega os pulmões de oxigênio, e se sustenta e se afir­
- deve continuamente tentar duvidar d e suas ma apoiando-se em outras idéias que, por sua
próprias verdades. €stos [...] vivem em con­ vez, estão a cavalo em outras ainda, e todas
flito permanente com o ceticismo. Tal conflito dão vida a uma totalidade ou sistema, formam,
denomina-se de prova". portanto, um mundo separado do mundo real,
um mundo composto exclusivamente de idéias
das quais o homem sabe que é o construtor e
€m geral, quando tentamos determinar o responsável. Deste modo, a solidez da idéia
as idéias de um homem ou de uma época, mais estável se reduz à consistência com que
confundimos duas coisas radicalmente diversas: ela consegue estar correlacionada com todas as
as crenças e as idéias-invenções ou “pensamen­ outras. Nada menos, mas também nada mais.
tos". €m termos rigorosos, apenas estas últimas Não é então possível verificar uma idéia como
devem ser chamadas de "idéias". uma moeda, medindo-a diretamente com a
As crenças constituem o fundamento de realidade e fazendo desta uma pedra de com­
nossa vida, o terreno sobre o qual ela se de­ paração. A verdade suprema é a da evidência,
senvolve, dado que nos colocam diante daquilo mas o valor da evidência é, por sua vez, mera
que para nós é a própria realidade. Todo o teoria, idéia, combinação intelectual. [...] De­
nosso comportamento, inclusive o intelectual, pois, a partir do momento que a razão corrige
depende do sistema particular de nossas cren­ sem descanso suas concepções, e ò verdade de
ças autênticas. Nelas “vivemos, nos movemos ontem substitui a de hoje, se nossa fé consistis­
e existimos". 6 é este o motivo pelo qual em se em crer diretamente nas idéias, sua mudança
geral não temos consciência clara delas, nõo comportaria a perda da fé na inteligência. Pois
as pensamos, pois intervém em nossa vida de bem, acontece tudo ao contrário. Nossa fé na
modo latente, como implicações de tudo o que razão suportou imperturbável mente as mudan­
expressamente fazemos ou pensamos. Quando ças mais escandalosas de suas teorias, até as
cremos de fato em algo, não temos a "idéia" mudanças profundas das teorias sobre aquilo
da coisa em que cremos, mas simplesmente que é a razão humana. €stas últimas sem dúvida
“contamos com" ela. influíram sobre a forma daquela fé, mas esta
As idéias, isto é, os pensamentos que continua a agir impavidomente sob diversas
temos, sejam originais ou postiços, ao contrá­ vestes. [...]
rio! não têm valor de realidade em nossa vida. O homem, no fundo, é crédulo, ou melhor,
Intervém nela enquanto pensamentos e apenas o que é o mesmo, a estratificação mais profunda
Segunda pUTte - O c o n t r ib u t o d a é S s p a n k a à f ilp s o jt a d o s é c u lo X X

de nossa vida, a que sustenta e suporta todas da dúvida". Mas o que fazer? fl característica do
as outras, é constituída por crenças. Cstas são, duvidar é não saber o que fazer. O que fazer,
portanto, a terra firme sobre a qual nos afana­ portanto, quando nos acontece justamente não
mos (de passagem, tal metáfora se origina de saber o que fazer porque o mundo - uma parte
uma das crenças mais elementares que possuí­ dele, bem entendido - apresenta-se a nós de
mos, e sem a qual talvez nõo poderíamos viver: modo ambíguo? Com ele não há nada a fazer.
a crença segundo a qual a terra está bem firme, O homem, porém, quando se encontra em tal
apesar dos terremotos que por vezes ocorrem situação,Teafiza um estranho fazer, que quase
em alguns lugares da superfície terrestre. Expe­ não parece um fa?er: começa a pensar. Pensar
rimentemos imaginar que amanhã, por um ou em algo é o menos que pode fazer. Não deve
outro motivo, falte esta crença. Determinar, em sequer mover-se. Quando tudo ao redor vai de
linha de máxima, os traços da radical mudança roldão, resta-lhe, todavia, a possibilidade de
que tal desaparecimento produziria sobre o a s­ meditar sobre aquilo que vai de roldão. O inte­
pecto da vida humana seria um excelente exer­ lecto é o dispositivo mais à mão com o qual o
cício introdutório ao pensamento histórico). homem conta, e está sempre à sua disposição.
Mas na área fundamental de nossas cren­ Quando crê em geral dele não se serve, porque
ças se abrem, cá e lá, como alçapões, enormes é um esforço fatigante, mas, quando cai na
abismos de dúvidas. Cste é o momento de dizer dúvida, aferra-se a ele como a um salva-vidas.
que a dúvida, a verdadeira, aquela que não As brechas de nossas crenças são, portan­
é simplesmente metódica ou intelectual, é um to, o lugar vital em que as idéias realizam sua
modo de ser da crença e pertence, na arquitetu­ intervenção. Graças a elas substituímos sempre
ra da vida, à sua própria estratificação. Também o mundo instável e ambíguo da dúvida, por um
na dúvida se existe, flpenas que neste caso o mundo em que a instabilidade desaparece.
existir tem um aspecto terrível. [...] Como se obtém esse resultado? Fantasiando,
Todas as expressões comuns que se re­ inventando mundos. A idéia é imaginação. Ao
ferem à dúvida nos dizem que nela o homem homem não é dado nenhum mundo já deter­
sente-se submerso em um elemento não sólido, minado. São-lhe dadas apenas as alegrias e
não firme, fl dúvida é uma realidade líquida as dores de sua vida. Guiado por elas, deve
sobre a qual o homem não consegue gusten- inventar o mundo. A maior parte do mundo ele
tar-se e cai. Daí o "encontrar-se em um mar de a herdou dos mais antigos e ela influi sobre sua
dúvidas", que é contraposto ao elemento da vida como um sistema de crenças fixas. Mas
crença: a terra firme. €, insistindo na mesma cada um deve se haver por sua própria conta
imaginação, dúvida como flutuação, como vai- com aquilo que é duvidoso e problemático. Para
e-vem de ondas, fl paisagem marinha é indis­ esse objetivo, ele traça figuras imaginárias de
cutivelmente o mundo da dúvida e suscita no mundos e de seu possível comportamento ne­
homem pressentimentos de naufrágio, fl dúvida les. Cntre elas, uma lhe parece idealmente mais
descrita como flutuação, nos faz perceber o fato fundamentada e a chama de verdade. Observe-
de que ela é uma crença. 6 o é justamente por se, porém: aquilo que é verdadeiro, e também
ser constituída pela redundância do crer. Duvi­ aquilo que é cientificamente verdadeiro, não é
damos porque nos encontramos presos entre mais que um caso particular do fantástico. Há
duas crenças antagônicas que se entrechocam fantasias exatas. C mais: só pode ser exato o
e elas nos fazem balançar entre uma e outra, que é fantástico. Não há modo de compreender
deixando-nos sem terra sob os pés. O dois, é bem o homem, a não ser constatando que a
claro, torna-se o du da dúvida. matemática brota da mesma raiz da poesia, da
O homem, sentindo-se cair em tais abis­ faculdade da imaginação.
mos, que se abrem no solo firme de suas cren­ J. Ortega y Gasset,
ças, reage energicamente. €sforça-se para "sair Rurora do razão histórico.
FENOMENOLOGIA
EXISTENCIALISMO
HERMENÊUTICA
“Na miséria de nossa vida [...] esta ciência não tem
nada a nos dizer. Ela exclui de princípio os problemas
maiscandentesparaohomem, oqual, emnossostem-
pos atormentados, sente-se em poder do destino”.
Edmund Husserl
“A última questão [...] é saber se do fundo das
trevas um ser pode brilhar”.
Karl Jaspers
“A liberdade consiste na escolha do próprio ser. E
tal escolha é absurda”.
Jean-Paul Sartre
“A revolução é progresso quando a comparamos
ao passado, mas desilusão e aborto quando a
comparamos ao futuro que ela deixou entrever e
depois sufocou”.
Maurice Merleau-Ponty

“O próprio mundo tende [...] a aparecer por vezes


como simples canteiro de obras de desfrutamento,
outras como um escravo adormecido”.
Gabriel Mareei
“Quem quer compreender um texto deve estar
pronto a deixar que ele diga algo de si”.
Hans Georg Gadamer

“Sensus non est inferendus, sed efferendus”.


Emílio Betti
Capítulo décimo

Edmund Husserl e o movimento fenom enológico______

Capítulo décimo primeiro

M artin Heidegger: da fenomenologia ao existencialismo

Capítulo décimo segundo

Traços essenciais e desenvolvimentos do existencialismo

Capítulo décimo terceiro

H ans Georg Gadam er e a teoria da hermenêutica___

Capítulo décimo quarto

Desenvolvimentos recentes da teoria da hermenêutica


( Z a p í + u Io J lé . c \ v n o

E dm und H u sse rl
e o movime.Kvto j-enomenológico

I. g ê n e s e e n a tu re z a
d a - fe » a o m e n o lo 0 Ía

• A palavra de ordem da fenomenologia é: voltem o s às p ró p ria s coisas! Para


além das construções teóricas jogadas no ar e dos conceitos apenas a p a re n te m e n te
justificados, o fenomenólogo quer construir uma filosofia que, porém, se funda­
mente sobre d ados in d u b itá v eis , ou seja, sobre evidências estáveis. E para tal fim
o caminho justo é o da epo ch é, ou seja, do procedimento que
consiste em suspender, em pôr fora de uso, entre parêntese, por "Voltemos
assim dizer, nossas persuasões filosóficas e científicas e as próprias às próprias
convicções embutidas em nossa atitude natural que nos faz crer coisas"
na existência das coisas do mundo ou do próprio mundo. Em $1
outras palavras, suspende-se o juízo sobre tudo aquilo que não
é indubitavelmente certo, que não é nem apodítico nem incontestável, até que
se chegue a encontrar os "dados" que resistem aos reiterados assaltos da epoché.
E este ponto de chegada da epo ch é, o resíduo fe n o m e n o ló g ic o , como o chamará
Husserl, os fenomenólogos o encontram na consciência: a existência da consciência
é imediatam ente evidente.

• Sobre a base desta evidência a fenomenologia se exerce na descrição dos


m o d o s típicos em que as coisas e os fatos se apresentam à consciência: e esses
modos típicos são as essências eidéticas, por exemplo, a essência do pudor, da
simpatia, da santidade, do amor etc. Em poucas palavras: a cons­
ciência é sempre in ten c io n al, sempre consciência d e alguma coisa; A
mas não posso duvidar da consciência. À consciência as coisas se fenomenologia
apresentam em m odos típicos e não em emaranhados modos ca- como cjênaa
óticos: um comportamento ou é comportamento de ódio, ou de de essências
amor, ou de simpatia, ou de benevolência etc. E o problema que *
aqui o movimento fenomenológico se colocou é se esses m odos
típicos r em que as coisas se apresentam à consciência, se essas essências eidéticas
são "constituídas" pela própria consciência ou são, ao contrário, realidades que se
impõem à consciência, como a luz ao olho e o som ao ouvido. No primeiro sentido
- direção idealista - se orientará Husserl; no segundo sentido - direção realista da
fenomenologia - se orientará Max Scheler.

• A fenom enologia nasce com Husserl como p o lê m ic a a n -


Husserl atinge
tip sicologista; e sobre a base da idéia da in te n c io n a lid a d e da
o pensamento
consciência. Pelo antipsicologismo Husserl pôde atingir o pensa­ de Bolzano
mento do matemático e filósofo Bernhard Bolzano (1781-1848), e de Brentano
e pela intencionalidade da consciência as teses de seu mestre -*§4
Franz Brentano (1838-1917). Com efeito, foi Bolzano que falou da
Terceira parte - f & n o m a n o \ o g ia, É £xisten cia!ism o, -H e rm en ê u tica

"proposição em si", da verdade em si ou do conteúdo lógico de uma proposição,


prescindindo do fato de que esta seja ou não seja expressa ou crida. E, por sua
vez, Brentano sustentara que a intencionalidade é a característica que tipifica os
fenômenos psíquicos: estes se referem sempre a outro.

;A fenomenologia: aproximação da epoché, o resíduo fenome-


nológico — como o chamaria Husserl —,
um método para
na consciência: a existência da consciência
própr'
“voltar às próprias coisas” é imediatamente evidente.

y \ fenomenologia
Escreve Heidegger em Ser e tempo: “ A
expressão ‘fenomenologia’ significa, antes é descrição
de mais nada, um conceito de método [...]. das essências eidéticas
O termo expressa um lema que poderia ser
assim formulado: voltemos às próprias coi­
sas! E isso em contraposição às construções A partir dessa evidência, os fenome­
desfeitas no ar e às descobertas casuais, em nólogos pretendem descrever os m odos
contraposição à aceitação de conceitos só típicos como as coisas e os fatos se apre­
aparentemente justificados e aos problemas sentam à consciência. E esses modos típicos
aparentes que se impõem de uma geração à são precisamente as essências eidéticas. A
outra como verdadeiros problemas” . fenomenologia não é ciência de fatos, e sim
Portanto, a palavra de ordem da feno­ ciência de essências. Para o fenomenólogo
menologia é a do retorno às próprias coisas, não interessa a análise desta ou daquela
indo além da verbosidade dos filósofos e de norma moral, porém compreender por que
seus sistemas construídos no ar. M as como esta ou aquela norma são normas morais e
se fará para construir uma filosofia que se não, por exemplo, normas jurídicas ou re­
sustente? Para cumprir essa tarefa, é preciso gras de comportamento. Da mesma forma,
partir de dados indubitáveis para com base o fenomenólogo não se interessará (ou, pelo
neles construir depois o edifício filosófico. menos, não se interessará principalmente) em
Em suma, procuram-se evidências estáveis examinar os ritos e os hinos desta ou daquela
para colocar como fundamento da filosofia: religião; ao contrário, ele se interessará por
“ sem evidência não há ciência” , dirá Husserl compreender o que é a religiosidade, ou seja,
nas Pesquisas lógicas. Os limites da evi­ o que transforma ritos e hinos tão diferentes
dência apodítica representam os limites de em ritos e hinos “ religiosos” . Naturalmente,
nosso saber. Assim, é preciso buscar coisas o fenomenólogo também produzirá análises
manifestas, fenômenos tão evidentes que mais específicas sobre o que caracteriza es­
não possam ser negados. sencialmente, por exemplo, o pudor, a santi­
Essa, portanto, é a intenção de fundo da dade, o amor, a justiça, o remorso ou os tipos
fenomenologia, intenção que os fenomenó- de sociedade, mas, em todo caso, sua ciência
logos procuram realizar através da descrição é precisamente ciência de essências.
dos “ fenômenos” que se anunciam e se apre­ Tais essências se tornam objeto de
sentam à consciência depois de feita a epo- estudo se o pesquisador, estabelecendo-se
ché, isto é, depois de postos entre parênteses na atitude de espectador desinteressado,
as nossas persuasões filosóficas, os resultados liberta-se das opiniões preconcebidas e, sem
das ciências e as convicções engastadas na­ se deixar envolver pela banalidade e pelo ób­
quela nossa atitude natural que nos impõe a vio, saiba “ ver” e consiga intuir (e descrever)
crença na existência de um mundo de coisas. aquele universal pelo qual um fato é aquilo e
Em outros termos, é preciso suspender não outra coisa. N ós distinguimos um texto
o juízo sobre tudo o que não é apodítico mágico de um texto científico, mas como
nem objeto de controvérsia até se conseguir conseguimos fazê-lo senão porque utiliza­
encontrar aqueles “ d ad o s” que resistem mos discriminantes essenciais, senão porque,
aos reiterados assaltos da epoché. E os talvez até sem termos consciência disso,
fenomenólogos encontram esse ponto de sabemos o que é magia e o que é ciência?
'
Capítulo x.
deciwiO - ££dmund tHusserl e o movimerv+o fenom enológico
177
____

Como podemos dizer que este é um ato de dizer kantianamente o que está na nossa
simpatia, aquele um gesto de ira, este outro consciência enquanto algo independente
um comportamento desesperado ou aquele da sensibilidade e, portanto, a priori, mas
outro ainda um comportamento de santida­ funcionalmente ordenado para a “ constitui­
de, se não houvesse precisamente essências, ção” da experiência). Scheler, por seu turno,
dirigirá sua análise para os valores objetivos
ou seja, idéias essenciais, de simpatia, de ira,
de desespero ou de santidade? hierarquicamente ordenados que se impõem
Eis, portanto, o que a fenomenologia à intuição emocional, como a luz para os
pretende ser: ciência fundamentada esta- olhos e o som para o ouvido.
velmente, voltada à análise e à descrição Até aqui, citamos Husserl e Scheler.
das essências. Com base nisso, podemos M as o movimento fenomenológico é uma
compreender como a fenomenologia se dis­ vasta e articulada corrente de pensamento,
tingue da análise psicológica ou da análise da qual se destacam as concepções ontoló-
científica. Diferentemente do psicólogo, o gica e ética de Nicolai Hartmann, o pensa­
fenomenólogo não manipula dados de fato, mento de Heidegger, as análises de Sartre,
mas essências; não estuda fatos particulares, de Merleau-Ponty e de G. Mareei, as idéias
senão idéias universais; não se interessa pelodo materialista dialético Tran Duc Tao, além
com portam ento m oral desta ou daquela dos trabalhos dos discípulos ou seguidores
pessoa, mas pretende conhecer a essência de Husserl, como E. Conrad-M artius, E.
da moralidade e talvez ver se a moral é ou Finck, E. Stein, A. Reinach, L. Landgrebe,
não fruto de ressentimento. Alexander Pfãnder, Oscar Becker e Moritz
Geiger. Deve-se dizer ainda que a influência
dos fenomenólogos sobre a psicologia, a
antropologia, a psiquiatria, a filosofia moral
V i^eção idealista
e a filosofia da religião foi e continua sendo
e direção realista notável. Por isso, é doravante reconhecido
da fenomenologia que o movimento fenomenológico constitui
um acontecimento decisivo no âmbito da
filosofia contemporânea.
O fenomenólogo, em suma, cumpre
tarefas bem diferentes das dos cientistas. A v

consciência é “ intencional” , é sempre cons­ g||lU y \s origens


ciência de alguma coisa que se apresenta de da fenomenologia
modo típico: a análise desses modos típicos
é precisamente a função do fenomenólogo,
que se pergunta e indaga sobre o que a cons­ E U B o lz a n o e o v a lo r IÓ0 Íco-obje+ivo
ciência transcendental entende por amor, d a s “ p r o p o s iç õ e s "
percepção, religiosidade, justiça, comuni­
dade, simpatia, e assim por diante. A fenomenologia nasce com Husserl
N esse ponto, a fenom enologia p o ­ — e veremos adiante — como polêmica
dia tomar duas direções: a idealista ou a antipsicologista. Uma das idéias funda­
realista. Os significados ou essências dos mentais de Husserl e da fenomenologia é
objetos, das instituições e dos valores são a da intencionalidade da consciência. Foi
constituídos e postos pela consciência, ou precisamente em relação a esses dois núcleos
o olhar do teórico desinteressado os intui problemáticos que Husserl se inspirou em
enquanto dados objetivos? É aqui que diver­ dois pensadores de nível notável, isto é,
gem, por exemplo, os caminhos de Husserl Bernhard Bolzano e Franz Brentano.
e de Scheler: Husserl, sobretudo o último Bolzano (1781-1848), matemático e
Husserl, tomará o caminho do idealismo. filósofo, padre católico e professor de filoso­
Assim, o pensador que estabeleceu como fia da religião na Universidade de Praga até
programa da fenomenologia o do retorno 1819 (ano em que foi afastado da cátedra
às próprias coisas, no fim se encontrará e suspenso a divinis), nos deixou duas im­
com a realidade única que é a consciência: portantes obras: Os paradoxos do infinito
a consciência transcendental, que nulla re (escritos em 1847-1848, mas publicados só
indiget ad existendum e que “ constitui” em 1851), e a Doutrina da ciência (1837). O
os significados das coisas, das ações, das primeiro trabalho exerceu influência notável
instituições e o sentido do mundo (atente-se sobre a história do pensamento matemático.
para o fato de que, aqui, transcendental quer Já o segundo elabora a doutrina da “ pro­
Terceira parte - F e n o m e n o lo g ia , (Sjd s+en cialism o/ •H erm enêutica

posição em si” e da “ verdade em si” . A professor na Universidade de Viena, viveu


proposição em si é o puro significado lógico longamente em Florença e morreu em Zuri­
de um enunciado, não dependendo do fato que. Escreveu muito sobre Aristóteles (A psi­
de ele ser expresso ou pensado. Já a verdade cologia de Aristóteles, 1867; O cristianismo
em si é dada por qualquer proposição válida, de Aristóteles, 1882; Aristóteles e sua visão
seja ou não expressa ou pensada. Assim, a do mundo, 1911; A doutrina de Aristóteles
validade de um princípio lógico, como o da sobre a origem do espírito humano, 1911);
não-contradição, permanece tal tanto se o todavia, sua obra de maior sucesso foi A psi­
pensarmos ou não, tanto se o expressarmos cologia do ponto de vista empírico (1874).
com palavras ou por escrito, como se não o É nesta última obra que Bretano afirma o
expressarmos. As proposições em si podem caráter intencional da consciência. N a es-
derivar uma da outra e podem entrar em colástica, intentio significava o conceito en­
contradição: elas são parte de um mundo quanto indica algo diferente de si. Segundo
lógico-objetivo e são independentes das Brentano, precisamente, a intencionalidade
condições subjetivas do conhecer. é o que tipifica os fenômenos psíquicos,
que sempre se referem a algo diferente de si
próprio. Eles se distinguem em três classes
E E 9 B re n ta n o fundamentais, que são a representação, o
e a in ten cio n a lid a d e d a c o n s c iê n c ia juízo e o sentimento. N a representação, o
objeto é puramente presente; no juízo, ele
Brentano (1838-1917), também padre é afirmado ou negado; no sentimento, ele é
católico que depois abandonou a Igreja, foi amado ou odiado.

Franz Brentano (1838-1917).


Seu ensinamento influenciou
Edmund Husserl.
Capítulo décimo - <£J m u K \d H u s s e r l e o m ovim ento f-enom enoiógico

II. € A mu nd 'Husserl

• Edmund Husserl (1859-1938) primeiro estudou matemática


em Berlim, e depois seguiu as aulas de Brentano em Viena. Foi Husserl:
professor de filosofia em Gõttingen e sucessivamente em Friburgo, o filósofo
que criou a
onde - sendo judeu - foi-lhe proibido pelos nazistas de continuar
fenomenologia
em sua atividade didática.
-»S7
Husserl é o criador da fenomenologia. Entre suas obras é
preciso lembrar: Pesquisas lógicas (1901); Filosofia como ciência
rigorosa (1911); Idéias para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomeno-
lógica (1913); Meditações cartesianas (1931); póstuma, em 1950, apareceu A crise
das ciências européias e a fenomenologia transcendental. Entre os discípulos de
Husserl devemos citar Heidegger