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Giovanm Reale Dario Antiseri

HISTORIA DA
FILOSOFIA
D o H u m a n is m o a D e sca rte s

PAUIUS
G. Reale - D. Antiseri

HISTÓRIA
DA FILOSOFIA
3 Do Humanismo
a Descartes
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Reale, Giovanni
História da filosofia: do humanismo a Descartes, v. 3 / Giovanni Reale, Dario Antiseri;
[tradução Ivo Storniolo]. — São Paulo: Paulus, 2004.

Título original: Storia delia filosofia.


Bibliografia.
ISBN 85-349-2102-4

1. Filosofia - História I. Antiseri, Dario. H. Título. III. Título: Do Humanismo a Descartes.

02-178 CDD-109

índices para catálogo sistemático:


1. Filosofia: História 109

Título original
Sto ria d elia filo so fia - Volum e II: DaU Vm anesim o a Kant
© Editrice LA SCUOLA, Brescia, Itália, 1997
ISBN 88-350-9271-X

Tradução
Ivo Storniolo

Revisão
Zo lferin o Tonon

Impressão e acabamento
PAULUS

2a edição, 2005

© PAULUS - 2004
Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 São Paulo (Brasil)
Fax (11) 5579-3627 • Tel. (11) 5084-3066
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ISBN 85-349-2102-4
j A p ^ e s e n f a ç ia o

Existem teorias, argumentações e k k ★

disputas filosóficas pelo fato de existirem pro­ A história da filosofia é a história


blemas filosóficos. Assim como na pesquisa dos problemas filosóficos, das teorias fi­
científica idéias e teorias científicas são res­ losóficas e das argumentações filosófi­
postas a problemas científicos, da mesma cas. É a história das disputas entre filó­
forma, analogicamente, na pesquisa filosó­ sofos e dos erros dos filósofos. É sempre
fica as teorias filosóficas são tentativas de a história de novas tentativas de versar
solução dos problemas filosóficos. sobre questões inevitáveis, na esperança
Os problemas filosóficos, portanto, de conhecer sempre melhor a nós mes­
existem, são inevitáveis e irreprimíveis; en­ mos e de encontrar orientações para
volvem cada homem particular que não nossa vida e motivações menos frágeis
renuncie a pensar. A maioria desses pro­ para nossas escolhas.
blemas não deixa em paz: Deus existe, ou A história da filosofia ocidental é a
existiriamos apenas nós, perdidos neste história das idéias que in-formaram, ou
imenso universo? O mundo é um cosmo seja, que deram forma à história do Oci­
ou um caos? A história humana tem senti­ dente. É um patrimônio para não ser dis­
do? E se tem, qual é? Ou, então, tudo - a sipado, uma riqueza que não se deve
glória e a miséria, as grandes conquistas e perder. E exatamente para tal fim os pro­
os sofrimentos inocentes, vítimas e car- blemas, as teorias, as argumentações e
nífices - tudo acabará no absurdo, despro­ as disputas filosóficas são analiticamente
vido de qualquer sentido? E o homem: é explicados, expostos com a maior clareza
livre e responsável ou é um simples frag­ possível.
mento insignificante do universo, determi­ k k k

nado em suas ações por rígidas leis natu­


rais? A ciência pode nos dar certezas? O Uma explicação que pretenda ser cla­
que é a verdade? Quais são as relações ra e detalhada, a mais compreensível na
entre razão científica e fé religiosa? Quan­ medida do possível, e que ao mesmo tem­
do podemos dizer que um Estado é demo­ po ofereça explicações exaustivas compor­
crático? E quais são os fundamentos da de­ ta, todavia, um "efeitoperverso", pelo fato
mocracia? É possível obter uma justificação de que pode não raramente constituir um
racional dos valores mais elevados? E quan­ obstáculo à "memorização" do complexo
do é que somos racionais? pensamento dos filósofos.
Eis, portanto, alguns dos problemas Esta é a razão pela qual os autores
filosóficos de fundo, que dizem respeito pensaram, seguindo o paradigma clássi­
às escolhas e ao destino de todo homem, co do Üeberweg, antepor à exposição
e com os quais se aventuraram as men­ analítica dos problemas e das idéias dos
tes mais elevadas da humanidade, dei­ diferentes filósofos uma síntese de tais
xando-nos como herança um verdadeiro problemas e idéias, concebida como ins­
patrimônio de idéias, que constituía iden­ trumento didático e auxiliar para a me­
tidade e a grande riqueza do Ocidente. morização.
VI ;Ap^ese^fação

★ ★ ★ * * *

Afirmou-se com justeza que, em linha Ao executar este complexo traçado,


geral, um grande filósofo é o gênio de uma os autores se inspiraram em cânones psico-
grande idéia: Platão e o mundo das idéias, pedagógicos precisos, a fim de agilizar a
Aristóteles e o conceito de Ser, Plotino e a memorização das idéias filosóficas, que são
concepção do Uno, Agostinho e a "tercei­ as mais difíceis de assimilar: seguiram o
ra navegação"sobre o lenho da cruz, Des­ método da repetição de alguns conceitos-
cartes e o "cogito", Leibnizeas "mônadas", chave, assim como em círculos cada vez
Kanteo transcendental, Hegel e a dialética, mais amplos, que vão justamente da sínte­
Marx e a alienação do trabalho, Kierke- se à análise e aos textos. Tais repetições,
gaard e o "singular", Bergson e a "dura­ repetidas e amplificadas de modo oportu­
ção", Wittgenstein e os "jogos de lingua­ no, ajudam, de modo extremamente efi­
gem", Popper e a "falsificabilidade" das caz, a fixar na atenção e na memória os
teorias científicas, e assim por diante. nexos fundantes e as estruturas que sus­
Pois bem, os dois autores desta obra tentam o pensamento ocidental.
propõem um léxico filosófico, um dicioná­ ★ ★ ★
rio dos conceitos fundamentais dos diver­ Buscou-se também oferecerão jovem,
sos filósofos, apresentados de maneira di­ atualmente educado para o pensamento
dática totalmente nova. Se as sínteses visual, tabelas que representam sinotica-
iniciais são o instrumento didático da me­ mente mapas conceituais.
morização, o léxico foi idealizado e cons­ Além disso, julgou-se oportuno enri­
truído como instrumento da conceitualiza- quecer o texto com vasta e seleta série de
ção; e, juntos, uma espécie de chave que imagens, que apresentam, além do rosto
permita entrar nos escritos dos filósofos e dos filósofos, textos e momentos típicos da
deles apresentar interpretações que encon­ discussão filosófica.
trem pontos de apoio mais sólidos nos pró­
prios textos. ★ ★ ★
* * * Apresentamos, portanto, um texto ci­
entífica e didaticamente construído, com
Sínteses, análises, léxico ligam-se,
a intenção de oferecer instrumentos ade­
portanto, à ampla e meditada escolha dos
quados para introduzir nossos jovens a
textos, pois os dois autores da presente
olhar para a história dos problemas e das
obra estão profundamente convencidos
idéias filosóficas como para a história gran­
do fato de que a compreensão de um fi­
de, fascinante e difícil dos esforços intelec­
lósofo se alcança de modo adequado não
tuais que os mais elevados intelectos do
só recebendo aquilo que o autor diz, mas
Ocidente nos deixaram como dom, mas
lançando sondas intelectuais também nos
também como empenho.
modos e nos jargões específicos dos tex­
tos filosóficos. G iovanni R eale - D ario A ntiseri
J iV d ic e g e m l

índice de nomes, XV III. Os “ profetas” e os “ magos”


índice de conceitos fundamentais, XIX orientais e pagãos:
Hermes Trismegisto,
P rim eira parte Zoroastro e O rfe u _________14
1. O conhecimento histórico-crítico diferen­
O HUMANISMO te que os humanistas tiveram da tradição
latina em relação à grega, 14; 2. Hermes
E A RENASCENÇA Trismegisto e o “ Corpus Hermeticum” , 15;
2.1. Hermes e o “ Corpus Hermeticum” na
realidade histórica, 15; 2.2. Hermes e o
Capítulo primeiro “ Corpus Hermeticum” na interpretação da
O pensamento humanista- Renascença, 16; 3. O “ Zoroastro” da Re­
renascentista nascença, 16; 4. O Orfeu renascentista, 17.
e suas características g erais____ 3 T fxtos -P- O- Kristeller: 1. Negação do sig­
nificado filosófico do Humanismo, 18; E.
I. O significado Garin: 2. Reivindicação da valência “filo-
historiográfico sófico-pragmática” do Humanismo, 18; J.
do termo “Humanismo” ____ 3 Burckhardt: 3. O individualismo como mar­
co original da Renascença, 19; K. Burdach:
I. O Humanismo e a valorização das “ litte- 4. As raízes da Renascença afundam na Ida­
rae humanae” , 3; 2. As duas mais signifi­ de Média, 20.
cativas interpretações contemporâneas do
Humanismo, 6; 2.1. A interpretação de
Kristeller, 6; 2.2. A interpretação de Garin, 7; Capítulo segundo
3. Possível mediação sintética das duas in­ Os debates sobre problemas morais
terpretações opostas, 7. e o Neo-epicurismo______ 21
II. Conceito historiográfico, I. Os inícios do Humanismo___ 21
cronologia e características
I. Francisco Petrarca, 21; 2. Coluccio Salu-
da “ Renascença” __________ 9 tati, 22.
1. A interpretação oitocentista da “ Renas­
cença” como surgimento de novo espíri­ II. Os debates sobre temas ético-
to e de nova cultura que valorizam o mun­ políticos em L. Bruni,
do antigo em oposição à Idade Média, 10; R Bracciolini, L. B. Alberti__ 23
2. A nova interpretação da “ Renascença”
como “ renovatio” e a “ volta aos antigos” 1. Leonardo Bruni, 23; 2. Poggio Bracciolini,
como “ volta aos princípios” , 11; 3. Re­ 24; 3. Leon Battista Alberti, 24; 4. Outros
flexões conclusivas sobre o conceito de humanistas do Quatrocentos, 25.
“ Renascença” , 11; 4. Cronologia e temas
do Hum anism o e da Renascença, 12; III. Lourenço Valia____________ 26
5. Relações entre Renascença e Idade Mé­ 1. O Neo-epicurismo de Valia, 26; 2. A su­
dia, 12. peração de Epicuro, 26; 3. A filologia de
V III
C Jn d ice gei^a!

Valia: a “palavra” como suporte da verda­ T extos - Nicolau de Cusa: 1. O conceito de


de, 27. “douta ignorância”, 46; 2. A “coincidência
dos opostos” em Deus, 47; 3. O princípio
T extos - F. Petrarca: 1. Verdadeira sabedo­
“tudo está em tudo” e seu significado, 49;
ria, 28; L. Valia: 2. A defesa da própria in­
4. O máximo absoluto e a natureza do ho­
terpretação da “voluptas”, 29.
mem como microcosmo, 51; M. Ficino: 5.
A concepção da alm a como “ copula
Capítulo terceiro mundi”, 52; Pico delia Mirandola: 6. A dig­
nidade do homem, 53.
O Neoplatonismo renascentista— 31
I. Acenos sobre Capítulo quarto
a tradição platônica em geral O Aristotelismo renascentista
e sobre os doutos bizantinos e a revivescência do Ceticismo— 55
do séc. XV________________ 31
I. Revivescência do platonismo, 31. I. Os problemas
da tradição aristotélica
II. Nicolau de Cusa: na era do Humanismo-------- 55
a “ douta ignorância”
I. As três interpretações tradicionais de
em relação ao infinito______ 33 Aristóteles, 55; 2. As temáticas aristotélicas
1. A vida, as obras e o delineamento cultu­ tratadas na Renascença, 56; 3. A complexa
ral de Nicolau de Cusa, 34; 2. A “ douta ig­ questão da “ dupla verdade”, 56; 4. Valência
norância” , 34; 2.1. A busca por aproxima­ do Aristotelismo renascentista, 57.
ção, 34; 2.2. A “coincidência dos opostos”
no infinito, 35; 2.3. Os três graus do conhe­ II. Pedro Pomponazzi_________ 58
cimento, 35; 3. A relação entre Deus e o uni­ 1. O debate sobre a imortalidade da alma,
verso, 36; 4. O significado do princípio 58; 2. A natureza da alma e a virtude hu­
“ tudo está em tudo” , 36; 5. A proclamação mana, 59; 3. O “princípio da naturalida­
do homem como “ microcosmo” , 36. de” , 59; 4. O privilégio que deve ser dado à
experiência, 80.
III. Marsílio Ficino
e a Academia platônica III. Renascimento
florentina---------------------- 38 de uma forma moderada
1. A posição de Ficino no pensamento de Ceticismo------------------ 61
renascentista e as características de sua obra, 1. Revivescências das filosofias helenísticas na
38; 2. Ficino como tradutor, 39; 3. Os pon­ Renascença, 61; 2. Michel de Montaigne e o
tos fundamentais do pensamento filosófico ceticismo como fundamento de sabedoria, 61.
de Ficino, 39; 4. A filosofia como “revela­
ção” divina, 40; 5. A estrutura hierárquica T extos - P. Pomponazzi: 1. A questão da
do real e a alma como “copula mundi” , 40; imortalidade da alma, 63; M. de Montaigne:
6. A teoria do “ amor platônico” e sua difu­ 2. Filosofar é aprender a morrer, 65.
são, 40; 7. A doutrina mágica de Ficino e
sua importância, 41.
Capítulo quinto
IV. Pico delia Mirandola A Renascença e a Religião------ 67
entre platonismo,
aristotelismo, I. Erasmo de Rotterdam
cabala e religião___________ 42 e a “philosophia Christi”____ 67
1. O pensamento de Pico, 42; 2. Pico e a 1. A posição, a vida e a obra de Erasmo, 67;
cabala, 42; 3. Pico e a doutrina da dignida­ 2. Concepção humanista da filosofia cristã, 68;
de do homem, 44. 3. O conceito erasmiano de “ loucura”, 69.

V. Francisco Patrizi___________ 45 II. Martinho Lutero__________ 70


1. Patrizi: exemplo da continuidade da men­ 1. Lutero e suas relações com a filosofia,
talidade hermética, 45. 70; 2. As relações de Lutero com o pensa­
IX
Ónc\ ic e aem l

mento renascentista, 71; 3. Os pontos bási­ IV. Jean Bodin


cos da teologia de Lutero, 72; 3.1. O ho­ e a soberania absoluta
mem se justifica apenas pela fé e sem as do Estado________________ 99
obras, 72; 3.2. A “ Escritura” como a fonte
de verdade, 73; 3.3. O livre exame da “Es­ 1. A idéia de “ soberania” do Estado no pen­
critura” , 74; 4. Conotações pessimistas e samento de Bodin, 99.
irracionalistas do pensamento de Lutero, 74.
V. Hugo Grotius
III. Ulrich Zwínglio, e a fundação
o reformador de Zurique---- 76 do jusnaturalismo_________ 100
1. A posição doutrinai de Zwínglio, 76. 1. Grotius e a teoria do direito natural, 100.
IV. Calvino T extos - N. Maquiavel: 1. A necessidade
e a reforma de Genebra____ 77 de “ir diretamente à verdade efetiva da coi­
sa ”, 101; 2. A sorte é árbitra da metade de
1. Os pontos fundamentais da teoria de nossas ações, 101.
Calvino, 77.
V. Outros teólogos da Reforma Capítulo sétimo
e figuras ligadas Vértices e resultados conclusivos
ao movimento protestante__ 79 do pensamento renascentista:
1. Intérpretes importantes do movimento Leonardo, Telésio,
protestante, 79. Bruno e Campanella__________ 103
VI. Contra-reforma I. Natureza, ciência e arte
e Reforma católica----------- 80 em Leonardo______________ 103
1. Os conceitos historiográficos de “ Con­ I. Vida e obras, 103; A ordem mecanicista
tra-reforma” e de “ Reforma católica” , 80; da natureza, 104; 3. “ Cogitação mental” e
2. O Concilio de Trento, 81; 3. O relança­ “experiência” , 105.
mento da Escolástica, 83.
T extos - Erasmo: 1. Erasmo: o elogio da II. Bernardino Telésio:
loucura, 84; M. Lutero: 2. O primado da fé a investigação da natureza
em Cristo sobre as obras, 88; 3. Sobre o ser- segundo
vo-arbítrio do homem, 89; J. Calvino: 4. Deus seus próprios princípios_____ 106
predestinou alguns homens à salvação, ou­
tros à danação, 90. 1. Vida e obras, 106; 2. A novidade da físi­
ca telesiana, 107; 3. Os princípios próprios
da natureza, 108; 4. O homem como reali­
Capítulo sexto dade natural, 109; 5. A moral natural, 109;
A Renascença e a Política______ 93 6. A transcendência divina e a alma como
ente supra-sensível, 110.
I. Nicolau Maquiavel________ 93 III. Giordano Bruno:
I. A posição de Maquiavel, 93; 2. O realis­ universo infinito
mo de Maquiavel, 94; 3. A “ virtude” do e “heróico furor”______ ^__ 111
príncipe, 94; 4. Liberdade e “ sorte” , 94;
5. O “ retorno aos princípios” , 95; 1. Vida e obras, 112; 2. A característica
de fundo do pensamento de Bruno, 113;
II. Guicciardini e Botero_______ 96 3. Arte da memória (mnemotécnica) e ar­
1. A natureza do homem, a sorte e a vida te mágico-hermética, 114; 4. O universo
política em Guicciardini e Botero, 96. de Bruno e seu significado, 114; 5. A in-
finitude do Todo e o significado impresso
III. Tomás Morus____________ 97 por Bruno à revolução copernicana, 115;
6. Os “ heróicos furores” , 116; 7. Conclu­
1. Imagem emblemática e conceito de “Uto­
pia” , 97; 2. Os princípios morais e sociais sões, 117.
em que se inspiram os habitantes de Uto­ M apa conceitual - A derivação do univer­
pia, 98. ’ so de Deus e o “heróico furor”, 118.
....... «IJndice geraI

IV. Tomás Campanella: prática, 147; 4. Os instrumentos científi­


naturalismo, magia e anseio cos como parte integrante do saber cientí­
fico, 148.
de reforma universal_______ 119
1. A vida e as obras, 120; 2. A natureza e o
significado do conhecimento filosófico e o Capítulo nono
repensamento do sensismo telesiano, 121; A revolução científica
3. A autoconsciência, 122; 4. A metafísica e a tradição mágico-hermética__151
campanelliana: as três “primalidades” do
ser, 123; 5. O pan-psiquismo e a magia, 123; I. Presença e rejeição da tradição
6. A “ Cidade do Sol” , 124; 7. Conclusões, mágico-hermética--------------151
124.
M apa conceitual - Os fundamentos da I. Resultados do pensamento mágico-her-
metafísica, 126. mético sobre a ciência moderna, 152; 2. A
união estreita entre astrologia, magia e ciên­
T extos - Leonardo da Vinci: 1. As caracte­ cia moderna, 153; 3. Características da as­
rísticas da ciência, 127; B. Telésio: 2. A na­ trologia, 154; 4. Fisiognomonia, quiroman-
tureza deve ser explicada segundo seus cia e metoposcopia, 154; 5. Características
princípios, 129; G. Bruno: 3. Unidade e infi- da magia, 155.
nitude do universo, 130; 4. O mito de Actéon,
132; T. Campanella: 5. A doutrina do co­ II. Reuchlin
nhecimento, 133; 6. A estrutura metafísica e a tradição cabalística.
da realidade, 135. Agripa:
“magia branca”
e “magia negra”--------------- 156
Segu n da parte
1. Reuchlin e a cabala, 156; 2. Agripa e a
A REVOLUÇÃO magia, 156.
CIENTÍFICA III. O programa iatroquímico
de Paracelso______________ 158
1. Paracelso: da magia à medicina natural,
Capítulo oitavo 158.
Origens e traços gerais
da revolução científica________ 139 IV. Três “magos” italianos:
Fracastoro, Cardano
I. A revolução científica: e Delia Porta_______________160
o que muda com ela________ 139 1. Jerônimo Fracastoro, fundador da epide-
1. Como a imagem do universo muda, 141; miologia, 161; 2. Jerônimo Cardano, um
2. A terra não é mais o centro do universo: mago que foi médico e matemático, 162;
conseqüências filosóficas desta “ descober­ 3. Giambattista Delia Porta, entre ótica e
ta” , 143; 3. A ciência torna-se saber experi­ magia, 163.
mental, 143; 4. A autonomia da ciência em
relação à fé, 144; 5. A ciência não é saber
de essências, 144; 6. Pressupostos filosó­ Capítulo décimo
ficos da ciência moderna, 144; 7. Magia e De Copérnico a Kepler_________ 165
ciência moderna, 145.
I. Nicolau Copérnico
II. A formação e o novo paradigma
de novo tipo de saber, da teoria heliocêntrica______ 165
que requer a união de ciência
1. O significado filosófico da “ revolução
e técnica _____________ 146 copernicana” , 166; 2. A interpretação ins­
1. A revolução científica cria o cientista ex­ trumentalista da obra de Copérnico, 167;
perimental moderno, 146; 2. A revolução 3. O realismo e o Neoplatonismo de Copér­
científica: fusão da técnica com o saber, nico, 168; 4. A situação problemática da
146; 3. A ciência moderna reúne teoria e astronomia pré-copernicana, 169; 5. A teo­
XI
C Jndice 0e**al

ria de Copérnico, 170; 6. Copérnico e a IV. Galileu:


tensão essencial entre tradição e revolução, as raízes do choque
171. com a Igreja
II. Tycho Brahe: e a crítica
nem “ a velha do instrumentalismo
distribuição ptolemaica” de Belarmino_____________ 199
nem “ a moderna 1. A origem dos dissídios entre Galileu e a
inovação introduzida Igreja, 199; 2. As relações entre Galileu e
pelo grande Copérnico”_____ 173 Belarmino, 200.
1. Uma restauração contendo os germes V. A incomensurabilidade
da revolução, 173; 2. O sistema tychônico, entre ciência e fé___________ 202
174.
1. A Sagrada Escritura não se refere à estru­
III. Johannes Kepler: tura do cosmo, 202; 2. Autonomia da ciên­
a passagem do “círculo” cia em relação às Escrituras, 202; 3. As Escri­
turas se referem à nossa salvação, 203.
para a “elipse”
e a sistematização matemática VI. O primeiro processo_______ 205
do sistema copernicano____ 176 1. Primeira advertência a Galileu para não
1. Kepler: vida e obras, 177; 1.1. Kepler, ma­ sustentar a teoria copernicana, 205.
temático imperial em Praga, 178; 1.2. Kepler
em Linz: as “Tábuas rodoífinas” e a “ Har­ VII. A derrocada da cosmologia
monia do mundo” , 179; 2. O “ Mysterium aristotélica
cosmographicum” : em busca da divina or­ e o segundo processo______ 206
dem matemática dos céus, 180; 3. Do “cír­ 1. Uma só física basta para o mundo celeste
culo” à “ elipse” . As “três leis de Kepler” , e o terrestre, 206; 2. O princípio de relativi­
181; 4. O sol como causa dos movimentos dade galileano, 207; 3. O segundo proces­
planetários, 183. so: a condenação e a abjuração, 208.
T extos - N . Copérnico: 1. A novidade da
concepção copernicana, 185; T. Brahe: 2. VIII. A última grande obra:
Entre tradição e inovação, 187. os Discursos
e demonstrações matemáticas
em torno
Capítulo décimo primeiro de duas novas ciências____ 209
O drama de Galileu 1. Estrutura da matéria e estática, 209; 2. A
e a fundação célebre experiência do plano inclinado, 210.
da ciência moderna___________ 189
IX. A imagem galileana
I. Galileu Galilei: da ciência________________ 212
a vida e as obras___________ 192 1. A ciência nos diz “como vai o céu” e a fé
I. As etapas mais importantes na vida de “ como se vai ao céu” , 212; 2. Contra o
Galileu, 192. autoritarismo filosófico, 212; 3. A atitude jus­
ta em relação à tradição, 212; 4. A ciência
II. Galileu e a “ fé” na luneta___ 195 nos diz verdadeiramente como é feito o mun­
1. A luneta como instrumento científico, do, 21315. A ciência é objetiva, porque des­
195. creve as qualidades mensuráveis dos corpos,
213; 6. O pressuposto neoplatônico da ciên­
III. O Sidereus Nuncius cia galileana, 214; 7. A ciência não busca as
e as confirmações essências, e todavia o homem possui alguns
conhecimentos definitivos e não revisíveis,
do sistema copernicano____ 197 215; 8. O universo determinístico de Galileu
1. O universo torna-se maior, 197; 2. O cho­ não é mais o universo antropocêntrico de
que entre os máximos sistemas do mundo, Aristóteles, 215; 9. Contra o vazio e a insen­
197. satez de algumas teorias tradicionais, 216.
. XI1
_ J-7 ice get*aI I
n qA-

X. A questão do método: 1. A importância da física newtoniana na


“ experiências sensatas” história da ciência, 241.
e/ou “ demonstrações VIII. A descoberta do cálculo
necessárias” ?_____________ 217 infinitesimal
1. A experiência científica é o experimento, e a polêmica com Leibniz _ 242
217; 2. A mente constrói a experiência cien­
tífica, 218; 3. Um exemplo de como a ob­ 1. Os estudos matemáticos de Newton, 242;
servação depende das teorias, 219. 2. Newton e o cálculo infinitesimal, 243; 3. A
polêmica entre Newton e Leibniz, 244.
T extos - G. Galilei: 1. O telescópio na re­
volução astronômica, 220; 2. Ciência e fé, T extos - I. Newton: 1. As quatro regras do
221; 3. Método e experiência, 225; 4. Ciên­ método experimental, 245; 2. Deus e a or­
cia e técnica, 226; R. Belarmino: 5. A inter­ dem do mundo, 246.
pretação instrumentalista do Copernicanis-
mo, 2.21.
Capítulo décimo terceiro
As ciências da vida,
Capítulo décimo segundo as Academias
Sistema do mundo, e as Sociedades científicas_____ 249
metodologia
e filosofia na obra I. Desenvolvimentos das ciências
de Isaac Newton_____________ 229 da vida____________________ 249
1. O avanço da pesquisa anatômica, 250;
I. O significado filosófico 2. Harvey: a descoberta da circulação do san­
da obra de Newton_________ 232 gue e o mecanicismo biológico, 250; 3. Fran­
I. A teoria metodológica de Newton, 232. cisco Redi contra a teoria da geração espon­
tânea, 251.
II. A vida e as obras__________ 233
1. Como Newton soube ler a queda de uma II. As Academias
maçã, 233; 2. A polêmica com Hooke, 234. e as Sociedades científicas___ 253
1. A Academia dos Linceus, 254; 2. A Aca­
III. As “ regras do filosofar” demia do Cimento, 254; 3. A “ Royal Socie-
e a “ ontologia” ty” de Londres, 256; 4. A Academia Real
que elas pressupõem_______ 236 das Ciências na França, 257.
1. Três regras metodológicas, 236; 2. A teo­ T extos - F. Redi: 1. Contra a teoria da ge­
ria corpuscular, 236; 3. A gravitação uni­ ração espontânea, 258.
versal, 237.
IV. A ordem do mundo
e a existência de Deus______ 238 Terceira Parte
1. O sistema do mundo é uma grande má­
quina, 238. BACON E DESCARTES
V. O significado da sentença
metodológica: Capítulo décimo quarto
“hypotheses non fingo”_____ 238 FrancisJBacon:
1. O método de Newton: formular hipóte­ filósofo da era industrial______ 263
ses e prová-las, 238.
I. Francis Bacon:
VI. A grande máquina do mundo 239 a vida e o projeto cultural___ 263
1. As três leis do movimento, 239; 2. A lei
de gravitação universal, 240. I. Bacon: o filósofo da era industrial, 263.

VII. A mecânica de Newton II. Os escritos de Bacon


como programa de pesquisa_ 241 e seu significado___________ 265
X III
«ITndice. geml

1. A filosofia baconiana expressa nas obras, 1. Críticas à filosofia e à lógica tradicionais,


265. 286; 2. Críticas ao saber matemático, 287;
3. O problema geral do fundamento do sa­
III. “Antecipações da natureza” ber, 288.
e “interpretações da natureza” -2 6 7
III. As regras do método______ 288
1. O método por meio do qual se alcança o
verdadeiro saber, 267. 1. Conceitos e número das regras do méto­
do, 289; 2. A primeira regra do método, 289;
IV. A teoria dos “idola” --------- 269 3. A segunda regra do método, 289; 4. A
terceira regra do método, 290; 5. A quarta
1. Significado da teoria dos “ idola” , 269;
regra do método, 290; 6. As quatro regras
2. Os “ idola tribus” , 269; 3. Os “ idola spe-
cus” , 270; 4. Os “ idola fori” , 270; 5. Os como modelo do saber, 290.
“ idola theatri” , 271. IV. A dúvida metódica
V. O escopo da ciência: e a certeza fundamental:
a descoberta das “formas” __ 272 “cogito, ergo sum” ----------- 291
1. Um ponto cardeal do pensamento de 1. A dúvida como passagem obrigatória,
Bacon, 272; 2. O poder do homem está em mas provisória, para chegar à verdade,
produzir em um corpo novas naturezas, 272; 291; 2. Absolutez veritativa da proposi­
3. A ciência está na descoberta das “formas” , ção “ eu penso, logo existo” , 292; 3. A pro­
272; 4. A idéia baconiana de “ forma” , o posição “ eu penso, logo existo” não é um
“ processo latente” e o “ esquematismo la­ raciocínio dedutivo, mas uma intuição,
tente” , 273. 292; 4. O eixo da filosofia não é mais a
ciência do ser mas a doutrina do conheci­
VI. A indução por eliminação mento, 293; 5. O centro do novo saber é
e o “experimentum crucis” — 274 o sujeito humano, 294; 6. A reta razão
humana, 294.
1. Crítica à indução aristotélica, 274; 2. As
três “ tábuas” sobre as quais se deve ba­ V. A existência
sear a nova indução, 275; 3. Como das e o papel de D eus------------- 295
três tábuas se extrai a “ primeira vindima” ,
275; 4. A nova indução como “ via media­ 1. O problema da relação entre nossas
n a” entre as seguidas por empiristas e idéias, que são formas mentais, e a realida­
racionalistas, 276; 5. O “ experimentum de objetiva, 295; 2. “Idéias inatas” , “ idéias
crucis” , 276. adventícias” e “ idéias factícias” , 296; 3. A
idéia inata de Deus e sua objetividade,
M apa conceituai. - A interpretação da na­ 296; 4. Deus como garantia da função ve­
tureza, 278. ritativa de nossas faculdades cognosciti-
T f.xtos - F. Bacon: 1. A necessidade de vas, 297; 5. As verdades eternas, 298; 6. O
um novo método nas ciências e nas artes, erro não depende de Deus, mas do homem,
279; 2. As linhas gerais do novo método, 299.
281.
VI. O mundo é uma máquina__ 299
1. A idéia de extensão e sua importância
Capítulo décimo quinto essencial, 299; 2. Apenas a extensão é pro­
Descartes: priedade essencial, 300; 3. A matéria (ex­
“ o fundador tensão) e o movimento como princípios
da filosofia moderna” -------------283 constitutivos do mundo, 300; 4. Os prin­
cípios fundamentais que regem o univer­
I. A vida e as obras -------------- 283 so, 301; 5. Redução de todos os organis­
mos e do mundo inteiro a máquinas, 301.
I. Um novo tipo de saber centrado sobre
o homem e sobre a racionalidade huma­ VII. Alma (“res cogitans” )
na, 283. e corpo (“ res extensa” )----- 302
II. A experiência da derrocada 1. O contato entre “res cogitans” e “res ex­
da cultura da ép o ca________ 286 tensa” ocorre no homem, 302.
X IV
CTndice geml

VIII. As regras da moral M apa conceitual - O " cogito ”, 306.


provisória------------------- 303
1. A primeira regra, 304; 2. A segunda re­ T extos - R. Descartes: 1. As regras metódi­
gra, 304; 3. A terceira regra, 304; 4. A quarta cas, 307; 2. O “cogito ergo sum”, 309; 3. A
regra, 304; 5. A razão e o verdadeiro como “terceira meditação” em torno de Deus e
fundamento da moral, 304. de sua existência, 310.
*

B runelleschi E, 147
A B
B runi L., 21,23-24, 31
B runo G., 41, 55, 57, 103, 111­
AbettiG., 177, 179, 180 B acon E, 12,108,139,141,145, 1 1 8 ,1 2 0 ,130-133,143, 168,
A cquapendente, F. de, 249, 2 5 0 151,153,163,239,253,257, 199,285
Afonso II d’Este, 45 261, 263-278, 279-282 Bullart I., 136
Afonso X, rei de Leão e Castela, 170 Bacon N., 263, 264 B uonarroti M., 5
A gostinho d e H ipona, 1 6 ,2 2 , 68, BadouèreJ., 189, 195 Buono, C. dei, 255
91, 122, 135,202 Baliani J.B., 217 Buono, P. dei, 255
A gripa C. df. N ettesheim (Heinrich B anfi A., 167 B u r c k h a r d t 9, 10, 19-20
Cornelius), 1 6 1 , 1 5 6 -1 5 8 , 163 B arbaro E., 25, 42 Burdacb K., 9, 11, 20
A lberti L.B., 23, 24-25, 147 Barone F., 166,167 B uridano , 172
Alcibíades, 84 Barônio C. card., 190, 202 Butterfield H., 171
A i.embert, J.B . L e R ond d’, 266 B arrow I., 229, 233, 242
A ef.xandre df. A frodísia, 56,58,64 B aylf.P., 145, 151, 153
Alexandre VI, 44 Bt K KMAN I., 284
Alexandre VII, 256 B elarmino R., 144,165,168,190,
A mbrósio , 68 200, 201, 205, 208, 227-228
Ammannati G., 192 Bembo R, 38, 41
A naxágoras , 36, 49 B eni P., 145
A nselmo de A osta, 297 B erkelf.y F., 243 C aietano (Tomás de Vio), 83
B éruli.f. P. de, 284 C alvino G. (Jean Cauvin), 77-78,
A ristóteles, 3, 6, 8, 22, 23, 24,
2 5 ,2 9 ,3 1 ,4 5 ,4 7 ,5 6 ,5 7 ,6 0 , B essarione G., card., 32 83, 90-92, 144, 190, 200,
63, 64, 76, 83, 94, 107, 108, B iringuccio V., 147
250
109,110,115,124,137,143, Bocchineri G., 193 C ampanella T., 9,55,57,103,119­
144,191,192,197,199,207, 126,133-136, 193,199, 285
B odin J., 99 , 200
210,212,213 ,2 1 5 ,2 1 6 ,2 1 7 , B õhme J., 79, 80
Carafa, 107
218,225, 264, 265,273 B olzano B., 244 C ardano J., 160, 162-163, 265
A rnaldo de B réscia , 20 Carlos II, 253, 256
B orelli A., 249, 251, 255
A rnauld A., 285 B orelli J ., 255 Carlos V, 75
A rnóbio , 68 Bórgia C., 103 Carlos VIII, 161
A rquimf.des, 144, 148, 192 B otero J ., 96 C astelli B., 148, 189, 193, 203,
Arrighetti N., 221, 222 205,221
B oyle R., 145, 148, 153, 229,
Asimov L, 250 232, 239, 252, 254 Castiglione B., 38, 41
A tanásio , 64 B racciolini P., 23, 24 C auchy A.L., 244
A verróis , 21, 56, 57, 58, 60, 64 Brahe T., 142, 152, 173-175, 176, C avalieri B., 211, 242
A vicena, 158* 177,178,180,181,182,187-188 Cellari A., 142

* Neste índice:
-reportam-se em versalete os nomes dos filósofos e dos homens de cultura ligados ao desenvolvimento do
pensamento ocidental, para os quais indicam-se em negrito as páginas em que o autor é tratado de
acordo com o tema, e em itálico as páginas dos textos;
-reportam-se em itálico os nomes dos críticos;
-reportam-se em redondo todos os nomes não pertencentes aos agrupamentos precedentes.
XVI
élndice de nomes

Cellini B., 147, 162 240,254,256,263,283,285,


C hsalpino A., 60, 250 288, 300
CesiF., 196, 198,2 5 3 ,2 5 4 G alilei L., 192
C ícero M . T úlio, 3,5,29,76,154, E ceanto Pitagórico , 166, 171 Galilei Vincenzo (filho), 192
170, 265, 287 E ckhart (Mestre) G., 34 Galilei Vincenzo (pai), 192
ClPRIANO DE CARTAGO, 68 Eduardo VI, 163 Galilei Virgínia (irmã Maria Ce­
Clemente VIII, 178 E instf.in A., 141, 241 leste), 192
Cola de Rienzo, 9, 11, 12 Elisabeth I, 263, 264 Gamba M., 192
Colbert J.B., 253,257 E picuro, 24, 26, 29, 115 Garin E., 3,7, 8 ,1 1 ,18-19, 22,24,
Colombo C., 161 E rasm o de R ottf .rdam (Geer 27, 29
C olombo R., 249, 250 Geertsz), 67-69, 70, 71, 84-87 G assendi P., 285
Constantino, imperador, 14, 27 Ernesto de Baviera, 179 Gaywood R., 251
C oplrnico N. (Niklas Koppemigk), E sgoto E riúgena, 34 Gélio Aulo, 3, 5
117,124,139,140,141,142, Esquines de Sfetto, 23 G emisto P i.f.ton J., 17, 32
143,144,145,152,161,166, E stf.vão H. (Stephanus), 61, 65 Genser C., 163
167-172,173,174,175,178, E uclides, 148, 192, 232, 244 G f.ntili A., 100
185-187,188,199,201,206, E udóxio df. C nido , 244 Geymonat L., 196, 199
2 0 7 ,213,219,224,227,239,
E uler , 288 G hibf.ru L ., 147
250
E ustáquio B., 250 Giese T., 185
Cosme de Médici (o Velho), 38
G ilbert W., 183
Cosme II de Médici, 189,192,195,
197 Giordano A., 222
Cranach L., 71 Giordano P., 222
F G rassi H ., 193, 206
C rlmonini C., 60
C risoi.ora M., 22, 23, 31 Gregory T., 64
F alópio G., 250 G rótius H. (Huig de Groot), 100
Cristina da Suécia, 283, 285, 286
Cristina de Lorena, 189,193,202, Farrington B., 266 G uicciardini E , 96
203, 217, 221 Ferdinando da Áustria, 178 Guldenmann C., 177
F f.rmat P., 242, 243 Guthrie D., 161, 162
F ernei. J., 163, 251
F icino M., 15,16,17, 31, 3 2 ,38­
V 4 1 ,4 2 ,4 5 , 52-53,54, 67, 71, Fl
76, 109, 113, 114, 115, 116,
145, 155
Da Costa Andrade, 233 H ai.i.f.y E., 229, 234
Filipe de Hessen, 77
D arwin C., 147 Hals F., 284
F iloi.au dl T ebas, 166, 171
D ati C.R., 255 H arvey W., 144, 152, 163, 249,
F oscarini A., 200, 228
D l C usa N. (Kryfts ou Kreb), 31, 250-251, 252
F racastoro J., 151,153,160,161,
32, 33-37, 46-52, 114, 116 H egel G.W.F., 71
170
Del Monte F.M., 205 Henrique III, 112, 114
Francisco da Áustria, 255
D ella P orta G.B., 120,145,154, Henrique VIII, 97
Francisco I, 104
160, 163, 196 H eráclides P ôntico , 166, 171
F ranck S., 79, 80
Demóstenes de Atenas, 23 H eráclito df. É feso, 270
Frederico II da Dinamarca, 173,
D escartes J., 283 H ermes T rismegisto /C orpus H er -
174
D escartes R., 12, 121, 122, 125, meticum , 1,4, 7, 8,14,15-16,
Frederico V do Palatinato, 286
139,141,146,153,231,232, 1 7 ,3 8 ,3 9 ,4 0 ,4 4 ,4 5 ,5 3 , 71,
23 9 ,242,249,250,251,254, Fugger S., 158
113, 145, 152, 155
261,283-306, 307-316 H eron , 148
Devereux R., 264 H ervet G., 61, 65
D idf.rot D., 266 H obbf.s X , 243, 249, 250, 285
a
D igges T., 172 Holbein H. (o Jovem), 68, 69, 97
Dijksterhuis E.J., 181, 183, 233 Homen D., 13
DiniP., 189, 193,2 0 1 ,2 0 4 G ai.f.no , 144, 158, 250, 265
Homero, 84
D ionísio A reopagita (Pseudo ), 17, G alilli G ., 9, 12, 103, 105, 107,
108,110,120,137,139,140, H ookl R., 149, 150, 229, 234-
33, 34, 39 i 235
141,142,143,144,145,146,
Donato L., 196 H orky de L ochovic M., 179
147,148,149,152,153,166,
Dreyer J.L .E., 179 168,171,173,175,176,177, Huss J., 74
D uns E sgoto J., 57, 265 178,179,184,189-219,220­ H uygf.ns C , 148, 229, 234, 253,
Dürer A., 87 2 2 7 ,228,231,232,233,239, 255, 257
J Leopoldo de Toscana, 253, 254,
255, 256
o
Liceti F., 218, 225
ICETA DE SlRACUSA, 166, 170 O ckham G., 57, 71
L ichtf.nbf.rg G., 166
I nácio de L oyoi.a, 80 O ldenburg H., 253, 257
Lipps J.H., 232
I reneu df. L ião, 68 O resme N., 172
L ípsio J. (Joost Lips), 61
Isabel (filha de Frederico V), 286 O rfeu/H inos O rficos, 1 4 ,1 7 , 38,
L ocke J., 229, 234
39, 4 0 , 71
Lorini N., 205
Orsini card., 205
Lourenço de’ Médici, 41, 44
O siander A. (Andreas H. Hosemann),
Lucílio, 54
1 4 4 ,1 6 5 ,1 6 8 ,1 7 2 ,1 9 9
L ucrécio C aro , T ito , 115
O ughtred W., 242
Ludovico, o Mouro, 103
Jaime I, 264, 265
Luís XIII, 121
JÂMHI.ICO DE CÁLCIDA, 39
Luís XIV, 253, 257
João (Evangelista), 16, 51 P
L úi.io R. (Ramon Lhull), 114, 307
João de Stefano, 15
L utero M , 67, 69, 70-75, 76, 77,
J orge df. T rf.bisonda, 32 Palmifri M ., 25
78, 79, 83, 88-90, 144, 190,
Juliano de Médici, 178 200 P aracf.i.so (Theophrast Bombast
Juliano o Teurgo,16 von Hohnheim), 145,151,153,
158-160, 163, 265
P armf.nidfs, 115
M P ascal B., 244
K P atrizi F., 45 , 107
M ach E., 231, 240 Paulet A., 264
K ant I., 167, 229, 232, 233, 299 M aestlin M ., 172, 176, 177 P aulo df T arso , 17, 26, 69, 78
Kepler H., 177 M agai.otti L ., 148, 254, 255 Paulo III papa, 169, 185, 199
K epler J ., 139, 140, 141, 142, M aggi V., 107 P edro L ombardo , 83
144,145,146,147,151,152, M ai.pighi M ., 148, 252 P eircf C.S., 154
153,166,168,172,173,174,
M anetti G., 25 Pelli L., 260
175,176-184,192,195,196,
M anso G.B., 145 P etrarca F., 5 ,9 ,1 1 ,1 2 ,1 4 , 21-22,
239, 242, 283
K if.rkf.gaard S.,71 M aquiavei. N , 93-95,96,101-102 23, 28-29
M arsili A., 255 P icard J ., 234
K irchfr A., 260
K i.au C. (Clávio), 198, 199
Maurício de Nassau, 284 Picchena C., 206
KoyréA., 140, 147, 167, 239 M aurólico F., 178, 196 Piccolomini A., 193
Kristeller P.O., 3, 6, 7, 8, 18 Maximiliano da Baviera, 284 Pico df.i .ea M irandoia Giovanni, 1,
M a zzo n i J ., 192 31, 32, 38, 41, 42-44, 45, 53­
K uhn T h . S., 1 4 1 ,166,167,172,
M f.i.anchton F., 79,144,190,200 54,59,67,71,76,113,121,156
1 7 5 ,1 8 0 ,1 8 1 ,1 8 2 ,1 8 4 ,1 9 9
M f.rsf.nne M ., 125,254,284,285 Pico Gianfrancesco, 61
Micâncio F., 192 P if.ro df.i.ea F rancfsca , 147
Mierevelt, M . van, 100 Pio XI papa, 97
L P itágoras, 38, 40
Mocenigo J., 111, 113
Moisés, 16 P latão, 4, 7, 8 ,1 4 ,1 7 ,2 1 ,2 2 ,2 3 ,
L actâncio L.C. F irmiano, 16,169 25, 31, 38, 39, 40, 45, 46, 53,
M ontaignf , M. de, 61-62, 65-66
Larmessin, N. de, 136 64, 76, 84, 87, 94, 124, 210,
M orus T., 97-98
L auschf.n G.J. (Rheticus), 165, 265
Müntzer T., 77 P i.otino df. L icópoi.is, 4, 7, 8, 39,
168, 169, 171
Muraro L., 164 45, 52, 115
L avatfrJ .C ., 154
L avoisier A.-L., 141 P lutarco df Q ufronfia , 23
L eão H ebrfu (Jehudah Abarbanel), Poliziano A., 54
41 A) P omponazzi P. (Peretto Mantova-
Leão X papa, 104, 187 no), 6, 57, 58-60, 63-65
L eeuwenhoek, A. van, 148, 252 Nardi B., 60 Pope A., 137
L eeèvre d ’È taples J. (Faber Stapu- N f.wton I., 137, 139, 141, 142, P orfírio df T iro , 39
lensis), 77 147,149,150,152,176,184, P roci.o ,'3 9 , 45, 169
L fibniz G.W., 211,232,242,244, 211,229-244, 245-248, 253 P sf.i .i .o M., 39
254, 283 Niethammer, F.I., 4 Ptolomeu , 124, 151, 154, 171,
L eonardo da V inci, 4, 103-105, N ovalis, 114 174,192,197,199, 200, 204
127-128, 147 N ovara D.M., 169 Pütter, 80
X V III
C ó d i c e d e Kvomes

S ócrates, 22, 28, 59, 68, 84, 94 V f.salio A., 249, 250
R
S pinoza B., 41, 111, 114, 117 V iéte F., 242
Sprat R.T., 266 Vinta B., 218, 226
R awley W., 264 Stevenzoon van Calcar J., 250 V itrúvio, 148
R f.di E, 249, 251-252, 255, 258­ S uarez F., 80, 83 V iviam V., 148, 189, 194, 255
260 Sylvius, 163 V oet G. (Voécio), 285
R einhoi.d E., 172 V oltaire F.M. (Arouet F.M.), 233,
R euchein J . (Capnion), 156 235
R f y J ., 148
Rheticus (ver Lauschen G.J.) T
Ricci O., 189,192
Richelieu, A.-J. card. de, 119 w
T argioni-T ozzetti G., 255
R inaldini C., 255 T artaglia N., 189, 192 WaLLENSTEIN A., 180
Rodolfo II de Asburgo, 112,174, T elésio B., 55, 57,103,106-110, W allis J., 242, 243, 244
178 121, 123, 129
W f.bf.r M., 78
Ronchi V., 178, 196 T f.místio , 64
W eigel V., 79-80
Rosselli C., 54 Ticiano, 82, 250
W oi.ff C., 80, 83
RossiP., 175, 254 T omás df. A quino , 57, 58, 63, 64,
W ren C., 229, 234
83, 120, 135,265
W yclie J ., 74
Tomás de Vio (ver Caietano)
T omasfo N., 101
S
T orricelli E., 147,148,189,194,
242 X
Sagredo G., 192, 207
S ai utati C., 21, 22 Xenofonte de Atenas, 23
Salviati F., 207 u
Santi di Tito, 95
U liva A., 255
Sarpi P., 192
Savonarola J., 42
Urbano VIII (Maffeo Barberini), y
121,191,193, 206, 208,285
SCHLEIERMACHF.R F.D.E., 114 Yates F.A., 113
S choearios G f.nnadio J., 32
Schõnberg N., 167, 185
S fgni A., 255 V 2
S êneca , 28, 76
S f.rvet M., 79, 249, 250 V alla L., 15, 26-27, 29-30 Z abarella J ., 60
S exto E mpírico, 61, 62, 65 V altúrio de R ímini, 147 ZOROASTRO (Z aRATUSTRA)/OrÁCU-
S iger de B rabante, 55, 57 V anini J.C., 60 los C aldeus, 14, 16-17, 38,
S ocino F., 79 Vayringe, 255, 256 39, 40, 43, 45, 71
S ocino L., 79 Verrocchio A., 105 Z wíngeio U., 76-77, 83

s
Ó n d ic e d e c c m c e ito s
ju rvd a m e r \ta i s

antecipação da natureza, 267 idéia, 297


anticopernicanos, 200 indução por eliminação, 275
____ interpretação da natureza, 268
c
“cogito, ergo sum” , 292

evidência, 289 “ res cogitans” e “res extensa” , 293


experiência (papel da experiência na pesqui­
sa científica), 218

F S

Fé religiosa (finalidade da fé), 203 sorte do De revolutionibus, 172


DO HUMANISMO
A DESCARTES
O HUMANISMO
E A RENASCENÇA

■ Origens
■ Traços essenciais
■ Desenvolvimentos

“M agnum m iraculum esthom o. ”


Hermes Trismegisto, A sd e p iu s

“Ó suprem a liberalidade de D eu s P a i! Ó suprem a


e adm irávelfelicid a d e do hom em ! Hom em ao qu ai
fo i concedido obter aquHo que deseja e se r aquHo
que quer. A o nascerem , o s brutos levam consigo,
do se io m aterno, tudo aquilo que terão. O s e sp íri­
to s su periores, desde o in ício ou pouco depois, já
sã o aquilo que serã o n o s sé cu lo s dos sécu lo s. No
hom em nascente, o P a i depositou sem entes de
toda e sp é cie e germ es de toda vida. E , à m edida
que cada um o s cultivar, e/es crescerã o e n eie da­
rão se u s frutos. E se forem vegetais, se rá planta;
se forem se n síve is, se rá bruto; se forem racionais,
se tornará anim ai ce le ste ; se forem intelectuais,
se rá anjo e filh o de D eus. S e , contudo, não con­
tente com a so rte de nenhum a criatura, se reco ­
lh e r no centro de su a unidade, tornando-se um só
espírito com D eus, na solitária névoa do Pai, aquele
que fo ipo sto sobre todas a s co isa s estará sobre
todas a s co isa s. ”
Pico delia Mirandola
Capítulo primeiro

O pensamento humanista-renascentista
e suas características g e ra is............................ 3

Capítulo segundo

Os debates sobre problemas morais e Neo-epicurismo 21

Capítulo terceiro

O Neoplatonism o renascentista 31

Capítulo quarto

O Aristotelismo renascentista e a revivescência do Ceticismo 55

Capítulo quinto

A Renascença e a Religião 67

Capítulo sexto

A Renascença e a P o lític a ................................................

Capítulo sétimo

Vértices e resultados conclusivos do pensamento renascentista:


Leonardo, Telésio, Bruno e Campanella 103
(S a p í+ u Io p n m e i^ o

O p e rv s a m e ia fo k u m a m s+a - r e a a s c e rv+i s f a
e s u a s c a r a c t e r ís t ic a s g e r a is

I. O s i g n i f i c a d o k is t o n o g i^ à f ic o

d o te t* m o "■H u m a h i s m o ,/

• O termo "Humanismo" foi usado pela primeira vez no início do 800 para
indicar a área cultural coberta pelos estudos clássicos e pelo espírito que lhe é
próprio, em contraposição ao âmbito das disciplinas científicas. A palavra hu­
manista, porém, já era empregada pela metade do 400, e deriva
de humanitas, que em Cícero e Gélio significa educação e forma­ O Humanismo
ção espiritual do homem, na qual têm papel essencial as discipli­ e o papel
nas literárias (poesia, retórica, história, filosofia). essencial
Ora, a partir sobretudo da metade do 300, e depois de modo representado
sempre crescente nos dois séculos sucessivos, desenvolveu-se na pelas "litterae
Itália justamente uma tendência a atribuir valor muito grande humanae"
aos estudos das litterae humanae e a considerar a antiguidade ->S 7
clássica, grega e latina, como um paradigma e um ponto de refe­
rência para as atividades espirituais e a cultura em geral. "Humanismo", portanto,
significa em geral esta tendência que, surgida essencialmente no seio da cultura
italiana, pelo fim do 400 se difundiu em muitos outros países europeus.
• Entre os estudiosos contemporâneos do Humanismo, sobressaem princi­
palmente P.O. Kristeller e E. Garin, cujas interpretações contrapostas resultam
na realidade muito fecundas justamente por sua antítese e, se prescindirmos de
alguns pressupostos dos dois autores, podemos integrá-las mutuamente.
Segundo Kristeller, o Humanismo representaria apenas me­
tade do fenômeno renascentista e, melhor dizendo, a "literária", Duas diferentes
não a filosófica; portanto, ele seria plenamente compreensível teses modernas
apenas se considerado junto com o Aristotelismo que se desen­ sobre o
volveu paralelamente, e que expressaria as verdadeiras idéias fi­ significado
losóficas da época. filosófico
Segundo Garin, ao contrário, os Humanistas se voltaram a de Humanismo
um tipo de especulação não sistemática, problemática e pragmá­ -^§2
tica, e formaram novo método que, centrado sobre um novo sen­
tido da história, deve ser considerado como efetivo filosofar, a direção contem-
plativo-metafísica em que o Humanismo italiano embocou desde a segunda me­
tade do 400 teria sido portanto a consequência do advento das Senhorias e do
eclipsar-se das liberdades políticas republicanas.
• Ora, é verdade que "humanista" indica originariamente a tarefa do litera­
to, mas tal tarefa foi muito além do ensino universitário, entrou na vida ativa e se
tornou de fato "nova filosofia". Além disso, o Aristóteles deste período foi um
Aristóteles frequentemente lido no texto original, sem a mediação das traduções
e das exegeses medievais; tratou-se, portanto, de um Aristóteles revisitado com
4
Primeira parte - O - H u m a n is m o e a R e n a s c e n ç a

novo espírito que apenas o Humanismo pode explicar. Por fim, a


Possibilidade
de integrar grande mudança do pensamento humanista não esteve apenas
mutuamente ligada a uma mudança política, mas à descoberta e às traduções
as duas de Hermes Trismegisto e dos Profetas-Magos, de Platão, de Plotino
interpretações e de toda a tradição platônica. A marca que contradistingue o
opostas Humanismo foi, portanto, um novo sentido do homem e de seus
-^§3 problemas, novo sentido que encontrou expressões multiformes
e por vezes opostas, mas sempre ricas e freqüentemente muito
originais, e que culminou nas celebrações teóricas da "dignidade do homem" como
ser "extraordinário" em relação a toda a ordem do mundo.

1 O H u m c m is m o A questão revela-se ainda mais com­


plexa pelo fato de que, nesse período, não
e a v a lo riz a ç ã o
ocorre apenas mudança no pensamento fi­
d a s " lit + e r a e k u m a m a e " losófico, mas também, em geral, a mudan­
ça da vida do homem, em todos os seus as­
pectos: sociais, políticos, morais, literários,
Há toda uma interminável literatura artísticos, científicos e religiosos. E tornou-
crítica sobre o período do Humanismo e do se bem mais complexa ainda pelo fato de que
Renascimento. No entanto, os estudiosos as pesquisas se tornaram predominantemen­
não conseguiram chegar a uma definição das te analíticas e setoriais, e os estudiosos apre­
características dessa época, capaz de reunir sentam a tendência de fugir das grandes sín­
um consenso unânime, mas, pouco a pou­ teses ou até simplesmente das hipóteses de
co, enredaram a tal ponto a meada dos vá­ trabalho de caráter global ou das perspecti­
rios problemas que hoje é difícil para o pró­ vas de conjunto.
prio especialista desenredá-la. Assim, é necessário antes de mais nada
focalizar alguns conceitos básicos, sem os quais
não seria possível sequer a exposição dos vá­
rios problemas relativos a esse período.
Comecemos por examinar o próprio
conceito de “humanismo” .
O termo “humanismo” é recente. Pare­
ce que foi usado pela primeira vez pelo fi­
lósofo e teólogo alemão F. I. Niethammer
(1766-1848) para indicar a área cultural
coberta pelos estudos clássicos e pelo espí­
rito que lhe é próprio, em contraposição com
a área cultural coberta pelas disciplinas cien-

Nd ilustração,
o esquema das proporções do corpo humano,
de Leonardo (1452-1519).
Neste período muda
não .H o pensamento filosófico,
mas também a própria vida do homem,
em todos os seus aspectos:
sociais, políticos, morais, literários,
artísticos e religiosos.
Um papel essencial, segundo os Humanistas,
e desenvolvido pelas letras, isto é,
poesia, retórica, filosofia,
/ustamente porque estudam o homem
em sua natureza específica.
O desenho conserva-se na Academia de Veneza.
5
Capitulo primeiro - CD p e n s a m e n t o K m m a m is + a -^ e m a s C íe m + is + a e s u a s c a r a c t e r í s t i c a s

tíficas. Entretanto, o termo “humanista” (e pela intensidade, a ponto de marcar o iní­


seus equivalentes nas várias línguas) nasceu cio de um novo período na história da cul­
por volta de meados do século XV, calcado tura e do pensamento.
nos termos “legista” , “jurista” , “canonista” Grande fervor nasceu em torno dos
e “ artista” , para indicar os professores e clássicos latinos e gregos e de sua redesco-
cultores de gramática, retórica, poesia, his­ berta, do paciente trabalho de pesquisa de
tória e filosofia moral. Ademais, já no sécu­ códices nas bibliotecas e de sua interpreta­
lo XIV falava-se de studia humanitatis e de ção. Vários acontecimentos levaram a uma
studia humaniora, expressões referidas a nova aquisição do conhecimento da língua
famosas afirmações de Cícero e Gélio para grega, considerada patrimônio espiritual
indicar essas disciplinas. essencial do homem culto (as primeiras cá­
Para os mencionados autores latinos, hu- tedras de língua e literatura gregas foram
manitas significava aproximadamente aqui­ instituídas no Trezentos, mas a grande di­
lo que os helênicos indicavam com o termo fusão do grego ocorreu sobretudo no Qua­
paideia, ou seja, educação e formação do trocentos. De modo especial, o Concilio de
homem. Ora, nessa época de formação es­ Ferrara e Florença, em 1438-1439, e, logo
piritual considerava-se que as letras, ou seja, depois, a queda de Constantinopla, ocorri­
a poesia, a retórica, a história e a filosofia da em 1453, levaram alguns doutos bizan­
desempenhavam um papel essencial. Com tinos a fixar moradia na Itália, tendo por
efeito, são essas disciplinas que estudam o conseqüência um grande incremento no en­
homem naquilo que ele tem de peculiar, pres­ sino da língua grega).
cindindo de qualquer utilidade pragmática.
Por isso, mostram-se particularmente capa­
zes não apenas de nos dar a conhecer a na­
tureza específica do próprio homem, mas
também de fortalecê-la e potencializá-la.
Sobretudo a partir da segunda metade
do Trezentos e depois, sempre de forma cres­
cente, nos dois séculos seguintes (com seu
ponto culminante precisamente no século
XV), verificou-se uma tendência a atribuir
aos estudos relativos às litterae humanae um
grande valor, considerando a antiguidade clás­
sica, latina e grega, como paradigma e ponto
de referência para as atividades espirituais e
a cultura em geral. Pouco a pouco, os auto­
res latinos e gregos se firmavam como mo­
delos insuperáveis nas chamadas “letras hu­
manas” , verdadeiros mestres de humanidade.
Assim, “humanismo” significa essa ten­
dência geral que, embora com precedentes
ao longo da época medieval, a partir de Fran­
cisco Petrarca, apresentava-se agora de mo­
do marcadamente novo por seu particular
colorido, por suas modalidades peculiares e

O célebre “D avi” de Micbelangelo,


na majestade e nobreza dos traços,
representa visualmente,
de modo paradigmático,
o conceito do homem como
“o maior milagre” do universo,
que constitui uma das chaves espirituais
mais típicas da Renascença.
O “D avi” se encontra em Plorença,
na Galeria da Academia,
e uma cópia dele está na Piazza delia Signoria.
Primeira parte - O H u m a n is m o e o, R e n a s c e n ç a

2 . A s d u a s m a is sadores peripatéticos que retornassem aos


textos gregos de Aristóteles, deixassem de
s ig n if ic a t iv a s
lado as traduções latinas medievais e fizes­
in+e vp e e ta ç õ e s sem uso dos comentadores gregos e também
c o n fe m p o e â r v e a s de outros pensadores gregos.
Desse modo, destaca Kristeller, os es­
d o +-|u m a n is m o
tudiosos hostis à Idade Média confundiram
esse aristotelismo renascentista com o resí­
duo de tradições medievais superadas e, por­
Entre as interpretações contemporâ­ tanto, como resíduo de uma cultura ultra­
neas do “ humanismo” , duas são as mais im­ passada, pensando que deviam deixá-lo de
portantes por se referirem ao seu significa­ lado em benefício dos “humanistas” , verda­
do filosófico. deiros portadores do novo espírito renas­
centista. Mas, segundo Kristeller, tratar-se-
ia de grave erro de compreensão histórica,
porque freqüentemente a condenação do
fc fifl in te r p r e t a ç ã o d e K riste lle r
aristotelismo renascentista foi feita sem uma
efetiva consciência daquilo que se estava
De um lado, F.O. Kristeller procurou condenando. À exceção de Pomponazzi (do
limitar fortemente o significado filosófico e qual falaremos adiante), que no mais das
teorético do humanismo, inclusive a ponto vezes foi seriamente considerado, um grave
de eliminá-lo. preconceito condicionou o conhecimento
Segundo esse estudioso, bastaria dei­ desse momento da história do pensamento.
xar ao termo o significado técnico que pos­ E necessário, portanto, estudar a fundo as
suía originalmente, restringindo-o assim ao questões discutidas pelos aristotélicos italia­
âmbito das disciplinas retórico-literárias nos desse período: desse modo, cairiam por
(gramática, retórica, história, poesia e filo­ terra muitos lugares-comuns que só se man­
sofia moral). têm porque foram continuamente repetidos,
Conforme Kristeller, os humanistas do mas que carecem de base sólida, emergindo
período de que estamos tratando foram su­ conseqüentemente uma nova realidade his­
perestimados, sendo-lhes atribuído um pa­ tórica.
pel de renovação do pensamento que eles, Em conclusão, o humanismo repre­
na realidade, não desempenharam, visto que sentaria apenas uma metade do fenômeno
não se ocuparam diretamente da filosofia e renascentista e, mais ainda, a metade não
da ciência. Em suma, para Kristeller, os hu­ filosófica. Assim, ele só seria plenamente
manistas não foram verdadeiros refor­ compreensível se considerado junto com o
madores do pensamento filosófico porque, aristotelismo que se desenvolveu paralela­
de fato, não foram filósofos. mente, o qual expressaria as verdadeiras
Na visão de Kristeller, para compreen­ idéias filosóficas da época. Ademais, segun­
der a época de que estamos falando, seria do Kristeller, os artistas do Renascimento
necessário dedicar atenção à tradição aris- não deveríam ser vistos na ótica do grande
totélica, que tratava de modo sistemático da “gênio criativo” (que constitui uma visão
filosofia da natureza e da lógica, que já ha­ romântica e um mito oitocentista), mas sim
via se consolidado fora da Itália (sobretudo como “ ótimos artesãos” , cuja excelência não
em Paris e Oxford) há bastante tempo, mas decorre de uma espécie de superior adivi­
que na Itália só se consolidaria mais tarde. nhação dos destinos da ciência moderna, e
Diz Kristeller que foi na segunda metade do sim da bagagem de conhecimentos técnicos
Trezentos que “começou uma tradição con­ (anatomia, perspectiva, mecânica etc.), con­
tínua de aristotelismo italiano, a qual po­ siderada indispensável para a prática ade­
de ser seguida através do Quatrocentos e quada de sua arte. Por fim, se a astronomia
do Quinhentos e até por boa parte do Seis­ e a física realizaram progressos notáveis, não
centos” . foi por motivo de sua ligação com o pensa­
Esse “ aristotelismo renascentista” se­ mento filosófico, e sim com a matemática.
guiu os métodos próprios da “ escolástica” Os filósofos tardaram a se harmonizar com
(leitura e comentário dos textos), mas enri­ essas descobertas, porque, tradicionalmen­
quecendo-se com as novas influências huma­ te, não havia uma conexão precisa entre
nistas, que exigiríam dos estudiosos e pen­ matemática e filosofia. jT]
Capitulo pYÍtYl6 ÍY0 - O p e n s a m e h f o K u m a n is + a - ^ e n a s a e n f is f a e s u a s c a r a c + e n s t ic a s

K ftl i n f e r p ^ e t a ç ã o d e C õaH n culado à liberdade política daquele momen­


to. O advento das tutelas e o eclipsar-se das
Diametralmente oposta é a reconstru­ liberdades políticas republicanas transfor­
ção de Eugênio GaYÍn, que reivindicou ener­ mou os literatos em cortesãos e impeliu a
gicamente uma precisa valência filosófica filosofia para evasões de caráter contem-
para o humanismo, notando que a negação plativo-metafísico. (T]
de significado filosófico aos studia huma-
nitatis renascentistas deriva do fato de que,
“ no mais das vezes, entende-se por filosofia
a construção sistemática de grandes propor­ 3 Possível m e td ia ç ã o sintética
ções, negando-se que a filosofia também das duas interpretações
pode set ouíyo tipo de especulação não sis­
opostas
temática, abeYto, pYoblemático e pragmá­
tico ” .
Aliás, diz Garin, a atenção “ filológica”
para com os problemas particulares “ cons­ Na realidade, as teses contrapostas de
titui precisamente a nova ‘filosofia’, ou seja, Kristeller e de Garin revelam-se muito fe­
o novo método de examinar os problemas, cundas precisamente por sua antítese, por­
que, portanto, não deve ser considerado, ao que uma destaca aquilo que a outra silen­
lado da filosofia tradicional, como um as­ cia, podendo portanto ser integradas entre
pecto secundário da cultura renascentista, si, se prescindirmos de alguns pressupostos
como acreditam alguns (basta pensar, por dos dois autores. E verdade que, original­
exemplo, na posição de Kristeller que exa­ mente, o termo “ humanista” indica o ofí­
minamos), e sim como o próprio filosofaY cio do literato, mas essa profissão vai bem
efetivo além do simples ensino universitário, entran­
Uma das mais destacadas característi­ do na vida ativa, iluminando os problemas
cas desse novo modo de filosofar é o senti­ da vida cotidiana, tornando-se verdadeira­
do da histÓYia e da dimensão histórica, com mente uma “ nova filosofia” .
seu respectivo sentido de objetivação e de Ademais, o humanista distingue-se efe­
afastamento crítico do objeto historicizado, tivamente pelo novo modo como lê os clás-
ou seja, historicamente considerado.
A essência do humanismo não deve ser
vista naquilo que ele conheceu do passado,
mas sim no modo em que o conheceu, na
atitude peculiav que adotou diante dele.
Mas a tese de Garin não se reduz a isso.
Ele coloca a nova “ filosofia” humanista na
realidade concreta daquele momento da vida
histórica italiana, tornando-a uma expres­
são dessa realidade, a ponto de explicar com
razões sociopolíticas a reviravolta sofrida pe­
lo pensamento humanista na segunda meta­
de do Quatrocentos. O primeiro humanismo
foi uma exaltação da vida civil e das pro­
blemáticas a ela ligadas, porque estava vin-

“A Filosofia ”,
incisão tirada da Biblioteca Cívica
“A. M ai” de Bérgamo.
O estudo da filosofia antiga
alimentou o novo espírito
presente no pensamento humanista-renascentista.
Este está ligado às traduções
de Hermes Trismegisto,
dos Profetas-Magos, de Platão, de Platino
e de toda a tradição platônica.
8
Primeira parte - O ■ H u m a n is m o e a R e n a s c e n ç a

um Aristóteles revisitado com novo espíri­


to, que só o “ humanismo” pode explicar.
Portanto, Garin tem razão ao destacar o fato
de que o humanismo olha o passado com
novos olhos, com os olhos da “história” , e
que só atentando para esse fato é que se pode
compreender toda essa época.
E a aquisição do sentido da história
significa, ao mesmo tempo, aquisição do
sentido de sua própria individualidade e
originalidade. Só se pode compreender o
passado do homem quando se compreende
sua “ diversidade” em relação ao presente e,
portanto, quando se compreende a “peculia­
ridade” e a “ especificidade” do presente.
Por fim, no que se refere à excessiva
vinculação do humanismo aos fatos políti­
cos, que leva Garin a algumas afirmações
que correm o risco de cair no historicismo
sociologista, basta destacar que a grande
mudança do pensamento humanista não
está ligada somente a uma mudança políti­
ca, mas também à descoberta e às tradu­
ções de Hermes Trismegisto e dos profetas-
“A Retórica", incisão tirada da Biblioteca Cívica
magos, de Platão, de Plotino e de toda a
“A. Mai" de Bérgamo. /As litterae humanae tradição platônica, o que representou a aber­
constituem o coração da cultura humanista. tura de novos e ilimitados horizontes, de que
Entre estas reserva-se particular atenção à retórica, falaremos adiante. De resto, o próprio Garin
porque constitui elemento de continuidade não se deixou levar por excessos sociolo-
entre a paidéia antiga e moderna. gistas, como, no entanto, fizeram outros
intérpretes por ele influenciados.
Concluindo, podemos dizer que a mar­
sicos: houve um humanismo literário por­ ca que distingue o humanismo consiste em
que surgiram novo espírito, nova sensibili­ um novo sentido do homem e de seus proble­
dade e novo gosto, com os quais as letras mas: um novo sentido que encontra expres­
foram revisitadas. E o antigo alimentou o sões multiformes e, por vezes, opostas, mas
novo espírito, porque este, por seu turno, sempre ricas e freqüentemente muito origi­
iluminou o antigo com nova luz. nais. Novo sentido que culmina nas celebra­
Kristeller tem razão quando lamenta que ções teóricas da “ dignidade do homem”
o aristotelismo renascentista seja um capí­ como ser em certo sentido “ extraordinário”
tulo a ser reestudado desde o início e também em relação a toda a ordem do cosmo, como
tem razão ao insistir no paralelismo desse veremos adiante. Mas essas reflexões teóri­
movimento com o movimento propriamen­ cas nada mais são do que expressões concei­
te literário. Mas o próprio Kristeller admite tuais que têm nas representações da pintu­
que o Aristóteles desse período é um Aristó­ ra, da escultura e de grande parte da poesia
teles freqüentemente procurado e lido no as correspondências visuais e fantástico-ima-
texto original, sem a mediação das tradu­ ginativas que, com a majestade, a harmo­
ções e das exegeses medievais, tanto que nia e a beleza de sua figuração, expressam a
chega até a retornar aos comentadores gre­ mesma idéia, de vários modos, com esplên­
gos para ser iluminado. Assim, trata-se de didas variações.
9
Capitulo primeiro - (D p e n s a m e n t o kum anis+a-^ervasceK vH s+a e s u a s c a r a c t e r í s t i c a s

II. (Sorvceito kis+ onogràfico,


crorvologia e c a r a c te rís tic a s
d a ^ Renascença^

• A categoria historiográfica da "Renascença" se impôs no 800 graças a


J. Burckhardt, segundo o qual a expressão designava um fenômeno de origem
tipicamente italiana, oposto à cultura medieval: um fenôme­
no caracterizado pelo individualismo prático e teórico, a par- a Renascença
tir da exaltação da vida mundana, do acentuado sensualis- na definição
mo, da mundanização da religião, da tendência paganizante, oitocentista
da liberdade em relação às autoridades que no passado ti- 1
nham dominado a vida espiritual, do forte sentido da história,
do naturalismo filosófico, do extraordinário gosto artístico. "Renascença" se­
ria, afinal, a síntese do novo espírito, que se criou na Itália, com a antiguidade:
o espírito que, rompendo definitivamente com o da era medieval, abre a era
moderna.
• Em nosso século esta interpretação foi muitas vezes contestada, particu­
larmente por K. Burdach. Os Humanistas explicitamente usaram expressões como
"fazer reviver", "fazer renascer", e contrapuseram a nova era
em que viviam com a medieval como a era da luz à era da obs­ A Renascença
curidade e das trevas. A Idade Média, porém, foi uma época de na nova
grande civilização, percorrida por fermentos e frêmitos de vári­ interpretação:
os gêneros quase que desconhecidos aos historiadores do Oito­ nascimento
centos. Portanto, o "Renascimento" que constituiu a peculiari­ de nova
dade da "Renascença" foi mais o nascimento de outra civilização, civilização
de outra cultura: a Renascença representou grandioso fenôme­ baseada
no de "regeneração" e de "reforma" espiritual, em que a volta sobre a volta
aos antigos significou revivescência das origens, "retorno aos aos antigos
princípios autênticos", e a imitação dos antigos revelou-se como -^§2-3
o caminho mais eficaz para recriar e regenerar a si mesmos. Em
tal sentido, Humanismo e Renascença constituem uma só coisa, e o Humanismo
torna-se fenômeno literário e retórico apenas no fim, ou seja, quando se expan­
de o novo espírito vivificador.
• Do ponto de vista cronológico, o período humanista-renascentista ocupou
inteiramente o 400 e o 500, mas seus prelúdios devem ser buscados já no 300 (nas
figuras de Cola de Rienzo e de Francisco Petrarca), enquanto o
epílogo alcança os primeiros decênios do 600 (com a figura de Cronologia e
Campanella); do ponto de vista dos conteúdos filosóficos, no 400 características
prevalece o pensamento sobre o homem, enquanto o pensamento essenciais do
do 500 abraçou também a natureza. A Renascença representou período
uma era diversa tanto da medieval, como da moderna (a qual humanista-
começa com a revolução científica, ou seja, com Galileu); assim renascentista
como na Idade Média devem ser buscadas as raízes da Renascen­ —>§ 4-5
ça, por sua vez, na Renascença devem ser buscadas as raízes do
mundo moderno, ou melhor, o epílogo da Renascença é marcado pela própria
revolução científica.
10
Primeira parte - O h Iw m an ism o e a R en ascen ça

1 y\ ila+ eepeetação o ito c e ia fis fa que viu surgir nova cultura, oposta à me­
dieval. E a revivescência do mundo anti­
da Renascença*
go teria desempenhado nisso um papel
c o m o s u r g im e n t o importante, mas não exclusivamente deter­
d e n o v o e s p ír it o minante. Portanto, partindo da renascen­
ça da antiguidade, passou-se a chamar de
e d e n o v a c u lt u r a
“ Renascença” toda essa época, que, po­
q u e v a lo r iz a m rém, é algo mais complexo: com efeito, é
o m u n d o a n t ig o a síntese do novo espírito que se criou na
Itália com a própria antiguidade — é o
em o p o s iç ã o
espírito que, rompendo definitivamente
à Ç J d a d e A A é d ia com o espírito da época medieval, inau­
gurou a época moderna. . m
Essa interpretação foi muito contesta­
O termo “ Renascimento” , como ca­ da, por várias vezes, em nosso século. Alguns
tegoria historiográfica, consolidou-se no Oi­ chegaram mesmo a duvidar que a “ Renas­
tocentos, em grande parte por mérito de cença” constitua efetiva “ realidade histó­
uma obra de Jacob Burckhardt (1818-1897) rica” e não seja muito mais (ou predomi­
intitulada A cultura da Renascença na nantemente) uma invenção construída pela
Itália (publicada em Basiléia, em 1860), historiografia oitocentista.
que se tornou muito famosa, impondo-se Variados e de diversos tipos foram os
longamente como modelo e como ponto de reparos trazidos sobre a questão.
referência indispensável. Na obra de Burck­ Alguns observaram que, se atentamen­
hardt, a Renascença emergia como fenô­ te estudadas, as várias “características” con­
meno tipicamente italiano quanto às suas sideradas típicas do Renascimento podem
origens, caracterizado pelo individualis­ ser encontradas na Idade Média. Outros
mo prático e teórico, pela exaltação da vi­ insistiram muito no fato de que, a partir do
da mundana, pelo acentuado sensualismo, séc. XI, mas sobretudo nos sécs. XII e XIII,
pela mundanização da religião, pela ten­ a Idade Média pode ser considerada plena
dência paganizante, pela libertação em de “ renascimentos” de obras e autores an­
relação às autoridades constituídas que ha­ tigos, que pouco a pouco emergiam e eram
viam dominado a vida espiritual no pas­ recuperados. Conseqüentemente, esses au­
sado, pelo forte sentido de história, pelo tores negaram validade dos parâmetros tra­
naturalismo filosófico e pelo extraordiná­ dicionais que durante longo tempo basea­
rio gosto artístico. Segundo Burckhardt, ram a distinção entre a Idade Média e a
a Renascença seria portanto uma época “ Renascença” .

“cidade ideal", em sua harmonia


e em sua precisão arquitetônica,
representa hem
como os homens da Renascença
compreendem sua época:
como mensagem de luz que rompe
as trevas da Idade Média.
A historiografia do Novecentos
mostrou, ao invés,
como a Idade Média e a Renascença
não estão em oposição,
mas como esta ultima
indica o nascimento de ourra civilização,
de outra cultura.
Pintor toscano do Quatrocentos:
llrhino. Pinacoteca do Palácio Ducal.
11
Capítulo primeiro - CD p e n s a m e n t o k n m a n is t a - n e n a s c e n t is t a e s u a s c a r a c + e e ís + ic a s

n o v a in te r p r e ta ç ã o na idéia de renascimento do espírito nacio­


nal unido à fé, que na Itália se expressou so­
da ^ enascença^
bretudo em Cola de Rienzo, em cujo projeto
com o r e n o v a t io político a idéia de renascimento religioso é
e a ”vol+a a o s a n t ig o s ” inserida no projeto político de renascimento
histórico da Itália, gerando vida nova.
c o m o “v o lta a o s p r i n c í p io s 7
Cola de Rienzo (1313-1354) torna-se
assim (junto com Petrarca) o mais significa­
tivo precursor da grande época da Renas­
Todavia, logo se estabeleceu novo equi­ cença italiana.
líbrio, reconstituído em bases bem mais só­ “ Renascença” e “Reforma” expressam
lidas. conceitos que se interpenetram até consti­
Em primeiro lugar, estabeleceu-se que tuir uma unidade indissolúvel: “Pode-se di­
o termo “ Renascença” não pode em abso­ zer - escreve Burdach - que, no alicerce des­
luto ser considerado como mera invenção sas duas visões, encontra-se aquele conceito
dos historiadores oitocentistas, pelo simples místico do ‘renascer’, da recriação, que en­
fato de que os humanistas usavam expres­ contramos na antiga liturgia pagã e na li­
samente (com insistência e com plena cons­ turgia sacramental cristã.”
ciência) expressões como “ fazer reviver” ,
“ fazer voltar ao antigo esplendor” , “ reno­
var” , “ restituir a uma nova vida” , “ fazer
renascer o mundo antigo” etc., contrapon­ e x õ e s c o n c lu s iv a s
do a nova época em que viviam à época s o b e e o c o n c e it o
medieval como a idade da luz contraposta
d e “R e n a s c e n ç a ”
à idade da escuridão e das trevas.
É claro, portanto, que os historiógrafos
do Oitocentos não erraram sobre este pon­
to. Erraram, porém, ao julgar que a idade A Renascença, portanto, representou
Média constituira verdadeiramente uma grandioso fenômeno espiritual de “regene­
época de barbárie, um tempo nebuloso, um ração” e de “ reforma” , no qual o retorno
período de escuridão. aos antigos significou revivescência das ori­
Os homens da Renascença, natural­ gens, “volta aos princípios” , ou seja, retor­
mente, tinham essa opinião, mas por razões no ao autêntico.
polêmicas e não objetivas: eles sentiam sua E também nesse espírito que deve ser
mensagem inovadora como mensagem de entendida a imitação dos antigos, que se
luz que rompia as trevas. O que não signifi­ revelou o estímulo mais eficaz para que os
ca que “verdadeiramente” , ou seja, histori­ homens encontrassem, recriassem e regene­
camente, antes dessa luz houvesse trevas, rassem a si próprios.
pois poderia haver (para manter a imagem) Sendo assim, conseqüentemente, como
uma luz diferente. sustentou Burdach, o Humanismo e a Re­
Com efeito, as grandes aquisições his- nascença “constituem uma só coisa” . Uma
toriográficas de nosso século mostraram que tese que, na Itália, Eugênio Garimcompro-
a Idade Média foi uma época de grande civi­ vou brilhantemente em outras bases, com
lização, percorrida por fermentos e frêmitos novos documentos e com provas abundan­
de vários tipos, quase que totalmente des­ tes e de vários tipos.
conhecidos pelos historiadores do Oitocen­ Desse modo, não se pode mais susten­
tos. Portanto, o “ renascimento” que cons­ tar que foram os studia humanitatis, enten­
titui a peculiaridade da “ renascença” não é didos como fenômeno literário e filológico
o renascimento da civilização contra a (retórico), que criaram a Renascença e o
incivilização, da cultura contra a incultura espírito renascentista (filosófico), como se
e a barbárie, do saber contra a ignorância: se tratasse de uma causa acidental produ­
ele é muito mais o nascimento de outra civi­ zindo como efeitos um novo fenômeno subs­
lização, de outra cultura, de outro saber. tancial. Pode até ser que se tenha verificado
K. Burdach mostrou claramente quejustamente
a o contrário, isto é, foi a “ renas­
Renascença também tem raízes na idéia de cença” de um novo esprfito (o descrito aci­
renascimento do Estado romano, que era ma) que se serviu das humanae litterae como
bastante viva na Idade Média, quando não de um instrumento.
12
Primeira parte - O ■H u m a n ism o e a R en ascen ça

O Humanismo só se tornou fenômeno De todo modo, o certo é que hoje entende-


literário e retórico no fim, isto é, quando se se por Renascença a denominação historio-
extinguiu o novo espírito vivificador. gráfica de todo o pensamento dos séculos
Para concluir: se por “Humanismo” se XV e XVI. Por fim, devemos recordar que
entende a tomada de consciência de uma os fenômenos de imitação extrínseca e de
missão tipicamente humana através das filologismo não são próprios do Quatrocen­
humanae litterae (concebidas como produ­ tos, e sim do Quinhentos, constituindo en­
toras e aperfeiçoadoras da natureza huma­ quanto tais (como já acenamos) os sintomas
na), então ele coincide com a renovatio de da incipiente dissolução da época renascen­
que falamos, ou seja, com o renascimento tista.
do espírito do homem: assim, o Humanismo
e a Renascença são duas faces de um único
fenômeno.
I R e la ç õ e s e n t r e T R e n a s c e n ç a
e « U dade A ^ é d ia

4 (S e cm o lo g ia e t e m a s
d o ■ H um anism o
Além disso, no que se refere às rela­
e da R enascença
ções entre a Idade Média e a Renascença
italiana, devemos dizer que, no atual esta­
do dos estudos, não se mantêm de pé nem a
Do ponto de vista cronológico, o Hu­ tese da “ ruptura” entre as duas épocas e
manismo e a Renascença ocupam dois sé­ tampouco a tese da pura e simples “conti­
culos inteiros: o Quatrocentos e o Quinhen­ nuidade” .
tos. Como já observamos, seus prelúdios A tese correta é uma terceira. A teoria
devem ser procurados no Trezentos, parti­ da ruptura pressupõe a oposição e a con­
cularmente na figura singular de Cola de trariedade entre as duas épocas, ao passo
Rienzo (cuja obra culmina pelo Trezentos) que a teoria da continuidade postula uma
e na personalidade e na obra de Francisco homogeneidade substancial. Mas, entre a
Petrarca (1304-1374). Seu epílogo alcança contrariedade e a homogeneidade, existe a
as primeiras décadas do Seiscentos. Cam- “ diversidade” . Ora, dizer que a Renascen­
panella foi a última grande figura da Re­ ça é uma época “ diversa” da Idade Média
nascença. não apenas permite distinguir as duas épo­
Tradicionalmente falava-se do Quatro­ cas sem contrapô-las, mas também identifi­
centos como época do Humanismo e do car facilmente seus nexos e suas tangências,
Quinhentos como época da Renascença pro­ bem como suas diferenças, com grande li­
priamente dita. Como, porém, caiu por ter­ berdade crítica.
ra a possibilidade de distinção conceituai E, conseqüentemente, outro problema
entre Humanismo e Renascença, necessa­ também pode ser facilmente resolvido.
riamente também cai por terra essa distin­ A Renascença inaugura a época mo­
ção cronológica. derna? Os teóricos da “ ruptura” entre Re­
Se levarmos em conta os conteúdos fi­ nascença e Idade Média eram fervorosos
losóficos, eles mostram (e o veremos com defensores da resposta positiva a essa per­
mais amplitude um pouco adiante) que o gunta. Já os teóricos da “continuidade” da­
pensamento sobre o homem prevalece no vam-lhe resposta negativa. Hoje, em geral,
Quatrocentos, ao passo que, no Quinhen­ tende-se a identificar o começo da época
tos, o pensamento se amplia, abrangendo moderna com a revolução científica, ou seja,
também a natureza. Nesse sentido, se, por com Galileu. Do ponto de vista da história
razões de comodidade, quisermos indicar do pensamento, essa parece a tese mais cor­
como Humanismo predominantemente o reta. A época moderna revela-se dominada
momento do pensamento renascentista que por essa grandiosa revolução e pelos efeitos
teve por objeto sobretudo o homem, e como que ela provocou em todos os níveis. Nesse
Renascença este segundo momento do pen­ sentido, o primeiro filósofo “moderno” foi
samento, que considera também toda a na­ Descartes (e, em parte, também Bacon), co­
tureza, podemos até fazê-lo, embora com mo veremos mais amplamente adiante. Sen­
muitas reservas e com grande circunspeção. do assim, o Renascimento representa uma
13
Capitulo primeiro - O p e n s a m e n t o h u m a n is + a - ^ e n a s c e n + is ta e s u a s c a r a c t e r í s t i c a s

época diversa tanto da época medieval como ferenças” que caracterizam a Renascença,
da época moderna. tanto em relação à Idade Média como em
Naturalmente, assim como as raízes da relação à época moderna, através do exa­
Renascença devem ser buscadas na Idade me das várias correntes de pensamento e,
Média, da mesma forma as raízes do mun­ individualmente, dos pensadores de des­
do moderno devem ser procuradas na Re­ taque. Todavia, antes disso é necessário
nascença. Podemos dizer até que, como o chamar a atenção do leitor para um dos
fim da Idade Média é marcado pela trans­ aspectos mais típicos do pensamento renas­
formação da economia mundial que se se­ centista, ou seja, a revivescência do compo­
guiu às descobertas geográficas, assim o epí­ nente helenístico-orientalizante, cheio de
logo da Renascença é marcado pela própria ressonâncias mágico-teúrgicas, difundido
revolução científica: mas essa revolução as­ em alguns escritos que a tardia antiguida­
sinala precisamente o epílogo, não a “ mar­ de havia atribuído a deuses ou profetas anti-
ca” da Renascença e sua têmpera espiritual quíssimos e que, na realidade, eram falsifi­
em geral. cações, mas que os renascentistas tomaram
Falta -nos, agora, examinar concreta­ como autênticas, com conseqüências de
mente quais são as mais significativas “ di­ grande importância.

Mapa náutico executado em Veneza em 1560, pelo português Diego Homen


(Veneza, Biblioteca Marciana).
14
Primeira parte ~ O 'H w m a K is m o e- a R enascença

— III. O s ' ‘ p^o^a^cxs" e os V a g o s ^


o ^ io ia fa is e p a g ã o s :

■H e ^ m e s ~t>i s m e g is fo y Z o ^ o a s t f ó e. O ^ o u

• Um dos aspectos mais típicos da Renascença foi a


Os equívocos revivescência da componente helenística-orientalizante, cheia
na aproximação de ressonâncias mágico-teúrgicas e difundida em alguns escri­
dos gregos tos que a antiguidade tardia havia atribuído a antiquíssimos
^§1 deuses ou profetas e que na realidade eram falsificações (o
Corpus Hermeticum, os Oráculos Caldeus, os Hinos Órficos).

• Ora, os Humanistas, que descobriram a crítica filológica do texto, caíram


todavia no erro clamoroso de tomar como autênticas as obras atribuídas aos Pro-
fetas-Magos Hermes Trismegisto, Zoroastro e Orfeu, e assim o
complexo sincretismo entre doutrinas greco-pagãs, neoplato-
Hermes, nismo e cristianismo, tão difundido na Renascença, baseou-se em
Zoroastro larga medida sobre esse equívoco colossal. Atingiu particularmen­
e Orfeu te os homens da Renascença o aceno ao Filho de Deus, apresen­
- - > § 2-4
tado como Logos divino destinado a encarnar-se, contido no XII
tratado do Corpus Hermeticum. Zoroastro, depois, considerado
o autor dos Oráculos Caldeus, foi apresentado até como anterior a Hermes. Orfeu,
por fim, é considerado o anel de conjunção entre Hermes e Platão: Hermes, Orfeu
e Platão foram assim ligados em uma conexão que sustentou a construção do
platonismo renascentista, que resultou, portanto, completamente diferente do
platonismo medieval.

*| CD c o n k e c im e n t o desconcertante em relação a esses docu­


mentos?
k is t ó e ic o - c e ít ic o d if e r e n t e
A resposta à questão é bastante clara à
q u e o s k u m a u is f a s luz dos estudos mais recentes.
t iv e r a m d a t r a d i ç ã o la t in a O trabalho de pesquisa dos textos lati­
nos, que começou com Petrarca, consolidou-
em r e la ç ã o à g e e g a
se antes que ocorresse o impacto com os tex­
tos gregos. Portanto, a sensibilidade e a
capacidade técnica e crítica dos humanistas
Antes de tudo devemos esclarecer se aguçaram muito antes em relação aos tex­
uma questão importante: como foi possí­ tos latinos do que em relação aos textos gre­
vel que os humanistas, que descobriram a gos. Além disso, os humanistas que se apro­
crítica filológica do texto e que chegaram ximaram dos textos latinos tinham interesses
a identificar gritantes falsificações (como, intelectuais mais concretos do que aqueles
por exemplo, o ato de doação de Constan- que se ocuparam predominantemente dos
tino) com base no exame da língua, tenham textos gregos, que tinham interesses mais
caído em erros tão flagrantes, tomando co­ abstratos e metafísicos. Os humanistas que
mo autênticas as obras atribuídas aos pro- se ocuparam predominantemente de textos
fetas-magos Hermes Trismegisto, Zoro­ latinos interessaram-se sobretudo pela lite­
astro e Orfeu, que são falsificações tão ratura e pela história, ao passo que os huma­
evidentes para nós hoje? Como é que dei­ nistas que se ocuparam de textos gregos in­
xaram de aplicar a elas o mesmo méto­ teressaram-se sobretudo pela teologia e a
do? Como é possível observar tão grande filosofia. Além disso, as fontes e tradições
falta de sagacidade crítica e credulidade tão usadas como referência, pelos humanistas
15
Capitulo primeiro - O pensamento kumanista-renascentista e suas características

que se ocuparam de textos latinos eram bem que nunca existiu. Essa figura mítica indica
mais límpidas do que as utilizadas pelos o deus Thoth dos antigos egípcios, conside­
humanistas que se ocuparam de textos gre­ rado inventor das letras do alfabeto e da
gos, as quais se revelam extraordinariamente escrita, escriba dos deuses e, portanto,
carregadas de incrustações multisseculares. revelador, profeta e intérprete da sabedoria
Por fim, foram os próprios gregos doutos divina e do logos divino.
que saíram de Bizâncio para a Itália que, Quando tomaram conhecimento des­
com sua autoridade, avaliaram uma série de se deus egípcio, os gregos acharam que ele
convicções destituídas de fundamentos his­ apresentava muitas analogias com seu deus
tóricos. Hermes (= o deus Mercúrio dos romanos),
O que dissemos, portanto, explica per- intérprete e mensageiro dos deuses, qualifi­
feitamente a situação contraditória que se cando-o então com o adjetivo “ Trisme­
criou: enquanto, por um lado, humanistas gisto” , que significa “três vezes grande” .
como Valia denunciavam como falsificações Na antiguidade tardia, particularmen­
documentos latinos pluriconsagrados, por te nos primeiros séculos da época imperial
outro lado, ao contrário, humanistas como (sobretudo nos sécs. II e III d.C.), alguns te-
Ficino reafirmavam a “ autenticidade” de ólogos-filósofos pagãos, em contraposição
flagrantes falsificações gregas tardio-antigas, ao cristianismo que se expandia, produzi­
com resultados de grande alcance para a ram uma série de escritos que eles apresen­
história do pensamento filosófico, como taram sob o nome desse deus, com a evi­
veremos agora. dente intenção de contrapor às Escrituras
divinamente inspiradas dos cristãos outras
escrituras, apresentadas também como “ re­
velações” divinas.
2 ■ He r m e s T h s m e g is t o As pesquisas modernas determinaram,
e o T o rp u s sem qualquer sombra de dúvida, que sob a
máscara do deus egípcio ocultam-se diver­
sos autores e que, nesses textos, são bastan­
te escassos os elementos “egípcios” . Na rea­
■Hermes e o “C h o r p o s kle^rneficum" lidade, trata-se de uma das últimas tentativas
na realidade histórica de ressurgimento do paganismo, amplamen­
te baseada em doutrinas do platonismo da
Comecemos por Hermes Trismegisto e época.
pelo Corpus Hermeticum, que tiveram a maior Entre os numerosos escritos atribuídos
importância e celebridade na Renascença. a Hermes Trismegisto, o grupo claramente
Hoje sabemos com certeza o que iremos mais interessante constitui-se de dezessete
expor. Hermes Trismegisto é figura mítica, tratados (o primeiro dos quais leva o título

Hermes Trismegisto é personagem mítico,


identificado pelos antigos com o deus egípcio Thoth,
correspondente ao Hermes grego eao Mercúrio romano.
( )s escritos a ele atribuídos (tomados muito famosos)
são falsificações de era imperial,
que combinam platonismo,
elementos tirados da teologia cristã
e uma forma de gnose místico-mágica.
õ Renascença considerou Hermes uma espécie
de profeta pagão tão antigo quanto Moisés
e o apreciou como autoridade extraordinária,
a ponto de acolhê-lo solenemente,
no último quarto do século XV,
até em um mosaico da catedral de Siena
(de pião de Stefano), que aqui reproduzimos.
Se não se tem presente
a influência dos escritos herméticos,
não se compreende grande parte
do pensamento renascentista.
16
Primeira parte - CDH u m a n i s m o e a R enascença

de Pimandro), mais um escrito que só che­ Essa estupefação diante do profeta pa­
gou até nós apenas em uma versão latina gão (tão antigo quanto Moisés), que fala do
(que, no passado, era atribuído a Apuleio), “Filho de Deus” , levou à aceitação, pelo me­
intitulado Asclépio (talvez elaborado no séc. nos parcial, da estrutura astrológica e gnós-
IV d.C.). É precisamente esse grupo de es­ tica da doutrina. E não apenas isso: como o
critos que se denomina Corpus Hermeticum Asclepius também fala expressamente de
(= corpo dos escritos postos sob o nome de práticas mágicas, Ficino e outros encontra­
Hermes). ram em Hermes Trismegisto uma espécie de
justificação e legitimação da própria magia,
embora entendida em novo sentido, como
"Hermes e o “(Soupus ■Hermeticum” veremos.
na in te rp re ta ç ã o da R enascen ça A complexa visão sincretista de plato-
nismo, cristianismo e magia, que constitui
A antiguidade tardia aceitou todos es­ uma das marcas do Renascimento, encon­
ses escritos como autênticos. Os Padres cris­ tra assim em Hermes Trismegisto, “priscus
tãos, que neles encontraram acenos a doutri­ theologus”, uma espécie de modelo ante
nas bíblicas (como veremos), ficaram muito litteram ou, pelo menos, uma significativa
impressionados e, conseqüentemente, con­ série de estímulos extremamente nutrientes.
vencidos de que eles remontavam à época Portanto, sem o Corpus Hermeticum não é
dos patriarcas bíblicos, pensando assim que possível entender o pensamento renascen­
fossem obra de uma espécie de profeta pa­ tista.
gão. Foi assim que pensou Lactâncio, por
exemplo, como também, em parte, santo
Agostinho. Ficino consagrou solenemente
essa convicção e traduziu o Corpus Herme­ 3 O "Z o r o a siro "
ticum, que se tornou texto basilar do pen­ da R enascença
samento humanista-renascentista. Assim,
por volta de fins do séc. XV (1488), Her­
mes foi solenemente acolhido na catedral de Um documento que apresenta muitas
Siena, com uma efígie no pavimento com a analogias com os escritos herméticos é cons­
inscrição: “ Hermes Mercurius Trismegistus, tituído pelos chamados Oráculos caldeus,
contemporaneus Moysi” . obra em hexâmetros da qual numerosos
O sincretismo entre doutrinas greco- fragmentos chegaram até nós. Com efeito,
pagãs, neoplatonismo e cristianismo, tão podemos encontrar em ambos os escritos a
difundido no Renascimento, baseia-se em mesma mistura de filosofemas (extraídos do
grande medida nesse equívoco colossal. médio-platonismo e do neopitagorismo),
Desse modo, muitos aspectos doutrinários com acentuação do esquema triádico e tri-
da Renascença, considerados estranhamente nitário e com representações míticas e fan­
paganizantes e estranhamente híbridos, apre­ tásticas, apresentando um tipo análogo de
sentam-se agora sob justa luz. religiosidade confusa de inspiração oriental,
Na complexa concepção hermética, característica do paganismo tardio, conju­
considerada mais ou menos tão antiga quan­ gada com análoga pretensão de transmitir
to os mais antigos livros da Bíblia, os ho­ uma mensagem “ revelada” .
mens do Renascimento não podiam deixar Nós Oráculos, aliás, o elemento mági­
de ficar impressionados com os acenos ao co predomina ainda mais claramente do que
“ filho de Deus” , ao Logos divino, que lem­ no Corpus Hermeticum e o componente
bra o Evangelho de João. O tratado XIII do especulativo se enfraquece e se submete a
Corpus Hermeticum contém até uma espé­ objetivos práticos religiosos, a ponto de per­
cie de “ Sermão da montanha” e afirma que der toda a sua autonomia.
a obra de “regeneração” e salvação do ho­ Estes Oráculos, mais do que à sabedo­
mem deve-se ao “filho de Deus” , definido ria egípcia (à qual os escritos herméticos
como “um homem por vontade de Deus” . também se referem), se vinculam à sabedo­
Ficino chegou a considerar o Corpus ria babilônia. Com efeito, a heliolatria cal-
Hermeticum até mais rico que os próprios tex­ déia (o culto do sol e do fogo) desempenha
tos de Moisés, no sentido em que ele prevê a papel fundamental nesses escritos.
encarnação do Logos, do Verbo, dizendo que Como sabemos, seu autor Juliano (que
a “Palavra” do Criador é o “Filho de Deus” . viveu no séc. II) foi denominado (ou se fez
17
Capitulo pTÍTH6lT0 - O p Ê ^ s a m e n í o h u m a n i s t a - r e ^ a s c e ^ + i s t a e s u a s c a ^ a c + e W s + ic a s

denominar) “ o Teurgo” . A “ teurgia” é a influenciou Pitágoras e Platão, sobretu­


“ sabedoria” e a “ arte” da magia utilizada do no que se refere à doutrina da metempsi-
para finalidades místico-religiosas. E são cose.
precisamente essas finalidades místico-reli­ Todavia, muitos dos documentos que
giosas que constituem o dado característico chegaram até nós como “ órficos” são falsi­
que distingue a teurgia da magia comum. ficações posteriores, nascidas na época hele-
Os estudiosos modernos observaram nístico-imperial. A Renascença conheceu
que, enquanto a magia vulgar utiliza-se de sobretudo os Hinos órficos. Nas atuais edi­
nomes e fórmulas de origem religiosa com ções, esses hinos são oitenta e sete, mais um
objetivos profanos, a teurgia, ao contrário, proêmio. São dedicados a várias divinda­
faz uso das mesmas coisas com fins religio­ des, distribuindo-se conforme uma ordem
sos. E esses fins, como sabemos, são a liber­ conceituai precisa. Ao lado de doutrinas que
tação da alma em relação ao corpóreo e à remontam ao orfismo original, contêm ain­
“ fatalidade” a ele ligada e a conjunção com da doutrinas estóicas e doutrinas provenien­
o divino. tes do meio filosófico-teológico alexandrino,
Os renascentistas, porém, não pensa­ sendo portanto, seguramente, de composi­
vam assim, induzidos que foram a grave erro ção tardia. Mas os renascentistas os consi­
por abalizado douto bizantino, Jorge Gemis- deraram autênticos. Ficino cantava esses
to (cerca de 1355-1450), nascido em Cons- hinos para obter a influência benéfica das
tantinopla, que se fez denominar Pleton. Este estrelas.
considerou ser Zoroastro o autor dos Orá­ Segundo o próprio Ficino, na genea­
culos Caldeus e, indo para a Itália por oca­ logia dos profetas Orfeu foi sucessor de
sião do Concilio de Florença, ministrou li­ Hermes Trismegisto e muito próximo a ele.
ções sobre Platão e sobre as doutrinas dos Pitágoras ligava-se diretamente a Orfeu.
Oráculos, acreditando-os como expressão Platão teria haurido sua doutrina de Hermes
do pensamento de Zoroastro e suscitando e de Orfeu. Assim, Hermes, Orfeu e Platão
notável interesse pelos mesmos. ligaram-se em uma conexão que constitui o
Zoroastro foi, portanto, considerado alicerce de toda a construção do platonismo
profeta (“priscus tbeologus” ), e por vezes renascentista, que, conseqüentemente, mos­
apresentado até como anterior a Hermes ou tra-se completamente diferente do platonis­
como primeiro por cronologia e dignidade mo medieval.
com ele. Na realidade, Zoroastro (= Za- E claro, portanto, que, se não se leva­
ratustra) foi reformador religioso iraniano rem em conta todos os fatores que recorda­
do século VII/VI a.C., que nada tem a ver mos, escapa toda possibilidade de captar o
com os Oráculos Caldeus. significado da proposição metafísico-teoló-
Esse novo equívoco, portanto, contri­ gico-mágica da doutrina da Academia flo-
buiu grandemente para a difusão da menta­ rentina e de grande parte do pensamento dos
lidade mágica na Renascença. sécs. XV e XVI.
A tudo isso devemos agregar ainda a
enorme autoridade granjeada pelo Pseudo-
Dionísio Areopagita, que já era apreciado
4 O O ej-ew eenascem+is+a na Idade Média, mas agora passava a ser
lido com outros interesses (Ficino também
realizou uma tradução latina dos escritos de
Dionísio). Esse autor, como sabemos, não é
Orfeu foi poeta místico da Trácia. Com o santo convertido por são Paulo em Ate­
ele ligou-se o movimento religioso mistérico nas, e sim um autor neoplatônico tardio. E
chamado “ órfico” , do qual já falamos no também essa “ falsificação” contribuiu para
primeiro volume. Já no século VI a.C. esse criar o clima especial de que falamos.
poeta-profeta denominava-se “ Orfeu de À luz do que foi dito até agora, pode­
nome famoso” . mos passar ao exame do pensamento dos
Em relação ao Corpus Hermeticum e vários humanistas e das diversas tendências
aos Oráculos Caldeus, o orfismo repre­ e correntes filosóficas humanistas e renas­
senta uma tradição muito mais antiga, que centistas.

i
18 Primeira parte O - Humanismo e a R enascença

campo dos estudos filosóficos ou científicos, mas


no dos estudos gramaticais e retóricos [...]. A
K r is t e lle r
crítica humanista à ciência medieval é fre-
qüentemente radical e violenta, mas não toca
seus problemas e suas questões específicas
[...]. Todavia, se os humanistas foram diletantes
em jurisprudência, teologia, medicina e até em
Negação do significado filosofia, eles foram especialistas em uma quan­
filosófico do Humanismo2
1 tidade de outras matérias. Seu campo foram a
gramática, a retórica, a poesia, a história, e o
estudo dos autores gregos e latinos. Cies pe­
Segundo o estudioso americano P. O. netraram também no campo da filosofia moral,
Hristeller, a Renascença não foi uma época e fizeram alguma tentativa de invadir o da lógi­
de síntese, mas antes um período de tran­ ca, tentativa que foi primeiramente dirigida a
sição, e o Humanismo, particularmente, re­ reduzira lógica à retórica. Os humanistas, con­
presentou um movimento confinado aos e s ­ tudo, não deram contributos aos outros ramos
tudos retóricos e filológicos e, em sua maior
da filosofia ou da ciência.
parte, estranho aos interesses filosóficos.
P. O. Kristeller,
U m anesim o e S co la stica n e l fíin a sd m e n to italiano,
em “Humanitas", 1950, 5
1. Rs correntes culturais do Renascença
No literatura filosófica da Renascença a
primeira corrente que nos vem ao encontro é o
flristotelismo [...]. O Humanismo, segundo en­
tre os maiores movimentos intelectuais da Re­ G a r in
nascença, também teve seus precedentes me­
dievais, mas atinge seu pleno desenvolvimento
apenas durante a Renascença, da qual repre­
sento em certo sentido o aspecto mais caracte­
rístico e mais difuso. €m seus precedentes e Reivindicação do valendo
em sua origem, o Humanismo foi um movimen­ "filosófico-progmática"
to literário mais que filosófico, e sua influência
sobre a história da filosofia foi antes indireta, do Humanismo1
mas forte e penetrante [...]. O Platonismo foi
sem dúvida o mais importante entre os vários
interpretação de Hristeller se opôs d e­
movimentos filosóficos que surgiram do Huma­
cisivomente o estudioso italiano Cugênio
nismo. Ge merece consideração à porte, também
Garin, que sustentou que os verdadeiros fi­
porque teve outras raízes fora do classicismo
lósofos do 400, ativos fora das "escolas filo­
humanista [...]. Outro grupo de pensadores, o
sóficas" oficiais, foram justamente os huma­
dos assim chamados filósofos da natureza, é
nistas: eles souberam construir um método
constituído por alguns dos mais famosos pen­
novo poro enfrentar os diversos problemas
sadores do período, como Paracelso, Bruno e
da cultura e do vida prática. Contrários às
Campanella. Ainda menos que os aristotélicos,
"grandes catedrais de idéias", os humanistas
os humanistas e até os platônicos, eles podem
se dedicaram a indagar metodicamente e
ser considerados como escola ou tradição
concretomente os objetos dos ciências mo­
unificada [...]. A última corrente intelectual da
rais e das ciências naturais. €, segundo Garin,
Renascença que devemos lembrar, e talvez a
o atenção "filológica" aos problemas parti­
mais importante, é a que desembocou no ciên­
culares constitui justamente a nova "filoso­
cia clássica moderna.
fia ", típica da Renascença.
P. O. Kristeller,
M ovim enti filosofia d e i fíinasdm ento,
em "Giornole critico delia filosofia italiana", 1950, 2 9
1. fl filosofia humanista foi extra-escolóstica
2. Os humanistas não foram filósofos
Repetir, como se tem feito, que o Huma­
Creio que os humanistas italianos de fato nismo foi fenômeno não "filosófico", puramente
não foram filósofos, nem bons nem maus. Com literário e retórico; que os humanistas foram
efeito, o movimento humanista não surgiu no apenas mestres de eloqüência e gramáticos,
x^íu í ^i yj i o .- ív x v j / í .j3

19
Capítulo primeiro - O pensamento Knmanis+a-fenascentis+a e suas caíacterísficas

significa em primeiro lugar dar como pacífica uma ctoritas, têm em todo âmbito aquela exube­
visão do filosofar que está, ao contrário, em dis­ rância que o "honesto", mas "obtuso", escolas-
cussão; e significa, ao mesmo tempo, não ver ticismo ignorou.
bem claro os studio humanitatis, a "retórica" e €. Garin,
as "cartas". E significa também esquecer que L 'U m anesim o itoliono.
aquele movimento de cultura afirmou-se primei­
ramente fora da "escola", entre homens de
oção, políticos, senhores, chanceleres de repú­
blicas e oté dirigentes, mercadores e mesmo
artistas e artesãos. E na "escola" entrou por meio B urckhardt
das disciplinas lógicas e morais; mediante nova
linguagem e o estabelecimento de novas rela­
ções. A filosofia para a qual certos historiadores
olham, a "teologia" das escolas medievais, que
certamente foi coisa grandíssima, naqueles dias O individualismo
via justamente suas aulas tornarem-se desertas,
e sempre menor o eco de seus ensinamentos.
como marco originai
Depois que por séculos, e grandes séculos, o pen­ do Renascença2 1
samento humano dedicara-se sobretudo à ela­
boração de uma filosofia da experiência reli­
giosa, e tudo fora visto sob tal signo, agora a O argumento Fundamental do ensaio de
razão humana voltava todo seu esforço para o Jacob Burckhardt, La cultura dei Rinascimento
homem "poeta", para sua "cidade", para a na­ in Italia (lôóO ), é o desenvolvimento do in­
tureza mundana que estava conquistando. divíduo no civilização da Renascença: o mito
€. Gctrin, de uma humanitas enfim liberta do torpor me­
M e d ío e v o e fíin asdm en to. dieval e oberto o todos os experiências da
vida (religiosas, sociais, artísticas, políticas).
Burckhardt continuava assim a pôr o acento,
2 . Os humanistas contra as grandes
como os românticos, sobre o tema da "ruptu­
"catedrais de idéias" da €scolástica
ra " entre Idade Média e Renascença.
Todavia, para dizer a verdade, a razão
íntima da condenação do significado filosófico
do Humanismo é outra; e de resto manifesta-
1. O despertar do "indivíduo”
se claramente a partir da contínua referência
por contraste com as sínteses metafísico-teoló- No Idade Média os dois lados da consciên­
gicas da "obtusa mas honesto Escolástica": tra­ cia - o que reflete em si o mundo externo e o
ta-se do amor sobrevivente por uma imagem que mostra a imagem da vida interna do homem
da filosofia que o pensamento do Quatrocen­ - estavam como que envolvidos por um véu co­
tos constantemente sentiu. Com efeito, aquilo mum, sob o qual ou languesciam em lento torpor
de que se lamenta por tantos a perda foi justo­ ou se moviam em um mundo de puros sonhos.
mente aquilo que os humanistas quiseram des­ O véu era tecido de fé, de ignorância infantil, de
truir, isto é, a construção das grandes "catedrais vãs ilusões: vistos através dele, o mundo e o
de idéias", das grandes sistematizações lógico- história apareciam revestidos de cores fantásti­
teológicas: da Filosofia que subsume1todo pro­ cos, mos o homem não tinha volor a não ser como
blema, toda pesquisa, ao problema teológico, membro de uma família, de um povo, de um
que organiza e fecha toda possibilidade na tra­ partido, de uma corporação, das quais quase
ma de uma ordem lógica preestobelecida. inteiramente vivia a vida. A Itália é a primeira a
Aquela Filosofia, que foi ignorada na era do Hu­ rasgar este véu e a considerar o Estado e todos
manismo como vã e inútil, se substituem pes­ as coisas terrenas de um ponto de vista objeti­
quisas concretas, definidas, precisas, nas duas vo-, mas ao mesmo tempo se desperta podero­
direções das ciências morais (ética, política, samente no italiano o sentimento de si e de seu
econômica, estética, lógico-retórica) e das ciên­ volor pessoal ou subjetivo : o homem se transfor­
cias da natureza que, cultivadas iuxto própria ma no indivíduo, e se afirma como tal.
principio ,2 foro de todo vínculo e de toda ou-
2 . O advento de homens "universais"
Ora, quando este prepotente impulso vi­
'Subordina. nha a cair em uma natureza extraordinariamen­
2"Segundo seus princípios peculiares". te valorosa e versátil, a ponto de se apropriar
20
Primeira parte - O f - l w m a n is m o e a R e n a s c e n ç a

qo mesmo tempo de todos os elementos do fl Renascença está enraizada na Idade


cultura doquelo era, tinha-se entoo o homem Média, e [...] foi dominada por profundo im­
universal, que pertence exclusivomente à Itá­ pulso para humanizara religião [...]; a opinião,
lia. Homens de sober enciclopédico houve em há muito tempo dominante e ainda não intei­
todos os lugares no Idode Média em mais pa­ ramente morto, que atribui à Renascença um
íses, porque o sober era mois restrito e os ra­ caráter pagão [...], é um erro, e esta opinião
mos do cognoscível mois afins entre si; e pelo errôneo surgiu de umo visão anti-histórica,
mesmo razão oté o século XII encontram-se ar­ como de uma tendência racionalista, classicista
tistas universais, porque os problemas da ar­ e liberal.
quitetura eram relativamente simples e unifor­ fl Renascença surgiu no despertar, e por
mes, e no escultura e na pintura o conceito ou a meio do despertar do pensamento de uni­
substância da coisa a ser representado preva­ dade do €stado nacional. Na Itália o senti­
lecia sobre a forma. Na Itália da Renascença, mento nacional jamais se apagara, mesmo
ao contrário, nós nos defrontamos com artistas durante a Idade Média. Conservara-se sob
singulares, os quais em todos os ramos apre­ as cinzas, mesmo quando Bizâncio, os Godos,
sentam criações de fato novas e perfeitas em os longobardos, a monarquia franco-carolín-
seu gênero, e ao mesmo tempo emergem sin­ gia, os imperadores alemães das dinastias
gularmente também como homens. Outros soo saxônico, sálica, sueca, aplicaram suas pre­
universais e abraçam, além do círculo do arte, tensões ao domínio político sobre a Itália,
também o campo incomensurável da ciência com enquanto de outro lado a Cátedra de Pedro,
síntese maravilhosa. em sua rivalidade e luta com o império uni­
J. Burckhardt, versal olemõo, criaro-se, em base de seu
La cultura d e i fíin a scim en to in Italia. principatus eclesiástico mundial, um dominium
terreno sobre a terra itálica, em Roma, sede
originária da monarquia universal antiga. O
sentimento nacional italiano viveu sempre da
lembrança da antiga grandeza do Cstado ro­
B urdach
mano. No século XII inflamou-se no revolu­
ção e restauração nacional de Arnaldo de
Bréscio, que pôde ser abatida pelo papa e
pelo imperador Barbarroxo. Todavia, desde
o século XI os municípios itálicos haviam
D fls raízes chegado no ouge do bem-estar econômico e
da Renascença civil [...] e quando, depois da morte do impe­
rador federico II e o opôs a quedo cosa de
afundam na Idade Média
Soave, chegou ao fim a terrível luto entre
império e papado pela hegemonia política
O preconceito romântico de umo ruptu­ universal, quando a Itália se sentiu livre do
ra entre Idode Médio e Renascença Foi d e ­ domínio alemão, seu sentimento nacional ex­
cididamente combatido em nosso século plodiu em um grande incêndio espiritual, po­
p elo estudioso alemão Honrad Burdach, lítico-social e artístico. Csta foi o fonte espiri­
que mostrou como o Renascença tivera suas tual da Renascença.
raízes e sua Fonte espiritual na idélo, diFun­ O antigo pensamento de Roma, jamais
dida na Itália medieval e expressa sobre­ extinto, fez afluir nova e maior força. Rienzo,
tudo por Cola di Rienzo, de renascimento polí­ inspirado pela Idéia política de Dante, mas ul­
tico e religioso do êstado romano. Fl humanitas trapassando-a, proclamou, profeta de futuro
do Quatrocentos se concretizou, portanto, longínquo, a grande exigência nacional do
nesta perspectiva de reconciliação entre Fé Renascimento de Roma. €, sobre esta base, a
e espírito nacional, e Cola di Rienzo Foi o pai exigência da unidade da Itália.
espiritual do processo de Formação dos Cs- K. Burdach,
tados nacionais europeus. SigniFicoto e o rig in e d e lle p o ro le
"fíinascim ento" e "fíiFormo".
(S a p ítw lo s e g u n d o

O s d e b a + e s s o b ^ e p r o b le m a s m o r a is
e o A ) e o -e p ic u r is m o

1 . 0 S IKVICIO S do H w m am sm o

• Francisco Petrarca (1304-1374) é considerado o iniciador os precursores


do Humanismo enquanto propôs o retorno em si mesmos para do Humanismo:
buscar o conhecimento da própria alma e a redescoberta da elo- Petrarca...
qüência, das humanae litterae ciceronianas: a verdadeira sabe- _> § i
doria consiste em conhecer a si mesmos, e o caminho (o método)
para realizar esta sabedoria está nas artes liberais cultivadas oportunamente, ou
seja, como instrumentos de formação espiritual. E, remontando ao Platão do Fédon,
Petrarca definiu a verdadeira filosofia como pensamento e meditação sobre a
morte.
• Na esteira de Petrarca, Coluccio Salutati (1331-1406) prosseguiu a polêmica
contra as ciências naturais, defendendo a tese da supremacia das artes liberais.
Além disso, contra o delineamento dialético-racionalista contem­
porâneo, sustentou uma visão da filosofia entendida como práti- - e Coluccio
ca vivida e exercício de liberdade, e afirmou o primado da vida Salutati
ativa sobre a contemplativa. §2

1 " F r a n c is c o P e t r a r c a 1) a propagação do “naturalismo” di­


fundido pelo pensamento árabe, especial­
mente por Averróis;
2) o predomínio indiscriminado da
Como já dissemos, Francisco Petrar­ dialética e da lógica, com a respectiva men­
ca (1304-1374) é considerado unanimemen­ talidade racionalista.
te como o primeiro humanista. Isso estava E julgou fácil indicar os antídotos para
muito claro para todos já nas primeiras dé­ esses dois males:
cadas do séc. XV, quando Leonardo Bruni 1) ao invés de nos dispersarmos no co­
escrevia solenemente: “ Francisco Petrarca nhecimento puramente exterior da nature­
foi o primeiro, tendo tanta graça e enge­ za, é preciso voltarmo-nos para nós mesmos,
nho, que reconheceu e trouxe à luz a an­ objetivando o conhecimento da própria
tiga graciosidade do estilo perdido e ex­ alma;
tinto.” 2) ao invés de nos perdermos nos vazios
E como Petrarca chegou ao Humanis­ exercícios dialéticos, precisamos redescobrir
mo? Partindo do exame e da atenta análise a eloqüência, as humanae litterae cicero­
da “corrupção” e da “ impiedade” de seu nianas.
tempo, ele procurou identificar as causas, Com isso, ficam perfeitamente delinea­
para tentar remediá-las. E, em sua opinião, dos o programa e o método do “ filosofar”
as causas eram basicamente duas, estreita­ próprios de Petrarca: a verdadeira sabedoria
mente ligadas entre si: está em conhecer-se a si mesmo, e o caminho
22
Primeira parte O
- Humanismo e a R enascença

(o método) para alcançar essa sabedoria está íiA»» íS o lu c c io S a l u f a f i


nas artes liberais.
A passagem indubitavelmente mais fa­
mosa que ilustra a primeira parte é aquele O caminho aberto por Petrarca foi se­
trecho da Epístola que narra a subida ao mon­ guido com sucesso por Coluccio Salutati,
te Ventoso. Chegando ao cume do monte que nasceu em 1331 e se tornou chanceler
depois de longa caminhada, Petrarca abriu da República de Florença de 1374 a 1406 .
as Confissões de santo Agostinho e as pri­ Ele é importante sobretudo pelos se­
meiras palavras que leu foram estas: “ E os guintes motivos:
homens admiram os altos montes, as gran­ a) prosseguiu com grande vigor a po­
des ondas do mar, os largos leitos dos rios, lêmica contra a medicina e as ciências natu­
a imensidade do oceano e o curso das estre­ rais, reafirmando a tese da supremacia das
las; e esquecem-se de si mesmos. ” E eis o seu artes liberais;
comentário: “ Há muito tempo eu deveria b) contra a colocação dialético-racio-
ter aprendido, inclusive com os filósofos nalista de sua época, sustentou uma visão de
pagãos, que nada é digno de admiração filosofia entendida como mensagem testemu­
além da alma, para a qual nada é grande nhada e transmitida com a própria vida (como
demais” . fez o pagão Sócrates e como fizeram Cristo e
Da mesma forma, no que se refere ao se­ santos como Francisco) e centrada no ato da
gundo ponto que apontamos, Petrarca in­ vontade como exercício de liberdade;
siste no fato de que a “dialética” leva à im­ c) sustentou vígorosamente o primado
piedade e não à sabedoria. O sentido da vida da vida ativa sobre a contemplativa;
não é revelado por montes de silogismos, d) como operador cultural teve o gran­
mas sim pelas artes liberais, cultivadas opor­ de mérito de ter promovido a instituição da
tunamente, isto é, não como fins em si mes­ primeira cátedra de grego em Florença, sen­
mas, mas como instrumentos de formação do chamado à Itália para assumi-la o douto
espiritual. bizantino Manuel Crisolora (1350-1415).
A antiga definição de filosofia dada por A seguinte passagem do tratado Sobre
Platão no Fédon é apresentada como coin­ a nobreza das leis e da medicina (utilizamos
cidente com a visão cristã: a verdadeira fi­ a tradução de E. Garin), ilustra muito bem
losofia não é mais que o pensamento e a a concepção do primado da vida ativa so­
meditação sobre a morte. bre a contemplativa, à qual retornaria mui­
Compreendemos, portanto, como a con­ tas vezes o pensamento do Quatrocentos e
traposição entre Aristóteles e Platão se apre­ que constitui uma das marcas do huma­
sentasse inevitável. Em si mesmo, Aristóteles nismo. Dirigindo-se a quem foge da vida dos
é respeitável, mas foi ele quem forneceu as homens para concentrar-se na pura especu­
armas para os averroístas, sendo utilizado lação, ele escreve: “ Para dizer a verdade,
para construir aquele “ naturalismo” e aque­ afirmo corajosamente e confesso candida-
la “mentalidade dialética” a que Petrarca mente que, sem inveja e sem contrariedade,
tinha tanta aversão. Assim, Platão (um Pla­ deixo de bom grado para ti e para quem
tão que, no entanto, ele não podia ler, pois eleva ao céu a pura especulação todas as
não conhecia o grego) torna-se o símbolo outras verdades, desde que se me deixe a
do pensamento humanista, “ o príncipe de cognição das coisas humanas. Podes perma­
toda filosofia” . necer cheio de contemplação, mas que, ao
Para concluir, citamos uma afirmação contrário, eu possa ficar rico de bondade.
que mostra a que altura Petrarca elevara Podes meditar por ti mesmo, procura o ver­
a dignidade da “ palavra” que, em certo dadeiro e regozija-te ao encontrá-lo. (...)
sentido, se tornaria para os humanistas Que eu, ao contrário, esteja sempre imerso
aquilo que há de mais importante: “ Pois na ação, voltado para o fim supremo. Que
Sócrates, vendo um belo jovem em silên­ toda ação minha sirva a mim, à família, aos
cio, disse-lhe: ‘Fala, para que eu possa ver­ parentes e — o que é ainda melhor — que
te!’ Pois ele pensava que não é tanto pela eu possa ser útil aos amigos e à pátria e pos­
fisionomia que se vê o homem, mas pelas sa viver de modo a servir à sociedade hu­
palavras. ” mana pelo exemplo e pelas obras.”
23
Capítulo segundo - O s debates sobi-*e problemas morais e o AJeo-epicurismo

II. CDs d a b a te s
s o b re te m á t ic a s e tic o -p o lític a s
e m L . B m m , B . B r a c c i o l i r v i e J_B . ^ A lb e r ti

• No 400, o Humanismo espiritualista e intimista de Petrarca foi sendo substi­


tuído, decisivamente, por um Humanismo civilmente e politicamente mais empe­
nhado. Protagonistas desta direção foram principalmente Leonardo Bruni (1370­
1444), cuja fama está ligada sobretudo às traduções da Política e
Temas ético- da Ética de Aristóteles, e Poggio Bracciolini (1380-1459), que dis­
políticos cutiu a fundo o problema da relação entre "virtude" e "sorte",
em alguns sustentando que a primeira pode ter supremacia sobre a segun­
humanistas da principalmente operando em favor do Estado, ^
do Quatrocentos Figura versátil e poliédrica de humanista foi leorf Battista
-> $ 7-3 Alberti (1404-1472), que se ocupou sobretudo dos seguintes
temas:
a) a crítica das investigações teológico-metafísicas e a contraposição das in­
vestigações morais a elas; ^
ò) a exaltação do homo fabere da sua atividade factiva e construtora dirigida
à utilidade de todos os outros homens e da Cidade;
c) a relevância do conceito de "ordem" e de "proporção" entre as partes nas
artes, porque a verdadeira arte reproduz e recria a ordem que existe na realidade
das coisas;
d) a relação entre "virtude" e "sorte", pelo que a virtude é a atividade pecu­
liar do homem que o aperfeiçoa, garante sua supremacia sobre as coisas e tem
precedência sobre a sorte.

1 u L e o n a rd o B ru n i porque forneceram linfa vital para a pró­


1 pria especulação.
Bruni opôs ao humanismo espiritualis­
ta e intimista de Petrarca um humanismo
Leonardo Bruni (1370-1444), inicial­ mais empenhado política e civilmente. Para
mente funcionário da Cúria Romana e de­ ele, os clássicos são precisamente mestres de
pois chanceler em Florença, foi discípulo, virtudes “civis” . Assim, para Bruni, é para­
amigo e continuador da obra de Salutati. digmático o conceito aristotélico de homem
Os efeitos do ensino da língua grega entendido como “animal político”, que se
por Crisolora já se manifestam em Bruni torna o eixo do seu pensamento: o homem
como frutos extraordinariamente maduros. só se realiza plena e verdadeiramente na di­
Com efeito, ele traduziu Platão (Fédon, Gór- mensão social e civil indicada por Aristóteles
gias, Fedro, Apologia, Críton, Cartas e par­ em A política.
cialmente O banquete), Aristóteles (Ética a Mas a Ética a Nicômaco de Aristóteles
Nicômaco, Econômicos, Política), e ainda também é reavaliada por ele. Bruni estava
Plutarco e Xenofonte, Demóstenes e Es­ convencido de que sua dimensão “ contem­
quines. Revestem-se de interesse filosófico plativa” havia sido substancialmente exa­
seus Diálogos e a Introdução à promoção gerada e, em grande parte, deformada. O
moral, além das Epístolas. que vale mais não é o objeto contemplado,
A fama de Bruni liga-se sobretudo às e sim o homem que pensa e, enquanto pen­
traduções de Política e Ética a Nicômaco sa, age. O “ sumo bem” de que fala a Etica
de Aristóteles, que fizeram época não ape­ a Nicômaco não é um bem abstrato ou, de
nas porque contribuíram para mudar o tipo qualquer forma, transcendente ao homem,
de aproximação desses textos, mas também mas sim o bem do homem, a realização con-
24
Primeira parte - O H u m a n is m o e a R e h a s c e nç a

ereta de sua virtude, que, como tal, nos dá a c) a glória e a nobreza como fruto da
felicidade. virtude individual;
Como Aristóteles, Bruni reavalia o pra­ d) a questão da “ sorte” , que torna ins­
zer, entendido sobretudo como conseqüên- tável e problemática a vida dos homens,
cia da atividade que o homem desenvolve mas contra a qual a virtude pode levar a
segundo sua própria natureza. melhor;
Ainda como Aristóteles, Bruni sustenta e) a reavaliação das riquezas (já iniciada
que o verdadeiro parâmetro dos juízos morais por L. Bruni na introdução aos Econômicos
é o homem bom (e não uma regra abstra­ de Aristóteles), consideradas como o nervo
ta). E realizando o bem e a virtude, o homem do Estado e como aquilo que torna possível,
realiza a felicidade. Eis as suas conclusões: nas cidades, os templos, os monumentos, a
“Se, portanto, quisermos ser felizes, empe- arte, os ornamentos e toda beleza.
nhemo-nos em ser bons e virtuosos” . Bracciolini se concentra sobre um dos
pensamentos-chave do Humanismo: a verda­
deira nobreza é aquela que cada um conquis­
ta agindo. Pensamento que nada mais é do
2 P >o 0 0 Ío B m c c io lin i que uma variante de outro conceito basilar,
de origem romana, não menos caro a essa
época: cada qual é artífice da própria sorte.
Poggio Bracciolini (1380-1459), secre­
tário da Cúria Romana e depois chanceler
em Florença, também era muito ligado a 3 .Leon Bat+is+a jAIberli
Salutati. Foi um dos mais esforçados e fer­
vorosos descobridores de antigos códices.
Em suas obras, ele debate temáticas que se
haviam tornado canônicas nas discussões dos Uma figura de humanista de interesses
humanistas, particularmente as seguintes: poliédricos foi Leon Battista Alberti (1404­
a) o elogio da vida ativa em oposição à 1472), que, além das questões filosóficas,
ascese da vida contemplativa vivida em so­ também se ocupou de matemática e de ar­
lidão; quitetura. São conhecidos especialmente
b) o valor de formação humana e civil seus escritos Sobre a arquitetura, Da pintu­
das litterae; ra, Da família, Do governo da casa, Inter-
cenais (recentemente descobertos por Garin
em sua integridade).
Eis alguns temas (entre tantos outros)
que se destacam em Alberti:
a) Em primeiro lugar, deve-se destacar
a crítica das investigações teológico-meta-
físicas, consideradas vãs, contrapondo a elas
as investigações morais. Para Alberti, é inú­
til procurar descobrir as causas supremas
das coisas, porque isso não foi concedido
aos homens, que só podem conhecer aquilo
que está sob seus olhos, ou seja, por meio
da experiência.
b) Ligada a essa crítica encontra-se a
exaltação do homo faber e de sua atividade
produtiva e construtora, ou seja, aquela ati­
vidade que não está voltada apenas para o
benefício do indivíduo, mas também para o
benefício de todos os outros homens e da
cidade. Por isso, ele censura a sentença de
Epicuro, “que, em Deus, reputa como suma
Leon Battista Alberti (1404-1472) felicidade o nada fazer” , sustentando que a
foi humanista de interesses poliédricos, verdade é exatamente o contrário e que o
filósofo, matemático e arquiteto. supremo vício é “ estar à toa” . Sem a ação,
Este retrato foi tirado de uma incisão. a contemplação não tem sentido. No entan­
25
Capítulo segundo - O s d e b a t e s s o b u e p r o b l e m a s m o f a i s e. o / \ ) e o - e p i c u H s m o

to, elogia os estóicos, que consideravam “ o 4 O u t r o s k w m c m is fa s


homem ser pela natureza constituído no
d o Q u a tro c e n to s
mundo especulador e operador das coisas”
e achavam que “cada coisa nasceu para ser­
vir ao homem e o homem para conservar a
companhia e a amizade entre os homens” . Para concluir, recordemos alguns no­
E louva Platão por ter escrito que “ os ho­ mes de célebres humanistas do século XV.
mens nasceram por motivo dos homens” . Giannozzo Manetti (1396-1459) tra­
c) Nas artes, Alberti destacou a grande duziu Aristóteles e os Salmos, mas ficou co­
importância do conceito de “ordem” e “pro­ nhecido sobretudo por seu escrito De digni-
porção” entre as partes: a arte reproduz e tate et excellentia hominis, com o qual abriu
recria aquela ordem entre as partes que exis­ a grande discussão “ sobre a dignidade do
te na realidade das coisas. homem” e sua superioridade em relação às
d) Mas um dos temas mais caracterís­ outras criaturas.
ticos debatidos por Alberti é o da relação Mateus Palmieri (1406-1475) conciliou
entre “ virtude” e “ sorte” . Para ele, a “vir­ vida contemplativa e vida ativa. Embora re­
tude” não é tanto a virtus cristã, mas muito afirmando a fecundidade da obra humana
mais a areté grega, ou seja, aquela atividade e o papel central da cidade, revela inflexões
peculiar do homem que o aperfeiçoa e lhe platônicas que antecipam uma mudança de
garante a supremacia sobre as coisas. Em clima espiritual.
especial, apesar de algumas observações Por fim, devemos mencionar Ermolau
pessimistas, Alberti mostra-se firmemente Barbaro (1453-1493), que se qualificou co­
convencido de que, quando considerada e mo tradutor de Aristóteles (chegou até nós
exercida de modo realista e não como velei­ a tradução da Retórica), empenhando-se em
dade, a virtude leva a melhor sobre a sorte. restituir ao texto do Estagirita o seu antigo
Duas afirmações suas, sobre o sentido espírito, libertando-o das incrustações me­
da atividade humana e sobre a superiorida­ dievais.
de da virtude sobre a fortuna, tornaram-se Uma afirmação sua tornou-se famosís­
particularmente célebres: o homem nasceu sima: “ Reconheço dois senhores: Cristo e
“ não para murchar jazendo, mas sim para as letras.” Essa divinização das letras leva­
estar de pé fazendo” . “A fortuna subjuga va Ermolau Barbaro a uma posição quase
apenas quem se lhe submete. ” de ruptura; com efeito, ele chegava a ponto
Essas afirmações são como que duas de propor o celibato e o descompromisso
esplêndidas epígrafes que valem para todo civil para os doutos, a fim de que pudessem
o movimento humanista. se dedicar inteiramente ao ofício das letras.

Eis a planta de Elorença por volta do ano 1300 (tirada da “L'illustrazione italiana" 1930).
Muitos dos humanistas mais importantes do '400 viveram em Elorença e se tornaram chanceleres;
entre estes Coluccio Salutati, Leonardo Bruni, Poggio Bracciolini.
26
Primeira parte - O L I lo n c m is m o e a R e n a s c e n ç a

I I I . .L o u u e n ç o V a l i a

• A posição filosófica de Lourenço Valia (1407-1457) constitui uma retomada


em base cristã do Epicurismo: ela, com efeito, está marcada por uma polêmica
cerrada contra o ascetismo estóico e monástico, aos quais Valia contrapõe as ins­
tâncias do prazer, entendido porém no sentido mais amplo. A
Lourenço Valia: tese de fundo de Valia é que todo produto da natureza é santo e
o Neo-epicurismo louvável, e, portanto, também o é o prazer; mas existem diferen­
e o método tes graus de prazer, e o vértice é constituído pelo amor cristão de
filológico Deus. Por isso o prazer maximamente desejável, que é também o
-->§ 1-3 sumo bem, encontra-se na religião cristã e é alcançável não na
terra, mas nos céus.
A isso liga-se também a concepção de Valia da filologia, enquanto a salva­
ção do homem é garantida pela verdade, e a verdade é restituída pela correta
íntepretação da "palavra"; o método filológico permite justamente respeitar a
palavra e restituí-la em sua genuinidade para entender o espírito que ela expri­
me: isso é necessário por causa da própria sacralidade da linguagem, porque a
língua é encarnação do espírito dos homens, e a palavra é encarnação de seu
pensamento.

1 O / \ ) e o - e p ic u ( * is m o d e V a lia Valia não tem dúvida de que se possa


chamar de “ prazer” até a felicidade de que
a alma desfruta no Paraíso.

Uma das figuras mais ricas e significa­


tivas do Quatrocentos foi certamente Lou­ 2 ;A s u p e r a ç ã o d e ú d p ic u ro
renço Valia (1407-1457).
Sua posição filosófica, como se expres­
sa sobretudo na obra Do verdadeiro e do
falso bem, é marcada por viva polêmica O resultado último dessa amplificação
contra o ascetismo estóico e contra os ex­ do prazer é uma transcendência em relação
cessos do ascetismo monástico, em oposi­ à doutrina do próprio Epicuro. Com efeito,
ção aos quais afirma as instâncias do “pra­ o impacto desta doutrina com o cristianis­
zer” , entendido, porém, em seu sentido mo muda sua figura, como o próprio Valia
mais amplo e não somente como prazer da expressamente afirma: “Desta forma, refu­
carne. O trabalho de Valia representa, por­ tei ou condenei a doutrina tanto dos epi-
tanto, uma curiosa tentativa de retomada curistas como a dos estóicos, e mostrei que
do epicurismo, relançado e resgatado em nem com uns nem com outros, nem mesmo
bases cristãs. com qualquer um dos filósofos, há o bem
O raciocínio de fundo de Valia é o se­ sumo ou desejável, e sim em nossa religião,
guinte: tudo aquilo que a natureza fez “ não a ser alcançado não na terra mas nos céus” .
pode ser senão santo e louvável” ; o pra­ Se levarmos em conta essas afirmações,
zer deve ser visto nessa ótica, isto é, deve não nos surpreenderão as conclusões a que
ser considerado ele próprio como santo e chega Valia em outra obra célebre que es­
louvável; mas, como o homem é feito de cor­ creveu: Sobre o livre-arbítrio. Contra a ra­
po e alma, o prazer se explica em diferentes zão silogizante e contra o conhecimento do
níveis; assim, há um prazer sensível, que é o divino entendido aristotelicamente, Valia faz
mais inferior, mas também existem os pra­ valer as instâncias da fé, entendida como a
zeres do espírito, das leis, das intituições, entende são Paulo, e contrapõe as virtudes
das artes e da cultura, bem como, acima teologais às virtudes do intelecto, escreven­
de todos, o prazer do amor cristão por do textualmente: “ Fujamos portanto da
Deus. cupidez de conhecer as coisas superiores e
27
Cãpítulo SCgUtldo - CDs d e b a t e s so b ^ e p r o b le m a s m o r a is e o /S je o - e p ie u r is m o

Lourcnço Valia
(1 4 0 7 -1 4 5 7 )
propôs uma forma
de Epicurismo
conciliável
com a doutrina cristã;
além disso
foi filólogo de valor:
descobriu -
entre outras coisas -
a falsidade do documento
referente à célebre
“Doação de Gonstantmo
Tiramos este retrato
de uma estampa
conservada
na Civica Raccolta
delle Stampc Bertarelli,
em Milão.

nos aproximemos muito mais das coisas hu­ O trabalho de pesquisa filológica de
mildes. Nada importa mais para o cristão Valia também se estendeu aos textos sagra­
do que a humildade. Desse modo, sentimos dos, na obra Confrontos e anotações sobre
muito mais a magnificência de Deus, pois o Novo Testamento extraídas de diversos
está escrito: ‘Deus resiste aos soberbos, mas códices de língua grega e de língua latina,
concede a graça aos humildes.’ ” [2] que tinha o objetivo de restituir o texto
genuíno do Novo Testamento e, desse
modo, torná-lo mais inteligível. Os estu­
diosos destacaram que, com essa delicada
3 A f i l o l o g ia d e V a ll a : operação, Valia pretendia opor o método
! //palavra
I n filológico ao método filosófico medieval das
a quaestiones na leitura dos textos sacros,
como supoete da verdade polindo-os de todas as incrustações que se
haviam depositado sobre eles ao longo dos
séculos.
Analogamente, apenas nessa ótica e nes­ Dessa forma, Valia abria um caminho
se espírito podemos entender corretamente destinado a um grande futuro. E a força
o Discurso sobre a falsa e mentirosa doação demolidora do seu método revela-se por in­
de Constantino, no qual Valia demonstra com teiro no termo com o qual ele indica a lín­
rigorosas bases filológicas a falsidade do do­ gua latina, isto é, “ sacramentum.” Para
cumento sobre o qual a Igreja fundava a le­ Valia (como bem esclareceu Garin), a lín­
gitimidade de seu poder temporal, fonte de gua é encarnação do espírito dos homens
corrupção. A correta interpretação da “pa­ e a palavra é encarnação do seu pensa­
lavra” restitui a verdade, e esta salva. mento.
É assim que Valia conclui esse admi­ Daí a sacralidade da linguagem e a ne­
rável escrito: “ Que eu possa um dia ver — cessidade de respeitar a palavra e restituí-la
e não há nada que eu deseje mais forte­ à sua genuinidade, para entender o espírito
mente do que ver isso, especialmente se que ela expressa.
acontecer a meu conselho - o Papa sendo Com Valia, o humanismo alcança uma
apenas vigário de Cristo e não também de de suas conquistas mais elevadas e dura­
César!” douras.
28 Primeira parte - CD- H u m a n is m o e a R enascença

tas estar no sumo grau da felicidade toda vez


que compuseste por acaso, com muita vertigem
P etrarca
cerebral, ficando insone uma noite inteira, um
frágil silogismo que não conclui nada de nada.

2. R verdadeira filosofia
D Verdadeira sabedoria é meditação sobre a morte
Meditar profundamente sobre a morte,
armar-se contra ela, dispor-se a desprezá-la e
Unanimemente considerado como o
a suportá-la, enfrentá-la, caso necessário, dan­
principal precursor dos humanistas, ou mes­
do esta breve e mísera vida em troca da vida
mo como o primeiro humanista, Francisco
eterna, da felicidade, da glória; eis a verda­
Petrarca teve ehetivamente lúcida consciên­
deira filosofia, que alguns disseram não ser
cia do valor dos studia humanitatis na pers­
outra coisa que o pensamento da morte. Cxpli-
pectiva do Filosofia: a verdadeira sabedoria
cação esta, da filosofia, que, embora encon­
consiste em conhecer a si mesmos, e a via
trada pelos pagãos, todavia é própria dos cris­
(o método) paro realizar tal sabedoria está
tãos, que devem sentir o desprezo por esta vida
nas ortes liberais cultivadas oportunamente,
e a esperança da eternidade, e o desejo da
isto é, como instrumentos de Formação espi­
dissolução. Se tu, ó velho delirante, que pom-
ritual.
posamente23te chamas filósofo, tivesses pen­
Petrarca definiu além disso o verdadei­
sado aquilo mesmo uma vez apenas em uma
ra filosofia como pensamento e meditação
vida assim longa, jamais terias ousado chamar-
sobre o morte, referindo-se à passagem do
te filósofo, nem terias parado onde paraste,
fédon platônico, em que Sócrates afirma: "To­
nem te venderías torpemente por tão pouco
dos aqueles que praticam a Filosofia de modo
dinheiro, aviltando com os fatos tua profissão,
reto arriscam que p osse despercebido oos
que enalteces com as palavras.
outros que suo autêntica ocupação não é
mais que morrer e estar mortos".
3. O valor da solidão
e o conhecimento de si mesmos
A solidão é carente de muitos prazeres
1. Rs artes liberais são o caminho, do vulgo, mas é abundante de prazeres pró­
não a meta prios: repouso, liberdade, ócio. Aneu disse, e
é verdade: "O ócio sem as letras é morte, é
Dizes1* em primeiro lugar que estou priva­
sepultura dos vivos".5
do de lógico; espero que nõo me negues o
C certo que o solitário ignorante, se Cristo
Retórico e o Gramático, que estão compreen­
não estiver continuamente com ele, por maior
didos no nome do lógico, embora tombem isso
que seja o espaço da terra que ele tiver a sua
possos fazer, conforme teu parecer. Sumo exem­
disposição, estará amarrado sem grilhões.
plo de todo barbarismo, tu me tiros openos o
Dialético, no quol teus silogismos te mostram Não me maravilho que este gênero de
vida seja malvisto por ti. O que farias então, a
ser excelente, e que chamas lógico.
não ser contar as horas e esperar o momento
"Gs o delito, ó juizes". Ora, se quisesse po­
em que deves ir à ceia, conforme teus hábitos,
derio fazer ver que os ilustres filósofos caçoam
e quando ao leito? Não hoveria ninguém com
dessa próprio Dialético, do quol sou acusado
quem pudesses dar uma volta, ou com o qual
de estar privado; e eu poderio demonstrar, como
pudesses gritar; nem saberías falar contigo. Tal
se lê em Cícero, que os antigos peripatéticos,
virtude é de poucos homens; e nestes lugares,
claríssima seita de filósofos, também a deixa­
confesso, há bem poucos, ou melhor, quase
ram de lado. Todavia, ó estulto, dela não estou
ninguém. G j , ao contrário, pelo grande amor
privado: sei que valor dar a ela e que valor dar
que dedico às letras, vivo uma vida tão bela e
às artes liberais, flprendi com os filósofos a não
tão doce que, se conhecesses o estado do meu
estimar excessivamente nenhuma delas. Portan­
ânimo, creio que odiarias a hora em que nas­
to, assim como é louvável tê-las aprendido, tam­
bém é pueril nelas envelhecer. Gas são o cami­
nho, não a meta: exceto para os errantes e
'Petrarca se dirige oo médico que é alvo de suo
vagabundos que não têm nenhum porto na vida. invectivo.
Para ti que não tens nenhuma meta mais nobre 2”Com gronde jactando".
é meta qualquer coisa que encontres, ficredi- 3Sêneca, Cartas a Lucílio, XIX.
29
Capítulo segundo - O s d e b a t e s s o b r e p r o b le m a s m o r a is e o N e.o-e.p\a\C\stY\o

ceste, porque te colocou em uma vido mísero e tão. No que se refere a Cpicuro parece-me que
infeliz, o qual, pelo esperanço de pouco dinhei­ em todo lugar os vossos tenham atitude seme­
ro, te ocasiono grandíssimos angústias. lhante, quando vos deixais induzir em um erro
Com quem portanto falaste, velho miserá­ tão grave e afirmais que o termo “prazer" que se
vel? Com quem sentenciaste contra mim? Ama­ encontra em Cpicuro é outra coisa, assim como o
ram a solidão os patriarcas, os profetas, os termo “letícia", que se encontra em Aristóteles,
santos, os filósofos, os poetas, os chefes,4 os dado que foi assim que os bárbaros o traduzi­
imperadores famosíssimos. C, na verdade, quem ram. De fato, se Aristóteles não condena toda
não ama a solidão senão quem não sabe estar letícia, só digo isso, a causa jó está vencida: com
consigo mesmo? Odeia a solidão todo aquele efeito, quem aprova a letícia também não con­
que está sozinho na solidão, e teme o ócio todo dena o prazer, uma vez que, ao menos em seus
aquele que não faz nada. escritos, estes dois termos são um só. Cntre nós,
F. Petrarca, porém, eles diferem, como o gênero e a espécie.
Contra m edicum .

2. O duplo significado da palavra "voluptas”


para os Latinos
Vós, porém, dizeis: o termo latino é ver­
V a lla gonhoso. Mais vergonhoso, porém, é quem
mente e acusa falsamente. Quem de fato vos
ensinou isso? Deixando de lado todos os ou­
tros testemunhos, Cícero traduz sempre com
"voluptas" aquele nome, tanto nos textos de
Aristóteles como nos de Platão e de outros. C
fl defeso do própria
para que saibais o que isto significa e o termo
interpretação da "voluptas" que assim o defina (De finibus, II, 4, 13): ne­
nhuma palavra traduz melhor hedoné que pra­
O Neo-epicurísmo de Lourenço Vollo é zer. A este termo todos aqueles, em qualquer
o resultado de umo tentativo de conciliação lugar, que sabem falar latim atribuem dois sen­
entre o cristianismo e o concepção epicurista tidos, a alegria do ânimo que nasce de uma
do hedoné (em latim voluptas, prazer). suave comoção, e o gozo do corpo. Não será,
O sentido do doutrino de Volta do pra­ na verdade, prazer aquele deleite que goza­
zer íoi interpretado íinamente por €. Garin: mos pela liberalidade, pela misericórdia, por
"Fl proclamada santidade do voluptas, de uma obra levada egregiamente a termo, por
resto sentido muito lucrecionomente, é umo ter fugido do perigo, de uma desgraça, de uma
defeso do divindade do natureza, manifes­ doença e outras coisas semelhantes?
tação admirável do ordenodo e providencial C difícil para mim entender no que dife­
bondade de Deus. [...] Nodo se perde do rem estes dois nomes; e quem o nega é sem
volidez e do justezo do referência à experi­ dúvida um iletrado, mas, se também ele o diz,
ência cristã, entendido como redenção não também a vida eterna será prazerosa.
do olmo, mos do homem, de todo o homem,
corne e olmo, contra todo ascetismo pessi- 3. O verdadeiro prazer é bem-aventurança,
misto e todo evidente ou lorvol moniquefsmo. e consiste em servir a Deus
Fl passagem citado o seguir, olém de
mostrar como Volta tenho corojosomente Todavia, dizem que este nome não con­
defendido suo próprio doutrino hedonista, é vém, nem coaduna com quem fala de modo cris­
um testemunho do popeI ativo e bastante tão; é mais conveniente o termo "fruição" que
funcional desempenhado peta filologia nes­ substituís àquele, como se não se possa “fruir"
te mesmo ambiente doutrino!. e se costume entender também este em senti­
do torpe, e "fruição" não seja um termo insólito
e, por assim dizer, fruto sem doçura que não só
1. A defesa de Cpicuro não se encontra jamais nas selvas dos erudi­
tos, mas também sequer nos jardins do novo e
Primeiramente responderei em defesa de
do antigo testamento, enquanto, ao contrário,
Cpicuro, isto é, de um grego e, portanto, em de­
encontramos "prazer", e com freqüência, e en­
fesa dos Latinos, e por fim sobre o costume cris­
tre as árvores no lugar mais ameno. Acrescen­
tarei um testemunho não falso, como fazeis ao
4Os dirigentes. dizer "da vontade da carne" em vez de "do pra­
30
Primeira parte - O -H u m an ism o e a R e n a s c e n ç a

zer". Com efeito, no princípio do Gênesis lemos: po com o nome; que o chamem como quise­
"Deus tinha plantado no início o paraíso do pra­ rem: prazer, fruição, deleite, ou alegria, felici­
zer", e esta passagem é repetido, e não muito dade e bem-aventurança, contanto que a coi­
depois é chamado de "paraíso de Deus" (Gn sa se torne evidente e seja claro aquilo que
2,8; 2,15; 3,23; 3,24). Ora, assim incriminamos eu me havia proposto provar, ou seja, que não
também o nome ou a dignidade do prazer; a há nenhuma virtude verdadeira a não ser no
qual coisa foi alguma vez atribuída tanta digni­ serviço de Deus; e isso para que não nos pos­
dade e honra? Com certeza a nenhuma outra, sam insultar os que sustentam os gentios,
não à ciência, não à virtude, não à potência, para os quais existem verdadeiras virtudes
não o nenhuma das outras coisas que também naqueles que não pensam ter recebido de
costumamos louvar e desejar; o que devemos Deus suas almas nem acreditam que tives­
então pensar do prazer a não ser que seja a sem sido estabelecidos prêmios e punições
bem-aventurança, e daqueles que a perseguem por Deus, para os méritos dos vivos ou dos
o que podemos augurar a não ser que não a mortos.
alcancem jamais e que deixem para mim a par­ Onde estão aqueles que dizem que eu
te deles, caso a mereçam? Omito aquilo que tenho atitude má em relação à fé? Cu que
disse Davi; "Tu os embriagas na torrente de teu sempre combati assiduamente por ela e que
prazer" (Salmo 36,9), e também Czequiel que, também agora, se é lícito dizer a verdade,
falando do paraíso, menciona "os frutos do pra­ combato em sua defesa tanto que meus acu­
zer" (€z 31,9.16.18). sadores devem dizer-se inimigos da fé, e eu
Mas por que, poderio alguém me pergun­ defensor.
tar, assumiste a tarefa de louvá-lo? L. Valia,
[...] Cu, na verdade, santíssimo pai, como R p o lo g ia o d R ugenium IV,
testemunhei em minha própria obra, não me ocu­ em O p e ro om nia.

Valia,
aqui em uma incisão renascentista,
pode ser considerado
o primeiro dos grandes filólogos
da era moderna.
Ç a p ítu lo te rc e ie o

O A ) e -o p la fo n is m o \^erv a s c e rv fis ta

— I. ;A c e n o s —
s o b re a t r a d iç ã o p la tô n ic a e m g e r a l
e s o b r e o s d o u to s b iz a n tin o s d o s é c u lo ^C V

• A era do Humanismo e da Renascença é marcada por maci­ Na Itália


ça revivescência do Platonismo através da mediação de bizantinos o Neoplatonismo
doutos, que afiuíram à Itália a partir dos inícios do 400; mas o difundiu-se
texto platônico redescoberto continua a ser lido à luz da tradição no século X V
platônica posterior, ou seja, em função dos parâmetros tornados por bizantinos
canônicos pelos Neoplatônicos. O Platonismo, portanto, chegou doutos
aos renascentistas na forma do Neoplatonismo, e seu grande ^ § 1
relançamento ocorreu principalmente por obra de Nicolau de
Cusa, Ficino e Pico.

1 I Q e v iv e s c e n c ia Para o leitor de hoje, que está de posse


das mais refinadas técnicas exegéticas, isso
d o p la t o n is m o
pode parecer paradoxal. Na realidade, po­
rém, não o é. Somente a partir de inícios do
A época do Humanismo e da Renas­ Oitocentos é que se conseguiu começar a se­
cença é marcada por maciça revivescência parar as doutrinas genuinamente platônicas
do platonismo, que cria uma têmpera espiri­ das doutrinas neoplatônicas, e somente em
tual inconfundível. nossos dias, pouco a pouco, se está comple­
A revivescência do platonismo, porém, tando sistematicamente a imagem filosófi­
não significa o renascimento do pensamen­ ca de Platão em todos os seus traços, como
to de Platão tal como o encontramos ex­ já vimos em parte no volume I.
presso nos diálogos. É verdade que a Idade No fim do Trezentos Manuel Crisolora
Média leu pouquíssimos diálogos (Menon, abrira uma escola de grego em Florença,
Fédon e Timeu) e que, ao contrário, ao lon­ destinada a ser a “ nova Atenas” no Ociden­
go do Quatrocentos, os diálogos foram to­ te. Aí L. Bruni e depois M. Ficino teriam tra­
dos traduzidos para o latim, as versões de duzido Platão; aí acorreram os doutos de
Leonardo Bruni alcançaram grande sucesso Constantinopla para o Concilio que em 1439
e muitos humanistas estavam em grau de ter ia devido reunificar a Igreja grega com a
ler e entender o texto grego original. Entre­ latina; aí novamente encontraram acolhida
tanto, o redescoberto texto platônico conti­ os doutos gregos que haviam fugido de
nuou a ser lido à luz da tradição platônica Constantinopla depois da queda da cidade
posterior, ou seja, em função dos parâmetros na mão dos turcos em 1453.
que os neoplatônicos tornaram normativos Era inevitável a disputa a respeito da
e com multisseculares incrustações. “ superioridade” de Platão ou de Aristóteles.
32
Primeira parte - O -H u m a n i s m o e a R e n a s c e n ç a

Jorge Gemisto (significativamente apelidado


Pleton) sustentou o primeiro, enquanto Jor­
ge Scholarios Gennadio (por 1405-1472) e
Jorge de Trebisonda (1396-1486) o segundo;
mais equilibrado, o doutíssimo cardeal Bessa-
rione (1400 aproximadamente-1472), “o mais
latino dos gregos e o mais grego dos latinos” ,
tentou demonstrar a harmonia dos dois fi­
lósofos. A preferência global dos humanistas
foi, em todo caso, em geral por Platão.
Todavia, o grande relançamento do
Neoplatonismo, do ponto de vista filosófi­
co, aconteceria, de um lado, por obra de
Nicolau de Cusa, e, por outro, por obra da
Academia Platônica florentina com Ficino
à sua frente, e depois Pico.

Nicolau de Cusa (1401-1464) foi grande teólogo e


filósofo neoplatônico; suas teorias são como uma
grande ponte entre a era medieval e a renascentista.
/\ foto à direita reproduz o monumento de Nicolau
que se encontra em San Pietro in Vincoli, em Roma.
Dele recordamos a teoria da douta ignorância em
que está presente a consciência da desproporção
estrutural entre a mente humana (finita) e o infinito
ao qual ela tende, b.mbaixo, em uma incisão tirada
de uma obra de 1548, Nicolau é representado no
centro com o chapéu cardinalício, enquanto é guiado
pelos cordões do chapéu pelo papa, a fim de que
transmita aos fiéis sua sabedoria.
33
Capitulo tCTCCÍVO - CDA J ^ o p I a t c m i s m o ^ e n a s c e ia + is t a

II. Micolau d e . (D usa:


a douta iguoraucia^ em relação ao mfiuito

• A marca do pensamento de Nicolau de Cusa (1401-1464) é Predomínio do


constituída principalmente pelo predomínio do Neoplatonismo Neoplatonismo
(especialmente na formulação dele dada pelo Pseudo-Dionísio), no pensamento
a serviço de fortes interesses teológicos e religiosos. Em particu­ de Nicolau
lar, ele usa métodos matemáticos de forma original, desfrutan­ ->$1
do-os em sua valência analógico-alusiva e dando assim lugar a
um método definido como docta ignorantia.

• A douta ignorância consiste:


a) na consciência da desproporção estrutural entre a mente humana (finita) e
o infinito;
b) na pesquisa relacionada que se mantém rigorosamente dentro do âmbito
de tal consciência crítica: a mente humana, o intelecto, está para a verdade como
o polígono está para o círculo.
Ora, à verdade, que é por si inatingível, podemos porém nos A douta
aproximar por meio de uma pesquisa por aproximação, já que as ignorância:
várias coisas finitas podem aparecer como tendo certa relação desproporção
simbólica com o próprio infinito; no infinito (em Deus), com efei­ entre mente
to, tem lugar uma coincidentia oppositorum, no sentido que nele humana (finita)
coincidem todas as distinções que nas criaturas se encontram ao e infinito
invés opostas entre si: Deus é o absolutamente máximo e é tão ^ § 2
sem nenhuma oposição, que nele o mínimo coincide com o máxi­
mo. A esta verdade pode aproximar-se não a percepção sensorial, que é sempre
positiva, afirmativa, nem a razão (ratio), que é discursiva, e afirma e nega man­
tendo distintos os opostos segundo o princípio de não-contradição, mas o intelec­
to (intellectus), que está acima de toda afirmação e negação, e capta a coincidên­
cia dos opostos com um ato intuitivo.

• A derivação das coisas a partir de Deus comporta três aspectos fundamentais:


1) a complicação: Deus contém em si todas as coisas, e portanto as "complica"
(inclui) todas elas;
2) a explicação: o universo é a "explicação" de Deus como
explicação da unidade na multiplicidade, no sentido de que o Aentre relação
Deus
universo é "imagem" do Absoluto; e o universo.
3) a contração: explicando-se. Deus se "contrai" no universo, O significado
isto é, se recolhe manifestando-se nele, assim como a unidade do princípio
está "contraída" na pluralidade. Ora, uma vez que cada ser é "tudo
"contração" do universo, assim como o universo é por sua vez está em tudo"
contração de Deus, cada ser reassume em si, de seu modo, o uni­ - * § 3-4
verso inteiro e Deus, e tudo está em tudo.
• O homem, por conseguinte, é "microcosmo" em dois níveis: O conceito
a) em nível ontológico geral, porque "contrai" em si próprio de homem
todas as coisas; como
b) em nível ontológico especial e gnosiológico, porque, sen­ "microcosmo"
do dotado de mente e de conhecimento, é complicação das com­ - * § 5
plicações; a mente humana, que é imagem de Deus, é a imagem
da complicação das complicações. Aqui Nicolau está em sintonia com os humanistas,
os quais, do conceito de homem como "microcosmo", fizeram a sigla espiritual de
uma época.
34
Primeira parte - O -H w m a n is m o e a R enascença

1 ;A v id a / a s o b r a s o adjetivo corrige o substantivo de modo


essencial.
e o d e lin e a m e r v ío cm Itu m l
Vejamos, concretamente, em que con­
d e A J ic o l a u d e Ç d u sa siste essa “ douta ignorância” de Nicolau de
Cusa.

Uma das personalidades de maior des­


taque do Quatrocentos, talvez o gênio espe­ 2 ;A “d o w fa ig n o r â n c i a "
culativamente mais dotado, foi Nicolau de
Cusa, assim chamado por causa da cidade
de Kues (hoje Bernkastel, sobre o Mosel),
onde nasceu em 1401 (seu nome era Kryfts t f i| jA busca por a p roxim ação
ou, na grafia modernizada, Krebs). Alemão
de origem, mas italiano por formação, Nico­ Em geral, quando se busca a verdade
lau estudou especialmente em Pádua. Foi acerca das várias coisas, põem-se em relação
ordenado sacerdote em 1426 e tornou-se e comparam-se o certo com o incerto, o desco­
cardeal em 1448. Morreu em 1464. nhecido com o conhecido. Portanto, quan­
Entre suas obras, podemos recordar: do se indaga no âmbito das coisas finitas, o
A douta ignorância (1438-1440), As con­ juízo cognoscitivo é fácil ou difícil (quando
jecturas (elaboradas entre 1440 e 1445), A se trata de coisas complexas), mas, de qual­
busca de Deus (1445), A filiação de Deus quer modo, é possível.
(1445), A apologia da douta ignorância Entretanto, as coisas são bem diferen­
(1449), O idiota (1450), A visão de Deus tes quando se indaga do infinito, que, en­
(1453), A esmeralda (1458), O princípio quanto tal, escapa a toda proporção, res­
(1459), O poder ser (1460), O jogo da bola tando-nos portanto desconhecido. E essa a
(1463), A caça da sabedoria (1463), O com­ causa do nosso não saber em relação ao
pêndio (1463) e O ápice da teoria (1464). infinito: precisamente o fato de ele não ter
Entretanto, somente em parte Nicolau “proporção” alguma em relação às coisas
de Cusa interpreta as instâncias renascen­ finitas. A consciência dessa desproporção
tistas. Inicialmente, ele se formou com base estrutural entre a mente humana (finita) e
na problemática ligada às correntes ocka- o infinito, ao qual porém ela tende e pelo
mistas, e depois foi influenciado pelas cor­ qual anseia, e a busca que se mantém rigo­
rentes místicas ligadas a Eckhart. Mas a rosamente no âmbito dessa consciência crí­
marca de seu pensamento é constituída so­ tica constituem a douta ignorância.
bretudo pelo predomínio do Neoplatonis- Eis as conclusões de Nicolau de Cusa:
mo, especialmente na formulação desenvol­ “ O intelecto..., que não é a verdade, não
vida pelo Pseudo-Dionísio, quando não de pode compreender nunca a verdade de modo
Escoto Eriúgena (ainda que em menor me­ preciso, não podendo portanto compreendê-
dida), a serviço de fortes interesses teológi­ la ainda mais precisamente ao infinito, por­
cos e religiosos. que está para a verdade como o polígono
Entretanto, seria errado pensar em está para o círculo. Quanto mais ângulos
Nicolau de Cusa como filósofo predominan­ tiver o polígono, tanto mais será semelhan­
temente ligado ao passado: com efeito, em­ te ao círculo; entretanto, jamais será igual a
bora ele não se mostre alinhado com os ele, ainda que multipliquemos seus ângulos
humanistas, também não se encontra alinha­ ao infinito, já que nunca se chegará à iden­
do com os escolásticos. Na verdade, ele não tidade com o círculo.”
segue o método “ retórico” (ou seja, inspi­ Estabelecida essa premissa, Nicolau in­
rado na eloqüência antiga) próprio dos pri­ dica um caminho correto de busca por apro­
meiros, mas também não segue o método ximação daquela verdade (em si mesma
da quaestio e da disputado característico dos inalcançável), centrado na concepção segun­
segundos. Nicolau faz uso original de mé­ do a qual ocorre no infinito uma coincidentia
todos extraídos dos processos matemáticos, oppositorum, isto é, uma “coincidência dos
não, porém, em sua valência matemática opostos” . Por esse caminho, as várias coisas
propriamente dita, e sim em sua valência finitas podem aparecer não tanto em antíte­
analógico-alusiva. O tipo de conhecimento se com o infinito, mas muito mais como ten­
que deriva desse método é denominado por do com o próprio infinito uma relação sim­
nosso filósofo como docta ignorantia, onde bólica, de certa forma significativa e alusiva.
35
Capitulo terceiro - O 7 \]e o p la + o m sm o r e n a s c e n t is t a

Em Deus, portanto, enquanto infinito, O mesmo vale, por exemplo, também


coincidem todas as distinções, que nas cria­ para o triângulo. Se, pouco a pouco, pro­
turas se apresentam como opostas entre si. longarmos um lado ao infinito, o triângulo
O que significa isso ? m acabará por coincidir com a reta. E os
exemplos poderíam se multiplicar. Portan­
to, ao infinito, os opostos coincidem. Deus
MSM A ' C o i n c i d ê n c i a d o s o p o sto s" é, portanto, “complicação” dos opostos e
n o inj-ini+o sua coincidência. [2]

Nicolau mostra bem o que entende Os t r ê s 0 t * a u s d o c o n h e c im e n t o


quando fala de “ coincidência dos opostos” ,
utilizando o conceito de “ máximo” . Em Tudo isso implica uma superação do
Deus, que é máximo “absoluto”, os opos­ modo comum de raciocinar, que se funda
tos “ máximo” e “ mínimo” são a mesma no princípio da não-contradição.
coisa. Com efeito, pensemos em uma “ quan­ Nicolau pôde tentar uma justificação
tidade” maximamente grande e em uma ma- das possibilidades dessa superação exploran­
ximamente pequena. Agora, com a mente, do a distinção (de gênese platônica) dos graus
subtraiamos a “ quantidade” . Note-se que de conhecimento em: a) percepção sensorial;
subtrair a quantidade significa prescindir do b) razão (ratio); c) intelecto (intellectus).
“ grande” e do “pequeno” . O que resta en­ a) A percepção sensorial é sempre po­
tão? Resta a coincidência do “ máximo” e sitiva ou afirmativa.
do “ mínimo” , visto que “ o máximo é su­ b) A razão, que é discursiva, afirma e
perlativo, como o é o mínimo” . Por isso, nega, mantendo os opostos distintos (afir­
Nicolau escreve: “ A quantidade absoluta mando um nega o outro e vice-versa) segun­
(...) não é mais máxima do que mínima, já do o princípio da não-contradição;
que nela coincidem mínimo e máximo. ” Ou, c) já o intelecto, acima de toda afirma­
para melhor dizer, pelo fato de que Deus é ção e negação racionais, capta a coincidên­
coincidência de máximo e de mínimo, ele cia dos opostos com um ato de intuição su­
também está acima de toda afirmação e ne­ perior. Escreve Nicolau: “Assim, de modo
gação. incompreensível, acima de todo discurso
A geometria nos oferece esplêndidos racional, vemos que o máximo absoluto é o
exemplos “ alusivos” de coincidência dos infinito, ao qual nada se opõe e com o qual
opostos no infinito. Tomemos um círculo, o mínimo coincide.”
por exemplo, e aumentemos o seu raio, pou­ É nesse quadro que ele repropõe as
co a pouco, ao infinito, isto é, até fazê-lo principais temáticas do neoplatonismo cris­
tornar-se máximo. Pois bem, nesse caso, o tão com originalidade e fineza.
círculo acabará por coincidir com a linha, e Três pontos merecem ser destacados de
a circunferência pouco a pouco se tornará modo particular:
minimamente curva e maximamente reta, a) o modo como ele apresenta a rela­
como mostra este gráfico: ▼ ção Deus-mundo;

Além disso, no círculo infinito cada b) o destaque que dá ao antigo princí­


ponto será centro e, ao mesmo tempo, tam­ pio segundo o qual “tudo está em tudo” ;
bém extremo. E, analogamente, coincidirão c) o conceito de homem como “micro­
arco, corda, raio e diâmetro. E tudo coinci­ cosmo” .
dirá com tudo. Examinemos estes três pontos.
36
Primeira parte - O -Humanismo e a R enascença

3 A r e la ç ã o vento no vento, é água na água, é tudo em


tudo, segundo a antiga máxima de Anaxá-
e n t r e D e u s e o u n iv e r s o goras.
Eis uma belíssima página de Nicolau
de Cusa, em que ele expressa esse conceito
Nicolau de Cusa apresenta a derivação de modo admirável: “ Dizer ‘qualquer coisa
das coisas em relação a Deus em função de está em qualquer coisa’ não é mais do que
três conceitos-chave (já utilizados por alguns dizer ‘Deus está em tudo pelo tudo’ ou ‘tudo
pensadores platônicos medievais): 1) o con­ está em Deus pelo tudo’. Essas elevadíssimas
ceito de “ complicação” ; 2) o conceito de verdades podem ser compreendidas clara­
“explicação” ; 3) o conceito de “contração” . mente por um intelecto sutil: ou seja, de que
1) Deus contém em si todas as coisas modo Deus, sem diversidade, está em todas
(como máximo de todos os máximos). As­ as coisas (porque qualquer coisa está em
sim, pode-se dizer que ele “ complica” (in­ qualquer coisa) e todas estão em Deus (por­
clui) todas as coisas. Deus é a “complica­ que todas estão no todo). Mas, como o uni­
ção” de todas as coisas, assim como, por verso está em qualquer coisa como qualquer
exemplo, a unidade numérica é a “ compli­ coisa está nele, o universo, de modo contra­
cação” de todos os números, dado que es­ ído, é em qualquer coisa aquilo que ele pró­
tes nada mais são do que a unidade que se prio é contraidamente. E qualquer coisa no
explica, e em cada número nada mais se universo é o próprio universo, embora o uni­
encontra senão a unidade. Basta pensar tam­ verso esteja de modo diverso em uma coisa
bém no ponto, que é “ complicação” de to­ qualquer e esta esteja diversamente no uni­
das as figuras geométricas, visto que a linha verso.”
não é mais do que o ponto que se explica, e E eis algumas belas exemplificações:
assim por diante. “ Está claro que a linha infinita é linha, tri­
2) Com esses exemplos, também fica ângulo, círculo e esfera. Toda linha finita
claro o conceito de “explicação” . Mas de­ tem seu ser a partir da linha infinita, que é
vemos notar uma coisa: quando se conside­ tudo aquilo que existe. Por isso, na linha
ra Deus como “complicação” , deve-se di­ finita, tudo aquilo que é a linha infinita (isto
zer que todas as coisas estão em Deus, e são é, linha, triângulo etc.) é linha finita [...]
Deus em Deus; quando se considera Deus Todas as coisas na pedra são pedra, na alma
como “explicação” , Deus é em todas as coi­ vegetativa são alma, na vida são vida, no
sas aquilo que elas são. Diz Nicolau: enquan­ sentido são sentido, na vista são vista, no
to explicação, Deus “ é como a verdade na ouvido são ouvido, na imaginação são ima­
sua imagem” . Desse modo, dizer que o uni­ ginação, na razão são razão, no intelecto são
verso é explicação de Deus significa dizer intelecto, em Deus são Deus.” [3]
que ele é “ imagem” do Absoluto.
3) O conceito de “ contração” se expli­
ca como conseqüência disso, ou seja, como
manifestação de Deus. No universo, Deus 5 ;A p r o c l a m a ç ã o d o k o m e m
está “contraído” , assim como a unidade está // . //
“ contraída” (se manifesta) na pluralidade, co m o m icro c o sm o
a simplicidade na composição, a quietude
no movimento, a eternidade na sucessão
temporal e assim por diante. O conceito de homem como “ mi­
crocosmo” nada mais é do que uma con­
seqüência dessas premissas. No contexto do
pensamento de Nicolau, o homem é “mi­
4 O s ig n if ic a d o d o p rin cíp io crocosmo” em dois planos: a ) no plano on-
d u d o e s f á e m f u d o ,/ tológico geral, porque “ contrai” em si mes­
mo todas as coisas (da mesma forma que,
nesse sentido, toda coisa é microcosmo);
Assim sendo, então, cada ser é “ con­ b) no plano ontológico especial, visto que,
tração” do universo, assim como este, por sendo dotado de mente e conhecimento, o
seu turno, é contração de Deus. O que sig­ homem, do ponto de vista cognoscitivo,
nifica que cada ser resume o universo intei­ é “ im plicação” das imagens de todas as
ro e Deus. Todo o universo é flor na flor, é coisas.
37
Capitulo tCTCCÍVO - O N ^ o p la + c m is m o renc\scent'\sta

Citemos duas passagens mais caracte­ se explicam universalmente no universo,


rísticas a esse respeito, dado que, nesse pon­ porque existe um mundo humano. Todas
to, Nicolau de Cusa está em perfeita sintonia as coisas são complicadas humanamente na
com os humanistas, que fizeram do concei­ humanidade, porque ela é um deus huma­
to de homem como “microcosmo” uma ver­ no. Com efeito, a humanidade é unidade,
dadeira bandeira ideal, a marca espiritual que é também infinidade humanamente
de toda uma época. contraída.”
Nas Conjecturas, lemos: “ O homem No escrito A mente (que é parte de O
é um microcosmo ou um mundo humano. idiota), no fim, se lê: “ Considero que a men­
Em sua potência humana, a área da huma­ te [do homem] é a mais simples imagem da
nidade compreende Deus e o universo-mun- mente divina, entre todas as imagens da
do. O homem pode ser um deus humano complicação divina. A mente é a imagem
ou humanamente um deus, como pode ser primeira da complicação divina, que com­
um anjo humano, uma fera humana, um plica todas as suas imagens na sua simpli­
leão humano, um urso humano etc. Na cidade e na sua virtude de complicação.
potência da humanidade todos os seres Deus, com efeito, é a complicação das com­
existem segundo o modo particular dela. plicações e a mente, que é imagem de Deus,
Na humanidade se explicam humanamen­ é a imagem da complicação das compli­
te todas as coisas, do mesmo modo como cações.” ..[4]

Roma, como sede do dominium terreno sobre terra itálica do papado,


opôs um sentimento nacional italiano contra as pretensões ao domínio político
sobre a Itália do império.
Incisão tirada do Supplementum Chronicarum, 1490.
38
Primeira parte - O -Humcmismo e a R enascença

I I I . M a i^sílio "Fi c m o
tv a ^ A c a d e m i a p l a t ô n i c a f-lo p c n tin a

• Em 1462 nasce em Florença a Academia Platônica, uma


Nascimento
da Academia
associação de doutos e amantes da filosofia platônica sob a dire­
Platônica ção de Marsílio Ficino (1433-1499). Este, com suas três atividades
e características fundamentais - intimamente ligadas - de a) tradutor, b) pensa­
do pensamento dor e filósofo, c) mago, marcou uma virada decisiva na história
de Ficino do pensamento humanista-renascentista.
—>§ 7

• O pensamento de Ficino, expresso sobretudo na Theologia platônica, é uma


forma de Neoplatonismo cristianizado, do qual emergem quatro aspectos peculiares.
a) A filosofia como "revelação". O dispor a alma de modo
Os quatro que se torne intelecto e acolha a luz da divina revelação, em que
asp ecto s consiste a atividade filosófica, coincide com a própria religião:
principais esta revelação, iniciada com Hermes, Orfeu, Zoroastro, e continua­
da filosofia da por Pitágoras e Platão, completa-se depois definitivamente
de Ficino
—> § 3-7
com a vinda de Cristo, com o fazer-se carne do Verbo.
b) A alma como "copula mundi". A estrutura metafísica da
realidade é uma sucessão de cinco graus decrescentes de perfei­
ção: 1) e 2) Deus e anjo (mundo inteligível), 3) alma, 4) e 5) qualidade e matéria
(mundo físico). A alma representa o nó de conjunção, que é simultaneamente
todas as coisas: ela tem em si a imagem das coisas divinas, das quais depende, e as
razões e os exemplares das coisas inferiores, que de certo modo ela própria pro­
duz. A alma é o centro da natureza, é o nó e a cópula do mundo.
c) O repensamento em senso cristão do "amorplatônico". O amor na sua mais
alta manifestação coincide com a reintegração do homem empírico com sua meta-
empírica Idéia em Deus: esta reintegração é possível através da progressiva ascen­
são na escala de amor, e portanto é uma espécie de "endeusamento", um tornar-
se eterno no Eterno. A teoria do "amor platônico" teve larga difusão na Itália
(Pico, Bembo, Castiglione) e também na França.
d) A importância da magia "natural". Ficino não hesitou em se proclamar
"mago", seguidor porém não da magia profana, fundada sobre o culto dos de­
mônios, e sim da magia natural, que liga as coisas celestes às terrenas. A magia
natural implica a animação universal das coisas, e age por meio do "espírito", a
substância material sutilíssima que permeia todos os corpos; particularmente, ela
predispõe o "espírito" do homem a receber o mais possível o "espírito" do mun­
do. E em tudo isso Ficino não via nada de contrário ao Cristianismo: o próprio
Cristo, em muitos casos, fora um curador.

1 y\ p o s iç ã o d e T -icin o qüilidade, dedicar-se ao estudo e à tradução


de Platão. Essa data assinala o nascimento
n o p e n s a m e n t o r e n a s c e n t is t a
da “Academia Platônica” , que não foi uma
e a s c a r a c te r ís t ic a s escola organizada, mas muito mais um so-
d e su a o b ra dalício de doutos e amantes da filosofia platô­
nica, do qual Ficino foi a mente diretora.
Marsílio Ficino (1433-1499) marcou
Em 1462, Cosme, o Velho, dos Médici, uma reviravolta decisiva na história do pen­
doou a Ficino uma vila em Carregi, para que samento humanista-renascentista. Em parte,
ele pudesse, com toda a comodidade e tran- essa reviravolta se explica pelas novas con-
39
Capitulo tCTCcifO - O /S je o p ! a + c m is m o r e ^ a s c e r v H s t a

seguindo um plano filosófico claro. O teó­


rico, portanto, guiou as escolhas do tradu­
tor. E a atividade do tradutor, assim como a
do pensador, liga-se com a do mago, não de
modo agregado, e sim essencial, pelas ra­
zões que explicaremos.

2 F i c i n o c o m o le a d u t o e

A atividade oficial de Ficino como tra­


Marsílio Vicino (1431-1499) dutor começou em 1462, precisamente com
foi a mente diretriz. as versões de Hermes Trismegisto, ou seja,
Ja Academia Platônica florentina. com o Corpus Hermeticum, do qual já fala­
Traduziu em latim todos os textos essenciais mos amplamente, e com os Hinos órficos,
da tradição platônica aos quais se seguiram, em 1463, os Com-
(de Platão a Platino e até o Pseudo-Dionisio) mentaria in Zoroastrem. Em 1463, Ficino co­
e divulgou as doutrinas herméticas, meçou a tradução das obras de Platão, nas
consideradas por ele a fonte quais trabalhou até 1477. Entre 1484 e 1490
da qual o próprio Platão hauriu a sua filosofia.
traduziu as Enéadas de Plotino e, entre 1490
e 1492, traduziu Dionísio Areopagita.
Entre uns e outros, traduziu também
dições políticas, que acarretaram uma trans­ obras de Medio-platônicos, de Neopitagóricos
formação do literato-chanceler da Repúbli­ e de Neoplatônicos, como Porfírio, Jâmblico
ca no íiterato-cortesão, a serviço dos novos e Proclo, além do bizantino Miguel Pselo.
senhores. Mas a atividade de pensamento dos Como se vê, o mapa da “tradição platô­
literatos-chanceleres já esgotara todas as suas nica” está completo.
possibilidades, e agora era necessário apre­ A tradução de Hermes Trismegisto,
sentar uma fundamentação teórica daquele Orfeu e Zoroastro antes de Platão decorre
“primado” e daquela “dignidade” do homem do fato de que Ficino considerava como
sobre os quais todos os humanistas da pri­ autênticos e antiquíssimos os documentos
meira metade do Quatrocentos insistiram, atribuídos àqueles pretensos profetas e ma­
mas, no mais das vezes, permanecendo no gos, achando que Platão dependia deles.
nível fenomenológico e descritivo. E essa obra
foi empreendida precisamente por Ficino,
com base na recuperação maciça e no repen- 3 O s p o n to s f u n d a m e n t a is
samento da grande tradição “platônica” . d o p e n s a m e n t o filo s ó fic o
A importância de Ficino está emergin­ d e F i c in o
do de modo sempre mais claro como ver­
dadeiramente essencial não somente para
compreender o pensamento da segunda me­ Como filósofo, Ficino se expressou so­
tade do Quatrocentos, mas também para bretudo nas obras Sobre a religião cristã e
entender o pensamento do Quinhentos. na Teologia platônica, além de em vários
Foram três as atividades fundamentais comentários a Platão e a Plotino.
às quais Ficino se dedicou: 1) a de tradutor; Seu pensamento é uma forma de Neo-
2) a de pensador e filósofo; 3) a de mago. platonismo cristianizado, rico em observa­
Não acrescentaremos como quarta ativida­ ções interessantes, entre as quais emergem
de a de sacerdote (fez-se ordenar padre em como peculiares as seguintes:
1474, já na faixa dos quarenta anos de ida­ a) o novo conceito de filosofia como
de), pois, como veremos, para ele “ sacerdo­ “revelação ”;
te” e “ filósofo” são a mesma coisa. Suas três b) o conceito de alma como “copula
atividades revelam-se intimamente ligadas mundi”;
entre si e até indissolúveis. Ficino traduziu c) um repensamento do “amor platô­
grande quantidade de textos (de que falare­ nico” em sentido cristão;
mos logo) não por erudição, mas para res­ d) uma defesa da “ magia natural” .
ponder a necessidades espirituais precisas e Examinemo-las singularmente.
40
Primeira parte - O +-I w n iQ u is m o e n R e n a s c e n ç a

4 A f i l o s o f ia Ora, os primeiros dois graus e os últi­


mos dois são claramente distintos entre si,
c o m o V e v e l a ç ã o ” d iv in a
como mundo inteligível e mundo físico, ao
passo que a alma representa o “ elemento de
conjunção” , que tem as características do
A filosofia nasce como “ iluminação” mundo superior e, ao mesmo tempo, é ca­
da mente, conforme dizia Hermes Trisme- paz de vivificar o mundo inferior.
gisto. O ato de dispor e dobrar a alma de Numa ótica neoplatônica, Ficino ad­
modo que se torne intelecto e acolha a luz mite uma alma do mundo, almas das esfe­
da divina revelação, em que consiste a ativi­ ras celestes e almas dos seres vivos, mas é
dade filosófica, coincide com a própria reli­ sobretudo para a alma racional do homem
gião. Filosofia e religião são inspiração e que ele dirige seu interesse.
iniciação aos sagrados mistérios do verda­ O lugar mediano da alma é terceiro,
deiro. Hermes Trismegisto, Orfeu e Zoro- tanto percorrendo os cinco graus da hie­
astro foram igualmente “ iluminados” por rarquia do real de baixo para cima como
essa luz, sendo portanto profetas. Assim, sua de cima para baixo, como mostra este es­
obra é uma mensagem sacerdotal, voltada quema:
para a divulgação do verdadeiro.
O fato de que esses “prisci theologi” 1 Deus 5
tenham podido captar uma mesma verdade 2 anjo 4
(que também foi atingida, sucessivamente, 3 ALMA 3
por Pitágoras e Platão), segundo Ficino, se 4 qualidade 2
explica perfeitamente em função do Logos, 5 matéria 1
ou seja, do Verbo divino (do qual até mes­
mo Hermes Trismegisto fala expressamen­
te), que é igual para todos. A vinda de Cristo, Ficino salienta particularmente a im­
o Verbo fazendo-se carne, assinala o com­ portância da alma com sua função de “in­
plemento dessa revelação. termédio” (médium) de todas as coisas. Ela
Portanto, Hermes, Orfeu, Zoroastro, se insere entre os corpos sensíveis, sem ser
Pitágoras, Platão (e os platônicos) podiam corpórea nem sensível; é dominadora dos
perfeitamente se harmonizar com a doutri­ corpos, mas adere ao divino. E isto, diz Fi­
na cristã, posto que derivavam de uma úni­ cino, é o milagre máximo da natureza (hoc
ca fonte (o Logos divino). maximum est in natura miraculum). Ela, em
A religião dos simples não basta para certo sentido, inclui em si todas as coisas,
vencer a incredulidade e o ateísmo; é preci­ porque tem em si as imagens das coisas di­
so fundar uma douta religião (docta religio) vinas das quais todas as outras dependem,
que sintetize filosofia platônica e mensagem e constitui o nexo que as liga e, portanto,
evangélica. E precisamente nessa ótica que ela é “o nó e a cópula do mundo” (nodusque
deve ser vista a consagração sacerdotal de et copula mundi).
Ficino, assim como a sua missão de sacer-
dote-filósofo.
6 tecm ia
d o "a m o r p l a t ô n i c o ”
5 7A e sti'u fw ra k ie rc m c ju ic a
e s u a d if u s ã o
d o r e a l e a a lm a
c o m o ”c o p u l a m u n d i”
Estreitamente ligado à temática da al­
ma está, em Ficino, o tema do “ amor platô­
Ficino concebe a estrutura metafísica nico” (ou “amor socrático” ), no qual o Eros
da realidade, segundo o esquema neopla- platônico (entendido por Platão como for­
tônico, como uma sucessão de graus de­ ça que, à visão da beleza, eleva o homem ao
crescentes de perfeição, que ele, porém, de Absoluto, dando à alma as asas de que ne­
modo original (em relação aos neoplatô- cessita para retornar à sua pátria celeste)
nicos pagãos), identifica nos cinco graus se­ se conjuga com o amor cristão.
guintes: Deus, anjo, alma, qualidade (= for­ Para Ficino, em sua mais alta manifes­
ma) e matéria. tação, o amor coincide com a reintegração
41
Capítulo terceiro - O A ! e o p la + c m is m o r e n a s c e n t i s t a

do homem empírico à sua metaempírica “ magia natural” , não a magia perversa, que
Idéia em Deus, o que se torna possível através trafica com os espíritos, nem a magia vazia
de uma progressiva ascensão na escala do e profana.
amor. Portanto, é uma espécie de “ endeusa- A “magia natural” de Ficino fundamen­
mento” , um fazer-se eterno no Eterno. tava-se na construção neoplatônica do seu
“ Certamente — escreve Ficino no Co­ pensamento, que implica a animação uni­
mentário ao Banquete — aqui estamos di­ versal das coisas, mas também, particular­
vididos e truncados, mas depois, ligados pelo mente, na introdução de um elemento espe­
Amor à nossa Idéia, voltaremos a ser ínte­ cial que ele chama “espírito” , que é uma
gros, de modo que parecerá que nós primei­ substância material sutilíssima que perpas­
ro amamos Deus nas coisas para depois sa todos os corpos e que, entre outras coi­
amar as coisas nele e que nós honramos as sas, constitui o meio pelo qual a alma age
coisas em Deus sobretudo para nos recupe­ sobre os corpos e estes sobre ela.
rarmos — e, amando Deus, amamos a nós Esse “ espírito” (substância pneumáti­
mesmos. ” ca) está difundido em toda parte e, portan­
A teoria do “ amor platônico” teve am­ to, está presente em nós, assim como está
pla difusão na Itália (Pico delia Mirandola, presente no mundo e no céu. O “ espírito do
Bembo, Castiglione), pois o terreno já ha­ céu” , porém, é mais puro. Fazendo uso de
via sido preparado pela difusão do “ doce vários meios, precisamente “ naturais” , a
estilo novo” e pelas temáticas a ele ligadas, “magia natural” de Ficino tendia a predis­
mas também fora da Itália (especialmente por oportunamente o “ espírito” que está no
na França). homem a receber o mais possível o “ espíri­
Feão Hebreu (cujo verdadeiro nome é to” do mundo e a absorver sua vitalidade
Jehudah Abarbanel, tendo nascido em 1460 “ por meio dos raios dos astros oportuna­
e morrido por volta de 1521), em seus Diá­ mente atraídos” .
logos de amor distinguiu-se de todos pelo Enquanto portadores de vida e de es­
frescor e originalidade, reelaborando essa pírito, podiam ser utilizados diversamente
doutrina de forma que fará sentir sua influên­ pedras, metais, ervas e conchas, desfrutan­
cia até mesmo na concepção do amor Dei do-se de sua presumida “ simpatia” de modo
intellectualis de Spinoza, de que falaremos vantajoso. Assim, Ficino também confec­
adiante. cionava talismãs. Além disso, fazia uso de
Entre os muitos documentos relativos encantamentos musicais, cantando hinos ór-
ao “ amor platônico” , para concluir, lembra­ ficos com acompanhamento instrumental
remos a bela Altercação de Fourenço de monocórdico para assim captar as benéfi­
Médici, que mostra a grande penetração cas influências planetárias com consonân­
dessa doutrina do amor e põe em grande cias que “simpatizavam” com as dos astros.
saliência o conceito de que, amando a Deus, E vinculava estreitamente essas práticas com
nós “nos elevamos à altura dele” , e que nos­ a medicina.
sa alma “amando se converte em Deus, e Ele não via nada de contrário ao cris­
sobre o Deus visto se dilata" . tianismo em tudo isso: em muitos casos, o
próprio Cristo havia sido um curandeiro.
Essas coisas, notemos bem, não são fe­
nômenos de pura excentricidade isolada,
7 y \ d o u le in a m á g ic a mas são coisas comuns a muitos homens do
d e F i c in o Renascimento, constituindo portanto um
elemento característico de uma época, do
e s u a im p o e f â u c ia
qual não podemos prescindir para compreen­
der esse período.
Notemos que Giordano Bruno, um sé­
A doutrina mágica de Ficino pode ser culo depois, apresentará na Universidade de
vista sobretudo na obra De vita, de 1489 Oxford aulas sobre “ magia natural” , até
(que é composta de três escritos). Ele não mesmo plagiando o terceiro dos tratados do
hesita em proclamar-se “mago” , seguidor da De Vita de Marsílio Ficino.
42
Primeira parte - O -Hu m a h ism o e a 1 ^ e F \asc e F \ç a

= = = = = I V . P i c o d e l i a ^ V lim F td o la 1 -----
ekvb^e pla+oKvismoy a n s to + e lis m o , c a b a l a e r e lig iã o

• Os dois pontos mais relevantes da filosofia de Pico delia Mirandola (1463­


1494) - vizinha, mas com numerosas divergências, da posição de Ficjno - referem-
se à concepção da cabala e à doutrina da dignidade do homem.
A cabala é uma doutrina mística de origem medieval e de
influxo helenístico, ligada à teologia hebraica, que reúne o aspec­
Pico delia to teórico-doutrinal de uma interpretação "alegórica" da Bíblia, e
Mirandola: o aspecto prático-mágico, baseado sobre a concepção de que as
a cabala letras e os nomes hebraicos refletiríam tanto a natureza espiritual
e a dignidade do mundo como a linguagem criativa do mundo. Ora, Pico afirma
do homem
- » § 2-3
erroneamente que a cabala remonta à mais aptiga tradição
hebraica, e até a Moisés, e nesse sentido projetou a unificação
de aristotelismo e platonismo, filosofia e religião, magia e cabala.
Preliminar a esse grande projeto de unificação era a doutrina da "digni­
dade do homem", segundo a qual, enquanto todas as criaturas sao ontologica-
mente determinadas a ser aquilo que são e não outra coisa, o homem é, ao con­
trário, a única criatura posta no confim de dois mundos e com uma natureza
constituída de modo a plasmar-se e esculpir-se segundo a forma pré-escolhida:
a grandeza e o milagre do homem está, portanto, em ser artífice de si próprio,
autoconstrutor.

1 CD p e n s an \e.n io d e P i c o teórico, mas atingisse também a vida reli­


giosa e retomasse a pureza dos costumes
(nesse sentido, foram significativas suas sim­
A posição de Ficino, tão rica de idéias patias por Savonarola).
e temáticas, tem uma correspondência aná­ Deter-nos-emos aqui em dois pontos de
loga na posição de Pico delia Mirandola maior relevo de sua doutrina.
(1463-1494), apesar de suas numerosas di­
ferenças e divergências.
As novidades mais vistosas que ele trou­
2 P ic o e a c a b a la
xe, em relação a Ficino, foram as seguintes:
a) à magia e ao hermetismo, ele agre­
gou também a “ cabala” (ou cabbala), cuja
eficácia extraordinária exaltou; Como Pico entendia a “cabala” e como
b) quis também envolver Aristóteles no considerava poder inseri-la em seu plano de
programa geral de pacificação doutrinária conciliação geral entre religião e filosofia?
(estudara o aristotelismo sobretudo em A cabala é uma doutrina mística ligada
Pádua); à teologia judaica, sendo apresentada como
c) além disso, sentiu a necessidade de revelação especial feita por Deus aos hebreus,
reagir contra os sintomas de um incipiente a fim de que pudessem conhecê-lo melhor e
fenômeno de involução em sentido grama- melhor pudessem entender a Bíblia.
tológico e, portanto, fortemente reducionis- A cabala conjuga dois aspectos: um
ta, que se manifestava em alguns humanis­ aspecto teórico-doutrinário (que, entre ou­
tas, defendendo assim algumas conquistas tras coisas, comporta uma particular inter­
da escolástica (nesse sentido, é significativa pretação “ alegórica” da Bíblia) e um aspec­
a polêmica com Ermolau Barbaro), que es­ to prático-mágico, que se desenvolve tanto
tudou especialmente em Paris; por uma forma de auto-hipnose voltada para
d) manifestou o vivo desejo de que a concretizar a contemplação como por uma
reforma religiosa não se limitasse ao plano forma muito próxima da magia, fundada no
43
Capítulo terceiro - O A l e o p U + o n i s m o ^ e ia a s c e ^ t is + a

suposto poder sagrado da língua hebraica e Por esse motivo, Pico dedicou-se inten­
no poder proveniente dos anjos oportuna­ samente ao estudo da língua hebraica (além
mente invocados, bem como dos dez nomes do árabe e do caldeu), porque sem o conhe­
que indicam os poderes e atributos de Deus, cimento direto do hebraico não se pode pra­
chamados sefirot. ticar a cabala com eficácia, pelo motivo que,
A cabala é de origem medieval, apre­ segundo as convicções dos sustentadores da
sentando influências helenísticas (em certos cabala, as letras e os nomes hebraicos teriam
aspectos manifesta um espírito análogo ao um poder especial, enquanto refletiríam tan­
dos escritos herméticos, dos Oráculos Cal- to a natureza espiritual do mundo como a
deus e do Orfismo), porém seus fundadores linguagem criativa de Deus.
a fizeram remontar à mais antiga tradição Somente nessa ótica é que se podem
hebraica. entender as famosas novecentas Teses ins­
Também neste caso, o responsável por piradas na filosofia, na cabala e na teologia,
uma série de posições assumidas por Pico apresentadas por Pico, nas quais deveríam
foi um gritante erro histórico. Com efeito, se unificar aristotélicos e platônicos, filoso­
ele considerava que a cabala remontava ver­ fia e religião, magia e cabala. Algumas des­
dadeiramente à antiga tradição, até mesmo sas teses foram julgadas heréticas e conde­
a Moisés, que a teria transmitido oralmen­ nadas. Em conseqüência disso, Pico sofreu
te, sob a forma de iniciação esotérica. uma série de contrariedades, sendo inclusi-

Giovanui Pico
delia Mirandola
(1461-1494)
foi pensador platônico,
fervoroso sustentador,
além do pensamento
hermético,
também da cabala.
Foi o teórico mais
conhecido
da doutrina
da “dignidade do homem
O retrato aqui
reproduzido é antigo.
44 Primeira parte - CD"H u m an ism o ■' a R e n a s c e n ç a

ve preso na Savóia, quando fugia para a fato de ele ser artífice de si mesmo, auto-
França. (Depois foi libertado por Louren- construtor.
ço, o Magnífico, e perdoado por Alexandre Eis o belíssimo discurso posto por Pico
VI em 1493). O Discurso sobre a dignidade na boca de Deus e imaginado como dirigi­
do homem, que se tornou muito famoso e do ao homem recém-criado, o qual teve
que permanece um dos textos mais conhe­ vastíssimo eco sobre contemporâneos de
cidos do humanismo, devia constituir a pre­ todas as tendências: “Eu não te dei, Adão,
missa geral das Teses. nem um lugar determinado, nem um aspec­
to próprio, nem qualquer prerrogativa só
tua, para que obtenhas e conserves o lugar,
o aspecto e as prerrogativas que desejares,
segundo tua vontade e teus motivos. A na­
v im p ic o , tureza limitada dos outros está contida den­
e a d o u te in a tro das leis por mim prescritas. Mas tu de­
d a d ig n id a d e d o kom em terminarás a tua sem estar constrito por
nenhuma barreira, conforme teu arbítrio, a
cujo poder eu te entreguei. Coloquei-te no
A doutrina desse grandioso “ manifes­ meio do mundo para que, daí, tu percebes­
to” sobre a “ dignidade do homem” é apre­ ses tudo o que existe no mundo. Não te fiz
sentada como derivação da sabedoria do celeste nem terreno, mortal nem imortal,
Oriente, desenvolvendo-se particularmente para que, como livre e soberano artífice, tu
de uma sentença do Asclépio, obra atribuí­ mesmo te esculpisses e te plasmasses na for­
da, como já dissemos, a Hermes Trismegisto: ma que tivesses escolhido. Tu poderás dege­
“Magnum miraculum est homo”. nerar nas coisas inferiores, que são brutas,
Eis as afirmações explícitas do nosso e poderás, segundo o teu querer, regenerar-
autor: “ Li nos escritos dos árabes, vene- te nas coisas superiores, que são divinas.”
randos Padres, que Abdalla Saraceno, inter­ Este é um verdadeiro e próprio mani­
rogado sobre o que lhe parecia admirável festo do pensamento humanista-renascen-
neste palco do mundo, respondeu que não tista em sua globalidade.
percebia nada de mais esplêndido do que o Portanto, enquanto os seres brutos na­
homem. E com essa afirmação concorda o da mais podem ser além de brutos e os anjos
famoso dito de Hermes: ‘Grande milagre, ó somente anjos, já no homem existe o germe
Asclépio, é o homem.’ ” de cada vida. Conforme o germe que culti­
M as por que o homem é esse grande var, o homem se tornará planta, animal racio­
milagre? A explicação que Pico dá a essa nal ou anjo e até mesmo, se não estiver con­
questão (e que, com justiça, tornou-se mui­ tente com todas essas coisas e recolher-se em
to famosa) é a seguinte. Todas as criaturas sua unidade mais íntima, então, “tornado um
são ontologicamente determinadas a ser só espírito com Deus, na solitária névoa do
aquilo que são e não outra coisa, em virtu­ Pai, aquele que foi posto acima de todas as
de da essência precisa que lhes foi dada. coisas estará acima de todas as coisas” .
Já o homem, único entre as criaturas, foi Em conclusão, como se pode ver, so­
posto no limite entre dois mundos, com mente no contexto mágico-hermético e
uma natureza não predeterminada, mas cabalístico é que se pode entender a célebre
constituída de tal modo que ele próprio se mensagem de Pico delia Mirandola. E so­
plasmasse e esculpisse segundo a forma mente considerando essa ótica é que se pode
pré-escolhida. Assim, o homem pode se entender a especificidade e a peculiaridade
elevar à vida da pura inteligência e ser do humanismo renascentista e, portanto, sua
como os anjos, podendo até mesmo ele­ diferença em relação ao humanismo medie­
var-se ainda mais acima. Desse modo, a val e a outras formas posteriores de huma­
grandeza e o milagre do homem estão no nismo. i i i i e
45
Capitulo terceiro - O JVe o p la + o irism o (‘e n a s c e n t i s f a

V . F V a r v c is c o IPcxinz i

•O fundamento da filosofia de Francisco Patrizi (1529-1597)


é a convicção de que sem filosofia não é possível ser religiosos. À Patrizi:
filosofia de Aristóteles ele opõe a de Platão, mas sobretudo a a importância
filosofia hermética, para ele de muito valor. Depois dessa certeza da filosofia
convidou o papa a promover o ensinamento do Corpus Her- hermética
meticum e se atreveu também a recomendar-lhe o hermetismo ^§1
no plano de estudos dos jesuítas.

1 P a t r iz i : mães retornarem à fé católica. E chegou até


mesmo a recomendar ao pontífice a intro­
e x a r n p lo d a c o n t in u id a d e dução do hermetismo no programa de estu­
d a m e n t a lid a d e k e ^ m é tic a dos dos jesuítas. Em suma, para Patrizi, o
Corpus Hermeticum teria podido ser ótimo
instrumento a serviço da restauração do
Francisco Patrizi viveu no século XVI catolicismo.
(1529-1597), mas trilhou o mesmo cami­ A Inquisição, obviamente, condenou
nho de Ficino e de Pico. Ele representa um como não-ortodoxas algumas das idéias de
exemplo paradigmático da tenaz manuten­ Patrizi, que aceitou submeter-se a julgamen­
ção da mentalidade hermética, como já ilus­ to. A tentativa de fazer a Igreja acolher ofi­
tramos. Ele se ocupou a fundo do Corpus cialmente Hermes Trismegisto só podia fa­
Hermeticum, bem como dos Oráculos Cal- lir, dada a confusão dos planos religioso e
deus. Sua obra teorética mais notável é a mágico que implicava. Todavia, tal tentati­
Nova filosofia universal. va permanece verdadeiramente emblemática
Seguindo Hermes Trismegisto (que ele e muito significativa para fazer compreen­
considerava não apenas contemporâneo de der uma das componentes essenciais do es­
Moisés, mas até mesmo mais velho um pou­ pírito renascentista.
co, paulo sênior), Patrizi tinha a convicção
de que, sem filosofia, não era possível ser
religioso nem piedoso. Mas a deformação
da filosofia de Aristóteles, que negava a pro­
vidência e a onipotência de Deus, mostra­
va-se gravemente prejudicial. Portanto, era
necessário opor a Aristóteles a filosofia pla­
tônica (Platão, Plotino, Proclo e os Padres),
mas especialmente a filosofia hermética
(para ele, um tratado de Hermes valia mais
do que todos os livros de Aristóteles).
Patrizi chegou ao ponto de conclamar
o Papa a promover o ensino das doutrinas
do Corpus Hermeticum, que, na sua opi­
nião, seria de enorme importância, poden­
do ter o efeito de fazer os protestantes ale-

Patrizi em IS7H foi convidado


por Afonso II d'Este
para ensinar filosofia na Universidade de ferrara,
onde permaneceu até I
/\ imagem reproduz a cidade no século XVI.
46 Primeira parte - O H u m a n is m o e a " R e ia a s c e ^ ç a

mente, que seja sã, não pode discordar. Todos


aqueles que buscam, julgam as coisas incertas
N ic o la u d e C u s a
comparando-as e proporcionando-as com um
pressuposto que seja certo. Toda busca tem
caráter comparativo e emprega o meio da pro­
porção. 6 quando os objetos da busca podem

D O conceito
ser comparados ao pressuposto certo e a ele
ser proporcionalmente conduzidos por um cami­
de "douto ignorância" nho breve, então o conhecimento se torna fácil.
Contudo, se temos necessidade de muitas pas­
sagens intermediárias, nascem dificuldades e
O conceito de "douto ignorância" é cer­ fadiga: vemos isso na matemática, onde os pri­
tomente um dos mais significativos e mois meiras proposições são remetidas aos princí­
conhecidos entre os conceitos eloborodos por pios primeiros, por si mesmos conhecidos, com
Nicolau de Cuso. facilidade, enquanto é mais difícil aí reconduzir
Conhecer implico sempre umo passagem as proposições sucessivas, e é preciso fazê-lo
do conhecido ao desconhecido. No âmbito das através das proposições precedentes.
coisas finitos esto passagem é sempre possí­
vel, por mois difícil que possa ser em certos
casos, porque oquilo que é buscado está sem­ 2. O infinito,
pre em proporção àquilo que se busco e do enquanto transcende
qual se parte. Fio contrário, quando se inda­ todo proporção e comparação,
ga sobre Deus, falta esta relação ou propor­ é incognoscível
ção, porque Deus é infinito, e entre o finito e Toda pesquisa consiste portanto em uma
o infinito não há proporção. proporção comparativa, que é fácil ou difícil. Mas
fí consciência que se adquire desta o infinito, enquanto infinito, uma vez que se
"desproporção" entre nossa mente e o infini­ subtrai a qualquer proporção, nos 0 desconhe­
to é justamente a "douta ignorância" critica­ cido. A proporção exprime conveniência e, ao
mente fundada. Podemos nos avizinhar da mesmo tempo, alteridade em relação a algo, e
verdade apenas por aproximação, sem ja ­ por isso não a podemos entender sem empre­
mais podê-la compreender de modo preciso gar os números. O número inclui em si tudo
e que não resulte superável em um modo aquilo que pode ser proporcionado. O número,
ainda mais preciso. que constitui a proporção, não existe apenas
no âmbito da quantidade, mas também em to­
das as outras coisas que, de qualquer modo,
podem convir ou diferir entre si pela substância
1. €m toda pesquisa procedemos ou pelos acidentes. Por isso, talvez, Pitágoras
comparando e proporcionando pensava que tudo existe, tem consistência e é
as coisas incertas com pressupostos certos inteligível em virtude dos números.
Dom de Deus, vemos que em todas as
coisas é inerente certa aspiração natural de 3. fl douta ignorância
existir do melhor modo permitido pela natureza como consciência fundada da ignorância
de cada uma delas; e todas agem em vista que é própria do homem
deste fim e têm meios adequados; 0 a elas
Todavia, a precisão nas combinações en­
está ligada certa capacidade de julgamento
tre as coisas corpóreas e uma proporção per­
conveniente com o objetivo de conhecer sua fi­
feita entre o conhecido e o desconhecido é su­
nalidade, a fim de que suo aspiração não seja
perior às capacidades da razão humana, razão
vã e cada uma possa alcançar a paz no centro
pela qual parecia a Sócrates não conhecer nada
de gravidade para o qual tende a própria natu­
mais que a própria ignorância;1* e Salomão,
reza. Se ocorre diversamente, é seguramente
sapientíssimo, sustentava que "todas as coisas
devido a causas acidentais, como quando uma
são difíceis" e inexplicáveis com nossas pala­
doença corrompe o gosto ou uma opinião des­
vras;2 e outro sábio, dotado de espírito divino,
via a razão. Por isso dizemos que um intelecto
diz que a sabedoria e o lugar da inteligência
são e livre conhece e abraça com amor a ver­
dade que aspira insaciavelmente alcançar quan­
do vai indagando sobre toda coisa com o pro­
cedimento discursivo que lhe é inerente; e sem 'Cf. Plotõo, Flpologio de Sócrates. 25b.
dúvida a verdade mais segura é a de que toda 18
2€clBSÍOStBS , .
47
Cdpítulo terceiro - O A le o p lc ito n ism o ^ e n a s c e n tis + a

sstõo escondidos "oos olhos de todos os vi- pode medi-la com precisão, assim como o não-
ventes”.3 Portanto, se é assim, que também círculo não pode medir o círculo, cuja realida­
Aristóteles, o pensador mais profundo, na filo­ de é algo de indivisível. Por isso, o intelecto,
sofia primeira afirma que nas coisas por sua que não é a verdade, jam ais consegue
natureza mais evidentes encontramos uma difi­ compreendê-la de modo tão preciso que não
culdade semelhante à de uma coruja que ten­ possa compreendê-la de modo mais preciso,
tasse fixar o sol,4 então quer dizer que deseja­ ao infinito; e tem com a verdade uma relação
mos saber não saber, dado que o desejo de semelhante à do polígono com o círculo: o
saber, que está em nós, não deve ser vão. C se polígono inscrito, quanto mais ângulos tiver
pudermos alcançá-lo plenamente, teremos al­ tanto mois se tornará semelhante ao círculo,
cançado uma douta ignorância. A coisa mais per­ mas jamais se tornará igual a ele, mesmo que
feita que um homem, por mais interessado que multiplique ao infinito os próprios ângulos, a
esteja no saber, poderá alcançar na sua doutri­ menos que não se resolva em identidade com
na é a consciência plena da ignorância que lhe o círculo.
é própria. C tanto mais será douto, quanto mois é portanto evidente que, no que se refere
se reconheça ignorante, é em vista deste fim ao verdadeiro, não sabemos mais do que o fato
que assumi a fadiga de escrever algumas pou­ de ele ser incompreensível em sua realidade
cas coisas sobre a douta ignorância. de modo preciso; que o verdade é como a ne­
cessidade mais absoluta, que não pode ser nem
4. O intelecto humano mais nem menos do que aquilo que é, e nosso
jam ais pode compreender a verdade intelecto é como a possibilidade. A essência
de modo tão preciso das coisas, que é a verdade dos entes, é ina­
que não a possa compreender tingível em sua pureza, buscada por todos os
de modo ulteriormente sempre mais preciso, filósofos, mas por nenhum deles descoberta em
ao infinito sua realidade em si. € quanto mais a fundo for­
mos doutos nesta ignorância, tanto mais tere­
Se é por si evidente que o infinito não tem mos acesso à própria verdade.
proporção com o finito, segue-se do modo mais Nicolau de Cusa,
claro que, onde se encontra um mais e um me­ R d ou to ignorância.
nos, não se chegou ao máximo em todos os
sentidos, pois as coisas que admitem um mais
e um menos são entidades finitas. Um máximo
de tal porte é necessariamente infinito. Dada
uma coisa qualquer, que não seja o máximo fl "coincidência dos opostos"
em todos os sentidos, é claro que poder-se-á em Deus
dar algo maior do que ela. € uma vez que des­
cobrimos que a igualdade é gradual, de modo
que uma coisa é igual mais a uma outra e não Outro conceito fundamental sobre o
a uma terceira, em base a conveniências e a qual se baseia o pensamento de Nicolau de
não-conveniências, em relação a coisas seme­ Cusa é o da coincidência dos opostos em
lhantes, no gênero, na espécie, na situação lo­ Deus.
cal, na capacidade de influência, no tempo, é Colocando-se ocima da razão discur­
evidente que não se podem encontrar duas ou siva, que procede otravés de afirmação e
mais coisas tão semelhantes e iguais entre si, negação, boseando-se justamente sobre a
que não se dêem outras mais semelhantes, ao distinção dos opostos (ou seja, afirmando
infinito. Por isso a medida e a coisa medida, um dos dois opostos e negando o outro, ou
por mais se avizinhem para ser iguais, perma­ vice-versa), o homem pode com a intuição
necerão sempre diferentes entre si. intelectiva colocar-se acima do discurso ra­
Um intelecto finito, portanto, não pode cional, e compreender como no infinito o
alcançar com precisão a verdade das coisas "máximo absoluto" e o "mínimo absoluto"
procedendo mediante semelhanças. A verda­ coincidem.
de não tem graus, nem a mais nem a menos, Um exemplo alusivo é, a propósito,
e consiste em algo de indivisível; de modo que o do círculo: se aum entado ao infinito,
aquilo que não seja o próprio verdadeiro, não todo ponto nele s e tornará centro e ao
mesmo tempo ponto extremo, e todo arco,
corda, raio e diâmetro oo infinito virão o
3Jó 28,21. coincidir.
4Cf. Rristóteles, Metafísica, livro II, 1 ,993b 9ss. ----------------------------------------
48 Primeira parte - O H u m a n is m o e a R e n a s c e n ç a

2. fl coincidência dos opostos


Deste modo, Deus oo infinito é todas capta-se pondo-se acima
os coisas, e, oo mesmo tempo, nenhuma de­
do razão discursiva
las, justomente porque, sendo ele codo umo
maximamente, é oo mesmo tempo codo umo Os opostos encontram-se apenas nas coi­
minimamente, porcouso do coincidência, no sas que admitem o mais e o menos, e aí se en­
infinito, de máximo e mínimo. contram de modos diversos; mas em nada con­
Neste sentido, sempre por causo do co­ vêm ao máximo absoluto, pois ele é superior a
incidência dos opostos no infinito, Deus é o toda oposição. Portanto, uma vez que o máximo
Unidade absoluta, ou seja, a Unidade que em sentido absoluto é em ato, de modo máxi­
em ato é tudo aquilo que tem a possibilida­ mo, todas as coisas que podem ser, sem qual­
de de ser, justamente na infinita absolutez. quer oposição, pelo fato de no máximo estar a
coincidência do mínimo, ele é também superior
a todo afirmação, ossim como a todo negação.
G tudo aquilo que nele é concebido como
1. €m que sentido máximo e mínimo ser, não há razão para que seja em vez de que
no absoluto coincidem não seja. G tudo aquilo que nele se concebe
como não-ser, não há razão para que não seja
O máximo absoluto em todo sentido, do quol em vez de que seja. Mas eie é esta coisa de
não pode haver coisa maior, nós o captamos modo tol que é todas as coisas, e é todas as
apenas no modo do incompreensível, pois ele coisas de modo tal que não é nenhuma coisa. G
é superior à nossa capacidade de compreendê- é de modo máximo esta coisa, de tal modo a
lo, pelo fato de ser verdade infinita. sê-la de modo mínimo.
Gle não pertence à natureza das coisas que Dizer: "Deus, que é a própria maximidade
admitem um mais e um menos, mas está acima absoluta, é luz", é o mesmo que dizer: "Deus é
de tudo o que possa ser concebido por nós. maximamente luz de modo tal que é luz mini­
Todas as coisas, sejam elas quais forem, que mamente". Se assim não fosse, a maximidade
apreendemos com os sentidos, com a razão ou absoluta não seria em ato todas as coisas pos­
com o intelecto, diferem em si mesmas e uma síveis, isto é, se ela não fosse infinita, termo
em relação à outro de modo tal que entre elas de todas as coisas, mas determinável por ne­
não se dá nenhuma igualda de precisa, fl nhuma delas. [...]
igualdade máxima, que não admite alteridade Gste pensamento transcende toda a nos­
ou diversidade em relação o alguma coisa, su­ sa capacidade intelectiva, a qual, seguindo o
pera toda capacidade do intelecto. caminho da razão, não consegue pôr junto os
O máximo em sentido absoluto, uma vez contraditórios no próprio princípio. Caminhamos
que é tudo aquilo que pode ser, está plena­ entre as coisas que a natureza nos torno mani­
mente em ato. G como não pode ser maior festas; e a razão, bem distante desta forço infi­
[daquilo que é], pelo mesmo motivo não nita, não sabe ligar junto os contraditórios, que
pode ser menor, dado que ele é tudo aquilo distam infinitamente entre si. Vemos, portanto,
que pode ser. que a absoluta maximidade é infinita, acima de
Mínimo é aquilo do qual não pode haver todo discurso racional, a maximidade à qual
coisa menor. G, uma vez que o máximo é da nada se opõe, e com a qual o mínimo coincide.
mesma natureza, é claro que o mínimo coincide Máximo e mínimo, assim como são emprega­
com o máximo. dos neste livro, são termos transcendentes,
Isso se tornará mais claro para ti se consi­ dotados de significado absoluto, e abarcam em
derares o máximo e o mínimo contraídos em sua absoluta simplicidade todas as coisas, aci­
quantidade. ma de toda contração em um significado de or­
fl quantidade máxima é maximamente dem quantitativa, relativa a massas e forças.
grande, fl quantidade mínima é maximamente
pequena. Liberta agora da quantidade o má­
3. fl maximidade absoluta é o Uno absoluto
ximo e o mínimo, subtraindo-lhes, com o inte­
lecto, a noção de grande e de pequeno, e Mas a unidade não pode ser número, pois
verás com clareza que o máximo e o mínimo o número admite sempre um mais, e não pode
coincidem. ser nem mínimo nem máximo em todo sentido.
Tanto o máximo como o mínimo são su­ Todavia, ela é princípio de todo número, pois é o
perlativos. Portanto, na quantidade absoluta mínimo. G é o fim de todo número, pois é o má­
não há motivo para que seja máxima em vez ximo. Portanto o unidade absoluta, à quol nado
de mínima, pois nela o mínimo é o máximo, co­ se opõe, é a própria maximidade absoluta, que
incidindo os dois entre si. ' éD eus bendito. Tal unidade, sendo máxima, não
49
Cdpítulo terceiro - O A J e o p l a t c m i s m o > *e n a s c e k Y H s ta

é multiplicóvel, pois é tudo aquilo que pode ser. 1. O antigo princípio de Rnaxágoras
6, portanto, ela não pode se tornar número. "tudo está em tudo”
Vê, portanto, que as considerações sobre no interpretação metafísica neoplatônica
o número nos levaram a entender como a Deus
Se considerares com agudez tudo o que
inominável convenha mais de perto a unidade
foi dito, não te será difícil ver o fundamento de
absoluta, e que Deus é uno de modo tol que ele
verdade daquela expressão de Anaxágoras
é em oto tudo aquilo que tem o possibilidade
que “toda coisa está em toda coisa",1verdade
de ser.
talvez mais profunda do que o próprio Anaxá­
Tal unidade não acolhe o mais e o menos, e
goras pensasse. Com efeito, uma vez que do
não é multiplicável. A divindade é unidade infinita.
primeiro livro se conclui que Deus está em to­
Aquele que disse: "Ouve, Israel", o teu Deus "é uno":1
das as coisas de modo tal que todas estão nele,
e: "uno é o mestre" e é "o vosso pai nos céus",*2
e uma vez que agora nos consta que Deus está
não teria podido dizer coisa mais verdadeira.
em todas as coisas como que por meio do uni­
Nicolau de Cusa, verso, a partir disso temos que todas as coisas
f í d o u ta ignorâncio.
estão em todas e toda coisa está em cada uma.
O universo, por certa ordem de natureza,
precedeu toda coisa como realidade perfei­
tíssima, de modo que toda coisa pudesse es­
O princípio tar em toda coisa.
Em todo crioturo o universo é o ser da­
"tudo está em tudo" quela mesmo crioturo, e assim cada coisa rece­
e seu significado be todas as coisas, de modo que nela esteja o
próprio ser delas, controído.
Uma vez que toda coisa não pode ser em
O antigo princípio de fínoxógoros "tudo ato todas as coisas, estando controído, ela con­
está em tudo" é retomado p elo Neoplo- trai em si todas as coisas, a fim de que estas
tonismo, e é levado por Nicolou de Cuso òs sejam o seu próprio ser.
extremos conseqüêncios. Em fínoxógoros o Se todas as coisas estão em todas as
princípio volio poro os "homeomerios", que coisas, todas as coisas parecem preceder cada
constituem o matéria do quol as coisas são coisa. Mas a totalidade das coisas não é plu­
feitos: todos os homeomerios estão presen­ ralidade, pois a pluralidade não precede cada
tes em todos os coisas, oindo que em peque­ coisa. Todas as coisas, portanto, sem plu­
níssimo medido, mos o Inteligência perma­ ralidade, precederam cada coisa por uma or­
necia completamente foro desse nexo. No dem natural. A pluralidade, portanto, não está
Neoplatonismo assume, oo contrário, um sig­ em ato em toda coisa, mas todas as coisas,
nificado globol e umo volidez absoluto poro sem pluralidade, são o próprio ser de cada uma.
todo formo de reolidode em todos os níveis.
Nicolou de Cuso, ao aprofundar e d e ­ 2. €m que sentido Deus
senvolver este princípio, serve-se do concei­ está em todas as coisas
to metafísico de "contração". Este conceito e todas os coisas estão em Deus
significo o de-terminar-se de olgo de mois
geroI e universal em olgumo coiso mois par­ O universo está nas coisas apenas de
ticular ou mois definido e em umo multipli­ modo controído, e toda coisa que existe em ato
cidade estrutural. Pondo-nos nesto óptico controi todas as coisas, de modo que elas se­
conceituai, se Deus é máximo, absoluto. Infi­ jam em ato aquilo que cada uma é. Tudo aqui­
nito, o cosmo aparece como se r Deus de lo que existe em ato está em Deus, porque ele
modo contraído, ou sejo, vem o ser o uno, o é o ato de todas as coisas. O ato é a perfeição
absoluto e o infinito de-terminado em uma e o fim da potência. Portanto, uma vez que o
multiplicidade de coisas especificamente di­ universo está controído em toda coisa existen­
ferenciadas e finitas. Por suo vez, o universo te em ato, é evidente que Deus, que está no
está em todo coiso singular de modo contra­ universo, está em toda coisa, e cada coisa exis­
ído, ou sejo, está em coda coiso especifica­ tente em ato está imediatamente em Deus,
mente de-terminodo e diferenciado, e indi­ enquanto ela é o universo.
vidualmente multiplicado. Portanto, dizer "toda coisa está em toda
coisa" é o mesmo que dizer Deus, mediante

'Deuteronômio 6,4. -----------------


2/V\ateus 23,8-9. 'Rnaxágoras, fr. 1 Dials-Kranz.
50 Primeira parte O - -Humanismo e a R enascença

todas as coisas, está em todas, e todas as assim a estupenda unidade das coisas, a ad­
coisas, mediante todas, estão em Deus, mirável igualdade, a admirável conexão, de
€stes pensamentos muito profundos se modo que todas as coisas estão em todas.
compreendem com clareza e com agudez de Compreendes também como disso pro­
intelecto, isto é, que Deus sem diversida­ cedam a diversidade e a conexão das coisas.
de está em todas as coisas, porque cada coi­ Com efeito, toda coisa não pode ser em ato
sa está em toda coisa, e que todas as coisas todas as coisas, uma vez que desse modo ela
estão em Deus, porque todas estão em to ­ teria sido Deus, e por isso todas as coisas
das. Todavia, uma vez que o universo está estariam em cada uma segundo a possibili-
em cada coisa, de modo tal que cada uma . dade do ser própria de cada uma. C nem to­
esteja nele, o universo é em cada coisa con- da coisa poderio ser em tudo semelhante a
traidamente aquele ser que cada uma é de outra [...].
modo contraído, e toda coisa no universo é
o próprio universo, embora o universo em
5. Ulterior exemplificação
cada coisa esteja de modo diverso, e toda
do "tudo em tudo”
coisa, igualmente, esteja diversamente no na imogem do homem
universo.
e de seus membros
Todas as coisas, portanto, encontram paz
3. Cxemplo do linha e das figuras
em cada uma delas, uma vez que um grau do
Gs um exemplo. € claro que a linha infini­ ser não poderio estar sem o outro, como, entre
to é linha, triângulo, círculo e esfera. Toda linha os membros de um corpo, todo membro é útil
finita tem o próprio ser a partir da linha infinita, ao outro e todos encontram paz em todos. Uma
e esta é todo o ser dela. Por isso, na linha fini­ vez que o olho não pode ser em ato também
ta todo o ser da linha infinita - que é linha, mão, pé e todos os outros membros, o olho se
triângulo etc. - é o próprio ser da linha finita. contenta de ser olho, e o pé de ser pé.
Toda figura, na linha finita, é a mesma linha. Todos os membros se ajudam reciproca­
€ não é que nela exista triângulo, ou cír­ mente, de modo que cada um deles subsiste
culo, ou esfera em ato, porque de mais coisas no próprio ser do melhor modo possível.
em ato não temos um ato só, uma vez que toda R mão e o pé não estão no olho, mas no
coisa não está em ato em toda coisa, mas o olho eles são olho, enquanto o olho está no
triângulo na linha é linha, o círculo na linha é homem de modo imediato.
linha, e assim por diante. € assim também todos os membros es­
Para que vejas isso com maior clareza: a tão no pé, porque o pé está de modo imedia­
linha só pode estar em ato no corpo [...]. to no homem, e assim todo membro através
Ninguém põe em dúvida que em um cor­ de todo outro membro está imediatamente no
po, dotado de comprimento, largura e profun­ homem, e o homem, ou seja, o todo, em virtu­
didade, estejam complicados todas as figuras. de de cada membro está em cada outro mem­
Na linha em ato todas os figuras em ato são a bro, assim como o todo está nas partes, ou
própria linha, e no triângulo são triângulo, e seja, em cada parte em virtude de cada uma
assim por diante. das outras.
Com efeito, todas as coisas na pedra são Se considerares a humanidade como algo
pedra, na alma vegetativa são a mesma alma absoluto, não misturável e não contraível, e
vegetativa, na vida são vida, no sentido são considerares o homem no qual está a mesma
sentido, na vista são vista, no ouvido são ouvi­ humanidade de modo absoluto e do qual pro­
do, na imaginação, imaginação, na razão, ra­ cede a humanidade contraído, que é o ser do
zão, no intelecto, intelecto, em Deus, Deus. homem, então a humanidade absoluta é como
C agora vês como a unidade das coisas, se fosse Deus, e a contraída é como se fosse o
ou seja, o universo, está na pluralidade e, vice- universo.
versa, a pluralidade está na unidade. A humanidade absoluta está no homem
de modo principal e prioritário e, em conseqüên-
cia disso, também está em cada membro e em
4. Todas as coisas são,
cada parte; a humanidade contraído, ao con­
na coisa específica, a própria coisa,
trário, no olho é olho, no coração é coração, e
e a própria coisa, em Deus, é Deus
assim por diante, ou seja, de modo contraído
Olha mais atentamente, e verás que toda em cada coisa é cada coisa.
coisa existente em ato encontra paz porque tudo Nicolau de Cusa,
neto é elo próprio, e elo em Deus é Deus. Vês f í dou ta ignorância.
51
Capítulo t€TC6ÍYO - O / \ ) e o p l a + c m i s m o ^ e n a s c e n t is + a

sas, e todas as coisos, enquanto contraídas,


O máximo absoluto nele encontrariam paz como em sua perfeita
realização.
e o natureza do homem G e seria medida do homem e do anjo, co­
como microcosmo2 1 mo diz João no Apocalipse;1 seria também me­
dida de cada coisa singular, porque seria entida­
de contraída das criaturas singulares em virtude
Com base nos conceitos que lemos nas
da união com a entidade absoluta, que é entida­
páginas precedentes, Nicolau de Cusa apre­
de absoluta de tudo. Através dele todas as coi­
senta o homem como "microcosmo". O ho­
sas receberíam o início e o fim de sua contração,
mem, com efeito, contrai as realidades supe­
uma vez que através dele, que é máximo contra­
riores (angélicos) e as realidades inferiores
ído, todas as coisas a partir do máximo absolu­
(os animais e as vegetais) como realidade
to seriam postas no ser da contração, e retor­
média ou intermediária. nariam ao absoluto pela mediação dele, como
Cm Deus feito homem (no Filho), o má­
princípio da emanação e fim do retorno.
ximo, o mínimo e o médio da natureza se
unem sinteticamente no máximo absoluto, de
modo tal que Cie se impõe como o perfeição 3. Cristo, filho de Deus e filho do homem
absoluta de todas as coisas. Deus, sendo a igualdade do ser para to­
Mas também considerado em si, o ho­ das as coisas, é o criador do universo, o qual
mem é como um Deus humano, um infinito foi criado tendo Deus como fim. A igualdade
"humanamente contraído", e todas as coisas suma e máxima do ser em relação a todas as
do universo existem no homem sob forma coisas em sentido absoluto seria aquela à qual
humana, e neste sentido justamente o ho­ se uniria a natureza da humanidade, e assim
mem é um "microcosmo". Deus, em virtude da humanidade que assumiu,
seria contraidamente todas as coisas na huma­
nidade, assim como é absolutamente todas as
coisas pela igualdade do ser. £ste homem,
1. A natureza humana portanto, uma vez que subsiste em virtude da
como a mais elevada das criaturas união no mesma igualdade máxima do ser, se­
A natureza humana é a que vemos eleva­ ria filho de Deus como seu verbo, no qual fo­
da acima de todas as obras de Deus, um pou­ ram feitas todas as coisas, ou seja, seria a
co menor em relação à natureza angélica; ela mesma igualdade do ser, a qual se chama filho
complico a natureza intelectual e a sensível, e de Deus [...]; e todavia não deixaria de ser fi­
abraça em si mesma todas as coisas, de modo lho do homem, assim como não deixaria de ser
a ser chamada justamente pelos antigos de homem.
microcosmo ou pequeno mundo. Cio é aquela
que, se fosse elevada ò união com a maxi- 4. €m que sentido o homem é "microcosmo"
midade, constituiria o plenitude de todas as
Admirável criação de Deus é esta, na qual,
perfeições do universo e dos entes singulares,
gradualmente, o poder do discernimento do pon­
e na unidade todas as coisas alcançariam seu
to central dos sentidos é levado até a natureza
grau supremo.
intelectual suprema, através de graus e de cer­
tas vertentes orgânicos, onde, com continuida­
2. €m Deus encarnado no homem de, as ligações produzidas pelo mais sutil espí­
está a totalidade contraída rito corpóreo são tornadas luminosas e simples
de todas as coisas até a vitória da virtude da alma e até a que tal
faculdade do discernimento chegue à célula do
A humanidade existe apenas de modo
poder da razão. Daí, em seguida, ele chega até
contraído neste ou naquele homem. De modo
a virtude suprema do intelecto, como através de
que não seria possível que mais do que um só
um rio se chega ao mar sem fim, onde se con­
verdadeiro homem ascendesse à união com a
jectura haver outros coros, da disciplina, da inte­
maximidade, e este, certamente, seria homem
ligência e da intelectualidade simplicíssima.
de modo tal que seria Deus, e Deus de modo
A unidade do humano, uma vez que está
tal que seria homem, perfeição do universo,
contraída humanamente, parece complicar tudo
primeiro em todas as coisas; nele o mínimo,
o máximo e o médio do natureza, unidos ò
maximidade absoluta, coincidiríam d e modo
tal que ele seria a perfeição de todas as coi­ 'Rpoccilipse 21,17.
52 Primeira parte - O H u m a n is m o e a R e n a s c e n ç a

segundo q natureza desta contração. O poder


desta sua unidade abraça a universalidade das
F icino
coisas e a contém dentro dos termos da pró­
pria região, de modo que nada de tudo lhe
escape. Uma vez que se conjectura que todo
ente seja captado ou mediante o sentido, ou
mediante a razão, ou medionte o intelecto, e o
homem vê que estas faculdades são complica­ n concepção do olmo
das em sua unidade, supõe poder-se esten­ como "copula mundi"
der, de modo humano, a todos os entes.
O homem é, com efeito, Deus, mas não
em sentido absoluto, porque é homem; é, por­ Uma das concepções mais significati­
tanto, um Deus humano. O homem é também vas de Marsílio Ficino é a da alma como co­
mundo, mas não é contraidamente todas as pula mundi, de derivação neoplatônico.
coisas, porque é homem. Cie é por isso micro­ Para Plotino, com efeito, a alma é a úl­
cosmo ou mundo humano. A região do humani­ timo deusa, ou seja, a última das realidades
dade abraça Deus e o mundo universal no seu inteligíveis e, por conseguinte, é a realidade
poder humano. O homem pode ser Deus hu­ que confina com o sensível, ocupando assim
mano e, como Deus, pode ser de modo huma­ um grau intermediário entre os seres.
no, anjo humano, besta humana, leão humano Conforme Ficino, analogamente, na e s ­
ou urso ou qualquer outro ser. No poder huma­ trutura hierárquica da realidade a alma do
no existem todos os entes conforme o modo mundo ocupa o grau médio (o terceiro), reu­
desse poder. nindo em sua própria unidade todos os ou­
Na humanidade todas as coisas estão tros graus, isto é, o mundo inteligível (Deus
explicados humanamente, assim como no uni­ e anjo) e o mundo físico (qualidades e ma­
verso elos o são no modo do universo, de sor­ téria): desse modo, a alma cósmica é inter­
te que existe um mundo humano. mediária de todas as coisas, e a todas ultra­
Na humanidade, por fim, todas as coisas passa, ascendendo para o alto e descendo
estão complicadas de modo humano, porque o poro o baixo.
homem é um Deus humano.
A humanidade é unidade, e ela é um infi­
nito humanamente contraído. Disponhamos mais uma vez a realidade de
Uma vez que é propriedade da unidade todas as coisas em cinco graus. Coloquemos
explicar por si os entes, dato que ela é entida­ Deus e o Anjo na sumidade da natureza, o cor­
de que os complica em sua simplicidade, tam­ po e a qualidade no grau mais baixo, mas a
bém a humanidade tem o poder de explicar por alma no meio, entre as coisas altíssimas e as
si todas as coisas dentro do círculo da própria ínfimas, a alma que com razão chamamos, de
região, de extrair tudo a partir da potência do modo platônico, terceira ou média essência,
centro, C propriedade da unidade pôr-se como pois ela está no meio em relação a todas as
fim das explicações, pois é infinidade. coisas e é terceira a partir de qualquer parte
Por isso o criar ativo próprio da humani­ que comecemos.
dade não tem outro fim a não ser a própria hu­ Dizem com razão os Platônicos que, aci­
manidade. Csta não se volta para fora de si ma daquilo que flui limitado pelo tempo, está
quando cria, mas, quando explica a própria vir­ aquilo que subsiste por todo o tempo, que ain­
tude, tende a si mesma. € não produz algo que da acima está aquilo que subsiste pela eterni­
seja novo, mas percebe que tudo o que está dade e que, por fim, acima do tempo está o
criando na explicação estava já em si mesma. eterno. Mas, entre as coisas que são apenas
Dissemos, com efeito, que todas as coisas exis­ eternas e as outras que fluem apenas no tem­
tem no homem sob Forma humana. po, temos a alma, que é espécie de ligação
Assim como o poder da humanidade tem entre as duas esferas.
a capacidade de estender-se a todas as coisas Toda obra que consta de uma multiplici­
sob forma humana, também todas as coisas têm dade, é, então, perfeita, quando está tão liga­
este poder em relação a ela, e que este admi­ da em seus membros, a ponto de recolher-se
rável poder humano se dirija a percorrer todas de toda parte em unidade, para ser consisten­
as coisas não é mais que um complicar e m si, te e conforme a si, de modo a não se dissipar
sob forma humana, todas as coisas. facilmente [...]. Com maior razão devemos pro­
Nicolau de Cusa, por a conexão das partes do universo, que é
R d o u to ignorân cia e R s conjecturas. obra de Deus, de modo que ele também resul­
53
Cdpltulo terceiro - O J M e o p l a t o m s m o K e ^ a s c e k v H s ta

te q única obra do único Deus. Deus e o corpo Nos escritos dos árabes li, venerandos
soo por natureza as partes extremas e uma di- Pais, que flbdalla Saraceno, quando lhe per­
versíssima da outra. O finjo não consegue reu­ guntaram sobre o que lhe parecia sumamente
ni-las, pois está inteiramente voltado para Deus admirável nesta espécie de teatro que é o mun­
e esquece o corpo [...]. do, respondeu que nada via de mais esplêndi­
Nem a qualidade reúne os extremos, pois do do que o homem. € com este dito concorda
se inclina para o corpo e abandona as coisas o famoso de Hermes: "Grande milagre é o ho­
superiores; deixando as coisas incorpóreas ela mem, flsclépio!".’
própria se torna corpórea. flté este ponto as Ora, enquanto eu procurava o sentido
coisas são como extremos, e reciprocamente se dessas sentenças, não me satisfaziam os argu­
excluem as coisas superiores e as inferiores, fal­ mentos que em grande número muitos aduzem
tando os opostos de uma ligação. sobre a grandeza da natureza humana: ser o
Todavia, uma vez posta no meio a terceira homem vínculo das criaturas, familiar às supe­
essência, ela é tal que, enquanto se reúne com riores, soberano das inferiores, intérprete da
as coisas superiores, não deixa as inferiores, de natureza pela agudez dos sentidos, pela pes­
modo que nela estas e aquelas se encontram quisa da razão, pela luz do intelecto, interme­
reunidas, [fl alma], com efeito, é imóvel e mó­ diário entre o tempo e a eternidade e, como
vel. Daquela parte ela se liga com a realidade dizem os persas, cópula ou seja Himeneu2 do
superior, desta com a inferior. Ligando-se com mundo, pouco inferior aos anjos segundo o tes­
ambas, deseja uma e outra. Por isso, [a alma], temunho de Davi.3 Grandes coisas estas, sem
por certo instinto natural, ascende para coisas dúvida, mas não as mais importantes, não tais,
superiores e desce para as inferiores. C, enquan­ isto é, por meio das quais possa justamente
to ascende, não abandona as coisas mais bai­ arrogar-se o privilégio de uma admiração sem
xas, e, enquanto desce, jamais deixa o divino. limites. Por que, com efeito, não admirar mais
M. osFicino,
anjos e os beatíssimos coros do céu?
Theologici platônica. Todavia, no fim parece-me ter compreen­
dido porque o homem seja o mais feliz dos se­
res animados e, por isso, digno de toda admi­
ração, e qual seja por fim aquele destino que,
cabendo-lhe na ordem universal, é invejável
Pico d e l l a M ir a n d o la não só aos brutos, mas aos astros e aos espí­
ritos ultramundanos. Coisa incrível e maravilho­
sa! € como poderio ser diferente, se é justa­
mente por ela que o homem é proclamado e
considerado um grande milagre e maravilha
entre os viventes?
fl dignidade do homem Mas qual seja ela, escutai, ó Pais, e dai
benignamente ouvidos, em vossa cortesia, a
este meu falar. Já o sumo Pai, Deus criador, ti­
O Discurso sobre a dignidade do ho­
nha formado, conforme as leis de uma arcana
mem é certomente o escrito de Pico que se
sabedoria, esta moradia do mundo, tal qual nos
tornou mais célebre, e oté se impôs como
aparece, templo augustíssimo da divindade.
um dos textos emblemáticos do Humanismo.
Havia embelezado com as inteligências o hipe-
Fl possogem aqui proposta versa so ­
rurânio, avivara de almas eternas os globos
bre o significado metafísico e moral do ho­
etéreos, povoara com uma turba de animais de
mem como "grande milagre". Todas as cria­
toda espécie as partes vis e torpes do mundo
turas que se encontram tanto no mundo
inferior. Contudo, levando a obra à realização,
sensível como no mundo supro-sensível fo­
o artífice desejava que aí houvesse alguém
ram criadas como realidades ontologicamen-
capaz de captar a razão de tão grande obra,
te determinadas. O homem, ao contrário, foi
de amar sua beleza, de admirar sua imensida­
posto no confim dos dois mundos, com uma
de. Por isso, tendo já realizado o todo, como
natureza estruturada de modo tal que ele pró­ atestam Moisés4 e Timeu,5 por último pensou
prio deve determinar, plasmando-a segundo
a forma de vida moralmente pré-escolhida.
fí grandeza do homem está portanto
em ter sido criado por Deus como artífice de 'Asdépio, em Corpus Hermeticum, vol. II.
zHimeneu, ou Himene, era o deus grego dos núpcias.
si próprio, como autoconstrutor segundo suas ^Salmo 8,5-6.
escolhas morais. G ê n e sis 1,26-28.
5Plotõo, Timeu. 41 b.
54
Primeira parte - CD■ H um an ism o e a R en ascen ça

em produzir o homem. Mas, dos arquétipos não aquilo que existe no mundo. Não te fiz nem ce­
restava nenhum sobre o qual modelar a nova leste nem terreno, nem mortal nem imortal, para
criatura, nem dos tesouros um para entregar que, por ti mesmo, como livre e soberano artífi­
como herança ao novo filho, nem dos lugares ce, te modelasses e te esculpisses na forma
de todo o mundo permanecia um sobre o qual que tivesses de antemão escolhido. Poderás
se sentasse este contemplador do universo. degenerar nas coisas inferiores, que são os
Todos já estavam ocupados; todos haviam sido brutos; poderás regenerar-te, conforme tua von­
distribuídos, nos sumos, nos médios, nos ínfi­ tade, nas coisas superiores que são divinas".
mos graus. Ó suprema liberalidade de Deus pai! Ó
Todavia, não teria sido digno do paterno suprema e admirável felicidade do homem, ao
poder tornar-se como que impotente na última qual concede-se obter aquilo que deseja, ser
obro; nem de sua sabedoria permanecer incer­ aquilo que quer. Os brutos, ao nascerem, tra­
ta na necessidade por falta de conselho; nem zem consigo do seio materno, como diz lucílio,6
de seu benéfico amor, que aquele que era des­ tudo aquilo que terão. Os espíritos superiores
tinado a louvar nos outros a divina liberalidade ou desde o início ou pouco depois tornaram-se
fosse constrangido a reprová-la em si mesmo. aquilo que serão pelos séculos dos séculos. No
Estabeleceu finalmente o ótimo artífice homem que nasce o Pai colocou sementes de
que, àquele ao qual nada podia dar de pró­ toda espécie e germes de toda vida. E, confor­
prio, fosse comum tudo aquilo que singularmen­ me cada um os cultivar, eles crescerão e nele
te atribuira aos outros. Acolheu por isso o ho­ darão seus frutos. E se forem vegetais, será
mem como obra de natureza indefinida e, planta; se sensíveis, será animal; se racionais,
pondo-o no coração do mundo, assim lhe fa­ tornar-se-á animal celeste; se intelectuais, será
lou: "Não te dei, Adão, nem um lugar determi­ anjo e filho de Deus. Todavia se, não contente
nado, nem um aspecto teu próprio, nem qual­ com a sorte de nenhuma criatura, se recolher
quer prerrogativa tua, porque o lugar, o aspecto, no centro de sua unidade, tornado um só espí­
as prerrogativas que desejares, tudo enfim, rito com Deus, na escuridão solitária do Pai,
conforme teu voto e teu parecer, obtenhas e aquele que foi posto sobre todas as coisas
conserves. A natureza determinada dos outros estará sobre todas as coisas.
está contida dentro de leis por mim prescritas. G. Pico delia Mirandola,
Tu determinarás a tua, não constrangido por D iscu rso s o b re o d ig n id a d e d o hom em .
nenhuma barreira, conforme teu arbítrio, a cujo
poder te entreguei. Eu te coloquei no meio do
mundo, para que daí melhor avistasses tudo 6lucílio, Sátiros, 623 edição Marx

Representam-se aqui os presumidos retratos de Marsílio Ficino,


Pico delia Mirandola e Ângelo Poliziano (da esquerda para a direita).
Particular do afresco do “Milagre do sacramento”,
de Cosme Rosselli. Florença, igreja de santo Amhrósio, capela do Milagre.
Ç a p ítu lo q u a r to

O y W is f o f e lis m o ^ e P \a s c e .K v + is t a

e a r e v iv e s c ê r v c ia d o (S e + ic is m o

I . O s p r o b le m a s d a t r a d i ç ã o aris+o+elioa
rva e r a d o -H u m a r v is m o

• Não temos ainda conhecimento preciso das relações que existem entre os
dois ramos do Aristotelismo:
a) o ético-político, que os humanistas literatos fizeram reviver;
b) o lógico-naturalista das Universidades.
O tom geral da época é, em todo caso, dado pelo Platonismo,
e o Aristotelismo, na dialética geral do pensamento renascentista, O Aristotelismo
serve prevalentemente de antítese; os próprios filósofos do Qui­ na Renascença
nhentos (Telésio, Bruno, Campanella) não tirarão nenhum con­ e a questão da
forto das páginas de Aristóteles. "dupla verdade"
Os aristotélicos da Renascença se ocuparam sobretudo dos - - > § 2-4
problemas lógico-gnosiológicos e de problemas físicos, aprofun­
dando os aspectos metodológicos, tanto que a Escola de Pádua cunhou a expres­
são "método científico" (política, ética e poética permaneceram, ao contrário,
herança dos humanistas filólogos.
No que se refere às fontes do conhecimento, os aristotélicos distinguiram:
a) a autoridade de Aristóteles;
b) o raciocínio aplicado aos fatos;
c) a experiência direta; mas pouco a pouco eles começaram a preferir esta última.
Papel importante teve até o 600 a doutrina da dupla verdade, proposta pela
primeira vez na Idade Média por Siger de Brabante, segundo o qual sobre a base da
razão e da doutrina aristotélica uma coisa pode resultar mais provável, mesmo que
sobre a base da fé seja aceito o oposto.
• O Aristotelismo renascentista merece maiores considerações enquanto é
indispensável para compreender a época. Para o momento não se tem ainda co­
nhecimento preciso da diferença entre o Aristóteles ético-políti­
co dos humanistas e o Aristóteles lógico-naturalístico das Univer­ Importância
sidades. Em geral, porém, o Aristotelismo representa, para o pen­ do Aristotelismo
samento renascentista, a antítese do Platonismo. Alguns filósofos renascentista
do Quinhentos, ao contrário, experimentarão até fastio ao ler as ~->§4
obras de Aristóteles.

1 yAs teês inteepeetações claro que o quadro do pensamento renas­


centista permanece incompleto e falso se não
tradicionais de Aristóteles
levarmos em conta as contribuições que ele
trouxe. Procuraremos agora completar o
Já destacamos a importância atribuí­ que já havíamos antecipado.
da pelos estudiosos ao aristotelismo na Itá­ Deve-se recordar que as interpretações
lia nos séculos XV e XVI e como se tornou básicas do aristotelismo foram três.
56
Primeira parte - O H u m a n is m o e a Rt?H\ns c.e h\çc i

a) A primeira é a alexandrina, que No que se refere às temáticas, devemos


remontava ao antigo comentador de Aristó­ recordar que, em virtude da estrutura do en­
teles Alexandre de Afrodísia. Alexandre sus­ sino universitário, os aristotélicos da época
tentava que o homem possui o intelecto po­ renascentista ocuparam-se sobretudo dos
tencial, mas que o intelecto agente é a problemas lógico-gnosiológicos e dos proble­
própria Causa suprema (Deus) que, ilumi­ mas físicos (a política, a ética e a poética fica­
nando o intelecto potencial, torna possível ram patrimônio dos humanistas filólogos).
o conhecimento. Assim sendo, não há lugar No que diz respeito às fontes do co­
para uma alma imortal, pois ela deveria co­ nhecimento, os aristotélicos distinguiam: a)
incidir com o intelecto agente (as interpre­ a autoridade de Aristóteles; b) o raciocínio
tações recentes levaram ao reconhecimento aplicado aos fatos; c) a experiência direta.
da presença de certa forma de imortalidade Mas, pouco a pouco, começaram a privile­
em Alexandre, mas uma imortalidade im­ giar esta última, tanto que os estudiosos
pessoal e inteiramente atípica; de qualquer consideravam que (pelo menos tendencial-
modo, uma imortalidade impessoal não mente) eles podem ser definidos como “em-
podia interessar aos cristãos). piristas” .
b) No séc. XI Averróis submeteu as Ademais, também aprofundaram os
obras aristotélicas a poderosos comentá­ problemas lógicos e metodológicos com dis­
rios, que tiveram ampla repercussão. A ca­ cussões de alto nível. A Escola de Pádua che­
racterística de sua interpretação era a tese gou até a cunhar a expressão “método cien­
segundo a qual haveria um intelecto único tífico” .
e separado para todos os homens. Caía as­ Todos os conceitos da física aristotélica
sim por terra qualquer possibilidade de se foram discutidos analiticamente. Mas, nes­
falar de imortalidade do homem, visto que se terreno, a estrutura geral da cosmologia
só era imortal o Intelecto único. do Estagirita, que distinguia o mundo ce­
Também era típica dessa corrente a leste, feito de éter incorruptível, do terres­
chamada doutrina da “ dupla verdade” , que tre, constituído de elementos corruptíveis,
distinguia entre as verdades acessíveis à for­ não permitia progressos notáveis, impondo
ça da razão e as verdades acessíveis unica­ uma rigorosa separação entre a astronomia
mente à fé (mais adiante, voltaremos a falar e a física. Além disso, a teoria dos quatro
do sentido dessa doutrina). elementos qualitativamente determinados e
c) Por fim, havia a interpretação to- a teoria das “ formas” tornavam impossível
mista, que tentara uma grandiosa concilia­ a quantificação da física e a aplicação da
ção entre o pensamento aristotélico e a dou­ matemática.
trina cristã. Era muito comentado e difundido, em
particular, o tratado De anima, com sua dou­
trina sobre a alma (que, no esquema aristo­
télico, entrava no âmbito da problemática
A s t e m á t ic a s a e is t o t á lic a s “ física” , pelo menos em sua parte funda­
mental).
te a ta d a s u a R e n a s c e n ç a

Na época da Renascença todas essas 3 A corr\p\^xc\ q u e stã o


interpretações foram repropostas. Entre­ d a á d u p la v e r d a d e ”
tanto, hoje, tende-se a contestar a validade
desse esquema cômodo, destacando que a
realidade era bastante complexa, não ha­ Mas um ponto merece ser destacado
vendo nenhum aristotélico que se possa con­ com especial atenção. No passado, deu-se à
siderar seguidor de uma dessas tendências doutrina da “ dupla verdade” , que foi reto­
em todos os pontos, e que, a propósito de mada na época renascentista, um significa­
cada problema em particular, o alinha­ do bastante inexato, que deve ser rediscutido
mento dos vários pensadores muda muito, profundamente.
apresentando grande variedade de combi­ Há certo tempo os estudiosos chama­
nações. ram a atenção para o fato de que a relação
Trata-se, portanto, de uma divisão a entre teologia e filosofia constituiu um pro­
ser usada com cautela. blema que explodiu repentinamente no sé-
57
Capitulo quarto - O Q\r\siote]tsn\o r e n a s c e n t i s t a <' a e e v iv e s c ê n c ia d o (Se+icií

culo XIII, em virtude do encontro entre a Resta, além disso, o fato de que o tom
teologia, que se constituira em bases lógi­ geral da época é dado sobretudo pelo Pla-
cas, com um conjunto coerente de doutri­ tonismo, e que o Aristotelismo, na dialética
nas, e a filosofia de Aristóteles, que, por seu global do pensamento renascentista, repre­
turno, representava um conjunto de doutri­ senta de modo prevalente a antítese.
nas coerentes — e desse encontro brotaram Os próprios filósofos do Quinhentos
contrastes de vários tipos. que estudaremos mais adiante, que se diri­
A tentativa de síntese proposta por giram à Natureza em primeira instância, não
Tomás fora muito contestada: Escoto e só não trarão nenhum conforto das páginas
Ockham haviam alargado o fosso que se­ de Aristóteles, e sim fastio: Telésio achará
para a ciência da fé, e Siger de Brabante pro­ Aristóteles, ao mesmo tempo, demasiada­
pusera a doutrina da “ dupla verdade” , que mente pouco físico e demasiadamente pou­
os averroístas latinos tornaram sua, sendo co metafísico; Bruno o considerará “um velho
sustentada por alguns aristotélicos até o sé­ deplorável” , “ inclinado, curvo, corcunda,
culo XVII. dobrado para a frente, como Atlante, opri­
Pois bem, o que significa “ dupla ver­ mido pelo peso do céu, de modo que não
dade” ? pode vê-lo” ; enquanto os habitantes da Ci­
Os estudiosos mais atentos colocaram dade do Sol de Campanella, que exprimem
em evidência que tal teoria, em seu núcleo as idéias do filósofo, “são inimigos de Aris­
de fundo, pode ser essencialmente reduzida tóteles, e o chamam de pedante” .
a este princípio: sobre a base da razão e da
doutrina aristotélica uma coisa pode se tor­
nar mais provável, mesmo que sobre a base
da fé seja aceito o oposto.
S T A (i I R I T
Isto não significava abandono da teo­ OMN IA Q V Ali >. X T A N T OPERA
logia e da fé, mas apenas uma distinção heu­ »ç (••» < > - '» ó U A n «rw u U u w n .lK rt . («U a tto q M fw m g r v o i * n m n d m Í M M
< xt ‘x p r i l i . i i . M v j w w M k H n lfp i S n í l i uxt* miw w w i » w A w w A y f u ;
rística e metodológica das esferas da ciên­ ri « n q * * * U f i M u t t áorwt*.

cia e da fé. t Í V 8 I- M s : '


IX «A O r fftA Q N M I Í Q .v i AO MOI
C OM M E NTARII.
Aiiujucipfiusinlogica.philofophiaAmcdicinalibri:
t— a — — mfimií—mTf.mprl l » C O « « Í N T I M O
V a i ê n c i a d o y \ e is to te lis m o „4kf A Ptàm fJÂm.fAm mf*m *m* A Ap,*m4m.

^ e n a sce rv fista ò'mpi tmfèmLm mmçmmfi\àdjt **mmm.


;i v i C I K f O N t t u i À iw w c x it w v s w A w .« t » r *« **n m i4 < f x ir lo ç *a
U i a « K M D & f x»<Pf w > y ^ o » l w U e a b M m m m * w w p w .

H 7tm*mmAmAhmA» 4 « w w x AAi
Dissemos acima que têm razão os que tdk u * i rsnoMim/i muottrt 1 .4.
sustentam que o Aristotelismo renascentista H k m m h m m u m n P iv I m b m , m m n l d k « la k t w w *
ifaru m w m o M r itM i.
merece maior consideração do que teve no B E R N A R D O SALVIATO EPtSC.S. PAPVLI
passado e que ele constitui uma componen­ ROMAC P R I O R ! D I C A T A

te indispensável para compreender a época.


De nossa parte, logo levaremos em conside­
ração a figura de Pedro Pomponazzi.
Isto é certamente exato em si. Toda­
via, no momento encontramo-nos ainda lon­
ge de um conhecimento preciso das relações
subsistentes entre os dois ramos do Aristote­ V I X I T l l í A tV O J V X T A * M S III.
lismo: o que os humanistas literatos fizeram
reviver, que é o Aristóteles ético-político, e bronlispício de uma edição do Quinhentos
o Aristotelismo lógico-naturalista das Uni­ das obras de Aristóteles,
versidades. com o comentário de Averróis.
58
Primeira parte - O f-l u m a n ism o e. a R e n a s c e n ç a

II. IPe-d^o IPo v n p o n c K Z - Z . i

• Sob muitos aspectos, o mais interessante dos aristotélicos foi Pedro Pom-
ponazzi (1462-1525), segundo o qual a alma intelectiva é princípio de intelecção e
volição imanente no homem, e é capaz de conhecer o universal e
Pietro o supra-sensível; todavia, ela não é uma inteligência separada:
Pomponazzi: não pode estruturalmente prescindir do corpo, que é o mais no­
a natureza bre dos seres materiais, tem perfume de imaterialidade, embora
da alma não de modo absoluto. Pomponazzi põe tal posição dentro da
e o princípio doutrina da dupla verdade, porque a imortalidade da alma é ar­
da naturalidade tigo de fé que deve ser provado com os instrumentos da fé (reve­
~ ^ § 1-3
lação e Escrituras), mas não é uma verdade demonstrável pela
razão; a "virtude", isto é, a vida moral, é em todo caso garantida
mais com a tese da "mortalidade" do que com a da "imortalidade" da alma: a
verdadeira felicidade é posta na própria virtude, prescindindo de recompensas
futuras no além.
No quadro da dupla verdade deve ser inserido também o princípio de natura­
lidade, segundo o qual todos os eventos sem exceção podem ser explicados sobre
a base de causas naturais e da experiência, compreendendo tudo o que acontece
na história dos homens; em todo caso, os eventos admitem também uma explica­
ção com base em verdades sobrenaturais.

1 CD d e b a t e Mas, sendo assim, a alma não pode


estruturalmente prescindir do corpo, já que,
s o b e e a im o r t a lid a d e d a a lm a
privada dele, não poderia desenvolver sua
função própria. Assim, ela deve ser consi­
derada uma forma que nasce e perece com
Pedro Pomponazzi (1462-1525), cha­ o corpo, não tendo nenhuma possibilidade
mado Peretto Mantovano, foi certamente o de agir sem o corpo. Entretanto, como diz
mais discutido dos aristotélicos e, por mui­ Pomponazzi, sendo o mais nobre dos seres
tos aspectos, considerado o mais interessante materiais e encontrando-se na fronteira com
deles. os seres imateriais, a alma “ recende a imate­
Sua obra que maiores polêmicas susci­ rialidade, ainda que não em absoluto” .
tou foi o De immortalitate animae, que de­ A tese desencadeou verdadeira tempes­
batia um problema central no Quinhentos. tade, até porque — é bom lembrar — o
No início, Pomponazzi era averroísta, dogma da imortalidade da alma era consi­
mas pouco a pouco seu averroísmo entrara derado absolutamente fundamental pelos
em crise. Depois de ter meditado longamente platônicos e, em geral, por todos os cristãos.
sobre as soluções opostas de Averróis e de Para dizer a verdade, Pomponazzi não
santo Tomás, ele assumiu uma posição con­ queria em absoluto negar a imortalidade,
siderada “ alexandrina” , mas que, embora pretendendo negá-la apenas como “verda­
tenha pontos de contato com a teoria de de demonstrável com segurança pela razão” .
Alexandre, é por ele formulada com novo Diz ele que a imortalidade da alma é artigo
colorido. de fé, e que, como tal, deve ser provado com
A alma intelectiva é o princípio do enten­ os instrumentos da fé, ou seja, “com a reve­
der e do querer imanente do homem. Dife­ lação e as escrituras canônicas” , já que os
rentemente da alma sensitiva dos animais, a outros argumentos não são apropriados
alma intelectiva do homem é capaz de conhe­ para isso. E diz também não ter dúvidas
cer o universal e o supra-sensível. Entretan­ sobre esse artigo de fé. Levando-se então em
to, ela não é uma “ inteligência separada” , conta o que dissemos sobre o significado da
tanto que só pode conhecer mediante as “ dupla verdade” , a posição de Pomponazzi
imagens que lhe derivam dos sentidos. torna-se bem clara. [T]
59
Capítulo quarto - O ;Ai*is+o+eli s m o f*e n a sc e n tis+ a e a ^ e v iv e s c ê n c ia d o íSe+icism o

A esquerda, Pedro Pomponazzi (1462-1525), dito Perelto Mantovano,


que foi o mais insigne dos aristotélicos renascentistas (o retrato provém de uma estampa antiga).
A direita, o frontispício da obra De immortalitate animae,
em que Pomponazzi afirma que a alma não pode estruturalmente existir sem o corpo c, portanto,
é uma forma que nasce c f>erece com o corpo, também se “perfuma imaterialidade”.

2 ;A n a iu r e .z a d a a lm a A alma aparece em primeiro lugar na


hierarquia dos seres materiais e, portanto,
e a v iH a d e k w m an a como tal, confina com os seres imateriais,
sendo assim “média entre uns e outros” : é
material, se comparada com o imaterial; é
Outro ponto também merece ser desta­ imaterial, se comparada com o material.
cado. Pomponazzi sustenta que a “virtude” Participa das propriedades das puras inteli­
(ou seja, a vida moral) salva-se mais com a gências, bem como das propriedades mate­
tese da “mortalidade” do que com a tese da riais. Quando realiza ações pelas quais se
“imortalidade” da alma, porque aquele que é assemelha às inteligências puras é chamada
bom tendo em vista os prêmios do além está divina e, em certo sentido, transforma-se em
de alguma forma corrompendo a pureza da realidade divina; quando realiza obras ani­
virtude, submetendo-a a algo fora dela. De mais, transforma-se em animal.
resto, diz ainda nosso filósofo, retomando
uma célebre idéia já defendida por Sócrates
e pela Estoá, a verdadeira felicidade está de­
positada na própria virtude, ao passo que a 3 O ''p ein cíp io d a r \a fu e a lid a d e ,/
infelicidade está depositada no próprio vício.
Todavia, apesar dessas drásticas con­
trações da imagem metafísica do homem,
Pomponazzi retoma a idéia do homem como Também foi muito apreciado o De in-
“ microcosmo” e algumas idéias do célebre cantationibus (O livro dos encantamentos),
“ manifesto” de Pico. no qual Pomponazzi responde à questão se
60
Primeira parte - O +-Iumcmismo e , c\ Renascença

existem causas sobrenaturais na produção a opinião do próprio Aristóteles e a contida


dos fenômenos naturais, mostrando que to­ no respectivo comentário de Averróis, bem
dos os acontecimentos, sem exceção, podem como depois de expor de forma silogística
ser explicados com o princípio da naturali­ as demonstrações sobre a inabitabilidade,
dade, inclusive tudo o que ocorre na histó­ de repente ele afirma poder desmentir os si­
ria dos homens. logismos apodíticos de Aristóteles e Aver­
No passado, exagerou-se muito o va­ róis com a carta de um amigo do Vêneto,
lor da formulação desse “princípio da na­ que atravessara a zona tórrida, encontran­
turalidade” e sua respectiva aplicação, afir­ do-a habitada.
mando-se que Pomponazzi pressentia o E agora?
novo e era muito superior aos seus tempos. A conclusão de Pomponazzi é a seguin­
Mas a crítica historicamente mais conscien­ te: “Oportet stare sensui”. E a experiência,
te chamou a atenção para o fato de que Pom­ e não Aristóteles, que sempre tem razão.
ponazzi, no caso, realiza uma operação que Depois de Pomponazzi, destacaram-se
expressamente declara circunscrita ao pon­ ainda entre os aristotélicos os nomes de An­
to de vista aristotélico, além de afirmar ter dré Cesalpino (1519-1603), Jacopo Zaba-
consciência da existência de uma verdade rella (1533-1589), César Cremonini (1550­
diferente, que é precisamente a verdade da 1631) e Júlio César Vanini (1585-1619).
fé. Isso redimensiona notavelmente o senti­
do do seu discurso.
Análoga é a posição do De fato, de li­
bero arbítrio et de praedestinatione, no qual
sustenta que, do ponto de vista natural, não
há soluções certas para a questão do desti­
no, mas que também se mostram contradi­
tórias a propósito as soluções dos teólogos.
Também nesse caso, para se ter uma resposta
segura, é preciso confiar na fé e na revela­
ção. Entretanto, como filósofo natural, ele
prefere a solução dos estóicos, que admitiam
o destino como soberano.

4 O p eiv iléq io
que deve se r d ado
d e x p e e iê m c ia

Mas a modernidade de Pomponazzi,


como aristotélico, está precisamente no fato
de começar a preferir a experiência à auto­
ridade dos escritos de Aristóteles, quando
estes são contrários àquela.
Em uma aula de 1523 (apontada de
modo especial por B. Nardi), comentando
uma passagem dos M eteorológicos de
Aristóteles sobre a habitabilidade da terra
na zona tórrida (entre o trópico de Câncer e A Universidade de Pádua
o trópico de Capricórnio), depois de expor em lima incisão que remonta ao fim do Ouairoí
61
Capitulo quarto - O ;A n s+ o te lism o ^en ascetA + isfa e a p evivescerxcra d o íSe+icisn

I I I . I^ e iA a s c im e K v to

d e w m a -po^m a m o d e l a d a d e (S e + ic is m o

• As tradições dominantes no 400 são as do Platonismo e do Aristotelismo.


Grande difusão no 500 tiveram também o Epicurismo, Estoicismo e Ceticismo, este
último na formulação que lhe foi dada por Sexto Empírico. O Ceticismo conseguiu
até criar verdadeira e própria têmpera cultural, especialmente na França com Michel
de Montaigne (1533-1592). Em Montaigne o Ceticismo convive
com uma fé sincera, porque ele é estrutural desconfiança na ra- Difusão
zão e, justamente por isso, não pode pôr em causa a fé. Inspiran- do Ceticismo.
do-se na posição de Sexto Empírico, para quem a tranquilidade Michel
de ânimo consegue, pela renúncia, conhecer a verdade absolu- de Montaigne
ta, Montaigne sustenta que a sabedoria, o "conhecer a si mes- -> 5 1-2
mo", não pode chegar a uma resposta sobre a essência do ho­
mem, mas apenas sobre características do homem singular, cada um deve cons­
truir para si uma sabedoria conforme sua própria medida. A grandeza do homem
está em reconhecer e aceitar sua própria mediocridade, em dizer sempre sim à
vida, aprendendo a aceitá-la e amá-la assim como ela é.

I Q e v iv e s c ê n c ia s liga-se Heinrich Cornelius (que se fez cha­


mar de Agrippa de Nettesheim, 1486-1535,
d a s fiI o s o fia s k e le rv ís tic a s
conhecido sobretudo como mago) na obra
v\a Renascença Incerteza e fatuidade das ciências e das artes
(escrita em 1526 e publicada em 1530), na
qual sustenta que não são as ciências e as
As tradições predominantes no Quatro­ artes humanas (que são refutadas com argu­
centos eram as do Platonismo e do Aristo­ mentos extraídos de Sexto Empírico) que
telismo, como vimos, ao passo que o Epicuris­ salvam o homem, mas somente a fé.
mo e o Estoicismo constituíam apenas Na França, foram publicadas sucessi­
instâncias marginais, que transparecem em vamente nove versões latinas de Sexto Em­
alguns autores, sem, no entanto, imporem- pírico. Em 1562, Estêvão (Henri Estienne,
se de modo relevante. Muito maior, porém, 1531-1598) traduziu os Esboços pirronia-
foi a difusão que estes últimos tiveram no nos e, em 1569, Gentian Hervet (1499-1584)
Quinhentos, juntamente com o renascido publicou todas as obras de Sexto Empírico
Ceticismo, na formulação que lhe foi dada em versão latina.
por Sexto Empírico. Nesse meio tempo, Justo Lípsio (Joost
O Ceticismo conseguiu até criar uma Lips, 1547-1606) repropunha na Alemanha
verdadeira e peculiar têmpera cultural, es­ e na Bélgica o estoicismo, tomando por
pecialmente na França, encontrando sua ex­ modelo sobretudo Sêneca e procurando con­
pressão mais elevada em Montaigne. ciliá-lo com o cristianismo.
Como ocorreu esse renascimento?
O primeiro a utilizar Sexto Empírico de
modo sistemático foi Gianfrancesco Pico A ^ ieke l d e ]\Aonta\Qne.
delia Mirandola (1469-1533), neto do gran­
e o c e tic is m o c o m o ^undam an to
de Pico, em sua obra Exame das fatuidades
das teorias dos pagãos e da verdade da dou­ d e s a b e d o r ia
trina cristã (1520), na qual ele utiliza elemen­
tos céticos para demonstrar a insuficiência
das teorias filosóficas e, portanto, da razão No quadro acima brevemente traçado,
pura, concluindo que, para alcançar a ver­ insere-se também o pensamento de Michel
dade, é preciso a fé. A Gianfrancesco Pico de Montaigne (1533-1592), autor dos En-
62
Primeira parte - CDH u m a n is m o e a R e n ascen ça

saios (1580 e 1588), que são obras-primas A solução adotada por Montaigne ins­
ainda hoje muito consideradas. pira-se nessa, mas é muito mais articula­
Também em Montaigne o ceticismo da, rica em nuanças e sofisticada, com a in­
convive com uma fé sincera. Isso surpreen­ clusão, também, de sugestões epicuristas e
deu muitos historiadores. Na realidade, po­ estóicas.
rém, sendo o ceticismo desconfiança na ra­ O homem é mísero? Pois bem, captemos
zão, ele não põe a fé em causa, pois esta o sentido dessa miséria. E limitado? Capte­
situa-se num plano diferente, sendo portan­ mos o sentido dessa limitação. E medíocre?
to estruturalmente inatacável pelo espírito Captemos o sentido dessa mediocridade.
cético. “ O ateísmo — escreve Montaigne — Mas, se compreendermos isso, compreende­
é [...] uma proposição quase contra a natu­ remos também que a grandeza do homem
reza e monstruosa, difícil também e inapta está precisamente em sua mediocridade.
para fixar-se no espírito humano, por mais Então é claro que o “conhece-te a ti
insolente e desregulado que ele possa ser” . mesmo” não pode desembocar em uma res­
Entretanto, a “ naturalidade” do conheci­ posta sobre a essência do homem, mas so­
mento de Deus depende inteira e exclusiva­ mente sobre as características do homem
mente da fé. O cético, portanto, só pode ser singular, que alcançamos vivendo e obser­
fideísta. vando os outros viverem, bem como procu­
Mas o fideísmo de Montaigne não é o rando nos reconhecer a nós mesmos refleti­
de místico. E o interesse dos Ensaios volta- dos na experiência dos outros.
se predominantemente para o homem e não Os homens são notavelmente diversos
para Deus. A antiga exortação contida na entre si e, não sendo possível estabelecer os
sentença inscrita no templo de Delfos, “ho­ mesmos preceitos para todos, é preciso que
mem, conhece-te a ti mesmo” , da qual Só­ cada um construa uma sabedoria à sua pró­
crates e grande parte do pensamento antigo pria medida. Cada qual só pode ser sábio
se apropriaram, torna-se para Montaigne o de sua própria sabedoria; o sábio deve sa­
programa do autêntico filosofar. Mas não ber dizer sim à vida, em qualquer circuns­
só isso: os filósofos antigos visavam ao co­ tância, e aprender a aceitá-la e amá-la as­
nhecimento do homem com o objetivo de sim como é, sempre. Texto Q
alcançar a felicidade — e esse objetivo tam­
bém está no centro dos Ensaios de Mon­
taigne. A dimensão mais autêntica da filo­
sofia é a da “ sabedoria” , que ensina como
devemos viver para sermos felizes.
Mas como a razão cética, abraçada por
Montaigne, pode alcançar esses objetivos,
aquela mesma razão cética que propõe aci­
ma de todas as coisas a pergunta de adver­
tência “ o que sei eu?” (que sais-je?).
Sexto Empírico escreveu que os céti­
cos conseguiram resolver o problema da fe­
licidade precisamente mediante a renúncia
ao conhecimento da verdade. A este propó­
sito, ele citava o conhecido apólogo do pin­
tor Apeles que, não conseguindo pintar sa­
tisfatoriamente a espuma sobre a boca de
um cavalo, tomado de raiva, lançou contra
a pintura a esponja embebida em tintas. Michel cie Montaigne (151.1-1592)
Então, a esponja deixou na tela uma man­ repropôs em seus Ensaios um pensamento
cha que parecia espuma. E da mesma ma­ de fundo cético, rico em temáticas discutidas
neira que, com a renúncia, Apeles alcançou pelas antigas filosofias helenísticas,
mas traduzidas em uma linguagem muito moderna,
o seu objetivo, os céticos, com a renúncia a fixada em páginas ainda hoje muito agradáveis.
encontrar o verdadeiro (ou seja, suspenden­ Este que reproduzimos é um belo retrato
do o juízo), acabaram encontrando a tran- de um autor anônimo,
qüilidade. conservado no Castelo de Versailles.
63
Cãpítulo quarto - O ;A ris+ o te lism o ^ e n asce k v H sla e a ►‘e v i v e s c ê n c i a d o (Se+icism o

Deus, a confirma irrevogavelmente. Todavia,


sobre o que tenho dúvidas é se estas asserções
POMPONAZZI não superam os limites naturais do homem, de
modo a pressupor algo aceito por fé e revela­
do, e se estejam conformes às palavras de
Aristóteles, como sustenta o próprio 5. Tomás.1*

D fl questão
Na verdade, dado que a autoridade de tão
ilustre doutor é para mim grandíssima, não
da imortalidade do olmo apenas no campo da teologia, mas também
no do pensamento aristotélico, não ousaria
afirmar qualquer coisa contra sua opinião; mas
R tese d e Pomponazzi, que suscitou o que direi eu o proporei sob a forma de dú­
todo umo série de discussões, é a do insus- vida e não como afirmação, e é provável que
tentobilidode por puro rozõo e em sentido pelos seus doutíssimos seguidores a verda­
categórico do imortalidade da alma. R alma de poderá ser-me desvelada. Sobre sua pri­
intelectiva do homem, embora radicalmen­ meira afirmação, isto é, que na realidade no
te superior à alma sensitiva dos animais, nõo homem a faculdade sensitiva e a intelectiva
pode considerar-se uma realidade separa­ sejam a mesma coisa, não tenho nenhuma dú­
da, ou sejo, transcendente ao corpo, porque vida; mas as outras quatro me parecem muito
nõo pode conhecer e agir a nõo se r m e­ obscuras.
diante os sentidos e, portanto, mediante o €, em primeiro lugar, que tal essência seja
corpo. Portanto, do ponto de visto do rozõo por si e verdadeiramente imortal, mas impro­
Filosófica, ela seria Forma de um corpo, e priamente e segundo certo aspecto mortal. Cm
como nosce com o corpo, assim também p a ­ primeiro lugar, porque com raciocínios semelhan­
recería perecer com o corpo, porque nõo tes àqueles com os quais ele sustenta esta tese
pode agir e subsistir sem o corpo. Também pode ser provada também a tese oposta. Com
segundo o pensam ento d e Rristóteles, s o ­ efeito, do constatação que tal essência acolhe
bre a base de uma interpretação difundi­ todas as formas materiais, que aquilo que nes­
da, Pomponazzi afirma que deve "dizer-se ta se acolhe é entendido em ato, que não se
mortal". serve de um órgão corpóreo, que tende à eter­
Malgrado as argumentações que Pom­ nidade e às coisas divinas, se concluía que ela
ponazzi aduz neste sentido, e le salienta é imortal. Mas, igualmente, uma vez que ela,
várias vezes o "perfume" de imoteriolido- como alma vegetativa, opera materialmente, e
de e imortalidade da alma. Na realidade, como alma sensitiva não acolhe em si todas as
Pomponazzi nõo pretendia d® modo nenhum formas, e além do mais se serve de um órgão
negar o imortalidade, mas pretendia a p e­ corpóreo e tende às coisas temporais e cadu­
nas negar que esta fosse demonstrável com cas, poder-se-á provar que ela é própria do fi­
absoluta certeza e de modo categórico pela lósofo natural.2 A esta consideração se refere
rozõo. No imortalidade se crê por fé, como Aristóteles naquela passagem do I livro do De
demonstro a segundo passagem que aqui partibus animalium. C a outra afirmação, que a
apresentamos. mente vem de fora, deve ser referida a ela como
pura mente, não como mente humana; ou, caso
se queira entender como referida a ela como
mente humana, não deve ser tomada em senti­
1. Dúvidas sobre a imortalidade da alma do absoluto, mas apenas enquanto, em con­
Naturalmente, sobre a verdade desta tese fronto com a vegetativa e com a sensitiva, ela
[ou seja, a tese tomista de que no homem a participa maiormente da divindade. Com efei­
alma sensitiva e a intelectiva são uma só subs­ to, no cap. 9o do IV livro do De portibus anima­
tância simples e individual, imortal por sua na­ lium se diz que apenas o homem é de natureza
tureza e mortal sob certo aspecto, forma subs­ ereta porque só ele participa de modo notável
tancial do homem, multiplicada com o número da divindade.3*
dos corpos humanos, que começa a existir jun­
to com o corpo por um ato de criação imediata
por parte de Deus e continua a viver depois da
'Tomás de flquino, De unitote intellectus contra
morte do corpo] não há para mim nenhuma in­
averroistas, proêmio.
certeza, uma vez que a Cscritura canônica, que 2flristóteles, Física, livro li, 7, 198o 27-31.
deve ser anteposta a todo raciocínio e expe­ 3flristóteles, De partibus animalium, livro IV, 10 (e nõo
riência humana uma vez que nos foi dada por 9), 686o 27-28.
64
Primeira parte - O H w m an ism o e a R e n a s c e n ç a

Nõo admitimos, todavia, que o homem blema não possa ser resolvido de modo certo
sobreviva como olmo depois de suo morte, dado a não ser por Deus. Todavia, não me parece
que elo tem um princípio, e (I livro do De coe/o) justo nem conveniente que os homens perma­
"tudo oquilo que tem um princípio tombem tem neçam privados desta certeza. [...] Contudo, uma
um fim";4 e Platão, no VIII livro dos Leis, diz: "Tudo vez que ele próprio tornou manifesto com a
oquilo que de qualquer modo começo o ser, palavra e com a obra que a alma é imortal -
também cesso de ser".5 com a palavra, quando ameaça os maus com o
Q u a n t o ao que depois se diz o propósito fogo eterno e promete aos bons a vida eterna
do texto 17° do livro VII do Metafísico, nõo (ele diz, com efeito; “Vinde, benditos de meu
condivido o resposta de Alexandre que aí re­ Pai", e continua: "Ide, malditos, para o fogo eter­
porto Averróis, tirando-a de Temístio, ou seja, no"),9 e com a obra, quando no terceiro dia res­
de que isso seja dito com referência ao intelec­ suscitou da morte - o quanto difere a luz em
to agente:6 com efeito, o intelecto agente não relação ao objeto luminoso e a verdade em
é forma do homem; ao contrário, diz-se em re­ relação ao verdadeiro e o quanto a causa infi­
ferência ao intelecto possível, que por vezes nita é mais nobre que o efeito finito, tanto mais
entende, outras vezes não; com efeito, ele se eficazmente isso demonstra a imortalidade da
corrompe a partir da corrupção de alguma coi­ alma.
sa em si, ou seja, da alma sensitiva com a qual Por isso, se há alguns argumentos que
se identifica. Na realidade, Aristóteles se ex­ parecem provar a mortalidade da alma, eles
prime assim com referência ao intelecto como são falsos e apenas aparentemente justos, a
ele é por si e não como é por acidente, como partir do momento que a primeira luz e a pri­
se dissesse que nada impede que sobreviva meira verdade nos demonstram o contrário; se
enquanto é intelecto, não enquanto é intelecto alguns outros, depois, parecem provar sua imor­
humano, dado que já no I livro do De coeio foi talidade, eles são tão verdadeiros e lumino­
demonstrado que tudo aquilo que é gerado se sos, mas não são a luz e a verdade. Por isso
corrompe. apenas esta é a via mais segura, não desmo-
6 que exatamente este tenha sido o pen­ ronável e firme; as outras, ao contrário, estão
samento de Aristóteles sobre a alma humana, todas sujeitas a incertezas. Além do mais toda
pode ser esclarecido também por meio daque­ arte deve servir-se de meios próprios e adap­
la passagem do livro XII da Metafísico, texto tados a si, pois de outro modo se desvia e não
39°, onde escreve estas palavras: "Mas a feli­ procede segundo seus ditames, conforme diz
cidade, em sua mais alta forma, a nós é conce­ Aristóteles no I livro do fínolíticos segundos e
dida por breve tempo; naquela forma é conce­ no I livro da éf/co.10 Todavia, que a alma seja
dida aos deuses como eterna, enquanto para imortal é artigo de fé, como está no Símbolo
nós é coisa impossível"7 dos fípóstoios e em fítanásio, e por isso deve
ser demonstrado com os meios que são pró­
prios da fé; e o meio sobre o qual a fé se ba­
2. fl imortalidade da alma é verdade de fé
seia é a revelação e a escritura canônica; ape­
e não de pura razão
nas com seu auxílio, portanto, verdadeira e
Çstando assim as coisas, parece-me de­ propriamente semelhante verdade se deve
ver sustentar este argumento, permanecendo
salva a doutrina mais justa, de que o problema
da imortalidade da alma é suscetível de duas Aristóteles, De coeio, I, 10, 279b 20-21.
soluções opostas, como o da eternidade do sPlotõo, Repúblico (e nõo Leis), VIII, 54óa.
mundo. Parece-me, com efeito, que não se po­ 6fl este respeito escreve Gregory: "No realidade,
dem aduzir argumentos de ordem natural que Rverróis, naquela passagem, não fala, citando Rlexandre,
de intelecto agente, mas de 'intellectus adeptus', e o isso
concluam com absoluta certeza que a alma seja
de fato Rlexandre se refere, tanto no comentário à Me­
imortal, e muito menos que seja mortal, como tafísico (Rlexandri Rphrodisíensís in fíristotelisMetaphysica
declaram muitíssimos doutores que também commentoria, ed. M. Hayduck, nos 'Commentario in Rristo-
sustentam sua imortalidade. Por isso não me telem graeco', vol. I, p. 678 r. 4), como no De anima (ed.
preocupei em responder ò outra tese, coisa já Bruns., pp. 90r. 13-91 r. 44); mos também é verdade que
Rverróis (De animo, III, comm. 36, digr. pors II) ofirmo que o
feita por outros e, em particular, de modo am­ 'intellectus adeptus' de Rlexandre não é mais que^o inte­
plo, exaustivo e sério por 5. Tomás. lecto agente no oto em que este informa o intelecto mate­
Por isso direi, como Platão no livro I das rial" (p. 714; n. 52).
Leis, que apenas a Deus foi dado fornecer a Aristóteles, Metafísica, livro XII, 7, 1072b 14-16.
8 Platão, Leis, I, 641 d.
certeza daquilo sobre o que muitos discordam;8 9Mateus 25,34.41.
pois, de fato, tontos homens ilustres estão em 'Aristóteles, Flnalíticos segundos, livro I, 7, 75a 36-
desacordo entre si, que eu penso que este pro­ 74b 21; ética o Nicõmaco, livro I, 75a 1098a 26-32.
65
Capitulo CfUãTtO - O ;A f*is+o+elism o r e n a s c e n t is t a e a n e v iv e s c ê n c ia d o C i.'l <■ sm o

provor, 0 todos os outros argumentos não são 1. Filosofar é preparar-se para a morte
apropriados 0 se fundamentam sobre meios que
Cícero diz que filosofar não é mais que
não estão em grau de provar aquilo que se nos
preparar-se para a morte. C por isso que o es­
propõe. Não deve, portanto, suscitar maravilha
tudo e a contemplação transportam de alguma
se os filósofos discordam entre si sobre o pro­
forma nossa alma para fora de nós e a mantêm
blema da imortalidade da alma, dado que eles
ocupada, separada do corpo. C uma espécie
se fundamentam sobre argumentos não ade­
de experiência e semelhança da morte; ou me­
quados à conclusão 0 falazes; enquanto todos
lhor, é fato que toda a sabedoria e todas as
os cristãos estão de acordo porque recorrem a
considerações do mundo se resolvem por fim
meios apropriados e infalíveis, a partir do mo­
neste ponto: ensinar-nos a não ter medo de
mento que as coisas não podem estar o não
morrer. Na verdade, ou a razão caçoa, ou deve
serem apenas um modo. [...] Por isso, sem qual­
apenas mirar para a nossa satisfação, e todo
quer hesitação é preciso afirmar que a alma é
seu esforço deve, em conclusão, tender a fa­
imortal, mas não se pôr naquele caminho so­
zer-nos viver bem e na alegria, como diz a Sa­
bre o qual caminharam os sapientes deste sé­
grada Cscritura.
culo, - que tais se dizem, mas terminam por ser
estultos -, pois, a meu ver, quem quiser perse-
verar nesse caminho sempre se moverá na in­ 2. Também na virtude o fim é o prazer
certeza e na vaguidão. [...] Aqueles, porém, que Todas as opiniões das pessoas são que
procedem no caminho dos crentes, permane­ o prazer é nosso escopo, embora a ele se mire
cem firmes e seguros: demonstram isso o des­ com meios diversos; de outro modo, alguém as
prezo da riqueza, das honras, dos prazeres e expulsaria logo que nascem, uma vez que quem
de todo bem mundano, e por fim a coroa do ficaria ouvindo aquele que pusesse para si como
martírio que eles ardentemente desejavam e fim nosso sofrimento 0 nosso infortúnio?
finalmente alcançavam, alegres depois de tan­ As divergências das seitas filosóficas, nes­
to desejo. te caso, são apenas de palavras. Há mais obs­
P. Pomponcizzi, tinação e teimosia do que convém a uma tão
D e im m ortalitate anim oe. santa profissão. Mas qualquer que seja o per­
sonagem que o homem represente, nele sem­
pre representa a si mesmo. Digam o que disse­
rem, até na virtude o último escopo de nossa
aspiração é o prazer. Gosto de repetir no ouvi­
M o n t a ig n e do deles esta palavra que tanto os perturba. C
se ela significa um prazer supremo e uma enor­
me satisfação, melhor condiz com a virtude do
que com qualquer outra coisa, feta volúpia, para
ser mais forte, nervosa, robusta, viril, é por isso
também mais fortemente voluptuosa. A deve­
Filosofar é aprender o morrer riamos dar a ela o nome do prazer, que é mais
propício, mais doce e natural: não o da virtude,
Montaigne situo-se no quadro do renas­ com o qual a chamamos.
cimento dos Asboços pirronianos de Sexto
Cmpírico e do Ceticismo em geral (lembre­ 3. A virtude e o desprezo da morte
mos que na França Henri Cstevõo, isto é, o
Stephanus, publicou o editio princeps de S e x­ A felicidade e a bem-aventurança que res­
to e traduziu em latim os Asboços pirronianos, plandecem na virtude preenchem todas as suas
enquanto G. Hervet publicou a versão latina pertinências e todas as suas ambiências, des­
de todas os obras de Sexto). Cm Montaigne de sua entrada até sua última porta. Ora, entre
o pirronismo temperado e o ceticismo mode­ os principais benefícios da virtude está o des­
rado se casam com uma Fé Forte e sincera. prezo da morte, é um meio que fornece à nossa
No trecho que segue, Montaigne aFir­ vida uma doce tranqüilidade, que torna nosso
ma que a contemplação e o estudo habituam gosto puro e amável, sem que seja apagada
a morrer, porque nos transportam como que qualquer outra volúpia.
Ais por que todas as regras se encontram
para Foro da vida. O desprezo do morte está
entre os principais benefícios da virtude, por­ e convêm neste princípio. €, embora elas tam­
que é preciso pensar que a meto poro a qual bém nos levem de comum acordo a desprezar
a vido corre é a morte. a dor, a pobreza e outros acidentes aos quais
a vida humana está sujeita, isso não ocorre com
66 Prim eÍTã p ã tte - O -H u m an ism o e a R e n a s c e n ç a

iguol preocupação, seja porque tais acidentes pálidos e lacrimosos, um quarto sem luz, círios
não são absolutamente necessários (a maior acesos, médicos e padres apinhados à nossa
parte dos homens transcorre o vida sem provar cabeceira; em suma, só horror e espanto ao
a pobreza, e outros ainda sem provar dor e nosso redor. Gs-nos já sepultados e soterra­
doença, como Xenófilo o Músico, o qual viveu dos. fis crianças têm medo até de seus ami­
cento e seis anos com saúde plena) ou por­ gos, quando os vêem com aquela máscara, e
que, no pior dos casos, a morte pode pôr Fim, assim a temos nós. é preciso tirar a máscara
quando nos aprouver, e eliminar todos os ou­ das coisas, e também das pessoas: quando for
tros inconvenientes, mas, quanto à morte, ela tirada, encontraremos sob ela apenas aquela
é inevitável. mesma morte que um servo ou uma simples
camareira assistiram sem nenhum medo. Feliz
4. Cnsinar a morrer é ensinar a viver a morte que acontece sem os enfeites de tal
aparato.
Gj, no momento, estou, graças a Deus, Michel de Montaigne,
em tal condição que posso partir quando lhe Ensaios.
aprouver [...].
Como os egípcios que, depois de seus
banquetes, mandavam oferecer aos presentes
uma grande imagem da morte por alguém que
lhes gritava: "Bebe e goza, pois, quando mor­
to, assim serás"; do mesmo modo tenho por
hábito, de modo contínuo, manter a morte não
só no pensamento mas também no boca; e não
há nada de que me informe com tanto prazer
como da morte dos homens: que palavras, que
aspecto, que postura tiveram naquele momen­
to, e não há passagem das histórias que eu
não note com tanta atenção. Pela interpolação
de meus exemplos manifesta-se como eu te ­
nha particular amor por este assunto. Se eu
fosse um fazedor de livros, faria um livro co­
mentado sobre diversas mortes. Quem ensi­
nasse os homens a morrer, estaria lhes ensi­
nando a viver.

5. € preciso tirar a máscara das coisas,


e também das pessoas
Ora, pensei frequentemente de onde pro­
vém que nas guerras a imagem da morte, tanto
ao vê-la em nós como nos outros, nos parece
sem comparação menos terrível do que em
nossas casas; de outra forma, veriamos um
exército de médicos e de carpideiras; e pensei
que, sendo ela sempre uma só, há sempre mais
força de ânimo nas pessoas de aldeias e de
baixo condição do que nas outras. Na verda­
de, creio que existam as imagens e aparências
terríveis, com os quais pintamos a morte e que Frontispício de uma edição dos Essais
nos dão mais medo do que ela própria: um de Michel de Montaigne (Paris, 1659).
modo completamente diferente de se compor­ Notemos a pergunta admoestadora “que sei eu? ”
tar, os gritos das mães, das mulheres e dos fque sais-je?) sob o retrato do autor,
filhos, as visitas de pessoas espantadas e aba­ que representa bem o ceticismo professado
tidas, a assistência de uma multidão de servos pelo filósofo.
(S a p ítu lo q u in to

yA R e n a s c e n ç a e a R e i igfião

I. £ m s m o d e R o f f e d a m

e a 'p M o s o p k ie a\\AsW >r

• Erasmo {1466-1536) é contrário à filosofia compreendida como construção


de tipo aristotélico-escolástico, centrada sobre problemas metafísicos, físicos e
dialéticos. A verdadeira filosofia é, para Erasmo, conhecimento sapiência! de vida,
e sobretudo é sabedoria e prática de vida cristã; o caminho que Cristo indicou
para a salvação é o mais simples: fé sincera, caridade não hipócrita e esperança
que não se envergonha. Nesse sentido, há a necessidade de vol­
tarás origens, também com instrumentos filológicos adequados.
A manifestação mais peculiar da filosofia de Erasmo se en- A posição
contra na obra Elogio da loucura, na qual Erasmo, depois de ofe- filosófica
recer toda uma gama de graus de "loucura", apresenta esta últi- de Era„™°it
ma na sua autenticidade como reveladora da verdade, como de "loucura"
aquilo que rompe os véus e faz ver a comédia da vida; e o ápice §
da loucura está na fé em Cristo, que é a loucura da Cruz, e sobre­
tudo na felicidade celeste, que aos fiéis é concedido às vezes
saborear já aqui, sobre a terra. Muitas posições de Erasmo, sobretudo a crítica à
Igreja e ao clero renascentista, antecipam algumas posições de Lutero, embora de
modo atenuado e com grande fineza; todavia, depois da ruptura de Lutero com
Roma, Erasmo não se juntou a ele, mas escreveu contra ele o tratado Sobre o livre-
arbítrio.

1 >A p o s iç ã o , a v id a mo de Rotterdam e, sobretudo, com Lutero


(e, depois, com os outros reformadores). O
e a oorcx d e c-m sm o
primeiro pôs o humanismo a serviço da
Reforma sem romper com a Igreja católica;
já o segundo comprometeu o próprio huma­
Todo o pensamento humanista-renas- nismo e quebrou a unidade cristã.
centista é perpassado por um poderoso Comecemos por Erasmo.
frêmito e por grande anseio de renovação Desiderius Erasmus (esse é o nome lati-
religiosa. Vimos, inclusive, que a própria pa­ nizado do flamengo Geer Geertsz) nasceu
lavra “ Renascença” apresenta raízes tipica­ em Rotterdam em 1466 (é possível que a
mente religiosas. Também vimos emergirem data de nascimento seja também 1469).
temáticas especificamente religiosas em al­ Ordenado sacerdote em 1492, pediu ê ob­
guns humanistas, e a grandiosa tentativa de teve dispensa do ministério e do hábito. Mas
construir uma “ docta religio” em Ficino, nem por isso seus interesses religiosos se
bem como a posição análoga de Pico. Mas enfraqueceram. Em muitas de suas posições
a explosão da problemática religiosa, por teóricas, sobretudo na crítica à Igreja e ao
assim dizer, ocorreu fora da Itália, com Eras­ clero renascentista, embora de forma ate-
68
Primeira parte - O +-Iwmanismo e a Renascença

nuada e com grande fineza, ele antecipou livre-arbítrio (1524) já citado, suas edições
algumas posições de Lutero, tanto que foi de Padres da Igreja e, sobretudo, a edição
acusado de ter preparado o terreno para o crítica do texto grego do Novo Testamento
protestantismo. Mas, depois da flagrante (1514-1516), com a relativa tradução.
ruptura de Lutero com Roma, Erasmo não
se alinhou com ele, chegando até a escrever
contra ele (embora impelido por várias so­
licitações de amigos e não espontaneamen­ 2 ( S o r v c e p ç ã o kunaam s+a
te) um tratado intitulado Sobre o livre-arbí- da -filosofia ceis+ã
trio. Mas também não se alinhou ao lado
de Roma, preferindo ficar numa posição
própria ao assumir ambígua posição de neu­ Erasmo tinha aversão à filosofia enten­
tralidade que, se lhe foi favorável por certo dida como construção de tipo aristotélico-es-
período, com o correr do tempo foi-lhe pre­ colástico, centrada sobre problemas metafí­
judicial, deixando-o isolado e sem seguido­ sicos, físicos e dialéticos. Contra essa forma de
res. E, assim, a grande fama que granjeara filosofia adota, aliás, tons quase de desprezo.
em vida acabou se dissolvendo rapidamen­ A filosofia é, para Erasmo, o conhecer-
te depois de sua morte, ocorrida em 1536. se a si mesmo ao modo de Sócrates e dos
Entre suas obras, merecem especial men­ antigos: é conhecimento sapiencial de vida e,
ção O manual do soldado cristão (1504), os sobretudo, é sabedoria e prática de vida cris­
Provérbios (publicados em sua redação de­ tã. E a sabedoria cristã não tem necessidade
finitiva em 1508), o Elogio da loucura, de de complicados silogismos, podendo ser al­
1509 (impressa em 1511), o tratado Sobre o cançada em poucos livros: os Evangelhos e
as Epístolas de são Paulo. Escreve Erasmo:
“Que outra coisa é a doutrina de Cristo, que
ele próprio denomina renascença, senão um
retorno à natureza bem criada?” Essa filoso­
fia de Cristo, portanto, é uma “renascença” ,
que representa um “retorno à natureza bem
criada” . E os melhores livros dos pagãos con­
têm “grande número de coisas que concor­
dam com a doutrina de Cristo” .
Para Erasmo, a grande reforma religio­
sa se resume em sacudir dos ombros tudo
aquilo que o poder eclesiástico e as dispu­
tas dos escolásticos acrescentaram à simpli­
cidade das verdades evangélicas, confun­
dindo-as e complicando-as. O caminho que
Cristo indicou para a salvação é o mais sim­
ples: fé sincera, caridade não hipócrita e es­
perança que não se envergonha. Se tomarmos
os grandes santos como exemplo, veremos
que eles não fizeram outra coisa senão viver
com liberdade de espírito a genuína doutri­
na evangélica. E a mesma coisa pode ser en­
contrada nas origens no monaquismo e na
vida cristã primitiva.
Erasmo de Rotterdam (1466-1536) E preciso, portanto, retornar às origens.
foi um dos mais cultos e finos humanistas. E nessa ótica de retomada das fontes que se
Seu pensamento reveste-se sobretudo inserem a edição crítica e a tradução do
de temáticas cristãs. Novo Testamento (que Erasmo gostaria de
Sua obra mais conhecida é o Elogio da loucura, ter visto nas mãos de todos), além da edi­
onde a loucura é considerada ção dos antigos Padres: Cipriano, Arnóbio,
(em vários níveis e com várias acepções)
uma dimensão essencial do viver humano.
Ireneu, Ambrósio, Agostinho e outros (nes­
F.ste c o conhecido retrato de Erasmo, se sentido, Erasmo pode ser considerado o
pintado por llans Holbein em 1523, iniciador da patrologia). A reconstrução
que se encontra no Museu de Basiléia. filológica do texto e sua correta edição têm
69
Capitulo quinto - çA Renascença e a Religião

portanto significado bem preciso em Eras­ mas da qual, às vezes, é dado aos piedosos
mo, um sentido que vai além da mera ope­ perceberem, já aqui nesta terra, o sabor e o
ração técnica e erudita. perfume, pelo menos por breve momento.
A rigidez com que Erasmo criticou pa­
pas, prelados, eclesiásticos e monges do seu
3 O c o n c e it o e r a s m i a n o tempo e certos costumes dominantes na Igre­
de "\ouc.ur-a" ja, bem como certas afirmações doutriná­
rias que fez, valeram-lhe a aversão dos ca­
tólicos, que, mais tarde, puseram no Index
É no Elogio da loucura que encontra­ algumas de suas obras e recomendaram cau­
mos o espírito filosófico erasmiano em sua tela crítica em relação a outras.
manifestação mais peculiar. Trata-se de uma Lutero, porém, enfureceu-se com a po­
obra que se tornou muito famosa e entre as lêmica sobre o livre-arbítrio, definindo Eras­
poucas obras suas que ainda hoje se lêem mo, com insólita violência, como ridículo,
de bom grado. tolo, sacrílego, tagarela, sofista e ignorante,
O que é essa “ loucura” ? qualificando sua doutrina como um misto de
Não é fácil individuá-la e defini-la, da­ “cola e lama” , de “lixo e excrementos” . Mas
do que Erasmo a apresenta em extensa ga­ Lutero, como logo veremos, não admitia opo-
ma, que vai do extremo (negativo) em que se sições. Com efeito, para alcançar objetivos
manifesta a pior parte do homem, ao extre­ em parte idênticos, esses dois homens trilha­
mo oposto, que consiste na fé em Cristo, que vam caminhos de direções opostas. jT]
é a loucura da cruz (como o próprio são Paulo
a define). E, entre os dois extremos, Erasmo
apresenta toda uma gama de graus de “ lou­ •TVLT1C1AS U V 1 ' _
cura” , num jogo muito hábil, por vezes usan­ • f tidfc»tfhfcn quedi f i t « *L*qnguA5
do a ironia socrática, outras vezes gostosos auc odoréaiique ftnb& Jd t& tf
hcftadfcefic ÜMM irar/diaucijjcf» foogc fu£« uruxr*
q u U iít& i

paradoxos e outras ainda uma crítica dila- £uaKròuohiptiarv.mJ fi oi» ommú


cerante e um não disfarçado desapontamen­ u ^ o & rriS .Y f^ fc ic o p rxfrk ípíiíca]u carpal>V. imiifv
bduauifibkbl^i-foc otmím poükr/ . oeuLt
to (como quando denuncia a corrupção dos o ó u iétarc lô n s iu d a iíi/K t to çorbob aíafvjit. (pucpfx
p tt «■< dna digénbus fe. At<$ bjot <(l M ohc jMrvtjux
costumes da Igreja da época). nó iu frrf' (ÓTiuracõc uicc/r4 .Moc rp/«jbu* fmíue
Às vezes, Erasmo denuncia a loucura kurtfcácngi: jú i p p jrè i) t]
mú. Joauú ou sjuxtií nó CiaK cohxtctu, rx-c humuvo r.xv
Isindli

com a evidente intenção de condenação; ou­ trjc d d irti fin : cx tr fonü dondcfuhiftdf co fio iti fc<c.ç
tras vezes, como no caso da fé, com a inten­ txn w .N ú : «Lt t o ju k tachryrrjf. núc r.Jm t.
itâc{ufpirft.tr,fiinuur?c(nur*;ra (r fur.t - ub< j J í"c
ção evidente de exaltar seu valor transcen­ Cc rcdírttaí^vgit fc fatc.ubi b;arru.u::ú m jv in
dental; outras, ainda, simplesmente para rxd
dixcròc^d ír*csvn:,nú rrxnvncTÚí rufi p nrl-ulim . x
mostrar a ilusão humana, aliás, apresentan­ 4bauM£wtúh<xrr.uRf.frí(L:cT:nioiku.T?.4 Ci i'i drfifc
piorái omn.ú »íu*.n: {$ !u \
do-a como elemento indispensável do viver. «aTamxgmui rp tv jo fcfjnwr. A r^ r i' íu ^ tx W .-M
A “ loucura” é como uma vassoura má­ (nn
Jc^uí\a!:uD it:li.\ crú rj*o i-idudá ob'.u
««‘Í.Quiqp J pctuU::u.aat!rxjuj j --
gica, que varre tudo o que se antepõe à com­ <ius a m t d & ú uidrbtí'Aogutic & Shilüjcu. & maurrcm dl
preensão das verdades mais profundas e se­ in Kkcrcinait» iILui Grxcarud .p.xròq, ^
jia X v rv V rv • Nsfi jxsxitK íX ,
veras da vida ou que nos faz ver que às vezes, ê é mukcTrt ruhil Jctioctr. Video u c rtc p u o fiú rx p ^ lv t'
fed (&mtu dfíiptCiV fi <jd£ «bkranuni mç <$J dixmnj <rii/
sob as vestes de um rei, nada mais há do que du awmtatfic.Cu lâaiá untxxm furagiac cffudm n . V
um pobre mendigo ou o contrário, e que às
« d *Q iu rt iuktcj^audrte.uíaxbibtfr^vtíxvt ickbm v
vezes, sob a máscara do poderoso, nada mais
há do que um vil. A “ loucura” erasmiana
arranca os véus, fazendo-nos ver a comédia
da vida e a verdadeira face daqueles que se
escondem sob máscaras; mas, ao mesmo tem­
po, mostra o sentido do palco, das máscaras
e dos atores, procurando de certa forma fa­ O espírito filosófico erasmiano
zer com que se aceitem todas as coisas como explica-se no F.logio da loucura:
a “loucura" é reveladora de “verdades", »
elas são. Assim, a “ loucura” erasmiana é elimina tudo aquilo que se interpõe à compreensão
reveladora de “verdade” . das verdades mais profundas e severas da vida,
O ponto culminante da “loucura” eras­ faz compreender o sentido das coisas;
miana, como dizíamos, está na fé. c o cume da “loucura" erasmiana está na fé.
E o cume dos cumes da “ loucura” é a Página final do Klogio da loucura
felicidade celeste, que é própria da outra vida, com um desenho de Holhein o Jovem.
70
Primeira parte - O H u m a n is m o e a R e n a s c e n ç a

I I . M a ^ + iia k o i—u +e^o

• A posição de Lutero (1483-1546) em relação aos filósofos é totalmente


negativa, pois ele negava qualquer valor a uma pesquisa racional autônoma,
considerando a filosofia como fruto da soberba abominável
A posição do homem. Quanto às relações com o movimento humanista,
de Lutero Lutero:
em relação a) deu grande voz ao desejo de renovação religiosa e à ne­
à filosofia cessidade de regeneração, que constituem as próprias raízes da
eao pensamento Renascença;
renascentista b) levou às extremas consequências o princípio humanista da
->§ 1-2 volta às origens, apresentando a volta ao Evangelho como revolu­
ção e subversão da tradição cristã;
c) rompeu com a tradição na sua totalidade, porque a teologia luterana nega
qualquer valor à própria fonte da qual brotam as humanae litterae e a especula­
ção filosófica, e confia a salvação inteiramente à fé.

• Os fundamentos doutrinais de Lutero são substancialmente três.


1) A doutrina da justificação mediante a fé apenas. A doutrina tradicional da
Igreja era e é que o homem se salva tanto pela fé como pelas obras, enquanto
Lutero rejeitou o valor das obras com base na tese de que o ho-
Príncipais mem, depois do pecado de Adão, sozinho não pode fazer nada,
elementos e sua salvação depende exclusivamente do amor divino: a fé está
da teologia em compreender isso e entregar-se totalmente a Deus.
de Lutero 2) A doutrina da infalibilidade da Escritura, considerada como
única fonte de verdade. Tudo o que sabemos de Deus e da rela­
ção homem-Deus nos é dito pelo próprio Deus na Escritura: ape­
nas a Escritura constitui por isso a autoridade infalível de que temos necessidade,
enquanto o papa, os bispos, os concílios e toda a tradição mais não fazem do que
obstaculizar a compreensão do texto sagrado.
3) A doutrina do sacerdócio universal e do livre exame das Escrituras. Entre o
homem e Deus não há necessidade de um intermediário especial: um cristão isola­
do, se iluminado e inspirado diretamente por Deus, pode ter razão contra um
Concilio. Todo homem pode, portanto, pregar a palavra de Deus.

1 .L u te ro e s u a s r e la ç õ e s Romanos (1515-1516), as noventa e cinco


Teses sobre as indulgências (1517), as vinte
c o m a filo s o fia
e oito teses relativas à Disputa de Heidelberg
(1518) e os grandes escritos de 1520, que
Já se disse muito bem que “ubi Eras- constituem verdadeiros manifestos da Re­
mus innuit ibi Luterus irruit” (“ Onde Eras­ forma: Apelo à nobreza cristã da nação ale­
mo aludiu, Lutero irrompeu” ). Com efeito, mã pela reforma do culto cristão, O cativei­
Lutero (1483-1546) irrompeu no cenário da ro babilônico da Igreja e A liberdade do
vida espiritual e política da época como au­ cristão, além do Servo arbítrio, contra Eras­
têntico furacão, que envolveu toda a Euro­ mo, em 1525.
pa e cujo resultado foi a dolorosa ruptura Do ponto de vista histórico, o papel de
da unidade do mundo cristão. Do ponto de Lutero é da maior importância, pois com
vista da unidade da fé, a Idade Média ter­ sua Reforma religiosa logo se entrelaçaram
mina com Lutero, iniciando-se com ele im­ elementos sociais e políticos que mudaram
portante fase do mundo moderno. a fisionomia da Europa, sendo também de
Entre os numerosos escritos de Lutero, importância primordial em termos de his­
podemos recordar: o Comentário à carta aos tória das religiões e do pensamento teológi-
71
Capitulo quinto - Rervascença e a i 0tao

co. Entretanto, Lutero merece um lugar tam­ zão. Para ele, a filosofia era vã sofistica­
bém em termos de história do pensamento ção e, pior ainda, fruto daquela absurda e
filosófico, seja porque verbalizou a instân­ abominável soberba própria do homem
cia de renovação que os filósofos da época que quer basear-se em suas próprias for­
fizeram valer, seja por algumas valências teó­ ças e não na única coisa que salva, isto é,
ricas (sobretudo de caráter antropológico e a fé.
teológico) intrínsecas ao seu pensamento Nessa óptica, Aristóteles parece-lhe co­
religioso, seja ainda pelas conseqüências que mo que a expressão de certa forma paradig­
o novo tipo de religiosidade por ele suscita­ mática dessa soberba humana. O único filó­
do exerceu sobre os pensadores da época sofo que não é inteiramente envolvido nessa
moderna (por exemplo, sobre Hegel e Kier- condenação parece ser Ockham; mas, pre­
kegaard) e da época contemporânea (por cisamente ao separar e contrapor fé e reli­
exemplo, certas correntes do existencialismo gião, fora Ockham que, sob certos aspec­
e da nova teologia). tos, abrira um dos caminhos que levariam à
A posição de Lutero em relação aos posição de Lutero.
filósofos é totalmente negativa: a descon­
fiança nas possibilidades de a natureza hu­
mana salvar-se por si só, sem a graça divi­
na (como logo veremos), levaria Lutero a 2 ; A s e e la ç õ e s d e L u t e e o
não dar qualquer valor a uma investigação
racional autônoma, a qualquer tentativa c o m o p e u s a m e n fo
de examinar os problemas de fundo do e e n a s c e rv fis ta
homem com base no logos, na pura ra­

Vejamos brevemente a posição de Lu­


tero no âmbito da época renascentista, para
depois examinar os núcleos centrais de seu
pensamento religioso-teológico.
As relações de Lutero com o movimen­
to humanista já estão bastante claras (e, em
parte, já as antecipamos com algumas ob­
servações).
a) Por um lado, ele verbaliza com voz
potente e até prepotente aquele desejo de
renovação religiosa, aquele anseio de re­
nascimento para uma nova vida e aquela
necessidade de regeneração que constitu­
em as próprias raízes da Renascença. E,
desse ponto de vista, a Reforma protestan­
te pode ser vista como um dos resultados
desse grande e multiforme movimento es­
piritual.
b) Além disso, Lutero retoma e leva às
últimas conseqüências o grande princípio do
“retorno às origens”, ou seja, do retorno às
fontes e aos princípios, que os humanistas
haviam procurado realizar pelo retorno aos
clássicos, que Licino e Pico pretendiam me­
diante o retorno aos prisci theologi (às ori­
gens da revelação sapiencial: Hermes, Orfeu,
Zoroastro, a cabala) e que Erasmo já apon­
Martinho Lutero (1483-1546) tara claramente no Evangelho e no'pen­
foi o teórico da Reforma protestante, o sustentador
da teoria da salvação mediante a fé apenas:
samento das origens cristãs e dos Padres da
“iustus vivit ex fide" ("o justo vive segundo a fé”). Igreja. Mas o retorno ao Evangelho, que
Este é o célebre retrato de Lutero Erasmo havia procurado fazer mantendo
pintado por Lucas Cranach, equilíbrio e medida, em Lutero torna-se re­
Coleção de Arte de Weimai: volução e subversão: tudo aquilo que a tra-
72
Primeira parte - O f-l umanismo e a R enascença

»& se r r ã s * * .- * . j » m m m 3 O s pcm+os b á s ic o s
d a t e o lo g ia d e -Luteeo

Os pontos doutrinários básicos de Lu­


tero são substancialmente três:
1) a doutrina da justificação radical do
homem unicamente pela fé;
2) a doutrina da infalibilidade da Es­
critura, considerada como a única fonte de
verdade;
3) a doutrina do sacerdócio universal
e a decorrente doutrina do livre-exame das
Escrituras. Todas as outras proposições
teológicas de Lutero nada mais são do que
corolários ou conseqüências que derivam
desses princípios.

t n o h o m e m se j u s t i f i c a
a p e n a s p e la fé e se m a s o b e a s

A doutrina tradicional da Igreja era e é


a de que o homem se salva pela fé e pelas
Incisão de 1520, t/Mc retrata Martinbo Lutero
obras: a fé só é verdadeira quando se pro­
quando ainda era agostiniano. longa e se expressa concretamente nas obras;
as obras são testemunhos autênticos de vida
cristã, quando são inspiradas e movidas pela
fé, impregnando-se dela. Ou seja, as obras
dição cristã construíra ao longo dos sécu­ são indispensáveis.
los parece a Lutero incrustação, constru­ Lutero contestou energicamente o va­
ção artificiosa e peso sufocante, do qual era lor das obras. Por qual razão? Vamos assi­
preciso se libertar. Para ele, a tradição mor- nalar apenas de passagem as complexas ra­
tifica o Evangelho. E mais: uma é a antíte­ zões de caráter psicológico e existencial, sobre
se do outro, a tal ponto que, diz Lutero, as quais os estudiosos muito insistiram, por­
“ o acordo é impossível” . Portanto, para que aqui nos interessam predominantemen­
Lutero, o retorno ao Evangelho significa não te as motivações doutrinárias. Durante mui­
apenas um drástico redimensionamento, to tempo, Lutero sentiu-se profundamente
mas até mesmo a eliminação do valor da frustrado e incapaz de merecer a salvação
tradição. com as próprias obras, que lhe pareciam
c) Isso, evidentemente, comporta uma
sempre inadequadas, e, consequentemente,
ruptura não apenas com a tradição religio­ a angústia diante da problematicidade da
sa, mas também com a tradição cultural, que salvação eterna o atormentou incessante­
em muitos aspectos constituía o substrato mente. A solução que adotou, afirmando que
daquela. Como pensamento e como teoria, basta a fé para salvar-se, libertou-o comple­
portanto, o humanismo é rejeitado em blo­ ta e radicalmente dessa angústia.
co. Nesse sentido, a posição de Lutero é de­ Mas eis as motivações conceituais: nós,
cididamente anti-humanista: com efeito, o homens, somos criaturas feitas “do nada”
núcleo central da teologia luterana nega qual­ e, enquanto tais, não podemos fazer nada
quer valor verdadeiramente construtivo à de bom que tenha valor aos olhos de Deus,
própria fonte de onde brotam as humanae isto é, nada que tenha valor para nos trans­
litterae, bem como à especulação filosófica, formar naquelas “novas criaturas” e reali­
como já recordamos, visto que considera zar aquela “renascença” exigida pelo Evan­
a razão humana como nada diante de Deus gelho. Como Deus nos criou do nada com
e visto que confia a salvação inteiramente um ato de livre vontade, da mesma forma
à fé. nos regenera com ato análogo de livre von­
73
C d p ltu lo q u in to - A L ie n a s c e n ç a e a R e l ig i ã o

tade, completamente gratuito. Depois do pe­ precisas indicam que deviam circular pelo
cado de Adão, o homem decaiu a tal ponto menos cem mil exemplares do Novo Testa­
que, por si só, não pode fazer absolutamen­ mento e cerca de vinte mil exemplares dos
te nada. Considerado em si mesmo, tudo Salmos. Entretanto, a demanda era muito
aquilo que deriva do homem é “concupis- superior à oferta. E a grande edição da Bí­
cência” , termo que, em Lutero, designa tudo blia feita por Lutero respondia precisamen­
aquilo que é ligado ao egoísmo, ao amor de te a essa necessidade: daí seu triunfal suces­
si próprio. Sendo assim, a salvação do ho­ so. Portanto, não foi Lutero que (como se
mem não pode deixar de depender do amor dizia no passado) solicitou aos cristãos que
divino, que é dom absolutamente gratuito. lessem a Bíblia, mas foi ele quem, mais do
A fé consiste em compreender isso e entre­ que todos, soube satisfazer essa premente
gar-se totalmente ao amor de Deus. É preci­ necessidade de leitura direta dos textos sa­
samente como ato de total confiança em grados, que já havia amadurecido em sua
Deus que a fé nos transforma e regenera. época.
A fé “justifica sem obra alguma” . Ain­ Uma diferença, contudo, merece ser
da que, dada a fé, Lutero admita que daí ressaltada. Os estudiosos observaram que,
decorrem boas obras, nega que elas possam na Bíblia, os humanistas procuravam algo
ter aquele sentido e aquele valor que tradi­ diferente do que Lutero buscava: com efei­
cionalmente lhes eram atribuídos. to, os primeiros queriam encontrar nela um
Deve-se recordar que essa doutrina pres­ código de comportamento ético, as normas
supõe como fundo toda a questão das “ in­ da vida moral, ao passo que Lutero pro-
dulgências” (e as polêmicas relativas), liga­
da justamente à teologia das “obras” (sobre
Tgr
a qual, aqui, só estamos acenando), mas que
vai muito além dessas polêmicas, atingindo
os próprios fundamentos da doutrina cris­
tã. Lutero não apenas corrigiu os abusos li­
gados à pregação das indulgências, mas tam­
bém cortou pela raiz a base doutrinária, com
gravíssimas conseqüências, das quais fala­
remos adiante. [ 2 ]

A “ óz~sc.v-W\Arc\" como a fonte


de verdade

Tudo o que já dissemos seria suficiente


para tornar compreensível o sentido do se­
gundo ponto básico do luteranismo. Tudo
o que nós sabemos de Deus e da relação ho-
mem-Deus nos é dito pelo próprio Deus na
Escritura. Esta, portanto, deve ser entendi­
da com rigor absoluto, sem a interferência
de raciocínios e glosas metafísico-teológicas.
Só a Escritura constitui a autoridade
infalível de que necessitamos: o papa, os bis­
pos, os concílios e toda a tradição não so­
mente não beneficiam, mas até obstaculizam
a compreensão do texto sagrado.
Essa enérgica remitência à Escritura já A edição da Bíblia de Lutero
era própria de muitos humanistas, como teve notável sucesso por causa da grande necessidade
de leitura direta dos textos sagrados. »
vimos. Mas os estudos recentes destacaram amadurecida na época.
também o fato de que, quando Lutero deci­ Para Lutero apenas a Escritura
diu-se a empreender a tradução e a edição constitui a autoridade infalível de que o crente
da Bíblia, já circulavam numerosas edições tem necessidade.
tanto do Antigo como do Novo Testamen­ Na imagem, o frontispício da Bíblia de M. Lutero,
to. Cálculos realizados com bases bastante de 1541.
74
Primeira parte O - -Humcmismo e cx R enascença

cura nela a justificação da fé, diante da qual induziu os príncipes a controlarem a vida
(como ele a entende), o código moral, religiosa, chegando até a exortá-los a amea­
considerado em si, perde qualquer signifi­ çar e punir todos aqueles que desleixavam
cado. as práticas religiosas. Desse modo, o desti­
no espiritual do indivíduo tornava-se patri­
mônio da autoridade política, nascendo as­
EE1 o lrv^e eKam e d a ^tdscrífu^a” sim o princípio cuius regio, eius religio (“ a
religião deve depender do Estado” ).
O terceiro ponto básico do luteranismo
pode ser muito bem explicado, além de pela
lógica interna da nova doutrina (não há ne­
cessidade de um intermediário especial en­ 4 tS o rv o ta ç õ e s p e s s im is t a s
tre o homem e Deus, entre o homem e a e m e a c ic m a lis ta s
Palavra de Deus), também pela situação his­
d o p e n s a m e n t o d e J_uteeo
tórica que se viera criando no fim da Idade
Média e durante o Renascimento: o clero se
mundanizara, perdera credibilidade, não se
vendo mais uma distinção efetiva entre pa­ Os componentes pessimistas e irracio-
dres e leigos. nalistas do pensamento de Lutero estão evi­
As revoltas de Wyclif e Huss, no cre­ dentes em todas as suas obras, mas de modo
púsculo da Idade Média, são particularmen­ especial no Servo-arbítrio, escrito contra
te significativas. Erasmo. Nesse escrito, aquela “dignidade do
Não era preciso muito, portanto, para homem” , tão cara aos humanistas italianos
extrair daí as conclusões extremas, como fez e da qual Erasmo havia sido defensor, em
justamente Lutero, isto é, a idéia de que um ampla medida subverte-se inteiramente,
cristão isolado pode ter razão contra um apresentando-se com sinal oposto.
concilio, se estiver iluminado e inspirado O homem só pode se salvar se com­
diretamente por Deus, não sendo portanto preender que não pode em absoluto ser o
necessária uma casta sacerdotal, visto que artífice de seu próprio destino: com efeito,
cada cristão é sacerdote em relação à comu­ sua salvação não depende dele, mas de Deus;
nidade em que vive. Todo homem pode pre­ enquanto estiver tolamente convencido de
gar a palavra de Deus. Assim, elimina-se a que pode agir por si próprio, estará se ilu­
distinção entre “clero” e “ leigos” , embora dindo, nada mais fazendo do que pecar. O
não seja eliminado o ministério pastoral en­ homem precisa aprender a “ desesperan­
quanto tal, indispensável em uma socieda­ çar-se de si mesmo” a fim de abrir cami­
de organizada. nho para a salvação, já que, desesperan­
Todavia, nesse aspecto, as coisas logo çando-se de si mesmo, entrega-se a Deus e
assumiram uma conotação francamente ne­ tudo espera da vontade dé Deus — e, des­
gativa. A liberdade de interpretação abriu se modo, aproxima-se da graça e da sal­
caminho a uma série de perspectivas não vação.
desejadas por Lutero, que, pouco a pouco, Considerado em si mesmo, ou seja, sem
foi se tornando dogmático e intransigente, o Espírito de Deus, o gênero humano é “ o
pretendendo, em certo sentido, estar dota­ reino do diabo” , é “ um caos confuso de
do daquela “ infalibilidade” que contestara trevas” .
ao papa (não por acaso foi chamado de “ o O arbítrio humano é sempre e somen­
papa de Wittenberg” ). E pior ainda aconte­ te “ escravo” : de Deus ou do Demônio. Lu­
ceu quando, tendo perdido toda confiança tero compara a vontade humana a um ca­
no povo cristão organizado em bases reli­ valo que se encontra entre dois cavaleiros:
giosas, em virtude dos infinitos abusos, Lu­ Deus e o Demônio; tendo Deus sobre o dor­
tero entregou aos príncipes a Igreja por ele so, quer andar e vai aonde Deus quiser; ten­
reformada: nasceu assim a “ Igreja de Esta­ do no dorso o Demônio, anda e vai aonde
do” , que é a antítese daquela Igreja à qual a quer o Demônio. Ela não possui sequer a
Reforma deveria ter levado. faculdade de escolher entre os dois cava­
Portanto, aconteceu que, depois de ter leiros, são eles que disputam entre si o di­
afirmado solenemente a liberdade da fé, reito de cavalgá-la. E a quem acha “ injus­
Lutero depois se contradisse de modo cla­ ta” essa sorte do homem, que desse modo
moroso nos fatos. Pouco a pouco, Lutero fica predestinado, Lutero responde com
75
Capitulo quinto - R e n a s c e n ç a e a IR e lig ião

uma doutrina extraída do voluntarismo reza, o homem outra coisa não pode fazer
ockhamista: Deus é Deus precisamente por­ senão pecar; e, quando pensa de acordo com
que não precisa prestar contas daquilo que seu intelecto, outra coisa não pode fazer se­
quer e faz, estando bem acima daquilo que não errar. As virtudes e o pensamento dos
parece justo ou injusto para o direito hu­ antigos são vícios e erros.
mano. Nenhum esforço humano pode salvar
Desse modo, natureza e graça ficam o homem, mas somente a graça e a miseri­
radicalmente separadas, assim como razão córdia de Deus. Essa é a única certeza que,
e fé. Quando age de acordo com sua natu­ segundo Lutero, nos dá a paz. (XI

Martinho Lutero diante da Dieta de Worms (1521) em que foi afastado do Império
por conta de Carlos V. Segundo Lutero, não é necessária uma casta sacerdotal,
pois cada cristão é sacerdote em relação à comunidade em que vive,
mas a liberdade de interpretação abriu caminho para uma série de perspectivas também políticas
não desejadas por Lutero.
76
Primeira parte - CD" H u m a n i s m o e a R enascença

= III. u i H ck Z w ín 0 lio , —
o rejo o r n a d o ^ de 2u^içue

• Ulrich Zwínglio (1484-1531) foi convicto defensor sobretudo das seguintes


teses luteranas: a) a Escritura é a única fonte de verdade; b) o papa e os concílios
não têm autoridade superior à da Escritura; c) a salvação vem
As teses pela fé e não pelas obras; d) o homem é predestinado.
teológicas O que dividia Zwínglio de Lutero era, ao contrário, sobretu-
de Zwínglio do sua cultura humanista, com fortes transbordamentos de
-> § 1 racionalismo, e sua concepção da comunidade dos fiéis também
como comunidade política, e o todo acompanhado por forte
patriotismo helvético (ele desenvolveu sua atividade de reformador em Zurique,
de 1519 até a morte).

1 y \ p o s i ç ã o d o u t r in a i critura é a única fonte de verdade; b) o papa


e os concílios não possuem uma autoridade
de 2 w ín 0 lio
que vá além da autoridade das Escrituras;
c) a salvação ocorre pela fé e não pelas obras;
Ulrich Zwínglio (1484-1531) foi ini­ d) o homem é predestinado.
cialmente discípulo de Erasmo. E, apesar de Separavam Zwínglio de Lutero, além
um rompimento formal que teve com ele, de algumas idéias teológicas (em particular
permaneceu profundamente ligado à men­ sobre os sacramentos, aos quais ele dava um
talidade humanista. Aprendeu o grego e o valor quase que simbólico), também a cul­
hebraico e estudou não somente a Escritu­ tura humanista, com fortes elementos de
ra, mas também os pensadores antigos, racionalismo, e um marcado nacionalismo
como Platão e Aristóteles, Cícero e Sêneca. helvético (que, inconscientemente, o levou
Pelo menos no início de sua evolução espi­ a privilegiar os habitantes de Zurique, como
ritual, compartilhou a convicção de Ficino se eles fossem os eleitos por excelência).
e de Pico sobre a revelação estendida uni­ Para dar uma idéia concreta do desdo­
versalmente, mesmo fora da Bíblia. bramento da doutrina zwingliana em senti­
Em 1519 começou a sua atividade de do humanista-filosófico, escolhemos dois
pregador luterano na Suíça. Zwínglio era pontos muito importantes: a questão do pe­
ativo defensor das teses fundamentais de Lu­ cado e da conversão e a retomada de temá­
tero, particularmente das seguintes: a) a Es­ ticas ontológicas de caráter panteísta.

Em Zurique
(aqui reproduzida em
uma incisão quinhentista),
desenvolveu sua obra
Zwínglio, convicto
defensor de algumas das
teses fundamentais de
Lutero. Um forte
patriotismo helvético o
levou a privilegiar
inconscientemente os
habitantes de tal cidade,
como se fossem os
eleitos.
77
Capitulo quintO - çA R e n a s c e n ç a e a TReligião

No que se refere ao pecado, Zwínglio logo Zwínglio deu sinais de autonomia, não
reafirma que ele tem sua raiz no amor de si cessou nem mesmo com a sua morte, que
próprio (egoísmo). Tudo aquilo que o homem ele assim comentou: “Zwínglio teve o fim
faz enquanto homem é determinado por esse de um assassino (...); ameaçou com a espa­
amor de si próprio, sendo, portanto, pecado. da e teve a sorte que merecia.” Lutero afir­
A conversão é uma “iluminação da mente” . mara solenemente (com as palavras do Evan­
Para Zwínglio, a predestinação se in­ gelho) que “ quem usar a espada, perecerá
sere em um contexto determinista, e é con­ pela espada” , pois a espada não deveria ser
siderada um dos aspectos da Providência. usada em defesa da religião. Mas depois se
Há um sinal seguro para reconhecer os elei­ contradisse gravemente: já em 1525 ele exor­
tos, sinal que, precisamente, consiste em ter tara Filipe de Hessen a reprimir com san­
fé. Enquanto eleitos, os fiéis são todos iguais. gue os camponeses revoltados sob a lideran­
A comunidade dos fiéis se constitui também ça de Thomas Müntzer, que fora convertido
como comunidade política. Assim, a Refor­ por ele e nomeado pastor de uma localida­
ma religiosa desembocava em uma concep­ de da Saxônia.
ção teocrática, sobre a qual pesavam ambi- A espiral da violência já se tornara
güidades de diversos tipos. irreprimível: o germe das guerras religiosas
Zwínglio morreu em 1531, combaten­ estava se difundindo fatalmente e se torna­
do contra as tropas dos cantões católicos. ria uma das maiores calamidades da Euro­
A ira de Lutero contra ele, que começou tão pa moderna.

I V . íS a lv m o
e. a de g e n e b ra

Calvino • O destino do francês João Calvino (1509-1564) está ligado


e o governo à cidade de Genebra, onde, de 1541 a 1564, soube realizar um
teocrático governo teocrático inspirado na Reforma. Como Lutero, Calvino
em Genebra está convicto de que a salvação está apenas na Palavra de Deus
^§1 revelada na Sagrada Escritura, e que o pecado original eliminou
completamente os dons sobrenaturais do homem.
Os conceitos peculiares do Calvinismo são:
a) a Providência, entendida como continuação do ato de criação, cuja ação se
estende a todos;
b) a predestinação, que consiste no eterno conselho de Deus por meio do
qual determinou aquilo que queria fazer de cada homem.

O s p cm tos -f-urvdamervfais soube realizar um governo teocrático inspi­


rado na Reforma, muito rígido tanto em
d a tecm ia d e (S a lv m o relação à vida religiosa e moral dos cida­
dãos como, sobretudo, em relação aos dis­
Calvino (Jean Cauvin) nasceu em Noyon, sidentes.
na França, em 1509, formando-se sobretu­ O calvinismo já foi definido como o
do em Paris, onde sofreu especialmente as mais dinâmico de todos os tipos de protes­
influências humanistas do círculo de Jacques tantismo. Mais pessimista que Lutero a res­
Lefèvre d’Etaples (Faber Stapulensis, 1455­ peito do homem, Calvino foi mais otimista
1536). Seu destino, porém, esteve ligado à que ele a respeito de Deus. Enquanto, para
cidade de Genebra, onde atuou sobretudo Lutero, o texto básico era o de Mateus 9,2
entre 1541 e 1564, ano de sua morte, e onde (“ os teus pecados te são perdoados” ), para
78
Primeira parte - O -H um cm ism o e a R e n a s c e n ç a

da que não tenha retirado inteiramente) os


dons naturais do homem, e eliminou com­
pletamente os dons sobrenaturais.
Como Lutero, Calvino insiste no “servo
arbítrio” , apresentando a obra da salva­
ção, que ocorre unicamente pela fé, como
obra do poder de Deus. Se nós pudésse­
mos realizar até mesmo a menor ação por
nós mesmos, por meio do nosso livre-arbí-
trio, então Deus não seria plenamente nos­
so criador.
Mas, bem mais que Lutero, Calvino
insiste na predestinação e amplia o sentido
da onipotência do querer divino, a ponto
de subordinar quase inteiramente a ele as
volições e as decisões do homem. Ele subs­
titui o determinismo de tipo estóico, que é
de caráter naturalista e panteísta, por uma
forma de determinismo teísta e transcen-
dentalista igualmente extrema.
“ Providência” e “ predestinação”
constituem, portanto, os dois conceitos car­
deais do calvinismo.
Em certo sentido, a Providência é o
Calvino (1509-1564),
prosseguimento do ato de criação e sua ação
que foi um dos maiores reformadores protestantes,
em um dos mais significativos retratos se estende a todos, não só no geral, mas tam­
que nos foram transmitidos. bém no particular, sem qualquer limite.
Incisão aquarelada de anônimo, A predestinação é “ o eterno conselho
conservada na Biblioteca Nacional de Paris. de Deus, pelo qual ele determinou aquilo
que queria fazer de cada homem” . E sim­
plesmente absurdo procurar a causa de tal
decisão de Deus: ou melhor, a causa é a von­
Calvino, ao contrário, era o de Paulo, Epís­ tade livre do próprio Deus, e sua vontade é
tola aos Romanos 8,31: “Se Deus está conos­ a lei suprema.
co, quem estará contra nós?” O próprio pecado original de Adão não
E Calvino se convenceu de que Deus apenas foi permitido por Deus como tam­
estava com ele ao construir a “ Cidade dos bém ele o quis e o determinou. Isso pode
eleitos” na terra, que foi Genebra, o novo parecer absurdo apenas para aqueles que
Israel de Deus. não temem a Deus e não compreendem que
A doutrina de Calvino encontra-se so­ a própria culpa de Adão, assim concebida,
bretudo na Instituição da religião cristã, da inscreve-se em um admirável e superior de­
qual publicou numerosas edições a partir de sígnio providencial.
1536, em latim e em francês. Segundo M ax Weber, foi da posição
Como Lutero, Calvino tinha a convic­ protestante que derivou o espírito do capi­
ção de que a salvação está somente na Pala­ talismo. Com efeito, Lutero foi o primeiro
vra de Deus, revelada na Sagrada Escritura. que traduziu o conceito de “trabalho” pelo
Qualquer representação de Deus que não termo “beruf” , que significa vocação no sen­
derive da Bíblia, mas sim da sabedoria hu­ tido de profissão, limitando-o, porém, às
mana, é um vão produto de fantasia, mero atividades agrícolas e artesanais. Os calvi-
ídolo. A inteligência e a vontade humana nistas o estenderam a todas as atividades
foram irreparavelmente comprometidas pelo produtoras da riqueza. E mais: viram na
pecado de Adão, de modo que a inteligên­ produção de riquezas e no sucesso a'ela li­
cia deforma o verdadeiro e a vontade tende gado quase que um sinal tangível preci­
para o mal. samente da predestinação e, portanto, um
Mais precisamente, explica Calvino, o notável incentivo ao empenho profissional.
pecado original reduziu e enfraqueceu (ain­ ' ®
79
Capitulo quinto - jA R e n a s c e n ç a e a TReligião

V. Ovámos f e ó l o g o s d a lR a | o n m a
e f i g u r a s l i g a d a s a o m o v im e n t o p n o te s fa m + e .

• Entre os discípulos de Lutero foi importante Filipe Melanchton (1497-1560),


que porém tentou uma espécie de mediação entre as posições da teologia luterana
e a tradicional.
Fortes tintas racionalistas se encontram em Miguel Servet (1511-1553), que
pôs em discussão a divindade de Cristo.
Lélio Socino (1525-1562) e, sobretudo, o sobrinho Fausto
Outras figuras Socino (1539-1604) interpretaram os dogmas cristãos em chave
ligadas claramente ética e racionalista, portanto em antítese em relação
ao movimento a luteranos e calvinistas.
protestante O aspecto místico do pensamento da Reforma protestan-
-»§ i te foi levado às extremas conseqüências por Sebastião Franck
(1499-1542/3), por Valentim Weigel (1533-1588) e por Jakob
Bõhme (1575-1624), o qual terá grandes influências sobre os pensadores ro­
mânticos.

1 «Urvtéi^pre+es im p o r t a n t e s
tisbona, onde as partes em causa (luteranos,
calvinistas e católicos) não aceitaram as ba­
d o m o v im e n to peotes+ cm te ses do acordo por ele proposto.
Uma forte coloração racionalista pode
ser encontrada em Miguel Servet (1511­
Entre os discípulos de Lutero destaca- 1553), que, em sua obra Os erros da Trin­
se com certa importância Filipe Melanchton dade (1531), pôs em discussão o dogma
(1497-1560), o qual, porém, atenuou pou­ trinitário e, conseqüentemente, a divindade
co a pouco certas asperezas do mestre e ten­ de Cristo, que, para ele, foi homem que se
tou uma espécie de mediação entre as posi­ aproximou extraordinariamente de Deus e
ções da teologia luterana e a posição católica que os homens devem procurar imitar. Foi
tradicional. A obra que lhe deu fama intitu­ condenado à morte por Calvino, que não
la-se Loci communes (que contém exposi­ tolerava qualquer forma de dissensão em
ções sintéticas dos fundamentos teológicos), questão de dogma.
publicada em 1521 e várias vezes reeditada, Também dignos de menção foram Lelio
com variantes sempre mais acentuadamen- Socino (1525-1562) e, sobretudo, seu sobri­
te moderadas. nho Fausto Socino (1539-1604), que, asila­
Melanchton procurou corrigir Lutero do na Polônia, fundou uma seita religiosa
em três pontos básicos: denominada “ irmãos poloneses” . Para
1) sustentou a tese de que a fé tem papel Socino, ao contrário do que sustentavam os
essencial na salvação, mas que, com sua obra, outros reformadores, o homem pode “mere­
o homem “colabora” com ela, funcionando cer” a graça, porque é livre. A Escritura é a
assim quase como concausa da salvação; única fonte através da qual conhecemos a
2) esforçou-se por revalorizar a tradi­ Deus, mas a inteligência do homem deve se
ção, a fim de acabar com os dissídios teoló­ exercer precisamente na obra de interpreta­
gicos que a doutrina do livre-exame desen­ ção dos textos sagrados. E cada um é inteira­
cadeara; mente livre nessa interpretação. Socino ten­
3) pareceu dar certo espaço à liberda­ de a uma interpretação em bases clarsrmente
de, embora exíguo, como também censurou éticas e racionalistas dos dogmas, em eviden­
seu mestre pelo caráter despótico, rigidez e te antítese com o irracionalismo de fundo
belicosidade. dos luteranos e dos calvinistas.
Seus hábeis desígnios de reconciliação O aspecto místico próprio do pensa­
dos cristãos dissiparam-se em 1541, em Ra- mento da Reforma protestante, porém, é
80
Primeira parte - O -Humcmismo e a R enascença

levado às últimas conseqüências por Sebas­ As idéias de Bõhme não podem ser resumi­
tião Franck (1499-1542/3), cujos Parado­ das, pois são expressão de uma experiência
xos tornaram-se célebres (1534/35), por mística intensamente vivida e sofrida. Tra­
Valentim Weigel (1533-1588), cujas obras ta-se de verdadeiras “ alucinações metafí­
só circularam depois de sua morte, e por sicas” , como já disse alguém.
Jakob Bõhme (1575-1624), do qual se tor­ As obras de Bõhme foram muitíssimo
naram famosos sobretudo estes dois escri­ criticadas, mas, talvez devido à sua opção
tos: A aurora nascente (1612) e Os três prin­ de vida simples (viveu exercendo a humil­
cípios da natureza divina (1619). de profissão de artesão), Bõhme não foi
Este último pensador, sobretudo, iria perseguido, mas substancialmente tole­
influenciar pensadores da época romântica. rado.

V I. (H o n fp c \-P e .fo P n \c \
e IR a f o ó m a c a t ó l i c a

• O termo "Contra-reforma", cunhado no Setecentos, indica hoje propriamente:


а) o aspecto doutrinai expresso na condenação dos erros do Protestantismo e
na formulação positiva do dogma católico;
б) o conjunto das medidas restritivas e constritivas, como a instituição da
Inquisição romana em 1542 e a compilação do índice dos livros proibidos.
A "Reforma católica" designa o complexo movimento dirigi­
Aspectos do a regenerar a Igreja dentro de si mesma, que tem raízes já no
doutrinais fim da Idade Média e que depois se desdobra no decorrer da era
da Contra- renascentista: manifesta-se também na form a peculiar de
reforma
e da Reforma militância vivaz, sobretudo a propugnada por Inácio de Loyola e
católica pela Companhia de Jesus por ele fundada (oficialmente reconhe­
^§1 cida pela Igreja em 1540).

• A ligação entre "Reforma católica" e "Contra-reforma" está na função cen­


tral do papado interiormente renovado, sancionada solenemente durante o Con­
cilio de Trento (realizado com várias interrupções, de 1545 a 1563.
O Concilio As decisões do Concilio, além disso, solicitaram ulteriormente a
de Trento retomada da Escolástica, cujo florescimento mais notável ocor­
e a retomada reu na Espanha com Francisco Suarez (1548-1617), que com sua
da Escolástica ontologia não deixou de influenciar o pensamento moderno, par­
—» § 2-3 ticularmente Wolff.

1 O s c o n c e it o s no caso dos conceitos de Humanismo e Re­


nascimento. Essa observação vale também
k is to H o g r á - p c o s
para o conceito de “ Contra-reforma” .
d e "Oont^Aa-^*e|■ o^*^r^a,, O termo “ Contra-reforma” foi cunha­
e d e " R efoi^ma c a t ó l i c a ” do em 1776 por Pütter (jurista de Gptinga),
e teve logo muito sucesso.
Está implícita no termo uma conotação
Os conceitos historiográficos são ex­ negativa (“contra” = “ anti” ), ou seja, a idéia
tremamente complexos e, no mais das vezes, de conservação e reação, como que um re­
são gerados por uma série de causas difíceis trocesso em relação às posições da Refor­
de determinar, como vimos, por exemplo, ma protestante. Mas os estudos feitos sobre
81
Capitulo quinto - ;A R enascença e a 1RelÍ0Íão

plo, a instituição da Inquisição romana em


1542 e a compilação do Index dos livros
INDEX proibidos. (Sobre este último ponto, deve-
se recordar que a imprensa tornara-se o
LIBRORVM mais formidável instrumento de difusão das
idéias dos protestantes, daí a contramedida
PR O H IBIT O R V M do Index.)
ALEXANDRI V II. Pontificis Maximi A conexão entre a “ Reforma católica”
iuftu editus. e a “ Contra-reforma” está na função cen­
tral do papado que, renovado internamen­
te, torna-se promotor da Contra-reforma em
suas diversas manifestações.
Concluindo, diremos, com H. Jedin
(que é o historiador que estudou mais pro­
funda e amplamente este problema), que
“Reforma católica” e “ Contra-reforma” de­
vem ser bem distintas, justamente para bem
entender suas estreitas ligações: “A Refor­
ma católica é a reflexão sobre si mesma re­
alizada pela Igreja, tendo em vista o ideal
R O M JE-t de vida católica que pode ser alcançado atra­
ExTyp©grtpfciâRetKrend*C«n»* Apoftolicz. iC 6 + vés de uma renovação interna; a Contra-
Sufmwum ftrmiflu >Cr PHuihpe *
Reforma é a auto-afirmação da Igreja na luta
contra o protestantismo. A Reforma católi­
ca baseia-se na auto-reforma de seus mem­
Frontispício do Index dos livros proibidos.
bros na tardia Idade Média; ela cresceu sob
o estímulo da apostasia e chegou à vitória
pela conquista do papado, a organização e
a concretização do Concilio de Trento: é a
esse movimento, que foi bastante amplo e alma da Igreja retomada em seu vigor, ao
articulado, levaram pouco a pouco a des­ passo que a Contra-reforma é o seu corpo.
cobrir a existência de um complexo movi­ A Reforma católica armazenou as forças que
mento (que se manifestou de vários modos), depois foram descarregadas na Contra-re­
voltado para a regeneração da Igreja no in­ forma. E o ponto em que ambas se interligam
terior dela mesma, movimento que tem suas é o papado. A ruptura religiosa subtraiu à
raízes no fim da Idade Média e que depois Igreja forças preciosas, aniquilando-as, mas
se desdobra ao longo da época renascen­ também despertou aquelas forças que ainda
tista. existiam, aumentando-as e fazendo com que
A esse processo de renovação no inte­ lutassem até o fim. Ela foi um mal, mas um
rior da Igreja foi dado o nome de “ Reforma mal do qual também nasceu algo de positi­
católica” , termo hoje acolhido de modo qua­ vo. Nos dois conceitos de ‘Reforma católi­
se unânime. As conclusões a que se chegou ca’ e de ‘Contra-reforma’ estão incluídos
indicam que aquele complexo fenômeno que também os efeitos que a elas se seguiram.”
se chama “ Contra-reforma” não teria sido
possível sem a existência de tais forças de
regeneração próprias da catolicidade.
A Contra-reforma tem um aspecto dou­ 2 O (S o r v e ílio d e T e e rv + o
trinário, que se expressa na condenação dos
erros do protestantismo e na formulação
positiva do dogma católico. Mas também A Igreja católica conta até hoje vinte e
se manifesta numa forma peculiar de viva mi­ um concílios, do Concilio de Nicéia, em 325,
litância, sobretudo a propugnada por Inácio ao Vaticano II, de 1962 a 1965. Entretodos
de Loyola e pela Companhia de Jesus por esses concílios, o de Trento (que foi o déci­
ele fundada (e reconhecida oficialmente pela mo nono), realizado de 1545 a 1563, é cer­
Igreja em 1540). A Contra-reforma mani­ tamente um dos mais importantes, sendo
festou-se também sob a forma de medidas talvez aquele que goza de maior notorieda­
restritivas e constritivas, como, por exem­ de, embora não tenha sido o mais numero­
82
Primeira parte O - -Humanismo e a R enascença

so nem o mais faustoso, e ainda que sua pró­ diante de uma reviravolta que, na história
pria duração tenha de ser redimensionada da Igreja, tem o mesmo significado que as
drasticamente, considerando-se o número descobertas de Copérnico e Galileu têm para
dos anos de interrupção (de 1548 a 1551 e, a imagem do mundo elaborada pelas ciên­
depois, de 1552 a 1561). Com efeito, a sua cias naturais.”
importância na história da Igreja e do cato­ No que se refere ao primeiro ponto que
licismo foi muito grande e a sua eficácia mencionamos, que aqui é o que interessa
bastante notável. mais, deve-se notar o que segue.
A importância desse concilio está no Os documentos do concilio usam de
fato de que ele termos e conceitos tomistas e escolásticos
a) tomou clara posição doutrinária com parcimônia e cautela e, como foi bem
acerca das teses dos protestantes e notado por diversos intérpretes atentos, o
b) promoveu a renovação da discipli­ metro com que se medem as coisas é o da fé
na da Igreja, tão invocada pelos cristãos da Igreja e não o de Escolas teológicas par­
há muito tempo, dando precisas indicações ticulares.
sobre a formação e o comportamento do Responde-se sobretudo às questões de
clero. fundo suscitadas pelos protestantes, ou seja,
Deve-se destacar também que, no Con­ a justificação pela fé, a questão das obras, a
cilio de Trento, a Igreja readquire a plena predestinação e, com grande amplitude, a
consciência de ser Igreja de “cuidado com as questão dos sacramentos, que os protestan­
almas” e de missão, propondo-se a si mes­ tes tendiam a reduzir somente ao batismo e
ma corno objetivo preciso o seguinte: “Sa- à eucaristia (em especial, reafirmam a dou­
lus animarum suprema lex esto” (“ a lei su­ trina da transubstanciação eucarística, se­
prema deverá ser a salvação das almas” ). gundo a qual a substância do pão e do vi­
Esta é uma reviravolta histórica basilar, que nho se transforma em carne e sangue de
Jedin analisa do seguinte modo: “ Estamos Cristo; Lutero, ao invés, falava de consubs-

Ticiano, “ O Concilio de Trento", conservado em Paris no Museu do Louvre.


Este concilio (1545-1.563) marca a mais significativa virada da Igreja nos tempos modernos.
83
Capítulo quinto - A R enascença e a Religião

Particular de uma estampa


representando a cidade de Trento,
onde se realizou
o Concilio que marcou
para a Igreja a reconquista
da plena consciência
de ser “cura de almas".

tanciação, o que implicava a permanência foi expoente ilustre Tomás de Vio (1468­
do pão e do vinho, mesmo realizando-se a 1533), mais conhecido sob o nome de car­
presença de Cristo, ao passo que Zwínglio deal Caietano.
e Calvino tendiam a uma interpretação sim­ Caietano, aliás, foi o primeiro que in­
bólica da Eucaristia), bem como reafirmam troduziu como texto-base de teologia, ao
o valor da tradição. invés das tradicionais Sentenças de Pedro
Lombardo, a Summa Theologica de santo
Tomás, que, posteriormente, se tornaria o
ponto de referência tanto para os domini­
3 O e e lc m ç a m e n to canos como para os jesuítas. Recorde-se
também que, ao longo do século XVII, os
d a (S sc o lá stic a comentários a Aristóteles foram substituí­
dos pelos Cursus philosopbici, amplamente
inspirados no tomismo e destinados a ter
Lutero foi duro adversário não apenas ampla difusão e repercussão.
de Aristóteles, mas também do pensamento O florescimento mais notável dessa
tomista e escolástico em geral. As razões são “ segunda escolástica” ocorreu na Espanha,
bem evidentes: as tentativas de conciliação país no qual tanto os debates humanistas
entre a fé e a razão, entre a natureza e a como os religiosos chegaram de forma ate­
gra-ça e entre o humano e o divino estavam nuada e que, portanto, apresentava condi­
em antítese com seu pensamento de fundo, ções particularmente favoráveis para isso. O
que pressupunha a existência de uma sepa­ maior expoente da “ segunda escolástica” foi
ração categórica entre esses pólos. Mas Francisco Suarez (1548-1617), denominado
também é evidente que as decisões do Con­ doctor eximius, do qual ficaram famosas so­
cilio de Trento deveriam estimular uma re­ bretudo as seguintes obras: Disputationes
tomada do pensamento escolástico, do qual, metapbysicae (1597) e De legibus (1612).
aliás, houvera uma revivescência ao longo A ontologia de Suarez não deixou de in­
do século XV e no início do século XVI (is­ fluenciar o pensamento moderno, especial­
to é, já antes do próprio concilio), e do qual mente o de Wolff.
84
Primeira parte - O -Humcmismo e a "Renascença

ele não sabe medir. O sábio só sabe se refu­


giar nos clássicos, para aprender apenas suas
E rasm o
sutilezas verbais; o outro, ao invés, lançando-
se temerariamente aos riscos, recolhe - ou me
engano? - frutos de prudência. Homero tam­
bém viu isso, embora cego, onde diz que “o

Dl €rasmo: destino doma também um estulto".2


Gxistem de fato dois obstáculos que, mais
o elogio da loucura que os outros, se opõem à aquisição do co­
nhecimento do mundo, e são a vergonha, que
ofusca a inteligência, e a timidez, que exagera
O escrito de Erasmo certomente mais os perigos, desviando assim da ação. Ora, há
lido, e do ponto de visto artístico o mais feliz um esplêndido modo de se libertar de uma e
(é umo obra-prima em seu gênero), é o 0o - outra; possuir um grãozinho de loucura. Poucos
gio do loucura. são os homens que conseguem entender que
fí "loucura" de que fala Erasmo a sse ­ não estar sempre a se envergonhar e estar
melha-se, em certo sentido, à socrática "iro­ prontos para tudo ousar produz infinitas outras
nia" que, sob diversas máscaras é, a seu vantagens. Mas há quem crê ser preferível a
modo, reveladora do verdade. Estas várias tudo aquela espécie de prudência que se ad­
máscaras constituem uma gama multicolorida quire com o reto juízo das coisas, ouvi bem, de
que vai de um extremo negativo, que põe graça, quanto longe estejam aqueles que vão
em evidência o porte pior do homem, ao e x­ recomendando a si mesmos sob este aspecto.
tremo positivo do fé em Eristo e na loucura Em primeiro lugar, sabe-se que, como os
da cruz. Silenos de fllcibíades,3 todas as coisas huma­
fí "loucura" erasmiana, em muitos pon­ nas têm duas faces, completamente diferentes
tos do livro, rasga os véus e tira as máscaras uma da outra, de modo que aquilo que à pri­
sob as quais os poderosos do mundo se e s­ meira vista é morte, olhando bem mais para
condem e os mostra como atores que em seu dentro, se apresenta como vida, e ao contrário
íntimo sõo freqüentemente bem diferentes a vida se revela morte, o belo feio, a opulência
dos personagens que personificam: mas - e não é senão miséria, a má fama torna-se gló­
nisto reside a tocante poesia da obra ao ria, a cultura se descobre ignorância, a robustez
fazer isso, Erasmo faz compreender o senti - fraqueza, a nobreza ignobilidade, a alegria tris­
do da cena, da comédia recitada, dos ato­ teza, as boas condições escondem a desgra­
res e de suas máscaras, e de algum modo ça, a amizade a inimizade, um remédio salutar
convida a aceitar (ou mostro como aceitar) vos acarreta dano; em uma palavra, se abres a
as coisas assim como são, compreendendo caixa aí encontrarás de repente o oposto com­
exatomente seu sentido. pleto do externo.
E justomente deste modo a "loucura" Parece-vos que eu me exprima demasia­
erasmiana se torna reveladora de "verdade". do filosoficamente? Pois bem, para ser mais cla­
ra, falarei francamente. Quem, do rei, não pen­
sa que é um senhor poderoso e riquíssimo?
Todavia, se o espírito dele não está provido
1. O verdadeiro juízo é "loucura"
de bons dotes, se não há coisa que lhe baste,
Depois de ter reivindicado para mim1* a é paupérrimo, evidentemente. Se depois tem
glória de forte e suscitadora de atividade, que a alma escravizada a muitos vícios, é um es­
dirieis se eu fizesse o mesmo para a prudên­ cravo, um desprezível escravo. Do mesmo
cia? Objetareis: tanto foz pôr junto o fogo com modo se poderio filosofar sobre as outras
a água! Mas eu não desesperaria de conse­ qualidades, mas basta o quanto foi dito como
gui-lo, por pouco que prossigais, como antes, exemplo.
a dar-me ouvido atento. "Com que propósito isto?”, dirá alguém.
E, para começar, o que é a prudência se­ Ouvi onde quero chegar. Se alguém, enquanto
não a prática da vida? E a quem pode melhor os atores representam um drama, tentasse ar-
competir a honra de tal atribuição, ao sábio,
que, um pouco por vergonha, um pouco por ti­
midez, não ousa tomar nenhuma iniciativa, ou
'R "loucura" fala em primeira pessoa.
então ao galhofeiro, que nada consegue im­ 2Homero, llíodo, livro XVII, v. 32.
pedir de agir? Não será certamente o pudor a 3fllude à comparação entre Sócrates e os Silenos feita
frear este; ele não o tem; e nem o perigo, que por Rlcibíades no Banquete de Platão.
85
C a p í t u l o (JU Í fltO - ;A "Renascença e a "Religião

roncar-lhes o máscoro, poro mostrá-los aos ex- char um olho alguma vez, junto com toda a imen­
pectadores com seus rostos verdadeiros e na­ sa multidão dos homens, ou então cometer dis­
turais, não arruinaria toda a representação? Não parates, humanamente. Isso, porém, dirão, se­
merecería ser expulso do teatro a vassouradas, ria agir como pessoa sem bom senso. Não o
como um doido? Sem dúvida, por obra sua to­ negaria, contanto que de outro lado não se con­
das as coisas tomariam novo aspecto, e quem ceda que tal é a vida, a comédia da vida, que
antes era mulher, agora seria homem, quem há recitamos.
pouco era jovem, logo depois, velho, quem era (Erasmo,
rei pouco antes, se revelaria improvisamente € lo g io d a loucura, cap. XXIX.
um tratante, quem antes era deus, aparecerio
de repente um pobre homem. Mas [...] é lícito 2. Os filósofos e a "loucura”
destruir este engano? Não se desmontaria todo
o drama? Pois é justamente esta ilusão, este Sobre suas pegadas avançam os filóso­
truque que mantém presos os expectadores. fos, que incutem reverência com o manto e com
[...] F a vida humana, que mais é senão umo a barba. Proclamam ser apenas eles os depo­
comédia? Nesta os atores saem em público, es­ sitários da sabedoria, enquanto todos os ou­
condendo-se um sob uma máscara, outro sob tros mortais seriam sombras que esvoaçam
outra, e cada um faz sua parte, até que o dire­ aqui e ali.
tor os faz sair de cena. Frequentemente, po­ Doce, no verdade, é o delírio que os pos­
rém, oo mesmo homem dá ordem de represen­ sui! Fm sua mente erigem inumeráveis mundos,
tar-se sob outro revestimento, de modo que medindo quase a fio de prumo o sol, as estre­
quem antes representara o rei vestido de púr- las, a lua, os planetas, explicam a origem dos
pura, agora representa o escravo esfarrapado. raios, dos ventos, dos eclipses e de todos os
Toda o vida não tem nenhuma consistência; mas, outros fenômenos inexplicáveis da natureza, e
por outro lado, esta comédia não pode ser re­ jamais hesitam, como se fossem os confiden­
presentada de outro modo. tes secretos do supremo regulador do univer­
Ora, se algum sabichão, caído do céu, se so, ou então nos viessem trazer as notícias das
pusesse de repente a gritar: "Oh, este senhor, reuniões dos deuses. Mas a natureza caçoa
que todos admiram como um deus, um podero­ deles e de suas elucubrações. Com efeito, eles
so, não é sequer um homem, pois se deixa gui­ não conhecem nada com certeza. Prova mais
ar pelas paixões como um animal; não é mais que suficiente disso é o fato de que, entre os
que um escravo da pior espécie, porque está filósofos, a respeito de toda questão nascem
submetido espontaneamente a tantos patrões polêmicas intermináveis. Fies não sabem nada,
vergonhosos!"; ou então, se a outro que cho­ mas afirmam saber tudo; não conhecem a si
rasse a morte do pai, ordenasse: "Ri enfim; teu mesmos, por vezes não conseguem perceber
pai justamente agora começa a viver; é esta os buracos ou as pedras que lhes aparecem à
vida que vivemos que é morte, nada mais que frente, ou porque a maioria deles é cega ou
morte"; ou a um terceiro, que se vangloria da porque sempre estão nas nuvens. Todavia, pro­
própria origem, dirigisse o título de ignóbil bas­ clamam com orgulho ver bem as idéias, os uni­
tardo, acrescentando-lhe que está bem longe versais, as formas separadas, as matérias-
de possuir a virtude, e que é esta a única fon­ primas, as qüididades, a hecceidade,4 todas
te da verdadeira nobreza; se, portanto, este coisas tão sutis, que nem Linceu,5 creio, nelas
sábio falasse do mesmo modo de todas as ou­ conseguiría penetrar com o olhar.
tras coisas, que mais fazer senão mostrar a Seu desprezo pelas pessoas comuns se
todos que é um insensato, um louco a ser amar­ manifesta sobretudo quando amontoam, um
rado? sobre o outro, triângulos, quadrados, circunfe­
Rssim como não existe idiotice maior do rências e outras figuras geométricas e as con­
que uma sabedoria inoportuna, também não há fundem até fazer delas um labirinto; além dis­
maior imprudência do que uma prudência so, eles, dispondo as letras como sobre um
destrutiva. Faz muito mal quem não se adapta xadrez de operações militares e continuamente
aos tempos e às circunstâncias, quem não olha renovando sua ordem uma vez depois da ou­
o avesso do pano, quem, esquecido das re­ tra, jogam areia nos olhos dos crédulos.
gras dos gregos à mesa - ou bebe, ou retira-te F não faltam em sua fileira indivíduos que
pretendesse que a comédia não seja mais até são capazes, interrogando os ostros, de
comédia, fío contrário, é próprio do homem ver­
dadeiramente prudente, pelo fato de sermos
mortais, não aspirar a uma sabedoria superior 4São termos característicos da filosofia escolástica.
ao próprio destino, F preciso resignar-se ou fe­ ^Personagem mitológico, famoso pela agudez do olhar.
86
Primeira parte - O H u m a n is m o e a R e n a s c e n ç a

predizer o futuro e, prometendo milagres ainda rio ter-se substituído a uma mulher, ao diabo, a
maiores do que os da magia, encontram, feli­ um asno, a uma abóbora, a uma pedra? C de
zes deles!, quem acredita. que modo uma abóbora teria podido falar, fa­
€rasmo, zer milagres e ser posta na cruz? Qual consa­
6/og/o d a loucura, cap. UI. gração teria operado São Pedro, se tivesse
celebrado a função no momento em que Cristo
estava pregado na cruz? Poder-se-ia afirmar que
3. O s teólogos e o "loucura"
naquele mesmo instante subsistisse em Cristo
Dos teólogos, ao contrário, seria melhor o estado humano? Depois da ressurreição será
não falar, para evitar remover um brejo lodoso permitido comer e beber? Pois desde agora já
como o de Comorino ou de tocar uma erva mal­ se preocupam com a fome e a sede futuras.
cheirosa. Pois esta é uma raça de homens ex­ Depois, dispõem de uma infinidade de
traordinariamente carrancuda e irritável, e eu sutilezas, muito mais sutis que as preceden­
temo que atirem sobre mim às centenas as fi­ tes, sobre noções, relações, formalidade, qüi-
leiras de suas conclusões e não me constran­ didade, heceidade; coisas todas que ninguém
jam a recitar o meo culpo, ou que, na falta disso, conseguiría captar com o olhar, a menos que
não me proclamem simplesmente de infetado fosse um Linceu e divisasse até nas trevas mais
por heresia. Com efeito, este é o raio de que densas aquilo que de fato não existe.
se valem habitualmente para inspirar terror em Acrescentai agora a estas certas máximos
quem lhes é antipático. tão paradoxais que aqueles famosos oráculos
é fato que não existem outros homens dos Cstóicos, chamados de paradoxos, diante
que menos prazerosamente reconheçam os destas parecem vulgaridades boas para pia­
benefícios de mim recebidos, mas eles tam­ da: por exemplo, que é falta mais leve matar
bém têm para comigo muitos motivos de re­ mil homens do que coser uma só vez as sandá­
conhecimento. lias de um pobre em um dia de domingo, ou
O amor próprio os torna felizes a ponto então que se deve deixar perecer o mundo in­
de lhes parecer habitar o sétimo céu: do alto teiro com tudo o que nele existe, em vez de
olham embaixo todos os outros mortais, como pronunciar uma só mentirinha, por mais leve que
se fossem animais que rastejam no chão, e seja. [...]
quase chegam a deles ter compaixão. A seu Além disso, são infinitos os caminhos pe­
redor têm um conjunto infinito de definições ma­ los quais os Cscolásticos tornam ainda mais sutis
gistrais, de conclusões, de corolários, de pro­ aquelas infinitesimais sutilezas: em suma, seria
posições explícitas e implícitas, têm à disposi­ mais fácil escapar de um labirinto do que dos
ção tal exuberância de subterfúgios, que nem emaranhados dos Realistas, Nominalistas,
a rede de Vulcano6 com suas malhas poderio Tomistas, Albertistas, Ockamistas, Cscotistas, e
impedir de safar-se por entre seus "distingo". não acenei a todas as escolas, mas apenas às
Com estes eles cortam todo nó com tal facilida­ principais.
de que nem a machadinha de dois gumes de Cm todas estas escolas erudição e abstru-
Tenedo7 poderio fazer melhor, e infinito é o fer­ sidade estão na ordem do dia e eu penso que
vilhar dos termos que inventam na hora, e dos os próprios apóstolos teriam necessidade do
estranhos vocábulos que usam. socorro de outro Cspírito Santo, coso fossem
Além disso, deleitam-se em explicar com forçados a cruzar armas com esta nova estirpe
prazer os misteriosos arcanos da religião, ou de teólogos.
seja, o modo da criação e a ordenação do uni­ Crasmo,
verso, os canais por meio dos quais a mancha E lo g io d a loucura, cap. Ull.
do pecado original se espalhou sobre os des­
cendentes, o modo, a medida e o átimo em 4. A felicidade celeste
que Cristo se formou no seio da Virgem, e a é uma forma de "loucura"
razão do fato de que na Cucaristia os acidentes
subsistem sem a substância corpórea. Tal coisa se tornará mais evidente se de­
Cstes, porém, são argumentos abusivos. monstrar logo, conforme prometi, que o decan­
Atualmente as questões consideradas dignas tado prêmio supremo não é mais que uma es­
de teólogos grandes e iluminados, como os pécie de loucura. Considerai em primeiro lugar
chamam, são outras e quando nelas se em­
batem, então são todo ouvidos. Cis algumas.
6Refer0 ncio à rede construído pelo deus poro enredar
Há um instante preciso na geração divina? Cxis- juntos o mulher Vênus e Morte.
tem em Cristo mais filiações? é possível a pro­ 7l\la ilho de Tenedo era lei e prático o decapitação de
posição "Deus pai odeia o Filho"? Deus pode­ quem apresentava falso acusação.
87
Capítulo quinto - A R e n a s c e n ç a e a R e i \Cf\CXO

que Plotõo sonhou algo d® semelhante, quan­ lhor, não se perde, mas se aperfeiçoa. Quem,
do escreveu8 que o furor dos amantes é o mais portanto, saboreia antecipadamente na terra a
doce de todos, Com efeito, quem ama arden­ alegria do céu (sorte concedida a bem poucos)
temente não vive mais em si mesmo mas na­ está sujeito a manifestações muito semelhan­
quele que amo, e quanto mais se afasta de si tes à loucura: pronuncia palavras sem nexo não
mesmo, para transferir-se inteiro no outro, mais ao modo dos homens, mas emitindo palavras
goza. Ora, quando a alma se dedica a vagar inconscientemente; em seguida muda a ex­
fora do corpo, sem mais se servir normalmente pressão do rosto sem interrupção, ora vivaz, ora
dos próprios órgãos, isso é furor, sem dúvida, abatido, ora a chorar, depois a rir, a suspirar,
e pode-se afirmá-lo com razão. De outro modo, em suma, está completamente fora de si. Quan­
o que significaria aquilo que comumente se do depois volta a si mesmo, diz que não sabe
diz: "não está em si mesmo", "cai em ti mesmo" onde tenha estado, se no corpo ou fora do cor­
ou então "voltou a si"? C quanto mais o amor é po, se desperto ou a dormir, nem se lembra do
perfeito, tanto maior e mais delicioso é este que sentiu ou viu ou disse ou fez, a não ser
furor. como em uma névoa e em sonho: sabe apenas
Qual será então aquela vida celeste, à ter estado no ápice da bem-aventurança, du­
qual anelam com tanto ardor os espíritos reli­ rante todo o tempo em que se encontrava fora
giosos? Cvidentemente o espírito absorverá o dos sentidos. € lamenta-se por ter voltado a si
corpo, como vitorioso e mais forte. C assim o mesmo e não desejaria outra coisa senão es­
fará tanto mais facilmente pois já antes, duran­ tar continuamente louco com tal tipo de loucu­
te o vida, o purificou e enfraqueceu por tal trans­ ra. € não se trata mais do que uma leve pre-
formação; em seguida, de modo admirável, gustação da bem-aventurança futura!
esse espírito será absorvido pela mente su­
prema, que é sob infinitos aspectos mais po­
derosa; desse modo o homem estará todo fora
de si e será feliz apenas pelo fato que, posto
fora de si mesmo, experimentará algo de ine­
fável daquele sumo bem que tudo atrai e rapta
para si.
é fato que tal felicidade nos tocará de mo­
do perfeito apenas quando as almas, reentran-
do em posse dos corpos de antes, receberem
o dom da imortalidade. Mas também, desde
que a vida dos homens religiosos não é mais
que meditação daquela celeste e como que uma
sombra dela, por consequência alguma vez eles
provam desde agora, aqui na terra, um gosto e
como que um perfume daquele prêmio. Trata-
se de uma gotinha minúscula em comparação
com aquela fonte de bem-aventuranço eterno;
todavia, é infinitamente superior a todos os pra­
zeres do corpo, mesmo que fossem colocados
juntos todos os gozos de todos os mortais, pois
em muito as coisas espirituais ultrapassam as
corpóreas, as invisíveis as visíveis.
é isto, se vê, quando o Profeta9 promete:
"O olho não viu, o ouvido não ouviu nem che­
gou ao coração do homem o que Deus prepa­
rou para quem o ama". €sta é aquela parte de
loucura que, com a passagem paro vida me­

Erasmo de Rotterdam
8Cf. Plotõo, Pedro. 245b. em uma incisão que remonta a 1526,
hsaías 64,3. do célebre pintor Albrecht Dürer.
88
Primeira parte - (D " H u m c m is m o e a R enascença

2. Uma reta fé em Cristo


é uma riqueza superabundante
L utero
Por isso, razoavelmente, a única obra, a
única ocupação de todo cristão deveria ser esta:
compenetrar-se bem da palavra e de Cristo, exer­
citar e reforçar tal fé continuamente, pois nenhu­
O primado da f é em Cristo ma outra obra pode tornar alguém cristão. Cris­
sobre os obras1 to, em Jo 6,28s, diz aos judeus, que lhe pediam
o que deveríam fazer para realizar obras divinas
e cristãs: "Csta é a única obra divina, que vós
O principal dos pontos fundamenta is do creiais naquele que Deus enviou", que Deus Pai
teologia de Lutero é que o homem se salvo também apenas isso ordenou. Por isso, uma reta
pela fé 0 não pelas obras. Em outros ter­ fé em Cristo é riqueza superabundante, pois ela
mos, o possibilidade de solvoçõo está com­ traz consigo toda felicidade e tira toda infelici­
pletomente no té, uma vez que o homem é dade, como escreve São Marcos no fim (16,16):
crioturo feito do nado, e como tol nodo pode "Quem crê e recebeu o batismo será salvo; quem
fazer poro se tornor "novo crioturo", ou sejo, não crê, será condenado". Por isso o profeta
poro reolizoro renascimento espiritual reque­ Isaías (10,22) contemplou a riqueza desta fé e
rido pelo Evangelho. disse: "Deus fará uma breve avaliação sobre a
Evidentemente, Lutero nõo nega que terra, e esta avaliação, como um dilúvio, fará
hoja "obras boas"; sua afirmação de que o transbordar a justiça"; isso significa que a fé, em
fé por si justifica sem as obras significo, subs­ que se resume o cumprimento de todos os man­
tancialmente, que as obras não podem ter damentos, justificará superabundantemente to­
por si a função salvífica que trodicionolmen- dos aqueles que a possuem, de modo que eles
te otribuía-se o elas. de nada mais necessitarão para ser justos e pios.
Levando esto tese às extremas conse­ Rssim diz São Paulo em Rm 10: "Que se creia de
quências, Lutero não corrigia openos os abu­ coração, isto é o que torna justo e pio".
sos e os excessos opostos de um modo de
entender e de praticar os "obras", mos atin­
gia os próprios fundamentos da doutrino cris­ 3. Só a fé, sem nenhuma obra,
tã, com toda uma série de conseqüências de torna justos, livres e salvos
grave importância. Como sucede então que a fé sozinha pos­
sa tornar-nos justos e sem nenhuma obra dar-
nos tão superabundante riqueza, enquanto nos
são prescritos na Cscritura tantas leis, manda­
1. A olmo pode deixar tudo, mentos, obras, estados e comportamentos?
mas não a palavra de Deus Aqui é preciso observar com diligência e reter
decisivamente que somente a fé sem nenhuma
Nem no céu nem no terra a alma tem ou­ obra torna justos, livres e salvos, como melhor
tra coisa, na qual viver e ser justa, livre, cristã, ouviremos a seguir. C é preciso saber que toda
fora do Santo Evangelho, a palavra de Deus a Sagrada Cscritura divide-se em duas espé­
pregada por Cristo. Com efeito, ele próprio diz cies de palavras, as quais são os mandamentos
em Jo 11,25: "€u sou a vida e a ressurreição; ou leis de Deus e as garantias ou promessas.
quem crê em mim, vive eternamente"; da mes­ Os mandamentos nos ensinam e prescrevem
ma forma 14,6: "€u sou o caminho, a verdade mais espécies de boas obras, mas estas não
e a vida". € ainda em Mateus 4,4: "O homem são, pelo fato de serem mandadas, ainda rea­
não vive apenas de pão, mos de todas as lizadas. Certamente os mandamentos nos diri­
palavras que saem da boca de Deus”. Deve­ gem; contudo, não nos ajudam; eles nos ensi­
mos, portanto, estar convictos de que a alma nam aquilo que se deve fazer, mos não nos
pode deixar qualquer coisa, mas não a pala­ dão nenhuma força para efetivá-lo. Cies, por­
vra de Deus, e que sem a palavra de Deus tanto, são ordenados apenas para este fim, que
nenhuma coisa a ajuda. Ro contrário, quando o homem tenha como neles constatar cTprópria
tem a palavra de Deus, ela de mais nada ne­ incapacidade para o bem e aprenda a perder
cessita; encontra nisso apagamento, alimen­ a esperança de si próprio [...].
to, alegria, paz, luz, intelecto, justiça, verda­ Ora, estas palavras, como todas as de
de, sabedoria, liberdade e exuberância de Deus, são santas, verdadeiras, justas, pacífi­
todo bem. cas, livres e ricas de todo bem. Por isso a alma
89
Cãpítulo quinto - ;A R enascença e a Religião

daquele que a elas se atém com reta fé, une- 1. Apenas o Espírito de Deus opera tudo,
se a Deus tão totalmente, que todas as virtu­ o homem não opera nada
des da palavra se tornam também próprias da Nós, com efeito, afirmamos e sustenta­
alma, e assim, mediante a fé, a alma pela pa­ mos que Deus, quando opera fora da graça
lavra de Deus torna-se santo, justa, veraz, pa­ do €spírito, opera tudo em todos, também nos
cífica, livre e rica de todo bem, verdadeira filha ímpios. 0 e, como criou sozinho todas as coi­
de Deus como diz São João em 1,12: "€le con­ sas, também sozinho as move, as impele e ar­
cedeu poder tornar-se filhos de Deus a todos rasta no movimento de sua onipotência, que
aqueles que crêem em seu nome". elas não podem evitar nem mudar, mas que
Tudo isso permite compreender facilmente necessariamente continuam, obedecendo, cada
por que a fé tem um poder tão grande e nenhu­ uma segundo a própria natureza que lhe foi
ma boa obra pode igualá-la. Nenhuma boa obra dado por Deus: dessa forma, todas as criatu­
com efeito é tão ligada à palavra de Deus como ras, também as ímpias, são colaboradoras de
o fé; nenhuma boa obra pode estar na alma, Deus. €, por outro lado, aqueles sobre os quais
mas na alma reinam somente a palavra e a fé. Deus age com êspírito de graça, aqueles que
Qual é a palavra, assim se torna também a alma ele justificou em seu Reino, são igualmente por
graças a ela: assim como o ferro se torna verme­ ele impelidos e movidos; e eles, como suas
lho como o fogo, depois da união com ele. Por­ novas criaturas, o seguem e com ele coope­
tanto, nós verificamos que a fé basto para um ram, ou melhor, como diz Paulo, são por ele
cristão 0 que ele não tem necessidade de ne­ conduzidos.
nhuma obra para ser justo; e se não tem mais Não é, porém, disso que agora devemos
necessidade de nenhuma obro, então ele está falar. Não discutimos com efeito sobre aquilo
certamente desvinculado de todos os manda­ que podemos por efeito da ação de Deus, mas
mentos e de todas as leis; e se ele está d es­ daquilo que nós homens podemos, isto é, se
vinculado, é certamente livre. Csto é exatamente nós, criados do nada, podemos, também na­
a liberdade cristã, a fé somente, o qual compor­ quele movimento geral da onipotência divina,
ta não que nós possamos permanecer ociosos fazer ou tentar alguma coisa para nos prepa­
ou fazer o mal, mas que não tenhamos necessi­ rarmos para ser nova criatura do espírito.
dade de nenhuma obra para chegar à justifica­ A isso deveriamos responder, e não diva­
ção e ò bem-aventurança. gar sobre outras coisas. C sobre o ponto em
M. lutero, questão assim respondemos: como o homem,
fí liberdade do cristão. antes de ser criado homem, nada faz ou tenta
para se tornar criatura, e, depois que foi feito
ou criado, nada faz ou tenta para permanecer
criatura, mas ambas as coisas ocorrem unica­
Sobre o servo-arbítrio mente pela vontade da onipotente virtude e
bondade de Deus, que nos cria e conserva sem
do homem nenhuma participação nossa (por outro lado
Deus não opera em nós totalmente sem nós,
Cm O servo-arbítrio, escrito em polêmica enquanto nos criou e conservou justamente para
direta contra O livre-arbítrio de Crasmo de fíotter- o fim de operar em nós e de fozer-nos cooperar
dam, emergem de modo especial as compo­ com ele, tanto se isso acontece fora de seu rei­
nentes pessimistas do pensamento de Lutero. no, pela sua onipotente ação universal, como
fíqui o reformador afirma, com efeito, dentro de seu reino pela virtude particular de
que o livre-arbítrio pode fozer algo apenas seu espírito); assim, dizemos que o homem, an­
em relação às atividades naturais, como co­ tes de ser renovado em nova criatura do reino
mer, beber, gerar, governar, mas para o res­ do Gspírito, nada faz e nada tenta para se pre­
to ele pode apenos pecar. Também foro da parar para tal renovação e para aquele reino,
graça de Deus, o homem permanece sem ­ e também depois de seu renascimento nada
pre sob a onipotência de Deus, o qual faz, faz, nada tenta para permanecer naquele rei­
move e destrói tudo nele em um curso ne­ no, mas uma e outra coisa em nós produzem-
cessário e infalível. Ora, a graça consiste se apenas pelo Espírito, que sem o nossa par­
apenas no Cristo crucificado: portanto, se ticipação nos cria de novo e, depois de ter-nos
temos fé no Cristo que redimiu os homens assim recriados, nos conserva, como diz tam­
com seu sangue, devemos também reconhe­ bém o apóstolo Tiago (1,18): €le de sua von­
cer que em caso diverso o homem ter-se-ia tade nos gerou com o verbo de seu poder, para
completamente perdido. que fôssemos as primícias de suas criaturas. (6
aqui fala das criaturas renovadas).
90
Primeira parte - <D -Humanismo e a 'Renascença

O Cspírito, porém, não opera sem nós,


pois nos recriou e conservou justam ente pa­ C a l v in o
ra o fim de operar em nós e fazer-nos coope­
rar com ele. flssim, mediante nossa coope­
ração, prega, ajudo os pobres, consola os
aflitos. Mas nisso qual parte cabe ao livre-
arbítrio? O que lhe resta senão nada? Cxata-
mente nada.
Ei
Deus predestinou
alguns homens à salvação,
2. Ter fé em Cristo significa reconhecer outros à danação1
que o homem, com o pecado,
estava totalmente perdido Pode-se dizer que Calvino é mais p e s­
simista sobre o homem do que Lutero, p o ­
Rqui terminarei este livrinho, disposto, se rem, em certo sentido, mais otimista em re­
for necessário, a tratar a questão mais am­ lação a Deus.
plamente, embora eu pense ter largamente O s estudiosos há tempo indicaram bem
satisfeito todo homem pio, que queira reco­ as diferenças, salientando que se o texto-
nhecer a verdade sem ter tomado partido. Com base emblemático para Lutero é Mateus 9,2:
efeito, se cremos que a verdade seja que Deus "os teus pecados te são perdoados", para
sabe com precedência tudo e tudo pré-orde- Calvino é Paulo na Carta aos Romanos 8,31:
na e que, portanto, não pode folir nem sofrer "Se Deus está conosco, quem estará contra
obstáculo em sua presciência e predestinação nós?"
e que, por fim, nada pode acontecer a não ser Seu livro, Instituição da religião cristã,
por seu querer, como a própria razão deve ad ­ publicado em 1536, teve enorme sucesso e
mitir, daí deduzimos, nisso confortados igual­ dele foram logo feitas numerosas edições.
mente pela razão, que não pode de fato ha­ Mais que uma reconstrução doutrinai siste­
ver livre-arbítrio nem em homem nem em anjo mática do pensamento cristão, a Instituição
nem em nenhuma criatura. Pois, se cremos que pretende se r uma apresentação dos textos
Satanás é o príncipe do mundo e que eterna­ teológicos com bose nos quais é preciso en­
mente insidia e combate com todas as forças frentar a reforma da Igreja.
o reino de Cristo, de modo a não deixar os fí passagem que reportamos apresen­
homens por ele feitos escravos a não ser quan­ ta o ponto fundamental da teologia de Cal­
do deles seja expulso pela virtude divina do vino sobre a predestinação. Csto é, paro
Cspírito, de novo aparece claramente que o Calvino, a eterna decisão com a qual Deus
livre-arbítrio não pode existir. Igualmente, se determinou aquilo que de cada um dos ho­
cremos que o pecado original nos corrompeu, mens ele pretendia fazer. Portanto, segun­
de modo tal a ponto de opor sua repugnância do Calvino, Deus não cria todos os homens
ao bem, gravíssimo obstáculo também para em uma condição de igual grau, mas uns or­
aqueles que são impelidos pelo Cspírito, é evi­ denados à danação, outros para a vido eter­
dente que no homem privado de Cspírito nada na. Portanto, a predestinação do homem é o
permanece que possa voltar-se para o bem, fim segundo o qual ele foi criado. Buscar os
mas tudo está voltado para o mal. Por fim, se razões dessa decisão de Deus é impossível,
os judeus, que tendiam à justiça com todas as pois a causa é sua vontade, e nada se pode
forças, caíram na injustiça, enquanto os pa­ pensar como mais equânime e melhor do que
gãos, que tendiam à impiedade, chegaram à sua vontade.
justiça por graça divina e inesperadamente,
mais uma vez é manifesto, pelas próprias obras
e pela experiência, que o homem sem a graça
não pode querer a não ser o mal. Cnfim, se 1. A eleição e a predestinação
cremos que Cristo redimiu os homens com seu operada por Deus
sangue, somos forçados a reconhecer que o
O pacto de graça não é pregado a todos
homem estava inteiramente perdido; do con­
de modo igual, e mesmo onde se prêga ele
trário, devemos supor que Cristo é supérfluo
não é recebido por todos do mesmo modo; tal
ou redentor da parte mais vil de nós, o que
diversidade revela o admirável segredo do pla­
seria blasfemo e sacrílego. no de Deus; indubitavelmente esta diversida­
M. lutero, de deriva do fato de que assim lhe agrada. Se
O servo-arbítrio é evidente que por vontade de Deus a salva-
91
Capitulo q u it lt O - jA R enascença e a Religião

ção é oferecida o uns enquanto outros delo sõo mos, é melhor diferir a solução de cada uma
excluídos, disso nascem grandes e graves ques­ delas na ordem em que se apresentar.
tões que não se podem resolver o nõo ser en­ Por ora desejo fazer compreender a to­
sinando aos crentes o significado da eleição e dos que não devemos buscar as coisas que Deus
da predestinação de Deus. quis esconder, e não devemos descurar as que
Muitos consideram a questão bastante ele manifestou, por medo de que, de um lado,
tortuosa, pois não admitem que Deus predestine nos condene por demasiada curiosidade e, do
alguns à salvação e outros à morte. Mas a outro, por ingratidão, é ótima a afirmação de
tratação do problema demonstrará que sua falta santo Agostinho, que podemos seguir a Escri­
de bom senso e de discernimento os põe em tura com segurança pois ela condescende com
situação inextricável. fllém disso, na obscurida­ nossa fraqueza, como faz a mãe com seu bebê
de que os espanta, veremos quanto tal ensi­ quando quer ensiná-lo a andar.*2
namento não só seja útil, mas também doce e Quanto àqueles que são tão tímidos ou
saboroso pelos frutos que dele derivam. circunspectos que quereriam abolir inteiramen­
te a predestinação para não perturbar as al­
mas débeis, sob qual veste, vos peço, masca-
2. Rs dificuldades que a doutrina
rarão seu orgulho, visto que indiretamente
da predestinação levanta
acusam Deus de estulta leviandade, como se
Reconheço que os maus e os blasfema- não tivesse previsto o perigo ao qual tais inso­
dores logo encontram, no argumento da predes­ lentes pensam remediar com sabedoria?
tinação, do que acusar, sofismar, ladrar ou ca­ Portanto, quem torna odiosa a doutrina da
çoar. Contudo, se teméssemos sua arrogância, predestinação, denigra ou abertamente fala mal
deveriamos calar os pontos principais de nos­ de Deus, como se inadvertidamente tivesse
sa fé, e não um dos que está isento da conta­ deixado escapar aquilo que só pode prejudi­
minação de suas blasfêmias. Um espírito rebel­ car a Igreja.
de perseverará em sua insolência ouvindo dizer
que em uma só essência de Deus há três pes­ 3. Com o predestinação Deus
soas, ou então que Deus previu, criando o ho­ estabelece aquilo
mem, aquilo que lhe devia acontecer. Da mes­ que quer fazer de cada homem
ma forma, esses maus não conterão seu riso,
quando se lhes disser que o mundo foi criado Quem quiser considerar-se homem temen­
apenas há cinco mil anos, e perguntarão como te a Deus, não ousará negar a predestinação,
o poder de Deus permaneceu assim tão lon­ por meio da qual Deus atribuiu a uns a salva­
gamente ocioso. ção e a outros a condenação eterna; muitos,
Deveriamos talvez, para evitar semelhan­ ao contrário, a envolvem em variadas cavilo­
tes sacrilégios, deixar de falar da divindade ções, em particular aqueles que a querem fun­
de Cristo e do Cspírito Santo? Deveriamos calar damentar sobre sua presciência.
a respeito da criação do mundo? Ro contrário, Digamos que ele prevê todas as coisas e
a verdade de Deus é tão poderosa, sobre es­ também as dispõe; mas dizer que Deus esco­
tes e sobre outros pontos, que não teme a ma­ lhe ou rejeita enquanto prevê isto ou aquilo,
ledicência dos iníquos. Também santo Agosti­ significa confundir tudo. Quando atribuímos uma
nho o indica muito claramente no livrinho que presciência a Deus, queremos dizer que todas
intitulou: O dom da perseverança.] Com efeito, as coisas sempre foram e permanecem eterna­
vemos que os falsos apóstolos, difamando e mente compreendidas em seu olhar, de modo
caçoando do ensinamento de são Paulo, não que em seu conhecimento nada é futuro ou
conseguiram obter que ele disso se envergo­ passado, mas toda coisa lhe é presente, e de
nhasse. tal forma presente que não a imagina como por
O fato de que alguns pensem que toda meio de alguma aparência, assim como as coi­
esta discussão é perigosa também entre os sas que temos na memória como que escorrem
crentes, enquanto é contrária às exortações, diante de nossos olhos por meio da imagina­
abala a fé, perturba os corações e os abate, é ção, mas as vê e olha em sua verdade,.como
uma afirmação frívolo. Santo Agostinho não es­ se estivessem diante de seu rosto. Afirmamos
conde que caçoavam dele por estes mesmos que tal presciência se estende sobre o mundo
motivos, enquanto pregava demasiado livre­ inteiro e sobre todas as criaturas.
mente a predestinação, mas ele refutou fácil e
suficientemente essas objeções. Quanto a nós,
uma vez que se objetam muitas e variadas 'Cf. Rgostmho, De donoperseverontiaeXV-XX.
absurdidades contra a doutrina que ensinare­ 2Cf. Rgostinho, De Genesi ad HtteromM. 3-6.
Primeira parte O
- -Humanismo e a Renascença

Definimos predestinação como o decreto ção: "Cie escolheu para nós a nossa herança, o
eterno de Deus, por meio do qual estabeleceu glória de Jacó, por ele amado".8
aquilo que queria fazer de cada homem. Com Com efeito, atribuem a este amor gratuito
efeito, não os crio todos no mesmo condição, toda o glória de que Deus os havia dotado,
mos ordena uns à vido eterno, outros à eterno não só porque sabiam bem que esta não fora
condenação, flssim, com bose no fim poro o providenciada a eles por algum mérito, mas que
qual o homem foi criado, dizemos que é pre­ nem o santo patriarca Jacó tivera em si tal po­
destinado à vido ou à morte. der de modo a conquistar, para si e para seus
sucessores, tão alta prerrogativa. C, para des­
4. Testemunhos depreendidos truir 0 abater com maior vigor todo orgulho, re­
dos textos bíblicos corda frequentemente aos judeus que de fato
não mereceram a honra a eles feita por Deus,
Oro, Deus deu testemunho de suo predes­ visto que são um povo cabeça dura e rebelde.9
tinação não só em coda pessoa, mos em todo o Por vezes os profetas se referem à eleição tam­
descendência de fibraõo, que pôs como exem­ bém para fazer com que os hebreus se enver­
plo do foto de que cabe o ele ordenar conforme gonhem de seu opróbrio, porque é por sua in­
seu agrado qual deve ser o condição de coda gratidão que miseravelmente dela decaíram.
povo. "Quando o Soberano dividia os noções", Cm todo caso, aqueles que querem ligar
diz Moisés, "e separava os filhos de fldão, es­ a eleição de Deus à dignidade dos homens ou
colheu como suo porção de herança o povo de aos méritos de suas obras, respondam a isto:
Israel”.3 A eleição é evidente: na pessoa de quando vêem que uma só estirpe é preferida a
Abraão, como em um tronco completamente seco todo o resto do mundo, e ouvem do boca de
e morto, um povo é escolhido e separado dos Deus que ele não foi movido por nenhum moti­
outros, que são rejeitados. Não se revelo a cau­ vo a ser mais inclinado para um rebanho pe­
sa disso, mas Moisés acaba com todo motivo queno e desprezado, depois mau e perverso,
de glória, indicando aos sucessores que todo do que para os outros, eles o acusorõo porque
a dignidade deles consiste no omor gratuito de lhe agradou estabelecer tal exemplo de sua
Deus. Com efeito, ele dá esta explicação de sua misericórdia? Com todos os murmúrios e oposi-
redenção: Deus ornou seus pais e escolheu sua ções deles, não impedirão com certeza sua
descendência, depois deles.4 obra; e jogando seu despeito contra o céu como
fa lo de modo mais explícito em outro pas­ pedras, não atingirão nem ferirão de modo al­
sagem, dizendo: "Não é porque éreis mais nu­ gum sua justiça, mas tudo recairá sobre sua
merosos do que outros povos que Deus se cabeça.
comprouve em vós poro vos escolher, mas por­ J. Calvino,
que vos amou".5 Csta advertência ele a repete Instituição do religião cristã.
várias vezes: "Cis, o céu e a terra pertencem ao
Senhor, ao teu Deus; todavia, ele ornou teus
pais, se comprouve com eles e te escolheu por­
que descendes d e le s"6 C em outro lugar orde­ 3Deut0 ronômio 23,8ss.
na-lhes monter-se puros em santidade, pois são ddem 4,31.
escolhidos como povo que lhe pertence de 5ldem 7,3.
bldem 10,14.
modo particular. Cm outra passagem ainda, in­ 7ldem 23,5.
dica que Deus os protege porque os ama.7 Tam­ 8Salmo 47,5.
bém os crentes o reconhecem com um só cora­ 9D0 uteronômio 9,6.
(S a p ítu lo s e x to

7A. ReKvascervça e a P o lític a

I. /\)ic o la u ]\Ac\c\iA\cwe\

• Com Maquiavel (1469-1527) a pesquisa política se destaca do pensamento


especulativo, ético e religioso, assumindo como cânon metodológico a espe­
cificidade do próprio objeto, o qual deve ser estudado autonomamente, sem ser
condicionado por princípios válidos em outros campos. Para a posição maquia-
veliana, centrada sobre o princípio da cisão entre "ser" e "dever ser", são impor­
tantes os seguintes aspectos:
a) o realismo político, baseado sobre o princípio de que é preciso permanecer
na verdade efetiva da coisa, sem se perder na busca de como a coisa "deveria" ser;
b) a virtude do príncipe-,
c) a relação entre "virtude" (liberdade) e "sorte": a "virtu­ Aspectos
de" é em geral, para Maquiavel, "habilidade natural", e a "virtu­ principais
de" política do príncipe é um complexo de força, astúcia e capa­ do pensamento
cidade de dominar a situação: esta virtude sabe contrapor-se à de Maquiavel
sorte, mesmo que, no melhor dos casos, pela metade as coisas 1-5
humanas dependem quase sempre da sorte;
d) a volta aos princípios da república romana, fundada sobre a liberdade e
sobre os bons costumes: é este o ideal político de Maquiavel, enquanto o príncipe
por ele descrito é apenas uma necessidade do momento histórico.

1 , p o s iç ã o d e ]\A ac\i\\ave\ o conceito de autonomia que ilustramos an­


teriormente.
A mudança brusca de direção que en­
Com Nicolau Maquiavel (1469-1527) contramos nas reflexões de Maquiavel, em
inicia-se nova época do pensamento políti­ comparação com os humanistas anterio­
co: com efeito, a investigação política, com res, certamente se explica em larga medida
ele, tende a afastar-se do pensamento espe­ pela nova realidade política que se criara
culativo, ético e religioso, assumindo como em Florença e na Itália, mas também pres­
cânon metodológico o princípio da especifi­ supõe grande crise dos valores morais que
cidade do seu próprio objeto, que deve ser começava a grassar. Ela não apenas de­
estudado (podemos dizer com uma expres­ monstrava a divisão entre “ ser” (as coisas
são telesiana) iuxta própria principia, ou como elas efetivamente são) e “ dever ser”
seja, de modo autônomo, sem ser condicio­ (as coisas como deveríam ser para se con­
nado por princípios válidos em outros âm­ formarem aos valores morais), mas‘ tam­
bitos, mas que só indebitamente poderiam bém elevava essa divisão a princípio e a co­
ser impostos à investigação política. A po­ locava como base da nova visão dos fatos
sição de Maquiavel pode também ser resu­ políticos.
mida com a fórmula “ a política para a polí­ Os pontos sobre os quais devemos fi­
tica” , que expressa sintética e plasticamente xar a atenção são os seguintes:
94
Primeira parte - O -H um cm ism o e a R e n a s c e n ç a

a) o realismo político, ao qual está li­ temido e a tomar as medidas necessárias


gada forte vertente do pessimismo antropo­ para tornar-se temível. Claro, o ideal para
lógico; um príncipe seria o de ser ao mesmo tempo
b) o novo conceito de “virtude” do prín­ amado e temido. Mas essas duas coisas são
cipe, que deve governar eficazmente o Esta­ muito difíceis de serem conciliadas e, as­
do e deve saber resistir à “ sorte” ; sim, o príncipe deve fazer a escolha mais
c) a relação dinâmica entre liberdade e funcional para o governo eficaz do Estado.
sorte; e, por fim, ■(3H
d) a temática do “retorno aos princí­
pios” , como condição de regeneração e re­
novação da vida política.
3 ; A “v iH -u d e ” d o p r ín c ip e

2 O r e a lis m o d e
Os dotes do príncipe, que emergem
muito bem desse quadro, são chamados
por Maquiavel de “ virtudes” . Obviamen­
N o que se refere ao realismo político, te, a “ virtude” política de Maquiavel nada
é básico o capítulo XV de O Príncipe (escri­ tem a ver com a “ virtude” em sentido cris­
to em 1513, mas publicado somente em 1531, tão. Ele usa o termo retomado da antiga
cinco anos após a morte do autor), que dis­ acepção grega de areté, ou seja, a virtude
cute o princípio de que é necessário se ater como habilidade entendida naturalmen­
à “verdade efetiva das coisas” , sem se per­ te. Aliás, trata-se da areté grega como era
der na busca de como as coisas “ deveriam” concebida antes da espiritualização que
ser; trata-se, em suma, da separação entre Sócrates, Platão e Aristóteles nela reali­
“ ser” e “ dever ser” . Maquiavel, portanto, zaram, transformando-a em “ razão” . Em
chega às seguintes conclusões: “ [...] ele [o particular, ela recorda o conceito de are­
príncipe] está longe tanto de como se vive e té cultivado especialmente por alguns so­
de como se deveria viver, pois aquele que fistas.
deixa aquilo que se faz por aquilo que se Nos humanistas, esse conceito apa­
deveria fazer, aprende antes a trabalhar em rece várias vezes, mas Maquiavel o leva
prol da própria ruína do que de sua conser­ às extremas conseqüências, entendendo a
vação, porque um homem, que queira em “ virtude” como força, vontade, habilida­
todo lugar parecer bom, atrai ruína entre de, astúcia, capacidade de dominar a si­
tantos que não são bons. Daí é necessário tuação.
que um príncipe, desejoso de conservar-se,
aprenda os meios de poder não ser bom e a
fazer ou não uso disso, conforme as neces­
sidades” . 4 L i b e r d a d e e “s o r t e ”
Maquiavel chega até a dizer que o so­
berano pode se encontrar em situação de ter
de aplicar métodos extremamente cruéis e
desumanos. Quando são necessários remé­ E essa virtude sabe se contrapor à “sor­
dios extremos para males extremos, ele deve te” . Assim, com Maquiavel, retorna o tema
adotar tais remédios extremos e, de qual­ do contraste entre “liberdade” e “sorte” , tão
quer forma, evitar o meio-termo, que é o caro aos humanistas. Muitos consideram
caminho do compromisso, que de nada ser­ que o destino seja a razão dos acontecimen­
ve; ao contrário, é sempre e somente de ex­ tos e que, portanto, é inútil se esforçar para
tremo dano. impor-lhe uma barreira, sendo melhor dei­
Essas considerações estão ligadas a xar-se guiar por ele.
uma visão pessimista do homem. Segundo Maquiavel confessa ter sentido a ten­
Maquiavel, em si mesmo, o homem não é tação de acomodar-se a essa opinião.
bom nem mau, mas, de fato, tende a ser mau. Sua solução, porém, é a seguinte: meta­
Conseqüentemente, o político não deve con­ de das coisas humanas dependem da sorte, a
fiar no aspecto positivo do homem, e sim outra metade da virtude e da liberdade. Ele
constatar seu aspecto negativo e agir em con- escreve: “Não por acaso, mas para que o nos­
seqüência disso. Assim, não hesitará em ser so livre-arbítrio não desapareça, julgo poder
95
Cãpítulo sexto - / \ R e n a s c e n ç a e a P o lític a

ser verdade que a sorte seja árbitra de meta­ 5 O V e t o m o a o s p rin c íp io s *


de de nossas ações, mas que, também, ela
deixe a nós governar a outra metade, ou
quase.” O ideal político de Maquiavel, porém,
E com uma imagem que se tornou não é o príncipe por ele descrito, que é mui­
muito famosa (típico reflexo da mentali­ to mais uma necessidade do momento his­
dade da época), depois de mencionar po­ tórico, mas sim o da república romana, ba­
derosos exemplos de força e virtude que seada na liberdade e nos bons costumes, e,
barraram o curso dos acontecimentos, portanto, um “retorno aos princípios” .
Maquiavel escreve: “ [...] porque a sorte é Descrevendo essa república, ele pare­
mulher. E, querendo mantê-la sob domí­ ce flexionar em novo sentido o seu próprio
nio, é necessário bater-lhe e espancá-la. O conceito de “ virtude” , particularmente
que se vê é que ela deixa-se mais vencer quando discute a antiga questão de se o
por estes (= os temperamentos impetuo­ povo romano foi mais favorecido pela sor­
sos) do que por aqueles que procedem fria­ te do que pela virtude na conquista do seu
mente. E sempre, como mulher, é amiga império. Então responde, sem sombra de
dos jovens, porque são menos respeitosos, dúvida, pela demonstração de que “ mais
mais ferozes e a dominam com mais au­ pôde a virtude do que a sorte para que eles
dácia.” E S S E conquistassem aquele império” .

Nicolau Maquiavel
(1469-1527)
foi o iniáador
de nova fase
do pensamento
político inspirado
no realismo e dirigido
a fundar a autonomia
da esfera política.
Esta é uma pintura
de Santi di Tito,
que se encontra
no Palazzo Vecchio,
em Elorença.
96
Primeira parte - CD-H u m an ism o e. a R e n a s c e n ç a

II. G u i c c i a r d ini e B o t e c o

• Uma ordem de idéias análoga à de Maquiavel sobre a natureza do homem,


sobre a virtude, a sorte e a vida política, encontra-se em Francisco Guicciardini
(1483-1540), o qual, porém, mais do que na dimensão histórica,
Guicciardini é sensível à esfera do "particular", dos interesses do indivíduo
e o "particular" singular.
Botero De Maquiavel foi também extraída a noção de "razão de
e a "razão Estado", a respeito da qual é particularmente importante a obra
de Estado" de João Botero (1533 aproximadamente - 1617) intitulada Da
1 razão de Estado, na qual está viva a exigência de valores morais
e religiosos.

r\afueeza do komem, A doutrina de Maquiavel foi resumida


por ele na fórmula “ os fins justificam os
a sorfe e a vida política em meios” , fórmula que, se não faz justiça à efe­
Çjuicciaediru e Boteco tiva estatura do pensamento do autor de O
Príncipe, no entanto explicita uma das lições
que a época moderna extraiu desta obra.
Uma ordem de idéias análoga à de M a­ Também de Maquiavel deriva a noção
quiavel sobre a natureza do homem, a virtu­ de “ razão de Estado” .
de, a sorte e a vida política pode ser encontra­ Uma rica literatura, constituída de obras
da em Francisco Guicciardini (1483-1540), de vários gêneros e variada consistência, flo­
particularmente em suas Recordações polí­ resceu em torno desses aspectos do pensa­
ticas e civis (concluídas em 1530). Todavia, mento de Maquiavel, destacando-se a obra
mais que à dimensão histórica, Guicciardini de João Botero (aproximadamente 1533­
parece sensível à dimensão do “particular” . 1617) intitulada Sobre a razão de Estado, que
Dois de seus pensamentos ficaram mui­ visa a temperar o cru realismo maquiavélico
to conhecidos. mediante efetiva referência à incidência dos
Em um deles expressa três desejos: valores morais e religiosos.
1) viver em uma república bem ordenada;
2) ver a Itália liberta dos bárbaros;
3) ver o mundo liberto da tirania dos
padres.
No outro, com poucas pinceladas, traça
um esplêndido auto-retrato espiritual: “Eu não
sei a quem desgostem mais que a mim a ambi­
ção, a avareza e a indolência dos padres: por­
que cada um desses vícios, em si, já é odioso;
porque cada um e todos juntos pouco con­
vêm a quem faz profissão de vida ligada a Deus;
porque, ainda, são vícios tão contrários que
não podem estar juntos senão em um sujeito
muito estranho. Não obstante, o contato que
tive com muitos pontífices levou-me, por mi­
nha conta particular, a amar a sua grandeza.
Se não fosse esse respeito, teria amado Mar-
tinho Lutero como a mim mesmo, não para
libertar-me das leis impostas pela religião cris­
tã, no modo como é interpretada e comumente
entendida, mas para ver essa caterva de cele-
rados reduzida aos devidos termos, isto é, para
que ficasse sem vícios ou sem autoridade. ” ■ ui nn n t i n c i s ã o d u t i^ d .
97
C ü p í t u l o SC X tO - A R e n a sc e n ç a e a Rolítica

III. X o m ás ]\Aorus

• A obra que deu fama imortal ao inglês Tomás Morus (1478-1535) é Utopia,
título que indica uma dimensão do espírito humano que, por meio da representa­
ção mais ou menos imaginária daquilo que não é, representa
A razão e as leis aquilo que deveria ser ou como o homem gostaria que a realida­
de natureza de fosse.
na base Os princípios basilares que regem o relato são muito sim­
de “Utopia"
de Tomás Morus ples: basta seguir a sã razão e as leis de natureza mais etómèhta*'
->§ 1-2 res, que estão em perfeita harmonia com a razão, para alugeh-
tar os males que afligem a sociedade.

ijljQ Z Jm age.m e m b le m á t ic a miragem” ; o rio de Utopia chama-se Anidro


(do grego anydros = privado de água), ou
e c c m c e ito d e “b V fo p ia ”
seja, um rio que não é rio de água, mas rio
sem água; já o príncipe chama-se Aderno
(formado por um alfa privativo e demos, que
Tomás Morus nasceu em Londres em significa “povo” ), que significa o chefe que
1478. Foi amigo e discípulo de Erasmo e não tem povo. Trata-se, evidentemente, de
humanista de estilo elegante. Participou ati­ jogos lingüísticos que visam a reforçar a ten­
vamente da vida política, exercendo altos são entre o real e o irreal e, portanto, o ideal,
cargos. Firme em sua fé católica, recusou-se do qual a Utopia é expressão.
a reconhecer Henrique VIII como chefe da
Igreja, sendo por isso condenado à morte em
1535. Somente em 1935 foi proclamado
santo (por Pio XI).
A obra que deu fama imortal a Morus
foi Utopia, título elevado a denominação de
um gênero literário antiquíssimo, muito usa­
do antes e depois de Morus, representando
uma dimensão do espírito humano que, atra­
vés da representação mais ou menos imagi­
nária daquilo que não existe, apresenta aqui­
lo que deveria ser ou como o homem
gostaria que a realidade fosse.
O termo “utopia” (do grego ou = não e
topos = lugar) indica um “ lugar que não exis­
te” ou, ainda, “ aquilo que não existe em ne­
nhum lugar” . Platão já se aproximara muito
dessa indicação, escrevendo que a cidade
perfeita por ele descrita na República não
existe “em nenhuma parte sobre a terra”. Mas
foi necessária a criação semântica de Morus
para preencher essa lacuna lingüística.
O enorme sucesso do termo mostra o
quanto o espírito humano dele necessitava.
Deve-se notar como Morus reafirma 7'ninas Morus (1478-15.15), o autor de Utopia,
essa dimensão do “não existir em nenhum um dos mais conhecidos escritos
lugar” : a capital de Utopia chama-se Amau- da era renascentista,
roto (do grego amaurós = evanecente), que em uma famosa pintura de Hans Holbein,
quer dizer “ cidade que se esvanece como conservada em Roma na Villa Alhaní.
98
Primeira parte - O -H u m an ism o e a R e n a s c e n ç a

A fonte em que Morus bebeu foi, na­ Os habitantes de Utopia são pacifistas,
turalmente, Platão, com amplas infiltrações seguem prazeres sadios, admitem cultos di­
de doutrinas estóicas, tomistas e erasmianas. ferentes, honram a Deus de diferentes mo­
Na contraluz está a Inglaterra, com sua his­ dos e sabem se compreender e se aceitar re­
tória, suas tradições e seus dramas sociais ciprocamente nessas diversidades.
de então (a reestruturação do sistema agrí­ Por fim, os habitantes de Utopia elimi­
cola, que privava de terra e trabalho grande nam, com a abolição do dinheiro e de seu
quantidade de camponeses; as lutas religio­ uso, todas as calamidades que a avidez do
sas e a intolerância; a insaciável sede de ri­ mesmo produz entre os homens. E em uma
quezas). das páginas conclusivas Morus põe em pri­
meiro plano este belíssimo pensamento em
forma de paradoxo: seria tão mais fácil pro­
curar-se o de que viver, caso não o impedis­
2 Os peirvcíp io s se justamente a busca do dinheiro, que nas
m o r a is e s o c ia is intenções de quem o inventou teria devido
servir-nos precisamente para o fim de
e m q u e s e in s p ir a m agilizar a vida, quando na realidade ocorre
o s h a b it a n t e s d e LAtopia exatamente o contrário.

Os princípios basilares que regem o re­


lato (que é imaginado como narrado por
Rafael Itlodeo, que, tendo participado de uma
das viagens de Américo Vespúcio, teria visto
a ilha de Utopia) são muito simples. Morus
THOMAE
M O R I . A N G L I A E
estava profundamente convencido (influen­ UH N A.M f. NT 1 E X I M I ) , LV.
ciado nisso pelo otimismo humanista) de que cubiationcMb inminuris mcn.
bastaria seguir a sã razão e as mais elemen­ di» «purgai *.
tares leis da natureza, que estão em perfeita V T O P I * . L I O K I 1 1.
harmonia com a razão, para acabar com os PKOCYMNASMATA.
E P I G R A M MA T A.
males que afligem a sociedade. i x u v c i a n o conuctfaqturdam.
Utopia não apresentava um programa d b c l a m a t i o LuciinK*rdpondcní.
social a ser realizado, e sim princípios desti­ epísto la.

nados a terem função normativa que, com Qgihu íid tií fmt iu t âamm fpijhlxjc tuu/M
ntaf &m ont Hurt^dmnão rtrum
hábeis jogos de alusões, apresentavam os MUbéttmlndist.
males da época e indicavam os critérios com
os quais deveríam ser curados.
Além disso, em Utopia todos os cida­
dãos são iguais entre si. Desaparecem as di­
ferenças de renda, desaparecendo então as
diferenças de status social. E mais: os habi­
tantes de Utopia se substituem de modo
equilibrado nos trabalhos da agricultura e
do artesanato, de modo que não renasçam,
em virtude da divisão do trabalho, também Bj/ilipudEpifcopiumF. « 5 * 1
as divisões sociais.
O trabalho não é massacrante e não
dura toda a jornada (como durava naquela Prontispício de Utopia em unia edição de / 06.J.
época), e sim seis horas diárias, para deixar Nesta obra Morus exprime a convicção
espaço ao lazer e a outras atividades. de que bastaria seguir a razão e as leis da natureza
para eliminar os males que afligem a sociedade.
Em Utopia também existem sacerdo­ Os habitantes de Utopia são pacifistas, ..
tes dedicados ao culto e um lugar especial é admitem cultos diferentes e,
garantido aos “ literatos” , ou seja, àqueles tendo abolido o dinheiro,
que, nascendo com dotes e inclinações es­ cancelaram a avidez que ele produz
peciais, pretendem dedicar-se ao estudo. entre os homens.
99
Cüpítulo S C X tO - ;A R e n a s c e n ç a e a P o lí tic a

I V . 3 ecm 3 od íkv
c a soberania absoluta do é^stad o

• Em seus Se/s livros sobre a República, Jean Bodin (1529/30-1596) sustenta


que o verdadeiro fundamento do Estado é a soberania, que mantém unidos os
vários membros sociais, ligando-os como que em um só corpo.
Uma soberania forte e absoluta se obtém instaurando a jus­ Na obra de Bodin
tiça e fazendo apelo à razão. O absolutismo tem por isso limites a soberan ia
objetivos precisos nas normas éticas, nas leis de natureza e nas como
leis divinas: a soberania que não respeitasse estas leis seria uma fundamento
tirania. do Estado
Importante é também a justificação de Bodin da tolerância -^§1
religiosa: uma vez que existe um fundamento natural que é co­
mum a todas as religiões, seria então possível um acordo religioso geral, mesmo
sem sacrificar as diferenças próprias das religiões positivas.

duos um único corpo perfeito, que é preci­


1 A i ,d é Í a . „ samente o Estado” .
de "so b em m a” do ê s fa d o
Por “soberania” Bodin entende poder
no pe.nsam e-nto d e B o d ir v absoluto e perpétuo, próprio de todo tipo de
Estado. Tal soberania se exerce sobretudo no
dar leis aos súditos sem o seu consentimento.
Distante tanto dos excessos do realis­ Como já dissemos, o absolutismo de
mo de Maquiavel como do utopismo de Mo- Bodin tem limites objetivos precisos nas
rus, surgiu também Jean Bodin (1529/1530- normas éticas (a justiça), nas leis da nature­
1596), com seus Seis livros sobre a República. za e nas leis divinas — e esses limites consti­
Para existir o Estado, é preciso uma tuem também sua força. A soberania que
forte soberania, que mantenha unidos os não respeitasse essas leis não seria sobera­
vários membros sociais, ligando-os como em nia, e sim tirania.
um só corpo. Mas essa forte soberania não Também se destaca o escrito de Bodin
se obtém com os métodos recomendados por intitulado Colloquium beptaplomeres (“co-
Maquiavel, que pecam por imoralismo e por lóquio entre sete pessoas” ), que tem por tema
ateísmo, e sim instaurando a justiça e recor­ a tolerância religiosa e é imaginado desen­
rendo à razão. volver-se em Veneza entre sete seguidores de
Eis a célebre definição de Estado dada religiões diferentes: 1) um católico, 2) um
por Bodin: “ Por Estado se entende o gover­ seguidor de Lutero, 3) um seguidor de Cal-
no justo, que se exerce com poder soberano vino, 4) um judeu, 5) um maometano, 6) um
sobre diversas famílias e em tudo aquilo que pagão e 7) um defensor da religião natural.
elas têm em comum entre si” ; “ [...] o Esta­ A tese da obra é a de que (como sus­
do já não será tal sem aquele poder sobera­ tentara o humanismo florentino) existe um
no que mantém unidos todos os membros e fundamento natural que é comum a todas
partes dele, fazendo de todas as famílias e as religiões. Com essa base comum, seria
de todos os círculos um só corpo. [...] Em possível um acordo religioso geral, sem sa­
suma, a soberania é o verdadeiro fundamen­ crificar as diferenças (ou seja, aquele plus)
to, o ponto cardeal sobre o qual se apóia próprias das religiões positivas.
toda a estrutura do Estado e do qual depen­ Havendo, portanto, esse funda*rnento
dem todas as magistraturas, leis e normas. natural implícito nas diferentes religiões,
Ela é o único laço e o único vínculo que faz aquilo que as une revela-se mais forte do
de famílias, corporações, colegiados e indiví­ que aquilo que as separa.
100
Primeira parte - O H u m a n is m o e a R e n a s c e n ç a

IV . H u g o Capo Yuas
e ck f u n d a ç ã o d o j u s u a f u e a l i s m o

Razão e natureza
• O holandês Hugo Grotius (1583-1645), com o escrito De
na b a se da jure belli ac pacis (1625), põe as sólidas bases do jusnaturalismo,
c o n v iv ê n c ia isto é, da teoria do direito natural. O direito natural, que regula
hum ana a convivência humana, funda-se sobre a razão e sobre a nature­
e m G ro tiu s za, que coincidem entre si: o direito natural espelha portanto a
-^§1 racionalidade, que é o próprio critério com o qual Deus criou o
mundo.

1 CÃmotins O direito internacional baseia-se na


identidade de natureza entre os homens.
e a t e o r ia d o direi+o ta a fw m l
Portanto, os tratados internacionais têm
valor mesmo quando estipulados por ho­
mens de confissões diferentes, já que o fato
Entre os últimos lustros do Quinhentos
de pertencer a fés diversas não modifica a
e as primeiras décadas do Seiscentos formou-
natureza humana.
se e se consolidou a teoria do direito natural,
O objetivo da punição para as infrações
por obra do italiano Albérico Gentili (1552­
aos direitos deve ser corretivo: não se pune
1608) no escrito De iure belli (1588) e, sobre­
quem errou porque errou, mas para que não
tudo, do holandês Hugo Grotius (Huig de Groot,
erre mais (no futuro). E a punição deve ser,
1583-1645) no escrito De jure belli ac pacis ao mesmo tempo, proporcional tanto à natu­
(1625, reeditado com ampliações em 1646).
reza do erro como à conveniência e à utilida­
Ainda se podem sentir as raízes huma­ de que se pretende tirar da própria punição.
nistas de Grotius, mas ele já está encami­
nhado na estrada que levará ao moderno
racionalismo, ainda que só a tenha percor­
rido em parte.
Os fundamentos da convivência dos
homens são a razão e a natureza, que coin­
cidem entre si. O “ direito natural” , que re­
gula a convivência humana, possui esse fun­
damento racional-natural.
Todavia, notemos a consistência onto-
lógica que Grócio dá ao direito natural: este
se revela tão estável e alicerçado que o pró­
prio Deus não poderia mudá-lo. Isso signi­
fica que o direito natural reflete a raciona­
lidade, que é o próprio critério com que Deus
criou o mundo e que, como tal, Deus não
poderia alterar, a não ser se contradizendo,
o que é impensável.
Diferente do direito natural é o “ di­
reito civil” , que depende das decisões dos
homens, e que é promulgado pelo poder
civil. Este tem como objetivo a utilidade e
é sustentado pelo consentimento dos ci­
dadãos.
A vida, a dignidade da pessoa e a pro­
priedade pertencem ao âmbito dos direitos O jurista holandês Uug<> (irotuis
naturais. cm uma juntura de Al. van Micrerclt.
101
Cãpítlilo SCXtO - ;A T^e^asce^ça e a l-^olítica

rendo sobre as que são verdadeiras, digo que


todos os homens, quando se falo disso, e prin­
M a q u ia v e l
cipalmente os príncipes, para serem postos mais
oitos, são dotados de algumas destas quali­
dades que lhes acarretam caçoada ou elogio.
Tanto isto é verdade, que um é considerado
liberal, outro mísero (usando um termo toscano,
fl necessidade porque avaro em nossa língua é ainda aquele
de "ir diretamente que por rapina deseja ter, mísero chamamos
aquele que se abstém demasiado de usar o
à verdade efetiva da coisa'
que é seu); um é considerado doador, outro
rapaz; um cruel, outro piedoso; um desleal, ou­
O trecho é tirado do cop. X V d o Prínci­ tro fiel; um efeminado e pusilânime, outro feroz
pe. ("R respeito dos coisas pelas quais os e animoso; um humano, outro soberbo; um las-
homens, e especialmente os Príncipes, são civo, outro casto; um íntegro, outro astuto; um
elogiados ou vituperados"). severo, outro condescendente; um grave, outro
Com este capítulo começa a parte mais leviano; um religioso, outro incrédulo, e assim
interessante e original do tratado, no qual por diante. € sei que cada um confessará que
Maquiavel indica as qualidades, as virtudes, seria coisa laudabilíssima encontrar um prínci­
que são necessárias a um príncipe para d e ­ pe que tivesse todas as qualidades acima, as
senvolver sua obra de modo eficiente. que são consideradas boas; todavia, porque
Notável, e justamente famoso, é a d e ­ não se podem ter, nem inteiramente observar,
claração maquiaveliana do princípio realista pelas condições humanas que não o permitem,
segundo o qual tanto em política como no lhe é necessário ser tão prudente, que saiba
pensamento político é preciso ir diretamente fugir da infâmia dos que lhe ameaçam o esta­
à verdade efetiva da coisa, sem perder-se do, e das que lhe impedem precaver-se, se pos­
nas fantasias vãs de filósofos e moralistas; sível; contudo, não podendo, é possível com
o adjetivo "efetivo", em particular, é criação menos respeito deixar passar. £ também não
de Maquiavel e, como diz Tomoseo, signifi­ tema de incorrer na fama dos vícios sem os quais
ca "mais do que 'real'; isto é, o verdade, além ele dificilmente possa salvar o estado; porque,
de em si, também em seus efeitos". se considerarmos bem tudo, poderá encontrar
alguma coisa que parecerá virtude, e seguin­
do-a seria sua ruína, e alguma outra que pare­
Resta agora ver quais devam ser os mo­ cerá vício, e seguindo-a conseguirá sua segu­
dos e governos de um príncipe com súditos ou rança e bem-estar.
com os amigos. £, como sei que muitos escre­ N. Maquiavel,
veram sobre isso, duvido, escrevendo ainda eu, O príncip e
não ser tido como presunçoso, partindo, princi­
palmente ao disputar esta matéria, das ordens
dos outros. Contudo, como é meu intento es­
crever coisa útil para quem a entende, pare­
ceu-me mais conveniente ir direto à verdade A sorte é árbitro
efetiva da coisa, e não tanto à imaginação dela.
do metade de nossos ações
€ muitos se imaginaram repúblicas e principa­
dos que jamais foram vistos ou conhecidos como
existentes de fato; porque ele está tão sepa­ No cap. X X V do Príncipe ("O quanto o
rado do como se vive, e de como se deveria destino pode nas coisas humanos, e de que
viver, que oquele que deixa aquilo que se faz modo se lhes deve resistir") aborda-se um
por aquilo que se deveria fazer, aprende mais tema muito caro aos Humanistas, o da rela­
sua ruína do que sua preservação; porque um ção entre "liberdade" e "sorte", tema cuja
homem, que queira fazer em todos os lugares solução tem um papel central também no
profissão de bom, otrai ruínas entre tantos que pensamento político de Maquiavel. Para o
não soo bons. Daí ser necessário a um prínci­ Secretário florentino os acontecimentos his­
pe, querendo manter-se, aprender a poder ser tóricos são determinados metade por uma
não bom, e usá-lo ou não conforme a necessi­ força que transcende o homem (e que ele
dade. designa com o termo "sorte") e metade por
Deixando, portanto, poro trás as coisas vontade e obra do homem.
imaginadas a respeito de um príncipe, e discor­
102
Primeira parte - O H wmanismo e a Renascença

C não me é desconhecido como muitos ti­ tem à suo frente, isto é, glórias e riquezas, pro­
veram e têm o opinião de que os coisos do cederem de modo diverso: um com respeito,
mundo sejam de tal modo governados pelo outro com ímpeto; um pelo violência, outro com
sorte e por Deus, que os homens com suo pru­ arte; um com paciência, outro com o seu contrá­
dência não os possam corrigir; ao contrário, não rio: e cada um com estes diversos modos o pode
têm nenhum remédio. C, por isso, poderiam ju l­ alcançar. Vê-se ainda duos (coisos) respecti­
gar que não devessem suor1 muito nos coisos, vos: um alcançar seu desígnio, o outro não; e
mas deixar-se governar pelo sorte. Csta opi­ do mesmo formo duos (coisos) prosperarem
nião é mois crido em nossos tempos pelo gran­ com dois diversos estudos,8 um com respeito e
de variação dos coisos que foram vistos e se o outro com ímpeto: o que não provém de ou­
vêem todo dia, foro de qualquer conjectura hu­ tra coisa o não ser do qualidade dos tempos
mano. Pensando nisso olguma vez, estou de que se conformam ou não com o procedimento
algum modo inclinado ò opinião deles. Ainda deles. Daqui nasce aquilo que eu disse, que
mois, poro que nosso livre-orbítrio não sejo duos (coisos), operando diversamente, produ­
apagado, julgo poder ser verdadeiro que o zam o mesmo efeito; e outros duos, igualmen­
sorte sejo árbitro do metade de nossos ações, te operando, uma se conduz o seu fim e o outro
mos que também elo nos deixe governar o ou­ não. Disto ainda depende o vorioção do bem:
tro metade, ou quase.*23Assemelho o sorte o porque, se um se governo com respeito e paciên­
um desses rios perigosos que, quando se iram, cia, os tempos e os coisos giram de modo que
alagam os lugares plonos, arruinam os árvores seu governo sejo bom, e vai prosperando; mas,
e os edifícios, arrastam5 desta porte terreno, se os tempos e os coisos mudom, arruino, por­
põem em outra: cada um foge de suo presen­ que o modo de proceder não mudo. Também
ça, coda um cede o seu ímpeto, sem poder de não se encontro homem tão prudente, que sai­
nenhum modo resistir.4 Cmbora sejam assim, ba ocomodor-se o isso; com efeito, porque não
resto o possibilidade, porém, que os homens, se pode desviar daquilo o que o natureza o
nos tempos tronqüilos, possam tomar providên­ inclino, também porque, tendo alguém sempre
cias com defesos e diques, de modo que, nos prosperado caminhando por um caminho, não
enchentes, ou os rios correriom por um canal, se pode persuadi-lo o usar outro. Todavia, o
ou seu ímpeto não serio nem licencioso5 nem homem de respeito, quando é tempo de usar o
donoso. Do mesmo formo intervém o sorte: elo ímpeto, ele não o sobe fazer; daí arruína-se:
mostro suo potência onde não há virtude que com efeito, se se mudasse de natureza com os
lhe resisto, e portanto dirige seus ímpetos onde tempos e com os coisas, a sorte não muda­
sobe que não estão feitos os diques e defesos ria. [...]
que o contenham. € se considerardes o Itálio, Concluo, portanto, que, variando a sorte,
que é o sede destas variações e o que lhes e permanecendo os homens em seus modos
deu o movimento, vereis que elo é um campo obstinados, são felizes enquanto concordam
sem diques e sem nenhuma defeso; que, se juntos, e, quando discordam, são infelizes. Jul­
elo fosse defendido por conveniente virtude, go bem isso, que sejo melhor ser impetuoso do
como o Mogno,6 o Cspanha e o França, ou esto que respeitoso, porque a sorte é senhora; e é
cheio não teria feito os grandes variações que necessário, querendo montê-la submisso, batê-
fez, ou não teria vindo. C quero que isso baste la e feri-la. Vemos que elo se deixa vencer mais
sobre o que disse quonto o Opor-se à sorte em por estes do que por aqueles que procedem
universais. friamente. Todavia, como mulher, é sempre
Todavia, restringindo-me mois o particu­ amigo dos jovens, porque eles são menos de
lares, digo como se vê este príncipe hoje felici­ respeito, são mois ferozes, e o comandam com
tar7 e amanhã arruinar-se, sem tê-lo visto mu­ mois audácia.
dar natureza ou qualquer qualidade: o que creio N. Maquiavel,
que nasço, primeiro, dos causas sobre os quois O príncipe.
longomente falamos, isto é, que tal príncipe que
se apóia inteiramente no sorte arruína-se, as­ 'fitadigar-se.
sim como elo varia. Creio, ainda, que sejo feliz 2flproximadamente.
oquele que combino o modo de seu proceder 3levam.
com os qualidades dos tempos; e do mesmo 4Obstoculor.
5Desregulodo.
formo sejo infeliz oquele com cujo proceder os 6fllemanha.
tempos discordam. Porque se vê os homens, 7Prosperar.
nos coisos que os induzem ao fim, que cada um 8Com duos aplicações diversas.
(S a p ítu lo s é tim o

V eH -ices e resu lta d o s co n clu sivo s


d o p en sa m en to re n a sce n tista :
L e o n a r d o ; X elésio , B runo e (S am p an ella

............... , I. /Natureza, ciência e arfe


cm Leonafdo

• Em Leonardo (1452-1519) é muito forte a idéia neoplatônica do paralelismo


entre microcosmo e macrocosmo, e ela lhe serve particularmente como legitimação
da ordem mecanicista de toda a natureza; esta ordem, que deri­
va de Deus e é necessária, é interpretada do melhor modo pelo
pensamento matemático, que investiga de modo eficaz as forças Leonardo
da Vinci:
e as leis imanentes aos fenômenos. o mecanicismo,
O conhecimento e o saber têm duas fontes: a experiência
a) a experiência, entendida como construto em que vêm e as
progressivamente a confluir artes mecânicas e artes liberais, como "cogitações
a geometria ou a perspectiva; mentais"
b) as cogitações mentais, que descobrem discursivamente, 1-3
para além da experiência, as razões pelas quais ocorrem os fenô­
menos da natureza.
Leonardo procura portanto a via intermediária entre razão e experiência que
tende a conhecer a lei que regula os fenômenos, e com isso antecipa o "método
resolutivo" de Galileu e da ciência moderna.

V id a e o b ra s Em 1482 foi para Milão, junto a Ludo-


vico, o Mouro, lá permanecendo até 1499,
vale dizer, até a queda de Ludovico. Em
Milão, escreveu vários Tratados e desenvol­
Conhecido e admirado em todo o mun­ veu atividades de engenharia. Nesse perío­
do por suas obras-primas artísticas, Leonardo do se concluiu a sua maturidade artística.
da Vinci é conhecido de um público tam­ Depois de estadas em Mântua, Veneza
bém mais amplo por seus desenhos mara­ e Florença, Leonardo entrou a serviço de
vilhosos e seus projetos técnicos, cheios de César Bórgia em 1502, na qualidade de ar­
intuições fulgurantes, mas não é tão conhe­ quiteto e engenheiro militar.
cido por seu pensamento filosófico. Com a queda de Valentino, seu prote­
Leonardo nasceu em Vinci, em Valdar- tor, em 1503 Leonardo foi novamente para
no, em 1542, e freqüentou as primeiras le­ Florença, dedicando-se aos estudos de ana­
tras em Florença. Entrou para o ateliê de tomia e empenhando-se na solução dos pro­
Verrocchio em 1470, o que constituiu expe­ blemas relativos ao vôo, que o levariam à
riência fundamental para sua formação. construção de uma máquina para voar. A
Estudou matemática e perspectiva; interes­ Mona Lisa é desse período.
sou-se por anatomia e botânica; enfrentou Em 1506 volta a Milão, a serviço do
problemas de geologia; fez projetos mecâ­ rei da França. Com a volta dos Sforza para
nicos e de arquitetura. Milão, em 1512, ele se transfere para Roma,
104
Primeira parte - O -H w m an ism o e a R e n a s c e n ç a

culos e armadura da carne, o mundo tem as


pedras, sustentáculos da terra.” Como se vê,
essa idéia neoplatônica do paralelismo entre
microcosmo e macrocosmo tem em Leonar­
do, contudo, um aspecto diferente da con­
cepção místico-animista do neoplatonismo:
aliás, serve a Leonardo como legitimação da
ordem mecanicista de toda a natureza.
Essa ordem deriva de Deus, sendo preci­
samente uma ordem necessária e mecânica.
Leonardo não nega a alma, que desenvolve
sua função “na composição dos corpos ani­
mados” . Entretanto, deixa os incontroláveis
discursos sobre ela para a “mente dos frades,
que, por inspiração, sabem todos os segredos” .
Não há, portanto, um saber que valha
por inspiração. E também não é saber o de
todos os que se respaldam na pura e simples
autoridade dos antigos. Esses repetidores da
tradição são “trombetas e recitadores das
obras alheias” . Como também não é saber o
dos magos, dos alquimistas e de todos os
“procuradores de ouro” , pois estes falam de
invenções fantásticas e de explicações que
apelam para causas espirituais.
Leonardo (1452-1519)
foi um dos maiores artistas
e uma das mentes universais da Renascença. «j.qtwí/fiv> tif
Este é seu célebre auto-retrato,
conservado em Turim no Palazzo Reale. 1. . I [-$■ ­
l /«■ Y^y./nb jL/T'-
H»ArV/ *K(n*r*1
desta vez a serviço de Leão X. Finalmente, o*,'**/] *+«•)»} •***«'•> Htyvftin s'—
em 1516, transfere-se para a França, na qua­ - -..........v
lidade de pintor, engenheiro e arquiteto.
Morreu em 2 de maio de 1519 em Am- *&**y*© í
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boise, no castelo de Cloux, hóspede de Fran­
cisco I. ^ ~ «rpr “ 1
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2 y \ o r d e m m e c c u a ic is ta
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Leonardo não é homem da Renascença i f « ‘■ f —■ 'V
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apenas por ser pensador “ universal” , isto é, « t í e '•!»/ df-Hp.
não especialista, mas também porque, por
exemplo, pode-se observar nele alguns tra­ tll* W»/1
nnf <4j*‘frl .í <T]v («•<)
ços de neoplatonismo, como quando ele de­ ••HM/nin -w-íf.W v*-?|«< v.»/''A-«y
lineia o paralelismo entre o homem e o uni­ '-'«O *•«/»<( "OI'"
verso: “O homem é considerado pelos antigos
como um mundo menor. É certo que o uso
Neste desenho estão presentes a descrição
desse nome está bem colocado, já que, como e o esquema da luneta.
o homem é composto de terra, água, ar e Para Leonardo é o pensamento matemático
fogo, esse corpo é semelhante à terra; assim que projeta c interpreta a ordem mecânica
como o homem tem em si os ossos, sustentá- e necessária de toda a natureza.
105
Capítulo sétimo - V é r t ic e s e r e s u l t a d o s c o n c lu s iv o s d o p e n s a m e n t o r e n a s c e n t is t a

Para Leonardo, é o pensamento mate­ Em suma: “a natureza está cheia de


mático que projeta, ou melhor, interpreta a infinitas razões que nunca estiveram sob
ordem mecânica e necessária de toda a na­ experiência” ; “ todo o nosso conhecimen­
tureza: “ A necessidade é mestra e tutora da to começa a partir do sentido” ; “ os senti­
natureza; a necessidade é tema e inventora dos são terrenos, mas a razão está fora de­
da natureza, sendo seu freio e norma eter­ les, quando contempla” . E “aqueles que se
na.” Leonardo, portanto, elimina dos fenô­ enamoram de prática sem ciência são como
menos naturais — mecânicos e materiais — o timoneiro que entra no navio sem leme
a intervenção de forças e poderes animistas, ou bússola, nunca tendo certeza para on­
místicos e espirituais, para concentrar-se de vai” .
sobre forças e leis imanentes a eles. E Leonardo prossegue: “A ciência é o
capitão, a prática os soldados.” E quando
se tem ciência das coisas, então, por um lado,
essa ciência termina “ em conhecida expe­
3 "(Z o g i+ a ç ã o m e n t a l,/ riência” , isto é, as teorias são confirmadas,
e "e x p e riê n c ia " e, por outro lado, permite todas aquelas re­
alizações tecnológicas que Leonardo proje­
ta com suas “ máquinas” .
Qual é, portanto, a idéia de experiên­ Como os estudiosos justamente salien­
cia e de saber em Leonardo? taram, Leonardo procura a via intermediá­
Contrapondo-se à figura do “douto” ria entre razão e experiência que tende a co­
de sua época, Leonardo gostava de se defi­ nhecer a lei que regula os fenômenos, e que,
nir como “ homem sem letras” . Mas ele ha­ de qualquer modo, ainda que de forma
via freqüentado a oficina de Verrocchio, esboçada e parcial, antecipa o “método reso-
onde praticara muitas “ artes mecânicas” . E lutivo” de Galileu e da ciência moderna, do
exatamente a prática das “artes mecânicas” qual falaremos mais adiante. [T j
aprendidas em certos ateliês vinha fazendo
emergir gradualmente um conceito de ex­
periência que não era mais a empiria desar­
ticulada dos praticantes das diversas artes
nem o discurso puro e simples dos especia­
listas das artes liberais, privados de qual­
quer contato com operações, inspeções e
aplicações no mundo da natureza.
A experiência que se realizava nas ofi­
cinas, como a de Verrocchio, era precisa­
mente um elemento para o qual vinham con-
fluindo progressivamente as artes mecânicas
e liberais, como a geometria ou a perspecti­
va. Conseqüentemente, Leonardo se revol­
ta contra aqueles que consideram que o
“ senso” — ou seja, a sensação ou a obser­
vação — seja um obstáculo para a “ física e
sutil cogitação mental” .
Por outro lado, Leonardo tinha a con­
vicção de que “nenhuma investigação huma­
na pode-se considerar verdadeira ciência se
não passar pelas demonstrações matemáticas” .
Não basta a observação nua e crua. E,
na natureza, existem “ infinitas razões” que
“ nunca estiveram sob experiência” . Em
suma, os fenômenos da natureza só podem
Para Leonardo as teorias
ser compreendidos sob a condição de que devem ser confirmadas pela experiência,
lhes descubramos as razões. E essa desco­ que permite as realizações tecnológicas
berta é obra de discurso, de cogitação men­ que o estudioso projeta com suas “máquinas".
tal: é a razão que demonstra por que “tal O desenho representa
experiência é forçada de tal modo a operar” . um estudo de “pára-quedas
106
Primeira parte - (D -H u m an ism o e a R en ascen ça

II. B e m a ^ d i n o T e l é s io : —-—-
a in v e s tig a ç ã o d a n a t u r e z a
s e g u ia d o s e u s p r ó p r i o s p ^ in e íp io s

• Em sua obra-prima De rerum natura iuxta própria principia, Bernardino


Telésio (1509-1588) opera uma das mais avançadas tentativas de pôr a física no
caminho de uma rigorosa pesquisa autônoma, desligada tanto a) dos interesses e
dos pressupostos da tradição hermético-platônica, como b) dos
A física teles ian a pressupostos da metafísica aristotélica. Telésio não nega nem um
§2 Deus transcendente nem uma alma supra-sensível, mas põe um e
outra tematicamente fora da pesquisa física, e estabelece assim
a autonomia da natureza e de seus princípios e, por conseguinte, a autonomia da
pesquisa destes princípios. Além disso, a física construída por Telésio é qualitativa;
todavia, ele entrevê também a perspectiva quantitativa, mas, não podendo de­
senvolvê-la, augura que outros o possam fazer.
• Na concepção da natureza, Telésio se remete ao hilozoísmo e ao pan-
psiquismo pré-socrático, segundo o qual tudo é vivo. Como fundamento da natu­
reza, que em sua essência é vitalidade e sensibilidade, há três
Os p rin c íp io s princípios: dois princípios agentes incorpóreos, o quente e o frio,
d a n a tu r e z a e uma massa corpórea, que sob a ação dos princípios agentes as­
e o " e s p ír ito " sume diferentes disposições; os dois princípios agentes pervadem
no hom em todo corpo, se contrastam e se percebem reciprocamente, e dis-
-> § 3-4 so deriva que todos os entes, tanto os complexos como os sim­
ples, sentem a relação recíproca.
O animal se distingue das coisas porque há nele o "espírito produzido pelo
sêmen", uma substância corpórea tenuíssima incluída no corpo como no próprio
revestimento. No homem, depois, além do "espírito", há ainda uma espécie de
alma divina e imortal, que porém não serve para explicar os aspectos naturais do
homem, mas apenas os aspectos que transcendem sua naturalidade: em vista do
conhecimento, com efeito, o senso e o "espírito" são mais críveis do que a razão e
a alma, porque aquilo que é apreendido pelos sentidos não tem mais necessidade
de ser ulteriormente pesquisado.
• Telésio admite o Deus bíblico e regedor do mundo, de cuja atividade criado­
ra dependem a "natureza" e o destino do homem; ele simplesmente nega que se
deva recorrer a Deus na pesquisa física. Deus infunde a mens
superaddita, isto é, a alma intelectiva, que é imortal: ela está unida
O hom em
e a mens
ao corpo e especialmente ao "espírito" natural, como forma dele.
su p erad d ita,
Com o "espírito" o homem conhece e apetece as coisas que se
o u seja, a a lm a referem à sua conservação natural; com a mens superaddita co­
in te le c tiv a , nhece e tende às coisas divinas, que se referem à sua salvação
d a d a p o r D eus eterna. O homem deve procurar não sucumbir com sua mens às
—> § 5 forças do espírito material, mas mantê-la pura e torná-la seme­
lhante a seu criador.

1 Vida e obras nio Telésio, que era homem de leíras. Se­


guiu o tio a Milão e depois a Roma, onde,
em 1527, foi aprisionado pela soldadesca,
Bernardino Telésio nasceu em 1509 em por ocasião do conhecido “ saque de Ro­
Cosenza. Num primeiro momento, recebeu ma” , sendo libertado pela intervenção de um
sólida educação humanista de seu tio Antô­ conterrâneo, após dois meses de prisão.
107
Capítulo sétimo - V é r t ic e s e ^ e su l+ a d o s c o n c lu s iv o s d o p e n s a m e n t o r e n a s c e n t is t a

Foi então para Pádua, onde ainda eram Os primeiros dois livros do De rerum
bem vivos os debates sobre Aristóteles, e natura foram publicados em 1565, após
onde estudou filosofia e ciências naturais muitas incertezas e não sem antes ter con­
(talvez, em especial, a medicina), forman­ sultado em Bréscia o maior expoente do
do-se em 1535. aristotelismo na época, Vincenzo Maggi. O
Depois de formado, irrequieto, Telésio resultado positivo do confronto com Maggi,
andou por várias cidades da Itália. Parece que por muitos aspectos devia ser conside­
que, durante alguns anos, retirou-se, para rado como o adversário ideal, convenceu
meditar em solidão, em um mosteiro de Telésio da oportunidade da publicação. Mas
monges beneditinos (alguns pensam que esse a obra inteira, em nove livros, só viu a luz
mosteiro pode ter sido o de Seminara). em 1586, em virtude das dificuldades finan­
Posteriormente, de 1544 a 1553, Telé­ ceiras do nosso filósofo.
sio foi hóspede dos Carafa, duques de No- As outras obras de Telésio são margi­
cera. Nesse período, lançou os fundamentos nais, limitando-se à explicação de alguns fe­
e delineou a estrutura do seu sistema, redi­ nômenos naturais (Sobre os terremotos, So­
gindo um primeiro esboço da sua obra-pri­ bre os cometas, Sobre os vapores, Sobre o
ma De rerum natura iuxta própria principia. raio etc.).
A partir de 1553, Telésio se estabele­ Foi notável a fama alcançada pelo fi­
ceu em Cosenza, onde permaneceu até 1563. lósofo, tendo início antes mesmo da publi­
Passou depois por Roma e Nápoles, mas cação de suas obras. A Academia Cosen-
retornou várias vezes a Cosenza, onde mor­ tina, da qual ele foi membro, tornou-se o
reu em 1588. mais ativo centro de difusão do telesianis-
mo. Amigos poderosos e influentes prote­
geram-no dos ataques dos aristotélicos, em­
bora não tenham faltado os debates e as
polêmicas.

y \ n o v id a d e
d a fís ic a t e le s ia n a

O sentido e o valor do pensamento te-


lesiano mudam completamente, conforme a
perspectiva com base na qual ele é visto e
interpretado. Conseqüentemente, também
varia o tipo de exposição que se pode fazer
desse pensamento.
Se o olharmos assumindo como parâ­
metro a revolução científica que Galileu ope­
raria, então as conclusões não podem ser
outras que as extraídas por Patrizi (embora
baseando-se em outros elementos), isto é,
que o telesianismo “ parece ser mais uma
metafísica do que uma física” , contraria­
mente às suas intenções declaradas.
No entanto, se o olharmos pela ótica
do seu tempo, o pensamento de Telésio re­
vela-se efetivamente uma das tentativas mais
radicais e avançadas de encaminhar a física
pela senda de uma rigorosa pesquisa "autô­
Bernardino Telésio (aqui em uma estampa antiga)
procurou fundar um tipo de pesquisa física
noma, desligando-se de dois tipos de pres­
inteiramente diferente em relação à aristotélica, supostos metafísicos: a) dos pressupostos
antecipando nas exigências, dos magos renascentistas ligados à tradição
embora não nos resultados, hermético-platônica; b) dos pressupostos da
algumas instâncias da física moderna. metafísica aristotélica.
108
Primeira parte - O El u m a n ism o e c\ R e n a s c e n ç a

a) Sobre o primeiro ponto, deve-se su­ 3 Os p r in c íp io s p r ó p r io s


blinhar não apenas o fato de que estão au­
da n a tu re z a
sentes do De rerum natura os interesses e
pressupostos mágico-herméticos, mas tam­
bém o fato de que Telésio diz com todas as
letras, numa evidente alusão, que em sua Telésio reconstruiu os princípios de sua
obra ninguém encontrará nihil divinum e física em base sensística, convencido de que
nihil admiratione dignum (“ nada de di­ o “ sentido” revela a realidade da nature­
vino” e “ nada de extraordinário” ). Entre­ za, sendo a própria natureza, em sua essên­
tanto, como veremos, Telésio continua a cia, vitalidade e sensibilidade. Nessa con­
ter em comum com as doutrinas mágicas cepção vitalista da natureza, Telésio se refere
a convicção de que, na natureza, tudo está ao bilozoísmo e ao pan-psiquismo pré-so-
vivo. crático, segundo os quais tudo está vivo, com
b) Sobre o segundo ponto, devemos colorações até mesmo jônicas (recordando
relevar o que segue. Aristóteles (com os pe- sobretudo o esquema de interpretação da
ripatéticos) considerava a física como co­ realidade que fora proposto por Anaxí-
nhecimento teorético daquele gênero parti­ menes). Seus modelos, portanto, não são
cular de ser ou de substância que está sujeito tanto os neoplatônicos, e sim os físicos mais
a movimento. Para o Estagirita, os quadros antigos.
da metafísica (ciência do ser ou da substân­ Ora, o “sentido” nos revela que o “quen­
cia em geral) e seus princípios constituíam te” e o “ frio” são princípios fundamentais.
os pressupostos necessários para fundamen­ O primeiro tem ação dilatadora, faz as coi­
tar a física. A consideração da substância sas serem leves e põe-nas em movimento. Já
sensível, portanto, desembocava necessa­ o segundo produz condensação e, portanto,
riamente na consideração da substância su- torna as coisas pesadas e tende a imobili­
pra-sensível, e o estudo da substância móvel zá-las.
terminava com a demonstração metafísica O sol é quente por excelência e a terra
da substância imóvel. é fria. Mas o sol, como tudo aquilo que arde,
Telésio realizou um corte claro em re­ não é só calor, assim como a terra também
lação a essa posição. Não nega um Deus não coincide com o frio. Quente e frio são
transcendente nem uma alma supra-sensí- incorpóreos e, portanto, têm necessidade de
vel (como veremos melhor mais adiante), massa corpórea à qual aderir. Portanto, con­
mas tematicamente coloca ambos fora da clui Telésio, deve-se sem dúvida pôr na base
pesquisa física, estabelecendo assim a auto­ dos entes três princípios: dois princípios
nomia da natureza e dos seus princípios e, agentes, o quente e o frio, e uma massa
conseqüentemente, a autonomia da pesqui­ corpórea, que sob a ação de princípios agen­
sa desses princípios. Desse modo, Telésio tes assume diferentes disposições. Se assim
realiza aquilo que foi chamado “ redução não fosse, os entes não poderíam se trans­
naturalista” , precisamente proclamando a formar uns nos outros, impossibilitando
autonomia da natureza. aquela unidade que, ao contrário, existe efe­
Nesse sentido, pode-se dizer que, em­ tivamente na natureza.
bora com bases que eram inadequadas, co­ Assim, cai por terra a física dos quatro
mo veremos, Telésio fez valer uma instância elementos, bem como a concepção geral das
(a autonomia da pesquisa física) destinada coisas como sínolo de matéria e forma, sus­
a revelar-se muito fecunda. tentada pelos peripatéticos: os elementos
Mas ainda há um ponto que merece derivam dos princípios descritos, como tam­
ser destacado. bém todas as formas das coisas.
Como veremos, Telésio construiu uma Os dois princípios agentes perpassam
física qualitativa. Entretanto, entreviu a pers­ todo corpo, contrastando-se, expulsando-se
pectiva quantitativa, embora tenha dito que e se substituindo mutuamente nos corpos, e
não podia desenvolvê-la, augurando que tendo a faculdade de se perceberem^recipro­
outros pudessem fazê-lo, para que, destaca camente. Essa faculdade que cada um deles
ele, os homens possam se tornar não ape­ tem de perceber suas próprias ações e pai­
nas “ scientes” , mas também “potentes”. xões e as conexões que apresentam com as
Trata-se de dois temas que, como veremos, do outro dá lugar a sensações agradáveis em
se tornariam centrais, respectivamente, em relação àquilo que é afim e que favorece a
Galileu e em Bacon. i2] sua própria conservação, e a sensações de­
109
Capítulo sétimo - Vértices t* resultados eorvelusivos do pensamento renascentista

sagradáveis no caso contrário. Assim, con­ tos que transcendem sua naturalidade, dos
clui Telésio, “todos os entes sentem a rela­ quais falaremos adiante.
ção recíproca” . Em suas várias formas, o conhecimen­
Então, como é que só os animais pos­ to se explica mediante o “ espírito” , sendo,
suem órgãos sensoriais? Os animais são en­ precisamente, a percepção das sensações,
tes complexos e os órgãos sensoriais desem­ mudanças e movimentos que as coisas pro­
penham o papel de vias de acesso das forças duzem sobre ele. Em outros termos: o quente
externas à substância que sente. Já as coisas e o frio produzidos pelas coisas, que agem
simples, precisamente porque são tais, sen­ sobre o organismo por contato, provocam
tem diretamente. ações de movimento, de dilatação e de res­
A física de Telésio, portanto, é uma fí­ trição sobre o “ espírito” , e desse modo rea­
sica baseada nas “ qualidades” elementares liza-se a percepção, que é consciência da
do quente e do frio. Mas, nesse quadro, co­ modificação.
mo já observamos, ele compreende que po­ A inteligência nasce da sensação, mais
dería ser de notável vantagem para sua con­ precisamente da semelhança que constata­
cepção uma investigação ulterior voltada mos entre as coisas percebidas, das quais
para determinar a “ quantidade” de calor conservamos a lembrança, e a extensão por
necessária para produzir os vários fenôme­ analogia a outras coisas, que atualmente não
nos. E é precisamente essa investigação percebemos. Por exemplo, quando vemos
“ quantitativa” que ele afirma não ter podi­ um homem jovem, a inteligência nos diz que
do realizar, desejando deixá-la como tarefa ele envelhecerá. Esse “envelhecimento” não
para outros que viessem depois dele. é percebido por nós, já que ainda está por
vir, não podendo portanto produzir qual­
quer sensação em nós; no entanto, nós po­
demos “entendê-lo” justamente com o au­
4 O h ame m xílio da experiência passada e da semelhança
c o m o r e a l i d a d e matrmal daquilo que já percebemos com aquilo que
percebemos agora, ou seja, por analogia.
Telésio declara expressamente que não
Considerado como realidade natural, despreza em absoluto a razão; ao contrá­
o homem é explicável como todas as outras rio, diz que se deve depositar confiança nela
realidades naturais. “ quase como nos sentidos” . Mas o sentido
Os organismos animais eram explica­ é mais crível do que a razão, pelo motivo de
dos por Aristóteles em função da “ alma que aquilo que é apreendido pelos sentidos
sensitiva” . Telésio, naturalmente, não pode não tem mais necessidade de ser ulterior-
mais abrigar tal tese, mas tem necessidade mente investigado.
de introduzir algo capaz de diferenciar o Para Telésio, a própria matemática é
animal das coisas restantes. Por isso, recorre fundada no sentido, nas similitudes e nas
àquilo que ele chama de “ espírito produzi­ analogias, do modo já explicado.
do pela semente” (spiritus e semine eductus).
A terminologia (de origem estóica) se refe­
re provavelmente à tradição médica antiga
(que Telésio conhecia muito bem). O “ es­ 5 *■ ; A rncmal la a tu m l
pírito” , substância corpórea muito tênue,
está incluído no corpo, como no seu pró­
prio revestimento e no seu próprio órgão. A vida moral do homem, pelo menos
Conseqüentemente, o “ espírito” explica num primeiro nível, também pode ser
tudo aquilo que Aristóteles explicava com explicada com base nos princípios naturais.
a alma sensitiva (recorde-se a análoga con­ Para o homem, como para todo ser, o
cepção do “ espírito” de Ficino, no qual, bem é a sua própria autoconservação, as­
porém, cumpria uma função totalmente di­ sim como o mal é o seu dano ou a sua des­
ferente). truição. O prazer e a dor entram nesse jogo
Telésio logo percebeu que, além do de conservação e destruição. E prazeroso
“ espírito” , há no homem algo mais, “ uma aquilo que agrada ao “ espírito” , e agrada
espécie de alma divina e imortal” , que, po­ ao “ espírito” aquilo que o vivifica, consti­
rém, não serve para explicar os aspectos tuindo portanto uma força favorável. E do­
naturais do homem, mas somente os aspec­ loroso aquilo que abate e prostra o “ espíri-
110
Primeira parte - O -Humcmismo e a R enascença

to” , e abate o “ espírito” aquilo que lhe é de Telésio é o Deus bíblico, criador e regen­
nocivo. Assim, o prazer é “ a sensação da te do mundo. E é precisamente de sua ativi­
conservação” , ao passo que a dor é “ a sen­ dade criadora que depende aquela “ nature­
sação da destruição” . za” estruturada do modo como vimos, bem
O prazer e a dor, portanto, têm um como o destino superior dos homens em
preciso objetivo funcional. Desse modo, o relação a todos os outros seres, como agora
prazer não pode ser o fim último que perse­ veremos.
guimos, mas sim o meio que nos facilita al­ A “ mens superaddita” , isto é, a alma
cançar esse fim, o qual, como já dissemos, é intelectiva, que é imortal, é infundida no
a autoconservação. Em geral, tudo aquilo homem por Deus. A alma está unida ao cor­
que o homem deseja está em função dessa po e, especialmente, ao “ espírito” natural,
conservação. como forma dele.
Entendidas do ponto de vista natura­ Por meio do espírito o homem conhe­
lista, as próprias virtudes são praticadas e ce e apetece as coisas que se referem à sua
exercidas em função desse mesmo objetivo, conservação natural; já com a mens super­
ou seja, para que facilitem a conservação e addita, ele conhece as coisas divinas e tende
o aperfeiçoamento do “ espírito” . para elas, que não dizem respeito à sua saú­
de natural, mas sim à eterna. Assim, exis­
tem no homem dois apetites e dois intelectos.
Por isso, ele está em condições de entender
6 7A trcmscendemcia divina não somente o bem sensível, mas também o
e a alma bem eterno, bem como de querê-lo (e isto é
como ente supra-sensível o livre-arbítrio). Conseqúentemente, o ho­
mem deve procurar não sucumbir com sua
“ mente” às forças do “ espírito” material,
Como já observamos, Telésio operou mas sim mantê-la pura e torná-la semelhan­
a “redução naturalista” na sua pesquisa fí­ te ao seu criador. Em suma, essa “ mente”
sica e na reconstrução da realidade natural, concerne à atividade religiosa do homem e
mas ficou bem distante de dar a tal “redu­ assinala a sua especificidade em toda a or­
ção” uma valência metafísica geral. Ele ad­ dem do real.
mite um Deus criador e acima da natureza; Os intérpretes viram freqúentemente,
o que ele nega, simplesmente, é que se deva nessas doutrinas de Telésio, algumas con­
recorrer a ele na investigação física. cessões indébitas (talvez feitas pro bono pa-
Aliás, a esse propósito, é interessante cis, para evitar complicações), ou, de todo
notar o fato de que Telésio, que normalmen­ modo, teses em contraste com o seu “ natu­
te censura Aristóteles por ser excessivamente ralismo” . Na realidade, porém, não é assim.
metafísico em física, objeta-lhe precisamen­ Quando muito, seria verdade precisamente
te o oposto no que se refere ao Motor Imó­ o oposto. A sua originalidade está exatamen­
vel. E completamente inadequada uma con­ te na tentativa de estabelecer uma distinção
cepção de Deus reduzido à função motriz, clara de âmbitos de investigação, sem que a
ao modo aristotélico. Telésio chega a escre­ distinção implique exclusão. Embora com
ver que, a esse respeito, Aristóteles “parece todos os seus limites, também nesse sentido
digno não apenas de críticas, mas também Telésio apresenta analogias com Galileu,
de abominação” . A moção do céu podia que, precisamente, distinguirá de modo pa­
muito bem ser atribuída à própria natureza radigmático ciência e religião, atribuindo à
do céu, sem chamar Deus em causa daquele primeira a função de mostrar como vai o
modo. Ademais, é inconcebível o fato de céu (com suas leis específicas), e à segunda
Aristóteles negar ao seu Deus a providência a tarefa de mostrar como se vai ao céu (cren­
em relação aos homens. Em suma: o Deus do e agindo em conformidade com a fé).
111
C a p i t u l o S C tifH O - \AárHct?.s e resultado s conclusivos do pensamento renascentista

-------- III. (d à io rd a n o B r u n o :

u n i v e r s o iiafim +o c ^ k c ^ ó ic o j- u r o d 7

• Nascido em Nola em 1548, Giordano Bruno entrou muito jovem no conven­


to de São Domingos em Nápoles, onde foi ordenado sacerdote em 1572. Acusado
em 1576 de heresia e de homicídio, deixou o hábito e iniciou
uma fase de peregrinações pela Europa, até que em 1591 voltou A vida
para a Itália, aceitando o convite do nobre veneziano João Mo- e os escritos
cenigo, que desejava dele aprender a mnemotécnica. Mocenigo, mais importantes
porém, denunciou-o ao Santo Ofício; começou então o processo de Giordano
por heresia que se concluiu com a condenação à morte na fo­ Bruno
gueira, executada em Roma dia 7 de fevereiro de 1600: até o fim, - > § 1
Bruno não renegou seu credo filosófico-religioso.
Entre suas numerosas obras, as mais importantes são: De umbris idearum
(1582), Da causa, do princípio e do uno (1584), Do infinito, do universo e dos
mundos (1584), Circulação da besta triunfante (1584), Dos heróicos furores (1585),
Do mínimo (1591), Das mônadas (1591), De immenso et innumerabilibus (1591).

• Bruno é sem dúvida o filósofo renascentista mais complexo; com sua visão
vitalista e mágica, de fato não antecipa as descobertas científicas do século se­
guinte, mas é possível encontrar em seu pensamento surpreen­
dentes antecipações de Spinoza e dos Românticos, sobretudo do O caráter
jovem Schelling. mágico-
A marca que distingue seu pensamento é de caráter mági- hermético
co-hermético, e este não pode ser entendido como uma espécie da filosofia
de gnose renascentista, mensagem de salvação neoplato- de Bruno
nicamente marcada pelo tipo de religiosidade "egípcia" própria - * § 2-3
dos escritos herméticos: o "egipcianismo" aqui é uma experiên­
cia teúrgica e extática que leva ao Uno dos Neoplatônicos, é a "boa religião"
destruída pelo Cristianismo, à qual é preciso voltar e da qual Bruno se sente o
profeta, investido precisamente da missão de fazê-la reviver.
Ele, portanto, não podia estar de acordo nem com os católicos nem com os
protestantes, e por fim não se pode dizer sequer cristão, porque acabou pondo
em dúvida a divindade de Cristo e os dogmas fundamentais do Cristianismo: seu
escopo era o de ele próprio fundar nova religião. ...........................

• A visão que Bruno tem do universo é de tipo copernicano, baseada sobre a


concepção heliocêntrica e sobre a infinitude do cosmo, ligada à magia astral e ao
culto solar. Acima de tudo está uma Causa ou Princípio supremo (o Uno plotiniano
reinterpretado em chave renascentista), que Bruno chama de
mente sobre as coisas, da qual tudo o mais deriva, mas que nos A visão
permanece incognoscível; o universo inteiro, que é uno, infinito de Bruno
e imóvel, constitui o efeito deste primeiro Princípio, mas pelo do universo:
conhecimento dele não se pode remontar ao conhecimento de "o heróico
sua Causa. furor"
Do Princípio supremo deriva o Intelecto universal, entendi­ —> § 4-6
do como mente nas coisas, como faculdade da Alma universal da
qual brotam todas as formas dinâmicas imanentes à matéria: a Alma do mQndo
está em toda coisa, e na Alma está presente o Intelecto universal, fonte perene de
formas que continuamente se renovam. A infinitude do universo é acompanhada
pela existência de mundos infinitos semelhantes ao nosso, com outros planetas e
outras estrelas; em particular, ele é "infinito" e, ao mesmo tempo, "esferiforme",
112
Primeira parte - CDHumanismo e a Renascença

conforme uma fórmula de derivação hermética e cusaniana: o universo é uma


esfera que tem seu centro em todo lugar e a circunferência em nenhum lugar; e
infinita é também a vida, porque infinitos indivíduos vivem em nós, como em
todas as coisas compostas: nada se aniquila, e por isso o morrer é apenas mutação
acidental, enquanto aquilo que muda permanece eterno.
A contemplação se transforma assim em uma forma de "eudeusamento", de
heróico furor, que é anseio de ser uno com a coisa ansiada: a Divindade, a verdade
ansiada, está em nós mesmos, e quando descobrimos isso, tornamo-nos anseio de
nossos próprios pensamentos; no ápice do "heróico furor", o homem vê inteira­
mente o Tudo, porque se assimilou a esse Tudo.

1 V id a e o b m s do Ficino em suas lições (as doutrinas má-


gico-herméticas).
Em 1585 retornou a Paris, mas logo
percebeu que não gozava mais da proteção
Giordano Bruno nasceu em Nola, em do rei e teve de fugir, depois de um desen­
1548. Seu nome de batismo era Filipe, o contro com os aristotélicos.
nome de Giordano lhe foi dado quando, ain­ Desta vez escolheu a Alemanha lute­
da muito jovem, ingressou no convento de rana. Em 1586 estabeleceu-se em Witten-
São Domingos, em Nápoles, onde foi orde­ berg, onde elogiou publicamente o lutera-
nado sacerdote em 1572. nismo. Mas também aí não permaneceu por
Seu espírito rebelde já se manifestou muito tempo. Em 1588 tentou obter os fa­
quando ainda era estudante, e em 1567 foi vores do imperador Rodolfo II de Asburgo,
instaurado um processo contra ele, que de­ na Áustria, mas sem sucesso. Retornou en-
pois foi suspenso.
Mais grave foi o processo de 1576, ins­
taurado, mais do que pelas suspeitas de he­
resia que havia suscitado, pela suspeita de
que lhe coubesse a responsabilidade pelo
assassínio de um confrade que o havia de­
nunciado. Na realidade, a suspeita era in­
fundada. Mas a situação complicou-se a tal
ponto que Bruno, que nesse meio tempo
fugira para Roma, chegou a pensar em lar­
gar o hábito, e refugiou-se no norte do país
(Gênova, Noli, Savona, Turim e Veneza) e
finalmente na Suíça, em Genebra, onde fre-
qüentou ambientes calvinistas. Mas logo se
rebelaria também contra os teólogos calvi­
nistas.
A partir de 1579, Bruno viveu na Fran­
ça, primeiro em Tolosa, por dois anos, e a
partir de 1581 em Paris, onde conseguiu
atrair a atenção de Henrique III, do qual
teve proteção e apoio.
Em 1583 foi para a Inglaterra, acom­
panhando o embaixador francês e vivendo
sobretudo em Londres. Esteve durante um
período também em Oxford, onde, porém,
logo entrou em choque com os docentes da Giordano Bruno (1548-1600)
universidade (que ele considerava “pedan­ foi o mais original dos pensadores renascentistas:
tes” ). Documentos vindos recentemente à procurou fundir em uma síntese audaz
luz demonstram, entre outras coisas, que os neoplatonismo, hermetismo e magia.
doutos locais o contestaram por ter plagia­ Este retrato é retomado de uma antiga incisão.
113
Capitulo s é t i l f I O - Vértices e. resultados conclusivos do pensamento renascentista

tão à Alemanha, onde, em 1589, em Helms- cautelosamente iniciara, procurando man­


tádt, inscreveu-se na comunidade luterana, ter-se dentro dos limites da ortodoxia cris­
da qual foi expulso depois de apenas um ano. tã, mas que ele tratou de levar às últimas
Em 1590, foi para Frankfurt, onde pu­ conseqüências. E mais: o pensamento bru­
blicou a trilogia dos seus grandes poemas niano pode ser entendido como uma espé­
latinos. Quando aí estava, recebeu um con­ cie de gnose renascentista, uma mensagem
vite, por livreiros, do nobre veneziano João de salvação moldada no tipo de religiosida­
Mocenigo, para transferir-se a Veneza. Ele de “egípcia” , como precisamente pretendia
desejava aprender a mnemotécnica, da qual ser a mensagem dos escritos herméticos. O
Bruno era mestre. Imprevidentemente, acei­ seu neoplatonismo serve de base e de moldu­
tou o convite e voltou à Itália em 1591. ra conceituai para essa visão religiosa, do­
No mesmo ano, Mocenigo denuncia­ brando-se continuamente às suas exigências.
va Bruno ao Santo Ofício. Em 1592 come­ Esta é a documentadíssima tese apre­
çou em Veneza o processo contra Bruno, que sentada recentemente por F. A. Yates que
se concluiu com a sua retratação. desejamos enfocar brevemente, porque re­
Em 1593, o filósofo foi transferido para solve muitos problemas de interpretação da
Roma, sendo submetido a novo processo. obra de Bruno. A filosofia de Bruno — es­
Depois de extenuantes tentativas de con­ creve Yates — “ é fundamentalmente hermé­
vencê-lo a retratar-se de algumas de suas tica [...], ele era mago hermético do tipo mais
teses, chegou-se a uma ruptura final, com radical, com uma espécie de missão mági-
sua condenação à morte na fogueira, sen­ co-religiosa
tença que foi executada no Campo dei Fiori, Portanto, conclui Yates, “ [...] toda a
em 7 de fevereiro de 1600. tentativa ficiniana de construir uma theo-
Giordano Bruno não renegou seu cre­ logia platônica cristã, com seus prisci theo-
do filosófico-religioso, morrendo para teste­ logi e magi e com o seu platonismo cristão,
munhá-lo. São muito numerosas as obras furtivamente permeado de alguns elemen­
de Giordano Bruno. Dentre elas, merecem tos mágicos, era menos do que nada aos
particular atenção: a comédia o Candeeiro olhos de Giordano Bruno, que, aceitando
(1582), o De umbris idearum (1582), a Ceia plena e despreconceituosamente a religião
das Cinzas (1584), Sobre a causa, princípio mágica egípcia do Asclepius (e desprezando
e uno (1584), Sobre o infinito, universo e os presumidos prenúncios do cristianismo
mundos (1584), o Despacho da fera triun­ contidos no Corpus Hermeticum), conside­
fante (1584), Sobre os heróicos furores rou a religião mágica egípcia como uma
(1585), De minimo (1591), De monade experiência teúrgica e extática genuinamente
(1591) e De immenso et innumerabilibus neoplatônica, como uma elevação em dire­
(1591). ção ao Fino. E assim era de fato, já que o
‘egipcianismo’ hermético nada mais era do
que o ‘egipcianismo’ interpretado por neo-
platônicos da antiguidade tardia. Entretan­
2 y\ c a r a c t e r ís t ic a to, o problema da interpretação de Bruno
d e j"undo d o p e n s a m e n t o não se resolve reduzindo-o a mero conti-
nuador desse tipo de neoplatonismo e con­
d e I3 rn n o
siderando-o um simples seguidor de um cul­
to m isteriosófico egípcio, porque ele
certamente foi influenciado pelas idéias pro­
Para entender a mensagem de um filó­ duzidas por Ficino e por Pico, com toda a
sofo é preciso captar o fulcro do seu pensa­ sua força psicológica, suas associações caba-
mento, a fonte dos seus conceitos e o espíri­ lísticas e cristãs, o seu sincretismo de diver­
to que lhe dá vida. No caso de Giordano sas posições filosóficas e religiosas, antigas
Bruno, onde estão esse fulcro, essa fonte e ou medievais, e com sua magia” .
essa alma? Conseqüentemente, é claro que Bruno
Os estudos mais recentes conseguiram não podia estar de acordo com os católicos
lançar luz sobre a questão: a marca que dis­ nem com os protestantes (em última instân­
tingue o pensamento bruniano é de caráter cia, não pode ser considerado sequer cris­
mágico-hermético. Bruno se coloca na tri­ tão, pois acabou pondo em dúvida a divin­
lha dos magos-filósofos renascentistas, le­ dade de Cristo e os dogmas fundamentais
vando muito adiante o discurso que Ficino do cristianismo) e que os apoios que busca-
114
Primeira parte - O -H Limanismo e o R enascença

va, ora de uma parte ora de outra, eram sol ideal que é o intelecto. As “ sombras das
apenas apoios táticos para realizar a pró­ idéias” não são as coisas sensíveis, mas mui­
pria reforma. E precisamente por isso é que to mais (no contexto bruniano) as “ imagens
ele provocou violentas reações em todos os mágicas” que refletem as idéias da mente
ambientes nos quais ensinou. Bruno não divina e das quais as coisas sensíveis são
podia seguir nenhuma seita, porque seu ob­ cópias. Imprimindo na mente essas “ imagens
jetivo era o de fundar ele próprio uma nova mágicas” , obtém-se então como que um re­
religião. flexo do universo inteiro na mente, adqui­
E, no entanto, estava ébrio de Deus rindo-se desse modo não apenas uma poten-
(para usar uma expressão que Novalis usou cialização maravilhosa da memória, mas
a respeito de Spinoza) e o infinito foi o seu também fortalecimento da capacidade ope­
princípio e o seu fim (como podemos dizer rativa do homem em geral.
com outra expressão de Schleiermacher em A obra apresenta uma série de relações
relação a Spinoza). Mas trata-se de um “di­ de imagens, com base nas quais Bruno or­
vino” e de um “ infinito” de caráter neopa- ganiza o sistema da memória e, como Ficino
gão, que o aparato conceituai do neopla- já começara a fazer, dá fundamentos ploti-
tonismo, feito renascer por Nicolau de Cusa nianos à sua construção.
e por Ficino, prestava-se a expressar de mo­ O Bruno parisiense, portanto, com essa
do quase perfeito. obra dedicada propriamente a Henrique III,
se apresenta como expoente e renovador da
tradição mágico-hermética inaugurada por
3 ; A r f e d a m e m ó r ia
Ficino, mas em sentido muito mais radical,
ou seja, no sentido de que não lhe interessa
( m n e m o fé c rú c a ) mais a conciliação ficiniana dessa doutrina
e a rte m á g ic o - k e r m é tic a com a dogmática cristã, decidido que esta­
va a trilhar até as últimas conseqüências esse
caminho.
As primeiras obras brunianas são de­
dicadas à mnemotécnica, destacando-se en­
tre elas a De umbris idearum, elaborada em
Paris e dedicada a Henrique III. Mas a sua O u n iv e r s o d e B r u r r o
própria mnemotécnica já apresenta fortes e seu s \g n \f\c a d o
colorações mágico-herméticas.
A arte da memória era muito antiga.
Os oradores romanos, particularmente, re­ Depois do período na França, a etapa
comendavam, para a memorização dos mais significativa da carreira de Bruno foi
seus discursos, que se associasse a estrutu­ sua estada na Inglaterra, onde elaborou e
ra e a sucessão dos conceitos e argumenta­ publicou os “ diálogos italianos” , que cons­
ções a favor dos mesmos a um edifício e à tituem suas obras-primas.
sucessão das partes de um edifício. Na Ida­ Antes de falar do seu conteúdo (do
de Média, Raimundo Lúlio já havia desen­ qual os posteriores poemas latinos, compos­
volvido a mnemotécnica, não só procuran­ tos e publicados na Alemanha, constituem
do definir normas destinadas a favorecer apenas o desenvolvimento e aprofunda­
a memorização, identificando uma preci­ mento), é bom identificar com que roupa­
sa escansão das regras da mente, mas tam­ gem Bruno se apresentou aos ingleses, par­
bém procurando identificar a coordena­ ticularmente aos doutos da Universidade
ção dessas regras da mente com a estrutura de Oxford. Documentos que só vieram à luz
do real. no Novecentos nos informam sobre os te­
Na Renascença, a mnemotécnica renas­ mas tratados por Bruno em Oxford e sobre
ceu, alcançando seu ponto culminante com as reações que teve dos seus ouvintes. Ele
Giordano Bruno. expôs uma visão copernicana do universo,
Além disso, no De umbris idearum, centrada na concepção heliocêntríca e na
Bruno vincula-se expressamente a Hermes infinitude do cosmo, vinculando-o à magia
Trismegisto, convencido de que a religião astral e ao culto solar tal como havia sido
“egípcia” era melhor do que a cristã, en­ proposto por Ficino, a tal ponto que um dos
quanto é religião da mente, que se realiza doutos “ achou que tanto a primeira como
superando o culto ao sol, imagem visível do a segunda lição haviam sido extraídas, quase
115
Capítulo sétimo - V é r t ic e s e ^ e su l+ a d o s c o n c lu s iv o s d o p e n s a m e n t o r e n a s c e n t is t a

palavra por palavra, das obras de Marsílio Por isso, é compreensível que, nesse
Ficino” (em particular da obra De vita contexto, Deus e natureza, forma e maté­
coelitus comparanda). Criou-se um escân­ ria, ato e potência acabem por coincidir, a
dalo, que obrigou Bruno a despedir-se ra­ ponto de Bruno escrever: “Daí, não é difícil
pidamente dos “pedantes gramáticos” de ou grave, em última instância, aceitar que,
Oxford, que nada haviam entendido de sua segundo a substância, tudo é uno, como tal­
mensagem. vez tenha entendido Parmênides, tratado
A imagem que ele queria transmitir de ignobilmente por Aristóteles.” B g a m
si mesmo, portanto, era a do mago renas­
centista, de alguém que propunha a nova
religião “ egípcia” da revelação hermética,
o culto do deus in rebus, o deus que está 5 A in fim tu d e d o T o d o
presente nas coisas. e o s ig m f ic a d o im p e e s s o
No Despacho o “egipcianismo” é apre­
poe B r u n o
sentado até mesmo como temática, ao pas­
so que o “ sapientíssimo Mercúrio Egípcio” , A e e v o lu ç ã o c o p e r n i c a n a
ou seja, Hermes Trismegisto, é apresentado
como fonte de sabedoria. E essa visão do
“ deus nas coisas” está expressamente liga­ A partir desta concepção bruniana o
da à magia, entendida como sabedoria pro­ infinito se torna, como já dissemos, a mar­
veniente do “ sol inteligível” , que é revelada ca emblemática da concepção bruniana.
ao mundo ora em menor ora em maior me­ Com efeito, para Bruno, se a Causa ou o
dida. Princípio primeiro é infinito, também o efei­
O “ egipcianismo” de Bruno é uma for­
to deve ser infinito.
ma de religião paganizante, com base na Com base nisso, Bruno sustenta não
qual ele pretendia fundar a reforma moral apenas a infinitude do mundo em geral, mas
universal. também (retomando a idéia de Epicuro e de
Mas quais são seus fundamentos filo­ Lucrécio) a infinitude no sentido da exis­
sóficos? tência de mundos infinitos semelhantes ao
Acima de tudo Bruno admite uma nosso, com outros planetas e outras estre­
“ causa” ou um “ princípio supremo” , ao las: “ e isso se chama universo infinito, no
qual ele chama também de “ mente sobre as qual há inumeráveis mundos” .
coisas” , da qual deriva todo o restante, mas Infinita também é a vida, porque infi­
que permanece incognoscível para nós. Todo nitos indivíduos vivem em nós, assim como
o universo é efeito desse primeiro princípio; em todas as coisas compostas. O morrer não
mas não se pode remontar do conhecimen­ é morrer, porque “ nada se aniquila” . Assim,
to dos efeitos ao conhecimento da causa, o morrer é apenas uma mudança acidental,
como não se pode remontar da visão de uma ao passo que aquilo que muda permanece
estátua à visão do escultor que a fez. Esse eterno.
princípio outra coisa não é do que o Uno Mas, então, por que existe essa muta­
plotiniano revisitado por um renascentista. ção? Por que a matéria particular procura
Assim como em Plotino o Intelecto de­ sempre outra forma? Será que procura ou­
riva do supremo Princípio, analogamente, tro ser? De modo bastante engenhoso, Bru­
Bruno também fala de um Intelecto univer­ no responde que a mutação não procura
sal, mas o entende, de modo mais marcada- “ outro ser” (pois tudo já existe desde sem­
mente imanentista, como mente nas coisas pre), e sim “ outro modo de ser” . E nisso
e precisamente como faculdade da Alma reside precisamente a diferença entre o uni­
universal, da qual brotam todas as formas verso e as coisas singulares do universo:
que são imanentes à matéria, constituindo “ aquele abrange todo o ser e todos os mo­
com ela um todo indissolúvel. dos de ser; estas, cada qual tem todo o ser,
As formas são a estrutura dinâmica da mas não todos os modos de ser”.
matéria, “ que vão e vêm, cessam e se reno­ Assim, Bruno pode dizer que o univer­
vam” , precisamente porque tudo é anima­ so é “ esferiforme” e, ao mesmo tempo, “ in­
do, tudo está vivo. A alma do mundo está finito” . O conceito de Deus como “ esfera
em cada coisa. E na alma está presente o que tem o centro em toda parte e a circun­
intelecto universal, fonte perene de formas ferência em nenhum lugar” , que apareceu
que continuamente se renovam. pela primeira vez em tratado hermético e
116
Primeira parte - O -H u m a n ism o e a R e n a s c e n ç a

que foi tornado célebre por Nicolau de Cusa, necer todas as “ fantásticas muralhas” dos
serve admiravelmente a Bruno; é precisa­ céus, tornando-os sem limites rumo ao in­
mente com essa base que ele opera a conci­ finito.
liação já referida.
Deus é todo infinito e totalmente in­
finito, porque é todo em tudo e totalmen­
6 CDs T v e r ó ic o s jvmcmes**
lo
te também em toda parte do todo. Como
efeito derivado de Deus, o universo é todo
infinito, mas não totalmente infinito, por­
que é todo em tudo, mas não totalmente Na visão bruniana, a “contemplação”
em todas as suas partes (ou, de todo mo­ plotiniana e o tornar-se uno com o Todo
do, não pode ser infinito no modo como tornam-se “ heróico furor” .
Deus é, sendo causa de tudo em todas as Também para Bruno trata-se de per­
partes). correr novamente, em elevação cognoscitiva,
Estamos agora em condições de enten­ ou seja, voltando sobre os próprios passos,
der as razões da entusiástica aceitação da aquela descida que do princípio levou ao
revolução copernicana por Giordano Bru­ principiado. Mas, em Bruno, a contempla­
no. Com efeito, o heliocentrismo a) har­ ção se transforma em uma forma de “ divi-
monizava-se perfeitamente com sua gnose nização” , que é furor de amor, anseio de ser
hermética, que atribuía ao sol (símbolo do uma só coisa com o objeto anelado, trans­
intelecto) um significado inteiramente par­ formando desse modo o êxtase plotiniano
ticular, e b) permitia-lhe romper a visão es­ em experiência mágica. (Ficino já denomi­
treita dos aristotélicos, que sustentava a nara furor divino o amor que leva o homem
finitude do universo, e assim fazia desva- a “ endeusar-se” ).
O ponto central do escrito Sobre os he­
róicos furores, que é uma de suas obras-pri­
mas, explica que o próprio sentido dos “ fu­
rores heróicos” está no mito do caçador
Actéon, que viu Diana no banho e, de caça­
dor, foi transformado em cervo, isto é, em
uma caça selvagem, sendo devorado por seus
GIOKDA. cães. Diana é o símbolo da divindade ima-
N O BR.V N O nente da natureza e Actéon simboliza o inte­
JA(olano. lecto, voltado para a caça à verdade e à bele­
DE Gf HEROICI
za divina; já os mastins e galgos de Actéon
FVRORI. simbolizam as volições (os primeiros, que são
Al m»ií0 itímpre ti tfitlkntt Cê* mais fortes), e os pensamentos (os segundos,
*d&er*,Si£**r fbitítfto
Sidnt$.
que são mais velozes).
Actéon, portanto, foi convertido naqui­
lo que procurava (caça) e seus próprios cães
(pensamentos e volições) o devoram. Por
quê? Porque a verdade procurada está em
nós mesmos e, quando descobrimos isso,
PARIGI,
tornamo-nos anseio de nossos próprios pen­
ApprclTo Antonio B.nn
/' <íAnno. samentos e compreendemos que “tendo já
contraída em si a divindade, não era preci­
so procurá-la fora de si” .
Por isso Bruno conclui: “ Desse modo,
os cães, pensamentos de coisas divinas, de­
voram Actéon, tornando-o morto para o
vulgo, para a multidão, liberto das amar­
Na obra-prima de Bruno Dos heróicos furores ras dos sentidos perturbados, livre'do cár­
está presente o mito do caçador Actéon,
que depois de ter visto Diana cere carnal da matéria; não vendo mais sua
foi transformado em cervo Diana como que através de cortinas e ja­
e dilacerado por seus cães. nelas, mas, tendo posto por terra as mura­
Actéon simboliza o intelecto dirigido lhas, é agora todo olhos para o aspecto de
à caça da verdade e da beleza divina. todo o horizonte.” No ponto culminante
117
Capítulo sétimo - V é r t ic e s e r e s u l t a d o s c o u c lu s iv o s d o p e u s a m e u + o re u a sc e rx + ista

do “ heróico furor” , o homem vê tudo in­ mente tenha entendido o sentido científico
teiramente todo, porque assimilou-se a esse daquela doutrina.
todo. g] Não é possível destacar o aspecto mate-
matizante de muitos escritos brunianos, pois
a matemática bruniana é aritmologia pita-
7 í S o n c lu s õ e s
gorizante, sendo portanto metafísica.
Em suma, com sua visão vitalista e
mágica, Bruno não é pensador “ moderno” ,
no sentido de que não antecipa as descober­
Bruno é certamente um dos filósofos tas do século seguinte, que nascem em ba­
mais difíceis de entender. E, no âmbito da ses totaímente diferentes.
filosofia renascentista, certamente é o mais Entretanto, Bruno antecipa de modo
complexo. Daí as exegeses tão diversas que surpreendente certas posições de Spinoza e,
sobre ele foram propostas. sobretudo, dos românticos. A embriaguez
No estado atual dos estudos, porém, de Deus e do infinito própria desses filóso­
muitas conclusões a que se chegara no pas­ fos já está presente em muitas páginas de
sado devem ser revistas. Bruno. Schelling é o pensador que mostrará
Não parece possível fazer dele um pre­ (pelo menos em uma fase do seu pensamen­
cursor da revolução do pensamento moder­ to) as mais fortes afinidades de opção com
no, no sentido em que operará a revolução o nosso filósofo. E uma das obras schellin-
científica, porque seus interesses eram de guianas mais belas e sugestivas intitular-se-
natureza completamente diferente: mágico- á precisamente Bruno.
religiosos e metafísicos. Em seu conjunto, a obra de Bruno
A defesa que ele fez da revolução marca um dos pontos culminantes da Re­
copernicana fundamenta-se em bases total­ nascença e, ao mesmo tempo, um dos re­
mente diferentes daquelas em que se basea­ sultados conclusivos mais significativos
ra Copérnico, tanto que alguns chegaram desse período irrepetível do pensamento
até a levantar dúvidas de que Bruno real­ ocidental.

Giordano Bruno diante do tribunal do Santo Ofício (relevo do monumento a Bruno, Roma).
118
Primeira parte O
- -Humcmismo e a l^enascentpa

BRUNO
A D E R IV A Ç Ã O D O U N IV E R S O D E D E U S E O " H E R Ó IC O F U R O R 1

Deus
Uno todo e totalmente infinito
em toda sua parte,
Princípio supremo I
e Causa incognoscível do Todo:
Mente acima das coisas
V

o tornar-se-uno do homem com o Todo


é HERÓICO FUROR,
endeusamento
(igualação com a Divindade),
ânsia de ser-uno com a coisa
ansiada que culmina na
assimilação do homem ao Todo
\

\
\ *V
todas as formas
(as estruturas dinâmicas perenemente em renovação)
da matéria

Universo uno, imóvel, esferiforme,


todo, mas não totalmente infinito:
contém inumeráveis mundos infinitos, mas em toda sua parte é finito
V___________________________............................... .... ............ . ........J
119
Capitulo sétimo - V é r t ic e s e. r e s u l t a d o s c o u c lu s tv o s d o p e n s a m e n t o r e u a s c e u t i s t a

- rv. T o m á s (S a m p a u e lla : —
n a t u r a lis m o ^ m a g i a

e a u s e io d e r e f o r m a u u iv e r s a l

• Nascido em Stilo, na Calábria, em 1568, e entrando com 15 anos na Ordem


dos Dominicanos, Tomás Campanella foi dominado por uma ânsia de reforma
universal, certo de ter uma missão a realizar. Sua vida aventurosa pode-se dividir
em quatro períodos:
1) a juventude, constelada de processos por heresia e práti- a vida
cas mágicas, até o insucesso da revolta política por ele organiza- e os textos
da contra a Espanha (1599); mais importantes
2) o longo cativeiro em Nápoles (1599-1626), durante o qual -> § 1
fingiu-se louco para livrar-se da fogueira;
3) a reabilitação romana (1626-1634), tanto que teve à disposição o palácio
do Santo Ofício;
4) as grandes honras na França, onde fruiu dos favores de Richelieu. Morreu
em 1639.
Entre suas obras, lembramos: A cidade do sol (1602), a Teologia em 30 livros
(1613-24), a Metafísica em 18 livros (publicada em latim em Paris, em 1638).
• O novo significado que Campanella confere ao conhecer telesiano é expres­
so pela palavra "sabedoria", feita derivar de "sabor"; o sabor é a revelação de
tudo o que há de mais íntimo na coisa pela união com a própria
coisa; além disso, sabe-se aquilo que se é: viver é um crescer no O sentido
ser e no saber, e este mudar é também de certo modo morrer: da "sabedoria"
apenas mudar-se em Deus é vida eterna. e as três
Toda coisa é constituída pela potência de ser, do saber de primalidades
ser, do amor de ser; estas são as três primalidades do ser, que têm do ser
igual dignidade, ordem e origem, e são uma imanente à outra. - > § 2,4
Nas coisas finitas, existem também as três primalidades do não-
ser; Deus é, ao invés. Potência suprema, Sabedoria suprema. Amor supremo, e a
criação repete portanto, em diferentes níveis, o esquema trinitário.
• O conhecimento de si é prerrogativa não do homem, mas de todas as coisas,
que são todas vivas e animadas: todas as coisas são de fato dotadas de uma sapientia
indita ou inata, que é um sensus sui, um auto-sentir-se; mas enquanto nas coisas
ordinárias o sensus sui permanece prevalentemente escondido (sensus abditus),
no homem ele pode chegar a níveis notáveis de consciência, e em Deus se desdo­
bra por fim em toda a sua perfeição.
O conhecimento do outro diverso de si mesmo é, ao contrá- a natureza
rio, uma sapientia illata, isto é, adquirida em contato com as e o conhecimento
outras coisas, e todas as coisas falam e comunicam entre si ime- -Ȥ 3
diatamente, porque tudo está em tudo. Além da alma-espírito,
no homem há a mente incorpórea e divina, que tem a capacidade de conhecer,
assimilando a si mesma ao inteligível que está nas coisas, os modos e as formas
segundo as quais Deus as criou.

• A arte mágica, de que Campanella foi apaixonado cultor, tem três forfnas:
1) divina, que Deus concede aos profetas e aos santos;
2) natural, que se serve das propriedades ativas e passivas das coisas naturais
para produzir efeitos maravilhosos;
3) demoníaca, que se serve dos espíritos malignos e deve ser condenada.
120
Primeira parte - (D -H u m an ism o e a R e n ascen ça

Desse modo, Campanella inclui na magia todas as artes, as invenções e as


descobertas, mas está em todo caso convicto de que a maior ação mágica huma­
na consiste em dar leis aos homens. A Cidade do sol representa .
assim a suma das aspirações de Campanella: dá voz à sua ânsia A ma9'a
de reforma do mundo e de libertação dos males que o afligem, ^
fazendo uso dos poderosos instrumentos da magia e da astro- ® ° so
iogia.

1 A v i d a e a s obmas obras com força irrefreável, como um vul­


cão em erupção.
Submetido a torturas e muitas vezes
preso, escapou da condenação à morte fin­
O pensamento renascentista se conclui gindo perfeitamente estar louco. Foi por isso
com Tomás Campanella. que não acabou na fogueira, como Bruno,
Nascido em Stilo, na Calábira, em 1568, e, depois de ter passado quase a metade de
Campanella ingressou na ordem dos domi­ sua vida na prisão, conseguiu lentamente
nicanos aos quinze anos (seu nome de batis­ readquirir credibilidade, que reconstituiu
mo era Giandomenico, mudado para Tomás com incansável fadiga cotidiana. Por fim,
em homenagem a santo Tomás de Aquino inesperados triunfos na França coroaram
quando ingressou no convento). sua turbulenta existência.
Ele se assemelha a Bruno em muitos São quatro os períodos que se podem
aspectos. Mago e astrólogo, dominado por distinguir nessa vida verdadeiramente ro-
grande anseio de reforma universal, convic­ mancesca: 1) o da juventude, que se con­
to de que tinha uma missão a cumprir, infa­ cluiu com a falência de uma revolta política
tigável em sua obra, extraordinariamente organizada por ele contra a Espanha; 2) o
culto e capaz de escrever e reescrever suas do longuíssimo encarceramento em Nápo­
les; 3) o da reabilitação romana; 4) o das
grandes homenagens francesas.
Percorreremos brevemente essas eta­
pas, bastante significativas.
1) O período da juventude foi muito
aventuroso. Insatisfeito com o aristotelismo
e o tomismo, leu vários filósofos (tanto an­
tigos como modernos) e escritos orientais.
A indisciplina dos mosteiros dominicanos
meridionais permitiu-lhe freqüentar em
Nápoles o cultor de magia Giambattista
Delia Porta. Em 1591, sofreu um primeiro
processo por heresia e práticas mágicas. Fi­
cou poucos meses na prisão e, ao sair, ao
invés de retornar aos mosteiros de sua pro­
víncia, contrariando o que lhe fora ordena­
do, partiu para Pádua, onde, entre outros,
conheceu Galileu.
Seguiram-se três outros processos: um
em Pádua (1592) e dois em Roma (1596 e
1597). Por fim, foi obrigado a retornar a
Tomás Campanella (1568-1639) Stilo, com a proibição de pregar e confessar
foi a última das grandes figuras e com a função de esclarecer a ortodoxia
de pensadores renascentistas.
Tentou fundir metafísica, teologia, magia e utopia.
dos seus escritos.
Foi reabilitado, depois de longos anos de prisão, Mas seus anseios de renovação, os so­
quando o pensamento europeu nhos de reformas religiosas e políticas e as
estava já direcionado visões de tipo messiânico, exaltadas por suas
para caminhos totalmente diferentes dos seus. concepções astrológicas, levaram-no a tra-
121
Capitulo s é t iftlO - V é r t ic e s e ^ e su t+ a d o s c o n c lu s iv o s d o p e n s a m e n t o n e n a s c e n t is ta

mar e pregar uma revolta contra a Espanha, em dezoito livros (dos quais Campanella fez
que deveria constituir o início de seu gran­ nada menos do que cinco redações, das
dioso projeto. Porém, em 1559, traído por quais possuímos a latina, publicada em
dois conspiradores, Campanella foi preso, 1638, em Paris), e a Teologia, em trinta li­
encarcerado e condenado à morte. vros (1613-1624).
2) Inicia-se assim o segundo período. Encarcerado durante os melhores anos
Como já observamos, Campanella salvou- de sua vida, Campanella não pôde criar dis­
se da morte com uma hábil simulação de cípulos. E quando, na França, passou a go­
loucura, que soube sustentar com heróica zar do reconhecimento que antes lhe fora
firmeza diante dos testes de confirmação negado, já era muito tarde para isso, pois
mais duros e cruéis. A condenação à morte seu pensamento já era fruto fora de esta­
foi transformada em prisão perpétua. Sua ção. Descartes dominava então a cena inte­
prisão, que durou nada menos que vinte e lectual e as vanguardas estavam com ele.
sete anos, inicialmente foi duríssima, mas
depois tornou-se pouco a pouco tolerável,
até tornar-se quase formal. Campanella po­
dia escrever seus livros, trocar correspon­ tA u a f u r e z a e o sÍ0 r ú fic a d o
dência e até receber visitas. d o c o n k e c im e n + o filo s ó fic o
3) Em 1626, o rei da Espanha mandou
libertá-lo, mas sua liberdade durou muito e o re p e u s a m e n to
pouco, porque o núncio apostólico mandou d o se rrs is m o t e le s i a n o
prendê-lo de novo, transferindo-o para Ro­
ma, nos cárceres do Santo Ofício. Mas aqui
a sorte de Campanella mudou radicalmen­ Campanella começou sendo telesiano,
te, em virtude da proteção de Urbano VIII, mas logo a seu próprio modo. Para ele, a
tanto que, em vez do cárcere, Campanella mensagem de Telésio significa, através dos
teve à sua disposição nada menos que o pa­ sentidos, um contato direto com a nature­
lácio do Santo Ofício. za, única fonte de conhecimento, e, portan­
Enquanto esteve preso em Nápoles, seus to, ruptura com a cultura livresca.
desígnios políticos se haviam orientado para A Carta a Dom Antônio Quarengo, de
a Espanha, considerada como a potência que 1607, muito bela e justamente famosa, con­
teria condições de realizar a sonhada “ refor­ tém como que um manifesto, que nos mos­
ma universal” (daí a sua libertação). Mas, tra algumas das idéias programáticas essen­
em Roma, Campanella tornou-se filofran- ciais de Campanella. Assim, vamos destacar
cês. Por essa razão, tendo sido descoberta, dois trechos mais importantes.
em Nápoles, uma conjura contra os espanhóis “ Eis, portanto, o meu filosofar, diver­
em 1634, organizada por um discípulo de so em relação ao de Pico; eu aprendo mais
Campanella, o nosso filósofo foi injustamente com a anatomia de uma formiga ou de uma
considerado co-responsável, tendo por isso erva (sem falar na do mundo, admirabilís-
de fugir para Paris, sob a proteção do em­ sima) do que com todos os livros que foram
baixador francês. escritos do princípio do século até hoje, de­
4) A partir de 1634, Campanella viveu pois que aprendi a filosofar e a ler o livro de
momentos de glória em Paris, admirado e Deus, em cujo modelo corrijo os livros hu­
reverenciado por muitos doutos e nobres. manos, inabilmente copiados ao bel-prazer
O rei Luís XIII concedeu-lhe ótima côngrua e não segundo o que está no universo, livro
e ele chegou a gozar dos favores do pode­ original. E isso fez-me ler todos os autores
rosíssimo Richelieu. O seu falecimento ocor­ com facilidade e guardá-los na memória, da
reu em 1639, enquanto procurava em vão qual grande dom me fez o Altíssimo, mas
manter a morte distante, com suas artes muito mais ainda ensinando-me a julgá-los
mágico-astrológicas. com o modelo do seu original” .
Entre os seus numerosos escritos, re­ “ Eu o [Pico] considero um grande ho­
cordamos: Philosophia sensibus demons- mem mais por aquilo que deveria fazer do
trata (1591), Do sentido das coisas e da que pelo que fez. Se bem que creio não ape­
magia (1604), Apologia pró Galileu (1616, nas nele, mas também em qualquer outro
publicada em 1622), Epílogo magno (1604­ gênio que me seja testemunha daquilo que
1609), A Cidade do sol (1602), o Atbeismus se aprende na escola da natureza e da arte,
triumpbatus (1631), a imponente Metafísica, enquanto harmonizam com a primeira a
122
Primeira parte - O +-I umcmismo e a R enascença

3 ; A a u + o c o n s c iê n c ia

Ia í T d iv v m P E T RI VVM
M |I
| Apoftolorum Principem Triumphantem.
intem. f Em suas reflexões sobre o conhecimento,
que se encontram no primeiro livro da Me­
ATHEISM VS TRIVMPHATVS tafísica, Campanella apresenta uma refuta­
Seu ção do ceticismo, baseando-se na autocons-
REDVCTIO AD RELIGIO N EM ciência, muito considerada postumamente
PER S C 1 E N T I A R V M V E R I T A T E S . pelos intérpretes, que nela encontraram sur­
F. T H O Mi F C A M P A N E L L A S T Y L E N S I S preendentes analogias com a teoria tornada
OR DI NI S PR A E D I C A T O R V M . célebre por Descartes no Discurso sobre o
C O N T R A método, que é de 1637, ao passo que a Meta­
ANTICHR1STIANISMVM ACHITOPHELLISTICVM.
física de Campanella, como já dissemos, foi
S e x tJ Tomi Pars P rim a.
publicada em Paris um ano depois, mas já
havia sido elaborada alguns anos antes.
A descoberta cartesiana (de que fala­
remos mais longamente adiante) teria sido
então antecipada por Campanella?
As analogias com Descartes existem,
mas mostram-se movidas por exigências di­
ferentes e, sobretudo, se inserem em uma vi­
são metafísica pan-psiquista geral da reali­
dade, que chega, inclusive, a se opor à de
ROMA:, Apud Hmedem Binholouuti Zawmti M.DC.XXXT.
Descartes.
IP f {J/OHKiW 1' B 1 . M I S S V .
Para Campanella, o conhecimento de
si não é prerrogativa do homem enquanto
pensamento, mas de todas as coisas, que são
(todas elas, sem exceção) vivas e animadas.
Frontispício da primeira edição Com efeito, para ele, todas as coisas são
do Atheismus triumphatus, de Tomás Campanella. dotadas de uma "sapientia indita” ou ina­
ta, pela qual sabem que existem e que estão
ligadas a seu próprio ser (“ amam” seu pró­
Idéia e o Verbo, da qual dependem. Mas, prio ser). Esse autoconhecimento é um “ sen-
quando os homens falam como opinantes sus sui”, um auto-sentir-se.
das escolas humanas, considero-os iguais e O conhecimento que toda coisa tem do
sem seqüelas, pois santo Agostinho e Lactân- que é diferente de si é “sapientia illata ”, isto
cio negaram os antípodas com argumentos é, aquela que se adquire no contato com as
e por opinião, mas um marinheiro os tornou outras coisas. Cada coisa é modificada pela
mentirosos ao testemunhar de visu outra e de certa forma se transforma, “ alie­
Filosofar, portanto, é aprender a ler “o nando-se” na outra. Quem sente não sente
livro de Deus” , a criação, ãe visu e direta­ o calor, mas a si mesmo modificado pelo
mente, ou melhor, como ele próprio diz, por calor; não percebe a cor, mas, por assim di­
tactum intrinsecum, tornando-se um só com zer, a si mesmo colorido.
as coisas. A consciência “ inata” que toda coisa
Os estudiosos realçaram freqüente- tem de si é ofuscada pelo conhecimento que
mente o fato de que o novo significado que se acrescenta (superaddita), de modo que a au-
Campanella confere ao conhecimento, en­ toconsciência (conseqüentemente) se trans­
tendido sensisticamente, é simbolicamente forma quase em um sensus abditus, ou seja,
expresso pela interpretação que ele dá da “oculto” dos conhecimentos que sobrevêm.
palavra “ sapiência” , que derivaria de “ sa­ Nas coisas, o sensus sui permanece predo­
bor” (sapore em italiano) (“ dos sabores que minantemente oculto; no homem, pode al­
o gosto saboreia” ). cançar níveis notáveis de consciência; em
O gosto implica um tornar-se íntimo Deus, se desdobra em toda a sua perfeição.
das coisas, pois o sabor é a revelação de tudo Além da alma-espírito, devemos destacar
o que há de mais íntimo na coisa, através que Campanella também reconhece no ho­
da união com essa coisa. mem a mente incorpórea e divina. Telésio já
123
Capitulo sétimo - VérHces e resultados conclusivos do pensamento renascentista

o havia feito. Mas Campanella confere à men­ Obviamente, pode-se falar também de
te um papel de importância muito maior, tan­ “primalidades do não-ser” , que são a “ im­
to que chega até mesmo, segundo as doutri­ potência” , a “ insipiência” e o “ ódio” . Elas
nas neoplatônicas, a atribuir-lhe a capacidade constituem as coisas finitas, enquanto toda
de conhecer, assimilando-se ao inteligível que coisa finita é potência, mas não de tudo aqui­
há nas coisas, os modos e as formas (as idéias lo que é possível; conhece, mas não conhece
eternas) segundo os quais Deus as criou. tudo aquilo que é cognoscível; ama e, ao
Nessa doutrina há um ponto que, por mesmo tempo, odeia.
sua originalidade, merece particular relevo. Deus, por seu turno, é Potência supre­
O conhecimento é, ao mesmo tempo, perda ma, Sapiência suprema e Amor supremo.
e aquisição: é aquisição precisamente atra­ Assim, em diferentes níveis, a criação re­
vés da perda. Ser é saber. Sabe-se aquilo que pete o esquema trinitário. Trata-se de uma dou­
se é (e aquilo que se faz): “ Quem é tudo sabe trina de gênese agostiniana, que Campanel­
tudo; quem é pouco, sabe pouco.” Conhe­ la amplia em sentido pan-psiquista. fgTOfçl
cendo, nós nos “ alienamos” , dilatamos nos­
so ser. Eis um dos textos mais significativos:
“ [...] todos os cognoscentes são alienados do
seu próprio ser, como se acabassem na lou­ 5 O p a r v - p s iq u is m o e a m a g ia
cura e na morte; nós estamos no reino da
morte.” Este tipo de morte, porém, em certo
sentido, é como o da semente que, justamen­ Ainda uma vez partindo de Telésio e
te morrendo, cresce. E um crescer no ser. E de sua doutrina da animação universal das
Campanella prossegue: “E o aprender e o coisas, Campanella vai muito mais além,
conhecer, sendo transformar-se na natureza não apenas se movendo na direção concei­
do cognoscível, são também uma espécie de tuai dos neoplatônicos, mas a ela mesclan­
morte; só o transformar-se em Deus é vida do visões nascidas de sua vivida e densa
eterna, porque não se perde o ser no infinito fantasia, formulando desse modo uma
mar do ser, mas se magnifica” . I S 3 T 1 doutrina animístico-mágica levada ao ex­
tremo.
Segundo Campanella, as coisas falam
e se comunicam entre si diretamente. En­
4 ; A m e t a f ís ic a viando os seus raios, as estrelas comunicam
“ seus conhecimentos” . Ademais, os metais
c a m p a r r e llia r r a :
e as pedras “ se nutrem e crescem, mudando
a s te ê s " p e im a lid a d e s ” d o see o solo onde inicialmente nascem com a aju­
da do sol, bem como as ervas em licor, que
puxam para si pelas suas veias, onde os dia­
Entendido como o entende Campa­ mantes crescem em pirâmides e os cristais
nella, o conhecimento é revelador da estru­ em figura cúbica (...)” .
tura das coisas, de sua “essenciação” , como Para ele, há plantas cujos frutos tor­
diz nosso filósofo. Toda coisa é constituída nam-se pássaros.
“ pela potência de ser, pelo saber de ser e Há uma “geração espontânea” de to­
pelo amor de ser” . dos os viventes, inclusive dos superiores,
Essas são as “ primalidades do ser” , porque tudo está em tudo e, portanto, tudo
que, de certo modo, correspondem àquilo pode derivar de tudo.
que eram os transcendentais na ontologia No que se refere à arte mágica, Cam­
medieval. panella nela distingue três formas: 1) a divi­
À medida que pode ser, todo ente 1) é na; 2) a natural; 3) a demoníaca.
“ potência” de ser; 2) além disso, tudo aqui­ A primeira é a que Deus concede aos
lo que pode ser “ sabe” também que é; 3) e, profetas e santos.
se sabe que é, “ ama” seu próprio ser. Isso A última é a que se vale da arte dos
prova-se pelo fato de que, se não soubesse espíritos malignos, sendo condenada por
que é, não fugiria daquilo que o prejudica e Campanella.
destrói. A segunda, a natural, “ é arte prática
As três “primalidades” são iguais em que se serve das propriedades ativas e passi­
dignidade, ordem e origem: uma “ imane” , vas das coisas naturais para produzir efei­
ou seja, está presente na outra e vice-versa. tos maravilhosos e insólitos, dos quais, no
124
Primeira parte - O H u m a n is m o e a R e n a s c e n ç a

mais das vezes, se ignoram a causa e o modo dos no espiritual e no temporal” . Os prínci­
de provocá-los (...)” . pes que o assistem chamam-se Pon, Sin e
Nessa linha, Campanella amplia em Mor, que significam “Potência, Sapiência e
sentido pan-magístico a magia natural, a Amor” (ou seja, representam as “ prima-
ponto de nela inserir todas as artes, inven­ lidades” do ser), cada qual desenvolvendo
ções e descobertas, como a invenção da im­ funções adequadas ao seu nome.
prensa e da pólvora, entre outras. Todos os círculos de muralhas contêm
Os próprios oradores e poetas en­ inscrições, apresentando representações pre­
tram na relação dos magos: “ são magos se­ cisas tanto no interior como externamente,
gundos” . de modo a fixar todas as imagens-símbolos
Mas, conclui Campanella, “a maior ação de todas as coisas e dos acontecimentos do
mágica do homem é dar leis aos homens” . mundo. Na parte externa do último círculo
figuram “ todos os inventores das leis, das
ciências e das armas” e, além disso, “ em
lugar de muita honra estavam Jesus Cristo
«A» t S id a d e d o S o l e os doze apóstolos [...]” .
Nessa cidade, todos os bens são co­
muns (como na República de Platão).
As virtudes, além disso, ostentam a vi­
Desse modo, estamos agora em condi­ tória sobre os vícios, tanto que são magis­
ções de compreender a “ Cidade do Sol” e trados que presidem as virtudes e levam os
seu significado: ela representa a soma das seus nomes.
aspirações de Campanella e verbaliza seus Por essas características, pode-se ver
anseios de reforma do mundo e de liberta­ que se trata de uma “ cidade mágica” (e os
ção dos males que o afligem, fazendo uso estudiosos apresentaram inclusive um mo­
dos poderosos instrumentos da magia e da delo, em uma conhecida obra de magia
astrologia. Assim, é como que um cadinho intitulada Picatrix). E uma cidade cons­
de motivos no qual estão contidas todas as truída de modo a captar toda a influência
aspirações da Renascença. benéfica dos astros em todos os seus parti­
Eis, então, uma breve descrição da ci­ culares.
dade do sol. M as está presente também todo o cri-
A cidade ergue-se sobre um vale que sol sincretista renascentista. Já falamos so­
domina vasta planície, sendo dividida em bre a influência de Platão. Mas, além dis­
“ sete grandes círculos, denominados com o so, como diz Campanella, os habitantes da
nome dos sete planetas, entrando de um para cidade “ louvam Ptolomeu e admiram
o outro através de quatro estradas e quatro Copérnico” e (como já sabemos) “ são ini­
portas, situadas nos quatro respectivos ân­ migos de Aristóteles, chamando-o de pe­
gulos do mundo” . Acima do vale, surge um dante” .
templo redondo, sem muralhas em torno, A filosofia que eles professam, natu­
mas “ situado sobre colunas grossas e bas­ ralmente, é a de Campanella. Sua expecta­
tante belas” . A cúpula tem uma cúpula me­ tiva messiânica é muito forte: “ Acreditam
nor, com uma espiral que “ pende sobre o ser verdadeiro aquilo que disse Cristo sobre
altar” , que está no centro. os sinais das estrelas, do sol e da lua, que
Sobre o altar, “ nada mais há do que não parecem verdadeiros para os tolos, mas
um mapa-múndi bem grande, onde está pin­ que virão, como o ladrão à noite, no fim
tado todo o céu, além de outro, onde está a das coisas. Por isso, esperam a renovação
terra. No céu da cúpula estão todas as maio­ do século e talvez o fim. ”
res estrelas do céu, tendo inscritos os seus
nomes e as virtudes que têm sobre as coisas
terrenas, com três versos para cada uma (...),
havendo sempre sete lâmpadas acesas, com
7 éS o n clw sõ e s

os nomes dos sete planetas” .


A cidade é dirigida por um príncipe-
sacerdote chamado Sol, que Campanella As avaliações do pensamento de Cam­
indica nos manuscritos com o sinal astroló­ panella são muito contrastantes. Não se
gico, especificando que “ em nossa língua pode dizer que suas obras sejam conhecidas
dizemos Metafísico”. Ele é o “ chefe de to­ e estudadas a fundo como mereceriam.
125
Capitulo sétimo - V é r t ic e s e r e s u l t a d o s c o n c lu s iv o s d o p e n s a m e n t o r e n a s c e n t is t a

Além de sua tumultuada vida, isso tam­ O último período de sua vida, a fase
bém deriva do fato de que nosso filósofo, parisiense, é emblemática. Foi homenagea­
como já dissemos, representa em parte um do por aqueles que estavam voltados para
fruto que amadureceu fora de época. o passado e para o presente imediato, mas
foi desprezado ou até mesmo rejeitado por
aqueles que olhavam para o futuro.
O teólogo Mersenne (1588-1648), que
o encontrou e conversou longamente com
ele, escreveu categoricamente: “ [...] ele não
pode nos ensinar nada em matéria de ciên­
cia.” Descartes não quis receber a visita de
Campanella na Holanda, a ele proposta por
Mersenne, respondendo que tudo o que sa­
bia dele já era suficiente para fazê-lo dese­
jar nada mais saber.
Com efeito, Campanella era um sobre­
vivente: a última das grandes figuras renas­
centistas. Um homem que viveu sua vida sob
o signo de um destino de missão e de total
renovação, como ele próprio propunha sig­
nificativamente neste soneto:

“Nasci para debelar três males extremos:


tiranias, sofismas, hipocrisias,
pelo que me conformo com toda a har­
monia
Potência, Sabedoria e Amor que me ensi­
nou Têmis.
Esses princípios são verdadeiros e supremos
da grande filosofia descoberta,
remédio contra a trina mentira
I l iila iJ c d o S ol de {'.ampanelLi espelha, sob a qual, ó mundo, chorando tremes.
ao me.-mo tempo, os anseios de renovacao espiritual Carestias, guerras, pestes, inveja, engano,
r .o , ■u u 7i i <>es nníi;ico-aslrolóy;icas de seu autor.
injustiça, luxúria, indolência, desdenho,
( k eu li tios das muralhas são tantos cjuantos os planetas
r a <ulade esta eouslrunla de m odo .
tudo subjaz a esses três grandes males,
a ídptai as influências favoráveis do céu. que em seu cego amor próprio, filho digno
i \'. / s tradições magico-herm éticas da ignorância, têm sua raiz e fomento.
o Sol e o Itens visível, sím bolo do Intelecto). Assim, para debelar a ignorância eu venho” .
126
Primeira parte - O ■ H um an ism o e a I R e n a s c e n ç a

CAMPANELLA
OS FU N D A M E N T O S D A M ETA FÍSICA

, Deus é
/ Ente por essência, de modo eminentíssimo:
/ 1. Potência suprema
( 2. Sabedoria suprema
3. Amor supremo
\ _
\ As três Primalidades divinas

T .

Da superabundância divina emana o Amor que é causa


do Bem,
e das idéias eternas de Deus deriva assim

o ente criado (essenciado),


constituído intrinsecamente de:
1. potência de ser
2. saber de ser
V 3. amor de ser
as três primalidades imanentes uma na outra

_________________ A A
O homem, Toda coisa é animada e,
além da alma-espírito segundo o próprio grau de ser, possui:
(substância corpórea sutilíssima), a) conhecimento de si: sapientia indita
também possui (“inata”: sensus sui)
a mente incorpórea e divina,
capaz de assimilar-se ao inteligível b) conhecimento das outras coisas:
que existe nas coisas sapientia illata (addita)

^ ___ __________________A A

Com efeito, enquanto nas outras coisas o sensus sui permanece prevalentemente escondido
(sensus abditus),
o homem pode chegar a conhecer a si mesmo e as outras coisas
segundo as idéias mediante as quais Deus criou o universo
V___________________ . .
127
Capítulo sétimo - V é r t ic e s e r e s u l t a d o s c o n c lu s iv o s d o p e n s a m e n t o r e n a s c e n t is t a

riamos dizer muito bem que tal parte é igual a


seu todo. E isto se prova com o zero ou nada,
L eo n ardo
isto é, a décima figura da aritmética, pela qual
se figura um 0 paro esse nado; o qual, posto
depois da unidade, lhe fará dizer dez, e se pu­
seres dois depois de tal unidade, dirá cem, e
assim infinitamente crescerá sempre dez vezes
Rs característicos da ciência o número onde ele for acrescentado; e ele em
si não vale mais que nada, e todos os nadas
Leonardo foi grandíssimo artista e p en ­ do universo são iguais a um só nada quanto a
sador em sentido universal. Ele representa sua substância e valor. Nenhuma investigação
portanto, de modo emblemático, o homem humana pode-se dizer verdadeira ciência, se
universal da Renascença. ela não possor pelas demonstrações matemá­
Como pensador, Leonardo não é siste­ ticas; e se disseres que as ciências, que princi­
mático: seus cadernos são fragmentários e piam e terminam na mente, têm verdade, isto
freqüentemente desorganizados, mas con­ não se concede, mas se nega por muitas ra­
têm pensamentos recorrentes de notável im­ zões; ao contrário, em tais discursos mentais
portância e pré-intuições geniais. não ocorre experiência, sem a qual nada dá
S e a s características definitivas da certeza de si.
ciência moderna não estão nele ainda p le ­
namente desenvolvidas, é porém ineg á ­ 2. A utilidade da ciência em geral,
vel que algumas destas características fun­ e da pintura em particular
dam entais pareçam delinear-se ao menos
em nível embrionário e, p or vezes, já de A ciência é mais útil quando seu fruto é
modo bastante claro, como a s seguintes mais comunicável e, ao contrário, menos útil
p a ssa g e n s mostram.1 quando é menos comunicável. A pintura tem seu
fim comunicável a todas as gerações do univer­
so, porque seu fim é sujeito da virtude visiva, e
não passa pelo ouvido ao sentido comum do
1. Definição da ciência
mesmo modo como passa pelo ver. €sta, por­
Ciência diz-se o discurso mental que tem tanto, não tem necessidade de intérpretes de
origem de seus princípios últimos, dos quais em diversas línguas, como o têm as letras, e logo
natureza nenhuma outra coisa se pode encon­ satisfez a espécie humana, de forma não dife­
trar que seja parte dessa ciência, como na quan­ rente como são feitas as coisas produzidas pela
tidade contínua, isto é, a ciência de geometria, natureza. E não apenas a espécie humana, mas
a qual, começando pela superfície dos corpos, os outros animais, como se manifestou em uma
descobre-se como tendo origem na linha, ter­ pintura representada por um pai de família, na
mo desta superfície; e com isto não permane­ qual eram acariciados os filhinhos bebês, que
cemos satisfeitos, porque conhecemos que a ainda estavam enfaixados, e da mesma for­
linha tem seu termo no ponto, e que o ponto é ma o faziam o cão e a gata da mesma casa,
aquilo do qual nenhuma outra coisa pode ser um espetáculo tal que era coisa maravilhosa
menor. O ponto, portanto, é o primeiro princí­ de se ver. .
pio da geometria; e nenhuma outra coisa pode A pintura representa ao sentido com mais
existir na natureza ou na mente humana que verdade e certeza as obras da natureza, do que
possa dar início ao ponto. Porque se falares as palavras ou as letras, mas as letras repre­
que o contato feito sobre uma superfície por sentam com mais verdade as palavras ao sen­
uma última acuidade da ponta da caneta é a tido, do que a pintura. Mas dizemos que é mais
criação do ponto, isto não é verdadeiro; dire­ admirável a ciência que representa as obras da
mos, porém, que tal contato é uma superfície natureza, do que a que representa as obras do
que circunda seu meio, e nesse meio está a operador, isto é, as obras dos homens, que são
residência do ponto, e tal ponto não é da ma­ as palavras, como a poesia, e semelhantes, que
téria dessa superfície, nem ele, nem todos os passam pela língua humana.
pontos do universo são em potência ainda que
estivessem unidos, nem, dado que se pudes­
3. Ciências mecânicas e ciências não mecânicas
sem unir, comportariam parte alguma de uma
superfície. E dado que imaginasses um todo Dizem ser mecânica a cognição parturida
como composto de mil pontos, aqui, dividindo pela experiência, e ser científico a que nasce
alguma parte dessa quantidade de mil, pode­ e termina na mente, e ser semimecânica a
128
Primeira parte - O Humanismo e a Renascença

que nasce da ciência e termina na operação quantidade descontínua e contínua. Aqui não
manual. Todavia, parece-me que sejam vãs se argüirá que duas vezes três seja mais ou
0 cheias de erros as ciências que não nas­ menos seis, nem que um triângulo tenha seus
ceram da experiência, mãe de toda certeza, e ângulos menores do que dois ângulos retos,
que não terminam em experiência conhecida, mas com eterno silêncio permanece eliminada
isto é, que sua origem, ou meio, ou fim, não toda argüição, e com paz são fruídas pelos
passam por nenhum dos cinco sentidos. £ se seus devotos, o que não o podem fazer as
duvidamos da certeza de cada coisa que mentirosas ciências mentais. £ se disseres que
passa pelos sentidos, com muito maior razão tais ciências verdadeiras e conhecidas são
devemos duvidar das coisas rebeldes a es­ espécies de mecânicas, apesar de só pode­
ses sentidos, como a ausência de Deus e rem terminar manualmente, direi o mesmo de
da alma e coisas semelhantes, pelas quais todas as artes que passam pelas mãos dos
sempre se disputa e briga. € verdadeiramen­ escritores, que são espécie de desenho, mem­
te ocorre que sempre onde falta a razão su­ bro da pintura; e a astrologia e as outros pas­
prem os gritos, o que não acontece nas coisas sam pelas operações manuais, mas primeiro
certas. são mentais como a pintura, que primeiro exis­
Por isso, diremos que onde se grita não te na mente de seu especulador, e não pode
há verdadeira ciência, porque a verdade tem chegar à sua perfeição sem o operação ma­
um só termo que, ao ser publicado, o litígio nual; essa pintura, da qual seus científicos e
permanece para sempre destruído, e se o li­ verdadeiros princípios primeiro colocam o que
tígio ressurge, ela é ciência mentirosa e con­ é corpo sombrio, e o que é sombra primitiva e
fusa, e não certeza renascida. Mas as ciên­ sombra derivativa, e o que é lume, isto é, tre­
cias verdadeiras são as que a esperança fez vas, luz, cor, corpo, figura, lugar, remoção, pro­
penetrar pelos sentidos e silenciam a língua ximidade, movimento e repouso, os quais ape­
dos litigantes, e que não alimentam de so­ nas são com preendidos pela mente sem
nhos seus investigadores, mas sempre pro­ operação manual; e esta será a ciência da
cedem sucessivamente sobre os primeiros pintura, que permanece na mente dos que a
verdadeiros e conhecidos princípios e com contemplam, da qual nasce depois a opera­
verdadeiras seqüências até o fim, como ve­ ção, muito mais digna do que a predita con­
mos nas primeiras matemáticas, isto é, nú­ templação ou ciência.
mero e medida, chamadas aritmética e geo­ Leonardo do Vinci,
metria, que tratam com suma verdade do Trotado do pintura, I, § 1,3, 29, e II, § 77

Leonardo da Vinci,
estudos sobre a duração da percepção visual,
ótica, prospectica (do Códice Atlântico).
Leonardo se servia habitualmente
de uma escritura “invertida ",
isto é, da direita para a esquerda,
e apenas esporadicamente
em suas notas encontramos a escritura “direita".
A explicação mais fácil está no fato
de que ele era canhoto,
mas na realidade este modo bizarro de escritura
correspondia a seu caráter esquivo e solitário,
atento para defender-se de curiosidades indiscretas.
Ao espelho seus textos se lêem,
salvo dificuldades mínimas,
como qualquer outro manuscrito.
129
Capítulo sétimo - V é r t ic e s e r e s u l t a d o s c o n c lu s iv o s d o p e n s a m e n t o r e n a s c e n t is t a

dos quais vemos que o mundo é constituído,


atribuíram não a grandeza e posição, que se
T e lé s io
vê que obtiveram, nem a dignidade e as for­
ças, das quais vemos que são dotados, mas
aquelas das quais teriam devido ser dotados
conforme os ditames de sua razão. Ou seja,
não era necessário que os homens satisfizes­
n natureza sem a si mesmos e ensoberbecessem até o
deve ser explicada ponto de atribuir (como que antecipando a na­
segundo seus princípios tureza e afetando não só a sabedoria mas tam­
bém a potência de Deus) às coisas as pro­
priedades que eles não tinham visto que eram
Neste trecho, tirado do Proêmio do De a elas inerentes, e que, ao contrário, deviom
rerum natura iuxta própria principio, Telésio ser absolutamente tiradas das coisas. Nós, por­
ilustro o "outonomio" do físico em relação o que não tivemos tanta confiança em nós mes­
todo outro pesquiso que não se otenho oos mos, e uma vez que somos dotados de um
princípios peculiares do natureza, mos pro­ engenho mais lento e de um ânimo mais dé­
curo ultrapassá-los para individuar princípios bil, e porque somos amantes e cultores de uma
transcendentes. Na rea lida d e, e le não sabedoria completamente humana (a qual
nego a existência do transcendente, mos certamente sempre deve parecer que tenha
coloca tudo aquilo que está ligado ao chegado ao ápice de suas possibilidades, caso
transcendente foro do pesquiso Física do tenha conseguido perceber os coisas que o
natureza. ' sentido manifestou e as que se podem ex­
Fi estrutura do mundo, e o grandeza e trair da semelhança com as coisas percebidas
natureza dos corpos que ele contém, não com o s e n tid o ), nós nos propusem os a
deve se r pesquisada com a razão abstrata, pesquisar apenas o mundo e suas singulares
como o fízerom os antigos, mas deve ser cap­ partes e as paixões, ações, operações e as­
tada com os sentidos e tirada das próprios pectos das partes e das coisas nele contidas.
coisas. Cada uma delas, com efeito, se corretamente
observada, manifestará a própria grandeza,
e cada uma delas sua própria índole, força e
Aqueles que antes de nós pesquisaram natureza.
o estrutura de nosso mundo e a natureza das Assim, se parecer que nada de divino e
coisas nele contidas, fizeram-no certamente que seja digno de admiração e que seja tam­
com longas vigílias e grandes fadigas, mas inu­ bém demasiado agudo se encontra em nos­
tilmente, como parece. O que, com efeito, esta sos escritos, eles porém não contrastarão de
natureza pode ter revelado a eles, cujos dis­ fato com as coisas ou consigo; isto é, segui­
cursos, sem excluir nenhum, não concordam e mos o sentido e a natureza, e nada mais; a
contrastam com as coisas e também com si mes­ natureza que, concordando sempre consigo,
mos? £ podemos afirmar que isto assim acon­ age e opera sempre as mesmas coisas e do
teceu justamente porque, tendo tido talvez de­ mesmo modo. Todavia, se algo daquilo que
masiada confiança em si mesmos, depois de afirmamos não estivesse de acordo com as
ter pesquisado as coisas e suas forças, não sagradas escrituras ou com os decretos da igre­
atribuíram a elas, como era necessário, a gran­ ja católica, afirmamos e declaramos formalmen­
deza, índole e faculdade de que agora se vê te que não deve ser mantido, mas deve ser
que são dotadas; mas, quase disputando e inteiramente rejeitado. A elas, com efeito, deve
competindo com Deus em sabedoria, tendo ou­ estar posposto não só qualquer raciocínio hu­
sado pesquisar com a razão os causas e prin­ mano, mas também o próprio sentido; e se não
cípios do próprio mundo, e crendo e querendo concorda com elas, até o sentido deve ser re­
crer que haviam encontrado estas coisas que negado.
não encontraram, construíram para si um mun­ B. Telésio,
do conforme seu arbítrio. Portanto, aos corpos. D e rerum natura iuxta p ró p ria principia.
130
Primeira parte - O -H u m an ism o e a R e n a s c e n ç a

não é terminado nem terminável. Não é forma,


B runo porque não informa nem figura outro, admitido
que é tudo, é máximo, é uno, é universo. Não é
mensurável nem medida. Não se compreende,
porque não é maior do que ele mesmo. Não é
compreendido, porque não é menor do que ele
mesmo. Não se nivela, porque não é outro 0
Unidade e infinitude outro, mas uno e o mesmo. Sendo o mesmo e
do universo uno, não tem ser e ser; e porque não tem ser e
ser, não tem parte e parte; e pelo fato de não
Entre os diálogos itolionos d e Bruno, ter parte e parte, não é composto. €ste é termo
os mois lidos e os mois importantes sõo os de modo que não é termo, é talmente forma
cinco que compõem o Do causo, princípio 0 que não é formo, e de talmente matéria que
uno (1584). fí passagem oqui reportado é não é matéria, é de tal modo alma que não é
tirada do diálogo 1/, em que Bruno exalta o alma: porque é o todo indiferentemente, 0 po­
unidade puro, onde todos as determina­ rém é uno, o universo é uno.
ções, 0 0 infinito, perdem significado, por­
que coincidem no Uno. Causo, Princípio e 2. A unidade do cosmo em sua infinitude
Uno constituem para Bruno uma trindade em grandeza e temporalidade
meramente conceituai, p ois o Uno é princí­
Neste certamente não é maior o altura do
pio e causa.
que o comprimento e a profundidade; de onde,
por certa semelhança se chama, mas não é,
esfera. Na esfera o comprimento, a largura e a
1. O universo, uno e infinito, profundidade são a mesma coisa porque têm o
é imóvel, inalterável, mesmo termo; mas, no universo, é a mesma
compõe e resolve em si coisa a largura, o comprimento 0 a profundida­
todas os diferenciações e oposições de, porque da mesma forma não têm termo e
O universo 0, portanto, uno, infinito, são infinitas. Se não têm meio, quadrante2 e
imó­
vel.1* Uno, digo, é a possibilidade absoluto, uno outras medidas, se não há medida, não há tam­
o ato, una a forma ou alma, una a matéria ou bém parte proporcional, nem absolutamente
corpo, una a coisa, uno o ente, uno o máximo e uma parte que se diferencie do todo. Porque,
ótimo; o qual não deve poder ser compreendi­ se quiseres dizer parte do infinito, é preciso dizê-
do; e por isso é infindável 0 interminável, e por­ la infinito; se é infinito, concorre em um ser com
tanto infinito e interminado 0, por conseqüên- o todo: o universo, portanto, é uno, infinito, im-
cia, imóvel. 6ste não s© move localmente, partível. € se no infinito não se encontra dife­
porque não há coisa fora de si para onde se rença, como de todo 0 parte, e como de outro
transportar, admitido que seja o todo. Não se e outro, certamente o infinito é uno. Sob a com­
gero; porque não existe outro ser que ele pos­ preensão do infinito não existe parte maior e
sa desejar ou esperar, admitido que tenha'todo parte menor, porque à proporção do infinito não
o ser. Não se corrompe; porque não existe ou­ se coaduno mais uma parte o quanto se queira
tra coisa na qual se mude, admitido que ele maior que outro o quanto se queira menor; po­
seja toda coisa. Não pode diminuir ou crescer, rém, na infinita duração não difere a hora do
admitido que é infinito; ao qual como não se dia, o dia do ano, o ano do século, o século do
pode acrescentar, também é aquele do qual momento; porque os momentos e as horas não
não se pode subtrair, pelo fato de que o infini­ são mais que os séculos, e não têm menor pro­
to não tem portes proporcionáveis. Não é alte- porção aqueles do que estés em relação ò eter­
rável em outra disposição, porque não tem ex­ nidade. Da mesma forma no imenso não é di­
terior, do qual sofro e pelo qual venha a ser ferente o palmo do estádio, o estádio3 da
afetado. Rlém de que, poro compreender to­ parasanga;4 porque à proporção da imensidão
das as contrariedades em seu ser em unidade não se coaduna mais para as parasangas do
e conveniência, 0 nenhuma inclinação possa ter
para outro e novo ser, ou também para outro e
outro modo de ser, não pode ser sujeito de
mutação segundo qualidade nenhuma, nem 'Tenho-se presente que, oqui, Bruno nõo tolo do Abso­
pode ter contrário ou diverso, que o altere, luto, ou seja, de Deus, mos do cosmo como imagem de Deus.
20 quadrante é metade do metode.
porque nele toda coisa está de acordo. Não é 3fetód/'o é medido de 185 metros.
matéria, porque não é figurado nem figurável, 4Parasanga é medido de 3,000 metros.
131
Capítulo sétimo - V é r t ic e s e r e s u l t a d o s e o u c lu s iv o s d o p e n s a m e n t o r e n a s c e n t is t a

que poro os palmos. Portanto, infinitos horas gar, e que o circunferência não está em parte
não são mais qu© infinitos séculos, e infinitos nenhuma por ser diferente do centro, ou então
palmos não são d© maior número qu© infinitas que a circunferência está em todo lugar, mas o
parasangas. A proporção, semelhança, união centro não se encontra enquanto é diferente
© identidade do infinito não mais te aproximas dela. Eis como não é impossível, mas necessá­
pelo foto de ser homem e não formiga, uma rio, que o ótimo, máximo, incompreensível é
estrela e não um homem; porque àquele ser tudo, está para tudo, está em tudo, porque,
não mais te avizinhas por ser sol, lua, e não um como simples e indivisível, pode ser tudo, ser
homem ou uma formiga; e, todavia, no infinito para tudo, ser em tudo. E assim não foi dito de
estas coisas são indiferentes. € o que digo des­ forma vã que Júpiter enche todas as coisas,
tas, entendo de todas as outras coisas que sub­ habita todas as partes do universo, é centro
sistem particularmente. daquilo que tem o ser, uno em tudo e pelo qual
uno é tudo. O qual, sendo todas as coisas e
compreendendo todo o ser em si, também faz
3. No cosmo uno-infinito
com que toda coisa esteja em toda coisa.
não se diferenciam ato e potência,
e portanto nem ponto e linha,
superfície e corpo 5. O cosmo uno-infinito
é "multimodo multiúnico”
Ora, se todas estas coisas particulares no e uno em substância
infinito não são outro e outro, não são diferen­
tes, não são espécie, por necessária conseqü- Dir-me-eis, porém: então por que as coi­
ência não são número; portanto, o universo e sas se mudam, a matéria particular se força para
ainda uno imóvel. E isto porque compreende outras formas? Respondo-vos que não é muta­
tudo, e não sofre outro e outro ser, e não com­ ção que procura outro ser, mas outro modo de
porta consigo nem em si mutação nenhuma; por ser. E esta é a diferença entre o universo e as
conseqüência, é tudo aquilo que pode ser; e coisas do universo: porque aquele compreen­
nele (como eu disse outro dia) o ato não é di­ de todo o ser e todos os modos de ser, estas
ferente da potência. Se da potência não é di­ cada uma tem todo o ser, mas não todos os
ferente o ato, é necessário que nele o ponto, a modos de ser; e não pode atualmente ter to­
linha, a superfície e o corpo não se diferen­ das as circunstâncias e acidentes, porque mui­
ciem: porque assim tal linha é superfície, assim tas formas são incompossíveis em um mesmo
como a linha, movendo-se, pode ser superfí­ sujeito, ou por serem contrárias ou por perten­
cie; assim, aquela superfície movida é feita cor­ cer a espécies diversas; assim como não pode
po, porque a superfície pode mover-se e, com haver um mesmo suposto individual sob aciden­
seu fluxo, pode tornar-se corpo, é necessário, tes de cavalo e homem, sob dimensões de uma
portanto, que o ponto no infinito não se dife­ planta e um animal. Além disso, ele compreen­
rencie do corpo, porque o ponto, deslizando de todo o ser totalmente, porque extra e além
do ser ponto, se torno linha; deslizando do ser o infinito ser não é coisa que exista, não tendo
linha, se torna superfície; deslizando do ser su­ extra nem além; destas, portanto, cada uma
perfície, se torna corpo; o ponto, portanto, por­ compreende todo o ser, mas não totalmente,
que é em potência o ser corpo, não difere do porque além de cada uma há infinitas outras.
ser corpo onde a potência e o ato são uma Entendeis, porém, que tudo está em tudo, mas
mesma coisa. não totalmente e da mesma forma em cada um.
Entendeis como toda coisa é una, mas não da
mesma forma.
4. Tudo está em tudo
e neste sentido tudo é uno
6. Todas as coisas estão no universo
O indivíduo não é diferente, portanto, doe o universo em todas as coisas
divíduo, o simplicíssimo do infinito, o centro da
circunferência. Daí porque o infinito é tudo aqui­ Não falha, porém, quem diz ser uno o ente,
lo que pode ser, é imóvel; porque nele tudo é a substância e a essência; o qual, como infini­
indiferente, é uno; e porque tem toda a gran­ to e interminado, tanto segundo a substância
deza e perfeição que se possa ter além e além, quanto segundo a duração quanto segundo a
é máximo e ótimo imenso. Se o ponto não dife­ grandeza quanto segundo o vigor, não tem ra­
re do corpo, o centro da circunferência, o finito zão de princípio nem de principiado; porque,
do infinito, o máximo do mínimo, seguramente concorrendo toda coisa em unidade e identida­
podemos afirmar que o universo é todo centro, de, digo mesmo ser, vem o ter razão absoluta
ou que o centro do universo está em todo lu­ e não respectiva. No uno infinito, imóvel, que é
132
Primeira parte - O -H u m an ism o e a R e n a s c e n ç a

q substância, que é o ente, se aí se encontra a


multidão, o número, que, por ser modo e é o símbolo da divindade presente no na­
multiformidade do ente, a qual vem a denomi­ tureza, enquanto Rctéon simboliza o inte­
nar coisa por coisa, nem por isso faz que o en­ lecto que está em caça do verdade e do
te seja mais que uno, mas m ultim odo e beleza divino ,- os mastins e os galgos, por
multiforme e multifigurado. Porém, profunda­ fim, são símbolos das volições e dos p e n ­
mente considerando com os filósofos naturais, samentos.
deixando os lógicos em suas fantasias, perce­ R transformação de Rctéon em caça
bemos que tudo o que faz diferença e número (naquilo que procurava), e o foto d e se r
é puro acidente, é pura figura, é pura complei­ devorado por seus cães (pensam entos e
ção. Toda produção, de qualquer tipo seja, é volições), significa que a verdade procu­
uma alteração, permanecendo a substância rada está em nós mesmos, 0 quando d e s­
sempre a mesma; porque não é mais que una, cobrimos isso tornamo-nos desejo de n os­
uno ente divino, imortal. Isto pôde ser entendi­ so s próprios pensamentos, p elo fato de
do por Pitágoras, que não teme a morte, mas vermos tudo 0 nos assimilarmos a e sse
espera a mutação. Puderam-no entender todos tudo.
os filósofos, chamados vulgarmente de físicos,
que nada dizem gerar-se segundo a substân­
cia nem corromper-se, se não quisermos de­ Thnsíuo. Assim se descreve o discurso do
nominar desse modo a alteração.. Isto foi en­ amor heróico, por tender ao próprio objeto, que
tendido por Salomão, que diz "não haver coisa é o sumo bem, e o heróico intelecto que procu­
nova sob o sol, mas aquilo que é já existiu ra unir-se ao próprio objeto, que é o verdadei­
antes". Vedes então como todas as coisas es­ ro primeiro ou a verdade absoluta. Ora, no pri­
tão no universo, e o universo está em todas meiro discurso apresento toda a soma disso e
as coisas; nós nele, ele em nós; e assim tudo a intenção, cuja ordem é descrito em cinco ou­
concorre em perfeita unidade. €is como não tros que seguem. Diz então:
devemos atormentar o espírito, eis como não
é coisa pela qual devamos nos espantar. Por­ As selvas os mostins e galgos solta
que esto unidade é única e estável, e sempre o jovem Rctéon, quando o destino
permanece; este uno é eterno; todo semblan­ apresenta-lhe o dúbio e incauto caminho,
te, toda face, toda outra coisa é vacuidade, é nas pegadas de feras selvagens.
como nada, ou melhor, é nada tudo aquilo que Gs entre as águas o mais belo busto e face
está fora deste uno. que ver possa o mortal e o divino,
em púrpura, alabastro e ouro fino
G. Bruno,
vê, e o grande caçador se torna caço.
D a causa , p rin cíp io e uno.
O cervo, que em espessos lugares dirigia
os mais ligeiros passos, é raptado
e por seus muitos e grandes cães devorado.
Cstendo-lhe meus pensamentos
D O mito de Rctéon como nobre presa, e eles, voltando-se,
devoram-me com ferozes e cruéis mordidas.

€m Bruno, o "co n te m p la çã o " 0 a Rctéon significa o intelecto aplicado à caça


hénosis, isto 0 , o tornar-se um com o Uno do sabedoria divina, à apreensão da beleza di­
dos Neoplatônicos, tornam-se "heróico fu­ vina. Ge solta os mastins e os galgos. Cstes são
ror", omor heróico, que significo o tornar-se os mais velozes, aqueles, os mais fortes. Com
um com o objeto amado, "endeusar-se". efeito, a operação do intelecto precede a ope­
Ficino já denominara "furor divino" o amor ração da vontade; mas esta é mais vigorosa e
que leva o homem a endeusar-se, e Bru­ eficaz do que aquela; ao intelecto humano é mais
no, na obra justomente intitulada Dos herói­ amável do que compreensível a bondade e a
cos furores, leva tal idéia às extremas con- beleza divina, mas o amor é aquilo que move e
seqüêncios. impele o intelecto àquilo que o precede, como
fí passagem que transcrevemos, e que lanterna, fis selvas, lugares incultos e solitários,
em certo sentido contém o metáfora em­ visitados e perscrutados por pouquíssimos e,
blemática da obra, interpreta o mito de todavia, onde não estão impressas as pegodas
Rctéon, o caçador que viu Diano e, como de muitos homens. O jovem, pouco esperto e
conseqüência, foi transformado de caçador prático, como aquele cuja vida é breve e instá­
em caça e dilacerado por seus cães. Diana vel o furor, no dúbio caminho da incerta e am­
bígua razão e afeto desenhado na letra de
13$
Capítulo sétimo - V é r t ic e s e r e s u l t a d o s c o n c lu s iv o s d o p e n s a m e n t o r e n a s c e n t is t a

Pitágoras,1onde 50 vê mais espinhoso, inculto e por tanto beleza, torna-se presa, vê-se conver­
deserto o direito e árduo caminho, e por onde tido naquilo que procurava; e percebeu que dos
este solto os golgos e mastins nas pegadas de cães de seus pensamentos ele mesmo vem a
Feras selvagens, que soo os espécies inteligí­ ser a desejada presa, porque tendo já encon­
veis dos conceitos ideais; que soo ocultos, per­ trado a divindade em si mesmo, não era mais
seguidos por poucos, visitados por roríssimos, e necessário procurá-la fora de si.
que nõo se oferecem o todos os que os procu­
ram. 6/s entre as águas, isto é, no espelho dos Cícrdr. Portanto, bem se diz que o reino
semelhanças, nos obras onde reluz o eficácia da de Deus está em nós,3 e que a divindade habi­
bondade 0 esplendor divino, cujas obras são ta em nós por meio do intelecto e da vontade
significadas pelo sujeito das águas superiores transformados.
e inferiores, que estão sob e sobre o firmamen­
to; vê o mais belo busto e Face, isto 0, potência Trnsíuo. Cxatamente. Cis, portanto, como
e operação externa que ver possa, por hábito e flctéon, posto como presa de seus cães, per­
ato de contemplação e aplicação de mente mor­ seguido por seus próprios pensamentos, corre
tal e divina, de algum homem ou deus. e dirige os novos passos; renova-se para pro­
ceder divinamente e mais agilmente, isto é, com
Cícrdr. Creio que não faça comparação, maior facilidade e com energia mais eficaz, a
mas ponha como no mesmo gênero a apreen­ lugares mais espessos, aos desertos, à região
são divina e humana quanto ao modo de com­ de coisas incompreensíveis; oquele que era um
preender, que é diversíssimo, mas quanto ao homem vulgar e comum, torna-se raro e herói­
sujeito, que é o mesmo. co, tem costumes e conceitos raros, e experi­
menta uma vida extraordinária, fíqui o devo­
Trnsíuo. Cxatamente. Diz em púrpura, ram seus muitos e grandes cães: aqui termina
alabastro e ouro, porque aquilo que na figura sua vida segundo o mundo louco, sensual, cego
de corporal beleza é vermelho, branco e louro, e fantástico, e começa a viver intelectualmente;
na divindade significa a púrpura da divina po­ vive uma vida de deuses, nutre-se de ambrosia
tência vigorosa, o ouro da sabedoria divina, o e embriaga-se de néctar. .
alabastro da beleza divina, na contemplação Giordano Bruno,
da qual os pitagóricos, caldeus, platônicos e Dos heróicos Furores.
outros, do melhor modo que podem, procuram
se elevar. Vê o grande caçador, compreendeu,
o quanto é possível; e se tornou caça: este ca­
çador andava para prender e se torna presa,
por causa da operação do intelecto com a qual
converte em si as coisas apreendidas. C a m pa n ella

Cícrdr. Cntendo, porque ele formo as es­


pécies inteligíveis a seu modo e as proporcio­
na conforme sua capacidade, porque são rece­
bidas segundo o modo de quem os recebe. fl doutrina do conhecimento
Trnsíuo. € esta caça [é] pela operação da
vontade, por ato da qual ele se converte no H doutrina componelliana do conheci­
objeto. mento é Fundamentada sobre a estruturo pri­
mário do ente. O ponto de partida desta
Cícrdr. Cntendo; porque o amor transfor­ doutrina é o dúvida, cujo superação dá-se
ma e converte na coisa amada.

Trnsíuo. Bem sabes que o intelecto apre­


'R letra emblemática de Pitágoras, ò qual Bruno alude,
ende as coisas inteligivelmente, isto é, confor­
é o V, traçado assim: V,ou sejo, com o traço direito no alto
me seu modo;*2 e a vontade persegue as coi­ quase vertical e, portanto, indicando a árduo ascensão, e
sas naturolmente, ou seja, segundo a razão com com o troço esquerdo muito inclinado e quase plano e,
a qual estão em si. Desse modo, flctéon, com portanto, indicando o via fácil.
aqueles pensamentos, aqueles cães que pro­ 2Bruno aiude oqui 00 princípio dos êscolásticos, segun­
do o qual aquilo que se recebe cognoscitivomente, é rece­
curavam fora de si o bem, a sabedoria, a bele­ bido conformando-se ao receptor: "quidquid recipitur ad
za, a fera selvagem, e no modo pelo qual che­ modum recipíentis recipitur".
gou ò presença dela, raptado paro fora de si 3Cf. Lucos 17,21.
134
Primeira parte - O H u m a n is m o e a R e n a s c e n ç a

--- ► ----------------------------------- numerosos objetos e, portanto, nos transferi­


radicalmente pela autoconsciência que, por mos quase no ser do outro, uma vez que o ser
sua vez, é fundamentada sobre a estrutu- passivos e ser mudados é tornar-se outro; a
ralidade do saber em todo ente. alma, portanto, cai no esquecimento e na ig­
fí alma tem um conhecimento inato de norância de si porque é sempre sacudida pe­
si mesma, a notitia indita ("sabedoria ina­ las forças do alto.
ta") que, porém, é perturbada e ofuscada O acrescentamento do ser alheio, múlti­
pelo complexo de conhecimentos provenien­ plo e veemente, com o próprio e único ser pro­
tes do exterior (as notitia® superadditaej, duz nos entes uma evidente ignorância de si
transmutando-se, assim, em notitia abdita mesmos e permite apenas um saber escondi­
("sabedoria escondida"). do sobre si mesmo; [todavia, permanece sem­
O homem, que p o d e alcançar alto ní­ pre verdadeiro que] toda alma conhece a si
vel de autoconsciência, está em grau de mesmo com um conhecimento inato.
captara verdade d as coisas apenas quan­
do s e assim ila a ela s para entendê-las
3. Conhecimento e verdade
como são, isto é, como causadas pela ciên­
cia de Deus. O conhecer é, em sua com­ A ciência de Deus é causa das coisas; a
plexidade, "ser", e é ao mesmo tempo con­ nossa, ao contrário, é causada; é causa nos
quista e perda. . limites das coisas excogitadas por nós.
Como a verdade é dada pelo conhecimen­
to adequado entre as coisas e a alma sen-
siente-inteligente, e como tal conhecimento
1. R autoconsciência e a superação da dúvida parte das coisas, criadas e existentes e dispos­
tas pelo sumo Criador no modo com que devem
R alma conh®c® a si mesma com um co­
ser conhecidas, deduzimos que os significados
nhecimento de presencialidade, e não com um
das coisas devem ser assumidos das próprias
conhecimento objetivo, exceto sobre o plano
coisas da experiência, e que devem ser deter­
reflexo. £ certíssimo primeiro princípio que so­
minados como são, e de modo nenhum segun­
mos e podemos, sabemos e queremos; depois,
em segundo lugar, é certo que somos algumo do o que a nosso razão dita.
R verdade é a própria entidade da coisa,
coisa e não tudo, e que podemos conhecer algu­
ma coisa, e não tudo e não totalmente. Depois, como ela é, e não como nós a imaginamos.
Todas as coisas dizem-se verdadeiros enquan­
quando do conhecimento de presencialidade
to se adequam ao intelecto divino, do qual re­
se procede aos particulares por um conhe­
cebem o ser; enquanto na verdade se adequam
cimento objetivo começa a incerteza, pelo fato
a nosso intelecto, não são ditas verdadeiras,
de que a alma se torna alienada, por causa
mas produzem em nós a verdade; nós, porém,
dos objetos, do conhecimento de si, e os obje­
somos verdadeiros se conhecemos a coisa como
tos não se revelam totalmente e distintamente,
ela é.
mas parcialmente e confusamente. €, na ver­
dade, nós podemos, sabemos e queremos o O intelecto humano não mede as coisas,
outro porque podemos, sabemos e queremos das quais não é o autor; mas é medido pelas
coisas, e é verdadeiro quando se assimila a
a nós mesmos.
elas para entendê-las como elas são; e não de
R sabedoria inere a nós pelo flutor da
natureza, e é dada como a potência e o amor outra forma.
de ser; a ciência, ao contrário, adquire-se aci­
dentalmente através da sabedoria enquan­ 4. Conhecimento e ser
to olha os entes que exteriormente estão dian­
te de nós. Rfirmamos que a sabedoria pertence ao
O próprio ser das coisas, e que uma coisa é sen­
que conhecemos é mínima parte diante
daquilo que ignoramos, mas saber isto é suma tida e conhecida porque é a própria natureza
sabedoria paro nós, e ela nos convida e nos cognoscente. Uma vez que a sensação é assi­
impele a aceitar o ensinamento de Deus.2 milação e que todo conhecimento ocorre pelo
fato de que a própria natureza cognoscente
se torna o próprio conhecido, conhecer é ser;
2. "Notitia indita" e "notitia abdita"
portanto, qualquer ente, se é muitas coisas,
O conhecimento de si mesmo é impedi­conhece muitas coisas; se é poucas, conhece
do pelo conhecimento do outro; com efeito, poucas.
somos gerados entre entes contrários, e so­ O conhecimento sensitivo, imaginativo,
mos passivos diante do calor e do frio e de intelectivo e memorativo consiste no fato de
135
Capítulo sétimo - V é r t ic e s e r e s u l t a d o s c o n c lu s iv o s d o p e n s a m e n t o r e n a s c e n t is t a

que o cognoscente é ou se torno o ser do


conhecido. Portanto, real e fundamentalmen­ fl estrutura metafísica
te conhecer é ser; formalmente, porém, se dis­
tinguem, porque o conhecer é o ser enquan­
da realidade1
to julgado.
fí metafísico d e Tomás Campanella
se apresenta como síntese do pensam en­
5. Aquisição e perda no conhecer
to d e santo Hgostinho e do de santo To­
O valor do saber pode ser apreciado pelo más. Da tradição tomista Campanella re­
fato de que quanto mais sabemos, tanto mais tomo o conceito d e "ente " como conceito
somos; portanto, quem é tudo, sabe tudo, e fundam ental poro p e n sa r o re a lid a d e ;
quem é pouco, sabe pouco. mas, uma vez que pretende fozer emergir
Sabemos apenas poucas coisas, e parci­ já neste conceito inicial a idéio primo do
almente e imperfeitamente. [Todavia] como tor­ cristianismo, isto é, o idéia do Trindade, ele
nar-se muitas outras coisas por meio da passi­ também se remete ò filosofia ogostiniana,
vidade da experiência é o mesmo que dilatar a qual indivíduo no homem a tríade posse,
o próprio ser, isto é, tornar-se de um muitos, o nosse, velle, como reflexo do mistério
saber é coisa divina, mesmo na passividade trinitário.
da experiência. Campanella entende, portanto, o con­
Conhecer e amar a si mesmo é em todo ceito de ente como estruturado segundo umo
ente um ato ou operação primordial incessan­ dialética interna de três aspectos: potência,
te. Portanto, quando o objeto move a mente sabedoria, amor, que constituem os "pri­
movendo o espírito corpóreo, ao qual a mente mai idades", isto é, os aspectos primeirís­
está unida mediante a primariedade, a ope­ simos, do real.
ração da mente é modificada; e, enquanto
antes sentia e amava a si mesma essencial­
mente, agora sente e ama a si acidental­
mente. Com efeito, a mente é mudada aciden­ 1. Ser e existir em relação ao ente
talmente pelos objetos, os quais não tolhem
a operação, mas a modificam com aquela Dizemos que todas as coisas convêm no
passividade; daqui provém que a faculdade comuníssimo termo de ente.
cognoscitiva julga o objeto de modo a conhe­ O ente não pode ser definido, mas se pre­
cê-lo, conhecendo não o objeto em si, mas cisa por si como aquilo que tem o ser ou aquilo
conhecendo a si própria mudado, por meio que é.
da faculdade imaginativa, no objeto, fl men­ O ente da experiência é aquele que cai
te, portanto, sempre conhece a si mesma, mas por primeiro no conhecer, e é conhecido de
nem sempre conhece a si mesma como mu­ maneira confusa. Na verdade, a sabedoria hu­
dada. Cm Deus, portanto, que não é passivo mana não é construtora da realidade, e tam­
diante de nenhum objeto exterior nem ocasio­ bém não é interna nas coisas, de modo a po­
nalmente nem causalmente, não se verifica der conhecê-la o priori e do próprio interior;
uma pausa no conhecer, no ver-se e no amar- é fato que a realidade age sobre o sujeito
se; ele está sempre em ato no conhecimento que conhece, e este, percebendo seu ser,
de si mesmo e, por meio de si, do outro. Nós, chega em seguida a saber seu significado. O
porém, embora conheçamos sempre a nós termo ente é, portanto, o primeiro índice do
mesmos atualmente, somos mudados pelos primeiro conhecimento confuso; tomado no­
objetos; portanto, parecemos sofrer pausas minalmente, significa a essência das coisas,
no conhecimento de nós mesmos e somos rap­ enquanto, tomado verbalmente, indica o ato
tados na realidade diferente de nós. de ser.
[Cis que então] todos os cognoscentes Dizemos "existir" a respeito daquelas coi­
são alienados do próprio ser, como se termi­ sas que, fora da causa, estão em outras e com
nassem na loucura e na morte; nós estornos outros, como que sustentadas pela forço de
no reino da morte. Cstamos de fato em uma alguma coisa.
terra estrangeira, alienados de nós mesmos; C claro que o ente como tal não existe;
anelamos uma pátria e nossa sede é junto de ele simplesmente “é", e tal “é" é dele dito
Deus. de modo essencial, e não existencial. Aqui­
lo que simplesmente é, é causa de todas as
T. Companella, existências; existir é, com efeito, posterior
Textos. ao ser.
136
Primeira parte - O H u m a n is m o e a R e n a s c e n ç a

2. A estrutura primalitária do ente outra. R sabedoria, que emana da potência,


nela imane; da mesma forma, também o amor
R "essonciação" é a constituição do 0nt0
imane em uma e em outra, das quais procedo.
intrínsoca, simplicíssima, primeira, por toticipa-
R potência, a sabedoria, o amor, enquan­
ção1 0 não por participação. O ent0 é es-
to ossonciam, não são três coisas nem três on­
senciado om primeiro lugar pola potência do
tos, mas três momentos ontológicos da mesma
sor, pola sabodoria de ser, polo amor do sor.
realidade. [Portanto,] a sabedoria, a potência
Cstas primalidodos ossonciam todo onto.
o o amor são um princípio unitário na ação;
Com efeito, todo onto, podondo sor, tom o po­
podem dizer-se unalidades3 do uno.
tência do sor. Rquilo quo podo sor, sabo sor;
[Rs três primalidades constituem o dina­
so não porcobosso sor, não amaria a si mosmo
mismo ou] a operação como ato interno às coi­
o não fugiria do inimigo quo o destrói, e não
sas; as oporações metafísicas são o posse, o
soguiria o onto quo o conservo, como o fazem
nosse, e o velle.
todos os ontos. O saber emana do poder: os
ontes amam aquilo que sabem; portanto, to­ T. Campansllci, Textos.
dos os ontes amam ser sompro 0 em todo lu­
gar. O amor flui antecipadamente da sabedo­
ria o da potência. '“Toticipar" é termo componelliono poro indicar o co-
Cada uma das primalidades imane*2 na estruturalidade dos três primalidades do ente 0 do próprio
ente; ele se opõe a "participar”, que implica derivação e
outra da qual procede. Não tom precedência dependência.
de tempo, nem do dignidade, nem de ordem, 2£ imanente.
mas apenas do origem, enquanto uma vem da ^Características constitutivas unitárias.

Frontispício da segunda edição


da célebre obra de Bernardino Telésio
“De rerum natura iuxta própria principia ”,
impressa em Nápoles em 1587.
Retrato de Tomás Gampanella,
(incisão sobre cobre),
obra de Nicolas de Larmessin,
que remonta a 1670.
F.stá na obra Académie des Sciences et des arts
(Bruxelas, 1682), de I. Bullart.
A REVOLUÇÃO
CIENTÍFICA

■ Gênese
■ Características essenciais
■ Desenvolvimento na época moderna

“M as, sen h o r Sim p lício , vinde com razões, vo ssa s


ou de A ristó teles, e não com textos e fú teis autori­
dades, porque n o sso s d iscu rso s se dão acerca do
m undo se n síve l, não so bre um m undo de p a p e l ”
Galileu Galilei

“[ ...] e não invento hipóteses. Com efeito, tudo aqui­


lo que se deduz dos fenôm enos deve se r cham a­
do hipótese. E a s hipóteses, tanto m etafísicas com o
física s, se ja de qualidades ocultas ou m ecânicas,
não encontram nenhum lu g a r na filo so fia exp eri­
m ental. ”
Isaac Newton

“A natureza e a s ie is da natureza estavam ocultas


na noite. D eu s d isse : fa ça -se N ew ton! E tudo tor­
no u-se lu z. ”
Alexander Pope
Capítulo oitavo

Origens e traços gerais da revolução científica 139

Capítulo nono

A revolução científica e a tradição mágico-hermética 151

Capítulo décimo

De Copérnico a Kepler 165

Capítulo décimo primeiro

O dram a de Galileu e a fundação da ciência moderna 189

Capítulo décimo segundo

Sistema do mundo, m etodologia e filosofia


na obra de Isaac Newton 229

Capítulo décimo terceiro

As ciências da vida, as Academias e as Sociedades científicas 249


(S apí+ulo oi+avo

CVigaias e f m ç o s g e r a i s
d a re v o lu ç ã o eiervfíj-ica

• O período que vai de 1543, ano da publicação do De revolutionibus de


Nicolau Copérnico, até 1687, ano da publicação de Philosophiae naturalis princi­
pia mathematica de Isaac Newton, é geralmente indicado como período da "revo­
lução científica". A revolução científica é um grandioso movi­
mento de idéias que, a partir da obra de Copérnico e Kepler, a revolução
adquire no Seiscentos suas características qualificativas na obra científica:
de Galileu, encontra seus filósofos - em aspectos diferentes - em de Copérnico
Bacon e Descartes, e exprime sua mais madura configuração na a Newton
imagem newtoniana do universo-relógio. Nos anos que inter-
correm entre Copérnico e Newton muda a imagem do universo,
mas mudam também as idéias sobre a ciência, sobre o trabalho científico e as
instituições científicas, sobre as relações entre ciência e sociedade e entre saber
científico e fé religiosa.
• Copérnico desloca a terra - e com a terra o homem - do Copérnico
desloca a terra
centro do Universo. A terra não é mais o lugar privilegiado da do centro
criação, o lugar designado por Deus a um homem concebido como do universo
o ponto mais nobre e mais elevado da criação. —»§ 1.2
• Muda a imagem do mundo, muda a imagem do homem,
muda lentamente a imagem da ciência. A ciência não será mais A ciência
a intuição privilegiada do mago ou astrólogo singular nem o não é mais
comentário ao filósofo ou ao médico que disse "a verdade"; um discurso
a ciência não será mais um discurso sobre "o mundo de pa­ sobre
pel", mas será um discurso sobre o mundo da natureza; um o "mundo
de papel"
discurso dirigido à obtenção de proposições verdadeiras, ex­ - - > § 1.3
perimentalmente e portanto publicamente controláveis sobre
os fatos.
• O traço mais característico da ciência moderna é a idéia de método, e mais
especificamente de método hipotético-dedutivo. Tornam-se necessárias hipóte­
ses como tentativas de solução de problemas; hipóteses das quais
se deduzem conseqüências experimentais publicamente contro­ A independência
láveis. É a idéia de ciência metodologicamente controlada e pu­ da ciência
blicamente controlável que, de um lado, exige as novas insti­ em relação
tuições - sedes de discussões, confrontos e controles - como as à filosofia
academias e os laboratórios, e de outro funda a autonomia da e à fé
ciência em relação à fé; daí o desencontro com a Igreja e o "caso -- > § 1.4
Galileu".
A ciência
• A revolução científica leva à rejeição das pretensões indaga
essencialistas da filosofia aristotélica. A ciência galileana não a substância
e pós-galileana não indaga sobre a substância, e sim sobre mas a função
a função. - > § 1.5
140
S6gUtld.U parte - y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

O pressuposto • A rejeição do essencialismo aristotélico não significa que o


filosófico: processo da revolução científica seja privado de pressupostos fi­
o Deus que losóficos. Basta aqui recordar que o tema neoplatônico de um
geometriza Deus que geometriza e que cria um mundo, imprimindo nele
-*§1.6 uma ordem matemática e geométrica, é uma idéia que atravessa
a pesquisa de Copérnico, a de Kepler e a de Galileu.
A tradição • Dentro do processo que leva à ciência moderna a histo­
mágica
e a hermética riografia mais atualizada pôs em relevo a importante presença
- + § 1.7 da tradição mágica e da hermética.

• Em todo caso, a formação de novo tipo de saber - público, controlável,


progressivo e fruto de colaboração -, que para validar-se necessita do contínuo
controle da práxis, isto é, da experiência, requer novo tipo de douto; o novo douto
não é nem o mago, nem o astrólogo, nem o professor medieval
Novo tipo comentador de textos antigos; o novo douto é o cientista expe­
de saber rimental moderno, que usa instrumentos sempre mais precisos,
e nova figura
de "douto" e que consegue fundir a "teoria" com a "técnica"; é o pesquisa­
- *§ II. 1 dor que convalida teorias com experimentos realizados por meio
de operações instrumentais com e sobre objetos.

A ciência • Sustentou-se que a ciência moderna teria nascido com os


moderna: artesãos e depois teria sido retomada pelos cientistas.
a reaproximação Uma segunda tese afirma, ao contrário, que a ciência foi
entre técnica feita justamente pelos cientistas.
e saber A pergunta "quem criou a ciência?", a resposta mais plausí­
-> § 11.2 vel é a de Koiré: foram os cientistas que criaram a ciência, mas
esta se desenvolveu porque encontrou uma base tecnológica de
máquinas e instrumentos.

Os traços
• A ciência é obra dos cientistas, e a ciência experimental
mais salientes encontra confirmação por meio dos experimentos.
da ciência A revolução científica é nova forma de saber, diferente do
moderna saber religioso, astrológico e técnico-artesanal. O "cientista" não
-> § 11.3 é mais o douto que sabe o latim, mas pertence a uma sociedade
científica, a uma academia.

A função • O nexo entre teoria e prática, entre saber e técnica propi­


cognoscitiva cia um fenômeno ulterior que acompanha o nascimento e o de­
dos instrumentos senvolvimento da ciência moderna, isto é, do crescimento da
científicos instrumentação.
-> § 11.4 No decorrer da revolução científica os instrumentos entram
com função cognoscitiva dentro da ciência: a revolução científi­
ca sanciona a legalidade dos instrumentos científicos.
Capítulo o it a V O - Ot*igens e traços g elais da revolução científica

I . y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a :

o q u e m u d a c o m e la

1 {Som o a im a g e m A transição de um paradigma em crise para


um novo [...] é uma reconstrução do campo
d o u n iv e r s o m u d a
sobre novas bases [...]. O próprio Copérnico,
no prefácio ao De revolutionibus, escrevia
que a tradição astronômica que havia her­
O período de tempo que vai mais ou dado terminara por simplesmente criar um
menos da data de publicação do De revolu- monstro. Desde o início do séc. XVI, os
tionibus de Nicolau Copérnico, isto é, de melhores astrônomos da Europa em núme­
1543, à o b r/ de Isaac Newton, Phílosophiae ro sempre crescente reconheciam que o
naturalis principia mathematica, publicada paradigma da astronomia não conseguira
pela primeira vez em 1687, hoje é comu- resolver seus problemas tradicionais. Este
mente apontado como o período da “revo­ reconhecimento preparou o terreno sobre o
lução científica” . Trata-se de um poderoso qual foi possível a Copérnico abandonar o
movimento de idéias que adquire no século paradigma ptolemaico e elaborar um novo” .
XVII suas características determinantes na Elemento detonador desse processo de
obra de Galileu, que encontra seus filósofos idéias foi certamente a “revolução astronô­
— em aspectos diferentes — nas idéias de mica” , que teve seus representantes mais
Bacon e Descartes e que depois encontrará prestigiosos em Copérnico, Tycho Brahe,
a sua expressão clássica na imagem newto- Kepler e Galileu, e que iria confluir para a
niana do universo concebido como máqui­ “ física clássica” de Newton. Nesse perío­
na, ou seja, como um relógio. do, portanto, muda a imagem do mundo.
O epistemólogo Thomas Kuhn em A Peça por peça, trabalhosa, mas progressi-
estrutura das revoluções científicas escreve:
“ Os exemplos mais evidentes de revoluções
científicas são os famosos episódios do de­
senvolvimento científico que já no passado
foram freqüentemente indicados como re­
voluções [...]: reviravoltas fundamentais do
desenvolvimento científico ligadas aos no­
mes de Copérnico, de Newton, de Lavoisier
e de Einstein. Esses episódios mostram em
que consistem todas as revoluções científi­
cas, mais claramente do que muitos outros
episódios, ao menos quanto ao que se refe­
re à história das ciências físicas.
Toda revolução tornou necessário o
abandono por parte da comunidade de uma
teoria científica uma vez honrada, em favor
de outra, incompatível com ela; produziu,
conseqüentemente, uma mudança dos pro­
blemas a propor à pesquisa científica e dos
critérios segundo os quais a profissão esta­
belecia o que se deveria considerar como
problema admissível ou como sua solução
legítima [...]. Quando os paradigmas mu­
dam, o próprio mundo toma novas direções.
Mas o fato ainda mais importante é que,
durante as revoluções, os cientistas vêem Cracóvia, em uma incisão tirada
coisas novas e diversas também quando do Liber Chronicarum (Nuremberg, 1493).
olham com os instrumentos tradicionais nas Copérnico estudou na célebre universidade
direções em que haviam olhado antes [...]. desta cidade.
142
Segunda parte - / \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

Esta imagem que representa o sistema de Copérmco


é tirada de André Cellari, Harmonia macrocósmica, 1660.
A revolução copernicana, de caráter astronômico,
tornou-se uma espécie de emblema da revolução científica em geral.

vamente, caem por terra os pilares da cos- pio de inércia; Newton, com sua teoria
mologia aristotélico-ptolemaica: assim, por gravitacional, unificaria a física de Galileu
exemplo, Copérnico coloca o sol no centro com a de Kepler; com efeito, do ponto de
do mundo, ao invés da terra; Tycho Brahe, vista da mecânica de Newton, pode-se di­
mesmo sendo anticopernicano, elimina as zer que as teorias de Galileu e de Kepler
esferas materiais que, na velha cosmologia, constituem boas aproximações a certos re­
teriam arrastado os planetas com seu movi­ sultados particulares obtidos por Newton.
mento, e substitui a idéia de orbe (ou esfe­ Entretanto, durante os cento e cinqüen-
ra) material pela moderna idéia de órbita; ta anos que decorrem entre Copérnico e
Kepler apresenta uma sistematização mate­ Newton, não é apenas a imagem do mundo
mática do sistema copernicano e realiza a que se transforma. Vinculada a essa trans­
revolucionária passagem do movimento cir­ formação, está a mudança — que também
cular (“ natural” e “ perfeito” , na velha cos­ foi lenta e tortuosa, mas decisiva — das idéi­
mologia) para o movimento elíptico dos as sobre o homem, sobre a ciência, sobre o
planetas; Galileu mostra a falsidade da dis­ homem de ciência, sobre o trabalho cientí­
tinção entre física terrestre e física celeste, fico e as instituições científicas, sobre as re­
fazendo ver que a lua é da mesma natureza lações entre ciência e sociedade, entre ciên­
que a terra e, entre outras coisas, cria novos cia e filosofia e entre saber científico e fé
fundamentos com a formulação do princí­ religiosa.
143
Capitulo oitaVO - O n g e n s e. tr a ç a s g e l a i s d a d e v o lu ç ã o c ie n tífic a

2 1| 7^ t e r r a n ão é m a is explicitar com clareza absoluta — não é mais


a intuição privilegiada do mago ou astrólo­
o centro do universo:
go iluminado, individualmente, nem o co­
ccmseqüências j-ilosó^icas mentário a um filósofo (Aristóteles) que dis­
desta “descoberta” se “ a ” verdade e toda a verdade, isto é, não
é mais um discurso sobre “o mundo de pa­
pel” , mas sim investigação e discurso sobre
Copérnico desloca a terra do centro do o mundo da natureza.
universo e, com ela, o homem. A terra não Essa imagem de ciência não surge toda
é mais o centro do universo, mas um corpo pronta, de uma vez, mas emerge progres­
celeste como os outros; ela, precisamente, sivamente de um tumultuado cadinho de
não é mais aquele centro do universo cria­ concepções e idéias em que se entrelaçam e
do por Deus em função de um homem con­ entrecruzam misticismo, hermetismo, astro­
cebido como o ponto mais alto da criação, logia, magia e, sobretudo, temáticas da fi­
em função do qual estaria todo o universo. losofia neoplatônica. Trata-se de um pro­
E se a terra não é mais o lugar privile­ cesso verdadeiramente complexo, que, como
giado da criação e se ela não é diferente dos dizíamos, encontra seu resultado mais cla­
outros corpos celestes, então não poderia ro na fundação galileana do método cientí­
haver outros homens também em outros fico e, portanto, na autonomia da ciência
planetas? E, ocorrendo isso, como poderia em relação às proposições de fé e às con­
resistir a verdade da narração bíblica sobre cepções filosóficas. O discurso qualifica-se
a descendência de todos os homens de Adão enquanto tal porque — como disse Galileu
e Eva? E como é que Deus, que desceu nesta — procede com base nas “ experiências sen­
terra para redimir os homens, poderia ter satas” e nas “ demonstrações necessárias” .
redimido outros eventuais homens? A“ experiência” de Galileu é o “ experimen­
Essas interrogações já se haviam pro­ to ” . A ciência é ciência experimental. É
posto com a descoberta dos “ selvagens” da através do experimento que os cientistas
América, descoberta que, além de levar a tendem a obter proposições verdadeiras
mudanças políticas e econômicas, também sobre o mundo, ou melhor, proposições
proporia inevitáveis questões religiosas e an­
tropológicas à cultura ocidental, colocando-
a diante da “ experiência da diversidade” . E
quando Bruno rompe os limites do mundo,
tornando o universo infinito, o pensamento
ocidental encontrou-se na premência de bus­
car nova morada para Deus.

A c iê n c ia to rn a -s e
s a b e r e x p e r im e n t a l

Mudando a imagem do mundo, muda


também a imagem do homem. M as tam­
bém, progressivamente, muda a imagem da
ciência.
A revolução científica não consiste so­
mente em adquirir teorias novas e diferen­
tes das anteriores sobre o universo astronô­
mico, sobre a dinâmica, sobre o corpo Copérnico (1473-1543)
humano ou, talvez, sobre a composição da é um dos representantes mais prestigiosos
terra. da “revolução astronômica”:
ele afirma que a terra não é mais o centro do universo,
Ao mesmo tempo, a revolução cientí­ mas um corpo celeste como os outros;
fica é revolução da idéia de saber e de ciên­ cai, portanto, a teoria da terra
cia. A ciência — e esse é o resultado da re­ considerada centro do universo criado por Deus
volução científica, resultado que Galileu iria em função do homem.
144
Segunda parte - / \ ^ e v o lu t p â o c i e n t í f i c a

sempre vais verdadeiras, mais amplas e po­ mesmo. O saber de Aristóteles é “pseudo-
derosas, e publicamente controláveis sobre filosofia” e a Escritura não tem a função de
os fatos. nos informar sobre o mundo, mas é palavra
de salvação que apresenta um sentido para
a vida dos homens.

4 a u t o n o m ia d a c i ê n c i a
e m e e la ç ã o à fé
;A c iê n c ia n ã o é s a b e r
d e e s s ê n c ia s
O traço mais característico desse fenô­
meno que é a ciência moderna resume-se
precisamente no método, que, por um lado,
Juntamente com a cosmologia aristo-
exige imaginação e criatividade de hipóte­ télica, a revolução científica leva à rejeição
ses e, por outro lado, o controle público
das categorias, dos princípios e das preten­
dessas imaginações. Em sua essência, a ciên­
sões essencialistas da filosofia aristotélica.
cia é pública — e o é por questões de méto­
O antigo saber pretendia ser saber de essên­
do. E a idéia de ciência metodologicamen-
cias, ciência feita de teorias e conceitos defi­
te regulada e publicamente controlável que
nitivos. Mas o processo da revolução cien­
exige as novas instituições científicas, como
tífica confluirá para a idéia de Galileu, que
as academias, os laboratórios, os contatos
afirma que buscar as essências é empresa
internacionais (basta pensar em todos os
impossível e vã.
epistolários importantes).
A ciência, portanto, assim como ela se
E é com base no método experimen­
configura ao fim do longo processo da re­
tal que se funda a autonomia da ciência:
volução científica, não está mais voltada
esta encontra suas verdades independente­
para a essência ou substância das coisas e dos
mente da filosofia e da fé. Mas tal indepen­ fenômenos, mas para a qualidade das coi­
dência não tarda a se transformar em con­
sas e dos acontecimentos de modo objetivo
fronto, que, no “ caso Galileu” , torna-se
e, portanto, sendo comprováveis e quan-
tragédia.
tificáveis publicamente. Não é mais o que,
Quando Copérnico tornou público o
mas o como; não é mais a substância, mas
seu De revolutionibus, o teólogo luterano
sim a função, que a ciência galileana e pós-
André Osiander apressou-se em escrever
galileana passaria a indagar.
um Prefácio sustentando que a teoria co-
pernicana — contrária à cosmologia conti­
da na Bíblia — não deve ser considerada
como descrição verdadeira do mundo, mas
muito mais como instrumento para fazer 6 P r e s s u p o s t o s f ilo s ó fic o s

previsões. d a c iê n c ia m o d e rn a
Esta seria também a idéia sustentada
pelo cardeal Belarmino em relação à defesa
do copernicanismo realizada por Galileu. Se o processo da revolução científica é
Lutero, Melanchton e Calvino iriam se opor também um processo de rejeição da filoso­
duramente à concepção copernicana. E a fia aristotélica, não devemos em absoluto
Igreja católica processou duas vezes Galileu, pensar que ele careça de pressupostos filo­
que seria condenado e forçado à abjuração. sóficos. Os artífices da revolução científica,
Entre outras coisas, estamos diante de um de vários modos, também estiveram ligados
confronto entre dois mundos, entre dois ao passado, referindo-se, por exemplo, a
modos de ver a realidade, entre duas ma­ Arquimedes e Galeno.
neiras de conceber a ciência e a verdade. Para A mística do sol, tanto hermética como
Copérnico, Kepler e Galileu, a nova teoria neoplatônica, por exemplo, domina a obra
astronômica não é mera suposição mate­ de Copérnico e a de Kepler, podendo ser
mática nem simples instrumento de cálcu­ encontrada na de Harvey. E o grande tema
lo, embora útil para melhorar a feitura do neoplatônico do Deus que geometriza e que,
calendário, mas sim uma descrição verda­ criando o mundo, cria-o imprimindo nele
deira da realidade, obtida através de um mé­ uma ordem matemática e geométrica que o
todo que não esmola garantias fora de si pesquisador deve procurar, é um tema que
145
Capítulo oitavo - O r i g e n s e t r a ç a s g e r a is da r e v o \ u ç a o científica

atravessa grande parte da revolução cientí­ remos, tinha seus méritos) não tanto por
fica, como a pesquisa de Copérnico, de Ke- desertar a experiência, mas muito mais por
pler ou de Galileu. tê-la traído, corrompendo as fontes da ciên­
cia e despojando a mente dos homens. E,
da mesma forma, os astrólogos reagiram
violentamente ao “ novo sistema do mun­
do” . Com as descobertas de Galileu, o mun­
7 ) TV Iag ia e c i ê n c i a m o d e r n a
do tornou-se maior, e a quantidade de cor­
pos celestes fez-se muito mais numerosa,
de modo imprevisto e de maneira conside­
Assim, podemos dizer com certa cau­ rável. Esse fato convulsionava os funda­
tela que o Neoplatonismo constitui a “ fi­ mentos da astrologia. E os astrólogos se re­
losofia” da revolução científica. De todo belaram.
modo, ele representa certamente o pres­ A propósito do assunto, eis trechos de
suposto metafísico do eixo da revolução uma carta do mecenas napolitano G. B.
científica, vale dizer, da revolução astro­ Manso, amigo de Porta, a Paulo Beni, leitor
nômica. Entretanto, as coisas são ainda de grego no estúdio de Pádua, que o pusera
mais complexas do que aquilo que expu­ a par das incríveis descobertas feitas por
semos até agora. Com efeito, a historio­ Galileu com a luneta: “ [...] escreverei tam­
grafia recente e mais atualizada destacou bém de uma áspera querela, que me foi fei­
com abundância de dados a relevante pre­ ta por todos os astrólogos e por grande par­
sença da tradição mágica e hermética no te dos médicos, os quais entendem que
interior do processo que levou à ciência mo­ foram acrescentados tantos novos planetas
derna. aos primeiros já conhecidos que lhes parece
Naturalmente, houve aqueles que, co­ que, necessariamente, isso arruine a astro­
mo Bacon ou Robert Boyle, criticaram a ma­ logia e derrube grande parte da medicina,
gia e a alquimia com toda a dureza possí­ já que a distribuição das casas do zodíaco,
vel, ou aqueles que, como Pierre Bayle, as dignidades essenciais dos signos, a quali­
investiram contra as superstições da astro­ dade das naturezas das estrelas fixas, a or­
logia. Mas, em todos os casos, a magia, a dem das interpretações, o governo da idade
alquimia e a astrologia são ingredientes ati­ dos homens, os meses da formação do em­
vos do processo que foi a revolução cientí­ brião, as razões dos dias críticos, bem como
fica. Como também o foi a tradição hermé­ centenas e milhares de outras coisas que
tica, isto é, aquela tradição que, referindo-se dependem do número setenário dos plane­
a Hermes Trismegisto (recordamos que o tas, seriam todos destruídos desde seus fun­
Corpus Hermeticum fora traduzido por damentos.” Na realidade, a progressiva
Marsílio Ficino), tinha como princípios fun­ afirmação da visão copernicana do mundo
damentais o paralelismo entre o macro- reduzirá sempre mais o espaço da astrolo­
cosmo e o microcosmo, a simpatia cósmica gia. Mas ela teve de lutar também contra a
e a concepção do universo como um ser astrologia.
vivo. Dizemos tudo isso para mostrar que
No curso da revolução científica, al­ a ciência moderna, autônoma em relação
guns temas e idéias mágicos e herméticos, à fé, pública nos controles, regulada por
devido ao contexto cultural diferente em que um método, corrigível e em progresso, com
vivem ou revivem, se tornariam funcionais uma linguagem específica e clara e com suas
para a gênese e o desenvolvimento da ciên­ instituições típicas, foi resultado de um
cia moderna. Mas isso nem sempre era pos­ longo e tortuoso processo em que se entre­
sível ou nem sempre ocorreu. Em suma, a laçam a mística neoplatônica, a tradição
revolução científica avançou por um mar de hermética, a magia, a alquimia e a astro­
idéias que nem sempre ou nem sempre com­ logia.
pletamente mostraram-se funcionais ao de­ Em suma, a revolução científica não
senvolvimento da ciência moderna. Assim, foi marcha triunfal. E quando relaciona­
por exemplo, enquanto Copérnico se refe­ mos e pesquisamos seus filões “ racionais” ,
ria à autoridade de Hermes Trismegisto não devemos deixar de atentar também
(além da autoridade dos neoplatônicos) para para as eventuais contrapartidas místicas,
legitimar seu heliocentrismo, já Bacon cen­ mágicas, herméticas e ocultistas desses
sura Paracelso (que, no entanto, como ve­ filões.
146
Segunda pãTte - j A r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

II. A f o r m a ç ã o d e n o v o tip o d e s a b e r ,
q u e r e q u e r a u n iã o

d e c iê n c ia e té c n ic a

*| r e v o lu ç ã o c ie n tífic a douto freqüentemente opera fora (se não até


mesmo contra) das velhas instituições do
c r i a o c ie n tis t a saber, como as universidades.
e x p e r im e n ta l m o d e r n o Antes do período de que estamos tra­
tando, as artes liberais (o trabalho intelec­
tual) eram distintas das artes mecânicas.
O resultado do processo cultural que Estas eram “ baixas” e “vis” ; implicando o
passou a ser denominado “revolução cien­ trabalho manual e o contato com a maté­
tífica” foi uma nova imagem do mundo que, ria, identificavam-se com o trabalho servil.
entre outras coisas, propôs problemas reli­ As artes mecânicas eram consideradas in­
giosos e antropológicos não indiferentes. Ao dignas de um homem livre. Mas, no proces­
mesmo tempo, representou a proposta de so da revolução científica, essa separação
nova imagem da ciência: autônoma, públi­ foi superada: a experiência do novo cientis­
ca, controlável e progressiva. ta é o experimento — e o experimento exi­
Mas a revolução científica foi, preci­ ge uma série de operações e medidas.
samente, um processo-, um processo que, Assim, fundem-se numa só coisa o no­
para ser compreendido, deve ser dissecado vo saber e a união entre teoria e prática, que
em todos os seus componentes, inclusive a freqüentemente resulta na cooperação en­
tradição hermética, a alquimia, a astrologia tre cientistas, por um lado, e técnicos e ar­
ou a magia, posteriormente abandonadas tesãos superiores (engenheiros, artistas, hi­
pela ciência moderna, mas que, bem ou mal, dráulicos, arquitetos etc.), por outro. Foi a
influíram sobre sua gênese ou, pelo menos, própria idéia do saber experimental, publi­
sobre seu desenvolvimento inicial. É preci­ camente controlável, que mudou o status das
so, contudo, ir mais além, já que outra ca­ artes mecânicas.
racterística fundamental da revolução cien­
tífica é a formação de um saber — a ciência,
precisamente — que, ao contrário do saber
medieval, reúne teoria e prática, ciência e 7A e e v o lu ç ã o c ie n tífic a :
técnica, dando assim origem a um novo tipo f u s ã o d a t é c n ic a c o m o s a b e e
de “ douto” , bem diferente do filósofo me­
dieval, do humanista, do mago, do astrólo­
go, ou também do artesão ou do artista da Sustentou-se que a ciência moderna,
Renascença. isto é, o saber de caráter público, coopera­
Esse novo tipo de douto gerado pela tivo e progressivo teria nascido primeiro
revolução científica, precisamente, não é com os artesãos superiores (navegantes, en­
mais o mago ou o astrólogo possuidor de genheiros de fortificações, técnicos das ofi­
um saber privado ou de iniciados, nem o cinas de artilharia, agrimensores, arquitetos,
professor universitário comentador e intér­ artistas etc.) para depois influir na transfor­
prete dos textos do passado, e sim o cientis­ mação das artes liberais.
ta fautor de nova forma de saber, público, Contra esta tese se disse que a ciência
controlável e progressivo, isto é, de uma não foi feita pelos artesãos e pelos engenhei­
forma de saber que, para ser validado, ne­ ros, mas justamente pelos cientistas, por
cessita do contínuo controle da práxis, da Galileu, Kepler, Descartes etc. Está é a tese
experiência. A revolução científica cria o do historiador da ciência A. Koyré, o qual
cientista experimental moderno, cuja expe­ sustentou que a nova balística não foi in­
riência é o experimento, tornado sempre ventada por operários e artilheiros, mas con­
mais rigoroso por novos instrumentos de tra eles, e que Galileu não aprendeu sua pro­
medida, cada vez mais precisos. E o novo fissão das pessoas que trabalhavam nos
147
Capítulo oitavo - O r i g e n s e tr a ç o s g e r a i s d a r e v o lu ç ã o eierv+rfica

arsenais e nos canteiros de obras de Veneza, Mas ela surgiu e se desenvolveu também
mas que, ao contrário, ele a ensinou a eles. porque encontrou toda uma base tecnoló­
E, de fato, não foram os técnicos do arsenal gica, toda uma série de máquinas e instru­
que criaram o princípio de inércia. mentos que constituíam quase que uma ba­
Claro, Galileu ia ao arsenal e, como se natural de testes, oferecendo técnicas de
ele próprio diz, o colóquio com os técnicos comprovação e talvez até propondo novos,
do arsenal “ muitas vezes ajudou-me na in­ profundos e fecundos problemas. Galileu
vestigação da razão de efeitos não apenas não aprendeu a dinâmica com os técnicos
maravilhosos, mas também recônditos e do arsenal, assim como, mais tarde, Darwin
quase imprevistos” . As técnicas, os acha­ não aprenderá a teoria da evolução com os
dos e os processos presentes no arsenal aju­ criadores de animais. Mas, da mesma for­
daram a reflexão teórica de Galileu. E pro­ ma como Darwin falava com os criadores,
puseram novos problemas para ela: “ É também Galileu visitava o arsenal. E esse
verdade que, por vezes, até deixou-me con­ fato não é de somenos importância. O téc­
fuso e desesperado de saber como penetrar nico é aquele que sabe que e, amiúde, sabe
e seguir aquilo que, longe de toda opinião também como. Mas é o cientista que sabe
minha, o sentido demonstra-me ser verda­ por que. Em nossos dias, um eletricista sabe
deiro.” muitas coisas sobre as aplicações da corrente
Foram os oculistas que descobriram o elétrica e sabe como implantar um sistema,
fato de que duas lentes, dispostas de modo mas que eletricista conhece por que a cor­
adequado, aproximam as coisas distantes, rente funciona do modo como funciona ou
mas não foram os oculistas que descobri­ sabe alguma coisa sobre a natureza da luz?
ram por que as lentes funcionam assim. E
não foi nem mesmo Galileu. Para isso, foi
preciso Kepler: foi ele quem compreendeu
as leis de funcionamento das lentes. Como 3 tA c iê n c ia m ocl& rna
também não foram os técnicos que escava­ eewne t e o r ia e p r á t i c a
vam poços que compreenderam por que a
água das bombas não subia além dos dez
metros e trinta e seis centímetros. Foi preci­ Em seus Discursos acerca de duas no­
so Torricelli para demonstrar que a altura vas ciências, Galileu escreve: “Parece-me que
máxima de trinta e quatro pés (= 10,36 a prática freqüente do vosso famoso arsenal,
metros) para a coluna d’água no interior do senhores venezianos, põe um amplo campo
cilindro revela simplesmente a pressão total de filosofar aos intelectos especulativos,
da atmosfera sobre a superfície do próprio particularmente aquela parte que envolve a
poço. mecânica, à medida que, aqui, toda sorte de
E quantos exímios navegantes não ti­ instrumentos e máquinas é posta em movi­
veram de lutar contra as altas e baixas ma­ mento por grande número de artífices, entre
rés? E, no entanto, só com Newton chegou- os quais, pelas observações feitas por seus an­
se a uma boa teoria das marés (embora tecessores e por aquelas que, por sua própria
Kepler já a houvesse roçado; note-se, po­ percepção, sem cessar eles próprios conti­
rém, que Galileu dera-lhe explicação equi­ nuam fazendo, forçosamente encontramos
vocada). Eis, portanto, duas teses sobre o alguns muito peritos e de finíssimo discur­
fato da reaproximação entre técnica e sa­ so.” E entre estes “homens muito peritos e de
ber, entre artesão e intelectual, fenômeno finísismo discurso” devemos lembrar tam­
típico da revolução científica. Pois bem, nós bém Brunelleschi, Ghiberti, Piero delia Fran-
pensamos que essa aproximação, até mes­ cesca, Leonardo, Cellini; como também Leon
mo a fusão da técnica com o saber, consti­ Battista Alberti, Valtúrio de Rímini (autor
tuem a própria ciência moderna. Uma ciên­ de um livro sobre máquinas militares), Bi-
cia que se baseia no experimento, por si ringuccio (autor de uma Pirotecnia) etc.
mesma, exige as técnicas de comprovação, A ciência é obra dos cientistas. A ciên­
as operações manuais e instrumentais que cia experimental convalida-se através dos
servem para controlar uma teoria, sendo as­ experimentos. Estes se realizam mediante
sim saber unido à tecnologia. técnicas de teste resultantes de operações
Mas, então, quem criou a ciência? A res­ manuais e instrumentais com e sobre os
posta mais plausível parece-nos a de Koyré: objetos. A revolução científica é precisamen­
foram os cientistas que criaram a ciência. te aquele processo histórico do qual decor-
........ Segundei parte - y \ r e v o lu ç ã o cieniífiaa

re a ciência experimental, vale dizer, uma cia moderna acompanham-se de súbito cres­
nova forma de saber, nova e diferente do cimento da instrumentação.
“ saber” religioso, do “ metafísico” , do “ as­ No princípio do Quinhentos a instru­
trológico e mágico” e também do “técnico mentação reduzia-se a não muitas coisas li­
e artesanal” . gadas à observação astronômica e ao le­
A ciência moderna, assim como se con­ vantamento topográfico; em mecânica,
figurou ao fim da revolução científica, não usavam-se alavancas e polias. No entanto,
é mais o saber das universidades, mas tam­ logo depois, no curso de poucas décadas,
bém não pode ser reduzida tampouco à surgem o telescópio de Galileu (1610), o mi­
prática dos artesãos. Trata-se precisamen­ croscópio de Malpighi (1660), de Hooke
te de um novo saber que, reunindo teoria e (1665) e de van Leeuwenhoek; o pêndulo
prática, por um lado leva as teorias ao con­ cicloidal de Huygens é de 1673; a descrição
tato com a realidade e as torna públicas, que Castelli fez do termômetro a ar de Ga­
controláveis, progressivas e fruto de cola­ lileu é de 1638; o termômetro a água de Jean
boração, e, por outro lado, leva para den­ Rey é de 1632 e Magalotti inventou o ter­
tro do saber e do conhecimento (conce­ mômetro a álcool em 1666; o barômetro de
bendo-os como banco de prova das teorias Torricelli é de 1643; Robert Boyle descre­
e como sua aplicação) muitos achados das veu a bomba pneumática em 1660.
“ artes mecânicas” e artesanais, conferin­ Pois bem, o que interessa em uma his­
do a estas um novo status epistemológico tória das idéias não é tanto o elenco dos ins­
antes até do que social. E é óbvio que a gê­ trumentos (que poderia continuar), mas
nese, o desenvolvimento e o sucesso dessa muito mais a compreensão de que, no curso
nova forma de saber anda de braços dados da revolução científica, os instrumentos
com nova figura de douto ou sábio e tam­ científicos tornam-se parte integrante do
bém com novas instituições, dedicadas pelo saber científico: não existe o saber científi­
menos ao controle das várias partes desse co separado e, ao seu lado, os instrumen­
saber em formação. O “ cientista” não é tos; os instrumentos estão dentro da teoria,
mais o douto que sabe latim, que leu os li­ tornando-se teorias eles próprios. Em uma
vros antigos ou ensina em uma universida­ nota manuscrita do acadêmico experimen­
de. E muito mais aquele que pertence a uma tal Vicente Viviani, encontramos o seguin­
sociedade científica ou a uma academia, as te: “Perguntar a Gonfia (um hábil soprador
quais, junto com observatórios, laborató­ de vidro): qual dos licores está mais pronto
rios e museus, constituem as novas insti­ a fervilhar com o calor, isto é, a receber o
tuições do saber, fora e por vezes contra as calor do ambiente.” E, mais adiante, vere­
Universidades. mos a corajosa operação de Galileu, conse­
E, no entanto, apesar dessas rupturas, guindo, através de um mar de obstáculos,
não devemos nos esquecer dos elementos de levar um instrumento de “vis mecânicos”
continuidade que ligam a evolução científi­ como a luneta para dentro do saber e usá-lo
ca ao passado. Trata-se do retorno a auto­ com objetivos cognoscitivos, embora ini­
res e textos que podiam contribuir para a cialmente o divulgasse para finalidades prá­
nova perspectiva cultural: Euclides, Arqui- ticas, como as militares. E, por seu turno,
medes, Vitrúvio, Heron e outros. na introdução à primeira edição dos Princí­
pios, Newton se opôs à distinção entre “ me­
cânica racional” e “ mecânica prática” , de­
fendida pelos “ antigos” .
4 O s insfeum em tos c ie n t ífic o s Mas vamos nos aprofundar um pou­
c o m o p a r t e in t e g r a n t e
co mais na teoria ou nas teorias dos instru­
mentos que podem ser detectadas no inte­
d o s a b e r c ie n t ífic o rior da revolução científica. A primeira
idéia sobre os instrumentos que aflora nos
escritos de alguns grandes expoentes da
O reencontro do elo entre teoria e prá­ revolução científica é a visão dos instru­
tica, isto é, entre saber e técnica, está vincu­ mentos como ajuda e potencialização dos
lado a (e, em parte, se identifica com) outro sentidos. Galileu afirma que, no uso das má­
fenômeno evidente criado pela revolução quinas antigas, como a alavanca e o plano
científica: estamos falando do fenômeno pe­ inclinado, “ a maior contribuição que nos
lo qual o nascimento e a fundação da ciên­ trazem os instrumentos mecânicos é a que
149
Capitulo oitavo - Origens e traços gerais da revolução científica

diz respeito ao movente (...), como quan­ uso de instrumentos óticos como o prisma
do nos servimos do curso de um rio para ou as lâminas finas acompanha-se de refle­
mover moinhos, ou da força de um cavalo xões — por exemplo, em Newton — que
para criar aquele efeito para o qual não tendem a considerar o instrumento não tan­
bastaria a força de quatro ou seis homens” . to como potencialização dos sentidos, mas
Portanto, o instrumento aparece aqui como muito mais como um meio em condições de
ajuda aos sentidos. No que se refere à lu- libertar dos enganos dos olhos. Nesse senti­
neta, Galileu também escreve que “ é coi­ do, portanto, o instrumento aparece como
sa belíssima, que, além de se ver, é atra­ meio que, levando-nos ao interior dos obje­
ente por se poder admirar o corpo lunar, tos (e não somente a mais objetos), garante
distante de nós quase sessenta semidiâme- maior objetividade contra os sentidos e os
tros terrestres, assim tão de perto, como se seus testemunhos.
distasse de nós somente duas dessas me­ Mas as coisas não ficam por aí, já que,
didas” . E Hooke depõe no mesmo sentido, na importante polêmica entre Newton e
quando afirma que “ a primeira coisa a Hooke sobre a teoria das cores e sobre o
fazer no que se refere aos sentidos é uma funcionamento do prisma, aparece outro te­
tentativa de suprir sua deficiência com ins­ ma da teoria dos instrumentos (um tema
trumentos, isto é, acrescentar órgãos arti­ destinado a desempenhar um papel de pri­
ficiais aos naturais” . meira ordem na física contemporânea), isto
Falando de instrumentação científica, é, a questão do instrumento perturbador
não se pode deixar de lado o fato de que o do objeto de pesquisa, e, conseqüentemen-

P H I L O S O P H U
N A T U R A L I S

P R I N C I P I A

M A T H E M A T I C A

A U C T O R E

1SAACO NEWTONO,
EQ U IT E A urato .

L d i t i o S e c u n d a A u c t i o k . e t E me moat i ok .

Frontispício da segunda edição


C A N T A B R I G I i , MDCCXBL dos Principia mathematica,
de Isaac Newton (171 d).
150
Segunda parte - A r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

te, a temática de como poder controlar — que o prisma “ analisa” à medida que “ mo­
e o quanto é possível fazê-lo — o instru­ dula” .
mento perturbador. Hooke apreciava os ex­ Assim, em conclusão, no curso da re­
perimentos de Newton com o prisma por volução científica, os instrumentos entram na
sua agudeza e elegância, mas o que ele con­ ciência com função cognoscitiva: em suma,
testava era a hipótese de que a luz branca a revolução científica sanciona a legalidade
pudesse ter uma natureza composta e, de dos instrumentos científicos. E se por outro
todo modo, que essa pudesse ser a única lado alguns instrumentos são concebidos
hipótese justa. Hooke não pensava que a como potencialização dos nossos sentidos,
cor fosse uma propriedade original dos rai­ por outro lado devemos constatar a emer­
os. Para ele, a luz branca era produto do gência de dois outros temas: o do instrumen­
movimento das partículas que compõem o to contraposto ao sentido e o do instrumento
prisma. E isso significa que a dispersão das perturbador do objeto sob investigação.
cores seria o resultado de uma perturba­ Dois temas que retornarão com freqüência
ção operada pelo prisma. Hoje, diriamos no desenvolvimento posterior da física.
CSapí+ulo n o n o

y \ r e v o lu ç ã o cieu-frfica
e a t r a d i ç ã o m ã g ic o -K e r m e tic a

I. PVeservça e rejeição ~:
da t r a d i ç ã o m á g i c o - K e r m é f i c a

• A presença da tradição neoplatônica e da neopitagórica, do pensamento


hermético e da tradição mágica no processo da revolução científica, é um fato
indubitável. Basta aqui lembrar: o Deus que geometriza do Neoplatonismo; a na­
tureza escandida sobre o número dos Pitagóricos; o culto do sol por parte dos
Neoplatônicos e do hermetismo; a idéia de harmonia das esfe­
ras, uma idéia que guiou Kepler em suas pesquisas; a teoria do
contagium de Fracastoro; a idéia do corpo humano visto como As diversas
um sistema químico e a idéia da especificidade da doença e dos funções
respectivos remédios, concepções retomadas na iatroquímica de da tradição
Paracelso, e assim por diante. Ora, mesmo que algumas destas mágico-hermética
idéias resultem funcionais para a criação e os desenvolvimentos no processo
da ciência, o processo da revolução científica progressivamente da revolução
científica
distingue, critica e elimina o pensamento mágico, levando à ->§ 7
maturação a forma de saber que é a ciência moderna: saber pú­
blico e controlável e fruto de cooperação.
E exatamente à genialidade descontrolada do pensamento mágico, da astro­
logia e da alquimia Bacon oporá a clareza e a publicidade de um saber criado por
uma comunidade que trabalha com regras reconhecidas.
Por sua vez, Pierre Bayle (1647-1706) escreverá nos Pensamentos diversos
sobre o cometa (1682) que as regras da astrologia são simplesmente "mise­
ráveis".

• A estreita união entre astrologia e astronomia passa da antiguidade -


Ptolomeu é autor do Almagesto, tratado astronômico, mas é também autor do
Tetrabiblos, grande tratado de astrologia - à Idade Média e a
reencontramos no período do Humanismo e da Renascença. Traços
O astrólogo era aquele que, compilando "efemérides" - isto característicos
é, tábuas onde são especificadas as posições dos diversos plane­ da astrologia
tas dia por dia -, presumia estabelecer o influxo positivo ou ne­ e da magia
gativo dos astros sobre a pessoa. Mais especificamente a astrolo­ -> § 2 -5
gia judiciária pretendia desvelar o julgamento dos astros sobre a
pessoa e ao mesmo tempo sobre os eventos. Nas conjunções dos astros o astrólo­
go via o destino das pessoas e a sorte dos governantes; ele sabia coisas tão impor­
tantes que todo príncipe ou potentado tinha seu astrólogo de corte.
Práticas divinatórias ulteriores se aliaram à astrologia, práticas ligadas à
fisiognomonia (onde se presume conhecer o caráter de um homem por meio do
exame de seu corpo, e especialmente mediante o exame dos olhos, da fronte, da
face), à quiromancia (previsão do futuro da pessoa pelas linhas da mão) e à
152
Segunda parte - y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

metoposcopia (previsão do futuro pelas rugas da fronte). E se a astrologia se apre­


senta como o saber que prevê o curso dos eventos - favoráveis ou desfavoráveis
que sejam - a magia se apresenta como a ciência da intervenção sobre as coisas e
sobre os homens, intervenção dirigida a dominar e a transformar a realidade em
nosso benefício.

1 T ^ e s u lta d o s d o p e n s a m e n t o Por seu turno, Kepler conhecia muito


bem o Corpus Hermeticum; muito do seu
m á g ic o - k e n m é f ic o
trabalho consistiu em compilar efeméri­
sobme a c i ê n c i a m o d & rn a des; quando casou-se pela segunda vez,
aconselhou-se com os amigos, mas consul­
tou também as estrelas. E, sobretudo, a sua
Com base no que dissemos até agora visão da harmonia das esferas está prenhe
sobre a magia, não se deve pensar que, du­ de misticismo neopitagórico. No Myste-
rante o período que estamos tratando, a rium Cosmographicum, a propósito de sua
magia tenha estado de um lado e a ciência investigação a respeito “ do número, da
de outro. A ciência moderna — com a ima­ extensão e do período dos orbes” , escreve:
gem que dela nos apresentou Galileu e que “ A admirável harmonia das coisas imó­
Newton consolidará — constitui, como ob­ veis — o sol, as estrelas e o espaço —,
servamos anteriormente, o resultado do pro­ que correspondem à Trindade de Deus
cesso da revolução científica. Por essa ra­ Pai, Deus Filho e o Espírito Santo, me en­
zão, no curso desse processo, à medida que corajou nessa tentativa” . Também o mes­
assume consistência a nova forma de saber tre de Kepler, isto é, Tycho Brahe, estava
que é a ciência moderna, a outra forma de persuadido da influência dos astros sobre
saber — isto é, a magia — passa a ser com­ o andamento das coisas e sobre os aconte­
batida como forma de pseudociência e de cimentos humanos, chegando a ver paz e
saber espúrio. riqueza no aparecimento da stella nova de
No entanto, os vínculos entre filosofia 1572. E assim como os horóscopos de Ke­
neoplatônica, hermetismo, tradição cabalís- pler eram muito requisitados, também Ga­
tica, magia, astrologia e alquimia, por um lileu fazia os seus horóscopos na corte dos
lado, e as teorias empíricas e a nova idéia Médici.
de saber que avança nesse sentido cultural, William Harvey — o descobridor da
por outro lado, são vínculos cujos elos só se circulação do sangue —, no prefácio à sua
dissolvem com lentidão e esforço. Com efei­ grande obra De motu cordis, combate com
to, deixando de lado o componente neopla- muito rigor a idéia dos espíritos que rege-
tônico que constitui o fundamento de toda riam as operações do organismo (“Normal­
a revolução astronômica, ninguém pode mente, acontece que, quando tolos e igno­
hoje negar o peso relevante que o pensamen­ rantes não sabem como explicar algum fato,
to mágico-hermético exerceu também sobre então logo recorrem aos espíritos, que são
os expoentes mais representativos da revo­ causa e artífices de tudo, levados ao palco
lução científica. na conclusão de estranhas histórias, como
Além de astrônomo, Copérnico tam­ o Deus ex machina dos poetastros.” ); mas,
bém foi médico, tendo praticado sua medi­ nas pegadas da concepção solar da tradição
cina por meio da teoria da influência dos neoplatônica e hermética, escreve que “ o
astros. E não é o caso de um Copérnico coração pode (...) muito bem ser designa­
médico que se comporta como astrólogo e do como o princípio da vida e o sol do
um Copérnico astrônomo que se comporta microcosmo, como, analogamente, o sol
como cientista puro (assim como nós con­ pode muito bem ser designado o coração
cebemos o cientista), pois, quando Copér­ do mundo” . Hermetismo e alquimia tam­
nico trata de justificar a centralidade do sol bém estarão presentes no pensamento de
no universo, ele se remete também à autori­ Newton.
dade de Hermes Trismegisto, que chama o Assim, a presença da tradição platôni­
sol de “ Deus visível” . ca e da neopitagórica, do pensamento her­
153
Capitulo flO tlO - revolução científica e a tradição mágico-Ke^mé+ica

mético e da tradição mágica no processo da ções? Ou que uma ordem cumprida uma
revolução científica, é um fato indubitá- hora após o estabelecido faz falir certos pro­
vel. Todavia, podemos ver que, enquanto al­ jetos trabalhosamente elaborados? Ou que
gumas dessas idéias tornam-se funcionais a morte de um só homem pode mudar a
para a criação da ciência (basta pensar no face de uma situação e que, às vezes, é por
seguinte: o Deus que geometriza o neoplato- uma besteira, a mais fortuita do mundo,
nismo; a natureza simbolizada pelo núme­ que não se vencem batalhas cuja perda é
ro dos pitagóricos; o culto neoplatônico e seguida por uma infinidade de males? Co­
hermético ao sol; a idéia kepleriana de har­ mo se pode pretender que os átomos de um
monia das esferas; a idéia do contagium de cometa, revoluteando pelo ar, produzam
Fracastoro; a concepção do corpo humano todos esses efeitos?” Na opinião de Bayle,
como um sistema químico ou a idéia da es­ as regras da astrologia são simplesmente
pecificidade das doenças e dos respectivos “ miseráveis” .
remédios, concepção e idéia propostas e Duríssima foi a crítica de Bacon con­
defendidas na iatroquímica de Paracelso, en­ tra o pensamento mágico. Na opinião de
tre outras coisas), por outro lado, o proces­ Bacon, a ciência é feita de contribuições in­
so da revolução científica, levando à ma­ dividuais que, inserindo-se no patrimônio
turação, na práxis e na teoria, aquela forma cognoscitivo da humanidade, servem ao seu
única de saber que é a ciência moderna, pro­ sucesso e bem-estar. Por isso, Bacon não
gressivamente distingue, critica e rejeita o condena os “ nobres” fins da magia, da as­
pensamento mágico. Assim, por exemplo, trologia e da alquimia, mas rejeita decidi­
Kepler expressa uma lúcida consciência a damente seu ideal do saber, pertencente a
propósito do fato de que, enquanto o pen­ um indivíduo iluminado e, portanto, estra­
samento mágico revolve-se no redemoinho nho ao controle público da experiência e,
dos “ tenebrosos enigmas das coisas” , es­ conseqüentemente, arbitrário e obscuro. À
creve ele, “ eu, ao contrário, esforço-me por genialidade sem controle, Bacon contrapõe
levar à clareza do intelecto as coisas envol­ o caráter público do saber; ao indivíduo ilu­
tas em obscuridades” . A tenebrosidade, minado, uma comunidade científica que
aliás, para Kepler, é a característica do pen­ opera com normas reconhecidas; à obscuri­
samento dos alquimistas, dos herméticos e dade, a clareza; à síntese apressada, a cau­
dos seguidores de Paracelso, ao passo que tela e o paciente controle.
o pensamento dos “ matemáticos” se carac­
teriza por sua clareza. Boyle também se
lançará contra Paracelso. E, embora por
dever tivesse de fazer horóscopos, Galileu 2 A u n iã o e s t r e if a
mostra-se totalmente estranho ao pensamen­ e n tr e a s t r o l o g i a ;
to mágico em seus escritos. E o mesmo vale
m a g ia e c i ê n c i a m o d e r n a
para Descartes.
Em seus Pensamentos diversos sobre o
cometa (1682), Pierre Bayle (1647-1706)
ataca vigorosamente a astrologia, escreven­ No contexto das idéias do Quinhen­
do: “ Afirmo que os presságios específicos tos, é impossível delimitar uma disciplina
dos cometas, não se apoiando em outra coisa científica em relação à outra, como de cer­
além dos princípios da astrologia, não po­ ta forma se tornou possível em seguida.
dem ser senão extremamente ridículos (...). Na cultura do Quinhentos, nem sempre é
Sem precisar repetir tudo o que já disse so­ possível traçar muitas linhas de separação
bre a liberdade do homem (e que seria sufi­ entre as idéias científicas de um lado e as
ciente para decidir essa questão), como é teorias filosóficas, mágicas e astrológicas do
possível alguém imaginar que um cometa outro. A Renascença pôs entre a Idade Mé­
seja a causa de guerras que explodem no dia e a época moderna, freqüentemente vin­
mundo um ou dois anos depois que ele de­ culando-se ao passado, idéias da tradição
sapareceu? E como podem os cometas ser a neoplatônica, idéias derivadas da cabala
causa da prodigiosa variedade de aconteci­ e da tradição hermética e idéias mágicas e
mentos que se registram no curso de uma astrológicas. Trata-se de idéias que a histo­
longa guerra? Não se sabe, talvez, que a riografia mais atualizada reconhece serem
interceptação de uma carta pode fazer falir um ingrediente que não pode ser elimina­
todo o plano de uma campanha de opera­ do da revolução científica: onde vemos que
154
Segunda parte - y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

toda disciplina ou conjunto de teorias (em sas que estão sobre a terra” . Essa estreita
sentido moderno) tem a sua contrapartida união entre astrologia e astronomia que en­
ocultista. Naturalmente, um dos resultados contramos na antiguidade atravessa a Ida­
mais maduros da revolução científica seria de Média e pode ser encontrada no perío­
a progressiva (mas, de todo modo, nunca do do humanismo e da Renascença e, por
total e definitiva) expulsão das idéias má- vezes, até mais tarde. O astrólogo é aquele
gico-hermético-astrológicas do âmbito da que, através da observação dos astros, com­
ciência. Entretanto, há outro lado da ques­ pila as “ efemérides” , ou seja, os quadros
tão: a ciência moderna teria surgido sem a onde são especificadas as posições que os
“ ruptura” que essas idéias efetuaram em rela­ diversos planetas assumem dia após dia.
ção ao mundo medieval? Mais adiante vere­ Com base em tais posições e configurações
mos de que modo a revolução astronômica dos astros, o astrólogo tratava “temas de
encontrará sua garantia filosófica no plato- nascimento” , isto é, fixava quais astros es­
nismo e no neoplatonismo. E o programa tavam mais próximos de uma pessoa na
de Paracelso, que via o corpo humano co­ data do seu nascimento, para depois esta­
mo sistema químico, não foi útil e fecundo belecer sua influência positiva ou negativa
para a ciência? Nem sempre os princípios sobre a pessoa, da qual fazia-se assim o ho­
não-científicos, as fantasias “absurdas” e os róscopo (o hodierno termo “ influência”
sistemas que parecem nascer do ar consti­ encontra aí a sua origem). No Quatrocen­
tuem obstáculos para o desenvolvimento tos e no Quinhentos foi grande o sucesso
da ciência. Existem idéias não-científicas da astrologia judiciária, ou seja, da astro­
que se revelam fecundas para a ciência, in­ logia voltada para revelar o juízo dos as­
fluindo positivamente em seu desenvolvi­ tros sobre as pessoas e também sobre os
mento. E, embora uma das características acontecimentos. Em suma, o astrólogo via
da ciência moderna seja sua linguagem cla­ nas conjunções dos astros as condições de
ra, específica e controlável, não se exclui saúde e o destino das pessoas, mas tam­
que idéias confusas possam ser úteis na gê­ bém as perspectivas da estação, as revoltas
nese de algumas teorias científicas. Mesmo populares, a sorte dos senhores reinantes,
em nossos dias, há quem evidencie os mé­ das políticas e das religiões, as guerras fu­
ritos da confusão; na realidade, pode ocor­ turas. Como era o astrólogo que via e sa­
rer, às vezes, que a clareza seja o último bia dessas coisas tão importantes, não ha­
refúgio de quem não tem nada a dizer. As­ via príncipe ou poderoso que não tivesse o
sim escrevia o filósofo norte-americano seu astrólogo na corte.
Charles S. Peirce por volta de fins do Oito­
centos: “ Dêem-me um povo cuja medicina
originária não esteja misturada com a ma­
gia e os encantamentos, e eu lhes mostrarei 4 Tdsiogrvomomia,
um povo privado de qualquer capacidade
científica.”
quiromamcia
e metoposcopia

3 tSaracferísficas Ao lado da astrologia, exerciam-se ou­


da astrologia tras práticas divinatórias, como a fisiog-
nomonia. No De fato (V, 10), Cícero fala
do fisiognomonista Zópiro, que afirmava
De origem egípcia e caldéia, a astro­ poder chegar a conhecer o caráter de um
logia era uma ciência, isto é, um autêntico homem através do exame de seu corpo, es­
saber, para os homens do Quatrocentos e pecialmente pelo exame de seus olhos, da
do Quinhentos. A astrologia e a astrono­ fronte e da face. Durante a Renascença, essa
mia aparecem ligadas entre si desde a anti­ arte foi extensamente cultivada, com gran­
guidade. Ptolomeu, como sabemos, é au­ de sucesso. Em 1580, Giambattista Delia
tor do famoso e muito influente tratado de Porta publicou o livro Sobre a fisiognomonia
astronomia Almagesto, mas também escre­ humana. A fisiognomonia esteve presente
veu um volumoso tratado de astrologia (o até mesmo no Setecentos (basta pensar em
Tetrabiblos). Tinha a convicção de que “ há Lavater), encontrando-se traços dela até em
certa influência do céu sobre todas as coi­ nossos dias. Outras formas de adivinhação
C d p l t t i l o H O tlQ - A devolução cie^+ífi ca e a t^adiçao

eram ainda a quiromancia (previsão do fu­ seus efeitos e suas consequências. Desse mo­
turo de uma pessoa pelas linhas da mão) e a do, se a astrologia é a ciência que prevê o curso
metoposcopia (previsão do futuro pelas ru­ dos eventos, a magia é a ciência da inter­
gas da fronte). venção sobre as coisas, os homens e os acon­
tecimentos, a fim de dominar, dirigir e trans­
formar a realidade segundo nossa vontade.
A magia é o conhecimento dos modos
5 tSarac+erísficas da mag ia
pelos quais o homem pode agir para levar
as coisas para o sentido por ele desejado.
Desse modo, no mais das vezes, ela se con­
O paralelismo entre macrocosmo e mi­ figura como ciência que envolve o saber as­
crocosmo, a simpatia cósmica e a concepção trológico: a astrologia indica o curso dos
do universo como ser vivo são princípios acontecimentos (favoráveis e desfavoráveis)
fundamentais do pensamento hermético, e a magia apresenta os instrumentos de in­
relançado por Marsílio Ficino com a tradu­ tervenção sobre esse curso. A magia inter­
ção do Corpus Hermeticum. Com base no vém para mudar as coisas que estão “escri­
pensamento hermético, não há qualquer dú­ tas no céu ” e que foram lidas pela astrologia.
vida a respeito da influência dos aconteci­ Evidentemente, a intervenção sobre o curso
mentos celestes sobre os eventos humanos e dos acontecimentos pressupõe o conheci­
terrestres. Mas, como o universo é um ser vivo, mento desse curso. Daí ter-se imposto e al­
em que cada parte depende da outra, toda cançado grande sucesso a figura do astrólo-
ação e intervenção humana também têm go-mago, o sábio que domina as estrelas.

Hermes Trismegisto,
personagem mítico
a quem se atribuía a redação
do conjunto de escritos conhecido
como Corpus Hermeticum.
156
Segunda pavte - y \ r e v o lu ç ã o cien+vfica

---- --- ~
~~ II. T^eucKlin ....... '
e a tradição cabalistica.
yXgripa: ^magia branca^ e ^magia negra "

R e u c h lin • J° h ann Reuchlin (1455-1522), professor de grego em


e a ca b a laTubinga, é autor de um De arte cabalistica. Reuchlin aproximou-
-»§ 1 se da cabala (que quer dizer tradição) talvez sob a influência de
Pico delia Mirandola.
Na cabala Reuchlin vê a revelação divina imediata: a cabala é ciência da divin­
dade; e o cabalista - escreve Reuchlin - é um taumaturgo que, se tem fé intensa,
pode fazer milagres em nome de Jesus.

A ■ • Médico, astrólogo, filósofo e alquimista foi Cornélio Agripa


e„trç de Nettesheim (1486-1535), segundo o qual as partes do univer-
m a g ia b ra n ca s o estão em relação entre si por meio do espírito que anima o
e m a g ia n e g ra mundo inteiro.
-> § 2 E justamente a magia que torna o homem senhor das po­
tências escondidas que agem no universo: a magia natural é co­
nhecimento e controle das forças que animam os corpos materiais; a magia celes­
te é conhecimento e controle das influências exercidas pelos astros; a magia reli­
giosa ou cerimonial é a que vigia e expulsa as forças demoníacas.
A magia natural e a magia celeste constituem a que é chamada de magia
branca; a magia religiosa ou cerimonial adquiriu o nome de magia negra ou ma­
gia negromântica.

1 T seu c k lin e a c a b a l a sensível do qual dependem as coisas sensí­


veis, coloca-o em condições de operar coi­
sas milagrosas. Como escreve Reuchlin no
À cabala está ligada a primeira figura Capnion sive de verbo divino, o cabalista é
de mago de certo interesse, ou seja, o ale­ um taumaturgo que, tendo fé intensa, pode
mão Johann Reuchlin (1455-1522). A ca­ fazer milagres em nome de Jesus.
bala (que significa “ tradição” ) é a mística
hebraica que, através de articulada e com­
plexa simbologia, vê os fenômenos huma­
nos como reflexo dos divinos. 2 j \ g r i p a e a m a g ia
Pois bem, Reuchlin (ou Capnion, nome
grego que adotou) conheceu Pico delia Mi­
randola na Itália. E talvez tenha sido Pico Para o médico, astrólogo, filósofo e al­
quem o introduziu nos estudos cabalísticos. quimista Cornélio Agripa de Nettesheim
Professor de grego em Tubinga, Reuchlin foi (nascido em Colônia em 1486 e morto em
autor de um De arte cabalistica. Ele via a Grenoble em 1535), as partes do universo
imediata revelação divina na cabala, que estão em relação entre si através do espírito
seria então a ciência da divindade. Afirma que anima o mundo inteiro. Escreve Agripa
Reuchlin: “ A cabala é uma teologia simbó­ em seu De occulta philosophia que, assim
lica, na qual não somente as letras e os no­ como uma corda estendida vibra sempre que
mes, mas as próprias coisas, são sinais das é tocada em algum ponto, da mesma forma
coisas.” E o conhecimento desses símbolos o universo, sendo tocado em um dos seus
é obtido mediante a arte cabalistica, que, extremos, vibra no extremo oposto. O ho­
elevando quem a pratica ao mundo supra- mem está situado no centro daqueles três
157
Cãpítulo nono - y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a e a t r a d i ç ã o m á g ic o -h e rm é + ic

mundos que, segundo a cabala e como que­ ceira é a magia religiosa ou cerimonial, vol­
riam também Pico e Reuchlin, são o mundo tada para manter sob controle e pôr em xe­
dos elementos, o mundo celeste e o mundo que todas as formas demoníacas. A magia
inteligível, e, como microcosmo, conhece a natural e a magia celeste eram chamadas de
força espiritual que perpassa e une o mun­ magia branca, enquanto que a magia reli­
do, utilizando-se dela para realizar ações giosa ou cerimonial era conhecida por ma­
miraculosas. gia negra ou magia negromântica.
Eis, portanto, a magia, que é “ a ciên­ Ademais, para Agripa, “ o princípio e
cia mais perfeita” , pois, com efeito, torna o a chave de todas as operações da magia”
homem senhor das forças ocultas que agem consistiam na dignificação do homem, “ dig-
no universo. E a ciência do mago diz respei­ nificação” pela qual o homem se afasta da
to tanto ao mundo dos elementos como ao carne e dos sentidos e, através de súbita ilu­
mundo celeste e ao mundo inteligível. Con- minação, eleva-se àquela virtude divina que
seqüentemente, Agripa fala de três tipos de o faz conhecer as operações secretas. E essa
magia. A primeira é a magia natural, que sabedoria revelada deve permanecer secre­
realiza ações prodigiosas servindo-se do co­ ta: o mago tem a obrigação de não revelar a
nhecimento das forças ocultas que animam ninguém “ nem o lugar, nem o tempo, nem a
os corpos materiais. A segunda é a magia meta perseguida” . O sábio iluminado não
celeste, que é o conhecimento e o controle deve se confundir com os tolos e, por isso,
das influências exercidas pelos astros. A ter­ escreve Agripa, “ usamos um estilo capaz de

í * ' H E N R I C I ^
CORNELII AGRI P-
PAEA» NETTESHEYMA'CONEIL1IS
SArchiuisInditiaráfacratC AE-
S A R E A E Maieftatis:Dc
O C C V L T A PHI -
1 OSOPHIA
LibriTrcs.
5*

/ r. i nnspu m tl.i obra


1), tKCiilu plulosophi.i de 1510,
NiMrílpfmiíi*^«0!ÍH0rtrfMr!«Kr,
fctMiur. . um .i im a g e m do autor.
M ttihai X. Vaia C.orncho Agripa a magia
e a "eiãneia num perfeita";
C*m u n a C ífjrrx M.sieflahi j t irienmum. ela. eum efeito,
taiau n homem senhor das potências
r m (iihtiifiis pite agem no universo.
158
Segunda parte - -\ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

confundir o tolo, mas que é facilmente com­ cos. Trata-se de um ideal de saber diferente
preendido pela mente iluminada” . e bem distante do ideal da ciência moderna.
O ideal do saber de Agripa não é, em Durante os últimos anos de sua vida, Agripa
absoluto, o de um saber público, claro e condenou o saber e exaltou a fé, no De
controlável. É o ideal de um saber privado, vanitate et incertitudine scientiarum (1527).
oculto e que deve ser ocultado, sem um M as, dois anos antes de sua morte, fez
método e uma linguagem rigorosos e públi­ republicar o seu De occulta philosophia.

III. O p ^ o g i^ a m a ia + ^ o q u ím ic o
d e. T -^ a ^ a c e ls o

• A mais importante figura de mago é certamente a de Paracelso (1493-1541).


Theophrast Bombast von Hohenheim, filho de um médico e ele próprio médico,
mudou seu nome para o de Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus Paracelsus:
Paracelso, uma vez que se considerava maior do que o médico romano Celso. Em
1514 o encontramos em atividade nas minas e nas oficinas metalúrgicas de
Sigismundo Fugger, banqueiro alemão, também alquimista.
Paracelso rompeu com a tradição do ensino médico: "Lutero
Paracelso: da química", queimou os livros de Galeno e de Avicena; conce­
o corpo humano beu a alquimia como ciência da transformação de metais brutos
como sistema encontráveis na natureza em produtos finitos úteis para a huma­
químico nidade; rejeitou a teoria médica dos humores; e propôs a teoria
ea gênese pela qual o corpo humano é um sistema químico em que desem­
da iatroquím ica penham papel fundamental os dois princípios tradicionais dos
^§1 alquimistas, o enxofre e o mercúrio, aos quais Paracelso acres­
centou o sal.
Paracelso foi da opinião de que as doenças se originam do desequilíbrio des­
tes princípios químicos e não da desarmonia dos humores de que falam os galênicos.
Por conseguinte, a saúde deve ser restabelecida por meio do auxílio de remédios
de natureza mineral. Foi assim que nasceu a iatroquímica, que teve também su­
cessos - e hoje compreendemos sua razão - como quando se administraram sais
de ferro aos doentes pnêmicos.
Em suma, o corpo como sistema químico e as doenças como processos especí­
ficos para os quais funcionam remédios igualmente específicos são as duas idéias
que no futuro mostrarão toda a sua fecundidade.

mudou seu nome para o de Paracelso, já que


4- se considerava maior do que o médico ro­
dc\ m a g ia
mano Celso. Em 1514 atuava nas minas e nas
à m e d ic in a n a t u r a l oficinas metalúrgicas de Sigismundo Fugger,
o banqueiro alemão que também era alqui­
mista. Estudante de medicina em Basiléia,
A mais importante figura de mago é depois de formado aí ensinou durante dois
certamente a de Paracelso (1493-1541). anos.
Theophrast Bombast von Hohenheim, filho A ruptura de Paracelso com a tradição
de um médico e médico ele também, mudou já se mostrava evidente em suas aulas: mi­
seu nome para o de Philippus Aureolus Theo­ nistrava os cursos em alemão ao invés de
phrastus Bombastus Paracelsus. Ou seja, usar o latim; convidava os farmacêuticos e
159
Capítulo nono - A r e v o lu ç ã o c ie n tífic a e a t r a d i ç ã o m á g ic o - k e r m é t ic a

os barbeiros-cirurgiões de Basiléia para ou­ Na medicina de Paracelso misturam-


vir suas lições; e, assim como Lutero quei­ se elementos teológicos, filosóficos, astro­
mara a bula papal, Paracelso inaugurou seu lógicos e alquímicos, mas o mais importan­
curso queimando os livros das duas aucto- te — e importante pelo que deveria ocorrer
ritates no campo médico, isto é, as obras de em seguida — é que do cadinho de idéias de
Galeno e de Avicena, sendo por isso cha­ Paracelso emergiu o programa de pesquisas
mado “ o Lutero da química” . Paracelso centrado na idéia de que o corpo humano é
também foi grande viajante, e foi grande um sistema químico. A passagem de um sis­
sua fama e ferozes as polêmicas que favo­ tema de idéias para outro não é como um
receu, procurou ou nas quais se viu envol­ tiro de pistola; em geral, é uma passagem
vido. lenta e trabalhosa. Uma boa idéia precisa
Para Paracelso, a alquimia era a ciên­ de tempo para crescer e se afirmar. E, no
cia da transformação dos metais brutos en­ fim das contas, as idéias iatroquímicas de
contrados na natureza em produtos aca­ Paracelso revelaram-se mais fecundas e úteis
bados, úteis para a humanidade. Ele não para a ciência do que as constituídas pela
pensava que a alquimia pudesse produzir teoria dos humores. Paracelso considerava-
ouro ou prata; em sua opinião, a alquimia se um revolucionário que restaurava a dou­
era precisamente ciência de transformações. trina hipocrática em sua pureza. Para ele,
Interessado na magia natural, Paracelso os médicos galênicos “ estão completamen­
reestruturou a medicina. Rejeitando a idéia te na escuridão em relação aos grandes se­
de que a saúde ou a doença dependessem gredos da natureza, que me foram revela­
do equilíbrio ou da desordem dos quatro dos do alto nestes dias de graça” .
humores fundamentais, propôs a teoria pela Outra idéia interessante gerada pelo
qual o corpo humano é um sistema quí­ programa iatroquímico de Paracelso é a de
mico no qual desempenham papel funda­ que as doenças são processos muito especí­
mental os dois tradicionais princípios dos ficos, para as quais só funcionam remédios
alquimistas, isto é, o enxofre e o mercúrio, também específicos. Essa idéia também rom­
aos quais Paracelso acrescentou um tercei­ pia com a tradição, que sustentava e pro-
ro: o sal. O mercúrio é o princípio comum pugnava remédios considerados bons para
a todos os metais; o enxofre é o princípio todas as doenças e contendo muitos elemen­
da combustibilidade; o sal representa o tos. Paracelso defendia e praticava a aplica­
princípio da imutabilidade e da resistência ção de remédios específicos para doenças
ao fogo. As doenças surgem do desequilí­ específicas. Também nesse caso, embora a
brio desses princípios químicos e não da idéia da especificidade das doenças e dos
desarmonia dos humores, de que falam os remédios se revelasse posteriormente uma
galênicos. Desse modo, na opinião de Pa­ idéia vencedora, a justificação que Paracelso
racelso, a saúde pode ser restabelecida pe­ deu para ela não se mostrou igualmente ven­
la ajuda de remédios de natureza mineral e cedora. A doença é específica porque todo
não de natureza orgânica. (Não devemos es­ ente e toda coisa que existem na natureza
quecer que, ainda em 1618, a primeira far- são seres vivos autônomos, porque Deus,
macopéia londrina listava entre os remé­ que cria as coisas do nada, as cria como se­
dios a administrar por via oral a bílis, o mentes nas quais “ desde o início está ine­
sangue, os piolhos das árvores, as cristas rente a elas o objetivo do seu uso e da sua
de frango). função” . Toda coisa se desenvolve a partir
Foi assim que, com Paracelso, nasceu “ daquilo que ela é em si mesma” . E Para­
e se impôs a iatroquímica. E os iatroquími- celso chama de arqueu essa força que, no
cos, em certos casos, chegaram a alcançar interior das várias sementes, estimula o seu
grandes êxitos, muito embora as justifica­ crescimento. O arqueu é uma espécie de for­
ções de suas teorias, vistas com os olhos da ma aristotélica materializada, sendo o prin­
ciência moderna, apareçam-nos hoje bastan­ cípio vital organizador da matéria. Paracelso
te fantasiosas. Assim, por exemplo, com compara sua ação à do verniz: “Nós fomos
base na idéia de que o ferro é associado ao entalhados por Deus e colocados nas três
planeta vermelho Marte e a Marte, deus da substâncias. Posteriormente, fomos enverni-
guerra coberto de sangue e de ferro, admi­ zados de vida.”
nistraram com sucesso sais de ferro a doen­ Como se vê, também no caso da idéia
tes anêmicos — e hoje conhecemos as ra­ — que, com o tempo, se revelaria cientifica­
zões científicas desse sucesso. mente fecunda — da especificidade das
160
Segunda parte - A fe v o lu ç ô o c ie n tí fic a

doenças e dos relativos remédios, a justifi­ de bons filhos (teorias controláveis). Para-
cação dessa idéia, do ponto de vista da ciên­ celso não deixou de ser mago. Sua magia,
cia moderna, está bem distante da ciência. porém, continha projetos cognoscitivos “po­
Como acontece freqüentemente na história sitivos” : sua iatroquímica pretende revelar
da ciência, também aqui uma idéia metafí­ os processos secretos da natureza, mas tam­
sica revela-se como a mãe má (incontrolável) bém pretende completá-los artificialmente.

n n
I V . T .* c s m agos italianos:
F é a c a s t o r o , ( S a p d a n o c Delia Do Ha

• De família nobre, Jerônimo Fracastoro (1478-1553) foi médico, astrônomo e


poeta.
Na obra De sympathia et antipathia Fracastoro defende a influência recípro­
ca das coisas; sustenta a atração das coisas semelhantes e a rejeição das desse­
melhantes; e afirma que são fluxos de átomos que estabelecem as relações entre
as coisas, motivo pelo qual nenhuma ação pode ter lugar sem contato.
De 1530 é o poema Syphylis sive morbus Gallicus: aqui Fra­
Fracastoro: castoro é o primeiro a usar o termo "sífilis", descrevendo a peste
a teoria e o tratamento da doença por meio do mercúrio.
do contágio De 1546 é a obra-prima de Fracastoro, o De contagione,
e o nascimento onde são descritos três modos de infecção: por contato direto,
da por "estímulos" (por exemplo, por meio de roupas), e a distân­
epidemiologia cia (como no caso da varíola e da peste).
->$1 A obra de Fracastoro é considerada de extraordinária mo­
dernidade. Naquela época não era conhecida a existência de
microorganismos, e Fracastoro falava porém de "seminaria", as sementes da do­
ença que, invisíveis, se multiplicam rapidamente. É por isso que Fracastoro é con­
siderado o fundador da epidemiologia.

• Outro médico mago que não devemos esquecer é Jerônimo Cardano (1501­
1576). Foi autor de um tratado de álgebra, Ars Magna (1545), onde expõe o méto­
do resolutivo das equações de terceiro grau, descoberto na ver­
dade por seu rival Tartaglia.
Cardano: Já matemático famoso, treze anos depois de Ars Magna,
autor de obras Cardano publica um livro sobre metoposcopia, ou seja, sobre a
de matemática interpretação das rugas da fronte. Seu De subtilitate constituiu
e de
metoposcopia uma espécie de "enciclopédia doméstica" (da qual é possível vir
^§2 a saber como se selecionam os fungos, como se recuperam os
navios afundados, como se originam as montanhas, como é feita
a junção universal conhecida como "junta cardânica" etc.).
Um documento excepcional é a autobiografia De vita própria liber (1575).
Cardano também é autor de um livrinho de preceitos para seus filhos, um
dos quais será justiçado por assassínio, livrinho chamado: Praeceptorum filiis
liber.

Delia Porta: • Experiente em ótica, além da magia, foi o napolitano


experiente Giambattista Delia Porta (1535-1615).
em ótica Foi autor do De refractione e de outra afortunada obra:
e magia natural Magia naturalis sive de miraculis rerum naturalium (1558), em
^§3 que a magia natural é vista como a perfeição da sabedoria.
161
Capítulo nono - y\ revolução científico e a tradição mágico-kermética

A Magia naturalis de Delia Porta teve sucesso estrepitoso: basta pensar nas
23 edições do original latino e nas traduções italiana, francesa, espanhola, holan­
desa e também árabe. Eis alguns dos títulos dos 23 livros da obra, verdadeira e
própria enciclopédia: Cruzamento dos animais', Métodos para produzir novas plan­
tas; As distilações; Os ungüentos; O tratamento do ferro; A caça; A cosmética fe­
minina.

1 jJ e e ô n im o F r a c a s to ^ O y descreve três modos de infecção: por con­


tato direto, por “ estímulo” (através do ves­
j-u n d ad o t 1 tuário, por exemplo) e a distância (como
d a e p id e m io lo g ia ocorria, era sua opinião, com a varíola ou
a peste). É dentro de uma visão filosófica
(substancialmente empedocleana) que Fra­
Jerônimo Fracastoro (1478-1553) foi castoro desenvolve a sua obra, considera­
médico, astrônomo e poeta. De família no­ da “ de estupenda modernidade, porque,
bre, viveu sempre em uma vila de sua pro­ embora não sendo conhecida a existência
priedade em Verona. Estudando em Pádua, de micróbios naquela época, Fracastoro fa­
conheceu Copérnico, de quem foi amigo. Na lou de ‘seminais’, as sementes das doenças,
obra De sympathia et antipathia, Fracastoro que se multiplicam e se propagam rapida­
defende a influência recíproca das coisas, mente. Será o desenvolvimento da ciência
sustenta a atração entre as coisas semelhan­ futura que fará com que Fracastoro pudes­
tes e a repulsa entre as dessemelhantes e, se ser considerado o fundador da epidemio­
em sua opinião, são fluxos de átomos que logia” (D. Guthrie).
estabelecem as relações entre as coisas, de
modo que nenhuma ação pode se verificar
sem contato.
Em 1495, quando Carlos VIII, rei da
França, sitiou a cidade de Nápoles, mani­
festou-se nova e terrível doença: a sífilis.
Dizia-se que a doença fora levada à Espa­
nha por Colombo e que os espanhóis leva­
ram-na depois para Nápoles. Em seguida,
os espanhóis de Nápoles a teriam transmi­
tido aos franceses, que chamaram a doen­
ça de “ napolitana” , ao passo que, para os
espanhóis, ela era o “ mal francês” . O nome
“ sífilis” foi usado pela primeira vez por
Fracastoro, quando, em 1530, publicou o
poema Sypbylis sive morbus Gallicus. Sí-
filo, pastor mitológico, tendo provocado
a ira dos deuses, foi atacado por uma doen­
ça contagiosa e repugnante. O poema não
tem uma trama propriamente dita: a fi­
gura de Sífilo é apenas um pretexto útil a
Fracastoro para descrever a sífilis e o tra­
tamento da doença por meio de mercúrio e
guáiaco ou lenho sagrado, um remédio
importado da América juntamente com a
doença.
Fracastoro não se ocupou só com a
sífilis; conseguiu identificar também o tifo
petequial. E, em 1546, publicou a sua I c r ò iu n iii < itriLnin ; / ' ) ( ) / -
obra-prima médica, o De contagione, que ju l um i /os muis rtuintihhl:is uhl^ns ihl RcihisccnCit.
162
iSegunda parte - y \ i*e v o !u ç ã o cieo+í(iccs

2 JJerômmo (Z-arc\c\v\o, rece estar ao lado do outro excepcional do­


cumento que é a autobiografia de Benvenuto
um m a g o q u e foi m&cjico Cellini.
e m a t e m á t ic o Para se ter uma idéia, eis alguns tre­
chos dessa célebre autobiografia: “ Dedi-
quei-me durante muitos anos a ambos os
Outro médico-mago que devemos re­ jogos: ao xadrez por mais de quarenta, e
cordar é Jerônimo Cardano. Nascido em aos dados durante cerca de vinte e cinco
Pavia em 1501, professor de medicina em anos. E, durante tantos anos, não me en­
Pádua e Milão, morreu em Roma em 1576. vergonho de dizê-lo, jogava todo dia.” E
Autor de uma autobiografia (De vita pró­ informa ter dedicado um livro ao xadrez,
pria), deixou-nos vários escritos, entre eles no qual, declarava ele, “ descobri muitos
alguns de maior destaque: De subtilitate problemas notáveis” . Substancialmente
(1547), De rerum varietate (1556) e Arca­ misantropo, confessa: “ E, se olho para a
ria aeternitatis. Cardano foi um escritor alma, pergunto-me: que animal é mais
muito fecundo, como testemunha a Ope­ malvado, enganador e pérfido do que o
ra omnia em dez volumes, publicados um homem?” Depois da execução do filho,
após o outro. Em seu tratado de álgebra Cardano não encontra mais paz, vê ini­
Ars Magna (1545), ele expõe o método de migos e conjuras por toda parte e não con­
resolução das equações de terceiro grau, segue mais dormir: “ Em 1560, lá pelo mês
na verdade descoberto por seu rival Tar- de maio, em virtude da dor pela morte do
taglia. meu filho, pouco a pouco eu vinha per-
Matemático famoso, treze anos de­
pois da Ars Magna, Cardano publicou um
livro de natureza completamente diferente
sobre a metoposcopia, isto é, sobre a inter­
pretação das rugas da fronte. Sua obra De H 1 E R O N V M I
subtilitate foi muito popular, sendo defi­
nida por um estudioso contemporâneo
(Douglas Guthrie) como uma espécie de
C A R D A NI
M E D IO L A N E N S IS
“ enciclopédia doméstica” , onde é possível PH1LOSOPH1 A C M ED I C l
encontrar de tudo um pouco: como mar­ CELEBERR1MI
car as roupas de casa, como recuperar os O P £ R V M

navios afundados, como selecionar os co­ T O M V S TERT1VS.


gumelos, a origem das montanhas, a sina­ F H Y S I C A
lização por meio de tochas e a articulação C O N T I N T O R P M H V tV S TO M t S E R l l M
JaJrx T/lmUrum txlnbn.
universal conhecida como “ junta cardâ-
nica” .
Sua autobiografia é um livro que se lê
com prazer ainda nos dias de hoje. Carda­
no apresenta-se a si mesmo como homem
excepcional, com poderes sobrenaturais
que o colocam acima dos simples mor­
tais. E apresenta os acontecimentos de sua
vida sempre acompanhados do miraculoso
e do extraordinário. Para ele, são impor­
tantes os sonhos e outros sinais premoni­ LV C D V N I,
tórios. Sumptibus Io A N N IS A n TO N II H v r.V tT A N .
8t Marci Antonii Ravavd.
A infância infeliz e a juventude difícil, DC. LX l / l
a batalha contra a pobreza, a triste experiên­ CVM P 1V 1 1 1 e l ü AtCIS.

cia de médico do interior, o acesso à univer­


sidade, a glória, as descobertas matemáti­
cas, a celebridade como médico, a execução
hrontispício do terceiro tomo
do filho condenado como assassino, a ve­ da Opera omnia (l.ugdnni, 1663)
lhice como protegido do papa em Roma, de Jerônimo Cardano.
todas essas coisas Cardano descreve no De Neste tomo estão contidas as obras:
vita própria liber (1575), um livro que me­ De rerum varietate e De subtilitate.
Capítulo nono - A re v o lu ç ão i e n + í f i c a e cx f p a d i ç ã o m a 0Í c o - h e T m é + i c a

dendo o sono (...)• Rezei então a Deus para qualificará Paracelso como um monstro que
que tivesse misericórdia de mim: com efei­ acasala fantasmas e Agripa como um bufão
to, corria o risco de que aquele não dor­ trivial.
mir sem interrupção me levasse à morte
ou à loucura (...)• Supliquei-lhe então que
me fizesse morrer, coisa que é concedida a
todos os homens, e fui estender-me sobre 3 Cãiamb>at+ista D e l i a P o r t a ,
o leito” . Tendo adormecido, Cardano ou­ ervtre ó t ic a e m a g ia
viu uma voz que lhe dizia para levar à boca
a esmeralda que carregava ao pescoço. Ao
fazê-lo, logo a dor passou, bem como a O napolitano Giambattista Delia Por­
penosa recordação. E isso acontecia sem­ ta (1535-1615) era um cultor de ótica, au­
pre que levava a esmeralda à boca. Mas, tor de De refractione, obra dedicada preci­
relata, “ quando comia ou dava aulas, não samente à ótica, e de um livro que ficou
podendo usufruir da ajuda da esmeralda, muito famoso, a Magia naturalis sive de
retorcia-me em dores a ponto de suar mor­ miraculis rerum naturalium (1558). Nesse
talmente.” livro ele distingue a magia diabólica (a ma­
Cardano conta ainda que aprendeu gia que se serve das ações dos espíritos imun­
miraculosamente o latim, o grego, o fran­ dos) da magia natural, que é a perfeição da
cês e o espanhol. Diz que um zumbido nos sabedoria, o ponto mais alto da filosofia
ouvidos o advertia se alguém estivesse natural.
tramando contra ele. E escreve ainda: “En­ Pode-se ter uma idéia do que era essa
tre os acontecimentos naturais de que fui obra — que teve vinte e três edições do ori­
testemunha, o primeiro e mais excepcio­ ginal latino, dez traduções italianas, oito
nal foi o de ter nascido nesta nossa época, na francesas e outras traduções espanholas,
qual pela primeira vez se conheceu todo o holandesas e até árabes — com base nos tí­
mundo.” tulos dos seus vinte livros: 1) Causas das
Célebre como médico, Cardano, em coisas; 2) Cruzamento dos animais; 3) M o­
1552, chegou a ser até mesmo chamado para dos de produzir novas plantas; 4) A admi­
consulta na Escócia, a fim de curar o arce­ nistração da casa; 5) Transformação dos
bispo Hamilton que, após os tratamentos, metais; 6 ) Adulteração das pedras precio­
ficou curado. Durante a sua viagem para a sas; 7) As maravilhas do ímã; 8) Experiên­
Escócia, Cardano conheceu em Paris o mé­ cias médicas; 9) Cosmética feminina; 10) As
dico Jean Fernel (que seria criticado por destilações; 11) Os ungüentos; 12) O fogo
Harvey por causa de sua teoria dos espíri­ artificial; 13) O tratamento do ferro; 14) A
tos do organismo) e o anatomista Sylvius. culinária; 15) A caça; 16) Os cifrários; 17)
Em Zurique, encontrou-se com o naturalis­ As imagens óticas; 18) A mecânica; 19)
ta Conrad Genser. Em Londres, conheceu o Aerologia (De pneumaticis); 20) Diversos
rei Eduardo VI. (Chãos). Em suma, uma verdadeira enciclo­
Cardano também é autor de um livrete pédia.
de preceitos para os seus filhos, um dos Na realidade, Delia Porta “ preferia
quais, como dissemos, seria executado por seguir sua paixão pelos conhecimentos,
assassínio. Nesse Praeceptorum filiis liber mas não se esquecendo nunca de que es­
encontramos conselhos como os seguintes: tava diante de um campo de paixões e in­
“ Não faleis aos outros de vós mesmos, de teresses, advertido que era pela tradição,
vossos filhos, de vossas mulheres. Não vos que lhe fornecia estímulos para suas pes­
acompanheis de estranhos pelas vias públi­ quisas e para a sociedade que o cercava,
cas. Se estiverdes falando com um homem bem como pelos consensos, as expectati­
mau ou desonesto, não o olheis na face, mas vas e as desconfianças que sua obra susci­
nas mãos.” tava (...). Certamente, ao fazer ciência, ele
Bacon atacará o ideal de saber defen­ tinha em mente muitas coisas: o útil e o
dido e professado por Cardano (um saber supérfluo, o absolutamente verdadeiro e
de iniciados e cheio de maravilhas e mila­ o vagamente provável, o sucesso de pú­
gres). Em nome de um saber público, claro blico e o tribunal da Inquisição, a tradi­
e que cresce por colaboração, Bacon falará ção mágica e os experimentos de Arqui-
de Cardano como de um esforçado cons­ medes (...). Na síntese racional operada
trutor de teias de aranha; da mesma forma pela ciência moderna, não encontraremos
........... Segunda patte - jA r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

mais muitas dessas referências (...)• Delia tudo o que aconteceu nesse meio tempo,
Porta, portanto, demorou-se no palco da particularmente pelo que foi a caminhada
nossa vida, das nossas paixões e da nossa da ciência depois dele. O que não faz com
morte. Isso fez com que, durante séculos, que sua obra não possa mais suscitar nos­
ele parecesse um cientista parado no tem­ sa curiosidade, também por seus aspectos
po. E esse juízo se tornou irreversível por arcaicos” (L. Muraro).
íS a p ítu lo d e c i m o

D e íS o p em ico a e r

I. /\)ic o la u (Zopé.rv\\c.o -------------------


e o n o v o p a r a d ig m a d a t e o r ia k e lio c ê n tr ic a

• A teoria astronômica de Copérnico comportou autêntica "revolução" no


mundo das idéias que o homem tinha há séculos sobre o universo, sobre sua rela­
ção com ele e sobre seu lugar nele.
E devemos logo esclarecer que Copérnico - diversamente de A "revolucionária"
Osiander e também de tudo o que Belarmino sustentará - deu teoria
uma interpretação realista da própria teoria. Com efeito, Co­ heliocêntrica
pérnico escreve: "Todas as esferas giram em torno do sol como interpretada
seu ponto central e portanto o centro do universo está dentro realisticamente
do sol [...]. O movimento da terra sozinha é portanto suficiente pelo
para explicar todas as desigualdades que aparecem no céu". "neoplatônico"
E esta interpretação realista da teoria heliocêntrica encon­ Copérnico
tra sólida base na metafísica de cunho platônico e neoplatônico - » § 1 e 3
que sustenta o empreendimento científico de Copérnico. De fato,
se olharmos os céus a partir da perspectiva neoplatônica, os cálculos que especifi­
cam posições e movimentos dos corpos celestes não são simplesmente apetrechos
úteis para fazer previsões, mas revelam as estruturas imutáveis que o Deus que
geometriza imprimiu no mundo.

• Nicolau Copérnico (1473-1543) nasce em Torun - cidadezi- copérnico:


nha polonesa às margens do Vístula estuda primeiro em vida e obras
Cracóvia e sucessivamente em Bolonha, Pádua e Ferrara, onde se §2
laureia em direito canônico (1503). Voltando à Polônia, leva a
termo - entre compromissos sociais e religiosos - sua obra mais célebre: De
revolutionibus orbium coelestium.
Desta obra sai, em 1540, com o título de Narratio prima, um resumo prepara­
do por Georg Joachim Lauschen, dito Rheticus (por causa de sua proveniência da
antiga província chamada Rhetia pelos romanos).

• Da publicação do manuscrito de Copérnico ocupou-se o


teólogo protestante André Osiander (1498-1552), o qual fez pre­ Osiander
ceder o texto por um prefácio anônimo em que se propõe uma oferece uma
interpretação instrumentalista e não realista da teoria coper- interpretação
nicana. A teoria de Copérnico, em outras palavras, seria apenas instrumentalista
um instrumento útil para fazer previsões e não uma descrição do De
revolutionibus
verdadeira da realidade. de Copérnico
Copérnico morre dia 24 de maio de 1543. Conta-se o fato de ^§2
que, justamente no dia de sua morte, Copérnico tenha recebido
a primeira cópia impressa do De revolutionibus.
166
Segunda parte - y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

• Realista e neoplatônico, convicto da novidade revolucionária da própria


teoria, Copérnico tinha percebido o contraste que poderia explodir entre certas
interpretações de determinadas passagens da Bíblia e a teoria heliocêntrica. Ele,
todavia, não podia aceitara "monstruosidade" representada pela
A teoria teoria ptolomaica. E assim veio a abraçar a idéia de que é a terra
heliocêntrica que se move, idéia já defendida na antiguidade por Iceta de
entre tradição Siracusa (séc. V a.C.), pelo pitagórico Filolau (séc. V a.C.), por
e revolução Heráclides Pôntico e Ecfanto o pitagórico (séc. IV a.C.).
$ 4- 6 N 0 primeiro livro do De revolutionibus Copérnico defende
teses como estas: 1) o mundo deve ser esférico; 2) a terra deve ser
esférica; 3) a terra com a água forma uma única esfera; 4) o movimento dos corpos
celestes é uniforme, circular e perpétuo, ou então composto por movimentos cir­
culares; 5) a terra se move em um círculo orbital em torno do centro, girando
também sobre seu eixo; 6) a dimensão dos céus, se comparada com a dimensão da
terra, é enorme.
São estas as idéias que revolucionam o velho sistema do mundo. Copérnico
assumiu no novo mundo diversas peças do velho mundo (a forma perfeita é a
esférica; o movimento perfeito e natural é o circular; os planetas não se movem
em órbitas, mas são transportados por esferas cristalinas que giram e que têm
uma realidade material etc.) e, todavia, sua teoria foi revolucionária, pois rompia
com uma tradição mais que milenar; Copérnico propôs um paradigma alternativo
que, embora nos inícios parecesse não levar muitas vantagens, continha toda uma
série de previsões (semelhança entre os planetas e a terra, as fases de Vênus, um
universo maior etc.) que sucessivamente foram confirmadas por Galileu.

1 O si grv ifica d o filo só fic o tituindo-as pelas órbitas planetárias elíp­


ticas. E as novidades sucediam-se rapida­
d a r e v o lu ç ã o c o p & r-m can a
mente uma à outra: a abertura do mundo
fechado, embora vasto, de Copérnico em
um universo infinito; a identificação de
“ Enquanto a terra esteve parada, tam­ um elemento dinâmico no movimento dos
bém a astronomia esteve parada” — assim corpos celestes, não mais considerados
falou Georg Lichtenberg (1749-1799) a pro­ copernicamente imóveis, em virtude de sua
pósito de Copérnico. Na realidade, tendo própria forma esférica. No curso de um sé­
situado o sol ao invés da terra no centro culo e meio, o sistema de Newton, que con­
do mundo, e tendo afirmado que é a terra clui uma etapa daquela caminhada que
que gira ao redor do sol e não o contrário, Copérnico fez a astronomia retomar, já tem
Copérnico recolocou em movimento a pes­ muito pouco do sistema copernicano em
quisa astronômica, que adquiriu tal velo­ termos de conteúdo, talvez nada mais do
cidade que, quando Newton, cento e cin- que o heliocentrismo” (F. Barone). Natu­
qüenta anos depois da obra de Copérnico, ralmente, “ o primeiro significado da revo­
deu à física aquela forma que hoje conhe­ lução copernicana é (...) o de uma reforma
cemos como “ física clássica” , já quase nada das concepções fundamentais da astrono­
restara das concepções de Copérnico, à mia” (Th. S. Kuhn), mas o alcance do De
exceção da idéia de que o sol é o centro do revolutionibus de Copérnico vai muito mais
universo. Com efeito, quando Kepler — além de uma reforma técnica da astrono­
que, no entanto, proclamava-se coperni- mia. Deslocando a terra do centro do uni­
cano — publicou, em 1609, a Astronomia verso, Copérnico mudou também o lugar
nova, ainda não haviam passado sessenta do homem no cosmo. A revolução a s­
anos da publicação do De revolutionibus tronômica implicou também uma revolu­
de Copérnico, “ e, no entanto, o avanço da ção filosófica: “ Elomens que acreditavam
astronomia já havia deixado na escuridão que sua morada terrestre fosse apenas um
do passado as órbitas circulares de que tra­ planeta, girando cegamente em torno de
ta a obra de toda a vida de Copérnico, subs­ uma dentre as bilhões de estrelas, começa­
167
Cãpítlilo d é c it T lO - 1)c■ ÇTopámico a Keplej*

vam a avaliar a sua posição no esquema nos parece mais distante da nossa ciência
cósmico de modo bem diferente dos seus que a visão de mundo de Nicolau Copér-
antecessores, que viam a terra como o úni­ nico” . No entanto, sem a concepção de
co centro focal da criação divina” (Th. S. Copérnico, “ a nossa ciência nunca teria
Kuhn). existido” (A. Koyré). Como também não
Ao deslocar a posição da terra, Co- teria existido, para usar as palavras de An­
pérnico também retirou o homem do cen­ tônio Banfi, “ o homem copernicano” , isto
tro do universo. Em seu conhecido livro é, o homem “ que se libertou da ilusão de
A revolução copernicana (1957), escreve estar no centro do universo e, com ela, li­
ainda Kuhn: “ Sua doutrina planetária e a bertou-se também de muitos outros mitos
concepção a ela ligada, de um universo com os quais havia tecido seu saber” (F.
centrado no sol, foram instrumentos da Barone). Esse é o sentido pelo qual Copér­
passagem da sociedade medieval para a mo­ nico, ainda hoje, representa a inovação ra­
derna sociedade ocidental, enquanto atin­ dical e revolucionária. Com efeito, mesmo
giam (...) a relação do homem com o uni­ nos dias de hoje, ainda é comum usar a
verso e com Deus. Desenvolvida com uma expressão “ revolução copernicana” para
revisão estritamente técnica, de alto nível qualificar uma grande e significativa mu­
matemático, da astronomia clássica, a teo­ dança. E não devemos nos esquecer de que,
ria copernicana tornou-se um centro focal quando Kant avaliava a profunda transfor­
das terríveis controvérsias no campo reli­ mação que ele próprio produziu no âmbito
gioso, filosófico e das doutrinas sociais da teoria do conhecimento, acabou falan­
que, nos dois séculos posteriores à desco­ do dela como de uma “ revolução coper­
berta da América, fixaram a orientação do nicana” .
pensamento europeu.” Em suma, a revo­
lução copernicana foi também uma revo­
lução no mundo das idéias, a transforma­
. A m te e p e e + a çã o
ção de idéias inveteradas que o homem
tinha do universo, de sua relação com ele e ir\s+eumer\talis+a d a o b r a
do seu lugar nele. Nos dias de hoje, “ nada d e t S o p é r n ic o

Nicolau Copérnico (Niklas Kopper-


nigk) nasceu em Torun, uma cidadezinha
polonesa às margens do Vístula, em 19 de
fevereiro de 1473. Estudou primeiro em Cra-
cóvia (onde aprendeu geometria, trigo-
nometria, cálculo astronômico e os funda­
mentos teóricos da astronomia) e depois em
Bolonha, Pádua e Ferrara, onde se laureou
em direito canônico (1503). Passa ainda em
Pádua de 1503 a 1506 e depois volta para a
Polônia, onde, entre empenhos sociais e re­
ligiosos, não descura os estudos de astro­
nomia e por volta de 1532 sua obra mais
célebre, as Revoluções dos corpos celestes
(De revolutionibus orbium coelestium), é
completada. Nesse meio tempo a fama de
Copérnico ultrapassara as fronteiras da Po­
lônia. Em 1° de novembro de 1536, uma car­
ta do arcebispo de Cápua, Nicolau Schõn-
berg (falecido em 1537) solicita a Copérnico
o envio de uma cópia de sua obra, acrescen­
tando: “ Suplico-te calorosamente que dês
a conhecer tua descoberta aos estudiosos.”
Como se sabe, Copérnico costumava dizer
que guardava seu segredo “como os segui­
dores de Pitágoras” e que mantinha seu li-
168
Segunda parte - A r e v o l u ç ã o c i e n + í f ic a

vro “ fechado no esconderijo” . Entretanto, terra, portanto, é suficiente para explicar


em maio de 1538, chegou a Frombork, para todas as desigualdades que aparecem no
conhecer Copérnico e sua obra, o estudioso céu.” Copérnico morreu em 24 de maio de
Georg Joachim Lauschen (1516-1574) cha­ 1543 “por hemorragia, mas já há muito tem­
mado Rheticus por ser proveniente da anti­ po perdera a memória e a consciência” .
ga província que os romanos denominavam Conta-se que, no dia de sua morte, Copér­
de Rhetia. nico recebeu a primeira cópia publicada do
Professor da Universidade de Witten- De revolutionibus. Os despojos mortais de
berg, Rheticus conquistou a confiança de Copérnico foram sepultados na catedral de
Copérnico e, entusiasmado com as teorias Frombork.
do mestre, logo preparou um resumo delas,
que foi publicado em 1540, em Gdansk, e
no ano seguinte em Basiléia, sob o título de 3 CD e e a lis m o
Narratio prima. Rheticus (ou Rético) con­
segue convencer finalmente Copérnico a e o A) e o p la t o n is m o
publicar o seu De revolutionibus. E quem de (Do pérnttzo
tratou da impressão do manuscrito de Co­
pérnico foi o téologo protestante André
Osiander (Andreas Elosemann, 1498-1552), Alguns anos antes da publicação do
que, sem o consentimento do autor, prece­ De revolutionibus, Copérnico fizera circu­
deu o texto de um prefácio anônimo in­ lar entre pessoas amigas um breve resumo
titulado Ao leitor, sobre as hipóteses desta de sua obra, sob o título de Commenta-
obra. Nessa premissa, Osiander sustenta riolus. Entretanto, confessa o próprio Copér­
uma interpretação não realista, mas instru­ nico na carta dedicatória a Paulo III anexa­
mentalista, da teoria de Copérnico: “ E fun­ da ao De revolutionibus, “ minha longa
ção do astrônomo (...) elaborar, mediante hesitação e também minha resistência foram
uma observação diligente e hábil, a história vencidas por pessoas amigas (...uma das
dos movimentos celestes e, portanto, bus­ quais) repetidamente me estimulou e até me
car suas causas, ou então, já que não é pos­ solicitou a publicar esse livro, que perma­
sível de modo algum captar as causas ver­ necera em suspenso junto a mim não ape­
dadeiras, imaginar e inventar hipóteses nas por nove anos, mas por mais de três
quaisquer com base nas quais esses movi­ vezes nove anos (...). Eles me exortavam a
mentos, tanto em relação ao futuro como não mais negar ao patrimônio comum dos
ao passado, possam ser calculados com exa­ estudiosos de matemática a minha obra, por
tidão, em conformidade com os princípios causa de meus medos” .
da geometria. E o autor desta obra cumpriu Pois bem, a primeira coisa que não
egregiamente essas duas funções. Com efei­ deixaria Copérnico em paz era a novidade
to, não é necessário que essas hipóteses sejam de sua própria teoria heliocêntrica, tão nova
verdadeiras e nem mesmo verossímeis. Bas­ que, para muitos, não podia deixar de pa­
ta apenas o seguinte: que elas apresentem recer absurda.
cálculos conformes à observação.” Como ve­ Em segundo lugar, se isso ainda fosse
remos nas páginas dedicadas à controvérsia necessário, deve-se reafirmar que precisa­
entre o “ realista” Galileu e o “ instrumen­ mente na carta dedicatória emerge com cla­
talista” cardeal Belarmino, nem Giordano reza a concepção realista que Copérnico ti­
Bruno, nem Kepler, nem Galileu aceitaram nha de sua teoria. Afirma ele: “A função
a interpretação instrumentalista da teoria (do filósofo) é a de procurar a verdade em
copernicana, segundo a qual as teorias de todas as coisas até o limite concedido por
Copérnico não seriam descrições verdadei­ Deus à razão humana” e, por isso, “consi­
ras da realidade, mas apenas instrumentos dero (...) que as idéias absolutamente con­
úteis para efetuar previsões e dar explica­ trárias à verdade devem ser refutadas” . Por
ções das posições dos corpos celestes. E, outro lado, Copérnico se declara convenci­
antes que para os outros, a interpretação de do de que, com a publicação dos seus co­
Osiander era equivocada aos olhos do pró­ mentários, “ se poderia ver o véu do absur­
prio Copérnico, que escreve: “Todas as es­ do rasgado por claríssimas demonstrações” .
feras giram em torno do sol como seu pon­ Em duas palavras: dada a desastrosa situa­
to central. Portanto, o centro do universo ção em que se encontrava a astronomia de
está em torno do sol (...). O movimento da sua época, Copérnico estava em busca de
169
Capitulo décimo - TDe- t S o p é m ic o a K í ' p1í’

“ um sistema que respondesse com seguran­ 4 7^ si tu a ç ã o p r o b le m á t ic a


ça aos fenômenos” .
d a a s t r o n o m ia
Um terceiro ponto, que não pode ser
deixado de lado, é a metafísica de matriz p r é - c o p e r n ic a n a
platônica e neoplatônica que está por trás
do empreendimento científico de Copér-
nico. Realista e neoplatônico, persuadido da
Como sabemos, em Bolonha, Copér- novidade de sua própria teoria, Copérnico
nico foi discípulo de Domingos Maria Nova- não ignora o contraste que poderia ex­
ra, que era ligado à escola neoplatônica de plodir entre certas interpretações de deter­
Florença; estudara os neoplatônicos, entre minadas passagens da Bíblia e sua teoria
os quais Proclo, e, com este, acreditava na heliocêntrica. Mas passava a impressão que
matemática como a chave para a compreen­ poderia sair desse problema com poucas mas
são do universo. Na opinião dos neoplatôni­ agudas observações: “ Se porventura surgi­
cos, as propriedades matemáticas constituem rem desocupados que, embora totalmente
as características verdadeiras, imutáveis e ignorantes de matemática, se arroguem o
profundas, para além das aparências, das coi­ direito de julgar minha obra e, com base em
sas reais. Assim, olhando para os céus nu­ algum trecho da Escritura inabilmente in­
ma perspectiva neoplatônica, fica evidente terpretado segundo os seus interesses, ou­
que os cálculos que determinam posições e sarem criticar e combater este meu projeto,
movimentos dos corpos celestes não são pu­ eu não me ocuparei com eles: pelo contrá­
ros e simples instrumentos úteis, mas muito rio, desprezarei o seu juízo como temerá­
mais elementos reveladores daquelas estru­ rio.” A propósito, Copérnico apresentava
turas ordenadas e daquelas imutáveis sime­ o exemplo de Lactâncio: “ Com efeito, te­
trias impressas no mundo pelo Deus que nho conhecimento de que Lactâncio, escri­
geometriza. tor ilustre mas pouco versado em matemá­
Copérnico sustentava que os astrôno­ tica, se expressa em termos pueris sobre a
mos que o precederam, com os meios teó­ forma da terra, ridicularizando aqueles que
ricos que tinham à sua disposição, não es­ sustentavam que a terra tem a forma de uma
tavam em condições de compreender nem esfera. Assim, não devem se maravilhar os
mesmo a coisa mais importante, “vale di­ estudiosos se algum tipo semelhante fizer
zer, a forma do universo e a imutável si­ chacotas também sobre mim. A matemáti­
metria de suas partes” . O Deus do plato- ca é feita para os matemáticos. E, se eu não
nismo e dos neoplatônicos é um Deus que estiver errado, eles acharão que estes meus
geometriza: por isso, o universo é simples trabalhos trazem alguma contribuição tam­
e geometricamente ordenado. Conseqüen- bém para o governo da Igreja, da qual Vos­
temente, o pesquisador tem por função pe­ sa Santidade é agora o príncipe.” Nesse pon­
netrar nessa ordem e descohri-la, bem co­ to, Copérnico acena para a grande questão
mo suas estruturas simples e racionais e sua da reforma do calendário.
imutável simetria. E foi isso, na opinião Copérnico, portanto, com sua sensibi­
de Rheticus, o que fez o mestre Copérnico. lidade, acena para o eventual dissídio entre
“ Ora — escreve muito significativamente sua teoria heliocêntrica e trechos bíblicos.
Rheticus —, uma vez que vemos que me­ E o contorna com poucas mas penetrantes
diante este único movimento da terra en­ considerações. Estava longe de imaginar
contram explicação um número quase in­ que, apenas setenta anos depois de sua mor­
finito de fenômenos, por que não devemos te, um grande furacão se desencadearia em
atribuir a Deus, criador da natureza, a habi­ torno de sua teoria, um furacão que atingi­
lidade que observamos nos simples fabri­ ría seu apogeu com o drama de Galileu.
cantes de relógios? Eles põem todo cuidado Todavia, enquanto isso, Copérnico
em evitar em seus mecanismos rodas inú­ narra ao papa (Paulo III) como é que ele foi
teis ou tais que sua função possa ser reali­ induzido, contra a tradição, “ a conceber
zada de modo melhor por outra roda em alguns movimentos da terra” e “ a pensar
virtude de uma pequena mudança na po­ em outro método de cálculo para o movi­
sição. E o que podia induzir o meu mes­ mento das esferas” . Afirma Copérnico que
tre, que era um matemático, a não adotar isso aconteceu pelo fato de que, para ele,
a teoria conveniente do movimento do glo­ tornara-se claro “ que os matemáticos não
bo terrestre?” têm idéias claras em torno desses movimen­
170
Segunda patte - y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

tos” . E, além do fato de que Copérnico con­ da em outro, a teoria do Almagesto já ha­
sidera-os “ tão incertos sobre os movimen­ via proliferado em uma dezena de sistemas,
tos do sol e da lua que não conseguem nem todos “ ptolemaicos” , e o seu número au­
mesmo explicar e observar o comprimento mentava rapidamente com a multiplicação
constante do ano estacionai” , há ainda um dos astrônomos tecnicamente competen­
fato mais grave, o de que, “ ao determinar tes. A situação tornara-se desastrosamente
o movimento desses planetas e dos outros insuportável. No século XIII, Afonso X de­
cinco, eles não usam os mesmos princípios clarou que, se Deus o houvesse consulta­
nem as mesmas demonstrações adotadas do quando estava criando o universo, ele
para as revoluções dos movimentos apa­ teria podido dar-lhe bons conselhos. E Do­
rentes.” Assim, enquanto alguns usam o sis­ mingos M aria Novara expressou a idéia
tema aristotélico das esferas homocêntricas de que um sistema tão confuso como o pto­
(defendido, por exemplo, por Fracastoro e lemaico não podia, por natureza, ser ver­
seguidores), outros usam excêntricos e dadeiro. Copérnico, por seu turno, viu a
epiciclos. Desse modo, havia uma plura­ astronomia de sua época em um estado
lidade de teorias que não deixava ninguém monstruoso. Naturalmente, a crise do sis­
tranqüilo. tema ptolemaico se tornara mais aguda
M as não é só isso: enquanto os aristo- por causa de diversos fatores: as críticas
télicos não acertam em muitas previsões, dos medievais à cosmologia aristotélica,
“ não alcançando integralmente seus obje­ a afirmação do Neoplatonism o, a exi­
tivos” , os outros, os ptolemaicos, alcançam gência de reforma do calendário. No en­
maior sucesso em suas previsões, mas pa­ tanto, as maiores lacunas estavam nas
gando um preço muitíssimo elevado. Com previsões não confirmadas, apesar do ins­
efeito, nota Copérnico, eles “ foram (...) for­ trumental teórico crescer cancerosamente
çados a acrescentar muitas coisas, que pa­ sobre si mesmo, contrastando com as exi­
recem violar os princípios basilares da uni­ gências fundamentais e irrecusáveis da
formidade do movimento. Não estiveram metafísica neoplatônica do Deus que geo-
em condições de descobrir ou então dedu­ metriza. [T]
zir de tais meios a coisa mais importante,
ou seja, a forma do universo e a imutável
simetria de suas partes. Então aconteceu
com eles aquilo que acontece com um pin­
tor que toma mãos, pés, cabeça e os outros 5 ; A t e o r ia d e ( S o p é m ic o
membros de modelos diferentes e os dese­
nha de modo excelente, mas não em fun­
ção de um corpo singular; de sorte que, Estando a situação assim tão descon-
como todas essas partes não se harmoni­ juntada, Copérnico, como ele mesmo escre­
zam absolutamente entre si, surge um ser ve, “ tendo meditado longamente sobre essa
monstruoso ao invés de um homem. As­ incerteza da tradição matemática na deter­
sim, no curso da demonstração que cha­ minação dos movimentos do mundo das es­
mam de método, vê-se que esqueceram al­ feras, comecei a ficar perturbado pelo fato
go de indispensável ou então introduziram de que os filósofos não podiam se fixar em
algo de estranho ou irrelevante. O que cer­ nenhuma teoria segura do movimento do
tamente não lhes teria acontecido se hou­ mecanismo de um universo criado para nós
vessem se uniformizado com base em prin­ por um Deus que é bondade e ordem su­
cípios seguros. Com efeito, se as hipóteses prema, embora fizessem observações tão
por eles assumidas não estivessem erradas, acuradas no que se refere aos mínimos de­
tudo aquilo que delas deriva encontraria, talhes desse universo” . Atormentado por
sem qualquer dúvida, a sua confirmação.” tal problema, Copérnico, como ele próprio
A metafísica neoplatônica defende um conta, pôs-se a “ reler as obras dos filóso­
mundo simples, mas o sistema (ou “ os sis­ fos” , com a intenção de ver “ se algum de­
temas ptolemaicos” ) torna-se (ou se tor­ les havia pensado alguma vez que as esferas
nam) sempre mais complexo (ou comple­ do universo podiam se mover segundo mo­
xos). E o Neoplatonismo força Copérnico vimentos diferentes daqueles propostos pe­
a rejeitar o sistema ptolemaico. los professores de matemática nas escolas” .
A realidade é que, retocada aqui ou E descobre que Cícero registra a opinião
ali, mudada em um ponto ou m odifica­ de Iceta de Siracusa (séc. V a.C.) de que
171
Cãpítulo décimo - IX' <Sopémi<r-o a Keple r

era a terra que se movia. E descobre tam­ meu, mas ainda é um mundo fechado. A
bém que o pitagórico Filolau (séc. V a.C.), forma perfeita é a esférica e o movimento
Heráclides Pôntico e o pitagórico Ecfanto perfeito e natural é o circular. Os planetas
(séc. IV a.C.) pensavam que era a terra que não se movem em órbitas, sendo transpor­
girava. tados por esferas cristalinas que giram. As
Encorajado pelo fato de que, antes dele, esferas possuem realidade material. Butter-
outros já haviam defendido tal idéia, que field fala do “ conservadorismo de Copér­
parecia “ absurda” para a maioria, Copér- nico” .
nico começou “a pensar na mobilidade da Sem dúvida encontramos em Copér­
terra” . Sentindo-se seguro da verdade de nico todos os fragmentos do velho mundo
suas teorias, Copérnico decide então tornar que citamos e também traços da tradição
públicos seus pensamentos, não querendo hermética. Quem passa para um novo mun­
se subtrair “ ao juízo de ninguém” e nem do sempre leva para ele algo mais ou menos
duvidar que “ os matemáticos dotados de embaraçoso do velho mundo. Mas o mais
engenho e cultura concordem comigo, se importante é que o novo mundo já foi toca­
quiserem conhecer e apreciar, não superfi­ do e alcançado. E foi precisamente isso o
cialmente, mas em profundidade, já que é que aconteceu com Copérnico.
exatamente isso o que a filosofia exige, aqui­ Sua teoria “não era mais acurada do
lo que eu apresento nesta obra para demons­ que a de Ptolomeu e não introduzia nenhu­
trar tais coisas” . ma melhoria imediata no calendário” . En­
E no seu primeiro livro do De revolu- tretanto, foi revolucionária, rompendo com
tionibus, Copérnico defende as seguintes uma tradição mais do que milenar.
teses: Copérnico não chegou — e tinha meios
1 ) o mundo deve ser esférico; para fazê-lo — a melhorar ou remendar o
2 ) a terra deve ser esférica; sistema ptolomaico neste ou naquele pon­
3) com a água, a terra forma uma úni­ to, pois tal sistema se transformara em um
ca esfera; conjunto monstruoso de teorias que nada
4) o movimento dos corpos celestes é mais prometiam. Copérnico foi grande por­
uniforme, circular e perpétuo, ou então com­ que teve a coragem de mudar de caminho:
posto de movimentos circulares; propôs um paradigma ou uma grande teo­
5) a terra se move em um círculo orbital ria alternativa que, embora no princípio não
em torno de seu centro, girando também parecesse trazer muitas vantagens e até mes­
sobre seu eixo; mo não parecesse tampouco muito mais sim­
6) comparada com a dimensão da ter­ ples do que a de Ptolomeu (Ptolomeu tinha
ra, é enorme a vastidão dos céus. quarenta círculos ao passo que Copérnico
O capítulo 7 discute as razões pelas por fim foi forçado a propor trinta e seis
quais os antigos consideravam que a terra círculos), no entanto não tinha mais nada a
era imóvel no centro do mundo. A insufi­ ver com as eternas e insuperáveis dificulda­
ciência de tais razões é demonstrada no ca­ des do velho sistema (embora apresentasse
pítulo 8. O capítulo 9 discute se é possível outras — mas eram outras), além de conter
atribuir mais movimentos à terra e fala do toda uma série de previsões (semelhança
centro do universo. Por fim, o capítulo 10 é entre os planetas e a terra, as fases de Vênus,
dedicado à ordem das esferas celestes. um universo maior etc.), que mais tarde fo­
ram clam orosam ente confirm adas por
Galileu. O dado mais importante do traba­
lho de Copérnico é o de ter imposto ao
6 t S o p é m ic o mundo das idéias uma nova tradição de pen­
e a t e n s ã o e s s e n c ia l samento.
e n te e t r a d i ç ã o e r e v o lu ç ã o Copérnico morreu em 1543, mesmo
ano em que apareceu publicado o De revo-
lutionibus. E não demoraram a aparecer os
Copérnico subverteu todo o sistema ataques contra a nova teoria. Mas também
do mundo. No entanto, arrastou para o seu houve quem falou de Copérnico como “o
novo mundo muitos pedaços e diversas es­ segundo Ptolomeu” . Pouco a pouco, a idéia
truturas do velho mundo. O mundo de heliocêntrica abria caminho. A Narratio pri­
Copérnico não é um universo infinito. N a­ ma de Rheticus já vinha difundindo a teoria
turalmente, é bem maior do que o de Ptolo- copernicana antes de 1543. Em 1576, o as­
172
Segunda parte - y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

trônomo inglês Thomas Digges (aproxima­


damente 1546-1596) publicou uma popular
defesa da teoria copernicana, a qual exer­ ■ A so rte d o D e r e v o lu tio n ib u s .
ceu grande influência na Inglaterra, difun­ "Copérnico morreu em 1543, no mes­
mo ano em que foi publicado o De
dindo a idéia da mobilidade da terra não revolutionibus, e a tradição conta que
apenas entre os astrônomos. Também foi ele recebeu sobre o leito de morte a
copernicano Michael Maestlin (1550-1631), primeira cópia impressa da obra que
professor de astronomia na Universidade o empenhara a vida inteira.
de Tubinga; e teve Kepler como discípulo. O livro teve, portanto, de combater
Todavia, apesar desses e de outros suas batalhas sem poder contar com
adeptos, a teoria copernicana não ganhou a posterior ajuda do autor. Mas para
de imediato muitas aprovações, nem mes­
aquelas batalhas Copérnico tinha fa­
bricado uma arma quase ideal. Ele
mo entre os astrônomos, que adotaram o com efeito escrevera o livro de modo
sistema matemático copernicano, negando- que resultasse incompreensível a to­
lhe a veracidade física; ou seja, basicamente dos com exceção dos astrônomos eru­
seguiram o caminho apontado por Osiander. ditos de seu tempo. Fora de seu mun­
De todo modo, porém, Copérnico não foi do, o De revolutionibus produziu
rejeitado; a adoção dos cálculos coperni- inicialmente muito pouco fermento.
canos por parte de diversos astrônomos per­
Depois, quando começou a desenvol­
ver-se a máxima oposição leiga e ecle­
mitiu precisamente a infiltração da teoria siástica, grande parte dos mais emi­
copernicana nas fileiras de seus opositores. nentes astrônomos europeus, aos quais
E é a essa infiltração que se deve a progres­ se dirigia o livro, já admitiam que não
siva modificação da concepção inicial dos se podia deixar de lado um ou outro
astrônomos, para os quais a idéia do movi­ procedimento matemático de Copér­
mento da terra era simplesmente absurda. nico. Resultou portanto impossível
E entre os astrônomos, copernicanos nos
suprimir completamente a obra, tan­
to mais que se tratava de um livro
cálculos e anticopernicanos no que se refere impresso e não um manuscrito, como
ao sistema físico, encontrava-se Erasmus fora ao invés o caso da obra de Nico-
Reinhold (1511-1553), que prestou imenso lau Oresme e Buridano.
serviço ao copernicanismo. Com efeito, são Estivesse ou não nas intenções de seu
suas as Tabulae Prutenicae (1551) que, com­ autor, a vitória final do De revolu­
piladas com base nos cálculos de Copérnico, tionibus foi obtida por infiltração".
se transformariam em instrumento cada vez
Assim escreve Thomas S. Kuhn em A
revolução copernicana.
mais indispensável para a cultura astronô­
mica.
173
Capitulo décimo - T)a íS o p é m i c o a K e p le v

.... II. X y c k o B m k e : -
nem v e lk a d is tr ib u iç ã o p to le m a ic a ^

nem m o d e r n a in o v a ç ã o
iu t r o d u z t d a p e lo g r a u d e (S o p e m ic o ^

• Entre Copérnico e Kepler encontramos a figura do dinamarquês Tycho Brahe


(1546-1601), a grande auctoritas da astronomia da segunda metade do séc. XVI.
Protegido inicialmente por Frederico II da Dinamarca, na morte deste Brahe se
transferiu para Praga a serviço do imperador Rodolfo II. Sucessor de Brahe no
cargo de matemático imperial foi, em 1601, Kepler.
Autêntico virtuoso da observação, Brahe, estudando o movimento dos come­
tas, conseguiu demonstrar em 1577 que as esferas cristalinas da cosmologia tradi­
cional não existem: as esferas m ateriais- admitidas também por
T ych o B ra h e : Copérnico - são substituídas pelas órbitas, entendidas no sentido
n e m co m atual de trajetórias. Brahe sustenta além disso a idéia de que o
P to lo m e u cometa teria tido uma órbita "oval".
n e m co m Em todo caso, embora estivesse persuadido de que o siste­
C o p é r n ic o ma ptolomaico "não era suficientemente coerente", Brahe con­
- > § 1-2
trariou também "a moderna inovação introduzida pelo grande
Copérnico". Não é verdade que a terra se move: com efeito, ar­
gumentava Brahe, se fosse verdade que a terra gira do Ocidente para o Oriente,
então o trajeto de uma bola, disparada para o poente por um canhão, deveria ser
mais longo do que o de uma bola disparada pelo mesmo para o levante; porém,
como estes diferentes trajetos previstos não se verificam na prática, a terra - assim
concluía Brahe - está parada.
Portanto, nem Ptolomeu nem Copérnico. Tycho propõe seu sistema do mun­
do, em que a terra está no centro do universo; só que ela está no centro das
órbitas do sol, da lua e das estrelas fixas; enquanto o sol está no centro das órbitas
dos cinco planetas. Em outros termos, eis o sistema tychônico: a terra permanece
no centro do universo; o sol e a lua giram ao redor da terra; os outros cinco plane­
tas (Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter, Saturno) giram ao redor do sol.
O sistema tychônico não convenceu nem Kepler nem Galileu. Galileu, no Diá­
logo sobre os dois máximos sistemas, confrontará o sistema aristotélico-ptolomaico
com o copernicano e não levará em consideração o "terceiro sistema do mundo",
proposto por Tycho Brahe.

1 Í Á ma 1'e s t a u r a ç ã o Copérnico e Kepler situa-se o trabalho de


outra personagem, que muito influenciaria
co n ten d o a astronomia: trata-se do dinamarquês Ty­
o s g e f m e s d a re v o lu ç ã o cho Brahe.
Tycho (latinização do nome dinamar­
quês Tyge) nasceu três anos depois da morte
A grande obra de Copérnico apareceu de Copérnico, isto é, em 1546, vindo a fale­
em 1543. Em 1609 Kepler publicou seu tra­ cer em 1601. Se Copérnico foi o astrônomo
balho sobre Marte, que desferia outro vio­ mais importante da primeira metade do sé­
lento golpe à cosmologia tradicional: nesta culo XVI, Tycho Brahe foi a auctoritas em
obra, com efeito, Kepler demonstrava que astronomia da segunda metade do século.
as órbitas dos planetas não são circulares Frederico II da Dinamarca foi o gran­
mas elípticas. Todavia, entre as obras de de protetor de Brahe, ao qual, além de uma
174
Segunda pavte - ;A r e v o lu ç ã o científica

“oval” . Em todo caso, persuadido de que o


sistema ptolemaico “ não era suficientemen­
te coerente” , e que “ era supérfluo recorrer
a tão numerosos e tão grandes epiciclos” ,
Brahe também rejeitou o sistema copernica-
no e propôs, contra ele, uma argumentação
destinada a se tornar uma objeção cabal. Se
fosse verdade que a terra roda do Ocidente
para o Oriente, então — objeta Brahe — o
trajeto de uma bala, disparada para o po­
ente por um canhão, deveria ser mais longo
do que o de uma bala disparada pelo mes­
mo canhão para o nascente. Todavia, uma
vez que estes diversos trajetos previstos não
se verificam na prática, a terra, concluía
Brahe, está parada.

O s is t e m a tycK ôrvieo

Tycho Brahe, aqui em uma incisão do século XVI,


foi o astrônomo mais importante Portanto, nem Ptolomeu nem Copér­
da segunda metade do século XVI. nico. Então, sempre nas palavras de Brahe,
“ havendo compreendido muito bem que
ambas essas hipóteses admitiam não pou­
cos absurdos, comecei a meditar profunda­
remuneração, deu a ilha de Hven, no estrei­ mente comigo mesmo se era possível encon­
to de Copenhague. Nessa ilha, Brahe man­ trar alguma hipótese que não estivesse em
dou construir um castelo, um observatório, contraste com a matemática nem com a fí­
laboratórios e uma gráfica privada, aí tra­ sica, que não tivesse que se esconder das cen­
balhando de 1576 a 1597, ajudado por nu­ suras teológicas e que, ao mesmo tempo,
merosos assistentes, recolhendo enorme satisfizesse completamente as aparências
quantidade de observações precisas. celestes” . E prossegue Brahe: “Por fim, qua­
Com a morte de Frederico II, seu su­ se inesperadamente, veio-me à mente o
cessor não continuou se comportando como modo pelo qual deve ser disposta adequa­
mecenas em relação a Brahe, que, em 1599, damente a ordem das revoluções celestes,
transferiu-se para Praga a serviço do impe­ de forma a fechar o caminho a todas essas
rador Rodolfo II. Aqui Brahe chamou o jo­ incongruências.” E, dessa forma, chegamos
vem Kepler, que, com a morte de Brahe (em ao sistema tychônico.
1601), sucedeu-lhe na função de matemáti­ Nesse sistema do mundo, a terra en­
co imperial. contra-se no centro do universo. Entretan­
Autêntico virtuoso da observação as­ to, ela está no centro das órbitas do sol, da
tronômica, em 1577, estudando o movimen­ lua e das estrelas fixas, ao passo que o sol
to dos cometas, Brahe conseguiu demons­ está no centro das órbitas dos cinco plane­
trar que as esferas cristalinas da cosmologia tas. Para se ter uma idéia do sistema de
tradicional, concebidas como fisicamente Brahe, basta olhar a fig. 1, onde, entre ou­
reais e destinadas a transportar os planetas, tras coisas, pode-se observar que, como as
na realidade não existiam. Desapareciam órbitas apresentam intersecção em vários
assim do mundo as esferas materiais das pontos, era necessário que as esferas per­
quais nem Copérnico se desligara. E em seu dessem seu caráter material. Na fig. 2, te­
lugar entravam as órbitas, entendidas em mos a representação do sistema coperni-
nosso sentido de trajetórias. cano, de modo que se possam observar
Além dessa inovação muito significa­ suas diferenças em relação ao sistema tychô­
tiva, Brahe abriu outra brecha dentro da nico.
cosmologia tradicional, ventilando a opinião A terra permanece no centro do uni­
de que o cometa teria tido uma órbita verso, como argumenta o próprio Brahe: “Pa­
175
Capítulo décimo - T)e. é ã o p é m ic o a K e p le r

ra além de qualquer dúvida, penso que se Por seu turno, no Diálogo sobre os dois
deve estabelecer, com os antigos astrônomos sistemas máximos, Galileu confrontará o
e com os pareceres já aceitos pelos físicos, sistema aristotélico-ptolomaico com o sis­
com a autenticação posterior das sagradas tema copernicano, sem considerar em ab­
Escrituras, que a terra que nós habitamos soluto o “ terceiro sistema do mundo” , de
ocupa o centro do universo e não se move Tycho Brahe.
em círculos por efeito de nenhum movimen­ No entanto, o sistema de Brahe conquis­
to anual, como quer Copérnico O sol tou relativo sucesso, sendo abraçado pela
e a lua giram em torno da terra: “ Conside­ maior parte dos astrônomos, não coperni-
ro que os circuitos celestes são governados canos, insatisfeitos com o sistema ptolomai-
de tal modo que somente ambas as luminá­ co. Na realidade, seu sistema foi engenho­
rias do mundo [o sol e a lua], que presi­ samente concebido: mantinha as vantagens
dem à discriminação do tempo, e com elas matemáticas do sistema de Copérnico e,
a distante e oitava esfera [das estrelas fi­ além disso, evitava as críticas de natureza
xas] que contém todas as outras, olham física e as acusações de ordem teológica.
para a terra como o centro de suas revolu­ Mas o sucesso do sistema tychônico é
ções.” Os outros cinco planetas giram em o sucesso de um compromisso. E embora
torno do sol: “ Assevero ademais que os esse compromisso tivesse o aspecto de uma
cinco planetas restantes [Mercúrio, Vênus, “ restauração” , ele não pôde ignorar a revo­
Marte, Júpiter e Saturno] desenvolvem seus lução que ocorrera; Tycho Brahe também
próprios giros em torno do sol, como seu negou o sistema ptolomaico, afirmando que
guia e rei, sempre o observando quando se a terra não era o centro das revoluções de
situa no espaço intermediário de suas revo­ todos os planetas.
luções.” Duas observações ainda. Em Urani-
O sistema tychônico não convenceu borg, na ilha de Hven, além do observató­
Kepler nem Galileu. Em seu leito de morte, rio, Brahe possuía também um laboratório
Brahe confiou seu sistema ao jovem assis­ químico. E, embora criticasse as práticas
tente Kepler, mas este estava muito atraído astrológicas, estava convencido de que exis­
pela grande simetria de Copérnico, ao pas­ tia uma afinidade essencial entre os fenô­
so que o sistema de Brahe não era estrutu­ menos celestes e os acontecimentos terres­
rado simetricamente (assim, por exemplo, tres. Essa crença, de origem estóica, na
o centro geométrico do universo não é mais existência de uma relação entre todas as
o centro da maior parte dos movimentos coisas, constituiu fonte de inspiração para
celestes). muitos grandes cientistas. KTTvBfTI

Sistema tychônico (de Th. S. Kuhn, Sistema copernicano (de P. Rossi, A revolução
A revolução copernicana, Einaudi). científica de Copérnico a Newton, l.oeschcr).
176
ScgUftdci parte - y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

: III. J o k a n n e s K .e p le i*: -
a p a s s a g e m d o ^ c m c u lo ^ p a t^ a a ^ e lip s e 77
e a s is te m a tiz a ç ã o m a te m á tic a

d o s is te m a c o p e m ic a n o

• Johannes Kepler (1571-1630), discípulo emTubinga de Michael M aestlin-o


qual o convenceu da validade do sistema copernicano foi assistente e sucessor
de Tycho Brahe em Praga. Eis os títulos de suas obras de maior peso: Prodromus
ou Mysterium cosmographicum (1596); A d Vitellionem parali-
Kepler: pomena (1604); Astronomia nova (1609); Nova stereometria
copernicano doliorum vinariorium (1613); entre 1618 e 1621, aparece em Linz,
e neoplatônico em sete livros, o tratado de astronomia Epitome astronomiae
§1 copernicanae; em 1619 aparece a obra Harmonices mundi libri V;
de 1627 são as Tábuas rodolfinas. Copernicano e neoplatônico,
Kepler acreditava que a natureza fosse ordenada por regras matemáticas que o
cientista tem a tarefa de descobrir.
No Mysterium cosmographicum a fé no sistema copernicano se liga com a fé
neoplatônica de que uma Razão matemática divina presidiu a criação do mundo.
Deus é matemático. E o trabalho de Kepler consistiu justamente na busca das
harmonias matemáticas e geométricas do mundo, como as que ele próprio conse­
guiu captar e expor nas famosas três "leis de Kepler".
• Por dez anos Kepler estuda com grande empenho o irregular "movimento
de Marte", e no fim chega à conclusão de que o problema era insolúvel com quais­
quer combinações de círculos, enquanto teoria e observações estavam de acordo
quando se concebia o movimento dos planetas em órbitas elípti­
A grande cas. Eis, então, as três leis de Kepler:
passagem - primeira lei: as órbitas dos planetas são elipses das quais o
do "círculo" sol ocupa um dos focos;
à "elipse" - segunda lei: a velocidade orbital de cada planeta varia de
-^§3 modo tal que a linha que liga o sol com o planeta cobre, em
iguais intervalos de tempo, iguais porções de superfícies de elipse;
- terceira lei: os quadrados dos períodos de revolução dos planetas estão na
mesma relação dos cubos das respectivas distâncias do sol.
• Misticismo, matemática, astronomia e física estão indissoluvelmente liga­
dos no pensamento de Kepler. E é nas Harmonias do mundo que Kepler deixa
transparecer mais do que em outro lugar sua fé nas harmonias, na ordem mate­
mática da natureza: e nesta harmonia do universo o sol desempenha um papel
fundamental. No pensamento de Kepler estamos na presença de verdadeira e
própria metafísica do sol. Os planetas se movem em elipses; e são
Uma metafísica movidos por uma força motriz como a magnética, força que emana
do sol do sol. Logo, os planetas percorrem suas órbitas impulsionados
§4 pelos raios de uma anima motrix que brotam do sol. Kepler esbo­
ça uma espécie de teoria magnética do universo. Discute sobre a
força com que a terra atrai um corpo, e na introdução à Astronomia nova fala
também de recíproca atração. Nas notas ao seu Somnium (escrito entre 1620 e
1630) ele atribui as marés "aos corpos do sol e da lua que atraem as águas do mar
com uma força semelhante à magnética". Alguém quis ver nestas idéias a anteci­
pação da teoria gravitacional de Newton. Talvez as coisas não sejam assim, mas é
certo que Newton, reunindo os resultados obtidos por Kepler e por Galileu, deve
ter-se consolidado com os problemas que eles deixaram em aberto, dando assim à
física a configuração conhecida com o nome de "física clássica".
177
Capítulo décimo - De íSopémico a K.eplep

1 Keplee: vida e obmas

Kepler nasceu em 27 de dezembro de


1571, em Weil, nas proximidades de Estu-
garda. Filho de Henrique, funcionário lute­
rano a serviço do Duque de Brunswick, e de
Catarina Guldenmann, filha de um alberguei-
ro, Kepler veio ao mundo prematuramente
(“septem mestris sum '\ escreveu de si mes­
mo), sendo muito enfermiço. Quando pe­
queno, teve varíola, que lhe deixou as mãos
contraídas e a vista enfraquecida. Seu pai
também foi soldado mercenário. Deixando
o filho com os avós, Henrique, juntamente
com a mulher, foi combater nas fileiras do
duque de Alba contra os belgas. Voltando
da guerra em 1575, os genitores de Kepler
instalaram uma hospedaria em Ellmendin-
gen, na região de Baden. E o pequeno Kepler,
logo que esteve em condições para tanto,
tinha de lavar os copos na hospedaria do
pai, além de ajudar na cantina e também no
campo. Em 1577 começou a freqüentar a kepler 1157 l-lh ■>()) <: o orgjiiKador m alcm àtK o
escola em Leonberg. Tendo-se mostrado i/(i si st e/ u u ( o f i c r i i i í j n n .
muito capaz e interessado, seus pais decidi­
ram enviá-lo em 1584 para o seminário de
Adelberg. Daí passou para o seminário de
Maulbronn, de onde saiu quatro anos de­ inverno, sobre as agitações camponesas etc.
pois para ingressar na Universidade de Tu- Em 1596 Kepler publicou o Prodromus ou
binga, onde teve por mestre o astrônomo e Mysterium cosmograpbicum no qual, como
matemático Michael Maestlin, que o con­ veremos melhor adiante, ele relacionava os
venceu da justeza do sistema copernicano. “ cinco sólidos regulares” (o cubo, o tetrae-
Nesse período, agravava-se a luta entre ca­ dro, o dodecaedro, o octaedro e o icosaedro)
tólicos e protestantes. Embora protestante, com o número e as distâncias dos planetas
Kepler via essa luta como coisa absurda. E, então conhecidos. Publicado com um pre­
permanecendo naquela situação de “ liber­ fácio de Maestlin, o livro foi logo enviado a
dade” em que Deus o fizera nascer, imputa­ Tycho Brahe e a Galileu Galilei. Brahe res­
va “ às tolices deste mundo (...) as persegui­ pondeu a Kepler convidando-o a ver a even­
ções que dominavam os partidos religiosos, tual relação entre as descobertas do Pro­
a presunção de que os seus problemas eram dromus e o sistema tychônico. E em 4 de
também os de Deus, a arrogância dos teólo­ agosto de 1597, de Pádua, Galileu enviou
gos ao considerarem que se deve crer cega­ uma resposta a Kepler, na qual, entre ou­
mente neles e, por fim, a intransigência com tras coisas, lemos: “ [...] Agradeço-te tam­
que eles condenavam aqueles que fazem uso bém, de modo muito particular, por teres te
da liberdade evangélica” (G. Abetti). dignado a dar-me tal prova de tua amizade.
Aos vinte e dois anos, Kepler abando­ Por enquanto, só tive a visão do prefácio de
nou a teologia e, com ela, a idéia de dedi­ tua obra, com base na qual compreendí tua
car-se à carreira eclesiástica. Aceitou uma intenção. E posso verdadeiramente estar
oferta para ensinar matemática e moral no satisfeito por ter tal aliado na indagação da
ginásio de Graz. Entre suas funções estava verdade e tal amigo dessa verdade. E deplo­
também a de preparar o calendário para a rável que sejam tão raros aqueles que com­
região da Estíria, para o ano de 1594. E a batem pela verdade e não seguem um cami­
preparação do calendário implicava também nho errado no filosofar. Porém, este não é o
um trabalho de previsões, como, por exem­ lugar para lamentar a miséria de nosso sé­
plo, sobre o rigor mais ou menos intenso do culo, e sim para congratular-me contigo pe­
178
Segunda patte - y\ d e v o lu ç ã o c ie n t í f ic a

las belas idéias expostas em comprovação luminoso chegar até a retina, reconhecen­
da verdade [...]. Muito escrevi para apre­ do-se que a figura assim projetada na retina
sentar as provas que aniquilam os argumen­ fica de cabeça para baixo, mas sem reputar
tos contrários à hipótese copernicana, mas esse fato como danoso, porque, à medida
até agora não ousei publicar nada, aterrori­ que a localização das imagens fora do olho
zado pelo que sucedeu a Copérnico, nosso é uma função realizada pelo próprio olho,
mestre, que, se conquistou fama imortal jun­ o problema está em determinar a regra com
to a alguns, na verdade, junto a infinitos base na qual deve proceder o olho para co­
outros é desmoralizado e apupado, tão gran­ locar a imagem, quando recebe certos estí­
de é o número dos tolos. Eu ousaria desfral­ mulos. Assim, a regra agora é a seguinte:
dar abertamente meus pensamentos se hou­ quando o estímulo sobre o fundo do olho
vesse muitas pessoas como tu, mas, como está embaixo, a figura vista fora do olho
não existem, devo me conter.” deve estar em cima e vice-versa; da mesma
forma, quando o estímulo sobre a retina está
à direita, a figura vista fora do olho deve
ESI Kepler/ matemático imperial estar à esquerda e vice-versa” (V. Ronchi).
em W a g a Além disso, no capítulo primeiro, Kepler
dava uma definição da luz completamente
Em 1597, Kepler casou-se com Bárba­ nova:
ra Müller von Muhlek, rica viúva de vinte e 1 ) “ à luz compete a propriedade de
três anos. Nesse meio tempo, depois da vi­ afluir ou ser lançada de sua fonte em dire­
sita do arquiduque Ferdinando ao papa Cle­ ção a um lugar distante” ;
mente VIII, todos os não-católicos foram 2 ) “ de um ponto qualquer, o afluxo da
expulsos da Estíria. Kepler mobilizou-se ra­ luz ocorre segundo um número infinito de
pidamente junto a seu velho mestre Maestlin retas” ;
para obter um lugar na Universidade de 3) “por si mesma, a luz é capaz de avan­
Tubinga, mas não o conseguiu. Então, apre­ çar até o infinito” ;
sentou-se inesperada solução: Brahe convi­ 4) “ as linhas dessas emissões são retas
dou Kepler a visitá-lo no castelo de Benatek, e se chamam raios” .
nas proximidades de Praga. Em I o de agos­ Vasco Ronchi comenta que, nessas qua­
to de 1600, mais de um milhar de cidadãos tro proposições, está a definição do raio lu­
foram expulsos da Estíria. Kepler escreve a minoso, que depois seria definitivamente
Maestlin, dizendo que nunca teria acredita­ adotada pela ótica geométrica.
do que deveriam suportar tanto sofrimen­ Em 1609, publica-se a Nova astrono­
to, abandonar a casa e os amigos e perder mia, que Kepler enviou ao imperador Ro­
os próprios bens por motivos religiosos e dolfo II com uma carta dedicatória datada
em nome de Cristo. Em Praga, Tycho Brahe de 29 de março. Essa é a obra mais memo­
assume Kepler como seu assistente. Pouco rável de Kepler, estabelecendo dois princí­
depois, porém, em 24 de outubro de 1601, pios fundamentais da astronomia moderna
com apenas cinqüenta e cinco anos de ida­ (as primeiras duas leis de Kepler, sobre as
de, Brahe morre. E o imperador Rodolfo II quais falaremos adiante). Nessa obra, Kepler
nomeia Kepler “ matemático imperial” , com estuda o movimento de Marte, podendo fi­
um salário que era a metade do de Brahe, e nalmente declarar-se vitorioso sobre o deus
com a tarefa de concluir as Tábuas rodol- da guerra — e assim entregava o planeta,
finas. feito prisioneiro, aos pés do imperador. Mas
Em 1604, Kepler publica a obra Ad M arte tem muitos parentes — Júpiter,
Vitellionem paralipomena. Trata-se de uma Saturno, Vênus, Mercúrio etc. — que ainda
obra de ótica geométrica, que marca um mo­ era preciso combater e vencer. E, para pros­
mento relevante da história da ciência. A seguir a batalha, necessita-se de recursos. E
obra compõe-se de onze capítulos, aperfei­ Kepler pede-os ao imperador.
çoando conceitos já expressos por Alhazen Em março de 1610, Galileu publicou
e Vitélio, além de apresentar concepções que o seu Sidereus Nuncius, que, com todas as
muito se assemelham às de Francisco Mau- descobertas astronômicas que continha, des­
rólico (1494-1577). O capítulo V da obra pertou o mais alto interesse no mundo cien­
reveste-se de grande importância: “ Nele, tífico. Galileu enviou uma cópia para Kepler,
pela primeira vez depois de dois mil anos de por intermédio de Juliano de Médici, que
estudo, não se hesita em fazer o estímulo era embaixador da Toscana em Praga. Em
179
Capítulo décimo - D e C o p é m i c o a K e p le i*

resposta a Galileu, Kepler escreveu a sua metes à inteligência humana os limites ce­
Dissertatio cum Núncio Sidereo, em que lestes e o caminho dos astros.” Pode-se afir­
apresenta suas dúvidas. Sobretudo em rela­ mar com certeza que a Diótrica constituiu
ção à existência dos satélites de Júpiter. O “ o início e o fundamento de uma ciência
místico neoplatônico Kepler, para quem “ o ótica capaz de explicar o funcionamento das
sol é o corpo mais belo” e “ o olho do mun­ lentes e de suas várias combinações, como
do” , não podia admitir que Júpiter possuís­ as usadas na luneta ‘galileana’ ou na luneta
se satélites e pudesse assim reivindicar uma ‘kepleriana’, também chamada ‘astronômi­
dignidade análoga à do sol. Ademais, “ não ca’ ” (G. Abetti).
se compreende bem por que (tais satélites)
existiríam, quando sobre esse planeta não
há ninguém para admirar tal espetáculo” . 8 B || Kepler em Linz:
Mais tarde, de posse de uma boa luneta — as /7
Tábuas ^odolfmas7
7
aquela que Galileu enviara a Ernesto de e a “Elarmcmia do mundo’7
Baviera, príncipe eleitor do Sacro Império
Romano em Colônia, e que este havia pas­ Em 1611, o imperador Rodolfo II teve
sado para Kepler —, ele se convenceu da de abdicar em favor do irmão Matias. Ke­
opinião de Galileu, publicando então a pler, que já lutava em vão para obter sua
Narratio de observatis a se quattuor Jovis remuneração, compreendeu que não era sá­
satellitibus erronibus. Nesse meio tempo, bio continuar em Praga. Assim, pôs-se a ser­
Martin Horky de Lochovic — que assistira viço dos governadores da Áustria superior
às demonstrações com a luneta que Galileu e transferiu-se para Linz, a fim de comple­
realizara em Bolonha, por volta de fins de tar as Tábuas rodolfinas e dedicar-se aos
abril de 1610, na casa de Antônio Magini, estudos de matemática e filosofia.
professor de matemática em Bolonha e ad­ Em 1613, Kepler publicou a Nova ste-
versário de Galileu — escreveu a Kepler uma reometria doliorum vinariorum, que resol­
carta sobre a ineficácia da luneta: “ In infe- ve um problema prático não irrelevante para
rioribus facit mirabilia; in coelo fallit quia aquela época: como determinar o conteúdo
aliae stellae fixae duplicatae videntur. Habeo dos barris. A questão não deixava de ser
testes excellentissimos viros et nobilissimos importante, pois então o conteúdo dos bar­
doctores (...) omnes instrumentum fallere ris era medido com a introdução de um bas­
sunt confessi. At Galileus obmutuit, et die tão: devidamente inclinado, ele deveria in­
26 (...) tristis ab Illustrissimo D. Magino dicar o número de “ baldes” de que o barril
discessit.” Horky escreveu também um li­ era capaz. Tratava-se, obviamente, de uma
belo contra as recentes descobertas de Ga­ mensuração rudimentar. E o interessante é
lileu: Brevíssima peregrinado contra Nun- que Kepler resolve tal problema através de
cium Sidereum. E, em 30 de junho (1610), procedimentos que se aproximam dos rea­
enviou-o a Kepler. Mas este, embora com lizados no cálculo infinitesimal. Em 1616,
um pouco de atraso, renegou as opiniões de porém, tem início a desgraçada aventura da
Horky. Galileu, como veremos nas páginas pobre mãe de Kepler, que foi acusada de fei­
a ele dedicadas, levou para dentro da ciên­ tiçaria e submetida a interminável proces­
cia a luneta, um instrumento que então era so, no qual se envolve também a faculdade
visto como objeto típico dos “ vis mecâni­ jurídica de Tubinga. Kepler empenhou-se
cos” e indigno dos “filósofos” . E Kepler, por profundamente na defesa da mãe. E, final­
seu turno, era a pessoa matematicamente mente, saiu vencedor. Em 1621, a mãe de
melhor aparelhada para estudá-lo e desen­ Kepler foi inocentada da acusação. Mas,
volver sua teoria. E, com efeito, na prima­ tanto pela idade avançada como em função
vera de 1611, apareceu em Augusta a Diótri- de seu encarceramento e do processo, a atri­
ca ou “ demonstração daquelas coisas, nunca bulada mãe morreu em abril de 1622. Nes­
antes vistas por ninguém, que se podem se entretempo, entre 1618 e 1621, Kepler
observar com a luneta” . Diz Kepler que a havia publicado em Linz, em sete livros, seu
Diótrica é importante porque amplia os tratado de astronomia: Epitome astronomiae
horizontes da filosofia. E, sobre a luneta, copernicanae. Já nos primeiros meses de 1619,
diz ele: “ O sábio tubo óptico é precioso em Augusta, aparecia sua obra Harmonices
como um cetro; quem observa com ele tor­ mundi libri V, sobre a qual falaremos adian­
na-se um rei e pode compreender a obra de te: trata-se do “ato conclusivo da fecunda
Deus. Por isso, valem estas palavras: tu sub­ vida de Kepler” (J.L.E. Dreyer). Em 1627,
180
Segunda parte - A revolução científica

aparecem finalmente as Tábuas rodolfinas, suma, Kepler acreditava que a natureza era
onde se encontram as tábuas dos logaritmos, ordenada por regras matemáticas, que é fun­
as tábuas para calcular a refração, e um catá­ ção do cientista descobrir. Uma função que
logo das 777 estrelas observadas por Tycho Kepler acreditou ter cumprido, pelo menos
Brahe, cujo número Kepler eleva para 1005. em parte, quando publicou o Mysterium cos-
Com essas tábuas, “ por mais de um século, mographicum, em 1596. Nessa obra, preci­
os astrônomos puderam calcular com exa­ samente, a fé no sistema copernicano vin­
tidão suficiente, jamais alcançada antes de cula-se à fé platônica de que uma Razão
Kepler, as posições da terra e dos vários pla­ matemática divina presidiu à criação do
netas em relação ao sol” (G. Abetti). Em mundo. E, depois de ter desenvolvido ex­
1628, Kepler estava novamente em Praga, tensamente — usando até desenhos detalha­
de onde foi para Sagan, pequena cidade da dos — as argumentações em favor do siste­
Silésia, entre Dresden e Breslávia, colocan­ ma copernicano, ele afirma que o número
do-se a serviço do duque de Friedland, Al- de planetas e a dimensão de suas órbitas
brecht Wallenstein. Este prometeu pagar a podiam ser compreendidos à medida que se
Kepler os doze mil florins de atrasados a compreendesse a relação entre as esferas
que tinha direito pelo trabalho passado. planetárias e os cinco sólidos regulares, “pla­
Kepler, de sua parte, publicaria as efemérides tônicos” ou “cósmicos” . Esses sólidos, como
até 1626. Entretanto, desmoronando os bens já mostramos anteriormente, são: o cubo, o
de Wallenstein, Kepler decidiu ir a Ratisbona tetraedro, o dodecaedro, o icosaedro e o
para obter da Dieta o pagamento de sua re­ octaedro. Como é fácil perceber, examinan­
muneração atrasada. Feita no lombo de um do a fig. 1 , esses sólidos se caracterizam por
velho burro — do qual Kepler se desemba­ terem as faces todas idênticas e constituídas
raçou por dois florins tão logo chegou —, a apenas de figuras eqüiláteras. Desde a anti­
viagem foi desastrosa. Acometido de febre, guidade, sabia-se que somente cinco sólidos
Kepler foi submetido a sangrias. M as de possuíam tais características: os cinco indi­
nada adiantou. Morreu no dia 15 de no­ cados na figura. Pois bem, em seu trabalho,
vembro de 1630, distante de casa e dos que Kepler sustenta que, se a esfera de Saturno
lhe eram caros. Estava com cinqüenta e nove fosse circunscrita ao cubo no qual estivesse
anos de idade. Foi sepultado fora das mu­ inscrita a esfera de Júpiter e se o tetraedro
ralhas da cidade, no cemitério de São Pedro, fosse inscrito na esfera de Júpiter com a es­
já que não era costume sepultar os luteranos fera de Marte inscrita nele, e assim sucessi­
dentro da cidade. Entretanto, os funerais fo­ vamente com os outros três sólidos e as ou­
ram solenes. E o discurso fúnebre desenvol­ tras três esferas (cf. a fig. 2 ), então se poderia
veu-se em torno de um versículo de Lucas demonstrar as dimensões relativas de todas
(Lc 11,28): “ Felizes os que ouvem a pala­ as esferas, compreendendo-se também por
vra de Deus e a observam.” que existem apenas seis planetas. Eis o que
diz o próprio Kepler: “ O orbe da terra é a
medida de todos os outros orbes. Circuns­
creve-se a ele um dodecaedro, e a esfera por
2 O V ^ y s fe num ele circunscrita é a de Marte. A esfera de
c o s m o g m p k i c u m //: Marte circunscreve um tetraedro, que con­
tém a esfera de Júpiter. A esfera de Júpiter
e m b u s c a d a d iv iu a
circunscreve um cubo, sendo que a esfera
o r d e m m a t e m á t ic a d o s c é u s por ele encerrada é a esfera de Saturno. No
orbe da terra, inscreví um icosaedro, sendo
a esfera nele inscrita a de Vênus. Em Vênus
Se Tycho Brahe sempre foi anticoper- inscreví um octaedro, onde está inscrita a
nicano, Kepler sempre foi copernicano: “Du­ esfera de Mercúrio. E aí encontras a razão
rante toda a sua vida, ele se referiu à per­ do número dos planetas.” Deus é matemá­
tinência do papel que Copérnico atribuira tico. E o trabalho de Kepler consistiu preci­
ao sol com os tons entusiásticos do neo- samente em buscar as harmonias matemá­
platonismo renascentista” (Th. S. Kuhn). ticas e geométricas do mundo. Ele acreditou
Kepler foi um neoplatônico matemático ou ter encontrado muitas, embora aquelas des­
um neopitagórico que acreditava na harmo­ tinadas a ter futuro fossem sobretudo as suas
nia do mundo. Por isso, não podia apreciar famosas três leis para os planetas. De todo
o pouco harmônico sistema de Brahe. Em modo, “ a convicção de uma estrutura do
181
Cílpltulo décimo - D e Ç ã o p é m ic o a K e p le r

( )s cinco sólidos
planetários ou “platônicos"
ou “cósmicos ”
(de Th. S. Kuhn,
A revolução copernicana, cit.).

Saturno cubo
Júpiter tetraedro
Marte dodecaedro
Terra icosaedro
Vênus octaedro
(de Th. S. Kuhn,
A revolução copernicana, cit.).

mundo matematicamente definível, que en­ 3 Vo “c í r c u l o ” à “e l i p s e ”.


contrava a sua formulação teológica na cren­
y \ s “t r ê s leis d e K e p l e r ”
ça de que, na criação do mundo, Deus havia
sido guiado por considerações matemáticas;
a irremovível certeza de que a simplicidade A ciência tem necessidade de mentes
também é um sinal de veracidade e de que a criativas (de hipóteses e teorias), ou seja, pre­
simplicidade matemática se identifica com cisa de imaginação e, simultaneamente, de
a harmonia e a beleza; por fim, a utilização rigor no controle dessas hipóteses. Pois bem,
da surpreendente circunstância de que exis­ na história do pensamento científico, talvez
tem exatamente cinco poliedros que satis­ não tenha existido outro cientista com tan­
fazem as mais altas exigências de regulari­ ta força de imaginação quanto Kepler, e que,
dade e que, portanto, devem ter alguma ao mesmo tempo, assumisse como ele uma
coisa a ver com a estrutura do universo — atitude tão crítica em relação às suas pró­
todos esses dados são sintomas inequívocos prias hipóteses. A idéia da relação entre os
da concepção do mundo pitagórico-platô- planetas e os sólidos logo se mostraria in­
nico, que aqui aparece mais viva do que sustentável. Mas o que ela expressava era o
nunca. Esse era o estilo de pensamento do sintoma de um programa de pesquisa, que
Timeu, que, depois de ter desafiado o pre­ ainda mostraria toda a sua fecundidade.
domínio do aristotelismo durante toda a Ptolomeu não havia sido capaz de explicar
Idade Média, em uma tradição contínua, o movimento “ irregular” de Marte. E Co-
embora por vezes invisível, agora punha-se pérnico também não o conseguira. Tycho
novamente de pé” (E.J. Dijksterhuis). Brahe havia realizado numerosas observa-
182
Segunda püYtC - revolução científica

ções sobre Marte, mas também tivera de - segunda lei: a velocidade orbital de
ceder às dificuldades. Depois da morte de cada planeta varia de tal modo que a linha
Brahe, foi Kepler quem teve de se defrontar que liga o sol e o planeta cobre, em iguais
com o problema, nele trabalhando durante intervalos de tempo, iguais porções de su­
cerca de dez anos. É o próprio Kepler quem perfície da elipse (cf. a fig. 4).
nos informa sobre esse seu extenuante tra­ A substituição das órbitas circulares de
balho, do qual deixou uma apaixonante e Ptolomeu, de Copérnico e também de
detalhada descrição. As tentativas seguiam- Galileu pelas elipses (Ia lei), e a substituição
se uma à outra, mas todas caíam no vazio. do movimento uniforme em torno de um
Entretanto, com base nessa longa série de centro com a lei das superfícies iguais (2 a
tentativas falidas, Kepler chegou à conclu­ lei), são suficientes para eliminar toda a
são de que era impossível resolver o proble­ caterva dos excêntricos e dos epiciclos.
ma com qualquer combinação de círculos, Em 1618, no Epitome astronomiae
pois todas as combinações possíveis não copernicanae, Kepler estendeu essas suas leis
correspondiam aos dados observáveis e as aos outros planetas, à lua e aos quatro saté­
órbitas propostas, portanto, deviam ser eli­ lites de Júpiter, que haviam sido descober­
minadas. Assim, além dos círculos, experi­ tos há poucos anos. Em 1619, nas Harmo­
mentou também as figuras ovais. Mas, no­ nias do mundo, Kepler anuncia sua
vamente, as observações desmentiram as - terceira lei: os quadrados dos perío­
propostas teóricas. Por fim, percebeu que a dos de revolução dos planetas estão na mes­
teoria e as observações se harmonizavam ma relação que os cubos das respectivas dis­
quando fazia os planetas moverem-se em tâncias do sol. Ou seja: se T I e T2 são os
órbitas elípticas, com velocidades variáveis, períodos necessários a dois planetas para
determináveis segundo uma lei simples. que eles completem uma volta em suas ór­
Foi uma descoberta sensacional: esta­ bitas e se RI e R2 são as respectivas distân­
va definitivamente rompido o dogma antigo cias médias entre os planetas e o sol, então
e já venerável da naturalidade e perfeição a relação entre os quadrados dos períodos
do movimento circular. E um procedimento orbitais é igual à relação existente entre os
matemático muito simples estava em con­ cubos das distâncias médias em relação ao
dições de dominar, em um universo coper- sol. Ou seja: (T1/T2 )2 = (R1/R2)3.
nicano, uma quantidade interminável de Trata-se, conforme foi dito, de “ uma
observações e permitia fazer previsões (e lei fascinante, porque estabelece uma regra
pós-visões) seguras e acuradas. nunca antes observada no sistema planetá­
E eis as duas leis que contêm a solução rio” . Mas o fundamental era que os princí­
final do problema, solução que é válida tam­ pios da cosmologia aristotélica haviam-se
bém para nós, hoje: despedaçado. Com efeito, a esse ponto, o
- primeira lei: as órbitas dos planetas sistema solar encontrava-se plenamente des­
(Marte) são elipses das quais o sol ocupa velado em toda uma rede de relações mate­
um dos focos (cf. a fig. 3.); máticas límpidas e simples.

A primeira lei de Kepler A segunda lei de Kepler


(de Th. S. Kuhn, A revolução copernicana, cit.). (de Th. S. Kuhn, A revolução copernicana, cit.).
183
Capítulo décimo - D e < S o p é m ic o a K e p le r

4 O sol como causa nar-se a morada do próprio Deus, para não


dizer o primeiro motor” . E, no Epitome
dos movimentos planetários
astronomiae copernicanae, também pode­
mos ler: “ O sol é o corpo mais belo; de cer­
ta forma, é o olho do mundo. Enquanto fon­
Como observa Dijksterhuis, misticis­ te de luz ou lanterna resplandecente, adorna,
mo, matemática, astronomia e física estão pinta e embeleza os outros corpos do mun­
estreita e até inextricavelmente associados do [...]. No que se refere ao calor, o sol é o
na mente de Kepler. Nas Harmonias do fogareiro do mundo, que esquenta os glo­
mundo, ele fala de um “frenesi divino” e de bos no espaço intermediário [...]. No que
um “ arrebatamento inefável” na contempla­ se refere ao movimento, o sol é a causa pri­
ção das harmonias celestes. E precisamente meira do movimento dos planetas, o pri­
nesse livro Kepler mostra mais que em qual­ meiro motor do universo, a causa do seu
quer outro lugar sua fé nas harmonias que próprio corpo [...].” Há em Kepler uma
se expressam na ordem matemática da na­ metafísica do sol. Os planetas não se mo­
tureza: e o sol desempenha um papel fun­ vem mais com um movimento circular na­
damental nessa harmonia. tural; eles percorrem elipses. Então, qual a
O modo como Kepler descreve ter che­ força que os move? Pois bem, eles são mo­
gado à elaboração de sua primeira lei é exal­ vidos por uma força motriz como a força
tado em nossos dias como exemplo perfeito magnética, uma força que emana do sol.
de procedimento científico: há um proble­ Estamos diante de uma intuição metafísica
ma (a irregularidade do movimento de Mar­ relacionada com o mundo físico, segundo a
te); elabora-se toda uma série de conjecturas qual os planetas percorrem suas órbitas im­
como tentativas de solução do problema; pelidos pelos raios de uma anima motrix que
desencadeia-se o mecanismo da prova sele­ brotam do sol. Kepler considerava que es­
tiva sobre essa gama de conjecturas; descar­ ses raios agem sobre o planeta; mas a órbita
tam-se todas as hipóteses que não se susten­ do planeta é elíptica; por isso, os raios da
tam ao crivo das observações; finalmente, anima motrix que caem sobre um planeta a
chega-se à teoria justa. E não é apenas o pro­ uma distância dupla do sol estarão pela
cedimento que é considerado como modelo metade; conseqüentemente, a velocidade do
de pesquisa científica, exalta-se também o planeta será a metade da velocidade orbital
relato com o qual Kepler narra o modo que apresenta quando está mais próximo do
como chegou a essa lei. Vemos toda a pai­ sol. Em suma, Kepler supôs que “ houvesse
xão por um problema que perseguiu Kepler no sol um intelecto motor capaz de mover
ao longo de dez anos; com ele percorremos todas as coisas em torno de si, mas sobretu­
as expectativas alegres e as amargas desilu­ do as mais próximas, enfraquecendo-se po­
sões, os reiterados assaltos e os sucessivos rém no caso das mais distantes, em virtude
fracassos, os becos sem saída em que se da atenuação de sua influência, dado que
mete, a tenacidade com que empreende o aumentam as distâncias” . A fig. 5 esclarece
desenvolvimento de cálculos difíceis, a graficamente a idéia de Kepler. Portanto, foi
constância e perseverança na busca de uma a “ fé” neoplatônica que conduziu Kepler à
ordem que deve existir porque Deus a criou; sua segunda lei: ele acreditava em uma es­
vemos uma verdadeira luta de Kepler com trutura matemática e simples do universo e
o Anjo, que no fim não lhe nega sua bên­ que o sol fosse causa de todos os fenôme­
ção. Encontramo-nos diante da descrição nos físicos. E Kepler esboçou precisamente
de uma pesquisa em que a retórica das con­ uma teoria magnética do sistema planetá­
clusões é substituída pelo pathos da mais rio, com base nessa sua última convicção,
nobre aventura: o pathos da pesquisa da ver­ além de influenciado pela leitura do De Mag-
dade. nete, que o médico inglês William Gilbert
Mas não menos interessante e instruti­ (1540-1603) publicara em 1600. Ele fala da
va é a maneira pela qual Kepler chega à sua força com que a terra atrai um corpo, e na
segunda lei, da qual, aliás, depende a pri­ introdução à Nova astronomia fala também
meira. No quarto capítulo da Nova astro­ de uma atração recíproca. E, nas notas ao seu
nomia, Kepler descreve o sol como o corpo Somnium (elaborado entre 1620 e 1630),
“ que aparece, em virtude de sua dignidade atribui as marés “ aos corpos do sol e da lua,
e potência, como o único capaz (de mover que atraem as águas do mar com uma força
os planetas em suas órbitas) e digno de tor­ semelhante à magnética” .
184
Segunda pavte - y \ r e v o lu ç ã o cierv+ífica

isso. Mas o certo é que a sistematização


matemática do sistema copernicano e a pas­
sagem do movimento circular (“ natural” e
“perfeito” ) ao movimento elíptico propu­
nham problemas que Kepler percebeu, iden­
tificou e tentou resolver. Trata-se de proble­
mas que, juntamente com os resultados
obtidos, Kepler deixava de herança à gera­
ção seguinte. Kepler desapareceu em 1630,
Galileu morreu no princípio de 1642. E pre­
Kepler supôs que “houvesse no sol um intelecto cisamente neste ano nascia em Woolsthorpe,
motor capaz de mover todas as coisas no condado de Lincoln, na Inglaterra, um
ao redor de si, mas sobretudo as mais próximas ” homem chamado Isaac Newton, que, re­
(de Th. S. Kuhn, A revolução copernicana, cit.). colhendo os resultados obtidos por Kepler
e Galileu, estava destinado a resolver os
problemas que eles deixaram em aberto,
Alguns chegaram a ver nessas idéias a dando assim à física a condição que hoje
antecipação da teoria gravitacional de New- nós conhecemos com o nome de “ física clás­
ton. Ao que tudo indica, não chega a ser sica” .
185
Capítulo décimo - D e (C o p é m ic o a K ep lei-

por aqueles que, embora impelidos pelas exor­


tações e pelo exemplo de outros aos estudos
COPÉRNICO liberais da filosofia, todavia, por causa da ob-
tusidade de seu engenho, movem-se entre os
filósofos como os zangões entre as abelhas.
Cnquanto, porém, avaliava comigo mesmo es­
D R novidade
tas coisas, o desprezo, que devia temer pela
novidade e absurdidade desta opinião, por
da concepção copernicono pouco não me impeliu a abandonar completa­
mente a obra realizada.
Mas os amigos me dissuadiram, embora
O trecho que segue é o corto dedica­ hesitasse muito e também relutasse; e entre
tória o Paulo III (fílessondro Fornese, 1468­ estes o primeiro foi Nicolau Schõnberg, cardeal
1549); corta que Copérnico antepõe ao De de Cápua, célebre em todo campo do saber;
revolutionibus orbium coelestium (1543), o junto com ele aquele insigne personagem que
texto clássico da teoria heliocêntrica: "[...] me ama tanto, Tiedemann Giese, bispo de
também eu comecei o pensor no mobilida­ Culm, tão assíduo nas sagradas letras e em
de da terra". todas as boas letras, diste, com efeito, fre-
qüentemente me exortou e com censuras vez
por outra a mim dirigidas me incitou a publicar
Santíssimo Padre, com suficiente seguran­ este livro e a permitir que fosse finalmente
ça posso pensar que logo que alguns soube­ dada à luz uma obra que teimava em permane­
rem que nestes meus livros escritos sobre as cer oculta comigo não apenas por nove anos,
revoluções das esferas do mundo atribuo ao mas já por quatro vezes nove anos.
globo terrestre alguns movimentos, imediata­ O mesmo fizeram junto de mim não pou­
mente proclamarão em alta voz que devo ser cos outros personagens eminentíssimos e dou­
descartado junto com tal opinião. Nem, na ver­ tíssimos, os quais me exortaram a não recusar
dade, minhas coisas me agradam a ponto de por mais tempo - pelo medo concebido - co­
eu não querer ponderar aquilo que outros ju l­ municar minha obra para utilidade dos estudio­
garão sobre elas. F embora saiba que as re­ sos de matemática. Talvez por mais absurda que
flexões do filósofo estão longe do julgamento apareça agora ò maior parte deles minha dou­
do vulgo, porque é seu trabalho procurar a ver­ trina sobre o movimento da terra, maior admi­
dade em todas as coisas, à medida que isso ração e gratidão receberá depois que, com a
permite-se à razão humana por Deus, nem por edição de meus comentários, eles verão dis­
isso penso que se devam abandonar as opi­ solvidas as névoas da absurdidade com cla­
niões de fato estranhas à retidão. Rssim, quan­ ríssimas demonstrações. Impelido, portanto, por
do eu pensava comigo mesmo quão absurdo estes persuasores e por tal esperança, final­
teriam avaliado este achróama [discurso] aque­ mente permiti aos amigos que providenciassem
les que sabem ter sido confirmada pelo julga­ a edição da obra, por tanto tempo aguardada.
mento de muitos séculos a opinião de que a Todavia, talvez Sua Santidade não se
terra está imóvel no meio do céu, como que maravilhará tanto de que eu anseie dar à luz
posta no centro dele, se ao contrário eu tives­ minhas reflexões, depois que assumi elaborá-
se afirmado que a terra se move, por muito las com tanto trabalho que não duvidei confiar
tempo hesitei se devia expor meus comentári­ também por carta meus pensamentos sobre o
os escritos para demonstrar tal movimento, ou movimento da terra, mas, ao contrário, espera­
então se não seria melhor seguir o exemplo rá sobretudo ouvir de mim como me veio em
dos pitagóricos e de alguns outros que costu­ mente ousar imaginar - contra a opinião uni­
mavam tradicionar os mistérios da filosofia versal mente aceito pelos matemáticos, e qua­
apenas a membros e amigos, não por escrito, se contra o senso comum - algum movimento
mas oralmente, como atesta a carta de lísides da terra. Rssim, não quero esconder a Sua San­
a Hiparco. F parece-me na verdade que isso tidade que nada mais me levou a pensar em
era feito não tonto - como pensa alguém - outro modo de calcular os movimentos das es­
por certo ciúme do saber que deveria ter sido feras do mundo, a não ser que compreendí que
comunicado, mas para que as belíssimas coi­ os matemáticos não estão eles próprios con­
sas, pesquisadas com muito estudo por gran­ cordes na pesquisa deles.
des homens, não fossem desprestigiadas por Com efeito, em primeiro lugar estão tão
aqueles a quem é molesto dedicar algum es­ incertos sobre o movimento do sol e da lua que
forço às letras, quando não são lucrativas, ou não podem demonstrar e observar a grandeza
186
Segunda parte - / \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

constante do ano que possa. Depois, ao fixar surda que aparecesse tal opinião, todavia, uma
os movimentos tanto destas como das outras vez que eu sabia que a outros antes de mim
cinco estrelas errantes [os planetas], não recor­ tivesse sido concedida a liberdade de imagi­
rem aos mesmos princípios, nem aos mesmos nar alguns círculos para indicar os fenômenos
assuntos, nem às mesmas demonstrações das dos astros, pensei que também a mim teria sido
revoluções e dos movimentos que aparecem. facilmente permitido experimentar se, posto
Alguns, com efeito, recorrem apenas a círculos certo movimento da terra, se pudessem encon­
homocêntricos, outros a excêntricos e a epiciclos, trar demonstrações mais firmes das deles, na
com os quais, porém, não conseguem absolu­ revolução dos orbes celestes.
tamente aquilo que buscam... Portanto, supostos os movimentos que
Por isso assumi o trabalho de reunir os mais adiante em minha obra atribuo à terra,
livros de todos os filósofos, que pudesse ter, encontrei finalmente, depois de muitas e lon­
com o fito de indagor se acaso algum tivesse gas observações, que se se relacionavam com
opinado que os movimentos das esferas do a circulação da terra os movimentos das outras
mundo fossem diversos daqueles que são ad­ estrelas e se calculavam para a revolução de
mitidos por aqueles que ensinam matemática toda estrela, não apenas descobriram os fenô­
nas escolas. € encontrei assim primeiro em Cí­ menos delas, mas também as ordens e as gran­
cero que Niceto pensara que a terra se moves­ dezas das estrelas e de todos os orbes, e o
se. Depois também em Plutarco encontrei que próprio céu assim se conecta que em nenhuma
outros ainda eram da mesma opinião e, para parte dele pode transpor-se qualquer coisa sem
tornar suas palavras acessíveis a todos, pen­ que disso derive confusão nas outras partes e
sei transcrevê-las aqui: na sua totalidade. Por isso, adiante na obra,
"Outros pensam que a terra esteja para­ segui esta ordem, e no primeiro livro descrevo
da, mas Filolau o Pitagórico admite que ela se todas as posições dos orbes com os movimen­
mova girando em torno ao foco com um círculo tos que atribuo à terra, a fim de que este livro
oblíquo, como o sol e a lua. Heráclides Pôntico contenha quase que a toda a constituição ge­
e Ccfanto o Pitagórico também fazem a terra se ral do universo. Nos outros livros, depois, relacio­
mover, mas não através do espaço, e sim como no os movimentos das outras estrelas e de to­
roda, do Ocidente poro o Oriente, ao redor de dos os orbes com a mobilidade da terra, a fim
seu próprio centro". de que aí se possa deduzir em que medida é
fl partir daqui, portanto, deparando-me possível salvar os movimentos e as aparências
com esta oportunidade, também eu comecei a das outras estrelas e dos orbes, quando estão
pensar na mobilidade da terra. C, por mais ab­ relacionados com o movimento da terra. £ não

Representação
do sistema copernicano.
Como escreve o próprio
Copérnico:
“Todas as esferas giram
ao redor do sol
como seu ponto central,
e portanto o centro do universo
está dentro do sol [...].
O movimento da terra é,
portanto, suficiente para explicar
todas as desigualdades
que aparecem no céu”. Estrelas fixas
187
Capitulo dédtnO - D e d f o p é m ic o a K e p le i* — -

duvido quo os engenhosos e doutos matemáti­


cos me aprovarão se, conforme a filosofia re­ B rahe
quer em primeiro lugar, quiserem conhecer e
ponderar não superficialmente, mas a fundo,
aquilo que trago nesta obra para a demonstra­
ção destas coisas. E o fim de que os doutos e
também os ignorantes vejam que de minha
parte não me subtraio de fato ao julgamento
D €ntre tradição e inovação
de ninguém, preferi dedicar estas minhas refle­
xões a Sua Santidade, mais que a qualquer Tqcho Brahe lança a hipótese de um sis­
outro, porque também neste ângulo remotíssimo tema do mundo diferente tanto do d e
da terra, em que vivo, és julgado o persona­ Ptolomeu como do de Copérnico: "Poro olém
gem mais eminente tanto pela dignidade de de qualquer dúvida penso que se devo e s­
grou como de amor por todas as letras e tam­ tabelecer com os antigos astrônomos e os
bém das matemáticas; assim, poderás facilmen­ pareceres doravante aceitos pelos físicos,
te, com tua autoridade e teu julgamento, con­ com o ulterior otestoçõo dos Sagrados Escri­
ter a mordida dos caluniadores, embora o turas, que o terro que habitamos ocupo o
provérbio diga que não existe remédio para a centro cio universo e que nõo é movido em
mordida dos delatores. círculo por nenhum movimento anuol, como o
Se porventura houver mozoiológoi [lingua­ quer Copérnico [..
rudos] que, embora ignorando completamente No sistema tqchônico o terro se encon­
as matemáticas, mesmo assim se arrogam o jul­ tro, portanto, no centro do universo; elo está
gamento sobre elas, e em base a alguma pas­ no centro do órbita do sol, do luo e dos e s­
sagem da Escritura, pessimamente distorcida a trelas fixos; enquanto o sol está no centro
seu favor, ousarem troçar ou difamar esta em­ do órbita dos cinco planetas (Mercúrio,
presa, não me preocupo de modo nenhum com Vênus, Marte, Júpiter, Soturno).
eles, pois desprezo o julgamento deles como
temerário, E bem sabido, com efeito, que Lactân-
cio, escritor aliás famoso, mas matemático supe­
rado, falou de modo completomente pueril da Do momento em que me dei conta de que
forma do terra, caçoando daqueles que haviam a velha distribuição ptolomaica dos orbes ce­
mostrado que a terra tem forma de globo. Por­ lestes não era suficientemente coerente e que
tanto, não deve parecer estranho aos estudio­ era supérfluo o recurso a tão numerosos e gran­
sos se alguns também rirem de mim. A matemá­ des epiciclos por meio dos quais se justificam
tica escreve-se para os matemáticos, aos quais os comportamentos dos planetas em relação
- se não me engano - também estes meus tra­ ao sol, suas retrogradações e suas paradas com
balhos aparecerão de algum modo vantajosos alguma parte de sua aparente desigualdade;
para a própria república eclesiástica, da qual Sua logo que me dei conta de que estas hipóteses
Santidade detém agora o principado. Com efei­ contradizem os primeiros princípios da própria
to, há não muito tempo, sob Leão X, quando se teoria, uma vez que admitem a uniformidade
debatia no concilio lateranense a questão de do movimento circular não em torno de seu pró­
emendar o calendário eclesiástico, essa perma­ prio centro, como seria necessário, mas ao re­
neceu então indecisa apenas pela razão de que dor de outro, isto é, ao redor do centro de ou­
as grandezas dos anos e dos meses e os movi­ tro excêntrico (que por este motivo chamam de
mentos do sol e da lua não eram ainda conside­ equante); tendo considerado ao mesmo tem­
rados suficientemente medidos: e desde aquele po a inovação moderna introduzida pelo gran­
tempo pus-me a observar isso mais acurada­ de Copérnico [...], e tendo compreendido como
mente, incitado pelo iluminado bispo de Fossom- ela sabiamente evita tudo aquilo que na dis­
brone, Paulo, que presidia a tais questões. posição ptolomaica resulta supérfluo e in­
O que, portanto, demonstrei nestas coisas, coerente, sem contradizer os princípios da ma­
deixo ao julgamento de Sua Santidade, em pri­ temática, mas, a partir do momento que
meiro lugar, e ao de todos os outros doutores estabelece que o corpo da terra, grande, lento
matemáticos. €, para que não pareça a Sua e inábil para se mover é movido por um movi­
Santidade que sobre a utilidade da obra pro­ mento não mais fragmentário (ou melhor, um
meto mais do que posso oferecer, passo agora tríplice movimento) do que o dos outros astros
ao meu propósito. etéreos, chocava-se não só com os princípios
N. Copérnico, da física, mas também contra a autoridade das
D e re v o lu tio n ib u s orbium coelestium . Sagradas Cscrituras que confirmam em várias
188
Segunda püYte - y\ revolução científica

passagens a estabilidade da terra, para não para Copérnico devia-se ao movimento anual
falar depois do espaço vastíssimo interposto da terra, justifica-se de modo muito convenien­
entre o orbe de Saturno e a oitava esfera que te mediante tais concomitôncias do centro da
esta doutrina torna vazio até as estrelas, e de órbita dos próprios planetas junto com a revo­
outros inconvenientes que acompanham esta lução anual do sol. Deste modo, encontramos
especulação, então, sigo, tendo compreendi­ explicação suficiente para as paradas ou retro-
do bem como ombas essas hipóteses admitis­ gradações dos planetas, paro aproximações e
sem não pequenas absurdidades, comecei a distanciamentos da terra, para a variação da
meditar comigo mesmo profundamente se se­ aparente grandeza e para todos os outros fe­
ria possível encontrar uma hipótese qualquer nômenos de tal monta, originados ou com o pre­
que não estivesse em contraste nem com a ma­ texto dos epiciclos ou pela aceitação do movi­
temática nem com a física, e que não devesse mento da terra. [...] E com isso se torna evidente
fugir ocultamente das censuras teológicas e que, a razão pela qual o movimento simples do sol
ao mesmo tempo, satisfizesse de modo com­ se mistura necessariamente com os movimen­
pleto as aparências celestes. Por fim, quase tos de todos os cinco planetas com peculiar e
inesperadamente, veio-me à mente de qual certo andamento; de forma que todos os fenô­
maneira deva ser disposta oportunamente a menos celestes se referem ao sol como sua
ordem das revoluções celestes, de modo que medida e norma e ele governa toda a harmo­
ficasse excluída toda ocasião para todas estas nia da fila dos planetas como Apoio (nome do
incongruências. € agora comunicarei esta dis­ qual era datado pelos antigos) no meio das
posição dos orbes, já brevemente acenada, aos Musas.
cultores da filosofia celeste. T. Brahe,
Para além de qualquer dúvida, penso que D e m undi a e th e re i recen tio rib u s p h a e n o m e n is,
se deva estabelecer com os antigos astrôno­ lib e r se cu n d u s q u i e s t d e illustri ste lla cciudcita
mos e os pareceres já aceitos pelos físicos, com em La rívoluzione sd e n tifica
d a C o p érn ico a Neuuton,
a atestação ulterior das Sagradas Escrituras,
editada por P. Rossi, Loescher.
que a terra que habitamos ocupa o centro do
universo e que não é movida em círculo por
nenhum m ovim ento a nual, como o quer
Copérnico. Todavia, não ouso confirmar, como
creram Ptolomeu e os velhos astrônomos, que
junto da terra se situem os centros de todos os
orbes do segundo móvel; mas penso que os
circuitos celestes sejam de tal forma governa­
dos que apenas ambos os luminares do mun­
do [o sol e a lua], que presidem a discrimina­
ção do tempo, e com eles a muitíssimo distante
oitava esfera [das estrelas fixas], continente de
todas as outras, olhem para a terra como para
o centro de suas revoluções, Além disso, asse­
vero que os cinco planetas restantes [Mercúrio,
Vênus, Marte, Júpiter, Saturno] desenvolvem
seus próprios giros ao redor do sol como pró­
prio guia e rei, e que sempre o observam quan­
do se situa no espaço intermediário de suas
revoluções. De modo que, em relação ao circui­
to dele também os centros das órbitas que cir­
culam a seu redor realizam um giro anual. €n-
contrei, de fato, que isso não ocorria apenas
em Vênus e Mercúrio para as menores digres­
sões de tais planetas em relação ao sol, mas
também nos três planetas superiores. E desse
modo nestes três mais distantes planetas que,
com a amplitude de suas revoluções ao redor
do sol, incluem a terra e todo o mundo elemen­
tar juntamente com a lua que com ele confina,
toda aparente desigualdade de movimento que
pelos antigos era explicada com os epiciclos, Instrumento astronômico de T. Brahe.
(S apí+ulo d é c im o p r im e ir o

O d ra m a d e Çialileu
e a f u n d a ç ã o d a c iê n c ia m od ern a

• Galileu Galilei (1564-1642) estuda em Pisa como aluno de Ostílio Ricci, discí­
pulo do algebrista Nicolau Tartaglia. Chamado para ensinar em Pádua, aí pronun­
cia a lição inaugural dia 7 de dezembro de 1592. Em Pádua Galileu permanece
dezoito anos, até 1610. A 1610 remonta o Sidereus Nuncius; e, sempre nesse ano,
obtém da parte do grão-duque Cosme II o rendoso posto de
"matemático extraordinário do estúdio de Pisa". Entre 1613 e O e n sin o
1615 Galileu escreve as famosas quatro cartas copernicanas so­ eo mp rim Pádua;
e iro
bre as relações entre ciência e fé: uma a seu discípulo, o beneditino e o s e g u n d o
Benedetto Castelli, duas a dom Piero Dini; e uma à senhora p ro c e ss o ;
Cristina de Lorena, grã-duquesa de Toscana. a so lid ã o
Denunciado ao Santo Ofício, Galileu é processado em Roma d e A r c e t r i
em 1616 e é proibido de ensinar ou defender com a palavra ou -->§1.1
com os escritos a teoria copernicana.
O Saggiatore é de 1623. O Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo
aparece em 1632. Processado pela segunda vez em 1633, Galileu é condenado e
forçado à abjuração. A prisão perpétua lhe é logo comutada em confinamento,
primeiro junto a seu amigo Ascânio Piccolomini, arcebispo de Siena, o qual o tra­
tou com grande e benévola atenção; e depois em sua casa em Arcetri.
Na solidão de Arcetri escreve os Discursos e demonstrações matemáticas so­
bre duas novas ciências, que aparecerão em Leiden em 1638. Assistido por seus
discípulos Vicente Viviani e Evangelista Torricelli, Galileu morre no dia 8 de janeiro
de 1642.

• Na primavera de 1609 Galileu vem a saber que "certo flamengo havia fabri­
cado uma lente mediante a qual os objetos visíveis, por mais distantes que estives­
sem dos olhos do observador, eram vistos distintamente como se
estivessem próximos". A mesma notícia lhe é confirmada por seu G a lile u
ex-discípulo Jacques Badouère. Justamente com base nestas no­ le v a a lu n e ta
tícias Galileu construiu a luneta. E a coisa realmente interessante p a r a " d e n t r o '
é que ele a tenha levado para dentro da ciência, como instru­ d a ciência
mento científico a ser utilizado como potencialização de nossos -->§11.1
sentidos.
• Dia 12 de março de 1610 Galileu publica em Veneza o Sidereus Nuncius,
obra que inicia com estas palavras: "Grandes na verdade são as coisas que neste
breve tratado proponho à visão e contemplação dos estudiosos
da natureza. Grandes, digo, tanto pela excelência da matéria em O " S id e re u s
si mesma, como pela novidade delas jamais ouvida em todos os N u n c iu s "
tempos passados, como também pelo instrumento em virtude c o rro b o ra
do qual as próprias coisas se tornaram manifestas a nosso senti­ o sistem a
do". Mediante a luneta, se podem ver, além das estrelas fixas, c o p e rn ic a n o
"outras inumeráveis estrelas jamais divisadas antes de agora"; o eo dsistem
e sm e n te
a
universo, em suma, torna-se maior; constata-se que a lua não é p to lo m a ic o
um corpo perfeitamente esférico, como até então se acreditava, —» § II1.1-2
mas é escabrosa e desigual como a terra (este é um resultado
190
Segunda pavte - / \ r e v o lu ç ã o c ie u tífic a

que destrói uma coluna da cosmologia aristotélico-ptolomaica, isto é, a idéia da


clara distinção entre a terra e os outros corpos celestes); vê-se que a Galáxia não é
"nada mais que um monte de inumeráveis estrelas, disseminadas em amontoa­
dos"; observa-se que as nebulosas são "rebanhos de pequenas estrelas"; vêem-se
os satélites de Júpiter (e esta descoberta oferecia a Galileu a inesperada visão no
céu de um modelo menor do que o modelo copernicano). Com tudo isso o Sidereus
Nuncius corroborava o sistema copernicano e disparava decisivos golpes contrá­
rios ao sistema ptolomaico.

• Daqui as raízes do desencontro entre Galileu e a Igreja.


Copérnico afirmara que "todas as esferas giram em torno do sol como seu
ponto central e portanto o centro do universo está dentro do sol". E ele pensava
que sua própria teoria fosse uma representação verdadeira do
O p re s s u p o s to universo. Deste parecer era também Galileu: a teoria copernicana
d o d e s e n c o n tr o descreve o sistema do mundo.
e n tr e G a lile u Tal tese realista devia necessariamente aparecer perigosa a
e a Ig re ja todos - católicos e protestantes - pois pensavam que a Bíblia em
-> § IV. 1-2 sua versão literal não podia errar. No Eclesiastes (1,4-5) lemos
que "a terra permanece sempre em seu lugar" e que "o sol surge
e se põe voltando ao lugar de onde surgiu"; e por Josué (10,13) somos informados
de que Josué ordena ao sol que pare. Com base nestas passagens da Escritura
Lutero, Calvino e Melanchton se opuseram ferrenhamente à teoria copernicana.
Lutero dirá que Copérnico é "um astrólogo de quatro vinténs". De sua parte, o
cardeal Roberto Belarmino apresenta uma interpretação instrumentalista da teo­
ria copernicana, no sentido de que ela seria um instrumento capaz de fazer predi-
ções, mas não é propriamente uma descrição verdadeira do mundo: esta é en-
contrável na Bíblia, que não pode errar.

• Galileu teoriza a incomensurabilidade entre saber científico e fé religiosa:


os conhecimentos científicos são autônomos em relação à fé, pois pretendem des­
crever o mundo; os dogmas da fé, as proposições religiosas, de
C iê n c ia e fé : sua parte, não são e não querem ser um tratado de astronomia,
e-e, mas uma mensagem de salvação.
e n ã o ou-ou Galileu fixa o princípio da distinção entre ciência e fé nas
—»§ v.1-3 palavras que ele diz ter ouvido do cardeal Barônio, segundo o
qual "a intenção do Espírito Santo seria ensinar-nos como se vai
ao céu e não como vai o céu". Para Galileu, portanto, ciência e fé são compatíveis
porque incomensuráveis: não se trata de um ou-ou, e sim de um e-e; o discurso
científico é um discurso factualmente controlável, destinado a fazer-nos ver como
funciona o mundo; o discurso religioso é um discurso de "salvação" que não se
ocupa de descrever o mundo, e sim do "sentido" do universo, da vida dos indiví­
duos e de toda a humanidade.

• Dia 19 de fevereiro de 1616 o Santo Ofício passou a seus teólogos as duas


proposições que resumiam o núcleo da questão:
a) "Que o sol esteja no centro do mundo, e por conseguinte
O p r im e iro imóvel de movimento local".
p ro c e ss o b) "Que a terra não está no centro do mundo nem é imóvel,
-»5 vi. 1 mas se move segundo si mesma inteira, também com movimento
diurno".
Cinco dias depois, dia 24 de fevereiro, todos os teólogos do Santo Ofício con­
denaram as duas proposições. A sentença do Santo Ofício é transmitida à Congre­
gação do índex, que no dia 3 de março de 1616 emana a condenação do Coperni-
canismo. Entrementes, dia 26 de fevereiro, Belarmino, sob ordem do papa, tinha
admoestado Galileu a abandonar a idéia copernicana e lhe ordenava, sob pena de
prisão, "não ensiná-la e não defendê-la de nenhum modo, nem com as palavras
nem com os escritos". Galileu concordou e prometeu obedecer.
191
Capítulo décimo primeiro - O d ^ am a d e g a lile u e a fu n d a ç ã o d a c iê n c ia m o d e rn a

• Em 1623 sobe ao trono pontifício, com o nome de Urbano VIII, o cardeal


Maffeo Barberini, amigo e admirador de Galileu. Encorajado por este evento,
Galileu retoma sua batalha cultural; e em 1632 publica o Diálogo de Galileu Galilei
Linceu, onde nos congressos de quatro jornadas se discorre sobre os dois máximos
sistemas do mundo ptolomaico e copernicano. Os interlocutores
do Diálogo são três: Simplicio, que representa o filósofo aristo- O " D iá lo g o
télico, defensor do saber tradicional; Salviati, o cientista coper­ so b re
nicano paciente e resoluto; Sagredo, que representa o público os d o is m á xim o s
aberto à novidade e que deseja conhecer as razões de uma e de siste m a s";
outra parte. O Diálogo se abre com uma declaração favorável à e o s e g u n d o
validez da condenação do Copernicanismo; obviamente, trata­ p ro c e ss o
va-se de um truque não difícil de descobrir: o Diálogo é uma -> § V I 1.1-3
defesa cerrada do sistema copernicano.
Urbano VIII foi convencido pelos adversários de Galileu de que o Diálogo
constituía um descrédito da autoridade e talvez também do prestígio do papa, o
qual estaria sendo ridicularizado na figura de Simplicio. Foi assim que iniciou o
segundo processo contra Galileu. Dia 12 de abril de 1633 Galileu está diante do
Santo Ofício; dia 22 de junho os inquisidores emitem a sentença de condenação e,
no mesmo dia, Galileu pronuncia a abjuração.

• Depois do segundo processo e da abjuração Galileu escre­ O c o n t rib u to


ve os Discursos e demonstrações matemáticas a respeito de duas d e G a lile u
novas ciências, que são a estática e a dinâmica. Tais discursos são p a ra a h istó ria
propostos em forma de diálogo: discute-se sobre a resistência d a s id é ia s
dos materiais, sobre sistemas de alavanca, e está presente a céle­ c ie n tífic a s
bre experiência sobre planos inclinados. Nesta obra apresenta-se -> § V I 11.1-2
o contributo mais original de Galileu à história das idéias cientí­
ficas.

• Querendo agora explicitar mais detalhadamente a imagem galileana da


ciência é preciso salientar que, para Galileu, a ciência não é mais um saber a servi­
ço da fé, não depende da fé, tem um escopo diferente do da fé, aceita-se e encon­
tra fundamentos diferentes dos da fé. Autônoma em relação à fé, a ciência está
desvinculada também do autoritarismo da tradição aristotélica
que bloqueia a pesquisa científica. E contra os aristotélicos G a lile u :
dogmáticos e livrescos, Galileu recorre justamente a Aristóteles, p la t ô n ic o
o qual "antepõe [...] as experiências sensatas a todos os discur­ e m filo so fia ,
sos"; de modo que "não duvido nada de que se Aristóteles vives­ a risto té lic o
se em nosso tempo, mudaria de opinião". Com isso Galileu faz n o m é to d o
"o funeral [...] da pseudofilosofia", mas não o funeral da tradi­ — >§ IX .1 -9
ção enquanto tal.
Com as devidas cautelas se pode dizer que Galileu é platônico em filosofia
("o livro da natureza está escrito em linguagem matemática") e aristotélico no
método (Aristóteles "teria [...] anteposto, como convém, a sensata experiência ao
discurso natural").

• A ciência de Galileu é a ciência de um realista, ou seja, a ciência de um


cientista convicto de que as teorias científicas alcancem e descrevam a realidade; a
ciência é descrição verdadeira da realidade, e nos diz "como vai o céu"; e é obje­
tiva porque descreve as qualidades objetivas e mensuráveis (qualidades primárias)
e não as qualidades subjetivas (qualidades secundárias) dos cor­
pos. E esta ciência, descritiva de realidades objetivas e mensuráveis, " ° munc/o
é possível porque é o próprio livro da natureza que "está escrito está e scrito
em linguagem matemática". A ciência, portanto, é objetiva por­
que não se embrenha nas qualidades subjetivas e secundárias nem ™ § x i -3
se propõe a busca das "essências". Do que foi dito segue-se que a '
192
Segunda pavte - ? \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

pesquisa qualitativa é suplantada pela quantitativa, e são eliminadas as causas


finais em favor total das mecânicas. O universo de Galileu é um universo determi­
nista e mecanicista; não é mais o universo antropocêntrico de Aristóteles e da
tradição, não é mais hierarquizado, ordenado e finalizado em função do homem.
E perdem todo valor os discursos vazios e os ensinamentos de certa tradição filo­
sófica privada de contato com a experiência. Enquanto sobre o mundo nos dão
informações as teorias construídas sobre "sensatas experiências" e "necessárias
demonstrações". A experiência científica de Galileu é o experimento, que se faz
para ver se uma suposição corresponde ou não à realidade.

I. galileu ^Âalilei:
a vida e a s obras

y \ s e t a p a s m a is im p o r t a n t e s Convidado a ensinar em Pádua, Galileu


dá sua aula inaugural em 7 de dezembro de
v\a v i d a d e ó^ alileu
1592. Ele permanecerá durante dezoito anos
(até 1610) em Pádua, os anos mais belos de
Galileu Galílei nasceu em Pisa, em 15 sua vida. Professor de matemática, comen­
de fevereiro de 1564, filho de Vincenzo, ta o Almagesto de Ptolomeu e os Elementos
músico e comerciante, e de Giulia Amman- de Euclides. Entre 1592 e 1593 elabora sua
nati de Pescia. Em 1581, já estava inscrito Breve instrução de arquitetura militar, o
entre os “ alunos artistas” do Estúdio de Pisa. Tratado das fortificações e as Mecânicas. O
Deveria tornar-se médico, mas dedicou-se Tratado da esfera ou Cosmografia é de
aos estudos de matemática, sob a orientação 1597, obra em que Galileu ainda expõe o
de Ostílio Ricci, discípulo do algebrista sistema geométrico de Ptolomeu. Entretan­
Nicolau Tartaglia, a quem devemos a fór­ to, duas cartas dessa época (a primeira para
mula de resolução das equações de terceiro Jacopo Mazzoni, em 30 de maio de 1597; a
grau. Em 1585, Galileu escreve os Teore­ segunda para Kepler, de 4 de agosto do mes­
mas sobre o centro de gravidade dos sóli­ mo ano) indicam que ele já abraçara a teo­
dos, em latim. Em 1586, publica a Bilan- ria copernicana. Freqüenta os ambientes
cetta, onde se mostra evidente a influência culturais paduanos e venezianos, tendo es­
do “ divino Arquimedes” e onde — e esse treitado amizade com Giovanfrancesco Sa-
é o dado importante — mais do que inda­ gredo (nobre veneziano e estudioso de óti­
gar sobre a natureza dos corpos, procura- ca), com frei Paulo Sarpi e com frei Fulgêncio
se determinar seu peso específico. Para Micâncio.
Galileu, a Bilancetta constitui “ sua estréia Ainda em Veneza, relaciona-se com
na produção científica” . Entrementes, po­ Marina Gamba, da qual terá três filhos:
rém, ele também cuidava de seus interesses Virgínia, Lívia e Vincenzo. Em Pádua, esta­
humanísticos, como mostram as duas au­ belece amizade com o aristotélico César
las que ministrou na Academia Florentina, Cremonini. Em 1606, publica As operações
em 1588, Sobre a figura, o local e a grande­ do compasso geométrico militar.
za do inferno de Dante e as Considerações Em 1609, tendo recebido a notícia so­
sobre Tasso, que remontam aproximada­ bre a luneta, a reconstrói por sua conta e a
mente ao ano de 1590. Nomeado profes­ aperfeiçoa. Depois, ousa apontá-la in supe-
sor de matemática em Pisa em 1589, com o rioribus e faz as rumorosas descobertas as­
apoio do cardeal Francisco dei Monte, em tronômicas expostas no Sidereus Nuncius,
1590 Galileu escreveu o De Motu, cuja te­ de 1610. Ainda em 1610, já famoso, é agra­
oria central, embora modificada, ainda é a ciado pelo grão-duque Cosme II, dos Médici,
teoria do impetus. com o cargo (muito rentável) de “ matemá­
193
Capítulo décimo primeiro - O d r a m a d e (g a lile u e a f u n d a ç ã o d a c i ê n c i a m o d e r n a

tico extraordinário do Estúdio de Pisa” , sem Galileu quem a batizou [...]. Ele deu o pri­
ter obrigação de residência local nem de meiro passo importante, abrindo desse
ministrar lições, bem como o posto de “ fi­ modo o caminho, novo e imenso, que leva­
lósofo do Sereníssimo Duque” . ria a mecânica a progredir enquanto ciên­
Em Florença, prossegue suas pesquisas cia” . Em Arcetri, Galileu teve o consolo de,
astronômicas, mas sua adesão ao coperni- por algum tempo, ser assistido pela irmã
canismo começa a criar-lhe as primeiras di­ Maria Celeste (sua filha Virgínia), que, no
ficuldades. Entre 1613 e 1615, escreve as entanto, morreu em 2 de abril de 1643, aos
famosas quatro cartas copernicanas sobre trinta e três anos. Para Galileu, essa morte
as relações entre ciência e fé: uma ao seu foi “ matéria de inconsolável pranto” . Pou­
discípulo, o beneditino Benedetto Castelli; cos dias depois, em uma carta ao irmão de
duas a dom Piero Dini e uma à senhora sua nora, Geri Bocchineri, que era empre­
Cristina de Lorena, grã-duquesa da Toscana. gado nos escritórios do governo grão-ducal,
Acusado de heresia devido ao seu coper- Galileu escreverá estas palavras: “ [Sinto] tris­
nicanismo, e depois denunciado ao Santo teza e melancolia imensas, inapetência ex­
Ofício, foi processado em Roma em 1616, trema, tornei-me odioso para mim mesmo.
sendo-lhe imposto não ensinar nem defen­ E sinto que sou continuamente chamado
der com a palavra e com escritos as teorias pela minha querida filhinha.”
incriminadas. Da polêmica com o jesuíta Para compreender as relações entre
Horácio Grassi sobre a natureza dos come­ Galileu e sua filha predileta, que foi mulher
tas nasceu o Saggiatore, publicado em 1623. de finíssimos sentimentos e de “ elevado in­
Essa obra defende uma teoria dos cometas telecto” , basta acenar a algumas cartas por
que depois se revelaria equivocada (Galileu ela enviadas ao pai, em Roma, depois da
sustentava que os cometas seriam aparên­ condenação de 1633. Galileu não queria que
cias produzidas pela luz refletida sobre os a notícia de sua condenação chegasse aos
vapores de origem terrestre). Entretanto, ouvidos de sua filha, freira e pessoa de gran­
como veremos adiante, nela já são propos­ de sensibilidade religiosa. Mas tratava-se de
tos alguns dos elementos básicos da concep­ um fato que não podia ficar oculto. Tão lo­
ção filosófica e metodológica de Galileu. go a irmã Maria Celeste soube da condena­
Em 1623 subiu ao trono pontifício, ção do pai, enviou-lhe uma carta (em 30 de
com o nome de Urbano VIII, o cardeal Maf- abril): “ Caríssimo senhor pai, quis escre­
feo Barberini, amigo de Galileu, que já lhe ver-lhe agora, de modo que saiba que estou
havia sido favorável e que chegara a prote­ a par de suas vicissitudes, o que lhe deve
ger o próprio Campanella. Retomando co­ servir como lenitivo. E deixei de escrever
ragem e esperança, Galileu escreve o Diálo­ qualquer outra carta, desejando que essas
go sobre os dois máximos sistemas do coisas desgostosas sejam só minhas [...].”
mundo (1632). Apesar das precauções to­ Nos primeiros dias de julho, escreve-lhe no­
madas, não foi difícil compreender que a vamente: “ Caríssimo senhor pai: agora é o
nova obra representava a mais firme defesa momento de, mais do que nunca, lançar mão
do copernicanismo. Novamente processa­ daquela prudência que Deus nosso Senhor
do em 1633, Galileu foi condenado e obri­ lhe concedeu, suportando esses golpes com
gado a abjurar. Logo a prisão perpétua foi a fortaleza de espírito que a profissão, reli­
comutada com a pena de confinamento, pri­ gião e idade exigem. E como, pela muita
meiro junto ao seu amigo Ascânio Piccolo- experiência, o senhor pode ter plena cons­
mini, arcebispo de Siena, que o tratou com ciência da falácia e instabilidade de todas
muita atenção, e depois em sua casa de as coisas deste pobre mundo, não deverá
Arcetri, onde não podia encontrar ninguém fazer muito caso dessas borrascas; aliás,
nem podia escrever nada sem autorização pode até esperar que logo se aquietem, trans­
prévia. formando-se em satisfação para o senhor.”
Foi precisamente na solidão de Arcetri E em 16 de julho: “ Quando V. Sa. estava em
que Galileu escreveu sua obra mais original Roma, dizia-me em meus pensamentos: se
e de maior relevo: os Discursos e demons­ eu tiver a graça que ele parta de lá e venha
trações matemáticas sobre duas novas ciên­ para Siena, isso me bastará, pois poderei
cias, que foram publicados em Leiden, em quase dizer que estará em sua casa. E agora
1638. Mais tarde, escreveria Lagrange: “A não me contento, pois morro de vontade
dinâmica é uma ciência devida inteiramen­ de tê-lo aqui mais próximo” . Tendo, por­
te aos cientistas da época moderna. Mas foi tanto, a irmã Maria Celeste morrido em
194
Segunda pãTte - y \ ^evolutpào cieia+íjica

1634, Galileu ficou inconsolável. Depois, co de Viviani, Galileu “ com filosófica e cris­
porém, pouco a pouco se recuperou, re­ tã consciência entregou a alma a seu Cria­
tornou à ciência e escreveu seus grandes dor, saindo desta vida — e nos alegramos
Discursos. No último período de sua vida, em crer nisso — para desfrutar e ver mais
Galileu perdeu a visão e foi acometido de de perto aquelas maravilhas eternas e imu­
muitos e graves sofrimentos. Na noite de 8 táveis que, por meio de frágil artifício, mas
de janeiro de 1642, assistido por seus dis­ com tanta avidez e impaciência, ele ha­
cípulos Vincenzo Viviani e Evangelista Tor- via procurado aproximar de nossos olhos
ricelli, como podemos ler no Relato históri­ mortais” .
195
Capítulo décimo primeiro - O d t*am a d e £Ãalileu e. a fi/m d a ç ã o d a c i ê n c i a m o d e r n a

r :“ I I . £ Â a lil e u ith :

e a u a lu u e + a

1 ; A lirn e fa o céu, Galileu começou a acumular toda


uma série de provas que, por um lado, asses-
c o m o irvsleumervlo ciervfrfieo
tavam golpes decisivos à venerável imagem
aristotélico-ptolomaica do mundo, enquan­
Em 1597, em uma carta a Kepler, Gali- to, por outro lado, afastavam do caminho
leu afirma ter aderido “ já há muitos anos os obstáculos que se interpunham à aceita­
[...] à doutrina de Copérnico” . E acrescen­ ção do sistema copernicano, oferecendo a
ta: “ Partindo dessa posição, descobri as cau­ este uma forte cadeia de suportes.
sas de muitos efeitos naturais, que, sem dú­ Na primavera de 1609, Galileu teve a
vida alguma, são inexplicáveis com base na informação de que “certo flamengo fabri­
hipótese corrente. Já escrevi muitas argu­ cara uma lente através da qual os objetos
mentações e muitas refutações dos argumen­ visíveis, mesmo muito distantes do olho do
tos contrários, mas até agora não ousei observador, podiam ser vistos distintamen­
publicá-las, apavorado com o destino do te como se estivessem próximos” . A notícia
próprio Copérnico, nosso mestre” . Poucos foi-lhe confirmada logo depois, de Paris, por
anos depois, porém, essas preocupações e um ex-discípulo, Tiago Badouère, “ o que
esses temores desvaneceram-se totalmente, constituiu por fim o motivo que me impeliu
quando, em 1609, apontando a luneta para a dedicar-me totalmente a procurar as ra-

CSi I i l j s S( i h r r !tm /, ■<. i . l '

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196
Segunda parte - y \ r e v o lu ç ã o e ie u ií | it o

zões e cogitar os meios pelos quais eu pode­ Delia Porta que, com sua Magia natural
ría chegar à invenção de um instrumento (1589), arrancou as lentes do mundo dos
semelhante” . Então Galileu preparou um tu­ artesãos para englobá-las na filosofia. E tan­
bo de chumbo, a cujas extremidades apli­ to Delia Porta como Kepler (nos Paralipo-
cou duas lentes, “ ambas planas de um lado, mena ad Vitellionem, 1604) “chegaram bem
ao passo que, do outro, uma era convexa e perto da luneta, quase que raspando-a a
outra côncava; aproximando o olho da côn­ ponto de escrever frases que podiam fazer
cava, vi os objetos bastante grandes e pró­ crer que a haviam encontrado, mas não con­
ximos, já que apareciam três vezes mais pró­ seguiram concretizá-la” . Não havia con­
ximos e nove vezes maiores do que quando fiança nas lentes, pensava-se que elas “ en­
eram vistos apenas com a visão natural. De­ ganavam” , havia a idéia de que os olhos que
pois, preparei outro, mais exato, que repre­ o bom Deus nos deu eram suficientes para
sentava os objetos mais de sessenta vezes ver as coisas que existem, não necessitando
maiores” . E por fim, diz ainda Galileu, “ sem de “ aperfeiçoamentos” . Além disso e acima
poupar esforço nem despesa alguma, che- de tudo, havia arraigados preconceitos por
guei a ponto de construir um instrumento parte da cultura acadêmica e eclesiástica em
tão excelente que as coisas vistas por meio relação às artes mecânicas. Mesmo depois,
dele aparecem quase mil vezes maiores e a expressão “vil mecânico” seria tomada
mais de trinta vezes mais próximas do que como ofensa. E o próprio Delia Porta, em
quando olhadas apenas com a faculdade 28 de agosto de 1609, ou seja, quatro dias
natural. Seria inteiramente supérfluo enu­ depois que Galileu escreveu ao doge Leo­
merar quantas e quais são as vantagens desse nardo Donato apresentando-lhe a luneta,
instrumento, tanto na terra como no mar” . enviaria de Nápoles uma carta a Federico
Em 25 de agosto de 1609, Galileu apresen­ Cesi, fundador da Academia dos Linceus,
tou ao governo de Veneza aquele aparelho, na qual lê-se: “Vi o segredo da lente: é uma
como invenção sua. O entusiasmo foi gran­ burla, que examinei em meu livro De refrac-
de, tanto que a renda anual de Galileu foi tione. E a escreverei, pois que, querendo-a
aumentada de quinhentos para mil florins, fazer, apesar de tudo, V.E. se comprazerá
sendo-lhe também feita a proposta de reno­ nisso.”
vação vitalícia do contrato de ensino, cujo Em substância, a importância de Gali­
prazo se encerraria no ano seguinte. leu em relação à luneta está no fato de que
Ora, como observou Vasco Ronchi, a ele superou toda uma série de obstáculos
invenção da luneta por obra de holandeses epistemológicos, ou seja, idéias que proi­
ou até mesmo, um pouco antes, por mãos biam outras idéias e posteriores pesquisas.
de italianos, ou a redescoberta e reconstru­ Os militares não se desconcertaram diante
ção da luneta por parte de Galileu não é um da novidade e o público culto não manifes­
episódio que possa causar grande admira­ tou nenhuma confiança na luneta. Dizia-se,
ção. O fato realmente importante é que por exemplo, que ela não proporcionava
Galileu levou a luneta para dentro da ciên­ imagens verídicas, mas Galileu confessa a
cia, usando-a como instrumento científico Matteo Carozio que experimentou seu te­
e concebendo-a como potencialização dos lescópio “cem mil vezes em cem mil estrelas
nossos sentidos. e objetos diversos” . Diz Geymonat que a
A filosofia da Idade Média havia igno­ observação desses “objetos diversos tinha a
rado as lentes de óculos, coisa para doen­ função de fornecer-lhe provas da veridici-
tes, para velhos ou para fazer truques du­ dade do aparelho, ao passo que a observa­
rante as feiras. Elas foram estudadas por ção das estrelas visava a dar-lhe provas de
Francisco Maurólico, mas foi Giambattista sua importância” . 2]
197
Capitulo décimo ptimeito - O drama de Galileu e a fundação da ciência moderna

III. O 5 d e r a w s T V un aius
e a s con-pi p m a ç õ e s d o s i s f e m a c o p e m i c a n o

1 O u n iv e r s o t o r n a - s e m a io r 5) Mas o argumento mais importante


do Sidereus Nuncius, para Galileu, é a des­
coberta dos satélites de Júpiter (que, em
homenagem a Cosme II, dos Médici, ele
Em 12 de março de 1610 Galileu publi­ chamou de “ estrelas mediceanas” ), pois
ca em Veneza o Sidereus Nuncius, assim es­ dava a possibilidade de “ revelar e divulgar
crevendo no começo da obra: “ São verda­ quatro planetas, nunca vistos desde as ori­
deiramente grandes as coisas que proponho gens do mundo até nossos dias, dando oca­
neste tratado à visão e à contemplação dos sião de descobri-los e estudá-los, além de
estudiosos da natureza. Grandes, digo eu, tan­ sua posição e das observações feitas duran­
to pela excelência da matéria em si mesma te os dois últimos meses sobre seus movi­
como por sua novidade, jamais ouvida nos mentos e suas transformações” . Essa des­
tempos passados, como ainda pelo instru­ coberta oferecia a Galileu a inesperada visão,
mento em virtude do qual essas coisas se tor­ no céu, de um modelo menor que o univer­
naram manifestas ao nosso sentido” . so copernicano.
Eis as grandes coisas que Galileu pro­
põe à visão e à contemplação dos estudio­
sos da natureza:
1 ) O acréscimo à multidão das estrelas 1 o choque
fixas, visíveis também a olho nu, de “ ou­ e n f r e o s m á x im o s s is te m a s
tras inumeráveis estrelas jamais vistas an­ do m undo
tes” . O universo, portanto, torna-se maior.
2) “ Com a certeza que é dada pela ex­
periência sensível” , é possível apreender que À medida que se obtinham confirma­
“ a lua não é, em absoluto, feita de uma su­ ções da teoria copernicana, ao mesmo tem­
perfície lisa e polida, mas escalavrada e de­ po caía aos pedaços a concepção do mundo
sigual e, da mesma forma que a face da ter­ aristotélico-ptolomaica. Antes de mais nada,
ra, apresenta-se em grande parte coberta de contra Aristóteles e Ptolomeu, Galileu pode
grandes proeminências, profundos vales e sustentar que não há diferença de natureza
sinuosidades” . Esse resultado é de grande entre a terra e a lua: portanto, entre os as­
relevância, pois destrói a distinção entre tros, pelo menos a lua não possui as carac­
corpos terrestres e corpos celestes, uma dis­ terísticas de “ absoluta perfeição” que a tra­
tinção que era um verdadeiro pilar de sus­ dição a ela atribuía; ademais, embora sendo
tentação da cosmologia aristotélico-ptolo- como a terra, a lua se move e, sendo assim,
maica. por que não deveria mover-se também a ter­
3) O dado de que a galáxia “ nada mais ra, que, precisamente, não é de natureza di­
é do que um amontoado de inumeráveis ferente da lua? Assim, a imagem do universo
estrelas, disseminadas aos punhados; para não somente se amplia, através da observa­
qualquer região dela que se dirija a luneta, ção das galáxias, das nebulosas e de outras
logo grande multidão de estrelas apresenta- estrelas fixas, mas também muda: o mundo
se à vista [...]” . Através dessa observação, sublunar não é diferente do lunar. E muda
Galileu sustenta ficarem resolvidas, “ com a também pelo fato de que a observação das
certeza que é dada pelos olhos, todas as dis­ estrelas fixas nos põe em condições de dizer
putas que por tantos séculos atormentaram que elas estão muito mais distantes dos pla­
os filósofos, libertando-nos de discussões netas e não apenas por detrás do céu de Sa­
verbosas” . turno, como exigia a tradição. E, como dis­
4) “Ademais (maravilha ainda maior), semos, com seus satélites Júpiter oferecia um
as estrelas chamadas até hoje pelos astrô­ modelo em escala reduzida do sistema co­
nomos individualmente como nebulosas são pernicano.
amontoados de pequenas estrelas, dissemi­ Assim, estão em competição duas gran­
nadas de modo admirável” . des teorias. Trata-se de dois sistemas: o
198
Segunda parte - y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

ptolomaico (com a terra fixa no centro e o


sol girando) e o copernicano (no qual é a **’>• £*«■« * <-8c^ «Za » -r
terra que gira em torno do sol). Com o Side-
reus Nuncius, Galileu apresenta argumen­
tos contra o primeiro e em favor do segun­ ‘J t í -
do: cada argumento que corrobora a teoria
copernicana é mais um golpe que atinge a /fyf
U n.......
•** •• **
^ ®
*V í »« /hU
concepção ptolomaica. Mas as coisas não o»* -2 im *** •
ficam nisso.
Com efeito, pouco antes de partir de y w mibmt.À £+4 tÂ*. $fr&«W ^
Pádua, transferindo-se para Florença, e logo W#jdf*
no início do seu período florentino (11 de •X
/U* **.'*+- 4i «mt ?wm*
setembro de 1611), Galileu efetua outras *** </‘***. XfMi&***ib> Z : *fftm.
observações de importância capital para o *► * ^C*XjrA ^ ***** «->«/*/ **sujíu+- w
fortalecimento da doutrina de Copérnico e X-á. w
que, ao mesmo tempo, iriam acabar de de­ fax*. Átwt* í» >JW
»
molir o sistema de Ptolomeu. Antes de mais *tft»u
nada, ele nota o aspecto tricorpóreo de Sa­
turno (trata-se do anel de Saturno, que não j 'v -*
** ***■ «.•*.», ...i. . , / .x
w 9»/ O.:._* - n . ~ . ^ ,
r-» *■>•->* -42«A» / < * , w4^-* ma m
podia ser distinguido pela luneta de Galileu), <*, íC
mas sobretudo descobre as fases de Vênus e V* > y . VI» A **J**4 M íL a t*M.‘ £ * .4

as manchas do sol. Vênus mostra fases como Wi, “>»


-j ^ ÍA »,
a lua: essa é uma “ sensata experiência” , r * '^ fiamjáú. j t í t t < * x - 9 • * * *
explicável na teoria copernicana, mas não "V- "» <í2wr'<> 9.»**» t »“»»
v, umJ . . Z V - -
na de Aristóteles e Ptolomeu. Desse modo, *
r^ in ru ç ix t - ' ' V w d K M . i» u » » « » “
“temos [...] fatos certos de que todos os pla­
netas recebem a luz do sol, sendo por sua
natureza escuros” . Ademais, Galileu está
certo “ de que as estrelas fixas são por si
mesmas muito luminosas, não tendo neces­ í' ! . i ! ‘ i i ií;;.;/ ; r/i; í j i t i 1 ( l i d a i
; ; ,</ y. -i / j
sidade da irradiação do sol, que só Deus sabe
se chega a tanta distância” . A propósito das
manchas solares, escrevendo a Federico Cesi
em 12 de maio de 1612, Galileu afirma que
tal novidade é “ o funeral ou, mais, o extre­ í'õ>,/ Sul(';'vM \'!! ih Ml'-.
mo e último juízo sobre a pseudofilosofia” . /- N?-/ I<)i•,■>■!.* nf, ;v. c ./ ( ■dihlcn
Ao contrário do que sustenta a concepção J í !■' //.•» ■ (7/ t/f 7b/ WOildu >>!<)!<,}
aristotélica, também no sol ocorrem muta­ • k/ . ' / c o ( /. * / / / / / / v > ; i i p n a i i j >i <>.

ções e alterações.
Chegado a esse ponto, Galileu já não
sabe imaginar como é que os peripatéticos vio (Cristóvão Klau), professor de matemá­
poderíam salvar e manter a “ imutabilidade tica no Colégio Romano, a fim de salvar a
dos céus” . Na realidade, os peripatéticos co­ “ perfeição” da lua, cogitou a hipótese de
gitarão “ imaginações” (hoje, diriamos “ hi­ que as montanhas e os vales observados por
póteses ad boc” ) em favor do sistema ptolo­ Galileu sobre a face da lua seriam recobertos
maico em perigo. Assim, por exemplo, o por uma substância cristalina transparente
jesuíta Cristóvão Scheiner interpretará as e perfeitamente esférica. Assim, diante dos
manchas solares como “enxames” de astros ataques “ factuais” realizados por Galileu
girantes diante do sol. Essa hipótese visava contra a teoria ptolomaica, Clávio efetuava
levar a causa das manchas para fora do sol, um contra-ataque “teórico” (logicamente
restabelecendo assim a imutabilidade e a possível, mas metodologicamente incorre­
“perfeita” constituição do sol. Mas Galileu to, porque, impedindo a descoberta de er­
fez notar que as manchas eram irregulares ros em uma teoria, impedia o avanço no
em sua formação e desenvolvimento, além sentido de teorias melhores e, portanto, o
de serem disformes, não apresentando por­ progresso do saber), um contra-ataque vol­
tanto, em absoluto, as características de um tado para o restabelecimento da velha teo­
sistema de astros. Outro jesuíta, o padre Clá- ria. E Galileu respondeu a Clávio:
199
Capítulo décimo primeiro - O d i*a m a d e Cialilew e a fu n d a ç ã o d a c i ê n c i a m o d e r n a

“Verdadeiramente, a imaginação é bela mente a favor do primeiro. Como escreve


(...); só peca por não ser demonstrada nem Thomas S. Kunh: “ A teoria de Copérnico
demonstrável.” Naquela época, a hipótese [...] sugeria que os planetas deviam ser se­
de Clávio, com efeito, não podia ser verifi­ melhantes à terra, que Vênus devia apresen­
cada empiricamente (mas hoje o seria): como tar fases e que o universo devia ser muito
podia Clávio provar a existência de uma mais amplo do que se supusera anteriormen­
esfera cristalina circundando a lua? E se fos­ te. Conseqüentemente, quando, sessenta
se dito que há uma substância cristalina so­ anos depois de sua morte, o telescópio reve­
bre a lua, mas disposta em forma de vales e lou repentinamente a existência de monta­
montanhas, de que modo Clávio poderia nhas sobre a lua, as fases de Vênus e um
demonstrar a falsidade dessa hipótese? A número imenso de estrelas, de cuja existên­
realidade é que a “ revolução científica ope­ cia não se suspeitava antes, essas observa­
rada por Galileu não se baseia somente nas ções converteram à nova teoria numerosos
novidades contidas em (suas) descobertas, cientistas, particularmente entre os que não
mas também e sobretudo na nova maturi­ eram astrônomos” . Mas, com isso, Galileu
dade metodológica por elas revelada” (L. havia estabelecido todas as condições que o
Geymonat). Em todo caso, por meio de suas levariam ao choque com a Igreja.
descobertas astronômicas, Galileu resolveu E pouquíssimos o defenderam aberta­
a disputa entre o sistema copernicano e o mente: entre os que o defenderam, estava
sistema aristotélico-ptolomaico completa­ Campanella.

........ .................. I V . (g a lile u :

a s r a í z e s d o c k o c ju e c o m a g ec j a
e a c ^ í+ ic a d o m s + m m c E v + a lis m o d e S e i a c m m o

1 7A o r ig e m d o s d is s íd io s somente instrumentos capazes de fazer previ­


sões sobre os movimentos celestes com maior
ervfre C ã a lile u e a id g r e j a
rapidez.
Em sua A ceia das cinzas, Giordano Bru­
no voltou-se contra a interpretação instru­
Copérnico havia afirmado que “todas mentalista das teorias de Copérnico dada
as esferas giram em torno do sol como ao por Osiander, afirmando que tudo o que Co­
seu ponto central e, portanto, o centro do pérnico escreve na carta dedicatória a Pau­
universo está em torno do sol” . Ele pensava lo III, introdutória ao De revolutionibus,
que se tratasse de uma representação ver­ mostra claramente que ele não é apenas um
dadeira do universo. “ matemático que supõe” , mas também um
Mas, como sabemos, no prefácio ao De “ físico que demonstra o movimento da ter­
revolutionibus, o luterano Andreas Osiander ra” . E acrescentava que o prefácio anôni­
(1498-1552) afirmou que “não é necessá­ mo (de Osiander) foi “grudado” à obra de
rio que essas hipóteses sejam verdadeiras e Copérnico “ não sei por qual asno ignoran­
nem mesmo verossímeis; basta apenas que te e presunçoso” . E também para Kepler “as
elas ofereçam cálculos em conformidade hipóteses de Copérnico não apenas não es­
com a observação” . Ptolomeu, cujas teorias tão erradas em relação à natureza, mas es­
entravam em colisão com a física de Aristó­ tão até em maior consonância com ela. Com
teles, também sustentara que suas hipóteses efeito, a natureza ama a simplicidade e a
fossem “cálculos matemáticos” em condi­ unidade [...]” e Copérnico conseguiu “ não
ções de “ salvar as aparências” e não descri­ apenas [...] demonstrar os movimentos trans­
ções verdadeiras dos movimentos reais. Para corridos, que remontavam à distante anti­
Osiander, portanto, como já ocorrera com guidade, mas também os movimentos futu­
Ptolomeu, as teorias astronômicas eram ros, se não de modo certíssimo, pelo menos
200
Segunda püTte - revolução científica

de modo mais seguro do que o faziam


Ptolomeu, Afonso e outros” .
Agora, porém, a defesa da tese realista
■ Anticopernicanos. 1 (a tese segundo a qual o sistema copernicano
■j seria uma descrição verdadeira da realida­
Jean Bodin: "N e n h u m h o m e m em de e não um conjunto de instrumentos de
p le n a p o sse d e su a s fa c u ld a d e s m en- | cálculo para fazer previsões ou possibilitar
ta is, o u e n t ã o d o t a d o d a s m ais ele- J um calendário melhor) não podia deixar
m e n ta re s n o ç õ e s d e física, ja m a is p o ­ de parecer perigosa para todos aqueles
d e rá crer q u e a te rra , p e sa d a e len ta
que, católicos ou protestantes, pensavam
p o r se u p ró p rio p e so e p e la su a m as- í
sa, se a g ite p a ra cim a e p a ra b aixo em
que, em sua versão literal, a Bíblia não po­
re d o r d e seu c e n tro e d o sol, p ois, a o dia errar. O Eclesiastes (1,4-5) diz que “ a
m ín im o a b a lo d a te rra , v e ria m o s d e s­ terra permanece para sempre (em seu lugar)”
m o ro n a r a s c id a d e s e fo r ta le z a s, a l­ e que “ o sol se levanta, o sol se deita, apres­
d e ia s e m o n ta n h a s". sando-se a voltar ao seu lugar” . Já em Josué
Martinho Lutero: "A s p e ss o a s d e ram (10,13), pode-se ler que Josué ordenou ao
o u v id o s a um a str ó lo g o d e q u a tro vin­ sol que se detivesse. Pois bem, foi com base
té n s, q u e se e m p e n h o u em d e m o n s­ nesses trechos da Escritura que Lutero, Cal­
tra r q u e é a te rra q u e g ira, e n ã o o s vino e Melanchton opuseram-se duramente
céu s e o firm a m en to , o sol e a lua [...]. à teoria copernicana.
E ste lo u c o p r e t e n d e a b a la r t o d a a Se o copernicanismo parecia perigoso
ciên cia a stro n ô m ic a; m as a S a g r a d a para os protestantes, fautores do contato
E scritura n o s d iz (Jo su é 10,13) q u e imediato de cada crente com as fontes tes-
Jo su é o rd e n o u a o sol e n ã o à te rra
q u e p arasse ".
tamentárias, muito mais perigoso devia ser
para os católicos, segundo os quais a inter­
Filipe Melanchton: "O s o lh o s n os m os­ pretação da Sagrada Escritura depende do
tra m com to d a ev id ên cia q u e o s céu s magistério eclesiástico. A Contra-reforma
realizam u m a rev o lu ção n o e sp a ç o d e
não poderia admitir que um crente qualquer
v in te e q u a tr o h oras. T odavia, alg u n s,
p o r c a u sa d e n o v id a d e s o u p a ra d a r
— mesmo que fosse um Galileu — estabe­
p ro v a d e e n g e n h o , su ste n ta ra m q u e lecesse os princípios hermenêuticos de in­
a te r r a se m ov e [...]. É fa lt a d e h o n e s­ terpretação da Bíblia e propusesse inter­
tid a d e e d e d ig n id a d e su ste n ta r p u ­ pretações deste ou daquele trecho. Aí reside
b lic am e n te ta is co n ceito s, e o e x e m ­ a raiz do choque entre Galileu e a Igreja. E
p lo é p e r ig o s o " . aí residem as razões da interpretação ins­
João Calvino: "Q u e m te r á a o u sa d ia trumentalista do copernicanismo proposta
d e a n te p o r a a u to r id a d e d e C opér- por Belarmino e rejeitada pelo realista
nico à d o Espírito S a n t o ? " . Galileu.
Roberto Belarmino: "D ig o q u e [...] o
C o n cilio p r o íb e e x p o r a s e sc ritu ra s
c o n tra o c o n se n so co m u m d o s s a n ­
2 ; A s r e la ç õ e s
t o s P a d res; e se V.Sa. q u ise r ler n ã o
d ig o a p e n a s o s s a n to s P ad res, m as o s f e n fe e C â a lile u e B e l a rm m o
c o m e n tá r io s m o d e r n o s s o b r e o
G ênesis, so b re o s Salm os, so b re o Ecle-
sia ste s, s o b r e Jo su é , e n c o n tra rá q u e Em 1615, em Nápoles, onde ensinava
to d o s co n v êm em e x p o r ad litteram
q u e o sol e stá n o céu e g ir a a o re d o r
filosofia e teologia, o matemático e teólogo
d a te rra com su m a v e lo c id a d e , e q u e carmelita Antônio Foscarini (1565-1616) pu­
a te r r a e n c o n tra -se a fa sta d ís s im a d o blicou uma Carta sobre a opinião dos pita-
céu e e stá n o c e n tro d o m u n d o , im ó ­ góricos e de Copérnico, na qual se harmoni­
vel. C o n sid e re e n t ã o o sen h or, com zam e se apaziguam as passagens da Sagrada
s u a p ru d ê n c ia , se a Igre ja p o d e s u ­ Escritura e as proposições teológicas, que
p o r ta r q u e se d ê à s E sc ritu ra s um jamais se poderíam apresentar contra tal
s e n tid o c o n trá rio a o s s a n to s P ad res opinião. Foscarini enviou seu pequeno tra­
e a t o d o s o s e x p o sito re s g r e g o s e la ­
tado a Belarmino, pedindo ao cardeal um
t in o s " .
parecer sobre ele. E Belarmino responde com
breve carta, “porque o senhor agora tem
pouco tempo para ler e eu para escrever” .
201
Capítulo décimo primeiro - O d t*am a d e g a l i l e u e a jxii\da<pâo d a c iê n c ia m o d e r n a

Essa breve carta é um texto clássico do ins- que seja para proibir, mas crê que o pior
trumentalismo. Belarmino recorda a Fosca- que possa acontecer-lhe seria fazer-lhe uma
rini que, “ como sabe o senhor, o Concilio advertência de que sua doutrina teria sido
proíbe que se exponham as Escrituras con­ introduzida para salvar as aparências, ou
tra o comum consenso dos santos Padres. E coisa semelhante, dirigida àqueles que in­
se V. Sa. quiser ler, não digo somente os san­ troduziram os epiciclos e depois não acre­
tos Padres, mas também os comentadores ditaram mais [...]” .
modernos, sobre o Gênesis, sobre os Sal­ Pois bem, respondendo de Florença a
mos, sobre o Eclesiastes e sobre Josué, verá Dini, em 23 de março, Galileu reafirmou a
que todos convergem em expor ad litteram veracidade do sistema copernicano. Na opi­
que o sol está no céu e gira em torno da nião de Galileu, Copérnico falou da cons­
terra com suma velocidade, bem como que tituição do universo e descreveu aquilo que
a terra está muito distante do céu e está no existe realmente in rerum natura, “ de modo
centro do mundo, imóvel. E considere ago­ que querer persuadir que Copérnico não
ra o senhor, com sua prudência, se a Igreja considerava verdadeira a mobilidade da
pode suportar que se dê às Escrituras um terra, ao meu ver, não poderia encontrar
sentido contrário aos santos Padres e a to­ concordância, senão, talvez, junto a quem
dos os expositores gregos e latinos” . Mas não o tenha lido, visto que todos os seus
logo afirma: “ Quanto ao sol e à terra, ne­ seis livros estão plenos de doutrina que de­
nhum sábio tem necessidade de corrigir o pende da mobilidade da terra, explicando-
erro, porque experimenta claramente que a a e confirmando-a. E se, em sua dedicató­
terra está firme e que o olho não se engana ria, ele muito bem entende e confessa que
quando julga que a lua e as estrelas se mo­ a posição da mobilidade da terra o levaria
vem” . Sendo assim, e considerando que o a ser considerado tolo universalmente, juí­
Concilio tridentino proibiu interpretar as Es­ zo que ele afirma não levar em conta, mui­
crituras “contra o comum consenso dos san­ to mais tolo teria sido ele deixar-se repu­
tos Padres” , Belarmino afirma: “ Parece- tar por uma opinião por ele introduzida,
me que V.Sa. e o senhor Galileu seriam mas não inteira e verdadeiramente acre­
prudentes em contentar-se de falar ex suppo- ditada” .
sitione e não em absoluto, como sempre Em suma, Copérnico não é um “mate­
acreditei que Copérnico tenha feito. Pois mático” que apronta hipóteses como puros
dizer que a suposição de que a terra se move instrumentos de cálculo, mas sim um físico,
e o sol está firme salva as aparências melhor que pretende dizer como realmente são as
que os excêntricos e epiciclos está muito coisas. Em conseqüência disso, prossegue
bem dito, não havendo perigo algum — Galileu, Copérnico “ não é capaz de mode­
e isso basta para o matemático. M as que­ ração, constituindo a mobilidade da terra e
rer afirmar que realmente o sol está no a estabilidade do sol o ponto principal de
centro do mundo e só gira sobre si mes­ toda a sua doutrina e o seu fundamento
mo, sem correr do Oriente para o Ociden­ universal: por isso, é preciso condená-lo in­
te, e que a terra está no terceiro céu e gi­ teiramente ou deixá-lo em seu ser” .
ra com suma velocidade em torno do sol é Realista é Copérnico e realista é Gali­
coisa perigosa, capaz não somente de irri­ leu. Mas se, como fazia Belarmino e, com
tar todos os filósofos e teólogos escolásti- ele, a Igreja, se supõe que as passagens da
cos, mas também arriscado de incomodar Bíblia relativas ao sistema do mundo, in­
a Santa Sé por tornar falsas as Escrituras Sa­ terpretadas literalmente pela tradição, são
gradas.” efetivamente verdadeiras e intocáveis, en­
Galileu, porém, não era da opinião de tão o choque frontal entre a Igreja e Gali­
Belarmino. Para ele, as “ sensatas experiên­ leu tornava-se inevitável, dada a interpre­
cias” e as “ demonstrações certas” estavam tação galileana realista da doutrina de
ali, proclamando a veracidade do sistema Copérnico, doutrina que contrastava com
copernicano. Em 7 de março de 1615, dom as passagens bíblicas referidas e interpreta­
Piero Dini, que era então referendário apos­ das ao pé da letra. E foi sobre esse aspecto
tólico junto à corte pontifícia, enviou uma importante que acabou ocorrendo o cho­
carta a Galileu, informando ter mantido que entre Galileu e a Igreja. Galileu teve de
longo colóquio com o cardeal Belarmino e ceder. Mas primeiro vejamos de que modo
comunica-lhe o seguinte: “ Quanto a Co­ Galileu concebia as relações entre ciência
pérnico, diz S.S. Ilma. não poder acreditar e fé. [5 ]
202
Segunda pavte - y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

V. A iu c o m e u s u r a b ilid a d e
e n tr e c iê n c ia e fê

;A S a g r a d a S s c r itw r a Em suma: não é intenção da Sagrada


Escritura “ nos ensinar se o céu se move ou
n ã o se. r e fe re
está firme, nem se sua figura é em forma de
à e s tru tu ra d o co s m o esfera, de disco ou estendida num plano,
nem se a terra está contida em seu centro
ou de um lado” . Por isso, “também não terá
Por um lado, Galileu teoriza a demar­ tido nem mesmo a intenção de nos tornar
cação entre proposições científicas e propo­ certos de outras conclusões do mesmo gê­
sições de fé, reclamando a autonomia dos nero, relacionadas com as que agora referi­
conhecimentos científicos, que são compro­ mos, sem cuja determinação não se pode
vados e avaliados por meio da aparelhagem asseverar esta ou aquela posição, como seja
constituída pelas regras do método experi­ a determinação do movimento ou da quie­
mental (“ sensatas experiências” e “demons­ tude da terra e do sol” .
trações certas” ). Mas, por outro lado, essa
autonomia das ciências em relação às Sa­
gradas Escrituras encontra sua justificação
no princípio (que, em sua carta à senhora 2 ^Awtorromia d a c i ê n c i a
Cristina de Lorena, em 1615, Galileu diz ter e m r e l a ç ã o ã s é d s c r ifn r a s
ouvido do cardeal Barônio) de que “ a in­
tenção do Espírito Santo é a de nos ensinar
como se vai ao céu e não como vai o céu” . Conseqüentemente, não sendo função
A poiando-se em santo Agostinho (In da Escritura determinar “ a constituição e
Genesim ad litteram, lib. II, c. 9), Galileu os movimentos dos céus e das estrelas” , Ga­
afirma que “ não somente os autores das lileu chega a afirmar: “ Parece-me que, nas
Sagradas Escrituras não pretenderam nos disputas sobre problemas naturais, não se
ensinar a constituição e os movimentos dos deveria começar pela autoridade de passa­
céus e das estrelas, com suas figuras, gran­ gens das Escrituras, mas sim pelas sensatas
dezas e distâncias, mas também, estudan­ experiências e pelas demonstrações neces­
do-se bem, embora todas essas coisas fos­ sárias: pois, procedendo do verbo divino a
sem conhecidíssimas deles, vê-se que eles se Escritura sagrada e igualmente a natureza,
abstiveram disso” . Diz Galileu que Deus nos aquela como ditada pelo Espírito Santo e
deu sentidos, discurso e intelecto: é por meio esta como observantíssima executora das
deles que podemos chegar àquelas “conclu­ ordens de Deus; e mais, convindo às Escri­
sões naturais” que podem ser obtidas “pe­ turas, para acomodar-se ao entendimen­
las sensatas experiências ou pelas necessá­ to universal, dizer muitas coisas diversas da
rias demonstrações” . verdade absoluta, em aspecto e quanto ao
A Escritura não é um tratado de astro­ cru significado das palavras; mas, ao con­
nomia, tanto que, “ se os escritores sagra­ trário, sendo a natureza inexorável e imu­
dos houvessem pensado em persuadir o tável e nunca não-transcendente aos termos
povo das disposições e dos movimentos dos das leis que lhe são impostas, como a de que
corpos celestes e se, conseqüentemente, nós suas recônditas razões e modos de operar
devéssemos ainda ter essa informação das estão ou não expostos à capacidade dos
Sagradas Escrituras, então, a meu ver, eles homens; parece então que a questão dos efei­
não teriam tratado tão pouco do assunto, tos naturais que a sensata experiência nos
quase nada em comparação com as infini­ coloca diante dos olhos ou as demonstra­
tas e admiráveis conclusões contidas e de­ ções necessárias concluem, não deva ser, por
monstradas em tal ciência” . Com efeito, nas nenhuma razão, posta em dúvida, menos
Escrituras não encontramos nem mesmo ainda condenada, por passagens da Escri­
nomeados os planetas, exceto o sol e a lua, tura que apresentassem aparência diversa
e somente uma ou duas vezes, sob o nome nas palavras, pois nem toda palavra da Es­
de Lúcifer, o planeta Vênus” . critura está ligada a obrigações tão severas
Capítulo décimo primeiro - O d r a m a d e Cã lileu a a f u n d a ç ã o d a c iê n c ia m o d e r n a

como todo efeito da natureza, nem se des­


cobre Deus com menos excelência nos efei­
tos da natureza do que nas palavras sagra­
1 ■ Fé religiosa (finalidade da fé).
das das Escrituras.” ; " N ã o t e n d o d e s e ja d o o E s p ír it o S a n ­
Fica, portanto, reivindicada a autono­ ' t o e n s in a r -n o s se o c é u s e m o v e o u se
mia da ciência: tudo aquilo de que podemos fe e s t á p a r a d o , n e m s e s u a f o r m a s e ja a
ter informação através das “ experiências i d e e s f e r a o u d e d is c o o u e s t e n d i d a n o
sensatas” e das “ necessárias demonstrações” > p la n o , n e m s e a t e r r a e s t e ja c o n t id a
fica subtraído à autoridade das Escrituras. I n o c e n t r o d e l e o u d e u m la d o , n ã o t e r á
j t id o n e m m e s m o a in t e n ç ã o d e t o r -
í n a r -n o s c e r t o s d e o u t r a s c o n c lu s õ e s d o
? m e s m o g ê n e r o , e lig a d a s d e a lg u m

3 . A s é r is c H fu m s s e ee fe e e m
'

m o d o c o m a s a g o r a c it a d a s , q u e s e m
a d e t e r m in a ç ã o d e la s n ã o se p o d e
à n o s s a s a lv a ç ã o a s s e r ir e s t a o u a q u e la p a r t e ; c o m o ,
i p o r e x e m p lo , d e t e r m in a r o m o v im e n -
i t o e o r e p o u s o d e u m a t e r r a e d o s o l.
No entanto, se as Escrituras não são j E s e o p r ó p r io E s p ír it o S a n t o p r u d e n -
um tratado de astronomia, qual é então seu y t e m e n t e o m it iu e n s in a r -n o s t a is p r o -
objetivo? De que nos falam? Qual é o âm­ j p o s iç õ e s , c o m o n a d a a t i n e n t e s à s u a
I in t e n ç ã o , o u s e j a , p a r a n o s s a s a lv a ç ã o ,
bito das “ verdades” que, não sendo englo-
f c o m o s e p o d e r á a g o r a a f ir m a r , q u e
báveis na ciência, elas podem propor e es­ í m a n t e r d e la s e s t a p a r t e , e n ã o a q u e -
tabelecer? A essas interrogações, Galileu f Ia , s e j a t ã o n e c e s s á r i o q u e u m a s e j a
responde o seguinte: “ Eu consideraria [...] t de fide, e a o u t r a e r r ô n e a ? P o d e r á ,
que a autoridade das Sagradas Escrituras | e n t ã o , h a v e r u m a o p i n iã o h e r é t ic a , e
tenha o objetivo de persuadir os homens I e m n a d a r e f e r e n t e à s a l v a ç ã o d a s a l-
principalmente daqueles artigos e proposi­ | m a s ? O u p o d e r e m o s d iz e r q u e o Es-
ções que, superando todo discurso huma­ C p ír it o S a n t o t e n h a d e s e ja d o n ã o e n -
i s i n a r - n o s u m a c o is a q u e s e r e f e r e à
no, não poderiam fazer-se críveis por outra
ciência nem por outro meio senão pela boca t s a lv a ç ã o ? E u d ir ia a q u i a lg o q u e ,o u v i |
r d e u m a p e s s o a e c le s iá s t ic a e m e m i- ^
do próprio Espírito Santo” . I n e n t ís s im o g r a u [c a r d e a l B a r ô n io ] , *
As proposições de fide dizem respeito à | is t o é , a i n t e n ç ã o d o E s p í r i t o S a n t o é f
nossa salvação (“como se vai ao céu” ), sen­ t n o s e n s in a r c o m o s e v a i a o c é u , e n ã o
do “ decretos de absoluta e inviolável vera­ | c o m o v a i o c é u [...]" . ;
cidade” . Em outros termos, a Escritura é l A s s im e s c r e v ia G a lile u , e m 1 6 1 5 , à s e -
uma mensagem de salvação que deixa intacta í n h o r a C r is t in a d e L o r e n a .
a autonomia da investigação científica.
Mas não é só isso, pois Galileu se em­ r> r , "\,r ... \ ' ^ i í .. c ^
penha em outras importantes considerações:
1) Erram aqueles que pretendem se
deter sempre no “puro significado das pa­
lavras” , pois, caso se fizesse isso, escreve 3) A Escritura “ não apenas é capaz,
Galileu numa carta de 1613 a dom Bene- mas necessariamente carente de exposições
detto Castelli, então na Escritura “ apare­ diversas do aparente significado das pala­
ceríam não somente diversas contradições, vras” , pois os escritores sacros dirigem-se “a
mas também graves heresias e blasfêmias, povos rudes e indisciplinados” .
já que seria necessário ver em Deus pés, 4) “Ademais, sendo manifesto que duas
mãos e olhos, bem como efeitos corporais e verdades não podem se contrariar nunca, é
humanos, como os de ira, de arrependimen­ função dos sábios expositores esforçarem-
to, de ódio e até, por vezes, de esquecimen­ se por encontrar o sentido das passagens
to das coisas passadas e de ignorância das sacras, harmonizando-as com aquelas con­
futuras” . clusões naturais que se tornaram certas e
2) Daí deriva que, tendo a Escritura seguras pelo sentido manifesto ou pelas de­
sido obrigada a se “ acomodar à incapaci­ monstrações necessárias.”
dade do vulgo” , então “ os sábios exposito­ 5) Desse modo, a ciência torna-se um
res produzem os vários sentidos e acrescen­ dos instrumentos a serem usados para se
tam as razões particulares pelas quais foram interpretar alguns trechos da Escritura.
proferidas tais palavras” . Com efeito, “tendo adquirido a certeza de
Segunda parte - r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

algumas proposições naturais, devemos nos 3) devido às suas finalidades, a Escri­


servir delas como meios adequadíssimos tura não tem nenhuma autoridade no que
à verdadeira exposição das Escrituras e à se refere a todos aqueles conhecimentos
investigação dos sentidos que necessaria­ que podem ser estabelecidos por meio de
mente estão contidos nelas, como verdadei­ “sensatas experiências e necessárias demons­
ros e conformes com as verdades demons­ trações” ;
tradas” . 4) quando fala sobre aquilo que é ne­
6 ) Por outro lado, na carta a dom Piero cessário para a nossa salvação (ou sobre
Dini, em 1615, Galileu afirma que é preciso coisas não cognoscíveis por outro meio ou
ter muita circunspecção “ no que se refere por outra ciência), a Escritura não pode ser
àquelas conclusões naturais que não são de desmentida;
fide, mas às quais podem chegar a expe­ 5) entretanto, dado que escritores sa­
riência e as demonstrações necessárias” , e cros dirigiam-se ao “ vulgo rude e indis­
diz que “ seria pernicioso asseverar como ciplinado” , em muitas passagens a Escritu­
doutrina resolvida nas Sagradas Escrituras ra necessita de interpretação;
alguma proposição da qual, alguma vez, 6 ) a ciência pode constituir um meio
se pudesse ter demonstração em contrário” . para interpretações corretas;
Com efeito, “ quem quer pôr um termo ao 7) nem todos os intérpretes da Escritu­
gênio humano? E quem poderá afirmar que ra são infalíveis;
já se sabe tudo aquilo que é sabível no 8) não se pode comprometer a Escri­
mundo?” . tura em coisas que o homem pode conhecer
7) Em suma, a Escritura não deve ser com sua razão;
comprometida por intérpretes falíveis e não 9) a ciência é autônoma: suas verdades
inspirados no que se refere a questões que são estabelecidas com sensatas experiências
podem ser resolvidas pela razão humana. e demonstrações certas e não com base na
Como a ciência progride, é pernicioso pre­ autoridade da Escritura;
tender comprometer a Escritura em propo­ 10) nas questões naturais, a Escritura
sições (como, por exemplo, as posições de vem em último lugar.
Ptolomeu) que posteriormente poderão ser Portanto, na opinião de Galileu, ciên­
refutadas. Desse modo, “ além dos artigos cia e fé são incomensuráveis. E, sendo inco-
referentes à salvação e ao estabelecimento mensuráveis, são compatíveis. Ou seja, não
da fé, contra a firmeza dos quais não há se trata tanto de um ou-ou, mas muito mais
qualquer perigo de que possa se insurgir de um e-e. O discurso científico é um dis­
nunca alguma doutrina válida e eficaz, tal­ curso empiricamente controlável, que visa
vez fosse um ótimo conselho não acrescentá- a nos fazer compreender como funciona este
los outros sem necessidade. E, sendo assim, mundo, ao passo que o discurso religioso é
quanto maior não seria a desordem o acres­ discurso de salvação, que não se preocupa
centá-los a pedido de pessoas que, além de com “ o que” , mas sim com o “ sentido” das
ignorarmos, se dizem inspiradas por virtu­ coisas e da nossa vida. A ciência é cega para
de celeste e vemos claramente que são de o mundo dos valores e do sentido da vida; a
todo despidas daquela inteligência que se­ fé é incompetente sobre questões factuais.
ria necessária, não digo para retrucar, mas Ciência e fé tratam cada qual de suas ques­
mesmo para compreender, as demonstra­ tões próprias: é essa a razão pela qual se
ções com as quais as agudas ciências proce­ harmonizam. Elas não se contradizem e nem
dem na confirmação de algumas de suas con­ podem se contradizer, já que são incomen­
clusões?” suráveis: a ciência nos diz “como vai o céu”
Portanto: e a fé nos diz “como se vai ao céu” .
1) a Escritura é necessária para a sal­ Assim, quando emergem coisas que
vação do homem; parecem contradições, deve-se logo suspei­
2 ) os “ artigos relativos à salvação e ao tar que o cientista transformou-se em meta­
estabelecimento da fé” são tão firmes que físico ou então que o homem religioso trans­
contra eles “ não há qualquer perigo de que formou o texto sagrado em um tratado de
possa se insurgir um dia alguma doutrina física ou biologia (ou em algum capítulo de
válida e eficaz” ; tais tratados). ITffgTTI
205
Capítulo décimo primeiro - O d ^ a m a d e Í^Àalileu e a j- u h d a ç ã o d a c i ê n c i a m o d e r n a

V I. o p a im e i^ o p r o c e s s o

1 , 1-V im eiea a d v e e fê r\ c ia março de 1616, tal Congregação emitiu a


condenação do copernicanismo. Nesse meio
a Eãalilew
tempo, em 26 de fevereiro, por ordem do
p a r a n ã o s u ste n ta r papa, o cardeal Belarmino advertia Galileu
a t e o r ia cope-rv\\<zav\a para que abandonasse a idéia copernicana
e o instava, sob pena de prisão, “ a não en­
siná-la e não defendê-la de nenhum modo,
nem com a palavra nem com os escritos” .
No dia de finados de 1612, em um ser­ Galileu aquiesceu (acquievit), prometendo
mão pronunciado em Florença, na Igreja de obedecer. (Aqui, deve-se observar que mui­
São Mateus, o dominicano Nicolau Lorini to se discutiu sobre a autenticidade da ata
acusou os copernicanos de heresia. Dois dessa sessão, ata que seria importante para
anos depois, em 1614, outro dominicano, o segundo processo. Santillana sustenta que
Tomás Caccini, em sermão pronunciado no isso seja uma falsidade, posta na ata pelo
quarto domingo de Advento, na Igreja de comissário, padre Seguri, particularmente
Santa Maria Novella, empreendeu outro hostil em relação a Galileu.)
ataque contra os defensores da teoria co- Depois da advertência, Galileu perma­
pernicana. Em 7 de fevereiro de 1615, o neceu em Roma por mais três meses. Como
mesmo Nicolau Lorini denunciou Galileu ao se havia difundido o boato de que ele abju-
Santo Ofício, enviando cópia da carta de rara suas próprias teorias diante do cardeal
Galileu a dom Benedetto Castelli e chaman­ Belarmino, Galileu pediu-lhe uma declara­
do a atenção sobre algumas proposições ção, que o cardeal emitiu, para poder des­
“ perigosas” , como as que asseveravam “ que mentir as acusações e calúnias que circula­
certos modos de dizer da santa Escritura não vam sobre a sua posição. Pode-se ler nessa
são válidos; que, nas coisas naturais, as Es­ declaração: “ Nós, Roberto cardeal Belar­
crituras têm o último lugar; que os intérpre­ mino, tendo sabido que o senhor Galileu
tes freqüentemente erram; que as Escrituras Galilei está sendo caluniado ou acusado de
só dizem respeito à fé; que, nas coisas natu­ ter abjurado em nossa mão, e também de
rais, a argumentação matemático-filosófica ter sido por isso penitenciado com penitên­
é superior” . cias salutares, e interessados na busca da ver­
Em 19 de fevereiro de 1616, o Santo dade, declaramos que o referido senhor
Ofício passou a seus teólogos as duas pro­ Galileu não abjurou em nossa mão nem de
posições que resumiam o núcleo da questão outros aqui em Roma, nem mesmo em ou­
para que fossem examinadas. As duas pro­ tro lugar que nós saibamos, de alguma sua
posições eram as seguintes: a) “ Que o sol é opinião ou doutrina, nem que tenha recebi­
o centro do mundo, sendo conseqüentemen- do penitências salutares ou de outra ordem,
te imóvel de movimento local.” b) “ Que a mas somente lhe foi anunciada a declara­
terra não está no centro do mundo nem é ção [...] cujo conteúdo é o de que a doutri­
imóvel, mas move-se por si mesma, também na atribuída a Copérnico, de que a terra se
de movimento diário” . Cinco dias depois, move em torno do sol e que o sol está fir­
em 24 de fevereiro, todos os teólogos, de me no centro do mundo, sem mover-se do
acordo, sentenciaram que a primeira pro­ Oriente para o Ocidente, é contrária às sa­
posição era tola e absurda em filosofia e gradas Escrituras, não podendo por isso ser
formalmente herética, enquanto contrasta­ defendida nem mantida. E para dar fé dis­
va com as sentenças da sagrada Escritura so, escrevemos e assinamos a presente de
em seu significado literal e segundo a expo­ próprio punho.”
sição comum dos santos Padres e dos dou­ Com essa declaração em mãos, Galileu
tores em teologia. E acrescentaram que a partiu de Roma para Florença em 4 de ju­
segunda proposição merecia a mesma cen­ nho de 1616. Não somente Belarmino, mas
sura em filosofia e que, teologicamente, era também os cardeais Alexandre Orsini e
pelo menos errônea em relação à fé. Francisco Maria dei Monte expressaram
O Santo Ofício transmitiu a sua sen­ sentimentos de “ elevada reputação” em re­
tença à Congregação do Index. Em 3 de lação a Galileu. Entretanto, este se defron-
206
Segunda parte - / \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

tara com sua primeira derrota. Bem perce­ Entre outras coisas, escrevia o embaixador:
bera o embaixador da Toscana em Roma, “ Sei bem que alguns frades de São Domin­
Pedro Guicciardini, que, quando soube que gos, que têm grande participação no Santo
Galileu iria a Roma para se defender, es­ Ofício, e outros nutrem má vontade para
creveu uma carta ao ministro dos Médici, com ele. E este não é um lugar para se vir
Cúrcio Picchena, na qual observava que discutir sobre a lua, nem, no século que
Galileu iludia-se ao pretender levar idéias corre, querer defender ou trazer doutrinas
novas para a capital da Contra-reforma. novas” .

----- V II. A de^^ocada —


d a c o s m o lo g ia a n s to te J ic a
e o s e g u n d o p ro c e s s o

LAm a s ó f ís i c a bas+ a Diálogo de Galileu Galilei Linceu, no qual,


nos congressos de quatro jornadas, se dis­
paea o mundo c e le s fe
corre sobre os dois máximos sistemas do
e o le.eeestee mundo, ptolomaico e copernicano, de 1632.
No preâmbulo da obra, Galileu escreve que
considera a teoria de Copérnico como “pura
Em polêmica com o jesuíta Horácio hipótese matemática” e acrescenta que o
Grassi a propósito da natureza dos come­ trabalho pretende mostrar aos protestantes
tas, Galileu publicou o Saggiatore em 1623, e a todos os outros que a condenação do
obra à qual voltaremos quando tratarmos copernicanismo estabelecida pela Igreja em
da questão do método, já que ela contém 1616 fora uma coisa séria, fundada em
precisamente importantíssimas doutrinas motivos derivados da piedade, da religião,
filosófico-metodológicas. Entretanto, ainda do reconhecimento da onipotência divina e
em 1623, mais precisamente em 6 de agos­ da consciência do quanto é débil o conheci­
to, foi eleito papa, com o nome de Urbano mento humano. Obviamente, o truque era
VIII, o cardeal Maffeo Barberini, amigo e facilmente desmascarável.
sincero admirador de Galileu, e Galileu ti­ Os interlocutores do Diálogo são três:
vera provas da estima de Barberini quando Simplício, Salviati e Sagredo. Simplício re­
do processo de 1616. presenta o filósofo aristotélico, defensor do
Assim, retemperado por esse fato, Ga­ saber constituído da tradição; Salviati é o
lileu retomou sua batalha cultural. Para co­ cientista copernicano, cauteloso mas reso­
meçar, respondeu à pretensa refutação do luto, paciente e tenaz; Sagredo representa o
sistema copernicano feita por Francisco público, aberto para a novidade, mas que
Ingoli, de Ravena, secretário da Congrega­ quer conhecer as razões de ambas as partes.
ção de Propaganda Fide. E voltou ao pro­ Historicamente, Filipe Salviati (1583-1614)
blema das marés (Diálogo sobre o fluxo e o era um nobre florentino, amigo de Galileu;
refluxo do mar), persuadido de que tinha Giovanfrancesco Sagredo (1571-1620) era
em mãos uma prova arrasadora, de ordem um nobre veneziano muito ligado a Galileu;
física, do movimento da terra e, portanto, Simplício talvez recorde um comentador de
do copernicanismo. Com efeito, Galileu Aristóteles que viveu no século IV. O diálo­
apresentava as marés como resultado do mo­ go foi escrito propositadamente em lingua­
vimento de rotação diário da terra e do mo­ gem popular, já que “ o público que Galileu
vimento de revolução anual. Sua interpre­ quer convencer é o das cortes, das novas ca­
tação estava errada: o problema das marés madas intelectuais, da burguesia e do clero” .
seria resolvido mais tarde por Newton com E são quatro as jornadas “ nos congres­
a teoria da gravitação. sos” em que se desenvolve o Diálogo. A pri­
Em todo caso, Galileu discute sobre meira jornada dedica-se a demonstrar a fal­
esses assuntos na quarta jornada do seu ta de fundamento da distinção aristotélica
207
Capítulo décimo primeiro - O d ^ a m a d e C\o\\ fimdaç.ao da ciência modei*Ka

entre o mundo celeste, que seria incor­ te, coisa que não deveria se verificar se a
ruptível, e o mundo terrestre dos elementos terra se movesse; as coisas que “ se mantêm
que, ao contrário, seria mutável e alterável. longamente no ar” , como o caso das nu­
Não existe tal distinção: isso é atestado pe­ vens, deveríam nos aparecer em movimen­
los sentidos, potencializados pela luneta. E to veloz se a terra verdadeiramente se mo­
como também para Aristóteles aquilo que vesse; ao se disparar dois projéteis iguais
dizem os sentidos está no fundamento do de um mesmo canhão, um em direção ao
discurso, então, como Salviati recorda a Sim- oriente e outro em direção ao ocidente, en­
plício, “ estarás filosofando mais aristote- tão o alcance deste último deveria ser muito
licamente dizendo que o céu é alterável por­ maior que o do outro, já que, enquanto o
que assim mostram os sentidos do que projétil se desloca em direção ao ocidente, o
dizendo que o céu é inalterável porque as­ canhão também deveria se deslocar, seguin­
sim discursou Aristóteles” . As montanhas do o movimento da terra, em direção ao
sobre a lua, as manchas lunares e o movi­ oriente. Mas, como isso não ocorre, então
mento da terra atestam que existe uma só a terra não está em movimento, diz Sim-
física e não duas físicas, uma válida para o plício. Ademais, continua argumentando
mundo celeste e outra para o terrestre. E na Simplício, se, em um navio parado, faz-se
“ perfeição” dos movimentos circulares que cair uma pedra de cima do mastro, ela cai
Aristóteles fundamenta a “perfeição” dos perpendicularmente na base do próprio
corpos celestes; depois, com base nesta últi­ mastro; mas, sendo em um navio em movi­
ma, afirma a veracidade da primeira. Na mento, então a pedra que se deixa cair do
realidade, o movimento circular pertence alto do mastro cai longe da base do mas­
não só aos corpos celestes, mas também à tro, desviando-se em direção à popa. En­
terra. Conseqiientemente, na segunda jor­ tão, o mesmo deveria ocorrer com uma
nada, o Diálogo volta-se para a crítica dos pedra que se deixa cair de cima de uma tor­
argumentos observados e típicos da obser­ re, supondo-se que a terra esteja em movi­
vação comum que eram propostos contra a mento. Mas isso não se dá; portanto, a terra
teoria copernicana. Entretanto, antes de está parada.
passar para a segunda jornada (e depois à Pois bem, nesse ponto, partindo da
terceira, ambas dedicadas à análise e à so­ experiência que Simplício afirma verificar-
lução das dificuldades contra o movimento se sobre o navio, Galileu, pela boca de Sal­
diário e anual da terra), Galileu realiza in­ viati e Sagredo, estabelece o princípio da
teressantes considerações sobre a linguagem, relatividade dos movimentos, destruindo
que ele vê como “ o selo de todas as admirá­ com isso de um só golpe todas aquelas “ ex­
veis invenções humanas” . E escreve: “ Mas, periências” do senso comum que eram ar­
acima de todas as estupendas invenções, que gumentadas contra a teoria do movimento
mente eminente foi aquela de quem imagi­ da terra. Em suma, por meio de suas teo­
nou encontrar os modos de comunicar seus rias, consegue varrer todo o conjunto de “fa­
recônditos pensamentos a qualquer outra tos” contrários a Copérnico e favoráveis a
pessoa, mesmo que distante por longuíssimo Ptolomeu, substituindo-os por outros “ fa­
intervalo de tempo e de lugar? falar com tos” , outras “experiências” e outras “evi­
aqueles que estão na índia ou com aqueles dências” . Com efeito, quem quer que faça a
que ainda não nasceram nem nascerão se­ experiência da pedra sobre o navio, verá que
não daqui a mil ou dez mil anos? e com tal ela “ mostra todo o contrário daquilo que é
facilidade? com as várias junções de vinte escrito” .
sinaizinhos sobre um papel!” Diz Salviati: “ Encerra-te com algum
amigo no maior cômodo que exista sob a
coberta de algum grande navio. Cuida de
que haja moscas, borboletas e semelhantes
O p e in c íp io d e r e la t i v i d a d e animaizinhos voadores. Que exista também
um grande vaso com água, com peixinhos
g a lile a r\ o
dentro. Suspenda-se também no alto algu­
ma jarra, que gota a gota vá derramando
água em outro vaso, de boca estreita, que
Portanto, existem argumentos antigos esteja colocado embaixo. Estando o navio
e atuais contra o movimento da terra. Eis parado, observa com atenção como os ani­
alguns: os graves caem perpendicularmen­ maizinhos voadores, com igual velocidade,
208
Segunda parte - y\ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

vão em direção a todas as partes do cômo­ Também não se deve esquecer que, pelo
do; verás os peixes nadando indiferentemen­ princípio da relatividade, Galileu consegue
te em todas as direções; as gotas que caem neutralizar todo um conjunto de experiên­
entrarão todas no vaso que está embaixo; ao cias que apontavam contra o sistema coper-
jogar alguma coisa para teu amigo, não de­ nicano, construindo outros fatos e interpre­
verás lançá-la com mais força para esta par­ tando diversamente os antigos.
te do que para aquela, quando as distâncias E, mais ainda, o fato de que todo mo­
forem iguais; e, ao saltar, como se diz, com vimento é relativo significa que o movimento
os pés juntos, percorrerás espaços iguais em não é atribuível a um corpo em si mesmo: e
qualquer direção. Oserva que terás diligen­ isto é o fim da doutrina aristotélica e medie­
temente todas essas coisas, embora não haja val do impetus, ou seja, de um movimento
nenhuma dúvida de que assim devem ocor­ que necessita de um motor para produzi-lo
rer quando o navio está parado. Então, faz e conservá-lo. Repouso e movimento são
com que a nave se mova com qualquer ve­ dois estados persistentes dos corpos. E as­
locidade que queiras (desde que o movimen­ sim Galileu abre o caminho para a formu­
to seja uniforme e não flutuante daqui para lação do princípio de inércia.
ali) e verás que não reconhecerás nem míni­
ma mudança em todos os efeitos citados,
nem por qualquer dos efeitos poderás per­
ceber se o navio está andando ou parado: O se-gunclo processo:
continuarás percorrendo os mesmos espa­ a czoncl& nação
ços que antes no chão; por mais que a nave
e a a h ju r a ç ã o
se mova velozmente, nem por isso darás
saltos maiores em direção à popa do que à
proa, muito embora, no tempo em que es­
tiveres no ar, o chão esteja se deslocando Urbano VIII foi convencido pelos ad­
em direção à parte contrária à do teu sal­ versários de Galileu de que o Diálogo so­
to; ao jogar alguma coisa para teu compa­ bre os dois máximos sistemas do mundo
nheiro, não precisarás atirá-la, para atin­ constituía uma afronta, desacreditando
gi-lo, com maior força se ele estiver na a autoridade e até o prestígio do papa, que
direção da proa do que da popa, estando teria sido ridicularizado na figura de Sim-
situado tu no ponto oposto; as gotas d’água plício, defensor daquela “ admirável e ver­
continuarão caindo como antes no vaso que dadeiramente angélica doutrina” , à qual “ é
está embaixo, sem que uma sequer caia em forçoso acomodar-se” , de que se fala na
direção à popa, muito embora, enquanto a última página do Diálogo. Logo depois de
gota está no ar, a nave ande muitos palmos.” sua publicação, o inquisidor de Florença
Tudo isso nos mostra que, com base ordenou que sua difusão fosse suspensa.
em observações mecânicas realizadas no in­ Em outubro de 1632, ordenou-se a Galileu
terior de determinado sistema, é impossí­ que fosse a Roma, para ficar à disposição
vel estabelecer se tal sistema está parado do Santo Ofício. Galileu tentou atrasar sua
ou em movimento retilíneo uniforme: “ Se­ viagem para Roma, alegando motivos de
ja, portanto, o princípio de nossa contem­ saúde, mas a reação da Inquisição foi du­
plação o considerar que, seja qual for o ríssima. Em 12 de abril de 1633 Galileu
movimento que se atribua à terra, é neces­ estava diante do Santo Ofício, sendo acu­
sário que a nós, como habitantes dela e, sado de ter enganado o padre Riccardi, que
conseqüentemente, partícipes desse movi­ dera o imprimatur ao Diálogo, porque não
mento, apresente-se inteiramente impercep­ lhe havia comunicado o preceito que lhe
tível, sendo como se não existisse enquanto fora imposto em 1616, segundo o qual
estivermos olhando somente para as coi­ Galileu não podia “ ensinar ou defender de
sas terrestres.” modo algum” a teoria de Copérnico. Ga­
A importância desse princípio de rela­ lileu defendeu-se afirmando que o Diálogo
tividade (galileana) salta logo aos olhos se fora escrito para mostrar a não-validade
recordarmos que a relatividade estrita de do copernicanismo e que não se recordava
Einstein outra coisa não é do que uma am­ de nenhum preceito que lhe houvesse sido
pliação da relatividade galileana a todos os imposto em presença de testemunhas. E
fenômenos naturais, inclusive os da eletrodi- mostrou a declaração que lhe havia sido da­
nâmica e da ótica” . da por Belarmino em 1616.
Capítulo décimo primeiro - O d r a m a d e CÀ* ilileu e a jtm d a tp ã o d a c iê n c ia m o d e r n a .....-..

Persuadidos de que Galileu quisesse solutos, mais que antes, com coração since­
enganá-los, visto que o Diálogo era forte ro e fé não fingida, diante de nós, abjures,
defesa da idéia copernicana, realizada ade­ maldigas e detestes os referidos erros e he­
mais com “ argumentos novos, nunca pro­ resias, bem como qualquer outro erro e he­
postos antes por nenhum ultramontano” ; resia contrários à Igreja católica e apostóli­
irritados por ter Galileu escrito a obra não ca, do modo e na forma que por nós te serão
em latim, mas em linguagem popular, “ para dados [...]” .
arrastar à sua parte o vulgo ignorante, que E eis as partes inicial e final do texto
é fácil presa do erro atentando para o com o qual Galileu abjurou: “Eu, Galileu,
fato de que “ o autor sustenta ter discutido filho daquele Vincenzo Galileu de Florença,
uma hipótese matemática, mas confere-lhe nesta minha idade de setenta anos, consti­
uma realidade física, coisa que os matemá­ tuído pessoalmente em juízo e ajoelhado
ticos nunca fazem” — com base em tudo diante de vós, Eminentíssimos e Reveren-
isso, depois de outro interrogatório, os in­ díssimos Cardeais, Inquisidores gerais em
quisidores emitiram sua condenação em 22 toda a República Cristã contra a herética
de junho. E nesse mesmo dia, de joelhos, maldade, e tendo diante de meus olhos os
Galileu abjurou. “Dizemos, pronunciamos, sacrossantos Evangelhos, que toco com as
sentenciamos e declaramos — assim termi­ próprias mãos, juro que sempre acreditei,
na o texto da condenação — que tu, o refe­ acredito agora e, com a ajuda de Deus, acre­
rido Galileu, pelas coisas aduzidas em pro­ ditarei também no futuro em tudo aquilo
cesso e por ti confessadas como referidas que a santa Igreja católica e apostólica man­
acima, te tornaste para este Santo Ofício tém, prega e ensina [...]. Portanto, queren­
veementemente suspeito de heresia, isto é, do eu retirar da mente das Eminências
de haver mantido e crido em doutrina falsa Reverendíssimas e de todo fiel cristão essa
e contrária às sagradas e divinas Escrituras, veemente suspeição, justamente concebida
que o sol seja o centro da terra e que não se em relação a mim, com coração sincero e fé
mova do oriente para o ocidente, e que a não fingida, abjuro, maldigo e detesto os
terra se mova e não esteja no centro do referidos erros e heresias e, em geral, todo e
mundo, e que se possa manter e defender qualquer outro erro, heresia e seita contrá­
como provável uma opinião depois de ela ria à santa Igreja. E juro que, para o futuro,
ter sido declarada e definida como contrá­ nunca mais direi nem afirmarei, por voz ou
ria à sagrada Escritura. Conseqüentemente, por escrito, coisas tais pelas quais se possa
incorreste em todas as censuras e penas dos ter de mim semelhante suspeita. E, se co­
cânones sagrados e outras constituições ge­ nhecer algum herético ou suspeito de here­
rais e particulares impostas e promulgadas sia, o denunciarei a este Santo Ofício, ao
contra semelhantes delinqüentes. E pelas Inquisidor ou Ordinário do local onde me
quais nos contentaremos se, em termos ab­ encontrar [...]” .

V III. A g r a n d e o í? m :
ú lt i m a
os Id isc u r so s a d c m o n s tr a ç õ e s m a te m á tic a s
cm tern o d e d u a s n o v a s c iê n c ia s

1 úcsteutwea d a m a té e ia sobre duas novas ciências, atinentes à me­


cânica e aos movimentos locais.
e e s tá tic a
A análise da questão do movimento era
uma constante no trabalho de Galileu, des­
de a época do juvenil De Motu (1590).
Depois de ter sofrido seu segundo pro­ Os Discursos também são redigidos em
cesso e abjurado, Galileu escreveu ainda os forma de diálogo e nele encontramos os
Discursos e demonstrações matemáticas mesmos protagonistas do Diálogo sobre os
210 Segunda parte - ;A r e v o lu ç ã o c ie n tífic o

dois máximos sistemas: Salviati, Sagredo e fesse ser a virtude da geometria um instru­
Simplício. Também os Discursos se desen­ mento mais potente que qualquer outro
volvem em quatro jornadas. Nas primeiras para aguçar o engenho e dispô-lo ao per­
duas jornadas discute-se a ciência que se feito discorrer e especular? E que com muita
ocupa da resistência dos materiais. Eis a razão queria Platão seus estudantes bem
questão: quando se constroem máquinas de fundamentados nas matemáticas? Eu ha­
proporções diversas, “ a máquina maior, via compreendido muito bem a faculdade
fabricada com a mesma matéria e com as da alavanca e como, crescendo ou reduzin­
mesmas proporções que a menor, em todas do o seu comprimento, crescia ou desapa­
as outras condições responderá com justa recia o momento da força e da resistência.
simetria em relação à menor, a não ser na Apesar de tudo isso, estava enganado na
robustez e na resistência às invasões violen­ determinação do presente problema: e não
tas; mas, quanto maior, for ela, proporcio­ de pouco, mas ao infinito.” E Simplício
nalmente será mais fraca” . acrescenta: “ Começo verdadeiramente a
Em outros termos: em todos os corpos compreender que a lógica, embora instru­
sólidos encontra-se uma “ resistência a ser mento poderosíssimo para regular o nosso
quebrada” . E a questão que Galileu quer discurso, não alcança a agudeza da geome­
resolver é a de identificar as relações mate­ tria quanto a preparar a mente para a in­
máticas entre tal resistência e “ o comprimen­ venção” .
to e a espessura” de tais corpos.
Pois bem, na primeira jornada vê-se lo­
go que a coisa que está antes de qualquer
outra necessidade é a investigação sobre a 2 A c é le b r e e x p e r iê n c ia
estrutura da matéria: trata-se da “continui­ d o p la n o in c lin a d o
dade” , do “vácuo” e do “ átomo” . São ana­
lisadas as analogias e as diferenças entre a
subdivisão do matemático e do físico. A pro­ A terceira e a quarta jornadas são de­
pósito do vácuo, Galileu polemiza contra a dicadas à segunda nova ciência, isto é, à di­
idéia aristotélica de que o movimento seria nâmica. Salviati lê em latim um tratado so­
impossível no vácuo. E também são cri­ bre o movimento que diz ter sido elaborado
ticadas as idéias de Aristóteles sobre a que­ por seu amigo Acadêmio (ou seja, Galileu).
da dos pesados, segundo as quais haveria E, à medida que Salviati lê, os outros dois
proporcionalidade entre o peso dos diver­ interlocutores, Sagredo e Simplício, pouco
sos pesados e a velocidade de sua queda. a pouco vão pedindo esclarecimentos e os
Galileu, porém, reafirma a opinião de que, recebendo. Mais especificamente, na tercei­
“ caso se retirasse totalmente a resistência ra jornada são demonstradas as leis clássi­
do meio, todas as matérias desceríam com cas sobre o movimento uniforme, sobre o
igual velocidade” . Depois, passa-se ao exa­ movimento naturalmente acelerado ou re­
me das oscilações do pêndulo e de suas leis: tardado.
isocronismo e proporcionalidade entre o Galileu parte de definições “concebi­
período de oscilação e a raiz quadrada do das e admitidas em abstrato” dos movimen­
comprimento do pêndulo. Discutem-se ques­ tos e, depois, delas deduz rigorosamente as
tões de acústica, propondo aplicações dos características do movimento. Diante das
resultados obtidos a propósito das oscila­ objeções de Sagredo e Simplício, segundo
ções pendulares. as quais são necessárias experiências para
Na segunda jornada, a resistência dos se ter confirmação de que as leis dos movi­
corpos sólidos é reconduzida aos sistemas e mentos correspondem à realidade, Galileu
combinações de alavancas. Assim, a nova (pela boca de Salviati) narra a célebre expe­
ciência (que remonta ao “ sobre-humano riência dos planos inclinados, que é mais do
Arquimedes, que nunca nomeio sem admi­ que oportuno conhecer: “ Em uma régua —
ração” ), isto é, a estática, permite a Galileu ou, se quiserem, uma vigota — de madeira,
mostrar a “virtude” , ou seja, a eficácia, da com doze braças de comprimento e com lar­
geometria no estudo da natureza física (e gura de meia braça por um lado e três de­
também biológica: a natureza dos ossos dos pelo outro, escavou-se nesta menor lar­
cavos, a proporção dos membros dos gi­ gura uma canaleta pouco mais larga que um
gantes etc.). Diz Sagredo: “ O que diremos, dedo. Estirava-se em linha reta, limpava-se
senhor Simplício? Não convém que ele con­ e alisava-se, colocava-se dentro da canaleta
211
Capitulo d é c it H O primeiro - CD drama de (Õalileu e a (uiadaípão da ciência moderna

um pergaminho bem polido e lustrado e, pois, as partículas de água recolhidas de tal


depois, fazia-se descer por ela uma bola de modo eram pesadas a cada vez com uma
bronze duríssimo, bem arredondada e poli­ balança exatíssima, dando-nos as diferen­
da. Fazendo-se a régua ficar pendente, o que ças e proporções dos pesos em relação às
se conseguia elevando acima do plano hori­ diferenças e proporções dos tempos. E isso
zontal uma de suas extremidadas, por uma com tal exatidão que, como disse, tais ope­
ou duas braças, à vontade, deixava-se en­ rações, repetidas muitas vezes, nunca dife­
tão, (como dizia), a bola descer pela cana- riam nem mesmo de um momento” .
leta. Então anotava-se, no modo que logo Como se vê, essa experiência não con­
direi, o tempo que a bola levava para correr siste em uma observação isenta de teoria, a
toda a canaleta, repetindo o mesmo ato experiência não é dada, mas constrói-se, é
muitas vezes para se assegurar bem da quan­ feita. E é feita e construída porque a teoria
tidade de tempo, no qual nunca se encon­ o exige. A experiência não é, antes de mais
trava diferença, nem mesmo da décima nada, pura e simples observação: a expe­
parte de uma batida de pulso. Feita e esta­ riência é experimento. E o experimento se
belecida precisamente tal operação, fazía­ faz e se constrói. O “ fato” do experimento
mos descer a mesma bola somente pela quar­ é um dado só depois que foi feito. Assim, o
ta parte do comprimento dessa canaleta. E, experimento é perpassado pela teoria de
medido o tempo de sua descida, desco­ cima abaixo. Também é notável, nas discus­
bríamos sempre ser exatamente a metade sões da terceira jornada, o aparecimento,
do outro. Depois, fazendo as experiências ainda em estado confuso, dos conceitos de
das outras partes, examinando ora o tempo infinito e infinitesimal. Esses conceitos ou,
de todo o comprimento com o tempo da me­ mais exatamente, o conceito de limite, são
tade, ora com o tempo de dois terços, ora essenciais para as idéias de velocidade ins­
com o tempo de três quartos, ou, em con­ tantânea e de aceleração. Hoje, para nós, as
clusão, com qualquer outra divisão, por coisas são simples. Mas Galileu não conhe­
meio de experiências repetidas por bem cem cia o cálculo (infinitesimal), que só seria des­
vezes, sempre concluíamos que os espaços coberto mais tarde por Newton e Leibniz (e
necessários eram entre si como os quadra­ ao qual Boaventura Cavalieri tanto desejou,
dos dos tempos, e isso em todas as inclina­ em vão, que seu mestre Galileu se houvesse
ções do plano, isto é, da canaleta por onde dedicado). De todo modo, Galileu fala de
se fazia descer a bola. Observamos ainda “ infinitos graus de atraso” .
que os tempos das descidas nas diversas in­ E esta também é uma glória que per­
clinações mantinham tipicamente entre si tence a ele.
aquela proporção que mais adiante veremos Na quarta jornada se discute, com mui­
ter sido assinalada e demonstrada pelo au­ ta amplitude e profundidade, a trajetória dos
tor. No que se refere à medida do tempo, projéteis (trajetória que possui forma para­
mantinha-se um grande vaso cheio de água bólica). E essa análise se fundamenta na lei
amarrado no alto, o qual, através de um da composição dos movimentos.
cano muito fino, que lhe estava soldado ao Os Discursos foram impressos na Ho­
fundo, derramava um fino fio d’água, que landa, aonde chegaram clandestinamente.
era recolhido por um pequeno copo duran­ Eles representam a contribuição mais
te todo o tempo ao longo do qual a bola madura e original dada por Galileu à histó­
descia pela canaleta e em suas partes; de­ ria das idéias científicas.
212 Segunda parte - A r e - v o \ i\ ç . c \ o cieirfrfic

IX. A i m a g í em galuecma da ciência

como a fé em Aristóteles e o apego cego às


1 A c i ê n c i a n o s d i2
// . / // suas palavras — impedem sua realização.
com o vai o ce u Diz Salviati no Diálogo sobre os dois
e a te com o se vai a o ceu máximos sistemas do mundo-. “Haverá algo
mais vergonhoso do que, nas discussões pú­
blicas, quando se trata de conclusões demons-
Na explicitação dos pressupostos, na tráveis, ver alguém aparecer de través com
delimitação de sua autonomia, na identifi­ um texto, muito amiúde escrito com propó­
cação das normas do método, em tudo isso sito inteiramente diferente, e com ele fechar
a ciência moderna é a ciência de Galileu. a boca do adversário? [...] Por isso, senhor
Entretanto, qual era exatamente a imagem Simplício, venha com razões e demonstra­
que Galileu tinha da ciência? Ou, melhor ções, suas ou de Aristóteles, e não com tex­
ainda, quais são as características da ciên­ tos e cruas autoridades, porque nossos dis­
cia que se podem extrair tanto das pesqui­ cursos devem ser em torno do mundo sensível
sas efetivas de Galileu quanto das reflexões e não sobre um mundo de papel” .
filosóficas e metodológicas sobre a ciência
feitas pelo próprio Galileu? A interrogação
é premente. E, depois de tudo o que temos
dito até aqui, estamos agora em condições 3 a t it u d e ju s t a
de expor toda uma série de traços distinti­ e m r e l a ç ã o à t e a d iç ã o
vos capazes de nos reconstruir a “ imagem
galileana” da ciência.
Antes de mais nada, a ciência de Galileu Portanto, a ciência é autônoma em re­
não é mais um saber a serviço da fé; não lação à fé, mas também é algo bem diferen­
depende da fé; tem um objetivo diferente do te daquele saber dogmático representado
da fé; se alicerça e se fundamenta em razões pela tradição aristotélica. Isso, porém, não
diversas das da fé. A Escritura contém a significa para Galileu que a tradição é da­
mensagem da salvação, não sendo sua a fun­ nosa enquanto tradição. Ela é danosa quan­
ção de determinar “ a constituição dos céus do se erige em dogma, dogma incontrolável
e das estrelas” . As proposições de fide nos que pretende ser intocável. “ Nem por isso
dizem “como se vai ao céu” ; as proposições digo que não se deve ouvir Aristóteles; ao
científicas, obtidas através de “ sensatas ex­ contrário, louvo que seja visto e diligente­
periências” e “ demonstrações necessárias” , mente estudado. Censuro apenas que al­
atestam “como vai o céu” . Em suma, com guém se entregue a ele de modo tal que subs­
base em suas diferentes finalidades (salva­ creva cegamente toda palavra sua e, sem
ção para a fé; conhecimento para a ciência) buscar outra razão, a tenha, por decreto,
e com base nas modalidades diversas de inviolável, o que é um abuso que arrasta
alicerçamento e fundamentação (na fé, a atrás fie si outra desordem extrema, isto
autoridade da Escritura e a resposta do ho­ é, que ninguém mais se aplica a procurar
mem à mensagem revelada; na ciência, as entender a força de suas demonstrações.”
sensatas experiências e as necessárias pro­ Como foi o caso daquele aristotélico que
posições da fé. E “ parece-me que, nas dis­ (sustentando, com base nos textos de Aris­
putas naturais, ela (a Escritura) deveria ser tóteles, que os nervos partem do coração),
reservada para o último lugar” . diante de uma dissecação anatômica que
desmentia essa teoria, afirmou: “Vós me
fizestes ver esta coisa de tal forma aberta e
2 C o n t i a o a u t o r it a r is m o sensata que, se o texto de Aristóteles não a
f ilo s ó fic o contrariasse, pois abertamente diz que os
nervos nascem do coração, por força seria
preciso reconhecê-la como verdadeira.”
Sendo autônoma em relação à fé, a ciên­ É contra o dogmatismo e o “ puro ipse
cia deve ser muito mais autônoma ainda em dixit” que Galileu se choca, contra a “ crua
relação a todos os vínculos humanos que — autoridade” , mas não contra as razões que
Capítulo décimo primeiro - O d f*am u d e a ilileu e a [w n d a ç a o d a c iê n c ia m o d e r n a ------

ainda hoje poderíam ser encontradas, por ja encontra sua raiz mais profunda precisa­
exemplo, em Aristóteles: “No entanto, se­ mente na concepção realista e profunda que
nhor Simplício, venha com razões e de­ Galileu tinha da ciência.
monstrações, suas ou de Aristóteles
Não se pede certidão de nascimento para a
verdade: em toda parte podem-se encon­
trar “ razões” e “ demonstrações” . O im­ 5 P A ciêmcia é objetiva,
portante é fazer ver que são válidas e não porque descreve
que estão escritas nos livros de Aristóteles.
E contra os aristotélicos dogmáticos e as qualidades mensuráveis
livrescos, Galileu se refere precisamente a dos corpos
Aristóteles: é “o próprio Aristóteles” que “ an­
tepõe [...] as experiências sensatas a todos
os discursos” , de modo que “ não duvido em A ciência pode nos dar uma descrição
absoluto de que, se Aristóteles vivesse em verdadeira da realidade, alcançando os ob­
nossa época, mudaria de opinião. Isso pode jetos e, assim, sendo objetiva. Mas só pode
ser recolhido manifestamente do seu próprio sê-lo se estiver em condições de traçar uma
modo de filosofar: assim, quando ele escreve distinção fundamental entre as qualidades
considerar os céus inalteráveis etc., porque objetivas e as qualidades subjetivas dos cor­
não se viu nenhuma coisa nova se gerar das pos, ou seja, somente na condição de que a
velhas ou nelas se dissolver, dá a entender ciência descreva as qualidades objetivas dos
implicitamente que, se houvesse visto um corpos, quantitativas e mensuráveis (publi­
desses acidentes, teria considerado o con­ camente verificáveis), e exclua o homem de
trário, antepondo a sensata experiência ao si mesma, ou seja, as qualidades subjetivas.
discurso natural, como convém [...]” . No Saggiatore, podemos ler: “Portanto, digo
Portanto, o que Galileu pretende é li­ que me sinto bem arrastado pela necessida­
bertar o caminho da ciência de um verdadei­ de, tão logo concebo uma matéria ou subs­
ro obstáculo epistemológico, o autoritaris­ tância corpórea, concebendo tudo ao mes­
mo de uma tradição sufocante que bloqueia mo tempo que ela é acabada e figurada por
a ciência. Em suma, Galileu promove “o fu­ esta ou aquela figura, que é pequena ou
neral [...] da pseudofilosofia” , mas não o fu­ grande em relação a outras, que está neste
neral da tradição enquanto tal. E isso é tão ou naquele lugar, neste ou naquele tempo,
verdadeiro que, mesmo com as devidas cau­ que ela se move ou está parada, que toca ou
telas, pode-se dizer que ele é platônico na fi­ não toca outro corpo, que ela é uma, pou­
losofia e aristotélico no método. [T] cas ou muitas — e por nenhuma imagina­
ção posso separá-la dessas condições. Mas
não me sinto forçado pela mente a ter de
saber se ela é branca ou vermelha, amarga
4 A ciência ou doce, surda ou muda, de bom ou mau
cheiro, necessariamente acompanhada de
nos diz verdadeiramente tais condições: ao contrário, se os sentidos
como ê jeito o mundo não a houvessem percebido, talvez o discur­
so ou a imaginação, por si mesma, não a
alcançasse jamais (...)” .
Autônoma em relação à fé e contrária Em suma: cores, odores, sabores etc.,
às pretensões do saber dogmático, a ciência são qualidades subjetivas, ou seja, não exis­
de Galileu é a ciência de um realista. Realis­ tem no objeto, mas somente no sujeito que
ta é Copérnico, realista é Galileu. Este não sente, assim como as cócegas não estão na
raciocina como “ puro matemático” , mas pluma, mas sim no sujeito que as sente. A
como físico, considerando-se mais “ filóso­ ciência é objetiva porque não se interessa
fo” (isto é, físico) do que matemático. Em pelas qualidades subjetivas, que variam de
outros termos, na opinião de Galileu, a ciên­ homem para homem, mas sim por aqueles
cia não é um conjunto de instrumentos (de aspectos dos corpos que, sendo quantifi-
cálculos) úteis (para fazer previsões), mas cáveis e mensuráveis, são iguais para todos.
muito mais a descrição verdadeira da reali­ E nem a ciência quer “ buscar a essência ver­
dade, dizendo-nos “ como vai o céu” . E, dadeira e intrínseca das substâncias natu­
como vimos, o choque entre Galileu e a Igre­ rais” . Aliás, escreve Galileu, “considero o
214
Segunda pavte - y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

É no Saggiatore,
publicado em 1623,
que encontramos
a idéia galileana
fundamental de que
“o universo está escrito em
linguagem matemática,
e os caracteres
são triângulos, círculos,
V Viilcrnocna F c a t
e outras figuras geométricas

buscar a essência como empresa não menos produção e a dissolução, que podem ser
impossível e como esforço não menos vão apreendidas por nós [...]” . A ciência, por­
tanto nas substâncias elementares próximas tanto, é conhecimento objetivo, conhecimen­
quanto nas remotíssimas e celestes. E pare­ to das qualidades objetivas dos corpos — e
ce-me ser igualmente ignaro da substância essas qualidades são quantitativamente de-
da terra e da substância da lua, das nuvens termináveis, ou seja, são mensuráveis.
elementares das manchas do sol As­
sim, nem as qualidades subjetivas nem a es­
sência das coisas constituem o objeto da
ciência. Esta deve se contentar “ em tomar 6 O pressuposto ueoplatônico
conhecimento de algumas de suas sensa­ da ciêucia galileaua
ções” , como, por exemplo: “Por mais que
se empreenda a investigação da substância
das manchas solares, não restariam nada A ciência descreve a realidade, sendo
mais do que algumas de suas sensações, conhecimento e não “pseudofilosofia” , pelo
como o lugar, o movimento, a figura, a fato de que descreve as qualidades objeti­
grandeza, a opacidade, a mutabilidade, a vas (isto é, primárias) e não as subjetivas
215
Capitulo d é c im o pYim eivO - O d m m a d e CÕalileu e a fu n d a ç ã o d a c i ê n c i a m o d e r n a

(secundárias) dos corpos. Mas — e, aqui, infinidade é como zero; mas, do ponto de
chegamos a um ponto central do pensamen­ vista intensivo, enquanto tal termo impor­
to de Galileu — essa ciência descritiva da ta intensivamente, isto é, perfeitamente, al­
realidade objetiva e mensurável só é possí­ guma proposição, digo que o intelecto hu­
vel porque o próprio livro da natureza “ está mano entende algumas tão perfeitamente
escrito em linguagem matemática” . Ainda que delas tem certeza tão absoluta quanto
no Saggiatore encontramos: “A filosofia está a tenha a própria natureza. E tais são as
escrita neste imenso livro que continuamente ciências matemáticas puras, isto é, a geo­
permanece aberto diante de nossos olhos (es­ metria e a aritmética, das quais o intelecto
tou falando do universo), mas que não se divino sabe infinitas proposições a mais,
pode entender se primeiro não se aprende a porque sabe-as todas, mas, daquelas pou­
entender sua língua e conhecer os caracteres cas entendidas pelo intelecto humano, creio
em que está escrito. Ele está escrito em lin­ que sua cognição iguale a divina em certe­
guagem matemática e seus caracteres são za objetiva, já que consegue entender sua
círculos, triângulos e outras figuras geomé­ necessidade, sobre a qual não pode haver
tricas, meios sem os quais é impossível en­ segurança maior” . Ora, se os conhecimen­
tender humanamente suas palavras: sem tais tos geométricos e matemáticos são defini­
meios, vagamos inutilmente por labirinto tivos, necessários e seguros, se a natureza
escuro” . está escrita em linguagem geométrica e
matemática e se o conhecimento é a redes-
coberta da linguagem da natureza, então
qualquer um pode ver o grau de confiança
7 yAciência que Galileu alimentava na razão e no co­
não b u sc a a s c ssê n c ia sy nhecimento científico. Assim, o conheci­
mento científico é muito mais do que um
e todavia o Komem possui conjunto de instrumentos mais ou menos
a\gun s couKeaimeutos úteis.
defiuitivos e não eevisíveis

A ciência é o conhecimento objetivo 8 O univeeso deteemirustico


das “ afecções” ou qualidades quantificáveis de Gãalileu
e mensuráveis dos corpos. Trata-se da re-
descoberta da linguagem do livro da natu­
não ê mais o universo
reza, “ escrito em linguagem matemática” . arvfropocênteico
A ciência é objetiva porque não se emara­ de y\eisfóteles
nha nas qualidades subjetivas ou secundá­
rias e porque não se propõe a “ buscar as
essências” . Entretanto, embora para Gali­ Evidentemente, basear-se nas qualida­
leu “ o buscar a essência” seja empresa im­ des objetivas ou primárias dos corpos e nas
possível e vã, certo essenciaíismo faz parte qualidades geométricas e mensuráveis dos
da filosofia galileana da ciência. O homem corpos comporta toda uma série de conse-
não conhece tudo. E, das “ substâncias na­ qüências:
turais” que conhece, não conhece sua “ es­ a) exclui o homem do universo de in­
sência verdadeira e intrínseca” . Entretanto, vestigação da física;
o homem possui alguns conhecimentos de­ b) excluindo o homem, exclui um cos­
finitivos, que não são mais passíveis de re­ mo inteiro de coisas e objetos ordenados e
visão (e nisso consiste o essenciaíismo de hierarquizados em função do homem;
Galileu): c) exclui a investigação qualitativa em
“ [...] Convém recorrer a uma distinção benefício da quantitativa;
filosófica, dizendo que o entender pode se d) elimina as causas finais em favor das
dar de dois modos, isto é, intensivamente causas mecânicas e eficientes.
ou extensivamente: do ponto de vista ex­ Em poucas palavras: o mundo descri­
tensivo, isto é, quanto à multidão dos inte­ to pela física de Galileu não é mais o mun­
ligíveis, que são infinitos, o entender huma­ do de que fala a física de Aristóteles.
no é como nada, por mais que entendesse E eis alguns exemplos que iluminam o
mil proposições, porque mil em relação à contraste entre o “ mundo” de Galileu e o
.........„ Segunda pavte - / \ r e v o lu ç ã o c ie n + ífic a

de Aristóteles. No Diálogo, Simplício afir­ satez das teorias e dos conceitos do saber
ma que “ nenhuma coisa foi criada em vão e aristotélico. Assim ocorre, por exemplo, com
está ociosa no universo” , tanto que nós ve­ a idéia de “perfeição” de alguns movimen­
mos “esta bela ordem de planetas, dispos­ tos e de algumas formas dos corpos.
tos em torno da terra em distâncias propor­ Na opinião dos aristotélicos, a lua não
cionadas para produzir sobre ela os seus podia ter vales e montanhas, já que eles a
efeitos, em nosso benefício” . Assim, como teriam privado daquela forma esférica e per­
se poderá, sem desconhecer o plano de Deus feita que cabe aos corpos celestes. Galileu,
em favor do homem, “ interpor [...] entre o porém, observa: “Esse discurso já está bas­
orbe supremo de Saturno e a esfera estrela­ tante gasto nas escolas peripatéticas, mas
da um espaço vastíssimo, sem qualquer es­ suspeito que sua maior eficácia consista so­
trela, supérfluo e vão? Com que fim? Em mente no ter-se tornado habitual nas mentes
benefício e para a utilidade de quem?” . Mas dos homens e não no fato de que suas pro­
logo Salviati responde a Simplício: “ Quan­ posições sejam demonstradas ou necessárias;
do me é dito que seria inútil e vão um espa­ ao contrário, creio que são muito titubean-
ço imenso interposto entre os orbes dos pla­ tes e incertas. Em primeiro lugar, não vejo
netas e a esfera estrelada, privado de estrelas como se possa afirmar em absoluto que a fi­
e ocioso, como também seria supérflua tan­ gura esférica é mais ou menos perfeita que as
ta imensidade, em relação às estrelas fixas, outras, mas apenas com algumas reservas.
a ponto de superar toda nossa capacidade Por exemplo: para o corpo que necessita po­
de apreensão, digo que é temeridade querer der virar-se para todos os lados, a figura es­
transformar o nosso fraquíssimo discurso férica é perfeitíssima, razão pela qual os olhos
em juiz das obras de Deus, chamando de vão e as extremidades superiores dos ossos das
ou supérfluo tudo aquilo que, no universo, coxas foram feitos pela natureza perfeitamen-
não serve para nós.” te esféricos. Mas, ao contrário, para um cor­
Assim, o universo determinista e me- po que necessitasse permanecer estável, tal
canicista de Galileu não é mais o universo figura seria de todas a mais imperfeita, razão
antropocêntrico de Aristóteles e da tradição. pela qual, na construção de muralhas, esta­
Ele não é mais hierarquizado, ordenado e ria agindo pessimamente quem se servisse
finalizado em função do homem. de pedras esféricas, pois para este caso per­
feitíssimas são as pedras angulares [...]” .
E assim que Galileu mostra a vacuida­
de de um conceito proposto “ em absoluto” ,
9 tScmtea o vazio ao mesmo tempo em que mostra a eficácia
e a inservsatez de um conceito ao levá-lo para o plano em­
pírico e relativizando-o: a idéia de “ perfei­
de algumas ção” só funciona quando se fala dela “ a res­
teoeias tradicionais peito de algo” , ou seja, do ponto de vista de
algum fim. Assim, uma coisa é mais ou me­
nos perfeita enquanto for mais ou menos
Outra conseqüência da concepção ga- adequada a um fim prefixado ou, de todo
lileana do conhecimento científico é a de­ modo, dado. E essa “perfeição” é um atri­
monstração da vacuidade ou até da insen­ buto controlável.
217
Capitulo décimo pvimeivo - O d f a m a d e é alileu e a f u n d a ç ã o d a c i ê n c i a m o d e r n a

..— X. y\ q u e s tã o d o m é to d o : -------

^ e x p e r iê n c ia s s e n s a ta s ^
e / o u ^ d e m o n s tr a ç õ e s n e c e s s á r ia s ^ ?

1 A experiência científica cias do discurso, orientando-o e adestran­


do-o para bem silogizar e deduzir das pre­
é o experimento missas [...] a necessária conclusão” . E Ga­
lileu ainda faz Salviati dizer: “ A lógica [...]
é o órgão da filosofia” .
Na carta à senhora Cristina de Lorena, Portanto, por um lado, há o chamado
Galileu escreve: “ Parece-me que, nas discus­ às observações, aos fatos, às “experiências
sões sobre problemas naturais, não se deveria sensatas” e, por outro, a acentuação do pa­
começar pela autoridade de passagens da pel das “ hipóteses matemáticas” e da força
Escritura, e sim pelas experiências sensatas lógica, que delas extrai as conseqüências.
e pelas demonstrações necessárias” . E ain­ Mas eis o problema com que se defronta­
da: “Parece-me então que a questão dos efei­ ram os estudiosos: qual é a relação existen­
tos naturais que a experiência sensata nos te entre as “ experiências sensatas” e as “ ne­
põe diante dos olhos ou as demonstrações cessárias demonstrações” ? Esse problema
necessárias concluem, não deve ser, por ne­ não apenas é típico da filosofia da ciência
nhuma razão, posta em dúvida, quando não contemporânea, mas também é uma ques­
condenada, por passagens da Escritura que tão existente em Galileu, emergindo com
apresentassem aparência diversa nas palavras ” . toda a clareza de suas obras. Efetivamente,
Pois bem, nessas frases encerra-se o está fora de qualquer dúvida que Galileu
núcleo essencial do método científico segun­ baseia a ciência na experiência. E por isso
do Galileu. A ciência é aquilo que é, ou seja, que ele se refere a Aristóteles, que “ antepõe
conhecimento objetivo, com todos os tra­ [...] as experiências sensatas a todos os dis­
ços específicos que já analisamos, precisa­ cursos” . E não há lugar para equívocos
mente porque procede segundo um método quando Galileu afirma que “ aquilo que a
preciso e exatamente porque determina e experiência e o senso nos demonstram deve
fundamenta suas teorias através das regras se antepor a qualquer discurso, mesmo que
que constituem o método científico. E, se­ não nos parecesse muito bem fundamenta­
gundo Galileu, esse método consiste intei­ do” . Entretanto, não obstante essas límpidas
ramente nas “ experiências sensatas” e nas declarações não são raros os casos em que
“ demonstrações necessárias” . As primeiras, Galileu parece exatamente antepor o discur­
ou seja, as “ experiências sensatas” , são as so à experiência, acentuando a importância
experiências efetuadas mediante nossos sen­ das “ suposições” em prejuízo das observa­
tidos, isto é, as observações, especialmente ções. Assim, por exemplo, em carta de 7 de
as feitas com nossos olhos; as segundas, ou janeiro de 1639 a João Batista Baliani, ele
seja, as “ demonstrações necessárias” , são as escreve: “ Mas, voltando ao meu tratado so­
argumentações nas quais, partindo-se de bre o movimento, nele eu argumento ex
uma hipótese (ex suppositione; por exem­ suppositione sobre o movimento, definido
plo, de uma definição físico-matemática de daquela maneira. De modo que, quando as
movimento uniforme), se deduzem rigoro­ conseqüências não correspondessem aos
samente as conseqüências (“eu demonstro acidentes do movimento natural, pouco me
concludentemente muitos acidentes” ) que importaria, da mesma forma que o fato de
depois deveriam se dar na realidade. não se encontrar na natureza nenhum mó­
E da mesma forma como, mediante a vel que se mova por linhas espirais nada
luneta, Galileu procurou potencializar e aper­ anula das demonstrações de Arquimedes” .
feiçoar a vista natural, também, sobretudo Eis, portanto, a questão: por um lado, Gali­
em idade mais avançada, reconheceu que leu baseia a ciência na experiência, mas por
Aristóteles, em sua Dialética, nos ensina a outro lado parece precisamente condenar a
sermos “cautelosos para escapar das falá­ experiência em nome do “discurso” .
218
Segunda parte - y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

tos a experiência científica. A experiência


científica não é pura e simples observação
■ Experiência (papel da experiên­ comum. Entre outras coisas, as observações
cia na pesquisa científica). "E n tre comuns podem ser erradas. E Galileu bem
a s m an eiras s e g u ra s p a ra c h e g a r à ver­ o sabia; com efeito, ele teve de combater
d a d e e s t á a n te p o r a e x p e r iê n c ia a durante toda a sua vida contra os fatos e
q u a lq u e r d isc u rso , p e r m a n e c e n d o observações efetuados à luz (das teorias)
s e g u r o s d e q u e n este , a o m en o s dis- daquilo que já era senso comum.
fa r ç a d a m e n te , e sta r á c o n tid a a fa lá -
: cia, n ã o s e n d o p ossível q u e u m a ex-
Mas, da mesma forma, a experiência
: p e riê n c ia s e n s a t a s e ja c o n trá ria a o científica não pode ser reduzida a uma teo­
v e rd a d e iro ; e e ste é ta m b é m um p re ­ ria ou a um conjunto de suposições priva­
c e ito e stim ad íssim o p o r A ristó te le s e das de qualquer contato com a realidade:
h á m u ito te m p o a n te p o s to a o v a lo r Galileu pretendia ser mais físico que mate­
t e à fo rç a d a a u to r id a d e d e to d o s o s mático. Com efeito, é assim que ele escreve
h o m e n s d o m u n d o , a q u a l V.Sa. m es­ a Belisário Vinta em 7 de maio de 1610, em
m a a d m ite q u e n ã o d e v a m o s credi- carta em que procura fixar as condições da
L ta r à s a u to r id a d e s d e o u tro s, m as d e-
í v e m o s n e g á -la a n ós m esm o s, to d a s
sua transferência para Florença: “Finalmen­
a s v e z e s q u e d e sc o b rim o s q u e o se n ­ te, quanto ao título e pretexto do meu ser­
' tid o n os m o stra o c o n trá rio ". viço, eu desejaria que, além do nome de
A ssim e sc re v ia, e n tr e o u tr a s c o isas, Matemático, Sua Alteza acrescentasse o de
! G alileu em 15 d e se te m b r o d e 1640 a Filósofo, professando eu ter usado mais anos
F o rtú n io Liceti e m P ád u a. em filosofia do que meses em matemática
pura” . Portanto, “ experiências sensatas” e
“demonstrações necessárias” e não umas ou
as outras. Umas e outras, integrando-se e
corrigindo-se mutuamente, dão origem à ex­
periência científica, que não consiste nem
Ora, diante dessa situação, os intérpre­ na nua e passiva observação nem na teoria
tes e estudiosos do método científico toma­ vazia. A experiência científica é o experi­
ram os caminhos mais diversos. Há quem mento. -|~4~|
tenha visto nas “experiências sensatas” e nas
“demonstrações necessárias” uma espécie de
antítese entre experiência e razão. Há aque­
les que, sem afirmar tal antítese, sustentam y \ men+e c o n s t r ó i
mais sabiamente que, dessa forma, Galileu a e x p e r i ê n c i a c ie n t íf ic a
expressa “ a plena consciência [...] da im­
possibilidade de confusão entre dedução
matemática e demonstração física” . Já ou­ A experiência científica, portanto, é
tros, enfatizando o papel da observação, experimento científico. E, no experimento,
pretenderam dizer que Galileu era indutivis- a mente não é de modo nenhum passiva.
ta. Há quem tenha sustentado que Galileu, Ao contrário, a mente é ativa: faz suposi­
ao contrário, era um racionalista dedutivista ções, extrai rigorosamente suas conseqüên-
que confiava mais nos poderes da razão do cias e depois vai comprovar se elas se dão
que nos da observação. E não falta quem ou não na realidade. A mente não sofre uma
diga que Galileu, segundo lhe seja mais cô­ experiência científica: ela a faz, projetando-
modo, usa sem preconceitos ora o método a. E a efetua para ver se uma experiência
indutivo, ora o método dedutivo. sua é verdadeira ou falsa.
É impossível nos determos aqui nas Portanto, a experiência científica é fei­
discussões sobre a idéia galileana de méto­ ta de teorias que instituem fatos e de fatos
do científico ao longo da época moderna e que controlam teorias. Existe aí uma inte­
nas controvérsias epistemológicas contem­ gração recíproca e uma relação mútua de
porâneas. Mas, para os autores destas pá­ correção e aperfeiçoamento. Na opinião de
ginas, parece legítimo sustentar que as Galileu, Aristóteles teria mudado de opinião
“ experiências sensatas” e as “necessárias de­ se houvesse visto fatos contrários às suas
monstrações” que se desenvolvem a partir próprias idéias. De resto, as teorias (ou su­
de “ suposições” são dois elementos que se posições) podem muito bem servir para
implicam reciprocamente, constituindo jun­ mudar ou corrigir teorias cristalizadas, que
219
Capítulo décimo primeiro O d ram a d e C ãalileu e a f u n d a ç ã o d a c i ê n c i a m o d e r n a

ninguém ousa pôr em discussão, mas que que, à primeira vista, parecia mostrar uma
encapsularam a observação em interpreta­ coisa, quando mais bem considerada nos as­
ções inadequadas, criando assim muitos “ fa­ segura do contrário” . Naturalmente, “ aqui­
tos” obstinados mas falsos. E o caso do sis­ lo que a experiência e o senso nos demons­
tema aristotélico-ptolom aico: antes de tram” deve ser anteposto “ a todo discurso,
Copérnico, ao alvorecer, todos viam o sol por mais que nos parecesse bem fundamen­
que surgia; depois de Copérnico, ao alvore­ tado” . Mas a experiência sensata é fruto de
cer, a teoria heliocêntrica nos faz ver a terra experimento programado, é tentativa de
que se abaixa. forçar a natureza a responder às nossas per­
guntas.

3 ÍÁm exemplo
d e com o a o b s e r v a ç ã o
d eperv de d a s t e o r ia s

Eis, sucintamente, outro exemplo de


como uma teoria pode fazer mudar a inter­
pretação observadora dos fatos. Nos Dis­
cursos, respondendo às objeções de nature­
za empírica à lei pela qual a velocidade do
movimento naturalmente acelerado deve
crescer proporcionalmente ao tempo, Sa-
gredo afirma: “ Essa é uma dificuldade que,
no princípio, também me deu o que pensar,
mas não muito depois a removi; e o que a
removeu foi o resultado da própria experi­
ência que presentemente essa dificuldade
suscita para vós. Dizeis parecer-vos que a
experiência mostra que, tão logo parte da
quietude, o pesado entra em uma velocida­
de muito notável. E eu digo que essa mesma
experiência nos esclarece que os primeiros
ímpetos do objeto cadente, por mais pesa­
do que seja, são lentíssimos e retardadís-
(ialilcu Galilei (1564-1642):
simos” . por meio de suas observações com a luneta
E a discussão se conclui do seguinte confirma-se a teoria copernicana,
modo: “Vede agora quanto é grande a for­ enquanto ao mesmo tempo desmorona
ça da verdade, pois a mesma experiência a concepção aristotélico-ptolomaica do mundo.
220
SegUtldci pavte - ;A r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

Mas o que em muito supera toda maravi­


G a l il e i lha, e que principalmente nos levou a informar
todos os astrônomos e filósofos, é a nosso des­
coberta de quatro estrelas errantes, não conhe­
cidas nem observadas por nenhum outro antes
de nós, as quais, como Vênus e Mercúrio ao

D O telescópio
no revolução astronômico
redor do sol, efetuam suas rotações periódicas
ao redor de um dos maiores planetas já conhe­
cidos; e o este ora precedem, ora seguem, sem
jamais se afastar dele para além de determi­
nados limites. Tais coisas foram por mim desco­
Sidereus Nuncius: Golileu anuncio com bertas e observadas recentemente, mediante
esto obra, publicado em Veneza em 1610, uma luneta que excogitei, depois de ter sido
suos revolucionários descobertos astronômi­ iluminado pela graça divina.
cos; descobertos efetuados por meio de um No futuro, com o emprego de tal instru­
novo instrumento, o telescópio. mento, por mim ou por outros serão realizadas
ulteriores descobertas, talvez também de
Nesta breve tratação apresento coisas im­ maior importância; de sua forma e estrutura,
portantes, que devem ser consideradas e aten­ como também de sua invenção, falarei agora
tamente avaliadas por todos os que estudam brevemente, antes de passar ao relato de mi­
a natureza. Coisas importantes, repito tanto pela nhas observações.
superioridade da própria matéria, como por sua Há cerca de dez meses chegou a nossos
efetiva novidade, como por fim pelo instrumen­ ouvidos notícia de que um flamengo havia cons­
to com que se manifestaram a nossos sentidos. truído uma lente, com a qual os objetos visí­
Sem dúvida é importante conseguir acres­ veis, mesmo que um tanto distantes do olho do
centar inumeráveis outros astros à grandiosa observador, se percebiam distintamente como
multidão das estrelas fixas, que até hoje pu­ se estivessem próximos; e deste fato, verda­
deram ser percebidas com as faculdades natu­ deiramente admirável, circulavam diversos tes­
rais, e torná-los claros aos olhos, enquanto an­ temunhos, aos quais alguns davam fé e outros
tes nunca tinham sido vistos, salientando por não. R mesma coisa me foi confirmada poucos
outro lado que seu número é mais de dez ve­ dias depois pelo gentil francês Jacques Ba-
zes maior do que o das estrelas já conhecidas. douère, o que me impeliu a me dedicar inteira­
Bela e interessante é também a superfí­ mente ao exome das causas e ao estudo dos
cie lunar, distante de nós cerca de sessenta raios meios para chegar à invenção de tal instrumen­
terrestres, e que pode ser observada tão de to. fltingi este fim pouco depois, baseando-me
perto, como se distasse apenas duas de tais sobre a doutrina das refrações. €m primeiro lu­
distâncias; onde o diâmetro da própria lua apa­ gar, providenciei um tubo de chumbo, aplican­
rece aumentado cerca de 30 vezes, sua super­ do em suas extremidades duas lentes de vidro
fície cerca de 900, e seu volume aproximativa- de oóculos, ambas com uma face plana e com
mente 27.000 vezes, em relação o quanto se a outra esfericamente côncava na primeira len­
vê com o mero auxílio da capacidade visual: do te e convexa na segunda; então, encostando o
que, depois, coda um está em grau de apurar, olho na lente côncava, percebi os objetos bas­
com a certeza dos próprios sentidos, que a lua tante grandes e próximos, pois apareciam três
não é de fato revestida de uma superfície lisa vezes mais próximos e nove vezes moiores do
e lúcida, mas aparece rugosa e desigual, sen­ que se apresentavam olhados apenas com a
do, como a terra, recoberta em toda parte de visão natural. €m seguida aprontei outro mais
notáveis relevos, abismos profundos e anfrac- preciso e que aumentava os objetos mais de
tuosidades. sessenta vezes. No fim, não poupando fadiga
Não parece, além disso, coisa de pouca nem despesa, consegui construir um instrumen­
monta ter resolvido as controvérsias sobre a to tão extraordinário que as coisas vistas por
Galáxia ou Via-láctea e ter mostrado sua ver­ meio dele pareciam quase mil vezes maiores e
dadeira natureza a nossos sentidos, além de trinta vezes mais próximas do que se observa­
para o intelecto; como será coisa interessan­ das apenas a olho nu. Totalmente supérfluo
te e belíssima também mostrar diretamente seria dizer quão mumerosas e conspícuas se­
que os corpos estelares, denominados até jam as vantagens deste instrumento, tanto na
hoje por todos os astrônomos Nebulosas, são terra como no mar. Mas eu, deixando as coisas
bastante diversos do que foram comumente con­ terrenas, me dirigi à contemplação das celes­
siderados. tes; e, em primeiro lugar, olhei o lua tão de
221
Capítulo décimo primeiro - O d ^ama de Püalileu e a fu ndação d a ciência moderna

perto, como se distasse apenas dois raios ter­ temos mais apenas um planeta que gira ao re­
restres. Depois, com incrível alegria do espírito, dor de outro, enquanto ambos percorrem o gran­
observei repetidamente os estrelas, tanto as de orbe ao redor do sol; mas nossos sentidos
fixas, como as errantes; e, percebendo-os tão nos mostram bem quatro estrelas que, como a
densos, comecei a pensar o modo de poder lua ao redor da terra, giram ao redor de Júpiter,
medir suas distâncias, o que por fim descobri. enquanto todos juntos com Júpiter percorrem o
Todos aqueles que pretendem proceder a ob­ grande orbe ao redor do sol no espaço de doze
servações de tal tipo, convém que sejam previ­ anos. Por fim, não deve ser transcurado o fato
amente advertidos disto. Gm primeiro lugar, com por qual motivo aconteça que os Rstros M edi­
efeito, eles devem providenciar uma ótima lu- ceus, enquanto efetuam rotações muito próxi­
neta, que mostre os objetos bem cloros, distin­ mas ao redor de Júpiter, parecem por vezes
tos e em nada embaçados, mas os engrande­ maiores do que o dobro. Não se pode absolu­
ça ao menos quatrocentos vezes, fazendo-os tamente procurar a causa disso nos vapores
aparecer vinte vezes mais próximos; se o instru­ celestes, dado que eles resultam maiores ou
mento não for tal, em vão se procurará descor­ menores sem que as dimensões de Júpiter e
tinar todas as coisas por nós percebidas no céu, das fixas próximas apareçam contempora-
das quais em breve falaremos. neamente em nada alteradas. Nem parece crí­
Tais são as observações sobre os quatro vel que tal mudança dependa de suas diversas
Planetas Mediceus, por mim recentemente e em distâncias da terra no perigeu e no apogeu das
primeiro lugar descobertos; e, embora não seja rotações por eles realizadas, não podendo uma
ainda possível deles conseguir a duração de rotação circular estrita produzir qualquer efeito
seus períodos, podemos todavia tornar conhe­ do gênero; e nem mesmo um movimento elíptico
cidos algumas coisas dignas de atenção. Gm (que neste caso seria quase reto) parece con­
primeiro lugar, pelo fato de oro seguir e ora cebível, mas até contrário às aparências [...].
preceder Júpiter com tais intervalos e uma vez Os limites de tempo me impedem de proceder
que se afastam deste tanto paro oriente como além; mas destas coisas o sereno leitor espere
para ocidente com reduzidíssimos alongamen­ em breve uma tratação mais longa.
tos, acompanhando-o tanto no movimento re­ G. Galilei,
trógrado, quanto, igualmente, no dirigido, nin­ S id e re u s Nuncius.
guém pode duvidar que eles girem ao redor de
Júpiter, enquanto todos juntos realizam seus
períodos de doze anos ao redor do centro do
mundo, fllém disso, giram sobre círculos de raio
diferente, isto é, que facilmente se deduz do
Ciência e fé
fato de que aos máximos alongamentos de
Júpiter jamais se puderam ver dois planetas Nesto carta enviado em 21 de dezem­
unidos juntos, enquanto, ao contrário, em pro­ bro de 1613 a seu discípulo dom Benedetto
ximidade de Júpiter foram percebidos bem pró­ Castelli - leitor de matemática no Estúdio de
ximos dois, três e por vezes todos os quatro. Pisa -, Galileu esclarece a relação que ele
Igualmente, salientamos que as rotações dos vê entre ciência e fé. “Eu crería que a autori­
planetas que descrevem círculos menores ao dade das Sagradas Letras tivesse tido em
redor de Júpiter são os mais velozes: com efei­ mira somente persuadir os homens daque­
to, as estrelas mais próximas de Júpiter são les artigos e proposições, que, sendo neces­
percebidas bastante freqüentemente a orien­ sários para sua salvação e superando todo
te, tendo no dia anterior aparecido a ocidente, discurso humano, não podiam por outro ciên­
e vice-versa, enquanto o planeta que procede cia nem por outro meio se tornar críveis, o
ao longo do orbe mais amplo, contanto que se não ser pela boca do inteiro Espírito Santo".
atente paro suas voltas, parece ter um ciclo de Mais tarde, em 1615, em uma igual­
meio mês. Temos igualmente um excelente e mente famosa carta à senhora Eristino de
claríssimo argumento para aliviar de qualquer Lorena, Galileu sustentará que "é o intenção
dúvida a todos os que, embora admitindo sem do Espírito Santo [...] ensinar como se vai ao
dificuldade no sistema copernicano a rotação céu, e não como vai o céu [...]".
dos planetas ao redor do sol, ficam totalmente
perplexos a respeito do único rotação lunar ao
redor da terra, enquanto esta e a lua percor­ Mui Reverendo Padre e Senhor meu
rem o orbe anual ao redor do sol, de modo a Observantíssimo,
concluir que tal estrutura do cosmo deva ser Ontem veio a meu encontro o Sr. Nicolau
rejeitada como impossível: ora, com efeito, não firrighetti, que me trouxe informações de V.
222
Segunda pavte - j \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

Revma., em que tive infinito prazer oo ouvir aqui­ pendimento, o ódio, e por vezes até o esqueci­
lo de que eu de modo nenhum duvidava, isto mento das coisas passadas e a ignorância das
é, da grande satisfação que V. Revma. dava a futuras. De onde, assim como na (Escritura se
todo este (Estúdio, tanto para seus superinten­ encontram muitas proposições que, quanto ao
dentes quanto para os próprios leitores e aos sentido nu das palavras, têm aspecto diverso
estudiosos de todas as nações; o aplauso de­ do verdadeiro mas são postas desse modo à
les não tinha contra o senhor acrescido o nú­ guisa de se acomodar à incapacidade do vul­
mero dos êmulos, como costuma acontecer en­ go, também para os poucos que merecem ser
tre aqueles que são de prática semelhante, mas separados da plebe é necessário que os sábi­
bem depressa o restringira o pouquíssimos; e os expositores produzam os verdadeiros senti­
estes poucos deverão ainda se aquietar, se não dos, e acrescentem a isso as razões particula­
quiserem que tal emulação, que costuma ainda res pelas quais tenham sido proferidas sob tais
por vezes merecer o título de virtude, degenere palavras.
e mude o nome para afeto censurável e preju­ Portanto, sendo que a (Escritura em muitos
dicial finalmente mais aos que com ele se ves­ lugares é não somente capaz, mas necessaria­
tem do que a nenhum outro. mente carente de exposições diversas do apa­
Mas o selo de todo o meu gosto foi o de rente significado das palavras, parece-me que
ouvi-lo contar os raciocínios que V. Revma. teve nas disputas naturais ela deveria ser reserva­
ocasião, mercê da suma benignidade destas da para o último lugar: porque procedendo
Altezas Sereníssimas, de promover à mesa de­ igualmente do Verbo divino o €scritura Sagrada
les e de continuar depois no aposento da se­ e a natureza, aquela como ditada pelo (Espírito
nhora Sereníssima, presentes também o Grão- Santo, e esta como fidelíssima executora das
Duque e a Sereníssima Arquiduquesa, e os ordens de Deus; e sendo, mais ainda, conve­
ilustríssimos e excelentíssimos Senhores D. An­ niente nas (Escrituras, para acomodar-se ao en­
tônio e D. Paulo Giordano e alguns dos mui tendimento do universal, dizer muitas coisas di­
excelentes filósofos. € que maior favor pode V. versas, no aspecto e quanto ao significado das
Revma. desejar, senão o ver Suas Altezas mes­ palavras, do verdadeiro absoluto; mas, ao con­
mas experimentarem satisfação de discorrer con­ trário, sendo a natureza inexorável e imutável
sigo, de promover-lhe dúvidas, de ouvir suas so­ e de nada cuidando a não ser de suas recôndi­
luções, e finalmente de permanecer sastifeitas tas razões e modos de operar por bem ou por
com as respostas de Vossa Paternidade? mal, expostos à capacidade dos homens, pelo
Os particulares que V. Revma. disse, refe­ fato de ela jamais transgredir os termos das
ridos a mim pelo Sr. Arrighetti, deram-me oca­ leis a ela impostas; parece que o que diz res­
sião de voltar a considerar algumas coisas em peito aos efeitos naturais que a sensata expe­
geral a respeito de levar a (Escritura Sagrada riência nos põe diante dos olhos ou as ne­
em disputas de conclusões naturais, e algumas cessárias demonstrações nos concluem, não
outras, em particular sobre o lugar de Josué, deve de modo algum ser revogado como duvi­
que lhe foi proposto, em contradição da mobi­ doso por passagens da (Escritura que tivessem
lidade da terra e estabilidade do sol, pela Grã- nas palavras semblante diverso, pois nem todo
Duquesa Mãe, com alguma réplica da Sere­ dito da (Escritura está ligado a obrigações tão
níssima Arquiduquesa. severas como todo efeito de natureza.
Quanto à primeira pergunta genérica do Ao contrário, se apenas por este respei­
senhora Sereníssima, parece-me que pruden- to, de acomodar-se à capacidade dos povos
tissimamente fosse proposto por ela e conce­ rudes e indisciplinados, a (Escritura não se abs­
dido e estabelecido por V. Revma., não poder teve de sombrear seus dogmas fundamentais,
jamais a €scritura Sagrada mentir ou errar, mas até atribuindo ao próprio Deus condições afas-
serem seus decretos de absoluta e inviolável tadíssimas e contrárias à sua essência, quem
verdade. €u apenas teria acrescentado que, irá querer sustentar de modo asseverativo que
embora a (Escritura não possa errar, por vezes ela, ao falar ainda que incidentalmente de ter­
poderio errar algum de seus intérpretes e ex­ ra ou de sol ou de outro criatura, tenha escolhi­
positores, de vários modos: entre eles um se­ do conter-se com todo rigor dentro dos limita­
ria gravíssimo e freqüentíssimo, quando quises­ dos e restritos significados das palavras? 6
sem parar sempre no puro significado das principalmente pronunciando destas criaturas
palavras, porque assim apareceriam não só di­ coisas muitíssimo distantes do instituto primá­
versas contradições, mas também graves here­ rio destas Sagradas Letras, ou melhor, coisas
sias e até blasfêmias; pois seria necessário dar tais que, ditas e levadas com verdade nua e
a Deus pés e mãos e olhos, sem falar dos afe­ crua, teriam mais depressa danificado a inten­
tos corporais e humanos, como a ira, o arre­ ção primeira, tornando o vulgo mais contumaz
223
Capítulo décimo primeiro - O d r a m a d e CTalileu e a f u n d a ç ã o d a c i ê n c i a m o d e r n a

às persuasões o respeito dos ortigos referen­ tas. Todavia, se os primeiros escritores sacros
tes à salvação. tivessem como pensamento próprio persuadir
Isto posto, e sendo ainda manifesto que o povo das disposições e movimentos dos cor­
duas verdades jamais podem se contradizer, é pos celestes, não teriam tratado tão pouco dis­
ofício dos sábios expositores afadigar-se para so, que é como nada em comparação com as
encontrar os verdadeiros sentidos dos textos infinitas conclusões altíssimas e admiráveis que
sagrados, de acordo com as conclusões naturais estão contidas em tal ciência.
das quais antes o sentido manifesto ou as de­ Veja, portanto, V. Revma. o quanto, se não
monstrações necessárias nos tivessem tornado estou errado, desordenadamente procedem os
certos e seguros. Ou melhor, sendo, como eu que nas disputas naturais, e que diretamente
disse, que as Cscrituras, embora ditadas pelo não são de fíde, no primeira frente constituem
Espírito Santo, pelas aduzidas razões admitem passagens da (Escritura, e com freqüência pes­
em muitos lugares exposições distantes do tom simamente entendidas por eles. Contudo, se
literal e, além do mais, não podendo nós com cer­ esses tais verdadeiramente crêem ter o verda­
teza asserirque todos os intérpretes falem ins­ deiro sentido daquela particular passagem da
pirados divinamente, eu creio que fosse pru­ Cscritura, e por conseguinte se mantêm segu­
dentemente feito que não se permitisse a alguém ros de ter em mão a absoluta verdade da ques­
empenhar os lugares da (Escritura e obrigá-los tão que pretendem disputar, digam-me em se­
de certo modo a ter de sustentar como verda­ guida ingenuamente, se consideram grande
deiras algumas conclusões naturais, das quais vantagem ter aquele que em uma disputa na­
o sentido e as razões demonstrativos e neces­ tural acha-se a sustentar o verdadeiro, vanta­
sárias nos pudessem manifestar o contrário. gem, digo, sobre o outro a quem toca sustentar
€ quem quer pôr termo aos engenhos hu­ o falso? Sei que me responderão que sim, e
manos? Quem desejará asserir que já é sabi­ que aquele que sustenta a parte verdadeira
do tudo o que é cognoscível no mundo? C, por poderá ter mil experiências e mil demonstra­
isso, além dos artigos referentes à salvação e ções necessárias para a sua parte, e que o outro
ao estabelecimento da fé, contra a firmeza dos não pode ter senão sofismas, paralogismos e
quais não há perigo nenhum de que jamais falácias. Mas, se eles, mantendo-se dentro de
possa insurgir alguma doutrina válida e eficaz, termos naturais nem produzindo outras armas
seria ótimo talvez não acrescentar outros sem a não ser as filosóficas, sabem ser tão superio­
necessidade: e, se assim é, quanto maior de­ res ao adversário, por que, ao vir depois ao
sordem seria acrescentá-los a pedido de pes­ congresso, trazem na mão uma arma inevitável
soas que, além do fato de ignorarmos se falam e tremenda, que só ao vê-la aterroriza todo mais
inspiradas por virtude celeste, claramente ve­ hábil e esperto campeão? Todavia, se devo di­
mos que são inteiramente desprovidas daque­ zer o verdade, creio que eles sejam os primei­
la inteligência que seria necessária não direi ros apavorados, e que, sentindo-se inábeis a
para redargüir, mas para compreender as de­ poder estar fortes contra os assaltos do adver­
monstrações com as quais as agudíssimas ciên­ sário, tentem encontrar um modo de não o dei­
cias procedem para confirmar algumas conclu­ xar se aproximar. Mas visto que, como acabei
sões suas? de dizer, aquele que tem de seu lado a parte
€u creria que a autoridade das Sagradas verdadeira, tem grande vantagem, ou melhor,
Letras tivesse tido apenas a intenção de per­ grandíssima, sobre o adversário, e porque é
suadir sobre os homens os artigos e proposi­ impossível que duas verdades se contradigam,
ções que, sendo necessários para sua salva­ porém não devemos temer assaltos que sejam
ção e superando todo discurso humano, não feitos por quem quer que seja, contanto que
podiam por outra ciência nem por outro meio nos dêem oportunidade para falar e ser ouvi­
tornar-se críveis, a não ser pela boca do pró­ dos por pessoas compreensivas e não opressi­
prio (Espírito Santo. Mas que aquele mesmo vamente alteradas pelas próprias paixões e
Deus que nos dotou de sentidos, de discurso e interesses.
de intelecto, tenha desejado, pospondo o uso Como confirmação disso, vou agora con­
destes, dar-nos com outro meio as notícias que siderar o lugar particular de Josué, pelo qual V.
podemos conseguir por aqueles, não penso ser Revma. fez a suas Altezas Sereníssimas três
necessário crer nisso, e principalmente naque­ declarações; e tomo a terceira, queV. Revma.
las ciências das quais apenas mínima partícula fez como minha, como verdadeiramente é, e a
e em conclusões divididas podemos lê-las na ela acrescento alguma consideração a mais, que
(Escritura; como, justamente, a astronomia, da não creio ter-lhe dito outra vez.
qual há tão pequena parte, que aí não se en­ Posto e concedido por enquanto ao ad­
contram denominados nem mesmo os plane­ versário que as palavras do texto sagrado de­
2 24
Segunda pavte - y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

vam ser tomadas exatamente no sentido com Sendo, portanto, absolutamente impossí­
que soam, isto é, que Deus a pedido de Josué vel na constituição de Ptolomeu e de Aristóteles
fizesse parar o sol e prolongasse o dia, de modo parar o movimento do sol e alongar o dia, assim
que ele conseguiu o vitória; mas, requerendo como afirma a (Escritura ter acontecido, então é
eu ainda que a mesma coisa valha para mim, preciso que os movimentos não sejam ordena­
de modo que o adversário não presuma pren­ dos como quer Ptolomeu, ou é preciso alterar o
der-me e deixar-se livre quanto a poder alte­ sentido das palavras, e dizer que quando a
rar ou mudar os significados das palavras; digo (Escritura diz que Deus parou o sol, queria dizer
que esta passagem nos mostra manifestamen­ que parou o primeiro móvel, mas que, para aco­
te a falsidade e im possibilidade do mundano modar-se à capacidade daqueles que são com
sistema aristotélico e ptolemaico, e, ao con­ fadiga idôneos a entender o nascer e o pôr-
trário, se acomodo muito bem com o coper- do-sol, ela dissesse ao contrário daquilo que
nicano. teria dito falando a homens sensatos.
£m primeiro lugar, pergunto ao adversá­ Acrescentemos a isso que não é crível que
rio se ele sabe com quais movimentos o sol se Deus parasse apenas o sol, deixando correr as
move? Se ele o sabe, é preciso que respondo outras esferas; porque sem necessidade nenhu­
o mover-se com dois movimentos, ou seja, o mo­ ma teria alterado e permutado toda a ordem,
vimento anual do poente para o levante, e do os aspectos e as disposições das outras estre­
diurno ao oposto, do levante para o poente. las em relação ao sol, e grandemente pertur­
Rgora, em segundo lugar, lhe pergunto se bado todo o curso da natureza: mas é crível
estes dois movimentos, tão diversos e quase que ele parasse todo o sistema das esferas
contrários entre si, competem ao sol e são igual­ celestes, as quais, depois daquele tempo do
mente seus próprios? é preciso responder que repouso interposto, retornassem concordemente
não, mas que um só é próprio e particular dele, a suas operações sem qualquer confusão ou
isto é, o anual, e o outro não é de fato seu, alteração.
mas do céu altíssimo, digo, do primeiro móvel, Mas, uma vez que já concordamos que
o qual rapta consigo o sol e os outros planetas não se deve alterar o sentido das palavras do
e ainda a esfera estrelada, obrigando-os a fa­ texto, é necessário recorrer a outra constituição
zer uma conversão ao redor da terra em 24 das partes do mundo, e ver se conforme o ela
horas, com movimento, conforme disse, quase o sentimento nu das palavras caminha reta­
contrário ao seu natural e próprio. mente e sem tropeço, como verdadeiramente
Vou para a terceira interrogação, e lhe se percebe ocorrer.
pergunto com qual desses dois movimentos o Tendo eu portanto descoberto, e neces­
sol produz o dia e o noite, isto é, se com o seu sariamente demonstrado, o globo do sol revol­
próprio ou então com o do primeiro móvel? € ver-se em si mesmo, fazendo uma inteira con­
preciso responder que o dia e a noite são efei­ versão em aproximadamente um mês lunar, para
tos do movimento do primeiro móvel, e que aquele lado justamente que se fazem todas as
do movimento próprio do sol dependem não outras conversões celestes; e sendo, além dis­
o dia e a noite, mas as estações diversas e o so, muito provável e razoável que o sol, como
próprio ano. instrumento e ministro máximo da natureza,
Ora, se o dia depende não do movimen­ como que o coração do mundo, dê não somen­
to do sol, mas do do primeiro móvel, quem não te, como cloramente dá, luz, mas ainda o movi­
vê que para prolongar o dia é preciso parar o mento a todos os planetas que giram ao redor
primeiro móvel, e não o sol? Ou melhor, quem de si; se, conforme à posição de Copérnico, atri­
haverá que entendo estes primeiros elementos buirmos a terra principalmente a conversão diur­
de astronomia e não saiba que, se Deus tives­ na; quem não vê que para parar todo o siste­
se parado o movimento do sol, em vez de pro­ ma, e portanto, sem alterar o restante das
longar o dia ele o teria reduzido e tornado mais mutáveis relações dos planetas, apenas se pro­
breve? Pois, sendo o movimento do sol ao con­ longassem o espaço e o tempo da iluminação
trário da conversão diurna, quanto mais o sol diurna, bastou que fosse parado o sol, como
se movesse para o oriente, tanto mais seria justamente soam as palavras do texto sagra­
retardado seu percurso para o ocidente, e di­ do? €is, então, o movimento segundo o qual,
minuindo-se ou anulando-se o movimento do sem introduzir confusão alguma entre as partes
sol, em mais breve tempo alcançaria o ocaso; do mundo e sem alteração das palavras da
tal acidente sensatamente se vê na lua, que (Escritura, se pode, com o parar do sol, alongar
faz suas conversões diurnas tanto mais tarde o dia na terra.
do que as do sol, quanto seu movimento pró­ (Escrevi muito mais do que comportam mi­
prio é mais veloz que o do sol. nhas indisposições: termino, porém, oferecen-
225
Capítulo décimo primeiro - O d f*a m a d e (Elalileu e a f u n d a ç ã o d a c iê n c ia m o d e r n a

do-m© como servidor, 0 lhe beijo os mãos, de­ ríam; contudo, sua singular cortesia não me per­
sejando-lhe os boos festos de Nosso Senhor e mitiu poder usar maiores.
todo felicidade. Estou grato de ouvir que V. 5a. Exma., junto
G. Galilei, com muitos outros, assim como me diz a carta,
Corto o dom Benedetto Castelli tenha-me como avesso à filosofia peripatética,
(escrita de Rorença porque isto me dá ocasião de libertar-me de
no dia 21 de dezembro de 1ól 3) tal conotação (pois assim a considero) e de
mostrar como eu internamente sou admirador
de um homem do porte de Rristóteles. Conten-
tar-me-ei bem nesta estreiteza de tempo de
acenar com brevidade aquilo que penso, com
Método e experiência mais tempo, poder mais larga e manifestamen­
te declarar e confirmar.
O método científico: "Cntre as seguros Eonsidero (e creio queV. 5a. ainda consi­
maneiros poro alcançara verdade está o an­ dere) que ser verdadeiramente peripatético, isto
tepor o experiência a qualquer discurso, e s ­ é, filósofo aristotélico, consista principalmente
tando seguros de que nele, ao menos de em filosofar conforme os ensinamentos aristo-
modo encoberto, está contida a falácia, não télicos, procedendo com os métodos 0 as ver­
send o p o ssíve l que uma sensata e x p e ­ dadeiras suposições e princípios sobre os quais
riência seja contrária ao verdadeiro [...]. Es­ se fundamenta o discurso científico, supondo as
tou seguro de que, se Rristóteles voltasse notícias gerais cujo desvio seria grandíssimo
ao mundo, ele me recebería entre seus s e ­ defeito. Entre essas suposições está tudo aquilo
guidores [...]. € quando Rristóteles visse as que Rristóteles nos ensina em sua Dialética,
novidades descobertas atualmente no céu, atinente a nos tornar coutos em fugir das falá­
que ele afirmou ser inalterável e imutável, cias do discurso, endereçando-o e adestrando-
porque nenhuma alteração fora até então o a bem silogizar e deduzir dos concessões pre­
vista, indubitavelmente ele, mudando de missas a necessária conclusão; e tal doutrina
opinião, dirio ogoro o contrário; p ois bem se se refere à forma do retamente argumentar.
deduz que, enquanto nos diz que o céu é Quanto a esta parte, creio ter aprendido pelos
inalterável, é porque não fora vista altera­ inumeráveis progressos matemáticos puros, ja ­
ção, mas agora dirio que é alteróvel, porque mais falazes, tal segurança no demonstrar, que,
a í se percebem alterações". senão jamais, ao menos raríssimas vezes eu
tenha em minha argumentação caído em equí­
vocos. Rté aqui, portanto, sou peripatético.
Entre as maneiras seguras para alcançar
R Fortúnio liceti em Pádua a verdade está o antepor a experiência a qual­
quer discurso, estando seguros de que nele,
Mui Ilustre e Excelentíssimo Senhor ao menos de modo encoberto, está contida a
R gratíssimo corto de V. So. mui Ilustre e falácia, não sendo possível que uma sensata
Exma. do 7 último, cheio de termos corteses e experiência seja contrária ao verdadeiro: este
ofetuosíssimos, foi-me entregue hoje; e não é também um preceito muito apreciado por
tendo eu outro tempo poro responder-lhe mois Rristóteles e consideravelmente anteposto ao
que poucos horas que restom oté o noite, poro valor e à força da autoridade de todos os ho­
não diferir o resposto uma semono o mais, pro­ mens do mundo, a qual V. Sa. mesma admite
curo satisfazer esto obrigação, embora sucinto­ que não só não devemos ceder às autoridades
mente, porém com polovros puros e simples. de outros, mas devemos negá-la a nós mes­
Ro que V. So. Exma. junto comigo grande­ mos, todas as vezes virmos que o sentido nos
mente desejo, isto é, que em disputas de ciên­ mostre o contrário. Ora, aqui, Exmo. Sr., seja
cia sejam observados os mois corteses 0 mo­ dito com boa paz para V. Sa., parece-me ser
destos termos que em matéria too venerando, julgado contrariamente ao filosofar peripatético
como o sagrada filosofia, convêm, dou-lhe o por aqueles que sinistramente se servem do
palavra de que não me separo sequer um dedo supradito preceito, puríssimo e seguríssimo, isto
de seu ingênuo e honroso estilo: motivo pelo é, que querem que o bem filosofar seja rece­
qual usarei os mesmos títulos, atributos e encô- ber e sustentar toda proposição dita e escrita
mios de honra para com sua pessoa, que V. Sa. por Rristóteles, a cuja autoridade absoluta se
empregou humanamente para comigo, embora submetem, e para cuja manutenção se induzem
[convenham] muito mais ao senhor do que a a negar experiências sensatas ou a dar estra­
mim, 0 de modo muito mais excelente convi­ nhas interpretações aos textos de Rristóteles,
226
Segunda pavte - y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

por declaração e limitação dos quais mui fre- nha, a não ser enquanto com menor tédio do
qüentemente fariam com que o mesmo filósofo leitor eu poderio exprimir meus sentidos; po­
dissesse outras coisas não menos extravagan­ rém, minha dureza natural ao manifestar-me faz
tes e seguramente distantes de suo imagina­ que por vezes permito-me transbordar onde não
ção. Não repugna que um grande artífice tenho desejaria: além do mais, seja por nossa con­
seguríssimos e perfeitíssimos preceitos em suo corde filosofia e amigável liberdade lícito agra­
arte, e que por vezes ao operar erre em algum davelmente dizer, quando o senhor comparas­
particular; como, por exemplo, que um músico se a multiplicidade e extensão das oposições
ou pintor, possuindo os verdadeiros preceitos que o senhor faz à minha única proposição do
da arte, cometa na prática alguma dissonância, candor lunar, traçada em pouquíssimos versos,
ou inadvertidamente algum erro na perspecti­ comparasse digo, com a extensão de minhas
va. Gj , portanto, por saber que tais artífices não respostas, talvez o senhor não encontraria a
só possuíam os verdadeiros preceitos, mas eles proporção de seus ditos com os meus menor
próprios foram seus inventores, vendo alguma que a proporção dos versos de minha carta com
falta em alguma de suas obras, devo aceitar os versos que suas instâncias contêm. Mas es­
isso como bem feito e digno de ser sustentado tas são questiúnculas que não devem ser to­
e imitado, em virtude da autoridade deles? Rqui madas senão como brincadeira.
de fato não prestarei meu assentimento. Que­ Muito me agrada que V. Sa. aplauda meu
ro acrescentar por ora apenas isto: que eu me pensamento de reduzir em outra textura minhas
sinto seguro de que, se Rristóteles voltasse ao respostas, enviando-as a V. Sa. mesmo; então
mundo, ele me receberia entre seus seguido­ terei ocasião de não me deixar vencer no uso
res, por causa de minhas poucos contradições, de termos de reverência ao seu nome, embora
mas bem concludentes, muito mais que muitís­ eu esteja certo de dever ter sido em muito su­
simos outros que, para sustentar tudo o que perado na doutrina pelo seu elevado engenho.
dizem como verdadeiro, vão respigando de seus Poderio bem ocorrer que meu infortúnio, de ter
textos conceitos que jamais lhe teriam ocorri­ de servir-me dos olhos e da pena de outros,
do. 6 quando Rristóteles visse as novidades com demasiado tédio do escritor, prolongasse
descobertas atualmente no céu, que ele afir­ algum dia a mais aquilo que em outros tempos
mou ser inalterável e imutável, porque nenhu­ por mim mesmo teria expedido em poucos dias,
ma alteração fora até então vista, indubita­ e V. Sa., pela prontidão e vivacidade de seu
velmente, mudando de opinião, ele diria agora engenho, em poucas horas. Viva feliz e conti­
o contrário; pois bem se deduz que, enquanto nue tendo comigo sua boa graça, por mim esti­
nos diz que o céu é inalterável, é porque não mada e apreciada como favorável fortuna; e
fora vista alteração, mas agora diria que é al- que o Senhor a faça prosperar.
terável, porque aí se percebem alterações. R G. Galilei,
hora avança, e eu entraria em um mar vastíssimo Corto o Fortúnio Liceti
se quisesse contar tudo o que em tal ocasião (escrita d e Rrcetri no dia 15 d e setembro de 1640)
me passou mais vezes pela mente; reservar-
me-ei, porém, para outra ocasião.
Quanto a V. 5a. ter-me atribuído opiniões
que não são minhas, pode ter acontecido que
V. Sa. tenha tomado algumas opiniões atribuí­
das a mim por outros, mas não escritas por mim: Ciência e técnica
como, por exemplo, que, segundo o filósofo lo-
galla, eu considere a luz como corpórea, en­
fí importôncio da dêncio poro o técnica
quanto no mesmo autor e no mesmo lugar se
é o tema do primeiro trecho, tirado de umo
escreve que sempre ingenuamente confessei
corto de Golilei o Belisário Vinto; enquanto
não saber o que seja a luz; e assim considerar
no segundo trecho, tirado de Discursos e de­
como resolutamente primários meus pensamen­
monstrações matemáticas sobre duas novas
tos, alguns reportados pelo Sr. Mário Guiducci,
ciências (primeira jornada), chamo o otençõo
poderio ser que eu não os tivesse falado, em­
poro os estímulos que o técnico oferece à
bora eu me repute como honra que se creia
reflexão científico.
que tais conceitos sejam meus, considerando-
os verdadeiros e nobres.
R respeito de parecer porventura prolixo Gostaria que meus livros, dirigidos sem­
ao responder a suas objeções, não o subscre­ pre ao venerável nome de meu Senhor, fossem
vo de nenhum modo, nem como sombra de in­ os que me ganhassem o pão; não restando, no
dignação em V. Sa. nem ainda como falta mi­ entanto, senão conferir o Sua Rlteza tantas e
227
Capítulo décimo primeiro - O d m m o d e C ia i!le u e a jun d açtxo d a c iê n c ia tnod&rna

tais invenções, que tolvez nenhum outro prínci­ do meu Compasso Geométrico, dedicado a Sua
pe os tenho maiores, dos quais eu não só te­ Alteza, pois não há mais exemplares; esse ins­
nho muitas com efeito, mas posso estar seguro trumento foi de tal modo abraçado pelo mun­
de encontrar muitas delas ainda durante o dia, do, que agora verdadeiramente não se fazem
conforme as ocasiões que se apresentarem: outros instrumentos deste gênero, e sei que até
além de que, das invenções que dependem de hoje foram fabricados alguns milhares [...].
minha profissão, poderio estar Sua Alteza se­ Finalmente, quanto ao título e pretexto de
guro de não ter de empregar em alguma delas meu serviço, desejaria que, além do nome de Ma­
seu dinheiro inutilmente, como porventura ou­ temático, Sua Alteza acrescentasse o de Filósofo,
tra vez foi feito e em vultosas somas, nem ain­ pois eu confesso ter estudado mais anos de fi­
da para deixar fugir das mãos qualquer desco­ losofia do que meses de matemática pura [...].
berta que lhe fosse proposta por outros, que G. Galilei, Corto o B e lisá rio Vinto em Fiorenço,
verdadeiramente fosse útil e bela. (escrita de Pádua no dia 7 de maio de 1610)
Tenho um número tão grande de segre­
dos particulares, tanto úteis quanto curiosos e SniviflTi - Senhores Venezianos, parece-me
admiráveis, que somente a demasiada abundân­ que a prática freqüente de vosso famoso arse­
cia me prejudico e sempre prejudicou; porque, nal, sobretudo na parte denominada mecâni­
se eu tivesse apenas um, eu o teria estimado ca, proporciona vasto campo ao filosofar dos
muito, e com ele em mãos poderio ter encontrado intelectos especulativos; dado que, aqui, todo
junto de algum grande príncipe aquela ventura tipo de instrumento e de máquina é operado
que até agora não encontrei nem procurei. continuamente por grande número de artífices,
Mogno longeque odmirobilio opud me hobeo: entre os quais, seja pelas observações feitas
mas não podem servir, ou, melhor dizendo, ser por seus predecessores, seja por aquelas que,
colocadas em ação a não ser por príncipes, por reflexão pessoal, eles próprios fazem con­
porque eles fazem e sustentam guerras, fabri­ tinuamente, é natural que existam muitos peri­
cam e defendem fortalezas, e por seus reis de­ tos insignes.
portados fazem enormes despesas, e não eu SflGRCDO - V. 5a. de fato não se engana:
ou homens particulares. eu, curioso por natureza, freqüento esse am­
As obras que tenho de levar a cabo são biente, ouvindo aqueles que, devido a certa
principalmente dois livros De sistemate seu superioridade sobre outros professores, nós
constitutione universi, conceito imenso e cheio chamamos chefes; a preleção deles muitas ve­
de filosofia, astronomia e geometria: três livros zes ajudou-me a descobrir, pela pesquisa ra­
De motu locali, ciência inteiramente nova, não cional, efeitos não apenas maravilhosos, mas
havendo nenhum outro, antigo ou moderno, ainda recônditos e quase impensáveis.
descoberto algum dos muitíssimos sintomas G. Galilei, D iscu rso s e d e m o n stra çõ e s
admiráveis que demonstro existir nos movimen­ m atem áticos s o b re d u o s n o v a s ciê ncia s
tos naturais e nos violentos, que posso de modo
muito razoável chamar de ciência nova e en­
contrada por mim desde seus primeiros princí­
pios: três livros das mecânicas, dois referentes
às demonstrações dos princípios e fundamen­
B e la r m in o
tos, e um dos problemas; e, embora outros te­
nham escrito a mesma matéria, todavia o que
dela até aqui foi escrito, nem em quantidade
nem em outras coisas é um quarto daquilo que
escrevo. Tenho ainda diversos opúsculos sobre
questões naturais, como De sono et voce, De A interpretação
visu et coloribus, De moris estu, De compositione instrumentalista
continui, De animolium motibus, e outros. Pen­ do Copernicanismo
so além disso escrever alguns livros referentes
ao soldado, formando-o não só em idéia, mas
ensinando com regras muito especiais tudo Com esto corto de 12 de obril de 1615
aquilo que lhe cabe saber e que depende das o cordeol Roberto Belarmino afirma que
matemáticas, como o conhecimento de castra- G ol ileu pode sustentara teorio copernicono,
metações, disposições, fortificações, expugna- mos openos com o condição de que o inter­
ções, fazer plantas, medir com a vista, conheci­ prete em umo perspectivo - diriamos hoje -
mentos referentes às artilharias, usos de vários instrumentalista: "Parece-me que V. 5o. e o
instrumentos etc. Preciso também reeditar o Uso -------------------------------------------------------------
228 Segunda parte - ;A (‘e v o lu ç ã o c ie n tífic a

---- ► --------------------------------------- todos os expositores gregos e latinos. Nem se


senhor Golileu seriam prudentes em conten­ pode responder que esta não seja matéria de
tar-se de Falar ex suppositione e não abso­ fé, porque se não é matéria de fé ex parte
lutamente, como sempre acreditei que tenho obiecti, é matéria de fé ex porte dicentis-, e,
Falado Copérnico." assim, seria herege quem dissesse que Abraão
não tenha tido dois filhos e Jacó doze, como
quem dissesse que Cristo não nasceu de uma
virgem, porque uma e outra coisa é dita pelo
flo mui Reverendo Prior Paulo Antônio Cspírito Santo por boca dos Profetas e dos Após­
foscorini, Provincial dos Carmelitas da Província tolos.
de Calábria [em Roma], 3) Digo que quando houvesse verdadei­
ra demonstração de que o sol está no centro
Mui Reverendo Padre, do mundo e a terra no terceiro céu, e que o sol
Li com prazer a epístola em italiano e o não circunda a terra, mas a terra circunda o sol,
escrito em latim queV. Revma. me enviou; agra­ então seria necessário andar com muito consi­
deço-lhe uma e outro, e confesso que estão deração ao explicar as Cscrituras que parecem
todos cheios de engenho e de doutrina. Mas, contrárias, e mais ainda dizer que apenas pre­
como o Sr. pede meu parecer, eu o farei com tendemos afirmar que seja falso aquilo que se
muita brevidade, porque agora o Sr. tem pou­ demonstra. Mas eu não crerei que exista tal
co tempo para ler e eu pouco tempo para es­ demonstração, até que não me sejo mostrada:
crever. nem é o mesmo demonstrar que suposto que o
1) Digo que parece-me que V. Revma. e sol estejo no centro e a terra no céu, se salvem
o Sr. Galileu prudentemente se contentem em as aparências, e demonstrar que na verdade o
falar e x suppositione e não absolutamente, sol está no centro e a terra no céu; porque a
como sempre acreditei que Copérnico falas­ primeira demonstração creio que possa hover,
se. Porque «quando dizemos que se supõe que mas sobre a segunda tenho grande dúvida, e
o terra se mova e o sol esteja parado ficam em caso de dúvida não se deve deixar a Cscri-
salvas todas as aparências melhor que com o tura Santa exposta pelos Santos Padres. Acres­
colocar os excêntricos e epiciclos; é muito bem cento que quem escreveu Oritur sol et occidit,
colocado, e não tem perigo nenhum; e isto bas­ et ad locum suum revertiture tc. foi Salomão, o
ta para o matemático. Mas querer afirmar que qual não só falou inspirado por Deus, mas foi
realmente o sol esteja no centro do mundo, e homem sobre todos os outros sapientíssimo e
apenas se revolva em si mesmo sem correr doutíssimo nas ciências humanas e no conheci­
do oriente para o ocidente, e que a terra es­ mento das coisas criadas, e toda esta sabedo­
teja no terceiro céu e gire com sumo veloci­ ria a teve de Deus; daí não ser verossímil que
dade ao redor do sol, é coisa muito perigoso afirmasse uma coisa que fosse contrária à ver­
não só de irritar os filósofos e teólogos esco- dade demonstrada ou que se pudesse demons­
lásticos, mas ainda de ferir o Santa Fé, tor­ trar. C se alguém me disser que Salomão fala
nando falsas as Cscrituras Santas; porque V. segundo a aparência, parecendo a nós que o
Revma. bem demonstrou muitos modos de sol gire, enquanto a terra giro, como a quem
expor as Santas Cscrituras, mas não os apli­ quando parte da praia lhe parece que a praia
cou em particular, pois sem dúvida haveria de parta do navio, responderei que quem quan­
encontrar grandes dificuldades se tivesse do parte do praia, embora lhe pareça que a
querido expor todas aquelas partes que o Sr. praia parte dele, também sabe que isto é erro
mesmo citou. e o corrige, vendo claramente que o navio se
2) Digo que, como o Sr. sabe, o Concilio move e não a praia; todavia, quanto ao sol e
proíbe expor as Cscrituras contra o consenso co­ à terra, nenhum sábio tem necessidade de
mum dos Santos Padres; e se V. Revma. quiser corrigir o erro, porque daramente experimenta
ler não digo apenas os Santos Padres, mas os que a terra está parada e que o olho não se
comentários modernos sobre o Gênesis, sobre engana quando julga que o sol se move, como
os Salmos, sobre o Cclesiastes, sobre Josué, também não se engana quando julga que a
verá que todos concordam em expor ad litteram lua e as estrelas se movem. C isto baste por
que o sol está no céu e gira ao redor do terra agora.
com suma velocidade, e que a terra está muito Com isto saúdo claramente V. Revma., e
longe do céu e está no centro do mundo, imó­ lhe peço de Deus todo contentamento.
vel. Considere agora o Sr., com sua prudência, R. Belarmino,
se a Igreja pode suportar que se dê às Cscritu­ Carta a P a u lo R n tô n io Foscorini
ras um sentido contrário aos Santos Padres e a (de Roma, dia 12 de abril de 1ól 5)
(Z-apítulo d é c im o s e g u n d o

S i s f e m a do munc^O;
m eto d o lo gia e "filosofia
Kva o b r a d e J s a a c 7\)ewtorv

• Se não compreendermos o pensamento de Newton será S em N e w to n


impossível compreender a fundo tanto o Empirismo inglês, como é im p ossível
o lluminismo (sobretudo o francês) e também a filosofia de Kant. c o m p re e n d e r
Com efeito, a "razão" dos empiristas ingleses - razão limitada o E m p irism o ,
e controlada pela "experiência" - é a razão de Newton; a "ra­ o llu m in is m o
zão" dos iluministas é a de Locke, isto é, a razão que encontra e o p e n s a m e n ­
seu paradigma na ciência de Boyle e na física de Newton. E, por to d e K a n t
outro lado, é preciso estar lembrado de que a "ciência" de que -->§1.1
fala Kant é a ciência de Newton e que a comoção kantiana di­
ante dos "céus estrelados" é a comoção diante da ordem do universo-relógio de
Newton.

• Isaac Newton (1642-1727) estuda no Trinity College de Cambridge, e é aqui


que seu grande gênio é compreendido e estimulado pelo matemático Isaac Barrow
(1630-1677). Em 1665-1666, por causa da peste, Newton deixa Cambridge e volta
para o campo, em Woolsthorpe, sua terra natal. E foi justamente em Woolsthorpe
que ele teve pela primeira vez a idéia da gravitação universal. Quando, em 1669,
Barrow começou a ensinar teologia, Newton foi chamado à cátedra de matemáti­
ca, que já fora de Barrow.
Três anos depois, em 1672, Newton apresenta à Royal Society um memorandum
com o título Nova teoria a respeito da luz e das cores, em que encontramos a
teoria da natureza corpuscularda luz, teoria que contrastava com
a teoria ondulatória da luz formulada pelo físico holandês, o N e w to n
cartesiano Christian Huygens (1629-1695). e m p o lê m ic a
Newton terá outra disputa com Leibniz a propósito da prio­ co m H o o k e
e L e ib n iz
ridade na descoberta do cálculo infinitesimal.
Além disso, foi duríssima a controvérsia que Newton teve -> § 11.2; V III.3
com Robert Hooke (1635-1703), o qual desejava fosse reconhe­
cida a própria prioridade na descoberta da lei da força inversamente proporcio­
nal ao quadrado da distância. Primeiro Newton se ofendeu terrivelmente; de­
pois a briga se aplacou e Newton inseriu nos Principia uma nota em que se regis­
trava que a lei do inverso do quadrado já fora proposta por Wren, Hooke e
Halley.
Os Philosophiae naturalis principia mathematica apareceram em 1687. Em
1689 Newton foi nomeado deputado na representação da Universidade de
Cambridge. Neste período estreitou amizade com John Locke; continuou seus es­
tudos sobre o cálculo infinitesimal. Entrementes fora nomeado diretor da Zecca,
da qual se tornará governador três anos mais tarde. Em 1703 é eleito presidente
da Royal Society. Em 1704 aparece a Ótica; em 1713 publica-se a segunda edição
dos Principia.
• No início do terceiro livro dos Principia Newton fixa as quatro "regras do
raciocínio filosófico". São certamente regras metodológicas, mas pressupõem
assuntos de ordem metafísica sobre a natureza e sobre a estrutura do uni­
verso.
230
Segunda pãTte - r e v o lu ç ã o c ie n tí fic a

Regra I: "Não devemos admitir mais causas das coisas natu-


A s "re g ra s rais do que aquelas que são tanto verdadeiras como suficientes
d o f ilo s o fa r " para explicar suas aparências".
§ iii-t Regra II: "Por isso aos mesmos efeitos devemos, o quanto
possível, atribuir as mesmas causas".
Regra III: "As qualidades dos corpos, que não admitem nem aumento nem
diminuição de grau, e que se percebem pertencer a todos os corpos dentro do
âmbito de nossos experimentos, devem ser consideradas qualidades universais de
todos os corpos".
Regra IV: "Na filosofia experimental as regras inferidas por indução geral a
partir dos fenômenos devem ser consideradas como estritamente verdadeiras ou
como muito próximas da verdade, apesar das hipóteses contrárias que possam ser
imaginadas, até quando se verifiquem fenômenos a respeito dos quais elas se
tornam mais exatas ou então se tornam sujeitas a exceções".

Todos • É por meio dos sentidos que chegamos a estabelecer as


os corp o s qualidades fundamentais dos corpos, os quais são formados por
partes menores também elas "extensas, duras, impenetráveis,
são fo rm a d o s
d e p a rte s móveis e dotadas de sua própria inércia". Esta é a teoria do
m e n o re s corpuscularismo.
- > § II 1.2
E, por outro lado, é a experiência que nos leva a "admitir
universalmente que todos os corpos são dotados de um princípio
de gravitação recíproca". E a gravidade dos corpos "diminui em relação a seu
afastamento da terra".

A le i
• Com a lei de gravidade Newton propunha um único princí­
d e g ra v id a d e pio em grau de dar conta de uma quantidade ilimitada de fenô­
§ III.3 menos: a força que faz cair uma pedra ou uma maçã é da mesma
natureza da força que explica o fenômeno das marés como efei­
to da atração do sol ou da lua sobre a massa da água dos mares.
E a grande máquina do mundo, a ordem dos céus estrela­
A p ro v a
dos, é a base sobre a qual Newton fundamenta a demonstração
d a e x is tê n c ia
d e D eus
da existência de Deus. "Este extremamente maravilhoso sistema
-> § IV.1
do sol, dos planetas e dos cometas só pôde se originar do projeto
e da potência de um Ser inteligente e poderoso".

• Hypotheses non fingo: é a célebre sentença metodológica de Newton à


qual se reportam todos os indutivistas. Todavia, Newton é conhecido, e sua gran­
deza é ilimitada, não porque viu uma maçã cair; ele é conhecido e grande porque
formulou hipóteses e as provou, hipóteses que explicam por que a maçã cai por
terra e por que a lua não despenca sobre a terra, por que os cometas gravitam em
torno do sol e por que ocorrem as marés.
Todavia, o que entendia Newton com "hipóteses", quando
A s e n te n ç a dizia para "não inventar hipóteses"?
"H y p o th e s e s Eis a sua resposta: "[...] e não invento hipóteses; com efeito,
n o n f in g o " tudo aquilo que não se deduz dos fenômenos, deve-se chamar
§ v. 1 de hipóteses-, e as hipóteses, tanto metafísicas como físicas, tanto
de qualidades ocultas como mecânicas, não têm nenhum lugar
na filosofia experimental. Em tal filosofia proposições particulares são deduzidas
dos fenômenos, e sucessivamente tornadas gerais por indução. Foi assim que se
descobriram a impenetrabilidade, a mobilidade e a força dos corpos, as leis do
movimento e de gravitação. E para nós é suficiente que a gravidade exista de fato
e aja conforme as leis que expusemos, e esteja em grau de amplamente dar conta
dos movimentos dos corpos celestes e de nosso mar". A gravidade existe de fato;
ela explica os movimentos dos corpos; serve para prever suas posições futuras. Isto
é o que basta ao físico. Qual seja a causa da gravidade é uma questão cuja respos­
ta sai do âmbito da observação e da experimentação e que, portanto, foge à "fi­
231
Capítulo décimo segundo - S i s t e ma d o mnnc\o/ m e to d o lo g ia e. filo so fia na o\jt*a d e TSJewtcm

losofia experimental". E Newton não quer se perder em conjecturas metafísicas


não controláveis. Este é o sentido de sua expressão Hypotheses non fingo.
• A natureza é simples e uniforme. E eis, a seguir, as três leis newtonianas que
descrevem os ordenados e rigorosos movimentos do universo e que permitem
prever órbitas e posições futuras dos corpos celestes.
A primeira lei é a lei de inércia, sobre a qual Galileu tinha As três leis
trabalhado e que Descartes havia formulado com muita preci­ d o m o v im e n to
são. Newton escreve: "Todo corpo persevera em seu estado de e as n oções
repouso ou de movimento retilíneo uniforme, a menos que não d e espaço
seja forçado a mudar tal estado por forças dirigidas sobre ele". e te m p o
A segunda lei, já formulada por Galileu, diz: "A mudança a b s o lu to s
de movimento é proporcional à força motriz aplicada; e ocorre -> § V I . 1
sob a direção da linha reta segundo a qual a força foi aplicada".
A terceira lei, formulada por Newton, afirma que "A toda ação se opõe sem­
pre uma igual reação: ou seja, as ações recíprocas de dois corpos são sempre iguais
e dirigidas em direções contrárias".
E claro que os estados de repouso e de movimento retilíneo uniforme po­
dem-se determinar apenas em relação a outros corpos que estejam em repouso
ou em movimento. E, uma vez que a remitência a sempre ulteriores sistemas de
referência não pode chegar ao infinito, Newton introduz as duas noções de tem­
po absoluto e de espaço absoluto: duas noções que serão objeto de sucessivas e
devastadoras críticas, como conceitos privados de significado operativo e em-
piricamente não controláveis (Ernst Mach dirá que o tempo absoluto e o espaço
absoluto de Newton são "monstruosidades intelectuais").
Eis como Newton define os dois conceitos:
- "o tempo absoluto verdadeiro e matemático, em si e por sua natureza, flui
uniformemente sem relação com algo interno, e com outro nome chama-se dura­
ção; o tempo relativo aparente e comum é a medida sensível e externa [...] da
duração através do meio do movimento, e ele é comumente usado em lugar do
tempo verdadeiro, ele é a hora, o dia, o mês, o ano";
- "o espaço absoluto, por sua natureza privado de relação com algo de exter­
no, permanece sempre semelhante a si mesmo e imóvel".
• Justamente dentro deste espaço absoluto - que Newton . .
chama também de sensorium Dei - o maravilhoso e elegantíssimo de e' avidacie
conjunto dos corpos mantém-se junto pela lei de gravidade, que _^§vi2
encontramos no terceiro livro dos Principia. A lei de gravidade '
diz que a força de gravitação com a qual dois corpos se atraem é
diretamente proporcional ao produto de suas massas e inversamente proporcio­
nal ao quadrado de sua distância. Tal lei é expressa pela conhecida fórmula:

m, m2
F= G
D2

onde F é a força de atração, m1 e m2 são as duas massas, D é a distância entre as


duas massas e G é uma constante que vale em todos os casos: na recíproca atração
entre a terra e a lua, entre a terra e uma maçã etc.

• A mecânica de Newton foi um dos mais fecundos pro­ O p ro g r a m a


gramas de pesquisa da história da ciência. Tal programa irá à d e pesq u isa
frente por muito tempo até uma revolução das idéias funda­ n e w to n ia n a :
mentais da ciência newtoniana. A física newtoniana, além disso, a m e c â n ic a
admite uma razão limitada que não tem a tarefa de descobrir § VII. 1
substâncias.
232
ScgUndíl pãftC - .A devolução cientifica

• Newton ocupou-se com matemática em seus primeiros anos de estudo, len­


do os Elementos de Euclides e a Geometria de Descartes; bem depressa a matriz
física se fará sentir de modo determinante em suas pesquisas
O cálculo matemáticas, dado que ao mesmo tempo estudava a acústica e a
infinitesimal ótica. Em 1687 publica a primeira síntese sobre o cálculo infini-
e a controvérsia tesimal na obra Philosophiae naturalis principia mathematica em
com Leibniz que aparece a teoria "dos fluentes e das fluxões". No âmbito dos
§ VIII. 1-3 estudos sobre o cálculo dos infinitésimos deve ser inserida a dis­
puta entre Newton e Leibniz sobre a prioridade da descoberta.

I. O s i g n i f i c a d o f ilo s ó f ic o
d a o b i^ a d e / \ ] e w f o n

1 t e o r ia m e t o d o ló g ic a
d e T ^ e w to n

Galileu morreu em 8 de janeiro de 1642.


No mesmo ano, no dia de Natal, nascia em
Woolsthorpe, nas proximidades da aldeia de
Colsterworth, em Lincolnshire, Isaac New­
ton. Newton foi o cientista que levou a re­
volução científica ao seu termo. E foi com
o seu sistema do mundo que se configurou
a fisionomia da física clássica. Mas não fo­
ram apenas suas descobertas astronômicas,
óticas ou, talvez, matemáticas (independen­
temente de Leibniz, ele inventou o cálculo
diferencial e integral) que fizeram com que
merecesse um lugar na história das idéias
filosóficas. Com efeito, Newton preocupou-
se com prementes questões teológicas e for­
mulou uma teoria metodológica precisa.
Mas a coisa mais importante, em nosso caso,
é que, sem adequada compreensão do pensa­
mento de Newton, estaríamos nos proibin­
do de compreender a fundo grande parte do
empirismo inglês, o iluminismo (sobretudo
o francês) e o próprio Kant. Na realidade,
como veremos melhor adiante, a “ razão”
dos empiristas ingleses, limitada e controla­ Isaac Newton ( 1642-1727j
da pela “experiência” , motivo pelo qual não é um pensador que figura
entre os maiores cientistas
é mais livre para mover-se a seu bel-prazer de todos os tempos.
no mundo das essências, é precisamente a I. este o seu retrato inciso por John H. I ipps
“ razão” de Newton. A “ razão” dos ilumi- em / 77;S'.
nistas é a do empirista Locke, “ razão” que
encontra seu paradigma na ciência de Boyle
e na física de Newton: esta não se perde em controlada pela experiência, procura e pro­
hipóteses sobre a natureza íntima ou a es­ va as leis do seu funcionamento. Por fim.
sência dos fenômenos, mas, continuamente não devemos nos esquecer de que a “ciên­
233
Capítulo décimo segundo - .S is t e m a d o m un do , m eto dol o g ia e -filosofia n a o b r a d e /\Je w to n

cia” de que fala Kant é a ciência de Newton, preender a dinâmica do universo, os princí­
e que a comoção kantiana diante dos “ céus pios da força e o movimento e a física dos
estrelados” é a comoção diante da ordem corpos em movimento em meios diversos”
do universo-relógio de Newton. Kant, com (I. B. Cohen). E, “ à medida que a continui­
efeito, acreditava que a função do filósofo dade do desenvolvimento do pensamento
fosse a de explicar a unicidade e a veracida­ nos permite falar de uma conclusão e de um
de da teoria de Newton. Assim, sem a com­ novo ponto de partida, podemos dizer que,
preensão da imagem da ciência newtoniana, com Isaac Newton, acabava um período da
é verdadeiramente impossível compreender atitude dos filósofos em relação à natureza
a Crítica da razão pura de Kant. e começava outro, inteiramente novo. Em
O livro mais famoso de Newton é Phi- sua obra, a ciência clássica [...] alcançou
losophiae naturalis principia matbematica existência independente e, daí em diante,
(Princípios matemáticos da filosofia natu­ começou a exercer toda a sua influência so­
ral), publicado em primeira edição em 1687. bre a sociedade humana. Se alguém devesse
Pois bem, “ a publicação dos Principia [...] assumir a função de descrever essa influên­
foi um dos acontecimentos mais importan­ cia em suas numerosas ramificações [...],
tes de toda a história da física. Esse livro Newton poderia constituir o ponto de par­
pode ser considerado o ponto culminante tida: tudo aquilo que foi feito antes era ape­
de milhares de anos de esforços para com­ nas uma introdução” (E. J. Dijksterhuis).

11. A v id a e as o b m s

1 u C o m o y\)ew fon de, apesar das extraordinárias realizações


dos anos posteriores, esse foi talvez o perío­
s o u b e lee
do mais fecundo da vida de Newton, que,
a q u e d a d e um a m a çã em sua velhice, assim recordava seu extra­
ordinário trabalho em Woolsthorpe: “Tudo
isso ocorria nos dois anos da peste, em 1665
Isaac Newton, portanto, nasceu em e 1666, já que naquela época eu estava em
1642. Em 1661, depois de uma adolescên­ plena idade criativa e me dedicava à mate­
cia normal, entrou no Trinity College de mática e à filosofia muito mais do que pos­
Cambridge. Aí passou a ser encorajado pelo sa ter feito posteriormente.” (A “ filosofia”
seu professor de matemática, Isaac Barrow ou “ filosofia natural” de Newton é o que
(1630-1677), que, por seu turno, foi o au­ hoje nós chamamos de “ física” .) Com efei­
tor de influentes Lectiones mathematicae e to, foi em Woolsthorpe que Newton teve
de outros escritos sobre a matemática gre­ pela primeira vez a idéia da gravitação uni­
ga. Barrow havia percebido a inteligência versal.
do discípulo, que, em um período de tempo E conhecido o relato (que a neta de
bastante curto, já se assenhoreara de todas Newton contou a Voltaire, que depois o di­
as partes essenciais da matemática da épo­ fundiu) segundo o qual tal idéia lhe teria
ca. No período que marca o fim dos seus ocorrido quando meditava sobre a queda
estudos, Newton já chegara ao “cálculo das de uma maçã de uma árvore sob a qual es­
fluxões” , ou seja, o cálculo infinitesimal, tava descansando. Nesse período, também
usando-o na solução de alguns problemas aprofundou alguns problemas de ótica, pros­
de geometria analítica. Passou o caderno dos seguindo nesses estudos mesmo depois do
seus apontamentos a Barrow e a poucos seu retorno a Cambridge. Tendo adquirido
outros amigos, para que o lessem. Entretan­ grande habilidade no polimento de espelhos
to, em 1665-1666, em virtude da peste, metálicos e sabendo dos defeitos do teles­
Newton, a exemplo de muitos estudantes e cópio de Galileu, Newton construiu um te­
professores, deixou Cambridge. Voltou para lescópio por reflexão.
Woolsthorpe, dedicando-se a meditar na Em 1669, Barrow assumiu a cátedra
pequena casa de pedra, isolada em uma vas­ de teologia, cedendo sua cátedra de mate­
ta planície. Como escreve Da Costa Andra­ mática ao jovem Newton. Tendo concluído
234
Segunda parte - A r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

seus experimentos sobre a decomposição da misso. Então, no mês de agosto, Halley foi
luz branca através de um prisma, Newton a Cambridge para ouvir a opinião de New­
apresentou um relatório à Royal Society em ton. À pergunta de Halley sobre qual seria
1672. Intitulado Nova teoria acerca da luz a órbita de um planeta atraído pelo sol com
e das cores, o relatório foi publicado nas Phi- uma força gravitacional inversamente pro­
losophical transactions da própria Royal porcional ao quadrado da distância, New­
Society. Nesse trabalho, como também em ton respondeu: “Uma elipse!” Cheio de ale­
outro trabalho posterior, em 1675, Newton gria, Halley perguntou a Newton como fazia
formulava a ousada teoria da natureza cor- para saber isso. E Newton replicou que o
puscular da luz, segundo a qual os fenôme­ sabia porque já fizera os cálculos relativos
nos luminosos encontravam sua explicação à questão. Halley pediu então para ver es­
na emissão de partículas de diferentes gran­ ses cálculos, mas Newton, não conseguin­
dezas: as partículas menores davam origem do encontrá-los, prometeu que os manda­
ao violeta e as maiores ao vermelho. A teo­ ria a ele. E assim fez.
ria corpuscular da luz entrava em competi­ E mais: escreveu um livrete, o De motu
ção com a teoria ondulatória proposta pelo corporum, que também enviou a Halley.
físico holandês cartesiano Christian Huygens Este logo se deu conta da grandeza do tra­
(1629-1695) em seu Traité de la lumière. Ir­ balho de Newton e o convenceu a escrever
ritado e desgostoso com tais polêmicas, New­ um tratado que tornasse públicas suas des­
ton só publicaria sua Ótica em 1704. Con­ cobertas. Foi assim que nasceu aquela que é
tudo, seu trabalho no campo da ótica já lhe considerada a maior obra-prima da histó­
havia propiciado a nomeação para membro ria da ciência, isto é, a Philosophiae naturalis
da Royal Society (1672). principia mathematica.
Em 1671, o francês Jean Picard (1620­ Newton começou a trabalhar em 1685.
1682) havia efetuado ótimas medidas das Em abril de 1686, o manuscrito do primei­
dimensões da terra. Em 1679, Newton toma ro livro foi enviado à Royal Society, em cujos
conhecimento da medida do diâmetro da registros encontramos a seguinte anotação,
terra calculado por Picard. Retomou suas no­ com data de 28 de abril: “ O doutor Vincent
tas sobre a gravitação, refez os cálculos (que, apresentou à Sociedade o manuscrito de um
em Woolsthorpe não fechavam) e, desta vez, tratado intitulado Philosophiae naturalis
com a nova medida de Picard, os cálculos principia mathematica, que o sr. Isaac New­
fecharam, fazendo com que a idéia da gra­ ton dedica à Sociedade e no qual apresenta
vitação se tornasse então uma teoria cientí­ uma demonstração matemática da hipótese
fica. Entretanto, ainda sob a impressão das copernicana como foi proposta por Kepler,
ásperas polêmicas anteriores, ele não publi­ explicando todos os fenômenos dos movi­
cou os resultados alcançados. Enquanto isso, mentos celestes por meio da única hipótese
prosseguia em suas lições de ótica, publica­ de uma gravitação em direção ao centro do
das em 1729 sob o título de Lectiones opti- sol, decrescente segundo o inverso dos qua­
cae, bem como as de álgebra, que apareceram drados das distâncias em relação a ele” . E,
em 1707 sob o título Arithmetica universalis. posteriormente, foram redigidos o segundo
e o terceiro livros. O próprio Halley se en­
carregou da publicação do trabalho.
Nesse meio tempo, porém, explodiu
2 ;A po\cm \ca com ■ HooI<e grande controvérsia com Hooke, que recla­
mava a prioridade da descoberta da lei da
força inversamente proporcional ao quadra­
No início de 1684, o grande astrôno­ do da distância. Newton ofendeu-se terri­
mo Edmond Halley (1656-1742) encontrou- velmente, ameaçando até deixar de publicar
se com Sir Christopher Wren (1632-1723) o terceiro livro da obra, relativo ao sistema
e com Robert Hooke (1635-1703) para dis­ do mundo. Depois, a disputa se aplacou e
cutir a questão dos movimentos planetá­ Newton inseriu em seu trabalho uma nota
rios. Hooke afirmou que as leis dos movi­ registrando que a lei do inverso do quadrado
mentos dos corpos celestes seguiam a lei da já fora proposta por Wren, Hooke e Halley.
força inversamente proporcional ao quadra­ Os Principia apareceram em 1687. Dois
do da distância. Wren deu a Hooke dois me­ anos depois, Newton foi nomeado deputa­
ses de tempo para formular a demonstração do, representando a Universidade de Cam­
da lei. Mas Hooke não cumpriu o compro­ bridge. Nesse período, conheceu John Lo-
235
Capitulo d é d tn O s e g u n d o - S i s t e m a d o m un do, m e to d o lo g ia e filo so fia na olm o d e A le w to n

cke, com quem estreitou sincera e sólida ami­ Em fevereiro de 1727, Newton partiu de
zade. Prosseguindo seus estudos sobre o cál­ Kensington (onde residia e que era então
culo infinitesimal, publicou parte deles em uma aldeia próxima de Londres, ao passo
1692. E manifestou intenso interesse pela quí­ que é hoje parte integrante do aglomerado
mica. urbano) para Londres, a fim de presidir uma
Mas, ao mesmo tempo, iniciava sua sessão da Royal Society. Voltando a Ken­
prestigiosa carreira pública. Em 1696, foi sington, sentiu-se muito mal. Não conse­
nomeado diretor da Casa da Moeda; três guindo superar a crise, morreu em 20 de
anos depois, tornou-se governador. Desen­ março de 1727. Foi sepultado na Abadia
volveu seu trabalho com grande empenho, de Westminster. E Voltaire estava presente
granjeando com isso verdadeira benemerên- aos seus funerais, o mesmo Voltaire que,
cia nacional. Em 1703, foi eleito presidente como veremos quando falarmos do Ilumi-
da Royal Society. Em 1704 publicou a Óti­ nismo, contribuiu de modo relevante para
ca, em 1713 a segunda edição dos Princi­ fazer conhecer o pensamento de Newton na
pia, em 1717 a segunda edição da Ótica. França.

OPTICKS1 O P T I C E : O R , A
S 1 V E DE
Reflexionibus, Refra&ionibus,
T R E A T I S E Inflexionibus & Coloribus
OF T H E

R E F L E X IO N S , R E F R A C T IO N S ,
I N F L E X I O N S and C O L O U R S
L U C I S LIBRI T R ES.
O P

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L
1
i vi ri 1, / “i

A I S O
T T n p
Authore I s a a c o N e w t o n , Equite Auraco.

Latine reddidit Samuel Clarke, A. M.


Two T R E A T I S E S Reverendo admodum Patri ac D“ J O A N N I
OF THE M O O R E Epifcopo N o r v i c e n s i a
Sacris Domefticis.
SPEC1ES and M A G N IT U D E
. . ° F .
AcceduntTraâatusduocjufdem A u t h o r i s
Curvilinear Figures. de Speciebus & Magnitudine Figurarum
Curvilinearum, Latine ícripti.

P rin te d for S * < S ' í » t i - , and B i n j . W a i r o i o ,


L 0 N D / N I:
P rim e » to tbe Royel S o ciety . e t thr P rim 'i .irm . m

ü
-
St. PémCi Churtb-yard. M D C C tV - tapeofis S t M .
8 e . t H 8c B « n ,. V u . D t » , R $ i a Socieutit
Typograph- td Infigma Priocipi* in Com eterio DTfittU,
M D CCVI.
L..... — .............. - ..........—1-

Frontispício da primeira edição Frontispício da edição em latim


do Opticks de Newton (Londres, 1704). do Opticks de Newton (Londres, 1706).
236
Segundei parte - y\ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

III. A s 'V e g r n s d o f i l o s o f a i —
e. a //o K \+ o lo g ia // q u e e l a s p r e s s u p õ e m

T e e s f ô g m s m e + o d o lÓ 0 Íca s sobre os planetas; mas, com base no fato de


que a natureza se comporta uniformemente
tanto na terra como nos planetas, nos é pos­
sível dizer como a luz se comporta também
No início do livro III dos Principia, sobre os planetas.
Newton estabelece quatro “ regras do racio­ E eis a terceira regra:
cínio filosófico” . “ Regra III: As qualidades dos corpos
Trata-se certamente de regras meto­ que não admitem aumento nem diminui­
dológicas, mas, como veremos, elas pressu­ ção de grau, e que se descobre pertencerem
põem e se entrelaçam com questões de or­ a todos os corpos no interior do âmbito dos
dem metafísica sobre a natureza e sobre a nossos experimentos, devem ser considera­
estrutura do universo, como, aliás, ocorre das qualidades universais de todos os corpos”.
com qualquer metodologia, já que as regras Também essa regra pressupõe o prin­
que explicitam o como devemos investigar cípio ontológico da uniformidade da natu­
pressupõem o que devemos procurar. reza. Escreve Newton: “ Como nós só co­
“ Regra I: Não devemos admitir mais nhecemos as qualidades dos corpos através
causas para as coisas naturais do que aque­ dos experimentos, devemos considerar uni­
las que são tanto verdadeiras como sufi­ versais todas as qualidades que universal­
cientes para explicar suas aparências mente revelam-se concordantes nos experi­
Esta primeira regra é um princípio de mentos e que não podem ser diminuídas nem
parcimônia no uso das hipóteses, uma es­ retiradas. Certamente, não devemos aban­
pécie de navalha de Ockham referente às donar a evidência dos experimentos por
teorias explicativas. amor aos sonhos e às vãs fantasias da nossa
Mas por que devemos nos circunscre­ especulação, mas também não devemos
ver à obtenção de teorias simples-, ou seja, abandonar a analogia da natureza, que é
por que não devemos complicar a aparelha­ simples e conforme consigo mesma” .
gem hipotética de nossas explicações?
Pois bem, a resposta de Newton a tais
interrogações é que “ a natureza não faz nada
; A te o e ia c o e p u s c u la e
em vão, ao passo que, com muitas coisas,
faz-se em vão aquilo que se pode fazer com
poucas. Com efeito, a natureza ama a sim­
plicidade e não superabunda em causas su­ A natureza, portanto, é simples e uni­
pérfluas” . forme. São esses os dois pilares metafísicos
Este, precisamente, é o postulado anto­ que sustentam a metodologia de Newton.
lógico — o postulado da simplicidade da E, uma vez fixados tais pressupostos,
natureza — subjacente à primeira regra Newton passa a estabelecer algumas quali­
metodológica de Newton. dades fundamentais dos corpos, como a
Estreitamente relacionada com a pri­ extensão, a dureza, a impenetrabilidade e o
meira regra, vem então a segunda: movimento. E é por meio dos nossos senti­
“Regra II: Por isso, tanto quanto pos­ dos que conseguimos estabelecer essas qua­
sível, aos mesmos efeitos devemos atribuir lidades. “ Extensão, dureza, impenetrabili­
as mesmas causas. Como na questão da res­ dade, mobilidade e força de inércia do todo
piração no homem e no animal, no caso da decorrem da extensão, dureza, impenetra­
queda das pedras na Europa e na América, bilidade, mobilidade e força de inércia das
no problema da luz do nosso fogo de cozi­ partes. Daí, concluímos que as menores par­
nha e do sol ou no fato da reflexão da luz tes de todos os corpos também devem ser
sobre a terra e sobre os planetas” . extensas, duras, impenetráveis, móveis e
Essa regra expressa outro postulado dotadas de sua própria inércia. E esse é o
ontológico: o da uniformidade da natureza. fundamento de toda a filosofia” . Trata-se
Ninguém pode controlar a reflexão da luz do corpuscularismo.
237
Capitulo décimo segutldo - S is + e m a d o m un do , m e to d o lo 0 Ía e |ilo s o |ia n a otmn d e y\'ew ton

Entretanto, Newton não podia evitar larmente; que, de modo semelhante, a lua
uma grande questão ligada a essa: os cor­ gravita na direção da terra, em proporção à
púsculos de que são feitos os corpos mate­ quantidade da sua matéria; que, por outro
riais são ou não ulteriormente divisíveis? lado, o nosso mar gravita em direção à lua;
Matematicamente, uma parte é sempre di­ que todos os planetas gravitam uns em di­
visível, mas o mesmo valerá também fisica­ reção aos outros e que, de igual modo, os
mente? cometas gravitam em direção ao sol, então,
Eis a argumentação de Newton a esse em conseqüência dessa regra, devemos ad­
propósito: “ O fato de que as partículas dos mitir universalmente que todos os corpos
corpos, divididas, mas contíguas, podem ser são dotados de um princípio de gravitação
separadas umas das outras é uma questão recíproca. Por isso, o argumento extraído
de observação. E, nas partículas que perma­ dos fenômenos conclui com maior força em
necem indivisas, nossas mentes estão em favor da gravitação universal do que em fa­
condições de distinguir partes ainda meno­ vor de sua impenetrabilidade, sobre a qual
res, como pode ser demonstrado em mate­ não temos nenhum experimento e nenhu­
mática. Mas não nos é possível determinar ma forma de observação que possam ser
com certeza se as partes assim distintas e efetuados sobre os corpos celestes. E eu não
não ainda divididas podem ser efetivamen­ afirmo que a gravidade é essencial aos cor­
te divididas e separadas uma da outra por pos: pelo termo vis insita entendo unicamen­
meio dos poderes da natureza. Entretanto, te a sua força de inércia. Esta é imutável.
se mesmo com um único experimento tivés­ Mas a sua gravidade diminui em relação
semos a prova de que uma partícula qual­ com o seu afastamento da terra” .
quer indivisa, rompendo um corpo sólido e A natureza, portanto, é simples e uni­
duro, sofre uma divisão, nós poderemos forme. E, a partir dos sentidos, isto é, das
concluir, em virtude dessa regra, que as par­ observações e dos experimentos, podemos
tículas indivisas, como as divisas, podem ser estabelecer algumas das propriedades fun­
divididas e efetivamente separadas ao infi­ damentais dos corpos: extensão, dureza, im­
nito” . penetrabilidade, mobilidade, força de inér­
cia do todo e a gravitação universal.
E essas qualidades são estabelecidas pre­
cisamente a partir dos sentidos, vale dizer,
y \ g e a v i f a ç ã o urviveesal indutivamente, isto é, ainda através daquele
que, para Newton, é o único procedimento
válido para alcançar e fundamentar as pro­
Assim, no que se refere à divisibilidade posições da ciência: o método indutivo.
das partículas ao infinito, a uma segurança E, com isso, chegamos à quarta regra:
matemática corresponde uma incerteza fac­ “Regra IV: Na filosofia experimental,
tual. Uma incerteza, porém, que não ocorre as proposições inferidas por indução geral
no que se refere à força de gravitação. dos fenômenos devem ser consideradas como
Com efeito, “ se é universalmente evi­ estritamente verdadeiras ou como muito pró­
dente, a partir dos experimentos e das ob­ ximas da verdade, apesar das hipóteses con­
servações astronômicas, que todos os cor­ trárias que possam ser imaginadas, até quan­
pos em torno da terra gravitam em sua do se verifiquem outros fenômenos, pelos
direção, proporcionalmente à quantidade de quais se tornem mais exatas ou então sejam
matéria que cada um deles contém singu­ submetidas a exceções”. IJ2IJI3]
Segunda parte - A r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

-------------- W .A o d e ie m d o m undo
e a e x is tê n c ia d e D e u s

O s is te m a d o m u n d o estrelas fixas, em virtude de sua gravidade,


não caiam uns sobre os outros, ele pôs esses
é u m a g r a n d e m á q u in a sistemas a uma imensa distância entre si. ”
A ordem do mundo mostra com toda
evidência a existência de um Deus sumamen­
As “ regras do filosofar” encontram-se te inteligente e poderoso. Mas, além de sua
no início do livro terceiro dos Principia. E existência, o que mais podemos afirmar so­
no fim desse mesmo livro encontramos o bre Deus? “ Assim como o cego não tem
Scholium generale, em que Newton liga os nenhuma idéia das cores, nós também não
resultados de suas investigações científicas temos nenhuma idéia do modo como Deus
a considerações de ordem filosófico-teoló- sapientíssimo percebe e compreende todas
gica. O sistema do mundo é uma grande as coisas. Ele é completamente privado de
máquina. E as leis de funcionamento das corpo e de figura corpórea, razão pela qual
várias partes dessa máquina podem ser de­ não pode ser visto, nem ouvido, nem toca­
tectadas indutivamente através da observa­ do; nem deve ser adorado sob a representa­
ção e do experimento. ção de algo corporal. ” Diz Newton que, das
Mas eis um ulterior e importante quesi­ coisas naturais, nós só conhecemos aquilo
to de natureza filosófica: de onde se origina que podemos constatar com os nossos sen­
esse sistema do mundo, esse mundo orde­ tidos: figuras e cores, superfícies, cheiros,
nado e regulado? “ Esse sistema extrema­ sabores etc. Entretanto, nenhum de nós co­
mente maravilhoso do sol, dos planetas e nhece “ o que seja a substância de uma coi­
dos cometas só pode ter-se originado do sa” . E se isso vale para o mundo natural,
projeto e da potência de um Ser inteligente vale muito mais quando queremos falar de
e poderoso. E se as estrelas fixas são cen­ Deus: “ Muito menos ainda temos idéia da
tros de outros sistemas análogos, tudo isso, substância de Deus.” O que podemos dizer
dado que foi formado pelo idêntico proje­ de Deus é que ele existe, é sumamente inte­
to, deve estar sujeito ao domínio do Uno, ligente e é perfeito. E podemos dizê-lo a
sobretudo visto que a luz das estrelas fixas partir da constatação da ordem do mundo,
é da mesma natureza que a luz do sol e que já que, no que se refere a Deus, “é função
a luz passa de cada sistema a todos os ou­ da filosofia natural falar dele partindo dos
tros sistemas; e, para que os sistemas das fenômenos” . E S f l T I

= V. o s ig n ific a d o
d a s e n te n ç a m e to d o ló g ic a :
^ K y p o fK c s e s n o n fi n g o /7

O m á+odo d e ./New+on: a existência de um Deus ordenador, conscien­


te e onipotente. Pois bem, como escreve
f o r m u la r kipó+ eses e p r o v á - la s
Newton no final do Scholium generale, “ até
agora explicamos os fenômenos do céu e do
nosso mar pelo recurso à força de gravida­
O mundo é ordenado. E, “pela sapien- de, mas ainda não estabelecemos a causa da
tíssima e ótima estrutura das coisas e pelas gravidade. E certo que ela se origina de uma
causas finais” , estamos autorizados a afirmar causa que penetra até o centro do sol e dos
239
Capitulo décimo segundo - S i s t e m a d o m a n d o , m e to d o lo g ia e filo so jin n a o b r a d e TSJewton

planetas, sem sofrer a mínima redução de sua e conhecido porque formulou hipóteses e as
força, que não opera em relação à quantida­ provou, hipóteses que explicam por que a
de de superfície das partículas sobre as quais maçã cai no chão e por que a lua não se
age (como costuma ocorrer com as causas choca com a terra, por que os cometas
mecânicas), mas em relação à quantidade gravitam em direção ao sol e por que ocor­
de matéria sólida que elas contêm, e sua ação rem as marés.
se estende por toda parte, a distâncias imen­ Mas, sendo assim, o que entendia New­
sas, decrescendo sempre em razão inversa ao ton por “hipóteses” quando dizia que “não
quadrado das distâncias. A gravitação em di­ inventava hipóteses” ? Eis a resposta de
reção ao sol é composta pela gravitação em Newton: “ [...] e não invento hipóteses. Com
direção às partículas singulares de que é fei­ efeito, tudo aquilo que não é deduzido dos
to o corpo do sol. E, afastando-se do sol, fenômenos deve ser chamado de hipótese.
decresce exatamente em razão inversa do E as hipóteses, tanto metafísicas como físi­
quadrado das distâncias até a órbita de cas, tanto de qualidades ocultas como me­
Saturno, como é mostrado claramente pela cânicas, não têm nenhum lugar na filosofia
quietude do afélio dos planetas e até os últi­ experimental. Em tal filosofia, as proposi­
mos afélios dos cometas, se é que esses afélios ções particulares são deduzidas dos fenô­
estão em quietude” . menos e, posteriormente, tornadas gerais
A força de gravidade, portanto, existe. por indução. Foi assim que se descobriu a
E é a observação que a atesta. Mas, se qui­ impenetrabilidade, a mobilidade e a força
sermos nos aprofundar mais, há uma per­ dos corpos, bem como as leis do movimen­
gunta que não pode ser evitada: qual é a to e da gravitação. Para nós, é suficiente que
razão, a causa ou, se preferirmos, a essência a gravidade exista de fato e atue segundo as
da gravidade? Responde Newton: “ Na ver­ leis que expusemos, estando em condições
dade, ainda não consegui deduzir dos fenô­ de explicar amplamente todos os movimen­
menos as razões dessas propriedades da gra­ tos dos corpos celestes e do nosso mar.” A
vidade. E não invento hipóteses” . gravidade existe de fato; ela explica os movi­
Hypotheses non fingo: essa é a famosa mentos dos corpos e serve para prever as
e conhecida sentença metodológica de New­ suas futuras posições. Isso é o que basta
ton, tradicionalmente citada como irrevo­ para o físico. Já a causa da gravidade é uma
gável chamado aos fatos e como condena­ questão cuja resposta extrapola o âmbito
ção decidida e motivada das hipóteses ou da observação e do experimento, escapan­
conjecturas. do portanto do campo da “ filosofia experi­
Entretanto, está claro para todos que mental” .
Newton também formulou hipóteses. Ele E Newton não quer se perder em
ficou conhecido e sua grandeza é ilimitada conjecturas metafísicas que não sejam pas­
não porque tenha visto uma maçã cair ou síveis de verificação. Esse é o sentido de sua
porque tenha observado a lua, ele é grande expressão “hypotheses non fingo ”.

VI. y \ g ^ a u d e m á q u in a d o m u n d o

1 , yXs te ê s leis d o movimento rente a herança de Descartes e Galileu e, ao


mesmo tempo, a de Bacon e Boyle. Com efei­
to, tanto para Boyle como para Newton, “ o
Tanto no que se refere ao método como livro da natureza está escrito em caracteres
quanto aos conteúdos, os Principia repre­ e termos corpusculares; entretanto, exata­
sentam a realização completa daquela re­ mente como para Galileu e Descartes, é uma
volução científica que, iniciada por Copér- sintaxe puramente matemática o elemento
nico, havia encontrado em Kepler e Galileu que liga esses corpúsculos, dando assim sig­
os dois representantes mais geniais e presti­ nificado ao texto do livro da natureza” . Es­
giosos. Como sugere Koyré, Newton reco­ sencialmente, as letras do alfabeto em que
lhe e plasma em um todo orgânico e coe­ está escrito o livro da natureza são um nú­
......... Segunda parte - y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

mero infinito de partículas, cujos movimen­ dois corpos são sempre iguais e dirigidas em
tos são regulados por uma sintaxe constituí­ direções contrárias
da pelas leis do movimento e pela lei da gra- Esse princípio de igualdade entre ação
vitação universal. e reação é ilustrado por Newton do seguinte
Eis, então, as três leis newtonianas do modo: “ Qualquer coisa que exerça pressão
movimento, leis que representam a enun- sobre outra coisa ou puxe outra coisa sofre
ciação clássica dos princípios da dinâmica. essa pressão em igual medida ou é puxada
A primeira lei é a lei da inércia, na qual também por essa outra coisa. Se tu apertas
trabalhara Galileu e que Descartes formu­ uma pedra com o dedo, teu dedo também é
lara com toda a exatidão. Assim, Newton apertado pela pedra. Se um cavalo puxa uma
escreve: “Todo corpo persevera em seu es­ pedra ligada por uma corda, o cavalo tam­
tado de quietude ou de movimento retilíneo bém é (se assim posso dizê-lo) puxado igual­
uniforme, a menos que seja forçado a mu­ mente para trás em direção à pedra [...]” .
dar esse estad o p or fo rças sobre ele São essas, portanto, as leis do movi­
exercidas”. mento. Entretanto, os estados de quietude e
Newton exemplifica esse princípio fun­ de movimento retilíneo uniforme só podem
damental do seguinte modo: “ Os projéteis ser determinados em relação aos outros cor­
perseveram em seus movimentos enquanto pos, que estejam em quietude ou em movi­
não forem retardados pela resistência do ar mento. Mas, como não se pode estender ao
ou não sejam puxados para baixo pela for­ infinito o reenvio a sistemas ulteriores de
ça da gravidade. Um pião (...) não cessa de referência, Newton introduz as noções (que
rodar senão pelo motivo de ser retardado se tornariam objeto de grandes debates e fir­
pela resistência do ar. Os corpos maiores dos mes contestações) de tempo absoluto e de
planetas e dos cometas, estando em espaços espaço absoluto: “ O tempo absoluto, ver­
mais livres e com menos resistência, pre­ dadeiro e matemático, em si e por sua natu­
servam seus movimentos progressivos e ao reza, flui uniformemente, sem relação com
mesmo tempo circulares por um tempo qualquer coisa de externo e, com outro
muito mais longo.” nome, chama-se duração. O tempo relati­
A segunda lei, já formulada por Gali­ vo, aparente e comum, é a medida sensível
leu, diz: “A mudança de movimento é pro­ e externa [...] da duração do movimento
porcional à força motriz exercida e ocor­ através do meio, sendo comumente usado
re na direção da linha reta segundo a qual a em lugar do tempo verdadeiro: é a hora, o
força foi exercida ”. dia, o mês, o ano.” “ O espaço absoluto, por
 formulação da lei, Newton faz se­ natureza privado de relação com qualquer
guirem-se observações como estas: “ Se de­ coisa de exterior, permanece sempre seme­
terminada força gera um movimento, uma lhante a si mesmo e imóvel” .
força dupla gerará movimento duplo, uma Esses dois conceitos, de tempo absolu­
força tripla um movimento triplo, seja quan­ to e de espaço absoluto, não têm significa­
do a força for exercida ao mesmo tempo e do operativo e são conceitos empiricamente
de um só golpe, seja quando for gradual e não verificáveis. Entre outras críticas con­
sucessivamente. E esse movimento (dirigin­ tra eles, ficou célebre a de Ernst Mach, que,
do-se sempre na mesma direção da força em seu livro A mecânica em seu desenvolvi­
geradora), quando o corpo já estava em mo­ mento histórico-crítico, afirmará que o es­
vimento, é acrescentado ou subtraído do paço e o tempo absolutos de Newton são
primeiro movimento, conforme se conju­ “ monstruosidades conceituais” .
guem diretamente ou sejam diretamente
contrários um ao outro, ou então se acres­
centam obliquamente, se eles forem oblí­
quos, de modo a produzir novo movimen­ 2 A l ei de g r a v i+ a ç ã o rmiveesal
to, composto pela determinação de ambos” .
Essas duas leis, juntamente com a terceira,
que exporemos a seguir, constituem ele­ Entretanto, no interior do espaço ab­
mentos centrais da mecância clássica que se soluto — que Newton chama também de
aprende na escola. sensorium Dei —, a maravilhosa e elegan­
A terceira lei, formulada por Newton, tíssima conexão dos corpos é sustentada por
afirma que “a toda ação se opõe sempre uma aquela lei da gravidade que Newton expõe
igual reação, ou seja, as ações recíprocas de no terceiro livro dos Principia.
241
Cãpítulo décimo segundo - S i s t e m a d o m un do , m e to d o lo g ia e filo so fia n a o b u a d e TVJewton

Tal lei de gravidade diz que a força de em todos os casos, tanto da atração recí­
gravitação com que dois corpos se atraem é proca entre terra e lua como entre a terra e
diretamente proporcional ao produto de uma maçã etc.
suas massas e inversamente proporcional ao Com a lei da gravidade, Newton che­
quadrado de sua distância. Em símbolos, gava a único princípio capaz de explicar uma
essa lei se expressa na conhecida fórmula: quantidade ilimitada de fenômenos.
Com efeito, a força que faz cair uma
m. m, pedra ou uma maçã ao chão tem a mesma
F = G ------— ----- natureza que a força que mantém a lua vin­
D2 culada à terra e a terra vinculada ao sol. E
essa força é a mesma que explica o fenôme­
onde F é a força de atração, mx e m2 são as no das marés (como efeito combinado da
duas massas, D é a distância que separa as atração do sol e da lua sobre a massa de
duas massas e G é uma constante que vale água dos mares).

V II.A mecânica de /\)ew+cm


como pi^ogmma de pesquisa

1 A importância base fundamental de sua mecânica, com o


tempo, conseguiría fornecer a chave para a
d a f ís i c a n e w t o n ia n a compreensão de todos os fenômenos. Assim
n a K is tó r ia d a c i ê n c i a pensaram seus seguidores, com maior certe­
za que ele, e assim também pensaram os
seus sucessores, até o fim do século XVIII” .
No final do Scholium generale, Newton A mecânica de Newton foi um dos mais
propõe um claro “programa de pesquisa”, poderosos e fecundos paradigmas ou pro­
pelo qual a força de gravidade não está ape­ gramas de pesquisa da história da ciência:
nas em condições de explicar fenômenos depois de Newton, para a comunidade cien­
físicos como a queda dos graves, as órbitas tífica, “ todos os fenômenos de ordem física
dos corpos celestes ou as marés, mas tam­ deviam se referir às massas, que obedecem
bém, como ele sustenta, poderá ainda, no à lei do movimento de Newton” (A. Eins­
futuro, explicar fenômenos elétricos, fenô­ tein). A realização do programa de Newton
menos óticos e até fatos fisiológicos. Muito ainda caminharia por muito tempo até se
embora, como acrescentava Newton, “ não confrontar com problemas que, para serem
é possível expor essas coisas em poucas pa­ resolvidos, demandariam verdadeira revo­
lavras e nós não dispomos dos experimen­ lução científica, vale dizer, uma reviravolta
tos suficientes para uma acurada determi­ radical nas idéias fundamentais da ciência
nação e demonstração das leis com as quais newtoniana.
opera esse espírito elétrico e elástico” . A física newtoniana admite uma razão
O próprio Newton procurou realizar limitada: a ciência não tem a função de des­
esse programa através de suas pesquisas no cobrir substâncias, essências ou causas es­
campo da ótica “ quando supôs que a luz senciais. A ciência não busca substâncias,
fosse composta de corpúsculos inertes” (A. mas funções; não busca a essência da gravi­
Einstein). A verdade é que, como escreve dade, mas contenta-se em saber que ela exis­
ainda Einstein, “Newton foi o primeiro que te de fato e explica os movimentos dos cor­
conseguiu encontrar uma base claramente pos celestes e do nosso mar. Entretanto,
formulada a partir da qual podia deduzir como escreve Newton na Ótica,“ a causa
grande número de fenômenos mediante o primeira certamente não é mecânica” . E tan­
raciocínio matemático, lógico, quantitativo to a razão limitada e verificada pela expe­
e em harmonia com a experiência. Na ver­ riência como o deísmo seriam duas heran­
dade, ele podia justamente esperar que a ças centrais que o Iluminismo recebería de
........... Segunda parte - y \ r e v o lu ç ã o c ie n tí fic a

Newton, ao passo que os materialistas do ele não o é, pois entre os corpos atua uma
século XVIII encontrarão sua base teórica “ ação a distância” . Por isso, tanto os carte­
sobretudo no mecanicismo cartesiano. E, já sianos como Leibniz veriam nessas misterio­
que falamos do mecanicismo cartesiano, sas forças que agem a distâncias ilimitadas
devemos recordar que, enquanto para os nada mais que um retorno às “qualidades
cartesianos o mundo é pleno, para Newton ocultas” do passado.

” V I I I . ;A d e s c o b e p + a ”

d o c á lc u lo m jim fe s im a l
e a p o l ê m i c a c o m .L e ib n iz :

1 O s e s t u d o s m a t e m á t ic o s bém foram-lhe de validade os estudos de


François Viéte (1540-1603), particularmente
d e /\]ewtou
a Isagoge in artem analyticam, que teorizava
sobre a aplicação da álgebra à geometria
pela introdução de rudimentos do cálculo
Em seus primeiros anos de estudo no literal, com a relativa e oportuna escritura
Trinity College de Cambridge, Newton ocu­ simbólica. E Newton encontrou ainda ou­
pou-se predominantemente de matemática: tras fontes para as suas pesquisas matemá­
aritmética, trigonometria e, sobretudo, geo­ ticas na Clavis mathematicae de William
metria. Estudou-as com base nos Elemen­ Oughtred (1574-1660), e em vários escri­
tos de Euclides, que leu com grande facili­ tos de John Wallis (1616-1703).
dade, e na Geometria de Descartes, lida com Com efeito, os estudos sobre os infi­
alguma dificuldade, pelo menos no princí­ nitesimais foram muito impulsionados pelos
pio. Como já sabemos, em Cambridge, Bar- problemas geométricos, mais precisamente
row logo percebeu as grandes qualidades do pelos problemas de medida das figuras sóli­
discípulo, apreciando especialmente as suas das, isto é, pela estereometria. A figura cen­
novas idéias no campo da matemática. E tral nesse campo de estudo é constituída por
quando, em 1669, recebeu o escrito Analysis Boaventura Cavalieri (1598 aproximada­
per aequationes numero terminorum infini­ mente - 1647), que, na Geometria indivisi-
tas, elaborado nos três anos anteriores, ce­ bilibus continuorum nova quadam ratione
deu-lhe a sua cátedra na própria universi­ promota (trabalho publicado em 1635, de­
dade. Na realidade (e isso é importante no pois de muitos anos de preparação), estabe­
que se refere à sua histórica controvérsia lece aquele princípio que até hoje porta o
com Leibniz, sobre a qual falaremos), os seu nome: o princípio de que a relação en­
primeiros escritos de matemática de Newton tre as áreas ou os volumes de duas figuras
são ainda anteriores. O pequeno tratado geométricas é igual à relação entre as suas
Metbodus fluxionum et seriarum infinita- partes indivisíveis, obtidas com métodos
rum, no qual registra os resultados de suas adequados. Outras contribuições prelimina­
primeiras pesquisas, é presumivelmente qua­ res para o estudo dos infinitesimais provêm
tro anos posterior ao trabalho de 1669. Tra­ de Kepler, com sua Nova stereometria do-
ta-se de estudos sobre os infinitesimais, isto liorum vinariorum (1615); grande difusor
é, sobre pequenas variações de certas gran­ e aplicador do método de Cavalieri foi Evan­
dezas, sobre as suas relações, que depois gelista Torricelli (1608-1647); Pierre Fermat
serão chamadas de derivadas, e sobre as suas (1601-1665) deu a esse método melhor e
somas, que seriam denominadas integrais. mais rigorosa formulação matemática.
Para tanto, representou para ele um Pois bem, Newton trabalhou com es­
instrumento precioso a geometria analítica sas bases, mas introduzindo desde o início
de Descartes, ou seja, a tradução de curvas também algumas referências precisas à acús­
e superfícies em equações algébricas. Tam­ tica e à ótica, ou seja, ramos da física que
243
Capítulo décimo segundo - S i s t e m a d o m un do, m e to d o lo g ia e filo so fia n a o b m d e A Je w to n

também estava estudando na época. E logo para indicar a velocidade de um ponto nas
a matriz física se fará sentir de modo deter­ três direções coordenadas. Daí derivam vá­
minante em suas pesquisas matemáticas. rios problemas, mas fundamentalmente
dois: calcular as relações entre fluentes, sen­
do conhecidas as relações entre fluxões, e
vice-versa.
2 /VJewtotA No caso particular da mecânica, sen­
e o c á l c u l o itvf-iuitesimcd*
lo
do conhecido o espaço em função do tem­
po, calcular a velocidade; e, vice-versa, co­
nhecendo-se a velocidade em função do
Newton só publicaria a primeira sín­ tempo, calcular o espaço percorrido. Em
tese sobre o cálculo infinitesimal mais tar­ termos contemporâneos, respectivamente,
de, em 1687, no início de sua obra mais derivar o espaço em relação ao tempo e in­
importante, as Philosophiae naturalis prin­ tegrar a velocidade no tempo. Sem nos
cipia mathematica. A publicação impressa aprofundarmos muito nos particulares de
de suas obras principais sobre o tema será tipo técnico, devemos dizer que Newton
ainda posterior: em 1711, saiu um escrito conseguiu demonstrar muitas das mais im­
de 1669, intitulado De analysis per aequa- portantes regras de derivação e integração.
tiones numero terminorum infinitas; em Ademais, introduziu os conceitos de deri­
1704 foi publicado, como apêndice ao tra­ vada segunda (derivada da derivada; no caso
tado de Ótica, o seu Tractatus de qua- mecânico, a aceleração) e de derivada de
dratura curvarum, que havia escrito em uma ordem qualquer. Também teorizou ri­
1676; o já mencionado tratado Methodus gorosamente as ligações entre derivação e
fluxionum et seriarum infinitorum, escrito integração, além de introduzir e resolver as
em latim no ano de 1673, só sairia em edi­ primeiras equações diferenciais (isto é, com
ção inglesa em 1736, ou seja, postuma­ uma função incógnita, consistindo em uma
mente. igualdade entre expressões contendo a fun­
Mas vejamos a teoria, denominada pe­ ção incógnita e suas derivadas).
lo próprio Newton de teoria “ dos fluentes e Com tudo isso, fica clara a poderosa
das fluxões” . Nos primeiros escritos, ele se contribuição conceituai que a mecânica lhe
limita a ampliar e desenvolver o estudo “ al­ forneceu na elaboração de sua nova teoria
gébrico” do problema, especialmente com matemática. Com efeito, Newton possuía
base nos trabalhos de Fermat e Wallis. Lo­ uma concepção instrumental da matemáti­
go, porém, será uma intuição de tipo físi­ ca: para ele, ela nada mais era do que uma
co, mais precisamente de tipo mecânico, que linguagem a utilizar para descrever aconte­
lhe indicará o caminho correto para resol­ cimentos naturais. Nisso, alinhava-se com
ver o problema. o pensamento de Thomas Hobbes, ao pas­
Graças à contribuição conceituai des­ so que, como veremos, em 1734, George
se ramo fundamental da física, ele supe­ Berkeley, na obra O analista ou discurso a
ra a idéia de que as linhas sejam somente um matemático incrédulo, o acusará de pou­
agregados de pontos, considerando-as co­ co rigoroso. Talvez não seja casual que a
mo trajetórias do movimento de um pon­ notação newtoniana (o ponto sobre a va­
to. Conseqüentemente, as superfícies tor­ riável, para indicar a sua derivada em rela­
nam-se movimentos de linhas e os sólidos ção ao tempo) só tenha permanecido em uso
transformam-se em movimentos de su­ até nossos dias nos campos da mecânica
perfícies. Por exemplo, as superfícies são racional, da física matemática e em outras
descritas por movimentos proporcionais à áreas afins — e, assim mesmo, só raramen­
ordenada, ao passo que a abscissa cresce te, tendendo a desaparecer.
com o transcorrer do tempo: daí o nome Desse modo, a teoria newtoniana res­
de “ momento” para o acréscimo infini­ sente-se claramente de sua particular origem.
tesimal, de “ fluente” para a área e de Ademais, a sua representação formal (x, y,
“ fluxão” para a ordenada, em um dado z... para os fluentes; x, y, z... para as fluxões;
instante. xo, yo, zo... para os momentos ou diferen­
É com base nisso que ele introduz a ciais) é certamente preciosa para o estudio­
notação so de mecânica, na qual só se deriva em re­
• • • lação ao tempo e as derivadas possuem um
x y z significado previamente fixado (precisamen­
244
Segunda parte - A r e v o lu ç ã o c.i eirlrfu

te, a derivada primeira é a velocidade e a para a derivada de y em relação a x. Ade­


derivada segunda é a aceleração), mas mostra- mais, Leibniz introduziu um grande S maius­
se pouco flexível e substanciaimente estéril culo para denotar a integral, notação que
para outros setores. Ademais, na represen­ também se tornou de uso comum. Quanto
tação formal newtoniana falta um símbolo ao resto, sua teoria não difere muito da de
para o integral. Em essência, são essas as Newton. E seus pontos de chegada na elabo­
críticas que lhe são dirigidas pelo outro gran­ ração posterior são mais ou menos análogos.
de fundador do cálculo infinitesimal: Gott- Entretanto, falta-lhe também o rigor
fried Wilhelm Leibniz (1646-1716). matemático de fundo — e isso faz falta por­
que ainda não se consolidara e teorizara a
noção necessária de “ limite” .
Na realidade, as bases conceituais des­
j! A po\ê.vn'uza sa noção fundamental já estavam presentes
e n te e /\)ewton e L e i b n i z na Arithmetica infinitorum do já citado John
Wallis. E, se quisermos remontar às origens,
a idéia já está presente no método da exaus­
A aproximação que levou Leibniz ao tão de Eudóxio (408-355 a.C.), aplicado
problema era fundamentalmente diferente com sucesso a vários problemas geométri­
e, em alguns aspectos, complementar. Ele cos por Euclides e Arquimedes. Entretanto,
partiu de notáveis contribuições, até inédi­ só se encontra tratamento rigoroso dessa
tas, de Blaise Pascal, sobretudo da geome­ noção e sua posição como base da análise
tria analítica. Foi sobre essa base — mate­ infinitesimal no século XIX, com Bernhard
mática, portanto, e não física — que Leibniz Bolzano (1781-1848) ecom Augustin-Louis
teorizou a derivada de um ponto de uma Cauchy (1789-1857).
curva como o coeficiente angular da reta tan­ A obra de Leibniz data aproximada­
gente no ponto (isto é, aquilo que nós hoje mente do período 1672-1673, sendo portanto
chamamos de tangente trigonométrica do posterior ou, quando muito, contemporânea
ângulo que ela forma com o eixo das abscis- à de Newton. Entretanto, a publicação im­
sas), entendendo tal reta tangente como uma pressa do seu trabalho fundamental, Nova
secante ideal naquele ponto e em outro pon­ methodus pro maximis et minimis itemque
to infinitamente próximo do ponto dado. tangentibus, é de 1684, portanto três anos
Em virtude dessas considerações, formulou antes à dos newtonianos Philosophiae natu-
a conhecida, mais difundida e hoje comum ralis principia matbematica. Por isso, alimen­
notação tada também por equívocos, explodiu feroz
dx dy disputa entre Newton e Leibniz sobre a prio­
ridade da descoberta: disputa muito pouco
para as diferenciais das variáveis x e y e cavalheiresca, dominada pela animosidade,
por acusações e também permeada pelo or­
dy
gulho nacionalista. Mas não é o caso de nos
dx alongarmos muito sobre essa controvérsia.

Vista de Londres no século XVIII.


O bairro dc Kensington,
onde Newton se transferiu em 1725,
na época era apenas um vilarejo campestre.
245
Capitulo décimo segundo - Sistema do mwndoy metodologia e filosofia n a o b r a de /\)ewton

resulta da dureza das partes, daí deduzimos


N ew ton corretamente que são duras as partículas não
só dos corpos que tocamos, mas de todos os
outros. Que todos os corpos são impenetrá­
veis nós o aprendemos não pela razão, mas
pela sensação. Achamos impenetráveis os
corpos que manipulamos, e daí concluímos
As quatro regras que a impenetrabilidade é propriedade uni­
do método versal de todos os corpos. Que todos os cor­
experimentalI
. pos são móveis e dotados de certos poderes
(que definimos inércia) de perseverar em seu
estado de movimento ou de repouso, nós o
Fls regras metodológicos enunciadas deduzimos apenas de propriedades aná­
por Newton no início do livro III dos Principia logas que observamos nos corpos que ve­
reúnem também os assuntos de tipo meta­ mos. A extensão, dureza, impenetrabilidade,
físico por ele reconhecidos. m obilidade e inércia do conjunto resultam da
extensão, dureza, impenetrabilidade, mobili­
dade e inércia das partes; e daí concluímos
I. Não devemos admitir mais causas dos que as partículas mínimas de todos os cor­
coisos naturais, do que as verdadeiras e sufi­ pos são também extensas, duras, impenetrá­
cientes para explicar suas aparências. Neste veis, móveis e dotadas de uma inércia pró­
sentido os filósofos dizem que o natureza nada pria. € este é o fundam ento de toda a
foz em vão, e o mais é vão quando o menos filosofia. Além disso, que as partículas divi­
basta; porque a natureza se compraz com a sim­ didas mas contíguas dos corpos são separá­
plicidade e não ostenta a pompa das causas veis umas das outras é um dado da observa­
supérfluas. ção; e, nas partículas que permanecem
II. Por isso, aos mesmos efeitos naturais indivisas, nossa mente é capaz de distinguir
devemos, o quanto possível, atribuir as mes­ outras partes menores, como se demonstra
mas causas, Assim, por exemplo, a respiração matematicamente. Mas, se as partes assim
no homem e no animal; a queda de uma pedra distintas e não ainda divididas podem, me­
na €uropa e na América; a luz de nosso fogo diante as forças da natureza, ser realmente
de cozinha e do sol; a reflexão da luz sobre a divididas e separadas umas das outras, não
terra e sobre os planetas. o podemos determinar com certeza. Todavia,
III. Fls qualidades dos corpos que não se tivéssemos a prova, mesmo com um só ex­
admitem incremento ou decremento de grau, perimento, que uma partícula indivisa sofre
e que resultem pertinentes a todos os corpos uma divisão quando se quebra um corpo duro
dentro da esfera de nossos experimentos, d e ­ e sólido, podemos concluir daí, em virtude
vem se r consideradas qualidades universais desta regra, que as partículas divisas ou
d e todos os corpos. Uma vez que as qualida­ indivisas podem ser divididas e realmente
des dos corpos nos são conhecidas apenas separadas ao infinito.
graças aos experimentos, devemos conside­ Por fim, uma vez que resulta universal­
rar universais todas as que concordam uni­ mente dos experimentos e das observações
versalmente com os experimentos; e as que astronômicas que todos os corpos circumter-
não são passíveis de decrementos não p o ­ restres gravitam em direção à terra, propor­
dem jamais ser exceções. Não devemos sem cionalmente à quantidade de matéria que
dúvida deixar a evidência dos experimentos cada um deles contém; que analogam ente
para correr atrás de sonhos e de vãs ficções a lua, segundo sua quantidade de matéria,
forjadas por nós mesmos; nem devemos afas­ gravita em direção à terra; que, por outro
tar-nos da analogia do natureza, que é sim­ lado, nosso mar gravita em direção à lua; e
ples e sempre conforme a si mesma. Não todos os planetas um para o outro; e os co­
podemos conhecer a extensão dos corpos de metas do mesmo modo para o sol; devemos,
outra forma que mediante nossos sentidos, em base a esta regra, admitir universalmente
nem estes sentidos a captam em todos os que todos os corpos são dotados de um prin­
corpos; mas, uma vez que colhemos a exten­ cípio de gravitação recíproca. Isso porque a
são em todos os que são sensíveis, nós a prova fenomênica demonstra com mais força
atribuímos também a todos os outros. Apren­ a gravitação universal de todos os corpos e
demos da experiência que uma quantidade não sua impenetrabilidade; da qual, em re­
de corpos é dura; e como a dureza do inteiro lação aos corpos celestes, não temos experi-
246
Segunda parte - y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

mentos nem outra observação qualquer. Não


afirmo que a gravidade é essencial aos cor­ 2
pos: falando de sua vis insita designo nada
e a ordem do mundo
mais que sua inércia. €sta é imutável. Sua gra­
vidade decresce à medida que se afastam
da terra. Isaac Neuuton: da ordem do mundo ao
IV. Cm filosofia experimental devem osDeus ordenador. "Csta elegantíssima conjun­
co n sid e ra r o s p ro p o siç õ e s e xtra íd o s p o r ção do sol, dos planetas e dos cometas nõo
indução gerai dos fenômenos como precisos pôde surgir sem o projeto e o poder de um
ou muito aproximados, apesar de toda hipó­ ente inteligente e poderoso".
tese contrária que se possa imaginar, até que
se apresentem outros fenômenos que as p o s ­
sam tornar mais precisas ou as exponham a
exceções. Devemos seguir esta regra até que Os seis principais planetas giram em tor­
a prova indutiva não seja eludida mediante no do sol em círculos concêntricos ao sol com
hipótese. movimento orientado na mesma direção e
I. Neuuton, aproximadamente sobre o mesmo plano. Dez
P h ilo s o p h ia e noturalis luas giram em torno da terra, de Júpiter e de
p rin cip ia m athem atica. Saturno em círculos concêntricos com movimen-

„ PH ILO SO PH IJi
1 NATURALIS

I P R IN C IP IA
1 M A T H E M A T IC A .

m A U C T O Jt B
'3? ISAACO NEWTONO. B<& A»*.

H Edírio tcrti» auíti & cmcndata.

■ í OU D I N I ;

/ X I . U / / S \ > : « 7 í '.v / u p . u m J X x x
_ i«r / « . .rnW ' '*“* -

Isaac Newton (aqui retratado na margem do frontispício de sua obra mais famosa
Philosophiae naturalis principia mathematicaj,
foi o cientista que levou a cabo a revolução científica.
Com seu “sistema do mundo ” toma vulto a “física clássica
247
Capítulo décimo segundo - Sistema do mimdo, metodologia e filosofia r\a obra de /Vowlon

to orientado na mesma direção e aproximati- versos órgãos de sentido e nos movimentos.


vamente sobre planos das órbitas dos pla­ Na duração estão presentes partes sucessi­
netas. € todos estes movimentos regulares vas, no espaço partes coexistentes: mas nem
não tiram sua origem de causas mecânicas; os umas nem as outras estão presentes na pes­
cometas, com efeito, são transportados livre­ soa do homem, no seu princípio pensante, e
mente em todas as partes do céu conforme muito menos na substância pensante de Deus.
órbitas fortemente excêntricas. € por este mo­ Todo homem, enquanto senciente, é um só
vimento os cornetos possam muito rapidamen­ idêntico homem em todos os órgãos de senti­
te e facilmente através das órbitas dos plane­ do singulares. Deus é um só e idêntico Deus
tas; e nos próprios afélios onde são mois sem pre e em to d o lugar. Deus não é
lentas e retardam mais tempo, estão também onipresente apenas pela virtude, mas também
tão distantes umas das outras que se atraem pela substância, já que não pode subsistir vir­
reciprocamente em mínima medida. Gsta ele ­ tude sem substância. Nele os universos estão
gantíssima conjunção do sol, dos planetas e contidos e movidos, mas sem nenhuma pertur­
dos cometas não pôde surgir sem o projeto bação recíproca. Deus não sofre nada por cau­
e o poder de um ente inteligente e podero­ sa dos movimentos dos corpos que não ofere­
so. € se as estrelas fixas são por sua vez cen­ cem nenhuma resistência por causa da
tros de sistemas análogos, todos estes, sen­ onipresença de Deus. é manifesto que o sumo
do construídos com idêntico desígnio, estarão Deus deve existir necessariamente, e em vir­
sujeitos ao poder do Uno: sobretudo enquan­ tude da mesma necessidade está sempre e
to a luz das estrelas fixas é da mesma nature­ em todo lugar. Por este motivo, ele é também
za que a luz do sol e todos os sistemas en­ inteiramente semelhante a si mesmo, todo
viam a luz reciprocamente para todos os outros. olho, todo ouvido, todo cérebro, todo braço,
€, a fim de que os sistemas das estrelas fixas todo força sensorial, intelectiva e ativa, mas
não caiam um sobre o outro, por causa da gra­ de nenhum modo humano, de nenhum modo
vidade, ele Colocou uma distância imensa en­ corpóreo, em um modo para nós inteiramente
tre eles. desconhecido. Assim como o cego não tem
€le rege todas as coisas não como alma idéia das cores, também nós não temos idéia
do mundo, mas como senhor de todos os uni­ dos modos com que Deus sapientíssimo sente
versos e pelo seu domínio costuma ser cha­ e entende todas as coisas. £le é completa­
mado de Senhor Deus Pontochrátor [dominador mente privado de corpo e de figura corpórea
universal]. Deus, com efeito, é uma palavra re­ e por isso não pode ser visto nem ouvido, nem
lativa e se refere aos servos; a divindade, po­ tocado, nem deve ser venerado sob a espé­
rém, é o domínio de Deus, não sobre o pró­ cie de algo corpóreo. Temos idéias dos atri­
prio corpo, como afirmam aqueles para os butos, mas não conhecemos por nada o que
quais Deus é a alma do mundo, mas sobre os seja a substância de uma coisa. Dos corpos
servos. O sumo Deus é o ente eterno, infinito, vemos apenas as figuras e as cores, ouvimos
absolutamente perfeito: mas um ente, embo­ apenas os sons, tocamos apenas as superfíci­
ra perfeito, mas que não tenha domínio, não es externas, sentimos o cheiro apenas dos
é o Senhor Deus [...]. Da verdadeira denomi­ odores e degustamos os sabores, mas não
nação segue-se que o verdadeiro Deus é conhecemos as substâncias íntimas com ne­
sumo, isto é, sumamente perfeito, é eterno e nhum sentido, com nenhuma atividade reflexi­
infinito, onipotente e onisciente, dura da eter­ va; e muito menos temos uma idéia da subs­
nidade para a eternidade, e está presente no tância de Deus. Nós o conhecemos apenas
infinito pela infinidade. Rege tudo e conhece mediante suas propriedades e atributos e pela
tudo, tanto as coisas que acontecem, como sapientíssimo e ótima estrutura das coisas e
aquelas que podem acontecer. Não é eterni­ pelas causas finais; e o admiramos em virtude
dade e infinidade, mas é eterno e infinito; não da perfeição, mas, na verdade, nós o venera­
é duração e espaço, mas dura e está presen­ mos e o adoramos por causa de seu domínio.
te. Dura sempre e está presente em todo lu­ Nós adoramos, com efeito, como servos, e
gar e, por existir sempre e em todo lugar, cons­ Deus sem domínio, providência e causas finais
titui a duração e o espaço, a infinidade e a não é mais que fato e natureza. Mas, a partir
eternidade. Toda partícula do espaço está de uma cega necessidade metafísica que é
sempre, todo momento indivisível da duração perfeitamente idêntica sempre e em todo lu­
está em todo lugar: o Flutor e Senhor de todas gar não surge nenhuma variedade das coisas.
as coisas não poderio jam ais estar e em ne­ A total diversidade por lugares e por tempos
nhum lugar. Toda alma senciente é a própria das coisas criadas pôde surgir apenas das idéi­
pessoa indivisível nos diversos tempos, nos d i­ as e da vontade de um Fnte necessariamente
248
Segunda parte - / \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

existente. 6m sentido alegórico, com efeito, se ta, mas todavia semelhante. € tudo isso a res­
diz que Deus vê, ouve, falo, ri, orno, odeio, peito de Deus: a respeito do qual é tarefa da
desejo, dá, tomo, iro-se, combate, fobrico, fun­ filosofia natural falar partindo dos fenômenos.
damento, constrói, pois todo discuso em torno I. Netuton,
de Deus deriva inteiramente das coisas huma­ P h ilo so p h io e noturolis
nas por semelhança, sem dúvida não perfei­ princip io m athem atica.
(S a p ítu lo d é c im o te r c e i

yAs c iê n c ia s d a vida,
as y\cad em ias
e a s S o c i e d a d e s científicas

I . D e s e n v o lv im e n to s
d a s c iê n c ia s d a v id a

• No Quinhentos floresce a pesquisa anatômica com cientistas do porte de


André Vesalio (1514-1564), Miguel Servet (1511-1553), Gabriel Falópio (1523-1562),
Realdo Colombo (aproximadamente 1516-1559), André Cesalpino
(1519-1603) e Fabrício de Acquapendente (aproximadamente Os progressos
1533-1619). da anatomia
No mesmo ano em que Copérnico publicou seu De revo- §1
lutionibus.em 1543, Vesalio, flamengo de origem e professor em
Pádua, publicou seu De corporis humani fabrica. Foi este o primeiro texto acurado
de anatomia, escrito com base em observações feitas pelo próprio Vesalio, edita­
do em milhares de cópias; tornou-se conhecido em toda a Europa.

• Em 1628 William Harvey (1578-1657) publica seu De motu cordis, em que o


autor expõe sua grande descoberta referente à circulação do sangue. Foi uma
descoberta revolucionária por ao menos três razões: em primeiro lugar ela dava
um golpe decisivo na tradição galênica; em segundo lugar, com
ela punha-se uma base para a fisiologia experimental; em tercei­ Harvey:
ro lugar, a teoria da circulação do sangue - acolhida por Descar­ a circulação
tes e por Hobbes - tornou-se uma das bases mais consistentes do do sangue
e o mecanicismo
paradigma mecanicista. biológico
Com Harvey o coração é visto como uma bomba, as veias e ^ § 2
as artérias como tubos, o sangue como um líquido em movimen­
to sob pressão, e as válvulas das veias desenvolvem a mesma fun­
ção que as válvulas mecânicas. Nestes resultados devemos encontrar a razão pela
qual a descoberta de Harvey oferece uma contribuição de primeira linha para a
filosofia mecanicista. Será Descartes quem estenderá a todos os animais a idéia de
que o organismo vivo é uma máquina.
E tal idéia será a base das pesquisas de Afonso Borelli (1608-1679), autor da
grande obra De motu animalium, publicada postumamente em 1680. Borelli estu­
da a estática e a dinâmica do corpo; calcula a força desenvolvida
pelos músculos no caminhar, no correr, no saltar, no levantamen­
to de pesos; mede a força muscular do coração e a velocidade do ^ 2 -3 & '
sangue nas artérias e nas veias; examina o vôo dos pássaros, o
movimento dos peixes e o rastejar dos vermes.
Um grande contributo ao avanço das ciências biológicas foi dado, entre ou­
tros, por Francisco Redi (1626-1698), o qual - com um experimento que ficou fa­
moso na história da biologia - desferiu um golpe decisivo na teoria da geração
espontânea.
..... .... Segunda pavte - y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

1 o avan ço go), podemos ler: “ O sangue é transporta­


do das artérias pulmonares para as veias
da pesquisa auatômica pulmonares mediante prolongada passagem
pelos pulmões, durante a qual ele se torna
No século XVI, assiste-se a grande de cor carmesim” e “ purifica-se pelos va­
florescimento da pesquisa anatômica, cujos pores fuliginosos com o ato de expiração” .
representantes mais conhecidos são André Já Realdo Colombo, em seu De re anatô­
Vesalio (1514-1564), Miguel Servet (1509­ mica, escreve o seguinte: “ O sangue chega
1553), Gabriel Falópio (1523-1562), Realdo aos pulmões através da veia arterial; depois,
Colombo (aprox. 1516-1559), André Cesal- misturado com ar, passa para o coração es­
pino (1529-1603) e Fabrício de Acquapen- querdo, através da artéria venosa” .
dente (1533-1619). Anatomista, botânico e mineralogista,
No mesmo ano em que Nicolau Co- André Cesalpino, professor de anatomia em
pérnico publicou o seu De revolutionibus, Pisa e Pádua, chegou a afirmar, contra a teo­
Vesalio, flamengo de origem e professor em ria galênica, que os vasos sanguíneos têm
Pádua, publicava também o De corporis hu- origem no coração e não no fígado, susten­
mani fabrica. Feito com base em observa­ tando também que o sangue chega a todas
ções realizadas pelo autor, esse livro “foi o as partes do corpo.
primeiro texto acurado de anatomia apre­ Fabrício de Acquapendente, anatomis­
sentado ao mundo” (I. Asimov). Como já ta e embriólogo, que também trabalhou em
havia sido inventada a impressão, ele foi Pádua, estudou as válvulas venosas, sem
difundido em milhares de cópias por toda a contudo conseguir chegar à circulação do
Europa. E continha ilustrações verdadeira­ sangue.
mente belas, algumas das quais feitas por Nesse meio tempo, continuando a tra­
Jan Stevenzoon van Calcar, discípulo de dição de Vesalio, Falópio descreveu os ca­
Ticiano. nais que vão do ovário ao útero e que ainda
Galeno afirmara que o sangue fluía do hoje se chamam “trompas de Falópio” .
ventrículo direito do coração para o esquer­ Finalmente, Bartolomeu Eustáquio (apro­
do, atravessando a parede de separação cha­ ximadamente 1500-1574), contrário a Vesa­
mado septo. Ao contrário de Galeno, Vesalio lio e seguidor de Galeno, estudou, entre
observou que o septo do coração é de natu­ outras coisas, o conduto que leva do ouvi­
reza muscular e espesso. E, na segunda edi­ do à garganta, que ainda hoje se chama
ção de sua obra (1555), negou com toda cla­ “trompa de Eustáquio” .
reza que o sangue pudesse atravessá-lo: “Até
algum tempo, eu não teria ousado afastar-
me nem mesmo por um fio de cabelo da
opinião de Galeno. Mas o septo não é me­ 2 -Haevey:
nos denso, espesso e compacto do que o res­ a descobeefa
to do coração. Não vejo, portanto, como a
menor partícula que seja possa passar do
da cieculação do sangue.
ventrículo direito para o ventrículo esquer­ e o mecanicismo biológico
do do coração” . Entretanto, Vesalio não
conseguiu explicar o movimento do sangue.
Miguel Servet, o reformador religioso Tudo isso serve para dar uma idéia do
que em 1553 Calvino mandara executar, e avanço da anatomia no século XVI. Entre­
que havia conhecido Vesalio em Paris, su­ tanto, as pesquisas anatômicas mudaram de
pôs que o sangue circulava do receptáculo rumo quando William Harvey (1578-1657),
direito para o esquerdo através dos pulmões. em 1628, publicou o seu De motu cordis,
Depois de Servet, foi Realdo Colombo expondo a teoria da circulação do sangue.
— também professor de anatomia em Pádua Trata-se de uma descoberta revolucionária,
— quem apresentou a idéia de que a respi­ pelo menos por três razões: em primeiro lu­
ração era um processo de purificação do gar, representou mais um golpe — e golpe
sangue e não um processo de resfriamento. decisivo — na tradição galênica; em segun­
Na Restitutio christianismi (obra que foi do lugar, fixou um ponto cardeal da fisiolo-
queimada juntamente com o autor, Servet, gia experimental; em terceiro lugar, a teoria
e da qual só sobraram três cópias: uma em da circulação do sangue — acolhida por
Paris, uma em Viena e a outra em Edimbur- Descartes e Hobbes — tornou-se uma das
251
Capítulo décimo terceiro - A s ciências da vida^ a s ;Academias e a s Sociedades científicas

bases mais sólidas do paradigma mecanicista (1497-1559), que, examinando cadáveres e


em biologia. Com efeito, embora Harvey vendo que as artérias e o ventrículo esquer­
afirme que “ o coração pode muito bem [...] do do coração estavam vazios, havia afir­
ser designado como o princípio da vida e o mado, em sua Universa medicina (1542),
sol do microcosmo” , ele sistematiza os re­ que um “ corpo etéreo” ou “espírito” vital
sultados da pesquisa anatômica anterior preenchia esses lugares enquanto o homem
dentro de um modelo claramente mecani­ estava vivo, desaparecendo com a morte.
cista: “ E o seguinte [...] o verdadeiro movi­ Diz Harvey: “ Fernel — e não somente
mento do sangue: [...] o sangue [...], sob a Fernel — sustenta que esses espíritos são
ação do ventrículo esquerdo, é impelido para substâncias invisíveis [...]. Mas basta di­
fora do coração e distribuído através das ar­ zer que, ao longo das investigações anatô­
térias para o interior do organismo e para micas, nunca encontramos nenhuma forma
cada uma de suas partes — assim como, de espírito, nem nas veias, nem nos ner­
pelas pulsações do ventrículo direito, ele é vos, nem em qualquer outra parte do orga­
impelido e distribuído aos pulmões, através nismo.”
da veia arterial — e [...], recomeçando do A teoria de Harvey, portanto, represen­
início, através das veias, o sangue reflui para ta uma contribuição de primeira ordem pa­
a veia cava até o aurículo direito — da mes­ ra a filosofia mecanicista. Descartes es­
ma forma como, pela artéria denominada tenderá para todos os animais a idéia (já
venosa, ele reflui dos pulmões para o ven­ explicitada por Feonardo da Vinci e presente
trículo esquerdo, do modo como indicamos em Galileu) de que o organismo vivo é uma
acima” . O coração é visto como uma bom­ máquina.
ba, as veias e artérias como tubos, o sangue E essa idéia será a base das pesquisas
como um líquido em movimento sob pres­ de Afonso Borelli (1608-1679), acadêmico
são e as válvulas das veias cumprem a mes­ do Cimento *, professor de matemática em
ma função das válvulas mecânicas. Arma­ Pisa e autor da grande obra De motu ani-
do com esse modelo mecanicista, Harvey malium, publicada postumamente em 1680.
lança-se contra o médico francês Jean Fernel Borelli, que Newton recordará em sua obra
maior, estudou a estática e a dinâmica do
corpo calculando a força desenvolvida pe­
los músculos ao caminhar, ao correr, ao sal­
tar, ao levantar pesos e nos movimentos in­
ternos do coração. Assim, mediu a força
muscular do coração e a velocidade do san­
gue nas artérias e nas veias. Para Borelli, o
coração funciona como o pistão de um ci­
lindro e os pulmões como dois foles. Com
os mesmos objetivos, Borelli também anali­
sou o vôo dos pássaros, o nado dos peixes e
o arrastar dos vermes.

3 F V a r v c is c o R e d i
c o n t n a a te o e ia
d a q e r a ç ã o e sp o n tâ n e a

Outro acadêmico do Cimento que con­


tribuiu para o desenvolvimento das ciências
médico-biológicas foi o aretense Francisco
Redi (1626-1698), que, com um experimen­
Willhini Harvey (1575-1657)
c o célebre descobridor da circulação do sangue.
Reproduzim os aqu i unia antiga água-forte * Academia do Cimento: das experências científi­
do inglês Ricbard C ayw ood. cas, instituída em Florença em 1657. Durou 10 anos.
.......... Segunda parte - - \ r e v o lu ç ã o c ie n tí fic a

to que, com justiça, ficou famoso na histó­ cidas. E tanto mais se confirmavam minhas
ria da biologia, fez, naquela época, uma crí­ suspeitas quando via que, em todas as gera­
tica decisiva contra a teoria da geração es­ ções por mim feitas nascer, eu sempre havia
pontânea. Em suas Experiências acerca da visto sobre as carnes, antes que se enches­
geração dos insetos, escreve Redi: “Portan­ sem de vermes, pousarem moscas da mes­
to, segundo o que eu vos disse e segundo o ma espécie daquelas que depois nasciam.
que os antigos e novos escritores e a opi­ Mas vã teria sido a dúvida se a experiência
nião comum do povo querem dizer, toda não a houvesse confirmado. Desse modo, em
podridão de cadáver corrompido e toda su­ meados do mês de julho, coloquei em qua­
jeira de qualquer outra coisa putrefata gera tro frascos de boca larga uma serpente, al­
os vermes e os produz. De modo que, queren­ guns peixes de rio, quatro enguias do Arno
do eu buscar a verdade, desde o princípio e um naco de vitela; depois, fechei muito
do mês de junho mandei matar três daque­ bem as bocas com papel e as selei muito bem
las serpentes chamadas ‘cobras de Esculá- com cera. Em outros tantos frascos, coloquei
pio’. Tão logo morreram, coloquei-as em as mesmas coisas, mas deixei-os abertos.
uma caixa aberta, para que ali ficassem. Não Não passou muito tempo para que os pei­
foi preciso muito tempo para que as visse xes e as carnes desses segundos frascos se
todas cobertas de vermes, que tinham a for­ tornassem verminosos; e via-se que as mos­
ma de cones, sem perna alguma mas com o cas entravam e saíam ao bel-prazer nesses
olho aparecendo. Enquanto devoravam aque­ frascos. Mas, nos frascos fechados, nunca
la carne, os vermes a cada momento cres­ vi nascer sequer um verme, mesmo depois
ciam em tamanho [...]” . de terem transcorrido vários meses a partir
E assim, portanto, que Redi apresenta do dia em que os cadáveres foram fecha­
a teoria da geração espontânea, já venerada dos dentro deles. Às vezes, porém, encon­
em sua época. Entretanto, repetindo os ex­ trava-se pelo lado de fora do papel algu­
perimentos, escreve ele, “ quase sempre eu ma larva ou vermezinho, que [...] procurava
vi, sobre aquelas carnes e aqueles peixes, encontrar alguma brecha por onde en­
bem como nas laterais das caixas onde es­ trar para poder se nutrir dentro daqueles
tavam depositados, não apenas os vermes, frascos.”
mas também os ovos dos quais, como disse Mas voltemos agora a Harvey. A teo­
acima, nascem os vermes. Esses ovos fize­ ria da circulação do sangue por ele propos­
ram-me lembrar daqueles ovos que as mos­ ta e provada constituiu um resultado de
cas deixam sobre o peixe ou sobre a carne e importância enorme. Mas, como sempre, ao
que, depois, tornam-se larvas, o que já foi resolver um problema, uma teoria levanta
observado muito bem pelos compiladores outros. A teoria de Harvey postulava a exis­
do vocabulário de nossa Academia e que tência de vasos capilares entre as artérias e
também é observado pelos caçadores nas as veias, mas Harvey nunca os vira. E nem
feras por eles mortas nos dias quentes, bem podia vê-los, já que para tanto seria neces­
como pelos açougueiros e pelas donas-de- sário o microscópio. E foi Marcelo Malpighi
casa, que, para salvar a carne dessa imundí- (1628-1694), o grande microscopista do sé­
cie no verão, colocam-na em alguidares e a culo XVII, que, em 1661, observaria o san­
recobrem com panos brancos. Daí que, com gue nos capilares dos pulmões de uma rã.
muita razão, no décimo nono livro da Ilíada Malpighi foi pesquisador incansável e ge­
o grande Homero fez com que Aquiles te­ nial. Em 1669, foi nomeado membro da
messe que as moscas cobrissem com vermes Royal Society. Muito hábil nas técnicas ex­
as feridas do morto Patroclo no momento perimentais, estudou os pulmões, a língua,
em que ele rumava para realizar sua vin­ o cérebro, a formação do embrião no ovo da
gança contra Heitor [...]. E por isso a pie­ galinha etc. Em 1663, Robert Boyle (1627­
dosa mãe prometeu-lhe que, com sua divi­ 1691) conseguiu observar a direção dos
na força, manteria longe daquele cadáver capilares, mediante a injeção de fluidos
as imundas fileiras de moscas e que, contra coloridos e de cera derretida. E Antony van
a ordem da natureza, o conservaria incor- Leeuwenhoek (1623-1723), que foi o pai
rupto e inteiro até mesmo pelo espaço de da microscopia (construiu microscópios de
um ano [...]” . E prossegue Redi: “ Daí, co­ até duzentos por um de aumento), viu a
mecei a duvidar se, por acaso, todos os ver­ própria circulação do sangue nos capilares
mes não derivariam apenas dos óvulos das da cauda de um girino e da perna de uma
moscas e não das próprias carnes apodre­ rã. [T]
253
Capítulo décimo terceiro - A s c iê n c ia s d a v id a , a s A c a d e m i a s e a s S o c i e d a d e s c ie n tífic a s

I I . y \ s y \ c a d e m ia s
e a s .Sociedades eie.nY\ficas

• A ciência é um /ato social em sua gênese, em suas aplica­


ções e sobretudo no método, pois o conhecimento científico, para 160?:
ser tal, deve ser controlável: publicamente controlável, em teoria <-e^' ™n“a.
controlável por todos. Ora, justamente com a finalidade de satis- a^ ca^ ' a
fazer esta característica essencial da ciência moderna, o jovem , 1
príncipe Federico Cesi (1585-1630) fundou em 1603 em Roma a
Academia dos Linceus, provida de biblioteca, de laboratório de
história natural e com jardim botânico anexo. Galileu foi membro da Academia
dos Linceus. Tal instituição encerrou sua atividade em 1651 e tornou a funcionar
em 1847.
•Em 1657 o príncipe Leopoldo de Toscana quis a instituição
da Academia do Cimento. Foram acadêmicos, entre outros, 1657:
Vincenzo Viviani, Afonso Borelli e Francisco Redi. Entre os sócios L e o p o ld o
estrangeiros correspondentes devemos recordar Stenon. As pes­ d e Toscana
quisas dos acadêmicos do Cimento contemplaram todo o leque fu n d a
das ciências naturais: f isiologia, farmacologia, mecânica, ótica etc. a A c a d e m ia
O lema da Academia foi "provando e reprovando". Devemos d o C im e n to
salientar a grande atenção que os acadêmicos deram à constru­ -^§2
ção e ao uso de instrumentos sempre mais exatos: termômetros,
microscópios, pêndulos etc.
• A Sociedade real de Londres para a promoção dos conhecimentos naturais
(Royal Society for the Promotion o f Natural Knowledge) teve seu estatuto em
1662, por Carlos II. Tal estatuto estabelece que a finalidade da Sociedade é o de
redigir com linguagem clara, próxima da "dos artesãos, dos cam­
poneses, dos mercadores" mais que da "dos filósofos". Nullius in 1662:
verba foi e é o lema da Royal Society. "Contra os fatos e os expe­ C arlos II
rimentos - disse Newton, que foi primeiro membro e depois pre­ d á o E s ta tu to
sidente da Academia - não se pode discutir". da R oyal
De 1662 a 1677, ano em que morreu, o secretário da Socie­ S o c ie ty
dade foi Henry Oldenburg, que em 1665 iniciou à publicação das - * § 3
Atas da Sociedade (as "Philosophical Transactions", que saem ain­
da hoje). Na intenção de Oldenburg as "Transactions" eram um convite aos estu­
diosos "a pesquisar, experimentar e descobrir coisas novas, a comunicar-se mutua­
mente os próprios conhecimentos". Isso, obviamente, com o fito de contribuir
com o crescimento do conhecimento humano.
1666:
• Em 1666, sob o reinado do Luís XIV, é instituída - e por sob o re in a d o
interesse do ministro Colbert - a Academia real das ciências d e Luís X I V
(Académie royale des Sciences). E no Memorandum de Christian fu n d a -s e
Huygens ao ministro Colbert afirma-se que "a ocupação fun­ a A c a d é m ie
damental e mais útil" dos membros da Academia é a de "tra­ ro y a le
balhar para a história natural conforme o plano traçado por d e s S cien ces
Bacon". ^§4
254
Segunda parte - y \ r e v o lu ç ã o cierv+ífica

1 ; A ^ A c a d e m ia d o s .L m c e u s dim botânico anexo. Em seu Do natural


desejo de saber e da instituição dos Linceus
para realização do mesmo (1616), Cesi es­
creve que, “ faltando uma instituição orde­
“ Organizar e coordenar as pesquisas, nada, uma milícia filosófica para uma em­
tornar estáveis e fecundas as relações entre a presa tão digna, tão grande e tão própria
cultura dos mecânicos e dos técnicos e a dos do homem como a aquisição da sapiência,
teóricos e cientistas; transmitir a um público particularmente com os meios das princi­
o mais amplo possível os resultados dos ex­ pais disciplinas, com esse fim e intento foi
perimentos e das pesquisas; abrir possibili­ erguida a Academia ou congresso dos Lin­
dades sempre mais amplas de colaboração ceus, que, proporcionando a união das pes­
e verificação — foi com base nessas exigên­ soas aptas e preparadas para tal obra, pro­
cias, que são comuns a Descartes e Mersenne, cure, bem regulada, suprir a todas as faltas
a Boyle e Leibniz, que nasceram na Europa e carências, remover todos os obstáculos e
as primeiras sociedades e academias científi­ impedimentos e cumprir esse bom desejo,
cas. Separadas das universidades, que eram propondo-se o aguçadíssimo Linceu como
tradicionalmente controladas pelo poder ecle­ estímulo e lembrança para habilitar-se com
siástico, nasceram ao longo do século XVII a agudeza e a penetração dos olhos da men­
novas sedes para a discussão e a pesquisa. te, necessárias para a informação das coi­
Os grandes epistolários do século XVII, de sas, e para resguardar minuciosa e diligen­
sua parte, documentam como era fortemen­ temente, por dentro e por fora, no que for
te sentida a exigência de ampla colaboração possível, todos os objetos que se apresen­
intelectual, capaz de superar as fronteiras dos tam neste grande teatro da natureza” .
Estados e a particularidade das culturas na­ Galileu foi membro da Academia dos
cionais” (Paulo Rossi). Linceus. Tendo encerrado suas atividades em
A ciência é fato social. E o é porque sur­ 1651, a Academia, depois de algumas reto­
ge sempre no interior de uma tradição cultu­ madas não muito significativas, voltou a
ral (com problemas específicos, sua lingua­ funcionar em 1847.
gem etc.). Ela é social nas suas aplicações,
mas o é sobretudo no seu método de
legitimação enquanto ciência, já que, para ser
2 ; A ^ A c a d e m ia d o (S im e n lo
tal, o conhecimento científico deve ser
verificável — e a verificabilidade é questão
pública. A teoria científica pretende valer para
todos. E essa sua pretensão só se vê satisfeita Não mais que dez anos foi o que du­
com a condição de que as conseqüências rou a Academia do Cimento, idealizada em
operativas e experimentais da teoria obri­ 1657 pelo príncipe Leopoldo de Toscana,
guem todos a aceitá-la. E isso enquanto, por amigo e discípulo de Galileu. Lourenço Ma-
outro lado, o saber filosófico (como era pra­ galotti (1637-1712), que foi membro dessa
ticado nas universidades, nos seminários e Academia, deixou escrito que “ era objeti­
nos colégios eclesiásticos) se configurara e era vo de nossa Academia, além daquele, que
entendido mais como fidelidade a uma esco­ também ocorreu conosco, de experimentar
la ou à doutrina de um mestre do que como aquelas coisas por proveitosa curiosidade ou
fiel aplicação de um método que exponha as por confronto, coisas que tenham sido fei­
teorias, as técnicas de prova e os resultados tas ou escritas por outros, muito embora
da pesquisa à crítica pública. sabendo que, sob esse nome de ‘experiên­
Pois bem, precisamente em contrapo­ cia’, muitas vezes nos enganamos e acredi­
sição ao ensino universitário eclesiástico (“ e tamos em erros. E foi justamente isso que
confessam comumente os ouvintes e até moveu inicialmente a perspicaz e infatigá­
mesmo leitores que, nos estúdios, nada mais vel mente do Sereníssimo Príncipe Leopoldo
se aprende além dos primeiros termos e re­ de Toscana, que, para descansar das assí­
gras, aliás, o caminho e o modo de estudar duas atividades e das solícitas atenções que
e abrir os livros...” ), o jovem príncipe Fe- lhe acarreta o grau de sua alta condição, põe-
derico Cesi fundou em Roma, no ano de se a cansar o intelecto pelo árduo caminho
1603, arcando com as despesas, a Acade­ das mais nobres cognições. Portanto, foi bas­
mia dos Linceus, provida de biblioteca, de tante fácil para o sublime entendimento de
gabinete de história natural e com um jar­ Sua Alteza Sereníssima compreender que o
Capítulo décimo terceiro - .A s ciên cia s d a vido, ; y \ c a d e m i a s e a s 5 o c i e d a d e s ctervKficas

crédito de que gozam os grandes Autores mento em termos de instrumentos, que so­
move muitas vezes os engenhos — que, por breviveu até nossos dias, está conservado no
suma confiança ou por reverência ao seu Museu de História da Ciência de Florença,
nome, não ousam pôr em dúvida aquilo que sendo constituído por 223 peças, algumas
eles abalizadamente pressupõem — julgou das quais danificadas. Por ocasião da mor­
dever ser obra de seu grande espírito con­ te de Leopoldo (1675), parece que existiam
frontar o valor de suas afirmações com mais 1282 peças de vidro. E muitos desses ins­
exatas e mais sensatas experiências e, con­ trumentos ainda se conservavam em 1740,
seguida a comprovação ou alcançado o de­ como testemunha Targioni-Tozzetti, que os
sengano, fazer disso tão desejável e precio­ viu em um cômodo contíguo à Biblioteca
so dom a quem quer que muito anseie pelas do Palácio Pitti.
descobertas da verdade” . Diz ainda Maga- G. Targioni-Tozzetti escreve, em suas
lotti que “ esses prudentes ditames do nosso Informações sobre o crescimento das ciênci­
Sereníssimo Protetor” não visavam a trans­ as físicas ocorrido na Toscana ao longo da
formar os acadêmicos em “ censores indis­ década de 60 do século XVII: “Aliás, os ins­
cretos dos doutos esforços alheios ou pre­ trumentos eram infinitos, por assim dizer, ou
sunçosos dispensadores de desenganos; na seja, todos aqueles publicados nas placas de
verdade, o principal entendimento foi o de cobre dos Ensaios e quase o dobro ou até
dar a outros oportunidade de se confronta­ mais ainda não publicados. A maior parte
rem com suma severidade com as mesmas deles eu ainda vi, em 1740, colocados, den­
experiências, de modo que então tivemos tro dos magníficos armários, em um salão ao
a ousadia de fazer nós mesmos as coisas lado da Biblioteca do Real Palácio dos Pitti,
alheias A ciência é fato social: exige a que era o mesmo em que se realizavam regu­
prova pública, a “ sinceridade” de “ desapai­ larmente as sessões da Academia do Cimento
xonados e respeitosos sentimentos” e o con­ [...]. Outros desses instrumentos foram deixa­
curso de muitas forças (“e de outras forças dos aqui e ali, dispersos, ou passaram para
que para tal empresa forem exigidas” ). outras mãos. E outra parte considerável o
Com base no Diário original dos anais senhor Vayringe, maquinista da S.M.C., le­
da Academia, pode-se constatar que os aca­ vou para a sua casa, sem que a conhecesse
dêmicos do Cimento teriam sido somente anteriormente. A propósito disso, recordo-
os seguintes: Vicente Viviani, Cândido e me que, indo uma vez ao encontro desse
Paulo dei Buono, Alessandro Marsili, An­ Vayringe, como de quando em quando cos­
tônio Uliva, Carlos Rinaldini, João e Afon­ tumava fazer, agradando-me muito a conver­
so Borelli, e o conde Lourenço Magalotti, sação com aquele bravo mecânico e homem
secretário. honradíssimo, ele me fez ver quantidade
Entretanto, além destes citados no ma­ imensa e confusa de instrumentos do Cimen­
nuscrito, sabe-se que também foram acadê­ to, de cristal, de metal, de madeira etc., per­
micos Alessandro Segni (que foi secretário guntando-me se eu sabia para que podiam
da Academia até 20 de maio de 1660, data ter servido. Eu, que logo os reconhecera, dis­
em que assumiu Lourenço Magalotti), Fran­ se-lhe o que eram. Como o nome da Acade­
cisco Redi e Carlos Roberto Dati. mia do Cimento soou completamente novo
Entre os sócios estrangeiros correspon­ para ele, tive uma idéia: na manhã seguinte,
dentes, devemos recordar Stenon e, de cer­ levei-lhe os Ensaios, mostrei-lhe as figuras e
to modo, também Huygens, que mantinha expliquei-lhe as descrições, que ele ainda não
correspondência astronômica com o prínci­ entendia muito bem. Depois da morte de
pe Leopoldo. Vayringe, dos instrumentos do Cimento e dos
O lema distintivo da Academia era a instrumentos próprios de Vayringe, uma par­
expressão “provando e reprovando” . E as te foi encaixotada e enviada a Viena, por or­
pesquisas científicas dos acadêmicos do Ci­ dem do Augustíssimo Imperador Francisco,
mento abarcaram todo o arco das ciências dizendo-se que foi presenteada ao Grande
naturais: fisiologia, botânica, farmacologia, Colégio Teresiano, e todos os outros foram
zoologia, mecânica, ótica, meteorologia etc. depositados no referido salão do Palácio dos
E não devemos esquecer a grande atenção Pitti e em um cômodo contíguo. Quanto às
que os acadêmicos dedicaram à construção placas de cobre, tanto as publicadas nos En­
de instrumentos sempre mais exatos: termô­ saios quanto algumas outras, ainda não
metros, higrômetros, microscópios, pêndu­ publicadas, mas aparentemente destinadas
los etc. O patrimônio da Academia do Ci­ a uma então idealizada continuação dos En-
256
Segunda parte - A d e v o lu ç ã o c ie n t í f ic o

h m 1657
foi fundada cm Idorençii
a Academia do Cimento,
desejada pelo príncipe
l.copoldo de Toseana,
amigo de Galileu.
/\s pesquisas científicas
de seus membros
ocuparam todo o arco
das ciências naturais;
os acadêmicos deram
grande atenção
à construção de “instrumentos”
sempre mais exatos,
como termômetros,
pêndulos, microscopios.

saios, conservam-se no guarda-roupa real [...]. Natural Knowledge) nasceu dos encontros
Ademais, deve-se acreditar que os instrumen­ que um grupo de seguidores da nova filoso­
tos feitos por conta do príncipe Leopoldo fia ou filosofia experimental realizou desde
fossem muitíssimos, já que era grande o nú­ 1645.
mero dos que me foram mostrados pelo Sr. Em 1662, Carlos II concedeu o Esta­
Vayringe, muitos outros se haviam quebra­ tuto (Charter) que estabelecia os direitos e
do ou sido levados antes, e muitos o próprio as prerrogativas da Royal Society. O objeti­
cardeal Leopoldo enviara de presente ao papa vo da sociedade era o de redigir “relatórios
Alexandre VII, com uma instrução sobre o fiéis de todas as obras da natureza” , fazen­
modo de operá-los, redigida elegantemente do-o mediante linguagem enxuta e natural,
pelo conde Lourenço Magalotti” . isto é, uma linguagem de “expressões posi­
tivas” e com “ significados claros” : a socie­
dade queria uma linguagem que se aproxi­
masse da “ dos artesãos, dos camponeses,
U y\ /íR o y a l S o c i e t y ” d e .Lorvdees dos comerciantes” mais do que a linguagem
“ dos filósofos” .
E tal linguagem, naturalmente, é a lin­
A Sociedade Real de Londres para a guagem das ciências: da anatomia, do mag­
Promoção dos Conhecimentos Naturais (Ro- netismo, da mecânica ou da fisiologia. O
yal Society of London for the Promotion of lema da Sociedade Real de Londres foi e
257
Capítulo décimo tetceivo - / \ s c iê n c ia s d a v ida/ a s ^ A c a d e m ia s I i d a d e s cit-’ n+í|icas

continua sendo Nullius in verba, ou seja: 4 A A c a d e m ia 1Real


Não se deve jurar sobre as palavras de nin­
guém. A ciência não encontra seu fundamen­ das 67iê n c ia s n a FVança

to na autoridade de algum pensador, mas


somente nas provas dos fatos. Como disse Na França, graças ao interesse do mi­
Newton, que foi membro e depois presidente nistro Colbert, foi constituída em 1666, no
da Sociedade Real, “contra os fatos e expe­ reinado de Luís XIV, a Academia Real das
rimentos, não se pode discutir” . Ciências (Académie Royale des Sciences). E
De 1662 a 1677 (ano em que morreu), de Christian Huygens um famoso memoran­
secretário da sociedade foi Henry Olden- do enviado ao ministro Colbert, afirmando
burg, que, em 1665, deu início à publicação que “ a ocupação fundamental e mais útil”
dos Anais da sociedade (as “Philosophical dos membros da academia seria a de “tra­
Transactions” , que são publicadas até hoje). balhar na história natural segundo o plano
As Transactions da Royal Society cons­ traçado por Bacon” .
tituem o primeiro exemplo europeu de re­ Eis, em suas linhas essenciais, o proje­
vista periódica dedicada a questões de na­ to de Huygens: realizar experiências sobre
tureza científica. E Oldenburg iniciou sua o vácuo por intermédio de bombas e deter­
publicação por estar convencido de que dar minar o peso do ar; analisar a força explo­
a conhecer aos outros as descobertas cientí­ siva da pólvora fechada em um recipiente
ficas era algo necessário ao progresso do co­ de ferro ou de cobre suficientemente espes­
nhecimento científico. so; examinar a força do vapor; examinar a
Em projeto inicial, as Transactions cons­ força e a velocidade dos ventos e estudar os
tituíam um convite e um encorajamento para seus usos para a navegação e as máquinas;
os estudiosos, a fim de levá-los “ a pesquisar, analisar “ a força (...) do movimento me­
a experimentar e descobrir novas coisas, a diante percussão” .
transmitir uns aos outros seus próprios co­ Como ainda escrevia Huygens, há
nhecimentos e, assim, dentro do possível, muitas coisas que, de útil conhecimento,
contribuir para o grande projeto que consis­ são-nos completamente ou quase desconhe­
te no enriquecimento do conhecimento da cidas: a natureza do peso, do calor, do frio,
natureza e no aperfeiçoamento de todas as da luz, da atração magnética, a respiração
artes e ciências filosóficas” . E tudo isso “pela animal, a composição da atmosfera, o mo­
glória de Deus, a honra e o benefício deste do de crescimento das plantas e assim por
Reino e o bem universal da Humanidade” . diante.
258
Segunda patte - j A r e v o lu ç ã o c ie n tífic a

veis; daí, engelhando-se em si mesmos, insen­


R edi sivelmente tomaram uma forma semelhante à
de um ovo-, no dia vinte e um todos haviam se
transformado naquela forma de ovo de cor bran­
ca no princípio, depois dourada, que pouco a
pouco se tornou avermelhada; e assim se con­
servou em alguns ovos, mas em outros, conti­
D Contra o teoria nuando sempre a escurecer, por fim tornou-se
da geração espontânea como que negra; e os ovos, tanto negros como
vermelhos, chegando a este ponto, de moles e
tenros que eram, tornaram-se de casca dura e
O trecho que segue constitui um marco quebradiça; de onde se poderio dizer que te­
no historio do pensamento biológico: Fran­ nham alguma semelhança com as crisálidas ou
cisco Redi desmente, com um experimento aurélias ou ninfas, como quer que sejam cha­
"clássico", a teoria da geração espontânea. madas, nas quais por algum tempo se transfor­
mam as larvas, os bichos-da-seda e outros in­
setos semelhantes. Assim sendo, tornando-me
Portanto, segundo vos disse, e que os mais curioso observador, vi que entre os ovos
ontigos e os novos escritores e o opinião públi­ vermelhos e os negros havia alguma diferença
co comum querem dizer, todo podridão de ca­ de forma, pois, embora parecesse que todos
dáver corrompido e todo sujeira de qualquer indiferentemente fossem compostos como que
outra coisa putrefata gera os vermes e os pro­ de tantos aneizinhos ligados, apesar de tudo
duz; de modo que, querendo eu rastrear a ver­ estes anéis eram mais esculpidos e mais visto­
dade, no princípio do mês de junho mandei sos nos negros do que nos vermelhos, os quais,
esmagar três daquelas serpentes que se cha­ à primeira vista, pareciam como que lisos, e em
mam serpentes de feculápio e, logo que foram uma das extremidades não tinham, como os
mortas, as coloquei em uma caixa aberta de negros, certa pequena concavidade não muito
modo que aí se deteriorassem; não muito tem­ diferente da dos limões ou de outros frutos
po depois as vi inteiramente cobertas de ver­ quando são destacados do galho. Coloquei es­
mes que tinham forma de cone e sem nenhu­ tes ovos separados e diferentes em alguns va­
ma perna, pelo que apareciam a olho nu, como sos de vidro bem fechados com papel, e ao
vermes, esperando para devorar aquelas car­ cabo de oito dias de cada ovo de cor aver­
nes, iam por momentos crescendo de tamanho; melhada, rompendo a casca, escapava para
e, de um dia para o outro, conforme pude ob­ fora uma mosca acinzentada, turva, estonteada
servar, ainda cresceram em número; daí, em­ e, por assim dizer, esboçada e ainda não bem
bora tivessem todos a mesma forma de um acabada, com as asas ainda não abertas que
cone, não tinham o mesmo tamanho, pois nas­ depois, no espaço de meio quarto de hora,
ceram em mais e diversos dias, mas os meno­ começando a desdobrar-se, se dilatavam na
res de acordo com os maiores, depois de ter justa proporção daquele pequeno corpo, que
consumido o carne e deixado intactos apenas nesse tempo também reduzira-se à convenien­
os ossos nus, por um pequeno furo da caixa te e natural simetria das partes e, como que
que eu tinha fechado, fugiram todos sem que totalm ente refeito, tendo deixado aquela
eu pudesse jamais encontrar o lugar onde se esmaecida cor de cinza, vestira-se de um verde
esconderam; pelo que, mais curioso de ver qual vivíssimo e maravilhosamente brilhante; e o
fim pudessem ter tido, de novo no dia onze de corpo inteiro tinha-se assim dilatado e cresci­
junho coloquei em obra outras três das mes­ do, que parecia impossível poder crer como na­
mas serpentes; sobre as quais, passados três quela pequena casca tivesse podido caber.
dias, vi vermezinhos que pouco a pouco foram Todavia, se estas moscas verdes nasceram de­
crescendo em número e tamanho; todos, po­ pois de oito dias daqueles ovos avermelhados,
rém, com a mesma forma, embora não todos dos outros ovos de cor negra penaram quatorze
da mesma cor, o qual nos maiores do lodo de dias paro nascer certos grandes e negros
fora era branco e nos menores tendia ò cor de moscões listados de branco e com o ventre pelu­
carne. Ao terminar de comer as carnes, procu­ do e vermelho no fundo, daquela mesma raça
ravam ansiosamente um caminho para poder que vemos diariamente rodear nos açougues e
fugir; mas, tendo eu fechado bem todas as fres­ nas casas ao redor das carnes mortas; quando
tas, observei que no dia dezenove do mesmo nasceram eram malfeitos e preguiçosíssimos
mês alguns dos grandes e dos pequenos co­ para o movimento e com as asas não abertas,
meçaram, quase adormecidos, a tornar-se imó­ como acontecera às primeiras verdes, que acima
259
Cãpltuío décimo tevccivo - y \s ciências da vida, a s .Academias e a s Sociedades científicas

mencionei. Todavia, nem todos aqueles ovos ne­ sem ou não dos próprias carnes apodrecidas, e
gros nasceram depois dos quatorze dias; ao con­ tanto mais me confirmava em minha dúvida, pois
trário, boa parte se atrasou para nascer até o em todas as gerações por mim feitas nascer eu
vigésimo primeiro dia, quando então escaparam sempre tinha visto sobre carnes, antes de cria­
fora certas moscas bizarras completomente di­ rem vermes, pousar moscas da mesma espécie
ferentes das duas primeiras gerações tanto no das que depois daí nasceram: mas teria sido vã
tamanho como na forma, que nenhum histo­ minha dúvida se a experiência não a tivesse con­
riador, que eu saiba, tinha descrito; são, porém, firmado. Por isso, na metade do mês de julho,
muito menores que as moscas ordinárias que fre- em quatro frascos de boca larga coloquei uma
qüentam e infestam nossas mesas; voam com serpente, alguns peixes de rio, quatro enguia-
duas asas como que de prata, cujo tamanho não zinhas do rio Rrno, e um talho de vitela de leite;
excede o do corpo, que é todo negro da cor do depois, fechando muito bem as bocas com pa­
ferro polido e lustroso no ventre inferior, gue pel e barbante, e muito bem lacrados, em ou­
relembra na forma o das formigas aladas, com tros frascos coloquei outras tantas das coisas
algum pêlo curto mostrado pelo microscópio. Dois ditas acima e deixei as bocas abertas; não pas­
longos chifres ou antenas (assim as chamam os sou muito tempo, e os peixes e as carnes des­
escritores da história natural) se levantam sobre tes segundos frascos se tornaram verminosos; e
a cabeça; as primeiras quatro pernas não saem nesses frascos via entrar e sair as moscas à von­
do lugar ordinário das outras moscas, mas as tade, mas nos frascos fechados nunca vi nascer
duas esticadas são muito mais longas e gran­ um verme, embora tenham passado muitos me­
des do que as que pareceríam convenientes a ses desde o dia que nestes foram fechados
tão pequeno corpo, e são feitas justomente de aqueles cadáveres; encontrava-se, porém, algu­
matéria crustada como a das pernas da lagosta ma vez do lado de fora, sobre o papel, alguma
marinha; têm a mesma cor, ou talvez mais viva, larva ou verme que com todo esforço e solicitu­
e tão avermelhada que deixaria o azinhavre de tentava encontrar alguma greta para poder
envergonhado e, todas pontilhadas de bran­ entrar e alimentar-se nos frascos, dentro dos
co, parecem um trabalho de finíssimo esmalte. quais todas as coisas colocadasjá estavam féti­
Essas gerações tão diferentes de moscas das, úmidas e corrompidas: os peixes fluviais,
saídas de um só cadáver não me apagaram o exceto os lisos, se haviam todos convertido em
intelecto, mas me estimularam a fazer novas ex­ uma água espessa e turva que pouco a pouco,
periências; e para este fim aparelhando seis no fundo, se tornou clara e límpida, com algum
caixas sem tampa, na primeira coloquei duas das traço de gordura liquefeita nadando no superfí­
mencionadas serpentes, na segunda um gran­ cie; da serpente brotou ainda muita água, po­
de pombo, na terceira duas libras de vitela, na rém seu cadáver não se desfez, aliás se conser­
quarta um grande pedaço de carne de cavalo, vou ainda quase são e inteiro com as mesmas
na quinta um capão, na sexta um coração de cores, como se tivesse sido fechado lá no dia
castrado; e todas, em pouco mais de vinte e anterior; ao contrário, as enguias soltaram muito
quatro horas, criaram vermes; e os vermes, de­ pouca água, mas, inchando e fervilhando e pou­
pois de cinco ou seis dias de seu nascimento, se co a pouco perdendo a forma, tornaram-se como
transformaram como de costume em ovos; e dos que uma massa de cola ou de visco bastante
das serpentes, todos vermelhos e sem cavida­ tenaz e grudento; mas a vitela, depois de mui­
de, nasceram ao cabo de doze dias alguns tas e muitas semanas, permaneceu árida e seca.
moscões de cor turquesa e alguns outros de cor Todavia, não me acontentei apenas com estas
violeta. Dos do grande pombo, dos quais alguns experiências; ao contrário, fiz infinitas outras em
eram vermelhos e outros negros, nasceram dos diversos tempos e em diversos vasos; e para
vermelhos ao cabo de oito dias moscas verdes, não deixar nada não tentado, por fim mandei
e dos negros, no décimo quarto dia, rompendo que fossem colocados sob a terra alguns peda­
a casca na ponta onde não há cavidade, esca­ ços de carne, que, recobertos muito bem com a
param para fora outros moscões negros listados própria terra, embora tivessem ficado por muitas
de branco; e tais moscões listados de branco semanas sepultados, jamais geraram vermes,
também saíram ao mesmo tempo de todos os como produziram todos os outros tipos de car­
outros ovos das carnes da vitela, do cavalo, do nes sobre os quais haviam pousado as moscas:
capão e do coração de castrado; com a diferen­ e de não pouca consideração é que no mês de
ça, porém, que do coração de castrado, além junho, tendo colocado em uma garrafa de vidro
dos moscões negros listados de branco, nasce­ de gargalo bastante longo e aberto as vísceras
ram ainda outros de cor turquesa e violeta. [...] de três capões, lá dentro criaram vermes; e não
Comecei a duvidar se todos os vermes das podendo todos aqueles vermes sair pela gran­
carnes da semente apenas das moscas derivas­ de altura do gargalo, caíam de novo no fundo
260
Segunda parte - . A r e v o lu ç ã o c ie n tífi*

da garrafa e aí, morrendo, serviam de pasto e


de ninho para as moscas, que continuaram a fazer
aí vermes não só durante todo o verão, mas ain­
da até os últimos dias do mês de outubro. Gntão
certo dia mandei esmagar boa quantidade de
vermes nascidos na carne de búfalo e, coloca­
dos parte em vaso fechado e parte em vaso
aberto, nos primeiros dias nada foi gerado, mas
depois nasceram os vermes que, transforman­
do-se em ovos, tornaram-se por fim moscas or­
dinárias; 0 o mesmo justamente aconteceu com
grande número das referidas moscas ordinárias
esmagadas e colocadas em semelhantes vasos
abertos e fechados: nada se viu nascer no vaso
fechado; mas no aberto nasceram os vermes
dos quais, depois de se tornarem ovos, nasce­
ram moscas da mesma espécie daquelas sobre
as quais tinham nascido os vermes; do que eu
poderio talvez conjeturar que o doutíssimo pa­
dre fltanásio Kircher, homem digno de qualquer
elogio maior, tomasse, não sei como, um equí­
voco, no livro décimo segundo do Mundo sub­
terrâneo, onde propõe o experimento de fazer
nascer os moscas de seus cadáveres. Molhem-
se, diz este bom virtuoso, os cadáveres das
moscas e se ensopem com água doce; daí, so­
bre uma placa de cobre se exponham ao tépido
calor das cinzas, 0 vejam-se insensivelmente
ESPERIENZE
Iatçrno alU Gcnerazionc
nascer deles alguns vermículos, visíveis ape­
nas por meio do microscópio; pouco a pouco,
despegando as asas do dorso, tomam a forma
DEGL INSETTI
í A T t E
de pequeníssimas moscas, as quais também,
crescendo pouco a pouco, tornam-se moscas DA F R A N C E S C O REDI
grandes 0 de estatura perfeita. Eu, porém, creio O r o n u f i r o Arcrino, t A cca Jem irâ i M u Çn.ta
que a água doce não serve para outra coisa £ 4<t Lm ltr(í(* m unx Letur*i
senão para convidar mais facilmente as mos­
A lt' I L tV S T R I S ü M O 5 1 0 S-JR
cas vivas a alimentar-se dos cadáveres e a ne­
les deixar suas sementes; e pouco, ou mesmo
nado, tenho que mereço experiência em vaso de
CARLO D ATI.
/'«yr
cobre 0 no tépido calor das cinzas, pois sempre
e em todo lugar dos cadáveres nascerão os ver­
mes, e dos vermes as moscas, contanto que so­
bre os cadáveres das próprias moscas tenham
sido parturidos os vermes ou as sementes dos
vermes. Mas não entendo como aqueles su-
tilíssimos vermes descritos por Kircher se trans­
formem em pequenas moscas sem antes, pelo
espaço de alguns dias, terem sido transforma­
dos em ovos; e também não entendo, inge­
nuamente confessando minha ignorância, como
aquelas moscas possam nascer tão pequenas <•>*
Jr , iIr *, ••» ...
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e depois vão crescendo, pois todas as moscas,
mosquitinhos, mosquitos e borboletas, como vi
milhares de vezes, saem de seu ovo já com o
mesmo tamanho que conservam durante todo o No alto, Francisco Redi em uma incisão de L. Pelli;
tempo de sua vido. acima, frontispício da primeira edição
f. Redi, das Experiências ao redor da geração dos insetos
E x p e riê n c ia s em torno d o g e ra çã o d o s insetos. (Florença, 1668).
BACON
E DESCARTES

■ A reviravolta social e teórica


impressa no pensamento filosófico
pela revolução científica

“E sta s três co isa s (a arte da im pressão, a pólvora


e a b ú sso la ) m udaram a situação do m undo todo,
a prim eira n a s letra s, a segunda na arte m ilitar, a
terceira na navegação;provocaram m udanças tão
extraordinárias que nenhum im pério, nem seita,
nem estreia p a rece te r exercid o m aior influência e
eficá cia so bre a hum anidade do que e ssa s três
invenções. ”
Francis Bacon

“S e m e abstenho de da r m eu ju íz o so bre um a co i­
sa , quando não a concebo com su ficien te clareza
e distinção, é evidente que faço ótim o uso do ju ízo
e não m e deixo enganar; m as, se m e determ ino a
negá-ia ou a afirm á-ia, então não estou m ais m e
servin do com o devo de m eu H vre-arbítrío. ”
René Descartes
Capítulo décimo quarto

Francis Bacon: filósofo da era industrial 263


Capítulo décimo quinto

Descartes: “ o fundador da filosofia m oderna” 283


CZapíiulo d é c im o q u a n to

F la n e is B acon :
ósofo d a e r a industrial

I . F r a n c is B a c o n
a v i d a e o p r o j e t o a u lf u ^ a l

• Nascido em Londres em 1561, filho de Sir Nicholas Bacon, lorde tabelião da


rainha Elisabeth, Francis Bacon gozou do privilégio de ser introduzido na corte
desde pequeno. Em 1584 foi eleito para a Câmara dos Comuns, onde permaneceu
cerca de vinte anos; sua carreira política tornou-se em todo caso
rápida e brilhante a partir de 1603, ou seja, com a ascensão ao Bacon:
trono de Jaime I, culminando na nomeação como lorde chanceler a vida
em 1618. e a formulação
Em 1620 publicou sua obra mais famosa, o Novum Organum de novas teorias
que, nas intenções do autor, deveria substituir o Organon aristo- para a pesquisa
télico; a obra era apresentada como a segunda parte de um pro­ científica
jeto enciclopédico, a Instauratio Magna, da qual no mesmo ano -^§1
foram publicadas a introdução e o plano geral. Em 1621, porém,
Bacon foi acusado de corrupção e condenado e, embora a culpa lhe fosse logo
perdoada pelo rei, sua carreira política estava acabada para sempre. Em 1624 revê
o texto da Nova Atlântida, onde prefigurava uma ativa comunidade dos doutos e
dos cientistas. Morreu no dia de Páscoa, em 9 de abril de 1626.
Com Bacon tem início na história do Ocidente uma "nova atmosfera intelec­
tual". Ele indagou e escreveu sobre a função da ciência na vida e na história hu­
mana; formulou uma ética da pesquisa científica que se contrapunha de modo
claríssimo à mentalidade de tipo mágico que, ainda em seus tempos, era iarga-
mente dominante; tentou teorizar nova técnica de pesquisa da realidade natural;
lançou as bases da moderna enciclopédia das ciências, que se tornará um dos
empreendimentos mais importantes da filosofia européia.

1 B acon: efeito, essas três coisas mudaram a situação


do mundo todo, a primeira nas letras, a se­
o f iló s o fo d a e e a in d u s t r ia l
gunda na arte militar, a terceira na navega­
ção; provocaram mudanças tão extraordi­
No Novum Organum, que é sua obra nárias que nenhum império, nem seita, nem
mais conhecida, escreve Francis Bacon: “ É estrela parece ter exercido maior influência
preciso considerar ainda a força, a virtude e e eficácia sobre a humanidade do que essas
os efeitos das coisas descobertas, que não três invenções.”
se apresentam tão claramente em outras Se Galileu, entre outras coisas, teorizou
coisas como nestas três invenções, que eram a natureza do método científico; se Descar­
desconhecidas para os antigos e cuja origem, tes, entre outras coisas, proporá uma meta­
embora recente, é obscura e inglória: a arte física que influenciou extremamente a ciên­
da impressão, a pólvora e a bússola. Com cia; Bacon, por seu turno, foi o filósofo da
264
Terceira parte - B acon e D esc a rtes

era industrial, pois expressou de modo mui­ sido eleito para a Câmara dos Comuns, onde
to eficaz e penetrante a influência das des­ ficou cerca de vinte anos.
cobertas científicas sobre o delineamento da Ao período entre 1592 e 1601 remon­
vida do homem, com as conseqüências que ta sua amizade com Robert Devereux, se­
delas derivam. gundo conde de Essex, que protegeu Bacon
Francis Bacon nasceu em Londres, em nessa época. Tal amizade terminou tragica­
22 de janeiro de 1561, em York House no mente, já que o conde de Essex foi acusado
Strand. Seu pai, Sir Nicholas Bacon, era ta­ de traição e insurreição e, como consultor
belião da rainha Elisabeth, e assim Francis legal da Coroa, Bacon teve de sustentar es­
teve o privilégio de ser introduzido na corte sas acusações. Antes favorito da rainha, o
desde garoto. conde foi condenado à morte e decapitado.
Entrando na Universidade de Cam- Nesse meio tempo, em 1603, subia ao
bridge quando tinha doze anos, ficou no trono inglês Jaime I, homem amante da cul­
Trinity College até 1575. William Rawley, tura e protetor de intelectuais. Sob Jaime I,
que foi secretário particular e que escreveu a carreira de Bacon foi rápida e brilhante:
conhecida biografia de Bacon, falando do advogado geral em 1607, procurador-geral
período transcorrido por seu “ senhor” na da Coroa em 1613, lorde tabelião em 1617
universidade, nos diz que, “ quando ainda e lorde chanceler em 1618. Nesse mesmo
estava na universidade, por volta dos dezes­ ano, Bacon recebeu do rei o título de barão
seis anos de idade, sentiu pela primeira vez de Verolme e, três anos mais tarde, o de vis­
que se estava ‘desapaixonando’ — como sua conde de Santo Albano.
Senhoria mesmo expressou-se para mim — Apesar de seu trabalho, suas ocupações
da filosofia de Aristóteles: não por despre­ e preocupações políticas, Bacon não descu-
zo pelo autor, ao qual sempre tributou altos rou de seu trabalho intelectual, tanto que,
louvores, mas sim pela inutilidade do méto­ em 1620, publicou sua obra mais famosa, o
do, sendo a filosofia aristotélica uma filoso­ N ovum Organum, que, na intenção do au­
fia (como sua Senhoria sempre gostava de tor, deveria substituir o Organum aristoté-
dizer) boa somente para as disputas e as con­ lico. A obra era apresentada como a segun­
trovérsias, mas estéril em obras vantajosas da parte de um projeto enciclopédico muito
para a vida do homem; e ele manteve esse mais amplo e ambicioso: a Instauratio Mag­
modo de pensar até o dia de sua morte” . na, da qual ainda em 1620, além do N ovum
Com efeito, para Bacon, Aristóteles foi o Organum, eram publicados a introdução e
símbolo de uma filosofia “estéril no que se o plano geral.
refere à produção de obras vantajosas para Nesse entretempo, porém, isto é, em
a vida humana” . 1621, a carreira de Bacon foi bruscamente
Como os estudos jurídicos eram neces­ interrompida e sua fama ficou decididamen­
sários para empreender a carreira política, te comprometida. Com efeito, na primavera
em junho de 1575 Bacon ingressou no Gray’s de 1621, Bacon foi acusado de corrupção
Inn de Londres, uma escola de jurisprudên­ diante da Câmara dos Lordes. Bacon, que
cia onde eram formados jurisconsultos e sempre teve muita necessidade de dinheiro
advogados. durante toda a vida, havia aceitado presen­
Logo depois, porém, partia para a Fran­ tes de uma parte contendora antes de, na qua­
ça, seguindo o embaixador inglês Sir Amias lidade de juiz, emitir a sentença. Assim, foi
Paulet. Teve péssima impressão da França acusado de corrupção e condenado. Entretan­
(o rei era homem desregrado e o país era cor­ to, apesar do rigor da sentença, a prisão na
rupto, mal administrado e pobre). Torre de Londres durou apenas poucos dias,
Em 1579 voltou a Londres, em virtude e a multa foi perdoada pelo rei. Assim, Bacon
da morte do pai. Durante o reinado de Eli­ pôde continuar seus estudos, mas sua carrei­
sabeth, embora despendesse muito esforço ra política estava encerrada para sempre.
nesse sentido, não conseguiu deslanchar na Morreu no dia de Páscoa, em 9 de abril
carreira política, ainda que, em 1584, tenha de 1626.
265
Cãpítulo décimo quãYtO - F m ^ c t s B a c o n : -filósofo d a e r a in d u strial

I I . O s e s c r ito s d e B a c o n
e s e u s ig n ific a d o

• Ensaios (1597), análises eruditas sobre a vida moral e polí- As obras


tica, é a primeira obra de Bacon. De 1602 é O parto masculino do fjiosófjcas
tempo, um escrito polêmico contra os filósofos antigos, medie- B a co n
vais e renascentistas; de 1603 é um escrito de caráter autobio- §7
gráfico, e outras obras se sucedem até 1608, quando iniciou o
Novum Organum, publicado depois em 1620, no qual Bacon retoma conceitos já
elaborados em obras precedentes e apresenta perspectivas de um novo método
filosófico.

1 y\ f ilo s o fia b a c o n ia t a a
e x p re s s a n as obeas

A primeira obra de Bacon foram os


Ensaios. Publicados pela primeira vez em
1597, consistem de análises eruditas sobre
a vida moral e política. Tendo-se tornado
um clássico da literatura inglesa, foram tra­
duzidos para o latim sob o título Sermones
fideles sive interiora rerum.
Em 1603 publica-se o De interpre-
tatione naturae proemium. Como 1603 é o
ano da ascensão de Jaime I ao trono, Bacon
se estende em observações de caráter auto­
biográfico em seu escrito, considerando suas
próprias qualidades como adequadas para
o projeto de reforma da cultura.
Escreve ele: “ A razão desta minha pu­
blicação é a seguinte: quero que tudo aqui­
lo que visa a estabelecer relações intelec­
tuais e libertar as mentes se difunda entre as
multidões e passe de boca em boca [...]. Na
verdade, ponho em movimento uma reali­
dade que outros experimentarão [...]. Bas­
ta-me a consciência do serviço bem presta­
do e a realização de uma obra na qual a
própria sorte não poderia interferir.”
Já no anto anterior (1602), porém,
Bacon tinha escrito o Temporis partus
masculus. O parto masculino do tempo é
um escrito muito polêmico contra os filóso­
fos, tanto antigos (Platão, Aristóteles, Ga­
leno, Cícero) como medievais (Tomás, Es-
coto) e renascentistas (Cardano, Paracelso). Francis Bacon (1561-1626)
Na opinião de Bacon, todos esses filó­ foi o profeta da revolução tecnológica moderna
sofos são moralmente culpados de não te­ e teórico de uma nova técnica
rem dado a devida atenção à natureza e o de aproximação da realidade natural.
respeito necessário para com essa obra do A imagem é tirada de uma incisão da época.
266
Terceira parte - B acon e D escartes

Criador, que deve ser ouvida com humilda­ Desta obra Bacon considerou o Novum
de e interpretada com a necessária cautela e Organum como a segunda parte e o De dig-
paciência. Para ele, a filosofia do passado é nitate et augmentis scientiarum (1623) como
estéril e verbosa. a primeira. Este último escrito é a tradução
Semelhante crítica à cultura tradicio­ latina ampliada do O f Proficience and Advan­
nal voltará à tona diversas vezes nas suces­ cement o f Learning, Human and Divine. A
sivas obras de Bacon, como, entre outras, o terceira parte da Instaurado é representada
Valerius terminus (1603), os Cogitataetvisa pela Historia naturalis et experimentalis ad
(1607-1609), a Redargutio pbilosophiarum condendam philosophiam sive phenomena
(1608) e a Descriptio globi intellectualis universi, publicada em 1622 e 1623, em dois
(1612). volumes, que continham, respectivamente,
O trabalho intitulado O f Proficience Historia ventorum e Historia vitae et mortis.
and Advancement o f Learning, Human and Em 1624, Bacon fez uma revisão do
Divine (ou seja, “ Sobre a dignidade e o pro­ texto de New Atlantis (a Nova Atlântida),
gresso do saber humano e divino” ) é de onde prefigura sociedades e instituições
1605. Esse trabalho, que seria ampliado em científicas, e uma efetiva e profícua comu­
1623, é uma espécie de defesa e elogio do nidade dos doutos e dos cientistas.
saber. O segundo livro da obra analisa o Na primeira história da Royal Society,
estado de decadência do saber e projeta uma escrita pelo bispo de Rochester, Thomas
enciclopédia do saber, dividido em história Sprat, podemos ler: “ Recordarei somente
(fundada na faculdade da memória), poesia um grande homem, que teve clara visão de
(baseada na fantasia) e ciência (alicerçada todas as possibilidades dessa nova institui­
na razão). ção, tal como ela é agora: estou falando de
Os Cogitata et visa são de 1607. Em lorde Bacon. Em seus livros estão esparsos
1609, Bacon publicou o De sapientia vete- por toda parte os mais válidos argumentos
rum, onde, mediante a interpretação de al­ que se podem produzir em favor da filoso­
guns mitos da antiguidade, o autor apresenta fia experimental e as melhores diretrizes
ao público douto as doutrinas da nova filo­ capazes de promovê-la, argumentos que ele
sofia. adornou com tanta arte que, se meus dese­
Ao que tudo indica, foi em 1608 que jos houvessem prevalecido sobre os de al­
Bacon iniciou o Novum Organum, no qual guns de meus ótimos amigos, que me indu­
retoma também os conceitos elaborados nas ziram a escrever esta obra, nenhum escrito
obras anteriores que ainda não haviam sido seria mais adequado para servir de prefá­
publicadas. Nessa obra, publicada em 1620, cio à história da Royal Society do que qual­
Bacon trabalhou quase dez anos, apresen­ quer de suas obras.” Pode-se afirmar, sem
tando-a como a segunda parte da Instaurado sombra de dúvida, comenta Benjamin
magna, um projeto não realizado, cujo pla­ Farrington, que “a Royal Society representa
no geral era o seguinte: o maior monumento comemorativo a Fran-
1 ) divisão das ciências; cis Bacon” .
2 ) novo órgão ou indícios para a inter­ E se a Nova Atlântida prefigura aquilo
pretação da natureza; que serão as sociedades científicas, o proje­
3) fenômenos do universo ou história to enciclopédico da Instaurado magna ins­
natural e experimental para a construção da pira Diderot e d’Alembert na idealização da
filosofia; Enciclopédia iluminista.
4) escala do intelecto; Com Bacon, portanto, como os estu­
5) pródromos ou antecipações da filo­ diosos de comum acordo reconhecem, inau­
sofia segunda; gura-se nova atmosfera intelectual e novo
6 ) filosofia segunda ou ciência ativa. modo moral e social de entender a ciência.
267
Capítulo décimo quarto - Fm ucis Bacon: filósofo da era indusfnal

III. “y\v\\ccÀp a ç õ e s d a n a tu re z a ^ .“ é,,;::

e “i n f a r p ^ e f a ç õ e s d a n a f u ^ e z a ^

• Conforme Bacon, ciência e pocfer coincidem, no sentido de que se pode agir


sobre fenômenos apenas quando se conhecem suas causas. Para remediar os de­
feitos do saber de seu tempo, tecido de axiomas abstratos e de lógica silogística,
Bacon propõe a importante distinção entre:
a) as antecipações da natureza, que são noções tomadas de A im p o rta n te
poucos dados habituais e sobre as quais a opinião comum facil­ d istin ç ã o e n tre
mente dá seu próprio consentimento; as a n te c ip a ç õ e s
b) as interpretações da natureza, que derivam ao contrário da n a tu re z a e
de uma pesquisa que se desenvolve a partir das próprias coisas as in terpretaçõ es
conforme os modos adequados. d a n a tu re z a
Ora, são as interpretações da natureza, e não as antecipa­ ~^§ 1
ções, que constituem o verdadeiro saber, obtido com o verdadei­
ro método, o qual é um novum organum, um instrumento novo e eficaz para
alcançar a verdade. Trata-se, portanto, de seguir propriamente duas fases:
1 ) a primeira (a pars destruens) consiste em limpar a mente de falsas noções
(jdola) que invadiram o intelecto humano;
2) a segunda (a pars construens) consiste na exposição e justificação das re­
gras do novo método.

1 O m é to d o p o r m e io
“com energia limitada e escasso sucesso” .
Por isso, é tolo e contraditório pensar que
d o q u a l se a lc a n ç a aquilo que não se conseguiu fazer até agora
o ve^ dadem o s a b e r possa ser feito no futuro sem recorrer a
métodos novos e ainda não tentados. O fato
é que admiramos as forças da mente huma-
Escreve Bacon no início do primeiro
livro do Novum Organum: “ Ministro e in­
térprete da natureza, o homem faz e enten­
de o que observa da ordem da natureza, com
a observação das coisas ou com a obra da ■ A n t e c i p a ç ã o da n atureza. É o
mente — ele não sabe nem pode nada mais p ro c esso "te m e rá rio e p re m a tu ro " d a
que isso.” ra zã o , d e q u e o h o m e m c o m u m e n te
Em conseqüência, prossegue Bacon, “ a f a z u so em re la ç ã o à n a tu re z a .
ciência e a potência humana coincidem, T rata-se d e um p ro c e d im e n to m u ito
porque a ignorância da causa impede o efei­ útil p a ra indu zir a o co n se n so , p o rq u e
su a s n o ç õ e s típ icas s ã o tira d a s d e p o u ­
to, e só se comanda a natureza obedecendo
cos e x e m p lo s m u ito fam iliare s e "im e ­
a ela: aquilo que é causa na teoria torna-se d ia t a m e n t e a g a r r a m o in te le c to e
regra na operação prática” . p ree n ch e m a fa n ta s ia " ; p o ré m , ju s t a ­
Assim, podemos agir sobre os fenôme­ m e n te p o r isso, su a s n o ç õ e s s ã o em
nos, ou seja, é possível intervir eficazmente p rim eiro lu g a r " f a ls a s " , e c h e g a m a
sobre eles, mas apenas com a condição de co n stitu ir o s ídolos, o s p re c o n ce ito s
conhecermos suas causas. e r ra d o s d o s q u a is to d o in telec to q u e
Ora, é bem verdade que “ o mecânico, q u e ira se r cien tífico d e v e a b s o lu t a ­
o matemático, o alquimista e o mago” se m e n te se libertar. M e d ia n te a s a n te ­
cip açõ e s, n ã o s e p o d e o b te r n en h u m
ocupam da natureza e procuram entender p ro g re sso n as ciências.
seus fenômenos, mas também é verdade,
observa Bacon, que “todos eles, pelo me­
nos até agora” , ocuparam-se da natureza
268
Terceira parte - B aaon e D e s c a r t e s

çam fácil concordância, “porque, extraídas


de poucos dados, sobretudo daqueles que
■ Interpretação da natureza. É o se repetem habitualmente, logo ocupam o
i:processo racional que se desenvolve, intelecto e preenchem a fantasia; em suma,
conforme o método adequado, a partir são noções produzidas com método equi­
da luz da natureza e da experiência. vocado” .
í As interpretações da natureza são ti­ b) As interpretações da natureza, ao
I'
radas de modo esparso de exemplos contrário, são resultado “ daquele outro
I bastante variados e distantes entre si, modo de indagar, que se desenvolve a partir
e parecem necessariamente difíceis e das próprias coisas, segundo os modos de­
estranhas para a opinião comum,
"quase como os mistérios da fé"; elas, vidos” : “ recolhidas de dados diversos e
porém, justamente mediante o au­ muito distantes entre si, elas não podem logo
têntico processo indutivo, se desen­ atingir o intelecto; por isso, parecem difí­
volvem coerentemente ao longo de ceis e estranhas à opinião comum, quase
uma escala contínua de "axiomas", semelhantes aos mistérios da fé” .
até chegar aos princípios mais gerais Entretanto, são as interpretações da
da natureza. Todas as proposições da natureza e não suas antecipações que cons­
"nova ciência" são interpretações da tituem o verdadeiro saber: o saber obtido
natureza. com o verdadeiro método.
As antecipações subjugam a concor­
dância, mas não levam “ a novos particula­
res” ; as interpretações subjugam a realida­
de e, precisamente por isso, são fecundas. E
na, mas não procuramos fornecer verdadei­ subjugam a realidade e são fecundas exata­
ra ajuda ao engenho humano. E a mente mente porque existe um método — do qual
necessita de tal ajuda, pois “ a natureza su­ falaremos adiante — que é um “ novum
pera infinitamente o sentido e o intelecto organum”, um instrumento novo e verda­
pela fineza de suas operações” . deiramente eficaz para alcançar a verdade.
Bacon via o saber de sua época como Se o que foi dito é verdadeiro, então
entretecido de axiomas que, sendo produzi­ fica claro que, pondo junto o saber do pas­
dos precipitadamente a partir de poucos e sado — saber feito de antecipações —, não
insuficientes exemplos, sequer arranham a se estaria contribuindo de modo algum para
realidade, servindo apenas para alimentar o progresso das ciências.
disputas estéreis. E a lógica silogística, pres­ A primeira urgência, portanto, é a da
supondo tais axiomas tão pouco fundamen­ instauração do saber, “ começando pelos
tados, é “ mais danosa que útil” , dado que próprios fundamentos da ciência” .
serve somente “ para estabelecer e fixar os E essa premente e radical tarefa tem
erros que derivam da cognição vulgar, mais duas fases:
do que servir à busca da verdade” . a) a primeira (a pars destruens) consis­
Pois bem, sendo assim, Bacon propõe- te em limpar a mente dos ídolos (idola) ou
se “ reconduzir os homens aos próprios par­ falsas noções que invadiram o intelecto hu­
ticulares, respeitando sua sucessão e sua mano;
ordem, de modo que eles se obriguem a re­ b) a segunda (a pars construens) con­
negar por algum tempo as noções e come­ siste na exposição e na justificação das re­
cem a se habituar com as próprias coisas” . gras do único método que, sozinho, pode
E, com tal objetivo, ele logo distingue entre: levar a mente humana ao contato com a re­
a) antecipações da natureza e b) interpreta­ alidade e que, sozinho, pode estabelecer um
ções da natureza. novum commercium mentis et rei.
a) As antecipações da natureza são Examinemos estas duas fases em seus
noções construídas e obtidas “ de modo pre­ núcleos e em suas articulações essenciais.
maturo e temerário” : são noções que alcan­ B X JE
269
Capítulo d é c ilf I O quatto - P r e m e is B a c o n : filó so fo d a e r a in d u stria l

//
I V . j A t e o r i a d o s ^ id o la

• A primeira função da teoria dos ídolos é a de tornar os homens conscientes


das falsas noções que obscurecem sua mente e barram o caminho para a verdade.
Os gêneros de ídolos que assediam a mente são quatro:
1 ) os ídolos da tribo, fundados sobre a própria natureza hu­ A teoria
mana e dependentes do fato de que o intelecto humano mistura dos ídolos
sempre a própria natureza com a das coisas, deformando-a e toma os homens
transfigurando-a; consdentes
2) os ídolos da caverna, que derivam do indivíduo singular, e de suas falsas
precisamente da natureza específica da alma e do corpo do indi­ noções
víduo singular, ou então de sua educação e de seus hábitos, ou - > § 1-5
ainda de outros casos fortuitos;
3) os ídolos do foro ou do mercado, dependentes dos contatos recíprocos do
gênero humano, que se insinuam no intelecto por via das combinações impró­
prias das palavras e dos nomes;
4) os ídolos do teatro, que penetram na alma humana por obra das diversas
doutrinas filosóficas e das péssimas regras de demonstração.

S ig n ific a d o d a te o e ia da qual falaremos. Todavia, uma identifica­


ção preliminar deles constitui grande van­
d o s llid o \a "
tagem para sua eliminação.

“ Os ídolos e as falsas noções que inva­


diram o intelecto humano, nele lançando
raízes profundas, não só sitiam a mente hu­ mm O s “id o la W ibns"
mana, a ponto de tornar-lhe difícil o acesso
à verdade, mas também (mesmo quando
dado e concedido tal acesso) continuam a Os ídolos da tribo se fundamentam so­
nos incomodar durante o processo de ins­ bre a própria natureza, e sobre a própria
tauração das ciências, quando os homens, família humana ou “ tribo” .
avisados disso, não se dispõem em condi­ O intelecto humano mistura sua pró­
ções de combatê-los à medida do possível.” pria natureza com a das coisas, deforman­
A primeira função da teoria dos ído­ do-a e desfigurando-a.
los, portanto, é a de tornar os homens cons­ Assim, por exemplo, o intelecto huma­
cientes das falsas noções que congestionam no é levado por sua natureza a supor nas
sua mente e barram-lhe o caminho para a coisas “ uma ordem maior” do que aquela
verdade. que efetivamente nelas se encontra, ou seja,
Desse modo, a identificação dos ído­ paralelismos, correspondências e relações
los é o primeiro passo que se deve realizar que na realidade não existem.
para tornar possível libertar-se deles. Ou ainda: “ Quando encontra alguma
Todavia, quais são esses ídolos? Pois noção que o satisfaz, porque a considera
bem, Bacon responde a essa pergunta dizen­ verdadeira ou porque convincente e agra­
do que eles são de quatro gêneros e os cha­ dável, o intelecto humano leva todo o resto
ma, com belas imagens didáticas: a validá-la e coincidir com ela. E mesmo que
1 ) ídolos da tribo; a força ou o número das instâncias contrá­
2 ) ídolos da caverna; rias seja maior, no entanto, ou não são leva­
3) ídolos do foro; das em conta por desprezo ou são confun­
4) ídolos do teatro. didas com distinções e rejeitadas, não sem
Tais “ídolos” são eliminados aprenden­ grave e danoso prejuízo, desde que isso con­
do conceitos adequados, alcançados com serve imperturbável a autoridade das suas
método justo, ou seja, mediante a indução, afirmações primeiras.”
2 70
Terceira parte - B a c o n e I -V s< <u M c 5

Em suma, um vício do intelecto huma­ dos livros que lê e da autoridade daqueles


no é o que hoje chamaríamos de equivoca­ que admira e honra ou por causa da di­
da tendência verificacionista, contrária à versidade de impressões, à medida que elas
justa atitude falsificacionista, com base na encontrem o espírito já ocupado por pre­
qual, se queremos o progresso da ciência, conceitos ou então descongestionado e tran-
devemos estar prontos a descartar uma hi­ qüilo” . O espírito dos indivíduos singula­
pótese, conjectura ou teoria quando obser­ res “ é variado e mutável, quase fortuito” .
vamos fatos contrários a ela. Por isso, escreve Bacon, Eleráclito estava
Mas as tendências perniciosas do inte­ com a razão quando disse: “ Os homens pro­
lecto não são somente as que supõem or­ curam as ciências em seus pequenos mun­
dens e relações que um mundo complexo dos, não no mundo maior, que é idêntico
não tem ou então as que não levam em con­ para todos.”
ta os casos contrários. O intelecto, de fato, Os ídolos da caverna, portanto, “têm
também tende a atribuir com facilidade as [...] sua origem na natureza específica da
qualidades de algo que o impressionou a alma e do corpo do indivíduo, em sua edu­
outros objetos que, no entanto, não têm es­ cação e seus hábitos ou então em outros
sas qualidades. Em suma, “ o intelecto hu­ casos fortuitos” . Assim, por exemplo, pode
mano não é apenas luz intelectual, mas tam­ ocorrer que alguns se afeiçoem às suas es­
bém sofre a influência da vontade e dos peculações particulares “porque se acredi­
afetos, o que faz com que as ciências sejam tam seus autores e descobridores ou porque
como se quer. Isso ocorre porque o homem a elas dedicaram todo o seu engenho e a elas
crê que é verdadeiro aquilo que ele prefere, se habituaram” . Ou então, baseando-se em
rejeitando por isso as coisas difíceis, pela alguma parcela de saber por eles construída,
impaciência de pesquisar; a realidade pura os indivíduos a extrapolam, propondo sis­
e simples, porque deprime as suas esperan­ temas filosóficos inteiramente fantásticos. E
ças; as verdades supremas da natureza, por há ainda aqueles que se deixam tomar de
superstição; a luz da experiência, por sober­ admiração pela antiguidade, enquanto ou­
ba e presunção [...]; os paradoxos, para fi­ tros, pela atração da novidade; “poucos são
car com a opinião do vulgo; e o sentimento aqueles que conseguem manter-se num cami­
ainda penetra no intelecto e o corrompe por nho intermediário, ou seja, sem desprezar
muitos outros modos, freqüentemente im­ aquilo que é justo na doutrina dos antigos e
perceptíveis” . sem condenar aquilo que foi corretamente
E há também os obstáculos dos senti­ descoberto pelos modernos” .
dos enganosos, que são obstáculo porque
amiúde “ a especulação se limita [...] ao as­
pecto visível das coisas, deixando de lado
ou reduzindo a muito pouco a observação id ll ^'dola fo n "
daquilo que nelas há de invisível [...]” .
Além disso, “por sua própria nature­
za, o intelecto humano tende para as abstra­ Os ídolos do foro ou do mercado deri­
ções e imagina como estável aquilo que, no vam da comunhão e das relações que os
entanto, é mutável” . homens têm entre si. Na realidade, escreve
São esses, portanto, os ídolos da tribo. Bacon, “ a relação entre os homens ocorre
por meio da fala, mas os nomes são impostos
às coisas segundo a compreensão do vulgo.
E basta essa informe e inadequada atribui­
O s ''\do\a s p e c u s "
ção de nomes para perturbar extraordina­
riamente o intelecto. E, naturalmente, para
retomar a relação natural entre o intelecto e
Os ídolos da caverna “ derivam do in­ as coisas, também não têm valor todas aque­
divíduo singular. Além das aberrações co­ las definições e explicações das quais fre­
muns ao gênero humano, cada um de nós qüentemente os doutos se servem para se
tem uma caverna ou gruta particular na qual precaver e se defender em certos casos” .
a luz da natureza se perde e se corrompe, Em outros termos, Bacon parece ex­
por causa da natureza própria e singular cluir exatamente aquilo que hoje nós cha­
de cada um, por causa de sua educação e mamos hipóteses ad hoc, isto é, hipóteses
das conversações com os outros, por causa cogitadas e introduzidas nas teorias em pe­
271
Capitulo décimo quavto - p l a n e i s B a c o n : filó so fo d a ara in d u strial

rigo com o único objetivo de salvá-las da (como, por exemplo, a “ sorte” , o “primei­
crítica e da refutação. ro móvel” etc.), ou são nomes de coisas que
Entretanto, diz Bacon, “as palavras fa­ existem, mas confusos, indeterminados e
zem grande violência ao intelecto e perturbam impropriamente abstraídos das coisas.
os raciocínios, arrastando os homens a inu­
meráveis controvérsias e vãs considerações” .
Na opinião da Bacon, os ídolos do foro
são os mais incômodos de todos, “justamen­ ..5 O s "id o Ia tk e a te i"
te porque estão ligados à linguagem” . Os
homens “ acreditam que sua razão domina
as palavras; mas ocorre também que as pa­ Os ídolos do teatro “ penetraram no
lavras retrucam e refletem sua força sobre o espírito humano por meio das diversas dou­
intelecto, o que torna a filosofia e as ciências trinas filosóficas e por causa das péssimas
sofisticas e inativas” . regras de demonstração” .
Os ídolos que, por intermédio das pa­ Bacon os chama de ídolos do teatro
lavras, penetram no intelecto, são de duas porque considera “todos os sistemas filosó­
espécies: são nomes de coisas inexistentes ficos que foram acatados ou cogitados como
fábulas preparadas para serem representa­
das no palco, boas para construir mundos
de ficção e de teatro” . Encontramos fábu­
las não somente nas filosofias atuais ou nas
“ seitas filosóficas antigas” , mas também em
“muitos axiomas e princípios das ciências
que se afirmaram por tradição, fé cega e
desleixo” .
Bacon particularmente classifica três
tipos de ídolos do teatro, que estão na ori­
gem da falsa filosofia: a) ídolos sofistas,
baseados sobre experiências comuns não
suficientemente provadas, e depois integra­
das artificiosamente pela inteligência; b) ído­
los empíricos, baseados sobre poucos expe­
rimentos acurados, mas com a pretensão de
sobre eles construir sistemas filosóficos; c)
ídolos supersticiosos, baseados sobre uma
mistura acrítica da filosofia com a teologia
e com as tradições.
Bacon não pretende com isso menos­
prezar os antigos nem atingir sua respeita­
bilidade. Nós, diz ele, nos ocupamos de novo
método, um método desconhecido dos an­
tigos, que permite a gênios menos fortes que
os antigos ir bastante além dos seus resulta­
dos: “ Diz-se que até um manco, se coloca­
do no caminho certo, pode ultrapassar um
corredor que esteja fora do caminho; por­
que é verdade que, quanto mais veloz cor­
re, quem está fora do caminho mais se per­
■- j--‘ edi eao
de e erra.”
; /, '<■>:.!<• I Cdl l Zí l dn E assim chegamos ao ponto em que
i empreender, podemos tratar daquilo que, para Bacon,
,i repartirão da ciência constitui a) o verdadeiro objetivo da ciên­
■i ,h !■ ' da natureza. cia eh) o verdadeiro método da pesquisa.
272
Terceira parte - B a c o n e D e s c c u - te s

V. o escopo da ciência:
a descoberta d as fo rm a s7
7

• Segundo Bacon, a obra e o fim da ciência humana consistem na descoberta


da forma de uma natureza dada. A forma de que fala Bacon é a causa formal, a
única que ele admite (diferentemente de Aristóteles, que admi­
C onhecer tia outras três causas: material, eficiente e final), pelo que conhe­
as fo rm a s cer as formas das várias coisas ou "naturezas" significa penetrar
d a s co isa s nos segredos profundos da natureza e tornar o homem podero­
s ig n ific a so sobre ela. A idéia de forma em sentido baconiano pressupõe
p e n e tra r os conceitos de:
n o s s e g re d o s a) processo latente, que é o processo continuativo, a lei, que
d a n a tu re z a regula a geração e a produção do fenômeno;
-> § 1 -4
b) esquematismo latente, que é a estrutura, a essência de
um fenômeno natural. Em tal sentido, "compreender a forma"
significa propriamente compreender a estrutura de um fenômeno e a lei que re­
gula seu processo.

LAm p o n to c a r d e a l ou inquebrável; um projeto para conservar


os limões, as laranjas e as cidras durante o
d o p e n s a m e n to d e B a c o n
verão; um projeto para fazer amadurecer
mais rapidamente as ervilhas, os morangos
Descongestionada a mente dos “ ído­ ou as cerejas. Outro projeto seu consistia
los” , isto é, libertado o espírito das apressa­ em procurar obter — usando o ferro unido
das “ antecipações da natureza” , na opinião à sílica ou a qualquer outra pedra — um
de Bacon, o homem pode então encaminhar- metal mais leve que o ferro e imune à ferru­
se para o estudo da natureza. Pois bem, “ a gem. Para esse composto (o nosso aço), Ba­
obra e o fim da força humana está em gerar con via os seguintes usos: “Em primeiro lu­
e introduzir em um dado corpo uma nova gar, para os utensílios de cozinha, como
natureza ou mais naturezas diversas. A obra espetos, fornos, assadores, panelas etc.; em
e o fim da ciência humana estão na desco­ segundo lugar, para os instrumentos bélicos,
berta da forma de uma natureza dada, isto como peças de artilharia, comportas, gri­
é, de sua verdadeira diferença, natureza lhões, correntes etc.”
naturante ou fonte de emanação” . Esses exemplos nos permitem com­
preender o que significa “introduzir em um
corpo dado uma nova natureza” . E também
nos permitem compreender o que Bacon quer
O p o d e r 1d o k o m e m dizer quando afirma que “a obra e o fim da
e s tá em p ro d u z ir e m um c o r p o força humana estão em gerar e introduzir em
um corpo dado uma nova natureza ou mais
novas n a tu re z a s
naturezas diversas” . Isso esclarece a primei­
ra parte do trecho citado de Bacon.
Esse elemento central do pensamento
de Bacon necessita de alguns esclarecimen­
tos. Antes do mais, o que pretendia dizer ciê rv cia e s t á na d e s co b e rta
Bacon com a expressão “ gerar e introduzir d a s poem as*
em um corpo dado uma nova natureza” ?
Eis alguns “projetos” que exemplificam
a idéia de Bacon: um projeto para fazer li­ Vejamos então a segunda parte, onde
gas de metais para fins diversos; outro pro­ ele escreve que “ a obra e o fim da ciência
jeto para tornar o vidro mais transparente humana estão na descoberta da forma de
273
Capítulo décimo quarto - FVcmcis Bacon: filósofo da ena industrial

uma natureza dada, isto é, de sua verdadei­ ; A id é ia b a c o n ia t r a


ra diferença, natureza naturante ou fonte de
emanação” . de "forma",
Bacon encontra em Aristóteles a dou­ o “p r o c e s s o la t e n t e ”
trina das quatro causas necessárias à com­ e o " e s q u e m a t is m o la t e n t e ”
preensão de uma coisa qualquer. São elas: a
causa material; a causa eficiente; a causa
formal; a causa final. Assim, por exemplo, Mas o que são essas formas? De que
se considerarmos uma estátua, nós a com­ modo Bacon as concebe?
preenderemos se entendermos de que é fei­ Pois bem, para compreender a idéia de
ta (causa material: por exemplo, o mármo­ forma, é necessário falar de dois novos con­
re); quem a fez (causa eficiente: por exemplo, ceitos introduzidos por Bacon: o de “proces­
o escultor); sua forma (causa formal: a idéia so latente” e o de “ esquematismo latente” .
que o escultor imprime no mármore); o a) O processo latente não é o processo
motivo pelo qual foi feita (causa final: por que se vê através da observação dos fenô­
exemplo, a razão que impeliu o escultor a menos: “ Com efeito, não pretendemos fa­
fazê-la). lar de medidas, sinais ou escalas do processo
Pois bem, Bacon está de acordo com visível nos corpos, mas de processo conti­
Aristóteles sobre o fato de que “ o verdadei­ nuado, que em sua maior parte escapa aos
ro saber é saber por causas” . Mas, entre es­ sentidos.”
sas causas, acrescenta ele, a causa final só b) Quanto ao esquematismo latente,
pode valer para o estudo das ações huma­ Bacon escreve que “ nenhum corpo pode ser
nas. Por outro lado, a causa eficiente e a ma­ dotado de nova natureza, nem se pode trans­
terial são de pouca importância para a ciên­ formá-lo oportunamente e com sucesso em
cia verdadeira e ativa. novo corpo, se não se conhece com perfei­
O que resta, portanto, é a causa for­ ção a natureza do corpo a alterar ou a trans­
mal. E esta que nós devemos conhecer se formar” .
quisermos introduzir “ novas naturezas” em Na opinião da Bacon, a anatomia dos
determinado corpo: “Um homem que co­ corpos orgânicos, ainda que insuficiente­
nheça as formas pode descobrir e obter efei­ mente, dá de alguma forma a idéia de es­
tos nunca antes obtidos, efeitos que nem as quematismo latente. Brevemente, pode-se
mudanças naturais, nem o acaso, nem a ex­ dizer que o esquematismo latente é a estru­
periência, nem a industriosidade humana tura de uma natureza, a essência de um fe­
jamais produziram, efeitos que, de outra nômeno natural, ao passo que o processo
forma, a mente humana jamais teria podi­ latente pode ser visto como a lei que regula
do prever.” a geração e a produção do fenômeno.
Em suma, conhecer as formas das vá­ Assim, compreender a forma significa
rias coisas ou “ naturezas” significa pe­ compreender a estrutura de um fenômeno e
netrar nos segredos profundos da natureza a lei que regula o seu processo. Os eventos
e tornar o homem poderoso em relação a se produzem segundo uma lei. E “nas ciên­
ela. E Bacon era de opinião que esses se­ cias é essa própria lei e a pesquisa, desco­
gredos da natureza não deviam ser muitos berta e explicação da mesma, que constitu­
em comparação com a grande variedade e em o fundamento do saber e do operar. Sob
riqueza dos fenômenos, aparentemente tão o nome de forma, nós entendemos essa lei e
diversos. seus artigos E “ quem conhece a for­
No fundo, Bacon pretendia assenho- ma, abrange a unidade da natureza, até nas
rear-se daquele alfabeto da natureza que po­ matérias mais dessemelhantes [...]. Por isso,
dería permitir compreender as expressões da da descoberta das formas derivam a veraci­
linguagem, isto é, seus fenômenos variados. dade na especulação e a liberdade na ope­
Em outros termos: as palavras da lin­ ração” .
guagem da natureza seriam os fenômenos, Poder-se-ia quase dizer que, com essas
e as letras do alfabeto seriam as poucas e especulações, Bacon, de certa forma, sonhou
simples formas. a realidade do bioquímico ou até a aventu­
ra dos físicos atômicos contemporâneos.
274
Terceira parte - B acon e D e sc a rte s

V I. A ip v d u ç ã o por e lim in a ç ã o
e o ^ e x p e n m e n tu m a m e is ”

Os dois • Uma vez purificada a mente dos ídolos e fixado o verda­


procedimentos deiro escopo do saber no conhecimento das formas da natureza,
que compõem o método para alcançar tal escopo se compõe de dois procedi­
o método para mentos:
o conhecimento 1 ) extrair os axiomas da experiência;
das formas 2) derivar experimentos novos dos axiomas.
da natureza Os axiomas são assim tirados da experiência mediante a
->§ 1-2 indução por eliminação da hipótese falsa, que suplanta a indução
tradicional de tipo aristotélico, conduzida por simples enumera­
ção de casos particulares. A indução por eliminação é precedida de uma impor­
tante classificação que registra:
a) nas tábuas de presença, todos os caos em que o fenômeno indagado se
apresenta;
b) nas tábuas da ausência, os casos afins aos precedentes em que, porém, o
fenômeno não se apresenta;
c) nas tábuas dos graus, todos os casos em que o fenômeno se apresenta
segundo maior ou menor intensidade.

• Depois da compilação das três tábuas, começa a operação de verdadeira e


própria exclusão ou eliminação das hipóteses falsas de explicação do fenômeno,
até que se chegue a uma primeira vindima, isto é, a uma primeira hipótese coe­
rente com os dados expostos nas três tábuas e avaliados por meio
O conceito do processo seletivo de exclusão. A primeira vindima é assumida
da primeira depois como hipótese-guia para a pesquisa posterior, isto é, dela
vindima deduzindo os fatos que ela implica e prevê, e experimentando se
§ 3-5 tais fatos se verificam também em condições técnicas experimen­
tais (ou instâncias prerrogativas), entre as quais assumem parti­
cular relevo as instâncias da cruz. De tal modo. Bacon iniciava um caminho dirigi­
do a unir de modo sempre mais firme a faculdade experimental e a faculdade
racional.

1 (Srtí+ica Para Bacon, o caminho a seguir é o da


indução, mas a “indução legítima e verda­
à in d u ç ão anistofélica
deira, que é a própria chave da interpreta­
ção”, e não a indução aristotélica.
Purificada a mente dos “ ídolos” e fi­ Conforme diz Bacon, a indução aristo­
xado no conhecimento das formas da natu­ télica é uma indução por simples enumera­
reza o verdadeiro objetivo do saber, é preci­ ção de casos particulares, “passando muito
so ver agora através de qual método tal rapidamente sobre a experiência e sobre os
objetivo pode ser alcançado. particulares” . A partir de poucos particula­
Bacon afirma que o objetivo é alcan­ res, secundando a má tendência da mente a
çável realizando-se um procedimento de subir imediatamente de escassas experiên­
pesquisa composto de duas partes: “ A pri­ cias aos princípios mais abstratos, ela “cons­
meira consiste em extrair e fazer surgir os titui logo de início conceitos tão gerais quan­
axiomas da experiência, a segunda em de­ to inúteis” .
duzir e derivar novos experimentos dos axio­ Em poucas palavras: a indução de Aris­
mas.” Mas que fazer para extrair e fazer sur­ tóteles deslizaria sobre os fatos, ao passo que
gir os axiomas da experiência? a indução proposta por Bacon, que é uma
275
Capítulo décimo quarto - Francis B acon filósofo da e r c \ industrial

Assim, se pesquisamos a natureza do


calor, devemos inicialmente compilar uma “tá­
bua de presença” (tabula praesentiae), onde
■ Indução por eliminação. O m é - f registramos todos os casos ou instâncias em
t o d o in d u t iv o t r a d ic io n a l, q u e re - ; que se apresenta o calor: “ 1 ) os raios do sol,
, m o n t a a A r is t ó t e le s , c a r a c t e r iz a - s e sobretudo no verão e ao meio-dia; 2 ) os raios
s e g u n d o B a c o n p e l a s i m p l e s enume- í do sol refletidos e reunidos em pequeno espa­
r a ç ã o d o s f e n ô m e n o s , r a z ã o p e la q u a l ço, como entre montes, entre muros ou, mais
se ju lg a c o m b a se a u m n ú m e ro d e
ainda, nos espelhos ustórios; 3) os meteoros
f f e n ô m e n o s in fe r io r a o n e c e s s á rio e
incandescentes; 4) os relâmpagos ardentes; 5)
: a p e n a s e m b a se a o s q u e se tê m a o
a lc a n c e d a m ã o : e s t e m é t o d o , q u e
erupções de chamas das crateras dos montes
p r o c e d e s ilo g is t ic a m e n t e d o m a is p a r ­ etc.; 6) toda chama; 7) sólidos em fogo; 8) as
t ic u la r a o m a is u n iv e r s a l, s a lt a n d o o s . águas quentes naturais; (...); 18) a cal viva,
l a n é is in t e r m e d iá r io s , le v a a c o n c lu - : borrifada de água (...); 20) os animais, so­
s õ e s p r e c á r ia s e c o n s t a n t e m e n t e e x - ; bretudo e sempre nas entranhas etc.”
p o s t a s a o p e r ig o d e te s e s c o n t r a d i- Compilada a “tábua da presença” , pro­
- t ó r ia s . cede-se à compilação da “tábua das ausên­
A v e r d a d e ir a in d u ç ã o c ie n t íf ic a , q u e •
cia” (tabula declinationis sive absentiae in
f a z " u s o d e m u it a s c o is a s à s q u a is a t é ;
o m o m e n t o n e n h u m m o r t a l ja m a is s
proximo), na qual são registrados os casos
p e n s o u " , d e v e a o c o n t r á r io a n a lis a r próximos, isto é, afins, aos anteriores, nos
o s f e n ô m e n o s d a n a t u r e z a a p a r t ir quais, porém, o fenômeno, em nosso caso o
d o s e x p e r im e n t o s , m e d ia n t e a s d e ­ calor, não se apresenta: é o caso dos raios
: v i d a s elim inações e exclusões d o s da lua (que são luminosos como os do sol,
ca so s em q u e o fe n ô m e n o em q u e s­ mas não são quentes), dos fogos-fátuos, do
tã o e stá a u s e n te o u n ã o e stá p re s e n ­ fogo-de-santelmo (que é fenômeno de fosfo-
t e d e m o d o p le n o , p a r a c h e g a r à s
rescência marinha) e assim por diante.
. c a u s a s e a o s a x io m a s s e m p r e m a is
g e r a i s q u e e x p r e s s a m e n t e a e le s e
Concluída a tábua da ausência, pas­
re fe re m .
sa-se à compilação da “tábua dos graus”
A in d u ç ã o p o r e lim in a ç ã o é " a p r ó ­ (tabula graduum), na qual são registrados
p r i a c h a v e d a interpretação", e n e l a todos os casos ou instâncias em que o fenô­
" s e m d ú v id a é d e p o s it a d a a m a io r e s ­ meno se apresenta segundo uma intensida­
: p e ra n ça ". } de maior ou menor. Em nosso caso, deve-se
atentar para a variação do calor no mesmo
corpo, colocado em ambientes diversos ou
em condições particulares.

indução por eliminação, estaria em condi­ 3 domo das três tábuas


ções de captar a natureza, a forma ou a es­ se ex+t*ai a “primeira vindiman
sência dos fenômenos.
Armado com essas tábuas, Bacon pro­
cede então à operação de indução propria­
2 A s três “tábuas” mente dita, seguindo o procedimento da
sobre as quais se deve exclusão ou eliminação. Escreve ele: “ O
basear a nova iudução objetivo e a função dessas três tábuas são o
de fazer uma citação de instâncias diante do
intelecto [...]. Feita a citação, é preciso pôr
Pois bem, na opinião de Bacon, a pes­ em ação a própria indução.”
quisa das formas procede do modo que des­ Deus, “criador e introdutor das for­
creveremos. mas” , e “talvez também os anjos e as inteli­
Antes do mais, ao se indagar sobre uma gências celestes” têm “a faculdade de captar
natureza, como, por exemplo, o calor, é pre­ imediatamente as formas por via afirmativa
ciso “ fazer uma citação, diante do intelecto, e desde o início da especulação” . O homem,
de todas as instâncias conhecidas que coin­ porém, não possui essa faculdade, sendo-
cidem em uma mesma natureza, ainda que lhe “concedido somente proceder primeiro
se encontrem em matérias muito diversas” . por via negativa e apenas por último, de-
276
Terceira parte - B ac-on a V e s c a i * t e s

pois de um processo completo de exclusão, Ele próprio escreve: “Até agora, aqueles que
passar à afirmação” . A natureza, portanto, trataram das ciências eram empíricos ou
deve ser analisada e decomposta com o fogo dogmáticos. Os empíricos, como as formi­
da mente, “ que é quase um fogo divino” . gas, acumulam e consomem. Os racionalis­
Mais especificamente, porém, em que tas, como as aranhas, extraem de si mes­
consiste o procedimento por exclusão ou mos sua teia. O caminho intermediário é o
eliminação? Pois bem, por “ exclusão“ ou das abelhas, que extraem sua matéria-pri­
“ eliminação” Bacon entende exatamente a ma das flores do jardim e do campo, trans­
exclusão ou eliminação da hipótese falsa. formando-a e digerindo-a em virtude de uma
Retomemos o exemplo da pesquisa da capacidade que lhes é própria. Não muito
natureza do calor. Considerando as tábua diferente é o trabalho da verdadeira filoso­
de presença, ausência e graus, o pesquisa­ fia, que não deve se servir somente ou prin­
dor deve excluir ou eliminar como próprias cipalmente das forças da mente, pois a ma­
da forma ou natureza naturante do calor téria-prima que ela extrai da história natural
todas aquelas qualidades não possuídas por e dos experimentos mecânicos não deve ser
algum corpo quente, as qualidades possuí­ conservada intacta na memória, mas sim
das por algum corpo frio e as que permane­ transformada e trabalhada pelo intelecto.
cem invariáveis sob o aumento do calor. Assim, a nossa esperança se deposita na
Para ficar ainda mais claro, a propósito união sempre mais estreita e sólida entre
da pesquisa da natureza do calor, o procedi­ essas duas faculdades, a experimental e a
mento por exclusão poderia assumir o seguin­ racional, união que até agora ainda não se
te processo de argumentação: o calor é ape­ Texto
nas um fenômeno celeste? Não, pois também
os fogos terrenos são quentes. Ele é, então,
apenas um fenômeno terrestre? Não, pois o
sol é quente. Todos os corpos celestes são O ‘“expeeimervtum ceucis77
quentes? Não, porque a lua é fria. Será que o
calor depende da presença de alguma parte
constitutiva no corpo quente, como poderia Chegando à “primeira colheita” , Ba­
ser o antigo elemento chamado “fogo” ? Não, con toma essa primeira hipótese como guia
pela razão de que qualquer corpo pode ser para a pesquisa posterior, que consiste na
tornado quente pelo atrito. Será que depen­ dedução e no experimento, no sentido de
de então da composição particular dos cor­ que, da hipótese obtida, devem-se deduzir
pos? Não, já que podem ser esquentados os os fatos por ela implicados e previstos, ex­
corpos de qualquer composição. perimentando em condições diversas se tais
E assim por diante, até se chegar a uma fatos implicados e previstos pela hipótese
“ primeira colheita” (vindeminatio prima), se verificam.
isto é, a uma primeira hipótese coerente com Desse modo se constrói uma espécie de
os dados expostos nas três tábuas e criva­ rede de investigação, da qual parte toda uma
dos através do procedimento seletivo de eli­ série de “ interrogações” a que a natureza é
minação e exclusão. No que se refere ao forçada a responder.
exemplo do calor, Bacon chega a uma con­ Com tal objetivo, Bacon cogita um
clusão como esta: “ O calor é um movimen­ conjunto rico de técnicas experimentais (ou
to expansivo e forçado, que se desenvolve de instâncias prerrogativas), por ele indica­
segundo as partes menores.” das com nomes muito fantasiosos (instân­
cias solitárias; instâncias migrantes; instân­
cias ostensivas; instâncias clandestinas;
4 ;A nova indução instâncias constitutivas; instâncias confor­
mes ou proporcionais; instâncias monádicas;
como “via mediana77 instâncias desviadoras etc.), entre as quais
entee as seguidas destacam-se particularmente as “instâncias
poe empieistas e eacionalistas da cruz” , assim chamadas “ por metáfora
extraída das cruzes colocadas nos caminhos
para indicar uma bifurcação” .
Procedendo desse modo na busca da A estratégia do experimentum crucis
verdade, Bacon trilhava um caminho dife­ se dá “ quando, durante a pesquisa de uma
rente do dos empiristas e dos racionalistas. natureza, o intelecto está incerto e como que
277
Capítulo décimo quarto - Fm ncis B a c o n filó so fo d a a ^ a in d u strial

em equilíbrio no decidir sobre a qual de duas pre o mesmo peso, ao passo que, sendo ver­
naturezas, ou mais de duas, deve ser atribuí­ dadeira a segunda hipótese, deveria seguir-
da a causa da natureza examinada; pelo con­ se que “ quanto mais os graves se aproxi­
curso freqüente e ordinário de várias natu­ mam da terra, tanto maiores são a força e o
rezas, as instâncias cruciais mostram que o ímpeto com que são impelidos em sua dire­
vínculo de uma dessas naturezas com a na­ ção, ao passo que, quanto mais se afastam
tureza dada é constante e indissolúvel, ao dela, mais lenta e fraca se torna aquela for­
passo que o das outras é variável e separá­ ça [...]” .
vel. Assim, a questão resolve-se, e é acolhi­ Pois bem, sendo assim, eis a instância
da como causa a primeira natureza, enquan­ da cruz: “Tomam-se dois relógios, um da­
to a outra é rejeitada e repudiada” . E Bacon queles que se movem por contrapesos de
comenta: “Tais instâncias trazem portanto chumbo, outro daqueles que se movem por
muita luz e apresentam uma como que for­ contração de uma mola de ferro. Experimen­
te autoridade, de modo que, algumas vezes, te-se se um é mais veloz ou mais lento que o
chegando a elas, nelas se detém o processo outro. Depois, coloque-se o primeiro na
de interpretação” . extremidade de um templo altíssimo, após
No segundo livro do Novum Orga- tê-lo regulado de acordo com o outro, de
num, não faltam exemplos de pesquisas que modo a que marquem o mesmo tempo, dei­
necessitam de experimenta crucis para se­ xando-se então o outro aqui embaixo. E
rem resolvidas. Detenhamo-nos sobre o isso para observar diligentemente se o re­
exemplo da solução da questão da forma lógio colocado no alto move-se mais lenta­
do peso. mente do que antes, em virtude da menor
Para alguns, o peso dos corpos devia- força de gravidade. O experimento deve ser
se a uma propriedade intrínseca dos corpos, repetido, levando-se o relógio para a pro­
ao passo que, para outros, devia-se à gravi­ fundidade de alguma mina, situada muito
dade. abaixo da superfície da terra, para ver se ele
Eis, portanto, para exemplificar, a bifur­ se move mais velozmente que antes, em ra­
cação: “ 1) Ou os corpos pesados e graves zão do aumento da força de atração. E so­
tendem para o centro da terra por sua pró­ mente no caso de se concluir que efetiva­
pria natureza, isto é, segundo o seu esquema- mente o peso dos corpos diminui quando se
tismo, 2 ) ou então são atraídos e aprisiona­ elevam ou aumenta quando se abaixam em
dos pela própria força da massa terrestre.” direção ao centro da terra, é que se determi­
Ora, se a primeira hipótese fosse ver­ nará que a causa do peso é a atração da
dadeira, então todo objeto deveria ter sem­ massa terrestre.”
278
Terceira parte - B a c o n e D e sc a rte s

" BACON
A IN T E R P R E T A Ç Ã O D A N A T U R E Z A

O NOVO ORGANUM DA “GRANDE RESTAURAÇÃO DAS CIÊNCIAS E DAS ARTES


OU
“PRINCÍPIOS DA INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA”
v______ ,_____ . . ........... .

1 . ídolos da tribo
Refutação das 2. ídolos da caverna
antecipações da natureza, 3. ídolos do foro ou do mercado
PONTO DE PARTIDA 4. ídolos do teatro
isto é, dos
A) CLASSIFICAÇÃO:
a. tábuas da presença
b. tábuas da ausência
Primeira parte: c. tábuas dos graus
derivação dos axiomas
a partir da experiência B) MÉTODO:
MÉTODO DEMONSTRATIVO indução por eliminação
da hipótese falsa
na explicação do fenômeno
1.
C) OBJETIVO:
Segunda parte: primeira vindima
derivação de novos fenômenos (ou interpretação inicial),
da primeira vindima isto é, primeira hipótese
por meio de técnicas experimentais coerente
| \ (instâncias prerrogativas, com os dados
experimentados
I x retificações da indução etc.)

COGNOSCITIVO:
descoberta da forma de uma natureza dada
(interpretação final completa dos fenômenos),
isto é, compreensão da estrutura (esquematismo latente)
de um fenômeno e da lei (processo latente)
T_________ que regula seu processo
FIM DA CIÊNCIA
OPERATIVO:
geração de uma ou mais novas naturezas
em um corpo dado,
isto é, transformação dos corpos materiais
por meio da introdução neles
de uma ou mais qualidades sensíveis
279
Cãpíttílo d é c itT lO C ^ U U T tO - F V cm cis B a c o n : filó so fo d a et*a in d u stria l

corpos naturais: o resto é obra da natureza, que


F. B a c o n opera a partir de dentro.

2. Insuficiência das ciências atuais


e da lógica tradicional
1. Costumam ocupar-se da natureza, no
fl necessidade que se refere às obras, o mecânico, o matemá­
de um novo método tico, o médico, o alquimista e o mago; todos,
nos ciências e nos artes porém, no atual estado das coisas, com leve
empenho e escasso resultado.
2. Seria loucura e contraditório em si crer
No opinião de Bacon, os ciências de que aquilo que até agora jamais foi feito, pos­
suo époco não são capazes de novas d e s­ so ser feito sem recorrer a métodos ainda ja ­
cobertas, e a próprio lógica tradicional é inú­ mais tentados.
til poro as pesquisas científicas. 3. Nos livros e nas oficinas parecem de­
O s conceitos que figuram nos silogis­ masiadamente numerosos os produtos da men­
mos da filosofia tradicional são, na realida­ te e da mão. Mas toda essa variedade está
de, noções fantásticas, não extraídas dos fundamentada sobre uma extraordinária sutile­
objetos com método; e o mesmo discurso za e sobre uma série de conseqüências extraí­
vale para os axiomas, que em geral são in­ das de poucos conhecimentos já adquiridos, e
devidamente extraídos p or meio d e umo não está fundamentada sobre o número dos
passagem precipitada e ilegítima de poucos axiomas.
casos particulares ao universal. 4. Também as invenções já realizadas se
fí este procedimento, que é a falsa devem ao acaso e à empiria mais do que às
indução, Bacon opõe o verdadeira indução, ciências. Com efeito, as ciências que hoje te­
que avança para os princípios mediante os mos, não são mais que combinações de coisas
axiomas médios e procede com cautela e já encontradas, não métodos para a invenção
paciência, continuamente controlada pelos ou indicações de novas obras.
casos da experiência. 5. fl causa e a raiz de quase todos os
Nessa perspectiva deve-se entender a males nas ciências é apenas esta: enquanto
célebre distinção baconiana entre antecipa­ erroneamente admiramos e exaltamos as for­
ções do natureza e interpretações da natureza. ças da mente humana, não procuramos verda­
deiros auxílios para ela.
6. fl sutileza da natureza supera em muito
a sutileza do sentido e do intelecto, tanto que
1. A natureza pode ser vencida
todas as boas meditações, especulações e con­
apenas obedecendo a ela 1
trovérsias humanas são coisas sem sentido;
1. O homem, ministro e intérprete da na­ apenas não existe alguém que perceba isso.
tureza, opera e entende apenas pelo que, com 7. Como as ciências, que agora temos, são
a prática ou com a teoria, tiver aprendido da totalmente inúteis para a invenção de obras,
ordem da natureza: olém disso nada sabe nem também a lógica, como é atualmente, é inútil
pode. para o invenção das ciências.
2. Nem a mão nua, nem o intelecto aban­ 8. fl lógica hoje em uso vale mais para con­
donado a si mesmo têm poder. Os resultados firmar e para fixar erros que se apoiam sobre
são alcançados com instrumentos e com auxí­ noções vulgares do que poro a busco da verda­
lios e destes tem necessidade não menos o de; por isso, ela é mais danosa do que útil.
intelecto do que a mão. Como os instrumentos 9. O silogismo, sendo totalmente inade­
ampliam e regem o movimento da mão, tam­ quado para a sutileza da natureza, não se apli­
bém os instrumentos da mente guiam ou man­ ca aos princípios das ciências e é aplicado em
têm o intelecto. vão aos axiomas médios. Obrigo ao assenti­
3. fl ciência e o poder humono coincidem, mento, não obriga as coisas.
porque a ignorância da causa faz com que falte 1 0 . 0 silogismo consta de proposições,
o efeito, fl natureza, com efeito, não se vence a as proposições de palavras, as palavras são
não ser obedecendo a ela, e o que na teoria tem as etiquetas das noções. Portanto, se as pró­
valor de causo, na operação tem valor de regra. prias noções, que estão na base de tudo, são
4. Cm relação às obras o homem não tem confusas e arbitrariamente abstraídas das coi­
outro poder que o de aproximar ou afastar os sas, será totalmente privado de solidez aquilo
280
Terceira parte - Bacon e Descartes

que se constrói sobre suo bose. flssim, o único 3. O intelecto abandonado a si mesmo,
esperanço reside no verdadeira indução. em uma mente sóbria, paciente, severa (sobre­
1 1. Não há nada de incorrupto nas no­ tudo se nõo for impedido pelas doutrinas tradi­
ções, nem nas lógicas nem nas físicas. Rs no­ cionais), tenta por vezes também o segundo
ções de substância, quolidode, ação, paixão, caminho, que é o justo, mas com escasso pro­
e os próprias noções de se r não são válidas e veito. O intelecto, com efeito, se nõo for guia­
muito menos o são as de pesado, leve, denso, do e sustentado, procede irregularmente e é
tênue, úmido, seco, geração, corrupção, atra­ completamente incapaz de vencer a obscurida­
ção, repulsão, elemento, matéria, Forma e se­ de das coisas.
melhantes. Todas essas noções são fantásti­ 4. Rmbos os caminhos se movem do sen­
cas e mal definidas. tido e dos particulares e terminam nos princípios
12. Rs noções das espécies ínfimas, como mais gerais, mas diferem enormemente entre
homem, cão, pomba, e das percepções sensí­ si: um toca apenas de passagem a experiência
veis imediatas, como quente, Frio, branco, p re­ e os fatos particulares, o outro aí se demora
to, não sõo muito falazes, Cias, porém, por ve­ com método e com ordem; um estabelece des­
zes são confusas pelo fluir da matéria e pela de o início princípios gerais abstratos e inúteis:
mistura das coisas. Todas as outras noções, que o outro sobe gradativamente às coisas mais
os homens usaram até agora, sõo aberrações conhecidas por natureza.
abstraídas ou extraídas das coisas com modos 5. Não é pequena a diferença entre os
não apropriados. ídolos da mente humana e as idéias da mente
1 3 . 0 arbítrio e a aberração na constru­ divina, isto é, entre opiniões falazes e os ver­
ção dos axiomas nõo sõo menores do que na dadeiros selos e marcas impressos por Deus
abstração das noções, e isso também nos pró­ sobre as criaturas assim como se encontram.
prios princípios que dependem da indução co­ ó. De nenhum modo pode ocorrer que os
mum. Muito maior é o arbítrio nos axiomas e axiomas estabelecidos mediante a argumenta­
nas proposições conseguidas por meio do ção sirvam para a invenção de novas obras,
silogismo. porque a sutileza da natureza supera grande­
14. Rquilo que até agora foi produzido nas mente a da argumentação. Mas os axiomas
ciências é de tol monta que depende quase extraídos com método e com ordem dos parti­
sempre das noções vulgares. Para penetrar nos culares facilmente por sua vez indicam e desig­
recessos escondidos da natureza é necessário nam particulares novos, e desse modo tornam
que tanto os conceitos quanto os axiomas se­ ativas as ciências.
jam abstraídos das coisas por uma via mais certa 7. Os axiomas agora em uso sõo extraí­
e segura e que nos habituemos a usar o inte­ dos de uma limitada e superficial experiência e
lecto de modo melhor e mais seguro. dos poucos particulares que mais freqüente-
mente se apresentam; sõo de tal modo feitos à
medida e segundo a extensão destes; nõo há,
3. Antecipações da natureza
portanto, nada de estranho se não conduzem
e interpretações da natureza 1
2
a novos particulares. C se por acaso se apre­
1. Sõo e podem ser dois os caminhos para senta uma instância qualquer antes não perce­
a pesquisa e a descoberta da verdade. O pri­ bida ou conhecida, cuida-se de salvar o axio­
meiro, do sentido e dos fatos particulares voa ma com alguma frívola distinção, quando seria
para os axiomas mais gerais e, sobre a base mais justo emendá-lo.
destes princípios e de sua imutável verdade, 8 . Para fazermo-nos entender melhor, es­
julga e descobre os axiomas médios: este é o tabelecemos chamar de antecipações da natu­
caminho agora em uso. O segundo, do sentido reza os temerários e prematuros procedimen­
e dos fatos particulares extrai os axiomas, su­ tos da razão dos quais fazemos uso comumente
bindo com medida e gradativamente de modo nas relações com a natureza. Chamaremos ao
a alcançar apenas no fim os axiomas mais ge ­ contrário de interpretação da natureza a razão
rais: este é o caminho verdadeiro, mas ainda que se desenvolve a partir das coisas confor­
nõo tentado. me os modos devidos.
2. O intelecto abandonado a si mesmo se 9. Rs antecipações são bastante firmes
põe no primeiro caminho e o percorre segundo relativamente ao consenso; com efeito, se tam­
as regras da dialética. R mente tende, com efei­ bém os homens enlouquecessem de modo úni­
to, a subir aos princípios mais gerais e aí parar; co e conforme, poderiam muito bem encontrar-
enfastia-se logo com a experiência. R dialética, se todos de acordo.
por causa de sua complacência com as dispu­ 10. Ou melhor, as antecipações servem
tas, torna estes defeitos ainda mais pesados. muito mais que as interpretações para provo-
281
Capítulo décimo C^uatto - "FVcmcis Bacon: filósofo da era iindustrial

car o consenso porque, extraídos de poucos suas ordens, de modo que eles, por algum tem­
exemplos e justomente dos que parecem mais po, se imponham renunciar às noções e come­
familiares, logo prendem o intelecto e preen­ cem a familiarizar-se com as próprias coisas.
chem a fantasia; ao contrário, as interpretações, F. Bacon,
extraídas esparsamente de exemplos bastante N ovum organum (Novo órgão)
variados e muito distantes entre si, não podem
atingir imediatamente o intelecto e parecem
necessariamente, para a opinião comum, difíceis
e estranhas, quase como os mistérios da fé.
11. Nas ciências fundamentadas sobre
opiniões e sobre princípios prováveis é oportu­ fls linhas gerais
no o uso das antecipações e da dialética: nes­ do novo método
tes casos trata-se de forçar o assentimento, e
não de obrigar as coisas.
12. Também se todos os engenhos de O caminho eminente para a descober­
todas as eras colaborassem juntos e reunissem ta da verdade é, portanto, o que do sentido
e transmitissem suas fadigas, nenhum grande e dos particulores extroi os axiomas, remon­
progresso poderio ser obtido nas ciências me­ tando por graus o escola do generalização,
diante as antecipações, porque os erros enrai­ até chegar aos oxiomos generalíssimos. Tal
zados na mente e que remontam a suas primei­ caminho é a indução por eliminação, no qual
ras elaborações não podem ser corrigidos pela "repõe-se o esperança maior''.
excelência das funções e dos remédios suces­
sivos.
1. Não se trata apenas de procurar e pro­
13. €m vão se espera um grande progres­
videnciar maior quantidade de experimentos de
so nas ciências pela superposição e pelo en­
gênero diverso dos até agora em uso; deve-se
xerto do novo sobre o velho. R instauração deve também introduzir um método completamente
investir os primeiros fundamentos, se não qui­
diverso e um procedimento diferente para con­
sermos girar perpetuamente em um círculo com
duzir e fazer avançar a experiência. Como já foi
progresso escasso e quase insignificante.
dito, uma experiência vaga e que segue ape­
14. Os autores antigos e todos os outros
nas a si mesma é algo semelhante a um andar
conservam sua honra, porque aqui não se insti­
às apalpadelas, que confunde os homens em
tui um confronto entre os engenhos e as capaci­
vez de informá-los. Mas onde a experiência pro­
dades, mas entre diversos caminhos e métodos.
cede segundo uma lei certa, regularmente e sem
Não pretendemos ser juizes, mas indicadores.
interrupções, então se pode esperar algo de
15. € preciso dizer com clareza que sobre
melhor das ciências.
a base das antecipações (isto é, do método
2. Depois que todo o abundante material
agora em uso) não se pode formular nenhum
da história natural e da experiência tiver sido
reto juízo a respeito de nosso método ou em
aprontado e preparado assim como requer a
torno das descobertas a que ele conduz. Não
obra do intelecto, ou seja, da filosofia, nem por
se pode, com efeito, pretender que nos sub­
isso o intelecto está em grau de agir esponta­
metamos ao julgamento de quem deve ser ele
neamente e confiante na memória sobre aque­
próprio chamado em julgamento.
le material: seria como se alguém esperasse
16. € não é fácil expor ou explicar aquilo
poder ter de memória e dominar os cálculos de
que aqui se propõe, porque coisas novas em si
um livro de efemérides.1 Rté agora, nas inven­
serão entendidas apenas por analogia com as
ções, preferiu-se meditar a escrever e, portan­
antigas.
to, ainda não existe a experiência letrada. Não
17. Da expedição dos franceses na Itália,
pode ser aprovada nenhuma invenção que não
Bórgia disse que eles vieram trazendo na mão o
se sirva do escrito. Quando isso tiver entrado
giz para marcar os alojamentos, e não as armas
no uso e a experiência tiver se tornado letrada,
para combater. Do mesmo modo, nosso método poder-se-ão nutrir maiores esperanças.
deve penetrar em espíritos capazes e adequa­
3. O número dos particulares, que são
dos a recebê-lo. Não podem ser utilizadas as
quase um exército, é grandíssimo, e estes par­
refutações, dado que não estamos de acordo
ticulares estão tão esparsos e difundidos que
sobre princípios, nem sobre conceitos, e nem confundem e desorientam o intelecto. Não se
sequer sobre a forma das demonstrações.
18. Resta-nos apenas um único e simples
modo de exposição: conduzir os homens para 'Tábuas numéricas que registram as coordenadas dos
diante de fatos particulares, para suas séries e astros.
282
Terceira parte - " B a c o n e D e s c a r t e s

deve, portanto, esperar algo do bom das es­ não sejam abstratos, mas sejam verdadeira­
caramuças, dos movimentos levianos 0 dos sus­ mente limitados pelos axiomas médios.
piros do intelecto, até que todo o material que Ro intelecto dos homens, portanto, não
se refere ao argumento que é objeto da pes­ devemos acrescentar asas, mas chumbo e pe­
quisa não tiver sido preparado e coordenado sos a fim de impedi-lo de saltar e voar. Isso até
mediante tábuas de pesquisa idôneas, orde­ agora não foi feito; quando isso for feito se
nadamente dispostas 0 quase vivas, e até que poderão nutrir mais altas esperanças sobre o
a mente não se aplique a trabalhar sobre os destino das ciências.
auxílios devidamente dispostos e preparados 6 . Para estabelecer os axiomas, devemos
que estas tábuas fornecem. além disso excogitar uma forma de indução di­
4. Na verdade, depois que tivermos sob ferente da que até agora está em uso, que não
os olhos a grande quantidade dos particulares deve apenas encontrar e provar os assim cha­
bem ordenados, não é preciso colocar-se ime­ mados princípios: mas também os axiomas me­
diatamente a pesquisar e a inventar novos par­ nores 0 médios e todos os outros. R indução
ticulares e novas obras: 0, em todo caso, se que procede por enumeração simples é, com
isso acontecer, não será preciso parar nestes. efeito, uma coisa pueril: suas conclusões são
De fato, quando todos os experimentos de to­ precárias; ela é exposta ao perigo de uma ins­
das as artes tivessem sido recolhidos 0 reuni­ tância contraditória; julga com base em um nú­
dos, 0 submetidos ao conhecimento 0 ao jul­ mero de fatos inferior ao necessário, e apenas
gamento de um só homem, este - limitando-se em base aos que tem ao alcance da mão. R
a transferir estes experimentos de uma arte para indução que será útil para a invenção e a de­
outra e mediante a experiência que chamamos monstração das ciências e das artes deve ao
letrada - estaria em grau de descobrir muitas contrário analisar a natureza mediante as devi­
coisas novas, úteis à vida e à condição huma­ das eliminações e exclusões; e finalmente, de­
na. Não negamos isso, mesmo que as maiores pois de um número suficiente de negativas,
esperanças não devam ser postas na expe­ pode concluir em base às afirmativas. Isso até
riência letrada, mas na nova luz dos axiomas, agora jamais foi feito e nem tentado, o não ser
que são extraídos dos particulares segundo talvez por Platão, que em algum caso faz uso
regras certas e que, por sua vez, indicam e de­ desta forma de indução poro extrair definições
signam particulares novos. O caminho a percor­ e idéias. Todavia, para fazer que esta forma de
rer, com efeito, não é plano, mas em subida e indução ou de demonstração possa operar de
em descida: primeiro se sobe até os axiomas, modo bom e legítimo, é preciso fazer uso de
depois se desce às obras. muitas coisas às quais, até agora, nenhum mor­
5. Todavia, não devemos permitir que o tal jamais pensou. Deveremos, portanto, traba­
intelecto salte 0 voe dos particulares para axio­ lhar sobre ela mais do que até agora não se
mas mais distantes e gerais (tais são os assim trabalhou em torno do silogismo. Com o auxílio
chamados princípios das artes e das coisas), dessa indução se deverá proceder não só para
para depois provar e verificar os axiomas mé­ descobrir os axiomas, mas também para definir
dios à luz de sua verdade imóvel, fite agora se as noções. Nessa indução sem dúvida põe-se
procedeu assim, em parte porque o intelecto a esperança maior.
seguia este caminho por impulso natural, em 7. Ro constituir os axiomas mediante esta
parte porque a isso o tinham habituado as de­ indução, é preciso também considerar e exami­
monstrações de tipo silogístico. Poderemos es­ nar se o axioma que se constitui é adequado e
perar bem das ciências apenas quando, por quase construído sobre medida em relação aos
meio de uma escala verdadeira, em graus con­ particulares dos quais se extrai, ou se ao contrá­
tínuos, sem saltos ou interrupções, se poderá rio é mais amplo e mais vasto. Se for mais am­
subir dos particulares até os axiomas menores, plo ou mais vasto, é preciso ver se esta sua
destes aos médios, depois aos outros superio­ amplitude e vastidão são justificadas pela de­
res e, finalmente, aos axiomas mais gerais. Os signação de novos particulares, como por uma
axiomas mais baixos, com efeito, não diferem fidejussória: a fim de que não aconteça ou de
muito da pura experiência. Os mais altos ou fixar-se apenas sobre particulares já conhecidos,
mais gerais (falo daqueles de que dispomos ou então de prender, em um abraço confuso,
atualmente) são conceituais e abstratos, priva­ apenas sombras ou formas abstratas, e não coi­
dos de qualquer solidez. Os axiomas médios, sas sólidas e determinadas na matéria. Quando
ao contrário, são verdadeiros, sólidos e vivos: tudo isso tiver entrado no uso, então veremos
a eles estão confiadas as esperanças e as sor­ nascer com razão esperanças bem fundadas.
tes dos homens. Sobre eles, enfim, se funda­ F. Bacon,
mentam os axiomas mais gerais, porém tais que N ovum orgonum .
L b a p ítu lo d é c im o q u in to

D e sc a r fe s:
uo jxmdadot* d a -filosofia m oderna^

— I. y \ v id a e a s o b ra s —

• René Descartes (latinizado Cartesius) nasceu em La Haye em 1596. Enviado


ao colégio jesuíta de La Flèche, em Anjou, teve depois a licenciatura em direito
pela Universidade de Poitiers. De 1618 a 1620 se arrolou em vários exércitos que
participavam da Guerra dos Trinta Anos; em novembro de 1619 teve uma "revela­
ção intelectual" a respeito dos fundamentos de nova ciência: a
intuição foi desenvolvida mais à frente sobretudo nas incomple- a s epatas
tas Regras para a guia do intelecto (1627-1628). De 1629 a 1649 principais
viveu na Holanda, onde publicou suas obras mais imjaortantes: o da vida
Discurso sobre o método (1637), as Meditações metafísicas (jun- -> § 1
to com as Respostas às objeções, 1641), os Princípios de filosofia
(1644) e As paixões da alma (1649). Em 1649 aceitou o convite da rainha Cristina
da Suécia e deixou definitivamente a Holanda, mas em fevereiro de 1650 foi aco­
metido de uma pneumonia que em uma semana o levou à morte. Seus despojos,
transladados para a França em 1667, repousam na igreja de Saint-Germain-des-
Prés, em Paris.

1 LAm n o v o tip o filósofo, que dá a medida exata da personali­


dade de Descartes, com toda razão chama­
de sabef ce.n irac\o do precisamente de pai da filosofia moder­
s o b r e o k o rn e m na. Com efeito, ele assinalou uma reviravolta
e s o b re a r a c io n a lid a d e radical no campo do pensamento pela críti­
ca a que submeteu a herança cultural, filo­
kum ana
sófica e científica da tradição e pelos novos
princípios sobre os quais edificou um tipo
Leibniz afirma: “ Costumo chamar os de saber, não mais centrado no ser ou em
escritos de Descartes de vestíbulo da verda­ Deus, mas no homem e na racionalidade hu­
deira filosofia, já que, embora ele não te­ mana.
nha alcançado seu núcleo íntimo, foi quem René Descartes (Cartesius) nasceu em
dele se aproximou mais do que qualquer La Haye, na Touraine, em 31 de março de
outro antes dele, com a única exceção de 1596, ano da publicação do Mysterium
Galileu, do qual oxalá tivéssemos todas as cosmograpbicum de Kepler. De família no­
meditações sobre os diversos temas, que o bre — seu pai Joaquim era conselheiro no
destino adverso reduziu ao silêncio. Quem Parlamento da Bretanha —, foi logo envia­
ler Galileu e Descartes se encontrará em me­ do para o colégio jesuíta de La Flèche, no
lhores condições de descobrir a verdade do Anjou, uma das mais célebres escolas da
que se houvesse explorado todo o gênero época, onde recebeu sólida formação filo­
dos autores comuns” . Um juízo ponderado sófica e científica, segundo a ratio studiorum
de um grande filósofo sobre outro grande daquele tempo, ratio que abarcava seis anos
284
Terceira parte - B acon e D e sc a rte s

de estudos humanísticos e três anos de ma­ veria depois no Studium bonae mentis, de
temática e teologia. Inspirado nos princípios 1623, e nas Regulae ad directionem ingenii
da filosofia Escolástica, considerada a mais (Regras para a guia do intelecto), que escre­
válida defesa da religião católica contra os veu entre 1627 e 1628.
sempre renascentes germes da heresia, aque­ Tendo-se estabelecido na Holanda, ter­
le tipo de ensino, embora sensível às novi­ ra de tolerância e liberdade, Descartes, por
dades científicas e aberto para o estudo da sugestão do padre Marino Mersenne, con­
matemática, deixou Descartes insatisfeito e siderado o “ secretário da Europa douta” , e
confuso. Ele logo se deu conta do abismo do cardeal Pierre de Bérulle, começou a ela­
enorme entre aquela orientação cultural e borar um tratado de metafísica, que, porém,
os novos fermentos científicos e filosóficos logo interrompeu para dedicar-se a uma
que brotavam por toda parte. Em especial, grande obra física, o Traité dephysique (Tra­
percebeu logo a ausência de uma séria meto­ tado de física), dividido em duas partes: a
dologia, capaz de instituir, controlar e or­ primeira sobre temática cosmológica, Le
denar as idéias existentes e guiar à busca da monde ou traité de la lumière (O mundo ou
verdade. tratado da luz), e a segunda de caráter an­
O ensino de filosofia, ministrado se­ tropológico, L’bomme (O homem). Em 22
gundo a codificação de Suarez, levava os de julho de 1633, de Deventer, na Holanda,
espíritos para o passado, para as interminá­ anunciou a Mersenne que o Tratado sobre
veis controvérsias dos tratadistas escolás- o mundo e sobre o homem estava quase
ticos, reservando pouco espaço para os pro­ pronto (“ só me resta corrigi-lo e copiá-lo” ),
blemas do presente. e que esperava enviá-lo no fim do ano. En­
Embora criticando a filosofia aprendi­ tretanto, tomando conhecimento da conde­
da naqueles anos, Descartes certamente não nação de Galileu por causa da tese coperni-
esquece o espaço reservado aos problemas cana, que ele compartilhava e cujas razões
científicos e ao estudo da matemática. Mas expusera no Tratado em questão, Descartes
até no que se refere a essas disciplinas, ao
término de seus estudos ele sentiu-se pro­
fundamente insatisfeito.
Descartes, portanto, deixou o colégio
de La Flèche desorientado e desprovido de
um saber ao qual se agarrar. Por isso, de­
pois de ter prosseguido seus estudos na Uni­
versidade de Poitiers, onde conseguiu o ba­
charelado e a licenciatura em Direito, mas
encontrando-se ainda na maior confusão
espiritual e cultural, decidiu dedicar-se à
carreira das armas. Assim, em 1618, quan­
do teve início a Guerra dos Trinta Anos, alis­
tou-se nas tropas de Maurício de Nassau,
que combatia contra os espanhóis pela li­
berdade da Holanda. Em Breda, estreitou
amizade com um jovem cultor de física e
matemática, Isaac Beeckman, que o estimu­
lou a estudar física. Inclinado a um projeto
de “ matemática universal” , em Ulma, onde
se encontrava com o exército do duque Ma-
ximiliano da Baviera, em cujas fileiras in­
gressara, Descartes relata ter recebido,
entre 10 e 11 de novembro de 1619, uma
espécie de revelação intelectual sobre os fun­
damentos de “ uma ciência admirável” . Por
Descartes (1596-1650)
causa dessa “ revelação” , Descartes fez a
foi o fundador da filosofia moderna,
promessa de ir em peregrinação à Santa Ca­ tanto do ponto de vista das temáticas
sa de Loreto. Em um pequeno diário, em como do ponto de vista da exposição metodológica.
que anotava suas reflexões, Descartes fala Reproduzimos um quadro de R hlals,
de um“ inventum mirabile”, que desenvol- conservado em Paris no Museu do Louvre.
285
Capitulo décimo quinto ~ D e sc a rte s: “ o fundador d a jiiosofia moderna

apressou-se a escrever novamente para o É desse período o seu amor por Helène
mesmo Mersenne: “ Estou quase decidido a Jans, da qual teve Francine, a filhinha que
queimar todas as minhas apostilas ou, pelo amou ternamente e que perdeu com apenas
menos, não mostrá-las a ninguém.” A lem­ cinco anos. A dor pela perda da menina
brança da morte de Giordano Bruno na fo­ incidiu profundamente sobre o seu espírito
gueira e da prisão de Campanella, que a e talvez, pelo menos em parte, sobre seu
condenação de Galileu avivava em sua men­ pensamento, apesar de seus escritos conti­
te, agiram com força sobre seu espírito es­ nuarem sempre severos e rigorosos. Reto­
quivo, inimigo das vicissitudes que prejudi­ mou a elaboração do Tratado de metafísica,
cam a paz de espírito, tão necessária para o mas agora sob a forma de Meditações, es­
estudo. critas em latim porque reservadas aos
Superada a grave perturbação, Descar­ doutos, obra na qual os acenos “ à enfermi­
tes sentiu a necessidade urgente de enfren­ dade e à fraqueza da natureza humana” tes­
tar o problema da objetividade da razão e temunham um espírito cheio de angústia.
da autonomia da ciência em relação ao Deus Enviadas a Mersenne para que as levasse ao
onipotente. E motivou-se nesse sentido tam­ conhecimento dos doutos e recolhesse as
bém pelo fato de que Urbano VIII havia con­ suas objeções — ficaram famosas as obje-
denado a tese galileana como contrária à Es­ ções de Hobbes, de Gassendi, de Arnauld e
critura. Assim, de 1633 a 1637, fundindo do próprio Mersenne —, as Meditationes
os estudos de metafísica que iniciara e de­ de prima philosophia serão finalmente publi­
pois interrompera com suas pesquisas cien­ cadas, juntamente com as Respostas de Des­
tíficas, escreveu o famoso Discurso sobre o cartes em 1641, sob o título Meditationes
método, que introduzia três ensaios cientí­ de prima philosophia in qua Dei existentia
ficos nos quais compendiava os resultados et animae immortalitas demonstrantur (Me­
alcançados: a Dioptrique, o Météores e a ditações metafísicas onde se demonstra a
Géométrie. Diferentemente de Galileu, que existência de Deus e a imortalidade da al­
não havia elaborado nenhum tratado explí­ ma). Atacado pelo teólogo protestante Gis-
cito sobre o método, Descartes considerou bert Voét, replicou com a Epístola Renati
importante demonstrar o caráter objetivo da Des Cartes ad celeberrimum virum Gisber-
razão e indicar as regras em que devemos tum Voêtium, na qual procurou demonstrar
nos inspirar para alcançar tal objetividade. a pobreza e a inconsistência das concepções
Nascido em contexto polêmico e em defesa filosóficas e teológicas do adversário.
da nova ciência, o Discurso sobre o método Apesar das muitas polêmicas que seus
tornou-se a “magna carta” da nova filosofia. escritos de metafísica e ciência suscitavam,

STOCKHOi.M’

Duas vistas
de Estocolmo
em uma incisão
do século XVI;
em 1649
Descartes aceitou
o convite
da rainha Cristina
da Suécia
para ai
se transferir,
e deixou
definitivamente
a Holanda. .
286
Terceira parte - B a c o n e D e sca rte s

Descartes dedicou-se com empenho à ela­ obscuros de sua doutrina, particularmente


boração dos Principia philosophiae (Prin­ das relações entre alma e corpo, do proble­
cípios de filosofia), obra em quatro livros ma moral e do livre-arbítrio.
compostos de artigos breves, conforme o Na corte sueca, para festejar o fim da
modelo dos manuais escolásticos da épo­ Guerra dos Trinta Anos e a paz de Vestfá-
ca. Trata-se de uma exposição compilada lia, Descartes escreveu La naissance de la
e sistemática de sua filosofia e de sua físi­ paix (O nascimento da paz). Mas foi bem
ca, com particular destaque para os vín­ curto o tempo transcorrido na corte sueca,
culos entre filosofia e ciência. A obra foi pu­ porque a rainha Cristina, devido ao hábito
blicada em Amsterdam, sendo dedicada à de ter suas conversações às cinco horas da
princesa Isabel, filha de Frederico V do Pa- manhã, obrigava Descartes a levantar-se
latinato. muito cedo, apesar do clima rigoroso e da
Amargurado com as polêmicas com os não muito robusta constituição física do fi­
professores da Universidade de Leida, que lósofo. Assim, ao deixar a corte, em 2 de
chegaram a proibir o estudo de suas obras, fevereiro de 1650, o filósofo pegou uma pneu­
mas sem qualquer desejo de voltar para a monia que, depois de uma semana de sofri­
França, em virtude da situação caótica em mentos, o levou à morte. Transportados
que havia caído seu país, em 1649 Descar­ para a França em 1667, seus despojos re­
tes aceitou o convite da rainha Cristina da pousam na Igreja de Saint-Germain des Prés,
Suécia e, depois de entregar para impressão em Paris.
os manuscritos de seu último trabalho, Les Postumamente, foram publicados os
passions de l’âme (As paixões da alma), dei­ seguintes escritos de Descartes: o Compen-
xou definitivamente a Holanda, não mais dium musicae (1650), o Traité de l’hom-
hospitaleira e agora cheia de contrastes. Ape­ me (1664), Le Monde ou Traité de la
sar de suas graves preocupações, Descartes lumière (1664), as Lettres (1657-1667), as
continuou mantendo relação epistolar com Regulae ad directionem ingenii (1701) e a
a princesa Isabel, de grande importância Inquisitio veritatis per lumen naturale
para o esclarecimento de muitos pontos (1701).

I I . y \ e x p e r iê n c ia d a d e i^ o c a d a
d a c u ltu r a d a è.po<zcx

Necessidade • Em um tempo em que haviam se afirmado e se desenvolvi­


de novo método am com vigor novas perspectivas científicas e se abriam novos
como início horizontes filosóficos, Descartes percebe a falta de um método
de novo saber ordenador e seja também instrumento fundacional verdadeira­
1-3 mente eficaz. O novo método deve se apresentar como o inicio
de novo saber, e do fundamento deste saber depende a amplitu­
de e a solidez do edifício que é preciso construir em contraposição ao edifício
aristotélico, sobre o qual toda a tradição se apóia.

1 L Z n tic as à f-iloso-pa tes acena para o estado de profunda incer­


teza em que se encontrou ao término de seus
e. à ló g i c a t r a d ic i o n a i s estudos: “ Encontrei-me tão perdido entre
tantas dúvidas e erros que me parecia que,
Em um trecho autobiográfico, depois ao procurar me instruir, não alcançara ou­
de reconhecer ter sido “ aluno de uma das tro proveito que o de ter descoberto cada vez
mais célebres escolas da Europa” , Descar­ mais a minha ignorância.”
287
Capítulo décimo quinto - D e s c a r t e s : "o f u n d a d ot* d a filo so fia m o d e r n a ”

Vejamos, em pormenor, algumas ra­ mos com novos problemas, a razão disso
zões da sua insatisfação e perplexidade. No deriva da falta de um guia capaz de nos
que se refere à filosofia, repetindo uma frase acompanhar na solução dos novos proble­
de Cícero, escreve ele: “ Seria difícil imagi­ mas. Com efeito, falando da geometria e da
nar algo tão estranho e incrível que não álgebra, ele recorda que estas “ se referem a
tenha sido dito por algum filósofo” . E em­ matérias muito abstratas e aparentemente
bora a filosofia “ tenha sido cultivada pe­ de nenhuma utilidade” : a primeira, a geo­
los espíritos mais excelentes que já viveram” , metria, “ porque ligada à consideração das
continua Descartes no Discurso sobre o figuras” ; a segunda, a aritmética, porque
método, não conta ainda “ com coisa algu­ “confusa e obscura” a ponto de “ embara­
ma da qual não se discuta e que não seja çar o espírito” .
duvidosa” . No que se refere à lógica, que Daí seu propósito de dar vida a uma
ele reduz à silogística tradicional, pelo espécie de matemática universal, isto é, li­
menos mostra-se disposto a conceder-lhe vre dos números ou das figuras, para poder
valor didático-pedagógico; mas à lógica servir de modelo para todo saber.
dos dialéticos, para a qual era conduzida Descartes não pode adotar a matemá­
a silogística, nega qualquer força de fun­ tica tradicional como modelo do saber, por­
damentação e qualquer capacidade heu­ que ela não possui método unitário. Para
rística. teorizar esse modelo, ele crê necessário de­
Portanto, até no melhor do seu desem­ monstrar que as diferenças entre aritmética
penho, a lógica tradicional nada mais faz e geometria não são relevantes, porque
do que ajudar a expor a verdade, mas não a ambas se inspiram, ainda que implicitamen­
conquistá-la. te, no mesmo método.
Assim, se é severo o seu juízo sobre a E, com tal objetivo, traduz os pro­
filosofia tradicional, ainda mais drástico é blemas geométricos em problemas algébri­
o juízo sobre a lógica. E é por causa dessas cos, mostrando sua substancial homoge­
profundas insatisfações e de tais pontos de neidade.
vista que a filosofia aprendida no colégio Como é que isso lhe foi possível? Atra­
de La Flèche parece-lhe extremamente cheia vés daquilo que se chama geometria ana­
de lacunas. Em uma época em que se ha­ lítica, e com a qual Descartes tornou a
viam afirmado e se desenvolviam com vigor matemática mais límpida em seus princí­
novas perspectivas científicas e se abriam pios e em seus procedimentos, aplicando
novos horizontes filosóficos, Descartes per­ a álgebra à geometria, isto é, estudando
cebia a falta de um método que ordenasse o determinadas figuras com determinadas
pensamento e, ao mesmo tempo, fosse ins­ equações.
trumento heurístico e de fundamentação ver­ E este, no fundo, era o objetivo que
dadeiramente eficaz. ele se propunha, e é nesse contexto de crí­
tica e de recuperação das ciências matemá­
ticas que devemos ler o trecho no qual Des­
cartes, ainda no Discurso sobre o método,
tS e ífic a s afirma querer inspirar o método do novo
a o s a b e r m a+ em á+ ico saber na clareza e no rigor típicos dos pro­
cedimentos geométricos: “ Aquela longa
cadeia de raciocínios, todos simples e fá­
Além disso, mesmo admirando o rigor ceis, de que os geômetras têm o hábito de
do saber matemático, ele critica tanto a arit­ se servir para chegar às suas difíceis de­
mética como a geometria tradicionais, por­ monstrações, me havia possibilitado ima­
que elaboradas com procedimentos que, ginar que todas as coisas de que o homem
embora lineares, não se sustentavam em uma pode ter conhecimento derivam do mesmo
clara orientação metodológica. O fato de modo e que, desde que se abstenha de acei­
suas passagens serem rigorosas e coerentes tar como verdadeira uma coisa que não o é
não significa que a aritmética e a geometria e respeite sempre a ordem necessária para
foram elaboradas no contexto de um bom deduzir uma coisa da outra, não haverá
método, nunca teorizado. Se permanecemos nada de tão distante que não se possa al­
quase como que desarmados e induzidos a cançar, nem de tão oculto que se não possa
recomeçar do início quando nos defronta­ descobrir. ”
288
Terceira parte - B cu re m e P e s c a r e s

O p r o b le m a g e r a l busca da verdade, e um método universal e


fecundo.
d o j-M nclam enfo d o s a b e r
Não se trata, portanto, de lançar à dis­
cussão este ou aquele ramo do saber, e sim
o fundamento do próprio saber. Por isso,
Se toda a casa está desmoronando, isto mesmo admirando Gaíileu, Descartes o cri­
é, se caem por terra a velha metafísica e a tica, precisamente por não ter apresentado
velha ciência, então o novo método deve se ■ um método em condições de ir às raízes da
apresentar como o início de novo saber, em filosofia e da ciência. (E de 1619 sua desco­
condições de impedir que nos dispersemos berta da fórmula que hoje leva o nome de
em uma série desarticulada de observações Euler, v + f = s + 2, onde v, f, s estão, respec­
ou caiamos em formas novas e mais refina­ tivamente, para o número dos vértices, das
das de ceticismo. faces e dos ângulos de um poliedro con­
Esses, com efeito, são dois resultados vexo.)
conseqüentes ao ruir de antigas concepções E para o fundamento que Descartes
sob a pressão de novas aquisições científi­ chama a atenção, já que é do alicerce que
cas e de novas instâncias filosóficas. Se es­ dependem a amplitude e a solidez do edifí­
tava difundida a confiança no homem e no cio que é preciso construir para se contra­
seu poder racional, também estava bastan­ por ao edifício aristotélico, no qual se apóia
te difundida a incerteza sobre o caminho a toda a tradição. Descartes não separa a filo­
tomar para garantir uma coisa e superar a sofia da ciência.
outra. Não podia mais se sustentar a filoso­ O que urge evidenciar é o fundamen­
fia tradicional, muito estranha àquele con­ to que permita um novo tipo de conheci­
junto de novas teorizações e descobertas, mento da totalidade do real, pelo menos
tornadas possíveis também por instrumen­ em suas linhas essenciais. Necessita-se de
tos técnicos que, potencializando ou corri­ novos princípios, não importando que eles
gindo nossos sentidos, nos introduziam em sejam depois explorados mais em uma do
reinos até então inexplorados. Era urgente que em outra direção. Princípios que, des­
uma filosofia que justificasse a confiança locando os princípios aristotélicos, aos
comum na razão. Só era possível opor ao quais a cultura acadêmica ainda é ciumen­
ceticismo desagregador uma razão metafisi- tamente fiel, contribuam para a edificação
camente fundada, capaz de se sustentar na da nova casa.

III. A s d o m é to d o

• Descartes quer primeiramente oferecer regras certas e fáceis que, correta­


mente observadas, levarão ao conhecimento verdadeiro de tudo aquilo que se
pode conhecer. No Discurso sobre o método, estas regras são quatro:
1) a evidência racional, que se alcança mediante um ato in­
tuitivo que se autofundamenta;
As quatro 2) a análise, uma vez que para a intuição é necessária a sim­
normas plicidade, que se alcança mediante a decomposição do complexo
que constituem em partes elementares;
o método 3) a síntese, que deve partir de elementos absolutos ou n iò
cartesiano
1-6
dependentes de outros, e proceder em direção aos elementos
relativos ou dependentes, ciando lugar a uma cadeia de nexos
coerentes;
4) o controle, efetuado mediante a enumeração completa dos elementos
analisados e a revisão das operações sintéticas. Em suma, para proceder com reti­
dão em qualquer pesquisa, é preciso repetir o movimento de simplificação e rigo­
rosa concatenação, típico do procedimento geométrico.
289
Capitulo décimo quinto - D e s c a r t e s : “o jum jn í.lot' d a jilo s o jia m o d e r n a '

1 ( S o n c e ito s e n ú m e r o ') cl_,/ ^_____, A"-"" r)


d a s r e g e a s d o m é to d o
■ Evidência. É o princípio metódico “
fundamental, a primeira regra do ;
Como escreve nas Regulae ad directio- método cartesiano.
nem ingenii, Descartes queria apresentar > A evidência consiste na clareza e na
“ regras certas e fáceis que, sendo observa­ r distinção, as quais sio os sinais da
das exatamente por quem quer que seja, tor­ verdade das coisas, e deriva do ,
nem impossível tomar o falso por verdadei­ lumen naturale que existe em todo ~
ro e, sem qualquer esforço mental inútil, mas homem; mais precisamente, a evi- ;
ç dência é alcançada mediante um
aumentando sempre gradualmente a ciên­ ; ato intuitivo, que é "um conceito
cia, levem ao conhecimento verdadeiro de ■ não dúbio da mente pura e atenta ;
tudo o que se é capaz de conhecer” . que nasce apenas da luz da razão
Entretanto, se, na obra citada, ele ha­ [ e é mais certo que a própria de-
via chegado a enumerar vinte e uma regras l dução".
e interrompera a elaboração da obra para : Em tal sentido, a evidência se
evitar sua prolixidade, já no Discurso sobre autofundamenta e se autojustifica,
o método reduz essas regras a quatro. : porque sua garantia deposita-se não
A razão dessa simplificação é dada pelo \ em uma base argumentativa qual-
I quer, e sim unicamente na mútua
próprio Descartes: “Como grande número transparência entre razão e conteú-
de leis amiúde só serve para fornecer pre­ í do do ato intuitivo,
texto à ignorância e ao vício, razão pela qual f '
uma nação regula-se tanto melhor quanto
menos leis tem, desde que as observe de
modo rigoroso, então eu pensei que, ao in­
vés da multidão de leis da lógica, me basta­
riam as quatro seguintes, com a condição captação de “um conceito não dúbio da men­
de que se decidisse firme e constantemente te pura e atenta que nasce apenas da luz da
observá-las, sem qualquer exceção.” razão e é mais certo que a própria dedução” .
Trata-se, portanto, de ato que se auto­
fundamenta e se autojustifica, porque sua
garantia não repousa sobre uma base qual­
2 j A p e im e ir a r e g r a d o m é+odo quer de argumentação, mas somente sobre
a transparência mútua entre razão e con­
teúdo do ato intuitivo. Trata-se daquela idéia
clara e distinta que reflete “ unicamente a
A primeira regra, mas que também é a luz da razão” , não ainda conjugada com
última, enquanto é o ponto de chegada, além outras idéias, mas considerada em si mes­
de ser o ponto de partida, é a regra da evi­ ma, intuída e não argumentada. Trata-se da
dência, que ele assim enuncia: “ Não se deve idéia presente na mente e da mente aberta
acatar nunca como verdadeiro aquilo que para a idéia sem qualquer mediação.
não se reconhece ser tal pela evidência, ou O objetivo das outras três regras é che­
seja, evitar acuradamente a precipitação e a gar a essa transparência mútua.
prevenção, assim como nunca se deve abran­
ger entre nossos juízos aquilo que não se
apresente tão clara e distintamente à nossa
inteligência a ponto de excluir qualquer pos­ ,, y\ s e g u n d a r e g r a d o m é fo d o
sibilidade de dúvida.”
Mais que uma regra, trata-se de um
princípio normativo fundamental, exata­ A segunda regra é a de “ dividir cada
mente porque tudo deve convergir para a problema que se estuda em tantas partes me­
clareza e a distinção, nas quais, precisamen­ nores, quantas for possível e necessário para
te, se dá a evidência. Falar de idéias claras e melhor resolvê-lo” .
distintas e falar de idéias evidentes é a mes­ É a defesa do método analítico, único
ma coisa. que pode levar à evidência, porque, desarti­
Mas qual é o ato intelectual com o qual culando o complexo no simples, permite à
se alcança a evidência? É o ato intuitivo ou luz do intelecto dissipar as ambigüidades.
290
Terceira parte - B a c o n e D e sc a i*te s

Este é um momento preparatório es­ 5 yV. cju a e ta r e g e a d o m é to d o


sencial, já que, se a evidência é necessária
para a certeza e a intuição é necessária para
a evidência, já para a intuição é necessária a
simplicidade, que se alcança através da de­ Por fim, para impedir qualquer pre­
composição do conjunto “ em partes elemen­ cipitação, que é a mãe de todos os er­
tares até o limite do possível” . ros, é preciso verificar cada uma das pas­
Chega-se às grandes conquistas etapa sagens.
após etapa, parte após parte. Esse é o cami­ Por isso, Descartes conclui dizendo: “ A
nho que permite escapar às presunçosas ge­ última regra é a de fazer sempre enumera­
neralizações. E como toda dificuldade o é ções tão completas e revisões tão gerais a
porque o verdadeiro está misturado com o ponto de se ficar seguro de não ter omitido
falso, o procedimento analítico deveria per­ nada.”
mitir libertar o primeiro das escórias do se­ Portanto, enumeração e revisão: a pri­
gundo. meira verifica se a análise é completa; a se­
gunda verifica se a síntese é correta.

4 .zA t e r c e i r a r e g r a d o m é to d o
6 ; A s q u a fe o r e g r a s
c o m o m o d e lo d o s a b e r
A decomposição do conjunto em seus
elementos simples não basta, porque apre­
senta um conjunto desarticulado de ele­ São regras simples, que destacam a ne­
mentos, mas não o nexo de coesão que de­ cessidade de se ter plena consciência dos
les faz um todo complexo e real. Por isso, momentos em que se articula qualquer pes­
à análise deve-se seguir a síntese, o objeti­ quisa rigorosa. Elas constituem o modelo
vo da terceira regra, que Descartes, ainda do saber, precisamente porque a clareza e
no Discurso sobre o método, enuncia com a distinção garantem contra possíveis equí­
as seguintes palavras: “ A terceira regra é a vocos ou generalizações apressadas. Com
de conduzir com ordem meus pensamen­ tal objetivo, diante de problemas comple­
tos, começando pelos objetos mais simples xos como de fenômenos confusos, é preci­
e mais fáceis de conhecer, para elevar-se, so chegar aos elementos simples, que não
pouco a pouco, como por degraus, até o sejam mais decomponíveis, para que pos­
conhecimento dos mais complexos, supon­ sam ser totalmente invadidos pela luz da
do uma ordem também entre aqueles nos razão.
quais uns não precedem naturalmente aos Em suma, para proceder com correção
outros.” é preciso repetir, a propósito de qualquer
Assim, é necessário recompor os ele­ pesquisa, aquele movimento de simplifica­
mentos em que foi decomposta uma rea­ ção e rigorosa concatenação constituído
lidade complexa. Trata-se de uma síntese que pelas operações típicas do procedimento
deve partir de elementos absolutos (ab-so- geométrico.
lutus) ou não dependentes de outros, e di­ Entretanto, o que comporta a adoção
recionar-se para os elementos relativos ou de tal modelo?
dependentes, dando lugar assim a um enca- Pois bem, antes de mais nada e de
deamento que ilumina os nexos do conjunto. forma geral, comporta a rejeição de todas
Trata-se de recompor a ordem ou criar aquelas noções aproxim ativas, imper­
uma cadeia de raciocínios que se desenvol­ feitas, fantásticas ou apenas verossímeis,
vam do simples ao composto, o que não que escapam à operação simplificadora
pode deixar de ter uma correspondência na considerada indispensável. O “ sim ples”
realidade. Quando essa ordem não existe, é de Descartes não é o universal da filoso­
preciso supô-la como a hipótese mais con­ fia tradicional, assim como a “ intuição”
veniente para interpretar e expressar a rea­ não é a abstração. O universal e a abs­
lidade efetiva. Se a evidência é necessária tração, dois momentos fundamentais da
para se ter a intuição, o processo do simples filosofia aristotélico-escolástica, são su­
ao complexo é necessário para o ato dedu­ plantados pelas naturezas simples e pela
tivo. intuição. jT]
291
C ã p ítu lo d é c im o q u in to - D e s c a s e s : "o f u n d a d o r d a -filosofia m o d e m a H

IV . A d u v id a m e tó d ic a
e a c e r t e z a fu n d a m e n ta l:
// ., //
c o g ito ,, e r g o s u m

• Estabelecidas as regras metódicas, Descartes passa a aplicá-las aos princípios


sobre os quais o saber tradicional se fundamentou, e como condição da aplicação
exige não aceitar como verdadeira nenhuma asserção que esteja poluída pela
dúvida. Ora, neste sentido não há setor do saber que se sustente, porque nada
resiste à força corrosiva da dúvida, exceto a proposição "penso,
logo existo", que é uma verdade imediata, intuição pura, graças A dúvida deve
à qual percebo minha existência como ser pensante, e esta exis­ levar à certeza
tência é uma res cogitans, uma substância pensante. queédada
A aplicação das regras do método leva assim à descoberta pela verdade
de uma verdade que, retroagindo, confirma a validez das mes­ "cogito
mas regras para qualquer saber. O banco de prova do novo sa­ erqo sum"
ber, filosófico e científico é, portanto, o sujeito humano, a cons­ ->§ 1-6
ciência racional, e em todos os ramos do conhecimento o homem
deve proceder na cadeia das deduções a partir de verdades claras e distintas ou de
princípios auto-evidentes. A filosofia não é mais, portanto, a ciência do ser, e sim
a doutrina do conhecimento, gnosiologia. Esta é a reviravolta que Descartes im­
prime na filosofia.

1 y\ d ú v id a nenhuma certeza e a nenhuma verdade que


tenham as características da clareza e da dis­
com o p assag & m o b r ig a t ó r ia ,
tinção, então será preciso rejeitar semelhante
m a s p r o v is ó r ia , saber e admitir a sua esterilidade. Se, ao
p a ra ck e g a r à ve rd a d e contrário, a aplicação de tal regra nos leva
a uma verdade indubitável, então deve-se
assumi-la como o início da longa cadeia de
Estabelecidas as regras do método, é raciocínios ou como fundamento do saber.
preciso justificá-las, ou melhor, explicar sua A condição que se precisa respeitar
universalidade e fecundidade. nessa operação é que não é lícito aceitar
É verdade que a matemática sempre se como verdadeira a afirmação que esteja
ateve a essas regras. Mas quem nos autoriza maculada pela dúvida ou por qualquer pos­
a estendê-las para fora desse âmbito, delas sível perplexidade. E, para chegar a isso,
fazendo um modelo de saber universal? Qual basta examinar os princípios sobre os quais
é seu fundamento? Existe uma verdade não se fundamentou o saber tradicional. Cain­
matemática que reflita em si as caracte­ do os princípios, as conseqüências não po­
rísticas da evidência e da distinção e que, derão mais se manter.
não sujeita à dúvida de modo algum, possa a) Em primeiro lugar, observamos que
justificar tais regras e ser adotada como fon­ boa parte do saber tradicional pretende ter
te de todas as outras possíveis verdades? base na experiência sensível. Entretanto,
Para responder a essa série de pergun­ como é possível considerar certo e indubi­
tas, Descartes aplica as suas regras ao saber tável um saber que tem sua origem nos sen­
tradicional, para ver se ele contém alguma tidos, se é verdade que estes por vezes se
verdade de tal forma clara e distinta que se revelam enganadores?
subtraia a qualquer razão de dúvida. Se o b) Ademais, se boa parte do saber tra­
resultado for negativo, no sentido de que, dicional se baseia nos sentidos, parte não
com essas regras, não é possível chegar a irrelevante do saber se funda sobre a razão
292
Terceira parte - B QCOH e De scar+es

e sobre seu poder discursivo. Ora, também em dúvida sem nada oferecer em troca. E, em
esse princípio não parece imune à obscuri­ Descartes, é evidente o anseio pela verdade.
dade e incerteza. A negação aqui remete à afirmação, a
c) Por fim, há o saber matemático, que
dúvida leva à certeza.
parece indubitável, porque válido em todas
as circunstâncias. O fato de 2 + 2 = 4 é ver­
dadeiro em qualquer circunstância e em
qualquer condição. E, no entanto, quem me
2 .zA b so lu te z v e r it a t iv a
impede de pensar que exista “ um gênio d a p r o p o s iç ã o
maligno, astuto e enganador” , que, brincan­ "ew p e n s o , lo g o e x is t o ”
do comigo, me faz considerar evidentes coi­
sas que não o são? E aqui a dúvida torna-se
hiperbólica, no sentido de que se estende até Como relata Descartes no Discurso so­
a setores que se presumiam fora de qual­ bre o método, depois de ter posto tudo em
quer suspeita. O saber matemático não po­ dúvida, “ somente depois tive de constatar
dería ser uma construção grandiosa, baseada que, embora eu quisesse pensar que tudo era
em equívoco ou em colossal mistificação? falso, era preciso necessariamente que eu,
Portanto, não há setor do saber que se que assim pensava, fosse alguma coisa. E
mantenha. A casa desmorona porque seus observando que essa verdade — “ penso,
alicerces estão minados. Nada resiste à for­ logo sou” — era tão firme e sólida que ne­
ça corrosiva da dúvida. nhuma das mais extravagantes hipóteses dos
E evidente que não nos encontramos céticos seria capaz de abalá-la, julguei que
aqui diante da dúvida dos céticos. Neste podia aceitá-la sem reservas como o princí­
caso, a dúvida quer levar à verdade. Por isso pio primeiro da filosofia que procurava” .
é chamada dúvida metódica, enquanto é Esta certeza não pode ser minada de
passagem obrigatória, ainda que provisória, nenhum modo pelo gênio maligno, porque,
para chegar à verdade. ainda que exista um gênio maligno que me
Descartes quer pôr em crise o dog- engana, eu, em todo caso, devo existir para
matismo dos filósofos tradicionais, ao mes­ ser enganado.
mo tempo que também quer combater a ati­ Portanto, a proposição “eu penso, logo
tude cética, que se comprazia em pôr tudo existo” é absolutamente verdadeira, porque
até a dúvida, mesmo a mais extremada e
radicalizada, a confirma.
Mas o que entende Descartes por “pen­
samento” ? Afirma ele nas Respostas: “ Com
■ "Cogito, ergo sum". É o princí­ o termo ‘pensamento’ eu abranjo tudo aqui­
pio teórico primeiro da filosofia car- lo que existe em nós de tão factual que so­
; tesiana, originado da dúvida radical: mos imediatamente conscientes dele, como,
í "Do próprio fato de duvidar das ou­ por exemplo, todas as operações da vonta­
tras coisas", diz Descartes, "segue-se de, do intelecto, da imaginação e dos senti­
do modo mais evidente e certo que dos são ‘pensamentos’. E acrescentei ‘imedi­
eu existo", porque "se vê claramente atamente’ para excluir tudo aquilo que delas
que para pensar é preciso existir". deriva; assim, por exemplo, um movimento
A proposição "fu sou, eu existo" é voluntário tem como seu ponto inicial o pen­
uma verdade sem nenhuma media­
ção; embora seja formulada como samento, mas ele próprio não é pensamento.”
um silogismo qualquer, a proposi­
ção “penso, logo existo" não é um
raciocínio, mas intuição pura, ato
intuitivo graças ao qual percebo mi­ 3 yA p r o p o s i ç ã o *eu p e n s o ,
nha existência como ser pensante. lo g o e x is t o ”
Esta existência é uma res cogitans,
sem nenhuma ruptura entre pensa­ n ã o é um r a c io c í n i o d e d u t iv o ,
mento e ser: a substância pensante m a s u m a in t u iç ã o
é o pensamento em ato, e o pensa­
mento em ato é uma realidade pen­
sante. Estamos, portanto, diante de uma ver­
-"7
dade sem qualquer mediação. A transparên­
cia do eu a si mesmo e, portanto, o pensa-
293
Capitulo décimo quinto - D e s c a s e s ; "o juiu l õ r l o i ' d a |iloso|i<\ nu>dt‘m a"

mento em ato, escapa a qualquer dúvida, ç)


indicando por que a clareza é a regra fun­
damental do conhecimento e por que a in­ ■ "Res cogitans" e "res extensa".
tuição é seu ato fundamental. Com efeito, Para Descartes existem apenas dois
nesse caso a existência ou o meu ser só é tipos de substâncias, claramente dis­
admitido enquanto se torna presente ao meu tintas e irredutíveis uma à outra: a
substância pensante (res cogitans) e
eu, sem qualquer passagem argumentativa. a substância extensa (res extensa).
Efetivamente, apesar de ser formulada A res cogitans é a existência espiritual
como qualquer silogismo, “penso, logo exis­ do homem sem nenhuma ruptura
to” , tal proposição não é um raciocínio, mas entre pensar e ser, é a alma humana
uma intuição pura. como realidade pensante que é pen­
Não se trata da abreviação de uma ar­ samento em ato, e como pensamen­
gumentação como a seguinte: “Tudo aquilo to em ato que é realidade pensante.
que pensa existe; eu penso, logo, existo.” A res extensa é o mundo material
(compreendendo obviamente o cor­
Trata-se simplesmente de um ato intuitivo po humano), do qual, justamente, se
graças ao qual percebo minha existência pode predicar como essencial apenas
enquanto é pensante. a propriedade da extensão.
Com efeito, procurando definir a na­
tureza de sua própria existência, Descartes
afirma que ela é uma res cogitans, uma rea­
lidade pensante, sem qualquer corte entre
pensamento e ser. A substância pensante é o
pensamento em ato, e o pensamento em ato dade, como no caso da filosofia tradicio­
é uma realidade pensante. nal? Não. Tais regras se fundamentam na
Assim, Descartes chegou a um ponto certeza adquirida de que o nosso “ eu” ou a
firme, que nada pode pôr em discussão. Ele consciência de si mesmo como realidade
sabe que o homem é uma realidade pensante pensante se apresenta com as característi­
e está bem consciente do fato fundamental cas da clareza e da distinção.
representado pela lógica da clareza e da dis­ A partir daí, a atividade cognoscitiva,
tinção. Desse modo, ele conquistou uma mais do que se preocupar em fundamentar
certeza inabalável, primeira e irrenunciável, suas conquistas em sentido metafísico, deve
porque relativa à própria existência, que, procurar a clareza e a distinção, que são os
enquanto pensante, revela-se clara e distin­ traços típicos da primeira verdade que se
ta. Assim, a aplicação das regras do método impôs à nossa razão e que devem ser a mar­
levou à descoberta de uma verdade que, ca de qualquer outra verdade. Como a nos­
retroagindo, confirma a validade daquelas sa existência enquanto res cogitans foi acei­
regras que se encontram fundamentadas e, ta como indubitável com base na clareza e
portanto, assumidas como norma de qual­ na distinção e não com base em outros fun­
quer saber. damentos, então toda outra verdade só po­
derá ser acatada se exibir os traços da cla­
reza e da distinção. E, para alcançá-los, é
preciso seguir o itinerário da análise, da sín­
4 O e ix o d a filo s o fia tese e da verificação, sabendo-se que uma
n ã o é m a is a c i ê n c i a d o se r, afirmação com tais características não esta­
rá mais sujeita à dúvida.
m a s a d o u t r in a
Desse modo, a filosofia não é mais a
d o c o n lv e c im e n to ciência do ser, mas sim a doutrina do co­
nhecimento. Assim, antes de mais nada, a
filosofia se torna gnosiologia.
Aquilo que deve ser destacado é que, É essa a reviravolta que Descartes im­
como regras do método de pesquisa, a clareza prime à filosofia, que passa a se orientar no
e a distinção já estão bem fundamentadas. sentido de encontrar ou fazer emergir, a pro­
Mas fundamentadas em quê? pósito de qualquer proposição, os dados da
Talvez no ser, finito ou infinito? Ou nos clareza e da distinção, que, alcançados, tor­
princípios lógicos gerais, que são também nam desnecessários outros suportes ou ou­
princípios ontológicos, como o princípio de tras garantias. Assim como a certeza de mi­
não-contradição ou o princípio de identi- nha existência enquanto res cogitans só
294
Terceira parte - B a con f D e s c a s e s

necessita da clareza e da distinção, da mes­


ma forma qualquer outra verdade não terá
necessidade de outras garantias fora da cla­
reza e da distinção, imediata (intuição) ou
derivada (dedução).

5 O ce n tro d o novo sa b er1


é o s u je ifo k u m a n o

O banco de provas do novo saber, filo­


sófico e científico, portanto, é o sujeito hu­
mano, a consciência racional.
Qualquer tipo de pesquisa deverá se
preocupar somente em perseguir o grau
máximo de clareza e distinção, não se preo­
cupando com outras justificações quando
alcançá-lo. O homem é feito assim, só de­
vendo admitir verdades que reflitam tais
exigências.
Estamos diante da humanização radi­ X.s .///w/.í j i . n i ; ' J ' - n . h r . ! O lu„
cal do conhecimento, reconduzido à sua fon­ ,/, f,,j : /// rcfüd >;! 11
te primigênia. Em todos os ramos do conhe­ / v>:\í)7rs' f.Y, WHI! .i -d r c r i i f i t r a ti< > r c r r h r a
cimento, na cadeia das deduções, o homem C i'<)lll< 1" a i > <■ r i h u e n i i is 'Di t ns
deve proceder de verdades claras e distintas j u r a í \ u n , n ;j.>nu I! 7UU n U 1■
C 11, , c l l l m u I l I n S (i..i ,’ i h h j u n h t d <> ( d I t n ".
ou de princípios auto-evidentes.
Quando esses princípios não são facil­
mente identificáveis, é preciso hipotetizá-los,
seja para ordenar a mente humana, seja para apresentam somente um setor do saber, que
fazer emergir a ordem da realidade — con­ sempre se inspirou em um método que, ao
fiança na racionalidade do real —, às vezes contrário, tem dimensão universal. De agora
coberta por elementos secundários ou pela em diante, qualquer saber deverá se inspirar
sobreposição de elementos subjetivos, acri- nesse método, porque não se trata de método
ticamente projetados fora de nós. fundado pela matemática, mas que funda a
matemática, como toda outra ciência.
Aquilo a que esse método conduz e no
qual se fundamenta é a “ razão humana” ou
6 A v-eTcx r a z ã o h u m a n a aquela reta razão (bona mens) que pertence
a todos os homens e que, como diz Descar­
tes no Discurso sobre o método, “é a coisa
Descartes, portanto, aplicando as re­ mais bem distribuída no mundo” .
gras do método, defronta-se com a primei­ O que é tal reta razão? “A faculdade de
ra certeza fundamental, a do cogito. Esta, julgar bem e distinguir o verdadeiro do fal­
porém, não é apenas uma das muitas verda­ so é propriamente aquilo que se chama bom
des que se alcança através daquelas regras, senso ou razão, [e que] é naturalmente igual
mas sim a verdade que, uma vez alcançada, em todos os homens.”
fundamenta tais regras, porque revela a na­ E a unidade dos homens é representa­
tureza da consciência humana que, como res da pela razão bem guiada e desenvolvida.
cogitans, é transparência de si para si mes­ Descartes já explicita isso no ensaio ju­
ma. Qualquer outra verdade só será acolhi­ venil Regulae ad directionem ingenii, onde
da à medida que se adequar ou aproximar escreve: “Todas as diversas ciências nada mais
de tal evidência. são do que a sabedoria humana, que per­
Tendo-se inspirado inicialmente na cla­ manece sempre una e idêntica, por mais que
reza e na evidência da matemática, agora Des­ se aplique a diferentes objetos, não receben­
cartes destaca que as ciências matemáticas do destes maior distinção do que possa re­
295
Capítulo décimo quinto - D e s c a r t e s ; “o jim d a d o i* d a filo so fia m o d t

ceber a luz do sol da diversidade das coisas Se a razão é uma res cogitans, que
que ilumina.” Mais do que sobre as coisas emerge através da dúvida universal, a pon­
iluminadas — cada uma das ciências — é to de nenhum gênio maligno poder sitiá-
preciso pôr o acento sobre o sol, a razão, que la e nenhum engano dos sentidos obscu-
deve emergir e impor sua lógica e fazer res­ recê-la, então o saber deve basear-se nela e
peitar suas exigências. A unidade das ciên­ repetir sua clareza e distinção, que são os
cias remete à unidade da razão. E a unidade únicos postulados irrenunciáveis do novo
da razão remete à unidade do método. saber. EHB3 T]

V . ;A e x is tê n c ia e o p a p e l d e Id e u s

• O Eu, como ser pensante, revela-se o lugar de uma multiplicidade de idéias


(atos mentais dos quais se tem percepção imediata), que a filosofia deve rigorosa­
mente examinar. Para Descartes há particularmente três classes de idéias:
1 ) as idéias inatas, que encontro em mim, nascidas junto com
A e x is tê n c ia minha consciência;
d e trê s cla sses 2) as idéias adventícias, que provêm a mim de fora e me re­
d e id é ia s metem a coisas totalmente diferentes de mim;
e a id é ia in a ta B) as idéias factícias, construídas por mim mesmo.
de Deus Ora, entre as muitas idéias de que a consciência é depositá­
- > § 1-5
ria, há a idéia inata de Deus, isto é, a idéia de uma substância
infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, e da qual
eu mesmo e todas as outras coisas existentes fomos criados e produzidos. A idéia
de Deus é subjetiva e objetiva ao mesmo tempo, e atesta ser inata em nós porque
produzida pelo próprio Deus.
Desse modo, o problema da fundamentação do método de pesquisa se en­
contra definitivamente resolvido, porque a evidência proposta de modo hipotéti­
co é confirmada pelo cogito, e este se torna por sua vez reforçado pela presença
de Deus que garante sua objetividade. Deus é garante também de todas as verda­
des claras e distintas, "eternas", que devem constituir a ossatura do novo saber;
mas estas verdades, criadas livremente por Deus, são contingentes, e são chama­
das "eternas" apenas porque Deus é imutável; elas não participam da essência de
Deus, e por isso ninguém, mesmo conhecendo-as, pode afirmar conhecer os desíg­
nios imperscrutáveis de Deus.

1 O p ro b le m a d a r e la ç ã o dadeiramente para o mundo e são adequa­


das para fazer-me conhecer o mundo? E o
eia+ee n o s s a s id é ia s , mundo estará aberto a essas regras? Minhas
q u e s ã o fo e m a s m en tais, faculdades cognoscitivas são adequadas pa­
e a e e a lid a d e o b jetiv a ra fazer-me conhecer efetivamente o que não
é identificável com a minha consciência?
Trata-se de perguntas que postulam
A primeira certeza fundamental alcan­ maior fundamentação da atividade cognos-
çada pela aplicação das regras do método, citiva do homem.
portanto, é a consciência de si mesmos como Como ser pensante, o “ eu” revela-se o
seres pensantes. lugar de multiplicidade de idéias, que a filo­
A reflexão de Descartes concentra-se sofia deve considerar com rigor.
agora no cogito e no seu conteúdo, acossa­ Se o cogito é a primeira verdade auto-
da por algumas perguntas fundamentais: evidente, que outras idéias se apresentam
será que as regras do método abrem-se ver­ com o caráter da auto-evidência do cogito?
296
Terceira parte - B a c o n e D escartes

Partindo dele e com idéias que, como o co­ certos da objetividade das faculdades sensí­
gito, são claras e distintas, é possível recons­ veis e imaginativas através das quais as idéias
truir o edifíco do saber? factícias chegam até nós, abrindo-nos para
E mais: dado que o fundamento do o mundo? Aquilo de que estou certo, até na
saber está na consciência, como será possí­ dúvida universal, é de minha existência em
vel sair dela e reafirmar o mundo externo? sua atividade cogitativa. Mas quem me ga­
Em suma, as idéias que Descartes não rante que ela permanece válida mesmo quan­
considera no sentido tradicional de essên­ do seus resultados passam da percepção em
cias ou arquétipos do real, mas como pre­ ato para o reino da memória? Estará a me­
senças reais na consciência, têm caráter ob­ mória em grau de conservá-los intactos, com
jetivo, no sentido de representarem um a clareza e a distinção originais?
objeto, uma realidade? Para enfrentar essa série de dificulda­
E, por fim, se elas são indubitáveis des e para fundamentar definitivamente o
como formas mentais, porque tenho a ime­ caráter objetivo de nossas faculdades cog-
diata percepção delas, já como formas re­ noscitivas, Descartes propõe e resolve o pro­
presentativas de realidades diversas de mim blema da existência e do papel de Deus.
serão elas verdadeiras, ou seja, representa­
rão uma realidade objetiva ou seriam puras
funções mentais?
3 7A id é ia in a t a d e X9e u s
e s u a o b je t iv id a d e

2 " D d é i a s in a t a s " ,
Com tal objetivo, entre as muitas idéias
“i d é ia s a d v e r \ t íc ia s “ de que a consciência é depositária, Descar­
e “id é ia s f a c t í c i a s ” tes depara com a idéia inata de Deus que,
como lemos nas Meditações metafísicas, é a
idéia de “ uma substância infinita, eterna,
Antes de responder a essas questões, imutável, independente e onisciente, da qual
deve-se recordar que Descartes divide as idéias eu próprio e todas as outras coisas que exis­
em: tem (se é verdade que há coisas existentes)
1 ) idéias inatas, isto é, as que encontro fomos criados e produzidos” . E, a propósi­
em mim mesmo, nascidas junto com a mi­ to de tal idéia, ele se pergunta se é pura­
nha consciência; mente subjetiva ou se não deve ser conside­
2 ) idéias adventícias, isto é, as que vêm rada ao mesmo tempo subjetiva e objetiva.
de fora de mim e me remetem a coisas intei­ Trata-se do problema da existência de Deus,
ramente diferentes de mim; não mais proposto a partir do mundo ex­
3) idéias factícias ou construídas por terno ao homem, mas a partir do próprio
mim mesmo. homem, ou melhor, de sua consciência.
Descartando estas últimas como ilusó­ Pois bem, falando dessa idéia com tais
rias, porque quiméricas ou construídas ar­ características, diz Descartes: “ E uma coisa
bitrariamente por mim mesmo, o problema manifesta, por luz natural, que deve haver
se restringe então à objetividade das idéias pelo menos tanta realidade na causa eficien­
inatas e das adventícias. Embora as três clas­ te e total quanto no seu efeito: porque, de
ses de idéias não sejam diferentes do ponto onde o efeito poderia extrair a sua realida­
de vista de sua realidade subjetiva — todas de senão de sua própria causa, e como essa
as três são atos mentais dos quais tenho per­ causa poderia transmiti-la ao efeito se não
cepção imediata —, do ponto de vista de seu a tivesse em si mesma?” Ora, proposto tal
conteúdo elas são profundamente diversas. princípio, fica evidente que o autor dessa
Com efeito, se as idéias factícias ou ar­ idéia que está em mim não sou eu, imperfei­
bitrárias não constituem nenhum problema, to e finito, nem qualquer outro ser, da mes­
serão verdadeiramente objetivas as idéias ad­ ma forma limitado. Tal idéia, que está em
ventícias, que me remetem a um mundo ex­ mim, mas não é de mim, só pode ter por
terno? Quem garante tal objetividade? causa adequada um ser infinito, isto é, Deus.
Poderiamos responder: a clareza e a A própria idéia inata de Deus pode pro­
distinção. E se as faculdades sensíveis fos­ piciar uma segunda reflexão, que compro­
sem enganadoras? Estamos verdadeiramente va o resultado da primeira argumentação.
297
Capítulo décimo quinto - D escartes: 'o fundado** da filosofia moderna

Se a idéia de um ser infinito que está em


mim fosse minha, não me teria eu feito per­ J
feito e ilimitado e não, ao contrário, um ser
imperfeito, como resulta da dúvida e da as­ ■ Id é ia . D e s c a rte s d á o n o m e d e
piração nunca satisfeita à felicidade e à "id é ia s" p ro p riam e n te à s im age n s d a s
perfeição? Com efeito, quem nega o Deus co isas, e as d istin g u e d a s " a f e iç õ e s "
criador por esse próprio fato está se consi­ (q u e se fu n d a m e n ta m so b re n ec essi­
derando um autoproduto. Ora, nesse caso, d a d e s, d e se jo s, te m o re s, e sp e ra n ç a s
tendo a idéia do ser perfeito, então nos te- etc.) e d o s " ju íz o s " (q u e p õ e m dis-
ríamos dado todas as perfeições que encon­ cu rsiv am e n te em c o n fro n to d u a s ou
m ais id é ias e n tre si e a p artir d a q u i
tramos na idéia de Deus. E isso é desmenti­
m ov em p a ra a firm a r o u n eg ar).
do pela realidade. A lém d isso, e le d istin g u e a s id é ias em
Por fim, detendo-se nas implicações des­ trê s c a te g o ria s:
sa idéia, Descartes formula um terceiro ar­ 1) idéias adventícias, isto é, e stra n h a s
gumento, conhecido como prova ontológica. e vin d as d e fo ra , "c o m o a id éia q u e
A existência é parte integrante da essência, v u lg a rm e n te se te m d o s o l";
de modo que não é possível ter a idéia (a es­ 2) idéias factícias, isto é, id é ia s f e i­
sência) de Deus sem simultaneamente admi­ t a s e in v e n ta d a s p e lo h o m e m , " e n ­
tir sua existência, da mesma forma que não é tr e a s q u a is se p o d e p ô r a q u e o s a s ­
possível conceber um triângulo sem pensá-lo tr ô n o m o s f a z e m d o so l co m s e u s
ra c io c ín io s ";
com a soma dos ângulos internos igual a dois 3) idéias inatas, q u e n ascem com o
retos, ou como não é concebível uma mon­ h o m e m , in e re n te s à su a con sciên cia,
tanha sem vale. Só que, enquanto do fato de " c o m o a id é ia d e D eus, d a m en te, d o
não poder “conceber uma montanha sem vale c o rp o , d o tr iâ n g u lo e, em g e ra l, as
não deriva que existam no mundo monta­ id é ias q u e re p re se n ta m a s e ssên c ias
nhas e vales, mas somente que a montanha e v e rd a d e iras, im u táv e is e e te r n a s ". A
o vale, existindo ou não existindo, não po­ id éia in a ta d e D eus, em particular, é
dem de modo algum ser separados um do a m ais e v id e n te e co n té m em si m ais
outro, (...) já do simples fato de que não r e a lid a d e o b je tiv a q u e q u a lq u e r o u ­
tra : e la g a r a n te a o b je tiv id a d e d e t o ­
posso conceber Deus sem existência deriva d a s a s o u tra s id é ia s in a ta s e d a s a d ­
que a existência é inseparável dele e, portan­ ven tícias.
to, que ele existe verdadeiramente” . Esta é a
prova ontológica de Anselmo, que Descartes
retoma e a torna sua.

4 t<D e u s c o m o q a e a n f ia Ora, se isso é verdadeiro e se é verdade


1 u que Deus, porque sumamente perfeito, é tam­
d a f u n ç ã o v e e ifa t iv a
bém sumamente veraz e imutável, não deve­
d e n o s s a s ■ facu ld ad es mos então ter imensa confiança em nós e em
nossas faculdades, que são todas obras suas?
Assim, a dependência do homem em
relação a Deus não leva Descartes às con­
Mas por que Descartes se detém com clusões a que haviam chegado a metafísica
tanta insistência no problema da existência e a teologia tradicional, isto é, ao primado
de Deus, a não ser para evidenciar a riqueza de Deus e ao valor normativo de seus pre­
de nossa consciência? Com efeito, nas Medi­ ceitos e de tudo o que é revelado na Escritu­
tações metafísicas, ele escreve que a idéia de ra. A idéia de Deus em nós, como a marca
Deus é “como a marca do artesão impressa do artesão na sua obra, é utilizada para de­
sobre sua obra, não sendo sequer necessário fender a positividade da realização humana
que essa marca seja algo diferente da pró­ e, do ponto de vista do poder cognoscitivo,
pria obra” . Assim, analisando a consciência, sua natural capacidade de conhecer o ver­
Descartes se defronta com uma idéia que está dadeiro; e, no que se refere ao mundo, a
em nós, mas não é nossa, a qual, todavia, imutabilidade de suas leis.
nos permeia profundamente, como o selo do E aí que encontra derrota radical a idéia
artífice sobre seu manufaturado. do gênio maligno ou de uma força corrosi-
298
Terceira parte - B a c o n e D esc a rtes

va que pode enganar ou burlar o homem. E dúvidas sobre o que lhe é sugerido por suas
isso porque, sob a força protetora de Deus, faculdades cognoscitivas, já que não reco­
as faculdades cognoscitivas não podem nos nhece que tais faculdades sejam criadas por
enganar, já que, nesse caso, o próprio Deus, Deus, suma bondade e verdade.
que é o seu criador, seria responsável por
tal engano. E Deus, sendo sumamente per­
feito, não pode ser mentiroso.
Desse modo, aquele Deus em cujo 5 ;A s v e õ d a d e s e te rn a s
nome se tentava bloquear a expansão do
novo pensamento científico aparece aqui
como aquele que, garantindo a capacidade Desse modo, o problema da fundamen­
cognoscitiva de nossas faculdades, estimula tação do método de pesquisa encontra-se
tal empresa. conclusivamente resolvido, porque aquela
Assim, a dúvida é derrotada e o crité­ evidência proposta por via hipotética é
rio da evidência é conclusivamente justifi­ comprovada pela primeira certeza relativa
cado. O Deus criador impede que se consi­ ao nosso cogito, e este, com as faculdades
dere que a criatura seja portadora de um cognoscitivas, é ainda mais reforçado pela
princípio dissolutivo dentro de si, ou que presença de Deus, que garante o seu caráter
suas faculdades não estejam em condições objetivo.
de cumprir suas funções. Somente para o Além do poder cognoscitivo das facul­
ateu a dúvida não é debelada conclusiva­ dades, Deus garante também todas aquelas
mente, porque pode continuar alimentando verdades, claras e distintas, que o homem
estiver em condições de alcançar.
Expressando a essência dos vários se­
tores do real, são as verdades eternas que
compõem a ossatura do novo saber.
MEDITATIONS Tais verdades são eternas não porque
sejam vinculadas ao próprio Deus ou in­
M ETAPH YSI QVES dependentes dele. Claro, Deus é criador ab­
soluto e, portanto, responsável também pe­
DE R E NE DES CA RT ES las verdades ou idéias sob cuja luz criou o
T O V C H A N T LA P R E M I E R E P HI L O S O l’ H I f , mundo.
d»m Itfquella 1'exiftcncc de D.cu,& U diRindkion rctllccitic
! j:,'.- iekcotp? iie I liommc, font demonítrée*. Mas então por que são chamadas “eter­
Tvdttun <&i ÍMÍn ic tAmmr fur M ' tt D D L,N.S. nas” , essas verdades criadas livremente por
1 1 t-i Obje&ioiu fines comre ca Mcdm nom par diunfei
Deus? Porque Deus é imutável. Assim, aque­
perfonnntree-dodlcx,aocc le« ríponfeadc I Autcur. le voluntarismo de ascendência escotista,
TrUmtn fm M 'C,JL.R. que levava os metafísicos a falarem de um
contingentismo radical do mundo e, portan­
to, a considerar impossível um saber uni­
versal, é usado por Descartes para garantir
a imutabilidade de certas verdades e, por­
tanto, defender o desenvolvimento da ciên­
cia e garantir sua objetividade.
Ademais, como essas verdades contin­
A PARIS, gentes e, ao mesmo tempo, eternas não cons­
Cl.cz h Vc.iue I E A N C A M V S A í . tituem participação na essência de Deus,
ET ninguém pode considerar que, com o conhe­
r i E R R E LE P E T I T , I m p r t m c ü l <»í>ím n t v -*u
rwe S.lacqucJ.à Ia Toylon d )< cimento dessas verdades, conhece os impers-
T qTTxr~x I V I l. crutáveis desígnios de Deus. O homem co­
A 1 'IC I » f •• ■ >
nhece e isso já basta, sem qualquer pretensão
de emulação com Deus.
E, com isso, defende-se ao mesmo tem­
brontispício das Meditações metafísicas;
nelas está presente o conceito
po o sentido da finitude da razão e o senti­
da idéia inata de Deus como do de sua objetividade. A razão do homem
de uma “substância infinita, eterna, imutável": é especificamente humana, não divina, mas
o problema da existência de Deus é garantida em sua atividade por aquele
parte do próprio homem, de sua consciência. Deus que a criou.
299
Capítulo décimo quinto D e s c a ^ + e s : "o jundadov* d a filo so fia m o d e rn a ”

6 O e e ro não depende de D eus, do não a concebo com suficiente clareza e


distinção, é evidente que estou fazendo óti­
m as d o Kom em
mo uso do juízo e não estou sendo engana­
do; mas, se me determino a negá-la ou afir­
Mas, se é verdade que Deus é verda­ má-la, então não estou mais me servindo
deiro e não enganoso, também é verdade que como devo do meu livre-arbítrio; e se afir­
o homem erra. mo aquilo que não é verdadeiro, é evidente
Qual é, então, a origem do erro? que estou me enganando; [...] porque a luz
Naturalmente, o erro não é imputável natural nos ensina que o conhecimento do
a Deus, mas sim ao homem, porque nem intelecto deve preceder sempre a determi­
sempre ele se demonstra fiel à clareza e à nação da vontade. E precisamente nesse mau
distinção. uso do livre-arbítrio é que se encontra a pri­
As faculdades do homem funcionam. vação que constitui a forma do erro” .
Mas cabe ao homem fazer bom uso delas, Com essa imensa confiança no homem
não confundindo com claras e distintas as e em suas faculdades cognoscitivas, e depois
idéias que são aproximativas e confusas. O de indicar as causas e implicações do erro,
erro se dá no juízo. E, para Descartes, dife­ Descartes pode agora tratar do conheci­
rentemente do que pensaria Kant, pensar mento do mundo e de si enquanto existe
não é julgar, porque no juízo intervém tan­ no mundo. O método está justificado, a cla­
to o intelecto como a vontade. O intelecto, reza e a distinção fundamentadas, e a uni­
que elabora as idéias claras e distintas, não dade do saber reconduzida à sua fonte, a
erra. O erro brota da pressão indevida da razão humana, sustentada e iluminada
vontade sobre o intelecto: “ Se me abstenho pela garantia da suma veracidade do seu
de dar meu juízo sobre alguma coisa, quan­ Criador. [3 ]

V I. O m i m d o e u m a m a c ju m a

• Deus é garante do fato de que a faculdade imaginativa e a sensível atestam


a existência objetiva do mundo corpóreo, e entre todas as coisas que do mundo
externo chegam à consciência é possível conceber como clara e distinta apenas a
extensão. Não há, portanto, mais que uma mesma matéria em
O universo todo o universo, e nós a conhecemos apenas porque ela é exten­
é uma grande sa em comprimento, largura e profundidade. Este é um ponto de
"máquina ", imensa importância revolucionária, já proposto em pauta por
cujos elementos Galileu, que Descartes retoma porque dele depende a possibili­
essenciais dade de aviar um discurso científico rigoroso e novo. 0 universo
são matéria é uma grande "máquina", cujos elementos essenciais são maté­
e movimento ria e movimento. Também o corpo humano e os organismos anh
-*§1-5 mais são máquinas e, portanto, funcionam em base a princípios
mecânicos que regulam seus movimentos e relações; isso que cha­
mamos "vida" é redutível a uma entidade material, isto é, a elementos sutilíssimos
que, veiculados pelo sangue, se difundem por todo o corpo e presidem às princi­
pais funções do organismo.

1 y \ id é ia d e e x t e n s ã o dade externa para a consciência, que não é


artífice delas, mas só depositária.
e sua im p o r tâ n c ia e s s e n c ia l
Antes de mais nada, a existência do
mundo corpóreo é possível por causa do fato
Descartes chega à existência do mun­ de que ele é objeto das demonstrações geo­
do corpóreo aprofundando as idéias adven- métricas, que se baseiam na idéia de exten­
tícias, isto é, as idéias que vão de uma reali­ são. Ademais, há em nós uma faculdade dis­
300
Terceira parte - B a c o n e D e sc a rte s

tinta do intelecto e não redutível a ele, isto mundo espiritual é res cogitans, o mundo
é, a capacidade de imaginar e sentir. Com material é res extensa.
efeito, o intelecto é “ uma coisa pensante ou Descartes considera “ secundárias” to­
uma substância, cuja essência ou natureza das as outras propriedades, como a cor, o
toda é apenas a de pensar” , essencialmente sabor, o peso ou o som, porque não é possí­
ativa. Já a faculdade de imaginar é essen­ vel ter delas uma idéia clara e distinta. Atri­
cialmente representativa de entidades mate­ buí-las ao mundo material como componen­
riais ou corpóreas, razão pela qual “ estou tes constitutivas significaria abandonar as
inclinado a considerar que é intimamente regras do método.
ligada ou dependente do corpo” . Desse A tendência a considerá-las objetivas é
modo, o intelecto pode considerar o mun­ muito mais fruto de experiências infantis,
do corpóreo valendo-se da imaginação e das não avaliadas criticamente, porque não nos
faculdades sensórias, que se revelam passi­ demos conta de que se trata mais de uma
vas ou receptivas de estímulos e sensações. série de respostas do sistema nervoso aos
Ora, se esse poder de ligação com o estímulos do mundo físico.
mundo material, operado pela faculdade de Esse é um ponto de imenso alcance re­
imaginação e pelas faculdades sensórias, volucionário, já enfocado por Galileu e que
fosse enganoso, dever-se-ia concluir então Descartes retoma porque sabe que dele de­
que Deus, que me criou assim, não é veraz. pende a possibilidade de encaminhar um
M as isso é falso, como já dissemos. Desse discurso científico rigoroso e novo. A ajuda
modo, se as faculdades imaginativas e sen­ dos sentidos pode significar fonte de estí­
síveis atestam a existência do mundo corpó­ mulos, mas não é a sede da ciência. Esta
reo, não há razão para pô-lo em discussão. pertence ao mundo das idéias claras e dis­
Isso, porém, não deve me induzir a tintas.
“ admitir temerariamente todas as coisas que Chegando a esse ponto, reduzida a
os sentidos parecem me ensinar” . Como matéria à extensão, Descartes encontra-se
também não deve me induzir a “revogar pela diante de uma realidade global dividida em
dúvida todas elas em geral” . duas vertentes claramente distintas e irre­
Mas como operar tal seleção? Isso pode dutíveis uma à outra: a res cogitans no que
ser feito aplicando o método das idéias cla­ se refere ao mundo espiritual e a res extensa
ras e distintas, isto é, só admitindo como no que concerne ao mundo material. Não
reais aquelas propriedades que consigo con­ existem realidades intermediárias.
ceber de modo distinto. A força dessa colocação é devastado­
Pois bem, dentre todas as coisas que me ra, sobretudo em relação às concepções
chegam do mundo externo através das fa­ renascentistas de matriz animista, segundo
culdades sensíveis, só consigo conceber como as quais tudo era permeado de espírito e
clara e distinta a extensão, que, conseqüente- vida, e com as quais eram explicadas as co­
mente, podemos considerar como consti­ nexões entre os fenômenos e sua natureza
tutiva ou essencial. “ Com efeito, toda outra mais recôndita. Não há graus intermediá­
coisa que se pode atribuir ao corpo pressupõe rios entre a res cogitans e a res extensa. A
a extensão, sendo apenas algum modo da exemplo do mundo físico em geral, tanto o
própria coisa extensa, como também todas corpo humano como o reino animal devem
as coisas que encontramos na mente são encontrar explicação suficiente no mundo
somente modos diversos de pensar” . da mecânica, fora e contra qualquer doutri­
na mágico-ocultista.

y A p erva s a e x + c n s ã o
/\ m a t é r ia ( e x te n s ã o )
é p r o p r i e d a d e e s s e n c ia l
e o m o v im e n to
c o m o p r in c íp io s
Assim, aplicando as regras da clareza c o n s titu tiv o s d o m u n d o
e da distinção, Descartes chega à conclusão
de que só se pode atribuir como essencial
ao mundo material a propriedade da exten­ A doutrina que atribui um caráter pu­
são, porque só ela é concebível de modo cla­ ramente subjetivo ao reino das qualidades é
ro e completamente distinto das outras. O o primeiro resultado dessa nova filosofia. E
301
Capítulo décimo quinto - D e s c a r t e s : 'o -pwevdadoe d a filo so fia m o d e r n a

sua importância reside na capacidade de eli­ Mais do que na variabilidade dos fe­
minar todos os obstáculos que haviam im­ nômenos, Descartes estava interessado em
pedido a afirmação da nova ciência. sua unificação, mediante modelos mecâni­
Mas quais são então os elementos es­ cos de inspiração geométrica.
senciais para se explicar o mundo físico?
O universo cartesiano é constituído por
poucos elementos e princípios: matéria (en­
tendida no sentido geométrico de extensão) 1Q e d u ç ã o
e movimento. d e t o d o s o s o r g a n is m o s
A matéria como pura extensão, priva­
e d o m u n d o in te iro
da de qualquer profundidade, leva à rejei­
ção do vácuo. O mundo é como um ovo a m á q u in a s
pleno. O vácuo dos atomistas é inconcebível
com a continuidade da matéria extensa.
Como explicar então a multiplicidade dos Trata-se de um processo de unificação
fenômenos e seu caráter dinâmico? Atra­ ao qual não se subtraem sequer aquelas re­
vés do movimento ou daquela “ quantida­ alidades tradicionalmente reservadas a ou­
de de movimento” que Deus injetou no tras ciências, como a vida e os organismos
mundo quando o criou e que permanece animais.
constante, porque não cresce nem diminui. Tanto o corpo como os organismos ani­
mais são máquinas e, portanto, funcionam
com base em princípios mecânicos que regu­
lam seus movimentos e suas relações. Em con­
traste com a teoria aristotélica das almas, ex­
Os p e in c íp io s jám clam ervlais
clui-se todo princípio vital (vegetativo e
q u e r e g e m o rm ivertso sensório) do mundo vegetal e animal. Tam­
bém nesse caso o que importa é a mudança
do quadro sistemático, porque daí em dian­
Quais as leis fundamentais? te também o corpo e qualquer outro orga­
Antes de mais nada, o princípio de con­ nismo serão objeto de análise científica no
servação, segundo o qual a quantidade de mo­ quadro dos princípios do mecanicismo.
vimento permanece constante, contra qual­ Os animais e o corpo humano nada
quer possível degradação de energia ou mais são do que máquinas, “ autômatos” ,
entropia. O segundo é o princípio de inércia. como os define Descartes, ou “ máquinas
Tendo excluído todas as qualidades da semoventes” mais ou menos complicadas,
matéria, só pode haver alguma mudança de semelhantes a “relógios, compostos simples­
direção mediante a impulsão de outros cor­ mente de rodas e molas, que podem contar
pos. O corpo não se detém nem diminui seu as horas e medir o tempo” .
próprio movimento, a menos que o ceda a E as numerosíssimas operações dos
outro. Em si, uma vez iniciado, o movimen­ animais? Aquilo que chamamos de “vida”
to tende a prosseguir na mesma direção. é redutível a uma espécie de entidade mate­
Portanto, o princípio de conservação e, rial, isto é, a elementos sutilíssimos e pu­
conseqüentemente, o princípio de inércia são ríssimos, que, levados do coração ao cére­
princípios basilares que regem o universo. bro por meio do sangue, se difundem por
A eles deve-se acrescentar outro prin­ todo o corpo e presidem às principais fun­
cípio, segundo o qual toda coisa tende a ções do organismo. Daí a exaltação da teo­
mover-se em linha reta. O movimento ori­ ria da circulação do sangue proposta por
ginário é o movimento retilíneo, do qual os Harvey, seu contemporâneo, que publicou
outros derivam. Essa extrema simplificação seu famoso ensaio sobre o Movimento do
da natureza está em função de uma razão coração em 1627.
que, através de modelos teóricos, quer co­ Descartes, portanto, nega aos organis­
nhecer e dominar o mundo. mos qualquer princípio vital autônomo, tan­
Trata-se de uma tentativa relevante de to vegetativo como sensório, convencido de
unificar a realidade, à primeira vista múlti­ que, se eles possuíssem alma, a teriam reve­
pla e variável, através de uma espécie de lado pela palavra, que “ é o único sinal e a
modelo mecânico facilmente dominável pelo única prova segura do pensamento oculto e
homem. encerrado no corpo” .
302
Terceira parte - B a c o n e D esc a se s

V I I . y \lm a (V e s czog\ic\ns")
e c o r p o ( 'V e s e x f e h s a " )

No homem • Entre o mundo espiritual, a res cogitans, e o mundo mate­


as duas rial, a res extensa, não há grandes intermediários: trata-se de
substâncias, duas vertentes claramente distintas e irredutíveis uma à outra.
alma e corpo, Ora, no homem, diferentemente de todos os seres, as duas subs­
estão juntas tâncias estão juntas. Com efeito, a alma é pensamento, não vida,
-^§1 e sua separação do corpo não provoca a morte; a alma tem pro­
priamente sede em uma pequena glândula, chamada pineal, si­
tuada no centro do cérebro, onde se reúnem ramificados todos os tecidos das
artérias que veiculam o sangue para o cérebro.

1 CD c o n ta t o perimentar sentimentos e apetites seme­


lhantes aos nossos, compondo assim um
e n te e ees c o g it a n s
verdadeiro homem.” Mas, por qual razão
e V e s e x te n sa " e de que modo a alma move o corpo e age
o c o e e e no h o m e m sobre ele?
Foi para enfrentar essas dificuldades
que Descartes escreveu o Tratado do ho­
Ao contrário de todos os outros se­ mem, no qual tenta uma explicação dos
res, no homem encontram-se juntas duas processos físicos e orgânicos, em uma es­
substâncias claramente distintas entre si: a pécie de ousada antecipação da fisiologia
res cogitans e a res extensa. Ele é uma es­ moderna.
pécie de ponto de encontro entre dois mun­ Ele imagina que Deus tenha formado
dos ou, em termos tradicionais, entre alma uma estátua de terra semelhante a nosso cor­
e corpo. A heterogeneidade da res cogitans po, com os mesmos órgãos e as mesmas fun­
em relação à res extensa significa antes de ções. E uma espécie de modelo ou de hi­
mais nada que a alma não deve ser conce­ pótese, com que tenta a explicação de nossa
bida em relação com a vida, como se hou­ realidade biológica, com especial atenção
vesse vários tipos de vida, da vegetativa à para a circulação do sangue, para a res­
sensitiva e daí à racional. A alma é pensa­ piração e para o movimento dos espíritos
mento e não vida. E sua separação do cor­ animais.
po não provoca a morte, que é determina­ Sem abandonar a hipótese, ele explica
da por causas fisiológicas. A alma é uma o calor do sangue por uma espécie de fogo
realidade inextensa, ao passo que o corpo sem luz que, penetrando nas cavidades do
é extenso. Trata-se de duas realidades que coração, contribui para conservá-lo inflado
nada têm em comum. e elástico. Do coração, o sangue passa para
E, no entanto, a experiência nos ates­ os pulmões, onde a respiração, introduzin­
ta uma interferência constante entre essas do o ar, o refresca. Os vapores do sangue da
duas vertentes, como o comprova o fato cavidade direita do coração alcançam os
de que nossos atos voluntários movem o pulmões através da veia arterial, e caem len­
corpo e as sensações, provenientes do mun­ tamente na cavidade esquerda, provocando
do externo, se refletem sobre a alma, mo­ o movimento do coração, do qual depen­
dificando-a. Escreve Descartes: “Não bas­ dem todos os outros movimentos do or­
ta que ela [a alma] seja inserida no corpo ganismo. Afluindo ao cérebro, o sangue
como um piloto em. seu navio, senão, tal­ não apenas nutre a substância cerebral, mas
vez, para mover seus membros, mas é ne­ também produz “certo vento, muito sutil,
cessário que ela seja conjugada e unida mais ou antes uma chama muito viva e muito
estreitamente com ele, para, ademais, ex­ pura, ao que se dá o nome de ‘espíritos ani­
303
Capitulo décimo quinto - D escartes: "o funrl<ulor da filosofia m o d e r n a ”

mais’ As artérias que veiculam o sangue no tratado Les passions de Vâme, mas
no cérebro ramificam-se em inúmeros teci­ com preocupações e contornos claramente
dos, que se reúnem depois em torno de pe­ éticos.
quena glândula, chamada pineal, situada no Nele Descartes oferece um quadro
centro do cérebro, que constitui a sede da bastante complexo e subtil de análise das
alma. ações, movidas pela vontade, e das alterações,
Com tal objetivo, escreve Descartes, “ é que são percepções, sentimentos ou emo­
preciso saber que, por mais que a alma este­ ções provocadas pelo corpo e captadas pela
ja conjugada com todo o corpo, entretanto alma.
há no corpo algumas partes em que ela exer­ O objetivo moral desse estudo é o
ce suas funções de modo mais específico que de demonstrar que a alma pode vencer
em todas as outras. [...] A parte do corpo as emoções ou, pelo menos, frear as soli­
em que a alma exerce imediatamente suas citações sensíveis que a distraem da ati­
funções não é em absoluto o coração e nem vidade intelectual, projetando-a para as
mesmo todo o cérebro, mas somente a parte amarras das paixões. Para tanto, dois sen­
interna dele, que é certa glândula muito pe­ timentos são importantes, a tristeza e a
quena:, situada em meio à sua substância e alegria: a primeira está em condições de
suspensa sobre o conduto pelo qual os espí­ mostrar as coisas das quais devemos es­
ritos das cavidades anteriores se comunicam capar; a segunda, as coisas que devemos
com os espíritos das cavidades posteriores, cultivar.
de modo que os seus mais leves movimentos O guia do homem, porém, não são
podem mudar muito o curso dos espíritos, as emoções ou os sentimentos em geral,
ao passo que, inversamente, as mínimas mu­ mas sim a razão, a única que pode avaliar
danças no curso dos espíritos podem levar e, portanto, induzir a acolher ou rejeitar
a grandes mudanças nos movimentos dessa certas emoções.
glândula” . A sabedoria consiste precisamente
O tema do dualismo cartesiano e do na adoção do pensamento claro e distin­
possível contato entre a res cogitans e a to como norma, tanto do pensar como do
res extensa foi aprofundado ainda mais viver.

V III. A s fe g m s :
d a m o ra l p r o v is ó r ia

• Para favorecer o domínio da razão sobre a tirania das paixões, no Discurso


sobre o método Descartes propõe como "moral provisória" quatro normas que
depois se revelaram válidas e, para ele, definitivas:
1) obedecer às leis, aos costumes e à religião do próprio pais, acolhendo as
opiniões comuns mais moderadas;
2 ) perseverar nas ações com a maior firmeza e resolução possível;
3) vencer de preferência a si mesmos do que o destino, e
A ética mudar preferentemente os próprios desejos do que a ordem do
cartesiana mundo;
e a submissão 4) cultivar a razão e o conhecimento da verdade.
da vontade Do conjunto torna-se evidente a direção da ética cartesiana,
à razão,
as normas isto é, a submissão lenta e fatigante da vontade à razão, como
a seguir força-guia de todo o homem: a liberdade da vontade se realiza
- > § 1-5 apenas pela submissão à lógica da ordem que o intelecto é cha­
mado a descobrir, fora e dentro de si.
304
Terceira parte - B ac.on e D e s c a r t e s

A p e im e ie a f e g f a Descartes é inimigo da falta de decisão.


Para superar isso, ele propõe o remédio “ de
habituar-se a formular juízos certos e deter­
minados sobre as coisas que se apresentam,
Foi exatamente para favorecer o do­ convencendo-se de que se cumpriu o próprio
mínio da razão sobre a tirania das paixões dever quando se fez aquilo que se julgava o
que, desde o Discurso sobre o método, Des­ melhor, ainda que seja julgado muito mal” .
cartes enunciou e propôs como “moral pro­ A vontade se retifica refinando o intelecto.
visória” algumas normas que depois, tanto
no intercâmbio epistolar como no Tratado
sobre as paixões, revelaram-se para ele vá­
lidas e definitivas. 3 . A f e e c e ie a r e g r a
Trata-se de normas simples, que é opor­
tuno recordar sempre: “A primeira [regra]
era a de obedecer às leis e aos costumes do
meu país, observando constantemente a re­ Nesse contexto, ele propõe a “ terceira
ligião em que Deus me deu a graça de ser máxima” , que é a de “esforçar-me sempre
instruído desde a infância, e norteando-me para vencer muito mais a mim mesmo do
em todas as outras coisas segundo as opi­ que ao destino e para mudar muito mais
niões mais moderadas e mais distantes de meus desejos do que a ordem do mundo. E,
todo excesso, que fossem comumente acolhi­ em geral, acostumar-me a crer que não há
das e praticadas pelas mais sensatas dentre nada que esteja inteiramente em nosso po­
as pessoas com quem me coubesse viver.” der, exceto nossos pensamentos” .
Distinguindo entre a contemplação e a O tema de Descartes, portanto, é a re­
busca da verdade, por um lado, e as exigên­ forma de si mesmo, reforma que é possível
cias cotidianas da vida, por outro, Descar­ fazer, refinando a razão mediante o habi­
tes, para a verdade, exige a evidência e a tuar-se às regras da clareza e da distinção.
distinção, que, se alcançadas, nos dão o
juízo; já para as segundas considera sufi­
ciente o bom senso, expresso pelos costu­
4 A q u a rta re g ra
mes do povo junto ao qual se vive. No pri­
meiro caso, é necessária a evidência da
verdade; no segundo, é suficiente a proba­
bilidade. Nós retificamos a vontade reforman­
O respeito às leis do país é ditado pela do a vida do pensamento. E é com esse ob­
necessidade de tranqüilidade, sem a qual não jetivo que ele destaca na quarta máxima que
é possível a busca da verdade. sua função mais importante foi a de “ dedi­
car toda a minha vida a cultivar minha ra­
zão e progredir o mais possível no conheci­
mento do verdadeiro, seguindo o método
2 A se g u n d a te g ra que me havia prescrito” .
O fato de ser esse o sentido das primei­
ras três máximas, bastante conformistas, é
“A segunda máxima era a de perseve- indicado com exatidão pelo próprio Descar­
rar o mais firme e resolutamente possível em tes, que acrescenta: “As três máximas ante­
minhas ações, não deixando de seguir com riores fundamentavam-se precisamente no
menos constância as opiniões mais duvido­ meu propósito de continuar a me instruir.”
sas, quando alguma vez a elas me determi­
nasse, como se elas fossem as mais seguras” .
Trata-se de norma muito pragmática, que
conclama a romper as protelações e superar a 5 A 1*0200 e o v e e d a d e m o
incerteza e a indecisão, porque a vida não pode com o ^iAVudame.nio d a m o ea l
esperar, sendo premente, mas sem esquecer que
permanece a obrigação de examinar a veraci­
dade e a bondade dessas opiniões, já que a O conjunto torna evidente a orienta­
veracidade e a bondade permanecem como os ção da ética cartesiana, isto é, a lenta e tra­
ideais que regulam a vida humana. balhosa submissão da vontade à razão,
305
Capítulo décimo quinto - D esca rtes: ' f u n d a d o r d a filo so fia w\ode-rv\o!’

como força-guia de todo o homem. Identi­ se impõe com a força da razão. Apenas sob
ficando a virtude com a razão nessa pers­ o peso da verdade é que o homem pode se
pectiva, Descartes se propõe a “ seguir tudo considerar livre, no sentido de que obedece
aquilo que a razão me aconselhar, sem que a si mesmo e não a forças exteriores.
as paixões e os apetites me afastem disso” . Se o “ eu” define-se como res cogitans,
Com tal objetivo, o estudo das paixões seguir a verdade significa seguir no fundo a
e do seu entrelaçamento na alma visa a tor­ si mesmo, na máxima unidade interior e no
nar mais fácil a consecução do primado da pleno respeito à realidade objetiva. O pri­
razão sobre a vontade e sobre as paixões. mado da razão deve impor-se tanto no cam­
A liberdade da vontade só se realiza po do pensamento como no da ação.
pela submissão à lógica da ordem que o in­ A virtude, à qual, em última análise, a
telecto é chamado a descobrir, dentro e fora “ moral provisória” conduz, identifica-se
de si. com a vontade do bem e esta com a vonta­
Em Descartes predomina o amor do de de pensar o verdadeiro que, enquanto tal,
verdadeiro, cuja lógica, uma vez alcançada, também é bem.

Vista de Paris da Pont Neuf,


cm I (iSO.
Psta ilustração
reproduz uma pintura
de escola francesa,
conservada em Paris
no Museu C.arnavalet.
306
Terceira parte - 3 acon e D escartes

W SÊÊÊBÊSSÈÊÈÈÊBÊHBÈÊIÈÈÊÊIÍÊÊÊIBÊSKÊÊÊÊÊ

DESCARTES
O "C O G I T O "

O M É T O D O PARA A D E SC O B E R T A D A V E R D A D E

Acolher como verdadeiro apenas aquilo que é tal


\ 1. Evidência de modo evidente para a razão
--------- — ----------

D ecom por cada problem a em seus elementos úl­


2. Análise
tim os
( REGRAS FUNDAM ENTAIS
Remontar dos objetos mais simples e mais fáceis
3. Síntese
até os objetos mais complexos

4. Controle 'h Enumerar todos os elementos analisados e rever


todas as operações sintéticas

.... t . ...................
N o e x am e d o s p rin cíp io s d o sa b e r trad icion al
REGRA APLICATIVA
é p reciso rejeitar co m o fa lso tu d o aq u ilo de que se p o ssa duvidar,
p a r a ch egar a a lg o ab so lu tam en te in dub itável

“ COGITO, ERGO SU M ”
(existên cia d a alma)-.
PRINCIPIO PRIMEIRO
d o p ró p rio fa to de d u v id a r (= p en sar),
DA NOVA FILOSOFIA
segue-se d o m o d o m ais evidente e certo
que eu sou, isto é, existo

F ac u ld a d e s d a alm a

Cognoscitivas: Eletiva:
J sen sib ilidade von tad e
/ \ im a g in a ç ã o (ou livre-arbítrio)
...... . A \ in telecto (ou razão)
/ \ \ _
Id éias j A feições

inatas adventícias j factícias


(inerentes desde sempre na alma) (vindas do exterior) ! (inventadas pela alma)

..." ..' Deus .. ...


(Ser perfeito, Substância infinita e eterna):
a idéia inata de substância infinita pode ter sido posta na alma
FUN D AM ENTO ULTIMO (que é substância finita)
apenas por uma substância verdadeiramente infinita. /
A certeza e a verdade de toda ciência dependem
' . apenas do conhecimento do verdadeiro Deus '
307
Capítulo décimo quinto - Descartes: 'o fundador da filosofia m o d e r n a "

culpas para os vícios, de modo que um £stado


é muito melhor regulado quando, tendo pou­
D escartes quíssimas, elas aí são mui rigorosamente ob­
servadas; assim, em vez do grande número de
preceitos de que lógica é composta, acreditei
ter o suficiente deles com os quatro seguintes,
D Rs regras metódicas
com a condição que tomasse firme e constante
resolução de não descurar uma só vez de
observá-los.
O Discurso sobro o método, publicado O primeiro era não aceitar jamais nada
em 1637, é o obra com que se inauguro a como verdadeiro, que não conhecesse eviden­
estação da filosofia moderna. temente ser tal; ou seja, evitar acuradamente a
Trata-se de breve exposição, de porte precipitação e a prevenção; e não compreen­
autobiográfico, dos fundamentos metodo­ der em meus juízos nada mais além do que se
lógicos da original metafísica cortesiano. apresentasse tão clara e distintamente a mi­
nha mente, que eu não tivesse alguma possi­
bilidade de pô-lo em dúvida.
O segundo, dividir cada uma das dificul­
1. R insuficiência da lógica e da matemática dades que examinasse, em tantas partes
quantas fosse possível, e quantos fossem
Quando ou ora mais jovem,1 havia estu­ requeridas para melhor resolver as próprias di­
dado um pouco, entro os partos da filosofia, a ficuldades.
lógica, e entre as matemáticas, a anólise dos O terceiro, conduzir com ordem meus pen­
geômetras e a álgebra, três artes ou ciências samentos, começando pelos objetos mais sim­
que pareciam dever contribuir em alguma coi­ ples e mais fáceis de conhecer, para subir pou­
sa para meu projeto. Contudo, examinando, co a pouco, como por graus, até o conhecimento
percebi que, quanto à lógica, seus silogismos dos mais compostos; e supondo também uma
e a maior parte de suas outras instruções ser­ ordem entre aqueles que não se precedem
vem mais para explicar a outros as coisas que naturalmente um ao outro.
já são sabidas ou então, como a arte de lúlio,12 6, em último lugar, fazer em tudo enume­
a falar, sem discernimento, das que se igno­ rações tão completas, e resenhas tão gerais,
ram, e não para aprendê-las. 6 embora ela que estivesse seguro de nada omitir.
contenha, com efeito, muitos preceitos
veríssimos e ótimos, há todavia tantos outros,
misturados com aqueles, que são nocivos ou 3. R nova matemática, modelo do saber
supérfluos, que é quase tão difícil separá-los
quanto extrair uma Diana ou uma Minerva para As longas cadeias de razões, todas sim­
fora de um bloco de mármore que ainda não ples e fáceis, das quais os geômetras costu­
foi esboçado. Depois, quanto à análise dos mam se servir poro chegar a suas mais difíceis
antigos e a álgebra dos modernos, além do demonstrações, deram-me ocasião de imagi­
fato que elas se referem apenas a matérias nar que todas as coisas, que podem cair sob
abstratíssimas, e que parecem de nenhum uso, o conhecimento dos homens, se sucedam en­
a primeira está sempre tão ligada à conside­ tre si no mesmo modo, e que, embora apenas
ração das figuras, que não pode exercitar o nos abstenhamos de acolher alguma delas
intelecto sem cansar muito a imaginação; e o como verdadeira e não o seja, e que se ob­
indivíduo fica de tal forma submetido, na últi­ serve sempre a ordem necessária para dedu­
ma, a certas regras e a certas cifras, que dela zi-las umas das outras, não podem existir coi­
se fez uma arte confusa e obscura que emba­ sas tão distantes às quais não se possa
raça a mente, em vez de uma ciência que a chegar, nem tão escondidas que não se pos­
cultive. sam descobrir.
£ não pensei muito para buscar de onde
precisava começar: com efeito, eu já sabia que
2. Rs regras do novo método

£ste foi o motivo pelo qual pensei que era


preciso buscar algum outro método que, reu­ 'Ou seja, quando estava no colégio de Lo Flèche.
sRaimundo Lúlio (Ramon Ihull) (1232-1316) monge
nindo as vantagens daqueles três, estivesse fronciscano, outor de uma célebre fírs magno que "devia
isento de seus defeitos. £ como o excessivo permitir provar a verdade do cristianismo para os infiéis e
número das leis fornece freqüentemente des­ convertê-los".
308
Terceira parte - B a c o n e Descactes

devia partir das mais simples e das mais fáceis deles que outra vez julgara dificílimos, mas
de conhecer; e considerando que entre todos pareceu-me também, no fim, que podia deter­
aqueles que já buscaram a verdade nas ciên­ minar, naqueles mesmos que eu ignorava, com
cias, não houve outros além dos matemáticos quais meios, e até onde, fosse possível resol­
que puderam encontrar demonstrações, isto é, vê-los. Motivo pelo qual não vos parecerei
razões certas e evidentes, eu não duvidava ab­ talvez muito vaidoso se considerardes que, não
solutamente que devesse começar por aque­ havendo mais que uma verdade de toda coi­
las mesmas verdades que eles examinaram, sa, quem a encontra sabe tanto dela quanto é
embora não esperasse nenhuma outra utilida­ possível dela saber; e que, por exemplo, um
de, a não ser que elas habituariam minha men­ rapaz instruído na aritmética, tendo feito uma
te a opascentar-se de verdade, e a não con­ soma conforme as regras dela, pode estar
tentar-se com razões falsas. seguro de ter encontrado, em relação à soma
Todavia, nem por isso decidi procurar que procurava, tudo aquilo que o espírito hu­
aprender todas as ciências particulares, que se mano poderio encontrar. Por fim, porque o
chamam comumente matemáticas; e vendo método que ensina a seguir a verdadeira or­
que, embora seus objetos fossem diferentes, dem, e a enumerar exatamente todas as cir­
elas não deixam de concordar todas num pon­ cunstâncias daquilo que se procura, contém
to, o de não considerar outra coisa além das tudo aquilo que dá certeza às regras da arit­
diversas relações ou das proporções que se en­ mética. Mas aquilo que me satisfazia mais em
contram, pensei que fosse melhor examinar tal método era que, por meio dele, eu estava
apenas estas proporções em geral, e sem su­ seguro de setvir-me em tudo da minha razão,
pô-las em outro lugar fora dos sujeitos que ser­ se não perfeitamente, ao menos o melhor que
viríam para tornar seu conhecimento mais fácil; estivesse em meu poder; além de que sentia,
ou melhor, sem forçá-las de nenhum modo, para ao empregá-lo, que minha mente se habitua­
depois podê-las aplicar melhor a todos os ou­ va pouco a pouco a conceber mais clara e dis­
tros aos quais conviessem. tintamente seus objetos, e que, não tendo-o
Depois, tendo percebido que, para co­ absolutamente submetido a nenhuma ma­
nhecê-las, teria necessidade alguma vez de téria particular, eu me comprometia a aplicá-
considerá-las cada uma em particular, e algu­ lo também utilmente às dificuldades das ou­
ma vez apenas recordá-las ou compreender tras ciências, como tinha feito com as da
diversas delas ao mesmo tempo, pensei que, álgebra.
para considerá-las melhor em particular, de­ Não que, por isso, ousasse empreender
veria supô-las na forma de linhas, porque eu sem mais o exame de todas as que se apre­
não encontrava nada mais simples, nem que sentassem; isto de foto teria sido contrário à
pudesse mais distíntamente representar à mi­ ordem que tal método prescreve. Mas, tendo
nha imaginação e a meus sentidos: mas que, notado que seus princípios deviam ser todos
para retê-las, e para compreender diversas atinentes à filosofia, na qual ainda não se en­
delas ao mesmo tempo, ero preciso que as contram princípios certos, pensei que fosse ne­
expressasse mediante cifras, as mais breves cessário, antes de tudo, que eu procurasse
possíveis; e que, com este meio, teria tomado estabelecê-los,■ e que, sendo esta a coisa mais
todo o melhor da análise geométrica e da ál­ importante do mundo, e onde a precipitação e
gebra, e teria corrigido os defeitos de uma por a prevenção eram o que mais se devia temer,
meio da outra.4 eu de fato não devia empreender até o fim,
antes de ter chegado a uma idade bastante
4. R aplicação do método à filosofia mais madura do que a de vinte e três anos,
que era então minha idade; e antes de ter em­
£, com efeito, ouso afirmar que a obser­ pregado muito tempo para preparar-me a isso,
vância exata daqueles poucos preceitos que tanto desenraizando de meu espírito todas as
eu escolhera deu-me tal facilidade de resol­ más opiniões que acolhera antes daquele tem­
ver todos os problemas aos quais se esten­ po, como reunindo muitas experiências que
dem aquelas duas ciências, que nos dois ou constituíssem depois a matéria de meus racio­
três meses que empreguei para examiná-los, cínios, e também me exercitando sempre no
tendo começado pelos mais simples e gerais, método que eu me havia prescrito, para nele
e cada verdade que encontrava sendo uma sempre mais me reforçar. '
regra que me servia depois para encontrar R. Descartes,
outras, não somente cheguei ao fim de muitos D iscu rso s o b re o m étodo.
309
Capítulo décimo quinto - Descartes: 'a ^ u n c ia c io r c ia filosofi
osotia mode>*

notando que esta verdade: eu penso, logo exis­


2 W VUV|IIW SUMI to, era tõo firme 0 tõo segura que todas as mais
extravagantes suposições dos céticos nõo eram
capazes de abalá-la, julguei que podia aceitá-
Depois de estabelecidos os regras la sem escrúpulo como o princípio do filosofia
"provisórias" do novo método, Descartes as que eu procurava.
põe imediatamente à prova, aplicando-as
a todas as convicções e opiniões, tanto co­
muns como científicas. 6 o primeiro resulta­ 2. fl alma e o corpo
do indubitável dessa aplicação será o co­ Depois, examinando com atenção aquilo
gito, ergo sum, o princípio fundamental do que eu era, e vendo que podia fingir que nõo
cartesianismo. possuía nenhum corpo, e que nõo existia ne­
nhum mundo nem nenhum lugar em que eu exis­
tisse: mas que nem por isso podia fingir nõo
existir; 0 que, ao contrário, do próprio fato de
1. O engano dos sentidos que eu pensava em duvidar da verdade das
e o "eu penso, logo existo" outras coisas, seguia-se, evidentissimamente e
Nõo 50i 50 devo ocupar-vos com os pri­ certissimamente, que eu existia; quando, se ti­
meiros meditações que vos1*Fiz; porque são tõo vesse apenas deixado de pensar, ainda que
metafísicas2 0 tõo pouco comuns, quo talvez nõo todo o resto daquilo que tinha imaginado ti­
sejam do gosto d© todos.34Todavia, poro que vesse sido verdadeiro, eu nõo teria tido nenhu­
s© posso julgar s© os fundamentos qu© tomai ma razão de crer que eu existia: a partir disso
soo bastant© firmes, ocho-me, d© algum modo, percebi que eu era uma substância da qual toda
constrangido a falar disso. a essência ou natureza não é mais que pensar
Há longo tempo notara que, pelos cos­ e que, para ser, nõo tem necessidade de ne­
tumes, é alguma vez necessário seguir opini­ nhum lugar e nõo depende de nenhuma coisa
ões, que sabemos ser muito incertas, como se material. De modo que este eu, ou seja, a olmo,
fossem indubitáveis, segundo já falei acima,-4 pela qual eu sou o que sou, é inteiramente dis­
mas, uma vez que então eu desejava dedicar- tinta do corpo 0 , mais ainda, é mais fácil de
me unicamente à pesquisa da verdade, pen­ conhecer do que ele, e, mesmo que ele não
sei que era preciso fazer tudo o contrário e existisse, ela nõo deixaria de ser tudo aquilo
que rejeitasse como absolutamente falso tudo que é.
aquilo em que pudesse imaginar a mínima
dúvida, com o escopo de ver se depois disso 3. O critério da verdade e da certeza
me restaria alguma coisa que fosse inteiramen­
te indubitável. Depois disso considerei em geral o que é
Assim, como nossos sentidos alguma vez necessário para que uma proposição seja ver­
nos enganam, quis supor que nõo houvesse dadeira e certa; porque, do momento que ha­
nenhuma coisa que fosse tal como no-lo fa­ via encontrado uma que sabia ser tal, pensei
zem imaginar. € uma vez que há homens que que deveria igualmente saber em que consiste
se enganam raciocinando, também a respei­ tal certeza.
to das mais simples matérias de geometria, € tendo notado que nada existe neste eu
penso, logo existo, que me assegure que digo
e fazem paralogismos,5 julgando que eu es­
tava sujeito a falir como qualquer outro, re­ a verdade, a não ser que vejo clarissimamente
jeitei como falsas todas as razões que, an­ que, para pensar, é preciso ser, julguei poder
tes, havia tomado como demonstrações. €, tomar como regra geral que as coisas que con­
finalmente, considerando que todos os mes­ cebemos bem claramente e bem distintamente
mos pensamentos, que temos quando desper­ são todas verdadeiras, mas que apenas há al­
tos, podem vir a nós também quando dormi­ guma dificuldade em bem discernir quais sejam
mos, sem que haja então nenhum que seja as que concebemos distintamente.
verdadeiro, resolvi fingir que todos os coisas
que jamais haviam entrado em minha mente nõo
fossem mais verdadeiras do que as ilusões de ’€ntre outubro de 1628 e julho de 1629, quondo esta-
meus sonhos. vo no Holanda.
Todavia, logo depois, percebi que, en­ 2Ou seja, abstratas.
3lsto é: tõo diferentes daquilo que comumente se pensa.
quanto desse modo eu queria pensar que tudo 4Quando se deteve a expor a moral provisória.
fosse falso, era preciso necessoriamente que sParalogismo: (do grego: para e logos: contra a razão)
eu, que pensava isso, fosse alguma coisa. €, raciocínio errado que à primeira vista parece certo.
310 Terceira parte - S acon e ID e s c a fte s

4. R primeira demonstração
da existência de Deus fíqui Descartes se move em um plano
bem diferente do "autobiográfico" do Discur­
€m seguido, refletindo sobre o foto de que so, ao passo que a dialética entre dúvida
eu duvidava e que, por conseguinte, meu ser radical e certeza absoluta é posta sobre um
não era todo perfeito, porque via claramente nível verdadeiramente universal.
que era perfeição maior conhecer do que duvi­ Nas páginas seguintes propomos qua­
dar, propus-me o buscar onde tivesse aprendi­ se integralmente a terceira meditação, em
do a pensar em alguma coisa de mais perfeito que Descartes, a partir da absoluta certeza
que não fosse eu, e percebi com evidência que do idéia do eu, demonstra a existência de
devia ser de alguma natureza que na realida­ Deus como Ser perfeito e infinito.
de fosse mais perfeita.
No que se refere aos pensamentos que
eu tinha de muitas outras coisas fora de mim,
como do céu, do terra, da luz, do calor e de mil 1. fl regra geral:
outras, não era muito difícil saber de onde vi­ é verdadeiro apenas aquilo
essem, pelo fato de que, não vendo nelas nada que é concebido muito claramente
que me parecesse torná-las superiores a mim, e distintamente
eu podia crer que, se eram verdadeiras, eram
Rgora fecharei os olhos, taparei os ouvi­
dependências de minha natureza, enquanto ela
dos, distrairei todos os meus sentidos, cance­
possuía alguma perfeição; e que se não o eram,
larei também de meu pensamento todas as ima­
eu as repetia a partir do nada, ou seja, elas
gens das coisas corpóreas, ou ao menos, uma
estavam em mim por aquele tanto que eu era
vez que isso pode dificilmente ser feito, as con­
imperfeito.
siderarei vãs e falsas; e assim, entretendo ape­
Todavia, não podia ser o mesmo a res­
nas a mim mesmo e considerando meu interior,
peito da idéip de um ser mais perfeito do que
procurarei tornar-me pouco a pouco mais co­
o meu; porque, que viesse do nada, era coisa
nhecido e mais familiar a mim mesmo. Sou uma
manifestamente impossível. € uma vez que não
coisa que pensa, isto é, que duvida, que afir­
há menos repugnância entre que o mais perfei­
ma, que nega, que conhece poucas coisas, que
to seja uma conseqüência e uma dependência
ignora muitas delas, que ama, que odeia, que
do menos perfeito, e que do nada proceda al­
quer, que não quer, que também imagina, e
guma coisa, eu não podia sequer tê-la recebi­
que sente. Uma vez que, como notei antes, em­
do de mim mesmo: de modo que restava que
bora as coisas que sinto e imagino não sejam
ela tivesse sido posta em mim por uma nature­
talvez nada além de mim e em si mesmas, eu
za que fosse verdadeiramente mais perfeita da­
todavia estou seguro de que os modos de pen­
quilo que eu não fosse e que aliás tivesse em
sar, que chamo de sensações e imaginações,
si todas as perfeições das quais eu podia ter
pelo único fato de que são modos de pensar
alguma idéia, ou seja, para explicar-me em uma
residem e se encontram certamente em mim. €
palavra, que fosse Deus.
naquele pouco que eu disse, creio ter reporta­
R. Descartes, do tudo aquilo que verdadeiramente sei ou, ao
D iscu rso s o b re o m étodo.
menos, tudo aquilo que até aqui notei saber.
flgora considerarei mais exatamente se,
talvez, não se encontrem em mim outros conhe­
cimentos, que eu não tenha ainda percebido.
Çstou certo de ser uma coisa que pensa; mas
fl "terceira meditação” sei eu talvez também aquilo que se requer para
em torno de Deus tornar-me certo de alguma coisa? Neste primei­
ro conhecimento não se encontra nada mais que
e de suo existência uma clara e distinta percepção do fato de que
eu conheço; percepção que, para dizer a ver­
Pouco depois do publicação do Discur­ dade, não seria suficiente para assegurar-me
so sobre o método, Descartes começou a de que ela é verdadeira caso pudesse ocorrer
escrever sua metafísico de forma mais am­ que se achasse que uma coisa é falsa, que eu
pla: em 1640 as Meditationes de prima concebesse tão claramente e distintamente.
philosophia em latim foram completadas, e Portanto, parece-me que já possa estabelecer
em 1641 foram publicadas com seis grupos como regra geral, que todas as coisas que con­
de objeções e respostas. cebemos muito claramente e muito distintamen­
te são verdadeiras.
311
Capítulo décimo quinto - Descartes: i fundado»* da filosofia mode

Contudo, aceitei e admiti anteriormente tafísica. Mas, para poder eliminá-la inteiramen­
como realmente certas e manifestas diversas te, devo examinar se existe um Deus, logo que
coisas que, todavia, reconheci depois que eram se apresentar a ocasião; e se acho que existe
dúbias e incertas. Quais eram, portanto, essas um, devo também examinar se ele pode ser
coisas? Cram a terra, o céu, os astros e todas enganador, uma vez que, sem o conhecimento
as outras coisas que eu percebia por meio de dessas duas verdades, não vejo como eu pos­
meus sentidos. Ora, o que eu concebia clara­ sa jamais estar certo de alguma coisa. €, a fim
mente e distintamente nelas? Nada mais que de que possa ter ocasião de examinar isso, sem
isto: que as idéias ou os pensamentos dessas interromper a ordem de meditar que me pro-
coisas se apresentavam ao meu espírito. € tam­ pus, que é a de passar por graus das noções
bém agora não nego que tais idéias se encon­ que encontrei em primeiro lugar em meu espíri­
trem em mim. Mas outra coisa ainda eu afirma­ to, para aquelas que poderei encontrar em se­
va, que, por causa do hábito que tinha de nela guida, é preciso aqui que eu divida todos os
crer, eu pensava perceber muito claramente, meus pensamentos em certos gêneros, e que
embora, na verdade, de fato não a percebes­ considere em quais desses gêneros se encon­
se, isto é, que existiam coisas fora de mim, de tre propriamente verdade ou erro.
onde procediam tais idéias, e às quais elas
eram em tudo semelhantes. C era nisso que eu
2. Rs três espécies de idéias:
me enganava; ou, se também julgava segundo
inatas, adventícias, factícias
a verdade, nenhum conhecimento era causa da
verdade de meu julgamento. Cntre meus pensamentos, alguns são co­
Todavia, quando eu considerava alguma mo as imagens das coisas, e a eles apenas
coisa como bastante simples e fácil a respeito convém propriamente o nome de idéia: como
da aritmética e da geometria, por exemplo, que quando me represento um homem, ou uma qui­
dois e três, somados, produzem o número cinco, mera, ou o céu, ou um anjo, ou o próprio Deus.
e outras coisas semelhantes, não as concebia Outros têm também outras formas: assim, quan­
eu ao menos bastante claramente para afirmar do quero, temo, afirmo ou nego, concebo algo
que eram verdadeiras? De fato, se depois jul- como objeto do ato de meu pensamento, mas
guei que se podia duvidar destas coisas, não acrescento também outro, por meio desta ação,
foi por outra razão, senão porque me vinha em à idéia daquela coisa; e deste gênero de pen­
mente que, talvez, algum Deus tinha podido dar- samentos, uns são chamados vontade ou afei­
me uma natureza tal que me enganasse tam­ ções, e os outros, julgamentos.
bém sobre as coisas que me parecem as mais Ora, quanto ao que concerne às idéias,
manifestas. Mas, todas as vezes que esta opi­ se nós as consideramos apenas em si mesmas,
nião, acima concebida, da soberana potência de sem reportá-las a outra coisa, elas não podem,
um Deus, se apresenta ao meu pensamento, sou falando propriamente, ser falsas; uma vez que,
forçado o confessar que lhe é fácil, se o desejar, mesmo que imaginando uma cabra ou uma qui­
fazer a seu capricho com que eu me engane tam­ mera, imagino uma não menos que a outra.
bém sobre coisas que creio conhecer com Igualmente, não é preciso temer falsida­
grandíssima evidência. 0 ao contrário, todas as de nas afeições ou vontade; porque embora
vezes que me volto para as coisas que penso eu possa desejar coisas más, ou também coi­
conceber muito claramente, estou de tal forma sas que jamais existiram, todavia nem por isso
persuadido delas que por mim mesmo me deixo é menos verdade que eu as desejo.
arrastar a estas palavras: "Cngane-me quem Restam assim apenas os julgamentos, nos
puder: jamais poderá fazer que eu não seja quais devo atentar acuradamente para não me
nada, enquanto eu pensar ser alguma coisa; ou enganar. Ora, o erro principal e mais ordinário
que um dia seja verdadeiro que eu jamais tenha que se possa encontrar consiste nisso, que eu
existido, sendo verdadeiro agora de que existo; julgo que as idéias, que estão em mim, sejam
ou então que dois e três, somados, dêem mais semelhantes ou conformes a coisas que estão
ou menos do que cinco, ou coisas semelhantes, fora de mim; uma vez que certamente, se consi­
que vejo claramente não poder ser de outro derasse as idéias somente como modos ou
modo de como as concebo". maneiros de meu pensamento, sem querê-las
De fato, uma vez que não tenho nenhuma reportar a outra coisa, bem dificilmente pode­
razão de crer que exista um Deus enganador, ríam dar-me ocasião de errar.
ou melhor, uma vez que ainda não considerei Ora, destas idéias, algumas me parecem
as razões que provam existir um Deus, a razão nascidas comigo [innotae], outras estranhas e
de duvidar que depende apenas desta opinião vindas de fora [adventitiae], outras ainda fei­
é muito inconsistente e, por assim dizer, me­ tas e inventadas por mim mesmo [fbctitiae], Com
...3i*4
i'i
Terceira parte - Bacon e ^Descartes

efeito, q faculdade de conceber uma coisa, uma virtudes e os vícios, que elas me levaram não
verdade, ou um pensamento, parece não provir menos ao mal do que ao bem; e eis por que
de outro coisa do que de minha natureza; mas não tenho razão de segui-las nem mesmo na­
se ouço agora algum rumor, se vejo o sol, se quilo que se refere ao verdadeiro e ao falso.
sinto calor, até agora julguei que estas sensa­ £ quanto à outra razão, isto é, que estas
ções proviessem de coisas existentes fora de idéias devem vir de outro lugar, uma vez que
mim; e, por fim, parece-me que as sereias, os não dependem de minha vontade, nem mesmo
hipogrifos e todas as outras quimeras semelhan­ esta julgo convincente. Porque, como as incli­
tes sejam ficções e invenções de meu espírito. nações, de que falava justamente agora, se
Mas igualmente, talvez, poderio persuadir-me de encontram em mim, embora não concordem
que todas estas idéias sejam do gênero das que sempre com minha vontade, assim pode ser que
chamo de estranhas, e que vêm de fora, ou en­ em mim haja alguma faculdade ou potência,
tão que tenham todas nascido comigo, ou ainda adequada a produzir estas idéias sem o auxí­
que tenham sido todas feitas por mim, uma vez lio de coisas exteriores, mesmo que ela ainda
que ainda não descobri claramente sua verda­ não me seja conhecida; como, com efeito, sem­
deira origem. £ o que tenho principalmente a pre me pareceu até agora que, quando eu dur­
fazer neste lugar é considerar, em relação às idéi­ mo, elas se formem em mim, sem o auxílio dos
as que me parecem vir de objetos postos fora objetos que representam. £, finalmente, mes­
de mim, quais são as razões que me obrigam a mo que concordasse que elas são produzidas
crê-las semelhantes a estes objetos. por estes objetos, não é uma conseqüência
necessária que elas devam ser semelhantes a
eles. flo contrário, freqüentemente notei, em
3. €xame das idéias que parecem adventícias
muitos exemplos, que havia grande diferença
R primeira dessas razões é que parece- entre o objeto e sua idéia. Como, por exemplo,
me que isso me seja ensinado pela natureza; e encontro em meu espírito duas idéias do sol de
a segunda, que experimento em mim mesmo, fato diversas: uma tem sua origem a partir dos
que estas idéias não dependem de minha von­ sentidos, e deve ser posta no gênero daque­
tade; porque freqüentemente elas se apresen­ las que acima eu disse virem de fora (e em tal
tam a mim malgrado eu mesmo, como agora, idéia o sol me parece extremamente peque­
quer eu queira ou não, sinto calor, e por esta no) ; a outra é tomada das razões da astrono­
razão me convenço de que esta sensação, ou mia, ou seja, de certas noções que nasceram
então esta idéia do calor, é produzida em mim comigo, ou, por fim, é formada por mim mesmo,
por uma coisa deferente de mim, isto é, pelo de qualquer modo que isso possa ser: e por
calor do fogo junto ao qual me encontro. £ não esta idéia ele me parece diversas vezes maior
vejo nada que me pareça mais razoável que o do que toda a terra. De fato, estas duas idéias
julgar que esta coisa estranha envia e imprime que concebo do sol não podem ser ambas se­
em mim, mais que outra coisa, uma imagem melhantes ao mesmo sol; e a razão me mostra
semelhante a si. que a que parece derivar imediatamente dele
Ora, é necessário que eu veja se estas é a que lhe é mais dessemelhante.
razões são bastante fortes e convincentes. Tudo isso me faz conhecer com suficiência
Quando digo que me parece que isso me seja que até agora, não por um juízo certo e preme­
ensinado pela natureza, entendo apenas, com ditado, mas apenas por cego e temerário im­
esta palavra natureza, certa inclinação que me pulso, acreditei haver coisas fora de mim e di­
leva a crer esta coisa, e não uma luz natural ferentes de meu ser, que, para os órgãos de
que me faça conhecer que ela é verdadeira. meus sentidos, ou por qualquer outro meio,
Ora, estas duas coisas diferem muito entre si, enviavam em mim suas idéias ou imagens, e aí
porque eu não saberia pôr em dúvida nada imprimiam suas semelhanças.
daquilo que a luz natural me faz ver que é ver­
dadeiro, assim como ela me fez ver que, pelo
4. Aquilo que é mais perfeito
fato de eu duvidar, podia concluir que existia. £
não pode ser conseqüência
eu não tenho em mim nenhuma outra faculda­
do menos perfeito
de ou potência, para distinguir o verdadeiro do
falso, que me possa ensinar que aquilo que Contudo, apresenta-se ainda outro cami­
esta luz me mostra como verdadeiro não é tal, e nho para pesquisar se, entre as coisas cujas
da qual possa me fiar tanto como desta. Mas, idéias tenho em mim, haja algumas que exis­
por aquilo que se refere às inclinações, que me pa­ tam fora de mim. Isto é, se estas idéias são
recem ser naturais também elas, freqüentemente consideradas apenas enquanto são certas ma­
notei, quando se tratou de escolher entre as neiras de pensar, eu não reconheço entre elas
313 i
Cãpítulo décimo quinto - Descartes: " o f u n d a d o r d a filosofia moderna”

nenhuma diferença ou desigualdade, e todas Mas, enfim, o que concluirei de tudo isso? O
parecem proceder de mim de um mesmo modo; seguinte: que, se a realidade objetiva de algu­
mas, considerando-os como imagens, das quais ma de minhas idéias é tal que eu conheça cla­
umas representam uma coisa e as outras uma ramente que ela não está em mim, nem for­
outra, é evidente que elas são diferentíssimas malmente, nem eminentemente, e que, por
umas das outras. Porque, com efeito, as que me conseqüência, eu mesmo não posso ser sua
representam substâncias são sem dúvida algu­ causa, disso segue necessariamente que eu
ma coisa a mais, e contêm em si (por assim não estou sozinho no mundo, mas que há ain­
dizer) maior realidade objetiva, isto é, partici­ da alguma outra coisa que existe, e que é a
pam por representação de um número maior de causa desta idéia; enquanto que, se em mim
graus de ser ou de perfeição, do que aquelas tal idéia não se encontra, não terei argumen­
que me representam apenas modos ou aciden­ tos que possam me convencer e tornar certo da
tes. Além disso, aquela pela qual eu concebo existência de alguma outra coisa além de mim
um Deus soberano, eterno, infinito, imutável, mesmo; porque procurei acuradamente todos
onisciente, onipotente e criador universal de eles, e até agora não pude encontrar nenhum
todas as coisas que estão fora de si, tal idéia, outro deles.
digo, tem certamente em si mais realidade ob­ Ora, entre estas idéias, além da que me
jetiva do que aquelas de que me são repre­ representa a mim mesmo, da qual não pode
sentadas as substâncias finitas. existir nenhuma dúvida, há outra, que me repre­
Ora, é coisa manifesta por luz natural que senta um Deus; outras, coisas corpóreas e ina­
deve haver pelo menos tanto de realidade na nimadas; outras, anjos; outras, animais; e ou­
causa eficiente e total, quanto em seu efeito; por­ tras, enfim, que me representam homens
que, de onde o efeito pode tirar sua realidade, semelhantes a mim. Mas para aquilo que se
senão da própria causa? G como esta causa pode­ refere às idéias que me representam outros
rio comunicá-la, se não a tivesse em si mesma? homens, ou animais, ou anjos, eu concebo fa­
G disso segue não somente que o nada cilmente que elas podem ser formadas pela
não poderio produzir nenhuma coisa, mas tam­ mistura e composição das outras idéias, que
bém que aquilo que é mais perfeito, isto é, que tenho das coisas corpóreas e de Deus, embora
contém em si maior realidade, não pode ser fora de mim não existam outros homens no
conseqüência e dependência do menos perfei­ mundo, nem animais, nem anjos. G por aquilo
to. G esta verdade não é somente clara e evi­ que se refere às idéias das coisas corpóreas,
dente nos efeitos, que têm aquela realidade não reconheço nelas nada de tão grande, nem
que os filósofos chamam atual ou formal, mas de tão excelente, que não me pareça poder vir
também nas idéias, onde se considera somen­ de mim mesmo; porque, se as considero mais
te a realidade que eles chamam de objetiva de perto, e as examino do mesmo modo com
[...]. G, embora possa ocorrer que uma idéia dê que examinei ontem a idéia da cera, descubro
nascimento a outra idéia, isso não pode, toda­ que aí não se encontram senão pouquíssimas
via, ir até o infinito, mas é preciso no fim chegar coisas, que eu conceba claramente e distinta­
a uma primeira idéia, da qual a causa seja como mente; isto é, a grandeza, ou seja, a extensão
um modelo ou um original, no qual esteja conti­ em comprimento, largura e profundidade; a fi­
da formal mente e de fato toda a realidade ou gura, que é formada pelos termos e pelos limi­
perfeição, que se encontra apenas objetivamen­ tes dessa extensão; a situação, que os corpos
te ou por representação nestas idéias. De modo diversamente figurados conservam entre si; e o
que a luz natural me faz conhecer evidentemente movimento ou a mudança dessa situação; às
que as idéias são em mim como quadros, ou quais se podem acrescentar a substância, a
imagens, que podem, na verdade, facilmente duração e o número. [...]
decair da perfeição das coisas de onde foram Quanto às idéias claras e distintas que
tiradas, mas que não podem conter jamais nada tenho das coisas corpóreas, há algumas que
de maior ou de mais perfeito. parece que eu tenha podido tirar da idéia de
mim mesmo, como a idéia da substância, da
duração, do número, e de outras coisas seme­
5. A realidade objetiva de algum as idéias
lhantes. [...]
pode ser garantida
Por aquilo que se refere às outras quali­
apenas por uma causa diferente
dades, das quais são compostas as idéias das
do sujeito pensante
coisas corpóreas, isto é, a extensão, a figura, a
G quanto mais longa e acuradamente exa­ situação e o movimento local, é verdade que
mino todas essas coisas, tanto mais clara e dis­ elas não estão formalmente em mim, uma vez
tintamente conheço que elas são verdadeiras. que eu sou apenas uma coisa que pensa; mas,
314
Terceira parte - Bacon e Descartes

uma vez quo sõo som0nt0 modos do substân­ quer outra, não há nenhuma quo por si seja
cia, 0 como quo os vastos sob os quais o subs­ mais vordadoira, nem que possa ser menos
tância corpórea nos apareço, 0 ©u mosmo sou suspeita do orro o de falsidade.
uma substância, pároco qu© possam ostar con­ A idéia, digo, deste sor soboronomonto
tidas ©m mim do modo ominonto. perfoito o infinito é intoiramente verdadeira; uma
vez que, embora, talvoz, so possa fingir quo tal
ser não exista, não so podo fingir, todavia, que
6. Deus, enquanto substância infinita, existe,
sua idéia não mo roprosonto nada de roal, como
e a idéia de Deus como Ser perfeito
já disse a respeito da idéia do frio.
é inteiramente verdadeira
Çsta mesmo idéia é também sumamonte
Rosta, portanto, aponas o idéia do Dous, clara o distinta, uma vez que tudo aquilo que
na qual 0 preciso considorar so haja algo quo meu espírito concebe claramente e distintamen-
não tonha podido vir do mim mosmo. Com o to do real e de verdadeiro, e que contém em si
nomo do Dous ontondo uma substância infini­ alguma perfeição, está contido e encerrado in-
ta, ©torna, imutávol, indopendonto, oniscionto, toiramonto nesta idéia.
onipotonto, o da qual ou mosmo, o todas as € isto não deixa de ser verdadeiro, em­
outras coisas quo oxistom (so 0 vordado quo bora eu não compreenda o infinito, e ainda que
haja do oxistontos), fomos criados o produzi­ so oncontre em Deus uma infinidade do coisas
dos. Ora, ostas prerrogativas são tão grandes que não posso compreender, o talvoz nom mos­
o tão ominontos, quo quanto mais atontamen- mo atingir de algum modo com o pensamento:
to as considero, monos mo persuado do que a porque é da natureza do infinito quo minha na­
idéia quo disso tonho possa tirar sua origom tureza, que é finita e limitada, não o possa com­
aponas do mim. €, por consoqüência, é prociso preender,- e basta que eu compreenda isto, e
necossariamonte concluir, do tudo aquilo quo quo julguo que todas as coisas quo concebo
eu disse antes, que Deus existe; uma vez quo, claromonto, o nas quais sei que há alguma per­
ombora a idéia da substância esteja om mim feição, e talvez também uma infinidade de ou­
polo próprio fato de que sou uma substância, tras que ignoro, oxistom em Dous formalmonto
ou não toria, todavia, a idéia do uma substân­ ou eminentomonto, para quo a idéia quo dolo
cia infinita, eu que sou um ser finito, so ola não tonho seja a mais verdadeira, a mais clara o a
tivesse sido posta em mim por alguma subs­ mais distinta de todas aquelas quo oxistom om
tância verdadeiramonte infinita. meu espírito.
Nem devo supor conceber o infinito, não Mas é possível também quo ou seja algu­
por moio de uma verdadeira idéia, mas ape­ ma coisa a mais que não imagino, o que todas as
nas por moio da nogação daquilo quo é finito, perfoiçõos que atribuo à natureza do um Dous
assim como compreondo o repouso o as trovas ostejam do algum modo em mim em potência,
por moio da negação do movimento e da luz: ombora não se produzam ainda, o não se tor­
uma vez quo, ao contrário, vejo manifestamon- nem manifestas por meio de suas ações. [...]
to que se encontra mais roalidado na substân­
cia infinita do quo no substância finita, o por­
7. Rs conseqUências absurdas
tanto que, do corto modo, tonho em mim
que derivam da hipótese
primeiro a noção do infinito do que do finito,
de que Deus não exista
isto é, primeiro a noção do Dous do quo a no­
ção do mim mesmo. Porque, como podoria co­ Gs por que quero aqui [...] considerar se
nhecer que duvido o que dosojo, isto é, quo ou mesmo, que tonho osta idéia de Deus, po­
mo falta alguma coisa, e que não sou total- doria oxistir, caso Dous não existisso. 6 porgun-
monto porfeito, se não tivesso em mim nenhu­ to: de onde tiraria minha existência? Talvoz do
ma idéia de um sor mais perfoito do que o meu, mim mesmo, ou de meus genitores, ou então
de cuja comparação iria reconhecer os defeitos do outras causas monos porfoitas do quo Dous,
de minha natureza? porque nada se podo imaginar de mais perfei­
Nem se podo dizer que, talvez, esto idéia to, e nem mosmo igual a 0 I0 .
de Dous é matorialmonte falsa, o quo, por con­ Oro, se ou fosse independente de qual­
seguinte, eu a posso tirar do nada, isto é, quo quer outro, o fosse eu mesmo o autor de meu
ola podo so oncontror om mim porque me falta ser, certamonte não duvidaria do coisa nonhu-
alguma coisa, como disso acima a respeito das ma, não concebería mais dosojos, o por fim não
idéias do quente e do frio, e de outras coisas me faltaria nonhuma porfoição; porquo ter-
semelhantes: porque, ao contrário, sendo esta mo-ia dado eu mosmo todas aquelas do quo
idéia suficiontomente clara o distinta, e conten­ tenho em mim alguma idéia, e assim ou seria
do em si mais realidade objetiva do quo qual­ Deus.
315
Capítulo dedmo quinto osotia
- Descartes: “o fundadoe da filosofi m o d e - r n a

€ eu nõo devo imaginar qua as coisas que virtude de ser e de existir por si, deve também
me faltam sejam mais difíceis d© adquirir do que ter, sem dúvida, a potência de possuir atual­
aquelas d© que já estou ©m posse; porque, ao mente todas as perfeições das quais concebe
contrário, é certíssimo que foi muito mais'difícil as idéias, isto é, todas as que eu concebo ha­
qu© ©u, isto é, uma coisa ou substância ver em Deus. Pois, se ela tira sua existência de
pensante, tenha saído do nada, daquilo que alguma coisa diferente de si, perguntar-se-á de
nõo me seria o adquirir os lumes ©os conheci­ início, pela mesma razão, desta segunda causa,
mentos de diversas coisas que ignoro, © que se existe por si ou por obra de outros, até que,
soo apenas acidentes desta substância. 6 a s­ de grau em grau, se chegue a uma última causa,
sim, sem dificuldade, se me tivesse dado eu que se descobrirá ser Deus. € é muitíssimo claro
mesmo aquele mais do qual falei, isto é, se que nisso não pode haver progresso até o in­
fosse o autor de meu nascimento e de minha finito, visto que não se trata tanto, aqui, da
existência, não me teria privado ao menos dos causa que me produziu outra vez, quanto da
coisas que são de mais fácil aquisição, isto é, que me conserva presentemente. [...]
de muitos conhecimentos d© que minha nature­ No que se refere a meus genitores, dos
za está privado; não me teria privado sequer quais parece que eu tire meu nascimento, mes­
de nenhuma das coisas que estão contidas na mo se tudo aquilo que jamais pude crer seja
idéia de Deus, porque não há nenhuma que verdadeiro, isso, todavia, não faz com que se­
me pareça de mais difícil aquisição; e se hou­ jam eles que me conservem, e que me tenham
vesse alguma, certamente ela me parecería tal feito e produzido enquanto coisa que pensa, pois
(suposto que eu tivesse por mim todas as ou­ eles apenas colocaram algumas disposições
tras coisas que possuo), porque experimenta­ naquela matéria, na qual julgo que eu, isto é,
ria que minha potência nela teria seu termo, e meu espírito, que só tomo agora por mim mes­
não seria capaz de aí chegar. mo, se encontre encerrado; e, portanto, não pode
£ embora eu possa supor que talvez te­ haver aqui a respeito deles alguma dificuldade;
nha sempre existido como existo agora, nem mas é preciso necessariamente concluir que,
por isso saberia evitar a força deste raciocínio, pelo único fato de que eu existo, e que a idéia
deixar de crer necessário que Deus seja o au­ de um ser soberanamente perfeito (isto é, de
tor de minha existência. Uma vez que todo o Deus) está em mim, a existência de Deus fica,
tempo de minha vida pode ser dividido em uma de modo muito evidente, demonstrada.
infinidade de partes, cada uma das quais não
depende de modo nenhum das outras; mas do
8. A idéia de Deus é inata no homem
fato de que um pouco antes eu tenha existido
não se segue que eu deva existir agora, a me­ Resta-me apenas examinar de que modo
nos que neste momento alguma causa me pro­ eu tenha adquirido esta idéia, pois não a rece­
duza e me crie, por assim dizer, desde o início, bí por meio dos sentidos, e jamais ela se ofe­
isto é, me conserve. [...] receu a mim contra minha expectativa, como
Ora, não poderio ocorrer que aquele ser, ocorre com as idéias das coisas sensíveis, quan­
do qual eu dependo, não seja aquilo que cha­ do estas se apresentam, ou parecem apresen­
mo Deus, e que eu seja produzido, ou pelos tar-se, aos órgãos exteriores de meus sentidos.
meus genitores, ou por outras causas menos 61a não é sequer pura produção ou ficção de
perfeitas do que Deus? Bem longe disso, a coi­ meu espírito, porque não está em meu poder
sa não pode ser assim. Porque, como já disse tirar ou acrescentar alguma coisa a ela. 6, por
antes, é evidentíssimo que deve haver ao me­ conseguinte, não resta outra coisa a dizer, a
nos tanta realidade na causa quanto no seu não ser que, como a idéia de mim mesmo, ela
efeito. Portanto, uma vez que sou uma coisa nasceu e foi produzida comigo, desde quando
que pensa, e tenho em mim alguma idéia de fui criado.
Deus, seja qual for enfim a causa que se atri­ €, sem dúvida, não se deve achar estra­
bua à minha natureza, é preciso necessariamen­ nho que Deus, criando-me, tenha posto em mim
te confessar que ela deve igualmente ser uma esta idéia, para que fosse como a marca do
coisa que pensa, ©deve possuir em si a idéia operário impressa em sua obra; e não é se­
de todas as perfeições que atribuo à natureza quer necessário que esta marca seja algo de
divina. Depois, pode-se desde o início procurar diferente dessa mesma obra. Mas do fato ape­
se esta causa deriva sua origem e sua existên­ nas que Deus me criou, é bastante crível que
cia de si mesma ou de alguma outra coisa. Uma ele me tenha de algum modo produzido à sua
vez que, se ela deriva de si mesma, disto se­ imagem e semelhança, e que eu conceba esta
gue-se, pelas razões que acima aleguei, que semelhança (na qual o idéia de Deus se acha
ela própria deve ser Deus; com efeito, tendo a contida) por meio da mesma faculdade com a
316
Terceira parte - Bacon e Descartes

qual concebo o mim mesmo: isto é, que quan­ De onde resulta com evidência suficiente
do eu reflito sobre mim, não somente conheço que ele não pode ser enganador, pois a luz
ser uma coisa imperfeita, incompleta e depen­ natural nos ensina que o engano depende ne­
dente de outros, que tende e que aspira sem cessariamente de algum defeito.
parar a qualquer coisa melhor e maior do que Mas, antes que eu examine isto mais acu­
eu seja, mas conheça também, ao mesmo tem­ radamente, e que passe à consideração das
po, que aquele, do qual dependo, possui em outras verdades que se possam reunir, parece-
si todas as grandes coisas às quais aspiro, e me muito a propósito parar algum tempo na
das quais encontro em mim as idéias; e que as contemplação deste Deus perfeitíssimo, ponde­
possui, não indefinidamente e apenas em po­ rar à vontade seus maravilhosos atributos, con­
tência, mas os goza em efeitos, atualmente e siderar, admirar e adorar a incomparável be­
infinítamente e, portanto, que é Deus. 6 toda a leza desta imensa luz, ao menos tanto quanto
força do argumento, do qual aqui usei para pro­ puder permiti-lo a força de meu espírito, que
var a existência de Deus, consiste nisso, que eu com isso permanece de certo modo deslum­
reconheço que não seria possível que minha brado.
natureza fosse tal qual é, isto é, que tivesse em Uma vez que, como nos ensina a fé, a
mim a idéia de um Deus, se Deus verdadeira­ soberana felicidade da outra vida consiste tão-
mente não existisse; aquele mesmo Deus, digo, somente nesta contemplação da divina Majes­
a idéia do qual está em mim: isto é, que possui tade, assim experimentamos desde agora que
todas as altas perfeições, das quais nosso espí­ tal meditação, embora incomparavelmente me­
rito pode bem ter alguma idéia, sem todavia nos perfeita, nos faz gozar a maior alegria de
compreendê-las todas; que não está sujeito e que somos capazes nesta vida.
não tem nenhum defeito; que não tem nenhuma R. Desca
das coisas que indicam alguma imperfeição. M e d ita ç õ e s m etafísicas, III.
*
B i b l i o g r a f i a d o volume III

O bras de caráter geral______________________ C ap. 1. O pensam ento hum anista


renascentista _______
E. Garin, Storia delia filosofia italiana, 3 vols.,
Einaudi, Turim 1966; F. Copleston, Storia delia filo­ Elencamos aqui uma série de obras de caráter geral
sofia, 9 vols., Paideia, Brescia 1966-1984; G. De sobre o Humanismo e a Renascença que contêm,
Ruggiero, Storia delia filosofia, 13 vols., Laterza, Bari freqüentemente, também estudos específicos sobre
1967-1968; L. Geymonat (e colaboradores), Storia autores particulares, e que por este motivo será bom
dei pensiero filosofico e scientifico, 6 vols., Garzanti, ter presentes também para os capítulos seguintes,
Milão 1970-1972 (citada a seguir como Geymonat, onde não serão, obviamente, repetidas:
Storia)-, E. Cassirer, Storia delia filosofia moderna, 4 K. Burdach, Riforma, Rinascimento, Umanesimo,
vols., Einaudi, Turim 1971; M. Dal Pra (diretor),
Sansoni, Florença 1935; J. Burckhardt, La civiltà
Storia delia filosofia, vols. VII-VIII, Vallardi, Milão dei Rinascimento in Italia, introd. de E. Garin,
1975-1976; S. Vanni Rovighi (e colaboradores), Sto­ Sansoni, Florença 1962; J. Huizinga, Uautunno dei
ria delia filosofia moderna dalla rivoluzione scientifica Medioevo, Sansoni, Florença 1966; F. Chabod, Studi
a Hegel, La Scuola, Brescia 1976; N. Abbagnano, sul rinascimento, Einaudi, Turim 1967; G. Gentile,
Storia delia filosofia, 4 vols., Utet, Turim 1991 (o IV II pensiero italiano dei Rinascimento, Sansoni, Flo­
vol. é de G. Fornero e colaboradores). rença 1968; C. Vasoli, La dialettica e la retórica
De particular interesse são também: neirUmanesimo, Feltrinelli, Milão 1968; E. Cassirer,
Indivíduo e cosmo nella filosofia dei Rinascimento,
a) Grande Antologia Filosófica, dirigida por U.
La Nuova Italia, Florença 1974; W. Dilthey, Lanalisi
Padovani e M . F. Sciacca, vols. VI-XVI, Marzorati,
delFuomo e Vintuizione delia natura. Dal Rinas­
M ilão 1988: as introduções às seções antológicas
cimento al secolo XVIII, La Nuova Italia, Florença
particulares são cuidadas por especialistas no as­
1974 (2 vols.); C. Vasoli, Umanesimo e Rinasci­
sunto; as bibliografias são muito amplas, e a elas
mento, Palumbo, Palermo 1977; A. G. Debus, L’uo-
remetemos aqui de uma vez por todas;
mo e la natura nel Rinascimento, Jaca Book, Milão
b) Questioni di storiografia filosófica. La storia delia 1982; G. B. Schmitt, Problemi delVaristotelismo
filosofia attraverso i suoi interpreti, La Scuola, Bres­ rinascimentale, Bibliopolis, Nápoles 1985; C. Vasoli,
cia 1974-1976, em 6 vols. (aqui interessa-nos o se­ Filosofia e religione nella cultura dei Rinascimento,
gundo, sob a organização de V. Mathieu, DalVuma- Guida, Nápoles 1988; L. M. Batkin, Gli umanisti
nesimo a Rousseau, citado de agora em diante italiani. Stile di vita e di pensiero, Laterza, Roma-Bari
simplesmente como Questioni). 1990; P. Zambelli, Uambigua natura delia magia,
Instrumentos úteis para consulta são, por fim: En­ II Saggiatore, M ilão 1991. Para a história das inter­
ciclopédia filosófica, sob a direção do Centro di pretações: W. K. Ferguson, II Rinascimento nella
Studi Filosofici di Gallarate, Sansoni, Florença 1967­ critica storica, II Mulino, Bolonha 1969, e F. Ador­
1969; e a ágil Enciclopédia Garzanti di filosofia (e no, Umanesimo e Rinascimento, in Questioni, cit.,
lógica, linguística, epistemologia, pedagogia, psico­ pp. 9-57.
logia, psicoanalisi, sociologia, antropologia cultu- Dá-se particular atenção, neste volume, às teses de
rale, religioni, teologia), sob a direção das Redazioni Kristeller e de Garin. Do primeiro vejam-se: P. O.
Garzanti, com a consultoria geral de G. Vattimo Kristeller, La tradizione aristotelica nel Rinasci­
em colaboração com M . Ferraris e D. Marconi, mento, Antenore, Pádua 1962; La tradizione classica
Garzanti, M ilão 1994. nel pensiero dei Rinascimento, La Nuova Italia, Flo­
rença 1965; Otto pensatori dei Rinascimento,
Ricciardi, M ilão-Nápoles 1970; Concetti rinasci-
Para a presente bibliografia não nos propusemos, ob­ mentali delVuomo e altri saggi, La Nuova Italia,
viamente, nenhuma pretensão de ser completos, mas pro­ Florença 1978. Do segundo: E. Garin, La cultura
curamos fornecer uma plataforma de partida suficiente­
mente ampla para qualquer aprofundamento posterior
filosofia dei Rinascimento italiano, Sansoni, Floren­
sério. ça 1961; Ritratti di umanisti, Sansoni, Florença
Foram excluídas, de propósito, citações de revistas. 1967, e, todos editados por Laterza, Bari: Ueduca-
Os volumes elencados estão todos exclusivamente em lín­ zione in Europa (1400-1600), 1976; Rinascite e
gua italiana: é por isso que nunca indicamos, para os au­ rivoluzioni. Movimenti culturali dal XIV al XVIII
tores estrangeiros, que se trata de traduções. secolo, 1976; Medioevo e Rinascimento, 1980;
B ib lio g r a f ia d o te r c e ir o volu m e

L'Umanesimo italiano, 1981; Scienza e vita civile direção de), Marsilio Ficino e il ritorno di Platone.
nel Rinascimento italiano, 1980; La cultura dei Studi e documenti, Florença 1986.
Rinascimento. Profilo storico, 1981; Lo zodiaco Para Pico: E. Garin, G. Pico delia Mirandola, Le
delia vita. La polemica sull’astrologia dal Trecento Monnier, Florença 1937; G. Di Napoli, G. Pico delia
al Cinquecento, 1982; L'uomo dei Rinascimento, Mirandola e la problemática dottrinale dei suo tem­
1988 (deste último volume Garin não é autor, mas po, Desclée, Roma 1965; P. Zambelli, Uapprendista
organizador). stregone. Astrologia, cabala e arte lulliana in Pico
delia Mirandola e seguaci, Marsilio, Veneza 1995.
Cap. 2. Os debates sobre problemas morais
e o Neo-epicurismo Cap. 4. O Aristotelismo renascentista
Para os autores que são também, ou sobretudo, li­
e a revivescência do Ceticismo
teratos, remetemos a uma boa história da literatura Textos
italiana. Aqui nos ocuparemos dos pensadores de Pomponazzi: Tractatus de immortalitate animae,
interesse mais especificamente filosófico. texto latino em paralelo, sob a direção de Morra,
Textos Manni e Fiammenghi, Bolonha 1954; De fato, de
libero arbítrio et de praedestinatione, sob a direção
Valia: Scritti filosofici e religiosi, sob a direção de
de R. Lemay, Antenore, Pádua 1957. Não facilmente
G. Radetti, Sansoni, Florença 1953; Opera omnia,
localizável é P. Pomponazzi, Trattato sulPimmor-
sob a direção de E. Garin, Turim 1962.
talità delPanima. II libro degli incantesimi, prefácio
Literatura de R. Ardigò, introdução, tradução e notas de I.
S. I. Camporeale, L. Valia. Umanesimo e filologia, Toscani, Editoriale G. Galilei, Roma 1914.
Le Monnier, Florença 1972. Montaigne: Saggi, 3 vols., sob a direção de V. Enrico,
Mondadori, Milão 1986; Saggi, 2 vols., sob a dire­
ção de F. Garavini, Adelphi, Milão 1992.
Cap. 3. O Neoplatonismo renascentista Literatura
Textos Para Pomponazzi: B. Nardi, Studi su Pietro Pom­
Nicolau de Cusa: Scritti filosofici (com texto latino ponazzi, Le Monnier, Florença 1965; A. Poppi, Saggi
em paralelo), sob a direção de G. Santinello, sul pensiero inédito di P. Pomponazzi, Antenore,
Zanichelli, Bolonha (vol. I, 1965; vol. II, 1980); Pádua 1970; L. Olivieri, Certezza e gerarcbia dei
Opere religiose, sob a direção de P. Gaia, Utet, Tu­ sapere. Crisi delVidea di scientificità nelParis-
rim 1971; Opere filosofiche, sob a direção de G. totelismo dei secolo XVI, Antenore, Pádua 1983.
Federici Vescovini, Utet, Turim 1972; La dotta igno- Para Montaigne: A. M. Battista, Alie origini dei
ranza. Le congetture, sob a direção de G. Santinello, pensiero político libertino: Montaigne e Charron,
Rusconi, Milão 1988; La pace delia fede e altri testi, Giuffrè, Milão 1966; J. Starobinski, Montaigne e il
sob a direção de G. Federici Vescovini, Cultura delia paradosso delVapparenza, II Mulino, Bolonha 1984.
pace, Florença 1992.
Ficino: Teologia platônica (com texto latino em Cap. 5. A Renascença e a Religião
paralelo), sob a direção de M. Schiavone, 2 vols.,
Zanichelli, Bolonha 1965. Textos
G. Pico delia Mirandola: De bominis dignitate, Erasmo de Rotterdam: Elogio delia pazzia, sob a di­
Heptaplus, De ente et uno, e scritti vari, texto e tradu­ reção de C. Annarratone, Rizzoli, Milão 1963; Elo­
ção sob a direção de E. Garin, Vallecchi, Florença gio delia pazzia, trad. de T. Fiore, Einaudi, Turim
1942 (nova ed. La Scuola, Brescia 1987); Dis- 1964; I colloqui, sob a direção de G. P. Brega, Fel-
putationes adversus astrologiam divinatricem, tex­ trinelli, Milão 1967; II lamento delia pace, sob a di­
to e tradução sob a direção de E. Garin, 2 vols., Vallec­ reção de L. Firpo, Utet, Turim 1967; La formazione
chi, Florença 1946-1952; Discorso sulla dignità cristiana delPuomo, sob a direção de F. Orlandini
delVuomo, sob a direção de A. Tognon, La Scuola, Traverso, Rusconi, Milão 1989; Elogio delia follia,
Brescia 1987; Opere scelte, sob a direção de V. Del sob a direção de E. Garin, Mondadori, Milão 1992.
Nero, Theorema, Milão 1993. Lutero: Scritti politici, tr. de G. Panzeri Saija, intr. e
bibl. di L. Firpo, Utet, Turim 1959; Scritti religiosi,
Literatura sob a direção de V. Vinay, Utet, Turim 1967; Dalla
Para Nicolau de Cusa: VV. AA., Niccolò Cusano parola alia vita. Scritti spirituali, sob a direção de
agli inizi dei mondo moderno, sob a direção de G. U. Brelime e M. Deveno, Città Nuova, Roma 1984.
Santinello, Sansoni, Florença 1970; G. Santinello, Calvino: Istituzione delia religione cristiana, 2 vols.,
Introduzione a Cusano, Laterza, Roma-Bari 1987; sob a direção de G. Tourn, Utet, Turim 1971.
Id., N. Cusano, em Questioni, cit., pp. 59-96.
Para Ficino: P. O. Kristeller, II pensiero filosofico di Literatura
M arsilio Ficino, Sansoni, Florença 1953; M. Sobre a Reforma em geral são muito boas as sínte­
Schiavone, Problemi filosofici in Marsilio Ficino, ses de R. H. Bainton, La Riforma protestante,
Marzorati, Milão 1957; G. C. Genfragnini (sob a Einaudi, Turim 1958, e de J. Lortz-E. Iserloh, Storia
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delia Riforma (ambas, a primeira protestante e a machiavellismo, La Nuova Italia, Florença 1980;
segunda católica, com bibliografia). De valor cien­ E. Garin, Machiavelli fra política e storia, Einaudi,
tífico bastante notável é o vol. VI da Storia delia Turim 1993.
chiesa, dirigida por H. Jedin, a cujas amplas e deta­ Para Guicciardini: além do volume cit. de U. Spirito,
lhadas bibliografias sem dúvida remetemos: E. Iser- pode-se ver F. Gilbert, Machiavelli e Guicciardini.
loh-J. Glazik-H. Jedin, Riforma e Controriforma Pensiero político e storiografia a Firenze nel Cin-
(XVI-XVII secolo), Jaca Book, Milão 1975. Ou­ quecento, Einaudi, Turim 1970.
tras boas sínteses são as de M. Bendiscioli: La Rifor­
ma protestante, Studium, Roma 1967, e La Riforma Para T. Morus: F. Battaglia, Saggi sulPutopia di T.
cattolica, Studium, Roma 1973; e as de H. Strohl, Moro, Zuffi, Bolonha 1949; J. H. Hexter, Uutopia
II pensiero delia Riforma, II Mulino, Bolonha 1971; di T. Moro, Guida, Nápoles 1975.
G. M artina: La Chiesa nelVetà delia riforma, Para Bodin: V. I. Comparato, Bodin, II Mulino,
Morcelliana, Brescia 197S; M. G. Reardon, II pen­ Bolonha 1981 (com antologia de textos e biblio­
siero religioso delia Riforma, Laterza, Roma-Bari grafia); VV. AA., La “République” di J. Bodin,
1984; J. Delumeau, La riforma. Origini e afferma- Olschki, Florença 1981.
zione, Mursia, Milão 1988. Para todos esses autores vejam-se, por fim: P. Mes-
Sobre a Contra-reforma e a Reforma católica: H. nard, 11 pensiero político rinascimentale, 2 vols.,
Jedin, Riform a cattolica o C on troriform a?, Laterza, Bari 1963-1964; G. Fassò, Storia delia fi­
Morcelliana, Brescia 1974. Fundamental é a já clás­ losofia dei diritto, 3 vols., II Mulino, Bolonha 1968
sica obra, em cinco volumes: H. Jedin, II Concilio (vol. II); G. H. Sabine, Storia delle dottrine politiche,
di Trento, Morcelliana, Brescia 1973-1982; mas do 2 vols., Etas Libri, Milão 1978 (vol. I). Estas duas
mesmo autor se pode ver também a mais sintética últimas obras devem ser mantidas presentes tam­
Breve storia dei Concili, Morcelliana, Brescia 1979. bém para o pensamento jurídico e político dos au­
Para a documentação se pode ver: Decisioni dei tores tratados nos capítulos sucessivos.
Concili Ecumenici, sob a direção de G. Alberigo,
Utet, Turim 1978.
Cap. 7. Leonardo, Telésio, Bruno
e Campanella
Cap. 6. A Renascença e a Política
Textos
Textos Leonardo da Vinci: Scritti letterari, sob a direção
Maquiavel: Opere, 8 vols., sob a direção de S. de A. Marinoni, Rizzoli, Milão 1974; L’uomo e la
Bertelli e F. Gaeta, Feltrinelli, Mião 1960-1962. natura, sob a direção de M. De Micheli, Milão 1982;
Guicciardini: Ricordi, sob a direção de R. Spongano, Trattato delia pittura, sob a direção de M. Tabarrini
Sansoni, Florença 1951. e G. Milanesi, Melita, Roma 1984 (restauração
anastática da edição de 1890).
(Tanto do Príncipe de Maquiavel como dos Ricordi
de Guicciardini existem diversas edições escolásticas, Telésio: De rerum natura iuxta própria principia,
freqüentemente com bons comentários). livros I-IV, com texto latino em paralelo, sob a di­
T. Morus: Utopia, sob a direção de L. Firpo, Guida, reção de L. De Franco, 2 vols., Casa dei libro
Editrice, Cosenza 1965-1974; De rerum natura, li­
Nápoles 1979; Utopia, sob a direção de T. Fiore,
Laterza, Roma-Bari 1982; Thomas More, antolo­ vros VII-IX, sob a direção de L. De Franco, La
gia de textos, sob a direção de C. Quarta, Cultura Nuova Italia, Florença 1976.
delia pace, Florença 1988. Bruno: Dialoghi italiani, com notas de G. Gentile,
Bodin: I sei libri dello Stato, sob a direção de M. sob a direção de G. Aquilecchia, Sansoni, Florença
Isnardi Parente, Utet, Turim 1964 (com ampla bi­ 1985; Opere latine, sob a direção de C. Monti, Utet,
bliografia). Turim 1980; De causa, principio et uno, sob a dire­
ção de A. Guzzo, Mursia, Milão 1985; Spaccio de
Grotius: Prolegomeni al diritto delia guerra e delia la bestia trionfante, sob a direção de M. Ciliberto,
pace, sob a direção de G. Fassò, Zanichelli, Bolo­ Rizzoli, Milão 1985.
nha 1949; Delia vera religione cristiana, sob a dire­
ção de F. Pintacuda De Michelis, Laterza, Roma- Bruno e Campanella: Opere, sob a direção de A.
Bari 1973. Guzzo e R. Amerio, Ricciardi, Milão-Nápoles 1956.
Campanella: Del senso delle cose e delia magia, sob
Literatura a direção de A. Bruers, Laterza, Bari 1925; La città
Para Maquiavel: L. Russo, N. Machiavelli, Laterza, dei Sole, sob a direção de N. Bobbio, Einaudi, Tu­
Bari 1957; G. Sasso, N. Machiavelli. Storia dei suo rim 1941; Metafísica, com texto latino em parale­
pensiero político, Istituto Italiano per gli Studi lo, sob a direção de G. Di Napoli, 3 vols., Zanichelli,
Storici, Nápoles 1958 (nova ed. 11 Mulino, Bolo­ Bolonha 1967; Apologia per Galileo, com texto la­
nha 1980); F. Chabod, Scritti su Machiavelli, tino em paralelo, sob a direção de S. Femiano,
Einaudi, Turim 1964; G. Sasso, Studi su Machiavelli, Marzorati, Milão 1971.
Morano, Nápoles 1967; U. Spirito, Machiavelli e
Guicciardini, Sansoni, Florença 1968; F. Gilbert, Literatura
Machiavelli e la vita culturale dei suo tempo, II Sobre Leonardo: C. Luporini, La mente di Leonar­
Mulino, Bolonha 1974; J. Macek, Machiavelli e il do, Sansoni, Florença 1953; B. Gille, Leonardo e
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gli ingegneri dei Rinascimento, Feltrinelli, Milão verso infinito, Feltrinelli, Milão 1970; T. S. Kuhn,
1972; W . AA., Leonardo da Vinci, Giunti-Barbera, La rivoluzione copernicana, Einaudi, Turim 1972;
Florença 1974; E. Solmi, Scritti vinciani, La Nuova Id., La struttura delle rivoluzioni scientifiche,
Italia, Florença 1976; W . AA., Leonardo e l'età Einaudi, Turim 1972; W . AA., La scuola galileiana
delia ragione, sob a direção de E. Bellone e P. Rossi, e l’origine delia vita, sob a direção de P. Cristofolini,
Edizioni di “ Scientia” , Milão 1982. Loescher, Turim 1974; P. Rossi, La rivoluzione
Sobre Telésio: N. Abbagnano, B. Telesio, Bocca, scientifica da Copernico a Newton, Loescher, Tu­
Milão 1941; Id., B. Telesio e la filosofia dei Rinas­ rim 1974; E. J. Dijksterhuis, II meccanicismo e
cimento, Garzanti, Milão 1941; W . AA., Bernar- Pimmagine dei mondo: dai Presocratici a Newton,
dino Telesio nel IV centenário delia morte (1588), Feltrinelli, Milão 1980.
Istituto nazionale di studi sul Rinascimento meri-
dionale, Nápoles 1989. Cap. 10. De Copérnico a Kepler
Sobre Bruno: G. Gentile, II pensiero italiano dei
Rinascimento, Sansoni, Florença 1968; G. Aqui- Textos
lecchia, Giordano Bruno, Istituto delPEnciclopedia Copérnico: De revolutionibus orbium coelestium
Italiana, Roma 1971; I. Vecchiotti, Che cosa ha (dedica a Paulo III o livro I), sob a direção de A.
veramente detto G. Bruno, Ubaldini, Roma 1971; Koyré e C. Vivanti, Einaudi, Turim 1975.
A. Ingegno, Cosmologia e filosofia nel pensiero di
G. Bruno, La Nuova Italia, Florença 1978; F. A.
Yates, L’arte delia memória, Einaudi, Turim 1972; Cap. 11. Galileu Galilei
Id., Giordano Bruno e la tradizione ermetica,
Laterza, Roma-Bari 1981; M. Ciliberto, La mota Textos
dei tempo. Interpretazione di Giordano Bruno, Galilei: Opere, Edizione Nazionale, 20 vols, sob a
Editori Riuniti, Roma 1986; Id., Giordano Bruno, direção de A. Favaro, Florença 1890-1909.
Laterza, Roma-Bari 1990; N. Badaloni, Giordano Literatura
Bruno tra cosmologia ed etica, De Donato, Roma-
Bari 1988; L. Spruit, II problema delia conoscenza G. de Santillana, Processo a Galileo, Mondadori,
in Giordano Bruno, Bibliopolis, Nápoles 1988. Milão 1960; V. Ronchi, Galileo e il suo cannoc-
História antológica das interpretações: G. Radetti, cbiale, Boringhieri, Turim 1964; L. Geymonat, Ga­
Bruno, in Questioni, cit., pp. 97-182. lileo Galilei, Einaudi, Turim 19692; W. R. Shea, La
rivoluzione intellettuale di Galileo, Sansoni, Floren­
Sobre Campanella: L. Firpo, Ricerche campanel-
ça 1974; A. Koyré, Studi galileiani, Einaudi, Turim
liane, Sansoni, Florença 1947; R. Amerio, Campa­
1976; W . AA., Galileo, sob a direção de A. Caruso,
nella, La Scuola, Brescia 1947; Id., Introduzione alia
Isedi, Milão 1978; S. Drake, Galileo, DalPOglio,
teologia di Tommaso Campanella, Sei, Turim 1948;
Milão 1981; L. Geymonat, Per Galileo: attualità
A. Corsano, T. Campanella, Laterza, Bari 1961; N.
dei razionalismo, sob a direção de M. Quaranta,
Badaloni, T. Campanella, Feltrinelli, Milão 1965; Bertani Editore, Verona 1981; P. Redondi, Galileo
S. Femiano, Lo spiritualismo di T. Campanella, 2
eretico, Einaudi Turim 1983, VV. AA., Galileo
vols., Iem, Nápoles 1965; Id., La metafísica di T.
Galilei: 350 anni di storia, sob a direção de Mons.
Campanella, Marzorati, Milão 1968; W . AA., Atti P. Poupard, com uma declaração de João Paulo II,
dei convegno internazionale sul tema: Campanella
Piemme, Casale Monferrato 1984; A. Battistini,
e Vico, Academia Nazionale dei Lincei, Roma 1969;
Introduzione a Galilei, Laterza, Roma-Bari 1989.
L. Firpo, II supplizio di Tommaso Campanella.
Narrazioni, documenti, verbali delle torture,
Salerno, Roma 1985; G. Scalici (sob a direção de), Cap. 12. Newton
La “Città dei sole” di Campanella e il pensiero
utopistico fra Cinquecento e Seicento, Paravia, Tu­ Textos
rim 1992. Newton: Sistema dei mondo, Boringhieri, Turim
1959; Principi matematici delia filosofia naturale,
sob a direção de A. Pala, Utet, Turim 1965.
Cap. 8. Origens e traços gerais
da revolução científica Literatura
S. I. Vavilov, Isaac Newton, Einaudi, Turim 1954;
Elencamos aqui uma série de obras de caráter geral
A. Pala, Isaac Newton: scienza e filosofia, Einaudi,
sobre a revolução científica.
Turim 1969; I. B. Cohen, La rivoluzione
À. C. Crombie, Da S. Agostino a Galileo. Storia newtoniana, Feltrinelli, Milão 1982.
delia scienza dal V al XVIII secolo, Feltrinelli, Mi­
lão 19822; H. Butterfield, Le origini delia scienza
moderna, II Mulino, Bolonha 1962; A. Einstein, Cap. 13. As ciências da vida, as Academias
Pensieri degli anni difficili, Boringhieri, Turim 1965; e as Sociedades científicas
A. Koyré, La rivoluzione astronômica: Copernico,
Keplero, Borelli, Feltrinelli, Milão 1966; Id., Dal Textos
mondo dei pressapoco all’universo delia precisione, Harvey: Opere, sob a direção de F. Alessio,
Einaudi, Turim 1967; Id., Dal mondo chiuso alPuni- Boringhieri, Turim 1963.
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Cap. 14. Bacon Roma-Bari 1986. São numerosas as edições comen­


tadas do Discurso sobre o método.
Textos
Literatura
Bacon: Opere filosoficbe, sob a direção de E. De
Mas, 2 vols., Laterza, Bari 1965; Scritti politici, A. Del Noce, Riforma cattolica e filosofia moder­
giuridici e storici, sob a direção de E. De Mas, 2 na, vol. I: Cartesio, II Mulino, Bolonha 1965; K.
vols., Utet, Turim 1971; Scritti filosofici, sob a di­ Lõwith, Dio, uomo e mondo da Cartesio a Nietzs-
reção de P. Rossi, Utet, Turim 1975. che, Morano, Nápoles 1966; G. Bontadini, Studi di
filosofia moderna, La Scuola, Brescia 1966 (a ter pre­
Literatura sente até Kant); E. Garin, Introduzione a Cartesio,
E. De Mas, Francesco Bacone da Verulamio. La fi­ Opere, cit.; L. Verga, Uetica di Cartesio, Celuc,
losofia delVuomo, Edizioni di “ Filosofia” , Turim Milão 1974; S. Blasucci, La sapienza di Socrate e la
1964; Id., Francis Bacon, La Nuova Italia, Floren- saggezza di Cartesio, Adriatica Editrice, Bari 1974;
ça 1978; B. Farrington, F. Bacone filosofo delVetà A. Pavan, AlVorigine dei progetto borghese. II
industriale, Einaudi, Turim 1967; P. Rossi, Francesco giovane Descartes, Morcelliana, Brescia 1979; An-
Bacone. Dalla magia alia scienza, Einaudi, Turim tonio Negri, Descartes politico o delia ragionevole
1974; Id., Bacone, em Questioni, cit., pp. 183-206. ideologia, Feltrinelli, Milão 1980; G. Canziani, Fi­
losofia e scienza nella morale di Descartes, La
Nuova Italia, Florença 1980; E. Garin, Vita e ope­
Cap. 15. Descartes re di Cartesio, Laterza, Roma-Bari 1984; C.
Crapulli, Introduzione a Descartes, Laterza, Roma-
Textos Bari 1988; G. Brianese (sob a direção de), II “Dis-
Descartes: Opere, sob a direção de E. Garin, 2 vols., corso sul método” di Cartesio e il problema dei
Laterza, Bari 1967; Opere filosoficbe, sob a dire­ método nel XVII secolo, Paravia, Turim 1988; W .
ção de B. Widmar, Utet, Turim 1969; II mondo. AA., Descartes: il método e i Saggi, 2 vols., Istituto
L’uomo, sob a direção de M. e E. Garin, Laterza, delia Enciclopédia Italiana, Roma 1990; J.
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