Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
HISTORIA DA
FILOSOFIA
D o H u m a n is m o a D e sca rte s
PAUIUS
G. Reale - D. Antiseri
HISTÓRIA
DA FILOSOFIA
3 Do Humanismo
a Descartes
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Reale, Giovanni
História da filosofia: do humanismo a Descartes, v. 3 / Giovanni Reale, Dario Antiseri;
[tradução Ivo Storniolo]. — São Paulo: Paulus, 2004.
02-178 CDD-109
Título original
Sto ria d elia filo so fia - Volum e II: DaU Vm anesim o a Kant
© Editrice LA SCUOLA, Brescia, Itália, 1997
ISBN 88-350-9271-X
Tradução
Ivo Storniolo
Revisão
Zo lferin o Tonon
Impressão e acabamento
PAULUS
2a edição, 2005
© PAULUS - 2004
Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 São Paulo (Brasil)
Fax (11) 5579-3627 • Tel. (11) 5084-3066
www.paulus.com.br • editorial@paulus.com.br
ISBN 85-349-2102-4
j A p ^ e s e n f a ç ia o
★ ★ ★ * * *
B runelleschi E, 147
A B
B runi L., 21,23-24, 31
B runo G., 41, 55, 57, 103, 111
AbettiG., 177, 179, 180 B acon E, 12,108,139,141,145, 1 1 8 ,1 2 0 ,130-133,143, 168,
A cquapendente, F. de, 249, 2 5 0 151,153,163,239,253,257, 199,285
Afonso II d’Este, 45 261, 263-278, 279-282 Bullart I., 136
Afonso X, rei de Leão e Castela, 170 Bacon N., 263, 264 B uonarroti M., 5
A gostinho d e H ipona, 1 6 ,2 2 , 68, BadouèreJ., 189, 195 Buono, C. dei, 255
91, 122, 135,202 Baliani J.B., 217 Buono, P. dei, 255
A gripa C. df. N ettesheim (Heinrich B anfi A., 167 B u r c k h a r d t 9, 10, 19-20
Cornelius), 1 6 1 , 1 5 6 -1 5 8 , 163 B arbaro E., 25, 42 Burdacb K., 9, 11, 20
A lberti L.B., 23, 24-25, 147 Barone F., 166,167 B uridano , 172
Alcibíades, 84 Barônio C. card., 190, 202 Butterfield H., 171
A i.embert, J.B . L e R ond d’, 266 B arrow I., 229, 233, 242
A ef.xandre df. A frodísia, 56,58,64 B aylf.P., 145, 151, 153
Alexandre VI, 44 Bt K KMAN I., 284
Alexandre VII, 256 B elarmino R., 144,165,168,190,
A mbrósio , 68 200, 201, 205, 208, 227-228
Ammannati G., 192 Bembo R, 38, 41
A naxágoras , 36, 49 B eni P., 145
A nselmo de A osta, 297 B erkelf.y F., 243 C aietano (Tomás de Vio), 83
B éruli.f. P. de, 284 C alvino G. (Jean Cauvin), 77-78,
A ristóteles, 3, 6, 8, 22, 23, 24,
2 5 ,2 9 ,3 1 ,4 5 ,4 7 ,5 6 ,5 7 ,6 0 , B essarione G., card., 32 83, 90-92, 144, 190, 200,
63, 64, 76, 83, 94, 107, 108, B iringuccio V., 147
250
109,110,115,124,137,143, Bocchineri G., 193 C ampanella T., 9,55,57,103,119
144,191,192,197,199,207, 126,133-136, 193,199, 285
B odin J., 99 , 200
210,212,213 ,2 1 5 ,2 1 6 ,2 1 7 , B õhme J., 79, 80
Carafa, 107
218,225, 264, 265,273 B olzano B., 244 C ardano J., 160, 162-163, 265
A rnaldo de B réscia , 20 Carlos II, 253, 256
B orelli A., 249, 251, 255
A rnauld A., 285 B orelli J ., 255 Carlos V, 75
A rnóbio , 68 Bórgia C., 103 Carlos VIII, 161
A rquimf.des, 144, 148, 192 B otero J ., 96 C astelli B., 148, 189, 193, 203,
Arrighetti N., 221, 222 205,221
B oyle R., 145, 148, 153, 229,
Asimov L, 250 232, 239, 252, 254 Castiglione B., 38, 41
A tanásio , 64 B racciolini P., 23, 24 C auchy A.L., 244
A verróis , 21, 56, 57, 58, 60, 64 Brahe T., 142, 152, 173-175, 176, C avalieri B., 211, 242
A vicena, 158* 177,178,180,181,182,187-188 Cellari A., 142
* Neste índice:
-reportam-se em versalete os nomes dos filósofos e dos homens de cultura ligados ao desenvolvimento do
pensamento ocidental, para os quais indicam-se em negrito as páginas em que o autor é tratado de
acordo com o tema, e em itálico as páginas dos textos;
-reportam-se em itálico os nomes dos críticos;
-reportam-se em redondo todos os nomes não pertencentes aos agrupamentos precedentes.
XVI
élndice de nomes
S ócrates, 22, 28, 59, 68, 84, 94 V f.salio A., 249, 250
R
S pinoza B., 41, 111, 114, 117 V iéte F., 242
Sprat R.T., 266 Vinta B., 218, 226
R awley W., 264 Stevenzoon van Calcar J., 250 V itrúvio, 148
R f.di E, 249, 251-252, 255, 258 S uarez F., 80, 83 V iviam V., 148, 189, 194, 255
260 Sylvius, 163 V oet G. (Voécio), 285
R einhoi.d E., 172 V oltaire F.M. (Arouet F.M.), 233,
R euchein J . (Capnion), 156 235
R f y J ., 148
Rheticus (ver Lauschen G.J.) T
Ricci O., 189,192
Richelieu, A.-J. card. de, 119 w
T argioni-T ozzetti G., 255
R inaldini C., 255 T artaglia N., 189, 192 WaLLENSTEIN A., 180
Rodolfo II de Asburgo, 112,174, T elésio B., 55, 57,103,106-110, W allis J., 242, 243, 244
178 121, 123, 129
W f.bf.r M., 78
Ronchi V., 178, 196 T f.místio , 64
W eigel V., 79-80
Rosselli C., 54 Ticiano, 82, 250
W oi.ff C., 80, 83
RossiP., 175, 254 T omás df. A quino , 57, 58, 63, 64,
W ren C., 229, 234
83, 120, 135,265
W yclie J ., 74
Tomás de Vio (ver Caietano)
T omasfo N., 101
S
T orricelli E., 147,148,189,194,
242 X
Sagredo G., 192, 207
S ai utati C., 21, 22 Xenofonte de Atenas, 23
Salviati F., 207 u
Santi di Tito, 95
U liva A., 255
Sarpi P., 192
Savonarola J., 42
Urbano VIII (Maffeo Barberini), y
121,191,193, 206, 208,285
SCHLEIERMACHF.R F.D.E., 114 Yates F.A., 113
S choearios G f.nnadio J., 32
Schõnberg N., 167, 185
S fgni A., 255 V 2
S êneca , 28, 76
S f.rvet M., 79, 249, 250 V alla L., 15, 26-27, 29-30 Z abarella J ., 60
S exto E mpírico, 61, 62, 65 V altúrio de R ímini, 147 ZOROASTRO (Z aRATUSTRA)/OrÁCU-
S iger de B rabante, 55, 57 V anini J.C., 60 los C aldeus, 14, 16-17, 38,
S ocino F., 79 Vayringe, 255, 256 39, 40, 43, 45, 71
S ocino L., 79 Verrocchio A., 105 Z wíngeio U., 76-77, 83
s
Ó n d ic e d e c c m c e ito s
ju rvd a m e r \ta i s
F S
■ Origens
■ Traços essenciais
■ Desenvolvimentos
O pensamento humanista-renascentista
e suas características g e ra is............................ 3
Capítulo segundo
Capítulo terceiro
O Neoplatonism o renascentista 31
Capítulo quarto
Capítulo quinto
A Renascença e a Religião 67
Capítulo sexto
Capítulo sétimo
O p e rv s a m e ia fo k u m a m s+a - r e a a s c e rv+i s f a
e s u a s c a r a c t e r ís t ic a s g e r a is
I. O s i g n i f i c a d o k is t o n o g i^ à f ic o
d o te t* m o "■H u m a h i s m o ,/
• O termo "Humanismo" foi usado pela primeira vez no início do 800 para
indicar a área cultural coberta pelos estudos clássicos e pelo espírito que lhe é
próprio, em contraposição ao âmbito das disciplinas científicas. A palavra hu
manista, porém, já era empregada pela metade do 400, e deriva
de humanitas, que em Cícero e Gélio significa educação e forma O Humanismo
ção espiritual do homem, na qual têm papel essencial as discipli e o papel
nas literárias (poesia, retórica, história, filosofia). essencial
Ora, a partir sobretudo da metade do 300, e depois de modo representado
sempre crescente nos dois séculos sucessivos, desenvolveu-se na pelas "litterae
Itália justamente uma tendência a atribuir valor muito grande humanae"
aos estudos das litterae humanae e a considerar a antiguidade ->S 7
clássica, grega e latina, como um paradigma e um ponto de refe
rência para as atividades espirituais e a cultura em geral. "Humanismo", portanto,
significa em geral esta tendência que, surgida essencialmente no seio da cultura
italiana, pelo fim do 400 se difundiu em muitos outros países europeus.
• Entre os estudiosos contemporâneos do Humanismo, sobressaem princi
palmente P.O. Kristeller e E. Garin, cujas interpretações contrapostas resultam
na realidade muito fecundas justamente por sua antítese e, se prescindirmos de
alguns pressupostos dos dois autores, podemos integrá-las mutuamente.
Segundo Kristeller, o Humanismo representaria apenas me
tade do fenômeno renascentista e, melhor dizendo, a "literária", Duas diferentes
não a filosófica; portanto, ele seria plenamente compreensível teses modernas
apenas se considerado junto com o Aristotelismo que se desen sobre o
volveu paralelamente, e que expressaria as verdadeiras idéias fi significado
losóficas da época. filosófico
Segundo Garin, ao contrário, os Humanistas se voltaram a de Humanismo
um tipo de especulação não sistemática, problemática e pragmá -^§2
tica, e formaram novo método que, centrado sobre um novo sen
tido da história, deve ser considerado como efetivo filosofar, a direção contem-
plativo-metafísica em que o Humanismo italiano embocou desde a segunda me
tade do 400 teria sido portanto a consequência do advento das Senhorias e do
eclipsar-se das liberdades políticas republicanas.
• Ora, é verdade que "humanista" indica originariamente a tarefa do litera
to, mas tal tarefa foi muito além do ensino universitário, entrou na vida ativa e se
tornou de fato "nova filosofia". Além disso, o Aristóteles deste período foi um
Aristóteles frequentemente lido no texto original, sem a mediação das traduções
e das exegeses medievais; tratou-se, portanto, de um Aristóteles revisitado com
4
Primeira parte - O - H u m a n is m o e a R e n a s c e n ç a
Nd ilustração,
o esquema das proporções do corpo humano,
de Leonardo (1452-1519).
Neste período muda
não .H o pensamento filosófico,
mas também a própria vida do homem,
em todos os seus aspectos:
sociais, políticos, morais, literários,
artísticos e religiosos.
Um papel essencial, segundo os Humanistas,
e desenvolvido pelas letras, isto é,
poesia, retórica, filosofia,
/ustamente porque estudam o homem
em sua natureza específica.
O desenho conserva-se na Academia de Veneza.
5
Capitulo primeiro - CD p e n s a m e n t o K m m a m is + a -^ e m a s C íe m + is + a e s u a s c a r a c t e r í s t i c a s
“A Filosofia ”,
incisão tirada da Biblioteca Cívica
“A. M ai” de Bérgamo.
O estudo da filosofia antiga
alimentou o novo espírito
presente no pensamento humanista-renascentista.
Este está ligado às traduções
de Hermes Trismegisto,
dos Profetas-Magos, de Platão, de Platino
e de toda a tradição platônica.
8
Primeira parte - O ■ H u m a n is m o e a R e n a s c e n ç a
1 y\ ila+ eepeetação o ito c e ia fis fa que viu surgir nova cultura, oposta à me
dieval. E a revivescência do mundo anti
da Renascença*
go teria desempenhado nisso um papel
c o m o s u r g im e n t o importante, mas não exclusivamente deter
d e n o v o e s p ír it o minante. Portanto, partindo da renascen
ça da antiguidade, passou-se a chamar de
e d e n o v a c u lt u r a
“ Renascença” toda essa época, que, po
q u e v a lo r iz a m rém, é algo mais complexo: com efeito, é
o m u n d o a n t ig o a síntese do novo espírito que se criou na
Itália com a própria antiguidade — é o
em o p o s iç ã o
espírito que, rompendo definitivamente
à Ç J d a d e A A é d ia com o espírito da época medieval, inau
gurou a época moderna. . m
Essa interpretação foi muito contesta
O termo “ Renascimento” , como ca da, por várias vezes, em nosso século. Alguns
tegoria historiográfica, consolidou-se no Oi chegaram mesmo a duvidar que a “ Renas
tocentos, em grande parte por mérito de cença” constitua efetiva “ realidade histó
uma obra de Jacob Burckhardt (1818-1897) rica” e não seja muito mais (ou predomi
intitulada A cultura da Renascença na nantemente) uma invenção construída pela
Itália (publicada em Basiléia, em 1860), historiografia oitocentista.
que se tornou muito famosa, impondo-se Variados e de diversos tipos foram os
longamente como modelo e como ponto de reparos trazidos sobre a questão.
referência indispensável. Na obra de Burck Alguns observaram que, se atentamen
hardt, a Renascença emergia como fenô te estudadas, as várias “características” con
meno tipicamente italiano quanto às suas sideradas típicas do Renascimento podem
origens, caracterizado pelo individualis ser encontradas na Idade Média. Outros
mo prático e teórico, pela exaltação da vi insistiram muito no fato de que, a partir do
da mundana, pelo acentuado sensualismo, séc. XI, mas sobretudo nos sécs. XII e XIII,
pela mundanização da religião, pela ten a Idade Média pode ser considerada plena
dência paganizante, pela libertação em de “ renascimentos” de obras e autores an
relação às autoridades constituídas que ha tigos, que pouco a pouco emergiam e eram
viam dominado a vida espiritual no pas recuperados. Conseqüentemente, esses au
sado, pelo forte sentido de história, pelo tores negaram validade dos parâmetros tra
naturalismo filosófico e pelo extraordiná dicionais que durante longo tempo basea
rio gosto artístico. Segundo Burckhardt, ram a distinção entre a Idade Média e a
a Renascença seria portanto uma época “ Renascença” .
4 (S e cm o lo g ia e t e m a s
d o ■ H um anism o
Além disso, no que se refere às rela
e da R enascença
ções entre a Idade Média e a Renascença
italiana, devemos dizer que, no atual esta
do dos estudos, não se mantêm de pé nem a
Do ponto de vista cronológico, o Hu tese da “ ruptura” entre as duas épocas e
manismo e a Renascença ocupam dois sé tampouco a tese da pura e simples “conti
culos inteiros: o Quatrocentos e o Quinhen nuidade” .
tos. Como já observamos, seus prelúdios A tese correta é uma terceira. A teoria
devem ser procurados no Trezentos, parti da ruptura pressupõe a oposição e a con
cularmente na figura singular de Cola de trariedade entre as duas épocas, ao passo
Rienzo (cuja obra culmina pelo Trezentos) que a teoria da continuidade postula uma
e na personalidade e na obra de Francisco homogeneidade substancial. Mas, entre a
Petrarca (1304-1374). Seu epílogo alcança contrariedade e a homogeneidade, existe a
as primeiras décadas do Seiscentos. Cam- “ diversidade” . Ora, dizer que a Renascen
panella foi a última grande figura da Re ça é uma época “ diversa” da Idade Média
nascença. não apenas permite distinguir as duas épo
Tradicionalmente falava-se do Quatro cas sem contrapô-las, mas também identifi
centos como época do Humanismo e do car facilmente seus nexos e suas tangências,
Quinhentos como época da Renascença pro bem como suas diferenças, com grande li
priamente dita. Como, porém, caiu por ter berdade crítica.
ra a possibilidade de distinção conceituai E, conseqüentemente, outro problema
entre Humanismo e Renascença, necessa também pode ser facilmente resolvido.
riamente também cai por terra essa distin A Renascença inaugura a época mo
ção cronológica. derna? Os teóricos da “ ruptura” entre Re
Se levarmos em conta os conteúdos fi nascença e Idade Média eram fervorosos
losóficos, eles mostram (e o veremos com defensores da resposta positiva a essa per
mais amplitude um pouco adiante) que o gunta. Já os teóricos da “continuidade” da
pensamento sobre o homem prevalece no vam-lhe resposta negativa. Hoje, em geral,
Quatrocentos, ao passo que, no Quinhen tende-se a identificar o começo da época
tos, o pensamento se amplia, abrangendo moderna com a revolução científica, ou seja,
também a natureza. Nesse sentido, se, por com Galileu. Do ponto de vista da história
razões de comodidade, quisermos indicar do pensamento, essa parece a tese mais cor
como Humanismo predominantemente o reta. A época moderna revela-se dominada
momento do pensamento renascentista que por essa grandiosa revolução e pelos efeitos
teve por objeto sobretudo o homem, e como que ela provocou em todos os níveis. Nesse
Renascença este segundo momento do pen sentido, o primeiro filósofo “moderno” foi
samento, que considera também toda a na Descartes (e, em parte, também Bacon), co
tureza, podemos até fazê-lo, embora com mo veremos mais amplamente adiante. Sen
muitas reservas e com grande circunspeção. do assim, o Renascimento representa uma
13
Capitulo primeiro - O p e n s a m e n t o h u m a n is + a - ^ e n a s c e n + is ta e s u a s c a r a c t e r í s t i c a s
época diversa tanto da época medieval como ferenças” que caracterizam a Renascença,
da época moderna. tanto em relação à Idade Média como em
Naturalmente, assim como as raízes da relação à época moderna, através do exa
Renascença devem ser buscadas na Idade me das várias correntes de pensamento e,
Média, da mesma forma as raízes do mun individualmente, dos pensadores de des
do moderno devem ser procuradas na Re taque. Todavia, antes disso é necessário
nascença. Podemos dizer até que, como o chamar a atenção do leitor para um dos
fim da Idade Média é marcado pela trans aspectos mais típicos do pensamento renas
formação da economia mundial que se se centista, ou seja, a revivescência do compo
guiu às descobertas geográficas, assim o epí nente helenístico-orientalizante, cheio de
logo da Renascença é marcado pela própria ressonâncias mágico-teúrgicas, difundido
revolução científica: mas essa revolução as em alguns escritos que a tardia antiguida
sinala precisamente o epílogo, não a “ mar de havia atribuído a deuses ou profetas anti-
ca” da Renascença e sua têmpera espiritual quíssimos e que, na realidade, eram falsifi
em geral. cações, mas que os renascentistas tomaram
Falta -nos, agora, examinar concreta como autênticas, com conseqüências de
mente quais são as mais significativas “ di grande importância.
■H e ^ m e s ~t>i s m e g is fo y Z o ^ o a s t f ó e. O ^ o u
que se ocuparam de textos latinos eram bem que nunca existiu. Essa figura mítica indica
mais límpidas do que as utilizadas pelos o deus Thoth dos antigos egípcios, conside
humanistas que se ocuparam de textos gre rado inventor das letras do alfabeto e da
gos, as quais se revelam extraordinariamente escrita, escriba dos deuses e, portanto,
carregadas de incrustações multisseculares. revelador, profeta e intérprete da sabedoria
Por fim, foram os próprios gregos doutos divina e do logos divino.
que saíram de Bizâncio para a Itália que, Quando tomaram conhecimento des
com sua autoridade, avaliaram uma série de se deus egípcio, os gregos acharam que ele
convicções destituídas de fundamentos his apresentava muitas analogias com seu deus
tóricos. Hermes (= o deus Mercúrio dos romanos),
O que dissemos, portanto, explica per- intérprete e mensageiro dos deuses, qualifi
feitamente a situação contraditória que se cando-o então com o adjetivo “ Trisme
criou: enquanto, por um lado, humanistas gisto” , que significa “três vezes grande” .
como Valia denunciavam como falsificações Na antiguidade tardia, particularmen
documentos latinos pluriconsagrados, por te nos primeiros séculos da época imperial
outro lado, ao contrário, humanistas como (sobretudo nos sécs. II e III d.C.), alguns te-
Ficino reafirmavam a “ autenticidade” de ólogos-filósofos pagãos, em contraposição
flagrantes falsificações gregas tardio-antigas, ao cristianismo que se expandia, produzi
com resultados de grande alcance para a ram uma série de escritos que eles apresen
história do pensamento filosófico, como taram sob o nome desse deus, com a evi
veremos agora. dente intenção de contrapor às Escrituras
divinamente inspiradas dos cristãos outras
escrituras, apresentadas também como “ re
velações” divinas.
2 ■ He r m e s T h s m e g is t o As pesquisas modernas determinaram,
e o T o rp u s sem qualquer sombra de dúvida, que sob a
máscara do deus egípcio ocultam-se diver
sos autores e que, nesses textos, são bastan
te escassos os elementos “egípcios” . Na rea
■Hermes e o “C h o r p o s kle^rneficum" lidade, trata-se de uma das últimas tentativas
na realidade histórica de ressurgimento do paganismo, amplamen
te baseada em doutrinas do platonismo da
Comecemos por Hermes Trismegisto e época.
pelo Corpus Hermeticum, que tiveram a maior Entre os numerosos escritos atribuídos
importância e celebridade na Renascença. a Hermes Trismegisto, o grupo claramente
Hoje sabemos com certeza o que iremos mais interessante constitui-se de dezessete
expor. Hermes Trismegisto é figura mítica, tratados (o primeiro dos quais leva o título
de Pimandro), mais um escrito que só che Essa estupefação diante do profeta pa
gou até nós apenas em uma versão latina gão (tão antigo quanto Moisés), que fala do
(que, no passado, era atribuído a Apuleio), “Filho de Deus” , levou à aceitação, pelo me
intitulado Asclépio (talvez elaborado no séc. nos parcial, da estrutura astrológica e gnós-
IV d.C.). É precisamente esse grupo de es tica da doutrina. E não apenas isso: como o
critos que se denomina Corpus Hermeticum Asclepius também fala expressamente de
(= corpo dos escritos postos sob o nome de práticas mágicas, Ficino e outros encontra
Hermes). ram em Hermes Trismegisto uma espécie de
justificação e legitimação da própria magia,
embora entendida em novo sentido, como
"Hermes e o “(Soupus ■Hermeticum” veremos.
na in te rp re ta ç ã o da R enascen ça A complexa visão sincretista de plato-
nismo, cristianismo e magia, que constitui
A antiguidade tardia aceitou todos es uma das marcas do Renascimento, encon
ses escritos como autênticos. Os Padres cris tra assim em Hermes Trismegisto, “priscus
tãos, que neles encontraram acenos a doutri theologus”, uma espécie de modelo ante
nas bíblicas (como veremos), ficaram muito litteram ou, pelo menos, uma significativa
impressionados e, conseqüentemente, con série de estímulos extremamente nutrientes.
vencidos de que eles remontavam à época Portanto, sem o Corpus Hermeticum não é
dos patriarcas bíblicos, pensando assim que possível entender o pensamento renascen
fossem obra de uma espécie de profeta pa tista.
gão. Foi assim que pensou Lactâncio, por
exemplo, como também, em parte, santo
Agostinho. Ficino consagrou solenemente
essa convicção e traduziu o Corpus Herme 3 O "Z o r o a siro "
ticum, que se tornou texto basilar do pen da R enascença
samento humanista-renascentista. Assim,
por volta de fins do séc. XV (1488), Her
mes foi solenemente acolhido na catedral de Um documento que apresenta muitas
Siena, com uma efígie no pavimento com a analogias com os escritos herméticos é cons
inscrição: “ Hermes Mercurius Trismegistus, tituído pelos chamados Oráculos caldeus,
contemporaneus Moysi” . obra em hexâmetros da qual numerosos
O sincretismo entre doutrinas greco- fragmentos chegaram até nós. Com efeito,
pagãs, neoplatonismo e cristianismo, tão podemos encontrar em ambos os escritos a
difundido no Renascimento, baseia-se em mesma mistura de filosofemas (extraídos do
grande medida nesse equívoco colossal. médio-platonismo e do neopitagorismo),
Desse modo, muitos aspectos doutrinários com acentuação do esquema triádico e tri-
da Renascença, considerados estranhamente nitário e com representações míticas e fan
paganizantes e estranhamente híbridos, apre tásticas, apresentando um tipo análogo de
sentam-se agora sob justa luz. religiosidade confusa de inspiração oriental,
Na complexa concepção hermética, característica do paganismo tardio, conju
considerada mais ou menos tão antiga quan gada com análoga pretensão de transmitir
to os mais antigos livros da Bíblia, os ho uma mensagem “ revelada” .
mens do Renascimento não podiam deixar Nós Oráculos, aliás, o elemento mági
de ficar impressionados com os acenos ao co predomina ainda mais claramente do que
“ filho de Deus” , ao Logos divino, que lem no Corpus Hermeticum e o componente
bra o Evangelho de João. O tratado XIII do especulativo se enfraquece e se submete a
Corpus Hermeticum contém até uma espé objetivos práticos religiosos, a ponto de per
cie de “ Sermão da montanha” e afirma que der toda a sua autonomia.
a obra de “regeneração” e salvação do ho Estes Oráculos, mais do que à sabedo
mem deve-se ao “filho de Deus” , definido ria egípcia (à qual os escritos herméticos
como “um homem por vontade de Deus” . também se referem), se vinculam à sabedo
Ficino chegou a considerar o Corpus ria babilônia. Com efeito, a heliolatria cal-
Hermeticum até mais rico que os próprios tex déia (o culto do sol e do fogo) desempenha
tos de Moisés, no sentido em que ele prevê a papel fundamental nesses escritos.
encarnação do Logos, do Verbo, dizendo que Como sabemos, seu autor Juliano (que
a “Palavra” do Criador é o “Filho de Deus” . viveu no séc. II) foi denominado (ou se fez
17
Capitulo pTÍTH6lT0 - O p Ê ^ s a m e n í o h u m a n i s t a - r e ^ a s c e ^ + i s t a e s u a s c a ^ a c + e W s + ic a s
i
18 Primeira parte O - Humanismo e a R enascença
19
Capítulo primeiro - O pensamento Knmanis+a-fenascentis+a e suas caíacterísficas
significa em primeiro lugar dar como pacífica uma ctoritas, têm em todo âmbito aquela exube
visão do filosofar que está, ao contrário, em dis rância que o "honesto", mas "obtuso", escolas-
cussão; e significa, ao mesmo tempo, não ver ticismo ignorou.
bem claro os studio humanitatis, a "retórica" e €. Garin,
as "cartas". E significa também esquecer que L 'U m anesim o itoliono.
aquele movimento de cultura afirmou-se primei
ramente fora da "escola", entre homens de
oção, políticos, senhores, chanceleres de repú
blicas e oté dirigentes, mercadores e mesmo
artistas e artesãos. E na "escola" entrou por meio B urckhardt
das disciplinas lógicas e morais; mediante nova
linguagem e o estabelecimento de novas rela
ções. A filosofia para a qual certos historiadores
olham, a "teologia" das escolas medievais, que
certamente foi coisa grandíssima, naqueles dias O individualismo
via justamente suas aulas tornarem-se desertas,
e sempre menor o eco de seus ensinamentos.
como marco originai
Depois que por séculos, e grandes séculos, o pen do Renascença2 1
samento humano dedicara-se sobretudo à ela
boração de uma filosofia da experiência reli
giosa, e tudo fora visto sob tal signo, agora a O argumento Fundamental do ensaio de
razão humana voltava todo seu esforço para o Jacob Burckhardt, La cultura dei Rinascimento
homem "poeta", para sua "cidade", para a na in Italia (lôóO ), é o desenvolvimento do in
tureza mundana que estava conquistando. divíduo no civilização da Renascença: o mito
€. Gctrin, de uma humanitas enfim liberta do torpor me
M e d ío e v o e fíin asdm en to. dieval e oberto o todos os experiências da
vida (religiosas, sociais, artísticas, políticas).
Burckhardt continuava assim a pôr o acento,
2 . Os humanistas contra as grandes
como os românticos, sobre o tema da "ruptu
"catedrais de idéias" da €scolástica
ra " entre Idade Média e Renascença.
Todavia, para dizer a verdade, a razão
íntima da condenação do significado filosófico
do Humanismo é outra; e de resto manifesta-
1. O despertar do "indivíduo”
se claramente a partir da contínua referência
por contraste com as sínteses metafísico-teoló- No Idade Média os dois lados da consciên
gicas da "obtusa mas honesto Escolástica": tra cia - o que reflete em si o mundo externo e o
ta-se do amor sobrevivente por uma imagem que mostra a imagem da vida interna do homem
da filosofia que o pensamento do Quatrocen - estavam como que envolvidos por um véu co
tos constantemente sentiu. Com efeito, aquilo mum, sob o qual ou languesciam em lento torpor
de que se lamenta por tantos a perda foi justo ou se moviam em um mundo de puros sonhos.
mente aquilo que os humanistas quiseram des O véu era tecido de fé, de ignorância infantil, de
truir, isto é, a construção das grandes "catedrais vãs ilusões: vistos através dele, o mundo e o
de idéias", das grandes sistematizações lógico- história apareciam revestidos de cores fantásti
teológicas: da Filosofia que subsume1todo pro cos, mos o homem não tinha volor a não ser como
blema, toda pesquisa, ao problema teológico, membro de uma família, de um povo, de um
que organiza e fecha toda possibilidade na tra partido, de uma corporação, das quais quase
ma de uma ordem lógica preestobelecida. inteiramente vivia a vida. A Itália é a primeira a
Aquela Filosofia, que foi ignorada na era do Hu rasgar este véu e a considerar o Estado e todos
manismo como vã e inútil, se substituem pes as coisas terrenas de um ponto de vista objeti
quisas concretas, definidas, precisas, nas duas vo-, mas ao mesmo tempo se desperta podero
direções das ciências morais (ética, política, samente no italiano o sentimento de si e de seu
econômica, estética, lógico-retórica) e das ciên volor pessoal ou subjetivo : o homem se transfor
cias da natureza que, cultivadas iuxto própria ma no indivíduo, e se afirma como tal.
principio ,2 foro de todo vínculo e de toda ou-
2 . O advento de homens "universais"
Ora, quando este prepotente impulso vi
'Subordina. nha a cair em uma natureza extraordinariamen
2"Segundo seus princípios peculiares". te valorosa e versátil, a ponto de se apropriar
20
Primeira parte - O f - l w m a n is m o e a R e n a s c e n ç a
O s d e b a + e s s o b ^ e p r o b le m a s m o r a is
e o A ) e o -e p ic u r is m o
1 . 0 S IKVICIO S do H w m am sm o
II. CDs d a b a te s
s o b re te m á t ic a s e tic o -p o lític a s
e m L . B m m , B . B r a c c i o l i r v i e J_B . ^ A lb e r ti
ereta de sua virtude, que, como tal, nos dá a c) a glória e a nobreza como fruto da
felicidade. virtude individual;
Como Aristóteles, Bruni reavalia o pra d) a questão da “ sorte” , que torna ins
zer, entendido sobretudo como conseqüên- tável e problemática a vida dos homens,
cia da atividade que o homem desenvolve mas contra a qual a virtude pode levar a
segundo sua própria natureza. melhor;
Ainda como Aristóteles, Bruni sustenta e) a reavaliação das riquezas (já iniciada
que o verdadeiro parâmetro dos juízos morais por L. Bruni na introdução aos Econômicos
é o homem bom (e não uma regra abstra de Aristóteles), consideradas como o nervo
ta). E realizando o bem e a virtude, o homem do Estado e como aquilo que torna possível,
realiza a felicidade. Eis as suas conclusões: nas cidades, os templos, os monumentos, a
“Se, portanto, quisermos ser felizes, empe- arte, os ornamentos e toda beleza.
nhemo-nos em ser bons e virtuosos” . Bracciolini se concentra sobre um dos
pensamentos-chave do Humanismo: a verda
deira nobreza é aquela que cada um conquis
ta agindo. Pensamento que nada mais é do
2 P >o 0 0 Ío B m c c io lin i que uma variante de outro conceito basilar,
de origem romana, não menos caro a essa
época: cada qual é artífice da própria sorte.
Poggio Bracciolini (1380-1459), secre
tário da Cúria Romana e depois chanceler
em Florença, também era muito ligado a 3 .Leon Bat+is+a jAIberli
Salutati. Foi um dos mais esforçados e fer
vorosos descobridores de antigos códices.
Em suas obras, ele debate temáticas que se
haviam tornado canônicas nas discussões dos Uma figura de humanista de interesses
humanistas, particularmente as seguintes: poliédricos foi Leon Battista Alberti (1404
a) o elogio da vida ativa em oposição à 1472), que, além das questões filosóficas,
ascese da vida contemplativa vivida em so também se ocupou de matemática e de ar
lidão; quitetura. São conhecidos especialmente
b) o valor de formação humana e civil seus escritos Sobre a arquitetura, Da pintu
das litterae; ra, Da família, Do governo da casa, Inter-
cenais (recentemente descobertos por Garin
em sua integridade).
Eis alguns temas (entre tantos outros)
que se destacam em Alberti:
a) Em primeiro lugar, deve-se destacar
a crítica das investigações teológico-meta-
físicas, consideradas vãs, contrapondo a elas
as investigações morais. Para Alberti, é inú
til procurar descobrir as causas supremas
das coisas, porque isso não foi concedido
aos homens, que só podem conhecer aquilo
que está sob seus olhos, ou seja, por meio
da experiência.
b) Ligada a essa crítica encontra-se a
exaltação do homo faber e de sua atividade
produtiva e construtora, ou seja, aquela ati
vidade que não está voltada apenas para o
benefício do indivíduo, mas também para o
benefício de todos os outros homens e da
cidade. Por isso, ele censura a sentença de
Epicuro, “que, em Deus, reputa como suma
Leon Battista Alberti (1404-1472) felicidade o nada fazer” , sustentando que a
foi humanista de interesses poliédricos, verdade é exatamente o contrário e que o
filósofo, matemático e arquiteto. supremo vício é “ estar à toa” . Sem a ação,
Este retrato foi tirado de uma incisão. a contemplação não tem sentido. No entan
25
Capítulo segundo - O s d e b a t e s s o b u e p r o b l e m a s m o f a i s e. o / \ ) e o - e p i c u H s m o
Eis a planta de Elorença por volta do ano 1300 (tirada da “L'illustrazione italiana" 1930).
Muitos dos humanistas mais importantes do '400 viveram em Elorença e se tornaram chanceleres;
entre estes Coluccio Salutati, Leonardo Bruni, Poggio Bracciolini.
26
Primeira parte - O L I lo n c m is m o e a R e n a s c e n ç a
I I I . .L o u u e n ç o V a l i a
Lourcnço Valia
(1 4 0 7 -1 4 5 7 )
propôs uma forma
de Epicurismo
conciliável
com a doutrina cristã;
além disso
foi filólogo de valor:
descobriu -
entre outras coisas -
a falsidade do documento
referente à célebre
“Doação de Gonstantmo
Tiramos este retrato
de uma estampa
conservada
na Civica Raccolta
delle Stampc Bertarelli,
em Milão.
nos aproximemos muito mais das coisas hu O trabalho de pesquisa filológica de
mildes. Nada importa mais para o cristão Valia também se estendeu aos textos sagra
do que a humildade. Desse modo, sentimos dos, na obra Confrontos e anotações sobre
muito mais a magnificência de Deus, pois o Novo Testamento extraídas de diversos
está escrito: ‘Deus resiste aos soberbos, mas códices de língua grega e de língua latina,
concede a graça aos humildes.’ ” [2] que tinha o objetivo de restituir o texto
genuíno do Novo Testamento e, desse
modo, torná-lo mais inteligível. Os estu
diosos destacaram que, com essa delicada
3 A f i l o l o g ia d e V a ll a : operação, Valia pretendia opor o método
! //palavra
I n filológico ao método filosófico medieval das
a quaestiones na leitura dos textos sacros,
como supoete da verdade polindo-os de todas as incrustações que se
haviam depositado sobre eles ao longo dos
séculos.
Analogamente, apenas nessa ótica e nes Dessa forma, Valia abria um caminho
se espírito podemos entender corretamente destinado a um grande futuro. E a força
o Discurso sobre a falsa e mentirosa doação demolidora do seu método revela-se por in
de Constantino, no qual Valia demonstra com teiro no termo com o qual ele indica a lín
rigorosas bases filológicas a falsidade do do gua latina, isto é, “ sacramentum.” Para
cumento sobre o qual a Igreja fundava a le Valia (como bem esclareceu Garin), a lín
gitimidade de seu poder temporal, fonte de gua é encarnação do espírito dos homens
corrupção. A correta interpretação da “pa e a palavra é encarnação do seu pensa
lavra” restitui a verdade, e esta salva. mento.
É assim que Valia conclui esse admi Daí a sacralidade da linguagem e a ne
rável escrito: “ Que eu possa um dia ver — cessidade de respeitar a palavra e restituí-la
e não há nada que eu deseje mais forte à sua genuinidade, para entender o espírito
mente do que ver isso, especialmente se que ela expressa.
acontecer a meu conselho - o Papa sendo Com Valia, o humanismo alcança uma
apenas vigário de Cristo e não também de de suas conquistas mais elevadas e dura
César!” douras.
28 Primeira parte - CD- H u m a n is m o e a R enascença
2. R verdadeira filosofia
D Verdadeira sabedoria é meditação sobre a morte
Meditar profundamente sobre a morte,
armar-se contra ela, dispor-se a desprezá-la e
Unanimemente considerado como o
a suportá-la, enfrentá-la, caso necessário, dan
principal precursor dos humanistas, ou mes
do esta breve e mísera vida em troca da vida
mo como o primeiro humanista, Francisco
eterna, da felicidade, da glória; eis a verda
Petrarca teve ehetivamente lúcida consciên
deira filosofia, que alguns disseram não ser
cia do valor dos studia humanitatis na pers
outra coisa que o pensamento da morte. Cxpli-
pectiva do Filosofia: a verdadeira sabedoria
cação esta, da filosofia, que, embora encon
consiste em conhecer a si mesmos, e a via
trada pelos pagãos, todavia é própria dos cris
(o método) paro realizar tal sabedoria está
tãos, que devem sentir o desprezo por esta vida
nas ortes liberais cultivadas oportunamente,
e a esperança da eternidade, e o desejo da
isto é, como instrumentos de Formação espi
dissolução. Se tu, ó velho delirante, que pom-
ritual.
posamente23te chamas filósofo, tivesses pen
Petrarca definiu além disso o verdadei
sado aquilo mesmo uma vez apenas em uma
ra filosofia como pensamento e meditação
vida assim longa, jamais terias ousado chamar-
sobre o morte, referindo-se à passagem do
te filósofo, nem terias parado onde paraste,
fédon platônico, em que Sócrates afirma: "To
nem te venderías torpemente por tão pouco
dos aqueles que praticam a Filosofia de modo
dinheiro, aviltando com os fatos tua profissão,
reto arriscam que p osse despercebido oos
que enalteces com as palavras.
outros que suo autêntica ocupação não é
mais que morrer e estar mortos".
3. O valor da solidão
e o conhecimento de si mesmos
A solidão é carente de muitos prazeres
1. Rs artes liberais são o caminho, do vulgo, mas é abundante de prazeres pró
não a meta prios: repouso, liberdade, ócio. Aneu disse, e
é verdade: "O ócio sem as letras é morte, é
Dizes1* em primeiro lugar que estou priva
sepultura dos vivos".5
do de lógico; espero que nõo me negues o
C certo que o solitário ignorante, se Cristo
Retórico e o Gramático, que estão compreen
não estiver continuamente com ele, por maior
didos no nome do lógico, embora tombem isso
que seja o espaço da terra que ele tiver a sua
possos fazer, conforme teu parecer. Sumo exem
disposição, estará amarrado sem grilhões.
plo de todo barbarismo, tu me tiros openos o
Dialético, no quol teus silogismos te mostram Não me maravilho que este gênero de
vida seja malvisto por ti. O que farias então, a
ser excelente, e que chamas lógico.
não ser contar as horas e esperar o momento
"Gs o delito, ó juizes". Ora, se quisesse po
em que deves ir à ceia, conforme teus hábitos,
derio fazer ver que os ilustres filósofos caçoam
e quando ao leito? Não hoveria ninguém com
dessa próprio Dialético, do quol sou acusado
quem pudesses dar uma volta, ou com o qual
de estar privado; e eu poderio demonstrar, como
pudesses gritar; nem saberías falar contigo. Tal
se lê em Cícero, que os antigos peripatéticos,
virtude é de poucos homens; e nestes lugares,
claríssima seita de filósofos, também a deixa
confesso, há bem poucos, ou melhor, quase
ram de lado. Todavia, ó estulto, dela não estou
ninguém. G j , ao contrário, pelo grande amor
privado: sei que valor dar a ela e que valor dar
que dedico às letras, vivo uma vida tão bela e
às artes liberais, flprendi com os filósofos a não
tão doce que, se conhecesses o estado do meu
estimar excessivamente nenhuma delas. Portan
ânimo, creio que odiarias a hora em que nas
to, assim como é louvável tê-las aprendido, tam
bém é pueril nelas envelhecer. Gas são o cami
nho, não a meta: exceto para os errantes e
'Petrarca se dirige oo médico que é alvo de suo
vagabundos que não têm nenhum porto na vida. invectivo.
Para ti que não tens nenhuma meta mais nobre 2”Com gronde jactando".
é meta qualquer coisa que encontres, ficredi- 3Sêneca, Cartas a Lucílio, XIX.
29
Capítulo segundo - O s d e b a t e s s o b r e p r o b le m a s m o r a is e o N e.o-e.p\a\C\stY\o
ceste, porque te colocou em uma vido mísero e tão. No que se refere a Cpicuro parece-me que
infeliz, o qual, pelo esperanço de pouco dinhei em todo lugar os vossos tenham atitude seme
ro, te ocasiono grandíssimos angústias. lhante, quando vos deixais induzir em um erro
Com quem portanto falaste, velho miserá tão grave e afirmais que o termo “prazer" que se
vel? Com quem sentenciaste contra mim? Ama encontra em Cpicuro é outra coisa, assim como o
ram a solidão os patriarcas, os profetas, os termo “letícia", que se encontra em Aristóteles,
santos, os filósofos, os poetas, os chefes,4 os dado que foi assim que os bárbaros o traduzi
imperadores famosíssimos. C, na verdade, quem ram. De fato, se Aristóteles não condena toda
não ama a solidão senão quem não sabe estar letícia, só digo isso, a causa jó está vencida: com
consigo mesmo? Odeia a solidão todo aquele efeito, quem aprova a letícia também não con
que está sozinho na solidão, e teme o ócio todo dena o prazer, uma vez que, ao menos em seus
aquele que não faz nada. escritos, estes dois termos são um só. Cntre nós,
F. Petrarca, porém, eles diferem, como o gênero e a espécie.
Contra m edicum .
zer". Com efeito, no princípio do Gênesis lemos: po com o nome; que o chamem como quise
"Deus tinha plantado no início o paraíso do pra rem: prazer, fruição, deleite, ou alegria, felici
zer", e esta passagem é repetido, e não muito dade e bem-aventurança, contanto que a coi
depois é chamado de "paraíso de Deus" (Gn sa se torne evidente e seja claro aquilo que
2,8; 2,15; 3,23; 3,24). Ora, assim incriminamos eu me havia proposto provar, ou seja, que não
também o nome ou a dignidade do prazer; a há nenhuma virtude verdadeira a não ser no
qual coisa foi alguma vez atribuída tanta digni serviço de Deus; e isso para que não nos pos
dade e honra? Com certeza a nenhuma outra, sam insultar os que sustentam os gentios,
não à ciência, não à virtude, não à potência, para os quais existem verdadeiras virtudes
não o nenhuma das outras coisas que também naqueles que não pensam ter recebido de
costumamos louvar e desejar; o que devemos Deus suas almas nem acreditam que tives
então pensar do prazer a não ser que seja a sem sido estabelecidos prêmios e punições
bem-aventurança, e daqueles que a perseguem por Deus, para os méritos dos vivos ou dos
o que podemos augurar a não ser que não a mortos.
alcancem jamais e que deixem para mim a par Onde estão aqueles que dizem que eu
te deles, caso a mereçam? Omito aquilo que tenho atitude má em relação à fé? Cu que
disse Davi; "Tu os embriagas na torrente de teu sempre combati assiduamente por ela e que
prazer" (Salmo 36,9), e também Czequiel que, também agora, se é lícito dizer a verdade,
falando do paraíso, menciona "os frutos do pra combato em sua defesa tanto que meus acu
zer" (€z 31,9.16.18). sadores devem dizer-se inimigos da fé, e eu
Mas por que, poderio alguém me pergun defensor.
tar, assumiste a tarefa de louvá-lo? L. Valia,
[...] Cu, na verdade, santíssimo pai, como R p o lo g ia o d R ugenium IV,
testemunhei em minha própria obra, não me ocu em O p e ro om nia.
Valia,
aqui em uma incisão renascentista,
pode ser considerado
o primeiro dos grandes filólogos
da era moderna.
Ç a p ítu lo te rc e ie o
O A ) e -o p la fo n is m o \^erv a s c e rv fis ta
— I. ;A c e n o s —
s o b re a t r a d iç ã o p la tô n ic a e m g e r a l
e s o b r e o s d o u to s b iz a n tin o s d o s é c u lo ^C V
I I I . M a i^sílio "Fi c m o
tv a ^ A c a d e m i a p l a t ô n i c a f-lo p c n tin a
2 F i c i n o c o m o le a d u t o e
do homem empírico à sua metaempírica “ magia natural” , não a magia perversa, que
Idéia em Deus, o que se torna possível através trafica com os espíritos, nem a magia vazia
de uma progressiva ascensão na escala do e profana.
amor. Portanto, é uma espécie de “ endeusa- A “magia natural” de Ficino fundamen
mento” , um fazer-se eterno no Eterno. tava-se na construção neoplatônica do seu
“ Certamente — escreve Ficino no Co pensamento, que implica a animação uni
mentário ao Banquete — aqui estamos di versal das coisas, mas também, particular
vididos e truncados, mas depois, ligados pelo mente, na introdução de um elemento espe
Amor à nossa Idéia, voltaremos a ser ínte cial que ele chama “espírito” , que é uma
gros, de modo que parecerá que nós primei substância material sutilíssima que perpas
ro amamos Deus nas coisas para depois sa todos os corpos e que, entre outras coi
amar as coisas nele e que nós honramos as sas, constitui o meio pelo qual a alma age
coisas em Deus sobretudo para nos recupe sobre os corpos e estes sobre ela.
rarmos — e, amando Deus, amamos a nós Esse “ espírito” (substância pneumáti
mesmos. ” ca) está difundido em toda parte e, portan
A teoria do “ amor platônico” teve am to, está presente em nós, assim como está
pla difusão na Itália (Pico delia Mirandola, presente no mundo e no céu. O “ espírito do
Bembo, Castiglione), pois o terreno já ha céu” , porém, é mais puro. Fazendo uso de
via sido preparado pela difusão do “ doce vários meios, precisamente “ naturais” , a
estilo novo” e pelas temáticas a ele ligadas, “magia natural” de Ficino tendia a predis
mas também fora da Itália (especialmente por oportunamente o “ espírito” que está no
na França). homem a receber o mais possível o “ espíri
Feão Hebreu (cujo verdadeiro nome é to” do mundo e a absorver sua vitalidade
Jehudah Abarbanel, tendo nascido em 1460 “ por meio dos raios dos astros oportuna
e morrido por volta de 1521), em seus Diá mente atraídos” .
logos de amor distinguiu-se de todos pelo Enquanto portadores de vida e de es
frescor e originalidade, reelaborando essa pírito, podiam ser utilizados diversamente
doutrina de forma que fará sentir sua influên pedras, metais, ervas e conchas, desfrutan
cia até mesmo na concepção do amor Dei do-se de sua presumida “ simpatia” de modo
intellectualis de Spinoza, de que falaremos vantajoso. Assim, Ficino também confec
adiante. cionava talismãs. Além disso, fazia uso de
Entre os muitos documentos relativos encantamentos musicais, cantando hinos ór-
ao “ amor platônico” , para concluir, lembra ficos com acompanhamento instrumental
remos a bela Altercação de Fourenço de monocórdico para assim captar as benéfi
Médici, que mostra a grande penetração cas influências planetárias com consonân
dessa doutrina do amor e põe em grande cias que “simpatizavam” com as dos astros.
saliência o conceito de que, amando a Deus, E vinculava estreitamente essas práticas com
nós “nos elevamos à altura dele” , e que nos a medicina.
sa alma “amando se converte em Deus, e Ele não via nada de contrário ao cris
sobre o Deus visto se dilata" . tianismo em tudo isso: em muitos casos, o
próprio Cristo havia sido um curandeiro.
Essas coisas, notemos bem, não são fe
nômenos de pura excentricidade isolada,
7 y \ d o u le in a m á g ic a mas são coisas comuns a muitos homens do
d e F i c in o Renascimento, constituindo portanto um
elemento característico de uma época, do
e s u a im p o e f â u c ia
qual não podemos prescindir para compreen
der esse período.
Notemos que Giordano Bruno, um sé
A doutrina mágica de Ficino pode ser culo depois, apresentará na Universidade de
vista sobretudo na obra De vita, de 1489 Oxford aulas sobre “ magia natural” , até
(que é composta de três escritos). Ele não mesmo plagiando o terceiro dos tratados do
hesita em proclamar-se “mago” , seguidor da De Vita de Marsílio Ficino.
42
Primeira parte - O -Hu m a h ism o e a 1 ^ e F \asc e F \ç a
= = = = = I V . P i c o d e l i a ^ V lim F td o la 1 -----
ekvb^e pla+oKvismoy a n s to + e lis m o , c a b a l a e r e lig iã o
suposto poder sagrado da língua hebraica e Por esse motivo, Pico dedicou-se inten
no poder proveniente dos anjos oportuna samente ao estudo da língua hebraica (além
mente invocados, bem como dos dez nomes do árabe e do caldeu), porque sem o conhe
que indicam os poderes e atributos de Deus, cimento direto do hebraico não se pode pra
chamados sefirot. ticar a cabala com eficácia, pelo motivo que,
A cabala é de origem medieval, apre segundo as convicções dos sustentadores da
sentando influências helenísticas (em certos cabala, as letras e os nomes hebraicos teriam
aspectos manifesta um espírito análogo ao um poder especial, enquanto refletiríam tan
dos escritos herméticos, dos Oráculos Cal- to a natureza espiritual do mundo como a
deus e do Orfismo), porém seus fundadores linguagem criativa de Deus.
a fizeram remontar à mais antiga tradição Somente nessa ótica é que se podem
hebraica. entender as famosas novecentas Teses ins
Também neste caso, o responsável por piradas na filosofia, na cabala e na teologia,
uma série de posições assumidas por Pico apresentadas por Pico, nas quais deveríam
foi um gritante erro histórico. Com efeito, se unificar aristotélicos e platônicos, filoso
ele considerava que a cabala remontava ver fia e religião, magia e cabala. Algumas des
dadeiramente à antiga tradição, até mesmo sas teses foram julgadas heréticas e conde
a Moisés, que a teria transmitido oralmen nadas. Em conseqüência disso, Pico sofreu
te, sob a forma de iniciação esotérica. uma série de contrariedades, sendo inclusi-
Giovanui Pico
delia Mirandola
(1461-1494)
foi pensador platônico,
fervoroso sustentador,
além do pensamento
hermético,
também da cabala.
Foi o teórico mais
conhecido
da doutrina
da “dignidade do homem
O retrato aqui
reproduzido é antigo.
44 Primeira parte - CD"H u m an ism o ■' a R e n a s c e n ç a
ve preso na Savóia, quando fugia para a fato de ele ser artífice de si mesmo, auto-
França. (Depois foi libertado por Louren- construtor.
ço, o Magnífico, e perdoado por Alexandre Eis o belíssimo discurso posto por Pico
VI em 1493). O Discurso sobre a dignidade na boca de Deus e imaginado como dirigi
do homem, que se tornou muito famoso e do ao homem recém-criado, o qual teve
que permanece um dos textos mais conhe vastíssimo eco sobre contemporâneos de
cidos do humanismo, devia constituir a pre todas as tendências: “Eu não te dei, Adão,
missa geral das Teses. nem um lugar determinado, nem um aspec
to próprio, nem qualquer prerrogativa só
tua, para que obtenhas e conserves o lugar,
o aspecto e as prerrogativas que desejares,
segundo tua vontade e teus motivos. A na
v im p ic o , tureza limitada dos outros está contida den
e a d o u te in a tro das leis por mim prescritas. Mas tu de
d a d ig n id a d e d o kom em terminarás a tua sem estar constrito por
nenhuma barreira, conforme teu arbítrio, a
cujo poder eu te entreguei. Coloquei-te no
A doutrina desse grandioso “ manifes meio do mundo para que, daí, tu percebes
to” sobre a “ dignidade do homem” é apre ses tudo o que existe no mundo. Não te fiz
sentada como derivação da sabedoria do celeste nem terreno, mortal nem imortal,
Oriente, desenvolvendo-se particularmente para que, como livre e soberano artífice, tu
de uma sentença do Asclépio, obra atribuí mesmo te esculpisses e te plasmasses na for
da, como já dissemos, a Hermes Trismegisto: ma que tivesses escolhido. Tu poderás dege
“Magnum miraculum est homo”. nerar nas coisas inferiores, que são brutas,
Eis as afirmações explícitas do nosso e poderás, segundo o teu querer, regenerar-
autor: “ Li nos escritos dos árabes, vene- te nas coisas superiores, que são divinas.”
randos Padres, que Abdalla Saraceno, inter Este é um verdadeiro e próprio mani
rogado sobre o que lhe parecia admirável festo do pensamento humanista-renascen-
neste palco do mundo, respondeu que não tista em sua globalidade.
percebia nada de mais esplêndido do que o Portanto, enquanto os seres brutos na
homem. E com essa afirmação concorda o da mais podem ser além de brutos e os anjos
famoso dito de Hermes: ‘Grande milagre, ó somente anjos, já no homem existe o germe
Asclépio, é o homem.’ ” de cada vida. Conforme o germe que culti
M as por que o homem é esse grande var, o homem se tornará planta, animal racio
milagre? A explicação que Pico dá a essa nal ou anjo e até mesmo, se não estiver con
questão (e que, com justiça, tornou-se mui tente com todas essas coisas e recolher-se em
to famosa) é a seguinte. Todas as criaturas sua unidade mais íntima, então, “tornado um
são ontologicamente determinadas a ser só espírito com Deus, na solitária névoa do
aquilo que são e não outra coisa, em virtu Pai, aquele que foi posto acima de todas as
de da essência precisa que lhes foi dada. coisas estará acima de todas as coisas” .
Já o homem, único entre as criaturas, foi Em conclusão, como se pode ver, so
posto no limite entre dois mundos, com mente no contexto mágico-hermético e
uma natureza não predeterminada, mas cabalístico é que se pode entender a célebre
constituída de tal modo que ele próprio se mensagem de Pico delia Mirandola. E so
plasmasse e esculpisse segundo a forma mente considerando essa ótica é que se pode
pré-escolhida. Assim, o homem pode se entender a especificidade e a peculiaridade
elevar à vida da pura inteligência e ser do humanismo renascentista e, portanto, sua
como os anjos, podendo até mesmo ele diferença em relação ao humanismo medie
var-se ainda mais acima. Desse modo, a val e a outras formas posteriores de huma
grandeza e o milagre do homem estão no nismo. i i i i e
45
Capitulo terceiro - O JVe o p la + o irism o (‘e n a s c e n t i s f a
V . F V a r v c is c o IPcxinz i
D O conceito
ser comparados ao pressuposto certo e a ele
ser proporcionalmente conduzidos por um cami
de "douto ignorância" nho breve, então o conhecimento se torna fácil.
Contudo, se temos necessidade de muitas pas
sagens intermediárias, nascem dificuldades e
O conceito de "douto ignorância" é cer fadiga: vemos isso na matemática, onde os pri
tomente um dos mais significativos e mois meiras proposições são remetidas aos princí
conhecidos entre os conceitos eloborodos por pios primeiros, por si mesmos conhecidos, com
Nicolau de Cuso. facilidade, enquanto é mais difícil aí reconduzir
Conhecer implico sempre umo passagem as proposições sucessivas, e é preciso fazê-lo
do conhecido ao desconhecido. No âmbito das através das proposições precedentes.
coisas finitos esto passagem é sempre possí
vel, por mois difícil que possa ser em certos
casos, porque oquilo que é buscado está sem 2. O infinito,
pre em proporção àquilo que se busco e do enquanto transcende
qual se parte. Fio contrário, quando se inda todo proporção e comparação,
ga sobre Deus, falta esta relação ou propor é incognoscível
ção, porque Deus é infinito, e entre o finito e Toda pesquisa consiste portanto em uma
o infinito não há proporção. proporção comparativa, que é fácil ou difícil. Mas
fí consciência que se adquire desta o infinito, enquanto infinito, uma vez que se
"desproporção" entre nossa mente e o infini subtrai a qualquer proporção, nos 0 desconhe
to é justamente a "douta ignorância" critica cido. A proporção exprime conveniência e, ao
mente fundada. Podemos nos avizinhar da mesmo tempo, alteridade em relação a algo, e
verdade apenas por aproximação, sem ja por isso não a podemos entender sem empre
mais podê-la compreender de modo preciso gar os números. O número inclui em si tudo
e que não resulte superável em um modo aquilo que pode ser proporcionado. O número,
ainda mais preciso. que constitui a proporção, não existe apenas
no âmbito da quantidade, mas também em to
das as outras coisas que, de qualquer modo,
podem convir ou diferir entre si pela substância
1. €m toda pesquisa procedemos ou pelos acidentes. Por isso, talvez, Pitágoras
comparando e proporcionando pensava que tudo existe, tem consistência e é
as coisas incertas com pressupostos certos inteligível em virtude dos números.
Dom de Deus, vemos que em todas as
coisas é inerente certa aspiração natural de 3. fl douta ignorância
existir do melhor modo permitido pela natureza como consciência fundada da ignorância
de cada uma delas; e todas agem em vista que é própria do homem
deste fim e têm meios adequados; 0 a elas
Todavia, a precisão nas combinações en
está ligada certa capacidade de julgamento
tre as coisas corpóreas e uma proporção per
conveniente com o objetivo de conhecer sua fi
feita entre o conhecido e o desconhecido é su
nalidade, a fim de que suo aspiração não seja
perior às capacidades da razão humana, razão
vã e cada uma possa alcançar a paz no centro
pela qual parecia a Sócrates não conhecer nada
de gravidade para o qual tende a própria natu
mais que a própria ignorância;1* e Salomão,
reza. Se ocorre diversamente, é seguramente
sapientíssimo, sustentava que "todas as coisas
devido a causas acidentais, como quando uma
são difíceis" e inexplicáveis com nossas pala
doença corrompe o gosto ou uma opinião des
vras;2 e outro sábio, dotado de espírito divino,
via a razão. Por isso dizemos que um intelecto
diz que a sabedoria e o lugar da inteligência
são e livre conhece e abraça com amor a ver
dade que aspira insaciavelmente alcançar quan
do vai indagando sobre toda coisa com o pro
cedimento discursivo que lhe é inerente; e sem 'Cf. Plotõo, Flpologio de Sócrates. 25b.
dúvida a verdade mais segura é a de que toda 18
2€clBSÍOStBS , .
47
Cdpítulo terceiro - O A le o p lc ito n ism o ^ e n a s c e n tis + a
sstõo escondidos "oos olhos de todos os vi- pode medi-la com precisão, assim como o não-
ventes”.3 Portanto, se é assim, que também círculo não pode medir o círculo, cuja realida
Aristóteles, o pensador mais profundo, na filo de é algo de indivisível. Por isso, o intelecto,
sofia primeira afirma que nas coisas por sua que não é a verdade, jam ais consegue
natureza mais evidentes encontramos uma difi compreendê-la de modo tão preciso que não
culdade semelhante à de uma coruja que ten possa compreendê-la de modo mais preciso,
tasse fixar o sol,4 então quer dizer que deseja ao infinito; e tem com a verdade uma relação
mos saber não saber, dado que o desejo de semelhante à do polígono com o círculo: o
saber, que está em nós, não deve ser vão. C se polígono inscrito, quanto mais ângulos tiver
pudermos alcançá-lo plenamente, teremos al tanto mois se tornará semelhante ao círculo,
cançado uma douta ignorância. A coisa mais per mas jamais se tornará igual a ele, mesmo que
feita que um homem, por mais interessado que multiplique ao infinito os próprios ângulos, a
esteja no saber, poderá alcançar na sua doutri menos que não se resolva em identidade com
na é a consciência plena da ignorância que lhe o círculo.
é própria. C tanto mais será douto, quanto mois é portanto evidente que, no que se refere
se reconheça ignorante, é em vista deste fim ao verdadeiro, não sabemos mais do que o fato
que assumi a fadiga de escrever algumas pou de ele ser incompreensível em sua realidade
cas coisas sobre a douta ignorância. de modo preciso; que o verdade é como a ne
cessidade mais absoluta, que não pode ser nem
4. O intelecto humano mais nem menos do que aquilo que é, e nosso
jam ais pode compreender a verdade intelecto é como a possibilidade. A essência
de modo tão preciso das coisas, que é a verdade dos entes, é ina
que não a possa compreender tingível em sua pureza, buscada por todos os
de modo ulteriormente sempre mais preciso, filósofos, mas por nenhum deles descoberta em
ao infinito sua realidade em si. € quanto mais a fundo for
mos doutos nesta ignorância, tanto mais tere
Se é por si evidente que o infinito não tem mos acesso à própria verdade.
proporção com o finito, segue-se do modo mais Nicolau de Cusa,
claro que, onde se encontra um mais e um me R d ou to ignorância.
nos, não se chegou ao máximo em todos os
sentidos, pois as coisas que admitem um mais
e um menos são entidades finitas. Um máximo
de tal porte é necessariamente infinito. Dada
uma coisa qualquer, que não seja o máximo fl "coincidência dos opostos"
em todos os sentidos, é claro que poder-se-á em Deus
dar algo maior do que ela. € uma vez que des
cobrimos que a igualdade é gradual, de modo
que uma coisa é igual mais a uma outra e não Outro conceito fundamental sobre o
a uma terceira, em base a conveniências e a qual se baseia o pensamento de Nicolau de
não-conveniências, em relação a coisas seme Cusa é o da coincidência dos opostos em
lhantes, no gênero, na espécie, na situação lo Deus.
cal, na capacidade de influência, no tempo, é Colocando-se ocima da razão discur
evidente que não se podem encontrar duas ou siva, que procede otravés de afirmação e
mais coisas tão semelhantes e iguais entre si, negação, boseando-se justamente sobre a
que não se dêem outras mais semelhantes, ao distinção dos opostos (ou seja, afirmando
infinito. Por isso a medida e a coisa medida, um dos dois opostos e negando o outro, ou
por mais se avizinhem para ser iguais, perma vice-versa), o homem pode com a intuição
necerão sempre diferentes entre si. intelectiva colocar-se acima do discurso ra
Um intelecto finito, portanto, não pode cional, e compreender como no infinito o
alcançar com precisão a verdade das coisas "máximo absoluto" e o "mínimo absoluto"
procedendo mediante semelhanças. A verda coincidem.
de não tem graus, nem a mais nem a menos, Um exemplo alusivo é, a propósito,
e consiste em algo de indivisível; de modo que o do círculo: se aum entado ao infinito,
aquilo que não seja o próprio verdadeiro, não todo ponto nele s e tornará centro e ao
mesmo tempo ponto extremo, e todo arco,
corda, raio e diâmetro oo infinito virão o
3Jó 28,21. coincidir.
4Cf. Rristóteles, Metafísica, livro II, 1 ,993b 9ss. ----------------------------------------
48 Primeira parte - O H u m a n is m o e a R e n a s c e n ç a
é multiplicóvel, pois é tudo aquilo que pode ser. 1. O antigo princípio de Rnaxágoras
6, portanto, ela não pode se tornar número. "tudo está em tudo”
Vê, portanto, que as considerações sobre no interpretação metafísica neoplatônica
o número nos levaram a entender como a Deus
Se considerares com agudez tudo o que
inominável convenha mais de perto a unidade
foi dito, não te será difícil ver o fundamento de
absoluta, e que Deus é uno de modo tol que ele
verdade daquela expressão de Anaxágoras
é em oto tudo aquilo que tem o possibilidade
que “toda coisa está em toda coisa",1verdade
de ser.
talvez mais profunda do que o próprio Anaxá
Tal unidade não acolhe o mais e o menos, e
goras pensasse. Com efeito, uma vez que do
não é multiplicável. A divindade é unidade infinita.
primeiro livro se conclui que Deus está em to
Aquele que disse: "Ouve, Israel", o teu Deus "é uno":1
das as coisas de modo tal que todas estão nele,
e: "uno é o mestre" e é "o vosso pai nos céus",*2
e uma vez que agora nos consta que Deus está
não teria podido dizer coisa mais verdadeira.
em todas as coisas como que por meio do uni
Nicolau de Cusa, verso, a partir disso temos que todas as coisas
f í d o u ta ignorâncio.
estão em todas e toda coisa está em cada uma.
O universo, por certa ordem de natureza,
precedeu toda coisa como realidade perfei
tíssima, de modo que toda coisa pudesse es
O princípio tar em toda coisa.
Em todo crioturo o universo é o ser da
"tudo está em tudo" quela mesmo crioturo, e assim cada coisa rece
e seu significado be todas as coisas, de modo que nela esteja o
próprio ser delas, controído.
Uma vez que toda coisa não pode ser em
O antigo princípio de fínoxógoros "tudo ato todas as coisas, estando controído, ela con
está em tudo" é retomado p elo Neoplo- trai em si todas as coisas, a fim de que estas
tonismo, e é levado por Nicolou de Cuso òs sejam o seu próprio ser.
extremos conseqüêncios. Em fínoxógoros o Se todas as coisas estão em todas as
princípio volio poro os "homeomerios", que coisas, todas as coisas parecem preceder cada
constituem o matéria do quol as coisas são coisa. Mas a totalidade das coisas não é plu
feitos: todos os homeomerios estão presen ralidade, pois a pluralidade não precede cada
tes em todos os coisas, oindo que em peque coisa. Todas as coisas, portanto, sem plu
níssimo medido, mos o Inteligência perma ralidade, precederam cada coisa por uma or
necia completamente foro desse nexo. No dem natural. A pluralidade, portanto, não está
Neoplatonismo assume, oo contrário, um sig em ato em toda coisa, mas todas as coisas,
nificado globol e umo volidez absoluto poro sem pluralidade, são o próprio ser de cada uma.
todo formo de reolidode em todos os níveis.
Nicolou de Cuso, ao aprofundar e d e 2. €m que sentido Deus
senvolver este princípio, serve-se do concei está em todas as coisas
to metafísico de "contração". Este conceito e todas os coisas estão em Deus
significo o de-terminar-se de olgo de mois
geroI e universal em olgumo coiso mois par O universo está nas coisas apenas de
ticular ou mois definido e em umo multipli modo controído, e toda coisa que existe em ato
cidade estrutural. Pondo-nos nesto óptico controi todas as coisas, de modo que elas se
conceituai, se Deus é máximo, absoluto. Infi jam em ato aquilo que cada uma é. Tudo aqui
nito, o cosmo aparece como se r Deus de lo que existe em ato está em Deus, porque ele
modo contraído, ou sejo, vem o ser o uno, o é o ato de todas as coisas. O ato é a perfeição
absoluto e o infinito de-terminado em uma e o fim da potência. Portanto, uma vez que o
multiplicidade de coisas especificamente di universo está controído em toda coisa existen
ferenciadas e finitas. Por suo vez, o universo te em ato, é evidente que Deus, que está no
está em todo coiso singular de modo contra universo, está em toda coisa, e cada coisa exis
ído, ou sejo, está em coda coiso especifica tente em ato está imediatamente em Deus,
mente de-terminodo e diferenciado, e indi enquanto ela é o universo.
vidualmente multiplicado. Portanto, dizer "toda coisa está em toda
coisa" é o mesmo que dizer Deus, mediante
todas as coisas, está em todas, e todas as assim a estupenda unidade das coisas, a ad
coisas, mediante todas, estão em Deus, mirável igualdade, a admirável conexão, de
€stes pensamentos muito profundos se modo que todas as coisas estão em todas.
compreendem com clareza e com agudez de Compreendes também como disso pro
intelecto, isto é, que Deus sem diversida cedam a diversidade e a conexão das coisas.
de está em todas as coisas, porque cada coi Com efeito, toda coisa não pode ser em ato
sa está em toda coisa, e que todas as coisas todas as coisas, uma vez que desse modo ela
estão em Deus, porque todas estão em to teria sido Deus, e por isso todas as coisas
das. Todavia, uma vez que o universo está estariam em cada uma segundo a possibili-
em cada coisa, de modo tal que cada uma . dade do ser própria de cada uma. C nem to
esteja nele, o universo é em cada coisa con- da coisa poderio ser em tudo semelhante a
traidamente aquele ser que cada uma é de outra [...].
modo contraído, e toda coisa no universo é
o próprio universo, embora o universo em
5. Ulterior exemplificação
cada coisa esteja de modo diverso, e toda
do "tudo em tudo”
coisa, igualmente, esteja diversamente no na imogem do homem
universo.
e de seus membros
Todas as coisas, portanto, encontram paz
3. Cxemplo do linha e das figuras
em cada uma delas, uma vez que um grau do
Gs um exemplo. € claro que a linha infini ser não poderio estar sem o outro, como, entre
to é linha, triângulo, círculo e esfera. Toda linha os membros de um corpo, todo membro é útil
finita tem o próprio ser a partir da linha infinita, ao outro e todos encontram paz em todos. Uma
e esta é todo o ser dela. Por isso, na linha fini vez que o olho não pode ser em ato também
ta todo o ser da linha infinita - que é linha, mão, pé e todos os outros membros, o olho se
triângulo etc. - é o próprio ser da linha finita. contenta de ser olho, e o pé de ser pé.
Toda figura, na linha finita, é a mesma linha. Todos os membros se ajudam reciproca
€ não é que nela exista triângulo, ou cír mente, de modo que cada um deles subsiste
culo, ou esfera em ato, porque de mais coisas no próprio ser do melhor modo possível.
em ato não temos um ato só, uma vez que toda R mão e o pé não estão no olho, mas no
coisa não está em ato em toda coisa, mas o olho eles são olho, enquanto o olho está no
triângulo na linha é linha, o círculo na linha é homem de modo imediato.
linha, e assim por diante. € assim também todos os membros es
Para que vejas isso com maior clareza: a tão no pé, porque o pé está de modo imedia
linha só pode estar em ato no corpo [...]. to no homem, e assim todo membro através
Ninguém põe em dúvida que em um cor de todo outro membro está imediatamente no
po, dotado de comprimento, largura e profun homem, e o homem, ou seja, o todo, em virtu
didade, estejam complicados todas as figuras. de de cada membro está em cada outro mem
Na linha em ato todas os figuras em ato são a bro, assim como o todo está nas partes, ou
própria linha, e no triângulo são triângulo, e seja, em cada parte em virtude de cada uma
assim por diante. das outras.
Com efeito, todas as coisas na pedra são Se considerares a humanidade como algo
pedra, na alma vegetativa são a mesma alma absoluto, não misturável e não contraível, e
vegetativa, na vida são vida, no sentido são considerares o homem no qual está a mesma
sentido, na vista são vista, no ouvido são ouvi humanidade de modo absoluto e do qual pro
do, na imaginação, imaginação, na razão, ra cede a humanidade contraído, que é o ser do
zão, no intelecto, intelecto, em Deus, Deus. homem, então a humanidade absoluta é como
C agora vês como a unidade das coisas, se fosse Deus, e a contraída é como se fosse o
ou seja, o universo, está na pluralidade e, vice- universo.
versa, a pluralidade está na unidade. A humanidade absoluta está no homem
de modo principal e prioritário e, em conseqüên-
cia disso, também está em cada membro e em
4. Todas as coisas são,
cada parte; a humanidade contraído, ao con
na coisa específica, a própria coisa,
trário, no olho é olho, no coração é coração, e
e a própria coisa, em Deus, é Deus
assim por diante, ou seja, de modo contraído
Olha mais atentamente, e verás que toda em cada coisa é cada coisa.
coisa existente em ato encontra paz porque tudo Nicolau de Cusa,
neto é elo próprio, e elo em Deus é Deus. Vês f í dou ta ignorância.
51
Capítulo t€TC6ÍYO - O / \ ) e o p l a + c m i s m o ^ e n a s c e n t is + a
te q única obra do único Deus. Deus e o corpo Nos escritos dos árabes li, venerandos
soo por natureza as partes extremas e uma di- Pais, que flbdalla Saraceno, quando lhe per
versíssima da outra. O finjo não consegue reu guntaram sobre o que lhe parecia sumamente
ni-las, pois está inteiramente voltado para Deus admirável nesta espécie de teatro que é o mun
e esquece o corpo [...]. do, respondeu que nada via de mais esplêndi
Nem a qualidade reúne os extremos, pois do do que o homem. € com este dito concorda
se inclina para o corpo e abandona as coisas o famoso de Hermes: "Grande milagre é o ho
superiores; deixando as coisas incorpóreas ela mem, flsclépio!".’
própria se torna corpórea. flté este ponto as Ora, enquanto eu procurava o sentido
coisas são como extremos, e reciprocamente se dessas sentenças, não me satisfaziam os argu
excluem as coisas superiores e as inferiores, fal mentos que em grande número muitos aduzem
tando os opostos de uma ligação. sobre a grandeza da natureza humana: ser o
Todavia, uma vez posta no meio a terceira homem vínculo das criaturas, familiar às supe
essência, ela é tal que, enquanto se reúne com riores, soberano das inferiores, intérprete da
as coisas superiores, não deixa as inferiores, de natureza pela agudez dos sentidos, pela pes
modo que nela estas e aquelas se encontram quisa da razão, pela luz do intelecto, interme
reunidas, [fl alma], com efeito, é imóvel e mó diário entre o tempo e a eternidade e, como
vel. Daquela parte ela se liga com a realidade dizem os persas, cópula ou seja Himeneu2 do
superior, desta com a inferior. Ligando-se com mundo, pouco inferior aos anjos segundo o tes
ambas, deseja uma e outra. Por isso, [a alma], temunho de Davi.3 Grandes coisas estas, sem
por certo instinto natural, ascende para coisas dúvida, mas não as mais importantes, não tais,
superiores e desce para as inferiores. C, enquan isto é, por meio das quais possa justamente
to ascende, não abandona as coisas mais bai arrogar-se o privilégio de uma admiração sem
xas, e, enquanto desce, jamais deixa o divino. limites. Por que, com efeito, não admirar mais
M. osFicino,
anjos e os beatíssimos coros do céu?
Theologici platônica. Todavia, no fim parece-me ter compreen
dido porque o homem seja o mais feliz dos se
res animados e, por isso, digno de toda admi
ração, e qual seja por fim aquele destino que,
cabendo-lhe na ordem universal, é invejável
Pico d e l l a M ir a n d o la não só aos brutos, mas aos astros e aos espí
ritos ultramundanos. Coisa incrível e maravilho
sa! € como poderio ser diferente, se é justa
mente por ela que o homem é proclamado e
considerado um grande milagre e maravilha
entre os viventes?
fl dignidade do homem Mas qual seja ela, escutai, ó Pais, e dai
benignamente ouvidos, em vossa cortesia, a
este meu falar. Já o sumo Pai, Deus criador, ti
O Discurso sobre a dignidade do ho
nha formado, conforme as leis de uma arcana
mem é certomente o escrito de Pico que se
sabedoria, esta moradia do mundo, tal qual nos
tornou mais célebre, e oté se impôs como
aparece, templo augustíssimo da divindade.
um dos textos emblemáticos do Humanismo.
Havia embelezado com as inteligências o hipe-
Fl possogem aqui proposta versa so
rurânio, avivara de almas eternas os globos
bre o significado metafísico e moral do ho
etéreos, povoara com uma turba de animais de
mem como "grande milagre". Todas as cria
toda espécie as partes vis e torpes do mundo
turas que se encontram tanto no mundo
inferior. Contudo, levando a obra à realização,
sensível como no mundo supro-sensível fo
o artífice desejava que aí houvesse alguém
ram criadas como realidades ontologicamen-
capaz de captar a razão de tão grande obra,
te determinadas. O homem, ao contrário, foi
de amar sua beleza, de admirar sua imensida
posto no confim dos dois mundos, com uma
de. Por isso, tendo já realizado o todo, como
natureza estruturada de modo tal que ele pró atestam Moisés4 e Timeu,5 por último pensou
prio deve determinar, plasmando-a segundo
a forma de vida moralmente pré-escolhida.
fí grandeza do homem está portanto
em ter sido criado por Deus como artífice de 'Asdépio, em Corpus Hermeticum, vol. II.
zHimeneu, ou Himene, era o deus grego dos núpcias.
si próprio, como autoconstrutor segundo suas ^Salmo 8,5-6.
escolhas morais. G ê n e sis 1,26-28.
5Plotõo, Timeu. 41 b.
54
Primeira parte - CD■ H um an ism o e a R en ascen ça
em produzir o homem. Mas, dos arquétipos não aquilo que existe no mundo. Não te fiz nem ce
restava nenhum sobre o qual modelar a nova leste nem terreno, nem mortal nem imortal, para
criatura, nem dos tesouros um para entregar que, por ti mesmo, como livre e soberano artífi
como herança ao novo filho, nem dos lugares ce, te modelasses e te esculpisses na forma
de todo o mundo permanecia um sobre o qual que tivesses de antemão escolhido. Poderás
se sentasse este contemplador do universo. degenerar nas coisas inferiores, que são os
Todos já estavam ocupados; todos haviam sido brutos; poderás regenerar-te, conforme tua von
distribuídos, nos sumos, nos médios, nos ínfi tade, nas coisas superiores que são divinas".
mos graus. Ó suprema liberalidade de Deus pai! Ó
Todavia, não teria sido digno do paterno suprema e admirável felicidade do homem, ao
poder tornar-se como que impotente na última qual concede-se obter aquilo que deseja, ser
obro; nem de sua sabedoria permanecer incer aquilo que quer. Os brutos, ao nascerem, tra
ta na necessidade por falta de conselho; nem zem consigo do seio materno, como diz lucílio,6
de seu benéfico amor, que aquele que era des tudo aquilo que terão. Os espíritos superiores
tinado a louvar nos outros a divina liberalidade ou desde o início ou pouco depois tornaram-se
fosse constrangido a reprová-la em si mesmo. aquilo que serão pelos séculos dos séculos. No
Estabeleceu finalmente o ótimo artífice homem que nasce o Pai colocou sementes de
que, àquele ao qual nada podia dar de pró toda espécie e germes de toda vida. E, confor
prio, fosse comum tudo aquilo que singularmen me cada um os cultivar, eles crescerão e nele
te atribuira aos outros. Acolheu por isso o ho darão seus frutos. E se forem vegetais, será
mem como obra de natureza indefinida e, planta; se sensíveis, será animal; se racionais,
pondo-o no coração do mundo, assim lhe fa tornar-se-á animal celeste; se intelectuais, será
lou: "Não te dei, Adão, nem um lugar determi anjo e filho de Deus. Todavia se, não contente
nado, nem um aspecto teu próprio, nem qual com a sorte de nenhuma criatura, se recolher
quer prerrogativa tua, porque o lugar, o aspecto, no centro de sua unidade, tornado um só espí
as prerrogativas que desejares, tudo enfim, rito com Deus, na escuridão solitária do Pai,
conforme teu voto e teu parecer, obtenhas e aquele que foi posto sobre todas as coisas
conserves. A natureza determinada dos outros estará sobre todas as coisas.
está contida dentro de leis por mim prescritas. G. Pico delia Mirandola,
Tu determinarás a tua, não constrangido por D iscu rso s o b re o d ig n id a d e d o hom em .
nenhuma barreira, conforme teu arbítrio, a cujo
poder te entreguei. Eu te coloquei no meio do
mundo, para que daí melhor avistasses tudo 6lucílio, Sátiros, 623 edição Marx
O y W is f o f e lis m o ^ e P \a s c e .K v + is t a
e a r e v iv e s c ê r v c ia d o (S e + ic is m o
I . O s p r o b le m a s d a t r a d i ç ã o aris+o+elioa
rva e r a d o -H u m a r v is m o
• Não temos ainda conhecimento preciso das relações que existem entre os
dois ramos do Aristotelismo:
a) o ético-político, que os humanistas literatos fizeram reviver;
b) o lógico-naturalista das Universidades.
O tom geral da época é, em todo caso, dado pelo Platonismo,
e o Aristotelismo, na dialética geral do pensamento renascentista, O Aristotelismo
serve prevalentemente de antítese; os próprios filósofos do Qui na Renascença
nhentos (Telésio, Bruno, Campanella) não tirarão nenhum con e a questão da
forto das páginas de Aristóteles. "dupla verdade"
Os aristotélicos da Renascença se ocuparam sobretudo dos - - > § 2-4
problemas lógico-gnosiológicos e de problemas físicos, aprofun
dando os aspectos metodológicos, tanto que a Escola de Pádua cunhou a expres
são "método científico" (política, ética e poética permaneceram, ao contrário,
herança dos humanistas filólogos.
No que se refere às fontes do conhecimento, os aristotélicos distinguiram:
a) a autoridade de Aristóteles;
b) o raciocínio aplicado aos fatos;
c) a experiência direta; mas pouco a pouco eles começaram a preferir esta última.
Papel importante teve até o 600 a doutrina da dupla verdade, proposta pela
primeira vez na Idade Média por Siger de Brabante, segundo o qual sobre a base da
razão e da doutrina aristotélica uma coisa pode resultar mais provável, mesmo que
sobre a base da fé seja aceito o oposto.
• O Aristotelismo renascentista merece maiores considerações enquanto é
indispensável para compreender a época. Para o momento não se tem ainda co
nhecimento preciso da diferença entre o Aristóteles ético-políti
co dos humanistas e o Aristóteles lógico-naturalístico das Univer Importância
sidades. Em geral, porém, o Aristotelismo representa, para o pen do Aristotelismo
samento renascentista, a antítese do Platonismo. Alguns filósofos renascentista
do Quinhentos, ao contrário, experimentarão até fastio ao ler as ~->§4
obras de Aristóteles.
culo XIII, em virtude do encontro entre a Resta, além disso, o fato de que o tom
teologia, que se constituira em bases lógi geral da época é dado sobretudo pelo Pla-
cas, com um conjunto coerente de doutri tonismo, e que o Aristotelismo, na dialética
nas, e a filosofia de Aristóteles, que, por seu global do pensamento renascentista, repre
turno, representava um conjunto de doutri senta de modo prevalente a antítese.
nas coerentes — e desse encontro brotaram Os próprios filósofos do Quinhentos
contrastes de vários tipos. que estudaremos mais adiante, que se diri
A tentativa de síntese proposta por giram à Natureza em primeira instância, não
Tomás fora muito contestada: Escoto e só não trarão nenhum conforto das páginas
Ockham haviam alargado o fosso que se de Aristóteles, e sim fastio: Telésio achará
para a ciência da fé, e Siger de Brabante pro Aristóteles, ao mesmo tempo, demasiada
pusera a doutrina da “ dupla verdade” , que mente pouco físico e demasiadamente pou
os averroístas latinos tornaram sua, sendo co metafísico; Bruno o considerará “um velho
sustentada por alguns aristotélicos até o sé deplorável” , “ inclinado, curvo, corcunda,
culo XVII. dobrado para a frente, como Atlante, opri
Pois bem, o que significa “ dupla ver mido pelo peso do céu, de modo que não
dade” ? pode vê-lo” ; enquanto os habitantes da Ci
Os estudiosos mais atentos colocaram dade do Sol de Campanella, que exprimem
em evidência que tal teoria, em seu núcleo as idéias do filósofo, “são inimigos de Aris
de fundo, pode ser essencialmente reduzida tóteles, e o chamam de pedante” .
a este princípio: sobre a base da razão e da
doutrina aristotélica uma coisa pode se tor
nar mais provável, mesmo que sobre a base
da fé seja aceito o oposto.
S T A (i I R I T
Isto não significava abandono da teo OMN IA Q V Ali >. X T A N T OPERA
logia e da fé, mas apenas uma distinção heu »ç (••» < > - '» ó U A n «rw u U u w n .lK rt . («U a tto q M fw m g r v o i * n m n d m Í M M
< xt ‘x p r i l i . i i . M v j w w M k H n lfp i S n í l i uxt* miw w w i » w A w w A y f u ;
rística e metodológica das esferas da ciên ri « n q * * * U f i M u t t áorwt*.
H 7tm*mmAmAhmA» 4 « w w x AAi
Dissemos acima que têm razão os que tdk u * i rsnoMim/i muottrt 1 .4.
sustentam que o Aristotelismo renascentista H k m m h m m u m n P iv I m b m , m m n l d k « la k t w w *
ifaru m w m o M r itM i.
merece maior consideração do que teve no B E R N A R D O SALVIATO EPtSC.S. PAPVLI
passado e que ele constitui uma componen ROMAC P R I O R ! D I C A T A
• Sob muitos aspectos, o mais interessante dos aristotélicos foi Pedro Pom-
ponazzi (1462-1525), segundo o qual a alma intelectiva é princípio de intelecção e
volição imanente no homem, e é capaz de conhecer o universal e
Pietro o supra-sensível; todavia, ela não é uma inteligência separada:
Pomponazzi: não pode estruturalmente prescindir do corpo, que é o mais no
a natureza bre dos seres materiais, tem perfume de imaterialidade, embora
da alma não de modo absoluto. Pomponazzi põe tal posição dentro da
e o princípio doutrina da dupla verdade, porque a imortalidade da alma é ar
da naturalidade tigo de fé que deve ser provado com os instrumentos da fé (reve
~ ^ § 1-3
lação e Escrituras), mas não é uma verdade demonstrável pela
razão; a "virtude", isto é, a vida moral, é em todo caso garantida
mais com a tese da "mortalidade" do que com a da "imortalidade" da alma: a
verdadeira felicidade é posta na própria virtude, prescindindo de recompensas
futuras no além.
No quadro da dupla verdade deve ser inserido também o princípio de natura
lidade, segundo o qual todos os eventos sem exceção podem ser explicados sobre
a base de causas naturais e da experiência, compreendendo tudo o que acontece
na história dos homens; em todo caso, os eventos admitem também uma explica
ção com base em verdades sobrenaturais.
4 O p eiv iléq io
que deve se r d ado
d e x p e e iê m c ia
I I I . I^ e iA a s c im e K v to
d e w m a -po^m a m o d e l a d a d e (S e + ic is m o
saios (1580 e 1588), que são obras-primas A solução adotada por Montaigne ins
ainda hoje muito consideradas. pira-se nessa, mas é muito mais articula
Também em Montaigne o ceticismo da, rica em nuanças e sofisticada, com a in
convive com uma fé sincera. Isso surpreen clusão, também, de sugestões epicuristas e
deu muitos historiadores. Na realidade, po estóicas.
rém, sendo o ceticismo desconfiança na ra O homem é mísero? Pois bem, captemos
zão, ele não põe a fé em causa, pois esta o sentido dessa miséria. E limitado? Capte
situa-se num plano diferente, sendo portan mos o sentido dessa limitação. E medíocre?
to estruturalmente inatacável pelo espírito Captemos o sentido dessa mediocridade.
cético. “ O ateísmo — escreve Montaigne — Mas, se compreendermos isso, compreende
é [...] uma proposição quase contra a natu remos também que a grandeza do homem
reza e monstruosa, difícil também e inapta está precisamente em sua mediocridade.
para fixar-se no espírito humano, por mais Então é claro que o “conhece-te a ti
insolente e desregulado que ele possa ser” . mesmo” não pode desembocar em uma res
Entretanto, a “ naturalidade” do conheci posta sobre a essência do homem, mas so
mento de Deus depende inteira e exclusiva mente sobre as características do homem
mente da fé. O cético, portanto, só pode ser singular, que alcançamos vivendo e obser
fideísta. vando os outros viverem, bem como procu
Mas o fideísmo de Montaigne não é o rando nos reconhecer a nós mesmos refleti
de místico. E o interesse dos Ensaios volta- dos na experiência dos outros.
se predominantemente para o homem e não Os homens são notavelmente diversos
para Deus. A antiga exortação contida na entre si e, não sendo possível estabelecer os
sentença inscrita no templo de Delfos, “ho mesmos preceitos para todos, é preciso que
mem, conhece-te a ti mesmo” , da qual Só cada um construa uma sabedoria à sua pró
crates e grande parte do pensamento antigo pria medida. Cada qual só pode ser sábio
se apropriaram, torna-se para Montaigne o de sua própria sabedoria; o sábio deve sa
programa do autêntico filosofar. Mas não ber dizer sim à vida, em qualquer circuns
só isso: os filósofos antigos visavam ao co tância, e aprender a aceitá-la e amá-la as
nhecimento do homem com o objetivo de sim como é, sempre. Texto Q
alcançar a felicidade — e esse objetivo tam
bém está no centro dos Ensaios de Mon
taigne. A dimensão mais autêntica da filo
sofia é a da “ sabedoria” , que ensina como
devemos viver para sermos felizes.
Mas como a razão cética, abraçada por
Montaigne, pode alcançar esses objetivos,
aquela mesma razão cética que propõe aci
ma de todas as coisas a pergunta de adver
tência “ o que sei eu?” (que sais-je?).
Sexto Empírico escreveu que os céti
cos conseguiram resolver o problema da fe
licidade precisamente mediante a renúncia
ao conhecimento da verdade. A este propó
sito, ele citava o conhecido apólogo do pin
tor Apeles que, não conseguindo pintar sa
tisfatoriamente a espuma sobre a boca de
um cavalo, tomado de raiva, lançou contra
a pintura a esponja embebida em tintas. Michel cie Montaigne (151.1-1592)
Então, a esponja deixou na tela uma man repropôs em seus Ensaios um pensamento
cha que parecia espuma. E da mesma ma de fundo cético, rico em temáticas discutidas
neira que, com a renúncia, Apeles alcançou pelas antigas filosofias helenísticas,
mas traduzidas em uma linguagem muito moderna,
o seu objetivo, os céticos, com a renúncia a fixada em páginas ainda hoje muito agradáveis.
encontrar o verdadeiro (ou seja, suspenden Este que reproduzimos é um belo retrato
do o juízo), acabaram encontrando a tran- de um autor anônimo,
qüilidade. conservado no Castelo de Versailles.
63
Cãpítulo quarto - O ;A ris+ o te lism o ^ e n asce k v H sla e a ►‘e v i v e s c ê n c i a d o (Se+icism o
D fl questão
Na verdade, dado que a autoridade de tão
ilustre doutor é para mim grandíssima, não
da imortalidade do olmo apenas no campo da teologia, mas também
no do pensamento aristotélico, não ousaria
afirmar qualquer coisa contra sua opinião; mas
R tese d e Pomponazzi, que suscitou o que direi eu o proporei sob a forma de dú
todo umo série de discussões, é a do insus- vida e não como afirmação, e é provável que
tentobilidode por puro rozõo e em sentido pelos seus doutíssimos seguidores a verda
categórico do imortalidade da alma. R alma de poderá ser-me desvelada. Sobre sua pri
intelectiva do homem, embora radicalmen meira afirmação, isto é, que na realidade no
te superior à alma sensitiva dos animais, nõo homem a faculdade sensitiva e a intelectiva
pode considerar-se uma realidade separa sejam a mesma coisa, não tenho nenhuma dú
da, ou sejo, transcendente ao corpo, porque vida; mas as outras quatro me parecem muito
nõo pode conhecer e agir a nõo se r m e obscuras.
diante os sentidos e, portanto, mediante o €, em primeiro lugar, que tal essência seja
corpo. Portanto, do ponto de visto do rozõo por si e verdadeiramente imortal, mas impro
Filosófica, ela seria Forma de um corpo, e priamente e segundo certo aspecto mortal. Cm
como nosce com o corpo, assim também p a primeiro lugar, porque com raciocínios semelhan
recería perecer com o corpo, porque nõo tes àqueles com os quais ele sustenta esta tese
pode agir e subsistir sem o corpo. Também pode ser provada também a tese oposta. Com
segundo o pensam ento d e Rristóteles, s o efeito, do constatação que tal essência acolhe
bre a base de uma interpretação difundi todas as formas materiais, que aquilo que nes
da, Pomponazzi afirma que deve "dizer-se ta se acolhe é entendido em ato, que não se
mortal". serve de um órgão corpóreo, que tende à eter
Malgrado as argumentações que Pom nidade e às coisas divinas, se concluía que ela
ponazzi aduz neste sentido, e le salienta é imortal. Mas, igualmente, uma vez que ela,
várias vezes o "perfume" de imoteriolido- como alma vegetativa, opera materialmente, e
de e imortalidade da alma. Na realidade, como alma sensitiva não acolhe em si todas as
Pomponazzi nõo pretendia d® modo nenhum formas, e além do mais se serve de um órgão
negar o imortalidade, mas pretendia a p e corpóreo e tende às coisas temporais e cadu
nas negar que esta fosse demonstrável com cas, poder-se-á provar que ela é própria do fi
absoluta certeza e de modo categórico pela lósofo natural.2 A esta consideração se refere
rozõo. No imortalidade se crê por fé, como Aristóteles naquela passagem do I livro do De
demonstro a segundo passagem que aqui partibus animalium. C a outra afirmação, que a
apresentamos. mente vem de fora, deve ser referida a ela como
pura mente, não como mente humana; ou, caso
se queira entender como referida a ela como
mente humana, não deve ser tomada em senti
1. Dúvidas sobre a imortalidade da alma do absoluto, mas apenas enquanto, em con
Naturalmente, sobre a verdade desta tese fronto com a vegetativa e com a sensitiva, ela
[ou seja, a tese tomista de que no homem a participa maiormente da divindade. Com efei
alma sensitiva e a intelectiva são uma só subs to, no cap. 9o do IV livro do De portibus anima
tância simples e individual, imortal por sua na lium se diz que apenas o homem é de natureza
tureza e mortal sob certo aspecto, forma subs ereta porque só ele participa de modo notável
tancial do homem, multiplicada com o número da divindade.3*
dos corpos humanos, que começa a existir jun
to com o corpo por um ato de criação imediata
por parte de Deus e continua a viver depois da
'Tomás de flquino, De unitote intellectus contra
morte do corpo] não há para mim nenhuma in
averroistas, proêmio.
certeza, uma vez que a Cscritura canônica, que 2flristóteles, Física, livro li, 7, 198o 27-31.
deve ser anteposta a todo raciocínio e expe 3flristóteles, De partibus animalium, livro IV, 10 (e nõo
riência humana uma vez que nos foi dada por 9), 686o 27-28.
64
Primeira parte - O H w m an ism o e a R e n a s c e n ç a
Nõo admitimos, todavia, que o homem blema não possa ser resolvido de modo certo
sobreviva como olmo depois de suo morte, dado a não ser por Deus. Todavia, não me parece
que elo tem um princípio, e (I livro do De coe/o) justo nem conveniente que os homens perma
"tudo oquilo que tem um princípio tombem tem neçam privados desta certeza. [...] Contudo, uma
um fim";4 e Platão, no VIII livro dos Leis, diz: "Tudo vez que ele próprio tornou manifesto com a
oquilo que de qualquer modo começo o ser, palavra e com a obra que a alma é imortal -
também cesso de ser".5 com a palavra, quando ameaça os maus com o
Q u a n t o ao que depois se diz o propósito fogo eterno e promete aos bons a vida eterna
do texto 17° do livro VII do Metafísico, nõo (ele diz, com efeito; “Vinde, benditos de meu
condivido o resposta de Alexandre que aí re Pai", e continua: "Ide, malditos, para o fogo eter
porto Averróis, tirando-a de Temístio, ou seja, no"),9 e com a obra, quando no terceiro dia res
de que isso seja dito com referência ao intelec suscitou da morte - o quanto difere a luz em
to agente:6 com efeito, o intelecto agente não relação ao objeto luminoso e a verdade em
é forma do homem; ao contrário, diz-se em re relação ao verdadeiro e o quanto a causa infi
ferência ao intelecto possível, que por vezes nita é mais nobre que o efeito finito, tanto mais
entende, outras vezes não; com efeito, ele se eficazmente isso demonstra a imortalidade da
corrompe a partir da corrupção de alguma coi alma.
sa em si, ou seja, da alma sensitiva com a qual Por isso, se há alguns argumentos que
se identifica. Na realidade, Aristóteles se ex parecem provar a mortalidade da alma, eles
prime assim com referência ao intelecto como são falsos e apenas aparentemente justos, a
ele é por si e não como é por acidente, como partir do momento que a primeira luz e a pri
se dissesse que nada impede que sobreviva meira verdade nos demonstram o contrário; se
enquanto é intelecto, não enquanto é intelecto alguns outros, depois, parecem provar sua imor
humano, dado que já no I livro do De coeio foi talidade, eles são tão verdadeiros e lumino
demonstrado que tudo aquilo que é gerado se sos, mas não são a luz e a verdade. Por isso
corrompe. apenas esta é a via mais segura, não desmo-
6 que exatamente este tenha sido o pen ronável e firme; as outras, ao contrário, estão
samento de Aristóteles sobre a alma humana, todas sujeitas a incertezas. Além do mais toda
pode ser esclarecido também por meio daque arte deve servir-se de meios próprios e adap
la passagem do livro XII da Metafísico, texto tados a si, pois de outro modo se desvia e não
39°, onde escreve estas palavras: "Mas a feli procede segundo seus ditames, conforme diz
cidade, em sua mais alta forma, a nós é conce Aristóteles no I livro do fínolíticos segundos e
dida por breve tempo; naquela forma é conce no I livro da éf/co.10 Todavia, que a alma seja
dida aos deuses como eterna, enquanto para imortal é artigo de fé, como está no Símbolo
nós é coisa impossível"7 dos fípóstoios e em fítanásio, e por isso deve
ser demonstrado com os meios que são pró
prios da fé; e o meio sobre o qual a fé se ba
2. fl imortalidade da alma é verdade de fé
seia é a revelação e a escritura canônica; ape
e não de pura razão
nas com seu auxílio, portanto, verdadeira e
Çstando assim as coisas, parece-me de propriamente semelhante verdade se deve
ver sustentar este argumento, permanecendo
salva a doutrina mais justa, de que o problema
da imortalidade da alma é suscetível de duas Aristóteles, De coeio, I, 10, 279b 20-21.
soluções opostas, como o da eternidade do sPlotõo, Repúblico (e nõo Leis), VIII, 54óa.
mundo. Parece-me, com efeito, que não se po 6fl este respeito escreve Gregory: "No realidade,
dem aduzir argumentos de ordem natural que Rverróis, naquela passagem, não fala, citando Rlexandre,
de intelecto agente, mas de 'intellectus adeptus', e o isso
concluam com absoluta certeza que a alma seja
de fato Rlexandre se refere, tanto no comentário à Me
imortal, e muito menos que seja mortal, como tafísico (Rlexandri Rphrodisíensís in fíristotelisMetaphysica
declaram muitíssimos doutores que também commentoria, ed. M. Hayduck, nos 'Commentario in Rristo-
sustentam sua imortalidade. Por isso não me telem graeco', vol. I, p. 678 r. 4), como no De anima (ed.
preocupei em responder ò outra tese, coisa já Bruns., pp. 90r. 13-91 r. 44); mos também é verdade que
Rverróis (De animo, III, comm. 36, digr. pors II) ofirmo que o
feita por outros e, em particular, de modo am 'intellectus adeptus' de Rlexandre não é mais que^o inte
plo, exaustivo e sério por 5. Tomás. lecto agente no oto em que este informa o intelecto mate
Por isso direi, como Platão no livro I das rial" (p. 714; n. 52).
Leis, que apenas a Deus foi dado fornecer a Aristóteles, Metafísica, livro XII, 7, 1072b 14-16.
8 Platão, Leis, I, 641 d.
certeza daquilo sobre o que muitos discordam;8 9Mateus 25,34.41.
pois, de fato, tontos homens ilustres estão em 'Aristóteles, Flnalíticos segundos, livro I, 7, 75a 36-
desacordo entre si, que eu penso que este pro 74b 21; ética o Nicõmaco, livro I, 75a 1098a 26-32.
65
Capitulo CfUãTtO - O ;A f*is+o+elism o r e n a s c e n t is t a e a n e v iv e s c ê n c ia d o C i.'l <■ sm o
provor, 0 todos os outros argumentos não são 1. Filosofar é preparar-se para a morte
apropriados 0 se fundamentam sobre meios que
Cícero diz que filosofar não é mais que
não estão em grau de provar aquilo que se nos
preparar-se para a morte. C por isso que o es
propõe. Não deve, portanto, suscitar maravilha
tudo e a contemplação transportam de alguma
se os filósofos discordam entre si sobre o pro
forma nossa alma para fora de nós e a mantêm
blema da imortalidade da alma, dado que eles
ocupada, separada do corpo. C uma espécie
se fundamentam sobre argumentos não ade
de experiência e semelhança da morte; ou me
quados à conclusão 0 falazes; enquanto todos
lhor, é fato que toda a sabedoria e todas as
os cristãos estão de acordo porque recorrem a
considerações do mundo se resolvem por fim
meios apropriados e infalíveis, a partir do mo
neste ponto: ensinar-nos a não ter medo de
mento que as coisas não podem estar o não
morrer. Na verdade, ou a razão caçoa, ou deve
serem apenas um modo. [...] Por isso, sem qual
apenas mirar para a nossa satisfação, e todo
quer hesitação é preciso afirmar que a alma é
seu esforço deve, em conclusão, tender a fa
imortal, mas não se pôr naquele caminho so
zer-nos viver bem e na alegria, como diz a Sa
bre o qual caminharam os sapientes deste sé
grada Cscritura.
culo, - que tais se dizem, mas terminam por ser
estultos -, pois, a meu ver, quem quiser perse-
verar nesse caminho sempre se moverá na in 2. Também na virtude o fim é o prazer
certeza e na vaguidão. [...] Aqueles, porém, que Todas as opiniões das pessoas são que
procedem no caminho dos crentes, permane o prazer é nosso escopo, embora a ele se mire
cem firmes e seguros: demonstram isso o des com meios diversos; de outro modo, alguém as
prezo da riqueza, das honras, dos prazeres e expulsaria logo que nascem, uma vez que quem
de todo bem mundano, e por fim a coroa do ficaria ouvindo aquele que pusesse para si como
martírio que eles ardentemente desejavam e fim nosso sofrimento 0 nosso infortúnio?
finalmente alcançavam, alegres depois de tan As divergências das seitas filosóficas, nes
to desejo. te caso, são apenas de palavras. Há mais obs
P. Pomponcizzi, tinação e teimosia do que convém a uma tão
D e im m ortalitate anim oe. santa profissão. Mas qualquer que seja o per
sonagem que o homem represente, nele sem
pre representa a si mesmo. Digam o que disse
rem, até na virtude o último escopo de nossa
aspiração é o prazer. Gosto de repetir no ouvi
M o n t a ig n e do deles esta palavra que tanto os perturba. C
se ela significa um prazer supremo e uma enor
me satisfação, melhor condiz com a virtude do
que com qualquer outra coisa, feta volúpia, para
ser mais forte, nervosa, robusta, viril, é por isso
também mais fortemente voluptuosa. A deve
Filosofar é aprender o morrer riamos dar a ela o nome do prazer, que é mais
propício, mais doce e natural: não o da virtude,
Montaigne situo-se no quadro do renas com o qual a chamamos.
cimento dos Asboços pirronianos de Sexto
Cmpírico e do Ceticismo em geral (lembre 3. A virtude e o desprezo da morte
mos que na França Henri Cstevõo, isto é, o
Stephanus, publicou o editio princeps de S e x A felicidade e a bem-aventurança que res
to e traduziu em latim os Asboços pirronianos, plandecem na virtude preenchem todas as suas
enquanto G. Hervet publicou a versão latina pertinências e todas as suas ambiências, des
de todas os obras de Sexto). Cm Montaigne de sua entrada até sua última porta. Ora, entre
o pirronismo temperado e o ceticismo mode os principais benefícios da virtude está o des
rado se casam com uma Fé Forte e sincera. prezo da morte, é um meio que fornece à nossa
No trecho que segue, Montaigne aFir vida uma doce tranqüilidade, que torna nosso
ma que a contemplação e o estudo habituam gosto puro e amável, sem que seja apagada
a morrer, porque nos transportam como que qualquer outra volúpia.
Ais por que todas as regras se encontram
para Foro da vida. O desprezo do morte está
entre os principais benefícios da virtude, por e convêm neste princípio. €, embora elas tam
que é preciso pensar que a meto poro a qual bém nos levem de comum acordo a desprezar
a vido corre é a morte. a dor, a pobreza e outros acidentes aos quais
a vida humana está sujeita, isso não ocorre com
66 Prim eÍTã p ã tte - O -H u m an ism o e a R e n a s c e n ç a
iguol preocupação, seja porque tais acidentes pálidos e lacrimosos, um quarto sem luz, círios
não são absolutamente necessários (a maior acesos, médicos e padres apinhados à nossa
parte dos homens transcorre o vida sem provar cabeceira; em suma, só horror e espanto ao
a pobreza, e outros ainda sem provar dor e nosso redor. Gs-nos já sepultados e soterra
doença, como Xenófilo o Músico, o qual viveu dos. fis crianças têm medo até de seus ami
cento e seis anos com saúde plena) ou por gos, quando os vêem com aquela máscara, e
que, no pior dos casos, a morte pode pôr Fim, assim a temos nós. é preciso tirar a máscara
quando nos aprouver, e eliminar todos os ou das coisas, e também das pessoas: quando for
tros inconvenientes, mas, quanto à morte, ela tirada, encontraremos sob ela apenas aquela
é inevitável. mesma morte que um servo ou uma simples
camareira assistiram sem nenhum medo. Feliz
4. Cnsinar a morrer é ensinar a viver a morte que acontece sem os enfeites de tal
aparato.
Gj, no momento, estou, graças a Deus, Michel de Montaigne,
em tal condição que posso partir quando lhe Ensaios.
aprouver [...].
Como os egípcios que, depois de seus
banquetes, mandavam oferecer aos presentes
uma grande imagem da morte por alguém que
lhes gritava: "Bebe e goza, pois, quando mor
to, assim serás"; do mesmo modo tenho por
hábito, de modo contínuo, manter a morte não
só no pensamento mas também no boca; e não
há nada de que me informe com tanto prazer
como da morte dos homens: que palavras, que
aspecto, que postura tiveram naquele momen
to, e não há passagem das histórias que eu
não note com tanta atenção. Pela interpolação
de meus exemplos manifesta-se como eu te
nha particular amor por este assunto. Se eu
fosse um fazedor de livros, faria um livro co
mentado sobre diversas mortes. Quem ensi
nasse os homens a morrer, estaria lhes ensi
nando a viver.
yA R e n a s c e n ç a e a R e i igfião
I. £ m s m o d e R o f f e d a m
nuada e com grande fineza, ele antecipou livre-arbítrio (1524) já citado, suas edições
algumas posições de Lutero, tanto que foi de Padres da Igreja e, sobretudo, a edição
acusado de ter preparado o terreno para o crítica do texto grego do Novo Testamento
protestantismo. Mas, depois da flagrante (1514-1516), com a relativa tradução.
ruptura de Lutero com Roma, Erasmo não
se alinhou com ele, chegando até a escrever
contra ele (embora impelido por várias so
licitações de amigos e não espontaneamen 2 ( S o r v c e p ç ã o kunaam s+a
te) um tratado intitulado Sobre o livre-arbí- da -filosofia ceis+ã
trio. Mas também não se alinhou ao lado
de Roma, preferindo ficar numa posição
própria ao assumir ambígua posição de neu Erasmo tinha aversão à filosofia enten
tralidade que, se lhe foi favorável por certo dida como construção de tipo aristotélico-es-
período, com o correr do tempo foi-lhe pre colástico, centrada sobre problemas metafí
judicial, deixando-o isolado e sem seguido sicos, físicos e dialéticos. Contra essa forma de
res. E, assim, a grande fama que granjeara filosofia adota, aliás, tons quase de desprezo.
em vida acabou se dissolvendo rapidamen A filosofia é, para Erasmo, o conhecer-
te depois de sua morte, ocorrida em 1536. se a si mesmo ao modo de Sócrates e dos
Entre suas obras, merecem especial men antigos: é conhecimento sapiencial de vida e,
ção O manual do soldado cristão (1504), os sobretudo, é sabedoria e prática de vida cris
Provérbios (publicados em sua redação de tã. E a sabedoria cristã não tem necessidade
finitiva em 1508), o Elogio da loucura, de de complicados silogismos, podendo ser al
1509 (impressa em 1511), o tratado Sobre o cançada em poucos livros: os Evangelhos e
as Epístolas de são Paulo. Escreve Erasmo:
“Que outra coisa é a doutrina de Cristo, que
ele próprio denomina renascença, senão um
retorno à natureza bem criada?” Essa filoso
fia de Cristo, portanto, é uma “renascença” ,
que representa um “retorno à natureza bem
criada” . E os melhores livros dos pagãos con
têm “grande número de coisas que concor
dam com a doutrina de Cristo” .
Para Erasmo, a grande reforma religio
sa se resume em sacudir dos ombros tudo
aquilo que o poder eclesiástico e as dispu
tas dos escolásticos acrescentaram à simpli
cidade das verdades evangélicas, confun
dindo-as e complicando-as. O caminho que
Cristo indicou para a salvação é o mais sim
ples: fé sincera, caridade não hipócrita e es
perança que não se envergonha. Se tomarmos
os grandes santos como exemplo, veremos
que eles não fizeram outra coisa senão viver
com liberdade de espírito a genuína doutri
na evangélica. E a mesma coisa pode ser en
contrada nas origens no monaquismo e na
vida cristã primitiva.
Erasmo de Rotterdam (1466-1536) E preciso, portanto, retornar às origens.
foi um dos mais cultos e finos humanistas. E nessa ótica de retomada das fontes que se
Seu pensamento reveste-se sobretudo inserem a edição crítica e a tradução do
de temáticas cristãs. Novo Testamento (que Erasmo gostaria de
Sua obra mais conhecida é o Elogio da loucura, ter visto nas mãos de todos), além da edi
onde a loucura é considerada ção dos antigos Padres: Cipriano, Arnóbio,
(em vários níveis e com várias acepções)
uma dimensão essencial do viver humano.
Ireneu, Ambrósio, Agostinho e outros (nes
F.ste c o conhecido retrato de Erasmo, se sentido, Erasmo pode ser considerado o
pintado por llans Holbein em 1523, iniciador da patrologia). A reconstrução
que se encontra no Museu de Basiléia. filológica do texto e sua correta edição têm
69
Capitulo quinto - çA Renascença e a Religião
portanto significado bem preciso em Eras mas da qual, às vezes, é dado aos piedosos
mo, um sentido que vai além da mera ope perceberem, já aqui nesta terra, o sabor e o
ração técnica e erudita. perfume, pelo menos por breve momento.
A rigidez com que Erasmo criticou pa
pas, prelados, eclesiásticos e monges do seu
3 O c o n c e it o e r a s m i a n o tempo e certos costumes dominantes na Igre
de "\ouc.ur-a" ja, bem como certas afirmações doutriná
rias que fez, valeram-lhe a aversão dos ca
tólicos, que, mais tarde, puseram no Index
É no Elogio da loucura que encontra algumas de suas obras e recomendaram cau
mos o espírito filosófico erasmiano em sua tela crítica em relação a outras.
manifestação mais peculiar. Trata-se de uma Lutero, porém, enfureceu-se com a po
obra que se tornou muito famosa e entre as lêmica sobre o livre-arbítrio, definindo Eras
poucas obras suas que ainda hoje se lêem mo, com insólita violência, como ridículo,
de bom grado. tolo, sacrílego, tagarela, sofista e ignorante,
O que é essa “ loucura” ? qualificando sua doutrina como um misto de
Não é fácil individuá-la e defini-la, da “cola e lama” , de “lixo e excrementos” . Mas
do que Erasmo a apresenta em extensa ga Lutero, como logo veremos, não admitia opo-
ma, que vai do extremo (negativo) em que se sições. Com efeito, para alcançar objetivos
manifesta a pior parte do homem, ao extre em parte idênticos, esses dois homens trilha
mo oposto, que consiste na fé em Cristo, que vam caminhos de direções opostas. jT]
é a loucura da cruz (como o próprio são Paulo
a define). E, entre os dois extremos, Erasmo
apresenta toda uma gama de graus de “ lou •TVLT1C1AS U V 1 ' _
cura” , num jogo muito hábil, por vezes usan • f tidfc»tfhfcn quedi f i t « *L*qnguA5
do a ironia socrática, outras vezes gostosos auc odoréaiique ftnb& Jd t& tf
hcftadfcefic ÜMM irar/diaucijjcf» foogc fu£« uruxr*
q u U iít& i
com a evidente intenção de condenação; ou trjc d d irti fin : cx tr fonü dondcfuhiftdf co fio iti fc<c.ç
tras vezes, como no caso da fé, com a inten txn w .N ú : «Lt t o ju k tachryrrjf. núc r.Jm t.
itâc{ufpirft.tr,fiinuur?c(nur*;ra (r fur.t - ub< j J í"c
ção evidente de exaltar seu valor transcen Cc rcdírttaí^vgit fc fatc.ubi b;arru.u::ú m jv in
dental; outras, ainda, simplesmente para rxd
dixcròc^d ír*csvn:,nú rrxnvncTÚí rufi p nrl-ulim . x
mostrar a ilusão humana, aliás, apresentan 4bauM£wtúh<xrr.uRf.frí(L:cT:nioiku.T?.4 Ci i'i drfifc
piorái omn.ú »íu*.n: {$ !u \
do-a como elemento indispensável do viver. «aTamxgmui rp tv jo fcfjnwr. A r^ r i' íu ^ tx W .-M
A “ loucura” é como uma vassoura má (nn
Jc^uí\a!:uD it:li.\ crú rj*o i-idudá ob'.u
««‘Í.Quiqp J pctuU::u.aat!rxjuj j --
gica, que varre tudo o que se antepõe à com <ius a m t d & ú uidrbtí'Aogutic & Shilüjcu. & maurrcm dl
preensão das verdades mais profundas e se in Kkcrcinait» iILui Grxcarud .p.xròq, ^
jia X v rv V rv • Nsfi jxsxitK íX ,
veras da vida ou que nos faz ver que às vezes, ê é mukcTrt ruhil Jctioctr. Video u c rtc p u o fiú rx p ^ lv t'
fed (&mtu dfíiptCiV fi <jd£ «bkranuni mç <$J dixmnj <rii/
sob as vestes de um rei, nada mais há do que du awmtatfic.Cu lâaiá untxxm furagiac cffudm n . V
um pobre mendigo ou o contrário, e que às
« d *Q iu rt iuktcj^audrte.uíaxbibtfr^vtíxvt ickbm v
vezes, sob a máscara do poderoso, nada mais
há do que um vil. A “ loucura” erasmiana
arranca os véus, fazendo-nos ver a comédia
da vida e a verdadeira face daqueles que se
escondem sob máscaras; mas, ao mesmo tem
po, mostra o sentido do palco, das máscaras
e dos atores, procurando de certa forma fa O espírito filosófico erasmiano
zer com que se aceitem todas as coisas como explica-se no F.logio da loucura:
a “loucura" é reveladora de “verdades", »
elas são. Assim, a “ loucura” erasmiana é elimina tudo aquilo que se interpõe à compreensão
reveladora de “verdade” . das verdades mais profundas e severas da vida,
O ponto culminante da “loucura” eras faz compreender o sentido das coisas;
miana, como dizíamos, está na fé. c o cume da “loucura" erasmiana está na fé.
E o cume dos cumes da “ loucura” é a Página final do Klogio da loucura
felicidade celeste, que é própria da outra vida, com um desenho de Holhein o Jovem.
70
Primeira parte - O H u m a n is m o e a R e n a s c e n ç a
co. Entretanto, Lutero merece um lugar tam zão. Para ele, a filosofia era vã sofistica
bém em termos de história do pensamento ção e, pior ainda, fruto daquela absurda e
filosófico, seja porque verbalizou a instân abominável soberba própria do homem
cia de renovação que os filósofos da época que quer basear-se em suas próprias for
fizeram valer, seja por algumas valências teó ças e não na única coisa que salva, isto é,
ricas (sobretudo de caráter antropológico e a fé.
teológico) intrínsecas ao seu pensamento Nessa óptica, Aristóteles parece-lhe co
religioso, seja ainda pelas conseqüências que mo que a expressão de certa forma paradig
o novo tipo de religiosidade por ele suscita mática dessa soberba humana. O único filó
do exerceu sobre os pensadores da época sofo que não é inteiramente envolvido nessa
moderna (por exemplo, sobre Hegel e Kier- condenação parece ser Ockham; mas, pre
kegaard) e da época contemporânea (por cisamente ao separar e contrapor fé e reli
exemplo, certas correntes do existencialismo gião, fora Ockham que, sob certos aspec
e da nova teologia). tos, abrira um dos caminhos que levariam à
A posição de Lutero em relação aos posição de Lutero.
filósofos é totalmente negativa: a descon
fiança nas possibilidades de a natureza hu
mana salvar-se por si só, sem a graça divi
na (como logo veremos), levaria Lutero a 2 ; A s e e la ç õ e s d e L u t e e o
não dar qualquer valor a uma investigação
racional autônoma, a qualquer tentativa c o m o p e u s a m e n fo
de examinar os problemas de fundo do e e n a s c e rv fis ta
homem com base no logos, na pura ra
»& se r r ã s * * .- * . j » m m m 3 O s pcm+os b á s ic o s
d a t e o lo g ia d e -Luteeo
t n o h o m e m se j u s t i f i c a
a p e n a s p e la fé e se m a s o b e a s
tade, completamente gratuito. Depois do pe precisas indicam que deviam circular pelo
cado de Adão, o homem decaiu a tal ponto menos cem mil exemplares do Novo Testa
que, por si só, não pode fazer absolutamen mento e cerca de vinte mil exemplares dos
te nada. Considerado em si mesmo, tudo Salmos. Entretanto, a demanda era muito
aquilo que deriva do homem é “concupis- superior à oferta. E a grande edição da Bí
cência” , termo que, em Lutero, designa tudo blia feita por Lutero respondia precisamen
aquilo que é ligado ao egoísmo, ao amor de te a essa necessidade: daí seu triunfal suces
si próprio. Sendo assim, a salvação do ho so. Portanto, não foi Lutero que (como se
mem não pode deixar de depender do amor dizia no passado) solicitou aos cristãos que
divino, que é dom absolutamente gratuito. lessem a Bíblia, mas foi ele quem, mais do
A fé consiste em compreender isso e entre que todos, soube satisfazer essa premente
gar-se totalmente ao amor de Deus. É preci necessidade de leitura direta dos textos sa
samente como ato de total confiança em grados, que já havia amadurecido em sua
Deus que a fé nos transforma e regenera. época.
A fé “justifica sem obra alguma” . Ain Uma diferença, contudo, merece ser
da que, dada a fé, Lutero admita que daí ressaltada. Os estudiosos observaram que,
decorrem boas obras, nega que elas possam na Bíblia, os humanistas procuravam algo
ter aquele sentido e aquele valor que tradi diferente do que Lutero buscava: com efei
cionalmente lhes eram atribuídos. to, os primeiros queriam encontrar nela um
Deve-se recordar que essa doutrina pres código de comportamento ético, as normas
supõe como fundo toda a questão das “ in da vida moral, ao passo que Lutero pro-
dulgências” (e as polêmicas relativas), liga
da justamente à teologia das “obras” (sobre
Tgr
a qual, aqui, só estamos acenando), mas que
vai muito além dessas polêmicas, atingindo
os próprios fundamentos da doutrina cris
tã. Lutero não apenas corrigiu os abusos li
gados à pregação das indulgências, mas tam
bém cortou pela raiz a base doutrinária, com
gravíssimas conseqüências, das quais fala
remos adiante. [ 2 ]
cura nela a justificação da fé, diante da qual induziu os príncipes a controlarem a vida
(como ele a entende), o código moral, religiosa, chegando até a exortá-los a amea
considerado em si, perde qualquer signifi çar e punir todos aqueles que desleixavam
cado. as práticas religiosas. Desse modo, o desti
no espiritual do indivíduo tornava-se patri
mônio da autoridade política, nascendo as
EE1 o lrv^e eKam e d a ^tdscrífu^a” sim o princípio cuius regio, eius religio (“ a
religião deve depender do Estado” ).
O terceiro ponto básico do luteranismo
pode ser muito bem explicado, além de pela
lógica interna da nova doutrina (não há ne
cessidade de um intermediário especial en 4 tS o rv o ta ç õ e s p e s s im is t a s
tre o homem e Deus, entre o homem e a e m e a c ic m a lis ta s
Palavra de Deus), também pela situação his
d o p e n s a m e n t o d e J_uteeo
tórica que se viera criando no fim da Idade
Média e durante o Renascimento: o clero se
mundanizara, perdera credibilidade, não se
vendo mais uma distinção efetiva entre pa Os componentes pessimistas e irracio-
dres e leigos. nalistas do pensamento de Lutero estão evi
As revoltas de Wyclif e Huss, no cre dentes em todas as suas obras, mas de modo
púsculo da Idade Média, são particularmen especial no Servo-arbítrio, escrito contra
te significativas. Erasmo. Nesse escrito, aquela “dignidade do
Não era preciso muito, portanto, para homem” , tão cara aos humanistas italianos
extrair daí as conclusões extremas, como fez e da qual Erasmo havia sido defensor, em
justamente Lutero, isto é, a idéia de que um ampla medida subverte-se inteiramente,
cristão isolado pode ter razão contra um apresentando-se com sinal oposto.
concilio, se estiver iluminado e inspirado O homem só pode se salvar se com
diretamente por Deus, não sendo portanto preender que não pode em absoluto ser o
necessária uma casta sacerdotal, visto que artífice de seu próprio destino: com efeito,
cada cristão é sacerdote em relação à comu sua salvação não depende dele, mas de Deus;
nidade em que vive. Todo homem pode pre enquanto estiver tolamente convencido de
gar a palavra de Deus. Assim, elimina-se a que pode agir por si próprio, estará se ilu
distinção entre “clero” e “ leigos” , embora dindo, nada mais fazendo do que pecar. O
não seja eliminado o ministério pastoral en homem precisa aprender a “ desesperan
quanto tal, indispensável em uma socieda çar-se de si mesmo” a fim de abrir cami
de organizada. nho para a salvação, já que, desesperan
Todavia, nesse aspecto, as coisas logo çando-se de si mesmo, entrega-se a Deus e
assumiram uma conotação francamente ne tudo espera da vontade dé Deus — e, des
gativa. A liberdade de interpretação abriu se modo, aproxima-se da graça e da sal
caminho a uma série de perspectivas não vação.
desejadas por Lutero, que, pouco a pouco, Considerado em si mesmo, ou seja, sem
foi se tornando dogmático e intransigente, o Espírito de Deus, o gênero humano é “ o
pretendendo, em certo sentido, estar dota reino do diabo” , é “ um caos confuso de
do daquela “ infalibilidade” que contestara trevas” .
ao papa (não por acaso foi chamado de “ o O arbítrio humano é sempre e somen
papa de Wittenberg” ). E pior ainda aconte te “ escravo” : de Deus ou do Demônio. Lu
ceu quando, tendo perdido toda confiança tero compara a vontade humana a um ca
no povo cristão organizado em bases reli valo que se encontra entre dois cavaleiros:
giosas, em virtude dos infinitos abusos, Lu Deus e o Demônio; tendo Deus sobre o dor
tero entregou aos príncipes a Igreja por ele so, quer andar e vai aonde Deus quiser; ten
reformada: nasceu assim a “ Igreja de Esta do no dorso o Demônio, anda e vai aonde
do” , que é a antítese daquela Igreja à qual a quer o Demônio. Ela não possui sequer a
Reforma deveria ter levado. faculdade de escolher entre os dois cava
Portanto, aconteceu que, depois de ter leiros, são eles que disputam entre si o di
afirmado solenemente a liberdade da fé, reito de cavalgá-la. E a quem acha “ injus
Lutero depois se contradisse de modo cla ta” essa sorte do homem, que desse modo
moroso nos fatos. Pouco a pouco, Lutero fica predestinado, Lutero responde com
75
Capitulo quinto - R e n a s c e n ç a e a IR e lig ião
uma doutrina extraída do voluntarismo reza, o homem outra coisa não pode fazer
ockhamista: Deus é Deus precisamente por senão pecar; e, quando pensa de acordo com
que não precisa prestar contas daquilo que seu intelecto, outra coisa não pode fazer se
quer e faz, estando bem acima daquilo que não errar. As virtudes e o pensamento dos
parece justo ou injusto para o direito hu antigos são vícios e erros.
mano. Nenhum esforço humano pode salvar
Desse modo, natureza e graça ficam o homem, mas somente a graça e a miseri
radicalmente separadas, assim como razão córdia de Deus. Essa é a única certeza que,
e fé. Quando age de acordo com sua natu segundo Lutero, nos dá a paz. (XI
Martinho Lutero diante da Dieta de Worms (1521) em que foi afastado do Império
por conta de Carlos V. Segundo Lutero, não é necessária uma casta sacerdotal,
pois cada cristão é sacerdote em relação à comunidade em que vive,
mas a liberdade de interpretação abriu caminho para uma série de perspectivas também políticas
não desejadas por Lutero.
76
Primeira parte - CD" H u m a n i s m o e a R enascença
= III. u i H ck Z w ín 0 lio , —
o rejo o r n a d o ^ de 2u^içue
Em Zurique
(aqui reproduzida em
uma incisão quinhentista),
desenvolveu sua obra
Zwínglio, convicto
defensor de algumas das
teses fundamentais de
Lutero. Um forte
patriotismo helvético o
levou a privilegiar
inconscientemente os
habitantes de tal cidade,
como se fossem os
eleitos.
77
Capitulo quintO - çA R e n a s c e n ç a e a TReligião
No que se refere ao pecado, Zwínglio logo Zwínglio deu sinais de autonomia, não
reafirma que ele tem sua raiz no amor de si cessou nem mesmo com a sua morte, que
próprio (egoísmo). Tudo aquilo que o homem ele assim comentou: “Zwínglio teve o fim
faz enquanto homem é determinado por esse de um assassino (...); ameaçou com a espa
amor de si próprio, sendo, portanto, pecado. da e teve a sorte que merecia.” Lutero afir
A conversão é uma “iluminação da mente” . mara solenemente (com as palavras do Evan
Para Zwínglio, a predestinação se in gelho) que “ quem usar a espada, perecerá
sere em um contexto determinista, e é con pela espada” , pois a espada não deveria ser
siderada um dos aspectos da Providência. usada em defesa da religião. Mas depois se
Há um sinal seguro para reconhecer os elei contradisse gravemente: já em 1525 ele exor
tos, sinal que, precisamente, consiste em ter tara Filipe de Hessen a reprimir com san
fé. Enquanto eleitos, os fiéis são todos iguais. gue os camponeses revoltados sob a lideran
A comunidade dos fiéis se constitui também ça de Thomas Müntzer, que fora convertido
como comunidade política. Assim, a Refor por ele e nomeado pastor de uma localida
ma religiosa desembocava em uma concep de da Saxônia.
ção teocrática, sobre a qual pesavam ambi- A espiral da violência já se tornara
güidades de diversos tipos. irreprimível: o germe das guerras religiosas
Zwínglio morreu em 1531, combaten estava se difundindo fatalmente e se torna
do contra as tropas dos cantões católicos. ria uma das maiores calamidades da Euro
A ira de Lutero contra ele, que começou tão pa moderna.
I V . íS a lv m o
e. a de g e n e b ra
V. Ovámos f e ó l o g o s d a lR a | o n m a
e f i g u r a s l i g a d a s a o m o v im e n t o p n o te s fa m + e .
1 «Urvtéi^pre+es im p o r t a n t e s
tisbona, onde as partes em causa (luteranos,
calvinistas e católicos) não aceitaram as ba
d o m o v im e n to peotes+ cm te ses do acordo por ele proposto.
Uma forte coloração racionalista pode
ser encontrada em Miguel Servet (1511
Entre os discípulos de Lutero destaca- 1553), que, em sua obra Os erros da Trin
se com certa importância Filipe Melanchton dade (1531), pôs em discussão o dogma
(1497-1560), o qual, porém, atenuou pou trinitário e, conseqüentemente, a divindade
co a pouco certas asperezas do mestre e ten de Cristo, que, para ele, foi homem que se
tou uma espécie de mediação entre as posi aproximou extraordinariamente de Deus e
ções da teologia luterana e a posição católica que os homens devem procurar imitar. Foi
tradicional. A obra que lhe deu fama intitu condenado à morte por Calvino, que não
la-se Loci communes (que contém exposi tolerava qualquer forma de dissensão em
ções sintéticas dos fundamentos teológicos), questão de dogma.
publicada em 1521 e várias vezes reeditada, Também dignos de menção foram Lelio
com variantes sempre mais acentuadamen- Socino (1525-1562) e, sobretudo, seu sobri
te moderadas. nho Fausto Socino (1539-1604), que, asila
Melanchton procurou corrigir Lutero do na Polônia, fundou uma seita religiosa
em três pontos básicos: denominada “ irmãos poloneses” . Para
1) sustentou a tese de que a fé tem papel Socino, ao contrário do que sustentavam os
essencial na salvação, mas que, com sua obra, outros reformadores, o homem pode “mere
o homem “colabora” com ela, funcionando cer” a graça, porque é livre. A Escritura é a
assim quase como concausa da salvação; única fonte através da qual conhecemos a
2) esforçou-se por revalorizar a tradi Deus, mas a inteligência do homem deve se
ção, a fim de acabar com os dissídios teoló exercer precisamente na obra de interpreta
gicos que a doutrina do livre-exame desen ção dos textos sagrados. E cada um é inteira
cadeara; mente livre nessa interpretação. Socino ten
3) pareceu dar certo espaço à liberda de a uma interpretação em bases clarsrmente
de, embora exíguo, como também censurou éticas e racionalistas dos dogmas, em eviden
seu mestre pelo caráter despótico, rigidez e te antítese com o irracionalismo de fundo
belicosidade. dos luteranos e dos calvinistas.
Seus hábeis desígnios de reconciliação O aspecto místico próprio do pensa
dos cristãos dissiparam-se em 1541, em Ra- mento da Reforma protestante, porém, é
80
Primeira parte - O -Humcmismo e a R enascença
levado às últimas conseqüências por Sebas As idéias de Bõhme não podem ser resumi
tião Franck (1499-1542/3), cujos Parado das, pois são expressão de uma experiência
xos tornaram-se célebres (1534/35), por mística intensamente vivida e sofrida. Tra
Valentim Weigel (1533-1588), cujas obras ta-se de verdadeiras “ alucinações metafí
só circularam depois de sua morte, e por sicas” , como já disse alguém.
Jakob Bõhme (1575-1624), do qual se tor As obras de Bõhme foram muitíssimo
naram famosos sobretudo estes dois escri criticadas, mas, talvez devido à sua opção
tos: A aurora nascente (1612) e Os três prin de vida simples (viveu exercendo a humil
cípios da natureza divina (1619). de profissão de artesão), Bõhme não foi
Este último pensador, sobretudo, iria perseguido, mas substancialmente tole
influenciar pensadores da época romântica. rado.
V I. (H o n fp c \-P e .fo P n \c \
e IR a f o ó m a c a t ó l i c a
so nem o mais faustoso, e ainda que sua pró diante de uma reviravolta que, na história
pria duração tenha de ser redimensionada da Igreja, tem o mesmo significado que as
drasticamente, considerando-se o número descobertas de Copérnico e Galileu têm para
dos anos de interrupção (de 1548 a 1551 e, a imagem do mundo elaborada pelas ciên
depois, de 1552 a 1561). Com efeito, a sua cias naturais.”
importância na história da Igreja e do cato No que se refere ao primeiro ponto que
licismo foi muito grande e a sua eficácia mencionamos, que aqui é o que interessa
bastante notável. mais, deve-se notar o que segue.
A importância desse concilio está no Os documentos do concilio usam de
fato de que ele termos e conceitos tomistas e escolásticos
a) tomou clara posição doutrinária com parcimônia e cautela e, como foi bem
acerca das teses dos protestantes e notado por diversos intérpretes atentos, o
b) promoveu a renovação da discipli metro com que se medem as coisas é o da fé
na da Igreja, tão invocada pelos cristãos da Igreja e não o de Escolas teológicas par
há muito tempo, dando precisas indicações ticulares.
sobre a formação e o comportamento do Responde-se sobretudo às questões de
clero. fundo suscitadas pelos protestantes, ou seja,
Deve-se destacar também que, no Con a justificação pela fé, a questão das obras, a
cilio de Trento, a Igreja readquire a plena predestinação e, com grande amplitude, a
consciência de ser Igreja de “cuidado com as questão dos sacramentos, que os protestan
almas” e de missão, propondo-se a si mes tes tendiam a reduzir somente ao batismo e
ma corno objetivo preciso o seguinte: “Sa- à eucaristia (em especial, reafirmam a dou
lus animarum suprema lex esto” (“ a lei su trina da transubstanciação eucarística, se
prema deverá ser a salvação das almas” ). gundo a qual a substância do pão e do vi
Esta é uma reviravolta histórica basilar, que nho se transforma em carne e sangue de
Jedin analisa do seguinte modo: “ Estamos Cristo; Lutero, ao invés, falava de consubs-
tanciação, o que implicava a permanência foi expoente ilustre Tomás de Vio (1468
do pão e do vinho, mesmo realizando-se a 1533), mais conhecido sob o nome de car
presença de Cristo, ao passo que Zwínglio deal Caietano.
e Calvino tendiam a uma interpretação sim Caietano, aliás, foi o primeiro que in
bólica da Eucaristia), bem como reafirmam troduziu como texto-base de teologia, ao
o valor da tradição. invés das tradicionais Sentenças de Pedro
Lombardo, a Summa Theologica de santo
Tomás, que, posteriormente, se tornaria o
ponto de referência tanto para os domini
3 O e e lc m ç a m e n to canos como para os jesuítas. Recorde-se
também que, ao longo do século XVII, os
d a (S sc o lá stic a comentários a Aristóteles foram substituí
dos pelos Cursus philosopbici, amplamente
inspirados no tomismo e destinados a ter
Lutero foi duro adversário não apenas ampla difusão e repercussão.
de Aristóteles, mas também do pensamento O florescimento mais notável dessa
tomista e escolástico em geral. As razões são “ segunda escolástica” ocorreu na Espanha,
bem evidentes: as tentativas de conciliação país no qual tanto os debates humanistas
entre a fé e a razão, entre a natureza e a como os religiosos chegaram de forma ate
gra-ça e entre o humano e o divino estavam nuada e que, portanto, apresentava condi
em antítese com seu pensamento de fundo, ções particularmente favoráveis para isso. O
que pressupunha a existência de uma sepa maior expoente da “ segunda escolástica” foi
ração categórica entre esses pólos. Mas Francisco Suarez (1548-1617), denominado
também é evidente que as decisões do Con doctor eximius, do qual ficaram famosas so
cilio de Trento deveriam estimular uma re bretudo as seguintes obras: Disputationes
tomada do pensamento escolástico, do qual, metapbysicae (1597) e De legibus (1612).
aliás, houvera uma revivescência ao longo A ontologia de Suarez não deixou de in
do século XV e no início do século XVI (is fluenciar o pensamento moderno, especial
to é, já antes do próprio concilio), e do qual mente o de Wolff.
84
Primeira parte - O -Humcmismo e a "Renascença
roncar-lhes o máscoro, poro mostrá-los aos ex- char um olho alguma vez, junto com toda a imen
pectadores com seus rostos verdadeiros e na sa multidão dos homens, ou então cometer dis
turais, não arruinaria toda a representação? Não parates, humanamente. Isso, porém, dirão, se
merecería ser expulso do teatro a vassouradas, ria agir como pessoa sem bom senso. Não o
como um doido? Sem dúvida, por obra sua to negaria, contanto que de outro lado não se con
das as coisas tomariam novo aspecto, e quem ceda que tal é a vida, a comédia da vida, que
antes era mulher, agora seria homem, quem há recitamos.
pouco era jovem, logo depois, velho, quem era (Erasmo,
rei pouco antes, se revelaria improvisamente € lo g io d a loucura, cap. XXIX.
um tratante, quem antes era deus, aparecerio
de repente um pobre homem. Mas [...] é lícito 2. Os filósofos e a "loucura”
destruir este engano? Não se desmontaria todo
o drama? Pois é justamente esta ilusão, este Sobre suas pegadas avançam os filóso
truque que mantém presos os expectadores. fos, que incutem reverência com o manto e com
[...] F a vida humana, que mais é senão umo a barba. Proclamam ser apenas eles os depo
comédia? Nesta os atores saem em público, es sitários da sabedoria, enquanto todos os ou
condendo-se um sob uma máscara, outro sob tros mortais seriam sombras que esvoaçam
outra, e cada um faz sua parte, até que o dire aqui e ali.
tor os faz sair de cena. Frequentemente, po Doce, no verdade, é o delírio que os pos
rém, oo mesmo homem dá ordem de represen sui! Fm sua mente erigem inumeráveis mundos,
tar-se sob outro revestimento, de modo que medindo quase a fio de prumo o sol, as estre
quem antes representara o rei vestido de púr- las, a lua, os planetas, explicam a origem dos
pura, agora representa o escravo esfarrapado. raios, dos ventos, dos eclipses e de todos os
Toda o vida não tem nenhuma consistência; mas, outros fenômenos inexplicáveis da natureza, e
por outro lado, esta comédia não pode ser re jamais hesitam, como se fossem os confiden
presentada de outro modo. tes secretos do supremo regulador do univer
Ora, se algum sabichão, caído do céu, se so, ou então nos viessem trazer as notícias das
pusesse de repente a gritar: "Oh, este senhor, reuniões dos deuses. Mas a natureza caçoa
que todos admiram como um deus, um podero deles e de suas elucubrações. Com efeito, eles
so, não é sequer um homem, pois se deixa gui não conhecem nada com certeza. Prova mais
ar pelas paixões como um animal; não é mais que suficiente disso é o fato de que, entre os
que um escravo da pior espécie, porque está filósofos, a respeito de toda questão nascem
submetido espontaneamente a tantos patrões polêmicas intermináveis. Fies não sabem nada,
vergonhosos!"; ou então, se a outro que cho mas afirmam saber tudo; não conhecem a si
rasse a morte do pai, ordenasse: "Ri enfim; teu mesmos, por vezes não conseguem perceber
pai justamente agora começa a viver; é esta os buracos ou as pedras que lhes aparecem à
vida que vivemos que é morte, nada mais que frente, ou porque a maioria deles é cega ou
morte"; ou a um terceiro, que se vangloria da porque sempre estão nas nuvens. Todavia, pro
própria origem, dirigisse o título de ignóbil bas clamam com orgulho ver bem as idéias, os uni
tardo, acrescentando-lhe que está bem longe versais, as formas separadas, as matérias-
de possuir a virtude, e que é esta a única fon primas, as qüididades, a hecceidade,4 todas
te da verdadeira nobreza; se, portanto, este coisas tão sutis, que nem Linceu,5 creio, nelas
sábio falasse do mesmo modo de todas as ou conseguiría penetrar com o olhar.
tras coisas, que mais fazer senão mostrar a Seu desprezo pelas pessoas comuns se
todos que é um insensato, um louco a ser amar manifesta sobretudo quando amontoam, um
rado? sobre o outro, triângulos, quadrados, circunfe
Rssim como não existe idiotice maior do rências e outras figuras geométricas e as con
que uma sabedoria inoportuna, também não há fundem até fazer delas um labirinto; além dis
maior imprudência do que uma prudência so, eles, dispondo as letras como sobre um
destrutiva. Faz muito mal quem não se adapta xadrez de operações militares e continuamente
aos tempos e às circunstâncias, quem não olha renovando sua ordem uma vez depois da ou
o avesso do pano, quem, esquecido das re tra, jogam areia nos olhos dos crédulos.
gras dos gregos à mesa - ou bebe, ou retira-te F não faltam em sua fileira indivíduos que
pretendesse que a comédia não seja mais até são capazes, interrogando os ostros, de
comédia, fío contrário, é próprio do homem ver
dadeiramente prudente, pelo fato de sermos
mortais, não aspirar a uma sabedoria superior 4São termos característicos da filosofia escolástica.
ao próprio destino, F preciso resignar-se ou fe ^Personagem mitológico, famoso pela agudez do olhar.
86
Primeira parte - O H u m a n is m o e a R e n a s c e n ç a
predizer o futuro e, prometendo milagres ainda rio ter-se substituído a uma mulher, ao diabo, a
maiores do que os da magia, encontram, feli um asno, a uma abóbora, a uma pedra? C de
zes deles!, quem acredita. que modo uma abóbora teria podido falar, fa
€rasmo, zer milagres e ser posta na cruz? Qual consa
6/og/o d a loucura, cap. UI. gração teria operado São Pedro, se tivesse
celebrado a função no momento em que Cristo
estava pregado na cruz? Poder-se-ia afirmar que
3. O s teólogos e o "loucura"
naquele mesmo instante subsistisse em Cristo
Dos teólogos, ao contrário, seria melhor o estado humano? Depois da ressurreição será
não falar, para evitar remover um brejo lodoso permitido comer e beber? Pois desde agora já
como o de Comorino ou de tocar uma erva mal se preocupam com a fome e a sede futuras.
cheirosa. Pois esta é uma raça de homens ex Depois, dispõem de uma infinidade de
traordinariamente carrancuda e irritável, e eu sutilezas, muito mais sutis que as preceden
temo que atirem sobre mim às centenas as fi tes, sobre noções, relações, formalidade, qüi-
leiras de suas conclusões e não me constran didade, heceidade; coisas todas que ninguém
jam a recitar o meo culpo, ou que, na falta disso, conseguiría captar com o olhar, a menos que
não me proclamem simplesmente de infetado fosse um Linceu e divisasse até nas trevas mais
por heresia. Com efeito, este é o raio de que densas aquilo que de fato não existe.
se valem habitualmente para inspirar terror em Acrescentai agora a estas certas máximos
quem lhes é antipático. tão paradoxais que aqueles famosos oráculos
é fato que não existem outros homens dos Cstóicos, chamados de paradoxos, diante
que menos prazerosamente reconheçam os destas parecem vulgaridades boas para pia
benefícios de mim recebidos, mas eles tam da: por exemplo, que é falta mais leve matar
bém têm para comigo muitos motivos de re mil homens do que coser uma só vez as sandá
conhecimento. lias de um pobre em um dia de domingo, ou
O amor próprio os torna felizes a ponto então que se deve deixar perecer o mundo in
de lhes parecer habitar o sétimo céu: do alto teiro com tudo o que nele existe, em vez de
olham embaixo todos os outros mortais, como pronunciar uma só mentirinha, por mais leve que
se fossem animais que rastejam no chão, e seja. [...]
quase chegam a deles ter compaixão. A seu Além disso, são infinitos os caminhos pe
redor têm um conjunto infinito de definições ma los quais os Cscolásticos tornam ainda mais sutis
gistrais, de conclusões, de corolários, de pro aquelas infinitesimais sutilezas: em suma, seria
posições explícitas e implícitas, têm à disposi mais fácil escapar de um labirinto do que dos
ção tal exuberância de subterfúgios, que nem emaranhados dos Realistas, Nominalistas,
a rede de Vulcano6 com suas malhas poderio Tomistas, Albertistas, Ockamistas, Cscotistas, e
impedir de safar-se por entre seus "distingo". não acenei a todas as escolas, mas apenas às
Com estes eles cortam todo nó com tal facilida principais.
de que nem a machadinha de dois gumes de Cm todas estas escolas erudição e abstru-
Tenedo7 poderio fazer melhor, e infinito é o fer sidade estão na ordem do dia e eu penso que
vilhar dos termos que inventam na hora, e dos os próprios apóstolos teriam necessidade do
estranhos vocábulos que usam. socorro de outro Cspírito Santo, coso fossem
Além disso, deleitam-se em explicar com forçados a cruzar armas com esta nova estirpe
prazer os misteriosos arcanos da religião, ou de teólogos.
seja, o modo da criação e a ordenação do uni Crasmo,
verso, os canais por meio dos quais a mancha E lo g io d a loucura, cap. Ull.
do pecado original se espalhou sobre os des
cendentes, o modo, a medida e o átimo em 4. A felicidade celeste
que Cristo se formou no seio da Virgem, e a é uma forma de "loucura"
razão do fato de que na Cucaristia os acidentes
subsistem sem a substância corpórea. Tal coisa se tornará mais evidente se de
Cstes, porém, são argumentos abusivos. monstrar logo, conforme prometi, que o decan
Atualmente as questões consideradas dignas tado prêmio supremo não é mais que uma es
de teólogos grandes e iluminados, como os pécie de loucura. Considerai em primeiro lugar
chamam, são outras e quando nelas se em
batem, então são todo ouvidos. Cis algumas.
6Refer0 ncio à rede construído pelo deus poro enredar
Há um instante preciso na geração divina? Cxis- juntos o mulher Vênus e Morte.
tem em Cristo mais filiações? é possível a pro 7l\la ilho de Tenedo era lei e prático o decapitação de
posição "Deus pai odeia o Filho"? Deus pode quem apresentava falso acusação.
87
Capítulo quinto - A R e n a s c e n ç a e a R e i \Cf\CXO
que Plotõo sonhou algo d® semelhante, quan lhor, não se perde, mas se aperfeiçoa. Quem,
do escreveu8 que o furor dos amantes é o mais portanto, saboreia antecipadamente na terra a
doce de todos, Com efeito, quem ama arden alegria do céu (sorte concedida a bem poucos)
temente não vive mais em si mesmo mas na está sujeito a manifestações muito semelhan
quele que amo, e quanto mais se afasta de si tes à loucura: pronuncia palavras sem nexo não
mesmo, para transferir-se inteiro no outro, mais ao modo dos homens, mas emitindo palavras
goza. Ora, quando a alma se dedica a vagar inconscientemente; em seguida muda a ex
fora do corpo, sem mais se servir normalmente pressão do rosto sem interrupção, ora vivaz, ora
dos próprios órgãos, isso é furor, sem dúvida, abatido, ora a chorar, depois a rir, a suspirar,
e pode-se afirmá-lo com razão. De outro modo, em suma, está completamente fora de si. Quan
o que significaria aquilo que comumente se do depois volta a si mesmo, diz que não sabe
diz: "não está em si mesmo", "cai em ti mesmo" onde tenha estado, se no corpo ou fora do cor
ou então "voltou a si"? C quanto mais o amor é po, se desperto ou a dormir, nem se lembra do
perfeito, tanto maior e mais delicioso é este que sentiu ou viu ou disse ou fez, a não ser
furor. como em uma névoa e em sonho: sabe apenas
Qual será então aquela vida celeste, à ter estado no ápice da bem-aventurança, du
qual anelam com tanto ardor os espíritos reli rante todo o tempo em que se encontrava fora
giosos? Cvidentemente o espírito absorverá o dos sentidos. € lamenta-se por ter voltado a si
corpo, como vitorioso e mais forte. C assim o mesmo e não desejaria outra coisa senão es
fará tanto mais facilmente pois já antes, duran tar continuamente louco com tal tipo de loucu
te o vida, o purificou e enfraqueceu por tal trans ra. € não se trata mais do que uma leve pre-
formação; em seguida, de modo admirável, gustação da bem-aventurança futura!
esse espírito será absorvido pela mente su
prema, que é sob infinitos aspectos mais po
derosa; desse modo o homem estará todo fora
de si e será feliz apenas pelo fato que, posto
fora de si mesmo, experimentará algo de ine
fável daquele sumo bem que tudo atrai e rapta
para si.
é fato que tal felicidade nos tocará de mo
do perfeito apenas quando as almas, reentran-
do em posse dos corpos de antes, receberem
o dom da imortalidade. Mas também, desde
que a vida dos homens religiosos não é mais
que meditação daquela celeste e como que uma
sombra dela, por consequência alguma vez eles
provam desde agora, aqui na terra, um gosto e
como que um perfume daquele prêmio. Trata-
se de uma gotinha minúscula em comparação
com aquela fonte de bem-aventuranço eterno;
todavia, é infinitamente superior a todos os pra
zeres do corpo, mesmo que fossem colocados
juntos todos os gozos de todos os mortais, pois
em muito as coisas espirituais ultrapassam as
corpóreas, as invisíveis as visíveis.
é isto, se vê, quando o Profeta9 promete:
"O olho não viu, o ouvido não ouviu nem che
gou ao coração do homem o que Deus prepa
rou para quem o ama". €sta é aquela parte de
loucura que, com a passagem paro vida me
Erasmo de Rotterdam
8Cf. Plotõo, Pedro. 245b. em uma incisão que remonta a 1526,
hsaías 64,3. do célebre pintor Albrecht Dürer.
88
Primeira parte - (D " H u m c m is m o e a R enascença
daquele que a elas se atém com reta fé, une- 1. Apenas o Espírito de Deus opera tudo,
se a Deus tão totalmente, que todas as virtu o homem não opera nada
des da palavra se tornam também próprias da Nós, com efeito, afirmamos e sustenta
alma, e assim, mediante a fé, a alma pela pa mos que Deus, quando opera fora da graça
lavra de Deus torna-se santo, justa, veraz, pa do €spírito, opera tudo em todos, também nos
cífica, livre e rica de todo bem, verdadeira filha ímpios. 0 e, como criou sozinho todas as coi
de Deus como diz São João em 1,12: "€le con sas, também sozinho as move, as impele e ar
cedeu poder tornar-se filhos de Deus a todos rasta no movimento de sua onipotência, que
aqueles que crêem em seu nome". elas não podem evitar nem mudar, mas que
Tudo isso permite compreender facilmente necessariamente continuam, obedecendo, cada
por que a fé tem um poder tão grande e nenhu uma segundo a própria natureza que lhe foi
ma boa obra pode igualá-la. Nenhuma boa obra dado por Deus: dessa forma, todas as criatu
com efeito é tão ligada à palavra de Deus como ras, também as ímpias, são colaboradoras de
o fé; nenhuma boa obra pode estar na alma, Deus. €, por outro lado, aqueles sobre os quais
mas na alma reinam somente a palavra e a fé. Deus age com êspírito de graça, aqueles que
Qual é a palavra, assim se torna também a alma ele justificou em seu Reino, são igualmente por
graças a ela: assim como o ferro se torna verme ele impelidos e movidos; e eles, como suas
lho como o fogo, depois da união com ele. Por novas criaturas, o seguem e com ele coope
tanto, nós verificamos que a fé basto para um ram, ou melhor, como diz Paulo, são por ele
cristão 0 que ele não tem necessidade de ne conduzidos.
nhuma obra para ser justo; e se não tem mais Não é, porém, disso que agora devemos
necessidade de nenhuma obro, então ele está falar. Não discutimos com efeito sobre aquilo
certamente desvinculado de todos os manda que podemos por efeito da ação de Deus, mas
mentos e de todas as leis; e se ele está d es daquilo que nós homens podemos, isto é, se
vinculado, é certamente livre. Csto é exatamente nós, criados do nada, podemos, também na
a liberdade cristã, a fé somente, o qual compor quele movimento geral da onipotência divina,
ta não que nós possamos permanecer ociosos fazer ou tentar alguma coisa para nos prepa
ou fazer o mal, mas que não tenhamos necessi rarmos para ser nova criatura do espírito.
dade de nenhuma obra para chegar à justifica A isso deveriamos responder, e não diva
ção e ò bem-aventurança. gar sobre outras coisas. C sobre o ponto em
M. lutero, questão assim respondemos: como o homem,
fí liberdade do cristão. antes de ser criado homem, nada faz ou tenta
para se tornar criatura, e, depois que foi feito
ou criado, nada faz ou tenta para permanecer
criatura, mas ambas as coisas ocorrem unica
Sobre o servo-arbítrio mente pela vontade da onipotente virtude e
bondade de Deus, que nos cria e conserva sem
do homem nenhuma participação nossa (por outro lado
Deus não opera em nós totalmente sem nós,
Cm O servo-arbítrio, escrito em polêmica enquanto nos criou e conservou justamente para
direta contra O livre-arbítrio de Crasmo de fíotter- o fim de operar em nós e de fozer-nos cooperar
dam, emergem de modo especial as compo com ele, tanto se isso acontece fora de seu rei
nentes pessimistas do pensamento de Lutero. no, pela sua onipotente ação universal, como
fíqui o reformador afirma, com efeito, dentro de seu reino pela virtude particular de
que o livre-arbítrio pode fozer algo apenas seu espírito); assim, dizemos que o homem, an
em relação às atividades naturais, como co tes de ser renovado em nova criatura do reino
mer, beber, gerar, governar, mas para o res do Gspírito, nada faz e nada tenta para se pre
to ele pode apenos pecar. Também foro da parar para tal renovação e para aquele reino,
graça de Deus, o homem permanece sem e também depois de seu renascimento nada
pre sob a onipotência de Deus, o qual faz, faz, nada tenta para permanecer naquele rei
move e destrói tudo nele em um curso ne no, mas uma e outra coisa em nós produzem-
cessário e infalível. Ora, a graça consiste se apenas pelo Espírito, que sem o nossa par
apenas no Cristo crucificado: portanto, se ticipação nos cria de novo e, depois de ter-nos
temos fé no Cristo que redimiu os homens assim recriados, nos conserva, como diz tam
com seu sangue, devemos também reconhe bém o apóstolo Tiago (1,18): €le de sua von
cer que em caso diverso o homem ter-se-ia tade nos gerou com o verbo de seu poder, para
completamente perdido. que fôssemos as primícias de suas criaturas. (6
aqui fala das criaturas renovadas).
90
Primeira parte - <D -Humanismo e a 'Renascença
ção é oferecida o uns enquanto outros delo sõo mos, é melhor diferir a solução de cada uma
excluídos, disso nascem grandes e graves ques delas na ordem em que se apresentar.
tões que não se podem resolver o nõo ser en Por ora desejo fazer compreender a to
sinando aos crentes o significado da eleição e dos que não devemos buscar as coisas que Deus
da predestinação de Deus. quis esconder, e não devemos descurar as que
Muitos consideram a questão bastante ele manifestou, por medo de que, de um lado,
tortuosa, pois não admitem que Deus predestine nos condene por demasiada curiosidade e, do
alguns à salvação e outros à morte. Mas a outro, por ingratidão, é ótima a afirmação de
tratação do problema demonstrará que sua falta santo Agostinho, que podemos seguir a Escri
de bom senso e de discernimento os põe em tura com segurança pois ela condescende com
situação inextricável. fllém disso, na obscurida nossa fraqueza, como faz a mãe com seu bebê
de que os espanta, veremos quanto tal ensi quando quer ensiná-lo a andar.*2
namento não só seja útil, mas também doce e Quanto àqueles que são tão tímidos ou
saboroso pelos frutos que dele derivam. circunspectos que quereriam abolir inteiramen
te a predestinação para não perturbar as al
mas débeis, sob qual veste, vos peço, masca-
2. Rs dificuldades que a doutrina
rarão seu orgulho, visto que indiretamente
da predestinação levanta
acusam Deus de estulta leviandade, como se
Reconheço que os maus e os blasfema- não tivesse previsto o perigo ao qual tais inso
dores logo encontram, no argumento da predes lentes pensam remediar com sabedoria?
tinação, do que acusar, sofismar, ladrar ou ca Portanto, quem torna odiosa a doutrina da
çoar. Contudo, se teméssemos sua arrogância, predestinação, denigra ou abertamente fala mal
deveriamos calar os pontos principais de nos de Deus, como se inadvertidamente tivesse
sa fé, e não um dos que está isento da conta deixado escapar aquilo que só pode prejudi
minação de suas blasfêmias. Um espírito rebel car a Igreja.
de perseverará em sua insolência ouvindo dizer
que em uma só essência de Deus há três pes 3. Com o predestinação Deus
soas, ou então que Deus previu, criando o ho estabelece aquilo
mem, aquilo que lhe devia acontecer. Da mes que quer fazer de cada homem
ma forma, esses maus não conterão seu riso,
quando se lhes disser que o mundo foi criado Quem quiser considerar-se homem temen
apenas há cinco mil anos, e perguntarão como te a Deus, não ousará negar a predestinação,
o poder de Deus permaneceu assim tão lon por meio da qual Deus atribuiu a uns a salva
gamente ocioso. ção e a outros a condenação eterna; muitos,
Deveriamos talvez, para evitar semelhan ao contrário, a envolvem em variadas cavilo
tes sacrilégios, deixar de falar da divindade ções, em particular aqueles que a querem fun
de Cristo e do Cspírito Santo? Deveriamos calar damentar sobre sua presciência.
a respeito da criação do mundo? Ro contrário, Digamos que ele prevê todas as coisas e
a verdade de Deus é tão poderosa, sobre es também as dispõe; mas dizer que Deus esco
tes e sobre outros pontos, que não teme a ma lhe ou rejeita enquanto prevê isto ou aquilo,
ledicência dos iníquos. Também santo Agosti significa confundir tudo. Quando atribuímos uma
nho o indica muito claramente no livrinho que presciência a Deus, queremos dizer que todas
intitulou: O dom da perseverança.] Com efeito, as coisas sempre foram e permanecem eterna
vemos que os falsos apóstolos, difamando e mente compreendidas em seu olhar, de modo
caçoando do ensinamento de são Paulo, não que em seu conhecimento nada é futuro ou
conseguiram obter que ele disso se envergo passado, mas toda coisa lhe é presente, e de
nhasse. tal forma presente que não a imagina como por
O fato de que alguns pensem que toda meio de alguma aparência, assim como as coi
esta discussão é perigosa também entre os sas que temos na memória como que escorrem
crentes, enquanto é contrária às exortações, diante de nossos olhos por meio da imagina
abala a fé, perturba os corações e os abate, é ção, mas as vê e olha em sua verdade,.como
uma afirmação frívolo. Santo Agostinho não es se estivessem diante de seu rosto. Afirmamos
conde que caçoavam dele por estes mesmos que tal presciência se estende sobre o mundo
motivos, enquanto pregava demasiado livre inteiro e sobre todas as criaturas.
mente a predestinação, mas ele refutou fácil e
suficientemente essas objeções. Quanto a nós,
uma vez que se objetam muitas e variadas 'Cf. Rgostmho, De donoperseverontiaeXV-XX.
absurdidades contra a doutrina que ensinare 2Cf. Rgostinho, De Genesi ad HtteromM. 3-6.
Primeira parte O
- -Humanismo e a Renascença
Definimos predestinação como o decreto ção: "Cie escolheu para nós a nossa herança, o
eterno de Deus, por meio do qual estabeleceu glória de Jacó, por ele amado".8
aquilo que queria fazer de cada homem. Com Com efeito, atribuem a este amor gratuito
efeito, não os crio todos no mesmo condição, toda o glória de que Deus os havia dotado,
mos ordena uns à vido eterno, outros à eterno não só porque sabiam bem que esta não fora
condenação, flssim, com bose no fim poro o providenciada a eles por algum mérito, mas que
qual o homem foi criado, dizemos que é pre nem o santo patriarca Jacó tivera em si tal po
destinado à vido ou à morte. der de modo a conquistar, para si e para seus
sucessores, tão alta prerrogativa. C, para des
4. Testemunhos depreendidos truir 0 abater com maior vigor todo orgulho, re
dos textos bíblicos corda frequentemente aos judeus que de fato
não mereceram a honra a eles feita por Deus,
Oro, Deus deu testemunho de suo predes visto que são um povo cabeça dura e rebelde.9
tinação não só em coda pessoa, mos em todo o Por vezes os profetas se referem à eleição tam
descendência de fibraõo, que pôs como exem bém para fazer com que os hebreus se enver
plo do foto de que cabe o ele ordenar conforme gonhem de seu opróbrio, porque é por sua in
seu agrado qual deve ser o condição de coda gratidão que miseravelmente dela decaíram.
povo. "Quando o Soberano dividia os noções", Cm todo caso, aqueles que querem ligar
diz Moisés, "e separava os filhos de fldão, es a eleição de Deus à dignidade dos homens ou
colheu como suo porção de herança o povo de aos méritos de suas obras, respondam a isto:
Israel”.3 A eleição é evidente: na pessoa de quando vêem que uma só estirpe é preferida a
Abraão, como em um tronco completamente seco todo o resto do mundo, e ouvem do boca de
e morto, um povo é escolhido e separado dos Deus que ele não foi movido por nenhum moti
outros, que são rejeitados. Não se revelo a cau vo a ser mais inclinado para um rebanho pe
sa disso, mas Moisés acaba com todo motivo queno e desprezado, depois mau e perverso,
de glória, indicando aos sucessores que todo do que para os outros, eles o acusorõo porque
a dignidade deles consiste no omor gratuito de lhe agradou estabelecer tal exemplo de sua
Deus. Com efeito, ele dá esta explicação de sua misericórdia? Com todos os murmúrios e oposi-
redenção: Deus ornou seus pais e escolheu sua ções deles, não impedirão com certeza sua
descendência, depois deles.4 obra; e jogando seu despeito contra o céu como
fa lo de modo mais explícito em outro pas pedras, não atingirão nem ferirão de modo al
sagem, dizendo: "Não é porque éreis mais nu gum sua justiça, mas tudo recairá sobre sua
merosos do que outros povos que Deus se cabeça.
comprouve em vós poro vos escolher, mas por J. Calvino,
que vos amou".5 Csta advertência ele a repete Instituição do religião cristã.
várias vezes: "Cis, o céu e a terra pertencem ao
Senhor, ao teu Deus; todavia, ele ornou teus
pais, se comprouve com eles e te escolheu por
que descendes d e le s"6 C em outro lugar orde 3Deut0 ronômio 23,8ss.
na-lhes monter-se puros em santidade, pois são ddem 4,31.
escolhidos como povo que lhe pertence de 5ldem 7,3.
bldem 10,14.
modo particular. Cm outra passagem ainda, in 7ldem 23,5.
dica que Deus os protege porque os ama.7 Tam 8Salmo 47,5.
bém os crentes o reconhecem com um só cora 9D0 uteronômio 9,6.
(S a p ítu lo s e x to
I. /\)ic o la u ]\Ac\c\iA\cwe\
2 O r e a lis m o d e
Os dotes do príncipe, que emergem
muito bem desse quadro, são chamados
por Maquiavel de “ virtudes” . Obviamen
N o que se refere ao realismo político, te, a “ virtude” política de Maquiavel nada
é básico o capítulo XV de O Príncipe (escri tem a ver com a “ virtude” em sentido cris
to em 1513, mas publicado somente em 1531, tão. Ele usa o termo retomado da antiga
cinco anos após a morte do autor), que dis acepção grega de areté, ou seja, a virtude
cute o princípio de que é necessário se ater como habilidade entendida naturalmen
à “verdade efetiva das coisas” , sem se per te. Aliás, trata-se da areté grega como era
der na busca de como as coisas “ deveriam” concebida antes da espiritualização que
ser; trata-se, em suma, da separação entre Sócrates, Platão e Aristóteles nela reali
“ ser” e “ dever ser” . Maquiavel, portanto, zaram, transformando-a em “ razão” . Em
chega às seguintes conclusões: “ [...] ele [o particular, ela recorda o conceito de are
príncipe] está longe tanto de como se vive e té cultivado especialmente por alguns so
de como se deveria viver, pois aquele que fistas.
deixa aquilo que se faz por aquilo que se Nos humanistas, esse conceito apa
deveria fazer, aprende antes a trabalhar em rece várias vezes, mas Maquiavel o leva
prol da própria ruína do que de sua conser às extremas conseqüências, entendendo a
vação, porque um homem, que queira em “ virtude” como força, vontade, habilida
todo lugar parecer bom, atrai ruína entre de, astúcia, capacidade de dominar a si
tantos que não são bons. Daí é necessário tuação.
que um príncipe, desejoso de conservar-se,
aprenda os meios de poder não ser bom e a
fazer ou não uso disso, conforme as neces
sidades” . 4 L i b e r d a d e e “s o r t e ”
Maquiavel chega até a dizer que o so
berano pode se encontrar em situação de ter
de aplicar métodos extremamente cruéis e
desumanos. Quando são necessários remé E essa virtude sabe se contrapor à “sor
dios extremos para males extremos, ele deve te” . Assim, com Maquiavel, retorna o tema
adotar tais remédios extremos e, de qual do contraste entre “liberdade” e “sorte” , tão
quer forma, evitar o meio-termo, que é o caro aos humanistas. Muitos consideram
caminho do compromisso, que de nada ser que o destino seja a razão dos acontecimen
ve; ao contrário, é sempre e somente de ex tos e que, portanto, é inútil se esforçar para
tremo dano. impor-lhe uma barreira, sendo melhor dei
Essas considerações estão ligadas a xar-se guiar por ele.
uma visão pessimista do homem. Segundo Maquiavel confessa ter sentido a ten
Maquiavel, em si mesmo, o homem não é tação de acomodar-se a essa opinião.
bom nem mau, mas, de fato, tende a ser mau. Sua solução, porém, é a seguinte: meta
Conseqüentemente, o político não deve con de das coisas humanas dependem da sorte, a
fiar no aspecto positivo do homem, e sim outra metade da virtude e da liberdade. Ele
constatar seu aspecto negativo e agir em con- escreve: “Não por acaso, mas para que o nos
seqüência disso. Assim, não hesitará em ser so livre-arbítrio não desapareça, julgo poder
95
Cãpítulo sexto - / \ R e n a s c e n ç a e a P o lític a
Nicolau Maquiavel
(1469-1527)
foi o iniáador
de nova fase
do pensamento
político inspirado
no realismo e dirigido
a fundar a autonomia
da esfera política.
Esta é uma pintura
de Santi di Tito,
que se encontra
no Palazzo Vecchio,
em Elorença.
96
Primeira parte - CD-H u m an ism o e. a R e n a s c e n ç a
II. G u i c c i a r d ini e B o t e c o
III. X o m ás ]\Aorus
• A obra que deu fama imortal ao inglês Tomás Morus (1478-1535) é Utopia,
título que indica uma dimensão do espírito humano que, por meio da representa
ção mais ou menos imaginária daquilo que não é, representa
A razão e as leis aquilo que deveria ser ou como o homem gostaria que a realida
de natureza de fosse.
na base Os princípios basilares que regem o relato são muito sim
de “Utopia"
de Tomás Morus ples: basta seguir a sã razão e as leis de natureza mais etómèhta*'
->§ 1-2 res, que estão em perfeita harmonia com a razão, para alugeh-
tar os males que afligem a sociedade.
A fonte em que Morus bebeu foi, na Os habitantes de Utopia são pacifistas,
turalmente, Platão, com amplas infiltrações seguem prazeres sadios, admitem cultos di
de doutrinas estóicas, tomistas e erasmianas. ferentes, honram a Deus de diferentes mo
Na contraluz está a Inglaterra, com sua his dos e sabem se compreender e se aceitar re
tória, suas tradições e seus dramas sociais ciprocamente nessas diversidades.
de então (a reestruturação do sistema agrí Por fim, os habitantes de Utopia elimi
cola, que privava de terra e trabalho grande nam, com a abolição do dinheiro e de seu
quantidade de camponeses; as lutas religio uso, todas as calamidades que a avidez do
sas e a intolerância; a insaciável sede de ri mesmo produz entre os homens. E em uma
quezas). das páginas conclusivas Morus põe em pri
meiro plano este belíssimo pensamento em
forma de paradoxo: seria tão mais fácil pro
curar-se o de que viver, caso não o impedis
2 Os peirvcíp io s se justamente a busca do dinheiro, que nas
m o r a is e s o c ia is intenções de quem o inventou teria devido
servir-nos precisamente para o fim de
e m q u e s e in s p ir a m agilizar a vida, quando na realidade ocorre
o s h a b it a n t e s d e LAtopia exatamente o contrário.
nados a terem função normativa que, com Qgihu íid tií fmt iu t âamm fpijhlxjc tuu/M
ntaf &m ont Hurt^dmnão rtrum
hábeis jogos de alusões, apresentavam os MUbéttmlndist.
males da época e indicavam os critérios com
os quais deveríam ser curados.
Além disso, em Utopia todos os cida
dãos são iguais entre si. Desaparecem as di
ferenças de renda, desaparecendo então as
diferenças de status social. E mais: os habi
tantes de Utopia se substituem de modo
equilibrado nos trabalhos da agricultura e
do artesanato, de modo que não renasçam,
em virtude da divisão do trabalho, também Bj/ilipudEpifcopiumF. « 5 * 1
as divisões sociais.
O trabalho não é massacrante e não
dura toda a jornada (como durava naquela Prontispício de Utopia em unia edição de / 06.J.
época), e sim seis horas diárias, para deixar Nesta obra Morus exprime a convicção
espaço ao lazer e a outras atividades. de que bastaria seguir a razão e as leis da natureza
para eliminar os males que afligem a sociedade.
Em Utopia também existem sacerdo Os habitantes de Utopia são pacifistas, ..
tes dedicados ao culto e um lugar especial é admitem cultos diferentes e,
garantido aos “ literatos” , ou seja, àqueles tendo abolido o dinheiro,
que, nascendo com dotes e inclinações es cancelaram a avidez que ele produz
peciais, pretendem dedicar-se ao estudo. entre os homens.
99
Cüpítulo S C X tO - ;A R e n a s c e n ç a e a P o lí tic a
I V . 3 ecm 3 od íkv
c a soberania absoluta do é^stad o
IV . H u g o Capo Yuas
e ck f u n d a ç ã o d o j u s u a f u e a l i s m o
Razão e natureza
• O holandês Hugo Grotius (1583-1645), com o escrito De
na b a se da jure belli ac pacis (1625), põe as sólidas bases do jusnaturalismo,
c o n v iv ê n c ia isto é, da teoria do direito natural. O direito natural, que regula
hum ana a convivência humana, funda-se sobre a razão e sobre a nature
e m G ro tiu s za, que coincidem entre si: o direito natural espelha portanto a
-^§1 racionalidade, que é o próprio critério com o qual Deus criou o
mundo.
C não me é desconhecido como muitos ti tem à suo frente, isto é, glórias e riquezas, pro
veram e têm o opinião de que os coisos do cederem de modo diverso: um com respeito,
mundo sejam de tal modo governados pelo outro com ímpeto; um pelo violência, outro com
sorte e por Deus, que os homens com suo pru arte; um com paciência, outro com o seu contrá
dência não os possam corrigir; ao contrário, não rio: e cada um com estes diversos modos o pode
têm nenhum remédio. C, por isso, poderiam ju l alcançar. Vê-se ainda duos (coisos) respecti
gar que não devessem suor1 muito nos coisos, vos: um alcançar seu desígnio, o outro não; e
mas deixar-se governar pelo sorte. Csta opi do mesmo formo duos (coisos) prosperarem
nião é mois crido em nossos tempos pelo gran com dois diversos estudos,8 um com respeito e
de variação dos coisos que foram vistos e se o outro com ímpeto: o que não provém de ou
vêem todo dia, foro de qualquer conjectura hu tra coisa o não ser do qualidade dos tempos
mano. Pensando nisso olguma vez, estou de que se conformam ou não com o procedimento
algum modo inclinado ò opinião deles. Ainda deles. Daqui nasce aquilo que eu disse, que
mois, poro que nosso livre-orbítrio não sejo duos (coisos), operando diversamente, produ
apagado, julgo poder ser verdadeiro que o zam o mesmo efeito; e outros duos, igualmen
sorte sejo árbitro do metade de nossos ações, te operando, uma se conduz o seu fim e o outro
mos que também elo nos deixe governar o ou não. Disto ainda depende o vorioção do bem:
tro metade, ou quase.*23Assemelho o sorte o porque, se um se governo com respeito e paciên
um desses rios perigosos que, quando se iram, cia, os tempos e os coisos giram de modo que
alagam os lugares plonos, arruinam os árvores seu governo sejo bom, e vai prosperando; mas,
e os edifícios, arrastam5 desta porte terreno, se os tempos e os coisos mudom, arruino, por
põem em outra: cada um foge de suo presen que o modo de proceder não mudo. Também
ça, coda um cede o seu ímpeto, sem poder de não se encontro homem tão prudente, que sai
nenhum modo resistir.4 Cmbora sejam assim, ba ocomodor-se o isso; com efeito, porque não
resto o possibilidade, porém, que os homens, se pode desviar daquilo o que o natureza o
nos tempos tronqüilos, possam tomar providên inclino, também porque, tendo alguém sempre
cias com defesos e diques, de modo que, nos prosperado caminhando por um caminho, não
enchentes, ou os rios correriom por um canal, se pode persuadi-lo o usar outro. Todavia, o
ou seu ímpeto não serio nem licencioso5 nem homem de respeito, quando é tempo de usar o
donoso. Do mesmo formo intervém o sorte: elo ímpeto, ele não o sobe fazer; daí arruína-se:
mostro suo potência onde não há virtude que com efeito, se se mudasse de natureza com os
lhe resisto, e portanto dirige seus ímpetos onde tempos e com os coisas, a sorte não muda
sobe que não estão feitos os diques e defesos ria. [...]
que o contenham. € se considerardes o Itálio, Concluo, portanto, que, variando a sorte,
que é o sede destas variações e o que lhes e permanecendo os homens em seus modos
deu o movimento, vereis que elo é um campo obstinados, são felizes enquanto concordam
sem diques e sem nenhuma defeso; que, se juntos, e, quando discordam, são infelizes. Jul
elo fosse defendido por conveniente virtude, go bem isso, que sejo melhor ser impetuoso do
como o Mogno,6 o Cspanha e o França, ou esto que respeitoso, porque a sorte é senhora; e é
cheio não teria feito os grandes variações que necessário, querendo montê-la submisso, batê-
fez, ou não teria vindo. C quero que isso baste la e feri-la. Vemos que elo se deixa vencer mais
sobre o que disse quonto o Opor-se à sorte em por estes do que por aqueles que procedem
universais. friamente. Todavia, como mulher, é sempre
Todavia, restringindo-me mois o particu amigo dos jovens, porque eles são menos de
lares, digo como se vê este príncipe hoje felici respeito, são mois ferozes, e o comandam com
tar7 e amanhã arruinar-se, sem tê-lo visto mu mois audácia.
dar natureza ou qualquer qualidade: o que creio N. Maquiavel,
que nasço, primeiro, dos causas sobre os quois O príncipe.
longomente falamos, isto é, que tal príncipe que
se apóia inteiramente no sorte arruína-se, as 'fitadigar-se.
sim como elo varia. Creio, ainda, que sejo feliz 2flproximadamente.
oquele que combino o modo de seu proceder 3levam.
com os qualidades dos tempos; e do mesmo 4Obstoculor.
5Desregulodo.
formo sejo infeliz oquele com cujo proceder os 6fllemanha.
tempos discordam. Porque se vê os homens, 7Prosperar.
nos coisos que os induzem ao fim, que cada um 8Com duos aplicações diversas.
(S a p ítu lo s é tim o
2 y \ o r d e m m e c c u a ic is ta
MJ, /j , v-j*f i-‘) -b
d a n a tu re z a v>W| f (â.Yfr# T)
"Wj ,fí *
M**ri 1n* **{
Leonardo não é homem da Renascença i f « ‘■ f —■ 'V
"(3n<f ; in ~r C,«o- »!’•'[
apenas por ser pensador “ universal” , isto é, « t í e '•!»/ df-Hp.
não especialista, mas também porque, por
exemplo, pode-se observar nele alguns tra tll* W»/1
nnf <4j*‘frl .í <T]v («•<)
ços de neoplatonismo, como quando ele de ••HM/nin -w-íf.W v*-?|«< v.»/''A-«y
lineia o paralelismo entre o homem e o uni '-'«O *•«/»<( "OI'"
verso: “O homem é considerado pelos antigos
como um mundo menor. É certo que o uso
Neste desenho estão presentes a descrição
desse nome está bem colocado, já que, como e o esquema da luneta.
o homem é composto de terra, água, ar e Para Leonardo é o pensamento matemático
fogo, esse corpo é semelhante à terra; assim que projeta c interpreta a ordem mecânica
como o homem tem em si os ossos, sustentá- e necessária de toda a natureza.
105
Capítulo sétimo - V é r t ic e s e r e s u l t a d o s c o n c lu s iv o s d o p e n s a m e n t o r e n a s c e n t is t a
II. B e m a ^ d i n o T e l é s io : —-—-
a in v e s tig a ç ã o d a n a t u r e z a
s e g u ia d o s e u s p r ó p r i o s p ^ in e íp io s
Foi então para Pádua, onde ainda eram Os primeiros dois livros do De rerum
bem vivos os debates sobre Aristóteles, e natura foram publicados em 1565, após
onde estudou filosofia e ciências naturais muitas incertezas e não sem antes ter con
(talvez, em especial, a medicina), forman sultado em Bréscia o maior expoente do
do-se em 1535. aristotelismo na época, Vincenzo Maggi. O
Depois de formado, irrequieto, Telésio resultado positivo do confronto com Maggi,
andou por várias cidades da Itália. Parece que por muitos aspectos devia ser conside
que, durante alguns anos, retirou-se, para rado como o adversário ideal, convenceu
meditar em solidão, em um mosteiro de Telésio da oportunidade da publicação. Mas
monges beneditinos (alguns pensam que esse a obra inteira, em nove livros, só viu a luz
mosteiro pode ter sido o de Seminara). em 1586, em virtude das dificuldades finan
Posteriormente, de 1544 a 1553, Telé ceiras do nosso filósofo.
sio foi hóspede dos Carafa, duques de No- As outras obras de Telésio são margi
cera. Nesse período, lançou os fundamentos nais, limitando-se à explicação de alguns fe
e delineou a estrutura do seu sistema, redi nômenos naturais (Sobre os terremotos, So
gindo um primeiro esboço da sua obra-pri bre os cometas, Sobre os vapores, Sobre o
ma De rerum natura iuxta própria principia. raio etc.).
A partir de 1553, Telésio se estabele Foi notável a fama alcançada pelo fi
ceu em Cosenza, onde permaneceu até 1563. lósofo, tendo início antes mesmo da publi
Passou depois por Roma e Nápoles, mas cação de suas obras. A Academia Cosen-
retornou várias vezes a Cosenza, onde mor tina, da qual ele foi membro, tornou-se o
reu em 1588. mais ativo centro de difusão do telesianis-
mo. Amigos poderosos e influentes prote
geram-no dos ataques dos aristotélicos, em
bora não tenham faltado os debates e as
polêmicas.
y \ n o v id a d e
d a fís ic a t e le s ia n a
sagradáveis no caso contrário. Assim, con tos que transcendem sua naturalidade, dos
clui Telésio, “todos os entes sentem a rela quais falaremos adiante.
ção recíproca” . Em suas várias formas, o conhecimen
Então, como é que só os animais pos to se explica mediante o “ espírito” , sendo,
suem órgãos sensoriais? Os animais são en precisamente, a percepção das sensações,
tes complexos e os órgãos sensoriais desem mudanças e movimentos que as coisas pro
penham o papel de vias de acesso das forças duzem sobre ele. Em outros termos: o quente
externas à substância que sente. Já as coisas e o frio produzidos pelas coisas, que agem
simples, precisamente porque são tais, sen sobre o organismo por contato, provocam
tem diretamente. ações de movimento, de dilatação e de res
A física de Telésio, portanto, é uma fí trição sobre o “ espírito” , e desse modo rea
sica baseada nas “ qualidades” elementares liza-se a percepção, que é consciência da
do quente e do frio. Mas, nesse quadro, co modificação.
mo já observamos, ele compreende que po A inteligência nasce da sensação, mais
dería ser de notável vantagem para sua con precisamente da semelhança que constata
cepção uma investigação ulterior voltada mos entre as coisas percebidas, das quais
para determinar a “ quantidade” de calor conservamos a lembrança, e a extensão por
necessária para produzir os vários fenôme analogia a outras coisas, que atualmente não
nos. E é precisamente essa investigação percebemos. Por exemplo, quando vemos
“ quantitativa” que ele afirma não ter podi um homem jovem, a inteligência nos diz que
do realizar, desejando deixá-la como tarefa ele envelhecerá. Esse “envelhecimento” não
para outros que viessem depois dele. é percebido por nós, já que ainda está por
vir, não podendo portanto produzir qual
quer sensação em nós; no entanto, nós po
demos “entendê-lo” justamente com o au
4 O h ame m xílio da experiência passada e da semelhança
c o m o r e a l i d a d e matrmal daquilo que já percebemos com aquilo que
percebemos agora, ou seja, por analogia.
Telésio declara expressamente que não
Considerado como realidade natural, despreza em absoluto a razão; ao contrá
o homem é explicável como todas as outras rio, diz que se deve depositar confiança nela
realidades naturais. “ quase como nos sentidos” . Mas o sentido
Os organismos animais eram explica é mais crível do que a razão, pelo motivo de
dos por Aristóteles em função da “ alma que aquilo que é apreendido pelos sentidos
sensitiva” . Telésio, naturalmente, não pode não tem mais necessidade de ser ulterior-
mais abrigar tal tese, mas tem necessidade mente investigado.
de introduzir algo capaz de diferenciar o Para Telésio, a própria matemática é
animal das coisas restantes. Por isso, recorre fundada no sentido, nas similitudes e nas
àquilo que ele chama de “ espírito produzi analogias, do modo já explicado.
do pela semente” (spiritus e semine eductus).
A terminologia (de origem estóica) se refe
re provavelmente à tradição médica antiga
(que Telésio conhecia muito bem). O “ es 5 *■ ; A rncmal la a tu m l
pírito” , substância corpórea muito tênue,
está incluído no corpo, como no seu pró
prio revestimento e no seu próprio órgão. A vida moral do homem, pelo menos
Conseqüentemente, o “ espírito” explica num primeiro nível, também pode ser
tudo aquilo que Aristóteles explicava com explicada com base nos princípios naturais.
a alma sensitiva (recorde-se a análoga con Para o homem, como para todo ser, o
cepção do “ espírito” de Ficino, no qual, bem é a sua própria autoconservação, as
porém, cumpria uma função totalmente di sim como o mal é o seu dano ou a sua des
ferente). truição. O prazer e a dor entram nesse jogo
Telésio logo percebeu que, além do de conservação e destruição. E prazeroso
“ espírito” , há no homem algo mais, “ uma aquilo que agrada ao “ espírito” , e agrada
espécie de alma divina e imortal” , que, po ao “ espírito” aquilo que o vivifica, consti
rém, não serve para explicar os aspectos tuindo portanto uma força favorável. E do
naturais do homem, mas somente os aspec loroso aquilo que abate e prostra o “ espíri-
110
Primeira parte - O -Humcmismo e a R enascença
to” , e abate o “ espírito” aquilo que lhe é de Telésio é o Deus bíblico, criador e regen
nocivo. Assim, o prazer é “ a sensação da te do mundo. E é precisamente de sua ativi
conservação” , ao passo que a dor é “ a sen dade criadora que depende aquela “ nature
sação da destruição” . za” estruturada do modo como vimos, bem
O prazer e a dor, portanto, têm um como o destino superior dos homens em
preciso objetivo funcional. Desse modo, o relação a todos os outros seres, como agora
prazer não pode ser o fim último que perse veremos.
guimos, mas sim o meio que nos facilita al A “ mens superaddita” , isto é, a alma
cançar esse fim, o qual, como já dissemos, é intelectiva, que é imortal, é infundida no
a autoconservação. Em geral, tudo aquilo homem por Deus. A alma está unida ao cor
que o homem deseja está em função dessa po e, especialmente, ao “ espírito” natural,
conservação. como forma dele.
Entendidas do ponto de vista natura Por meio do espírito o homem conhe
lista, as próprias virtudes são praticadas e ce e apetece as coisas que se referem à sua
exercidas em função desse mesmo objetivo, conservação natural; já com a mens super
ou seja, para que facilitem a conservação e addita, ele conhece as coisas divinas e tende
o aperfeiçoamento do “ espírito” . para elas, que não dizem respeito à sua saú
de natural, mas sim à eterna. Assim, exis
tem no homem dois apetites e dois intelectos.
Por isso, ele está em condições de entender
6 7A trcmscendemcia divina não somente o bem sensível, mas também o
e a alma bem eterno, bem como de querê-lo (e isto é
como ente supra-sensível o livre-arbítrio). Conseqúentemente, o ho
mem deve procurar não sucumbir com sua
“ mente” às forças do “ espírito” material,
Como já observamos, Telésio operou mas sim mantê-la pura e torná-la semelhan
a “redução naturalista” na sua pesquisa fí te ao seu criador. Em suma, essa “ mente”
sica e na reconstrução da realidade natural, concerne à atividade religiosa do homem e
mas ficou bem distante de dar a tal “redu assinala a sua especificidade em toda a or
ção” uma valência metafísica geral. Ele ad dem do real.
mite um Deus criador e acima da natureza; Os intérpretes viram freqúentemente,
o que ele nega, simplesmente, é que se deva nessas doutrinas de Telésio, algumas con
recorrer a ele na investigação física. cessões indébitas (talvez feitas pro bono pa-
Aliás, a esse propósito, é interessante cis, para evitar complicações), ou, de todo
notar o fato de que Telésio, que normalmen modo, teses em contraste com o seu “ natu
te censura Aristóteles por ser excessivamente ralismo” . Na realidade, porém, não é assim.
metafísico em física, objeta-lhe precisamen Quando muito, seria verdade precisamente
te o oposto no que se refere ao Motor Imó o oposto. A sua originalidade está exatamen
vel. E completamente inadequada uma con te na tentativa de estabelecer uma distinção
cepção de Deus reduzido à função motriz, clara de âmbitos de investigação, sem que a
ao modo aristotélico. Telésio chega a escre distinção implique exclusão. Embora com
ver que, a esse respeito, Aristóteles “parece todos os seus limites, também nesse sentido
digno não apenas de críticas, mas também Telésio apresenta analogias com Galileu,
de abominação” . A moção do céu podia que, precisamente, distinguirá de modo pa
muito bem ser atribuída à própria natureza radigmático ciência e religião, atribuindo à
do céu, sem chamar Deus em causa daquele primeira a função de mostrar como vai o
modo. Ademais, é inconcebível o fato de céu (com suas leis específicas), e à segunda
Aristóteles negar ao seu Deus a providência a tarefa de mostrar como se vai ao céu (cren
em relação aos homens. Em suma: o Deus do e agindo em conformidade com a fé).
111
C a p i t u l o S C tifH O - \AárHct?.s e resultado s conclusivos do pensamento renascentista
-------- III. (d à io rd a n o B r u n o :
u n i v e r s o iiafim +o c ^ k c ^ ó ic o j- u r o d 7
• Bruno é sem dúvida o filósofo renascentista mais complexo; com sua visão
vitalista e mágica, de fato não antecipa as descobertas científicas do século se
guinte, mas é possível encontrar em seu pensamento surpreen
dentes antecipações de Spinoza e dos Românticos, sobretudo do O caráter
jovem Schelling. mágico-
A marca que distingue seu pensamento é de caráter mági- hermético
co-hermético, e este não pode ser entendido como uma espécie da filosofia
de gnose renascentista, mensagem de salvação neoplato- de Bruno
nicamente marcada pelo tipo de religiosidade "egípcia" própria - * § 2-3
dos escritos herméticos: o "egipcianismo" aqui é uma experiên
cia teúrgica e extática que leva ao Uno dos Neoplatônicos, é a "boa religião"
destruída pelo Cristianismo, à qual é preciso voltar e da qual Bruno se sente o
profeta, investido precisamente da missão de fazê-la reviver.
Ele, portanto, não podia estar de acordo nem com os católicos nem com os
protestantes, e por fim não se pode dizer sequer cristão, porque acabou pondo
em dúvida a divindade de Cristo e os dogmas fundamentais do Cristianismo: seu
escopo era o de ele próprio fundar nova religião. ...........................
va, ora de uma parte ora de outra, eram sol ideal que é o intelecto. As “ sombras das
apenas apoios táticos para realizar a pró idéias” não são as coisas sensíveis, mas mui
pria reforma. E precisamente por isso é que to mais (no contexto bruniano) as “ imagens
ele provocou violentas reações em todos os mágicas” que refletem as idéias da mente
ambientes nos quais ensinou. Bruno não divina e das quais as coisas sensíveis são
podia seguir nenhuma seita, porque seu ob cópias. Imprimindo na mente essas “ imagens
jetivo era o de fundar ele próprio uma nova mágicas” , obtém-se então como que um re
religião. flexo do universo inteiro na mente, adqui
E, no entanto, estava ébrio de Deus rindo-se desse modo não apenas uma poten-
(para usar uma expressão que Novalis usou cialização maravilhosa da memória, mas
a respeito de Spinoza) e o infinito foi o seu também fortalecimento da capacidade ope
princípio e o seu fim (como podemos dizer rativa do homem em geral.
com outra expressão de Schleiermacher em A obra apresenta uma série de relações
relação a Spinoza). Mas trata-se de um “di de imagens, com base nas quais Bruno or
vino” e de um “ infinito” de caráter neopa- ganiza o sistema da memória e, como Ficino
gão, que o aparato conceituai do neopla- já começara a fazer, dá fundamentos ploti-
tonismo, feito renascer por Nicolau de Cusa nianos à sua construção.
e por Ficino, prestava-se a expressar de mo O Bruno parisiense, portanto, com essa
do quase perfeito. obra dedicada propriamente a Henrique III,
se apresenta como expoente e renovador da
tradição mágico-hermética inaugurada por
3 ; A r f e d a m e m ó r ia
Ficino, mas em sentido muito mais radical,
ou seja, no sentido de que não lhe interessa
( m n e m o fé c rú c a ) mais a conciliação ficiniana dessa doutrina
e a rte m á g ic o - k e r m é tic a com a dogmática cristã, decidido que esta
va a trilhar até as últimas conseqüências esse
caminho.
As primeiras obras brunianas são de
dicadas à mnemotécnica, destacando-se en
tre elas a De umbris idearum, elaborada em
Paris e dedicada a Henrique III. Mas a sua O u n iv e r s o d e B r u r r o
própria mnemotécnica já apresenta fortes e seu s \g n \f\c a d o
colorações mágico-herméticas.
A arte da memória era muito antiga.
Os oradores romanos, particularmente, re Depois do período na França, a etapa
comendavam, para a memorização dos mais significativa da carreira de Bruno foi
seus discursos, que se associasse a estrutu sua estada na Inglaterra, onde elaborou e
ra e a sucessão dos conceitos e argumenta publicou os “ diálogos italianos” , que cons
ções a favor dos mesmos a um edifício e à tituem suas obras-primas.
sucessão das partes de um edifício. Na Ida Antes de falar do seu conteúdo (do
de Média, Raimundo Lúlio já havia desen qual os posteriores poemas latinos, compos
volvido a mnemotécnica, não só procuran tos e publicados na Alemanha, constituem
do definir normas destinadas a favorecer apenas o desenvolvimento e aprofunda
a memorização, identificando uma preci mento), é bom identificar com que roupa
sa escansão das regras da mente, mas tam gem Bruno se apresentou aos ingleses, par
bém procurando identificar a coordena ticularmente aos doutos da Universidade
ção dessas regras da mente com a estrutura de Oxford. Documentos que só vieram à luz
do real. no Novecentos nos informam sobre os te
Na Renascença, a mnemotécnica renas mas tratados por Bruno em Oxford e sobre
ceu, alcançando seu ponto culminante com as reações que teve dos seus ouvintes. Ele
Giordano Bruno. expôs uma visão copernicana do universo,
Além disso, no De umbris idearum, centrada na concepção heliocêntríca e na
Bruno vincula-se expressamente a Hermes infinitude do cosmo, vinculando-o à magia
Trismegisto, convencido de que a religião astral e ao culto solar tal como havia sido
“egípcia” era melhor do que a cristã, en proposto por Ficino, a tal ponto que um dos
quanto é religião da mente, que se realiza doutos “ achou que tanto a primeira como
superando o culto ao sol, imagem visível do a segunda lição haviam sido extraídas, quase
115
Capítulo sétimo - V é r t ic e s e ^ e su l+ a d o s c o n c lu s iv o s d o p e n s a m e n t o r e n a s c e n t is t a
palavra por palavra, das obras de Marsílio Por isso, é compreensível que, nesse
Ficino” (em particular da obra De vita contexto, Deus e natureza, forma e maté
coelitus comparanda). Criou-se um escân ria, ato e potência acabem por coincidir, a
dalo, que obrigou Bruno a despedir-se ra ponto de Bruno escrever: “Daí, não é difícil
pidamente dos “pedantes gramáticos” de ou grave, em última instância, aceitar que,
Oxford, que nada haviam entendido de sua segundo a substância, tudo é uno, como tal
mensagem. vez tenha entendido Parmênides, tratado
A imagem que ele queria transmitir de ignobilmente por Aristóteles.” B g a m
si mesmo, portanto, era a do mago renas
centista, de alguém que propunha a nova
religião “ egípcia” da revelação hermética,
o culto do deus in rebus, o deus que está 5 A in fim tu d e d o T o d o
presente nas coisas. e o s ig m f ic a d o im p e e s s o
No Despacho o “egipcianismo” é apre
poe B r u n o
sentado até mesmo como temática, ao pas
so que o “ sapientíssimo Mercúrio Egípcio” , A e e v o lu ç ã o c o p e r n i c a n a
ou seja, Hermes Trismegisto, é apresentado
como fonte de sabedoria. E essa visão do
“ deus nas coisas” está expressamente liga A partir desta concepção bruniana o
da à magia, entendida como sabedoria pro infinito se torna, como já dissemos, a mar
veniente do “ sol inteligível” , que é revelada ca emblemática da concepção bruniana.
ao mundo ora em menor ora em maior me Com efeito, para Bruno, se a Causa ou o
dida. Princípio primeiro é infinito, também o efei
O “ egipcianismo” de Bruno é uma for
to deve ser infinito.
ma de religião paganizante, com base na Com base nisso, Bruno sustenta não
qual ele pretendia fundar a reforma moral apenas a infinitude do mundo em geral, mas
universal. também (retomando a idéia de Epicuro e de
Mas quais são seus fundamentos filo Lucrécio) a infinitude no sentido da exis
sóficos? tência de mundos infinitos semelhantes ao
Acima de tudo Bruno admite uma nosso, com outros planetas e outras estre
“ causa” ou um “ princípio supremo” , ao las: “ e isso se chama universo infinito, no
qual ele chama também de “ mente sobre as qual há inumeráveis mundos” .
coisas” , da qual deriva todo o restante, mas Infinita também é a vida, porque infi
que permanece incognoscível para nós. Todo nitos indivíduos vivem em nós, assim como
o universo é efeito desse primeiro princípio; em todas as coisas compostas. O morrer não
mas não se pode remontar do conhecimen é morrer, porque “ nada se aniquila” . Assim,
to dos efeitos ao conhecimento da causa, o morrer é apenas uma mudança acidental,
como não se pode remontar da visão de uma ao passo que aquilo que muda permanece
estátua à visão do escultor que a fez. Esse eterno.
princípio outra coisa não é do que o Uno Mas, então, por que existe essa muta
plotiniano revisitado por um renascentista. ção? Por que a matéria particular procura
Assim como em Plotino o Intelecto de sempre outra forma? Será que procura ou
riva do supremo Princípio, analogamente, tro ser? De modo bastante engenhoso, Bru
Bruno também fala de um Intelecto univer no responde que a mutação não procura
sal, mas o entende, de modo mais marcada- “ outro ser” (pois tudo já existe desde sem
mente imanentista, como mente nas coisas pre), e sim “ outro modo de ser” . E nisso
e precisamente como faculdade da Alma reside precisamente a diferença entre o uni
universal, da qual brotam todas as formas verso e as coisas singulares do universo:
que são imanentes à matéria, constituindo “ aquele abrange todo o ser e todos os mo
com ela um todo indissolúvel. dos de ser; estas, cada qual tem todo o ser,
As formas são a estrutura dinâmica da mas não todos os modos de ser”.
matéria, “ que vão e vêm, cessam e se reno Assim, Bruno pode dizer que o univer
vam” , precisamente porque tudo é anima so é “ esferiforme” e, ao mesmo tempo, “ in
do, tudo está vivo. A alma do mundo está finito” . O conceito de Deus como “ esfera
em cada coisa. E na alma está presente o que tem o centro em toda parte e a circun
intelecto universal, fonte perene de formas ferência em nenhum lugar” , que apareceu
que continuamente se renovam. pela primeira vez em tratado hermético e
116
Primeira parte - O -H u m a n ism o e a R e n a s c e n ç a
que foi tornado célebre por Nicolau de Cusa, necer todas as “ fantásticas muralhas” dos
serve admiravelmente a Bruno; é precisa céus, tornando-os sem limites rumo ao in
mente com essa base que ele opera a conci finito.
liação já referida.
Deus é todo infinito e totalmente in
finito, porque é todo em tudo e totalmen
6 CDs T v e r ó ic o s jvmcmes**
lo
te também em toda parte do todo. Como
efeito derivado de Deus, o universo é todo
infinito, mas não totalmente infinito, por
que é todo em tudo, mas não totalmente Na visão bruniana, a “contemplação”
em todas as suas partes (ou, de todo mo plotiniana e o tornar-se uno com o Todo
do, não pode ser infinito no modo como tornam-se “ heróico furor” .
Deus é, sendo causa de tudo em todas as Também para Bruno trata-se de per
partes). correr novamente, em elevação cognoscitiva,
Estamos agora em condições de enten ou seja, voltando sobre os próprios passos,
der as razões da entusiástica aceitação da aquela descida que do princípio levou ao
revolução copernicana por Giordano Bru principiado. Mas, em Bruno, a contempla
no. Com efeito, o heliocentrismo a) har ção se transforma em uma forma de “ divi-
monizava-se perfeitamente com sua gnose nização” , que é furor de amor, anseio de ser
hermética, que atribuía ao sol (símbolo do uma só coisa com o objeto anelado, trans
intelecto) um significado inteiramente par formando desse modo o êxtase plotiniano
ticular, e b) permitia-lhe romper a visão es em experiência mágica. (Ficino já denomi
treita dos aristotélicos, que sustentava a nara furor divino o amor que leva o homem
finitude do universo, e assim fazia desva- a “ endeusar-se” ).
O ponto central do escrito Sobre os he
róicos furores, que é uma de suas obras-pri
mas, explica que o próprio sentido dos “ fu
rores heróicos” está no mito do caçador
Actéon, que viu Diana no banho e, de caça
dor, foi transformado em cervo, isto é, em
uma caça selvagem, sendo devorado por seus
GIOKDA. cães. Diana é o símbolo da divindade ima-
N O BR.V N O nente da natureza e Actéon simboliza o inte
JA(olano. lecto, voltado para a caça à verdade e à bele
DE Gf HEROICI
za divina; já os mastins e galgos de Actéon
FVRORI. simbolizam as volições (os primeiros, que são
Al m»ií0 itímpre ti tfitlkntt Cê* mais fortes), e os pensamentos (os segundos,
*d&er*,Si£**r fbitítfto
Sidnt$.
que são mais velozes).
Actéon, portanto, foi convertido naqui
lo que procurava (caça) e seus próprios cães
(pensamentos e volições) o devoram. Por
quê? Porque a verdade procurada está em
nós mesmos e, quando descobrimos isso,
PARIGI,
tornamo-nos anseio de nossos próprios pen
ApprclTo Antonio B.nn
/' <íAnno. samentos e compreendemos que “tendo já
contraída em si a divindade, não era preci
so procurá-la fora de si” .
Por isso Bruno conclui: “ Desse modo,
os cães, pensamentos de coisas divinas, de
voram Actéon, tornando-o morto para o
vulgo, para a multidão, liberto das amar
Na obra-prima de Bruno Dos heróicos furores ras dos sentidos perturbados, livre'do cár
está presente o mito do caçador Actéon,
que depois de ter visto Diana cere carnal da matéria; não vendo mais sua
foi transformado em cervo Diana como que através de cortinas e ja
e dilacerado por seus cães. nelas, mas, tendo posto por terra as mura
Actéon simboliza o intelecto dirigido lhas, é agora todo olhos para o aspecto de
à caça da verdade e da beleza divina. todo o horizonte.” No ponto culminante
117
Capítulo sétimo - V é r t ic e s e r e s u l t a d o s c o u c lu s iv o s d o p e u s a m e u + o re u a sc e rx + ista
do “ heróico furor” , o homem vê tudo in mente tenha entendido o sentido científico
teiramente todo, porque assimilou-se a esse daquela doutrina.
todo. g] Não é possível destacar o aspecto mate-
matizante de muitos escritos brunianos, pois
a matemática bruniana é aritmologia pita-
7 í S o n c lu s õ e s
gorizante, sendo portanto metafísica.
Em suma, com sua visão vitalista e
mágica, Bruno não é pensador “ moderno” ,
no sentido de que não antecipa as descober
Bruno é certamente um dos filósofos tas do século seguinte, que nascem em ba
mais difíceis de entender. E, no âmbito da ses totaímente diferentes.
filosofia renascentista, certamente é o mais Entretanto, Bruno antecipa de modo
complexo. Daí as exegeses tão diversas que surpreendente certas posições de Spinoza e,
sobre ele foram propostas. sobretudo, dos românticos. A embriaguez
No estado atual dos estudos, porém, de Deus e do infinito própria desses filóso
muitas conclusões a que se chegara no pas fos já está presente em muitas páginas de
sado devem ser revistas. Bruno. Schelling é o pensador que mostrará
Não parece possível fazer dele um pre (pelo menos em uma fase do seu pensamen
cursor da revolução do pensamento moder to) as mais fortes afinidades de opção com
no, no sentido em que operará a revolução o nosso filósofo. E uma das obras schellin-
científica, porque seus interesses eram de guianas mais belas e sugestivas intitular-se-
natureza completamente diferente: mágico- á precisamente Bruno.
religiosos e metafísicos. Em seu conjunto, a obra de Bruno
A defesa que ele fez da revolução marca um dos pontos culminantes da Re
copernicana fundamenta-se em bases total nascença e, ao mesmo tempo, um dos re
mente diferentes daquelas em que se basea sultados conclusivos mais significativos
ra Copérnico, tanto que alguns chegaram desse período irrepetível do pensamento
até a levantar dúvidas de que Bruno real ocidental.
Giordano Bruno diante do tribunal do Santo Ofício (relevo do monumento a Bruno, Roma).
118
Primeira parte O
- -Humcmismo e a l^enascentpa
BRUNO
A D E R IV A Ç Ã O D O U N IV E R S O D E D E U S E O " H E R Ó IC O F U R O R 1
Deus
Uno todo e totalmente infinito
em toda sua parte,
Princípio supremo I
e Causa incognoscível do Todo:
Mente acima das coisas
V
\
\ *V
todas as formas
(as estruturas dinâmicas perenemente em renovação)
da matéria
- rv. T o m á s (S a m p a u e lla : —
n a t u r a lis m o ^ m a g i a
e a u s e io d e r e f o r m a u u iv e r s a l
• A arte mágica, de que Campanella foi apaixonado cultor, tem três forfnas:
1) divina, que Deus concede aos profetas e aos santos;
2) natural, que se serve das propriedades ativas e passivas das coisas naturais
para produzir efeitos maravilhosos;
3) demoníaca, que se serve dos espíritos malignos e deve ser condenada.
120
Primeira parte - (D -H u m an ism o e a R e n ascen ça
mar e pregar uma revolta contra a Espanha, em dezoito livros (dos quais Campanella fez
que deveria constituir o início de seu gran nada menos do que cinco redações, das
dioso projeto. Porém, em 1559, traído por quais possuímos a latina, publicada em
dois conspiradores, Campanella foi preso, 1638, em Paris), e a Teologia, em trinta li
encarcerado e condenado à morte. vros (1613-1624).
2) Inicia-se assim o segundo período. Encarcerado durante os melhores anos
Como já observamos, Campanella salvou- de sua vida, Campanella não pôde criar dis
se da morte com uma hábil simulação de cípulos. E quando, na França, passou a go
loucura, que soube sustentar com heróica zar do reconhecimento que antes lhe fora
firmeza diante dos testes de confirmação negado, já era muito tarde para isso, pois
mais duros e cruéis. A condenação à morte seu pensamento já era fruto fora de esta
foi transformada em prisão perpétua. Sua ção. Descartes dominava então a cena inte
prisão, que durou nada menos que vinte e lectual e as vanguardas estavam com ele.
sete anos, inicialmente foi duríssima, mas
depois tornou-se pouco a pouco tolerável,
até tornar-se quase formal. Campanella po
dia escrever seus livros, trocar correspon tA u a f u r e z a e o sÍ0 r ú fic a d o
dência e até receber visitas. d o c o n k e c im e n + o filo s ó fic o
3) Em 1626, o rei da Espanha mandou
libertá-lo, mas sua liberdade durou muito e o re p e u s a m e n to
pouco, porque o núncio apostólico mandou d o se rrs is m o t e le s i a n o
prendê-lo de novo, transferindo-o para Ro
ma, nos cárceres do Santo Ofício. Mas aqui
a sorte de Campanella mudou radicalmen Campanella começou sendo telesiano,
te, em virtude da proteção de Urbano VIII, mas logo a seu próprio modo. Para ele, a
tanto que, em vez do cárcere, Campanella mensagem de Telésio significa, através dos
teve à sua disposição nada menos que o pa sentidos, um contato direto com a nature
lácio do Santo Ofício. za, única fonte de conhecimento, e, portan
Enquanto esteve preso em Nápoles, seus to, ruptura com a cultura livresca.
desígnios políticos se haviam orientado para A Carta a Dom Antônio Quarengo, de
a Espanha, considerada como a potência que 1607, muito bela e justamente famosa, con
teria condições de realizar a sonhada “ refor tém como que um manifesto, que nos mos
ma universal” (daí a sua libertação). Mas, tra algumas das idéias programáticas essen
em Roma, Campanella tornou-se filofran- ciais de Campanella. Assim, vamos destacar
cês. Por essa razão, tendo sido descoberta, dois trechos mais importantes.
em Nápoles, uma conjura contra os espanhóis “ Eis, portanto, o meu filosofar, diver
em 1634, organizada por um discípulo de so em relação ao de Pico; eu aprendo mais
Campanella, o nosso filósofo foi injustamente com a anatomia de uma formiga ou de uma
considerado co-responsável, tendo por isso erva (sem falar na do mundo, admirabilís-
de fugir para Paris, sob a proteção do em sima) do que com todos os livros que foram
baixador francês. escritos do princípio do século até hoje, de
4) A partir de 1634, Campanella viveu pois que aprendi a filosofar e a ler o livro de
momentos de glória em Paris, admirado e Deus, em cujo modelo corrijo os livros hu
reverenciado por muitos doutos e nobres. manos, inabilmente copiados ao bel-prazer
O rei Luís XIII concedeu-lhe ótima côngrua e não segundo o que está no universo, livro
e ele chegou a gozar dos favores do pode original. E isso fez-me ler todos os autores
rosíssimo Richelieu. O seu falecimento ocor com facilidade e guardá-los na memória, da
reu em 1639, enquanto procurava em vão qual grande dom me fez o Altíssimo, mas
manter a morte distante, com suas artes muito mais ainda ensinando-me a julgá-los
mágico-astrológicas. com o modelo do seu original” .
Entre os seus numerosos escritos, re “ Eu o [Pico] considero um grande ho
cordamos: Philosophia sensibus demons- mem mais por aquilo que deveria fazer do
trata (1591), Do sentido das coisas e da que pelo que fez. Se bem que creio não ape
magia (1604), Apologia pró Galileu (1616, nas nele, mas também em qualquer outro
publicada em 1622), Epílogo magno (1604 gênio que me seja testemunha daquilo que
1609), A Cidade do sol (1602), o Atbeismus se aprende na escola da natureza e da arte,
triumpbatus (1631), a imponente Metafísica, enquanto harmonizam com a primeira a
122
Primeira parte - O +-I umcmismo e a R enascença
3 ; A a u + o c o n s c iê n c ia
Ia í T d iv v m P E T RI VVM
M |I
| Apoftolorum Principem Triumphantem.
intem. f Em suas reflexões sobre o conhecimento,
que se encontram no primeiro livro da Me
ATHEISM VS TRIVMPHATVS tafísica, Campanella apresenta uma refuta
Seu ção do ceticismo, baseando-se na autocons-
REDVCTIO AD RELIGIO N EM ciência, muito considerada postumamente
PER S C 1 E N T I A R V M V E R I T A T E S . pelos intérpretes, que nela encontraram sur
F. T H O Mi F C A M P A N E L L A S T Y L E N S I S preendentes analogias com a teoria tornada
OR DI NI S PR A E D I C A T O R V M . célebre por Descartes no Discurso sobre o
C O N T R A método, que é de 1637, ao passo que a Meta
ANTICHR1STIANISMVM ACHITOPHELLISTICVM.
física de Campanella, como já dissemos, foi
S e x tJ Tomi Pars P rim a.
publicada em Paris um ano depois, mas já
havia sido elaborada alguns anos antes.
A descoberta cartesiana (de que fala
remos mais longamente adiante) teria sido
então antecipada por Campanella?
As analogias com Descartes existem,
mas mostram-se movidas por exigências di
ferentes e, sobretudo, se inserem em uma vi
são metafísica pan-psiquista geral da reali
dade, que chega, inclusive, a se opor à de
ROMA:, Apud Hmedem Binholouuti Zawmti M.DC.XXXT.
Descartes.
IP f {J/OHKiW 1' B 1 . M I S S V .
Para Campanella, o conhecimento de
si não é prerrogativa do homem enquanto
pensamento, mas de todas as coisas, que são
(todas elas, sem exceção) vivas e animadas.
Frontispício da primeira edição Com efeito, para ele, todas as coisas são
do Atheismus triumphatus, de Tomás Campanella. dotadas de uma "sapientia indita” ou ina
ta, pela qual sabem que existem e que estão
ligadas a seu próprio ser (“ amam” seu pró
Idéia e o Verbo, da qual dependem. Mas, prio ser). Esse autoconhecimento é um “ sen-
quando os homens falam como opinantes sus sui”, um auto-sentir-se.
das escolas humanas, considero-os iguais e O conhecimento que toda coisa tem do
sem seqüelas, pois santo Agostinho e Lactân- que é diferente de si é “sapientia illata ”, isto
cio negaram os antípodas com argumentos é, aquela que se adquire no contato com as
e por opinião, mas um marinheiro os tornou outras coisas. Cada coisa é modificada pela
mentirosos ao testemunhar de visu outra e de certa forma se transforma, “ alie
Filosofar, portanto, é aprender a ler “o nando-se” na outra. Quem sente não sente
livro de Deus” , a criação, ãe visu e direta o calor, mas a si mesmo modificado pelo
mente, ou melhor, como ele próprio diz, por calor; não percebe a cor, mas, por assim di
tactum intrinsecum, tornando-se um só com zer, a si mesmo colorido.
as coisas. A consciência “ inata” que toda coisa
Os estudiosos realçaram freqüente- tem de si é ofuscada pelo conhecimento que
mente o fato de que o novo significado que se acrescenta (superaddita), de modo que a au-
Campanella confere ao conhecimento, en toconsciência (conseqüentemente) se trans
tendido sensisticamente, é simbolicamente forma quase em um sensus abditus, ou seja,
expresso pela interpretação que ele dá da “oculto” dos conhecimentos que sobrevêm.
palavra “ sapiência” , que derivaria de “ sa Nas coisas, o sensus sui permanece predo
bor” (sapore em italiano) (“ dos sabores que minantemente oculto; no homem, pode al
o gosto saboreia” ). cançar níveis notáveis de consciência; em
O gosto implica um tornar-se íntimo Deus, se desdobra em toda a sua perfeição.
das coisas, pois o sabor é a revelação de tudo Além da alma-espírito, devemos destacar
o que há de mais íntimo na coisa, através que Campanella também reconhece no ho
da união com essa coisa. mem a mente incorpórea e divina. Telésio já
123
Capitulo sétimo - VérHces e resultados conclusivos do pensamento renascentista
o havia feito. Mas Campanella confere à men Obviamente, pode-se falar também de
te um papel de importância muito maior, tan “primalidades do não-ser” , que são a “ im
to que chega até mesmo, segundo as doutri potência” , a “ insipiência” e o “ ódio” . Elas
nas neoplatônicas, a atribuir-lhe a capacidade constituem as coisas finitas, enquanto toda
de conhecer, assimilando-se ao inteligível que coisa finita é potência, mas não de tudo aqui
há nas coisas, os modos e as formas (as idéias lo que é possível; conhece, mas não conhece
eternas) segundo os quais Deus as criou. tudo aquilo que é cognoscível; ama e, ao
Nessa doutrina há um ponto que, por mesmo tempo, odeia.
sua originalidade, merece particular relevo. Deus, por seu turno, é Potência supre
O conhecimento é, ao mesmo tempo, perda ma, Sapiência suprema e Amor supremo.
e aquisição: é aquisição precisamente atra Assim, em diferentes níveis, a criação re
vés da perda. Ser é saber. Sabe-se aquilo que pete o esquema trinitário. Trata-se de uma dou
se é (e aquilo que se faz): “ Quem é tudo sabe trina de gênese agostiniana, que Campanel
tudo; quem é pouco, sabe pouco.” Conhe la amplia em sentido pan-psiquista. fgTOfçl
cendo, nós nos “ alienamos” , dilatamos nos
so ser. Eis um dos textos mais significativos:
“ [...] todos os cognoscentes são alienados do
seu próprio ser, como se acabassem na lou 5 O p a r v - p s iq u is m o e a m a g ia
cura e na morte; nós estamos no reino da
morte.” Este tipo de morte, porém, em certo
sentido, é como o da semente que, justamen Ainda uma vez partindo de Telésio e
te morrendo, cresce. E um crescer no ser. E de sua doutrina da animação universal das
Campanella prossegue: “E o aprender e o coisas, Campanella vai muito mais além,
conhecer, sendo transformar-se na natureza não apenas se movendo na direção concei
do cognoscível, são também uma espécie de tuai dos neoplatônicos, mas a ela mesclan
morte; só o transformar-se em Deus é vida do visões nascidas de sua vivida e densa
eterna, porque não se perde o ser no infinito fantasia, formulando desse modo uma
mar do ser, mas se magnifica” . I S 3 T 1 doutrina animístico-mágica levada ao ex
tremo.
Segundo Campanella, as coisas falam
e se comunicam entre si diretamente. En
4 ; A m e t a f ís ic a viando os seus raios, as estrelas comunicam
“ seus conhecimentos” . Ademais, os metais
c a m p a r r e llia r r a :
e as pedras “ se nutrem e crescem, mudando
a s te ê s " p e im a lid a d e s ” d o see o solo onde inicialmente nascem com a aju
da do sol, bem como as ervas em licor, que
puxam para si pelas suas veias, onde os dia
Entendido como o entende Campa mantes crescem em pirâmides e os cristais
nella, o conhecimento é revelador da estru em figura cúbica (...)” .
tura das coisas, de sua “essenciação” , como Para ele, há plantas cujos frutos tor
diz nosso filósofo. Toda coisa é constituída nam-se pássaros.
“ pela potência de ser, pelo saber de ser e Há uma “geração espontânea” de to
pelo amor de ser” . dos os viventes, inclusive dos superiores,
Essas são as “ primalidades do ser” , porque tudo está em tudo e, portanto, tudo
que, de certo modo, correspondem àquilo pode derivar de tudo.
que eram os transcendentais na ontologia No que se refere à arte mágica, Cam
medieval. panella nela distingue três formas: 1) a divi
À medida que pode ser, todo ente 1) é na; 2) a natural; 3) a demoníaca.
“ potência” de ser; 2) além disso, tudo aqui A primeira é a que Deus concede aos
lo que pode ser “ sabe” também que é; 3) e, profetas e santos.
se sabe que é, “ ama” seu próprio ser. Isso A última é a que se vale da arte dos
prova-se pelo fato de que, se não soubesse espíritos malignos, sendo condenada por
que é, não fugiria daquilo que o prejudica e Campanella.
destrói. A segunda, a natural, “ é arte prática
As três “primalidades” são iguais em que se serve das propriedades ativas e passi
dignidade, ordem e origem: uma “ imane” , vas das coisas naturais para produzir efei
ou seja, está presente na outra e vice-versa. tos maravilhosos e insólitos, dos quais, no
124
Primeira parte - O H u m a n is m o e a R e n a s c e n ç a
mais das vezes, se ignoram a causa e o modo dos no espiritual e no temporal” . Os prínci
de provocá-los (...)” . pes que o assistem chamam-se Pon, Sin e
Nessa linha, Campanella amplia em Mor, que significam “Potência, Sapiência e
sentido pan-magístico a magia natural, a Amor” (ou seja, representam as “ prima-
ponto de nela inserir todas as artes, inven lidades” do ser), cada qual desenvolvendo
ções e descobertas, como a invenção da im funções adequadas ao seu nome.
prensa e da pólvora, entre outras. Todos os círculos de muralhas contêm
Os próprios oradores e poetas en inscrições, apresentando representações pre
tram na relação dos magos: “ são magos se cisas tanto no interior como externamente,
gundos” . de modo a fixar todas as imagens-símbolos
Mas, conclui Campanella, “a maior ação de todas as coisas e dos acontecimentos do
mágica do homem é dar leis aos homens” . mundo. Na parte externa do último círculo
figuram “ todos os inventores das leis, das
ciências e das armas” e, além disso, “ em
lugar de muita honra estavam Jesus Cristo
«A» t S id a d e d o S o l e os doze apóstolos [...]” .
Nessa cidade, todos os bens são co
muns (como na República de Platão).
As virtudes, além disso, ostentam a vi
Desse modo, estamos agora em condi tória sobre os vícios, tanto que são magis
ções de compreender a “ Cidade do Sol” e trados que presidem as virtudes e levam os
seu significado: ela representa a soma das seus nomes.
aspirações de Campanella e verbaliza seus Por essas características, pode-se ver
anseios de reforma do mundo e de liberta que se trata de uma “ cidade mágica” (e os
ção dos males que o afligem, fazendo uso estudiosos apresentaram inclusive um mo
dos poderosos instrumentos da magia e da delo, em uma conhecida obra de magia
astrologia. Assim, é como que um cadinho intitulada Picatrix). E uma cidade cons
de motivos no qual estão contidas todas as truída de modo a captar toda a influência
aspirações da Renascença. benéfica dos astros em todos os seus parti
Eis, então, uma breve descrição da ci culares.
dade do sol. M as está presente também todo o cri-
A cidade ergue-se sobre um vale que sol sincretista renascentista. Já falamos so
domina vasta planície, sendo dividida em bre a influência de Platão. Mas, além dis
“ sete grandes círculos, denominados com o so, como diz Campanella, os habitantes da
nome dos sete planetas, entrando de um para cidade “ louvam Ptolomeu e admiram
o outro através de quatro estradas e quatro Copérnico” e (como já sabemos) “ são ini
portas, situadas nos quatro respectivos ân migos de Aristóteles, chamando-o de pe
gulos do mundo” . Acima do vale, surge um dante” .
templo redondo, sem muralhas em torno, A filosofia que eles professam, natu
mas “ situado sobre colunas grossas e bas ralmente, é a de Campanella. Sua expecta
tante belas” . A cúpula tem uma cúpula me tiva messiânica é muito forte: “ Acreditam
nor, com uma espiral que “ pende sobre o ser verdadeiro aquilo que disse Cristo sobre
altar” , que está no centro. os sinais das estrelas, do sol e da lua, que
Sobre o altar, “ nada mais há do que não parecem verdadeiros para os tolos, mas
um mapa-múndi bem grande, onde está pin que virão, como o ladrão à noite, no fim
tado todo o céu, além de outro, onde está a das coisas. Por isso, esperam a renovação
terra. No céu da cúpula estão todas as maio do século e talvez o fim. ”
res estrelas do céu, tendo inscritos os seus
nomes e as virtudes que têm sobre as coisas
terrenas, com três versos para cada uma (...),
havendo sempre sete lâmpadas acesas, com
7 éS o n clw sõ e s
Além de sua tumultuada vida, isso tam O último período de sua vida, a fase
bém deriva do fato de que nosso filósofo, parisiense, é emblemática. Foi homenagea
como já dissemos, representa em parte um do por aqueles que estavam voltados para
fruto que amadureceu fora de época. o passado e para o presente imediato, mas
foi desprezado ou até mesmo rejeitado por
aqueles que olhavam para o futuro.
O teólogo Mersenne (1588-1648), que
o encontrou e conversou longamente com
ele, escreveu categoricamente: “ [...] ele não
pode nos ensinar nada em matéria de ciên
cia.” Descartes não quis receber a visita de
Campanella na Holanda, a ele proposta por
Mersenne, respondendo que tudo o que sa
bia dele já era suficiente para fazê-lo dese
jar nada mais saber.
Com efeito, Campanella era um sobre
vivente: a última das grandes figuras renas
centistas. Um homem que viveu sua vida sob
o signo de um destino de missão e de total
renovação, como ele próprio propunha sig
nificativamente neste soneto:
CAMPANELLA
OS FU N D A M E N T O S D A M ETA FÍSICA
, Deus é
/ Ente por essência, de modo eminentíssimo:
/ 1. Potência suprema
( 2. Sabedoria suprema
3. Amor supremo
\ _
\ As três Primalidades divinas
T .
_________________ A A
O homem, Toda coisa é animada e,
além da alma-espírito segundo o próprio grau de ser, possui:
(substância corpórea sutilíssima), a) conhecimento de si: sapientia indita
também possui (“inata”: sensus sui)
a mente incorpórea e divina,
capaz de assimilar-se ao inteligível b) conhecimento das outras coisas:
que existe nas coisas sapientia illata (addita)
^ ___ __________________A A
Com efeito, enquanto nas outras coisas o sensus sui permanece prevalentemente escondido
(sensus abditus),
o homem pode chegar a conhecer a si mesmo e as outras coisas
segundo as idéias mediante as quais Deus criou o universo
V___________________ . .
127
Capítulo sétimo - V é r t ic e s e r e s u l t a d o s c o n c lu s iv o s d o p e n s a m e n t o r e n a s c e n t is t a
que nasce da ciência e termina na operação quantidade descontínua e contínua. Aqui não
manual. Todavia, parece-me que sejam vãs se argüirá que duas vezes três seja mais ou
0 cheias de erros as ciências que não nas menos seis, nem que um triângulo tenha seus
ceram da experiência, mãe de toda certeza, e ângulos menores do que dois ângulos retos,
que não terminam em experiência conhecida, mas com eterno silêncio permanece eliminada
isto é, que sua origem, ou meio, ou fim, não toda argüição, e com paz são fruídas pelos
passam por nenhum dos cinco sentidos. £ se seus devotos, o que não o podem fazer as
duvidamos da certeza de cada coisa que mentirosas ciências mentais. £ se disseres que
passa pelos sentidos, com muito maior razão tais ciências verdadeiras e conhecidas são
devemos duvidar das coisas rebeldes a es espécies de mecânicas, apesar de só pode
ses sentidos, como a ausência de Deus e rem terminar manualmente, direi o mesmo de
da alma e coisas semelhantes, pelas quais todas as artes que passam pelas mãos dos
sempre se disputa e briga. € verdadeiramen escritores, que são espécie de desenho, mem
te ocorre que sempre onde falta a razão su bro da pintura; e a astrologia e as outros pas
prem os gritos, o que não acontece nas coisas sam pelas operações manuais, mas primeiro
certas. são mentais como a pintura, que primeiro exis
Por isso, diremos que onde se grita não te na mente de seu especulador, e não pode
há verdadeira ciência, porque a verdade tem chegar à sua perfeição sem o operação ma
um só termo que, ao ser publicado, o litígio nual; essa pintura, da qual seus científicos e
permanece para sempre destruído, e se o li verdadeiros princípios primeiro colocam o que
tígio ressurge, ela é ciência mentirosa e con é corpo sombrio, e o que é sombra primitiva e
fusa, e não certeza renascida. Mas as ciên sombra derivativa, e o que é lume, isto é, tre
cias verdadeiras são as que a esperança fez vas, luz, cor, corpo, figura, lugar, remoção, pro
penetrar pelos sentidos e silenciam a língua ximidade, movimento e repouso, os quais ape
dos litigantes, e que não alimentam de so nas são com preendidos pela mente sem
nhos seus investigadores, mas sempre pro operação manual; e esta será a ciência da
cedem sucessivamente sobre os primeiros pintura, que permanece na mente dos que a
verdadeiros e conhecidos princípios e com contemplam, da qual nasce depois a opera
verdadeiras seqüências até o fim, como ve ção, muito mais digna do que a predita con
mos nas primeiras matemáticas, isto é, nú templação ou ciência.
mero e medida, chamadas aritmética e geo Leonardo do Vinci,
metria, que tratam com suma verdade do Trotado do pintura, I, § 1,3, 29, e II, § 77
Leonardo da Vinci,
estudos sobre a duração da percepção visual,
ótica, prospectica (do Códice Atlântico).
Leonardo se servia habitualmente
de uma escritura “invertida ",
isto é, da direita para a esquerda,
e apenas esporadicamente
em suas notas encontramos a escritura “direita".
A explicação mais fácil está no fato
de que ele era canhoto,
mas na realidade este modo bizarro de escritura
correspondia a seu caráter esquivo e solitário,
atento para defender-se de curiosidades indiscretas.
Ao espelho seus textos se lêem,
salvo dificuldades mínimas,
como qualquer outro manuscrito.
129
Capítulo sétimo - V é r t ic e s e r e s u l t a d o s c o n c lu s iv o s d o p e n s a m e n t o r e n a s c e n t is t a
que poro os palmos. Portanto, infinitos horas gar, e que o circunferência não está em parte
não são mais qu© infinitos séculos, e infinitos nenhuma por ser diferente do centro, ou então
palmos não são d© maior número qu© infinitas que a circunferência está em todo lugar, mas o
parasangas. A proporção, semelhança, união centro não se encontra enquanto é diferente
© identidade do infinito não mais te aproximas dela. Eis como não é impossível, mas necessá
pelo foto de ser homem e não formiga, uma rio, que o ótimo, máximo, incompreensível é
estrela e não um homem; porque àquele ser tudo, está para tudo, está em tudo, porque,
não mais te avizinhas por ser sol, lua, e não um como simples e indivisível, pode ser tudo, ser
homem ou uma formiga; e, todavia, no infinito para tudo, ser em tudo. E assim não foi dito de
estas coisas são indiferentes. € o que digo des forma vã que Júpiter enche todas as coisas,
tas, entendo de todas as outras coisas que sub habita todas as partes do universo, é centro
sistem particularmente. daquilo que tem o ser, uno em tudo e pelo qual
uno é tudo. O qual, sendo todas as coisas e
compreendendo todo o ser em si, também faz
3. No cosmo uno-infinito
com que toda coisa esteja em toda coisa.
não se diferenciam ato e potência,
e portanto nem ponto e linha,
superfície e corpo 5. O cosmo uno-infinito
é "multimodo multiúnico”
Ora, se todas estas coisas particulares no e uno em substância
infinito não são outro e outro, não são diferen
tes, não são espécie, por necessária conseqü- Dir-me-eis, porém: então por que as coi
ência não são número; portanto, o universo e sas se mudam, a matéria particular se força para
ainda uno imóvel. E isto porque compreende outras formas? Respondo-vos que não é muta
tudo, e não sofre outro e outro ser, e não com ção que procura outro ser, mas outro modo de
porta consigo nem em si mutação nenhuma; por ser. E esta é a diferença entre o universo e as
conseqüência, é tudo aquilo que pode ser; e coisas do universo: porque aquele compreen
nele (como eu disse outro dia) o ato não é di de todo o ser e todos os modos de ser, estas
ferente da potência. Se da potência não é di cada uma tem todo o ser, mas não todos os
ferente o ato, é necessário que nele o ponto, a modos de ser; e não pode atualmente ter to
linha, a superfície e o corpo não se diferen das as circunstâncias e acidentes, porque mui
ciem: porque assim tal linha é superfície, assim tas formas são incompossíveis em um mesmo
como a linha, movendo-se, pode ser superfí sujeito, ou por serem contrárias ou por perten
cie; assim, aquela superfície movida é feita cor cer a espécies diversas; assim como não pode
po, porque a superfície pode mover-se e, com haver um mesmo suposto individual sob aciden
seu fluxo, pode tornar-se corpo, é necessário, tes de cavalo e homem, sob dimensões de uma
portanto, que o ponto no infinito não se dife planta e um animal. Além disso, ele compreen
rencie do corpo, porque o ponto, deslizando de todo o ser totalmente, porque extra e além
do ser ponto, se torno linha; deslizando do ser o infinito ser não é coisa que exista, não tendo
linha, se torna superfície; deslizando do ser su extra nem além; destas, portanto, cada uma
perfície, se torna corpo; o ponto, portanto, por compreende todo o ser, mas não totalmente,
que é em potência o ser corpo, não difere do porque além de cada uma há infinitas outras.
ser corpo onde a potência e o ato são uma Entendeis, porém, que tudo está em tudo, mas
mesma coisa. não totalmente e da mesma forma em cada um.
Entendeis como toda coisa é una, mas não da
mesma forma.
4. Tudo está em tudo
e neste sentido tudo é uno
6. Todas as coisas estão no universo
O indivíduo não é diferente, portanto, doe o universo em todas as coisas
divíduo, o simplicíssimo do infinito, o centro da
circunferência. Daí porque o infinito é tudo aqui Não falha, porém, quem diz ser uno o ente,
lo que pode ser, é imóvel; porque nele tudo é a substância e a essência; o qual, como infini
indiferente, é uno; e porque tem toda a gran to e interminado, tanto segundo a substância
deza e perfeição que se possa ter além e além, quanto segundo a duração quanto segundo a
é máximo e ótimo imenso. Se o ponto não dife grandeza quanto segundo o vigor, não tem ra
re do corpo, o centro da circunferência, o finito zão de princípio nem de principiado; porque,
do infinito, o máximo do mínimo, seguramente concorrendo toda coisa em unidade e identida
podemos afirmar que o universo é todo centro, de, digo mesmo ser, vem o ter razão absoluta
ou que o centro do universo está em todo lu e não respectiva. No uno infinito, imóvel, que é
132
Primeira parte - O -H u m an ism o e a R e n a s c e n ç a
Pitágoras,1onde 50 vê mais espinhoso, inculto e por tanto beleza, torna-se presa, vê-se conver
deserto o direito e árduo caminho, e por onde tido naquilo que procurava; e percebeu que dos
este solto os golgos e mastins nas pegadas de cães de seus pensamentos ele mesmo vem a
Feras selvagens, que soo os espécies inteligí ser a desejada presa, porque tendo já encon
veis dos conceitos ideais; que soo ocultos, per trado a divindade em si mesmo, não era mais
seguidos por poucos, visitados por roríssimos, e necessário procurá-la fora de si.
que nõo se oferecem o todos os que os procu
ram. 6/s entre as águas, isto é, no espelho dos Cícrdr. Portanto, bem se diz que o reino
semelhanças, nos obras onde reluz o eficácia da de Deus está em nós,3 e que a divindade habi
bondade 0 esplendor divino, cujas obras são ta em nós por meio do intelecto e da vontade
significadas pelo sujeito das águas superiores transformados.
e inferiores, que estão sob e sobre o firmamen
to; vê o mais belo busto e Face, isto 0, potência Trnsíuo. Cxatamente. Cis, portanto, como
e operação externa que ver possa, por hábito e flctéon, posto como presa de seus cães, per
ato de contemplação e aplicação de mente mor seguido por seus próprios pensamentos, corre
tal e divina, de algum homem ou deus. e dirige os novos passos; renova-se para pro
ceder divinamente e mais agilmente, isto é, com
Cícrdr. Creio que não faça comparação, maior facilidade e com energia mais eficaz, a
mas ponha como no mesmo gênero a apreen lugares mais espessos, aos desertos, à região
são divina e humana quanto ao modo de com de coisas incompreensíveis; oquele que era um
preender, que é diversíssimo, mas quanto ao homem vulgar e comum, torna-se raro e herói
sujeito, que é o mesmo. co, tem costumes e conceitos raros, e experi
menta uma vida extraordinária, fíqui o devo
Trnsíuo. Cxatamente. Diz em púrpura, ram seus muitos e grandes cães: aqui termina
alabastro e ouro, porque aquilo que na figura sua vida segundo o mundo louco, sensual, cego
de corporal beleza é vermelho, branco e louro, e fantástico, e começa a viver intelectualmente;
na divindade significa a púrpura da divina po vive uma vida de deuses, nutre-se de ambrosia
tência vigorosa, o ouro da sabedoria divina, o e embriaga-se de néctar. .
alabastro da beleza divina, na contemplação Giordano Bruno,
da qual os pitagóricos, caldeus, platônicos e Dos heróicos Furores.
outros, do melhor modo que podem, procuram
se elevar. Vê o grande caçador, compreendeu,
o quanto é possível; e se tornou caça: este ca
çador andava para prender e se torna presa,
por causa da operação do intelecto com a qual
converte em si as coisas apreendidas. C a m pa n ella
■ Gênese
■ Características essenciais
■ Desenvolvimento na época moderna
Capítulo nono
Capítulo décimo
CVigaias e f m ç o s g e r a i s
d a re v o lu ç ã o eiervfíj-ica
Os traços
• A ciência é obra dos cientistas, e a ciência experimental
mais salientes encontra confirmação por meio dos experimentos.
da ciência A revolução científica é nova forma de saber, diferente do
moderna saber religioso, astrológico e técnico-artesanal. O "cientista" não
-> § 11.3 é mais o douto que sabe o latim, mas pertence a uma sociedade
científica, a uma academia.
I . y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a :
o q u e m u d a c o m e la
vamente, caem por terra os pilares da cos- pio de inércia; Newton, com sua teoria
mologia aristotélico-ptolemaica: assim, por gravitacional, unificaria a física de Galileu
exemplo, Copérnico coloca o sol no centro com a de Kepler; com efeito, do ponto de
do mundo, ao invés da terra; Tycho Brahe, vista da mecânica de Newton, pode-se di
mesmo sendo anticopernicano, elimina as zer que as teorias de Galileu e de Kepler
esferas materiais que, na velha cosmologia, constituem boas aproximações a certos re
teriam arrastado os planetas com seu movi sultados particulares obtidos por Newton.
mento, e substitui a idéia de orbe (ou esfe Entretanto, durante os cento e cinqüen-
ra) material pela moderna idéia de órbita; ta anos que decorrem entre Copérnico e
Kepler apresenta uma sistematização mate Newton, não é apenas a imagem do mundo
mática do sistema copernicano e realiza a que se transforma. Vinculada a essa trans
revolucionária passagem do movimento cir formação, está a mudança — que também
cular (“ natural” e “ perfeito” , na velha cos foi lenta e tortuosa, mas decisiva — das idéi
mologia) para o movimento elíptico dos as sobre o homem, sobre a ciência, sobre o
planetas; Galileu mostra a falsidade da dis homem de ciência, sobre o trabalho cientí
tinção entre física terrestre e física celeste, fico e as instituições científicas, sobre as re
fazendo ver que a lua é da mesma natureza lações entre ciência e sociedade, entre ciên
que a terra e, entre outras coisas, cria novos cia e filosofia e entre saber científico e fé
fundamentos com a formulação do princí religiosa.
143
Capitulo oitaVO - O n g e n s e. tr a ç a s g e l a i s d a d e v o lu ç ã o c ie n tífic a
A c iê n c ia to rn a -s e
s a b e r e x p e r im e n t a l
sempre vais verdadeiras, mais amplas e po mesmo. O saber de Aristóteles é “pseudo-
derosas, e publicamente controláveis sobre filosofia” e a Escritura não tem a função de
os fatos. nos informar sobre o mundo, mas é palavra
de salvação que apresenta um sentido para
a vida dos homens.
4 a u t o n o m ia d a c i ê n c i a
e m e e la ç ã o à fé
;A c iê n c ia n ã o é s a b e r
d e e s s ê n c ia s
O traço mais característico desse fenô
meno que é a ciência moderna resume-se
precisamente no método, que, por um lado,
Juntamente com a cosmologia aristo-
exige imaginação e criatividade de hipóte télica, a revolução científica leva à rejeição
ses e, por outro lado, o controle público
das categorias, dos princípios e das preten
dessas imaginações. Em sua essência, a ciên
sões essencialistas da filosofia aristotélica.
cia é pública — e o é por questões de méto
O antigo saber pretendia ser saber de essên
do. E a idéia de ciência metodologicamen-
cias, ciência feita de teorias e conceitos defi
te regulada e publicamente controlável que
nitivos. Mas o processo da revolução cien
exige as novas instituições científicas, como
tífica confluirá para a idéia de Galileu, que
as academias, os laboratórios, os contatos
afirma que buscar as essências é empresa
internacionais (basta pensar em todos os
impossível e vã.
epistolários importantes).
A ciência, portanto, assim como ela se
E é com base no método experimen
configura ao fim do longo processo da re
tal que se funda a autonomia da ciência:
volução científica, não está mais voltada
esta encontra suas verdades independente
para a essência ou substância das coisas e dos
mente da filosofia e da fé. Mas tal indepen fenômenos, mas para a qualidade das coi
dência não tarda a se transformar em con
sas e dos acontecimentos de modo objetivo
fronto, que, no “ caso Galileu” , torna-se
e, portanto, sendo comprováveis e quan-
tragédia.
tificáveis publicamente. Não é mais o que,
Quando Copérnico tornou público o
mas o como; não é mais a substância, mas
seu De revolutionibus, o teólogo luterano
sim a função, que a ciência galileana e pós-
André Osiander apressou-se em escrever
galileana passaria a indagar.
um Prefácio sustentando que a teoria co-
pernicana — contrária à cosmologia conti
da na Bíblia — não deve ser considerada
como descrição verdadeira do mundo, mas
muito mais como instrumento para fazer 6 P r e s s u p o s t o s f ilo s ó fic o s
previsões. d a c iê n c ia m o d e rn a
Esta seria também a idéia sustentada
pelo cardeal Belarmino em relação à defesa
do copernicanismo realizada por Galileu. Se o processo da revolução científica é
Lutero, Melanchton e Calvino iriam se opor também um processo de rejeição da filoso
duramente à concepção copernicana. E a fia aristotélica, não devemos em absoluto
Igreja católica processou duas vezes Galileu, pensar que ele careça de pressupostos filo
que seria condenado e forçado à abjuração. sóficos. Os artífices da revolução científica,
Entre outras coisas, estamos diante de um de vários modos, também estiveram ligados
confronto entre dois mundos, entre dois ao passado, referindo-se, por exemplo, a
modos de ver a realidade, entre duas ma Arquimedes e Galeno.
neiras de conceber a ciência e a verdade. Para A mística do sol, tanto hermética como
Copérnico, Kepler e Galileu, a nova teoria neoplatônica, por exemplo, domina a obra
astronômica não é mera suposição mate de Copérnico e a de Kepler, podendo ser
mática nem simples instrumento de cálcu encontrada na de Harvey. E o grande tema
lo, embora útil para melhorar a feitura do neoplatônico do Deus que geometriza e que,
calendário, mas sim uma descrição verda criando o mundo, cria-o imprimindo nele
deira da realidade, obtida através de um mé uma ordem matemática e geométrica que o
todo que não esmola garantias fora de si pesquisador deve procurar, é um tema que
145
Capítulo oitavo - O r i g e n s e t r a ç a s g e r a is da r e v o \ u ç a o científica
atravessa grande parte da revolução cientí remos, tinha seus méritos) não tanto por
fica, como a pesquisa de Copérnico, de Ke- desertar a experiência, mas muito mais por
pler ou de Galileu. tê-la traído, corrompendo as fontes da ciên
cia e despojando a mente dos homens. E,
da mesma forma, os astrólogos reagiram
violentamente ao “ novo sistema do mun
do” . Com as descobertas de Galileu, o mun
7 ) TV Iag ia e c i ê n c i a m o d e r n a
do tornou-se maior, e a quantidade de cor
pos celestes fez-se muito mais numerosa,
de modo imprevisto e de maneira conside
Assim, podemos dizer com certa cau rável. Esse fato convulsionava os funda
tela que o Neoplatonismo constitui a “ fi mentos da astrologia. E os astrólogos se re
losofia” da revolução científica. De todo belaram.
modo, ele representa certamente o pres A propósito do assunto, eis trechos de
suposto metafísico do eixo da revolução uma carta do mecenas napolitano G. B.
científica, vale dizer, da revolução astro Manso, amigo de Porta, a Paulo Beni, leitor
nômica. Entretanto, as coisas são ainda de grego no estúdio de Pádua, que o pusera
mais complexas do que aquilo que expu a par das incríveis descobertas feitas por
semos até agora. Com efeito, a historio Galileu com a luneta: “ [...] escreverei tam
grafia recente e mais atualizada destacou bém de uma áspera querela, que me foi fei
com abundância de dados a relevante pre ta por todos os astrólogos e por grande par
sença da tradição mágica e hermética no te dos médicos, os quais entendem que
interior do processo que levou à ciência mo foram acrescentados tantos novos planetas
derna. aos primeiros já conhecidos que lhes parece
Naturalmente, houve aqueles que, co que, necessariamente, isso arruine a astro
mo Bacon ou Robert Boyle, criticaram a ma logia e derrube grande parte da medicina,
gia e a alquimia com toda a dureza possí já que a distribuição das casas do zodíaco,
vel, ou aqueles que, como Pierre Bayle, as dignidades essenciais dos signos, a quali
investiram contra as superstições da astro dade das naturezas das estrelas fixas, a or
logia. Mas, em todos os casos, a magia, a dem das interpretações, o governo da idade
alquimia e a astrologia são ingredientes ati dos homens, os meses da formação do em
vos do processo que foi a revolução cientí brião, as razões dos dias críticos, bem como
fica. Como também o foi a tradição hermé centenas e milhares de outras coisas que
tica, isto é, aquela tradição que, referindo-se dependem do número setenário dos plane
a Hermes Trismegisto (recordamos que o tas, seriam todos destruídos desde seus fun
Corpus Hermeticum fora traduzido por damentos.” Na realidade, a progressiva
Marsílio Ficino), tinha como princípios fun afirmação da visão copernicana do mundo
damentais o paralelismo entre o macro- reduzirá sempre mais o espaço da astrolo
cosmo e o microcosmo, a simpatia cósmica gia. Mas ela teve de lutar também contra a
e a concepção do universo como um ser astrologia.
vivo. Dizemos tudo isso para mostrar que
No curso da revolução científica, al a ciência moderna, autônoma em relação
guns temas e idéias mágicos e herméticos, à fé, pública nos controles, regulada por
devido ao contexto cultural diferente em que um método, corrigível e em progresso, com
vivem ou revivem, se tornariam funcionais uma linguagem específica e clara e com suas
para a gênese e o desenvolvimento da ciên instituições típicas, foi resultado de um
cia moderna. Mas isso nem sempre era pos longo e tortuoso processo em que se entre
sível ou nem sempre ocorreu. Em suma, a laçam a mística neoplatônica, a tradição
revolução científica avançou por um mar de hermética, a magia, a alquimia e a astro
idéias que nem sempre ou nem sempre com logia.
pletamente mostraram-se funcionais ao de Em suma, a revolução científica não
senvolvimento da ciência moderna. Assim, foi marcha triunfal. E quando relaciona
por exemplo, enquanto Copérnico se refe mos e pesquisamos seus filões “ racionais” ,
ria à autoridade de Hermes Trismegisto não devemos deixar de atentar também
(além da autoridade dos neoplatônicos) para para as eventuais contrapartidas místicas,
legitimar seu heliocentrismo, já Bacon cen mágicas, herméticas e ocultistas desses
sura Paracelso (que, no entanto, como ve filões.
146
Segunda pãTte - j A r e v o lu ç ã o c ie n tífic a
II. A f o r m a ç ã o d e n o v o tip o d e s a b e r ,
q u e r e q u e r a u n iã o
d e c iê n c ia e té c n ic a
arsenais e nos canteiros de obras de Veneza, Mas ela surgiu e se desenvolveu também
mas que, ao contrário, ele a ensinou a eles. porque encontrou toda uma base tecnoló
E, de fato, não foram os técnicos do arsenal gica, toda uma série de máquinas e instru
que criaram o princípio de inércia. mentos que constituíam quase que uma ba
Claro, Galileu ia ao arsenal e, como se natural de testes, oferecendo técnicas de
ele próprio diz, o colóquio com os técnicos comprovação e talvez até propondo novos,
do arsenal “ muitas vezes ajudou-me na in profundos e fecundos problemas. Galileu
vestigação da razão de efeitos não apenas não aprendeu a dinâmica com os técnicos
maravilhosos, mas também recônditos e do arsenal, assim como, mais tarde, Darwin
quase imprevistos” . As técnicas, os acha não aprenderá a teoria da evolução com os
dos e os processos presentes no arsenal aju criadores de animais. Mas, da mesma for
daram a reflexão teórica de Galileu. E pro ma como Darwin falava com os criadores,
puseram novos problemas para ela: “ É também Galileu visitava o arsenal. E esse
verdade que, por vezes, até deixou-me con fato não é de somenos importância. O téc
fuso e desesperado de saber como penetrar nico é aquele que sabe que e, amiúde, sabe
e seguir aquilo que, longe de toda opinião também como. Mas é o cientista que sabe
minha, o sentido demonstra-me ser verda por que. Em nossos dias, um eletricista sabe
deiro.” muitas coisas sobre as aplicações da corrente
Foram os oculistas que descobriram o elétrica e sabe como implantar um sistema,
fato de que duas lentes, dispostas de modo mas que eletricista conhece por que a cor
adequado, aproximam as coisas distantes, rente funciona do modo como funciona ou
mas não foram os oculistas que descobri sabe alguma coisa sobre a natureza da luz?
ram por que as lentes funcionam assim. E
não foi nem mesmo Galileu. Para isso, foi
preciso Kepler: foi ele quem compreendeu
as leis de funcionamento das lentes. Como 3 tA c iê n c ia m ocl& rna
também não foram os técnicos que escava eewne t e o r ia e p r á t i c a
vam poços que compreenderam por que a
água das bombas não subia além dos dez
metros e trinta e seis centímetros. Foi preci Em seus Discursos acerca de duas no
so Torricelli para demonstrar que a altura vas ciências, Galileu escreve: “Parece-me que
máxima de trinta e quatro pés (= 10,36 a prática freqüente do vosso famoso arsenal,
metros) para a coluna d’água no interior do senhores venezianos, põe um amplo campo
cilindro revela simplesmente a pressão total de filosofar aos intelectos especulativos,
da atmosfera sobre a superfície do próprio particularmente aquela parte que envolve a
poço. mecânica, à medida que, aqui, toda sorte de
E quantos exímios navegantes não ti instrumentos e máquinas é posta em movi
veram de lutar contra as altas e baixas ma mento por grande número de artífices, entre
rés? E, no entanto, só com Newton chegou- os quais, pelas observações feitas por seus an
se a uma boa teoria das marés (embora tecessores e por aquelas que, por sua própria
Kepler já a houvesse roçado; note-se, po percepção, sem cessar eles próprios conti
rém, que Galileu dera-lhe explicação equi nuam fazendo, forçosamente encontramos
vocada). Eis, portanto, duas teses sobre o alguns muito peritos e de finíssimo discur
fato da reaproximação entre técnica e sa so.” E entre estes “homens muito peritos e de
ber, entre artesão e intelectual, fenômeno finísismo discurso” devemos lembrar tam
típico da revolução científica. Pois bem, nós bém Brunelleschi, Ghiberti, Piero delia Fran-
pensamos que essa aproximação, até mes cesca, Leonardo, Cellini; como também Leon
mo a fusão da técnica com o saber, consti Battista Alberti, Valtúrio de Rímini (autor
tuem a própria ciência moderna. Uma ciên de um livro sobre máquinas militares), Bi-
cia que se baseia no experimento, por si ringuccio (autor de uma Pirotecnia) etc.
mesma, exige as técnicas de comprovação, A ciência é obra dos cientistas. A ciên
as operações manuais e instrumentais que cia experimental convalida-se através dos
servem para controlar uma teoria, sendo as experimentos. Estes se realizam mediante
sim saber unido à tecnologia. técnicas de teste resultantes de operações
Mas, então, quem criou a ciência? A res manuais e instrumentais com e sobre os
posta mais plausível parece-nos a de Koyré: objetos. A revolução científica é precisamen
foram os cientistas que criaram a ciência. te aquele processo histórico do qual decor-
........ Segundei parte - y \ r e v o lu ç ã o cieniífiaa
re a ciência experimental, vale dizer, uma cia moderna acompanham-se de súbito cres
nova forma de saber, nova e diferente do cimento da instrumentação.
“ saber” religioso, do “ metafísico” , do “ as No princípio do Quinhentos a instru
trológico e mágico” e também do “técnico mentação reduzia-se a não muitas coisas li
e artesanal” . gadas à observação astronômica e ao le
A ciência moderna, assim como se con vantamento topográfico; em mecânica,
figurou ao fim da revolução científica, não usavam-se alavancas e polias. No entanto,
é mais o saber das universidades, mas tam logo depois, no curso de poucas décadas,
bém não pode ser reduzida tampouco à surgem o telescópio de Galileu (1610), o mi
prática dos artesãos. Trata-se precisamen croscópio de Malpighi (1660), de Hooke
te de um novo saber que, reunindo teoria e (1665) e de van Leeuwenhoek; o pêndulo
prática, por um lado leva as teorias ao con cicloidal de Huygens é de 1673; a descrição
tato com a realidade e as torna públicas, que Castelli fez do termômetro a ar de Ga
controláveis, progressivas e fruto de cola lileu é de 1638; o termômetro a água de Jean
boração, e, por outro lado, leva para den Rey é de 1632 e Magalotti inventou o ter
tro do saber e do conhecimento (conce mômetro a álcool em 1666; o barômetro de
bendo-os como banco de prova das teorias Torricelli é de 1643; Robert Boyle descre
e como sua aplicação) muitos achados das veu a bomba pneumática em 1660.
“ artes mecânicas” e artesanais, conferin Pois bem, o que interessa em uma his
do a estas um novo status epistemológico tória das idéias não é tanto o elenco dos ins
antes até do que social. E é óbvio que a gê trumentos (que poderia continuar), mas
nese, o desenvolvimento e o sucesso dessa muito mais a compreensão de que, no curso
nova forma de saber anda de braços dados da revolução científica, os instrumentos
com nova figura de douto ou sábio e tam científicos tornam-se parte integrante do
bém com novas instituições, dedicadas pelo saber científico: não existe o saber científi
menos ao controle das várias partes desse co separado e, ao seu lado, os instrumen
saber em formação. O “ cientista” não é tos; os instrumentos estão dentro da teoria,
mais o douto que sabe latim, que leu os li tornando-se teorias eles próprios. Em uma
vros antigos ou ensina em uma universida nota manuscrita do acadêmico experimen
de. E muito mais aquele que pertence a uma tal Vicente Viviani, encontramos o seguin
sociedade científica ou a uma academia, as te: “Perguntar a Gonfia (um hábil soprador
quais, junto com observatórios, laborató de vidro): qual dos licores está mais pronto
rios e museus, constituem as novas insti a fervilhar com o calor, isto é, a receber o
tuições do saber, fora e por vezes contra as calor do ambiente.” E, mais adiante, vere
Universidades. mos a corajosa operação de Galileu, conse
E, no entanto, apesar dessas rupturas, guindo, através de um mar de obstáculos,
não devemos nos esquecer dos elementos de levar um instrumento de “vis mecânicos”
continuidade que ligam a evolução científi como a luneta para dentro do saber e usá-lo
ca ao passado. Trata-se do retorno a auto com objetivos cognoscitivos, embora ini
res e textos que podiam contribuir para a cialmente o divulgasse para finalidades prá
nova perspectiva cultural: Euclides, Arqui- ticas, como as militares. E, por seu turno,
medes, Vitrúvio, Heron e outros. na introdução à primeira edição dos Princí
pios, Newton se opôs à distinção entre “ me
cânica racional” e “ mecânica prática” , de
fendida pelos “ antigos” .
4 O s insfeum em tos c ie n t ífic o s Mas vamos nos aprofundar um pou
c o m o p a r t e in t e g r a n t e
co mais na teoria ou nas teorias dos instru
mentos que podem ser detectadas no inte
d o s a b e r c ie n t ífic o rior da revolução científica. A primeira
idéia sobre os instrumentos que aflora nos
escritos de alguns grandes expoentes da
O reencontro do elo entre teoria e prá revolução científica é a visão dos instru
tica, isto é, entre saber e técnica, está vincu mentos como ajuda e potencialização dos
lado a (e, em parte, se identifica com) outro sentidos. Galileu afirma que, no uso das má
fenômeno evidente criado pela revolução quinas antigas, como a alavanca e o plano
científica: estamos falando do fenômeno pe inclinado, “ a maior contribuição que nos
lo qual o nascimento e a fundação da ciên trazem os instrumentos mecânicos é a que
149
Capitulo oitavo - Origens e traços gerais da revolução científica
diz respeito ao movente (...), como quan uso de instrumentos óticos como o prisma
do nos servimos do curso de um rio para ou as lâminas finas acompanha-se de refle
mover moinhos, ou da força de um cavalo xões — por exemplo, em Newton — que
para criar aquele efeito para o qual não tendem a considerar o instrumento não tan
bastaria a força de quatro ou seis homens” . to como potencialização dos sentidos, mas
Portanto, o instrumento aparece aqui como muito mais como um meio em condições de
ajuda aos sentidos. No que se refere à lu- libertar dos enganos dos olhos. Nesse senti
neta, Galileu também escreve que “ é coi do, portanto, o instrumento aparece como
sa belíssima, que, além de se ver, é atra meio que, levando-nos ao interior dos obje
ente por se poder admirar o corpo lunar, tos (e não somente a mais objetos), garante
distante de nós quase sessenta semidiâme- maior objetividade contra os sentidos e os
tros terrestres, assim tão de perto, como se seus testemunhos.
distasse de nós somente duas dessas me Mas as coisas não ficam por aí, já que,
didas” . E Hooke depõe no mesmo sentido, na importante polêmica entre Newton e
quando afirma que “ a primeira coisa a Hooke sobre a teoria das cores e sobre o
fazer no que se refere aos sentidos é uma funcionamento do prisma, aparece outro te
tentativa de suprir sua deficiência com ins ma da teoria dos instrumentos (um tema
trumentos, isto é, acrescentar órgãos arti destinado a desempenhar um papel de pri
ficiais aos naturais” . meira ordem na física contemporânea), isto
Falando de instrumentação científica, é, a questão do instrumento perturbador
não se pode deixar de lado o fato de que o do objeto de pesquisa, e, conseqüentemen-
P H I L O S O P H U
N A T U R A L I S
P R I N C I P I A
M A T H E M A T I C A
A U C T O R E
1SAACO NEWTONO,
EQ U IT E A urato .
L d i t i o S e c u n d a A u c t i o k . e t E me moat i ok .
te, a temática de como poder controlar — que o prisma “ analisa” à medida que “ mo
e o quanto é possível fazê-lo — o instru dula” .
mento perturbador. Hooke apreciava os ex Assim, em conclusão, no curso da re
perimentos de Newton com o prisma por volução científica, os instrumentos entram na
sua agudeza e elegância, mas o que ele con ciência com função cognoscitiva: em suma,
testava era a hipótese de que a luz branca a revolução científica sanciona a legalidade
pudesse ter uma natureza composta e, de dos instrumentos científicos. E se por outro
todo modo, que essa pudesse ser a única lado alguns instrumentos são concebidos
hipótese justa. Hooke não pensava que a como potencialização dos nossos sentidos,
cor fosse uma propriedade original dos rai por outro lado devemos constatar a emer
os. Para ele, a luz branca era produto do gência de dois outros temas: o do instrumen
movimento das partículas que compõem o to contraposto ao sentido e o do instrumento
prisma. E isso significa que a dispersão das perturbador do objeto sob investigação.
cores seria o resultado de uma perturba Dois temas que retornarão com freqüência
ção operada pelo prisma. Hoje, diriamos no desenvolvimento posterior da física.
CSapí+ulo n o n o
y \ r e v o lu ç ã o cieu-frfica
e a t r a d i ç ã o m ã g ic o -K e r m e tic a
I. PVeservça e rejeição ~:
da t r a d i ç ã o m á g i c o - K e r m é f i c a
mético e da tradição mágica no processo da ções? Ou que uma ordem cumprida uma
revolução científica, é um fato indubitá- hora após o estabelecido faz falir certos pro
vel. Todavia, podemos ver que, enquanto al jetos trabalhosamente elaborados? Ou que
gumas dessas idéias tornam-se funcionais a morte de um só homem pode mudar a
para a criação da ciência (basta pensar no face de uma situação e que, às vezes, é por
seguinte: o Deus que geometriza o neoplato- uma besteira, a mais fortuita do mundo,
nismo; a natureza simbolizada pelo núme que não se vencem batalhas cuja perda é
ro dos pitagóricos; o culto neoplatônico e seguida por uma infinidade de males? Co
hermético ao sol; a idéia kepleriana de har mo se pode pretender que os átomos de um
monia das esferas; a idéia do contagium de cometa, revoluteando pelo ar, produzam
Fracastoro; a concepção do corpo humano todos esses efeitos?” Na opinião de Bayle,
como um sistema químico ou a idéia da es as regras da astrologia são simplesmente
pecificidade das doenças e dos respectivos “ miseráveis” .
remédios, concepção e idéia propostas e Duríssima foi a crítica de Bacon con
defendidas na iatroquímica de Paracelso, en tra o pensamento mágico. Na opinião de
tre outras coisas), por outro lado, o proces Bacon, a ciência é feita de contribuições in
so da revolução científica, levando à ma dividuais que, inserindo-se no patrimônio
turação, na práxis e na teoria, aquela forma cognoscitivo da humanidade, servem ao seu
única de saber que é a ciência moderna, pro sucesso e bem-estar. Por isso, Bacon não
gressivamente distingue, critica e rejeita o condena os “ nobres” fins da magia, da as
pensamento mágico. Assim, por exemplo, trologia e da alquimia, mas rejeita decidi
Kepler expressa uma lúcida consciência a damente seu ideal do saber, pertencente a
propósito do fato de que, enquanto o pen um indivíduo iluminado e, portanto, estra
samento mágico revolve-se no redemoinho nho ao controle público da experiência e,
dos “ tenebrosos enigmas das coisas” , es conseqüentemente, arbitrário e obscuro. À
creve ele, “ eu, ao contrário, esforço-me por genialidade sem controle, Bacon contrapõe
levar à clareza do intelecto as coisas envol o caráter público do saber; ao indivíduo ilu
tas em obscuridades” . A tenebrosidade, minado, uma comunidade científica que
aliás, para Kepler, é a característica do pen opera com normas reconhecidas; à obscuri
samento dos alquimistas, dos herméticos e dade, a clareza; à síntese apressada, a cau
dos seguidores de Paracelso, ao passo que tela e o paciente controle.
o pensamento dos “ matemáticos” se carac
teriza por sua clareza. Boyle também se
lançará contra Paracelso. E, embora por
dever tivesse de fazer horóscopos, Galileu 2 A u n iã o e s t r e if a
mostra-se totalmente estranho ao pensamen e n tr e a s t r o l o g i a ;
to mágico em seus escritos. E o mesmo vale
m a g ia e c i ê n c i a m o d e r n a
para Descartes.
Em seus Pensamentos diversos sobre o
cometa (1682), Pierre Bayle (1647-1706)
ataca vigorosamente a astrologia, escreven No contexto das idéias do Quinhen
do: “ Afirmo que os presságios específicos tos, é impossível delimitar uma disciplina
dos cometas, não se apoiando em outra coisa científica em relação à outra, como de cer
além dos princípios da astrologia, não po ta forma se tornou possível em seguida.
dem ser senão extremamente ridículos (...). Na cultura do Quinhentos, nem sempre é
Sem precisar repetir tudo o que já disse so possível traçar muitas linhas de separação
bre a liberdade do homem (e que seria sufi entre as idéias científicas de um lado e as
ciente para decidir essa questão), como é teorias filosóficas, mágicas e astrológicas do
possível alguém imaginar que um cometa outro. A Renascença pôs entre a Idade Mé
seja a causa de guerras que explodem no dia e a época moderna, freqüentemente vin
mundo um ou dois anos depois que ele de culando-se ao passado, idéias da tradição
sapareceu? E como podem os cometas ser a neoplatônica, idéias derivadas da cabala
causa da prodigiosa variedade de aconteci e da tradição hermética e idéias mágicas e
mentos que se registram no curso de uma astrológicas. Trata-se de idéias que a histo
longa guerra? Não se sabe, talvez, que a riografia mais atualizada reconhece serem
interceptação de uma carta pode fazer falir um ingrediente que não pode ser elimina
todo o plano de uma campanha de opera do da revolução científica: onde vemos que
154
Segunda parte - y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a
toda disciplina ou conjunto de teorias (em sas que estão sobre a terra” . Essa estreita
sentido moderno) tem a sua contrapartida união entre astrologia e astronomia que en
ocultista. Naturalmente, um dos resultados contramos na antiguidade atravessa a Ida
mais maduros da revolução científica seria de Média e pode ser encontrada no perío
a progressiva (mas, de todo modo, nunca do do humanismo e da Renascença e, por
total e definitiva) expulsão das idéias má- vezes, até mais tarde. O astrólogo é aquele
gico-hermético-astrológicas do âmbito da que, através da observação dos astros, com
ciência. Entretanto, há outro lado da ques pila as “ efemérides” , ou seja, os quadros
tão: a ciência moderna teria surgido sem a onde são especificadas as posições que os
“ ruptura” que essas idéias efetuaram em rela diversos planetas assumem dia após dia.
ção ao mundo medieval? Mais adiante vere Com base em tais posições e configurações
mos de que modo a revolução astronômica dos astros, o astrólogo tratava “temas de
encontrará sua garantia filosófica no plato- nascimento” , isto é, fixava quais astros es
nismo e no neoplatonismo. E o programa tavam mais próximos de uma pessoa na
de Paracelso, que via o corpo humano co data do seu nascimento, para depois esta
mo sistema químico, não foi útil e fecundo belecer sua influência positiva ou negativa
para a ciência? Nem sempre os princípios sobre a pessoa, da qual fazia-se assim o ho
não-científicos, as fantasias “absurdas” e os róscopo (o hodierno termo “ influência”
sistemas que parecem nascer do ar consti encontra aí a sua origem). No Quatrocen
tuem obstáculos para o desenvolvimento tos e no Quinhentos foi grande o sucesso
da ciência. Existem idéias não-científicas da astrologia judiciária, ou seja, da astro
que se revelam fecundas para a ciência, in logia voltada para revelar o juízo dos as
fluindo positivamente em seu desenvolvi tros sobre as pessoas e também sobre os
mento. E, embora uma das características acontecimentos. Em suma, o astrólogo via
da ciência moderna seja sua linguagem cla nas conjunções dos astros as condições de
ra, específica e controlável, não se exclui saúde e o destino das pessoas, mas tam
que idéias confusas possam ser úteis na gê bém as perspectivas da estação, as revoltas
nese de algumas teorias científicas. Mesmo populares, a sorte dos senhores reinantes,
em nossos dias, há quem evidencie os mé das políticas e das religiões, as guerras fu
ritos da confusão; na realidade, pode ocor turas. Como era o astrólogo que via e sa
rer, às vezes, que a clareza seja o último bia dessas coisas tão importantes, não ha
refúgio de quem não tem nada a dizer. As via príncipe ou poderoso que não tivesse o
sim escrevia o filósofo norte-americano seu astrólogo na corte.
Charles S. Peirce por volta de fins do Oito
centos: “ Dêem-me um povo cuja medicina
originária não esteja misturada com a ma
gia e os encantamentos, e eu lhes mostrarei 4 Tdsiogrvomomia,
um povo privado de qualquer capacidade
científica.”
quiromamcia
e metoposcopia
eram ainda a quiromancia (previsão do fu seus efeitos e suas consequências. Desse mo
turo de uma pessoa pelas linhas da mão) e a do, se a astrologia é a ciência que prevê o curso
metoposcopia (previsão do futuro pelas ru dos eventos, a magia é a ciência da inter
gas da fronte). venção sobre as coisas, os homens e os acon
tecimentos, a fim de dominar, dirigir e trans
formar a realidade segundo nossa vontade.
A magia é o conhecimento dos modos
5 tSarac+erísficas da mag ia
pelos quais o homem pode agir para levar
as coisas para o sentido por ele desejado.
Desse modo, no mais das vezes, ela se con
O paralelismo entre macrocosmo e mi figura como ciência que envolve o saber as
crocosmo, a simpatia cósmica e a concepção trológico: a astrologia indica o curso dos
do universo como ser vivo são princípios acontecimentos (favoráveis e desfavoráveis)
fundamentais do pensamento hermético, e a magia apresenta os instrumentos de in
relançado por Marsílio Ficino com a tradu tervenção sobre esse curso. A magia inter
ção do Corpus Hermeticum. Com base no vém para mudar as coisas que estão “escri
pensamento hermético, não há qualquer dú tas no céu ” e que foram lidas pela astrologia.
vida a respeito da influência dos aconteci Evidentemente, a intervenção sobre o curso
mentos celestes sobre os eventos humanos e dos acontecimentos pressupõe o conheci
terrestres. Mas, como o universo é um ser vivo, mento desse curso. Daí ter-se imposto e al
em que cada parte depende da outra, toda cançado grande sucesso a figura do astrólo-
ação e intervenção humana também têm go-mago, o sábio que domina as estrelas.
Hermes Trismegisto,
personagem mítico
a quem se atribuía a redação
do conjunto de escritos conhecido
como Corpus Hermeticum.
156
Segunda pavte - y \ r e v o lu ç ã o cien+vfica
---- --- ~
~~ II. T^eucKlin ....... '
e a tradição cabalistica.
yXgripa: ^magia branca^ e ^magia negra "
mundos que, segundo a cabala e como que ceira é a magia religiosa ou cerimonial, vol
riam também Pico e Reuchlin, são o mundo tada para manter sob controle e pôr em xe
dos elementos, o mundo celeste e o mundo que todas as formas demoníacas. A magia
inteligível, e, como microcosmo, conhece a natural e a magia celeste eram chamadas de
força espiritual que perpassa e une o mun magia branca, enquanto que a magia reli
do, utilizando-se dela para realizar ações giosa ou cerimonial era conhecida por ma
miraculosas. gia negra ou magia negromântica.
Eis, portanto, a magia, que é “ a ciên Ademais, para Agripa, “ o princípio e
cia mais perfeita” , pois, com efeito, torna o a chave de todas as operações da magia”
homem senhor das forças ocultas que agem consistiam na dignificação do homem, “ dig-
no universo. E a ciência do mago diz respei nificação” pela qual o homem se afasta da
to tanto ao mundo dos elementos como ao carne e dos sentidos e, através de súbita ilu
mundo celeste e ao mundo inteligível. Con- minação, eleva-se àquela virtude divina que
seqüentemente, Agripa fala de três tipos de o faz conhecer as operações secretas. E essa
magia. A primeira é a magia natural, que sabedoria revelada deve permanecer secre
realiza ações prodigiosas servindo-se do co ta: o mago tem a obrigação de não revelar a
nhecimento das forças ocultas que animam ninguém “ nem o lugar, nem o tempo, nem a
os corpos materiais. A segunda é a magia meta perseguida” . O sábio iluminado não
celeste, que é o conhecimento e o controle deve se confundir com os tolos e, por isso,
das influências exercidas pelos astros. A ter escreve Agripa, “ usamos um estilo capaz de
í * ' H E N R I C I ^
CORNELII AGRI P-
PAEA» NETTESHEYMA'CONEIL1IS
SArchiuisInditiaráfacratC AE-
S A R E A E Maieftatis:Dc
O C C V L T A PHI -
1 OSOPHIA
LibriTrcs.
5*
confundir o tolo, mas que é facilmente com cos. Trata-se de um ideal de saber diferente
preendido pela mente iluminada” . e bem distante do ideal da ciência moderna.
O ideal do saber de Agripa não é, em Durante os últimos anos de sua vida, Agripa
absoluto, o de um saber público, claro e condenou o saber e exaltou a fé, no De
controlável. É o ideal de um saber privado, vanitate et incertitudine scientiarum (1527).
oculto e que deve ser ocultado, sem um M as, dois anos antes de sua morte, fez
método e uma linguagem rigorosos e públi republicar o seu De occulta philosophia.
III. O p ^ o g i^ a m a ia + ^ o q u ím ic o
d e. T -^ a ^ a c e ls o
doenças e dos relativos remédios, a justifi de bons filhos (teorias controláveis). Para-
cação dessa idéia, do ponto de vista da ciên celso não deixou de ser mago. Sua magia,
cia moderna, está bem distante da ciência. porém, continha projetos cognoscitivos “po
Como acontece freqüentemente na história sitivos” : sua iatroquímica pretende revelar
da ciência, também aqui uma idéia metafí os processos secretos da natureza, mas tam
sica revela-se como a mãe má (incontrolável) bém pretende completá-los artificialmente.
n n
I V . T .* c s m agos italianos:
F é a c a s t o r o , ( S a p d a n o c Delia Do Ha
• Outro médico mago que não devemos esquecer é Jerônimo Cardano (1501
1576). Foi autor de um tratado de álgebra, Ars Magna (1545), onde expõe o méto
do resolutivo das equações de terceiro grau, descoberto na ver
dade por seu rival Tartaglia.
Cardano: Já matemático famoso, treze anos depois de Ars Magna,
autor de obras Cardano publica um livro sobre metoposcopia, ou seja, sobre a
de matemática interpretação das rugas da fronte. Seu De subtilitate constituiu
e de
metoposcopia uma espécie de "enciclopédia doméstica" (da qual é possível vir
^§2 a saber como se selecionam os fungos, como se recuperam os
navios afundados, como se originam as montanhas, como é feita
a junção universal conhecida como "junta cardânica" etc.).
Um documento excepcional é a autobiografia De vita própria liber (1575).
Cardano também é autor de um livrinho de preceitos para seus filhos, um
dos quais será justiçado por assassínio, livrinho chamado: Praeceptorum filiis
liber.
A Magia naturalis de Delia Porta teve sucesso estrepitoso: basta pensar nas
23 edições do original latino e nas traduções italiana, francesa, espanhola, holan
desa e também árabe. Eis alguns dos títulos dos 23 livros da obra, verdadeira e
própria enciclopédia: Cruzamento dos animais', Métodos para produzir novas plan
tas; As distilações; Os ungüentos; O tratamento do ferro; A caça; A cosmética fe
minina.
dendo o sono (...)• Rezei então a Deus para qualificará Paracelso como um monstro que
que tivesse misericórdia de mim: com efei acasala fantasmas e Agripa como um bufão
to, corria o risco de que aquele não dor trivial.
mir sem interrupção me levasse à morte
ou à loucura (...)• Supliquei-lhe então que
me fizesse morrer, coisa que é concedida a
todos os homens, e fui estender-me sobre 3 Cãiamb>at+ista D e l i a P o r t a ,
o leito” . Tendo adormecido, Cardano ou ervtre ó t ic a e m a g ia
viu uma voz que lhe dizia para levar à boca
a esmeralda que carregava ao pescoço. Ao
fazê-lo, logo a dor passou, bem como a O napolitano Giambattista Delia Por
penosa recordação. E isso acontecia sem ta (1535-1615) era um cultor de ótica, au
pre que levava a esmeralda à boca. Mas, tor de De refractione, obra dedicada preci
relata, “ quando comia ou dava aulas, não samente à ótica, e de um livro que ficou
podendo usufruir da ajuda da esmeralda, muito famoso, a Magia naturalis sive de
retorcia-me em dores a ponto de suar mor miraculis rerum naturalium (1558). Nesse
talmente.” livro ele distingue a magia diabólica (a ma
Cardano conta ainda que aprendeu gia que se serve das ações dos espíritos imun
miraculosamente o latim, o grego, o fran dos) da magia natural, que é a perfeição da
cês e o espanhol. Diz que um zumbido nos sabedoria, o ponto mais alto da filosofia
ouvidos o advertia se alguém estivesse natural.
tramando contra ele. E escreve ainda: “En Pode-se ter uma idéia do que era essa
tre os acontecimentos naturais de que fui obra — que teve vinte e três edições do ori
testemunha, o primeiro e mais excepcio ginal latino, dez traduções italianas, oito
nal foi o de ter nascido nesta nossa época, na francesas e outras traduções espanholas,
qual pela primeira vez se conheceu todo o holandesas e até árabes — com base nos tí
mundo.” tulos dos seus vinte livros: 1) Causas das
Célebre como médico, Cardano, em coisas; 2) Cruzamento dos animais; 3) M o
1552, chegou a ser até mesmo chamado para dos de produzir novas plantas; 4) A admi
consulta na Escócia, a fim de curar o arce nistração da casa; 5) Transformação dos
bispo Hamilton que, após os tratamentos, metais; 6 ) Adulteração das pedras precio
ficou curado. Durante a sua viagem para a sas; 7) As maravilhas do ímã; 8) Experiên
Escócia, Cardano conheceu em Paris o mé cias médicas; 9) Cosmética feminina; 10) As
dico Jean Fernel (que seria criticado por destilações; 11) Os ungüentos; 12) O fogo
Harvey por causa de sua teoria dos espíri artificial; 13) O tratamento do ferro; 14) A
tos do organismo) e o anatomista Sylvius. culinária; 15) A caça; 16) Os cifrários; 17)
Em Zurique, encontrou-se com o naturalis As imagens óticas; 18) A mecânica; 19)
ta Conrad Genser. Em Londres, conheceu o Aerologia (De pneumaticis); 20) Diversos
rei Eduardo VI. (Chãos). Em suma, uma verdadeira enciclo
Cardano também é autor de um livrete pédia.
de preceitos para os seus filhos, um dos Na realidade, Delia Porta “ preferia
quais, como dissemos, seria executado por seguir sua paixão pelos conhecimentos,
assassínio. Nesse Praeceptorum filiis liber mas não se esquecendo nunca de que es
encontramos conselhos como os seguintes: tava diante de um campo de paixões e in
“ Não faleis aos outros de vós mesmos, de teresses, advertido que era pela tradição,
vossos filhos, de vossas mulheres. Não vos que lhe fornecia estímulos para suas pes
acompanheis de estranhos pelas vias públi quisas e para a sociedade que o cercava,
cas. Se estiverdes falando com um homem bem como pelos consensos, as expectati
mau ou desonesto, não o olheis na face, mas vas e as desconfianças que sua obra susci
nas mãos.” tava (...). Certamente, ao fazer ciência, ele
Bacon atacará o ideal de saber defen tinha em mente muitas coisas: o útil e o
dido e professado por Cardano (um saber supérfluo, o absolutamente verdadeiro e
de iniciados e cheio de maravilhas e mila o vagamente provável, o sucesso de pú
gres). Em nome de um saber público, claro blico e o tribunal da Inquisição, a tradi
e que cresce por colaboração, Bacon falará ção mágica e os experimentos de Arqui-
de Cardano como de um esforçado cons medes (...). Na síntese racional operada
trutor de teias de aranha; da mesma forma pela ciência moderna, não encontraremos
........... Segunda patte - jA r e v o lu ç ã o c ie n tífic a
mais muitas dessas referências (...)• Delia tudo o que aconteceu nesse meio tempo,
Porta, portanto, demorou-se no palco da particularmente pelo que foi a caminhada
nossa vida, das nossas paixões e da nossa da ciência depois dele. O que não faz com
morte. Isso fez com que, durante séculos, que sua obra não possa mais suscitar nos
ele parecesse um cientista parado no tem sa curiosidade, também por seus aspectos
po. E esse juízo se tornou irreversível por arcaicos” (L. Muraro).
íS a p ítu lo d e c i m o
D e íS o p em ico a e r
vam a avaliar a sua posição no esquema nos parece mais distante da nossa ciência
cósmico de modo bem diferente dos seus que a visão de mundo de Nicolau Copér-
antecessores, que viam a terra como o úni nico” . No entanto, sem a concepção de
co centro focal da criação divina” (Th. S. Copérnico, “ a nossa ciência nunca teria
Kuhn). existido” (A. Koyré). Como também não
Ao deslocar a posição da terra, Co- teria existido, para usar as palavras de An
pérnico também retirou o homem do cen tônio Banfi, “ o homem copernicano” , isto
tro do universo. Em seu conhecido livro é, o homem “ que se libertou da ilusão de
A revolução copernicana (1957), escreve estar no centro do universo e, com ela, li
ainda Kuhn: “ Sua doutrina planetária e a bertou-se também de muitos outros mitos
concepção a ela ligada, de um universo com os quais havia tecido seu saber” (F.
centrado no sol, foram instrumentos da Barone). Esse é o sentido pelo qual Copér
passagem da sociedade medieval para a mo nico, ainda hoje, representa a inovação ra
derna sociedade ocidental, enquanto atin dical e revolucionária. Com efeito, mesmo
giam (...) a relação do homem com o uni nos dias de hoje, ainda é comum usar a
verso e com Deus. Desenvolvida com uma expressão “ revolução copernicana” para
revisão estritamente técnica, de alto nível qualificar uma grande e significativa mu
matemático, da astronomia clássica, a teo dança. E não devemos nos esquecer de que,
ria copernicana tornou-se um centro focal quando Kant avaliava a profunda transfor
das terríveis controvérsias no campo reli mação que ele próprio produziu no âmbito
gioso, filosófico e das doutrinas sociais da teoria do conhecimento, acabou falan
que, nos dois séculos posteriores à desco do dela como de uma “ revolução coper
berta da América, fixaram a orientação do nicana” .
pensamento europeu.” Em suma, a revo
lução copernicana foi também uma revo
lução no mundo das idéias, a transforma
. A m te e p e e + a çã o
ção de idéias inveteradas que o homem
tinha do universo, de sua relação com ele e ir\s+eumer\talis+a d a o b r a
do seu lugar nele. Nos dias de hoje, “ nada d e t S o p é r n ic o
tos” . E, além do fato de que Copérnico con da em outro, a teoria do Almagesto já ha
sidera-os “ tão incertos sobre os movimen via proliferado em uma dezena de sistemas,
tos do sol e da lua que não conseguem nem todos “ ptolemaicos” , e o seu número au
mesmo explicar e observar o comprimento mentava rapidamente com a multiplicação
constante do ano estacionai” , há ainda um dos astrônomos tecnicamente competen
fato mais grave, o de que, “ ao determinar tes. A situação tornara-se desastrosamente
o movimento desses planetas e dos outros insuportável. No século XIII, Afonso X de
cinco, eles não usam os mesmos princípios clarou que, se Deus o houvesse consulta
nem as mesmas demonstrações adotadas do quando estava criando o universo, ele
para as revoluções dos movimentos apa teria podido dar-lhe bons conselhos. E Do
rentes.” Assim, enquanto alguns usam o sis mingos M aria Novara expressou a idéia
tema aristotélico das esferas homocêntricas de que um sistema tão confuso como o pto
(defendido, por exemplo, por Fracastoro e lemaico não podia, por natureza, ser ver
seguidores), outros usam excêntricos e dadeiro. Copérnico, por seu turno, viu a
epiciclos. Desse modo, havia uma plura astronomia de sua época em um estado
lidade de teorias que não deixava ninguém monstruoso. Naturalmente, a crise do sis
tranqüilo. tema ptolemaico se tornara mais aguda
M as não é só isso: enquanto os aristo- por causa de diversos fatores: as críticas
télicos não acertam em muitas previsões, dos medievais à cosmologia aristotélica,
“ não alcançando integralmente seus obje a afirmação do Neoplatonism o, a exi
tivos” , os outros, os ptolemaicos, alcançam gência de reforma do calendário. No en
maior sucesso em suas previsões, mas pa tanto, as maiores lacunas estavam nas
gando um preço muitíssimo elevado. Com previsões não confirmadas, apesar do ins
efeito, nota Copérnico, eles “ foram (...) for trumental teórico crescer cancerosamente
çados a acrescentar muitas coisas, que pa sobre si mesmo, contrastando com as exi
recem violar os princípios basilares da uni gências fundamentais e irrecusáveis da
formidade do movimento. Não estiveram metafísica neoplatônica do Deus que geo-
em condições de descobrir ou então dedu metriza. [T]
zir de tais meios a coisa mais importante,
ou seja, a forma do universo e a imutável
simetria de suas partes. Então aconteceu
com eles aquilo que acontece com um pin
tor que toma mãos, pés, cabeça e os outros 5 ; A t e o r ia d e ( S o p é m ic o
membros de modelos diferentes e os dese
nha de modo excelente, mas não em fun
ção de um corpo singular; de sorte que, Estando a situação assim tão descon-
como todas essas partes não se harmoni juntada, Copérnico, como ele mesmo escre
zam absolutamente entre si, surge um ser ve, “ tendo meditado longamente sobre essa
monstruoso ao invés de um homem. As incerteza da tradição matemática na deter
sim, no curso da demonstração que cha minação dos movimentos do mundo das es
mam de método, vê-se que esqueceram al feras, comecei a ficar perturbado pelo fato
go de indispensável ou então introduziram de que os filósofos não podiam se fixar em
algo de estranho ou irrelevante. O que cer nenhuma teoria segura do movimento do
tamente não lhes teria acontecido se hou mecanismo de um universo criado para nós
vessem se uniformizado com base em prin por um Deus que é bondade e ordem su
cípios seguros. Com efeito, se as hipóteses prema, embora fizessem observações tão
por eles assumidas não estivessem erradas, acuradas no que se refere aos mínimos de
tudo aquilo que delas deriva encontraria, talhes desse universo” . Atormentado por
sem qualquer dúvida, a sua confirmação.” tal problema, Copérnico, como ele próprio
A metafísica neoplatônica defende um conta, pôs-se a “ reler as obras dos filóso
mundo simples, mas o sistema (ou “ os sis fos” , com a intenção de ver “ se algum de
temas ptolemaicos” ) torna-se (ou se tor les havia pensado alguma vez que as esferas
nam) sempre mais complexo (ou comple do universo podiam se mover segundo mo
xos). E o Neoplatonismo força Copérnico vimentos diferentes daqueles propostos pe
a rejeitar o sistema ptolemaico. los professores de matemática nas escolas” .
A realidade é que, retocada aqui ou E descobre que Cícero registra a opinião
ali, mudada em um ponto ou m odifica de Iceta de Siracusa (séc. V a.C.) de que
171
Cãpítulo décimo - IX' <Sopémi<r-o a Keple r
era a terra que se movia. E descobre tam meu, mas ainda é um mundo fechado. A
bém que o pitagórico Filolau (séc. V a.C.), forma perfeita é a esférica e o movimento
Heráclides Pôntico e o pitagórico Ecfanto perfeito e natural é o circular. Os planetas
(séc. IV a.C.) pensavam que era a terra que não se movem em órbitas, sendo transpor
girava. tados por esferas cristalinas que giram. As
Encorajado pelo fato de que, antes dele, esferas possuem realidade material. Butter-
outros já haviam defendido tal idéia, que field fala do “ conservadorismo de Copér
parecia “ absurda” para a maioria, Copér- nico” .
nico começou “a pensar na mobilidade da Sem dúvida encontramos em Copér
terra” . Sentindo-se seguro da verdade de nico todos os fragmentos do velho mundo
suas teorias, Copérnico decide então tornar que citamos e também traços da tradição
públicos seus pensamentos, não querendo hermética. Quem passa para um novo mun
se subtrair “ ao juízo de ninguém” e nem do sempre leva para ele algo mais ou menos
duvidar que “ os matemáticos dotados de embaraçoso do velho mundo. Mas o mais
engenho e cultura concordem comigo, se importante é que o novo mundo já foi toca
quiserem conhecer e apreciar, não superfi do e alcançado. E foi precisamente isso o
cialmente, mas em profundidade, já que é que aconteceu com Copérnico.
exatamente isso o que a filosofia exige, aqui Sua teoria “não era mais acurada do
lo que eu apresento nesta obra para demons que a de Ptolomeu e não introduzia nenhu
trar tais coisas” . ma melhoria imediata no calendário” . En
E no seu primeiro livro do De revolu- tretanto, foi revolucionária, rompendo com
tionibus, Copérnico defende as seguintes uma tradição mais do que milenar.
teses: Copérnico não chegou — e tinha meios
1 ) o mundo deve ser esférico; para fazê-lo — a melhorar ou remendar o
2 ) a terra deve ser esférica; sistema ptolomaico neste ou naquele pon
3) com a água, a terra forma uma úni to, pois tal sistema se transformara em um
ca esfera; conjunto monstruoso de teorias que nada
4) o movimento dos corpos celestes é mais prometiam. Copérnico foi grande por
uniforme, circular e perpétuo, ou então com que teve a coragem de mudar de caminho:
posto de movimentos circulares; propôs um paradigma ou uma grande teo
5) a terra se move em um círculo orbital ria alternativa que, embora no princípio não
em torno de seu centro, girando também parecesse trazer muitas vantagens e até mes
sobre seu eixo; mo não parecesse tampouco muito mais sim
6) comparada com a dimensão da ter ples do que a de Ptolomeu (Ptolomeu tinha
ra, é enorme a vastidão dos céus. quarenta círculos ao passo que Copérnico
O capítulo 7 discute as razões pelas por fim foi forçado a propor trinta e seis
quais os antigos consideravam que a terra círculos), no entanto não tinha mais nada a
era imóvel no centro do mundo. A insufi ver com as eternas e insuperáveis dificulda
ciência de tais razões é demonstrada no ca des do velho sistema (embora apresentasse
pítulo 8. O capítulo 9 discute se é possível outras — mas eram outras), além de conter
atribuir mais movimentos à terra e fala do toda uma série de previsões (semelhança
centro do universo. Por fim, o capítulo 10 é entre os planetas e a terra, as fases de Vênus,
dedicado à ordem das esferas celestes. um universo maior etc.), que mais tarde fo
ram clam orosam ente confirm adas por
Galileu. O dado mais importante do traba
lho de Copérnico é o de ter imposto ao
6 t S o p é m ic o mundo das idéias uma nova tradição de pen
e a t e n s ã o e s s e n c ia l samento.
e n te e t r a d i ç ã o e r e v o lu ç ã o Copérnico morreu em 1543, mesmo
ano em que apareceu publicado o De revo-
lutionibus. E não demoraram a aparecer os
Copérnico subverteu todo o sistema ataques contra a nova teoria. Mas também
do mundo. No entanto, arrastou para o seu houve quem falou de Copérnico como “o
novo mundo muitos pedaços e diversas es segundo Ptolomeu” . Pouco a pouco, a idéia
truturas do velho mundo. O mundo de heliocêntrica abria caminho. A Narratio pri
Copérnico não é um universo infinito. N a ma de Rheticus já vinha difundindo a teoria
turalmente, é bem maior do que o de Ptolo- copernicana antes de 1543. Em 1576, o as
172
Segunda parte - y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a
.... II. X y c k o B m k e : -
nem v e lk a d is tr ib u iç ã o p to le m a ic a ^
nem m o d e r n a in o v a ç ã o
iu t r o d u z t d a p e lo g r a u d e (S o p e m ic o ^
O s is t e m a tycK ôrvieo
ra além de qualquer dúvida, penso que se Por seu turno, no Diálogo sobre os dois
deve estabelecer, com os antigos astrônomos sistemas máximos, Galileu confrontará o
e com os pareceres já aceitos pelos físicos, sistema aristotélico-ptolomaico com o sis
com a autenticação posterior das sagradas tema copernicano, sem considerar em ab
Escrituras, que a terra que nós habitamos soluto o “ terceiro sistema do mundo” , de
ocupa o centro do universo e não se move Tycho Brahe.
em círculos por efeito de nenhum movimen No entanto, o sistema de Brahe conquis
to anual, como quer Copérnico O sol tou relativo sucesso, sendo abraçado pela
e a lua giram em torno da terra: “ Conside maior parte dos astrônomos, não coperni-
ro que os circuitos celestes são governados canos, insatisfeitos com o sistema ptolomai-
de tal modo que somente ambas as luminá co. Na realidade, seu sistema foi engenho
rias do mundo [o sol e a lua], que presi samente concebido: mantinha as vantagens
dem à discriminação do tempo, e com elas matemáticas do sistema de Copérnico e,
a distante e oitava esfera [das estrelas fi além disso, evitava as críticas de natureza
xas] que contém todas as outras, olham física e as acusações de ordem teológica.
para a terra como o centro de suas revolu Mas o sucesso do sistema tychônico é
ções.” Os outros cinco planetas giram em o sucesso de um compromisso. E embora
torno do sol: “ Assevero ademais que os esse compromisso tivesse o aspecto de uma
cinco planetas restantes [Mercúrio, Vênus, “ restauração” , ele não pôde ignorar a revo
Marte, Júpiter e Saturno] desenvolvem seus lução que ocorrera; Tycho Brahe também
próprios giros em torno do sol, como seu negou o sistema ptolomaico, afirmando que
guia e rei, sempre o observando quando se a terra não era o centro das revoluções de
situa no espaço intermediário de suas revo todos os planetas.
luções.” Duas observações ainda. Em Urani-
O sistema tychônico não convenceu borg, na ilha de Hven, além do observató
Kepler nem Galileu. Em seu leito de morte, rio, Brahe possuía também um laboratório
Brahe confiou seu sistema ao jovem assis químico. E, embora criticasse as práticas
tente Kepler, mas este estava muito atraído astrológicas, estava convencido de que exis
pela grande simetria de Copérnico, ao pas tia uma afinidade essencial entre os fenô
so que o sistema de Brahe não era estrutu menos celestes e os acontecimentos terres
rado simetricamente (assim, por exemplo, tres. Essa crença, de origem estóica, na
o centro geométrico do universo não é mais existência de uma relação entre todas as
o centro da maior parte dos movimentos coisas, constituiu fonte de inspiração para
celestes). muitos grandes cientistas. KTTvBfTI
Sistema tychônico (de Th. S. Kuhn, Sistema copernicano (de P. Rossi, A revolução
A revolução copernicana, Einaudi). científica de Copérnico a Newton, l.oeschcr).
176
ScgUftdci parte - y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a
: III. J o k a n n e s K .e p le i*: -
a p a s s a g e m d o ^ c m c u lo ^ p a t^ a a ^ e lip s e 77
e a s is te m a tiz a ç ã o m a te m á tic a
d o s is te m a c o p e m ic a n o
las belas idéias expostas em comprovação luminoso chegar até a retina, reconhecen
da verdade [...]. Muito escrevi para apre do-se que a figura assim projetada na retina
sentar as provas que aniquilam os argumen fica de cabeça para baixo, mas sem reputar
tos contrários à hipótese copernicana, mas esse fato como danoso, porque, à medida
até agora não ousei publicar nada, aterrori que a localização das imagens fora do olho
zado pelo que sucedeu a Copérnico, nosso é uma função realizada pelo próprio olho,
mestre, que, se conquistou fama imortal jun o problema está em determinar a regra com
to a alguns, na verdade, junto a infinitos base na qual deve proceder o olho para co
outros é desmoralizado e apupado, tão gran locar a imagem, quando recebe certos estí
de é o número dos tolos. Eu ousaria desfral mulos. Assim, a regra agora é a seguinte:
dar abertamente meus pensamentos se hou quando o estímulo sobre o fundo do olho
vesse muitas pessoas como tu, mas, como está embaixo, a figura vista fora do olho
não existem, devo me conter.” deve estar em cima e vice-versa; da mesma
forma, quando o estímulo sobre a retina está
à direita, a figura vista fora do olho deve
ESI Kepler/ matemático imperial estar à esquerda e vice-versa” (V. Ronchi).
em W a g a Além disso, no capítulo primeiro, Kepler
dava uma definição da luz completamente
Em 1597, Kepler casou-se com Bárba nova:
ra Müller von Muhlek, rica viúva de vinte e 1 ) “ à luz compete a propriedade de
três anos. Nesse meio tempo, depois da vi afluir ou ser lançada de sua fonte em dire
sita do arquiduque Ferdinando ao papa Cle ção a um lugar distante” ;
mente VIII, todos os não-católicos foram 2 ) “ de um ponto qualquer, o afluxo da
expulsos da Estíria. Kepler mobilizou-se ra luz ocorre segundo um número infinito de
pidamente junto a seu velho mestre Maestlin retas” ;
para obter um lugar na Universidade de 3) “por si mesma, a luz é capaz de avan
Tubinga, mas não o conseguiu. Então, apre çar até o infinito” ;
sentou-se inesperada solução: Brahe convi 4) “ as linhas dessas emissões são retas
dou Kepler a visitá-lo no castelo de Benatek, e se chamam raios” .
nas proximidades de Praga. Em I o de agos Vasco Ronchi comenta que, nessas qua
to de 1600, mais de um milhar de cidadãos tro proposições, está a definição do raio lu
foram expulsos da Estíria. Kepler escreve a minoso, que depois seria definitivamente
Maestlin, dizendo que nunca teria acredita adotada pela ótica geométrica.
do que deveriam suportar tanto sofrimen Em 1609, publica-se a Nova astrono
to, abandonar a casa e os amigos e perder mia, que Kepler enviou ao imperador Ro
os próprios bens por motivos religiosos e dolfo II com uma carta dedicatória datada
em nome de Cristo. Em Praga, Tycho Brahe de 29 de março. Essa é a obra mais memo
assume Kepler como seu assistente. Pouco rável de Kepler, estabelecendo dois princí
depois, porém, em 24 de outubro de 1601, pios fundamentais da astronomia moderna
com apenas cinqüenta e cinco anos de ida (as primeiras duas leis de Kepler, sobre as
de, Brahe morre. E o imperador Rodolfo II quais falaremos adiante). Nessa obra, Kepler
nomeia Kepler “ matemático imperial” , com estuda o movimento de Marte, podendo fi
um salário que era a metade do de Brahe, e nalmente declarar-se vitorioso sobre o deus
com a tarefa de concluir as Tábuas rodol- da guerra — e assim entregava o planeta,
finas. feito prisioneiro, aos pés do imperador. Mas
Em 1604, Kepler publica a obra Ad M arte tem muitos parentes — Júpiter,
Vitellionem paralipomena. Trata-se de uma Saturno, Vênus, Mercúrio etc. — que ainda
obra de ótica geométrica, que marca um mo era preciso combater e vencer. E, para pros
mento relevante da história da ciência. A seguir a batalha, necessita-se de recursos. E
obra compõe-se de onze capítulos, aperfei Kepler pede-os ao imperador.
çoando conceitos já expressos por Alhazen Em março de 1610, Galileu publicou
e Vitélio, além de apresentar concepções que o seu Sidereus Nuncius, que, com todas as
muito se assemelham às de Francisco Mau- descobertas astronômicas que continha, des
rólico (1494-1577). O capítulo V da obra pertou o mais alto interesse no mundo cien
reveste-se de grande importância: “ Nele, tífico. Galileu enviou uma cópia para Kepler,
pela primeira vez depois de dois mil anos de por intermédio de Juliano de Médici, que
estudo, não se hesita em fazer o estímulo era embaixador da Toscana em Praga. Em
179
Capítulo décimo - D e C o p é m i c o a K e p le i*
resposta a Galileu, Kepler escreveu a sua metes à inteligência humana os limites ce
Dissertatio cum Núncio Sidereo, em que lestes e o caminho dos astros.” Pode-se afir
apresenta suas dúvidas. Sobretudo em rela mar com certeza que a Diótrica constituiu
ção à existência dos satélites de Júpiter. O “ o início e o fundamento de uma ciência
místico neoplatônico Kepler, para quem “ o ótica capaz de explicar o funcionamento das
sol é o corpo mais belo” e “ o olho do mun lentes e de suas várias combinações, como
do” , não podia admitir que Júpiter possuís as usadas na luneta ‘galileana’ ou na luneta
se satélites e pudesse assim reivindicar uma ‘kepleriana’, também chamada ‘astronômi
dignidade análoga à do sol. Ademais, “ não ca’ ” (G. Abetti).
se compreende bem por que (tais satélites)
existiríam, quando sobre esse planeta não
há ninguém para admirar tal espetáculo” . 8 B || Kepler em Linz:
Mais tarde, de posse de uma boa luneta — as /7
Tábuas ^odolfmas7
7
aquela que Galileu enviara a Ernesto de e a “Elarmcmia do mundo’7
Baviera, príncipe eleitor do Sacro Império
Romano em Colônia, e que este havia pas Em 1611, o imperador Rodolfo II teve
sado para Kepler —, ele se convenceu da de abdicar em favor do irmão Matias. Ke
opinião de Galileu, publicando então a pler, que já lutava em vão para obter sua
Narratio de observatis a se quattuor Jovis remuneração, compreendeu que não era sá
satellitibus erronibus. Nesse meio tempo, bio continuar em Praga. Assim, pôs-se a ser
Martin Horky de Lochovic — que assistira viço dos governadores da Áustria superior
às demonstrações com a luneta que Galileu e transferiu-se para Linz, a fim de comple
realizara em Bolonha, por volta de fins de tar as Tábuas rodolfinas e dedicar-se aos
abril de 1610, na casa de Antônio Magini, estudos de matemática e filosofia.
professor de matemática em Bolonha e ad Em 1613, Kepler publicou a Nova ste-
versário de Galileu — escreveu a Kepler uma reometria doliorum vinariorum, que resol
carta sobre a ineficácia da luneta: “ In infe- ve um problema prático não irrelevante para
rioribus facit mirabilia; in coelo fallit quia aquela época: como determinar o conteúdo
aliae stellae fixae duplicatae videntur. Habeo dos barris. A questão não deixava de ser
testes excellentissimos viros et nobilissimos importante, pois então o conteúdo dos bar
doctores (...) omnes instrumentum fallere ris era medido com a introdução de um bas
sunt confessi. At Galileus obmutuit, et die tão: devidamente inclinado, ele deveria in
26 (...) tristis ab Illustrissimo D. Magino dicar o número de “ baldes” de que o barril
discessit.” Horky escreveu também um li era capaz. Tratava-se, obviamente, de uma
belo contra as recentes descobertas de Ga mensuração rudimentar. E o interessante é
lileu: Brevíssima peregrinado contra Nun- que Kepler resolve tal problema através de
cium Sidereum. E, em 30 de junho (1610), procedimentos que se aproximam dos rea
enviou-o a Kepler. Mas este, embora com lizados no cálculo infinitesimal. Em 1616,
um pouco de atraso, renegou as opiniões de porém, tem início a desgraçada aventura da
Horky. Galileu, como veremos nas páginas pobre mãe de Kepler, que foi acusada de fei
a ele dedicadas, levou para dentro da ciên tiçaria e submetida a interminável proces
cia a luneta, um instrumento que então era so, no qual se envolve também a faculdade
visto como objeto típico dos “ vis mecâni jurídica de Tubinga. Kepler empenhou-se
cos” e indigno dos “filósofos” . E Kepler, por profundamente na defesa da mãe. E, final
seu turno, era a pessoa matematicamente mente, saiu vencedor. Em 1621, a mãe de
melhor aparelhada para estudá-lo e desen Kepler foi inocentada da acusação. Mas,
volver sua teoria. E, com efeito, na prima tanto pela idade avançada como em função
vera de 1611, apareceu em Augusta a Diótri- de seu encarceramento e do processo, a atri
ca ou “ demonstração daquelas coisas, nunca bulada mãe morreu em abril de 1622. Nes
antes vistas por ninguém, que se podem se entretempo, entre 1618 e 1621, Kepler
observar com a luneta” . Diz Kepler que a havia publicado em Linz, em sete livros, seu
Diótrica é importante porque amplia os tratado de astronomia: Epitome astronomiae
horizontes da filosofia. E, sobre a luneta, copernicanae. Já nos primeiros meses de 1619,
diz ele: “ O sábio tubo óptico é precioso em Augusta, aparecia sua obra Harmonices
como um cetro; quem observa com ele tor mundi libri V, sobre a qual falaremos adian
na-se um rei e pode compreender a obra de te: trata-se do “ato conclusivo da fecunda
Deus. Por isso, valem estas palavras: tu sub vida de Kepler” (J.L.E. Dreyer). Em 1627,
180
Segunda parte - A revolução científica
aparecem finalmente as Tábuas rodolfinas, suma, Kepler acreditava que a natureza era
onde se encontram as tábuas dos logaritmos, ordenada por regras matemáticas, que é fun
as tábuas para calcular a refração, e um catá ção do cientista descobrir. Uma função que
logo das 777 estrelas observadas por Tycho Kepler acreditou ter cumprido, pelo menos
Brahe, cujo número Kepler eleva para 1005. em parte, quando publicou o Mysterium cos-
Com essas tábuas, “ por mais de um século, mographicum, em 1596. Nessa obra, preci
os astrônomos puderam calcular com exa samente, a fé no sistema copernicano vin
tidão suficiente, jamais alcançada antes de cula-se à fé platônica de que uma Razão
Kepler, as posições da terra e dos vários pla matemática divina presidiu à criação do
netas em relação ao sol” (G. Abetti). Em mundo. E, depois de ter desenvolvido ex
1628, Kepler estava novamente em Praga, tensamente — usando até desenhos detalha
de onde foi para Sagan, pequena cidade da dos — as argumentações em favor do siste
Silésia, entre Dresden e Breslávia, colocan ma copernicano, ele afirma que o número
do-se a serviço do duque de Friedland, Al- de planetas e a dimensão de suas órbitas
brecht Wallenstein. Este prometeu pagar a podiam ser compreendidos à medida que se
Kepler os doze mil florins de atrasados a compreendesse a relação entre as esferas
que tinha direito pelo trabalho passado. planetárias e os cinco sólidos regulares, “pla
Kepler, de sua parte, publicaria as efemérides tônicos” ou “cósmicos” . Esses sólidos, como
até 1626. Entretanto, desmoronando os bens já mostramos anteriormente, são: o cubo, o
de Wallenstein, Kepler decidiu ir a Ratisbona tetraedro, o dodecaedro, o icosaedro e o
para obter da Dieta o pagamento de sua re octaedro. Como é fácil perceber, examinan
muneração atrasada. Feita no lombo de um do a fig. 1 , esses sólidos se caracterizam por
velho burro — do qual Kepler se desemba terem as faces todas idênticas e constituídas
raçou por dois florins tão logo chegou —, a apenas de figuras eqüiláteras. Desde a anti
viagem foi desastrosa. Acometido de febre, guidade, sabia-se que somente cinco sólidos
Kepler foi submetido a sangrias. M as de possuíam tais características: os cinco indi
nada adiantou. Morreu no dia 15 de no cados na figura. Pois bem, em seu trabalho,
vembro de 1630, distante de casa e dos que Kepler sustenta que, se a esfera de Saturno
lhe eram caros. Estava com cinqüenta e nove fosse circunscrita ao cubo no qual estivesse
anos de idade. Foi sepultado fora das mu inscrita a esfera de Júpiter e se o tetraedro
ralhas da cidade, no cemitério de São Pedro, fosse inscrito na esfera de Júpiter com a es
já que não era costume sepultar os luteranos fera de Marte inscrita nele, e assim sucessi
dentro da cidade. Entretanto, os funerais fo vamente com os outros três sólidos e as ou
ram solenes. E o discurso fúnebre desenvol tras três esferas (cf. a fig. 2 ), então se poderia
veu-se em torno de um versículo de Lucas demonstrar as dimensões relativas de todas
(Lc 11,28): “ Felizes os que ouvem a pala as esferas, compreendendo-se também por
vra de Deus e a observam.” que existem apenas seis planetas. Eis o que
diz o próprio Kepler: “ O orbe da terra é a
medida de todos os outros orbes. Circuns
creve-se a ele um dodecaedro, e a esfera por
2 O V ^ y s fe num ele circunscrita é a de Marte. A esfera de
c o s m o g m p k i c u m //: Marte circunscreve um tetraedro, que con
tém a esfera de Júpiter. A esfera de Júpiter
e m b u s c a d a d iv iu a
circunscreve um cubo, sendo que a esfera
o r d e m m a t e m á t ic a d o s c é u s por ele encerrada é a esfera de Saturno. No
orbe da terra, inscreví um icosaedro, sendo
a esfera nele inscrita a de Vênus. Em Vênus
Se Tycho Brahe sempre foi anticoper- inscreví um octaedro, onde está inscrita a
nicano, Kepler sempre foi copernicano: “Du esfera de Mercúrio. E aí encontras a razão
rante toda a sua vida, ele se referiu à per do número dos planetas.” Deus é matemá
tinência do papel que Copérnico atribuira tico. E o trabalho de Kepler consistiu preci
ao sol com os tons entusiásticos do neo- samente em buscar as harmonias matemá
platonismo renascentista” (Th. S. Kuhn). ticas e geométricas do mundo. Ele acreditou
Kepler foi um neoplatônico matemático ou ter encontrado muitas, embora aquelas des
um neopitagórico que acreditava na harmo tinadas a ter futuro fossem sobretudo as suas
nia do mundo. Por isso, não podia apreciar famosas três leis para os planetas. De todo
o pouco harmônico sistema de Brahe. Em modo, “ a convicção de uma estrutura do
181
Cílpltulo décimo - D e Ç ã o p é m ic o a K e p le r
( )s cinco sólidos
planetários ou “platônicos"
ou “cósmicos ”
(de Th. S. Kuhn,
A revolução copernicana, cit.).
Saturno cubo
Júpiter tetraedro
Marte dodecaedro
Terra icosaedro
Vênus octaedro
(de Th. S. Kuhn,
A revolução copernicana, cit.).
ções sobre Marte, mas também tivera de - segunda lei: a velocidade orbital de
ceder às dificuldades. Depois da morte de cada planeta varia de tal modo que a linha
Brahe, foi Kepler quem teve de se defrontar que liga o sol e o planeta cobre, em iguais
com o problema, nele trabalhando durante intervalos de tempo, iguais porções de su
cerca de dez anos. É o próprio Kepler quem perfície da elipse (cf. a fig. 4).
nos informa sobre esse seu extenuante tra A substituição das órbitas circulares de
balho, do qual deixou uma apaixonante e Ptolomeu, de Copérnico e também de
detalhada descrição. As tentativas seguiam- Galileu pelas elipses (Ia lei), e a substituição
se uma à outra, mas todas caíam no vazio. do movimento uniforme em torno de um
Entretanto, com base nessa longa série de centro com a lei das superfícies iguais (2 a
tentativas falidas, Kepler chegou à conclu lei), são suficientes para eliminar toda a
são de que era impossível resolver o proble caterva dos excêntricos e dos epiciclos.
ma com qualquer combinação de círculos, Em 1618, no Epitome astronomiae
pois todas as combinações possíveis não copernicanae, Kepler estendeu essas suas leis
correspondiam aos dados observáveis e as aos outros planetas, à lua e aos quatro saté
órbitas propostas, portanto, deviam ser eli lites de Júpiter, que haviam sido descober
minadas. Assim, além dos círculos, experi tos há poucos anos. Em 1619, nas Harmo
mentou também as figuras ovais. Mas, no nias do mundo, Kepler anuncia sua
vamente, as observações desmentiram as - terceira lei: os quadrados dos perío
propostas teóricas. Por fim, percebeu que a dos de revolução dos planetas estão na mes
teoria e as observações se harmonizavam ma relação que os cubos das respectivas dis
quando fazia os planetas moverem-se em tâncias do sol. Ou seja: se T I e T2 são os
órbitas elípticas, com velocidades variáveis, períodos necessários a dois planetas para
determináveis segundo uma lei simples. que eles completem uma volta em suas ór
Foi uma descoberta sensacional: esta bitas e se RI e R2 são as respectivas distân
va definitivamente rompido o dogma antigo cias médias entre os planetas e o sol, então
e já venerável da naturalidade e perfeição a relação entre os quadrados dos períodos
do movimento circular. E um procedimento orbitais é igual à relação existente entre os
matemático muito simples estava em con cubos das distâncias médias em relação ao
dições de dominar, em um universo coper- sol. Ou seja: (T1/T2 )2 = (R1/R2)3.
nicano, uma quantidade interminável de Trata-se, conforme foi dito, de “ uma
observações e permitia fazer previsões (e lei fascinante, porque estabelece uma regra
pós-visões) seguras e acuradas. nunca antes observada no sistema planetá
E eis as duas leis que contêm a solução rio” . Mas o fundamental era que os princí
final do problema, solução que é válida tam pios da cosmologia aristotélica haviam-se
bém para nós, hoje: despedaçado. Com efeito, a esse ponto, o
- primeira lei: as órbitas dos planetas sistema solar encontrava-se plenamente des
(Marte) são elipses das quais o sol ocupa velado em toda uma rede de relações mate
um dos focos (cf. a fig. 3.); máticas límpidas e simples.
constante do ano que possa. Depois, ao fixar surda que aparecesse tal opinião, todavia, uma
os movimentos tanto destas como das outras vez que eu sabia que a outros antes de mim
cinco estrelas errantes [os planetas], não recor tivesse sido concedida a liberdade de imagi
rem aos mesmos princípios, nem aos mesmos nar alguns círculos para indicar os fenômenos
assuntos, nem às mesmas demonstrações das dos astros, pensei que também a mim teria sido
revoluções e dos movimentos que aparecem. facilmente permitido experimentar se, posto
Alguns, com efeito, recorrem apenas a círculos certo movimento da terra, se pudessem encon
homocêntricos, outros a excêntricos e a epiciclos, trar demonstrações mais firmes das deles, na
com os quais, porém, não conseguem absolu revolução dos orbes celestes.
tamente aquilo que buscam... Portanto, supostos os movimentos que
Por isso assumi o trabalho de reunir os mais adiante em minha obra atribuo à terra,
livros de todos os filósofos, que pudesse ter, encontrei finalmente, depois de muitas e lon
com o fito de indagor se acaso algum tivesse gas observações, que se se relacionavam com
opinado que os movimentos das esferas do a circulação da terra os movimentos das outras
mundo fossem diversos daqueles que são ad estrelas e se calculavam para a revolução de
mitidos por aqueles que ensinam matemática toda estrela, não apenas descobriram os fenô
nas escolas. € encontrei assim primeiro em Cí menos delas, mas também as ordens e as gran
cero que Niceto pensara que a terra se moves dezas das estrelas e de todos os orbes, e o
se. Depois também em Plutarco encontrei que próprio céu assim se conecta que em nenhuma
outros ainda eram da mesma opinião e, para parte dele pode transpor-se qualquer coisa sem
tornar suas palavras acessíveis a todos, pen que disso derive confusão nas outras partes e
sei transcrevê-las aqui: na sua totalidade. Por isso, adiante na obra,
"Outros pensam que a terra esteja para segui esta ordem, e no primeiro livro descrevo
da, mas Filolau o Pitagórico admite que ela se todas as posições dos orbes com os movimen
mova girando em torno ao foco com um círculo tos que atribuo à terra, a fim de que este livro
oblíquo, como o sol e a lua. Heráclides Pôntico contenha quase que a toda a constituição ge
e Ccfanto o Pitagórico também fazem a terra se ral do universo. Nos outros livros, depois, relacio
mover, mas não através do espaço, e sim como no os movimentos das outras estrelas e de to
roda, do Ocidente poro o Oriente, ao redor de dos os orbes com a mobilidade da terra, a fim
seu próprio centro". de que aí se possa deduzir em que medida é
fl partir daqui, portanto, deparando-me possível salvar os movimentos e as aparências
com esta oportunidade, também eu comecei a das outras estrelas e dos orbes, quando estão
pensar na mobilidade da terra. C, por mais ab relacionados com o movimento da terra. £ não
Representação
do sistema copernicano.
Como escreve o próprio
Copérnico:
“Todas as esferas giram
ao redor do sol
como seu ponto central,
e portanto o centro do universo
está dentro do sol [...].
O movimento da terra é,
portanto, suficiente para explicar
todas as desigualdades
que aparecem no céu”. Estrelas fixas
187
Capitulo dédtnO - D e d f o p é m ic o a K e p le i* — -
passagens a estabilidade da terra, para não para Copérnico devia-se ao movimento anual
falar depois do espaço vastíssimo interposto da terra, justifica-se de modo muito convenien
entre o orbe de Saturno e a oitava esfera que te mediante tais concomitôncias do centro da
esta doutrina torna vazio até as estrelas, e de órbita dos próprios planetas junto com a revo
outros inconvenientes que acompanham esta lução anual do sol. Deste modo, encontramos
especulação, então, sigo, tendo compreendi explicação suficiente para as paradas ou retro-
do bem como ombas essas hipóteses admitis gradações dos planetas, paro aproximações e
sem não pequenas absurdidades, comecei a distanciamentos da terra, para a variação da
meditar comigo mesmo profundamente se se aparente grandeza e para todos os outros fe
ria possível encontrar uma hipótese qualquer nômenos de tal monta, originados ou com o pre
que não estivesse em contraste nem com a ma texto dos epiciclos ou pela aceitação do movi
temática nem com a física, e que não devesse mento da terra. [...] E com isso se torna evidente
fugir ocultamente das censuras teológicas e que, a razão pela qual o movimento simples do sol
ao mesmo tempo, satisfizesse de modo com se mistura necessariamente com os movimen
pleto as aparências celestes. Por fim, quase tos de todos os cinco planetas com peculiar e
inesperadamente, veio-me à mente de qual certo andamento; de forma que todos os fenô
maneira deva ser disposta oportunamente a menos celestes se referem ao sol como sua
ordem das revoluções celestes, de modo que medida e norma e ele governa toda a harmo
ficasse excluída toda ocasião para todas estas nia da fila dos planetas como Apoio (nome do
incongruências. € agora comunicarei esta dis qual era datado pelos antigos) no meio das
posição dos orbes, já brevemente acenada, aos Musas.
cultores da filosofia celeste. T. Brahe,
Para além de qualquer dúvida, penso que D e m undi a e th e re i recen tio rib u s p h a e n o m e n is,
se deva estabelecer com os antigos astrôno lib e r se cu n d u s q u i e s t d e illustri ste lla cciudcita
mos e os pareceres já aceitos pelos físicos, com em La rívoluzione sd e n tifica
d a C o p érn ico a Neuuton,
a atestação ulterior das Sagradas Escrituras,
editada por P. Rossi, Loescher.
que a terra que habitamos ocupa o centro do
universo e que não é movida em círculo por
nenhum m ovim ento a nual, como o quer
Copérnico. Todavia, não ouso confirmar, como
creram Ptolomeu e os velhos astrônomos, que
junto da terra se situem os centros de todos os
orbes do segundo móvel; mas penso que os
circuitos celestes sejam de tal forma governa
dos que apenas ambos os luminares do mun
do [o sol e a lua], que presidem a discrimina
ção do tempo, e com eles a muitíssimo distante
oitava esfera [das estrelas fixas], continente de
todas as outras, olhem para a terra como para
o centro de suas revoluções, Além disso, asse
vero que os cinco planetas restantes [Mercúrio,
Vênus, Marte, Júpiter, Saturno] desenvolvem
seus próprios giros ao redor do sol como pró
prio guia e rei, e que sempre o observam quan
do se situa no espaço intermediário de suas
revoluções. De modo que, em relação ao circui
to dele também os centros das órbitas que cir
culam a seu redor realizam um giro anual. €n-
contrei, de fato, que isso não ocorria apenas
em Vênus e Mercúrio para as menores digres
sões de tais planetas em relação ao sol, mas
também nos três planetas superiores. E desse
modo nestes três mais distantes planetas que,
com a amplitude de suas revoluções ao redor
do sol, incluem a terra e todo o mundo elemen
tar juntamente com a lua que com ele confina,
toda aparente desigualdade de movimento que
pelos antigos era explicada com os epiciclos, Instrumento astronômico de T. Brahe.
(S apí+ulo d é c im o p r im e ir o
O d ra m a d e Çialileu
e a f u n d a ç ã o d a c iê n c ia m od ern a
• Galileu Galilei (1564-1642) estuda em Pisa como aluno de Ostílio Ricci, discí
pulo do algebrista Nicolau Tartaglia. Chamado para ensinar em Pádua, aí pronun
cia a lição inaugural dia 7 de dezembro de 1592. Em Pádua Galileu permanece
dezoito anos, até 1610. A 1610 remonta o Sidereus Nuncius; e, sempre nesse ano,
obtém da parte do grão-duque Cosme II o rendoso posto de
"matemático extraordinário do estúdio de Pisa". Entre 1613 e O e n sin o
1615 Galileu escreve as famosas quatro cartas copernicanas so eo mp rim Pádua;
e iro
bre as relações entre ciência e fé: uma a seu discípulo, o beneditino e o s e g u n d o
Benedetto Castelli, duas a dom Piero Dini; e uma à senhora p ro c e ss o ;
Cristina de Lorena, grã-duquesa de Toscana. a so lid ã o
Denunciado ao Santo Ofício, Galileu é processado em Roma d e A r c e t r i
em 1616 e é proibido de ensinar ou defender com a palavra ou -->§1.1
com os escritos a teoria copernicana.
O Saggiatore é de 1623. O Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo
aparece em 1632. Processado pela segunda vez em 1633, Galileu é condenado e
forçado à abjuração. A prisão perpétua lhe é logo comutada em confinamento,
primeiro junto a seu amigo Ascânio Piccolomini, arcebispo de Siena, o qual o tra
tou com grande e benévola atenção; e depois em sua casa em Arcetri.
Na solidão de Arcetri escreve os Discursos e demonstrações matemáticas so
bre duas novas ciências, que aparecerão em Leiden em 1638. Assistido por seus
discípulos Vicente Viviani e Evangelista Torricelli, Galileu morre no dia 8 de janeiro
de 1642.
• Na primavera de 1609 Galileu vem a saber que "certo flamengo havia fabri
cado uma lente mediante a qual os objetos visíveis, por mais distantes que estives
sem dos olhos do observador, eram vistos distintamente como se
estivessem próximos". A mesma notícia lhe é confirmada por seu G a lile u
ex-discípulo Jacques Badouère. Justamente com base nestas no le v a a lu n e ta
tícias Galileu construiu a luneta. E a coisa realmente interessante p a r a " d e n t r o '
é que ele a tenha levado para dentro da ciência, como instru d a ciência
mento científico a ser utilizado como potencialização de nossos -->§11.1
sentidos.
• Dia 12 de março de 1610 Galileu publica em Veneza o Sidereus Nuncius,
obra que inicia com estas palavras: "Grandes na verdade são as coisas que neste
breve tratado proponho à visão e contemplação dos estudiosos
da natureza. Grandes, digo, tanto pela excelência da matéria em O " S id e re u s
si mesma, como pela novidade delas jamais ouvida em todos os N u n c iu s "
tempos passados, como também pelo instrumento em virtude c o rro b o ra
do qual as próprias coisas se tornaram manifestas a nosso senti o sistem a
do". Mediante a luneta, se podem ver, além das estrelas fixas, c o p e rn ic a n o
"outras inumeráveis estrelas jamais divisadas antes de agora"; o eo dsistem
e sm e n te
a
universo, em suma, torna-se maior; constata-se que a lua não é p to lo m a ic o
um corpo perfeitamente esférico, como até então se acreditava, —» § II1.1-2
mas é escabrosa e desigual como a terra (este é um resultado
190
Segunda pavte - / \ r e v o lu ç ã o c ie u tífic a
I. galileu ^Âalilei:
a vida e a s obras
tico extraordinário do Estúdio de Pisa” , sem Galileu quem a batizou [...]. Ele deu o pri
ter obrigação de residência local nem de meiro passo importante, abrindo desse
ministrar lições, bem como o posto de “ fi modo o caminho, novo e imenso, que leva
lósofo do Sereníssimo Duque” . ria a mecânica a progredir enquanto ciên
Em Florença, prossegue suas pesquisas cia” . Em Arcetri, Galileu teve o consolo de,
astronômicas, mas sua adesão ao coperni- por algum tempo, ser assistido pela irmã
canismo começa a criar-lhe as primeiras di Maria Celeste (sua filha Virgínia), que, no
ficuldades. Entre 1613 e 1615, escreve as entanto, morreu em 2 de abril de 1643, aos
famosas quatro cartas copernicanas sobre trinta e três anos. Para Galileu, essa morte
as relações entre ciência e fé: uma ao seu foi “ matéria de inconsolável pranto” . Pou
discípulo, o beneditino Benedetto Castelli; cos dias depois, em uma carta ao irmão de
duas a dom Piero Dini e uma à senhora sua nora, Geri Bocchineri, que era empre
Cristina de Lorena, grã-duquesa da Toscana. gado nos escritórios do governo grão-ducal,
Acusado de heresia devido ao seu coper- Galileu escreverá estas palavras: “ [Sinto] tris
nicanismo, e depois denunciado ao Santo teza e melancolia imensas, inapetência ex
Ofício, foi processado em Roma em 1616, trema, tornei-me odioso para mim mesmo.
sendo-lhe imposto não ensinar nem defen E sinto que sou continuamente chamado
der com a palavra e com escritos as teorias pela minha querida filhinha.”
incriminadas. Da polêmica com o jesuíta Para compreender as relações entre
Horácio Grassi sobre a natureza dos come Galileu e sua filha predileta, que foi mulher
tas nasceu o Saggiatore, publicado em 1623. de finíssimos sentimentos e de “ elevado in
Essa obra defende uma teoria dos cometas telecto” , basta acenar a algumas cartas por
que depois se revelaria equivocada (Galileu ela enviadas ao pai, em Roma, depois da
sustentava que os cometas seriam aparên condenação de 1633. Galileu não queria que
cias produzidas pela luz refletida sobre os a notícia de sua condenação chegasse aos
vapores de origem terrestre). Entretanto, ouvidos de sua filha, freira e pessoa de gran
como veremos adiante, nela já são propos de sensibilidade religiosa. Mas tratava-se de
tos alguns dos elementos básicos da concep um fato que não podia ficar oculto. Tão lo
ção filosófica e metodológica de Galileu. go a irmã Maria Celeste soube da condena
Em 1623 subiu ao trono pontifício, ção do pai, enviou-lhe uma carta (em 30 de
com o nome de Urbano VIII, o cardeal Maf- abril): “ Caríssimo senhor pai, quis escre
feo Barberini, amigo de Galileu, que já lhe ver-lhe agora, de modo que saiba que estou
havia sido favorável e que chegara a prote a par de suas vicissitudes, o que lhe deve
ger o próprio Campanella. Retomando co servir como lenitivo. E deixei de escrever
ragem e esperança, Galileu escreve o Diálo qualquer outra carta, desejando que essas
go sobre os dois máximos sistemas do coisas desgostosas sejam só minhas [...].”
mundo (1632). Apesar das precauções to Nos primeiros dias de julho, escreve-lhe no
madas, não foi difícil compreender que a vamente: “ Caríssimo senhor pai: agora é o
nova obra representava a mais firme defesa momento de, mais do que nunca, lançar mão
do copernicanismo. Novamente processa daquela prudência que Deus nosso Senhor
do em 1633, Galileu foi condenado e obri lhe concedeu, suportando esses golpes com
gado a abjurar. Logo a prisão perpétua foi a fortaleza de espírito que a profissão, reli
comutada com a pena de confinamento, pri gião e idade exigem. E como, pela muita
meiro junto ao seu amigo Ascânio Piccolo- experiência, o senhor pode ter plena cons
mini, arcebispo de Siena, que o tratou com ciência da falácia e instabilidade de todas
muita atenção, e depois em sua casa de as coisas deste pobre mundo, não deverá
Arcetri, onde não podia encontrar ninguém fazer muito caso dessas borrascas; aliás,
nem podia escrever nada sem autorização pode até esperar que logo se aquietem, trans
prévia. formando-se em satisfação para o senhor.”
Foi precisamente na solidão de Arcetri E em 16 de julho: “ Quando V. Sa. estava em
que Galileu escreveu sua obra mais original Roma, dizia-me em meus pensamentos: se
e de maior relevo: os Discursos e demons eu tiver a graça que ele parta de lá e venha
trações matemáticas sobre duas novas ciên para Siena, isso me bastará, pois poderei
cias, que foram publicados em Leiden, em quase dizer que estará em sua casa. E agora
1638. Mais tarde, escreveria Lagrange: “A não me contento, pois morro de vontade
dinâmica é uma ciência devida inteiramen de tê-lo aqui mais próximo” . Tendo, por
te aos cientistas da época moderna. Mas foi tanto, a irmã Maria Celeste morrido em
194
Segunda pãTte - y \ ^evolutpào cieia+íjica
1634, Galileu ficou inconsolável. Depois, co de Viviani, Galileu “ com filosófica e cris
porém, pouco a pouco se recuperou, re tã consciência entregou a alma a seu Cria
tornou à ciência e escreveu seus grandes dor, saindo desta vida — e nos alegramos
Discursos. No último período de sua vida, em crer nisso — para desfrutar e ver mais
Galileu perdeu a visão e foi acometido de de perto aquelas maravilhas eternas e imu
muitos e graves sofrimentos. Na noite de 8 táveis que, por meio de frágil artifício, mas
de janeiro de 1642, assistido por seus dis com tanta avidez e impaciência, ele ha
cípulos Vincenzo Viviani e Evangelista Tor- via procurado aproximar de nossos olhos
ricelli, como podemos ler no Relato históri mortais” .
195
Capítulo décimo primeiro - O d t*am a d e £Ãalileu e. a fi/m d a ç ã o d a c i ê n c i a m o d e r n a
r :“ I I . £ Â a lil e u ith :
e a u a lu u e + a
zões e cogitar os meios pelos quais eu pode Delia Porta que, com sua Magia natural
ría chegar à invenção de um instrumento (1589), arrancou as lentes do mundo dos
semelhante” . Então Galileu preparou um tu artesãos para englobá-las na filosofia. E tan
bo de chumbo, a cujas extremidades apli to Delia Porta como Kepler (nos Paralipo-
cou duas lentes, “ ambas planas de um lado, mena ad Vitellionem, 1604) “chegaram bem
ao passo que, do outro, uma era convexa e perto da luneta, quase que raspando-a a
outra côncava; aproximando o olho da côn ponto de escrever frases que podiam fazer
cava, vi os objetos bastante grandes e pró crer que a haviam encontrado, mas não con
ximos, já que apareciam três vezes mais pró seguiram concretizá-la” . Não havia con
ximos e nove vezes maiores do que quando fiança nas lentes, pensava-se que elas “ en
eram vistos apenas com a visão natural. De ganavam” , havia a idéia de que os olhos que
pois, preparei outro, mais exato, que repre o bom Deus nos deu eram suficientes para
sentava os objetos mais de sessenta vezes ver as coisas que existem, não necessitando
maiores” . E por fim, diz ainda Galileu, “ sem de “ aperfeiçoamentos” . Além disso e acima
poupar esforço nem despesa alguma, che- de tudo, havia arraigados preconceitos por
guei a ponto de construir um instrumento parte da cultura acadêmica e eclesiástica em
tão excelente que as coisas vistas por meio relação às artes mecânicas. Mesmo depois,
dele aparecem quase mil vezes maiores e a expressão “vil mecânico” seria tomada
mais de trinta vezes mais próximas do que como ofensa. E o próprio Delia Porta, em
quando olhadas apenas com a faculdade 28 de agosto de 1609, ou seja, quatro dias
natural. Seria inteiramente supérfluo enu depois que Galileu escreveu ao doge Leo
merar quantas e quais são as vantagens desse nardo Donato apresentando-lhe a luneta,
instrumento, tanto na terra como no mar” . enviaria de Nápoles uma carta a Federico
Em 25 de agosto de 1609, Galileu apresen Cesi, fundador da Academia dos Linceus,
tou ao governo de Veneza aquele aparelho, na qual lê-se: “Vi o segredo da lente: é uma
como invenção sua. O entusiasmo foi gran burla, que examinei em meu livro De refrac-
de, tanto que a renda anual de Galileu foi tione. E a escreverei, pois que, querendo-a
aumentada de quinhentos para mil florins, fazer, apesar de tudo, V.E. se comprazerá
sendo-lhe também feita a proposta de reno nisso.”
vação vitalícia do contrato de ensino, cujo Em substância, a importância de Gali
prazo se encerraria no ano seguinte. leu em relação à luneta está no fato de que
Ora, como observou Vasco Ronchi, a ele superou toda uma série de obstáculos
invenção da luneta por obra de holandeses epistemológicos, ou seja, idéias que proi
ou até mesmo, um pouco antes, por mãos biam outras idéias e posteriores pesquisas.
de italianos, ou a redescoberta e reconstru Os militares não se desconcertaram diante
ção da luneta por parte de Galileu não é um da novidade e o público culto não manifes
episódio que possa causar grande admira tou nenhuma confiança na luneta. Dizia-se,
ção. O fato realmente importante é que por exemplo, que ela não proporcionava
Galileu levou a luneta para dentro da ciên imagens verídicas, mas Galileu confessa a
cia, usando-a como instrumento científico Matteo Carozio que experimentou seu te
e concebendo-a como potencialização dos lescópio “cem mil vezes em cem mil estrelas
nossos sentidos. e objetos diversos” . Diz Geymonat que a
A filosofia da Idade Média havia igno observação desses “objetos diversos tinha a
rado as lentes de óculos, coisa para doen função de fornecer-lhe provas da veridici-
tes, para velhos ou para fazer truques du dade do aparelho, ao passo que a observa
rante as feiras. Elas foram estudadas por ção das estrelas visava a dar-lhe provas de
Francisco Maurólico, mas foi Giambattista sua importância” . 2]
197
Capitulo décimo ptimeito - O drama de Galileu e a fundação da ciência moderna
III. O 5 d e r a w s T V un aius
e a s con-pi p m a ç õ e s d o s i s f e m a c o p e m i c a n o
ções e alterações.
Chegado a esse ponto, Galileu já não
sabe imaginar como é que os peripatéticos vio (Cristóvão Klau), professor de matemá
poderíam salvar e manter a “ imutabilidade tica no Colégio Romano, a fim de salvar a
dos céus” . Na realidade, os peripatéticos co “ perfeição” da lua, cogitou a hipótese de
gitarão “ imaginações” (hoje, diriamos “ hi que as montanhas e os vales observados por
póteses ad boc” ) em favor do sistema ptolo Galileu sobre a face da lua seriam recobertos
maico em perigo. Assim, por exemplo, o por uma substância cristalina transparente
jesuíta Cristóvão Scheiner interpretará as e perfeitamente esférica. Assim, diante dos
manchas solares como “enxames” de astros ataques “ factuais” realizados por Galileu
girantes diante do sol. Essa hipótese visava contra a teoria ptolomaica, Clávio efetuava
levar a causa das manchas para fora do sol, um contra-ataque “teórico” (logicamente
restabelecendo assim a imutabilidade e a possível, mas metodologicamente incorre
“perfeita” constituição do sol. Mas Galileu to, porque, impedindo a descoberta de er
fez notar que as manchas eram irregulares ros em uma teoria, impedia o avanço no
em sua formação e desenvolvimento, além sentido de teorias melhores e, portanto, o
de serem disformes, não apresentando por progresso do saber), um contra-ataque vol
tanto, em absoluto, as características de um tado para o restabelecimento da velha teo
sistema de astros. Outro jesuíta, o padre Clá- ria. E Galileu respondeu a Clávio:
199
Capítulo décimo primeiro - O d i*a m a d e Cialilew e a fu n d a ç ã o d a c i ê n c i a m o d e r n a
a s r a í z e s d o c k o c ju e c o m a g ec j a
e a c ^ í+ ic a d o m s + m m c E v + a lis m o d e S e i a c m m o
Essa breve carta é um texto clássico do ins- que seja para proibir, mas crê que o pior
trumentalismo. Belarmino recorda a Fosca- que possa acontecer-lhe seria fazer-lhe uma
rini que, “ como sabe o senhor, o Concilio advertência de que sua doutrina teria sido
proíbe que se exponham as Escrituras con introduzida para salvar as aparências, ou
tra o comum consenso dos santos Padres. E coisa semelhante, dirigida àqueles que in
se V. Sa. quiser ler, não digo somente os san troduziram os epiciclos e depois não acre
tos Padres, mas também os comentadores ditaram mais [...]” .
modernos, sobre o Gênesis, sobre os Sal Pois bem, respondendo de Florença a
mos, sobre o Eclesiastes e sobre Josué, verá Dini, em 23 de março, Galileu reafirmou a
que todos convergem em expor ad litteram veracidade do sistema copernicano. Na opi
que o sol está no céu e gira em torno da nião de Galileu, Copérnico falou da cons
terra com suma velocidade, bem como que tituição do universo e descreveu aquilo que
a terra está muito distante do céu e está no existe realmente in rerum natura, “ de modo
centro do mundo, imóvel. E considere ago que querer persuadir que Copérnico não
ra o senhor, com sua prudência, se a Igreja considerava verdadeira a mobilidade da
pode suportar que se dê às Escrituras um terra, ao meu ver, não poderia encontrar
sentido contrário aos santos Padres e a to concordância, senão, talvez, junto a quem
dos os expositores gregos e latinos” . Mas não o tenha lido, visto que todos os seus
logo afirma: “ Quanto ao sol e à terra, ne seis livros estão plenos de doutrina que de
nhum sábio tem necessidade de corrigir o pende da mobilidade da terra, explicando-
erro, porque experimenta claramente que a a e confirmando-a. E se, em sua dedicató
terra está firme e que o olho não se engana ria, ele muito bem entende e confessa que
quando julga que a lua e as estrelas se mo a posição da mobilidade da terra o levaria
vem” . Sendo assim, e considerando que o a ser considerado tolo universalmente, juí
Concilio tridentino proibiu interpretar as Es zo que ele afirma não levar em conta, mui
crituras “contra o comum consenso dos san to mais tolo teria sido ele deixar-se repu
tos Padres” , Belarmino afirma: “ Parece- tar por uma opinião por ele introduzida,
me que V.Sa. e o senhor Galileu seriam mas não inteira e verdadeiramente acre
prudentes em contentar-se de falar ex suppo- ditada” .
sitione e não em absoluto, como sempre Em suma, Copérnico não é um “mate
acreditei que Copérnico tenha feito. Pois mático” que apronta hipóteses como puros
dizer que a suposição de que a terra se move instrumentos de cálculo, mas sim um físico,
e o sol está firme salva as aparências melhor que pretende dizer como realmente são as
que os excêntricos e epiciclos está muito coisas. Em conseqüência disso, prossegue
bem dito, não havendo perigo algum — Galileu, Copérnico “ não é capaz de mode
e isso basta para o matemático. M as que ração, constituindo a mobilidade da terra e
rer afirmar que realmente o sol está no a estabilidade do sol o ponto principal de
centro do mundo e só gira sobre si mes toda a sua doutrina e o seu fundamento
mo, sem correr do Oriente para o Ociden universal: por isso, é preciso condená-lo in
te, e que a terra está no terceiro céu e gi teiramente ou deixá-lo em seu ser” .
ra com suma velocidade em torno do sol é Realista é Copérnico e realista é Gali
coisa perigosa, capaz não somente de irri leu. Mas se, como fazia Belarmino e, com
tar todos os filósofos e teólogos escolásti- ele, a Igreja, se supõe que as passagens da
cos, mas também arriscado de incomodar Bíblia relativas ao sistema do mundo, in
a Santa Sé por tornar falsas as Escrituras Sa terpretadas literalmente pela tradição, são
gradas.” efetivamente verdadeiras e intocáveis, en
Galileu, porém, não era da opinião de tão o choque frontal entre a Igreja e Gali
Belarmino. Para ele, as “ sensatas experiên leu tornava-se inevitável, dada a interpre
cias” e as “ demonstrações certas” estavam tação galileana realista da doutrina de
ali, proclamando a veracidade do sistema Copérnico, doutrina que contrastava com
copernicano. Em 7 de março de 1615, dom as passagens bíblicas referidas e interpreta
Piero Dini, que era então referendário apos das ao pé da letra. E foi sobre esse aspecto
tólico junto à corte pontifícia, enviou uma importante que acabou ocorrendo o cho
carta a Galileu, informando ter mantido que entre Galileu e a Igreja. Galileu teve de
longo colóquio com o cardeal Belarmino e ceder. Mas primeiro vejamos de que modo
comunica-lhe o seguinte: “ Quanto a Co Galileu concebia as relações entre ciência
pérnico, diz S.S. Ilma. não poder acreditar e fé. [5 ]
202
Segunda pavte - y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a
V. A iu c o m e u s u r a b ilid a d e
e n tr e c iê n c ia e fê
3 . A s é r is c H fu m s s e ee fe e e m
'
‘
m o d o c o m a s a g o r a c it a d a s , q u e s e m
a d e t e r m in a ç ã o d e la s n ã o se p o d e
à n o s s a s a lv a ç ã o a s s e r ir e s t a o u a q u e la p a r t e ; c o m o ,
i p o r e x e m p lo , d e t e r m in a r o m o v im e n -
i t o e o r e p o u s o d e u m a t e r r a e d o s o l.
No entanto, se as Escrituras não são j E s e o p r ó p r io E s p ír it o S a n t o p r u d e n -
um tratado de astronomia, qual é então seu y t e m e n t e o m it iu e n s in a r -n o s t a is p r o -
objetivo? De que nos falam? Qual é o âm j p o s iç õ e s , c o m o n a d a a t i n e n t e s à s u a
I in t e n ç ã o , o u s e j a , p a r a n o s s a s a lv a ç ã o ,
bito das “ verdades” que, não sendo englo-
f c o m o s e p o d e r á a g o r a a f ir m a r , q u e
báveis na ciência, elas podem propor e es í m a n t e r d e la s e s t a p a r t e , e n ã o a q u e -
tabelecer? A essas interrogações, Galileu f Ia , s e j a t ã o n e c e s s á r i o q u e u m a s e j a
responde o seguinte: “ Eu consideraria [...] t de fide, e a o u t r a e r r ô n e a ? P o d e r á ,
que a autoridade das Sagradas Escrituras | e n t ã o , h a v e r u m a o p i n iã o h e r é t ic a , e
tenha o objetivo de persuadir os homens I e m n a d a r e f e r e n t e à s a l v a ç ã o d a s a l-
principalmente daqueles artigos e proposi | m a s ? O u p o d e r e m o s d iz e r q u e o Es-
ções que, superando todo discurso huma C p ír it o S a n t o t e n h a d e s e ja d o n ã o e n -
i s i n a r - n o s u m a c o is a q u e s e r e f e r e à
no, não poderiam fazer-se críveis por outra
ciência nem por outro meio senão pela boca t s a lv a ç ã o ? E u d ir ia a q u i a lg o q u e ,o u v i |
r d e u m a p e s s o a e c le s iá s t ic a e m e m i- ^
do próprio Espírito Santo” . I n e n t ís s im o g r a u [c a r d e a l B a r ô n io ] , *
As proposições de fide dizem respeito à | is t o é , a i n t e n ç ã o d o E s p í r i t o S a n t o é f
nossa salvação (“como se vai ao céu” ), sen t n o s e n s in a r c o m o s e v a i a o c é u , e n ã o
do “ decretos de absoluta e inviolável vera | c o m o v a i o c é u [...]" . ;
cidade” . Em outros termos, a Escritura é l A s s im e s c r e v ia G a lile u , e m 1 6 1 5 , à s e -
uma mensagem de salvação que deixa intacta í n h o r a C r is t in a d e L o r e n a .
a autonomia da investigação científica.
Mas não é só isso, pois Galileu se em r> r , "\,r ... \ ' ^ i í .. c ^
penha em outras importantes considerações:
1) Erram aqueles que pretendem se
deter sempre no “puro significado das pa
lavras” , pois, caso se fizesse isso, escreve 3) A Escritura “ não apenas é capaz,
Galileu numa carta de 1613 a dom Bene- mas necessariamente carente de exposições
detto Castelli, então na Escritura “ apare diversas do aparente significado das pala
ceríam não somente diversas contradições, vras” , pois os escritores sacros dirigem-se “a
mas também graves heresias e blasfêmias, povos rudes e indisciplinados” .
já que seria necessário ver em Deus pés, 4) “Ademais, sendo manifesto que duas
mãos e olhos, bem como efeitos corporais e verdades não podem se contrariar nunca, é
humanos, como os de ira, de arrependimen função dos sábios expositores esforçarem-
to, de ódio e até, por vezes, de esquecimen se por encontrar o sentido das passagens
to das coisas passadas e de ignorância das sacras, harmonizando-as com aquelas con
futuras” . clusões naturais que se tornaram certas e
2) Daí deriva que, tendo a Escritura seguras pelo sentido manifesto ou pelas de
sido obrigada a se “ acomodar à incapaci monstrações necessárias.”
dade do vulgo” , então “ os sábios exposito 5) Desse modo, a ciência torna-se um
res produzem os vários sentidos e acrescen dos instrumentos a serem usados para se
tam as razões particulares pelas quais foram interpretar alguns trechos da Escritura.
proferidas tais palavras” . Com efeito, “tendo adquirido a certeza de
Segunda parte - r e v o lu ç ã o c ie n tífic a
V I. o p a im e i^ o p r o c e s s o
tara com sua primeira derrota. Bem perce Entre outras coisas, escrevia o embaixador:
bera o embaixador da Toscana em Roma, “ Sei bem que alguns frades de São Domin
Pedro Guicciardini, que, quando soube que gos, que têm grande participação no Santo
Galileu iria a Roma para se defender, es Ofício, e outros nutrem má vontade para
creveu uma carta ao ministro dos Médici, com ele. E este não é um lugar para se vir
Cúrcio Picchena, na qual observava que discutir sobre a lua, nem, no século que
Galileu iludia-se ao pretender levar idéias corre, querer defender ou trazer doutrinas
novas para a capital da Contra-reforma. novas” .
entre o mundo celeste, que seria incor te, coisa que não deveria se verificar se a
ruptível, e o mundo terrestre dos elementos terra se movesse; as coisas que “ se mantêm
que, ao contrário, seria mutável e alterável. longamente no ar” , como o caso das nu
Não existe tal distinção: isso é atestado pe vens, deveríam nos aparecer em movimen
los sentidos, potencializados pela luneta. E to veloz se a terra verdadeiramente se mo
como também para Aristóteles aquilo que vesse; ao se disparar dois projéteis iguais
dizem os sentidos está no fundamento do de um mesmo canhão, um em direção ao
discurso, então, como Salviati recorda a Sim- oriente e outro em direção ao ocidente, en
plício, “ estarás filosofando mais aristote- tão o alcance deste último deveria ser muito
licamente dizendo que o céu é alterável por maior que o do outro, já que, enquanto o
que assim mostram os sentidos do que projétil se desloca em direção ao ocidente, o
dizendo que o céu é inalterável porque as canhão também deveria se deslocar, seguin
sim discursou Aristóteles” . As montanhas do o movimento da terra, em direção ao
sobre a lua, as manchas lunares e o movi oriente. Mas, como isso não ocorre, então
mento da terra atestam que existe uma só a terra não está em movimento, diz Sim-
física e não duas físicas, uma válida para o plício. Ademais, continua argumentando
mundo celeste e outra para o terrestre. E na Simplício, se, em um navio parado, faz-se
“ perfeição” dos movimentos circulares que cair uma pedra de cima do mastro, ela cai
Aristóteles fundamenta a “perfeição” dos perpendicularmente na base do próprio
corpos celestes; depois, com base nesta últi mastro; mas, sendo em um navio em movi
ma, afirma a veracidade da primeira. Na mento, então a pedra que se deixa cair do
realidade, o movimento circular pertence alto do mastro cai longe da base do mas
não só aos corpos celestes, mas também à tro, desviando-se em direção à popa. En
terra. Conseqiientemente, na segunda jor tão, o mesmo deveria ocorrer com uma
nada, o Diálogo volta-se para a crítica dos pedra que se deixa cair de cima de uma tor
argumentos observados e típicos da obser re, supondo-se que a terra esteja em movi
vação comum que eram propostos contra a mento. Mas isso não se dá; portanto, a terra
teoria copernicana. Entretanto, antes de está parada.
passar para a segunda jornada (e depois à Pois bem, nesse ponto, partindo da
terceira, ambas dedicadas à análise e à so experiência que Simplício afirma verificar-
lução das dificuldades contra o movimento se sobre o navio, Galileu, pela boca de Sal
diário e anual da terra), Galileu realiza in viati e Sagredo, estabelece o princípio da
teressantes considerações sobre a linguagem, relatividade dos movimentos, destruindo
que ele vê como “ o selo de todas as admirá com isso de um só golpe todas aquelas “ ex
veis invenções humanas” . E escreve: “ Mas, periências” do senso comum que eram ar
acima de todas as estupendas invenções, que gumentadas contra a teoria do movimento
mente eminente foi aquela de quem imagi da terra. Em suma, por meio de suas teo
nou encontrar os modos de comunicar seus rias, consegue varrer todo o conjunto de “fa
recônditos pensamentos a qualquer outra tos” contrários a Copérnico e favoráveis a
pessoa, mesmo que distante por longuíssimo Ptolomeu, substituindo-os por outros “ fa
intervalo de tempo e de lugar? falar com tos” , outras “experiências” e outras “evi
aqueles que estão na índia ou com aqueles dências” . Com efeito, quem quer que faça a
que ainda não nasceram nem nascerão se experiência da pedra sobre o navio, verá que
não daqui a mil ou dez mil anos? e com tal ela “ mostra todo o contrário daquilo que é
facilidade? com as várias junções de vinte escrito” .
sinaizinhos sobre um papel!” Diz Salviati: “ Encerra-te com algum
amigo no maior cômodo que exista sob a
coberta de algum grande navio. Cuida de
que haja moscas, borboletas e semelhantes
O p e in c íp io d e r e la t i v i d a d e animaizinhos voadores. Que exista também
um grande vaso com água, com peixinhos
g a lile a r\ o
dentro. Suspenda-se também no alto algu
ma jarra, que gota a gota vá derramando
água em outro vaso, de boca estreita, que
Portanto, existem argumentos antigos esteja colocado embaixo. Estando o navio
e atuais contra o movimento da terra. Eis parado, observa com atenção como os ani
alguns: os graves caem perpendicularmen maizinhos voadores, com igual velocidade,
208
Segunda parte - y\ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a
vão em direção a todas as partes do cômo Também não se deve esquecer que, pelo
do; verás os peixes nadando indiferentemen princípio da relatividade, Galileu consegue
te em todas as direções; as gotas que caem neutralizar todo um conjunto de experiên
entrarão todas no vaso que está embaixo; ao cias que apontavam contra o sistema coper-
jogar alguma coisa para teu amigo, não de nicano, construindo outros fatos e interpre
verás lançá-la com mais força para esta par tando diversamente os antigos.
te do que para aquela, quando as distâncias E, mais ainda, o fato de que todo mo
forem iguais; e, ao saltar, como se diz, com vimento é relativo significa que o movimento
os pés juntos, percorrerás espaços iguais em não é atribuível a um corpo em si mesmo: e
qualquer direção. Oserva que terás diligen isto é o fim da doutrina aristotélica e medie
temente todas essas coisas, embora não haja val do impetus, ou seja, de um movimento
nenhuma dúvida de que assim devem ocor que necessita de um motor para produzi-lo
rer quando o navio está parado. Então, faz e conservá-lo. Repouso e movimento são
com que a nave se mova com qualquer ve dois estados persistentes dos corpos. E as
locidade que queiras (desde que o movimen sim Galileu abre o caminho para a formu
to seja uniforme e não flutuante daqui para lação do princípio de inércia.
ali) e verás que não reconhecerás nem míni
ma mudança em todos os efeitos citados,
nem por qualquer dos efeitos poderás per
ceber se o navio está andando ou parado: O se-gunclo processo:
continuarás percorrendo os mesmos espa a czoncl& nação
ços que antes no chão; por mais que a nave
e a a h ju r a ç ã o
se mova velozmente, nem por isso darás
saltos maiores em direção à popa do que à
proa, muito embora, no tempo em que es
tiveres no ar, o chão esteja se deslocando Urbano VIII foi convencido pelos ad
em direção à parte contrária à do teu sal versários de Galileu de que o Diálogo so
to; ao jogar alguma coisa para teu compa bre os dois máximos sistemas do mundo
nheiro, não precisarás atirá-la, para atin constituía uma afronta, desacreditando
gi-lo, com maior força se ele estiver na a autoridade e até o prestígio do papa, que
direção da proa do que da popa, estando teria sido ridicularizado na figura de Sim-
situado tu no ponto oposto; as gotas d’água plício, defensor daquela “ admirável e ver
continuarão caindo como antes no vaso que dadeiramente angélica doutrina” , à qual “ é
está embaixo, sem que uma sequer caia em forçoso acomodar-se” , de que se fala na
direção à popa, muito embora, enquanto a última página do Diálogo. Logo depois de
gota está no ar, a nave ande muitos palmos.” sua publicação, o inquisidor de Florença
Tudo isso nos mostra que, com base ordenou que sua difusão fosse suspensa.
em observações mecânicas realizadas no in Em outubro de 1632, ordenou-se a Galileu
terior de determinado sistema, é impossí que fosse a Roma, para ficar à disposição
vel estabelecer se tal sistema está parado do Santo Ofício. Galileu tentou atrasar sua
ou em movimento retilíneo uniforme: “ Se viagem para Roma, alegando motivos de
ja, portanto, o princípio de nossa contem saúde, mas a reação da Inquisição foi du
plação o considerar que, seja qual for o ríssima. Em 12 de abril de 1633 Galileu
movimento que se atribua à terra, é neces estava diante do Santo Ofício, sendo acu
sário que a nós, como habitantes dela e, sado de ter enganado o padre Riccardi, que
conseqüentemente, partícipes desse movi dera o imprimatur ao Diálogo, porque não
mento, apresente-se inteiramente impercep lhe havia comunicado o preceito que lhe
tível, sendo como se não existisse enquanto fora imposto em 1616, segundo o qual
estivermos olhando somente para as coi Galileu não podia “ ensinar ou defender de
sas terrestres.” modo algum” a teoria de Copérnico. Ga
A importância desse princípio de rela lileu defendeu-se afirmando que o Diálogo
tividade (galileana) salta logo aos olhos se fora escrito para mostrar a não-validade
recordarmos que a relatividade estrita de do copernicanismo e que não se recordava
Einstein outra coisa não é do que uma am de nenhum preceito que lhe houvesse sido
pliação da relatividade galileana a todos os imposto em presença de testemunhas. E
fenômenos naturais, inclusive os da eletrodi- mostrou a declaração que lhe havia sido da
nâmica e da ótica” . da por Belarmino em 1616.
Capítulo décimo primeiro - O d r a m a d e CÀ* ilileu e a jtm d a tp ã o d a c iê n c ia m o d e r n a .....-..
Persuadidos de que Galileu quisesse solutos, mais que antes, com coração since
enganá-los, visto que o Diálogo era forte ro e fé não fingida, diante de nós, abjures,
defesa da idéia copernicana, realizada ade maldigas e detestes os referidos erros e he
mais com “ argumentos novos, nunca pro resias, bem como qualquer outro erro e he
postos antes por nenhum ultramontano” ; resia contrários à Igreja católica e apostóli
irritados por ter Galileu escrito a obra não ca, do modo e na forma que por nós te serão
em latim, mas em linguagem popular, “ para dados [...]” .
arrastar à sua parte o vulgo ignorante, que E eis as partes inicial e final do texto
é fácil presa do erro atentando para o com o qual Galileu abjurou: “Eu, Galileu,
fato de que “ o autor sustenta ter discutido filho daquele Vincenzo Galileu de Florença,
uma hipótese matemática, mas confere-lhe nesta minha idade de setenta anos, consti
uma realidade física, coisa que os matemá tuído pessoalmente em juízo e ajoelhado
ticos nunca fazem” — com base em tudo diante de vós, Eminentíssimos e Reveren-
isso, depois de outro interrogatório, os in díssimos Cardeais, Inquisidores gerais em
quisidores emitiram sua condenação em 22 toda a República Cristã contra a herética
de junho. E nesse mesmo dia, de joelhos, maldade, e tendo diante de meus olhos os
Galileu abjurou. “Dizemos, pronunciamos, sacrossantos Evangelhos, que toco com as
sentenciamos e declaramos — assim termi próprias mãos, juro que sempre acreditei,
na o texto da condenação — que tu, o refe acredito agora e, com a ajuda de Deus, acre
rido Galileu, pelas coisas aduzidas em pro ditarei também no futuro em tudo aquilo
cesso e por ti confessadas como referidas que a santa Igreja católica e apostólica man
acima, te tornaste para este Santo Ofício tém, prega e ensina [...]. Portanto, queren
veementemente suspeito de heresia, isto é, do eu retirar da mente das Eminências
de haver mantido e crido em doutrina falsa Reverendíssimas e de todo fiel cristão essa
e contrária às sagradas e divinas Escrituras, veemente suspeição, justamente concebida
que o sol seja o centro da terra e que não se em relação a mim, com coração sincero e fé
mova do oriente para o ocidente, e que a não fingida, abjuro, maldigo e detesto os
terra se mova e não esteja no centro do referidos erros e heresias e, em geral, todo e
mundo, e que se possa manter e defender qualquer outro erro, heresia e seita contrá
como provável uma opinião depois de ela ria à santa Igreja. E juro que, para o futuro,
ter sido declarada e definida como contrá nunca mais direi nem afirmarei, por voz ou
ria à sagrada Escritura. Conseqüentemente, por escrito, coisas tais pelas quais se possa
incorreste em todas as censuras e penas dos ter de mim semelhante suspeita. E, se co
cânones sagrados e outras constituições ge nhecer algum herético ou suspeito de here
rais e particulares impostas e promulgadas sia, o denunciarei a este Santo Ofício, ao
contra semelhantes delinqüentes. E pelas Inquisidor ou Ordinário do local onde me
quais nos contentaremos se, em termos ab encontrar [...]” .
V III. A g r a n d e o í? m :
ú lt i m a
os Id isc u r so s a d c m o n s tr a ç õ e s m a te m á tic a s
cm tern o d e d u a s n o v a s c iê n c ia s
dois máximos sistemas: Salviati, Sagredo e fesse ser a virtude da geometria um instru
Simplício. Também os Discursos se desen mento mais potente que qualquer outro
volvem em quatro jornadas. Nas primeiras para aguçar o engenho e dispô-lo ao per
duas jornadas discute-se a ciência que se feito discorrer e especular? E que com muita
ocupa da resistência dos materiais. Eis a razão queria Platão seus estudantes bem
questão: quando se constroem máquinas de fundamentados nas matemáticas? Eu ha
proporções diversas, “ a máquina maior, via compreendido muito bem a faculdade
fabricada com a mesma matéria e com as da alavanca e como, crescendo ou reduzin
mesmas proporções que a menor, em todas do o seu comprimento, crescia ou desapa
as outras condições responderá com justa recia o momento da força e da resistência.
simetria em relação à menor, a não ser na Apesar de tudo isso, estava enganado na
robustez e na resistência às invasões violen determinação do presente problema: e não
tas; mas, quanto maior, for ela, proporcio de pouco, mas ao infinito.” E Simplício
nalmente será mais fraca” . acrescenta: “ Começo verdadeiramente a
Em outros termos: em todos os corpos compreender que a lógica, embora instru
sólidos encontra-se uma “ resistência a ser mento poderosíssimo para regular o nosso
quebrada” . E a questão que Galileu quer discurso, não alcança a agudeza da geome
resolver é a de identificar as relações mate tria quanto a preparar a mente para a in
máticas entre tal resistência e “ o comprimen venção” .
to e a espessura” de tais corpos.
Pois bem, na primeira jornada vê-se lo
go que a coisa que está antes de qualquer
outra necessidade é a investigação sobre a 2 A c é le b r e e x p e r iê n c ia
estrutura da matéria: trata-se da “continui d o p la n o in c lin a d o
dade” , do “vácuo” e do “ átomo” . São ana
lisadas as analogias e as diferenças entre a
subdivisão do matemático e do físico. A pro A terceira e a quarta jornadas são de
pósito do vácuo, Galileu polemiza contra a dicadas à segunda nova ciência, isto é, à di
idéia aristotélica de que o movimento seria nâmica. Salviati lê em latim um tratado so
impossível no vácuo. E também são cri bre o movimento que diz ter sido elaborado
ticadas as idéias de Aristóteles sobre a que por seu amigo Acadêmio (ou seja, Galileu).
da dos pesados, segundo as quais haveria E, à medida que Salviati lê, os outros dois
proporcionalidade entre o peso dos diver interlocutores, Sagredo e Simplício, pouco
sos pesados e a velocidade de sua queda. a pouco vão pedindo esclarecimentos e os
Galileu, porém, reafirma a opinião de que, recebendo. Mais especificamente, na tercei
“ caso se retirasse totalmente a resistência ra jornada são demonstradas as leis clássi
do meio, todas as matérias desceríam com cas sobre o movimento uniforme, sobre o
igual velocidade” . Depois, passa-se ao exa movimento naturalmente acelerado ou re
me das oscilações do pêndulo e de suas leis: tardado.
isocronismo e proporcionalidade entre o Galileu parte de definições “concebi
período de oscilação e a raiz quadrada do das e admitidas em abstrato” dos movimen
comprimento do pêndulo. Discutem-se ques tos e, depois, delas deduz rigorosamente as
tões de acústica, propondo aplicações dos características do movimento. Diante das
resultados obtidos a propósito das oscila objeções de Sagredo e Simplício, segundo
ções pendulares. as quais são necessárias experiências para
Na segunda jornada, a resistência dos se ter confirmação de que as leis dos movi
corpos sólidos é reconduzida aos sistemas e mentos correspondem à realidade, Galileu
combinações de alavancas. Assim, a nova (pela boca de Salviati) narra a célebre expe
ciência (que remonta ao “ sobre-humano riência dos planos inclinados, que é mais do
Arquimedes, que nunca nomeio sem admi que oportuno conhecer: “ Em uma régua —
ração” ), isto é, a estática, permite a Galileu ou, se quiserem, uma vigota — de madeira,
mostrar a “virtude” , ou seja, a eficácia, da com doze braças de comprimento e com lar
geometria no estudo da natureza física (e gura de meia braça por um lado e três de
também biológica: a natureza dos ossos dos pelo outro, escavou-se nesta menor lar
cavos, a proporção dos membros dos gi gura uma canaleta pouco mais larga que um
gantes etc.). Diz Sagredo: “ O que diremos, dedo. Estirava-se em linha reta, limpava-se
senhor Simplício? Não convém que ele con e alisava-se, colocava-se dentro da canaleta
211
Capitulo d é c it H O primeiro - CD drama de (Õalileu e a (uiadaípão da ciência moderna
ainda hoje poderíam ser encontradas, por ja encontra sua raiz mais profunda precisa
exemplo, em Aristóteles: “No entanto, se mente na concepção realista e profunda que
nhor Simplício, venha com razões e de Galileu tinha da ciência.
monstrações, suas ou de Aristóteles
Não se pede certidão de nascimento para a
verdade: em toda parte podem-se encon
trar “ razões” e “ demonstrações” . O im 5 P A ciêmcia é objetiva,
portante é fazer ver que são válidas e não porque descreve
que estão escritas nos livros de Aristóteles.
E contra os aristotélicos dogmáticos e as qualidades mensuráveis
livrescos, Galileu se refere precisamente a dos corpos
Aristóteles: é “o próprio Aristóteles” que “ an
tepõe [...] as experiências sensatas a todos
os discursos” , de modo que “ não duvido em A ciência pode nos dar uma descrição
absoluto de que, se Aristóteles vivesse em verdadeira da realidade, alcançando os ob
nossa época, mudaria de opinião. Isso pode jetos e, assim, sendo objetiva. Mas só pode
ser recolhido manifestamente do seu próprio sê-lo se estiver em condições de traçar uma
modo de filosofar: assim, quando ele escreve distinção fundamental entre as qualidades
considerar os céus inalteráveis etc., porque objetivas e as qualidades subjetivas dos cor
não se viu nenhuma coisa nova se gerar das pos, ou seja, somente na condição de que a
velhas ou nelas se dissolver, dá a entender ciência descreva as qualidades objetivas dos
implicitamente que, se houvesse visto um corpos, quantitativas e mensuráveis (publi
desses acidentes, teria considerado o con camente verificáveis), e exclua o homem de
trário, antepondo a sensata experiência ao si mesma, ou seja, as qualidades subjetivas.
discurso natural, como convém [...]” . No Saggiatore, podemos ler: “Portanto, digo
Portanto, o que Galileu pretende é li que me sinto bem arrastado pela necessida
bertar o caminho da ciência de um verdadei de, tão logo concebo uma matéria ou subs
ro obstáculo epistemológico, o autoritaris tância corpórea, concebendo tudo ao mes
mo de uma tradição sufocante que bloqueia mo tempo que ela é acabada e figurada por
a ciência. Em suma, Galileu promove “o fu esta ou aquela figura, que é pequena ou
neral [...] da pseudofilosofia” , mas não o fu grande em relação a outras, que está neste
neral da tradição enquanto tal. E isso é tão ou naquele lugar, neste ou naquele tempo,
verdadeiro que, mesmo com as devidas cau que ela se move ou está parada, que toca ou
telas, pode-se dizer que ele é platônico na fi não toca outro corpo, que ela é uma, pou
losofia e aristotélico no método. [T] cas ou muitas — e por nenhuma imagina
ção posso separá-la dessas condições. Mas
não me sinto forçado pela mente a ter de
saber se ela é branca ou vermelha, amarga
4 A ciência ou doce, surda ou muda, de bom ou mau
cheiro, necessariamente acompanhada de
nos diz verdadeiramente tais condições: ao contrário, se os sentidos
como ê jeito o mundo não a houvessem percebido, talvez o discur
so ou a imaginação, por si mesma, não a
alcançasse jamais (...)” .
Autônoma em relação à fé e contrária Em suma: cores, odores, sabores etc.,
às pretensões do saber dogmático, a ciência são qualidades subjetivas, ou seja, não exis
de Galileu é a ciência de um realista. Realis tem no objeto, mas somente no sujeito que
ta é Copérnico, realista é Galileu. Este não sente, assim como as cócegas não estão na
raciocina como “ puro matemático” , mas pluma, mas sim no sujeito que as sente. A
como físico, considerando-se mais “ filóso ciência é objetiva porque não se interessa
fo” (isto é, físico) do que matemático. Em pelas qualidades subjetivas, que variam de
outros termos, na opinião de Galileu, a ciên homem para homem, mas sim por aqueles
cia não é um conjunto de instrumentos (de aspectos dos corpos que, sendo quantifi-
cálculos) úteis (para fazer previsões), mas cáveis e mensuráveis, são iguais para todos.
muito mais a descrição verdadeira da reali E nem a ciência quer “ buscar a essência ver
dade, dizendo-nos “ como vai o céu” . E, dadeira e intrínseca das substâncias natu
como vimos, o choque entre Galileu e a Igre rais” . Aliás, escreve Galileu, “considero o
214
Segunda pavte - y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a
É no Saggiatore,
publicado em 1623,
que encontramos
a idéia galileana
fundamental de que
“o universo está escrito em
linguagem matemática,
e os caracteres
são triângulos, círculos,
V Viilcrnocna F c a t
e outras figuras geométricas
buscar a essência como empresa não menos produção e a dissolução, que podem ser
impossível e como esforço não menos vão apreendidas por nós [...]” . A ciência, por
tanto nas substâncias elementares próximas tanto, é conhecimento objetivo, conhecimen
quanto nas remotíssimas e celestes. E pare to das qualidades objetivas dos corpos — e
ce-me ser igualmente ignaro da substância essas qualidades são quantitativamente de-
da terra e da substância da lua, das nuvens termináveis, ou seja, são mensuráveis.
elementares das manchas do sol As
sim, nem as qualidades subjetivas nem a es
sência das coisas constituem o objeto da
ciência. Esta deve se contentar “ em tomar 6 O pressuposto ueoplatônico
conhecimento de algumas de suas sensa da ciêucia galileaua
ções” , como, por exemplo: “Por mais que
se empreenda a investigação da substância
das manchas solares, não restariam nada A ciência descreve a realidade, sendo
mais do que algumas de suas sensações, conhecimento e não “pseudofilosofia” , pelo
como o lugar, o movimento, a figura, a fato de que descreve as qualidades objeti
grandeza, a opacidade, a mutabilidade, a vas (isto é, primárias) e não as subjetivas
215
Capitulo d é c im o pYim eivO - O d m m a d e CÕalileu e a fu n d a ç ã o d a c i ê n c i a m o d e r n a
(secundárias) dos corpos. Mas — e, aqui, infinidade é como zero; mas, do ponto de
chegamos a um ponto central do pensamen vista intensivo, enquanto tal termo impor
to de Galileu — essa ciência descritiva da ta intensivamente, isto é, perfeitamente, al
realidade objetiva e mensurável só é possí guma proposição, digo que o intelecto hu
vel porque o próprio livro da natureza “ está mano entende algumas tão perfeitamente
escrito em linguagem matemática” . Ainda que delas tem certeza tão absoluta quanto
no Saggiatore encontramos: “A filosofia está a tenha a própria natureza. E tais são as
escrita neste imenso livro que continuamente ciências matemáticas puras, isto é, a geo
permanece aberto diante de nossos olhos (es metria e a aritmética, das quais o intelecto
tou falando do universo), mas que não se divino sabe infinitas proposições a mais,
pode entender se primeiro não se aprende a porque sabe-as todas, mas, daquelas pou
entender sua língua e conhecer os caracteres cas entendidas pelo intelecto humano, creio
em que está escrito. Ele está escrito em lin que sua cognição iguale a divina em certe
guagem matemática e seus caracteres são za objetiva, já que consegue entender sua
círculos, triângulos e outras figuras geomé necessidade, sobre a qual não pode haver
tricas, meios sem os quais é impossível en segurança maior” . Ora, se os conhecimen
tender humanamente suas palavras: sem tais tos geométricos e matemáticos são defini
meios, vagamos inutilmente por labirinto tivos, necessários e seguros, se a natureza
escuro” . está escrita em linguagem geométrica e
matemática e se o conhecimento é a redes-
coberta da linguagem da natureza, então
qualquer um pode ver o grau de confiança
7 yAciência que Galileu alimentava na razão e no co
não b u sc a a s c ssê n c ia sy nhecimento científico. Assim, o conheci
mento científico é muito mais do que um
e todavia o Komem possui conjunto de instrumentos mais ou menos
a\gun s couKeaimeutos úteis.
defiuitivos e não eevisíveis
de Aristóteles. No Diálogo, Simplício afir satez das teorias e dos conceitos do saber
ma que “ nenhuma coisa foi criada em vão e aristotélico. Assim ocorre, por exemplo, com
está ociosa no universo” , tanto que nós ve a idéia de “perfeição” de alguns movimen
mos “esta bela ordem de planetas, dispos tos e de algumas formas dos corpos.
tos em torno da terra em distâncias propor Na opinião dos aristotélicos, a lua não
cionadas para produzir sobre ela os seus podia ter vales e montanhas, já que eles a
efeitos, em nosso benefício” . Assim, como teriam privado daquela forma esférica e per
se poderá, sem desconhecer o plano de Deus feita que cabe aos corpos celestes. Galileu,
em favor do homem, “ interpor [...] entre o porém, observa: “Esse discurso já está bas
orbe supremo de Saturno e a esfera estrela tante gasto nas escolas peripatéticas, mas
da um espaço vastíssimo, sem qualquer es suspeito que sua maior eficácia consista so
trela, supérfluo e vão? Com que fim? Em mente no ter-se tornado habitual nas mentes
benefício e para a utilidade de quem?” . Mas dos homens e não no fato de que suas pro
logo Salviati responde a Simplício: “ Quan posições sejam demonstradas ou necessárias;
do me é dito que seria inútil e vão um espa ao contrário, creio que são muito titubean-
ço imenso interposto entre os orbes dos pla tes e incertas. Em primeiro lugar, não vejo
netas e a esfera estrelada, privado de estrelas como se possa afirmar em absoluto que a fi
e ocioso, como também seria supérflua tan gura esférica é mais ou menos perfeita que as
ta imensidade, em relação às estrelas fixas, outras, mas apenas com algumas reservas.
a ponto de superar toda nossa capacidade Por exemplo: para o corpo que necessita po
de apreensão, digo que é temeridade querer der virar-se para todos os lados, a figura es
transformar o nosso fraquíssimo discurso férica é perfeitíssima, razão pela qual os olhos
em juiz das obras de Deus, chamando de vão e as extremidades superiores dos ossos das
ou supérfluo tudo aquilo que, no universo, coxas foram feitos pela natureza perfeitamen-
não serve para nós.” te esféricos. Mas, ao contrário, para um cor
Assim, o universo determinista e me- po que necessitasse permanecer estável, tal
canicista de Galileu não é mais o universo figura seria de todas a mais imperfeita, razão
antropocêntrico de Aristóteles e da tradição. pela qual, na construção de muralhas, esta
Ele não é mais hierarquizado, ordenado e ria agindo pessimamente quem se servisse
finalizado em função do homem. de pedras esféricas, pois para este caso per
feitíssimas são as pedras angulares [...]” .
E assim que Galileu mostra a vacuida
de de um conceito proposto “ em absoluto” ,
9 tScmtea o vazio ao mesmo tempo em que mostra a eficácia
e a inservsatez de um conceito ao levá-lo para o plano em
pírico e relativizando-o: a idéia de “ perfei
de algumas ção” só funciona quando se fala dela “ a res
teoeias tradicionais peito de algo” , ou seja, do ponto de vista de
algum fim. Assim, uma coisa é mais ou me
nos perfeita enquanto for mais ou menos
Outra conseqüência da concepção ga- adequada a um fim prefixado ou, de todo
lileana do conhecimento científico é a de modo, dado. E essa “perfeição” é um atri
monstração da vacuidade ou até da insen buto controlável.
217
Capitulo décimo pvimeivo - O d f a m a d e é alileu e a f u n d a ç ã o d a c i ê n c i a m o d e r n a
..— X. y\ q u e s tã o d o m é to d o : -------
^ e x p e r iê n c ia s s e n s a ta s ^
e / o u ^ d e m o n s tr a ç õ e s n e c e s s á r ia s ^ ?
ninguém ousa pôr em discussão, mas que que, à primeira vista, parecia mostrar uma
encapsularam a observação em interpreta coisa, quando mais bem considerada nos as
ções inadequadas, criando assim muitos “ fa segura do contrário” . Naturalmente, “ aqui
tos” obstinados mas falsos. E o caso do sis lo que a experiência e o senso nos demons
tema aristotélico-ptolom aico: antes de tram” deve ser anteposto “ a todo discurso,
Copérnico, ao alvorecer, todos viam o sol por mais que nos parecesse bem fundamen
que surgia; depois de Copérnico, ao alvore tado” . Mas a experiência sensata é fruto de
cer, a teoria heliocêntrica nos faz ver a terra experimento programado, é tentativa de
que se abaixa. forçar a natureza a responder às nossas per
guntas.
3 ÍÁm exemplo
d e com o a o b s e r v a ç ã o
d eperv de d a s t e o r ia s
D O telescópio
no revolução astronômico
redor do sol, efetuam suas rotações periódicas
ao redor de um dos maiores planetas já conhe
cidos; e o este ora precedem, ora seguem, sem
jamais se afastar dele para além de determi
nados limites. Tais coisas foram por mim desco
Sidereus Nuncius: Golileu anuncio com bertas e observadas recentemente, mediante
esto obra, publicado em Veneza em 1610, uma luneta que excogitei, depois de ter sido
suos revolucionários descobertos astronômi iluminado pela graça divina.
cos; descobertos efetuados por meio de um No futuro, com o emprego de tal instru
novo instrumento, o telescópio. mento, por mim ou por outros serão realizadas
ulteriores descobertas, talvez também de
Nesta breve tratação apresento coisas im maior importância; de sua forma e estrutura,
portantes, que devem ser consideradas e aten como também de sua invenção, falarei agora
tamente avaliadas por todos os que estudam brevemente, antes de passar ao relato de mi
a natureza. Coisas importantes, repito tanto pela nhas observações.
superioridade da própria matéria, como por sua Há cerca de dez meses chegou a nossos
efetiva novidade, como por fim pelo instrumen ouvidos notícia de que um flamengo havia cons
to com que se manifestaram a nossos sentidos. truído uma lente, com a qual os objetos visí
Sem dúvida é importante conseguir acres veis, mesmo que um tanto distantes do olho do
centar inumeráveis outros astros à grandiosa observador, se percebiam distintamente como
multidão das estrelas fixas, que até hoje pu se estivessem próximos; e deste fato, verda
deram ser percebidas com as faculdades natu deiramente admirável, circulavam diversos tes
rais, e torná-los claros aos olhos, enquanto an temunhos, aos quais alguns davam fé e outros
tes nunca tinham sido vistos, salientando por não. R mesma coisa me foi confirmada poucos
outro lado que seu número é mais de dez ve dias depois pelo gentil francês Jacques Ba-
zes maior do que o das estrelas já conhecidas. douère, o que me impeliu a me dedicar inteira
Bela e interessante é também a superfí mente ao exome das causas e ao estudo dos
cie lunar, distante de nós cerca de sessenta raios meios para chegar à invenção de tal instrumen
terrestres, e que pode ser observada tão de to. fltingi este fim pouco depois, baseando-me
perto, como se distasse apenas duas de tais sobre a doutrina das refrações. €m primeiro lu
distâncias; onde o diâmetro da própria lua apa gar, providenciei um tubo de chumbo, aplican
rece aumentado cerca de 30 vezes, sua super do em suas extremidades duas lentes de vidro
fície cerca de 900, e seu volume aproximativa- de oóculos, ambas com uma face plana e com
mente 27.000 vezes, em relação o quanto se a outra esfericamente côncava na primeira len
vê com o mero auxílio da capacidade visual: do te e convexa na segunda; então, encostando o
que, depois, coda um está em grau de apurar, olho na lente côncava, percebi os objetos bas
com a certeza dos próprios sentidos, que a lua tante grandes e próximos, pois apareciam três
não é de fato revestida de uma superfície lisa vezes mais próximos e nove vezes moiores do
e lúcida, mas aparece rugosa e desigual, sen que se apresentavam olhados apenas com a
do, como a terra, recoberta em toda parte de visão natural. €m seguida aprontei outro mais
notáveis relevos, abismos profundos e anfrac- preciso e que aumentava os objetos mais de
tuosidades. sessenta vezes. No fim, não poupando fadiga
Não parece, além disso, coisa de pouca nem despesa, consegui construir um instrumen
monta ter resolvido as controvérsias sobre a to tão extraordinário que as coisas vistas por
Galáxia ou Via-láctea e ter mostrado sua ver meio dele pareciam quase mil vezes maiores e
dadeira natureza a nossos sentidos, além de trinta vezes mais próximas do que se observa
para o intelecto; como será coisa interessan das apenas a olho nu. Totalmente supérfluo
te e belíssima também mostrar diretamente seria dizer quão mumerosas e conspícuas se
que os corpos estelares, denominados até jam as vantagens deste instrumento, tanto na
hoje por todos os astrônomos Nebulosas, são terra como no mar. Mas eu, deixando as coisas
bastante diversos do que foram comumente con terrenas, me dirigi à contemplação das celes
siderados. tes; e, em primeiro lugar, olhei o lua tão de
221
Capítulo décimo primeiro - O d ^ama de Püalileu e a fu ndação d a ciência moderna
perto, como se distasse apenas dois raios ter temos mais apenas um planeta que gira ao re
restres. Depois, com incrível alegria do espírito, dor de outro, enquanto ambos percorrem o gran
observei repetidamente os estrelas, tanto as de orbe ao redor do sol; mas nossos sentidos
fixas, como as errantes; e, percebendo-os tão nos mostram bem quatro estrelas que, como a
densos, comecei a pensar o modo de poder lua ao redor da terra, giram ao redor de Júpiter,
medir suas distâncias, o que por fim descobri. enquanto todos juntos com Júpiter percorrem o
Todos aqueles que pretendem proceder a ob grande orbe ao redor do sol no espaço de doze
servações de tal tipo, convém que sejam previ anos. Por fim, não deve ser transcurado o fato
amente advertidos disto. Gm primeiro lugar, com por qual motivo aconteça que os Rstros M edi
efeito, eles devem providenciar uma ótima lu- ceus, enquanto efetuam rotações muito próxi
neta, que mostre os objetos bem cloros, distin mas ao redor de Júpiter, parecem por vezes
tos e em nada embaçados, mas os engrande maiores do que o dobro. Não se pode absolu
ça ao menos quatrocentos vezes, fazendo-os tamente procurar a causa disso nos vapores
aparecer vinte vezes mais próximos; se o instru celestes, dado que eles resultam maiores ou
mento não for tal, em vão se procurará descor menores sem que as dimensões de Júpiter e
tinar todas as coisas por nós percebidas no céu, das fixas próximas apareçam contempora-
das quais em breve falaremos. neamente em nada alteradas. Nem parece crí
Tais são as observações sobre os quatro vel que tal mudança dependa de suas diversas
Planetas Mediceus, por mim recentemente e em distâncias da terra no perigeu e no apogeu das
primeiro lugar descobertos; e, embora não seja rotações por eles realizadas, não podendo uma
ainda possível deles conseguir a duração de rotação circular estrita produzir qualquer efeito
seus períodos, podemos todavia tornar conhe do gênero; e nem mesmo um movimento elíptico
cidos algumas coisas dignas de atenção. Gm (que neste caso seria quase reto) parece con
primeiro lugar, pelo fato de oro seguir e ora cebível, mas até contrário às aparências [...].
preceder Júpiter com tais intervalos e uma vez Os limites de tempo me impedem de proceder
que se afastam deste tanto paro oriente como além; mas destas coisas o sereno leitor espere
para ocidente com reduzidíssimos alongamen em breve uma tratação mais longa.
tos, acompanhando-o tanto no movimento re G. Galilei,
trógrado, quanto, igualmente, no dirigido, nin S id e re u s Nuncius.
guém pode duvidar que eles girem ao redor de
Júpiter, enquanto todos juntos realizam seus
períodos de doze anos ao redor do centro do
mundo, fllém disso, giram sobre círculos de raio
diferente, isto é, que facilmente se deduz do
Ciência e fé
fato de que aos máximos alongamentos de
Júpiter jamais se puderam ver dois planetas Nesto carta enviado em 21 de dezem
unidos juntos, enquanto, ao contrário, em pro bro de 1613 a seu discípulo dom Benedetto
ximidade de Júpiter foram percebidos bem pró Castelli - leitor de matemática no Estúdio de
ximos dois, três e por vezes todos os quatro. Pisa -, Galileu esclarece a relação que ele
Igualmente, salientamos que as rotações dos vê entre ciência e fé. “Eu crería que a autori
planetas que descrevem círculos menores ao dade das Sagradas Letras tivesse tido em
redor de Júpiter são os mais velozes: com efei mira somente persuadir os homens daque
to, as estrelas mais próximas de Júpiter são les artigos e proposições, que, sendo neces
percebidas bastante freqüentemente a orien sários para sua salvação e superando todo
te, tendo no dia anterior aparecido a ocidente, discurso humano, não podiam por outro ciên
e vice-versa, enquanto o planeta que procede cia nem por outro meio se tornar críveis, o
ao longo do orbe mais amplo, contanto que se não ser pela boca do inteiro Espírito Santo".
atente paro suas voltas, parece ter um ciclo de Mais tarde, em 1615, em uma igual
meio mês. Temos igualmente um excelente e mente famosa carta à senhora Eristino de
claríssimo argumento para aliviar de qualquer Lorena, Galileu sustentará que "é o intenção
dúvida a todos os que, embora admitindo sem do Espírito Santo [...] ensinar como se vai ao
dificuldade no sistema copernicano a rotação céu, e não como vai o céu [...]".
dos planetas ao redor do sol, ficam totalmente
perplexos a respeito do único rotação lunar ao
redor da terra, enquanto esta e a lua percor Mui Reverendo Padre e Senhor meu
rem o orbe anual ao redor do sol, de modo a Observantíssimo,
concluir que tal estrutura do cosmo deva ser Ontem veio a meu encontro o Sr. Nicolau
rejeitada como impossível: ora, com efeito, não firrighetti, que me trouxe informações de V.
222
Segunda pavte - j \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a
Revma., em que tive infinito prazer oo ouvir aqui pendimento, o ódio, e por vezes até o esqueci
lo de que eu de modo nenhum duvidava, isto mento das coisas passadas e a ignorância das
é, da grande satisfação que V. Revma. dava a futuras. De onde, assim como na (Escritura se
todo este (Estúdio, tanto para seus superinten encontram muitas proposições que, quanto ao
dentes quanto para os próprios leitores e aos sentido nu das palavras, têm aspecto diverso
estudiosos de todas as nações; o aplauso de do verdadeiro mas são postas desse modo à
les não tinha contra o senhor acrescido o nú guisa de se acomodar à incapacidade do vul
mero dos êmulos, como costuma acontecer en go, também para os poucos que merecem ser
tre aqueles que são de prática semelhante, mas separados da plebe é necessário que os sábi
bem depressa o restringira o pouquíssimos; e os expositores produzam os verdadeiros senti
estes poucos deverão ainda se aquietar, se não dos, e acrescentem a isso as razões particula
quiserem que tal emulação, que costuma ainda res pelas quais tenham sido proferidas sob tais
por vezes merecer o título de virtude, degenere palavras.
e mude o nome para afeto censurável e preju Portanto, sendo que a (Escritura em muitos
dicial finalmente mais aos que com ele se ves lugares é não somente capaz, mas necessaria
tem do que a nenhum outro. mente carente de exposições diversas do apa
Mas o selo de todo o meu gosto foi o de rente significado das palavras, parece-me que
ouvi-lo contar os raciocínios que V. Revma. teve nas disputas naturais ela deveria ser reserva
ocasião, mercê da suma benignidade destas da para o último lugar: porque procedendo
Altezas Sereníssimas, de promover à mesa de igualmente do Verbo divino o €scritura Sagrada
les e de continuar depois no aposento da se e a natureza, aquela como ditada pelo (Espírito
nhora Sereníssima, presentes também o Grão- Santo, e esta como fidelíssima executora das
Duque e a Sereníssima Arquiduquesa, e os ordens de Deus; e sendo, mais ainda, conve
ilustríssimos e excelentíssimos Senhores D. An niente nas (Escrituras, para acomodar-se ao en
tônio e D. Paulo Giordano e alguns dos mui tendimento do universal, dizer muitas coisas di
excelentes filósofos. € que maior favor pode V. versas, no aspecto e quanto ao significado das
Revma. desejar, senão o ver Suas Altezas mes palavras, do verdadeiro absoluto; mas, ao con
mas experimentarem satisfação de discorrer con trário, sendo a natureza inexorável e imutável
sigo, de promover-lhe dúvidas, de ouvir suas so e de nada cuidando a não ser de suas recôndi
luções, e finalmente de permanecer sastifeitas tas razões e modos de operar por bem ou por
com as respostas de Vossa Paternidade? mal, expostos à capacidade dos homens, pelo
Os particulares que V. Revma. disse, refe fato de ela jamais transgredir os termos das
ridos a mim pelo Sr. Arrighetti, deram-me oca leis a ela impostas; parece que o que diz res
sião de voltar a considerar algumas coisas em peito aos efeitos naturais que a sensata expe
geral a respeito de levar a (Escritura Sagrada riência nos põe diante dos olhos ou as ne
em disputas de conclusões naturais, e algumas cessárias demonstrações nos concluem, não
outras, em particular sobre o lugar de Josué, deve de modo algum ser revogado como duvi
que lhe foi proposto, em contradição da mobi doso por passagens da (Escritura que tivessem
lidade da terra e estabilidade do sol, pela Grã- nas palavras semblante diverso, pois nem todo
Duquesa Mãe, com alguma réplica da Sere dito da (Escritura está ligado a obrigações tão
níssima Arquiduquesa. severas como todo efeito de natureza.
Quanto à primeira pergunta genérica do Ao contrário, se apenas por este respei
senhora Sereníssima, parece-me que pruden- to, de acomodar-se à capacidade dos povos
tissimamente fosse proposto por ela e conce rudes e indisciplinados, a (Escritura não se abs
dido e estabelecido por V. Revma., não poder teve de sombrear seus dogmas fundamentais,
jamais a €scritura Sagrada mentir ou errar, mas até atribuindo ao próprio Deus condições afas-
serem seus decretos de absoluta e inviolável tadíssimas e contrárias à sua essência, quem
verdade. €u apenas teria acrescentado que, irá querer sustentar de modo asseverativo que
embora a (Escritura não possa errar, por vezes ela, ao falar ainda que incidentalmente de ter
poderio errar algum de seus intérpretes e ex ra ou de sol ou de outro criatura, tenha escolhi
positores, de vários modos: entre eles um se do conter-se com todo rigor dentro dos limita
ria gravíssimo e freqüentíssimo, quando quises dos e restritos significados das palavras? 6
sem parar sempre no puro significado das principalmente pronunciando destas criaturas
palavras, porque assim apareceriam não só di coisas muitíssimo distantes do instituto primá
versas contradições, mas também graves here rio destas Sagradas Letras, ou melhor, coisas
sias e até blasfêmias; pois seria necessário dar tais que, ditas e levadas com verdade nua e
a Deus pés e mãos e olhos, sem falar dos afe crua, teriam mais depressa danificado a inten
tos corporais e humanos, como a ira, o arre ção primeira, tornando o vulgo mais contumaz
223
Capítulo décimo primeiro - O d r a m a d e CTalileu e a f u n d a ç ã o d a c i ê n c i a m o d e r n a
às persuasões o respeito dos ortigos referen tas. Todavia, se os primeiros escritores sacros
tes à salvação. tivessem como pensamento próprio persuadir
Isto posto, e sendo ainda manifesto que o povo das disposições e movimentos dos cor
duas verdades jamais podem se contradizer, é pos celestes, não teriam tratado tão pouco dis
ofício dos sábios expositores afadigar-se para so, que é como nada em comparação com as
encontrar os verdadeiros sentidos dos textos infinitas conclusões altíssimas e admiráveis que
sagrados, de acordo com as conclusões naturais estão contidas em tal ciência.
das quais antes o sentido manifesto ou as de Veja, portanto, V. Revma. o quanto, se não
monstrações necessárias nos tivessem tornado estou errado, desordenadamente procedem os
certos e seguros. Ou melhor, sendo, como eu que nas disputas naturais, e que diretamente
disse, que as Cscrituras, embora ditadas pelo não são de fíde, no primeira frente constituem
Espírito Santo, pelas aduzidas razões admitem passagens da (Escritura, e com freqüência pes
em muitos lugares exposições distantes do tom simamente entendidas por eles. Contudo, se
literal e, além do mais, não podendo nós com cer esses tais verdadeiramente crêem ter o verda
teza asserirque todos os intérpretes falem ins deiro sentido daquela particular passagem da
pirados divinamente, eu creio que fosse pru Cscritura, e por conseguinte se mantêm segu
dentemente feito que não se permitisse a alguém ros de ter em mão a absoluta verdade da ques
empenhar os lugares da (Escritura e obrigá-los tão que pretendem disputar, digam-me em se
de certo modo a ter de sustentar como verda guida ingenuamente, se consideram grande
deiras algumas conclusões naturais, das quais vantagem ter aquele que em uma disputa na
o sentido e as razões demonstrativos e neces tural acha-se a sustentar o verdadeiro, vanta
sárias nos pudessem manifestar o contrário. gem, digo, sobre o outro a quem toca sustentar
€ quem quer pôr termo aos engenhos hu o falso? Sei que me responderão que sim, e
manos? Quem desejará asserir que já é sabi que aquele que sustenta a parte verdadeira
do tudo o que é cognoscível no mundo? C, por poderá ter mil experiências e mil demonstra
isso, além dos artigos referentes à salvação e ções necessárias para a sua parte, e que o outro
ao estabelecimento da fé, contra a firmeza dos não pode ter senão sofismas, paralogismos e
quais não há perigo nenhum de que jamais falácias. Mas, se eles, mantendo-se dentro de
possa insurgir alguma doutrina válida e eficaz, termos naturais nem produzindo outras armas
seria ótimo talvez não acrescentar outros sem a não ser as filosóficas, sabem ser tão superio
necessidade: e, se assim é, quanto maior de res ao adversário, por que, ao vir depois ao
sordem seria acrescentá-los a pedido de pes congresso, trazem na mão uma arma inevitável
soas que, além do fato de ignorarmos se falam e tremenda, que só ao vê-la aterroriza todo mais
inspiradas por virtude celeste, claramente ve hábil e esperto campeão? Todavia, se devo di
mos que são inteiramente desprovidas daque zer o verdade, creio que eles sejam os primei
la inteligência que seria necessária não direi ros apavorados, e que, sentindo-se inábeis a
para redargüir, mas para compreender as de poder estar fortes contra os assaltos do adver
monstrações com as quais as agudíssimas ciên sário, tentem encontrar um modo de não o dei
cias procedem para confirmar algumas conclu xar se aproximar. Mas visto que, como acabei
sões suas? de dizer, aquele que tem de seu lado a parte
€u creria que a autoridade das Sagradas verdadeira, tem grande vantagem, ou melhor,
Letras tivesse tido apenas a intenção de per grandíssima, sobre o adversário, e porque é
suadir sobre os homens os artigos e proposi impossível que duas verdades se contradigam,
ções que, sendo necessários para sua salva porém não devemos temer assaltos que sejam
ção e superando todo discurso humano, não feitos por quem quer que seja, contanto que
podiam por outra ciência nem por outro meio nos dêem oportunidade para falar e ser ouvi
tornar-se críveis, a não ser pela boca do pró dos por pessoas compreensivas e não opressi
prio (Espírito Santo. Mas que aquele mesmo vamente alteradas pelas próprias paixões e
Deus que nos dotou de sentidos, de discurso e interesses.
de intelecto, tenha desejado, pospondo o uso Como confirmação disso, vou agora con
destes, dar-nos com outro meio as notícias que siderar o lugar particular de Josué, pelo qual V.
podemos conseguir por aqueles, não penso ser Revma. fez a suas Altezas Sereníssimas três
necessário crer nisso, e principalmente naque declarações; e tomo a terceira, queV. Revma.
las ciências das quais apenas mínima partícula fez como minha, como verdadeiramente é, e a
e em conclusões divididas podemos lê-las na ela acrescento alguma consideração a mais, que
(Escritura; como, justamente, a astronomia, da não creio ter-lhe dito outra vez.
qual há tão pequena parte, que aí não se en Posto e concedido por enquanto ao ad
contram denominados nem mesmo os plane versário que as palavras do texto sagrado de
2 24
Segunda pavte - y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a
vam ser tomadas exatamente no sentido com Sendo, portanto, absolutamente impossí
que soam, isto é, que Deus a pedido de Josué vel na constituição de Ptolomeu e de Aristóteles
fizesse parar o sol e prolongasse o dia, de modo parar o movimento do sol e alongar o dia, assim
que ele conseguiu o vitória; mas, requerendo como afirma a (Escritura ter acontecido, então é
eu ainda que a mesma coisa valha para mim, preciso que os movimentos não sejam ordena
de modo que o adversário não presuma pren dos como quer Ptolomeu, ou é preciso alterar o
der-me e deixar-se livre quanto a poder alte sentido das palavras, e dizer que quando a
rar ou mudar os significados das palavras; digo (Escritura diz que Deus parou o sol, queria dizer
que esta passagem nos mostra manifestamen que parou o primeiro móvel, mas que, para aco
te a falsidade e im possibilidade do mundano modar-se à capacidade daqueles que são com
sistema aristotélico e ptolemaico, e, ao con fadiga idôneos a entender o nascer e o pôr-
trário, se acomodo muito bem com o coper- do-sol, ela dissesse ao contrário daquilo que
nicano. teria dito falando a homens sensatos.
£m primeiro lugar, pergunto ao adversá Acrescentemos a isso que não é crível que
rio se ele sabe com quais movimentos o sol se Deus parasse apenas o sol, deixando correr as
move? Se ele o sabe, é preciso que respondo outras esferas; porque sem necessidade nenhu
o mover-se com dois movimentos, ou seja, o mo ma teria alterado e permutado toda a ordem,
vimento anual do poente para o levante, e do os aspectos e as disposições das outras estre
diurno ao oposto, do levante para o poente. las em relação ao sol, e grandemente pertur
Rgora, em segundo lugar, lhe pergunto se bado todo o curso da natureza: mas é crível
estes dois movimentos, tão diversos e quase que ele parasse todo o sistema das esferas
contrários entre si, competem ao sol e são igual celestes, as quais, depois daquele tempo do
mente seus próprios? é preciso responder que repouso interposto, retornassem concordemente
não, mas que um só é próprio e particular dele, a suas operações sem qualquer confusão ou
isto é, o anual, e o outro não é de fato seu, alteração.
mas do céu altíssimo, digo, do primeiro móvel, Mas, uma vez que já concordamos que
o qual rapta consigo o sol e os outros planetas não se deve alterar o sentido das palavras do
e ainda a esfera estrelada, obrigando-os a fa texto, é necessário recorrer a outra constituição
zer uma conversão ao redor da terra em 24 das partes do mundo, e ver se conforme o ela
horas, com movimento, conforme disse, quase o sentimento nu das palavras caminha reta
contrário ao seu natural e próprio. mente e sem tropeço, como verdadeiramente
Vou para a terceira interrogação, e lhe se percebe ocorrer.
pergunto com qual desses dois movimentos o Tendo eu portanto descoberto, e neces
sol produz o dia e o noite, isto é, se com o seu sariamente demonstrado, o globo do sol revol
próprio ou então com o do primeiro móvel? € ver-se em si mesmo, fazendo uma inteira con
preciso responder que o dia e a noite são efei versão em aproximadamente um mês lunar, para
tos do movimento do primeiro móvel, e que aquele lado justamente que se fazem todas as
do movimento próprio do sol dependem não outras conversões celestes; e sendo, além dis
o dia e a noite, mas as estações diversas e o so, muito provável e razoável que o sol, como
próprio ano. instrumento e ministro máximo da natureza,
Ora, se o dia depende não do movimen como que o coração do mundo, dê não somen
to do sol, mas do do primeiro móvel, quem não te, como cloramente dá, luz, mas ainda o movi
vê que para prolongar o dia é preciso parar o mento a todos os planetas que giram ao redor
primeiro móvel, e não o sol? Ou melhor, quem de si; se, conforme à posição de Copérnico, atri
haverá que entendo estes primeiros elementos buirmos a terra principalmente a conversão diur
de astronomia e não saiba que, se Deus tives na; quem não vê que para parar todo o siste
se parado o movimento do sol, em vez de pro ma, e portanto, sem alterar o restante das
longar o dia ele o teria reduzido e tornado mais mutáveis relações dos planetas, apenas se pro
breve? Pois, sendo o movimento do sol ao con longassem o espaço e o tempo da iluminação
trário da conversão diurna, quanto mais o sol diurna, bastou que fosse parado o sol, como
se movesse para o oriente, tanto mais seria justamente soam as palavras do texto sagra
retardado seu percurso para o ocidente, e di do? €is, então, o movimento segundo o qual,
minuindo-se ou anulando-se o movimento do sem introduzir confusão alguma entre as partes
sol, em mais breve tempo alcançaria o ocaso; do mundo e sem alteração das palavras da
tal acidente sensatamente se vê na lua, que (Escritura, se pode, com o parar do sol, alongar
faz suas conversões diurnas tanto mais tarde o dia na terra.
do que as do sol, quanto seu movimento pró (Escrevi muito mais do que comportam mi
prio é mais veloz que o do sol. nhas indisposições: termino, porém, oferecen-
225
Capítulo décimo primeiro - O d f*a m a d e (Elalileu e a f u n d a ç ã o d a c iê n c ia m o d e r n a
do-m© como servidor, 0 lhe beijo os mãos, de ríam; contudo, sua singular cortesia não me per
sejando-lhe os boos festos de Nosso Senhor e mitiu poder usar maiores.
todo felicidade. Estou grato de ouvir que V. 5a. Exma., junto
G. Galilei, com muitos outros, assim como me diz a carta,
Corto o dom Benedetto Castelli tenha-me como avesso à filosofia peripatética,
(escrita de Rorença porque isto me dá ocasião de libertar-me de
no dia 21 de dezembro de 1ól 3) tal conotação (pois assim a considero) e de
mostrar como eu internamente sou admirador
de um homem do porte de Rristóteles. Conten-
tar-me-ei bem nesta estreiteza de tempo de
acenar com brevidade aquilo que penso, com
Método e experiência mais tempo, poder mais larga e manifestamen
te declarar e confirmar.
O método científico: "Cntre as seguros Eonsidero (e creio queV. 5a. ainda consi
maneiros poro alcançara verdade está o an dere) que ser verdadeiramente peripatético, isto
tepor o experiência a qualquer discurso, e s é, filósofo aristotélico, consista principalmente
tando seguros de que nele, ao menos de em filosofar conforme os ensinamentos aristo-
modo encoberto, está contida a falácia, não télicos, procedendo com os métodos 0 as ver
send o p o ssíve l que uma sensata e x p e dadeiras suposições e princípios sobre os quais
riência seja contrária ao verdadeiro [...]. Es se fundamenta o discurso científico, supondo as
tou seguro de que, se Rristóteles voltasse notícias gerais cujo desvio seria grandíssimo
ao mundo, ele me recebería entre seus s e defeito. Entre essas suposições está tudo aquilo
guidores [...]. € quando Rristóteles visse as que Rristóteles nos ensina em sua Dialética,
novidades descobertas atualmente no céu, atinente a nos tornar coutos em fugir das falá
que ele afirmou ser inalterável e imutável, cias do discurso, endereçando-o e adestrando-
porque nenhuma alteração fora até então o a bem silogizar e deduzir dos concessões pre
vista, indubitavelmente ele, mudando de missas a necessária conclusão; e tal doutrina
opinião, dirio ogoro o contrário; p ois bem se se refere à forma do retamente argumentar.
deduz que, enquanto nos diz que o céu é Quanto a esta parte, creio ter aprendido pelos
inalterável, é porque não fora vista altera inumeráveis progressos matemáticos puros, ja
ção, mas agora dirio que é alteróvel, porque mais falazes, tal segurança no demonstrar, que,
a í se percebem alterações". senão jamais, ao menos raríssimas vezes eu
tenha em minha argumentação caído em equí
vocos. Rté aqui, portanto, sou peripatético.
Entre as maneiras seguras para alcançar
R Fortúnio liceti em Pádua a verdade está o antepor a experiência a qual
quer discurso, estando seguros de que nele,
Mui Ilustre e Excelentíssimo Senhor ao menos de modo encoberto, está contida a
R gratíssimo corto de V. So. mui Ilustre e falácia, não sendo possível que uma sensata
Exma. do 7 último, cheio de termos corteses e experiência seja contrária ao verdadeiro: este
ofetuosíssimos, foi-me entregue hoje; e não é também um preceito muito apreciado por
tendo eu outro tempo poro responder-lhe mois Rristóteles e consideravelmente anteposto ao
que poucos horas que restom oté o noite, poro valor e à força da autoridade de todos os ho
não diferir o resposto uma semono o mais, pro mens do mundo, a qual V. Sa. mesma admite
curo satisfazer esto obrigação, embora sucinto que não só não devemos ceder às autoridades
mente, porém com polovros puros e simples. de outros, mas devemos negá-la a nós mes
Ro que V. So. Exma. junto comigo grande mos, todas as vezes virmos que o sentido nos
mente desejo, isto é, que em disputas de ciên mostre o contrário. Ora, aqui, Exmo. Sr., seja
cia sejam observados os mois corteses 0 mo dito com boa paz para V. Sa., parece-me ser
destos termos que em matéria too venerando, julgado contrariamente ao filosofar peripatético
como o sagrada filosofia, convêm, dou-lhe o por aqueles que sinistramente se servem do
palavra de que não me separo sequer um dedo supradito preceito, puríssimo e seguríssimo, isto
de seu ingênuo e honroso estilo: motivo pelo é, que querem que o bem filosofar seja rece
qual usarei os mesmos títulos, atributos e encô- ber e sustentar toda proposição dita e escrita
mios de honra para com sua pessoa, que V. Sa. por Rristóteles, a cuja autoridade absoluta se
empregou humanamente para comigo, embora submetem, e para cuja manutenção se induzem
[convenham] muito mais ao senhor do que a a negar experiências sensatas ou a dar estra
mim, 0 de modo muito mais excelente convi nhas interpretações aos textos de Rristóteles,
226
Segunda pavte - y \ r e v o lu ç ã o c ie n tífic a
por declaração e limitação dos quais mui fre- nha, a não ser enquanto com menor tédio do
qüentemente fariam com que o mesmo filósofo leitor eu poderio exprimir meus sentidos; po
dissesse outras coisas não menos extravagan rém, minha dureza natural ao manifestar-me faz
tes e seguramente distantes de suo imagina que por vezes permito-me transbordar onde não
ção. Não repugna que um grande artífice tenho desejaria: além do mais, seja por nossa con
seguríssimos e perfeitíssimos preceitos em suo corde filosofia e amigável liberdade lícito agra
arte, e que por vezes ao operar erre em algum davelmente dizer, quando o senhor comparas
particular; como, por exemplo, que um músico se a multiplicidade e extensão das oposições
ou pintor, possuindo os verdadeiros preceitos que o senhor faz à minha única proposição do
da arte, cometa na prática alguma dissonância, candor lunar, traçada em pouquíssimos versos,
ou inadvertidamente algum erro na perspecti comparasse digo, com a extensão de minhas
va. Gj , portanto, por saber que tais artífices não respostas, talvez o senhor não encontraria a
só possuíam os verdadeiros preceitos, mas eles proporção de seus ditos com os meus menor
próprios foram seus inventores, vendo alguma que a proporção dos versos de minha carta com
falta em alguma de suas obras, devo aceitar os versos que suas instâncias contêm. Mas es
isso como bem feito e digno de ser sustentado tas são questiúnculas que não devem ser to
e imitado, em virtude da autoridade deles? Rqui madas senão como brincadeira.
de fato não prestarei meu assentimento. Que Muito me agrada que V. Sa. aplauda meu
ro acrescentar por ora apenas isto: que eu me pensamento de reduzir em outra textura minhas
sinto seguro de que, se Rristóteles voltasse ao respostas, enviando-as a V. Sa. mesmo; então
mundo, ele me receberia entre seus seguido terei ocasião de não me deixar vencer no uso
res, por causa de minhas poucos contradições, de termos de reverência ao seu nome, embora
mas bem concludentes, muito mais que muitís eu esteja certo de dever ter sido em muito su
simos outros que, para sustentar tudo o que perado na doutrina pelo seu elevado engenho.
dizem como verdadeiro, vão respigando de seus Poderio bem ocorrer que meu infortúnio, de ter
textos conceitos que jamais lhe teriam ocorri de servir-me dos olhos e da pena de outros,
do. 6 quando Rristóteles visse as novidades com demasiado tédio do escritor, prolongasse
descobertas atualmente no céu, que ele afir algum dia a mais aquilo que em outros tempos
mou ser inalterável e imutável, porque nenhu por mim mesmo teria expedido em poucos dias,
ma alteração fora até então vista, indubita e V. Sa., pela prontidão e vivacidade de seu
velmente, mudando de opinião, ele diria agora engenho, em poucas horas. Viva feliz e conti
o contrário; pois bem se deduz que, enquanto nue tendo comigo sua boa graça, por mim esti
nos diz que o céu é inalterável, é porque não mada e apreciada como favorável fortuna; e
fora vista alteração, mas agora diria que é al- que o Senhor a faça prosperar.
terável, porque aí se percebem alterações. R G. Galilei,
hora avança, e eu entraria em um mar vastíssimo Corto o Fortúnio Liceti
se quisesse contar tudo o que em tal ocasião (escrita d e Rrcetri no dia 15 d e setembro de 1640)
me passou mais vezes pela mente; reservar-
me-ei, porém, para outra ocasião.
Quanto a V. 5a. ter-me atribuído opiniões
que não são minhas, pode ter acontecido que
V. Sa. tenha tomado algumas opiniões atribuí
das a mim por outros, mas não escritas por mim: Ciência e técnica
como, por exemplo, que, segundo o filósofo lo-
galla, eu considere a luz como corpórea, en
fí importôncio da dêncio poro o técnica
quanto no mesmo autor e no mesmo lugar se
é o tema do primeiro trecho, tirado de umo
escreve que sempre ingenuamente confessei
corto de Golilei o Belisário Vinto; enquanto
não saber o que seja a luz; e assim considerar
no segundo trecho, tirado de Discursos e de
como resolutamente primários meus pensamen
monstrações matemáticas sobre duas novas
tos, alguns reportados pelo Sr. Mário Guiducci,
ciências (primeira jornada), chamo o otençõo
poderio ser que eu não os tivesse falado, em
poro os estímulos que o técnico oferece à
bora eu me repute como honra que se creia
reflexão científico.
que tais conceitos sejam meus, considerando-
os verdadeiros e nobres.
R respeito de parecer porventura prolixo Gostaria que meus livros, dirigidos sem
ao responder a suas objeções, não o subscre pre ao venerável nome de meu Senhor, fossem
vo de nenhum modo, nem como sombra de in os que me ganhassem o pão; não restando, no
dignação em V. Sa. nem ainda como falta mi entanto, senão conferir o Sua Rlteza tantas e
227
Capítulo décimo primeiro - O d m m o d e C ia i!le u e a jun d açtxo d a c iê n c ia tnod&rna
tais invenções, que tolvez nenhum outro prínci do meu Compasso Geométrico, dedicado a Sua
pe os tenho maiores, dos quais eu não só te Alteza, pois não há mais exemplares; esse ins
nho muitas com efeito, mas posso estar seguro trumento foi de tal modo abraçado pelo mun
de encontrar muitas delas ainda durante o dia, do, que agora verdadeiramente não se fazem
conforme as ocasiões que se apresentarem: outros instrumentos deste gênero, e sei que até
além de que, das invenções que dependem de hoje foram fabricados alguns milhares [...].
minha profissão, poderio estar Sua Alteza se Finalmente, quanto ao título e pretexto de
guro de não ter de empregar em alguma delas meu serviço, desejaria que, além do nome de Ma
seu dinheiro inutilmente, como porventura ou temático, Sua Alteza acrescentasse o de Filósofo,
tra vez foi feito e em vultosas somas, nem ain pois eu confesso ter estudado mais anos de fi
da para deixar fugir das mãos qualquer desco losofia do que meses de matemática pura [...].
berta que lhe fosse proposta por outros, que G. Galilei, Corto o B e lisá rio Vinto em Fiorenço,
verdadeiramente fosse útil e bela. (escrita de Pádua no dia 7 de maio de 1610)
Tenho um número tão grande de segre
dos particulares, tanto úteis quanto curiosos e SniviflTi - Senhores Venezianos, parece-me
admiráveis, que somente a demasiada abundân que a prática freqüente de vosso famoso arse
cia me prejudico e sempre prejudicou; porque, nal, sobretudo na parte denominada mecâni
se eu tivesse apenas um, eu o teria estimado ca, proporciona vasto campo ao filosofar dos
muito, e com ele em mãos poderio ter encontrado intelectos especulativos; dado que, aqui, todo
junto de algum grande príncipe aquela ventura tipo de instrumento e de máquina é operado
que até agora não encontrei nem procurei. continuamente por grande número de artífices,
Mogno longeque odmirobilio opud me hobeo: entre os quais, seja pelas observações feitas
mas não podem servir, ou, melhor dizendo, ser por seus predecessores, seja por aquelas que,
colocadas em ação a não ser por príncipes, por reflexão pessoal, eles próprios fazem con
porque eles fazem e sustentam guerras, fabri tinuamente, é natural que existam muitos peri
cam e defendem fortalezas, e por seus reis de tos insignes.
portados fazem enormes despesas, e não eu SflGRCDO - V. 5a. de fato não se engana:
ou homens particulares. eu, curioso por natureza, freqüento esse am
As obras que tenho de levar a cabo são biente, ouvindo aqueles que, devido a certa
principalmente dois livros De sistemate seu superioridade sobre outros professores, nós
constitutione universi, conceito imenso e cheio chamamos chefes; a preleção deles muitas ve
de filosofia, astronomia e geometria: três livros zes ajudou-me a descobrir, pela pesquisa ra
De motu locali, ciência inteiramente nova, não cional, efeitos não apenas maravilhosos, mas
havendo nenhum outro, antigo ou moderno, ainda recônditos e quase impensáveis.
descoberto algum dos muitíssimos sintomas G. Galilei, D iscu rso s e d e m o n stra çõ e s
admiráveis que demonstro existir nos movimen m atem áticos s o b re d u o s n o v a s ciê ncia s
tos naturais e nos violentos, que posso de modo
muito razoável chamar de ciência nova e en
contrada por mim desde seus primeiros princí
pios: três livros das mecânicas, dois referentes
às demonstrações dos princípios e fundamen
B e la r m in o
tos, e um dos problemas; e, embora outros te
nham escrito a mesma matéria, todavia o que
dela até aqui foi escrito, nem em quantidade
nem em outras coisas é um quarto daquilo que
escrevo. Tenho ainda diversos opúsculos sobre
questões naturais, como De sono et voce, De A interpretação
visu et coloribus, De moris estu, De compositione instrumentalista
continui, De animolium motibus, e outros. Pen do Copernicanismo
so além disso escrever alguns livros referentes
ao soldado, formando-o não só em idéia, mas
ensinando com regras muito especiais tudo Com esto corto de 12 de obril de 1615
aquilo que lhe cabe saber e que depende das o cordeol Roberto Belarmino afirma que
matemáticas, como o conhecimento de castra- G ol ileu pode sustentara teorio copernicono,
metações, disposições, fortificações, expugna- mos openos com o condição de que o inter
ções, fazer plantas, medir com a vista, conheci prete em umo perspectivo - diriamos hoje -
mentos referentes às artilharias, usos de vários instrumentalista: "Parece-me que V. 5o. e o
instrumentos etc. Preciso também reeditar o Uso -------------------------------------------------------------
228 Segunda parte - ;A (‘e v o lu ç ã o c ie n tífic a
S i s f e m a do munc^O;
m eto d o lo gia e "filosofia
Kva o b r a d e J s a a c 7\)ewtorv
A le i
• Com a lei de gravidade Newton propunha um único princí
d e g ra v id a d e pio em grau de dar conta de uma quantidade ilimitada de fenô
§ III.3 menos: a força que faz cair uma pedra ou uma maçã é da mesma
natureza da força que explica o fenômeno das marés como efei
to da atração do sol ou da lua sobre a massa da água dos mares.
E a grande máquina do mundo, a ordem dos céus estrela
A p ro v a
dos, é a base sobre a qual Newton fundamenta a demonstração
d a e x is tê n c ia
d e D eus
da existência de Deus. "Este extremamente maravilhoso sistema
-> § IV.1
do sol, dos planetas e dos cometas só pôde se originar do projeto
e da potência de um Ser inteligente e poderoso".
m, m2
F= G
D2
I. O s i g n i f i c a d o f ilo s ó f ic o
d a o b i^ a d e / \ ] e w f o n
1 t e o r ia m e t o d o ló g ic a
d e T ^ e w to n
cia” de que fala Kant é a ciência de Newton, preender a dinâmica do universo, os princí
e que a comoção kantiana diante dos “ céus pios da força e o movimento e a física dos
estrelados” é a comoção diante da ordem corpos em movimento em meios diversos”
do universo-relógio de Newton. Kant, com (I. B. Cohen). E, “ à medida que a continui
efeito, acreditava que a função do filósofo dade do desenvolvimento do pensamento
fosse a de explicar a unicidade e a veracida nos permite falar de uma conclusão e de um
de da teoria de Newton. Assim, sem a com novo ponto de partida, podemos dizer que,
preensão da imagem da ciência newtoniana, com Isaac Newton, acabava um período da
é verdadeiramente impossível compreender atitude dos filósofos em relação à natureza
a Crítica da razão pura de Kant. e começava outro, inteiramente novo. Em
O livro mais famoso de Newton é Phi- sua obra, a ciência clássica [...] alcançou
losophiae naturalis principia matbematica existência independente e, daí em diante,
(Princípios matemáticos da filosofia natu começou a exercer toda a sua influência so
ral), publicado em primeira edição em 1687. bre a sociedade humana. Se alguém devesse
Pois bem, “ a publicação dos Principia [...] assumir a função de descrever essa influên
foi um dos acontecimentos mais importan cia em suas numerosas ramificações [...],
tes de toda a história da física. Esse livro Newton poderia constituir o ponto de par
pode ser considerado o ponto culminante tida: tudo aquilo que foi feito antes era ape
de milhares de anos de esforços para com nas uma introdução” (E. J. Dijksterhuis).
11. A v id a e as o b m s
seus experimentos sobre a decomposição da misso. Então, no mês de agosto, Halley foi
luz branca através de um prisma, Newton a Cambridge para ouvir a opinião de New
apresentou um relatório à Royal Society em ton. À pergunta de Halley sobre qual seria
1672. Intitulado Nova teoria acerca da luz a órbita de um planeta atraído pelo sol com
e das cores, o relatório foi publicado nas Phi- uma força gravitacional inversamente pro
losophical transactions da própria Royal porcional ao quadrado da distância, New
Society. Nesse trabalho, como também em ton respondeu: “Uma elipse!” Cheio de ale
outro trabalho posterior, em 1675, Newton gria, Halley perguntou a Newton como fazia
formulava a ousada teoria da natureza cor- para saber isso. E Newton replicou que o
puscular da luz, segundo a qual os fenôme sabia porque já fizera os cálculos relativos
nos luminosos encontravam sua explicação à questão. Halley pediu então para ver es
na emissão de partículas de diferentes gran ses cálculos, mas Newton, não conseguin
dezas: as partículas menores davam origem do encontrá-los, prometeu que os manda
ao violeta e as maiores ao vermelho. A teo ria a ele. E assim fez.
ria corpuscular da luz entrava em competi E mais: escreveu um livrete, o De motu
ção com a teoria ondulatória proposta pelo corporum, que também enviou a Halley.
físico holandês cartesiano Christian Huygens Este logo se deu conta da grandeza do tra
(1629-1695) em seu Traité de la lumière. Ir balho de Newton e o convenceu a escrever
ritado e desgostoso com tais polêmicas, New um tratado que tornasse públicas suas des
ton só publicaria sua Ótica em 1704. Con cobertas. Foi assim que nasceu aquela que é
tudo, seu trabalho no campo da ótica já lhe considerada a maior obra-prima da histó
havia propiciado a nomeação para membro ria da ciência, isto é, a Philosophiae naturalis
da Royal Society (1672). principia mathematica.
Em 1671, o francês Jean Picard (1620 Newton começou a trabalhar em 1685.
1682) havia efetuado ótimas medidas das Em abril de 1686, o manuscrito do primei
dimensões da terra. Em 1679, Newton toma ro livro foi enviado à Royal Society, em cujos
conhecimento da medida do diâmetro da registros encontramos a seguinte anotação,
terra calculado por Picard. Retomou suas no com data de 28 de abril: “ O doutor Vincent
tas sobre a gravitação, refez os cálculos (que, apresentou à Sociedade o manuscrito de um
em Woolsthorpe não fechavam) e, desta vez, tratado intitulado Philosophiae naturalis
com a nova medida de Picard, os cálculos principia mathematica, que o sr. Isaac New
fecharam, fazendo com que a idéia da gra ton dedica à Sociedade e no qual apresenta
vitação se tornasse então uma teoria cientí uma demonstração matemática da hipótese
fica. Entretanto, ainda sob a impressão das copernicana como foi proposta por Kepler,
ásperas polêmicas anteriores, ele não publi explicando todos os fenômenos dos movi
cou os resultados alcançados. Enquanto isso, mentos celestes por meio da única hipótese
prosseguia em suas lições de ótica, publica de uma gravitação em direção ao centro do
das em 1729 sob o título de Lectiones opti- sol, decrescente segundo o inverso dos qua
cae, bem como as de álgebra, que apareceram drados das distâncias em relação a ele” . E,
em 1707 sob o título Arithmetica universalis. posteriormente, foram redigidos o segundo
e o terceiro livros. O próprio Halley se en
carregou da publicação do trabalho.
Nesse meio tempo, porém, explodiu
2 ;A po\cm \ca com ■ HooI<e grande controvérsia com Hooke, que recla
mava a prioridade da descoberta da lei da
força inversamente proporcional ao quadra
No início de 1684, o grande astrôno do da distância. Newton ofendeu-se terri
mo Edmond Halley (1656-1742) encontrou- velmente, ameaçando até deixar de publicar
se com Sir Christopher Wren (1632-1723) o terceiro livro da obra, relativo ao sistema
e com Robert Hooke (1635-1703) para dis do mundo. Depois, a disputa se aplacou e
cutir a questão dos movimentos planetá Newton inseriu em seu trabalho uma nota
rios. Hooke afirmou que as leis dos movi registrando que a lei do inverso do quadrado
mentos dos corpos celestes seguiam a lei da já fora proposta por Wren, Hooke e Halley.
força inversamente proporcional ao quadra Os Principia apareceram em 1687. Dois
do da distância. Wren deu a Hooke dois me anos depois, Newton foi nomeado deputa
ses de tempo para formular a demonstração do, representando a Universidade de Cam
da lei. Mas Hooke não cumpriu o compro bridge. Nesse período, conheceu John Lo-
235
Capitulo d é d tn O s e g u n d o - S i s t e m a d o m un do, m e to d o lo g ia e filo so fia na olm o d e A le w to n
cke, com quem estreitou sincera e sólida ami Em fevereiro de 1727, Newton partiu de
zade. Prosseguindo seus estudos sobre o cál Kensington (onde residia e que era então
culo infinitesimal, publicou parte deles em uma aldeia próxima de Londres, ao passo
1692. E manifestou intenso interesse pela quí que é hoje parte integrante do aglomerado
mica. urbano) para Londres, a fim de presidir uma
Mas, ao mesmo tempo, iniciava sua sessão da Royal Society. Voltando a Ken
prestigiosa carreira pública. Em 1696, foi sington, sentiu-se muito mal. Não conse
nomeado diretor da Casa da Moeda; três guindo superar a crise, morreu em 20 de
anos depois, tornou-se governador. Desen março de 1727. Foi sepultado na Abadia
volveu seu trabalho com grande empenho, de Westminster. E Voltaire estava presente
granjeando com isso verdadeira benemerên- aos seus funerais, o mesmo Voltaire que,
cia nacional. Em 1703, foi eleito presidente como veremos quando falarmos do Ilumi-
da Royal Society. Em 1704 publicou a Óti nismo, contribuiu de modo relevante para
ca, em 1713 a segunda edição dos Princi fazer conhecer o pensamento de Newton na
pia, em 1717 a segunda edição da Ótica. França.
OPTICKS1 O P T I C E : O R , A
S 1 V E DE
Reflexionibus, Refra&ionibus,
T R E A T I S E Inflexionibus & Coloribus
OF T H E
R E F L E X IO N S , R E F R A C T IO N S ,
I N F L E X I O N S and C O L O U R S
L U C I S LIBRI T R ES.
O P
T
L
1
i vi ri 1, / “i
A I S O
T T n p
Authore I s a a c o N e w t o n , Equite Auraco.
ü
-
St. PémCi Churtb-yard. M D C C tV - tapeofis S t M .
8 e . t H 8c B « n ,. V u . D t » , R $ i a Socieutit
Typograph- td Infigma Priocipi* in Com eterio DTfittU,
M D CCVI.
L..... — .............. - ..........—1-
III. A s 'V e g r n s d o f i l o s o f a i —
e. a //o K \+ o lo g ia // q u e e l a s p r e s s u p õ e m
Entretanto, Newton não podia evitar larmente; que, de modo semelhante, a lua
uma grande questão ligada a essa: os cor gravita na direção da terra, em proporção à
púsculos de que são feitos os corpos mate quantidade da sua matéria; que, por outro
riais são ou não ulteriormente divisíveis? lado, o nosso mar gravita em direção à lua;
Matematicamente, uma parte é sempre di que todos os planetas gravitam uns em di
visível, mas o mesmo valerá também fisica reção aos outros e que, de igual modo, os
mente? cometas gravitam em direção ao sol, então,
Eis a argumentação de Newton a esse em conseqüência dessa regra, devemos ad
propósito: “ O fato de que as partículas dos mitir universalmente que todos os corpos
corpos, divididas, mas contíguas, podem ser são dotados de um princípio de gravitação
separadas umas das outras é uma questão recíproca. Por isso, o argumento extraído
de observação. E, nas partículas que perma dos fenômenos conclui com maior força em
necem indivisas, nossas mentes estão em favor da gravitação universal do que em fa
condições de distinguir partes ainda meno vor de sua impenetrabilidade, sobre a qual
res, como pode ser demonstrado em mate não temos nenhum experimento e nenhu
mática. Mas não nos é possível determinar ma forma de observação que possam ser
com certeza se as partes assim distintas e efetuados sobre os corpos celestes. E eu não
não ainda divididas podem ser efetivamen afirmo que a gravidade é essencial aos cor
te divididas e separadas uma da outra por pos: pelo termo vis insita entendo unicamen
meio dos poderes da natureza. Entretanto, te a sua força de inércia. Esta é imutável.
se mesmo com um único experimento tivés Mas a sua gravidade diminui em relação
semos a prova de que uma partícula qual com o seu afastamento da terra” .
quer indivisa, rompendo um corpo sólido e A natureza, portanto, é simples e uni
duro, sofre uma divisão, nós poderemos forme. E, a partir dos sentidos, isto é, das
concluir, em virtude dessa regra, que as par observações e dos experimentos, podemos
tículas indivisas, como as divisas, podem ser estabelecer algumas das propriedades fun
divididas e efetivamente separadas ao infi damentais dos corpos: extensão, dureza, im
nito” . penetrabilidade, mobilidade, força de inér
cia do todo e a gravitação universal.
E essas qualidades são estabelecidas pre
cisamente a partir dos sentidos, vale dizer,
y \ g e a v i f a ç ã o urviveesal indutivamente, isto é, ainda através daquele
que, para Newton, é o único procedimento
válido para alcançar e fundamentar as pro
Assim, no que se refere à divisibilidade posições da ciência: o método indutivo.
das partículas ao infinito, a uma segurança E, com isso, chegamos à quarta regra:
matemática corresponde uma incerteza fac “Regra IV: Na filosofia experimental,
tual. Uma incerteza, porém, que não ocorre as proposições inferidas por indução geral
no que se refere à força de gravitação. dos fenômenos devem ser consideradas como
Com efeito, “ se é universalmente evi estritamente verdadeiras ou como muito pró
dente, a partir dos experimentos e das ob ximas da verdade, apesar das hipóteses con
servações astronômicas, que todos os cor trárias que possam ser imaginadas, até quan
pos em torno da terra gravitam em sua do se verifiquem outros fenômenos, pelos
direção, proporcionalmente à quantidade de quais se tornem mais exatas ou então sejam
matéria que cada um deles contém singu submetidas a exceções”. IJ2IJI3]
Segunda parte - A r e v o lu ç ã o c ie n tífic a
-------------- W .A o d e ie m d o m undo
e a e x is tê n c ia d e D e u s
= V. o s ig n ific a d o
d a s e n te n ç a m e to d o ló g ic a :
^ K y p o fK c s e s n o n fi n g o /7
planetas, sem sofrer a mínima redução de sua e conhecido porque formulou hipóteses e as
força, que não opera em relação à quantida provou, hipóteses que explicam por que a
de de superfície das partículas sobre as quais maçã cai no chão e por que a lua não se
age (como costuma ocorrer com as causas choca com a terra, por que os cometas
mecânicas), mas em relação à quantidade gravitam em direção ao sol e por que ocor
de matéria sólida que elas contêm, e sua ação rem as marés.
se estende por toda parte, a distâncias imen Mas, sendo assim, o que entendia New
sas, decrescendo sempre em razão inversa ao ton por “hipóteses” quando dizia que “não
quadrado das distâncias. A gravitação em di inventava hipóteses” ? Eis a resposta de
reção ao sol é composta pela gravitação em Newton: “ [...] e não invento hipóteses. Com
direção às partículas singulares de que é fei efeito, tudo aquilo que não é deduzido dos
to o corpo do sol. E, afastando-se do sol, fenômenos deve ser chamado de hipótese.
decresce exatamente em razão inversa do E as hipóteses, tanto metafísicas como físi
quadrado das distâncias até a órbita de cas, tanto de qualidades ocultas como me
Saturno, como é mostrado claramente pela cânicas, não têm nenhum lugar na filosofia
quietude do afélio dos planetas e até os últi experimental. Em tal filosofia, as proposi
mos afélios dos cometas, se é que esses afélios ções particulares são deduzidas dos fenô
estão em quietude” . menos e, posteriormente, tornadas gerais
A força de gravidade, portanto, existe. por indução. Foi assim que se descobriu a
E é a observação que a atesta. Mas, se qui impenetrabilidade, a mobilidade e a força
sermos nos aprofundar mais, há uma per dos corpos, bem como as leis do movimen
gunta que não pode ser evitada: qual é a to e da gravitação. Para nós, é suficiente que
razão, a causa ou, se preferirmos, a essência a gravidade exista de fato e atue segundo as
da gravidade? Responde Newton: “ Na ver leis que expusemos, estando em condições
dade, ainda não consegui deduzir dos fenô de explicar amplamente todos os movimen
menos as razões dessas propriedades da gra tos dos corpos celestes e do nosso mar.” A
vidade. E não invento hipóteses” . gravidade existe de fato; ela explica os movi
Hypotheses non fingo: essa é a famosa mentos dos corpos e serve para prever as
e conhecida sentença metodológica de New suas futuras posições. Isso é o que basta
ton, tradicionalmente citada como irrevo para o físico. Já a causa da gravidade é uma
gável chamado aos fatos e como condena questão cuja resposta extrapola o âmbito
ção decidida e motivada das hipóteses ou da observação e do experimento, escapan
conjecturas. do portanto do campo da “ filosofia experi
Entretanto, está claro para todos que mental” .
Newton também formulou hipóteses. Ele E Newton não quer se perder em
ficou conhecido e sua grandeza é ilimitada conjecturas metafísicas que não sejam pas
não porque tenha visto uma maçã cair ou síveis de verificação. Esse é o sentido de sua
porque tenha observado a lua, ele é grande expressão “hypotheses non fingo ”.
VI. y \ g ^ a u d e m á q u in a d o m u n d o
mero infinito de partículas, cujos movimen dois corpos são sempre iguais e dirigidas em
tos são regulados por uma sintaxe constituí direções contrárias
da pelas leis do movimento e pela lei da gra- Esse princípio de igualdade entre ação
vitação universal. e reação é ilustrado por Newton do seguinte
Eis, então, as três leis newtonianas do modo: “ Qualquer coisa que exerça pressão
movimento, leis que representam a enun- sobre outra coisa ou puxe outra coisa sofre
ciação clássica dos princípios da dinâmica. essa pressão em igual medida ou é puxada
A primeira lei é a lei da inércia, na qual também por essa outra coisa. Se tu apertas
trabalhara Galileu e que Descartes formu uma pedra com o dedo, teu dedo também é
lara com toda a exatidão. Assim, Newton apertado pela pedra. Se um cavalo puxa uma
escreve: “Todo corpo persevera em seu es pedra ligada por uma corda, o cavalo tam
tado de quietude ou de movimento retilíneo bém é (se assim posso dizê-lo) puxado igual
uniforme, a menos que seja forçado a mu mente para trás em direção à pedra [...]” .
dar esse estad o p or fo rças sobre ele São essas, portanto, as leis do movi
exercidas”. mento. Entretanto, os estados de quietude e
Newton exemplifica esse princípio fun de movimento retilíneo uniforme só podem
damental do seguinte modo: “ Os projéteis ser determinados em relação aos outros cor
perseveram em seus movimentos enquanto pos, que estejam em quietude ou em movi
não forem retardados pela resistência do ar mento. Mas, como não se pode estender ao
ou não sejam puxados para baixo pela for infinito o reenvio a sistemas ulteriores de
ça da gravidade. Um pião (...) não cessa de referência, Newton introduz as noções (que
rodar senão pelo motivo de ser retardado se tornariam objeto de grandes debates e fir
pela resistência do ar. Os corpos maiores dos mes contestações) de tempo absoluto e de
planetas e dos cometas, estando em espaços espaço absoluto: “ O tempo absoluto, ver
mais livres e com menos resistência, pre dadeiro e matemático, em si e por sua natu
servam seus movimentos progressivos e ao reza, flui uniformemente, sem relação com
mesmo tempo circulares por um tempo qualquer coisa de externo e, com outro
muito mais longo.” nome, chama-se duração. O tempo relati
A segunda lei, já formulada por Gali vo, aparente e comum, é a medida sensível
leu, diz: “A mudança de movimento é pro e externa [...] da duração do movimento
porcional à força motriz exercida e ocor através do meio, sendo comumente usado
re na direção da linha reta segundo a qual a em lugar do tempo verdadeiro: é a hora, o
força foi exercida ”. dia, o mês, o ano.” “ O espaço absoluto, por
 formulação da lei, Newton faz se natureza privado de relação com qualquer
guirem-se observações como estas: “ Se de coisa de exterior, permanece sempre seme
terminada força gera um movimento, uma lhante a si mesmo e imóvel” .
força dupla gerará movimento duplo, uma Esses dois conceitos, de tempo absolu
força tripla um movimento triplo, seja quan to e de espaço absoluto, não têm significa
do a força for exercida ao mesmo tempo e do operativo e são conceitos empiricamente
de um só golpe, seja quando for gradual e não verificáveis. Entre outras críticas con
sucessivamente. E esse movimento (dirigin tra eles, ficou célebre a de Ernst Mach, que,
do-se sempre na mesma direção da força em seu livro A mecânica em seu desenvolvi
geradora), quando o corpo já estava em mo mento histórico-crítico, afirmará que o es
vimento, é acrescentado ou subtraído do paço e o tempo absolutos de Newton são
primeiro movimento, conforme se conju “ monstruosidades conceituais” .
guem diretamente ou sejam diretamente
contrários um ao outro, ou então se acres
centam obliquamente, se eles forem oblí
quos, de modo a produzir novo movimen 2 A l ei de g r a v i+ a ç ã o rmiveesal
to, composto pela determinação de ambos” .
Essas duas leis, juntamente com a terceira,
que exporemos a seguir, constituem ele Entretanto, no interior do espaço ab
mentos centrais da mecância clássica que se soluto — que Newton chama também de
aprende na escola. sensorium Dei —, a maravilhosa e elegan
A terceira lei, formulada por Newton, tíssima conexão dos corpos é sustentada por
afirma que “a toda ação se opõe sempre uma aquela lei da gravidade que Newton expõe
igual reação, ou seja, as ações recíprocas de no terceiro livro dos Principia.
241
Cãpítulo décimo segundo - S i s t e m a d o m un do , m e to d o lo g ia e filo so fia n a o b u a d e TVJewton
Tal lei de gravidade diz que a força de em todos os casos, tanto da atração recí
gravitação com que dois corpos se atraem é proca entre terra e lua como entre a terra e
diretamente proporcional ao produto de uma maçã etc.
suas massas e inversamente proporcional ao Com a lei da gravidade, Newton che
quadrado de sua distância. Em símbolos, gava a único princípio capaz de explicar uma
essa lei se expressa na conhecida fórmula: quantidade ilimitada de fenômenos.
Com efeito, a força que faz cair uma
m. m, pedra ou uma maçã ao chão tem a mesma
F = G ------— ----- natureza que a força que mantém a lua vin
D2 culada à terra e a terra vinculada ao sol. E
essa força é a mesma que explica o fenôme
onde F é a força de atração, mx e m2 são as no das marés (como efeito combinado da
duas massas, D é a distância que separa as atração do sol e da lua sobre a massa de
duas massas e G é uma constante que vale água dos mares).
Newton, ao passo que os materialistas do ele não o é, pois entre os corpos atua uma
século XVIII encontrarão sua base teórica “ ação a distância” . Por isso, tanto os carte
sobretudo no mecanicismo cartesiano. E, já sianos como Leibniz veriam nessas misterio
que falamos do mecanicismo cartesiano, sas forças que agem a distâncias ilimitadas
devemos recordar que, enquanto para os nada mais que um retorno às “qualidades
cartesianos o mundo é pleno, para Newton ocultas” do passado.
” V I I I . ;A d e s c o b e p + a ”
d o c á lc u lo m jim fe s im a l
e a p o l ê m i c a c o m .L e ib n iz :
também estava estudando na época. E logo para indicar a velocidade de um ponto nas
a matriz física se fará sentir de modo deter três direções coordenadas. Daí derivam vá
minante em suas pesquisas matemáticas. rios problemas, mas fundamentalmente
dois: calcular as relações entre fluentes, sen
do conhecidas as relações entre fluxões, e
vice-versa.
2 /VJewtotA No caso particular da mecânica, sen
e o c á l c u l o itvf-iuitesimcd*
lo
do conhecido o espaço em função do tem
po, calcular a velocidade; e, vice-versa, co
nhecendo-se a velocidade em função do
Newton só publicaria a primeira sín tempo, calcular o espaço percorrido. Em
tese sobre o cálculo infinitesimal mais tar termos contemporâneos, respectivamente,
de, em 1687, no início de sua obra mais derivar o espaço em relação ao tempo e in
importante, as Philosophiae naturalis prin tegrar a velocidade no tempo. Sem nos
cipia mathematica. A publicação impressa aprofundarmos muito nos particulares de
de suas obras principais sobre o tema será tipo técnico, devemos dizer que Newton
ainda posterior: em 1711, saiu um escrito conseguiu demonstrar muitas das mais im
de 1669, intitulado De analysis per aequa- portantes regras de derivação e integração.
tiones numero terminorum infinitas; em Ademais, introduziu os conceitos de deri
1704 foi publicado, como apêndice ao tra vada segunda (derivada da derivada; no caso
tado de Ótica, o seu Tractatus de qua- mecânico, a aceleração) e de derivada de
dratura curvarum, que havia escrito em uma ordem qualquer. Também teorizou ri
1676; o já mencionado tratado Methodus gorosamente as ligações entre derivação e
fluxionum et seriarum infinitorum, escrito integração, além de introduzir e resolver as
em latim no ano de 1673, só sairia em edi primeiras equações diferenciais (isto é, com
ção inglesa em 1736, ou seja, postuma uma função incógnita, consistindo em uma
mente. igualdade entre expressões contendo a fun
Mas vejamos a teoria, denominada pe ção incógnita e suas derivadas).
lo próprio Newton de teoria “ dos fluentes e Com tudo isso, fica clara a poderosa
das fluxões” . Nos primeiros escritos, ele se contribuição conceituai que a mecânica lhe
limita a ampliar e desenvolver o estudo “ al forneceu na elaboração de sua nova teoria
gébrico” do problema, especialmente com matemática. Com efeito, Newton possuía
base nos trabalhos de Fermat e Wallis. Lo uma concepção instrumental da matemáti
go, porém, será uma intuição de tipo físi ca: para ele, ela nada mais era do que uma
co, mais precisamente de tipo mecânico, que linguagem a utilizar para descrever aconte
lhe indicará o caminho correto para resol cimentos naturais. Nisso, alinhava-se com
ver o problema. o pensamento de Thomas Hobbes, ao pas
Graças à contribuição conceituai des so que, como veremos, em 1734, George
se ramo fundamental da física, ele supe Berkeley, na obra O analista ou discurso a
ra a idéia de que as linhas sejam somente um matemático incrédulo, o acusará de pou
agregados de pontos, considerando-as co co rigoroso. Talvez não seja casual que a
mo trajetórias do movimento de um pon notação newtoniana (o ponto sobre a va
to. Conseqüentemente, as superfícies tor riável, para indicar a sua derivada em rela
nam-se movimentos de linhas e os sólidos ção ao tempo) só tenha permanecido em uso
transformam-se em movimentos de su até nossos dias nos campos da mecânica
perfícies. Por exemplo, as superfícies são racional, da física matemática e em outras
descritas por movimentos proporcionais à áreas afins — e, assim mesmo, só raramen
ordenada, ao passo que a abscissa cresce te, tendendo a desaparecer.
com o transcorrer do tempo: daí o nome Desse modo, a teoria newtoniana res
de “ momento” para o acréscimo infini sente-se claramente de sua particular origem.
tesimal, de “ fluente” para a área e de Ademais, a sua representação formal (x, y,
“ fluxão” para a ordenada, em um dado z... para os fluentes; x, y, z... para as fluxões;
instante. xo, yo, zo... para os momentos ou diferen
É com base nisso que ele introduz a ciais) é certamente preciosa para o estudio
notação so de mecânica, na qual só se deriva em re
• • • lação ao tempo e as derivadas possuem um
x y z significado previamente fixado (precisamen
244
Segunda parte - A r e v o lu ç ã o c.i eirlrfu
„ PH ILO SO PH IJi
1 NATURALIS
I P R IN C IP IA
1 M A T H E M A T IC A .
m A U C T O Jt B
'3? ISAACO NEWTONO. B<& A»*.
■ í OU D I N I ;
/ X I . U / / S \ > : « 7 í '.v / u p . u m J X x x
_ i«r / « . .rnW ' '*“* -
Isaac Newton (aqui retratado na margem do frontispício de sua obra mais famosa
Philosophiae naturalis principia mathematicaj,
foi o cientista que levou a cabo a revolução científica.
Com seu “sistema do mundo ” toma vulto a “física clássica
247
Capítulo décimo segundo - Sistema do mimdo, metodologia e filosofia r\a obra de /Vowlon
existente. 6m sentido alegórico, com efeito, se ta, mas todavia semelhante. € tudo isso a res
diz que Deus vê, ouve, falo, ri, orno, odeio, peito de Deus: a respeito do qual é tarefa da
desejo, dá, tomo, iro-se, combate, fobrico, fun filosofia natural falar partindo dos fenômenos.
damento, constrói, pois todo discuso em torno I. Netuton,
de Deus deriva inteiramente das coisas huma P h ilo so p h io e noturolis
nas por semelhança, sem dúvida não perfei princip io m athem atica.
(S a p ítu lo d é c im o te r c e i
yAs c iê n c ia s d a vida,
as y\cad em ias
e a s S o c i e d a d e s científicas
I . D e s e n v o lv im e n to s
d a s c iê n c ia s d a v id a
3 F V a r v c is c o R e d i
c o n t n a a te o e ia
d a q e r a ç ã o e sp o n tâ n e a
to que, com justiça, ficou famoso na histó cidas. E tanto mais se confirmavam minhas
ria da biologia, fez, naquela época, uma crí suspeitas quando via que, em todas as gera
tica decisiva contra a teoria da geração es ções por mim feitas nascer, eu sempre havia
pontânea. Em suas Experiências acerca da visto sobre as carnes, antes que se enches
geração dos insetos, escreve Redi: “Portan sem de vermes, pousarem moscas da mes
to, segundo o que eu vos disse e segundo o ma espécie daquelas que depois nasciam.
que os antigos e novos escritores e a opi Mas vã teria sido a dúvida se a experiência
nião comum do povo querem dizer, toda não a houvesse confirmado. Desse modo, em
podridão de cadáver corrompido e toda su meados do mês de julho, coloquei em qua
jeira de qualquer outra coisa putrefata gera tro frascos de boca larga uma serpente, al
os vermes e os produz. De modo que, queren guns peixes de rio, quatro enguias do Arno
do eu buscar a verdade, desde o princípio e um naco de vitela; depois, fechei muito
do mês de junho mandei matar três daque bem as bocas com papel e as selei muito bem
las serpentes chamadas ‘cobras de Esculá- com cera. Em outros tantos frascos, coloquei
pio’. Tão logo morreram, coloquei-as em as mesmas coisas, mas deixei-os abertos.
uma caixa aberta, para que ali ficassem. Não Não passou muito tempo para que os pei
foi preciso muito tempo para que as visse xes e as carnes desses segundos frascos se
todas cobertas de vermes, que tinham a for tornassem verminosos; e via-se que as mos
ma de cones, sem perna alguma mas com o cas entravam e saíam ao bel-prazer nesses
olho aparecendo. Enquanto devoravam aque frascos. Mas, nos frascos fechados, nunca
la carne, os vermes a cada momento cres vi nascer sequer um verme, mesmo depois
ciam em tamanho [...]” . de terem transcorrido vários meses a partir
E assim, portanto, que Redi apresenta do dia em que os cadáveres foram fecha
a teoria da geração espontânea, já venerada dos dentro deles. Às vezes, porém, encon
em sua época. Entretanto, repetindo os ex trava-se pelo lado de fora do papel algu
perimentos, escreve ele, “ quase sempre eu ma larva ou vermezinho, que [...] procurava
vi, sobre aquelas carnes e aqueles peixes, encontrar alguma brecha por onde en
bem como nas laterais das caixas onde es trar para poder se nutrir dentro daqueles
tavam depositados, não apenas os vermes, frascos.”
mas também os ovos dos quais, como disse Mas voltemos agora a Harvey. A teo
acima, nascem os vermes. Esses ovos fize ria da circulação do sangue por ele propos
ram-me lembrar daqueles ovos que as mos ta e provada constituiu um resultado de
cas deixam sobre o peixe ou sobre a carne e importância enorme. Mas, como sempre, ao
que, depois, tornam-se larvas, o que já foi resolver um problema, uma teoria levanta
observado muito bem pelos compiladores outros. A teoria de Harvey postulava a exis
do vocabulário de nossa Academia e que tência de vasos capilares entre as artérias e
também é observado pelos caçadores nas as veias, mas Harvey nunca os vira. E nem
feras por eles mortas nos dias quentes, bem podia vê-los, já que para tanto seria neces
como pelos açougueiros e pelas donas-de- sário o microscópio. E foi Marcelo Malpighi
casa, que, para salvar a carne dessa imundí- (1628-1694), o grande microscopista do sé
cie no verão, colocam-na em alguidares e a culo XVII, que, em 1661, observaria o san
recobrem com panos brancos. Daí que, com gue nos capilares dos pulmões de uma rã.
muita razão, no décimo nono livro da Ilíada Malpighi foi pesquisador incansável e ge
o grande Homero fez com que Aquiles te nial. Em 1669, foi nomeado membro da
messe que as moscas cobrissem com vermes Royal Society. Muito hábil nas técnicas ex
as feridas do morto Patroclo no momento perimentais, estudou os pulmões, a língua,
em que ele rumava para realizar sua vin o cérebro, a formação do embrião no ovo da
gança contra Heitor [...]. E por isso a pie galinha etc. Em 1663, Robert Boyle (1627
dosa mãe prometeu-lhe que, com sua divi 1691) conseguiu observar a direção dos
na força, manteria longe daquele cadáver capilares, mediante a injeção de fluidos
as imundas fileiras de moscas e que, contra coloridos e de cera derretida. E Antony van
a ordem da natureza, o conservaria incor- Leeuwenhoek (1623-1723), que foi o pai
rupto e inteiro até mesmo pelo espaço de da microscopia (construiu microscópios de
um ano [...]” . E prossegue Redi: “ Daí, co até duzentos por um de aumento), viu a
mecei a duvidar se, por acaso, todos os ver própria circulação do sangue nos capilares
mes não derivariam apenas dos óvulos das da cauda de um girino e da perna de uma
moscas e não das próprias carnes apodre rã. [T]
253
Capítulo décimo terceiro - A s c iê n c ia s d a v id a , a s A c a d e m i a s e a s S o c i e d a d e s c ie n tífic a s
I I . y \ s y \ c a d e m ia s
e a s .Sociedades eie.nY\ficas
crédito de que gozam os grandes Autores mento em termos de instrumentos, que so
move muitas vezes os engenhos — que, por breviveu até nossos dias, está conservado no
suma confiança ou por reverência ao seu Museu de História da Ciência de Florença,
nome, não ousam pôr em dúvida aquilo que sendo constituído por 223 peças, algumas
eles abalizadamente pressupõem — julgou das quais danificadas. Por ocasião da mor
dever ser obra de seu grande espírito con te de Leopoldo (1675), parece que existiam
frontar o valor de suas afirmações com mais 1282 peças de vidro. E muitos desses ins
exatas e mais sensatas experiências e, con trumentos ainda se conservavam em 1740,
seguida a comprovação ou alcançado o de como testemunha Targioni-Tozzetti, que os
sengano, fazer disso tão desejável e precio viu em um cômodo contíguo à Biblioteca
so dom a quem quer que muito anseie pelas do Palácio Pitti.
descobertas da verdade” . Diz ainda Maga- G. Targioni-Tozzetti escreve, em suas
lotti que “ esses prudentes ditames do nosso Informações sobre o crescimento das ciênci
Sereníssimo Protetor” não visavam a trans as físicas ocorrido na Toscana ao longo da
formar os acadêmicos em “ censores indis década de 60 do século XVII: “Aliás, os ins
cretos dos doutos esforços alheios ou pre trumentos eram infinitos, por assim dizer, ou
sunçosos dispensadores de desenganos; na seja, todos aqueles publicados nas placas de
verdade, o principal entendimento foi o de cobre dos Ensaios e quase o dobro ou até
dar a outros oportunidade de se confronta mais ainda não publicados. A maior parte
rem com suma severidade com as mesmas deles eu ainda vi, em 1740, colocados, den
experiências, de modo que então tivemos tro dos magníficos armários, em um salão ao
a ousadia de fazer nós mesmos as coisas lado da Biblioteca do Real Palácio dos Pitti,
alheias A ciência é fato social: exige a que era o mesmo em que se realizavam regu
prova pública, a “ sinceridade” de “ desapai larmente as sessões da Academia do Cimento
xonados e respeitosos sentimentos” e o con [...]. Outros desses instrumentos foram deixa
curso de muitas forças (“e de outras forças dos aqui e ali, dispersos, ou passaram para
que para tal empresa forem exigidas” ). outras mãos. E outra parte considerável o
Com base no Diário original dos anais senhor Vayringe, maquinista da S.M.C., le
da Academia, pode-se constatar que os aca vou para a sua casa, sem que a conhecesse
dêmicos do Cimento teriam sido somente anteriormente. A propósito disso, recordo-
os seguintes: Vicente Viviani, Cândido e me que, indo uma vez ao encontro desse
Paulo dei Buono, Alessandro Marsili, An Vayringe, como de quando em quando cos
tônio Uliva, Carlos Rinaldini, João e Afon tumava fazer, agradando-me muito a conver
so Borelli, e o conde Lourenço Magalotti, sação com aquele bravo mecânico e homem
secretário. honradíssimo, ele me fez ver quantidade
Entretanto, além destes citados no ma imensa e confusa de instrumentos do Cimen
nuscrito, sabe-se que também foram acadê to, de cristal, de metal, de madeira etc., per
micos Alessandro Segni (que foi secretário guntando-me se eu sabia para que podiam
da Academia até 20 de maio de 1660, data ter servido. Eu, que logo os reconhecera, dis
em que assumiu Lourenço Magalotti), Fran se-lhe o que eram. Como o nome da Acade
cisco Redi e Carlos Roberto Dati. mia do Cimento soou completamente novo
Entre os sócios estrangeiros correspon para ele, tive uma idéia: na manhã seguinte,
dentes, devemos recordar Stenon e, de cer levei-lhe os Ensaios, mostrei-lhe as figuras e
to modo, também Huygens, que mantinha expliquei-lhe as descrições, que ele ainda não
correspondência astronômica com o prínci entendia muito bem. Depois da morte de
pe Leopoldo. Vayringe, dos instrumentos do Cimento e dos
O lema distintivo da Academia era a instrumentos próprios de Vayringe, uma par
expressão “provando e reprovando” . E as te foi encaixotada e enviada a Viena, por or
pesquisas científicas dos acadêmicos do Ci dem do Augustíssimo Imperador Francisco,
mento abarcaram todo o arco das ciências dizendo-se que foi presenteada ao Grande
naturais: fisiologia, botânica, farmacologia, Colégio Teresiano, e todos os outros foram
zoologia, mecânica, ótica, meteorologia etc. depositados no referido salão do Palácio dos
E não devemos esquecer a grande atenção Pitti e em um cômodo contíguo. Quanto às
que os acadêmicos dedicaram à construção placas de cobre, tanto as publicadas nos En
de instrumentos sempre mais exatos: termô saios quanto algumas outras, ainda não
metros, higrômetros, microscópios, pêndu publicadas, mas aparentemente destinadas
los etc. O patrimônio da Academia do Ci a uma então idealizada continuação dos En-
256
Segunda parte - A d e v o lu ç ã o c ie n t í f ic o
h m 1657
foi fundada cm Idorençii
a Academia do Cimento,
desejada pelo príncipe
l.copoldo de Toseana,
amigo de Galileu.
/\s pesquisas científicas
de seus membros
ocuparam todo o arco
das ciências naturais;
os acadêmicos deram
grande atenção
à construção de “instrumentos”
sempre mais exatos,
como termômetros,
pêndulos, microscopios.
saios, conservam-se no guarda-roupa real [...]. Natural Knowledge) nasceu dos encontros
Ademais, deve-se acreditar que os instrumen que um grupo de seguidores da nova filoso
tos feitos por conta do príncipe Leopoldo fia ou filosofia experimental realizou desde
fossem muitíssimos, já que era grande o nú 1645.
mero dos que me foram mostrados pelo Sr. Em 1662, Carlos II concedeu o Esta
Vayringe, muitos outros se haviam quebra tuto (Charter) que estabelecia os direitos e
do ou sido levados antes, e muitos o próprio as prerrogativas da Royal Society. O objeti
cardeal Leopoldo enviara de presente ao papa vo da sociedade era o de redigir “relatórios
Alexandre VII, com uma instrução sobre o fiéis de todas as obras da natureza” , fazen
modo de operá-los, redigida elegantemente do-o mediante linguagem enxuta e natural,
pelo conde Lourenço Magalotti” . isto é, uma linguagem de “expressões posi
tivas” e com “ significados claros” : a socie
dade queria uma linguagem que se aproxi
masse da “ dos artesãos, dos camponeses,
U y\ /íR o y a l S o c i e t y ” d e .Lorvdees dos comerciantes” mais do que a linguagem
“ dos filósofos” .
E tal linguagem, naturalmente, é a lin
A Sociedade Real de Londres para a guagem das ciências: da anatomia, do mag
Promoção dos Conhecimentos Naturais (Ro- netismo, da mecânica ou da fisiologia. O
yal Society of London for the Promotion of lema da Sociedade Real de Londres foi e
257
Capítulo décimo tetceivo - / \ s c iê n c ia s d a v ida/ a s ^ A c a d e m ia s I i d a d e s cit-’ n+í|icas
mencionei. Todavia, nem todos aqueles ovos ne sem ou não dos próprias carnes apodrecidas, e
gros nasceram depois dos quatorze dias; ao con tanto mais me confirmava em minha dúvida, pois
trário, boa parte se atrasou para nascer até o em todas as gerações por mim feitas nascer eu
vigésimo primeiro dia, quando então escaparam sempre tinha visto sobre carnes, antes de cria
fora certas moscas bizarras completomente di rem vermes, pousar moscas da mesma espécie
ferentes das duas primeiras gerações tanto no das que depois daí nasceram: mas teria sido vã
tamanho como na forma, que nenhum histo minha dúvida se a experiência não a tivesse con
riador, que eu saiba, tinha descrito; são, porém, firmado. Por isso, na metade do mês de julho,
muito menores que as moscas ordinárias que fre- em quatro frascos de boca larga coloquei uma
qüentam e infestam nossas mesas; voam com serpente, alguns peixes de rio, quatro enguia-
duas asas como que de prata, cujo tamanho não zinhas do rio Rrno, e um talho de vitela de leite;
excede o do corpo, que é todo negro da cor do depois, fechando muito bem as bocas com pa
ferro polido e lustroso no ventre inferior, gue pel e barbante, e muito bem lacrados, em ou
relembra na forma o das formigas aladas, com tros frascos coloquei outras tantas das coisas
algum pêlo curto mostrado pelo microscópio. Dois ditas acima e deixei as bocas abertas; não pas
longos chifres ou antenas (assim as chamam os sou muito tempo, e os peixes e as carnes des
escritores da história natural) se levantam sobre tes segundos frascos se tornaram verminosos; e
a cabeça; as primeiras quatro pernas não saem nesses frascos via entrar e sair as moscas à von
do lugar ordinário das outras moscas, mas as tade, mas nos frascos fechados nunca vi nascer
duas esticadas são muito mais longas e gran um verme, embora tenham passado muitos me
des do que as que pareceríam convenientes a ses desde o dia que nestes foram fechados
tão pequeno corpo, e são feitas justomente de aqueles cadáveres; encontrava-se, porém, algu
matéria crustada como a das pernas da lagosta ma vez do lado de fora, sobre o papel, alguma
marinha; têm a mesma cor, ou talvez mais viva, larva ou verme que com todo esforço e solicitu
e tão avermelhada que deixaria o azinhavre de tentava encontrar alguma greta para poder
envergonhado e, todas pontilhadas de bran entrar e alimentar-se nos frascos, dentro dos
co, parecem um trabalho de finíssimo esmalte. quais todas as coisas colocadasjá estavam féti
Essas gerações tão diferentes de moscas das, úmidas e corrompidas: os peixes fluviais,
saídas de um só cadáver não me apagaram o exceto os lisos, se haviam todos convertido em
intelecto, mas me estimularam a fazer novas ex uma água espessa e turva que pouco a pouco,
periências; e para este fim aparelhando seis no fundo, se tornou clara e límpida, com algum
caixas sem tampa, na primeira coloquei duas das traço de gordura liquefeita nadando no superfí
mencionadas serpentes, na segunda um gran cie; da serpente brotou ainda muita água, po
de pombo, na terceira duas libras de vitela, na rém seu cadáver não se desfez, aliás se conser
quarta um grande pedaço de carne de cavalo, vou ainda quase são e inteiro com as mesmas
na quinta um capão, na sexta um coração de cores, como se tivesse sido fechado lá no dia
castrado; e todas, em pouco mais de vinte e anterior; ao contrário, as enguias soltaram muito
quatro horas, criaram vermes; e os vermes, de pouca água, mas, inchando e fervilhando e pou
pois de cinco ou seis dias de seu nascimento, se co a pouco perdendo a forma, tornaram-se como
transformaram como de costume em ovos; e dos que uma massa de cola ou de visco bastante
das serpentes, todos vermelhos e sem cavida tenaz e grudento; mas a vitela, depois de mui
de, nasceram ao cabo de doze dias alguns tas e muitas semanas, permaneceu árida e seca.
moscões de cor turquesa e alguns outros de cor Todavia, não me acontentei apenas com estas
violeta. Dos do grande pombo, dos quais alguns experiências; ao contrário, fiz infinitas outras em
eram vermelhos e outros negros, nasceram dos diversos tempos e em diversos vasos; e para
vermelhos ao cabo de oito dias moscas verdes, não deixar nada não tentado, por fim mandei
e dos negros, no décimo quarto dia, rompendo que fossem colocados sob a terra alguns peda
a casca na ponta onde não há cavidade, esca ços de carne, que, recobertos muito bem com a
param para fora outros moscões negros listados própria terra, embora tivessem ficado por muitas
de branco; e tais moscões listados de branco semanas sepultados, jamais geraram vermes,
também saíram ao mesmo tempo de todos os como produziram todos os outros tipos de car
outros ovos das carnes da vitela, do cavalo, do nes sobre os quais haviam pousado as moscas:
capão e do coração de castrado; com a diferen e de não pouca consideração é que no mês de
ça, porém, que do coração de castrado, além junho, tendo colocado em uma garrafa de vidro
dos moscões negros listados de branco, nasce de gargalo bastante longo e aberto as vísceras
ram ainda outros de cor turquesa e violeta. [...] de três capões, lá dentro criaram vermes; e não
Comecei a duvidar se todos os vermes das podendo todos aqueles vermes sair pela gran
carnes da semente apenas das moscas derivas de altura do gargalo, caíam de novo no fundo
260
Segunda parte - . A r e v o lu ç ã o c ie n tífi*
“S e m e abstenho de da r m eu ju íz o so bre um a co i
sa , quando não a concebo com su ficien te clareza
e distinção, é evidente que faço ótim o uso do ju ízo
e não m e deixo enganar; m as, se m e determ ino a
negá-ia ou a afirm á-ia, então não estou m ais m e
servin do com o devo de m eu H vre-arbítrío. ”
René Descartes
Capítulo décimo quarto
F la n e is B acon :
ósofo d a e r a industrial
I . F r a n c is B a c o n
a v i d a e o p r o j e t o a u lf u ^ a l
era industrial, pois expressou de modo mui sido eleito para a Câmara dos Comuns, onde
to eficaz e penetrante a influência das des ficou cerca de vinte anos.
cobertas científicas sobre o delineamento da Ao período entre 1592 e 1601 remon
vida do homem, com as conseqüências que ta sua amizade com Robert Devereux, se
delas derivam. gundo conde de Essex, que protegeu Bacon
Francis Bacon nasceu em Londres, em nessa época. Tal amizade terminou tragica
22 de janeiro de 1561, em York House no mente, já que o conde de Essex foi acusado
Strand. Seu pai, Sir Nicholas Bacon, era ta de traição e insurreição e, como consultor
belião da rainha Elisabeth, e assim Francis legal da Coroa, Bacon teve de sustentar es
teve o privilégio de ser introduzido na corte sas acusações. Antes favorito da rainha, o
desde garoto. conde foi condenado à morte e decapitado.
Entrando na Universidade de Cam- Nesse meio tempo, em 1603, subia ao
bridge quando tinha doze anos, ficou no trono inglês Jaime I, homem amante da cul
Trinity College até 1575. William Rawley, tura e protetor de intelectuais. Sob Jaime I,
que foi secretário particular e que escreveu a carreira de Bacon foi rápida e brilhante:
conhecida biografia de Bacon, falando do advogado geral em 1607, procurador-geral
período transcorrido por seu “ senhor” na da Coroa em 1613, lorde tabelião em 1617
universidade, nos diz que, “ quando ainda e lorde chanceler em 1618. Nesse mesmo
estava na universidade, por volta dos dezes ano, Bacon recebeu do rei o título de barão
seis anos de idade, sentiu pela primeira vez de Verolme e, três anos mais tarde, o de vis
que se estava ‘desapaixonando’ — como sua conde de Santo Albano.
Senhoria mesmo expressou-se para mim — Apesar de seu trabalho, suas ocupações
da filosofia de Aristóteles: não por despre e preocupações políticas, Bacon não descu-
zo pelo autor, ao qual sempre tributou altos rou de seu trabalho intelectual, tanto que,
louvores, mas sim pela inutilidade do méto em 1620, publicou sua obra mais famosa, o
do, sendo a filosofia aristotélica uma filoso N ovum Organum, que, na intenção do au
fia (como sua Senhoria sempre gostava de tor, deveria substituir o Organum aristoté-
dizer) boa somente para as disputas e as con lico. A obra era apresentada como a segun
trovérsias, mas estéril em obras vantajosas da parte de um projeto enciclopédico muito
para a vida do homem; e ele manteve esse mais amplo e ambicioso: a Instauratio Mag
modo de pensar até o dia de sua morte” . na, da qual ainda em 1620, além do N ovum
Com efeito, para Bacon, Aristóteles foi o Organum, eram publicados a introdução e
símbolo de uma filosofia “estéril no que se o plano geral.
refere à produção de obras vantajosas para Nesse entretempo, porém, isto é, em
a vida humana” . 1621, a carreira de Bacon foi bruscamente
Como os estudos jurídicos eram neces interrompida e sua fama ficou decididamen
sários para empreender a carreira política, te comprometida. Com efeito, na primavera
em junho de 1575 Bacon ingressou no Gray’s de 1621, Bacon foi acusado de corrupção
Inn de Londres, uma escola de jurisprudên diante da Câmara dos Lordes. Bacon, que
cia onde eram formados jurisconsultos e sempre teve muita necessidade de dinheiro
advogados. durante toda a vida, havia aceitado presen
Logo depois, porém, partia para a Fran tes de uma parte contendora antes de, na qua
ça, seguindo o embaixador inglês Sir Amias lidade de juiz, emitir a sentença. Assim, foi
Paulet. Teve péssima impressão da França acusado de corrupção e condenado. Entretan
(o rei era homem desregrado e o país era cor to, apesar do rigor da sentença, a prisão na
rupto, mal administrado e pobre). Torre de Londres durou apenas poucos dias,
Em 1579 voltou a Londres, em virtude e a multa foi perdoada pelo rei. Assim, Bacon
da morte do pai. Durante o reinado de Eli pôde continuar seus estudos, mas sua carrei
sabeth, embora despendesse muito esforço ra política estava encerrada para sempre.
nesse sentido, não conseguiu deslanchar na Morreu no dia de Páscoa, em 9 de abril
carreira política, ainda que, em 1584, tenha de 1626.
265
Cãpítulo décimo quãYtO - F m ^ c t s B a c o n : -filósofo d a e r a in d u strial
I I . O s e s c r ito s d e B a c o n
e s e u s ig n ific a d o
1 y\ f ilo s o fia b a c o n ia t a a
e x p re s s a n as obeas
Criador, que deve ser ouvida com humilda Desta obra Bacon considerou o Novum
de e interpretada com a necessária cautela e Organum como a segunda parte e o De dig-
paciência. Para ele, a filosofia do passado é nitate et augmentis scientiarum (1623) como
estéril e verbosa. a primeira. Este último escrito é a tradução
Semelhante crítica à cultura tradicio latina ampliada do O f Proficience and Advan
nal voltará à tona diversas vezes nas suces cement o f Learning, Human and Divine. A
sivas obras de Bacon, como, entre outras, o terceira parte da Instaurado é representada
Valerius terminus (1603), os Cogitataetvisa pela Historia naturalis et experimentalis ad
(1607-1609), a Redargutio pbilosophiarum condendam philosophiam sive phenomena
(1608) e a Descriptio globi intellectualis universi, publicada em 1622 e 1623, em dois
(1612). volumes, que continham, respectivamente,
O trabalho intitulado O f Proficience Historia ventorum e Historia vitae et mortis.
and Advancement o f Learning, Human and Em 1624, Bacon fez uma revisão do
Divine (ou seja, “ Sobre a dignidade e o pro texto de New Atlantis (a Nova Atlântida),
gresso do saber humano e divino” ) é de onde prefigura sociedades e instituições
1605. Esse trabalho, que seria ampliado em científicas, e uma efetiva e profícua comu
1623, é uma espécie de defesa e elogio do nidade dos doutos e dos cientistas.
saber. O segundo livro da obra analisa o Na primeira história da Royal Society,
estado de decadência do saber e projeta uma escrita pelo bispo de Rochester, Thomas
enciclopédia do saber, dividido em história Sprat, podemos ler: “ Recordarei somente
(fundada na faculdade da memória), poesia um grande homem, que teve clara visão de
(baseada na fantasia) e ciência (alicerçada todas as possibilidades dessa nova institui
na razão). ção, tal como ela é agora: estou falando de
Os Cogitata et visa são de 1607. Em lorde Bacon. Em seus livros estão esparsos
1609, Bacon publicou o De sapientia vete- por toda parte os mais válidos argumentos
rum, onde, mediante a interpretação de al que se podem produzir em favor da filoso
guns mitos da antiguidade, o autor apresenta fia experimental e as melhores diretrizes
ao público douto as doutrinas da nova filo capazes de promovê-la, argumentos que ele
sofia. adornou com tanta arte que, se meus dese
Ao que tudo indica, foi em 1608 que jos houvessem prevalecido sobre os de al
Bacon iniciou o Novum Organum, no qual guns de meus ótimos amigos, que me indu
retoma também os conceitos elaborados nas ziram a escrever esta obra, nenhum escrito
obras anteriores que ainda não haviam sido seria mais adequado para servir de prefá
publicadas. Nessa obra, publicada em 1620, cio à história da Royal Society do que qual
Bacon trabalhou quase dez anos, apresen quer de suas obras.” Pode-se afirmar, sem
tando-a como a segunda parte da Instaurado sombra de dúvida, comenta Benjamin
magna, um projeto não realizado, cujo pla Farrington, que “a Royal Society representa
no geral era o seguinte: o maior monumento comemorativo a Fran-
1 ) divisão das ciências; cis Bacon” .
2 ) novo órgão ou indícios para a inter E se a Nova Atlântida prefigura aquilo
pretação da natureza; que serão as sociedades científicas, o proje
3) fenômenos do universo ou história to enciclopédico da Instaurado magna ins
natural e experimental para a construção da pira Diderot e d’Alembert na idealização da
filosofia; Enciclopédia iluminista.
4) escala do intelecto; Com Bacon, portanto, como os estu
5) pródromos ou antecipações da filo diosos de comum acordo reconhecem, inau
sofia segunda; gura-se nova atmosfera intelectual e novo
6 ) filosofia segunda ou ciência ativa. modo moral e social de entender a ciência.
267
Capítulo décimo quarto - Fm ucis Bacon: filósofo da era indusfnal
e “i n f a r p ^ e f a ç õ e s d a n a f u ^ e z a ^
1 O m é to d o p o r m e io
“com energia limitada e escasso sucesso” .
Por isso, é tolo e contraditório pensar que
d o q u a l se a lc a n ç a aquilo que não se conseguiu fazer até agora
o ve^ dadem o s a b e r possa ser feito no futuro sem recorrer a
métodos novos e ainda não tentados. O fato
é que admiramos as forças da mente huma-
Escreve Bacon no início do primeiro
livro do Novum Organum: “ Ministro e in
térprete da natureza, o homem faz e enten
de o que observa da ordem da natureza, com
a observação das coisas ou com a obra da ■ A n t e c i p a ç ã o da n atureza. É o
mente — ele não sabe nem pode nada mais p ro c esso "te m e rá rio e p re m a tu ro " d a
que isso.” ra zã o , d e q u e o h o m e m c o m u m e n te
Em conseqüência, prossegue Bacon, “ a f a z u so em re la ç ã o à n a tu re z a .
ciência e a potência humana coincidem, T rata-se d e um p ro c e d im e n to m u ito
porque a ignorância da causa impede o efei útil p a ra indu zir a o co n se n so , p o rq u e
su a s n o ç õ e s típ icas s ã o tira d a s d e p o u
to, e só se comanda a natureza obedecendo
cos e x e m p lo s m u ito fam iliare s e "im e
a ela: aquilo que é causa na teoria torna-se d ia t a m e n t e a g a r r a m o in te le c to e
regra na operação prática” . p ree n ch e m a fa n ta s ia " ; p o ré m , ju s t a
Assim, podemos agir sobre os fenôme m e n te p o r isso, su a s n o ç õ e s s ã o em
nos, ou seja, é possível intervir eficazmente p rim eiro lu g a r " f a ls a s " , e c h e g a m a
sobre eles, mas apenas com a condição de co n stitu ir o s ídolos, o s p re c o n ce ito s
conhecermos suas causas. e r ra d o s d o s q u a is to d o in telec to q u e
Ora, é bem verdade que “ o mecânico, q u e ira se r cien tífico d e v e a b s o lu t a
o matemático, o alquimista e o mago” se m e n te se libertar. M e d ia n te a s a n te
cip açõ e s, n ã o s e p o d e o b te r n en h u m
ocupam da natureza e procuram entender p ro g re sso n as ciências.
seus fenômenos, mas também é verdade,
observa Bacon, que “todos eles, pelo me
nos até agora” , ocuparam-se da natureza
268
Terceira parte - B aaon e D e s c a r t e s
//
I V . j A t e o r i a d o s ^ id o la
rigo com o único objetivo de salvá-las da (como, por exemplo, a “ sorte” , o “primei
crítica e da refutação. ro móvel” etc.), ou são nomes de coisas que
Entretanto, diz Bacon, “as palavras fa existem, mas confusos, indeterminados e
zem grande violência ao intelecto e perturbam impropriamente abstraídos das coisas.
os raciocínios, arrastando os homens a inu
meráveis controvérsias e vãs considerações” .
Na opinião da Bacon, os ídolos do foro
são os mais incômodos de todos, “justamen ..5 O s "id o Ia tk e a te i"
te porque estão ligados à linguagem” . Os
homens “ acreditam que sua razão domina
as palavras; mas ocorre também que as pa Os ídolos do teatro “ penetraram no
lavras retrucam e refletem sua força sobre o espírito humano por meio das diversas dou
intelecto, o que torna a filosofia e as ciências trinas filosóficas e por causa das péssimas
sofisticas e inativas” . regras de demonstração” .
Os ídolos que, por intermédio das pa Bacon os chama de ídolos do teatro
lavras, penetram no intelecto, são de duas porque considera “todos os sistemas filosó
espécies: são nomes de coisas inexistentes ficos que foram acatados ou cogitados como
fábulas preparadas para serem representa
das no palco, boas para construir mundos
de ficção e de teatro” . Encontramos fábu
las não somente nas filosofias atuais ou nas
“ seitas filosóficas antigas” , mas também em
“muitos axiomas e princípios das ciências
que se afirmaram por tradição, fé cega e
desleixo” .
Bacon particularmente classifica três
tipos de ídolos do teatro, que estão na ori
gem da falsa filosofia: a) ídolos sofistas,
baseados sobre experiências comuns não
suficientemente provadas, e depois integra
das artificiosamente pela inteligência; b) ído
los empíricos, baseados sobre poucos expe
rimentos acurados, mas com a pretensão de
sobre eles construir sistemas filosóficos; c)
ídolos supersticiosos, baseados sobre uma
mistura acrítica da filosofia com a teologia
e com as tradições.
Bacon não pretende com isso menos
prezar os antigos nem atingir sua respeita
bilidade. Nós, diz ele, nos ocupamos de novo
método, um método desconhecido dos an
tigos, que permite a gênios menos fortes que
os antigos ir bastante além dos seus resulta
dos: “ Diz-se que até um manco, se coloca
do no caminho certo, pode ultrapassar um
corredor que esteja fora do caminho; por
que é verdade que, quanto mais veloz cor
re, quem está fora do caminho mais se per
■- j--‘ edi eao
de e erra.”
; /, '<■>:.!<• I Cdl l Zí l dn E assim chegamos ao ponto em que
i empreender, podemos tratar daquilo que, para Bacon,
,i repartirão da ciência constitui a) o verdadeiro objetivo da ciên
■i ,h !■ ' da natureza. cia eh) o verdadeiro método da pesquisa.
272
Terceira parte - B a c o n e D e s c c u - te s
V. o escopo da ciência:
a descoberta d as fo rm a s7
7
V I. A ip v d u ç ã o por e lim in a ç ã o
e o ^ e x p e n m e n tu m a m e is ”
pois de um processo completo de exclusão, Ele próprio escreve: “Até agora, aqueles que
passar à afirmação” . A natureza, portanto, trataram das ciências eram empíricos ou
deve ser analisada e decomposta com o fogo dogmáticos. Os empíricos, como as formi
da mente, “ que é quase um fogo divino” . gas, acumulam e consomem. Os racionalis
Mais especificamente, porém, em que tas, como as aranhas, extraem de si mes
consiste o procedimento por exclusão ou mos sua teia. O caminho intermediário é o
eliminação? Pois bem, por “ exclusão“ ou das abelhas, que extraem sua matéria-pri
“ eliminação” Bacon entende exatamente a ma das flores do jardim e do campo, trans
exclusão ou eliminação da hipótese falsa. formando-a e digerindo-a em virtude de uma
Retomemos o exemplo da pesquisa da capacidade que lhes é própria. Não muito
natureza do calor. Considerando as tábua diferente é o trabalho da verdadeira filoso
de presença, ausência e graus, o pesquisa fia, que não deve se servir somente ou prin
dor deve excluir ou eliminar como próprias cipalmente das forças da mente, pois a ma
da forma ou natureza naturante do calor téria-prima que ela extrai da história natural
todas aquelas qualidades não possuídas por e dos experimentos mecânicos não deve ser
algum corpo quente, as qualidades possuí conservada intacta na memória, mas sim
das por algum corpo frio e as que permane transformada e trabalhada pelo intelecto.
cem invariáveis sob o aumento do calor. Assim, a nossa esperança se deposita na
Para ficar ainda mais claro, a propósito união sempre mais estreita e sólida entre
da pesquisa da natureza do calor, o procedi essas duas faculdades, a experimental e a
mento por exclusão poderia assumir o seguin racional, união que até agora ainda não se
te processo de argumentação: o calor é ape Texto
nas um fenômeno celeste? Não, pois também
os fogos terrenos são quentes. Ele é, então,
apenas um fenômeno terrestre? Não, pois o
sol é quente. Todos os corpos celestes são O ‘“expeeimervtum ceucis77
quentes? Não, porque a lua é fria. Será que o
calor depende da presença de alguma parte
constitutiva no corpo quente, como poderia Chegando à “primeira colheita” , Ba
ser o antigo elemento chamado “fogo” ? Não, con toma essa primeira hipótese como guia
pela razão de que qualquer corpo pode ser para a pesquisa posterior, que consiste na
tornado quente pelo atrito. Será que depen dedução e no experimento, no sentido de
de então da composição particular dos cor que, da hipótese obtida, devem-se deduzir
pos? Não, já que podem ser esquentados os os fatos por ela implicados e previstos, ex
corpos de qualquer composição. perimentando em condições diversas se tais
E assim por diante, até se chegar a uma fatos implicados e previstos pela hipótese
“ primeira colheita” (vindeminatio prima), se verificam.
isto é, a uma primeira hipótese coerente com Desse modo se constrói uma espécie de
os dados expostos nas três tábuas e criva rede de investigação, da qual parte toda uma
dos através do procedimento seletivo de eli série de “ interrogações” a que a natureza é
minação e exclusão. No que se refere ao forçada a responder.
exemplo do calor, Bacon chega a uma con Com tal objetivo, Bacon cogita um
clusão como esta: “ O calor é um movimen conjunto rico de técnicas experimentais (ou
to expansivo e forçado, que se desenvolve de instâncias prerrogativas), por ele indica
segundo as partes menores.” das com nomes muito fantasiosos (instân
cias solitárias; instâncias migrantes; instân
cias ostensivas; instâncias clandestinas;
4 ;A nova indução instâncias constitutivas; instâncias confor
mes ou proporcionais; instâncias monádicas;
como “via mediana77 instâncias desviadoras etc.), entre as quais
entee as seguidas destacam-se particularmente as “instâncias
poe empieistas e eacionalistas da cruz” , assim chamadas “ por metáfora
extraída das cruzes colocadas nos caminhos
para indicar uma bifurcação” .
Procedendo desse modo na busca da A estratégia do experimentum crucis
verdade, Bacon trilhava um caminho dife se dá “ quando, durante a pesquisa de uma
rente do dos empiristas e dos racionalistas. natureza, o intelecto está incerto e como que
277
Capítulo décimo quarto - Fm ncis B a c o n filó so fo d a a ^ a in d u strial
em equilíbrio no decidir sobre a qual de duas pre o mesmo peso, ao passo que, sendo ver
naturezas, ou mais de duas, deve ser atribuí dadeira a segunda hipótese, deveria seguir-
da a causa da natureza examinada; pelo con se que “ quanto mais os graves se aproxi
curso freqüente e ordinário de várias natu mam da terra, tanto maiores são a força e o
rezas, as instâncias cruciais mostram que o ímpeto com que são impelidos em sua dire
vínculo de uma dessas naturezas com a na ção, ao passo que, quanto mais se afastam
tureza dada é constante e indissolúvel, ao dela, mais lenta e fraca se torna aquela for
passo que o das outras é variável e separá ça [...]” .
vel. Assim, a questão resolve-se, e é acolhi Pois bem, sendo assim, eis a instância
da como causa a primeira natureza, enquan da cruz: “Tomam-se dois relógios, um da
to a outra é rejeitada e repudiada” . E Bacon queles que se movem por contrapesos de
comenta: “Tais instâncias trazem portanto chumbo, outro daqueles que se movem por
muita luz e apresentam uma como que for contração de uma mola de ferro. Experimen
te autoridade, de modo que, algumas vezes, te-se se um é mais veloz ou mais lento que o
chegando a elas, nelas se detém o processo outro. Depois, coloque-se o primeiro na
de interpretação” . extremidade de um templo altíssimo, após
No segundo livro do Novum Orga- tê-lo regulado de acordo com o outro, de
num, não faltam exemplos de pesquisas que modo a que marquem o mesmo tempo, dei
necessitam de experimenta crucis para se xando-se então o outro aqui embaixo. E
rem resolvidas. Detenhamo-nos sobre o isso para observar diligentemente se o re
exemplo da solução da questão da forma lógio colocado no alto move-se mais lenta
do peso. mente do que antes, em virtude da menor
Para alguns, o peso dos corpos devia- força de gravidade. O experimento deve ser
se a uma propriedade intrínseca dos corpos, repetido, levando-se o relógio para a pro
ao passo que, para outros, devia-se à gravi fundidade de alguma mina, situada muito
dade. abaixo da superfície da terra, para ver se ele
Eis, portanto, para exemplificar, a bifur se move mais velozmente que antes, em ra
cação: “ 1) Ou os corpos pesados e graves zão do aumento da força de atração. E so
tendem para o centro da terra por sua pró mente no caso de se concluir que efetiva
pria natureza, isto é, segundo o seu esquema- mente o peso dos corpos diminui quando se
tismo, 2 ) ou então são atraídos e aprisiona elevam ou aumenta quando se abaixam em
dos pela própria força da massa terrestre.” direção ao centro da terra, é que se determi
Ora, se a primeira hipótese fosse ver nará que a causa do peso é a atração da
dadeira, então todo objeto deveria ter sem massa terrestre.”
278
Terceira parte - B a c o n e D e sc a rte s
" BACON
A IN T E R P R E T A Ç Ã O D A N A T U R E Z A
1 . ídolos da tribo
Refutação das 2. ídolos da caverna
antecipações da natureza, 3. ídolos do foro ou do mercado
PONTO DE PARTIDA 4. ídolos do teatro
isto é, dos
A) CLASSIFICAÇÃO:
a. tábuas da presença
b. tábuas da ausência
Primeira parte: c. tábuas dos graus
derivação dos axiomas
a partir da experiência B) MÉTODO:
MÉTODO DEMONSTRATIVO indução por eliminação
da hipótese falsa
na explicação do fenômeno
1.
C) OBJETIVO:
Segunda parte: primeira vindima
derivação de novos fenômenos (ou interpretação inicial),
da primeira vindima isto é, primeira hipótese
por meio de técnicas experimentais coerente
| \ (instâncias prerrogativas, com os dados
experimentados
I x retificações da indução etc.)
COGNOSCITIVO:
descoberta da forma de uma natureza dada
(interpretação final completa dos fenômenos),
isto é, compreensão da estrutura (esquematismo latente)
de um fenômeno e da lei (processo latente)
T_________ que regula seu processo
FIM DA CIÊNCIA
OPERATIVO:
geração de uma ou mais novas naturezas
em um corpo dado,
isto é, transformação dos corpos materiais
por meio da introdução neles
de uma ou mais qualidades sensíveis
279
Cãpíttílo d é c itT lO C ^ U U T tO - F V cm cis B a c o n : filó so fo d a et*a in d u stria l
que se constrói sobre suo bose. flssim, o único 3. O intelecto abandonado a si mesmo,
esperanço reside no verdadeira indução. em uma mente sóbria, paciente, severa (sobre
1 1. Não há nada de incorrupto nas no tudo se nõo for impedido pelas doutrinas tradi
ções, nem nas lógicas nem nas físicas. Rs no cionais), tenta por vezes também o segundo
ções de substância, quolidode, ação, paixão, caminho, que é o justo, mas com escasso pro
e os próprias noções de se r não são válidas e veito. O intelecto, com efeito, se nõo for guia
muito menos o são as de pesado, leve, denso, do e sustentado, procede irregularmente e é
tênue, úmido, seco, geração, corrupção, atra completamente incapaz de vencer a obscurida
ção, repulsão, elemento, matéria, Forma e se de das coisas.
melhantes. Todas essas noções são fantásti 4. Rmbos os caminhos se movem do sen
cas e mal definidas. tido e dos particulares e terminam nos princípios
12. Rs noções das espécies ínfimas, como mais gerais, mas diferem enormemente entre
homem, cão, pomba, e das percepções sensí si: um toca apenas de passagem a experiência
veis imediatas, como quente, Frio, branco, p re e os fatos particulares, o outro aí se demora
to, não sõo muito falazes, Cias, porém, por ve com método e com ordem; um estabelece des
zes são confusas pelo fluir da matéria e pela de o início princípios gerais abstratos e inúteis:
mistura das coisas. Todas as outras noções, que o outro sobe gradativamente às coisas mais
os homens usaram até agora, sõo aberrações conhecidas por natureza.
abstraídas ou extraídas das coisas com modos 5. Não é pequena a diferença entre os
não apropriados. ídolos da mente humana e as idéias da mente
1 3 . 0 arbítrio e a aberração na constru divina, isto é, entre opiniões falazes e os ver
ção dos axiomas nõo sõo menores do que na dadeiros selos e marcas impressos por Deus
abstração das noções, e isso também nos pró sobre as criaturas assim como se encontram.
prios princípios que dependem da indução co ó. De nenhum modo pode ocorrer que os
mum. Muito maior é o arbítrio nos axiomas e axiomas estabelecidos mediante a argumenta
nas proposições conseguidas por meio do ção sirvam para a invenção de novas obras,
silogismo. porque a sutileza da natureza supera grande
14. Rquilo que até agora foi produzido nas mente a da argumentação. Mas os axiomas
ciências é de tol monta que depende quase extraídos com método e com ordem dos parti
sempre das noções vulgares. Para penetrar nos culares facilmente por sua vez indicam e desig
recessos escondidos da natureza é necessário nam particulares novos, e desse modo tornam
que tanto os conceitos quanto os axiomas se ativas as ciências.
jam abstraídos das coisas por uma via mais certa 7. Os axiomas agora em uso sõo extraí
e segura e que nos habituemos a usar o inte dos de uma limitada e superficial experiência e
lecto de modo melhor e mais seguro. dos poucos particulares que mais freqüente-
mente se apresentam; sõo de tal modo feitos à
medida e segundo a extensão destes; nõo há,
3. Antecipações da natureza
portanto, nada de estranho se não conduzem
e interpretações da natureza 1
2
a novos particulares. C se por acaso se apre
1. Sõo e podem ser dois os caminhos para senta uma instância qualquer antes não perce
a pesquisa e a descoberta da verdade. O pri bida ou conhecida, cuida-se de salvar o axio
meiro, do sentido e dos fatos particulares voa ma com alguma frívola distinção, quando seria
para os axiomas mais gerais e, sobre a base mais justo emendá-lo.
destes princípios e de sua imutável verdade, 8 . Para fazermo-nos entender melhor, es
julga e descobre os axiomas médios: este é o tabelecemos chamar de antecipações da natu
caminho agora em uso. O segundo, do sentido reza os temerários e prematuros procedimen
e dos fatos particulares extrai os axiomas, su tos da razão dos quais fazemos uso comumente
bindo com medida e gradativamente de modo nas relações com a natureza. Chamaremos ao
a alcançar apenas no fim os axiomas mais ge contrário de interpretação da natureza a razão
rais: este é o caminho verdadeiro, mas ainda que se desenvolve a partir das coisas confor
nõo tentado. me os modos devidos.
2. O intelecto abandonado a si mesmo se 9. Rs antecipações são bastante firmes
põe no primeiro caminho e o percorre segundo relativamente ao consenso; com efeito, se tam
as regras da dialética. R mente tende, com efei bém os homens enlouquecessem de modo úni
to, a subir aos princípios mais gerais e aí parar; co e conforme, poderiam muito bem encontrar-
enfastia-se logo com a experiência. R dialética, se todos de acordo.
por causa de sua complacência com as dispu 10. Ou melhor, as antecipações servem
tas, torna estes defeitos ainda mais pesados. muito mais que as interpretações para provo-
281
Capítulo décimo C^uatto - "FVcmcis Bacon: filósofo da era iindustrial
car o consenso porque, extraídos de poucos suas ordens, de modo que eles, por algum tem
exemplos e justomente dos que parecem mais po, se imponham renunciar às noções e come
familiares, logo prendem o intelecto e preen cem a familiarizar-se com as próprias coisas.
chem a fantasia; ao contrário, as interpretações, F. Bacon,
extraídas esparsamente de exemplos bastante N ovum organum (Novo órgão)
variados e muito distantes entre si, não podem
atingir imediatamente o intelecto e parecem
necessariamente, para a opinião comum, difíceis
e estranhas, quase como os mistérios da fé.
11. Nas ciências fundamentadas sobre
opiniões e sobre princípios prováveis é oportu fls linhas gerais
no o uso das antecipações e da dialética: nes do novo método
tes casos trata-se de forçar o assentimento, e
não de obrigar as coisas.
12. Também se todos os engenhos de O caminho eminente para a descober
todas as eras colaborassem juntos e reunissem ta da verdade é, portanto, o que do sentido
e transmitissem suas fadigas, nenhum grande e dos particulores extroi os axiomas, remon
progresso poderio ser obtido nas ciências me tando por graus o escola do generalização,
diante as antecipações, porque os erros enrai até chegar aos oxiomos generalíssimos. Tal
zados na mente e que remontam a suas primei caminho é a indução por eliminação, no qual
ras elaborações não podem ser corrigidos pela "repõe-se o esperança maior''.
excelência das funções e dos remédios suces
sivos.
1. Não se trata apenas de procurar e pro
13. €m vão se espera um grande progres
videnciar maior quantidade de experimentos de
so nas ciências pela superposição e pelo en
gênero diverso dos até agora em uso; deve-se
xerto do novo sobre o velho. R instauração deve também introduzir um método completamente
investir os primeiros fundamentos, se não qui
diverso e um procedimento diferente para con
sermos girar perpetuamente em um círculo com
duzir e fazer avançar a experiência. Como já foi
progresso escasso e quase insignificante.
dito, uma experiência vaga e que segue ape
14. Os autores antigos e todos os outros
nas a si mesma é algo semelhante a um andar
conservam sua honra, porque aqui não se insti
às apalpadelas, que confunde os homens em
tui um confronto entre os engenhos e as capaci
vez de informá-los. Mas onde a experiência pro
dades, mas entre diversos caminhos e métodos.
cede segundo uma lei certa, regularmente e sem
Não pretendemos ser juizes, mas indicadores.
interrupções, então se pode esperar algo de
15. € preciso dizer com clareza que sobre
melhor das ciências.
a base das antecipações (isto é, do método
2. Depois que todo o abundante material
agora em uso) não se pode formular nenhum
da história natural e da experiência tiver sido
reto juízo a respeito de nosso método ou em
aprontado e preparado assim como requer a
torno das descobertas a que ele conduz. Não
obra do intelecto, ou seja, da filosofia, nem por
se pode, com efeito, pretender que nos sub
isso o intelecto está em grau de agir esponta
metamos ao julgamento de quem deve ser ele
neamente e confiante na memória sobre aque
próprio chamado em julgamento.
le material: seria como se alguém esperasse
16. € não é fácil expor ou explicar aquilo
poder ter de memória e dominar os cálculos de
que aqui se propõe, porque coisas novas em si
um livro de efemérides.1 Rté agora, nas inven
serão entendidas apenas por analogia com as
ções, preferiu-se meditar a escrever e, portan
antigas.
to, ainda não existe a experiência letrada. Não
17. Da expedição dos franceses na Itália,
pode ser aprovada nenhuma invenção que não
Bórgia disse que eles vieram trazendo na mão o
se sirva do escrito. Quando isso tiver entrado
giz para marcar os alojamentos, e não as armas
no uso e a experiência tiver se tornado letrada,
para combater. Do mesmo modo, nosso método poder-se-ão nutrir maiores esperanças.
deve penetrar em espíritos capazes e adequa
3. O número dos particulares, que são
dos a recebê-lo. Não podem ser utilizadas as
quase um exército, é grandíssimo, e estes par
refutações, dado que não estamos de acordo
ticulares estão tão esparsos e difundidos que
sobre princípios, nem sobre conceitos, e nem confundem e desorientam o intelecto. Não se
sequer sobre a forma das demonstrações.
18. Resta-nos apenas um único e simples
modo de exposição: conduzir os homens para 'Tábuas numéricas que registram as coordenadas dos
diante de fatos particulares, para suas séries e astros.
282
Terceira parte - " B a c o n e D e s c a r t e s
deve, portanto, esperar algo do bom das es não sejam abstratos, mas sejam verdadeira
caramuças, dos movimentos levianos 0 dos sus mente limitados pelos axiomas médios.
piros do intelecto, até que todo o material que Ro intelecto dos homens, portanto, não
se refere ao argumento que é objeto da pes devemos acrescentar asas, mas chumbo e pe
quisa não tiver sido preparado e coordenado sos a fim de impedi-lo de saltar e voar. Isso até
mediante tábuas de pesquisa idôneas, orde agora não foi feito; quando isso for feito se
nadamente dispostas 0 quase vivas, e até que poderão nutrir mais altas esperanças sobre o
a mente não se aplique a trabalhar sobre os destino das ciências.
auxílios devidamente dispostos e preparados 6 . Para estabelecer os axiomas, devemos
que estas tábuas fornecem. além disso excogitar uma forma de indução di
4. Na verdade, depois que tivermos sob ferente da que até agora está em uso, que não
os olhos a grande quantidade dos particulares deve apenas encontrar e provar os assim cha
bem ordenados, não é preciso colocar-se ime mados princípios: mas também os axiomas me
diatamente a pesquisar e a inventar novos par nores 0 médios e todos os outros. R indução
ticulares e novas obras: 0, em todo caso, se que procede por enumeração simples é, com
isso acontecer, não será preciso parar nestes. efeito, uma coisa pueril: suas conclusões são
De fato, quando todos os experimentos de to precárias; ela é exposta ao perigo de uma ins
das as artes tivessem sido recolhidos 0 reuni tância contraditória; julga com base em um nú
dos, 0 submetidos ao conhecimento 0 ao jul mero de fatos inferior ao necessário, e apenas
gamento de um só homem, este - limitando-se em base aos que tem ao alcance da mão. R
a transferir estes experimentos de uma arte para indução que será útil para a invenção e a de
outra e mediante a experiência que chamamos monstração das ciências e das artes deve ao
letrada - estaria em grau de descobrir muitas contrário analisar a natureza mediante as devi
coisas novas, úteis à vida e à condição huma das eliminações e exclusões; e finalmente, de
na. Não negamos isso, mesmo que as maiores pois de um número suficiente de negativas,
esperanças não devam ser postas na expe pode concluir em base às afirmativas. Isso até
riência letrada, mas na nova luz dos axiomas, agora jamais foi feito e nem tentado, o não ser
que são extraídos dos particulares segundo talvez por Platão, que em algum caso faz uso
regras certas e que, por sua vez, indicam e de desta forma de indução poro extrair definições
signam particulares novos. O caminho a percor e idéias. Todavia, para fazer que esta forma de
rer, com efeito, não é plano, mas em subida e indução ou de demonstração possa operar de
em descida: primeiro se sobe até os axiomas, modo bom e legítimo, é preciso fazer uso de
depois se desce às obras. muitas coisas às quais, até agora, nenhum mor
5. Todavia, não devemos permitir que o tal jamais pensou. Deveremos, portanto, traba
intelecto salte 0 voe dos particulares para axio lhar sobre ela mais do que até agora não se
mas mais distantes e gerais (tais são os assim trabalhou em torno do silogismo. Com o auxílio
chamados princípios das artes e das coisas), dessa indução se deverá proceder não só para
para depois provar e verificar os axiomas mé descobrir os axiomas, mas também para definir
dios à luz de sua verdade imóvel, fite agora se as noções. Nessa indução sem dúvida põe-se
procedeu assim, em parte porque o intelecto a esperança maior.
seguia este caminho por impulso natural, em 7. Ro constituir os axiomas mediante esta
parte porque a isso o tinham habituado as de indução, é preciso também considerar e exami
monstrações de tipo silogístico. Poderemos es nar se o axioma que se constitui é adequado e
perar bem das ciências apenas quando, por quase construído sobre medida em relação aos
meio de uma escala verdadeira, em graus con particulares dos quais se extrai, ou se ao contrá
tínuos, sem saltos ou interrupções, se poderá rio é mais amplo e mais vasto. Se for mais am
subir dos particulares até os axiomas menores, plo ou mais vasto, é preciso ver se esta sua
destes aos médios, depois aos outros superio amplitude e vastidão são justificadas pela de
res e, finalmente, aos axiomas mais gerais. Os signação de novos particulares, como por uma
axiomas mais baixos, com efeito, não diferem fidejussória: a fim de que não aconteça ou de
muito da pura experiência. Os mais altos ou fixar-se apenas sobre particulares já conhecidos,
mais gerais (falo daqueles de que dispomos ou então de prender, em um abraço confuso,
atualmente) são conceituais e abstratos, priva apenas sombras ou formas abstratas, e não coi
dos de qualquer solidez. Os axiomas médios, sas sólidas e determinadas na matéria. Quando
ao contrário, são verdadeiros, sólidos e vivos: tudo isso tiver entrado no uso, então veremos
a eles estão confiadas as esperanças e as sor nascer com razão esperanças bem fundadas.
tes dos homens. Sobre eles, enfim, se funda F. Bacon,
mentam os axiomas mais gerais, porém tais que N ovum orgonum .
L b a p ítu lo d é c im o q u in to
D e sc a r fe s:
uo jxmdadot* d a -filosofia m oderna^
— I. y \ v id a e a s o b ra s —
de estudos humanísticos e três anos de ma veria depois no Studium bonae mentis, de
temática e teologia. Inspirado nos princípios 1623, e nas Regulae ad directionem ingenii
da filosofia Escolástica, considerada a mais (Regras para a guia do intelecto), que escre
válida defesa da religião católica contra os veu entre 1627 e 1628.
sempre renascentes germes da heresia, aque Tendo-se estabelecido na Holanda, ter
le tipo de ensino, embora sensível às novi ra de tolerância e liberdade, Descartes, por
dades científicas e aberto para o estudo da sugestão do padre Marino Mersenne, con
matemática, deixou Descartes insatisfeito e siderado o “ secretário da Europa douta” , e
confuso. Ele logo se deu conta do abismo do cardeal Pierre de Bérulle, começou a ela
enorme entre aquela orientação cultural e borar um tratado de metafísica, que, porém,
os novos fermentos científicos e filosóficos logo interrompeu para dedicar-se a uma
que brotavam por toda parte. Em especial, grande obra física, o Traité dephysique (Tra
percebeu logo a ausência de uma séria meto tado de física), dividido em duas partes: a
dologia, capaz de instituir, controlar e or primeira sobre temática cosmológica, Le
denar as idéias existentes e guiar à busca da monde ou traité de la lumière (O mundo ou
verdade. tratado da luz), e a segunda de caráter an
O ensino de filosofia, ministrado se tropológico, L’bomme (O homem). Em 22
gundo a codificação de Suarez, levava os de julho de 1633, de Deventer, na Holanda,
espíritos para o passado, para as interminá anunciou a Mersenne que o Tratado sobre
veis controvérsias dos tratadistas escolás- o mundo e sobre o homem estava quase
ticos, reservando pouco espaço para os pro pronto (“ só me resta corrigi-lo e copiá-lo” ),
blemas do presente. e que esperava enviá-lo no fim do ano. En
Embora criticando a filosofia aprendi tretanto, tomando conhecimento da conde
da naqueles anos, Descartes certamente não nação de Galileu por causa da tese coperni-
esquece o espaço reservado aos problemas cana, que ele compartilhava e cujas razões
científicos e ao estudo da matemática. Mas expusera no Tratado em questão, Descartes
até no que se refere a essas disciplinas, ao
término de seus estudos ele sentiu-se pro
fundamente insatisfeito.
Descartes, portanto, deixou o colégio
de La Flèche desorientado e desprovido de
um saber ao qual se agarrar. Por isso, de
pois de ter prosseguido seus estudos na Uni
versidade de Poitiers, onde conseguiu o ba
charelado e a licenciatura em Direito, mas
encontrando-se ainda na maior confusão
espiritual e cultural, decidiu dedicar-se à
carreira das armas. Assim, em 1618, quan
do teve início a Guerra dos Trinta Anos, alis
tou-se nas tropas de Maurício de Nassau,
que combatia contra os espanhóis pela li
berdade da Holanda. Em Breda, estreitou
amizade com um jovem cultor de física e
matemática, Isaac Beeckman, que o estimu
lou a estudar física. Inclinado a um projeto
de “ matemática universal” , em Ulma, onde
se encontrava com o exército do duque Ma-
ximiliano da Baviera, em cujas fileiras in
gressara, Descartes relata ter recebido,
entre 10 e 11 de novembro de 1619, uma
espécie de revelação intelectual sobre os fun
damentos de “ uma ciência admirável” . Por
Descartes (1596-1650)
causa dessa “ revelação” , Descartes fez a
foi o fundador da filosofia moderna,
promessa de ir em peregrinação à Santa Ca tanto do ponto de vista das temáticas
sa de Loreto. Em um pequeno diário, em como do ponto de vista da exposição metodológica.
que anotava suas reflexões, Descartes fala Reproduzimos um quadro de R hlals,
de um“ inventum mirabile”, que desenvol- conservado em Paris no Museu do Louvre.
285
Capitulo décimo quinto ~ D e sc a rte s: “ o fundador d a jiiosofia moderna
apressou-se a escrever novamente para o É desse período o seu amor por Helène
mesmo Mersenne: “ Estou quase decidido a Jans, da qual teve Francine, a filhinha que
queimar todas as minhas apostilas ou, pelo amou ternamente e que perdeu com apenas
menos, não mostrá-las a ninguém.” A lem cinco anos. A dor pela perda da menina
brança da morte de Giordano Bruno na fo incidiu profundamente sobre o seu espírito
gueira e da prisão de Campanella, que a e talvez, pelo menos em parte, sobre seu
condenação de Galileu avivava em sua men pensamento, apesar de seus escritos conti
te, agiram com força sobre seu espírito es nuarem sempre severos e rigorosos. Reto
quivo, inimigo das vicissitudes que prejudi mou a elaboração do Tratado de metafísica,
cam a paz de espírito, tão necessária para o mas agora sob a forma de Meditações, es
estudo. critas em latim porque reservadas aos
Superada a grave perturbação, Descar doutos, obra na qual os acenos “ à enfermi
tes sentiu a necessidade urgente de enfren dade e à fraqueza da natureza humana” tes
tar o problema da objetividade da razão e temunham um espírito cheio de angústia.
da autonomia da ciência em relação ao Deus Enviadas a Mersenne para que as levasse ao
onipotente. E motivou-se nesse sentido tam conhecimento dos doutos e recolhesse as
bém pelo fato de que Urbano VIII havia con suas objeções — ficaram famosas as obje-
denado a tese galileana como contrária à Es ções de Hobbes, de Gassendi, de Arnauld e
critura. Assim, de 1633 a 1637, fundindo do próprio Mersenne —, as Meditationes
os estudos de metafísica que iniciara e de de prima philosophia serão finalmente publi
pois interrompera com suas pesquisas cien cadas, juntamente com as Respostas de Des
tíficas, escreveu o famoso Discurso sobre o cartes em 1641, sob o título Meditationes
método, que introduzia três ensaios cientí de prima philosophia in qua Dei existentia
ficos nos quais compendiava os resultados et animae immortalitas demonstrantur (Me
alcançados: a Dioptrique, o Météores e a ditações metafísicas onde se demonstra a
Géométrie. Diferentemente de Galileu, que existência de Deus e a imortalidade da al
não havia elaborado nenhum tratado explí ma). Atacado pelo teólogo protestante Gis-
cito sobre o método, Descartes considerou bert Voét, replicou com a Epístola Renati
importante demonstrar o caráter objetivo da Des Cartes ad celeberrimum virum Gisber-
razão e indicar as regras em que devemos tum Voêtium, na qual procurou demonstrar
nos inspirar para alcançar tal objetividade. a pobreza e a inconsistência das concepções
Nascido em contexto polêmico e em defesa filosóficas e teológicas do adversário.
da nova ciência, o Discurso sobre o método Apesar das muitas polêmicas que seus
tornou-se a “magna carta” da nova filosofia. escritos de metafísica e ciência suscitavam,
STOCKHOi.M’
Duas vistas
de Estocolmo
em uma incisão
do século XVI;
em 1649
Descartes aceitou
o convite
da rainha Cristina
da Suécia
para ai
se transferir,
e deixou
definitivamente
a Holanda. .
286
Terceira parte - B a c o n e D e sca rte s
I I . y \ e x p e r iê n c ia d a d e i^ o c a d a
d a c u ltu r a d a è.po<zcx
Vejamos, em pormenor, algumas ra mos com novos problemas, a razão disso
zões da sua insatisfação e perplexidade. No deriva da falta de um guia capaz de nos
que se refere à filosofia, repetindo uma frase acompanhar na solução dos novos proble
de Cícero, escreve ele: “ Seria difícil imagi mas. Com efeito, falando da geometria e da
nar algo tão estranho e incrível que não álgebra, ele recorda que estas “ se referem a
tenha sido dito por algum filósofo” . E em matérias muito abstratas e aparentemente
bora a filosofia “ tenha sido cultivada pe de nenhuma utilidade” : a primeira, a geo
los espíritos mais excelentes que já viveram” , metria, “ porque ligada à consideração das
continua Descartes no Discurso sobre o figuras” ; a segunda, a aritmética, porque
método, não conta ainda “ com coisa algu “confusa e obscura” a ponto de “ embara
ma da qual não se discuta e que não seja çar o espírito” .
duvidosa” . No que se refere à lógica, que Daí seu propósito de dar vida a uma
ele reduz à silogística tradicional, pelo espécie de matemática universal, isto é, li
menos mostra-se disposto a conceder-lhe vre dos números ou das figuras, para poder
valor didático-pedagógico; mas à lógica servir de modelo para todo saber.
dos dialéticos, para a qual era conduzida Descartes não pode adotar a matemá
a silogística, nega qualquer força de fun tica tradicional como modelo do saber, por
damentação e qualquer capacidade heu que ela não possui método unitário. Para
rística. teorizar esse modelo, ele crê necessário de
Portanto, até no melhor do seu desem monstrar que as diferenças entre aritmética
penho, a lógica tradicional nada mais faz e geometria não são relevantes, porque
do que ajudar a expor a verdade, mas não a ambas se inspiram, ainda que implicitamen
conquistá-la. te, no mesmo método.
Assim, se é severo o seu juízo sobre a E, com tal objetivo, traduz os pro
filosofia tradicional, ainda mais drástico é blemas geométricos em problemas algébri
o juízo sobre a lógica. E é por causa dessas cos, mostrando sua substancial homoge
profundas insatisfações e de tais pontos de neidade.
vista que a filosofia aprendida no colégio Como é que isso lhe foi possível? Atra
de La Flèche parece-lhe extremamente cheia vés daquilo que se chama geometria ana
de lacunas. Em uma época em que se ha lítica, e com a qual Descartes tornou a
viam afirmado e se desenvolviam com vigor matemática mais límpida em seus princí
novas perspectivas científicas e se abriam pios e em seus procedimentos, aplicando
novos horizontes filosóficos, Descartes per a álgebra à geometria, isto é, estudando
cebia a falta de um método que ordenasse o determinadas figuras com determinadas
pensamento e, ao mesmo tempo, fosse ins equações.
trumento heurístico e de fundamentação ver E este, no fundo, era o objetivo que
dadeiramente eficaz. ele se propunha, e é nesse contexto de crí
tica e de recuperação das ciências matemá
ticas que devemos ler o trecho no qual Des
cartes, ainda no Discurso sobre o método,
tS e ífic a s afirma querer inspirar o método do novo
a o s a b e r m a+ em á+ ico saber na clareza e no rigor típicos dos pro
cedimentos geométricos: “ Aquela longa
cadeia de raciocínios, todos simples e fá
Além disso, mesmo admirando o rigor ceis, de que os geômetras têm o hábito de
do saber matemático, ele critica tanto a arit se servir para chegar às suas difíceis de
mética como a geometria tradicionais, por monstrações, me havia possibilitado ima
que elaboradas com procedimentos que, ginar que todas as coisas de que o homem
embora lineares, não se sustentavam em uma pode ter conhecimento derivam do mesmo
clara orientação metodológica. O fato de modo e que, desde que se abstenha de acei
suas passagens serem rigorosas e coerentes tar como verdadeira uma coisa que não o é
não significa que a aritmética e a geometria e respeite sempre a ordem necessária para
foram elaboradas no contexto de um bom deduzir uma coisa da outra, não haverá
método, nunca teorizado. Se permanecemos nada de tão distante que não se possa al
quase como que desarmados e induzidos a cançar, nem de tão oculto que se não possa
recomeçar do início quando nos defronta descobrir. ”
288
Terceira parte - B cu re m e P e s c a r e s
III. A s d o m é to d o
4 .zA t e r c e i r a r e g r a d o m é to d o
6 ; A s q u a fe o r e g r a s
c o m o m o d e lo d o s a b e r
A decomposição do conjunto em seus
elementos simples não basta, porque apre
senta um conjunto desarticulado de ele São regras simples, que destacam a ne
mentos, mas não o nexo de coesão que de cessidade de se ter plena consciência dos
les faz um todo complexo e real. Por isso, momentos em que se articula qualquer pes
à análise deve-se seguir a síntese, o objeti quisa rigorosa. Elas constituem o modelo
vo da terceira regra, que Descartes, ainda do saber, precisamente porque a clareza e
no Discurso sobre o método, enuncia com a distinção garantem contra possíveis equí
as seguintes palavras: “ A terceira regra é a vocos ou generalizações apressadas. Com
de conduzir com ordem meus pensamen tal objetivo, diante de problemas comple
tos, começando pelos objetos mais simples xos como de fenômenos confusos, é preci
e mais fáceis de conhecer, para elevar-se, so chegar aos elementos simples, que não
pouco a pouco, como por degraus, até o sejam mais decomponíveis, para que pos
conhecimento dos mais complexos, supon sam ser totalmente invadidos pela luz da
do uma ordem também entre aqueles nos razão.
quais uns não precedem naturalmente aos Em suma, para proceder com correção
outros.” é preciso repetir, a propósito de qualquer
Assim, é necessário recompor os ele pesquisa, aquele movimento de simplifica
mentos em que foi decomposta uma rea ção e rigorosa concatenação constituído
lidade complexa. Trata-se de uma síntese que pelas operações típicas do procedimento
deve partir de elementos absolutos (ab-so- geométrico.
lutus) ou não dependentes de outros, e di Entretanto, o que comporta a adoção
recionar-se para os elementos relativos ou de tal modelo?
dependentes, dando lugar assim a um enca- Pois bem, antes de mais nada e de
deamento que ilumina os nexos do conjunto. forma geral, comporta a rejeição de todas
Trata-se de recompor a ordem ou criar aquelas noções aproxim ativas, imper
uma cadeia de raciocínios que se desenvol feitas, fantásticas ou apenas verossímeis,
vam do simples ao composto, o que não que escapam à operação simplificadora
pode deixar de ter uma correspondência na considerada indispensável. O “ sim ples”
realidade. Quando essa ordem não existe, é de Descartes não é o universal da filoso
preciso supô-la como a hipótese mais con fia tradicional, assim como a “ intuição”
veniente para interpretar e expressar a rea não é a abstração. O universal e a abs
lidade efetiva. Se a evidência é necessária tração, dois momentos fundamentais da
para se ter a intuição, o processo do simples filosofia aristotélico-escolástica, são su
ao complexo é necessário para o ato dedu plantados pelas naturezas simples e pela
tivo. intuição. jT]
291
C ã p ítu lo d é c im o q u in to - D e s c a s e s : "o f u n d a d o r d a -filosofia m o d e m a H
IV . A d u v id a m e tó d ic a
e a c e r t e z a fu n d a m e n ta l:
// ., //
c o g ito ,, e r g o s u m
e sobre seu poder discursivo. Ora, também em dúvida sem nada oferecer em troca. E, em
esse princípio não parece imune à obscuri Descartes, é evidente o anseio pela verdade.
dade e incerteza. A negação aqui remete à afirmação, a
c) Por fim, há o saber matemático, que
dúvida leva à certeza.
parece indubitável, porque válido em todas
as circunstâncias. O fato de 2 + 2 = 4 é ver
dadeiro em qualquer circunstância e em
qualquer condição. E, no entanto, quem me
2 .zA b so lu te z v e r it a t iv a
impede de pensar que exista “ um gênio d a p r o p o s iç ã o
maligno, astuto e enganador” , que, brincan "ew p e n s o , lo g o e x is t o ”
do comigo, me faz considerar evidentes coi
sas que não o são? E aqui a dúvida torna-se
hiperbólica, no sentido de que se estende até Como relata Descartes no Discurso so
a setores que se presumiam fora de qual bre o método, depois de ter posto tudo em
quer suspeita. O saber matemático não po dúvida, “ somente depois tive de constatar
dería ser uma construção grandiosa, baseada que, embora eu quisesse pensar que tudo era
em equívoco ou em colossal mistificação? falso, era preciso necessariamente que eu,
Portanto, não há setor do saber que se que assim pensava, fosse alguma coisa. E
mantenha. A casa desmorona porque seus observando que essa verdade — “ penso,
alicerces estão minados. Nada resiste à for logo sou” — era tão firme e sólida que ne
ça corrosiva da dúvida. nhuma das mais extravagantes hipóteses dos
E evidente que não nos encontramos céticos seria capaz de abalá-la, julguei que
aqui diante da dúvida dos céticos. Neste podia aceitá-la sem reservas como o princí
caso, a dúvida quer levar à verdade. Por isso pio primeiro da filosofia que procurava” .
é chamada dúvida metódica, enquanto é Esta certeza não pode ser minada de
passagem obrigatória, ainda que provisória, nenhum modo pelo gênio maligno, porque,
para chegar à verdade. ainda que exista um gênio maligno que me
Descartes quer pôr em crise o dog- engana, eu, em todo caso, devo existir para
matismo dos filósofos tradicionais, ao mes ser enganado.
mo tempo que também quer combater a ati Portanto, a proposição “eu penso, logo
tude cética, que se comprazia em pôr tudo existo” é absolutamente verdadeira, porque
até a dúvida, mesmo a mais extremada e
radicalizada, a confirma.
Mas o que entende Descartes por “pen
samento” ? Afirma ele nas Respostas: “ Com
■ "Cogito, ergo sum". É o princí o termo ‘pensamento’ eu abranjo tudo aqui
pio teórico primeiro da filosofia car- lo que existe em nós de tão factual que so
; tesiana, originado da dúvida radical: mos imediatamente conscientes dele, como,
í "Do próprio fato de duvidar das ou por exemplo, todas as operações da vonta
tras coisas", diz Descartes, "segue-se de, do intelecto, da imaginação e dos senti
do modo mais evidente e certo que dos são ‘pensamentos’. E acrescentei ‘imedi
eu existo", porque "se vê claramente atamente’ para excluir tudo aquilo que delas
que para pensar é preciso existir". deriva; assim, por exemplo, um movimento
A proposição "fu sou, eu existo" é voluntário tem como seu ponto inicial o pen
uma verdade sem nenhuma media
ção; embora seja formulada como samento, mas ele próprio não é pensamento.”
um silogismo qualquer, a proposi
ção “penso, logo existo" não é um
raciocínio, mas intuição pura, ato
intuitivo graças ao qual percebo mi 3 yA p r o p o s i ç ã o *eu p e n s o ,
nha existência como ser pensante. lo g o e x is t o ”
Esta existência é uma res cogitans,
sem nenhuma ruptura entre pensa n ã o é um r a c io c í n i o d e d u t iv o ,
mento e ser: a substância pensante m a s u m a in t u iç ã o
é o pensamento em ato, e o pensa
mento em ato é uma realidade pen
sante. Estamos, portanto, diante de uma ver
-"7
dade sem qualquer mediação. A transparên
cia do eu a si mesmo e, portanto, o pensa-
293
Capitulo décimo quinto - D e s c a s e s ; "o juiu l õ r l o i ' d a |iloso|i<\ nu>dt‘m a"
ceber a luz do sol da diversidade das coisas Se a razão é uma res cogitans, que
que ilumina.” Mais do que sobre as coisas emerge através da dúvida universal, a pon
iluminadas — cada uma das ciências — é to de nenhum gênio maligno poder sitiá-
preciso pôr o acento sobre o sol, a razão, que la e nenhum engano dos sentidos obscu-
deve emergir e impor sua lógica e fazer res recê-la, então o saber deve basear-se nela e
peitar suas exigências. A unidade das ciên repetir sua clareza e distinção, que são os
cias remete à unidade da razão. E a unidade únicos postulados irrenunciáveis do novo
da razão remete à unidade do método. saber. EHB3 T]
V . ;A e x is tê n c ia e o p a p e l d e Id e u s
Partindo dele e com idéias que, como o co certos da objetividade das faculdades sensí
gito, são claras e distintas, é possível recons veis e imaginativas através das quais as idéias
truir o edifíco do saber? factícias chegam até nós, abrindo-nos para
E mais: dado que o fundamento do o mundo? Aquilo de que estou certo, até na
saber está na consciência, como será possí dúvida universal, é de minha existência em
vel sair dela e reafirmar o mundo externo? sua atividade cogitativa. Mas quem me ga
Em suma, as idéias que Descartes não rante que ela permanece válida mesmo quan
considera no sentido tradicional de essên do seus resultados passam da percepção em
cias ou arquétipos do real, mas como pre ato para o reino da memória? Estará a me
senças reais na consciência, têm caráter ob mória em grau de conservá-los intactos, com
jetivo, no sentido de representarem um a clareza e a distinção originais?
objeto, uma realidade? Para enfrentar essa série de dificulda
E, por fim, se elas são indubitáveis des e para fundamentar definitivamente o
como formas mentais, porque tenho a ime caráter objetivo de nossas faculdades cog-
diata percepção delas, já como formas re noscitivas, Descartes propõe e resolve o pro
presentativas de realidades diversas de mim blema da existência e do papel de Deus.
serão elas verdadeiras, ou seja, representa
rão uma realidade objetiva ou seriam puras
funções mentais?
3 7A id é ia in a t a d e X9e u s
e s u a o b je t iv id a d e
2 " D d é i a s in a t a s " ,
Com tal objetivo, entre as muitas idéias
“i d é ia s a d v e r \ t íc ia s “ de que a consciência é depositária, Descar
e “id é ia s f a c t í c i a s ” tes depara com a idéia inata de Deus que,
como lemos nas Meditações metafísicas, é a
idéia de “ uma substância infinita, eterna,
Antes de responder a essas questões, imutável, independente e onisciente, da qual
deve-se recordar que Descartes divide as idéias eu próprio e todas as outras coisas que exis
em: tem (se é verdade que há coisas existentes)
1 ) idéias inatas, isto é, as que encontro fomos criados e produzidos” . E, a propósi
em mim mesmo, nascidas junto com a mi to de tal idéia, ele se pergunta se é pura
nha consciência; mente subjetiva ou se não deve ser conside
2 ) idéias adventícias, isto é, as que vêm rada ao mesmo tempo subjetiva e objetiva.
de fora de mim e me remetem a coisas intei Trata-se do problema da existência de Deus,
ramente diferentes de mim; não mais proposto a partir do mundo ex
3) idéias factícias ou construídas por terno ao homem, mas a partir do próprio
mim mesmo. homem, ou melhor, de sua consciência.
Descartando estas últimas como ilusó Pois bem, falando dessa idéia com tais
rias, porque quiméricas ou construídas ar características, diz Descartes: “ E uma coisa
bitrariamente por mim mesmo, o problema manifesta, por luz natural, que deve haver
se restringe então à objetividade das idéias pelo menos tanta realidade na causa eficien
inatas e das adventícias. Embora as três clas te e total quanto no seu efeito: porque, de
ses de idéias não sejam diferentes do ponto onde o efeito poderia extrair a sua realida
de vista de sua realidade subjetiva — todas de senão de sua própria causa, e como essa
as três são atos mentais dos quais tenho per causa poderia transmiti-la ao efeito se não
cepção imediata —, do ponto de vista de seu a tivesse em si mesma?” Ora, proposto tal
conteúdo elas são profundamente diversas. princípio, fica evidente que o autor dessa
Com efeito, se as idéias factícias ou ar idéia que está em mim não sou eu, imperfei
bitrárias não constituem nenhum problema, to e finito, nem qualquer outro ser, da mes
serão verdadeiramente objetivas as idéias ad ma forma limitado. Tal idéia, que está em
ventícias, que me remetem a um mundo ex mim, mas não é de mim, só pode ter por
terno? Quem garante tal objetividade? causa adequada um ser infinito, isto é, Deus.
Poderiamos responder: a clareza e a A própria idéia inata de Deus pode pro
distinção. E se as faculdades sensíveis fos piciar uma segunda reflexão, que compro
sem enganadoras? Estamos verdadeiramente va o resultado da primeira argumentação.
297
Capítulo décimo quinto - D escartes: 'o fundado** da filosofia moderna
va que pode enganar ou burlar o homem. E dúvidas sobre o que lhe é sugerido por suas
isso porque, sob a força protetora de Deus, faculdades cognoscitivas, já que não reco
as faculdades cognoscitivas não podem nos nhece que tais faculdades sejam criadas por
enganar, já que, nesse caso, o próprio Deus, Deus, suma bondade e verdade.
que é o seu criador, seria responsável por
tal engano. E Deus, sendo sumamente per
feito, não pode ser mentiroso.
Desse modo, aquele Deus em cujo 5 ;A s v e õ d a d e s e te rn a s
nome se tentava bloquear a expansão do
novo pensamento científico aparece aqui
como aquele que, garantindo a capacidade Desse modo, o problema da fundamen
cognoscitiva de nossas faculdades, estimula tação do método de pesquisa encontra-se
tal empresa. conclusivamente resolvido, porque aquela
Assim, a dúvida é derrotada e o crité evidência proposta por via hipotética é
rio da evidência é conclusivamente justifi comprovada pela primeira certeza relativa
cado. O Deus criador impede que se consi ao nosso cogito, e este, com as faculdades
dere que a criatura seja portadora de um cognoscitivas, é ainda mais reforçado pela
princípio dissolutivo dentro de si, ou que presença de Deus, que garante o seu caráter
suas faculdades não estejam em condições objetivo.
de cumprir suas funções. Somente para o Além do poder cognoscitivo das facul
ateu a dúvida não é debelada conclusiva dades, Deus garante também todas aquelas
mente, porque pode continuar alimentando verdades, claras e distintas, que o homem
estiver em condições de alcançar.
Expressando a essência dos vários se
tores do real, são as verdades eternas que
compõem a ossatura do novo saber.
MEDITATIONS Tais verdades são eternas não porque
sejam vinculadas ao próprio Deus ou in
M ETAPH YSI QVES dependentes dele. Claro, Deus é criador ab
soluto e, portanto, responsável também pe
DE R E NE DES CA RT ES las verdades ou idéias sob cuja luz criou o
T O V C H A N T LA P R E M I E R E P HI L O S O l’ H I f , mundo.
d»m Itfquella 1'exiftcncc de D.cu,& U diRindkion rctllccitic
! j:,'.- iekcotp? iie I liommc, font demonítrée*. Mas então por que são chamadas “eter
Tvdttun <&i ÍMÍn ic tAmmr fur M ' tt D D L,N.S. nas” , essas verdades criadas livremente por
1 1 t-i Obje&ioiu fines comre ca Mcdm nom par diunfei
Deus? Porque Deus é imutável. Assim, aque
perfonnntree-dodlcx,aocc le« ríponfeadc I Autcur. le voluntarismo de ascendência escotista,
TrUmtn fm M 'C,JL.R. que levava os metafísicos a falarem de um
contingentismo radical do mundo e, portan
to, a considerar impossível um saber uni
versal, é usado por Descartes para garantir
a imutabilidade de certas verdades e, por
tanto, defender o desenvolvimento da ciên
cia e garantir sua objetividade.
Ademais, como essas verdades contin
A PARIS, gentes e, ao mesmo tempo, eternas não cons
Cl.cz h Vc.iue I E A N C A M V S A í . tituem participação na essência de Deus,
ET ninguém pode considerar que, com o conhe
r i E R R E LE P E T I T , I m p r t m c ü l <»í>ím n t v -*u
rwe S.lacqucJ.à Ia Toylon d )< cimento dessas verdades, conhece os impers-
T qTTxr~x I V I l. crutáveis desígnios de Deus. O homem co
A 1 'IC I » f •• ■ >
nhece e isso já basta, sem qualquer pretensão
de emulação com Deus.
E, com isso, defende-se ao mesmo tem
brontispício das Meditações metafísicas;
nelas está presente o conceito
po o sentido da finitude da razão e o senti
da idéia inata de Deus como do de sua objetividade. A razão do homem
de uma “substância infinita, eterna, imutável": é especificamente humana, não divina, mas
o problema da existência de Deus é garantida em sua atividade por aquele
parte do próprio homem, de sua consciência. Deus que a criou.
299
Capítulo décimo quinto D e s c a ^ + e s : "o jundadov* d a filo so fia m o d e rn a ”
V I. O m i m d o e u m a m a c ju m a
tinta do intelecto e não redutível a ele, isto mundo espiritual é res cogitans, o mundo
é, a capacidade de imaginar e sentir. Com material é res extensa.
efeito, o intelecto é “ uma coisa pensante ou Descartes considera “ secundárias” to
uma substância, cuja essência ou natureza das as outras propriedades, como a cor, o
toda é apenas a de pensar” , essencialmente sabor, o peso ou o som, porque não é possí
ativa. Já a faculdade de imaginar é essen vel ter delas uma idéia clara e distinta. Atri
cialmente representativa de entidades mate buí-las ao mundo material como componen
riais ou corpóreas, razão pela qual “ estou tes constitutivas significaria abandonar as
inclinado a considerar que é intimamente regras do método.
ligada ou dependente do corpo” . Desse A tendência a considerá-las objetivas é
modo, o intelecto pode considerar o mun muito mais fruto de experiências infantis,
do corpóreo valendo-se da imaginação e das não avaliadas criticamente, porque não nos
faculdades sensórias, que se revelam passi demos conta de que se trata mais de uma
vas ou receptivas de estímulos e sensações. série de respostas do sistema nervoso aos
Ora, se esse poder de ligação com o estímulos do mundo físico.
mundo material, operado pela faculdade de Esse é um ponto de imenso alcance re
imaginação e pelas faculdades sensórias, volucionário, já enfocado por Galileu e que
fosse enganoso, dever-se-ia concluir então Descartes retoma porque sabe que dele de
que Deus, que me criou assim, não é veraz. pende a possibilidade de encaminhar um
M as isso é falso, como já dissemos. Desse discurso científico rigoroso e novo. A ajuda
modo, se as faculdades imaginativas e sen dos sentidos pode significar fonte de estí
síveis atestam a existência do mundo corpó mulos, mas não é a sede da ciência. Esta
reo, não há razão para pô-lo em discussão. pertence ao mundo das idéias claras e dis
Isso, porém, não deve me induzir a tintas.
“ admitir temerariamente todas as coisas que Chegando a esse ponto, reduzida a
os sentidos parecem me ensinar” . Como matéria à extensão, Descartes encontra-se
também não deve me induzir a “revogar pela diante de uma realidade global dividida em
dúvida todas elas em geral” . duas vertentes claramente distintas e irre
Mas como operar tal seleção? Isso pode dutíveis uma à outra: a res cogitans no que
ser feito aplicando o método das idéias cla se refere ao mundo espiritual e a res extensa
ras e distintas, isto é, só admitindo como no que concerne ao mundo material. Não
reais aquelas propriedades que consigo con existem realidades intermediárias.
ceber de modo distinto. A força dessa colocação é devastado
Pois bem, dentre todas as coisas que me ra, sobretudo em relação às concepções
chegam do mundo externo através das fa renascentistas de matriz animista, segundo
culdades sensíveis, só consigo conceber como as quais tudo era permeado de espírito e
clara e distinta a extensão, que, conseqüente- vida, e com as quais eram explicadas as co
mente, podemos considerar como consti nexões entre os fenômenos e sua natureza
tutiva ou essencial. “ Com efeito, toda outra mais recôndita. Não há graus intermediá
coisa que se pode atribuir ao corpo pressupõe rios entre a res cogitans e a res extensa. A
a extensão, sendo apenas algum modo da exemplo do mundo físico em geral, tanto o
própria coisa extensa, como também todas corpo humano como o reino animal devem
as coisas que encontramos na mente são encontrar explicação suficiente no mundo
somente modos diversos de pensar” . da mecânica, fora e contra qualquer doutri
na mágico-ocultista.
y A p erva s a e x + c n s ã o
/\ m a t é r ia ( e x te n s ã o )
é p r o p r i e d a d e e s s e n c ia l
e o m o v im e n to
c o m o p r in c íp io s
Assim, aplicando as regras da clareza c o n s titu tiv o s d o m u n d o
e da distinção, Descartes chega à conclusão
de que só se pode atribuir como essencial
ao mundo material a propriedade da exten A doutrina que atribui um caráter pu
são, porque só ela é concebível de modo cla ramente subjetivo ao reino das qualidades é
ro e completamente distinto das outras. O o primeiro resultado dessa nova filosofia. E
301
Capítulo décimo quinto - D e s c a r t e s : 'o -pwevdadoe d a filo so fia m o d e r n a
sua importância reside na capacidade de eli Mais do que na variabilidade dos fe
minar todos os obstáculos que haviam im nômenos, Descartes estava interessado em
pedido a afirmação da nova ciência. sua unificação, mediante modelos mecâni
Mas quais são então os elementos es cos de inspiração geométrica.
senciais para se explicar o mundo físico?
O universo cartesiano é constituído por
poucos elementos e princípios: matéria (en
tendida no sentido geométrico de extensão) 1Q e d u ç ã o
e movimento. d e t o d o s o s o r g a n is m o s
A matéria como pura extensão, priva
e d o m u n d o in te iro
da de qualquer profundidade, leva à rejei
ção do vácuo. O mundo é como um ovo a m á q u in a s
pleno. O vácuo dos atomistas é inconcebível
com a continuidade da matéria extensa.
Como explicar então a multiplicidade dos Trata-se de um processo de unificação
fenômenos e seu caráter dinâmico? Atra ao qual não se subtraem sequer aquelas re
vés do movimento ou daquela “ quantida alidades tradicionalmente reservadas a ou
de de movimento” que Deus injetou no tras ciências, como a vida e os organismos
mundo quando o criou e que permanece animais.
constante, porque não cresce nem diminui. Tanto o corpo como os organismos ani
mais são máquinas e, portanto, funcionam
com base em princípios mecânicos que regu
lam seus movimentos e suas relações. Em con
traste com a teoria aristotélica das almas, ex
Os p e in c íp io s jám clam ervlais
clui-se todo princípio vital (vegetativo e
q u e r e g e m o rm ivertso sensório) do mundo vegetal e animal. Tam
bém nesse caso o que importa é a mudança
do quadro sistemático, porque daí em dian
Quais as leis fundamentais? te também o corpo e qualquer outro orga
Antes de mais nada, o princípio de con nismo serão objeto de análise científica no
servação, segundo o qual a quantidade de mo quadro dos princípios do mecanicismo.
vimento permanece constante, contra qual Os animais e o corpo humano nada
quer possível degradação de energia ou mais são do que máquinas, “ autômatos” ,
entropia. O segundo é o princípio de inércia. como os define Descartes, ou “ máquinas
Tendo excluído todas as qualidades da semoventes” mais ou menos complicadas,
matéria, só pode haver alguma mudança de semelhantes a “relógios, compostos simples
direção mediante a impulsão de outros cor mente de rodas e molas, que podem contar
pos. O corpo não se detém nem diminui seu as horas e medir o tempo” .
próprio movimento, a menos que o ceda a E as numerosíssimas operações dos
outro. Em si, uma vez iniciado, o movimen animais? Aquilo que chamamos de “vida”
to tende a prosseguir na mesma direção. é redutível a uma espécie de entidade mate
Portanto, o princípio de conservação e, rial, isto é, a elementos sutilíssimos e pu
conseqüentemente, o princípio de inércia são ríssimos, que, levados do coração ao cére
princípios basilares que regem o universo. bro por meio do sangue, se difundem por
A eles deve-se acrescentar outro prin todo o corpo e presidem às principais fun
cípio, segundo o qual toda coisa tende a ções do organismo. Daí a exaltação da teo
mover-se em linha reta. O movimento ori ria da circulação do sangue proposta por
ginário é o movimento retilíneo, do qual os Harvey, seu contemporâneo, que publicou
outros derivam. Essa extrema simplificação seu famoso ensaio sobre o Movimento do
da natureza está em função de uma razão coração em 1627.
que, através de modelos teóricos, quer co Descartes, portanto, nega aos organis
nhecer e dominar o mundo. mos qualquer princípio vital autônomo, tan
Trata-se de uma tentativa relevante de to vegetativo como sensório, convencido de
unificar a realidade, à primeira vista múlti que, se eles possuíssem alma, a teriam reve
pla e variável, através de uma espécie de lado pela palavra, que “ é o único sinal e a
modelo mecânico facilmente dominável pelo única prova segura do pensamento oculto e
homem. encerrado no corpo” .
302
Terceira parte - B a c o n e D esc a se s
V I I . y \lm a (V e s czog\ic\ns")
e c o r p o ( 'V e s e x f e h s a " )
mais’ As artérias que veiculam o sangue no tratado Les passions de Vâme, mas
no cérebro ramificam-se em inúmeros teci com preocupações e contornos claramente
dos, que se reúnem depois em torno de pe éticos.
quena glândula, chamada pineal, situada no Nele Descartes oferece um quadro
centro do cérebro, que constitui a sede da bastante complexo e subtil de análise das
alma. ações, movidas pela vontade, e das alterações,
Com tal objetivo, escreve Descartes, “ é que são percepções, sentimentos ou emo
preciso saber que, por mais que a alma este ções provocadas pelo corpo e captadas pela
ja conjugada com todo o corpo, entretanto alma.
há no corpo algumas partes em que ela exer O objetivo moral desse estudo é o
ce suas funções de modo mais específico que de demonstrar que a alma pode vencer
em todas as outras. [...] A parte do corpo as emoções ou, pelo menos, frear as soli
em que a alma exerce imediatamente suas citações sensíveis que a distraem da ati
funções não é em absoluto o coração e nem vidade intelectual, projetando-a para as
mesmo todo o cérebro, mas somente a parte amarras das paixões. Para tanto, dois sen
interna dele, que é certa glândula muito pe timentos são importantes, a tristeza e a
quena:, situada em meio à sua substância e alegria: a primeira está em condições de
suspensa sobre o conduto pelo qual os espí mostrar as coisas das quais devemos es
ritos das cavidades anteriores se comunicam capar; a segunda, as coisas que devemos
com os espíritos das cavidades posteriores, cultivar.
de modo que os seus mais leves movimentos O guia do homem, porém, não são
podem mudar muito o curso dos espíritos, as emoções ou os sentimentos em geral,
ao passo que, inversamente, as mínimas mu mas sim a razão, a única que pode avaliar
danças no curso dos espíritos podem levar e, portanto, induzir a acolher ou rejeitar
a grandes mudanças nos movimentos dessa certas emoções.
glândula” . A sabedoria consiste precisamente
O tema do dualismo cartesiano e do na adoção do pensamento claro e distin
possível contato entre a res cogitans e a to como norma, tanto do pensar como do
res extensa foi aprofundado ainda mais viver.
V III. A s fe g m s :
d a m o ra l p r o v is ó r ia
como força-guia de todo o homem. Identi se impõe com a força da razão. Apenas sob
ficando a virtude com a razão nessa pers o peso da verdade é que o homem pode se
pectiva, Descartes se propõe a “ seguir tudo considerar livre, no sentido de que obedece
aquilo que a razão me aconselhar, sem que a si mesmo e não a forças exteriores.
as paixões e os apetites me afastem disso” . Se o “ eu” define-se como res cogitans,
Com tal objetivo, o estudo das paixões seguir a verdade significa seguir no fundo a
e do seu entrelaçamento na alma visa a tor si mesmo, na máxima unidade interior e no
nar mais fácil a consecução do primado da pleno respeito à realidade objetiva. O pri
razão sobre a vontade e sobre as paixões. mado da razão deve impor-se tanto no cam
A liberdade da vontade só se realiza po do pensamento como no da ação.
pela submissão à lógica da ordem que o in A virtude, à qual, em última análise, a
telecto é chamado a descobrir, dentro e fora “ moral provisória” conduz, identifica-se
de si. com a vontade do bem e esta com a vonta
Em Descartes predomina o amor do de de pensar o verdadeiro que, enquanto tal,
verdadeiro, cuja lógica, uma vez alcançada, também é bem.
W SÊÊÊBÊSSÈÊÈÈÊBÊHBÈÊIÈÈÊÊIÍÊÊÊIBÊSKÊÊÊÊÊ
DESCARTES
O "C O G I T O "
O M É T O D O PARA A D E SC O B E R T A D A V E R D A D E
.... t . ...................
N o e x am e d o s p rin cíp io s d o sa b e r trad icion al
REGRA APLICATIVA
é p reciso rejeitar co m o fa lso tu d o aq u ilo de que se p o ssa duvidar,
p a r a ch egar a a lg o ab so lu tam en te in dub itável
“ COGITO, ERGO SU M ”
(existên cia d a alma)-.
PRINCIPIO PRIMEIRO
d o p ró p rio fa to de d u v id a r (= p en sar),
DA NOVA FILOSOFIA
segue-se d o m o d o m ais evidente e certo
que eu sou, isto é, existo
F ac u ld a d e s d a alm a
Cognoscitivas: Eletiva:
J sen sib ilidade von tad e
/ \ im a g in a ç ã o (ou livre-arbítrio)
...... . A \ in telecto (ou razão)
/ \ \ _
Id éias j A feições
devia partir das mais simples e das mais fáceis deles que outra vez julgara dificílimos, mas
de conhecer; e considerando que entre todos pareceu-me também, no fim, que podia deter
aqueles que já buscaram a verdade nas ciên minar, naqueles mesmos que eu ignorava, com
cias, não houve outros além dos matemáticos quais meios, e até onde, fosse possível resol
que puderam encontrar demonstrações, isto é, vê-los. Motivo pelo qual não vos parecerei
razões certas e evidentes, eu não duvidava ab talvez muito vaidoso se considerardes que, não
solutamente que devesse começar por aque havendo mais que uma verdade de toda coi
las mesmas verdades que eles examinaram, sa, quem a encontra sabe tanto dela quanto é
embora não esperasse nenhuma outra utilida possível dela saber; e que, por exemplo, um
de, a não ser que elas habituariam minha men rapaz instruído na aritmética, tendo feito uma
te a opascentar-se de verdade, e a não con soma conforme as regras dela, pode estar
tentar-se com razões falsas. seguro de ter encontrado, em relação à soma
Todavia, nem por isso decidi procurar que procurava, tudo aquilo que o espírito hu
aprender todas as ciências particulares, que se mano poderio encontrar. Por fim, porque o
chamam comumente matemáticas; e vendo método que ensina a seguir a verdadeira or
que, embora seus objetos fossem diferentes, dem, e a enumerar exatamente todas as cir
elas não deixam de concordar todas num pon cunstâncias daquilo que se procura, contém
to, o de não considerar outra coisa além das tudo aquilo que dá certeza às regras da arit
diversas relações ou das proporções que se en mética. Mas aquilo que me satisfazia mais em
contram, pensei que fosse melhor examinar tal método era que, por meio dele, eu estava
apenas estas proporções em geral, e sem su seguro de setvir-me em tudo da minha razão,
pô-las em outro lugar fora dos sujeitos que ser se não perfeitamente, ao menos o melhor que
viríam para tornar seu conhecimento mais fácil; estivesse em meu poder; além de que sentia,
ou melhor, sem forçá-las de nenhum modo, para ao empregá-lo, que minha mente se habitua
depois podê-las aplicar melhor a todos os ou va pouco a pouco a conceber mais clara e dis
tros aos quais conviessem. tintamente seus objetos, e que, não tendo-o
Depois, tendo percebido que, para co absolutamente submetido a nenhuma ma
nhecê-las, teria necessidade alguma vez de téria particular, eu me comprometia a aplicá-
considerá-las cada uma em particular, e algu lo também utilmente às dificuldades das ou
ma vez apenas recordá-las ou compreender tras ciências, como tinha feito com as da
diversas delas ao mesmo tempo, pensei que, álgebra.
para considerá-las melhor em particular, de Não que, por isso, ousasse empreender
veria supô-las na forma de linhas, porque eu sem mais o exame de todas as que se apre
não encontrava nada mais simples, nem que sentassem; isto de foto teria sido contrário à
pudesse mais distíntamente representar à mi ordem que tal método prescreve. Mas, tendo
nha imaginação e a meus sentidos: mas que, notado que seus princípios deviam ser todos
para retê-las, e para compreender diversas atinentes à filosofia, na qual ainda não se en
delas ao mesmo tempo, ero preciso que as contram princípios certos, pensei que fosse ne
expressasse mediante cifras, as mais breves cessário, antes de tudo, que eu procurasse
possíveis; e que, com este meio, teria tomado estabelecê-los,■ e que, sendo esta a coisa mais
todo o melhor da análise geométrica e da ál importante do mundo, e onde a precipitação e
gebra, e teria corrigido os defeitos de uma por a prevenção eram o que mais se devia temer,
meio da outra.4 eu de fato não devia empreender até o fim,
antes de ter chegado a uma idade bastante
4. R aplicação do método à filosofia mais madura do que a de vinte e três anos,
que era então minha idade; e antes de ter em
£, com efeito, ouso afirmar que a obser pregado muito tempo para preparar-me a isso,
vância exata daqueles poucos preceitos que tanto desenraizando de meu espírito todas as
eu escolhera deu-me tal facilidade de resol más opiniões que acolhera antes daquele tem
ver todos os problemas aos quais se esten po, como reunindo muitas experiências que
dem aquelas duas ciências, que nos dois ou constituíssem depois a matéria de meus racio
três meses que empreguei para examiná-los, cínios, e também me exercitando sempre no
tendo começado pelos mais simples e gerais, método que eu me havia prescrito, para nele
e cada verdade que encontrava sendo uma sempre mais me reforçar. '
regra que me servia depois para encontrar R. Descartes,
outras, não somente cheguei ao fim de muitos D iscu rso s o b re o m étodo.
309
Capítulo décimo quinto - Descartes: 'a ^ u n c ia c io r c ia filosofi
osotia mode>*
4. R primeira demonstração
da existência de Deus fíqui Descartes se move em um plano
bem diferente do "autobiográfico" do Discur
€m seguido, refletindo sobre o foto de que so, ao passo que a dialética entre dúvida
eu duvidava e que, por conseguinte, meu ser radical e certeza absoluta é posta sobre um
não era todo perfeito, porque via claramente nível verdadeiramente universal.
que era perfeição maior conhecer do que duvi Nas páginas seguintes propomos qua
dar, propus-me o buscar onde tivesse aprendi se integralmente a terceira meditação, em
do a pensar em alguma coisa de mais perfeito que Descartes, a partir da absoluta certeza
que não fosse eu, e percebi com evidência que do idéia do eu, demonstra a existência de
devia ser de alguma natureza que na realida Deus como Ser perfeito e infinito.
de fosse mais perfeita.
No que se refere aos pensamentos que
eu tinha de muitas outras coisas fora de mim,
como do céu, do terra, da luz, do calor e de mil 1. fl regra geral:
outras, não era muito difícil saber de onde vi é verdadeiro apenas aquilo
essem, pelo fato de que, não vendo nelas nada que é concebido muito claramente
que me parecesse torná-las superiores a mim, e distintamente
eu podia crer que, se eram verdadeiras, eram
Rgora fecharei os olhos, taparei os ouvi
dependências de minha natureza, enquanto ela
dos, distrairei todos os meus sentidos, cance
possuía alguma perfeição; e que se não o eram,
larei também de meu pensamento todas as ima
eu as repetia a partir do nada, ou seja, elas
gens das coisas corpóreas, ou ao menos, uma
estavam em mim por aquele tanto que eu era
vez que isso pode dificilmente ser feito, as con
imperfeito.
siderarei vãs e falsas; e assim, entretendo ape
Todavia, não podia ser o mesmo a res
nas a mim mesmo e considerando meu interior,
peito da idéip de um ser mais perfeito do que
procurarei tornar-me pouco a pouco mais co
o meu; porque, que viesse do nada, era coisa
nhecido e mais familiar a mim mesmo. Sou uma
manifestamente impossível. € uma vez que não
coisa que pensa, isto é, que duvida, que afir
há menos repugnância entre que o mais perfei
ma, que nega, que conhece poucas coisas, que
to seja uma conseqüência e uma dependência
ignora muitas delas, que ama, que odeia, que
do menos perfeito, e que do nada proceda al
quer, que não quer, que também imagina, e
guma coisa, eu não podia sequer tê-la recebi
que sente. Uma vez que, como notei antes, em
do de mim mesmo: de modo que restava que
bora as coisas que sinto e imagino não sejam
ela tivesse sido posta em mim por uma nature
talvez nada além de mim e em si mesmas, eu
za que fosse verdadeiramente mais perfeita da
todavia estou seguro de que os modos de pen
quilo que eu não fosse e que aliás tivesse em
sar, que chamo de sensações e imaginações,
si todas as perfeições das quais eu podia ter
pelo único fato de que são modos de pensar
alguma idéia, ou seja, para explicar-me em uma
residem e se encontram certamente em mim. €
palavra, que fosse Deus.
naquele pouco que eu disse, creio ter reporta
R. Descartes, do tudo aquilo que verdadeiramente sei ou, ao
D iscu rso s o b re o m étodo.
menos, tudo aquilo que até aqui notei saber.
flgora considerarei mais exatamente se,
talvez, não se encontrem em mim outros conhe
cimentos, que eu não tenha ainda percebido.
Çstou certo de ser uma coisa que pensa; mas
fl "terceira meditação” sei eu talvez também aquilo que se requer para
em torno de Deus tornar-me certo de alguma coisa? Neste primei
ro conhecimento não se encontra nada mais que
e de suo existência uma clara e distinta percepção do fato de que
eu conheço; percepção que, para dizer a ver
Pouco depois do publicação do Discur dade, não seria suficiente para assegurar-me
so sobre o método, Descartes começou a de que ela é verdadeira caso pudesse ocorrer
escrever sua metafísico de forma mais am que se achasse que uma coisa é falsa, que eu
pla: em 1640 as Meditationes de prima concebesse tão claramente e distintamente.
philosophia em latim foram completadas, e Portanto, parece-me que já possa estabelecer
em 1641 foram publicadas com seis grupos como regra geral, que todas as coisas que con
de objeções e respostas. cebemos muito claramente e muito distintamen
te são verdadeiras.
311
Capítulo décimo quinto - Descartes: i fundado»* da filosofia mode
Contudo, aceitei e admiti anteriormente tafísica. Mas, para poder eliminá-la inteiramen
como realmente certas e manifestas diversas te, devo examinar se existe um Deus, logo que
coisas que, todavia, reconheci depois que eram se apresentar a ocasião; e se acho que existe
dúbias e incertas. Quais eram, portanto, essas um, devo também examinar se ele pode ser
coisas? Cram a terra, o céu, os astros e todas enganador, uma vez que, sem o conhecimento
as outras coisas que eu percebia por meio de dessas duas verdades, não vejo como eu pos
meus sentidos. Ora, o que eu concebia clara sa jamais estar certo de alguma coisa. €, a fim
mente e distintamente nelas? Nada mais que de que possa ter ocasião de examinar isso, sem
isto: que as idéias ou os pensamentos dessas interromper a ordem de meditar que me pro-
coisas se apresentavam ao meu espírito. € tam pus, que é a de passar por graus das noções
bém agora não nego que tais idéias se encon que encontrei em primeiro lugar em meu espíri
trem em mim. Mas outra coisa ainda eu afirma to, para aquelas que poderei encontrar em se
va, que, por causa do hábito que tinha de nela guida, é preciso aqui que eu divida todos os
crer, eu pensava perceber muito claramente, meus pensamentos em certos gêneros, e que
embora, na verdade, de fato não a percebes considere em quais desses gêneros se encon
se, isto é, que existiam coisas fora de mim, de tre propriamente verdade ou erro.
onde procediam tais idéias, e às quais elas
eram em tudo semelhantes. C era nisso que eu
2. Rs três espécies de idéias:
me enganava; ou, se também julgava segundo
inatas, adventícias, factícias
a verdade, nenhum conhecimento era causa da
verdade de meu julgamento. Cntre meus pensamentos, alguns são co
Todavia, quando eu considerava alguma mo as imagens das coisas, e a eles apenas
coisa como bastante simples e fácil a respeito convém propriamente o nome de idéia: como
da aritmética e da geometria, por exemplo, que quando me represento um homem, ou uma qui
dois e três, somados, produzem o número cinco, mera, ou o céu, ou um anjo, ou o próprio Deus.
e outras coisas semelhantes, não as concebia Outros têm também outras formas: assim, quan
eu ao menos bastante claramente para afirmar do quero, temo, afirmo ou nego, concebo algo
que eram verdadeiras? De fato, se depois jul- como objeto do ato de meu pensamento, mas
guei que se podia duvidar destas coisas, não acrescento também outro, por meio desta ação,
foi por outra razão, senão porque me vinha em à idéia daquela coisa; e deste gênero de pen
mente que, talvez, algum Deus tinha podido dar- samentos, uns são chamados vontade ou afei
me uma natureza tal que me enganasse tam ções, e os outros, julgamentos.
bém sobre as coisas que me parecem as mais Ora, quanto ao que concerne às idéias,
manifestas. Mas, todas as vezes que esta opi se nós as consideramos apenas em si mesmas,
nião, acima concebida, da soberana potência de sem reportá-las a outra coisa, elas não podem,
um Deus, se apresenta ao meu pensamento, sou falando propriamente, ser falsas; uma vez que,
forçado o confessar que lhe é fácil, se o desejar, mesmo que imaginando uma cabra ou uma qui
fazer a seu capricho com que eu me engane tam mera, imagino uma não menos que a outra.
bém sobre coisas que creio conhecer com Igualmente, não é preciso temer falsida
grandíssima evidência. 0 ao contrário, todas as de nas afeições ou vontade; porque embora
vezes que me volto para as coisas que penso eu possa desejar coisas más, ou também coi
conceber muito claramente, estou de tal forma sas que jamais existiram, todavia nem por isso
persuadido delas que por mim mesmo me deixo é menos verdade que eu as desejo.
arrastar a estas palavras: "Cngane-me quem Restam assim apenas os julgamentos, nos
puder: jamais poderá fazer que eu não seja quais devo atentar acuradamente para não me
nada, enquanto eu pensar ser alguma coisa; ou enganar. Ora, o erro principal e mais ordinário
que um dia seja verdadeiro que eu jamais tenha que se possa encontrar consiste nisso, que eu
existido, sendo verdadeiro agora de que existo; julgo que as idéias, que estão em mim, sejam
ou então que dois e três, somados, dêem mais semelhantes ou conformes a coisas que estão
ou menos do que cinco, ou coisas semelhantes, fora de mim; uma vez que certamente, se consi
que vejo claramente não poder ser de outro derasse as idéias somente como modos ou
modo de como as concebo". maneiros de meu pensamento, sem querê-las
De fato, uma vez que não tenho nenhuma reportar a outra coisa, bem dificilmente pode
razão de crer que exista um Deus enganador, ríam dar-me ocasião de errar.
ou melhor, uma vez que ainda não considerei Ora, destas idéias, algumas me parecem
as razões que provam existir um Deus, a razão nascidas comigo [innotae], outras estranhas e
de duvidar que depende apenas desta opinião vindas de fora [adventitiae], outras ainda fei
é muito inconsistente e, por assim dizer, me tas e inventadas por mim mesmo [fbctitiae], Com
...3i*4
i'i
Terceira parte - Bacon e ^Descartes
efeito, q faculdade de conceber uma coisa, uma virtudes e os vícios, que elas me levaram não
verdade, ou um pensamento, parece não provir menos ao mal do que ao bem; e eis por que
de outro coisa do que de minha natureza; mas não tenho razão de segui-las nem mesmo na
se ouço agora algum rumor, se vejo o sol, se quilo que se refere ao verdadeiro e ao falso.
sinto calor, até agora julguei que estas sensa £ quanto à outra razão, isto é, que estas
ções proviessem de coisas existentes fora de idéias devem vir de outro lugar, uma vez que
mim; e, por fim, parece-me que as sereias, os não dependem de minha vontade, nem mesmo
hipogrifos e todas as outras quimeras semelhan esta julgo convincente. Porque, como as incli
tes sejam ficções e invenções de meu espírito. nações, de que falava justamente agora, se
Mas igualmente, talvez, poderio persuadir-me de encontram em mim, embora não concordem
que todas estas idéias sejam do gênero das que sempre com minha vontade, assim pode ser que
chamo de estranhas, e que vêm de fora, ou en em mim haja alguma faculdade ou potência,
tão que tenham todas nascido comigo, ou ainda adequada a produzir estas idéias sem o auxí
que tenham sido todas feitas por mim, uma vez lio de coisas exteriores, mesmo que ela ainda
que ainda não descobri claramente sua verda não me seja conhecida; como, com efeito, sem
deira origem. £ o que tenho principalmente a pre me pareceu até agora que, quando eu dur
fazer neste lugar é considerar, em relação às idéi mo, elas se formem em mim, sem o auxílio dos
as que me parecem vir de objetos postos fora objetos que representam. £, finalmente, mes
de mim, quais são as razões que me obrigam a mo que concordasse que elas são produzidas
crê-las semelhantes a estes objetos. por estes objetos, não é uma conseqüência
necessária que elas devam ser semelhantes a
eles. flo contrário, freqüentemente notei, em
3. €xame das idéias que parecem adventícias
muitos exemplos, que havia grande diferença
R primeira dessas razões é que parece- entre o objeto e sua idéia. Como, por exemplo,
me que isso me seja ensinado pela natureza; e encontro em meu espírito duas idéias do sol de
a segunda, que experimento em mim mesmo, fato diversas: uma tem sua origem a partir dos
que estas idéias não dependem de minha von sentidos, e deve ser posta no gênero daque
tade; porque freqüentemente elas se apresen las que acima eu disse virem de fora (e em tal
tam a mim malgrado eu mesmo, como agora, idéia o sol me parece extremamente peque
quer eu queira ou não, sinto calor, e por esta no) ; a outra é tomada das razões da astrono
razão me convenço de que esta sensação, ou mia, ou seja, de certas noções que nasceram
então esta idéia do calor, é produzida em mim comigo, ou, por fim, é formada por mim mesmo,
por uma coisa deferente de mim, isto é, pelo de qualquer modo que isso possa ser: e por
calor do fogo junto ao qual me encontro. £ não esta idéia ele me parece diversas vezes maior
vejo nada que me pareça mais razoável que o do que toda a terra. De fato, estas duas idéias
julgar que esta coisa estranha envia e imprime que concebo do sol não podem ser ambas se
em mim, mais que outra coisa, uma imagem melhantes ao mesmo sol; e a razão me mostra
semelhante a si. que a que parece derivar imediatamente dele
Ora, é necessário que eu veja se estas é a que lhe é mais dessemelhante.
razões são bastante fortes e convincentes. Tudo isso me faz conhecer com suficiência
Quando digo que me parece que isso me seja que até agora, não por um juízo certo e preme
ensinado pela natureza, entendo apenas, com ditado, mas apenas por cego e temerário im
esta palavra natureza, certa inclinação que me pulso, acreditei haver coisas fora de mim e di
leva a crer esta coisa, e não uma luz natural ferentes de meu ser, que, para os órgãos de
que me faça conhecer que ela é verdadeira. meus sentidos, ou por qualquer outro meio,
Ora, estas duas coisas diferem muito entre si, enviavam em mim suas idéias ou imagens, e aí
porque eu não saberia pôr em dúvida nada imprimiam suas semelhanças.
daquilo que a luz natural me faz ver que é ver
dadeiro, assim como ela me fez ver que, pelo
4. Aquilo que é mais perfeito
fato de eu duvidar, podia concluir que existia. £
não pode ser conseqüência
eu não tenho em mim nenhuma outra faculda
do menos perfeito
de ou potência, para distinguir o verdadeiro do
falso, que me possa ensinar que aquilo que Contudo, apresenta-se ainda outro cami
esta luz me mostra como verdadeiro não é tal, e nho para pesquisar se, entre as coisas cujas
da qual possa me fiar tanto como desta. Mas, idéias tenho em mim, haja algumas que exis
por aquilo que se refere às inclinações, que me pa tam fora de mim. Isto é, se estas idéias são
recem ser naturais também elas, freqüentemente consideradas apenas enquanto são certas ma
notei, quando se tratou de escolher entre as neiras de pensar, eu não reconheço entre elas
313 i
Cãpítulo décimo quinto - Descartes: " o f u n d a d o r d a filosofia moderna”
nenhuma diferença ou desigualdade, e todas Mas, enfim, o que concluirei de tudo isso? O
parecem proceder de mim de um mesmo modo; seguinte: que, se a realidade objetiva de algu
mas, considerando-os como imagens, das quais ma de minhas idéias é tal que eu conheça cla
umas representam uma coisa e as outras uma ramente que ela não está em mim, nem for
outra, é evidente que elas são diferentíssimas malmente, nem eminentemente, e que, por
umas das outras. Porque, com efeito, as que me conseqüência, eu mesmo não posso ser sua
representam substâncias são sem dúvida algu causa, disso segue necessariamente que eu
ma coisa a mais, e contêm em si (por assim não estou sozinho no mundo, mas que há ain
dizer) maior realidade objetiva, isto é, partici da alguma outra coisa que existe, e que é a
pam por representação de um número maior de causa desta idéia; enquanto que, se em mim
graus de ser ou de perfeição, do que aquelas tal idéia não se encontra, não terei argumen
que me representam apenas modos ou aciden tos que possam me convencer e tornar certo da
tes. Além disso, aquela pela qual eu concebo existência de alguma outra coisa além de mim
um Deus soberano, eterno, infinito, imutável, mesmo; porque procurei acuradamente todos
onisciente, onipotente e criador universal de eles, e até agora não pude encontrar nenhum
todas as coisas que estão fora de si, tal idéia, outro deles.
digo, tem certamente em si mais realidade ob Ora, entre estas idéias, além da que me
jetiva do que aquelas de que me são repre representa a mim mesmo, da qual não pode
sentadas as substâncias finitas. existir nenhuma dúvida, há outra, que me repre
Ora, é coisa manifesta por luz natural que senta um Deus; outras, coisas corpóreas e ina
deve haver pelo menos tanto de realidade na nimadas; outras, anjos; outras, animais; e ou
causa eficiente e total, quanto em seu efeito; por tras, enfim, que me representam homens
que, de onde o efeito pode tirar sua realidade, semelhantes a mim. Mas para aquilo que se
senão da própria causa? G como esta causa pode refere às idéias que me representam outros
rio comunicá-la, se não a tivesse em si mesma? homens, ou animais, ou anjos, eu concebo fa
G disso segue não somente que o nada cilmente que elas podem ser formadas pela
não poderio produzir nenhuma coisa, mas tam mistura e composição das outras idéias, que
bém que aquilo que é mais perfeito, isto é, que tenho das coisas corpóreas e de Deus, embora
contém em si maior realidade, não pode ser fora de mim não existam outros homens no
conseqüência e dependência do menos perfei mundo, nem animais, nem anjos. G por aquilo
to. G esta verdade não é somente clara e evi que se refere às idéias das coisas corpóreas,
dente nos efeitos, que têm aquela realidade não reconheço nelas nada de tão grande, nem
que os filósofos chamam atual ou formal, mas de tão excelente, que não me pareça poder vir
também nas idéias, onde se considera somen de mim mesmo; porque, se as considero mais
te a realidade que eles chamam de objetiva de perto, e as examino do mesmo modo com
[...]. G, embora possa ocorrer que uma idéia dê que examinei ontem a idéia da cera, descubro
nascimento a outra idéia, isso não pode, toda que aí não se encontram senão pouquíssimas
via, ir até o infinito, mas é preciso no fim chegar coisas, que eu conceba claramente e distinta
a uma primeira idéia, da qual a causa seja como mente; isto é, a grandeza, ou seja, a extensão
um modelo ou um original, no qual esteja conti em comprimento, largura e profundidade; a fi
da formal mente e de fato toda a realidade ou gura, que é formada pelos termos e pelos limi
perfeição, que se encontra apenas objetivamen tes dessa extensão; a situação, que os corpos
te ou por representação nestas idéias. De modo diversamente figurados conservam entre si; e o
que a luz natural me faz conhecer evidentemente movimento ou a mudança dessa situação; às
que as idéias são em mim como quadros, ou quais se podem acrescentar a substância, a
imagens, que podem, na verdade, facilmente duração e o número. [...]
decair da perfeição das coisas de onde foram Quanto às idéias claras e distintas que
tiradas, mas que não podem conter jamais nada tenho das coisas corpóreas, há algumas que
de maior ou de mais perfeito. parece que eu tenha podido tirar da idéia de
mim mesmo, como a idéia da substância, da
duração, do número, e de outras coisas seme
5. A realidade objetiva de algum as idéias
lhantes. [...]
pode ser garantida
Por aquilo que se refere às outras quali
apenas por uma causa diferente
dades, das quais são compostas as idéias das
do sujeito pensante
coisas corpóreas, isto é, a extensão, a figura, a
G quanto mais longa e acuradamente exa situação e o movimento local, é verdade que
mino todas essas coisas, tanto mais clara e dis elas não estão formalmente em mim, uma vez
tintamente conheço que elas são verdadeiras. que eu sou apenas uma coisa que pensa; mas,
314
Terceira parte - Bacon e Descartes
uma vez quo sõo som0nt0 modos do substân quer outra, não há nenhuma quo por si seja
cia, 0 como quo os vastos sob os quais o subs mais vordadoira, nem que possa ser menos
tância corpórea nos apareço, 0 ©u mosmo sou suspeita do orro o de falsidade.
uma substância, pároco qu© possam ostar con A idéia, digo, deste sor soboronomonto
tidas ©m mim do modo ominonto. perfoito o infinito é intoiramente verdadeira; uma
vez que, embora, talvoz, so possa fingir quo tal
ser não exista, não so podo fingir, todavia, que
6. Deus, enquanto substância infinita, existe,
sua idéia não mo roprosonto nada de roal, como
e a idéia de Deus como Ser perfeito
já disse a respeito da idéia do frio.
é inteiramente verdadeira
Çsta mesmo idéia é também sumamonte
Rosta, portanto, aponas o idéia do Dous, clara o distinta, uma vez que tudo aquilo que
na qual 0 preciso considorar so haja algo quo meu espírito concebe claramente e distintamen-
não tonha podido vir do mim mosmo. Com o to do real e de verdadeiro, e que contém em si
nomo do Dous ontondo uma substância infini alguma perfeição, está contido e encerrado in-
ta, ©torna, imutávol, indopendonto, oniscionto, toiramonto nesta idéia.
onipotonto, o da qual ou mosmo, o todas as € isto não deixa de ser verdadeiro, em
outras coisas quo oxistom (so 0 vordado quo bora eu não compreenda o infinito, e ainda que
haja do oxistontos), fomos criados o produzi so oncontre em Deus uma infinidade do coisas
dos. Ora, ostas prerrogativas são tão grandes que não posso compreender, o talvoz nom mos
o tão ominontos, quo quanto mais atontamen- mo atingir de algum modo com o pensamento:
to as considero, monos mo persuado do que a porque é da natureza do infinito quo minha na
idéia quo disso tonho possa tirar sua origom tureza, que é finita e limitada, não o possa com
aponas do mim. €, por consoqüência, é prociso preender,- e basta que eu compreenda isto, e
necossariamonte concluir, do tudo aquilo quo quo julguo que todas as coisas quo concebo
eu disse antes, que Deus existe; uma vez quo, claromonto, o nas quais sei que há alguma per
ombora a idéia da substância esteja om mim feição, e talvez também uma infinidade de ou
polo próprio fato de que sou uma substância, tras que ignoro, oxistom em Dous formalmonto
ou não toria, todavia, a idéia do uma substân ou eminentomonto, para quo a idéia quo dolo
cia infinita, eu que sou um ser finito, so ola não tonho seja a mais verdadeira, a mais clara o a
tivesse sido posta em mim por alguma subs mais distinta de todas aquelas quo oxistom om
tância verdadeiramonte infinita. meu espírito.
Nem devo supor conceber o infinito, não Mas é possível também quo ou seja algu
por moio de uma verdadeira idéia, mas ape ma coisa a mais que não imagino, o que todas as
nas por moio da nogação daquilo quo é finito, perfoiçõos que atribuo à natureza do um Dous
assim como compreondo o repouso o as trovas ostejam do algum modo em mim em potência,
por moio da negação do movimento e da luz: ombora não se produzam ainda, o não se tor
uma vez quo, ao contrário, vejo manifestamon- nem manifestas por meio de suas ações. [...]
to que se encontra mais roalidado na substân
cia infinita do quo no substância finita, o por
7. Rs conseqUências absurdas
tanto que, do corto modo, tonho em mim
que derivam da hipótese
primeiro a noção do infinito do que do finito,
de que Deus não exista
isto é, primeiro a noção do Dous do quo a no
ção do mim mesmo. Porque, como podoria co Gs por que quero aqui [...] considerar se
nhecer que duvido o que dosojo, isto é, quo ou mesmo, que tonho osta idéia de Deus, po
mo falta alguma coisa, e que não sou total- doria oxistir, caso Dous não existisso. 6 porgun-
monto porfeito, se não tivesso em mim nenhu to: de onde tiraria minha existência? Talvoz do
ma idéia de um sor mais perfoito do que o meu, mim mesmo, ou de meus genitores, ou então
de cuja comparação iria reconhecer os defeitos do outras causas monos porfoitas do quo Dous,
de minha natureza? porque nada se podo imaginar de mais perfei
Nem se podo dizer que, talvez, esto idéia to, e nem mosmo igual a 0 I0 .
de Dous é matorialmonte falsa, o quo, por con Oro, se ou fosse independente de qual
seguinte, eu a posso tirar do nada, isto é, quo quer outro, o fosse eu mesmo o autor de meu
ola podo so oncontror om mim porque me falta ser, certamonte não duvidaria do coisa nonhu-
alguma coisa, como disso acima a respeito das ma, não concebería mais dosojos, o por fim não
idéias do quente e do frio, e de outras coisas me faltaria nonhuma porfoição; porquo ter-
semelhantes: porque, ao contrário, sendo esta mo-ia dado eu mosmo todas aquelas do quo
idéia suficiontomente clara o distinta, e conten tenho em mim alguma idéia, e assim ou seria
do em si mais realidade objetiva do quo qual Deus.
315
Capítulo dedmo quinto osotia
- Descartes: “o fundadoe da filosofi m o d e - r n a
€ eu nõo devo imaginar qua as coisas que virtude de ser e de existir por si, deve também
me faltam sejam mais difíceis d© adquirir do que ter, sem dúvida, a potência de possuir atual
aquelas d© que já estou ©m posse; porque, ao mente todas as perfeições das quais concebe
contrário, é certíssimo que foi muito mais'difícil as idéias, isto é, todas as que eu concebo ha
qu© ©u, isto é, uma coisa ou substância ver em Deus. Pois, se ela tira sua existência de
pensante, tenha saído do nada, daquilo que alguma coisa diferente de si, perguntar-se-á de
nõo me seria o adquirir os lumes ©os conheci início, pela mesma razão, desta segunda causa,
mentos de diversas coisas que ignoro, © que se existe por si ou por obra de outros, até que,
soo apenas acidentes desta substância. 6 a s de grau em grau, se chegue a uma última causa,
sim, sem dificuldade, se me tivesse dado eu que se descobrirá ser Deus. € é muitíssimo claro
mesmo aquele mais do qual falei, isto é, se que nisso não pode haver progresso até o in
fosse o autor de meu nascimento e de minha finito, visto que não se trata tanto, aqui, da
existência, não me teria privado ao menos dos causa que me produziu outra vez, quanto da
coisas que são de mais fácil aquisição, isto é, que me conserva presentemente. [...]
de muitos conhecimentos d© que minha nature No que se refere a meus genitores, dos
za está privado; não me teria privado sequer quais parece que eu tire meu nascimento, mes
de nenhuma das coisas que estão contidas na mo se tudo aquilo que jamais pude crer seja
idéia de Deus, porque não há nenhuma que verdadeiro, isso, todavia, não faz com que se
me pareça de mais difícil aquisição; e se hou jam eles que me conservem, e que me tenham
vesse alguma, certamente ela me parecería tal feito e produzido enquanto coisa que pensa, pois
(suposto que eu tivesse por mim todas as ou eles apenas colocaram algumas disposições
tras coisas que possuo), porque experimenta naquela matéria, na qual julgo que eu, isto é,
ria que minha potência nela teria seu termo, e meu espírito, que só tomo agora por mim mes
não seria capaz de aí chegar. mo, se encontre encerrado; e, portanto, não pode
£ embora eu possa supor que talvez te haver aqui a respeito deles alguma dificuldade;
nha sempre existido como existo agora, nem mas é preciso necessariamente concluir que,
por isso saberia evitar a força deste raciocínio, pelo único fato de que eu existo, e que a idéia
deixar de crer necessário que Deus seja o au de um ser soberanamente perfeito (isto é, de
tor de minha existência. Uma vez que todo o Deus) está em mim, a existência de Deus fica,
tempo de minha vida pode ser dividido em uma de modo muito evidente, demonstrada.
infinidade de partes, cada uma das quais não
depende de modo nenhum das outras; mas do
8. A idéia de Deus é inata no homem
fato de que um pouco antes eu tenha existido
não se segue que eu deva existir agora, a me Resta-me apenas examinar de que modo
nos que neste momento alguma causa me pro eu tenha adquirido esta idéia, pois não a rece
duza e me crie, por assim dizer, desde o início, bí por meio dos sentidos, e jamais ela se ofe
isto é, me conserve. [...] receu a mim contra minha expectativa, como
Ora, não poderio ocorrer que aquele ser, ocorre com as idéias das coisas sensíveis, quan
do qual eu dependo, não seja aquilo que cha do estas se apresentam, ou parecem apresen
mo Deus, e que eu seja produzido, ou pelos tar-se, aos órgãos exteriores de meus sentidos.
meus genitores, ou por outras causas menos 61a não é sequer pura produção ou ficção de
perfeitas do que Deus? Bem longe disso, a coi meu espírito, porque não está em meu poder
sa não pode ser assim. Porque, como já disse tirar ou acrescentar alguma coisa a ela. 6, por
antes, é evidentíssimo que deve haver ao me conseguinte, não resta outra coisa a dizer, a
nos tanta realidade na causa quanto no seu não ser que, como a idéia de mim mesmo, ela
efeito. Portanto, uma vez que sou uma coisa nasceu e foi produzida comigo, desde quando
que pensa, e tenho em mim alguma idéia de fui criado.
Deus, seja qual for enfim a causa que se atri €, sem dúvida, não se deve achar estra
bua à minha natureza, é preciso necessariamen nho que Deus, criando-me, tenha posto em mim
te confessar que ela deve igualmente ser uma esta idéia, para que fosse como a marca do
coisa que pensa, ©deve possuir em si a idéia operário impressa em sua obra; e não é se
de todas as perfeições que atribuo à natureza quer necessário que esta marca seja algo de
divina. Depois, pode-se desde o início procurar diferente dessa mesma obra. Mas do fato ape
se esta causa deriva sua origem e sua existên nas que Deus me criou, é bastante crível que
cia de si mesma ou de alguma outra coisa. Uma ele me tenha de algum modo produzido à sua
vez que, se ela deriva de si mesma, disto se imagem e semelhança, e que eu conceba esta
gue-se, pelas razões que acima aleguei, que semelhança (na qual o idéia de Deus se acha
ela própria deve ser Deus; com efeito, tendo a contida) por meio da mesma faculdade com a
316
Terceira parte - Bacon e Descartes
qual concebo o mim mesmo: isto é, que quan De onde resulta com evidência suficiente
do eu reflito sobre mim, não somente conheço que ele não pode ser enganador, pois a luz
ser uma coisa imperfeita, incompleta e depen natural nos ensina que o engano depende ne
dente de outros, que tende e que aspira sem cessariamente de algum defeito.
parar a qualquer coisa melhor e maior do que Mas, antes que eu examine isto mais acu
eu seja, mas conheça também, ao mesmo tem radamente, e que passe à consideração das
po, que aquele, do qual dependo, possui em outras verdades que se possam reunir, parece-
si todas as grandes coisas às quais aspiro, e me muito a propósito parar algum tempo na
das quais encontro em mim as idéias; e que as contemplação deste Deus perfeitíssimo, ponde
possui, não indefinidamente e apenas em po rar à vontade seus maravilhosos atributos, con
tência, mas os goza em efeitos, atualmente e siderar, admirar e adorar a incomparável be
infinítamente e, portanto, que é Deus. 6 toda a leza desta imensa luz, ao menos tanto quanto
força do argumento, do qual aqui usei para pro puder permiti-lo a força de meu espírito, que
var a existência de Deus, consiste nisso, que eu com isso permanece de certo modo deslum
reconheço que não seria possível que minha brado.
natureza fosse tal qual é, isto é, que tivesse em Uma vez que, como nos ensina a fé, a
mim a idéia de um Deus, se Deus verdadeira soberana felicidade da outra vida consiste tão-
mente não existisse; aquele mesmo Deus, digo, somente nesta contemplação da divina Majes
a idéia do qual está em mim: isto é, que possui tade, assim experimentamos desde agora que
todas as altas perfeições, das quais nosso espí tal meditação, embora incomparavelmente me
rito pode bem ter alguma idéia, sem todavia nos perfeita, nos faz gozar a maior alegria de
compreendê-las todas; que não está sujeito e que somos capazes nesta vida.
não tem nenhum defeito; que não tem nenhuma R. Desca
das coisas que indicam alguma imperfeição. M e d ita ç õ e s m etafísicas, III.
*
B i b l i o g r a f i a d o volume III
L'Umanesimo italiano, 1981; Scienza e vita civile direção de), Marsilio Ficino e il ritorno di Platone.
nel Rinascimento italiano, 1980; La cultura dei Studi e documenti, Florença 1986.
Rinascimento. Profilo storico, 1981; Lo zodiaco Para Pico: E. Garin, G. Pico delia Mirandola, Le
delia vita. La polemica sull’astrologia dal Trecento Monnier, Florença 1937; G. Di Napoli, G. Pico delia
al Cinquecento, 1982; L'uomo dei Rinascimento, Mirandola e la problemática dottrinale dei suo tem
1988 (deste último volume Garin não é autor, mas po, Desclée, Roma 1965; P. Zambelli, Uapprendista
organizador). stregone. Astrologia, cabala e arte lulliana in Pico
delia Mirandola e seguaci, Marsilio, Veneza 1995.
Cap. 2. Os debates sobre problemas morais
e o Neo-epicurismo Cap. 4. O Aristotelismo renascentista
Para os autores que são também, ou sobretudo, li
e a revivescência do Ceticismo
teratos, remetemos a uma boa história da literatura Textos
italiana. Aqui nos ocuparemos dos pensadores de Pomponazzi: Tractatus de immortalitate animae,
interesse mais especificamente filosófico. texto latino em paralelo, sob a direção de Morra,
Textos Manni e Fiammenghi, Bolonha 1954; De fato, de
libero arbítrio et de praedestinatione, sob a direção
Valia: Scritti filosofici e religiosi, sob a direção de
de R. Lemay, Antenore, Pádua 1957. Não facilmente
G. Radetti, Sansoni, Florença 1953; Opera omnia,
localizável é P. Pomponazzi, Trattato sulPimmor-
sob a direção de E. Garin, Turim 1962.
talità delPanima. II libro degli incantesimi, prefácio
Literatura de R. Ardigò, introdução, tradução e notas de I.
S. I. Camporeale, L. Valia. Umanesimo e filologia, Toscani, Editoriale G. Galilei, Roma 1914.
Le Monnier, Florença 1972. Montaigne: Saggi, 3 vols., sob a direção de V. Enrico,
Mondadori, Milão 1986; Saggi, 2 vols., sob a dire
ção de F. Garavini, Adelphi, Milão 1992.
Cap. 3. O Neoplatonismo renascentista Literatura
Textos Para Pomponazzi: B. Nardi, Studi su Pietro Pom
Nicolau de Cusa: Scritti filosofici (com texto latino ponazzi, Le Monnier, Florença 1965; A. Poppi, Saggi
em paralelo), sob a direção de G. Santinello, sul pensiero inédito di P. Pomponazzi, Antenore,
Zanichelli, Bolonha (vol. I, 1965; vol. II, 1980); Pádua 1970; L. Olivieri, Certezza e gerarcbia dei
Opere religiose, sob a direção de P. Gaia, Utet, Tu sapere. Crisi delVidea di scientificità nelParis-
rim 1971; Opere filosofiche, sob a direção de G. totelismo dei secolo XVI, Antenore, Pádua 1983.
Federici Vescovini, Utet, Turim 1972; La dotta igno- Para Montaigne: A. M. Battista, Alie origini dei
ranza. Le congetture, sob a direção de G. Santinello, pensiero político libertino: Montaigne e Charron,
Rusconi, Milão 1988; La pace delia fede e altri testi, Giuffrè, Milão 1966; J. Starobinski, Montaigne e il
sob a direção de G. Federici Vescovini, Cultura delia paradosso delVapparenza, II Mulino, Bolonha 1984.
pace, Florença 1992.
Ficino: Teologia platônica (com texto latino em Cap. 5. A Renascença e a Religião
paralelo), sob a direção de M. Schiavone, 2 vols.,
Zanichelli, Bolonha 1965. Textos
G. Pico delia Mirandola: De bominis dignitate, Erasmo de Rotterdam: Elogio delia pazzia, sob a di
Heptaplus, De ente et uno, e scritti vari, texto e tradu reção de C. Annarratone, Rizzoli, Milão 1963; Elo
ção sob a direção de E. Garin, Vallecchi, Florença gio delia pazzia, trad. de T. Fiore, Einaudi, Turim
1942 (nova ed. La Scuola, Brescia 1987); Dis- 1964; I colloqui, sob a direção de G. P. Brega, Fel-
putationes adversus astrologiam divinatricem, tex trinelli, Milão 1967; II lamento delia pace, sob a di
to e tradução sob a direção de E. Garin, 2 vols., Vallec reção de L. Firpo, Utet, Turim 1967; La formazione
chi, Florença 1946-1952; Discorso sulla dignità cristiana delPuomo, sob a direção de F. Orlandini
delVuomo, sob a direção de A. Tognon, La Scuola, Traverso, Rusconi, Milão 1989; Elogio delia follia,
Brescia 1987; Opere scelte, sob a direção de V. Del sob a direção de E. Garin, Mondadori, Milão 1992.
Nero, Theorema, Milão 1993. Lutero: Scritti politici, tr. de G. Panzeri Saija, intr. e
bibl. di L. Firpo, Utet, Turim 1959; Scritti religiosi,
Literatura sob a direção de V. Vinay, Utet, Turim 1967; Dalla
Para Nicolau de Cusa: VV. AA., Niccolò Cusano parola alia vita. Scritti spirituali, sob a direção de
agli inizi dei mondo moderno, sob a direção de G. U. Brelime e M. Deveno, Città Nuova, Roma 1984.
Santinello, Sansoni, Florença 1970; G. Santinello, Calvino: Istituzione delia religione cristiana, 2 vols.,
Introduzione a Cusano, Laterza, Roma-Bari 1987; sob a direção de G. Tourn, Utet, Turim 1971.
Id., N. Cusano, em Questioni, cit., pp. 59-96.
Para Ficino: P. O. Kristeller, II pensiero filosofico di Literatura
M arsilio Ficino, Sansoni, Florença 1953; M. Sobre a Reforma em geral são muito boas as sínte
Schiavone, Problemi filosofici in Marsilio Ficino, ses de R. H. Bainton, La Riforma protestante,
Marzorati, Milão 1957; G. C. Genfragnini (sob a Einaudi, Turim 1958, e de J. Lortz-E. Iserloh, Storia
319
B ib l io g r a f ia d o t e r c e ir o v o lu m e
delia Riforma (ambas, a primeira protestante e a machiavellismo, La Nuova Italia, Florença 1980;
segunda católica, com bibliografia). De valor cien E. Garin, Machiavelli fra política e storia, Einaudi,
tífico bastante notável é o vol. VI da Storia delia Turim 1993.
chiesa, dirigida por H. Jedin, a cujas amplas e deta Para Guicciardini: além do volume cit. de U. Spirito,
lhadas bibliografias sem dúvida remetemos: E. Iser- pode-se ver F. Gilbert, Machiavelli e Guicciardini.
loh-J. Glazik-H. Jedin, Riforma e Controriforma Pensiero político e storiografia a Firenze nel Cin-
(XVI-XVII secolo), Jaca Book, Milão 1975. Ou quecento, Einaudi, Turim 1970.
tras boas sínteses são as de M. Bendiscioli: La Rifor
ma protestante, Studium, Roma 1967, e La Riforma Para T. Morus: F. Battaglia, Saggi sulPutopia di T.
cattolica, Studium, Roma 1973; e as de H. Strohl, Moro, Zuffi, Bolonha 1949; J. H. Hexter, Uutopia
II pensiero delia Riforma, II Mulino, Bolonha 1971; di T. Moro, Guida, Nápoles 1975.
G. M artina: La Chiesa nelVetà delia riforma, Para Bodin: V. I. Comparato, Bodin, II Mulino,
Morcelliana, Brescia 197S; M. G. Reardon, II pen Bolonha 1981 (com antologia de textos e biblio
siero religioso delia Riforma, Laterza, Roma-Bari grafia); VV. AA., La “République” di J. Bodin,
1984; J. Delumeau, La riforma. Origini e afferma- Olschki, Florença 1981.
zione, Mursia, Milão 1988. Para todos esses autores vejam-se, por fim: P. Mes-
Sobre a Contra-reforma e a Reforma católica: H. nard, 11 pensiero político rinascimentale, 2 vols.,
Jedin, Riform a cattolica o C on troriform a?, Laterza, Bari 1963-1964; G. Fassò, Storia delia fi
Morcelliana, Brescia 1974. Fundamental é a já clás losofia dei diritto, 3 vols., II Mulino, Bolonha 1968
sica obra, em cinco volumes: H. Jedin, II Concilio (vol. II); G. H. Sabine, Storia delle dottrine politiche,
di Trento, Morcelliana, Brescia 1973-1982; mas do 2 vols., Etas Libri, Milão 1978 (vol. I). Estas duas
mesmo autor se pode ver também a mais sintética últimas obras devem ser mantidas presentes tam
Breve storia dei Concili, Morcelliana, Brescia 1979. bém para o pensamento jurídico e político dos au
Para a documentação se pode ver: Decisioni dei tores tratados nos capítulos sucessivos.
Concili Ecumenici, sob a direção de G. Alberigo,
Utet, Turim 1978.
Cap. 7. Leonardo, Telésio, Bruno
e Campanella
Cap. 6. A Renascença e a Política
Textos
Textos Leonardo da Vinci: Scritti letterari, sob a direção
Maquiavel: Opere, 8 vols., sob a direção de S. de A. Marinoni, Rizzoli, Milão 1974; L’uomo e la
Bertelli e F. Gaeta, Feltrinelli, Mião 1960-1962. natura, sob a direção de M. De Micheli, Milão 1982;
Guicciardini: Ricordi, sob a direção de R. Spongano, Trattato delia pittura, sob a direção de M. Tabarrini
Sansoni, Florença 1951. e G. Milanesi, Melita, Roma 1984 (restauração
anastática da edição de 1890).
(Tanto do Príncipe de Maquiavel como dos Ricordi
de Guicciardini existem diversas edições escolásticas, Telésio: De rerum natura iuxta própria principia,
freqüentemente com bons comentários). livros I-IV, com texto latino em paralelo, sob a di
T. Morus: Utopia, sob a direção de L. Firpo, Guida, reção de L. De Franco, 2 vols., Casa dei libro
Editrice, Cosenza 1965-1974; De rerum natura, li
Nápoles 1979; Utopia, sob a direção de T. Fiore,
Laterza, Roma-Bari 1982; Thomas More, antolo vros VII-IX, sob a direção de L. De Franco, La
gia de textos, sob a direção de C. Quarta, Cultura Nuova Italia, Florença 1976.
delia pace, Florença 1988. Bruno: Dialoghi italiani, com notas de G. Gentile,
Bodin: I sei libri dello Stato, sob a direção de M. sob a direção de G. Aquilecchia, Sansoni, Florença
Isnardi Parente, Utet, Turim 1964 (com ampla bi 1985; Opere latine, sob a direção de C. Monti, Utet,
bliografia). Turim 1980; De causa, principio et uno, sob a dire
ção de A. Guzzo, Mursia, Milão 1985; Spaccio de
Grotius: Prolegomeni al diritto delia guerra e delia la bestia trionfante, sob a direção de M. Ciliberto,
pace, sob a direção de G. Fassò, Zanichelli, Bolo Rizzoli, Milão 1985.
nha 1949; Delia vera religione cristiana, sob a dire
ção de F. Pintacuda De Michelis, Laterza, Roma- Bruno e Campanella: Opere, sob a direção de A.
Bari 1973. Guzzo e R. Amerio, Ricciardi, Milão-Nápoles 1956.
Campanella: Del senso delle cose e delia magia, sob
Literatura a direção de A. Bruers, Laterza, Bari 1925; La città
Para Maquiavel: L. Russo, N. Machiavelli, Laterza, dei Sole, sob a direção de N. Bobbio, Einaudi, Tu
Bari 1957; G. Sasso, N. Machiavelli. Storia dei suo rim 1941; Metafísica, com texto latino em parale
pensiero político, Istituto Italiano per gli Studi lo, sob a direção de G. Di Napoli, 3 vols., Zanichelli,
Storici, Nápoles 1958 (nova ed. 11 Mulino, Bolo Bolonha 1967; Apologia per Galileo, com texto la
nha 1980); F. Chabod, Scritti su Machiavelli, tino em paralelo, sob a direção de S. Femiano,
Einaudi, Turim 1964; G. Sasso, Studi su Machiavelli, Marzorati, Milão 1971.
Morano, Nápoles 1967; U. Spirito, Machiavelli e
Guicciardini, Sansoni, Florença 1968; F. Gilbert, Literatura
Machiavelli e la vita culturale dei suo tempo, II Sobre Leonardo: C. Luporini, La mente di Leonar
Mulino, Bolonha 1974; J. Macek, Machiavelli e il do, Sansoni, Florença 1953; B. Gille, Leonardo e
320
S ib l io 0 ra jia d o te r c e ir o v o lu m e
gli ingegneri dei Rinascimento, Feltrinelli, Milão verso infinito, Feltrinelli, Milão 1970; T. S. Kuhn,
1972; W . AA., Leonardo da Vinci, Giunti-Barbera, La rivoluzione copernicana, Einaudi, Turim 1972;
Florença 1974; E. Solmi, Scritti vinciani, La Nuova Id., La struttura delle rivoluzioni scientifiche,
Italia, Florença 1976; W . AA., Leonardo e l'età Einaudi, Turim 1972; W . AA., La scuola galileiana
delia ragione, sob a direção de E. Bellone e P. Rossi, e l’origine delia vita, sob a direção de P. Cristofolini,
Edizioni di “ Scientia” , Milão 1982. Loescher, Turim 1974; P. Rossi, La rivoluzione
Sobre Telésio: N. Abbagnano, B. Telesio, Bocca, scientifica da Copernico a Newton, Loescher, Tu
Milão 1941; Id., B. Telesio e la filosofia dei Rinas rim 1974; E. J. Dijksterhuis, II meccanicismo e
cimento, Garzanti, Milão 1941; W . AA., Bernar- Pimmagine dei mondo: dai Presocratici a Newton,
dino Telesio nel IV centenário delia morte (1588), Feltrinelli, Milão 1980.
Istituto nazionale di studi sul Rinascimento meri-
dionale, Nápoles 1989. Cap. 10. De Copérnico a Kepler
Sobre Bruno: G. Gentile, II pensiero italiano dei
Rinascimento, Sansoni, Florença 1968; G. Aqui- Textos
lecchia, Giordano Bruno, Istituto delPEnciclopedia Copérnico: De revolutionibus orbium coelestium
Italiana, Roma 1971; I. Vecchiotti, Che cosa ha (dedica a Paulo III o livro I), sob a direção de A.
veramente detto G. Bruno, Ubaldini, Roma 1971; Koyré e C. Vivanti, Einaudi, Turim 1975.
A. Ingegno, Cosmologia e filosofia nel pensiero di
G. Bruno, La Nuova Italia, Florença 1978; F. A.
Yates, L’arte delia memória, Einaudi, Turim 1972; Cap. 11. Galileu Galilei
Id., Giordano Bruno e la tradizione ermetica,
Laterza, Roma-Bari 1981; M. Ciliberto, La mota Textos
dei tempo. Interpretazione di Giordano Bruno, Galilei: Opere, Edizione Nazionale, 20 vols, sob a
Editori Riuniti, Roma 1986; Id., Giordano Bruno, direção de A. Favaro, Florença 1890-1909.
Laterza, Roma-Bari 1990; N. Badaloni, Giordano Literatura
Bruno tra cosmologia ed etica, De Donato, Roma-
Bari 1988; L. Spruit, II problema delia conoscenza G. de Santillana, Processo a Galileo, Mondadori,
in Giordano Bruno, Bibliopolis, Nápoles 1988. Milão 1960; V. Ronchi, Galileo e il suo cannoc-
História antológica das interpretações: G. Radetti, cbiale, Boringhieri, Turim 1964; L. Geymonat, Ga
Bruno, in Questioni, cit., pp. 97-182. lileo Galilei, Einaudi, Turim 19692; W. R. Shea, La
rivoluzione intellettuale di Galileo, Sansoni, Floren
Sobre Campanella: L. Firpo, Ricerche campanel-
ça 1974; A. Koyré, Studi galileiani, Einaudi, Turim
liane, Sansoni, Florença 1947; R. Amerio, Campa
1976; W . AA., Galileo, sob a direção de A. Caruso,
nella, La Scuola, Brescia 1947; Id., Introduzione alia
Isedi, Milão 1978; S. Drake, Galileo, DalPOglio,
teologia di Tommaso Campanella, Sei, Turim 1948;
Milão 1981; L. Geymonat, Per Galileo: attualità
A. Corsano, T. Campanella, Laterza, Bari 1961; N.
dei razionalismo, sob a direção de M. Quaranta,
Badaloni, T. Campanella, Feltrinelli, Milão 1965; Bertani Editore, Verona 1981; P. Redondi, Galileo
S. Femiano, Lo spiritualismo di T. Campanella, 2
eretico, Einaudi Turim 1983, VV. AA., Galileo
vols., Iem, Nápoles 1965; Id., La metafísica di T.
Galilei: 350 anni di storia, sob a direção de Mons.
Campanella, Marzorati, Milão 1968; W . AA., Atti P. Poupard, com uma declaração de João Paulo II,
dei convegno internazionale sul tema: Campanella
Piemme, Casale Monferrato 1984; A. Battistini,
e Vico, Academia Nazionale dei Lincei, Roma 1969;
Introduzione a Galilei, Laterza, Roma-Bari 1989.
L. Firpo, II supplizio di Tommaso Campanella.
Narrazioni, documenti, verbali delle torture,
Salerno, Roma 1985; G. Scalici (sob a direção de), Cap. 12. Newton
La “Città dei sole” di Campanella e il pensiero
utopistico fra Cinquecento e Seicento, Paravia, Tu Textos
rim 1992. Newton: Sistema dei mondo, Boringhieri, Turim
1959; Principi matematici delia filosofia naturale,
sob a direção de A. Pala, Utet, Turim 1965.
Cap. 8. Origens e traços gerais
da revolução científica Literatura
S. I. Vavilov, Isaac Newton, Einaudi, Turim 1954;
Elencamos aqui uma série de obras de caráter geral
A. Pala, Isaac Newton: scienza e filosofia, Einaudi,
sobre a revolução científica.
Turim 1969; I. B. Cohen, La rivoluzione
À. C. Crombie, Da S. Agostino a Galileo. Storia newtoniana, Feltrinelli, Milão 1982.
delia scienza dal V al XVIII secolo, Feltrinelli, Mi
lão 19822; H. Butterfield, Le origini delia scienza
moderna, II Mulino, Bolonha 1962; A. Einstein, Cap. 13. As ciências da vida, as Academias
Pensieri degli anni difficili, Boringhieri, Turim 1965; e as Sociedades científicas
A. Koyré, La rivoluzione astronômica: Copernico,
Keplero, Borelli, Feltrinelli, Milão 1966; Id., Dal Textos
mondo dei pressapoco all’universo delia precisione, Harvey: Opere, sob a direção de F. Alessio,
Einaudi, Turim 1967; Id., Dal mondo chiuso alPuni- Boringhieri, Turim 1963.
S i b ! i o 0 raf-ia d o t e r c e ir o vo lu m e