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Desde que Lacan (1981), no seminário 20, introduziu o real como constituinte do
falasser, pode-se dizer que não há um programa pré-estabelecido que organize a
relação entre os sexos. Por isso, na última parte do seu ensino, ele foi além dos
Ideais e do Nome-do-Pai, como metáfora da ordem simbólica, após observar que
eles já não mais organizavam o laço social, segundo a norma androcêntrica, que já
“não podia representar a trama das identidades sexuais, nunca fixas nem
normativas” (Bassols, 2021, p.20). Vale, então, destacar que o Mal-estar, em nossos
dias, não é também o mesmo de outrora. Hoje, mais do que nunca, impera sua forma
cínica. Com isso, quero dizer que a fase atual, massificada horizontalmente e
globalizada do capitalismo, é matriz da segregação generalizada, fomentadora da
diluição da singularidade, na medida em que tem por base o rechaço do outro,
sobretudo dos seus sinais de diferença e que a Psicanálise vai na contramão dessa
corrente generalizante, buscando, por seu lado, salientar suas formas e seus efeitos.
Nossa era, como era de um capitalismo “hard”, por assim dizer, da ciência e da
tecnologia, sustentado pela lógica da acumulação infinita, elevou o objeto ao zênite
(Lacan, 2003a), infinitizou-o e o levou a passar à frente do Édipo e da Lei simbólica,
organizados pelo falo. Essa elevação é o resultado da incapacidade da ordem fálica,
para esclarecer, segundo as teorias queer (Fajnwaks, 2013), que nesse ponto
concordam com a psicanálise de orientação lacaniana, o que é ser, por exemplo, um
homem ou uma mulher. Uma das questões cruciais de nossos dias é como homens e
mulheres podem se encontrar se a lei simbólica já não lhes diz, efetivamente, quase
nada e o que predomina são os modos de gozar , mediante todos os recursos
disponíveis no mercado de consumo. Essa questão coincide com os grandes
apontamentos de Lacan em seu último ensino. Por isso, a clínica mudou. Tornou-se
muito mais pragmática do que estruturalista e os conceitos, com essa mudança,
muito mais promissores, desidealizados, e, como tal, realistas, na medida em que
abrem espaço ao trabalho com a singularidade de cada sujeito. Ou seja,com o seu
sinthoma, aqui entendido, como aquilo pelo qual existe no mundo e nele se faz
reconhecer. É uma clínica que busca mais o que enlaça do que o sentido, já que não
há outro acesso à realidade, para o falasser, que não passe pelo seu próprio real.
Lacan (2012, p.30) avança ao propor que o Um nem sempre tem o mesmo sentido.
Existe o sentido do Um que nomeia o conjunto vazio que é dois como ordinal, e,
também, que há um caráter bífido do Um, que é diferente do Ser (estado
permanente), que o ser é sempre Um, mas que o Um não sabe ser como o
ser. Nesse contexto, serviu-se dos vários sentidos do Um para mostrar como o Um
se contrapõe ao império do Universal e de como foi daí que pôde deduzir a função
da Existência (Lacan, 2012, p.130) esta nascida do “mais fugidio do enunciável”, que
tem a ver com a economia libidinal de cada Um.
A lógica não-toda
Pelo que foi exposto, creio poder concluir com Lacan (1966-67[2008], p. 350) que:
1º) “ o inconsciente é a política”. É a política com a, no feminino, sob o regime do
não-toda que não perde de vista o regime libidinal de cada Um, política do sinthoma,
e não que o inconsciente é o político porque teria valor de proposição universal; 2º)
que a Psicanálise, na medida em que esclarece o Mal-estar na civilização, sob a ótica
do regime pulsional de cada Um, propõe saídas, nada desprezíveis, sim, mas nunca
soluções, para aqueles que decidem nela apostar, fazendo-os passar pelos labirintos
da fala, ou seja, pelo Outro, porque “uma vez o Um estabelecido surgirá
necessariamente o Outro” (Hasembalg-Coriabinu, 2016, p. 27). Porém como nos
ensinou Lacan, lido por Chai, de forma não segregativa, ou seja, sem passar para o
fatalismo do supereu e seu imperativo de gozo, mas cuidando para que o não
simbolizado do gozo, não retorne no Real, pois afinal o Real é sem lei, e esse retorno
tentaria impor o imperativo do supereu sob a forma de sintomas e passagens ao ato
mortíferas em sua grande maioria. Enfim, é lidando com esse não simbolizado, é
dando um lugar a esse real sem lei, que verificaremos, em contraposição ao
Universal do Mestre, o quanto o que é bom para Um não é necessariamente bom
para outro Um e isso tem a ver com o Novo amor, promessa do discurso analítico,
que tenta fazer um trabalho não segregativo com o resto inassimilável de gozo de
cada um, única forma de não se passar a “uma deriva em direção ao pior, colorida
de cinismo”( Miller, 2021, p.42).
Referências bibliográficas:
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