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Como conceber a transferência na clínica do Um que dialoga sozinho?

Simone Souto

“A psicanálise muda, isso não é um desejo, mas um fato”. Esta frase de Miller (2014/2016, p. 20),
extraída dos dizeres de Lacan em seu último ensino, situa de maneira precisa qual é nossa
perspectiva ao relacionarmos o inconsciente, o mestre contemporâneo e a transferência no título da
XXII Jornada da EBP-MG. Trata-se de um esforço de elaboração conceitual que visa permanecer o
mais próximo possível da experiência, ou seja, daquilo que de fato fazemos em nossa prática
analítica hoje. Essa aproximação entre prática e teoria nos conduz inevitavelmente a um
questionamento a respeito da concepção que fazemos da transferência, pois, como lembra-nos
Lacan (1964/1985, p. 120) no Seminário 11 se, por um lado, “este conceito dirige o modo de tratar
os pacientes, por outro, inversamente, o modo de tratá-los comanda o conceito”. Portanto, podemos
dizer que se a psicanálise muda, essa mudança acontece na dialética entre teoria e prática.

A psicanálise que praticamos hoje tem exigido, de nossa parte, uma leitura renovada dos conceitos
fundamentais tais como a transferência e o inconsciente, o que por sua vez, também interfere nessa
mesma prática, modificando-a. Dar a um mesmo conceito, uma leitura inédita é algo ao qual Lacan
nunca se furtou. Inclusive, é isso que nos autoriza a identificar em seu percurso um primeiro,
segundo e último ensino. Nesse trajeto, embora uma nova leitura não torne necessariamente
inválida a anterior, precisamos admitir, concordando com Miller (2014/2016, p. 20), que a
psicanálise tanto no que concerne a sua prática quanto à sua teoria “não está mais exatamente em
conformidade com que se pensava sobre ela”. Essa diferença da psicanálise com relação a si mesma
chega a tal ponto que a transferência, da qual LACAN (1964/1985) fez um conceito fundamental no
Seminário 11, pode hoje ser considerada por MILLER (2006-2007/2009) como a grande ausente do
último ensino de Lacan.

Mas, para que possamos acompanhar esse salto, me parece importante situar, primeiramente, o
ponto de virada, que conduzirá Lacan a uma apreensão do ato de falar completamente distinto do
que ele havia proposto até então: fala-se sozinho, para si mesmo e não para o Outro. Essa
constatação faz surgir outra forma de apresentação do inconsciente, formulada por Lacan
(1977/2003, p. 567), uma única vez, no “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11” escrito logo
após o Seminário 23, nos seguintes termos: “o inconsciente é real, caso se acredite em mim”.
Embora no Seminário 23 (LACAN, 1975-1976/2007) o inconsciente permaneça, ainda, no registro
do simbólico, ao apoiar-se em Joyce, a definição do inconsciente será de tal forma reduzida à
materialidade do significante que, conforme nos esclarece MILLER (2005-2007/2009), quinze dias
depois de finalizar esse Seminário, LACAN (1977/2003) poderá chegar ao inconsciente real. Nesse
registro, a fala passa então a presentificar o inconsciente não como discurso do Outro, mas como a
satisfação do Um-sozinho “que não quer dizer nada a ninguém” (Miller, 2008-2009/2011, p. 106).
Trata-se de um dizer que se fecha sobre si mesmo, tornando a transição ao Outro precária, o que,
por sua vez, conduz a um impasse quanto à transferência concebida como uma suposição de saber
endereçada ao Outro e coloca um problema sobre o modo de presença do analista e suas
possibilidades de intervenção.
O analista, o ser e o Um.
Mas, o ponto de virada que levará Lacan ao inconsciente real, podemos situá-lo a meu ver, um
pouco antes, no Seminário 20 (LACAN, 1972-1973/1985), mais precisamente quando, nesse
Seminário, é promovida uma distinção radical entre o ser e a existência, isto é, entre o objeto a e o
real.
Segundo Lacan, ainda que o objeto a se encontre no caminho que se dirige do simbólico ao real, sua
verdadeira natureza está relacionada ao ser, ao parecer, ao semblante, e não ao real. Como afirma
Miller (1991-1992/2002, p. 116), “chamamos de objeto a ao que, nesse desastre do sujeito que se
denomina falta-a-ser, parece-nos dar o suporte do ser.” Nesse contexto, o objeto a só encontra sua
função como obturador da falta-a-ser, ou seja, pela instituição de um núcleo de sentido, a fantasia,
composto pela falta a ser ($) e seu complemento de ser (objeto a) . Na fantasia, o objeto a é
capturado por um sentido que tem como coordenada o desejo do Outro: trata-se do objeto que se é
para o Outro, um olhar, uma voz …etc. Dessa forma, ao apresentar-se como um ser em relação à
falta-a-ser do sujeito, o objeto a “nos leva a confundi-lo de modo abusivo, com o real” (MILLER,
1991-1992/2002, p. 115). Contudo, Lacan (1972-1973/1985, p. 128) conclui que o objeto a “só se
resolve no fim das contas, em seu fracasso, em não poder sustentar-se na abordagem do real”.
Assim, no Seminário 20, LACAN (1972-1973/1985) finalmente consente com a natureza de
semblante do objeto a e demonstra que, no percurso de seu ensino, assim como no percurso da
experiência analítica, o objeto a só permitirá um acesso ao real ao distinguir-se deste, ou seja, ao
revelar-se em sua natureza de semblante, ao mostrar que o sentido que ele abriga como ser, que a
verdade da qual ele participa, não se sustentam na abordagem do real. No caminho para o real, esse
ser, esse semblante que o objeto a é, fracassa e, ao fracassar, faz existir o real como aquilo que, do
gozo, não pode fazer-se ser. Portanto, é a partir de um impossível determinado pelo caminho dos
semblantes, que o real pode distinguir-se e constituir-se como uma existência para além dos
semblantes. Abre-se, aqui, então, outra dimensão, na qual o que existe de não negativizável, isto é,
de real, concernente ao gozo pode achar seu lugar não mais como obturador da falta-a-ser, mas
como a existência de uma satisfação singular e incurável que Lacan (1972-1973/1975, p. 63)
designou com a expressão “Y a d’ l’Un”, “Há Um”. Essa expressão indica que, nesse contexto, não
se trata mais do ser e da falta-a-ser, pois, como lembra-nos MILLER (2010-2011)[1], quanto ao
gozo não podemos dizer o que ele é, não podemos fazê-lo ser, podemos apenas constatar sua
existência, dizer que ele existe. Assim, a existência do Um será suportada, não pela função do
objeto a, do semblante, mas pela função do que mais tarde, no Seminário 23, LACAN (1975-
1976/2007) chamará de sinthoma.
Essa distinção entre o Ser e o Um toca o âmago da ação do analista, pois, como demonstra a lição
XII do Curso de MILLER (2010-2011), se tomarmos como referência o ser, a ação do analista
estará centrada e até mesmo reduzida à interpretação concebida como uma “ontologia semântica”.
Trata-se da interpretação que cria um ser sem substância, sem existência, a partir do sentido. A
interpretação, assim concebida, define a ação do analista pela doação de outro sentido àquilo que se
diz. É a interpretação que reconhece o desejo sob aquilo que se escuta do que o paciente diz e que o
exibe, ou seja, o faz ser. Como exemplo, podemos citar FREUD (1905/1976, p. 61-90) que ao
interpretar a caixa de joias do sonho de Dora como o sexo feminino, faz aparecer um elemento
sexual recalcado, ligado ao desejo de Dora. Dessa maneira, o analista, ao dar outro sentido ao que o
paciente diz, cria, através da interpretação, um ser de sentido, no qual, de acordo com Miller, o
próprio analista está implicado. Isso quer dizer que ao se dirigir ao ser, a partir da interpretação, o
analista torna-se, ele mesmo, algo para o paciente: aquele que abriga o sentido do seu desejo, ou
seja, o objeto precioso ao qual ele dirige seu amor, ou o objeto que ele odeia, mas enfim, um objeto
que de toda forma, é portador de um ser, de um sentido. Há, portanto, uma homogeneidade entre a
ação do analista e o ser ao qual essa ação se aplica: eles são da mesma ordem ontológica. Podemos
deduzir, então, que, nesse contexto, quando um analista interpreta, ele não só faz surgir, em última
instância, a fantasia, mas ele participa dessa fantasia fazendo-se ser. Desse ponto de vista, como
observa Miller (2010-2011)[2], a interpretação confere ao analista um “poder criacionista”, pois ele
cria um ser a partir do sentido.
No entanto, se tomamos como referência o Um-sozinho, entramos numa dimensão da análise que
pode ser situada, certamente, no final da experiência analítica na qual nos deparamos, para além da
fantasia, com a permanência daquilo que Freud chamava de restos sintomáticos, que tornam
evidente a existência de um gozo incurável que destitui o analista do “poder criacionista que a
interpretação do desejo lhe confere” (MILLER, 2010-2011)[3]. Essa destituição é homóloga à
constatação da existência, no percurso da análise, de um elemento que “não se pode fazer ser”
(Miller, 2010-2011): o gozo. Quanto ao gozo, adverte-nos Miller, o analista deve ser mais humilde
e desistir de toda intenção criacionista, pois o gozo não é algo que o analista possa interpretar. O
gozo coloca um limite à ação do analista concebida a partir da interpretação como criação de
sentido. Esse limite colocado à interpretação do analista, como já dissemos, nós o encontramos,
certamente no final da análise, mais além da fantasia, mas o encontramos também, hoje em dia,
cada vez mais, em alguns casos nos quais, desde o início, o sintoma se manifesta como uma
presença real, como a iteração do mesmo, do Um-sozinho que não se liga a nada, e que, por sua vez,
não se deixa apreender pelas tentativas criacionistas por parte do analista. Em nossos dias, diante da
evidência da não-existência da relação sexual, observamos que o discurso analisante desnuda-se,
muitas vezes, numa fala que é simples conjunção do Um e do corpo, uma fala que não está ligada a
um saber, mas a uma satisfação. Uma fala sem Outro, sem par, um enxame de Uns, sem o
significante dois, isto é, sem aquele que viria significar o Um que comanda o gozo. Assim, somos
colocados diante do paradoxo do Um que dialoga sozinho e se LACAN (1976-1977), no Seminário
24, considera esse dialogo como uma fala solitária é porque esse diálogo se processa entre o Um e o
Outro que não existe. Portanto, não se trata apenas da língua em sua dimensão real e material, mas,
também, de alguma coisa com a qual não se tem relação. É a presentificação de uma fala na qual a
relação com o Outro está rompida. Esse “Outro rompido” (LAURENT, 2018, p. 52), conforme
descreve Lacan (1976-1977) no Seminário 24[4], institui uma prática da psicanálise separada do
Outro, uma prática que se ordena por “um existe” e um “não existe” (MILLER, 2010-2011)[5]: o
que existe tem a ver com o gozo e o que não existe tem a ver com o Outro.
Essa dimensão da experiência analítica nos coloca cada vez mais, diante da insuficiência do poder
criacionista do analista, evidenciando que, quando estamos na dimensão do inconsciente real, do
Um que dialoga sozinho e do sinthoma, o analista, diferentemente do que propunha LACAN (1964-
1985), no Seminário 11, não aparece como fazendo parte do conceito do inconsciente, isto é, como
destinatário do discurso do analisante. O analista, conforme propõe Miller (2006-2007/2009, p. 48),
surge muito mais como um “intruso“, como aquele cuja presença faz aparecer o que está fora, o
que, na fala do paciente, no deslizamento de um significante a outro, é obstáculo, o que não chega a
se satisfazer, o que se equivoca, fazendo prevalecer, como veremos mais adiante, antes o furo que o
sentido. Portanto, nesse contexto, se a presença do analista pode ser considerada, ainda, como
indica Lacan (1964/1985, p. 121) no Seminário 11, como “uma manifestação do inconsciente”, é
porque sua presença é passível de dar corpo ao inconsciente real.
O insucesso do inconsciente dá asas ao amor
Estamos acostumados a conceber o amor de transferência como dirigido ao Outro ao qual supomos
o saber. Mas, como vimos, quando deslocamos a psicanálise para o registro do Um-sozinho, é
justamente essa dimensão do Outro e de seu saber que se desvanece. Será que essa constatação nos
levaria a considerar uma prática da psicanálise sem o amor de transferência, sem uma suposição de
saber? O Um, diz Lacan (1976-1977, p. 18) “dialoga sozinho porque ele recebe sua própria
mensagem sob uma forma invertida. É ele quem sabe e não o suposto saber.” No entanto, mesmo
que o analisante fale sozinho, é fato que a psicanálise continua sendo praticada aos pares. Isso nos
leva a atestar que, se a prática analítica pode prescindir do Outro, parece que ela não pode
prescindir do analista. Em que se sustentaria, então, o laço entre o analisante e o analista?

Ao abordar o inconsciente na dimensão do Um que dialoga sozinho, nos deparamos com o que
existe de positivo, de inegável, concernente ao gozo, mas, também, com o limite dessa existência,
ou seja, com o que faz furo. No que concerne ao encontro com o gozo, o inconsciente nos mostra, a
todo instante, que não é totalmente bem sucedido. É na medida em que o analista presentifica o
insucesso do inconsciente quanto à satisfação obtida, fazendo aparecer o furo a respeito do qual o
inconsciente não sabe que sabe, que o amor acontece. É a presença do analista que faz esse furo
existir de verdade. Por isso, sua presença é suscetível de fazer surgir também o amor, pois o amor,
como nos ensina LACAN (1972-1973/1985), no Seminário 20, nasce desse furo, não só da
inexistência da relação sexual, mas, ainda, daquilo que do gozo do Um não alcança o gozo
esperado. Conforme esclarece LAURENT (2016, p. 67), se o encontro com o gozo fosse totalmente
bem sucedido, o autoerotismo seria absoluto, e não haveria lugar para o amor. O insucesso do
inconsciente é, portanto, o que dá asas ao amor, asas que podem fazer o inconsciente chegar um
pouco mais longe, transportando-o para fora de sua esfera solipsista.

Mas qual amor? No seminário 20 (LACAN, 1972-1973/1985), encontramos a menção a uma


concepção do amor que nos ajuda a elucidar essa conjunção feita por LACAN (1976-1977), no
título do Seminário 24 entre o amor e o inconsciente tomado como furo. Trata-se do amuro, uma
palavra que Lacan inventa para designar uma forma de amor que não desconhece a impossibilidade
da relação sexual e que tem como condição a irredutível solidão do Um. O amuro é um amor que
porta a marca da inexistência da relação sexual. Através do amuro, Lacan (1972-1973/1985, p. 198)
aproxima amor e gozo, pois o furo que instaura o gozo irredutível do Um que constitui o muro que
faz barreira à existência da relação sexual é também, ao mesmo tempo, o furo que pode vir a
constituir-se como uma abertura para o ”encontro no parceiro, dos sintomas, dos afetos, de tudo que
em cada um, marca o traço de seu exílio, não como sujeito, mas como falante, da relação sexual.”
Portanto, nessa dimensão do amor, o analista se faz presente para o analisante como furo, mas,
também, como parceiro de gozo, isto é, como um sinthoma que “condensa um gozo fora do corpo
para um outro corpo diferente do seu” (LAURENT, 2016, p. 65), assim como uma mulher para um
homem. Essa maneira de conceber o analista como furo e como sinthoma nos conduz a uma
conjunção entre amor e saber distinta daquela na qual o saber está referido ao Outro. Aqui, o saber
se apresenta como um saber sobre o gozo, estando intimamente ligado ao fato da análise ser uma
experiência, isto é, trata-se de um saber sobre o gozo adquirido a partir de algo que
experimentamos, verdadeiramente, quando dirigimos nossa fala a um psicanalista. Desse modo, o
amor se liga ao saber, mas de uma maneira renovada, ou seja, como um “saber fazer” com o gozo e
com o furo que o acompanha. Trata-se, como diz LACAN (1976-1977, p. 6), de conhecer seu
sintoma, de saber se virar com ele, de saber manipulá-lo, assim como fazemos com o parceiro
sexual. Para adquirir esse saber, sustentado na materialidade do significante e no gozo como
substância, é preciso “empenhar a própria pele” (Lacan, 1972-1973/1985, p. 130), pois trata-se de
um saber da língua, mas que não repousa na troca e cujo valor permanece voltado apenas para o
seu uso. O saber como valor de troca pode valer também para outro, mas o saber como valor de uso
permanece como sendo do Um, do mesmo, sem substituição.
Nesse nível da prática analítica, a transferência, torna-se, a meu ver, não exatamente inexistente,
mas, rarefeita, pois evidencia um amor que se sustenta na suposição de um saber no real e não na
suposição de um saber no Outro. A suposição, aqui referida, é a de que o sintoma conserva um
sentido no real, é essa a suposição que acompanha a fala analisante. Quando endereçada ao analista,
a fala faz surgir a crença no sintoma. Essa crença, que tem como visada o real, evoca o amor como
suposição de um sentido suplementar. Como define Miller (2000-2001), “o sujeito suposto é amor,
na medida em que introduz sentido e saber no real.” O amor é, portanto, a única via pela qual o real
inclui sentido e saber e, assim, faz falar o sintoma. É nesse contexto que Lacan irá situar o que
pode vir a ser um conceito renovado da interpretação que inclua o sintoma como real.

Ler, escrever, nomear


Referir-se ao uso, no que diz respeito ao sintoma, quer dizer que na experiência analítica “não se
trata de fazê-lo desaparecer e menos ainda de fazê-lo desaparecer ao interpretá-lo” (MILLER, 2006-
2007/2009, p. 144). Assim, a transcrição da interpretação para o registro do Um-sozinho, tendo
como perspectiva o uso que se pode fazer do sintoma, nos conduz, a outro modo operatório da
interpretação e, também, a outra forma de conceber o sentido.

No último ensino de Lacan, dar sentido é nomear e não decifrar. Portanto, para LACAN (1974-
1975), quando se tem o real em perspectiva, “o que caracteriza o sentido é que se nomeia, aí,
alguma coisa e não que a gente se faça compreender”. Trata-se de acrescentar um sentido ao real e
não, como esclarece Miller (2005, p. 149) “de se entender com o Outro sobre o sentido”. A
nomeação é arbitrária e sem referência a um sentido comum designado pelo Outro. É algo que se
inventa através de um forçamento da língua tomada em sua materialidade, isto é, da língua tomada
como escrita, como letra, para dela extrair um novo modo de existência do significante ou, pelo
menos, um novo uso do significante. Esse novo uso, esse novo modo, encontra sua existência
somente a partir do saber ler do analista, ou mais precisamente, quando o analista em sua
interpretação se dedica a ler o mesmo, de outro modo. Em seu momento de concluir, LACAN
(1977-1978) diz-nos que a condição para se ler de outro modo é ligar esse outro modo ao S de A
barrado. Portanto, esse outro modo inclui um furo, uma falha, o que nos leva à conclusão de que
nomear é também esvaziar.

Daí a referência que LACAN (1976-1977) faz à poesia ao considerar esse novo estatuto da
interpretação, pois a poesia produz ao mesmo tempo um efeito de sentido e um efeito de furo, um
esvaziamento. Então, quando um analista acrescenta um sentido ao real através da nomeação,
quando ele lê um sintoma, isso não significa nutrir o sintoma de sentido. Pela nomeação a
interpretação encontra seu valor de intrusão de um modo novo do significante, e o que faz a
novidade é o furo. Sendo assim, no último ensino de Lacan o saber consiste no que é legível e o
analista torna-se aquele que é suposto saber ler de outro modo.

Suzane Hommele em seu depoimento no filme “Rendez-vous chez Lacan” (Um encontro com
Lacan) faz menção a uma interpretação feita em sua análise por Lacan e que nos mostra de forma
muito clara, a interpretação que toma como apoio a escrita permitindo que os sons emitidos possam
ser escritos de outro modo, distinto daquele escrito pelo inconsciente. Quando criança, ela viveu os
horrores da segunda guerra mundial, o que lhe causava ainda muita dor e sofrimento. Em uma
sessão ela disse a Lacan: “Eu acordo sempre às 5h da manhã”, e acrescenta,”‘5h era a hora em que a
gestapo invadia a casa dos judeus”. Nesse momento, Lacan dá um pulo de sua cadeira e se
aproxima dela tocando a pele de seu rosto com um gesto extremamente terno e delicado,
transformando “Gestapo” em “geste à ta peau” – um gesto em sua pele. Segundo Suzanne
Hommele, essa surpresa fez de sua dor outra coisa, um apelo à humanidade.
Com esse exemplo podemos entender a proposição de Lacan (1975-1977, p. 18), no Seminário 24,
segundo a qual o analista é também aquele que “faz de verdade”, ou seja, aquele que, por um golpe
de sentido, por um forçamento feito à língua, faz com que um sentido sempre comum, possa
ressoar uma significação vazia. Isso, por fim, nos faz retornar à transferência, pois, o amor, não
sendo nada além de uma significação vazia, convoca o analista sempre e a cada vez à invenção de
uma palavra agalmática que atravesse o real, uma palavra que possa manter aberto o furo da
inexistência da relação sexual, e ao mesmo tempo por essa via a possibilidade do encontro e de um
saber que se contenta em recomeçar sempre, até o fim.

È apostando nesse ratear, nesse furo que também são marcas do tempo em que vivemos que, a meu
ver, a psicanálise, pela via da transferência que abriga a contingência, poderá fazer frente ao mestre
contemporâneo e desfazer a aparente e imperiosa necessidade na qual ele se sustenta.
Simone Souto
Psicanalista, AME- Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de
Psicanálise (AMP)
ssouto.bhe@gmail.com
Publicado anteriormente em Curinga 47, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção MG,
2019.

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