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A CLÍNICA EM LACAN E A

FUNÇÃO DO ANALISTA
AULA 2

Prof. Cassio Gonçalves de Azevedo


CONVERSA INICIAL

Lacan empreendeu uma leitura bastante original e contextualizada de


Freud, e nos relegou uma teoria consistente e precisa em relação à
constituição do sujeito em psicanálise. Embora se possa dizer que os
lacanianos falam uma espécie de lacanês, é importante não perdermos de vista
que as ferramentas de um psicanalista são os conceitos da psicanálise, mais
que os preceitos.
Veremos, nesta etapa, alguns processos ou operações psíquicas que
constituem a subjetividade tal como concebida pela psicanálise, e que foram
conceituadas por Lacan com base em sua leitura de Freud, bem como de sua
conexão com outras áreas do saber, como a Linguística e a Matemática.
Iniciaremos pelo conceito de alienação, aproximando com mais detalhes
o processo pelo qual o sujeito do inconsciente se constitui dividido pelo
significante. Ele nos levará aos conceitos de significante mestre e de cadeia
significante – S1 e S2, e daí ao conceito de Outro, como o lugar dos
significantes.
O Outro será muito importante neste percurso trilhado por Lacan, e será
brevemente apresentado nesta etapa como o lugar dos significantes e sua
alteridade simbólica, que perpassa o sujeito, e equiparada à noção de
inconsciente. Veremos como esse Outro constitui o discurso do inconsciente, e,
depois, como é justamente sua inconsistência que nos possibilita o processo
de separação, imprescindível para a condução de uma análise de orientação
lacaniana.

TEMA 1 – A ALIENAÇÃO

Lacan desenvolveu toda uma teoria a respeito da constituição do sujeito


em psicanálise, do sujeito do inconsciente. O fez em uma íntima relação com a
linguagem, estruturada pelo significante. Ao especificar os processos
constitutivos da subjetivação, introduziu a noção de alienação, fundamental
nesse sentido. O sujeito com o qual a psicanálise se ocupa não é causa de si
mesmo, nem de nada, mas causado, efeito de uma divisão constitutiva.
O bebê humano nasce dramaticamente desemparado no que diz
respeito ao seu instinto, e precisa dos cuidados de um Outro para sobreviver.
Esse Outro representa assim, para ele, não apenas uma possibilidade de

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satisfação das necessidades básicas, mas sua própria existência. Logo, ele
entenderá que precisa agradar esse Outro, ser desejado por ele, amado por
ele, para garantir um lugar nesse mundo em que foi concebido. O Outro,
escrevemos assim com maiúscula, posto que não é o pai ou a mãe, mas aquilo
que neles fala; esse Outro então lhe oferecerá significantes, aos quais ele
deverá aderir para que seja reconhecido como merecedor de Seu desejo. Ser
“um bom menino”, ser “obediente”, “a menininha do papai” ou o “homenzinho
da mamãe”, “aquele que não chora”, são todos significantes que a criança vai
sendo convidada a aderir para que lhe seja reconhecida consideração, pelo
desejo dos pais.
Ao aderir um significante, sempre vindo do campo do Outro, palavras
que lhe são estrangeiras, a criança o faz cedendo parte de si, algo que de si
fica de fora, de modo que vai se constituindo uma alienação de seu desejo ao
desejo do Outro. Essa operação, portanto, implica em uma perda no campo do
ser, na medida em que esses significantes lhe são estranhos, não são sequer
de sua própria autoria.

o sujeito não domina nem pode modificar os valores culturais aos


quais é convocado a aderir. É nessa direção que vai o famoso
comentário feito por J. A. Miller (Lacan, 1964/2008, p. 210) no interior
do Seminário 11: "[...] a alienação de um sujeito que recebeu a
definição de ser nascido na, constituído por, e ordenado a um campo
que lhe é exterior". Assim, a entrada no universo simbólico envolve
uma profunda alteração na natureza do ser: "Para ser pars [parte], ele
realmente sacrificaria grande parte de seus interesses" (Lacan,
1964/2008, p. 857). O sujeito então se vê condenado a emergir no
campo do sentido. (Lustoza; Zanola, 2019, p. 125)

O significante só pode o representar, contudo, para um outro


significante. Assim, o ser perde algo de si ao aderir um significante, que o
levará a outro e assim sucessivamente, num deslizamento infinito que não
cessa de se deslocar, de modo que “A alienação reside na divisão do sujeito
que acabamos de designar em sua causa” (Lacan, 1998, p. 855); ou seja, que
a causa do sujeito é o significante, que o funda na medida em que o cinde, o
divide, e que não pode representá-lo senão para outro significante, só pode
representá-lo indiretamente como que por uma procuração. Lacan toma de
empréstimo noções da lógica e da teoria dos conjuntos para formalizar a
operação de alienação como o efeito da reunião entre dois conjuntos, o campo
do ser e o do sentido.

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Os exemplos que ele utiliza para ilustrar essa operação, no Seminário –
livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, de 1964, são, por
exemplo, a frase A bolsa ou a vida!: “A bolsa ou a vida! Se escolho a bolsa,
perco as duas. Se escolho a vida, tenho a vida sem a bolsa, isto é, uma vida
decepada. Vejo que me fiz suficientemente compreender” (Lacan, 1985, p.
207); ou ainda o exemplo tirado de Hegel, sobre a entrada humana no regime
de escravidão: “A liberdade ou a vida! Se ele escolhe a liberdade, pronto, ele
perde as duas imediatamente – se ele escolhe a vida, tem a vida amputada da
liberdade” (Ibid.).
De modo análogo, a criança não tem como escolher pelo campo do ser,
sem perder o campo do sentido e o reconhecimento do Outro no mundo da
linguagem, de quem ela demanda segurança e consistência existencial. Ao
escolher então o campo do sentido para que lhe seja reconhecida uma
consistência simbólica por esse Outro, o sujeito aliena-se de si próprio, de seu
desejo, que passa então a estar atrelado ao desejo desse Outro.
Essa perda de ser, fruto da identificação do indivíduo com o campo
simbólico do Outro, é a própria negatividade que Lacan identifica como sendo o
sujeito da questão, do inconsciente. Na sua fundação, oriunda da relação que
se estabelece com a ordem do significante, o sujeito aparece, parcialmente, no
campo do simbólico, representado por um significante (S1) para outro
significante (S2), ao mesmo tempo que desaparece, (S), como afânise, ou seja
castrado, sujeito barrado e resistente à significação.

TEMA 2 – S1 E S2

O empenho de Lacan em grafar seus conceitos, inclusive com fórmulas


e matemas, justifica-se muito em razão do esforço deste psicanalista de
inscrever a psicanálise no campo da ciência, bem como o de resguardar sua
transmissão de equívocos de traduções, como os que se verificam na tradução
de termos fundamentais de Freud, por exemplo. Sua aproximação com a
linguagem matemática, diferentemente dos conceitos expressos em palavras,
guarda relativa fidedignidade quando traduzidas entre diferentes idiomas,
afinal, um x pode representar a mesma coisa em qualquer lugar do mundo.
Assim, Lacan insere letras em uma álgebra, que irão compor seus
matemas. O S de significante vem se desdobrar em S1, o significante primeiro,

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com o qual o sujeito se identifica, ou melhor, os primeiros significantes com os
quais o sujeito se engaja na tentativa de dar mais consistência ao seu ser.

S1: o significante-mestre é uma referência particular do sujeito (trata-


se de um número bastante limitado de significantes) que se
exemplifica lidimamente por seu nome próprio. É na medida mesma
em que um nome próprio é uma representação extremamente
particular de um sujeito que ele é intraduzível. Contudo, Lacan
observa que, antes de ser um significante, o significante um, S1, é um
enxame (essaim, em francês, apresentando uma homofonia com S-
Un) de significantes singulares do sujeito. Mas, como um significante
não possui isoladamente potência de representação — este é o
princípio que rege a lógica do significante —, S1 está sempre situado
numa referência a S2, isto é, numa referência à diferença em relação
a S2. (Jorge, 2008, p. 83-84)

Ou seja, o sujeito se identifica a um significante mestre, S1, ou a um


conjunto limitado deles que, como sabemos, só podem representar o sujeito
quando referido a outros (S2), tal qual a lógica do funcionamento dos
significantes. Assim, esses primeiros significantes que o sujeito se aliena só
tomam sentido quando outros significantes (S2) são com eles pareados, por
diferenciação, conferindo assim o valor de S1 retroativamente, apenas a
posteriori, depois, embora se trate aqui de tempo lógico, e não cronológico, em
que S2 vem retroagir sobre o S1, conferindo a ele seu efeito de significação do
sujeito. O S2 constitui então “o saber do Outro, ou seja, o conjunto faltoso dos
significantes, é uma das formas de se escrever A, o Outro. S2 designa todos os
significantes que não têm valor de S1, de marca fundadora para o sujeito”
(Jorge, 2008, p. 84). Vejamos:

S1 S2

Podemos ler o seguinte: o efeito de S2 retroage sobre o S1 conferindo a


este último seu valor (parcial) de representante do sujeito do inconsciente, isto
é, do sujeito barrado e dividido, pois, como vimos, o resultante desta operação
é o sujeito barrado que resiste à significação, na medida em que só pode ser
representado parcialmente, pelo S1 em referência ao S2. O sujeito barrado do
inconsciente é o resultado desta operação, que é a de alienação.

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Se o significante vai representar um sujeito para outro significante, este
outro o fará em relação a outro e assim sucessivamente, de modo que, como
os números inteiros, 1, 2, 3, 4, 5, 6... a cadeia não se fecha, não há significante
que por si só dê conta de significá-lo, daí a divisão do sujeito. Logo, S2
representa todo o conjunto da cadeia significante, que é faltante.

TEMA 3 – O OUTRO

Nessa sua formalização de conceitos em letras e matemas e fórmulas,


Lacan insere a letra A, maiúscula, inicial de Autre, que em francês significa
Outro, para se referir a uma alteridade (qualidade do que é outro, distinto) em
relação ao sujeito, que é a alteridade própria da linguagem, bem como essa
estranheza que ela representa quando tentamos nos colocar em palavras. O
Outro é um lugar, o lugar dos significantes, como se fosse um dicionário.
Ora, a linguagem que falamos, nosso idioma, por exemplo, o português,
é muito anterior a nós, assim como nossos nomes próprios, que de próprios
não têm nada, posto que nos foram dados antes mesmo de a gente nascer, e
que acontece de a gente nem gostar. Os desejos de nossos pais em relação ao
que seremos e como iremos levar a vida que nos foi dada e cuidada em boa
medida por eles, bem como o próprio lugar que já nos é reservado antes
mesmo de nascer, esse desejo de que casemos, de que sejamos médicos,
advogados ou psicanalistas, enfim, ele se expressa em forma de linguagem,
em significantes que condicionam nosso desejo.
A linguagem também nos ultrapassa, como o atestam as inscrições nas
lápides após a morte, ou as obras que deixamos. Getúlio Vargas, por exemplo,
em sua carta de suicídio, disse que saía da vida para entrar na história, ou
seja, inscrever seu nome em um tempo que lhe ultrapassava como ser vivente.
O Outro (A) de Lacan nos remete a essa alteridade da linguagem na qual nos
expressamos, porém, sempre de forma um pouco estranha, meio incompleta.

O Outro é o lugar do significante, é o registro do simbólico, que


Lacan denomina de Outro na medida mesma em que o campo dos
significantes é faltoso, é incompleto e nele há sempre a possibilidade
de introduzir, por meio de um ato criativo, um novo significante.
(Jorge, 2008, p. 92)

Acontece que esse Outro, ele mesmo, sendo o lugar dos significantes,
ou seja, onde vamos buscar as palavras para nos expressar e as palavras que
nos constituem, nossos rótulos, nossos ideais simbólicos, é, ele mesmo,

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furado, no sentido de que em si próprio ele não se encerra, é um campo aberto,
em que se pode sempre inserir um novo significante.

A bateria dos significantes tem uma estrutura “descompletada”, ela é


homóloga à série de números inteiros: ambas são uma série infinita,
seu termo derradeiro não existe, pois há sempre a possibilidade de
nelas se incluir mais-um significante ou mais-um número. O que
Lacan chamou de S(A) é precisamente aquele significante, S, que
indica a incompletude do Outro (A), que é por isso mesmo
perpassado pela barra tal como o sujeito, S. Tal denominação, S(A),
pode ser equiparada ao número transfinito introduzido por Cantor
para nomear o último número da série de números inteiros que,
evidentemente, não há. (Jorge, 2008, p. 92)

É somente na medida mesma em que o Outro é vazado, ou seja, que


comporta uma falta inerente, que ele pode desejar, visto que só se deseja
aquilo que falta. Nesse sentido, o desejo assume a característica metonímica,
isto é, de deslizamento, deseja-se sempre outra coisa, sempre outra coisa.

TEMA 4 – O INCONSCIENTE É O DISCURSO DO OUTRO

Freud descobriu também uma determinada alteridade que atravessa o


sujeito, algo que se lhe afigura como sendo exterior a si, e que é a noção
própria de inconsciente. Foi nesse inconsciente dito e escutado nas suas
formações discursivas que Lacan vislumbrou a noção do Simbólico, e o
chamou de Autre, Outro. Um lugar simbólico em que estão os significantes que
serão significativos para a determinação de um dado sujeito, haja vista que “O
sujeito é determinado pelos significantes do Outro” (Quinet, 2012, p. 22).

O grande Outro como discurso do inconsciente é um lugar. É o


alhures onde o sujeito é mais pensado do que efetivamente pensa. É
a alteridade do eu consciente. É o palco que, ao dormir, se ilumina
para receber os personagens e as cenas dos sonhos. É de onde vêm
as determinações simbólicas da história do sujeito. É o arquivo dos
ditos de todos os outros que foram importantes para o sujeito em sua
infância e até mesmo antes de ter nascido. O grande Outro, em
Lacan, se escreve com a inicial maiúscula e assim dispensa o
adjetivo “grande”, pois já se sabe que se trata do Outro, que se
distingue do (pequeno) outro. A letra que aparece nos matemas para
se referir ao Outro é A, do termo Autre, em francês. E como matema
não se traduz, o Outro é sempre referido com a letra A. em todas as
línguas e nos matemas de Lacan. (Quinet, 2012, p. 20-21)

Àquela pergunta que se faz para as crianças, sobre o que querem ser
quando crescer, o sujeito vai se engajar em respondê-la para si mesmo,
sempre com significantes que lhe foram transmitidos, às vezes impostos mais
incisivamente, e com os quais ele se identifica ou, termos lacanianos, se aliena.

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Os significantes que irão nos representar para o mundo e determinar nossa
história, a começar pelo nosso nome próprio, que não nos é dado escolher, nos
serão oferecidos desde esse lugar, o campo do Outro, a princípio pelos pais ou
avós, depois pela família, depois pela escola, pela cultura, pela mídia, pelos
discursos que circulam na sociedade e que ouvimos, e que atravessam
também essas pessoas da família. Significantes que se insinuam e seduzem o
sujeito com uma promessa de identidade e reconhecimento, de consistência.
Ao designar o inconsciente como o discurso do Outro, Lacan vai
especificar seu lugar na relação analítica, supostamente dialógica, isto é, entre
duas pessoas, introduzindo aí o terceiro termo desta relação. Entre analisando
e o analista existe o Outro, o inconsciente, que os atravessa aos dois,
permeando a relação. Assim, o Outro tal como especificado por Lacan não é o
pequeno outro, o semelhante, imaginário, mas um lugar simbólico. No entanto,
“apesar do que Freud acrescentou a essa advertência através de sua teoria da
miragem narcísica, o psicanalista continua a se embrenhar cada vez mais na
relação dual [...]” (Lacan [1956], 1998, p. 466). Pressupor um diálogo, entre
dois termos ou, neste caso, dois sujeitos, é um erro contra o qual o psicanalista
não pode deixar de estar advertido.

Vemos que, embora a psicanálise consista na manutenção de uma


situação combinada entre dois parceiros, que nela se colocam como
o psicanalisante e o psicanalista, ela só pode desenvolver-se ao
preço do constituinte ternário, que é o significante introduzido no
discurso que se instaura, aquele que tem nome: o sujeito suposto
saber, esta uma formação não de artifício, mas de inspiração, como
destacada do psicanalisante. (Lacan [1967], 2003. p. 254)

Ao desconhecer a função do significante puro, isto é, do próprio sentido


como emergente da articulação significante enquanto tal, os analistas pós-
freudianos se deixaram fixar no eixo imaginário, chegando a oferecer a “parte
sadia” de seu ego como modelo identificatório para o analisante.

Aquilo a que Lacan se referiu como seu “retorno a Freud”, na década


de 1950, envolveu um retorno à importância do inconsciente, em
contraste com a ênfase no ego que tanto predominava na “psicologia
do ego” da época, e que hoje continua tão preponderante em muitas
escolas de psicologia e psicanálise. Na medida em que o ego é,
essencialmente, aquilo que vemos como parte de nós, aquilo a que
nos referimos ao dizer “eu”, aquilo que combina com nossa
autoimagem, o ego exclui tudo que consideramos estranho ou alheio,
todos os pensamentos e desejos que escapam sob a forma de
equívocos (lapsos de linguagem, atos falhos etc.) pelos quais
negamos nossa responsabilidade. Ao privilegiar o que os pacientes
efetivamente diziam, e não o que pretendiam dizer, ao frisar as
ambiguidades e lapsos que apareciam em suas falas, Lacan, como

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Freud, deu prioridade ao inconsciente em relação ao ego. (Fink,
2018, p. 47-48)

Lacan insiste no fato de que a única autoridade em uma análise não é a


do analista, como um mestre do saber, ao seu modelo de viver ou de encarar
as coisas, tampouco ao seu ego, mas a autoridade das manifestações do
inconsciente, isto é, dos lapsos, atos falhos, das palavras que o analisando se
vale para contar alguma coisa, sua escolha de significantes e a ambiguidade
que neles se verifica. Em poucas palavras, ao Outro tal como se manifesta no
discurso do analisando, sempre alhures, acessível a não ser pelas formações
do inconsciente.

O fato de falarmos revela estarmos sempre dirigidos ao Outro. O


modo como falamos, o modo como nos apropriamos das palavras e
escolhemos significantes testemunha uma organização de nossa
subjetividade que é comandada por esse Outro, por esse referente. O
inconsciente se justifica pelos efeitos da fala sobre o sujeito. Isso se
traduz pelo aforismo lacaniano que diz que “o inconsciente é o
discurso do Outro”. É o Outro que vigora no que temos de mais
íntimo, o que faz com que sejamos um pouco desconhecidos para
nós mesmos. Não é à-toa que ficamos tão ligados no saber que pode
vir dos outros, que, de alguma forma, “encarnam” para nós esse
Outro que nos é precioso. (Maurano, 2006, p. 29)

Esse saber suposto no Outro e que aparece também na última citação


direta de Lacan, acima, sob o nome de sujeito suposto saber, ainda nos
ocupará em etapas posteriores. Agora, no entanto, cabe apenas destacar que
é esse Outro, que atravessa o sujeito com seus significantes e que instaura
neste uma divisão constitutiva, emprestando a ele significantes que o
representarão ao dividi-lo que em Lacan é o inconsciente, naquilo que ele se
estrutura como linguagem. E, também, que esse Outro deseja, já que nele se
pode sempre inserir um novo significante sem que se possa circunscrever o
real em jogo.

TEMA 5 – A SEPARAÇÃO

Vimos que na operação de alienção, uma porção do ser do sujeito


resiste à sua inscrição no campo do Outro, pelo significante, e que essa porção
barrada do sujeito, resistente à significação, coincide com a noção de sujeito do
inconsciente, o sujeito dividido por esta operação de alienação S. Na
constituição do sujeito, porém, Lacan introduzirá uma segunda operação
psicológica ou processo psíquico, que é a separação. Ela se dá em um
segundo momento, que não é cronológico, mas lógico, o que também vai
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delimitando a psicanálise e o processo de constituição do sujeto em relação às
concepções desenvolvimentistas.
Se, na alienação, o sujeito deve optar por um dos vetores do conjunto, e
acaba optando pela inscrição no simbólico, cedendo para isso parte do seu ser,
(escolhe a vida e fica com a vida mutilada, sem a bolsa ou sem a liberdade,
nos exemplos de Lacan), na separação o que se dá é uma superposição, mas
em relação ao que falta nos dois conjuntos. Isso ocorre porque na separação a
falta a ser do sujeito do inconsciente, resultante do primeiro processo de
alienação, vem a se somar, por assim dizer, à falta do Outro, à falta de um
significante no campo do Outro que o inscreve como (A), no qual se pode
sempre inserir um novo significante, que lhe estrutura assim por ser aquele
binário.

Uma falta é, pelo sujeito, encontrada no Outro, na intimação mesma


que lhe faz o Outro por seu discurso. Nos intervalos do discurso do
Outro, surge na experiência da criança, o seguinte, que é
radicalmente destacável - ele me diz isso, mas o que é que ele
quer? Nesse intervalo cortando os significantes, que faz parte da
estrutura mesma do significante, está a morada do que, em outros
registros de meu desenvolvimento, chamei de metonímia. É de lá que
se inclina, é lá que se desliza, é lá que foge como o furão, o que
chamamos desejo. O desejo do Outro é apreendido pelo sujeito
naquilo que não cola, nas faltas do discurso do Outro, e todos os por-
quês? da criança testemunham menos de uma avidez da razão das
coisas do que constituem uma colocação em prova do adulto, um por
que será que você me diz isso? sempre re-suscitado de seu fundo,
que é o enigma do desejo do adulto. (Lacan [1964], 1985, p. 203)

A operação de separação, portanto, institui no sujeito dividido o desejo


enquanto desejo do Outro, na medida em que o enigma do desejo do Outro
vem a causar o desejo do sujeito (Que queres?). Para que este, o sujeito, se
descubra desejante, ele há que se confrontar com uma falta no campo do
Outro. É a partir da descoberta dessa falta no campo do Outro que o sujeito
poderá, também, se desvencilhar das identificações primordiais, dos
significantes mestres (S1) que o constituíram dividindo-o e, desse modo,
ascender seu desejo à uma nova potência, enlaçando-o nesse vácuo que se ali
se localiza, entre os significantes, isto é, nos espaços em que o sentido, no
campo do Outro, falha e se abre para novas possibilidades além daquelas
experimentadas.

Com a queda dessa identificação primordial, institui-se uma hiância


na relação do sujeito com o campo do Outro a partir da qual o sujeito
desenvolve um contato dialético com o universo simbólico. É a partir
da instauração dessa queda que Lacan pensará por que o sujeito é
não-todo alienado ao campo de suas identificações simbólicas e
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separado de uma nociva relação dual com o Outro materno,
desenvolvendo-se enquanto sujeito desejante a partir da inscrição
desse ponto de falta. (Zanola; Lustoza, 2019)

Importante então notarmos que, se na alienação, o Outro nos é


oferecido com a ilusão de completude, de que poderemos nos alienar a ele e
assim dar sustentação e consistência sombólica ao nosso ser, na segunda
operação lógica, a da separação, o Outro é apresentado como faltante, e essa
falta no campo do Outro se conjuga à falta a ser do sujeito do inconsciente, de
modo que o desejo do sujeito, em Lacan, é desejo de desejo.

NA PRÁTICA

Tomemos como exemplo do processo de separação um trecho de um


caso clínico, que chamaremos de Fernando. Ele veio para a consulta porque
viveu algumas crises de angústia e choro, e não tinha a menor noção de onde
elas provinham e do que tinham a ver com ele, uma vez que não percebia nada
de errado consigo próprio nem com seu modo de funcionamento na vida.
Apenas as crises.
Fernando refere-se a si mesmo como uma pessoa de altíssimo
rendimento, muito rápido em aprender, empreender e fazer dinheiro, e por isso
um pouco sem paciência em seu ambiente de trabalho. Sua ascensão à uma
carreira de sucesso era sempre referida como rápida, meteórica até, e ele a
remontava inclusive a uma cena infantil, que era o fato de que ele próprio
nascera prematuro com apenas sete meses.
Seus ideais eram figuras que se tornaram bilionários também rápido
demais, como Steve Jobs, Elon Musk e Bill Gates, e suas conquistas e
resultados eram almejados por Fernando como sendo seus objetivos, aqueles
que ele aprendeu desde muito a desejar. Sucesso financeiro estrondoso e
rápido, e o reconhecimento que essas figuras gozavam por terem alcançado
tamanha façanha.
Nem tudo na nossa vida, porém, acontece como acontece na vida de
nossos ideais, e eis que uma angústia agora lhe perpassa o corpo e ele não
sabe sobre ela. As sessões vão se desenvolvendo e seu trabalho vai aos
poucos tomando nelas um espaço cada vez maior, de problematização.
Fernando começa também a fantasiar sobre a possibilidade de largar tudo e ir
morar na Bahia, fritar pastéis e ser feliz, segundo suas próprias palavras.

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A análise se desenvolveu de uma maneira sinuosa, que não poderemos
detalhar nesse espaço, mas, para efeitos de ilustração, Fernando se alienara
aos significantes de alta performance, e não foi sem uma boa dose de angústia
e ansiedade que ele pôde perceber que esse foi sempre o ritmo de seu desejo,
que lhe foi oferecido para ser o seu e que acabou sendo, mesmo quando já
não funcionava mais. Ele estava muito acelerado desde que nascera, e
começava a querer tirar o pé, desejar de modo diferente, e é depois disso que
ele amadurece e ensaia outras vias, para além daqueles ideais tão
aparentemente completos e inatingíveis.

FINALIZANDO

O conceito de alienação participa da constituição do sujeito em


psicanálise, e é concebido e especificado por Jacques Lacan para detalhar o
processo de divisão do sujeito em relação ao significante. Ao se alienar aos
significantes que lhe são oferecidos pelo Outro, a criança o faz cedendo uma
parti de si, que o significante não abarca, restando um furo na identidade
simbolicamente constituída.
O significante só pode representar um sujeito para outro significante, o
que instaura uma exterioridade da linguagem em relação ao sujeito. Mesmo
assim ele adere aos significantes primordiais, S1, como seu nome próprio, e
alguns outros significantes que, contudo, só o representarão para outros
significantes, que chamamos de cadeia de significantes, S2. É o S2, portanto,
que confere significação retroativa ao S1, deixando assim um resto, que é o S,
o sujeito do inconsciente.
O S2 é uma das formas de escrever o Outro, outra forma é A, ou melhor
A barrado: A, porque sendo o lugar dos significantes, nesse campo do Outro
sempre se pode inserir um novo significante sem que se possa, contudo, defini-
lo. Esse Outro nos perpassa, com seus significantes, instaurando em todos nós
o desejo que passa a ser o nosso, e que se orienta na direção desse suposto
significante que cessaria o desejo, do Outro e o nosso, e que, no entanto, não
existe. Esse Outro fala em nós, na medida em que ele próprio tem sua
estrutura, a qual aderimos e que, no entanto, nos divide, enquanto sujeitos.
É o fato de ele ser barrado, A, que faz com que seja possível que a falta
que constitui o S venha a se somar à essa falta do Outro, produzindo um
reconhecimento pelo sujeito dessa falta, ou seja, de uma incompletude
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estrutural, inexorável, o que separa o sujeito para que ele possa desejar um
desejo mais próprio, construí-lo mesmo em análise, um desejo não tão
alienado.

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REFERÊNCIAS

CABAS, A G. O sujeito na psicanálise de Freud a Lacan: da questão do


sujeito ao sujeito em questão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

FINK, B. Introdução clínica à psicanálise lacaniana. 1. ed. Rio de Janeiro:


Zahar, 2018.

JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan. As bases


conceituais. 5. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

LACAN, J. A Proposição de 9 de outubro de 1967. In: Outros escritos. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

LACAN, J. (1964/2008). O seminário, livro 11: os quatro conceitos


fundamentais da psicanálise. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

LUSTOZA, R. Z.; ZANOLA, P. C. Alienação e separação no Seminário 11 de


Lacan: uma proposta de interpretação. Revista Tempo Psicanalítico, v. 51, n.
2, Rio de Janeiro, jul./dez. 2019, p. 121-139.

MAURANO, D. A transferência: uma viagem rumo ao continente negro. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.

QUINET, A. Os outros em Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

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