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Abertura desta Coletânea

Na abertura de sua coletânea de Escritos, Lacan (1966) levanta um


questionamento sobre o lugar do homem enquanto referência. de Buffon: “O estilo é o
homem”. Sobre esta citação, ele comenta a banalidade com que ela é repetida, sem que
se dê muita atenção ao fato de que o homem não é mais uma referência tão segura.
[Falar sobre como Descartes fundou o pensamento moderno de que o homem é o centro
de toda a verdade, sobre a dualidade mente-corpo e seus desdobramentos no
pensamento contemporâneo?]

Sobre isso, Porto & Vieira (2019), destacam que a psicanálise deslocou o homem
de sua posição de referência incontestável ao apontar para algo que se desenrolava em
outra cena:

Para Lacan, esse Outro lugar – que podemos chamar de inconsciente – é o lugar do
discurso. É no campo do Outro que o sujeito se constitui como efeito de linguagem. A
descoberta do inconsciente põe em cena um outro discurso que não se origina no eu,
mas que tem o sujeito como sua consequência. Nesse sentido, Lacan (1966/1998, p. 9)
aponta para a “fantasia do grande homem” que nos levaria, erroneamente, a fundir o
estilo ao homem.

Dessa forma, enquanto pensadores como Descartes e Buffon apostavam no


cogito, na consciência, Freud e posteriormente Lacan subvertem a ideia de que o
homem tem pleno controle sobre o que escreve. Se Buffon acreditava ser possível
escrever de forma ordenada, planejada, para que o autor exprimisse sua verdade de
forma completa através de sua escrita, Freud demonstra que a verdade do sujeito está
justamente ali onde ele tropeça em suas palavras.

Para Costa (2014),

A escrita de Lacan provoca um rompimento na adequação das palavras comas coisas, de


modo que aquele a quem ele endereça sua transmissão nunca está plenamente
familiarizado com ela. Seus leitores e ouvintes ficam em uma certa posição de exílio.
Seu estilo convoca a nos colocarmos na posição de sujeito, na medida em que devemos
abdicar de uma certa condição de gozo, abrindo mão da certeza da propriedade do
objeto.

A esta fórmula ele acrescenta, mais adiante no texto: “O estilo é o homem a


quem nos endereçamos?”. Aqui, Lacan evidencia a questão do endereçamento, presente
no seminário da carta roubada. Na clínica, o analista é a quem as questões, os
significantes que constituem o sujeito, são endereçadas, o que para Lacan é mais
fundamental do que as interpretações ou intervenções do analista. Assim, em sua
abordagem sobre a problemática do estilo, Lacan evidencia a importância da inclusão
do interlocutor.

A quem se endereça o sujeito a não ser ao Outro, que não é o semelhante, mas o lugar
da alteridade por excelência? É nesse Outro, entendido como a própria ordem da
linguagem, que o sujeito do inconsciente se constitui. Nesse ponto, é interessante
destacarmos que uma das definições lacanianas do inconsciente é, precisamente, o
discurso do Outro, do qual o sujeito recebe sua própria mensagem de maneira invertida
(Lacan, 1957/1998). Ou seja, é a partir do que retorna desse discurso (que parece vir de
“outro lugar”), que se dá a surpresa com a qual o sujeito se defronta quando se depara
com algo que destoa, e que provoca efeitos de deslocamento, em relação a seu próprio
enunciado. Um dos exemplos disso é o ato falho, pois o sujeito se reconhece, mas, ao
mesmo tempo, se estranha no que diz.

Com esse passo, Lacan introduz, entre o estilo e o homem, a dimensão do inconsciente
como lugar do Outro. Isso indica que o estilo, em vez de encarnado na figura ilustre do
grande homem, estaria relacionado a um ponto de alteridade na obra – esse ponto de
onde o sujeito emerge em sua cisão, deslocado em relação a seu próprio enunciado. No
lugar antes ocupado pelo homem, surge o sujeito do inconsciente, dividido pela
condição de ser puro efeito de linguagem, e descentrado do lugar que lhe fora atribuído
na lógica cartesiana. Ali onde o homem pensava ser, ele mesmo, a joia da coroa do
estilo, advém, justamente, isso que o destitui de seu trono e que age nele, sem pensar.
Capítulo 1 – Seminário sobre a carta roubada
O primeiro capítulo dos Escritos de Lacan trata do seminário sobre a carta
roubada. De início, Lacan expõe a tese de que o princípio do automatismo de
repetição (Wiederholungszwang) está relacionado à insistência da cadeia
significante. Esta, por sua vez, está correlata à ex-sistência do sujeito do
inconsciente

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