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CURSO: FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE: Teoria e Clínica

TURMA ONLINE ON1 2023

ALUNA: DANNYELLE MEIRELES MAGALHÃES DE MATTOS

MÓDULO III

Inconsciente: que se escreve em fala e se lê em escuta

Os símbolos efetivamente envolvem a vida do homem numa rede tão total que
conjugam, antes que ele venha ao mundo, aqueles que irão gerá-lo "em carne e
osso"; trazem em seu nascimento, com os dons dos astros, senão com os dons das
fadas, o traçado de seu destino; fornecem as palavras que farão dele um fiel ou um
renegado, a lei dos atos que o seguirão até ali onde ele ainda não está e para-além de
sua própria morte; e, através deles, seu fim encontra sentido no juízo final, onde o
verbo absolve seu ser ou o condena - a menos que ele atinja a realização subjetiva do
ser-para-a-morte. (LACAN, 1953, p. 280)

O inconsciente, conceito norteador da psicanálise, nos dá notícias de sua


materialidade fundamentalmente por meio da linguagem e aponta para uma estrutura
presente antes mesmo do sujeito existir, daí o aforisma lacaniano: “O inconsciente é
estruturado como linguagem” (LACAN, 1964, p. 27). O presente trabalho visa
discorrer sobre as ideias que envolvem o conceito de inconsciente para Lacan e
relacioná-lo ao trabalho do psicanalista na clínica, como uma proposta ética de escuta
e manejo.
Para Lacan, o inconsciente é uma construção, não uma descoberta. É por essa
linha que irá iniciar suas formalizações numa tentativa de se aproximar às ideias
iniciais de Freud e se distanciar de qualquer caminho metafísico ou imaginário deste
conceito que, segundo ele, sempre aponta para uma estrutura. Como diz: “O
inconsciente de Freud não é de modo algum o inconsciente romântico da criação
imaginante. Não é o lugar das divindades da noite”. (LACAN, 1964, p. 31)
É por este viés que Lacan relaciona estruturalismo e linguística, entendendo
que existe “um jogo combinatório operando em sua espontaneidade, sozinho, de
maneira pré-subjetiva e é esta estrutura que dá seu estatuto ao inconsciente”. (LACAN,
1964, p.26). O autor busca em Saussure uma referência na linguagem para explicar o
inconsciente, mas subverte a lógica linguística entendendo que para a psicanálise o
sentido permanece em aberto até que surja um outro significante que lhe dê um norte
de significação:
Desse ponto de basta, encontrem a função diacrônica na frase, na medida em que ela
só fecha sua significação com seu último termo, sendo cada termo antecipado na
construção dos outros e, inversamente, selando-lhes o sentido por seu efeito
retroativo. (LACAN, 1964, p.820)

Esta lógica marca uma subjetividade, como uma capacidade de fazer rede com
os significantes que são dados pela experiência singular do sujeito e, Longo (2006)
afirma que se o sujeito é da linguagem, a “verdade” se dilui a um espectro de ficção, já
que se monta a partir de uma criação, uma representação do que é. Assim, o que o
estruturalismo traz de empréstimo à Psicanálise:
O homem, portanto, gira em torno da língua, sem centro, sem purificação de
linguagem que a torne transparente à verdade, sem a promessa de redução da
polissemia, sem unidade de sentido. A partir do estruturalismo, a linguagem como
discurso torna-se o único testemunho objetivo da identidade de um sujeito, cuja
única saída é viver no vigor de sua ambiguidade. (LONGO, 2006, p. 40/41)

Para Lacan, sujeito não é dado a priori, é constituído a partir da linguagem.


Aparece entre significantes, na hiância que o aliena no sentido que se diz. Não há
relação fixa entre significante e significado, há uma barra que deixa o sentido
desconhecido e marca um sujeito cindido. Em análise, algo se fala no sujeito, se impõe
a uma fala. Nota-se aí que há um saber para além do eu (moi) e que a linguagem é o
que enlaça o inconsciente ao corpo por significantes que se repetem e operam em uma
produção fantasmática, à revelia de uma escolha. Significantes que se mostram em um
elemento ausente em si, mas que demandam de uma articulação para existir.
A hiância introduzida pela ausência desenhada, e sempre aberta, permanece causa de
um traçado centrífugo no qual o que falha não é o outro enquanto figura em que o
sujeito se projeta, mas aquele carretel ligado a ele próprio por um fio que ele segura
- onde se exprime o que, dele, se destaca nessa prova, a automutilação a partir da
qual a ordem da significância vai se pôr em perspectiva. Pois o jogo do carretel é a
resposta do sujeito àquilo que a ausência da mãe veio criar na fronteira de seu
domínio. (LACAN, 1964, p. 66)

A estrutura de linguagem está antes mesmo do nascimento do sujeito, é


constituinte, presente, repetida e elaborada. É esquecida e relembrada em ato, em fala.
Um lugar desconhecido ao eu, que causa embaraço mas mostra o buraco. A fenda em
que o sujeito é enlaçado por significantes fazem a borda do real, daquilo que não tem
nome pela impossibilidade de ter. A brincadeira do inconsciente é o das palavras
soltas em que o Eu transforma em fala por um filtro baseado em regras apreendidas e
aceitas socialmente, mas o que escapa é o inconsciente a partir de suas formações
(sintoma, chistes, atos falhos, esquecimentos, etc). A técnica da psicanálise depende
inteiramente da fala e da linguagem, de um movimento que se constrói entre fala e
escuta.
Tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa frase pronunciada, escrita, alguma coisa
se estatela. Freud fica siderado por esses fenômenos, e é neles que vai procurar o
inconsciente. Ali, alguma outra coisa quer se realizar - algo que aparece como
intencional, certamente, mas de uma estranha temporalidade. O que se produz nessa
hiância, no sentido pleno do termo produzir-se, se apresenta como um achado. É
assim, de começo, que a exploração freudiana encontra o que se passa no
inconsciente. (LACAN, 1964, p. 32)

Lacan (1964) diz que o desejo convoca o sujeito para o deslizamento, uma
movimentação contínua de mudança de significantes em passagens metonímicas. Já o
sintoma fixa o sujeito a alguns significantes que falam por ele e que produzem uma
mensagem pronta a esse sujeito em um movimento metafórico. Transpor as figuras de
linguagem ao funcionamento do inconsciente é o que parece fazer sentido a uma
leitura simbólica dos problemas trazidos na clínica.
Se o sujeito é o sujeito do significante - determinado por ele -, podemos imaginar a
rede sincrônica de tal modo que ela dê, na diacronia, efeitos preferenciais. Entendam
bem que não se tratam de efeitos estatísticos imprevisíveis, mas que é a estrutura
mesma da rede que implica os retornos. (LACAN, 1964, p. 71)

Tendo como instrumento a fala, a Psicanálise só é capaz de operar a partir de


um discurso endereçado e em constante elaboração, tendo em vista que há um outro
que fala, um terceiro – o sujeito do inconsciente. Assim, a fala aponta para o que o
inconsciente oculta, por uma construção em cadeia que inaugura um processo de
significação particular. Como uma gramática própria, desenhando um campo subjetivo
e simbólico desse sujeito. Longo (2006, p. 47) salienta a noção de significante para
Lacan: “ o significante é o que representa um sujeito para outro significante — é
crucial para a conceituação de sujeito. Ela pode ser abordada na relação entre sujeito e
saber inconsciente; entre sujeito e lógica; entre sujeito e castração”.
A castração, entendida por Lacan como momento de entrada do sujeito na
linguagem, é o que o institui ao mesmo tempo que abre a possibilidade de interesse a
outros objetos de desejo, introduzindo também uma possibilidade de movimento
metonímico de criações deste sujeito. Logo, o que se fala em discurso é uma tentativa
de escrita do sujeito do inconsciente em ato e o que se escuta na clínica é uma leitura
decodificada dos elementos significantes, que se devolve ao analisando possibilidades
de incertezas da sua própria narrativa. O desmonte da produção de sentido e
identificações do sujeito é o que torna possível a passagem de um discurso imaginário
do inconsciente para uma apreensão simbólica do mesmo. Lacan (1957, p. 521)
mostra: “penso onde não sou, logo sou onde não penso. Palavras que, para qualquer
ouvido atento, deixam claro com que ambiguidade de jogo-do-anel escapa de nossas
garras o anel do sentido no fio verbal”. Isso aponta algo do desejo, o lugar da dúvida,
o que falta no “texto”.
Se para a psicanálise o sujeito está submetido às leis da linguagem, em análise
é possível a atualização de um saber a partir da fala. O sujeito como suposto, que diz
para além do que é dito e a linguagem para além da fala. Em associação livre, se
pratica uma montagem e desmontagem de sentidos, um lugar de liberdade na
utilização da linguagem que foge das regras habituais de comunicação com os outros.
Onde não há necessidade de coerência ou tentativa de não contradição, já que o que se
ouve é o sujeito barrado, dividido e sem sentido predisposto.
A escuta flutuante do analista apresenta-se no corte, quando a atenção não se
prende a um sentido da fala do analisando. Quando abre questões para que surja um
dizer possível de outras significações, uma fala “nova” sobre o próprio sujeito que se
escuta. O discurso tem uma materialidade e dá notícia sobre uma verdade do sujeito.
Esta escuta de significantes sem julgamento de valor ou descoberta de um sentido, é o
que Lacan expõe como ideia de simbólico. Receber eticamente uma palavra sem
antecipar sua tradução, sem procurar encaixe, capturando tropeços da fala e
devolvendo dúvidas. Isso aponta um sujeito que surge na lacuna e é ele quem compõe
e atua na cena psicanalítica. É neste campo que se dá a ética da psicanálise,
implicando o sujeito ao seu próprio desejo. Lacan (1953, p. 281) diz que “esse próprio
desejo, para ser satisfeito no homem, exige ser reconhecido, pelo acordo da fala ou
pela luta de prestígio, no símbolo ou no imaginário”. O analista participa também
dessa cena do inconsciente elaborado em análise, criando também um efeito sob sua
estrutura, como diz: “A arte do analista deve consistir em suspender as certezas do
sujeito, até que se consumem suas últimas miragens. E é no discurso que deve
escandir-se a resolução delas”. (LACAN, 1953, p.253)
É na relação entre repetição e transferência que é possível perceber o que faz
furo no discurso. O que se repete e se elabora pelos efeitos dos desdobramentos das
cadeias de significantes que ali se produz. É neste enlace que é possível perceber a
força que as relações estabelecidas neste lugar causam. A ideia da análise é subjetivar
uma existência, como uma prática de criação de rumos mais próximos da verdade do
desejo do analisando com menos construções de discurso do Outro. O discurso social,
da linguagem que diz sobre o sujeito, se apropria do desejo do mesmo. Esquecer os
modos pré-fabricados de dizer, estranhar a própria linguagem. Duvidar do sentido
petrificado no sintoma e que descompassa as experiências sem que se perceba. É o que
o leva o sujeito a interrogar sobre sua própria posição.
O que se ouve na clínica é uma costura de imagens através da linguagem, o que
faz a ligação entre o imaginário e o real. Uma montagem de narrativa própria que
aponta para um sintoma, que diz sobre um significado que se perdeu no recalque e que
já não consegue colocar em palavra. Lacan, aproximando a estrutura do sintoma à
linguagem, diz que o sintoma é uma metáfora, que ocupa o lugar de outra coisa que foi
recalcada, mas que deixou um resto, que retorna em uma fixação de sentido. Na fala, o
sujeito saberá do seu sintoma retroativamente. É a fala direcionada ao analista que
permite que o texto do sintoma seja escrito. É uma possibilidade de se escrever com a
voz aquilo que não era possível se dar nome. Assim, o sintoma é possível de ser
reescrito, a partir da sua escrita em análise. Como uma história que pode desafixar seu
sentido em linhas criativas de significantes outros, construída de forma singular não
mais atrelada a expectativas. É na relação de transferência que o inconsciente se arma,
se mostra. Lacan (1964) coloca que a sessão de análise é o inconsciente em ato e a
sustentação de qualquer discurso é fonte de sofrimento psíquico. Quando se mudam as
posições de experiências da linguagem, mudam também as experiências do sujeito. A
linguagem cria o mundo e não seu inverso.
Esse corte da cadeia significante é único para verificar a estrutura do sujeito como
descontinuidade no real. Se a linguística nos promove o significante, ao ver nele o
determinante do significado, a análise revela a verdade dessa relação, ao fazer dos
furos do sentido os determinantes de seu discurso. (LACAN, 1960, p. 815)

Diante das ideias aqui expostas, julgo importante perceber que o lugar de
escuta deve estar afastado de uma via imaginária, que liga sujeito ao analista por uma
identificação narcísica ou mesmo de uma via simbólica que tenta atender à demanda
de algum lugar de encaminhamento ou diagnóstico, uma vez que:
Se conduzimos o sujeito a algum lugar, é a uma decifração que já pressupõe no
inconsciente essa espécie de lógica em que se reconhece, por exemplo, uma voz
interrogativa, e até o encaminhamento de uma argumentação. Aí está toda a tradição
psicanalítica para sustentar que a nossa só pode intervir nela entrando pelo lugar
certo, e que, ao se antecipar a ela, só consegue seu fechamento. (LACAN, 1960, p.
810)

Assim, a linguagem nos subjetiva bem como nos possibilita criar novas
posições. Analista e analisando montam a cena do inconsciente para que este fale, que
se escreva em significantes estimulados por uma leitura em escuta, uma via simbólica
que desamarre as metáforas condensadas em sentidos e possibilite um passeio de
significantes possíveis de outras escritas, outras elaborações que permita o sujeito
estar alinhado ao desejo que não se escreve, mas que estrutura esse outro que nos
habita – o inconsciente.

REFERÊNCIAS

LACAN, J. (1964) – O Seminário Livro XI: Os Quatro Conceitos fundamentais da


psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1979.

LACAN, J. (1957) – “ A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” In:


Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

LACAN, J. (1953) – “ Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” In:


Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

LACAN, J. (1960) – “ Subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente


freudiano” In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

LONGO, L. (2006) – Linguagem e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.

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