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Algumas notas sobre o ato

Ana Costa

Fiquei de trazer aqui algo sobre o tema do ato, a partir do que abordei em meu
último livro. Vou trazer algo disso e também algumas referências que tratei no Outrarte
em 2020. Neste momento, em função do pouco tempo que tive, trago somente algumas
notas.
De início, recorto passagens de dois seminários de Lacan: sobre a lógica do
fantasma e sobre a angústia. Em termos clínicos, duas questões orientam a elaboração
lacaniana: precisar os termos acting-out e passagem a ato. Seu desenvolvimento se dá na
relação à alienação ao fantasma, que Lacan irá desenvolver nesses seminários. Na lógica
do fantasma, a construção de um quadrângulo situando o avesso do discurso cartesiano,
a partir da frase “penso, logo sou”. O avesso, a posição de alienação ao fantasma que dele
é resultante, é apresentado no entrecruzamento dos círculos de Euler, na articulação
alienante sujeito/Outro. O avesso da frase cartesiana, a partir da posição inconsciente,
seria: “ou eu não penso, ou eu não sou”, como construção do vel da alienação. O que se
desdobra, do lado do sujeito, como “eu não penso”, é onde Lacan situa o isso, real do
inconsciente, e passagem ao ato. Do lado do Outro o “eu não sou”, sítio do significante
no inconsciente e a relação com o acting-out.
Aqui se estabelece o paradoxo do “eu”, que precisa se afirmar saltando a fenda da
inexistência de um referente, a partir da inconsistência do Outro. Ou seja, a inconsistência
daquele lugar garante de verdade, que nos laços sociais anteriores à ciência eram atributos
das divindades. Assim, “pensar” e “ser” adquirem uma pregnância inusitada, na medida
em que a legitimação de sua afirmação – na condição de parlêtre - é evanescente.
Ou seja, passar ao inconsciente, ao “eu não sou” – o outro lado do quadrângulo –
que é propriamente a posição da referência ao inconsciente, se dá como passagem ao ato.
A partir da alienação ao discurso, que não diferencia interior/exterior, situar o fundamento
do eu é uma passagem ao ato. É esse ato que funda o eu no lugar do vazio do sentido. É
uma proposição lacaniana a respeito da dinâmica da alienação. Na alienação ao discurso
instaurado a partir de Descartes, o eu só se constitui como passagem ao ato. É como
reconstituir o passo de Descartes, que funda o eu que pensa, sustentando um ser do eu. É
só dessa forma que se sustenta a posição de falante, reconstituindo interno/externo
moebianamente.
Ao retomar o passo de Descartes, Lacan situa a diferença com uma representação
imaginária do mundo, que se rompeu a partir da ciência – ou seja, essa representação que
produzia uma separação interno/externo a partir do garante de verdades divinas (mitos,
religiões politeístas e monoteístas). Na produção do mundo a partir da ciência, a única
garantia é esse “eu penso”. Esse “penso”, que se fundamenta no eu, é um salto no vazio.
É nesse sentido que Lacan propõe a instauração do eu como passagem ao ato no passo/ato
de Descartes. O eu é tão vazio quanto o ser que ele sustenta, porque na vida concreta o
ser é dependente da linguagem
O esquema desse seminário vai retomar as proposições sobre a alienação que
Lacan desenvolveu no Seminário 11. Mas é num seminário anterior, sobre o tema da
angústia, que acting-out e passagem ao ato irão tomar uma configuração clínica mais
interessante. Está no quadro, desenvolvido ali, que articula a relação entre dificuldade e
movimento, ao eixo de inibição, sintoma e angústia, que orientam essa relação. Ali, o
acting-out está na mesma relação com o impedimento que o sintoma. E a passagem ao
ato situa-se na mesma relação com o embaraço que a angústia. Ou seja, o sintoma constrói
uma resposta dentro do desdobramento significante da linguagem, e a passagem ao ato se
dá como ruptura dessa rede significante, no máximo embaraço que o lugar da angústia
coloca.
Neste seminário, Lacan propõe construções que me interessaram particularmente,
e que me detive no trabalho de meu livro. A primeira delas é a relação entre cena e mundo.
Parece banal, frente às complexidades das construções lacanianas, mas penso que se pode
tirar consequências interessantes. O tema da cena diz respeito à constituição de uma
janela, um enquadre que circunscreve uma possibilidade de registro imaginário, em que
significante e objeto deslizam num dentro/fora, obedecendo a uma certa lógica do
fantasma. É um recorte que possibilita uma determinada apreensão do mundo, de olhar e
ser olhado, de falar e ser falado, em que dualidades se estabelecem a partir de um ponto
não reconhecido na relação à demanda atribuída ao Outro. Elas estão colocadas na
abordagem da diferença entre acting-out e passagem ao ato. O acting-out mantém um
endereçamento – referido a um Outro que sustenta condições do discurso - constituindo
uma determinada configuração de cena, numa demanda de interpretação. A passagem ao
ato rompe a cena, sendo que os significantes, ordenadores de seu enquadre, caem.
Chama a atenção a contraposição que Lacan faz entre cena e mundo, utilizando
este último termo para diferenciar de algo mais estruturado no sentido de seu
endereçamento, como acontece na cena. Lacan menciona as condições da passagem ao
ato, em que o sujeito rompe a cena e é “jogado no mundo”. Mas ao que mesmo se refere
esse mundo? Poderíamos talvez pensar numa espécie de liberdade contingente e
transitória, em que se rompem amarras da repetição de uma cena fantasmática. Fora do
enquadre há o risco de se perder no mundo. Lacan lembra a expressão que se utiliza: “ele
virou fumaça”. Mas em muitos casos volta, como um filho pródigo, na reconstituição da
cena.
A relação que o autor faz entre cena e mundo é situada em dois tempos: primeiro
tempo, o mundo; segundo tempo o palco – a cena – em que fazemos uma montagem
singular desse mundo. Nos desdobramentos que vai fazendo, o autor reconfigura essa
contraposição inicial, na medida em que o que é designado de mundo se deve ao que lhe
é devolvido pelo palco, em que se armam essas cenas. Ou seja, o que chamamos de
mundo, ao longo do tempo e distintas referências culturais, deixa restos superpostos
resultantes de rupturas de cenas, que serão vividos sem preocupação com contradições.
Citando uma passagem:

O que a cultura nos veicula como sendo o mundo é um empilhamento, um


depósito de destroços de mundos que se sucederam e que, apesar de serem
incompatíveis, não deixam de se entender muito bem no interior de todos
nós. (p. 43)

Assim, nisso que denominamos mundo, lidamos com restos provenientes de


diferentes palcos, de quando estas cenas que dirigiam se romperam. Nesta passagem,
Lacan situa tanto um questionamento à História, quanto à proposição estruturalista de
Lévy-Strauss. Em relação à História, esta depende, em grande parte, do que dirige o
poder, nas datas de sua comemoração, ou com seus monumentos. Na crítica em relação à
proposta estruturalista, refere a impossibilidade de confundir o discurso da magia, com o
discurso da ciência, na medida em que entre eles há um corte, apesar de Lévy-Strauss
tentar homogeneizá-los. Ou seja, de um lado as narrativas da História, que não dão conta
da relação entre cena e mundo, na medida em que essas narrativas supõem fios amarrados
e contínuos, passíveis de serem reconhecidos em seus desdobramentos ao longo do
tempo. A História, com a orientação da sucessão, pouco consegue desprender-se da
posição dos conquistadores. Quanto à suposição de uma estrutura que se repete,
independente dos desdobramentos que as diferentes referências culturais imprimem, não
inclui os efeitos de corte, sem continuidade, que se processam nas estruturas discursivas
de diferentes tempos e culturas. Assim, tanto a História quanto a posição estruturalista,
não são dirigidas pela suposição dessa ruptura radical no discurso, tal como Lacan propõe
ali. Ruptura, aqui, não diz respeito somente a uma mudança de paradigma. Diz respeito
aos efeitos de ruptura em lógicas que dirigem os discursos. Uma das consequências
importantes da proposição do objeto a diz respeito justamente à importância dada à
operação de corte: corte e queda - sem substituição - ganha relevância enquanto operação
clínica.
Outra questão que ressalto, também do seminário sobre a angústia, trata-se da
passagem em que Lacan diferencia angústia e medo. Esta diferenciação vai me ajudar a
enunciar uma outra relação ao ato. A angústia é o que não engana, o sujeito está num
impasse, invadido em seu corpo pela angústia e despedaçado em sua unidade corporal.
Lacan situa que a angústia é o que não engana porque o sujeito perde os semblantes
fálicos, os enganos constituintes das ficções do viver que dão contorno ao vazio.
Diferente da angústia, o medo se situa diante de algo. Essa proposição de Lacan
parece um detalhe banal, mas se nos detivermos um instante ela pode surpreender. O que
significa esse diante de algo? Essa imagem que está ali, ela esconde e não esconde ao
mesmo tempo. Esse véu está por se desfazer, e o que vem é uma imagem que se torna
enigmática. Não é do lado do outro que se torna estranho, que mostra o avesso, é que a
imagem em si mesma se torna enigmática, mesmo que nomeada. No medo a imagem
parece adquirir um movimento próprio, como se tivesse uma intencionalidade que escapa
ao controle. Podemos evocar o exemplo do movimento das patas dos cavalos para o
pequeno Hans. São exemplos em que a imagem se anima, o que torna o objeto
desconhecido e que, apesar de nomeado, surge como sendo da ordem de um enigma.
Lacan trouxe descrições de Tchecov, de imagens que lhe causaram pavor, como no
exemplo de um vagão de trem vazio que passou na sua frente, um vagão fantasma em
movimento.
Lacan não se detém na questão do medo, ele está interessado em precisar o tema
da angústia. Tomo essa passagem porque me interessou particularmente. Situar o medo
como sendo diante de algo: algo que é nomeado, mas que seu movimento o torna
desconhecido. Essa imagem do que não entendo – esse enigma – tira uma apreensão pelo
saber, não é o saber que é convocado ali. O medo costuma se situar diante de um enigma
que toma vida própria, como algo que vai se mostrar, no risco de uma revelação repentina:
aquela imagem dá nome à Coisa.
No trabalho que apresentei no Outrarte tomei o exemplo da obra de Clarice
Lispector, em A paixão segundo G.H. para situar esse diante de algo. Não retomarei hoje
os detalhes da obra, coisa que fiz no trabalho que apresentei em 2020. Quero somente
insistir sobre a peculiaridade do medo na relação com uma imagem, imagem esta que me
fez recortar a expressão de Lacan “diante de algo”.
No trabalho de 2020 situei o tema da transgressão que se confunde com o
funcionamento da lei. A radicalidade da experiência da personagem G. H. não diz respeito
à transgressão, mas a um certo encontro de um ato que se confunde com um originário.
G.H. diz que não se trata de sexo, mas de amor, um amor específico, aquele que remete
a “O Deus”. Não é Deus, é “O Deus” – esse artigo (O) traz a divindade para uma
experiência sensível: o, aquele – que faz com que o Tu e o mim (não o “eu”) sejam uma
e mesma coisa. O Deus evocado é o do antigo testamento, aquele que diz “eu sou aquele
que é”. É a dimensão do ser, como um vazio no existente, e, nesse sentido, convoca o
tema da revelação, da epifania, ou seja, convoca uma verdade, não um saber. A partir
desse momento a narradora descreve a vertigem que se tornou a visão: desde o minarete
em que se transformou seu espaço, ela vê o desdobrar de civilizações no instante-já, uma
concentração do tempo, das referências religiosas e pagãs, das origens e dos começos da
civilização. É desde esse lugar que surge o Tu da invocação da Bíblia.
Lacan trabalhou essa função do Tu como invocação, transitando pelo Deus do
antigo testamento no seminário sobre as psicoses. Ele trata de se aproximar da crise que
provoca a loucura de Schreber, analisando detidamente a frase: “Tu és aquele que me
seguirá”. É interessante a diferença que Lacan faz dessa função do Tu, de quando ele é o
anzol do pequeno outro, que está para além do Tu, porque tem um escolhido que é
evocado numa comunidade de semelhantes. Ali está garantido o que ele denominou de
“anzol do pequeno outro”, porque o sujeito está implicado com outros, numa relação de
reconhecimento.
Esse Tu se diferencia do “Tu és...” que não supõe comunidade alguma. Ele trata
de diferenciar a invocação do Deus de Schreber, que não convoca o verbo ser numa
cópula com um predicado relativo ao pertencimento a uma comunidade de semelhantes.
Não há pequeno outro no caso de Schereber. É assim que ele analisa as frases
interrompidas na psicose, como uma reiteração do “Tu és...”, que por não fazer relação
com um predicado cai no vazio de Das ding.
O percurso de G.H. vai no sentido contrário ao de Schreber: é o esvaziamento da
função predicativa do verbo que a leva ao vazio do ser. A construção literária permite
esse trânsito. É o cruzamento do medo produzido pelo enigma diante da imagem daquilo
que não tem nome, e que por isso pode ser ficcionalizado como aquele que dá o nome e
cria a função predicativa do verbo.
Detive-me neste texto de Clarice para indicar um cruzamento pelos elementos que
estão em causa na questão do medo, como sendo diante de algo, uma imagem que escapa
do campo da representação. Uma imagem que apresenta, mas que não representa. Lembro
aqui a proposição de Didi-Huberman sobre a “mão negativa” das cavernas originárias:
uma imagem que faz signo, mas que não é signo. Toda a proposição que ele desenvolve
sobre os levantes leva em conta essa construção. Allouch retoma o trabalho de Didi-
Huberman sobre os levantes para sublinhar uma outra forma de tomar a relação com a
imagem. Diz respeito ao que ele chamou de analítica do celibatário, aquela que implica
não a lógica do fantasma, mas o “não há relação sexual”.

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