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O dever de interpretar, seis observações

Agnès Aflalo

O inconsciente interpreta

Durante a sessão, as formações do inconsciente, como o lapso, revelam a


existência da discrepância entre o que o analisante quer dizer e o que ele de fato
diz. É nessa discrepância que Freud situa o inconsciente que ele descobre, entre
o querer dizer e o dito. Tudo se passa, com efeito, como se o dito do analisante
visasse emergir um querer dizer, querer dizer que Lacan chama de desejo do
Outro. Ou seja, o inconsciente já interpreta, já produz ele próprio
interpretações[1]. Elas fazem ressoar o significante, mas podem também fazer
enigma, assumir a forma de alusão ou de oráculo, etc.

Uma primeira interpretação

A interpretação do analista é da mesma ordem que a do inconsciente. O


analista opera como ele, seguindo seu rastro. “O inconsciente estruturado como
uma linguagem” é fundado por metáforas e metonímias. A primeira produz o
sentido e a segunda o retém. O sintoma é uma metáfora significante, e o desejo,
um efeito de significado recalcado. A interpretação é então matéria de
significante, e incide sobre o desejo, negatividade pura, concebido como um
efeito de sentido. Ao interpretar, o analista acrescenta um significante que produz
um novo efeito de sentido. A verdade fala no lapso ou no ato falho. E a
interpretação faz surgir um novo efeito de verdade que se opõe ao efeito de
sentido anterior. Uma suspensão da sessão pode também escandir um instante
de ver e precipitar um momento de concluir.

Pontuar

A pontuação determina o sentido[2]. Se ela muda, o sentido também muda.


Interpretar é, portanto, pontuar a fala do analisante tratando-a como um escrito.
A pontuação do analista torna então o inconsciente legível na fala do analisante.
Por exemplo, a citação de um significante pode equivaler a colocar aspas no dito
do analisante e fazer surgir um novo sentido.
A pontuação faz com que o analisante ouça um “é você quem está dizendo”.
Conforme sua função de interpretação, ela introduz, portanto, uma discrepância
entre o querer dizer e o dito. É essa discrepância que permite ao sujeito se ouvir
falar[3].
A interpretação é julgada pelos efeitos de verdade que desencadeia. Mas
quanto mais o inconsciente é interpretado, mais ele consiste. Porque a cifragem
e a decifragem da interpretação produzem uma satisfação. A intepretação que
trata do sentido permanece então presa ao princípio do prazer. Freud constatou
com o seu “Além do princípio do prazer” que o inconsciente se acostuma com a
interpretação, ele traz a análise para a era pós-interpretativa.

A interpretação pelo avesso

A introdução do gozo opaco ao sentido muda o regime da interpretação que


deve funcionar doravante ao avesso do inconsciente[4]. Pois o querer gozar da
pulsão supera o querer dizer da significação. Os fenômenos de sentido da
decifragem e as pulsões não estão mais separados[5]. Eles se sobrepõem. A
suposta comunicação se revela gozo autístico em sua essência. A palavra não
serve tanto mais à verdade do que ao gozo. E a linguagem não é mais do que
uma elucubração de saber sobre a lalíngua. Na mesma linha, a satisfação de
falar acaba por ser mais um monólogo da aparola do que um diálogo da palavra.
O desaparecimento do diálogo torna a interpretação problemática. No
entanto, Jacques-Alain Miller mostrou que Lacan deu a ela o papel decisivo de
introduzir um limite ao gozo[6]. Com efeito, ao enxugar o sentido, a interpretação
vai contra o princípio do prazer e introduz o impossível da relação sexual.
Para isso, a interpretação trata a fala como escrita, e ensina ao sujeito a ler
a si mesmo[7]. Para extrair o querer gozar mascarado pelo querer dizer, a
interpretação passa pelo “isso não quer dizer nada”. No inconsciente real, o
significando é independe do significante, um significante pode querer dizer
qualquer coisa. A interpretação deve limitar a leitura e, para isso, deve ser
tomada no laço social de um discurso. Porque, paradoxalmente, só um laço
social típico permite poder interpretar fazendo limite à ausência do diálogo.

Cortar
Na era pós-interpretativa, a interpretação analítica funciona pelo avesso do
inconsciente. Ela se instaura a partir da primeira interpretação que ele produz. A
interpretação não se apoia mais tanto na pontuação quanto no corte[8]. O
matema do discurso permite apreender que o corte passa entre S1 e S2.
O corte determina a lógica da sessão. E há duas possibilidades: ou a
interpretação corta a ligação entre S1 e S2, e a sessão é uma unidade
assemântica que reconduz o sujeito à opacidade do gozo do sinthome. Ele deve
então ser cortado antes de ser arrematado para enxugar o sentido. Ou a sessão
é uma unidade semântica e a interpretação produz um segundo significante que
faz pontuação e alimenta o sentido a serviço do Nome-do-pai. Esses dois
caminhos se opõem.

O dever de interpretar

O analista depende de seu ato para fazer existir o discurso analítico porque
a transferência e a interpretação estão diretamente ligadas. O analista faz surgir
o inconsciente real, e deve fazê-lo passar ao inconsciente transferencial e
retorno. Porque para reduzir o sentido do sintoma à contingência de um
acontecimento de corpo do sinthome, é preciso também saciar a sede do
sentido. Única chance para que o analisante faça retorno ao inconsciente real,
no espaço onde um lapso não terá mais nenhum sentido ou interpretação[9]. A
interpretação, seja na forma de uma pontuação, de uma escansão ou de um
corte varia conforme o inconsciente seja real ou transferencial. Mas em todos os
casos, ela não é uma técnica, mas uma ética. É por isso que Lacan nos lembrou:
o analista tem o dever de interpretar[10]. Trata-se da finitude da análise e, para
além disso, da existência do discurso analítico.

Tradução livre: Arryson Zenith Jr.


Extraído de: https://journees.causefreudienne.org/le-devoir-dinterpreter-
six-remarques/

Notas:

1- Curso “A fuga do sentido”, Miller, 1995-96.


2- Conforme Miller, “Émission à France Culture du mardi”, 7 de junho de
2005, disponível na internet.
3- Lacan, O aturdito, Outros escritos, p. 494, “Tenho tão pouca
responsabilidade por isso que não lhe mandei dizer por ninguém”.
4- A interpretação pelo avesso, Opção Lacaniana, nº 15, p. 96-99
5- Conforme o segundo ensino de Lacan, que repercute a segunda tópica de
Freud
6- “Esse não-diálogo tem seu limite na interpretação, através da qual se
garante o real”, Outros Escritos, p. 548.
7- A interpretação: da escuta ao escrito, Revista Correio, 87, também
disponível em: https://encontrobrasileiroebp2022.com.br/a-interpretacao-da-
escuta-ao-escrito/
8- Conforme Miller, “A fuga do sentido”.
9- Prefácio à edição inglesa do Seminário 11, Outros Escritos, p. 567.
10- Pósfácio à edição inglesa do Seminário 11, Outros Escritos, p 503.

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