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Introdução

1.1
Hipóteses principais

Há uma teoria psicanalítica da letra e da escrita. Mas esta teoria


está implícita em Freud e em Lacan, uma vez que nenhum dos dois
explicitou-a.
Esta teoria implícita tem uma história que começa com a afirmação
de Freud, em “Projeto para uma Psicologia Científica”, que Das Ding é o
que sobra ou fica fora e deixa uma marca ou um traço que, por sua vez,
desenha trilhamentos. A seminal carta 52 e “A Interpretação dos Sonhos”
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continuam esta história, com a proposta de que o sonho deveria ser


pensado mais como uma escrita do que como uma língua. A interpretação
do sonho seria análoga ao deciframento de uma escrita ideogramática
como a egípcia. Vemos que a entrada do conjunto letra e escrita na
psicanálise foi da ordem da analogia. O hieróglifo seria o tema da
analogia, como propõe Perelman em Tratado da Argumentação e o sonho
seria o foro para onde o transporte metafórico é realizado (Perelman e
Olbrechts -Tyteca, 2000).
A partir deste gesto inaugural de Freud, a letra e a escrita foram
perdendo seu caráter metafórico, no processo de usura das metáforas
apresentado por Derrida em “A mitologia branca” (Derrida, 1991), e o que
era sentido figurado passa a sentido próprio. A metáfora adormece e a
letra e a escrita transformam-se em conceitos psicanalíticos: a imprecisa
escrita psíquica. Perde-se, no processo, a ligação com a letra e a escrita
originais. E há uma inversão: de significantes importados de outro campo
semântico para o campo da psicanálise, a letra e a escrita psíquicas
passam, elas próprias, a se constituir em modelos para a compreensão da
invenção da escrita e sua evolução e da escrita da história.
Esta tese considera importante despertar as metáforas para
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reconhecer que, na verdade, há uma estrutura comum aos dois campos: o


psíquico e o escritural que comporta a escrita enquanto tal, a aquisição
da escrita, a escrita científica ou matemática e a escrita da história (a
narrativa em geral). Para tanto, escrevi um capítulo introdutório intitulado
Metáfora ou Modelo? onde pretendi estabelecer uma base epistemológica
para essa discussão.
Esta estrutura comum seria a teoria psicanalítica da letra e da
escrita que daria conta do funcionamento do inconsciente, da constituição
do sujeito e das produções subjetivas e coletivas.
Assinalo aqui que optei por escrita em detrimento de escritura. A
meu ver, o termo escritura não se justifica em português para designar a
“representação de palavras ou idéias por meio de sinais” (Houaiss, 2001).
O termo escritura refere-se a “documento autêntico de contrato, feito por
oficial público”, embora admita “modo ou arte de se expressar num texto
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literário” (idem, 2001), além de referir-se também à Bíblia. Considero um


galicismo usarmos escritura para falar de escrita, pois em francês, écriture
é escrita e l’écrit é o escrito, um escrito, o texto.

1.2
A operação de extração

A teoria psicanalítica da letra e da escrita está implícita. Isto


significa que ela deverá ser extraída dos textos freudiano e lacaniano.
Considero que a idéia de extração não é alheia à psicanálise. O
analista, ao cortar o discurso do analisando, opera extrações de
determinados significantes que são levados para outras cadeias. Lacan
inaugurou esta operação em sua leitura de Freud, insistindo sempre em
declarar-se um freudiano. A extração de um significante, ou mesmo de
toda uma teoria, não deixa de ser um transporte, embora não se pretenda
um transporte metafórico ou analógico. Contudo, há algumas questões: a
operação de extração supõe que algo já estava lá à espera de ser
extraído, como Bentinho em relação à Capitu, um fruto maduro dentro da
casca à espera de ser extraído? Uma segunda questão: a operação de
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extração de uma teoria seria suspeita de totalização ou esquematização?


E uma terceira questão ainda: será a extração apenas uma outra leitura
implicada necessariamente em todo o trabalho textual? Como diz Lacan,
o leitor, para fazer sentido, tem que colocar algo de seu...
O fato é que causa espécie a implicitude desta teoria. Talvez as
razões que levaram Freud e Lacan a não tê-la explicitado não sejam as
mesmas. No caso de Freud, sabemos quantas reservas e escusas lhe
foram necessárias a cada vez que, com o pretexto de ser um mau clínico
ou um terapeuta não entusiasta, levantava os olhos do divã para pensar
psicanalíticamente o mundo: a religião, a história, a guerra. A idéia de
psicanálise “aplicada” já dá a noção de uma certa transgressão de
fronteiras. No caso de Lacan, certamente não se tratava mais desta
questão. Lacan não temia estar fazendo psicanálise aplicada. Mas,
tampouco explicitou esta que seria sua teoria psicanalitica da letra e da
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escrita. Não houve tempo, como dolorosamente Lacan queixou-se em


vários momentos, acusando-se: “Você começou um pouco tarde” (Lacan,
1998, p. 533)? Ou terá sido sua própria fórmula “O inconsciente é
estruturado como uma linguagem” que o impediu?

1.3
Em que consiste a teoria freudiana do traço e da escrita?

A hipótese de um sistema inconsciente criou a necessidade lógica


de que o psíquico estivesse em algum lugar que não na consciência.
Sendo o campo de consciência muito pontual, deve haver arquivo: entra-
se aqui no par presença – ausência. Há algo ausente que pode se fazer
presente. Este algo ausente está em estado vestigial ─ traço ou marca de
uma presença, tanto na dimensão existencial de um sujeito em particular
quando na história da espécie (filogênese). Do ocorrido ficaram os
vestígios.
Há, portanto, uma materialidade: este vestígio é uma marca carnal,
é cicatriz numa matéria. Além da materialidade, há a dimensão da
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ausência que traz consigo o campo do arqueológico e do histórico: a


marca seria, portanto, presença material ausente (da consciência).
Dividiríamos a abordagem de Freud em dois cenários que
encontram correspondência talvez nas chamadas primeira e segunda
tópicas. No primeiro cenário, Freud persegue a marca. Produzi-la nas
análises seria a confirmação da teoria. Freud fracassa. Até o famoso W
do Homem dos Lobos, extraído sob coerção temporal por Freud, revela-
se problemático – não em sua “verdade“ – mas em seus efeitos clínicos,
quando se leva em conta a psicose paranóica eclodida mais tarde. No
segundo cenário, a própria infinitude da interpretação revela sua
incapacidade de dizer toda a verdade. Há que construí-la.
Chamemos o primeiro desejo de leitura e o segundo, desejo de
escrita.
Estes dois cenários são acompanhados da construção de um
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instrumental de trabalho. Refiro-me à metapsicologia (onde incluo o


“Projeto para uma Psicologia Científica”). Neste conjunto de textos
pretendo abordar os vários modelos de que Freud lança mão para
construir seu instrumento de trabalho: o modelo neurônico do “Projeto”, o
modelo linguístico de “A interpretação das Afasias” o modelo ótico do
capítulo 7 de “A interpretação dos Sonhos”, e finalmente, o modelo
escritural da Carta 52 e de “Uma nota sobre o bloco mágico”. Nesta
abordagem, perseguirei a constituição de quatro conceitos-chave para
este projeto: Das Ding, o traço, a representação-coisa e a representação-
palavra. Adianto aqui que a intuição de Freud em “Uma nota sobre o
bloco mágico” sobre a natureza de todos os artefatos técnicos construídos
pelo homem como exteriorização das estruturas do próprio corpo será
trabalhado com vistas a desenvolver a extração de uma teoria da escrita e
da letra em Freud, que, como já mencionei antes, inverte a mão da
importação desses significantes revelando uma única estrutura à
constituição do sujeito, à escrita e à história.
Como centro irradiador deste cenário de desejo de leitura, temos o
que chamarei de o caso do hieróglifo. Freud era um apaixonado por
antiguidades especialmente egípcias. Há três momentos em que o Egito
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comparece em sua obra: a referência aos hieróglifos como metáfora da


escrita do sonho em “A Interpretação dos Sonhos”; a busca de um
símbolo não-verbal para a mãe fálica em “Uma lembrança de Infância de
Leonardo da Vinci” e finalmente, em “Moisés e o Monoteísmo“, a
investigação sobre o surgimento do monoteísmo no Egito no reinado de
Akhenaton. Em todas elas, reconhecemos o Freud arqueólogo, em busca
do traço do passado.
No primeiro caso, Freud recorre ao hieróglifo para exemplificar a
escrita do sonho: é uma escrita não-fonética, originalmente figurativa que,
no entanto, deve ser lida em seu valor significante e não em seu valor
pictórico. Inaugura com este gesto, necessário para dar conta da
visualidade pictórica, cênica do sonho, toda uma tensão entre o visual e o
acústico que se prolonga até hoje e ganha um caráter polêmico,
dicotômico na disputa Lacan-Derrida. Constitui-se num segundo pomo de
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discórdia, além da já citada questão em torno da anterioridade de uma


escrita psíquica, da qual a escrita propriamente dita seria apenas o devir
técnico e visível.
Além da pictorialidade, há outra analogia entre os sonhos e a
escrita hieroglífica: o fato do egípcio falado então ser hoje língua morta.
Isso determina que assim como o sonho, as escritas hieroglíficas tenham
que ser decifradas.
O tópico da decifração é de grande interesse aqui: assim como uma
língua morta ou uma escrita em código secreto, o sonho só se abre para
quem pode lê-lo a partir de uma chave de decifração. É uma escrita que
se oculta, uma escrita secreta. Será que o enigma é decifrável? A
secrecidade implica numa mensagem oculta. Será que todo enigma é
mensagem? Este tópico merecerá uma atenção especial neste capítulo.
No outro extremo da obra de Freud, pois se “A interpretação dos
Sonhos” foi inaugural, “Moisés e o Monoteísmo” é, em vários sentidos, um
texto terminal, o Egito reaparece. Reaparece como o local onde surge o
monoteísmo que, para Freud, seria o surgimento do pai e da passagem
para o patriarcado. Manifestamente, trata-se de um exame de uma
situação histórica que confirmaria o mito do assassinato do pai criado por
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Freud em “Totem e Tabu“. Mas, uma leitura atenta do texto revela que
Freud, em lugar de encontrar o tal traço tão buscado do passado, acaba
por concluir que a história, enquanto relato do ocorrido é antes velamento
do que registro, ou melhor, o registro possível é rasura, tarja. As
implicações com nosso tema aí estão colocadas de forma extrema: o real
está fora, a história é deformação e é impossível dizer a verdade toda. Os
estudos semiológicos atuais como os de U. Eco, por exemplo, em
Interpretação e Superinterpretação (1997) exploram esta distância entre o
trauma e o que é possível dizer dele. O mesmo ponto é abordado nos
estudos sobre a literatura de testemunho que lançam importantes
questões para a historiografia.
Para a finalidade deste projeto, há um outro aspecto importante em
“Moisés e o Monoteísmo”: qual a relação entre a marca ou o traço de um
sujeito e a história, enquanto história da civilização? Ao partir para um
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exame do Velho Testamento e do material historiográfico, Freud pareceria


estar procurando fora o vestígio que concluíra ser impossível encontrar
dentro. Esta aproximação entre a história e a escrita psíquica serve de
base ao questionamento sobre se a psicanálise seria uma ciência judaica
ou um judaísmo sem deus. Freud demonstra neste texto que a escrita da
Bíblia é regida pelo mesmo mecanismo que rege o funcionamento do
inconsciente: assim como o traumático do trauma fica fora, sendo apenas
representado no inconsciente e o traço não é o percebido, da mesma
maneira, a história ou sua escrita que se tornam sinônimos em Freud (só
há escrita da história ou em outras palavras, a história é uma história) é
velamento, ocultação do ato fundador: o assassinato de Moisés.
Consideramos este tópico extremamente importante para este projeto de
tese.

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