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As Feridas Narcísicas

O orgulho do homem se abala quando fatos sobre ele mesmo são revelados
através de grandes desilusões da humanidade. Em um excelente artigo de
1917, abordando o narcisismo humano e questão da dificuldade afetiva na
psicanálise, Freud aponta três grandes desilusões sofridas pela humanidade ao
longo da sua história, as quais são referenciadas como feridas narcísicas.
Freud salienta que através das pesquisas científicas o narcisismo universal do
homem, o seu amor próprio, foi significativamente abalado por estes três
grandes golpes.
O primeiro golpe ocorre por volta de 1500 com revolução científica do
astrônomo Nicolau Copérnico que opôs sua teoria do heliocentrismo ao modelo
geocêntrico de Ptolomeu e da Bíblia, que já perdurava por mais de 1000 anos.
Citando-o: “quando essa descoberta atingiu um reconhecimento geral, o amor-
próprio da humanidade sofreu o seu primeiro golpe, o golpe cosmológico”
(FREUD,1917). Anteriormente a esta elucidação o homem era guiado pela
intuição imediata dos sentidos, onde não sentia o movimento da Terra e
percebia que ao redor dela tudo girava: o Sol, a Lua, as estrelas e todo o
universo, além do mais, considerava-se senhor sobre todas as criaturas.
Copérnico desfaz esta ilusão colocando no centro do universo o Sol, com a
Terra e os demais planetas orbitando ao redor do astro rei.
A segunda ferida narcísica ocorre quando o naturalista Charles Darwin com a
publicação de seu “A Origem das Espécies” em 1859, com evidências
abundantes da evolução das espécies, mostra que o homem descende de um
primata como consequência de ciclos de evolução e não mais como um ser
especial criado por Deus para ser o dominador da natureza. Neste sentido o
homem é um mero produto do acaso resultado de milhões de anos de
evolução. Este foi o “golpe biológico do narcisismo do homem” (FREUD, 1917).
Finalmente, a terceira ferida narcísica, da qual Freud se considera o autor com
a apresentação do inconsciente, o homem deixa de ser o “senhor de sua
própria casa”. Embora possamos considerar que Freud seja pouco humilde por
essa auto referência nesse assunto, o caso é que por meio de suas pesquisas
e análises, verificou-se que existem processos que estão além da percepção
da “nossa consciência” e que, portanto, não podemos nos denominar
soberanos nem sobre nós mesmos. A divisão do psíquico num psíquico
consciente e num psíquico inconsciente constitui a premissa fundamental da
psicanálise. É com base nesta premissa que diversos processos patológicos
como histerias, neuroses, psicoses e outros fenômenos cotidianos, como
sonhos, atos falhos, esquecimentos são compreendidos e explicados no
contexto de uma ciência psicanalítica. O conceito de inconsciente é intrínseco à
psicanálise e se pudéssemos resumir este novo saber em uma única palavra,
esta seria o inconsciente. Freud foi ao mesmo tempo enaltecido como também
muito criticado por aqueles que não aceitaram a psicanálise, principalmente no
campo científico.
Freud nasceu e cresceu em um período caracterizado por grande fé na ciência
e na razão. O final do século XIX é marcado pelo pensamento positivista, onde
o conhecimento se baseava numa visão científica de mundo, rejeitando tudo
que não for possível de uma demonstração positiva, assentada na
experiência sensível. Rejeitavam-se as explicações abstratas e subjetivas.
Contemporaneamente às ideias de Freud, outros pensadores como Nietzsche
e Marx, bem como descobertas no campo da física com a teoria da relatividade
de Einstein (1910) e o advento da física quântica contribuíram para que o
racionalismo, a certeza e o absoluto descem lugar à incerteza e ao
indeterminismo. O homem antes visto como um mero observador de um local
privilegiado, conhecedor da verdade absoluta passa a ser visto como um ser
movido por impulsos que a sua própria razão desconhece, refém de forças
conflituosas sobre as quais ele tem pouco ou quase nenhum controle. O
homem não é um observador racional como se pensava. A psicanálise, deste
modo, promove um corte ou uma ruptura demovendo a consciência do “centro
absoluto” onde se encontrava e coloca em evidência o desconhecido: o
inconsciente.
Consciente e Inconsciente
De acordo com a metapsicologia de Freud a consciência é uma função de um
sistema de percepção-consciência situado na superfície ou na periferia do
aparelho psíquico. A consciência não seria um lugar de verdade, mas um lugar
de ilusão e representação de tudo que se passa externamente ao sujeito
através das percepções e capturados pelos sentidos visão, olfato, paladar,
motricidade (o que se escuta, vê e faz), como também o que se passa dentro
do sujeito (lembranças, desejos, sentimentos, emoções, etc.). Por meio da
consciência é possível conhecer as coisas de forma reflexiva. O sistema
consciente é operado com base no princípio da realidade, no aqui e agora,
respeitando a temporalidade e é regida por leis lógicas adaptadas a um
determinado contexto. Assim a consciência é topicamente situada entre o
exterior e o interior, inscrita numa série de prazer-desprezar e conteúdo de
memórias (LAPLANCHE-PONTALIS,1992).
Em sua obra, principalmente através do “Projeto”, Freud concebe os processos
psíquicos como derivados da atividade do cérebro e considera a consciência
como uma espécie de percepção interna destes mesmos processos.
Entretanto, considerando a totalidade dos processos da atividade cerebral,
como por exemplo envolvendo toda a cadeia de interação com meio, desde a
recepção de estímulos externos até a respectiva resposta motora, a
consciência não apresenta uma percepção completa de todos os processos,
deixando assim lacunas perceptivas. É este domínio supostamente psíquico,
não alcançado pela percepção consciente, que é então inferido como sendo o
conjunto dos processos inconscientes.
“Tratamos os processos psíquicos como algo que poderia dispensar
esseconhecimento pela consciência, algo que existe independentemente dela.
Estamos preparados para descobrir que algumas de nossas suposições não
são confirmadas pela consciência. Se não nos deixarmos cair em erro nisso,
eis o que se segue à pressuposição de que a consciência não dá um
conhecimento completo nem digno de confiança sobre os processos
neuronais: esses processos devem ser considerados, de início e em toda sua
extensão, como inconscientes, e devem ser inferidos como outras coisas
naturais. (FREUD, 1950).”
Representações, Pulsões e Recalque
Tanto a consciência, como o inconsciente são constituídos de conteúdos
psíquicos associativos que podem ser entendidos como impressões ou
conjunto de impressões a partir de dados adquiridos sensorialmente. Estas
impressões ou representações formam complexos associativos a dados
visuais, táteis, cenestésicas e outros. Os estímulos que são originados dentro
do organismo e alcançam a mente também tem um representante psíquico, os
quais são denominados de pulsões.
Podemos entender as pulsões como representações de estímulos endógenos
de origem econômica que resultam em tensão que exige ser descarregada
para reestabelecimento do equilíbrio. Esta descarga geralmente provoca uma
sensação prazerosa. Caso a descarga da pulsão traga desprazer para a
instância psíquica, a pulsão será recalcada, sendo levada para o inconsciente e
deverá ser satisfeita de outra forma. O recalque é o processo psíquico através
do qual determinadas representações, ideias, pensamentos, lembranças ou
desejos são rejeitados mantendo-os na negação inconsciente, no
esquecimento, bloqueando assim os conflitos geradores de angústia.
Resume-se aqui a primeira parte através da introdução dos conceitos
psicanalíticos de consciência, inconsciente, representação, pulsão e recalque.
Nesta perspectiva podemos considerar que o conhecimento científico, o sujeito
da ciência está circunscrito no domínio da consciência, dos conteúdos não
recalcados, constituídos de representantes de coisas e representantes de
palavras adaptados aos códigos da linguagem, inclusive a linguagem
matemática, cujo conteúdo tem um significado em si mesmo, sem significados
ocultos. Devemos considerar também que a ciência como produto da ação
humana, em última instância é um produto do aparelho psíquico e da energia
pulsional, mediados pelo princípio do prazer e pelo princípio da realidade.
Considerando a introdução do inconsciente no campo da ciência a distinção
sujeito/objeto é muito mais complexa do que à primeira vista pode parecer. A
separação perde os seus contornos de dicotomia e assume a forma de
um continuum.
Teorema da Incompletude de Gödel
Ao mesmo que tempo que a psicanálise prosseguia expandindo-se no início do
século XX, outro desenvolvimento abalava o mundo das certezas
estabelecidas; o fracasso da lógica clássica (lógica aristotélica) em explicar as
contradições reais. Para Aristóteles a lógica não é ciência e sim um
instrumento para o bem pensar. O objeto da lógica é o silogismo que nada
mais é do que um argumento composto de proposições das quais se infere
uma conclusão. Contudo, não se trata de conferir valor de verdade ou falsidade
às proposições ou premissas dadas, nem à conclusão, mas apenas de
observar a forma como foi constituído. O grande abalo, nesse sentido, foi
provocado pelo teorema do matemático Gödel, que mostra que um sistema não
pode se auto justificar. O teorema, ou teoremas, uma vez que são dois
teoremas interligados, colocam um fim na tentativa de unificar a matemática em
um sistema formal. No caso da física isto significa que não é possível chegar a
uma teoria unificada, uma “Teoria do Todo”. Esta descoberta não se aplica
somente à matemática e física, mas literalmente a todos os ramos da ciência,
lógica e conhecimento humano. Estes dois teoremas são conhecimento como
Teoremas da Incompletude. Em uma linguagem mais coloquial temos eles
postulam:
O primeiro teoremaafirma que nenhum sistema consistente de axiomas é
capaz de provar todas as verdades sobre as relações dos números naturais
(aritmética). Para qualquer um desses sistemas, sempre haverá afirmações
sobre os números naturais que são verdadeiras, mas que não podem ser
provadas dentro do sistema.
O segundo teorema, mostra que tal sistema não pode demonstrar sua própria
consistência.
Tomando os teoremas acima como uma extrapolação para outros campos do
saber, isto significa que ao circunscrevermos qualquer conjunto de premissas
ou axiomas de um determinado sistema, como por exemplo, todo o conteúdo
da consciência, este não pode ser explicado de forma completa sem se referir
a algo fora do limite circunscrito. Há algo que pode ser assumido mais não
pode ser provado dentro do próprio contexto. Este “algo” elucidativamente nos
remete para uma concepção de conteúdo epistemológico e natureza similar ao
da “descoberta” do inconsciente da psicanálise. Portanto, o sujeito da ciência, o
conteúdo consciente, não recalcado, só seria capaz de explicar a si mesmo,
fazendo referência a um algo fora do campo da consciência, fora do campo do
saber consciente.
Prosseguindo no campo da lógica clássica, temos também um axioma
fundamental conhecido como axioma do terceiro excluído que estabelece que
uma proposição qualquer pode exibir um e apenas um destes dois valores: ou
verdadeiro, ou falso. Como a hipótese de um terceiro valor qualquer encontrar-
se rejeitada, denominou-se tal regra de princípio do terceiro excluído. A
proposição não poderia ser simultaneamente Verdade e Falso, pois neste caso
estaríamos diante de uma contradição. Considerando que do ponto de vista do
homem das pulsões nos remete a uma angústia ou desprazer poderíamos até
considerar que o terceiro excluído é sim um recalque necessário para a
concepção dos axiomas básicos da lógica clássica. Seguindo por essa via, não
seria difícil encontrar outras situações fundamentais da matemática que
remetem a uma operação resultante da angústia e recalque. Por exemplo, a
operação “1 + 1 = 3”.

Conclusão
Considerando que a regra fundamental da psicanálise através da associação
livre constitui um convite para que o sujeito da experiência tome distância da
coerência e lógica cotidiana produzindo no enlace da transferência e da
elaboração de um novo saber, temos aqui uma oportunidade ainda não
explorada pelo conhecimento científico, qual seja, considerar no domínio da
sua prática um terceiro excluído que possa ser alcançado pela episteme
psicanalítica. Ao mesmo tempo em que a psicanálise expõe a terça ferida
narcísica, ela pode apresentar como uma possibilidade para uma nova
abordagem do e pelo sujeito da ciência. A escuta e prática clínica do
pensamento psicanalítico está em mostrar que a consciência é um tipo de
lógica possível, mas não a única. A psicanálise, baseada na experiência que
lhe é própria, procura evidenciar os modos possíveis, mas não pretende afirmar
uma verdade, deste modo deixando inscrever um não saber, um terceiro
excluído.

Referências Bibliográficas
FREUD, S. O Inconsciente (1915). Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas de S. Freud. Rio de Janeiro, Imago, 1995, Volume XIV.
FREUD, S. Uma dificuldade no caminho da psicanálise (1917). Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas de S. Freud. Rio de Janeiro, Imago,
1995, Volume XVII.
FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica (1950[1895]). Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas de S. Freud. Rio de Janeiro, Imago,
1995, Volume I.
FREUD, S. A Psicopatologia da Vida Cotidiana psicanálise (1901). Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas de S. Freud. Rio de Janeiro, Imago,
1995, Volume VI.
LAPLANCHE, J. – PONTALIS, J.B – Vocabulário de Psicanálise, Ed. Martins
Fontes, 12º. Ed., SP, 1992.
NAGEL, ERNEST – A Prova de Gödel, Ed. Perspectiva, 2ª.Ed., 1998.

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