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TEMA 1 – PRÁTICAS PSICOLÓGICAS E A ESTRUTURAÇÃO DA PSICOLOGIA ENQUANTO CIÊNCIA:

INTERFACES ENTRE PSICOLOGIA E PSICANÁLISE

Em aulas anteriores, estudamos que existe uma relação íntima entre a psicologia e a
psicanálise. Tal aproximação se deve à coincidência do objeto de estudo: o ser humano e o seu
comportamento/subjetividade. É a partir da relação entre elas que podemos situar e até
diferenciar a psicanálise das práticas da psicologia. Sabemos que a psicologia é uma área do
conhecimento que aborda o psiquismo humano de várias maneiras, em diversas áreas de
atuação. A psicologia está interessada em uma enorme variedade de tópicos, examinando o
comportamento humano e o processo mental, do nível neural ao nível cultural. Em psicologia,
estudamos questões humanas, que podem começar desde antes do nascimento e continuar
até a morte do sujeito. A psicologia está nas organizações, na área da saúde, na justiça etc.
Onde há ser humano, é possível aplicar e desenvolver conhecimentos de psicologia. São
diversas as possibilidades de atuação na área. Sendo assim, por conta das diversas abordagens
e das diversas áreas de atuação, tem-se que a psicologia na verdade é um composto de várias
“psicologias”. De acordo com Castañon (2008, p. 12), a psicologia é uma disciplina dividida, pois
o seu objeto de estudo apresenta aspectos abordáveis, aspectos inabordáveis e aspectos
apenas parcialmente abordáveis pelo método científico. Mas isso se deve a quê? A psicologia
deriva de duas grandes influências: a filosofia e a fisiologia. Isso acaba gerando um tipo de
conflito, pois tendo em mente a questão levantada em nossa aula anterior, de que a fisiologia
como ciência natural apresenta compreensões e métodos específicos, e de que a filosofia é
uma forma de construção de conhecimento acerca dos fenômenos a partir do questionamento,
a psicologia fica em um tipo de “meio-de-campo”. Assim, é preciso avaliar como trazer uma
unidade a essas influências distintas (Castañon, 2008). Considerando as várias influências
pertinentes ao surgimento dessa ciência chamada psicologia, a psicanálise adentra esse
imbróglio (ou confusão) como uma possibilidade para a compreensão dos fenômenos do
psiquismo humano. Porém, antes de situar em que condição a psicanálise adentra no 4 campo
psi (da psicologia), vamos retomar a história da psicologia. Abib (2009) descreve que a
psicologia foi proposta como uma ciência no final do século XIX, por Wilhelm Wundt e William
James. Segundo o autor, foram eles que elaboraram de modo sistemático o projeto de uma
psicologia científica, estruturando a psicologia como área do saber à parte, tanto da fisiologia
quanto da filosofia. Wundt era fisiologista. Suas primeiras pesquisas remontam à utilização de
métodos de pesquisa científica das ciências naturais para investigar os tempos de reação de
uma pessoa. A sua concepção de psiquismo era atrelada à fisiologia, ou seja, ele buscava
entender como o cérebro respondia a determinados estímulos. Após certo tempo de trabalho
e pesquisa, em 1879 ele abriu o primeiro laboratório de psicologia do mundo, situado na
Universidade de Leipzig, o laboratório de psicologia experimental. Esse evento é considerado o
início oficial da psicologia como disciplina científica separada e distinta. Ainda segundo Abib
(2009), a psicologia de Wundt é de base empírica (a partir da experiência direta) e fisiológica, o
que a aproxima das ciências da natureza. Entretanto, a partir da concepção de que da
experiência direta do sujeito derivam resultantes criativos, ele se aproxima das ciências da
cultura. O seu método de trabalho considera a introspecção, ou seja, aquilo que é produzido na
subjetividade a partir da experiência. Tal noção nos aproxima de uma causalidade psíquica,
incompatível com a causalidade física. “Devido à causalidade psíquica e ao princípio dos
resultantes criativos, a psicologia de Wundt não é ciência natural: é uma ciência intermediária”
(Abib, 2009, p. 198). A psicologia floresce nos Estados Unidos durante a segunda metade do
século XIX. Paralelamente ao trabalho de Wundt, William James emergiu como um dos
principais psicólogos americanos durante esse período. James publicou um livro que se
tornaria clássico, Os Princípios da Psicologia. Por conta dessa publicação, ele passou a ser
conhecido como o pai da psicologia americana, que encontra alta difusão mundo afora. Abib
(2009) nos situa que, para James, “a psicologia como ciência é ciência natural. Como uma
ciência natural, a psicologia estuda os fatos mentais, descrevendo-os e examinando-os em
relação com o ambiente físico e com as atividades dos hemisférios cerebrais, bem como as
atividades corporais que deles decorrem”. Não é nosso objetivo estudar com profundidade as
escolas que originaram a psicologia como a conhecemos hoje, afinal de contas este não é 5 um
curso de psicologia. Entretanto, um aspecto bastante importante a ser observado e
compreendido com o nosso retorno à história da psicologia é que, dentro do campo das
ciências psicológicas, houve uma tentativa de enquadrar o sujeito humano em metodologias
tidas como científicas (ligadas às ciências exatas e da natureza). Isso gerou algum nível de
conflito no enquadramento das ciências que estudam o humano dentro do campo mais geral
das ciências, pois a previsibilidade que se espera dificilmente é alcançada pela utilização de tais
metodologias. Também é possível perceber, inicialmente, a organização e a sistematização
daquilo que se define como ciência, no estudo da subjetividade e do comportamento
humanos, com foco na consciência. Não havia, até o surgimento da psicanálise, outra forma de
conceber a subjetividade humana que não transitasse por tal via. Isso por si só já distingue, de
forma muito importante, a psicanálise das práticas psicológicas. No fim do século 19, quando
Freud começa a desenvolver a hipótese de um psíquico inconsciente, a psicologia era,
sobretudo, uma ciência da consciência — ou, ao menos, o projeto de uma tal ciência. As
propostas para uma psicologia científica que surgem nesse período, como aquelas de Wundt,
Brentano e William James, trabalharam sempre com a hipótese dessa identidade entre o
mental e o consciente, tendo esses autores devotado passagens inteiras de seus principais
trabalhos para demonstrar que estados mentais inconscientes eram uma impossibilidade de
fato e de direito. (Simanke, 2009, p. 32)

TEMA 2 – PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E A CONCEPÇÃO INOVADORA DO SUJEITO DO


INCONSCIENTE Adentramos neste momento no terreno que realmente nos interessa: a
psicanálise. Paralelamente às tentativas de sistematização de um conhecimento acerca do
psiquismo humano por Wundt e James, surgem os trabalhos de Freud e a consequente
formalização da psicanálise. Sigmund Freud mudou o rosto da psicologia de maneira dramática,
ao propor uma teoria da personalidade e uma concepção de homem com ênfase a um outro
aspecto do psiquismo humano que não a consciência, como era a feito até então. Esse novo
aspecto da subjetividade a ser considerado era o inconsciente. De acordo com Freud, como
vimos anteriormente, o sofrimento o humano e os distúrbios psicológicos são resultado de
conflitos de ordem inconsciente. Em seu trabalho clínico com pacientes que sofriam de histeria
e outras doenças de ordem psicológica, Freud 6 sistematizou que as experiências da primeira
infância e os impulsos e conteúdos provenientes desse inconsciente contribuem para o
desenvolvimento da personalidade e do comportamento dos adultos. Neto (2019) aponta que
a psicanálise surge da necessidade de Freud de desenvolver uma compreensibilidade causal
dos fenômenos psíquicos, extrapolando a esfera da consciência, trabalhada até então. Foi da
noção de que o sofrimento histérico não se explicava e nem se tratava em um plano da
consciência que surge essa nova concepção. Para explicar os fenômenos com os quais estava
lidando (experiência empírica e clínica, importante frisar), foi necessário apelar para essa outra
ordem de causas, que não aparece na superfície da consciência: a ordem do inconsciente. Com
isso, surge a concepção de homem da psicanálise, a do sujeito do inconsciente. Essa outra
ordem é designada como inconsciente, e suas relações causais invisíveis em jogo são
tematizadas pela metapsicologia proposta por Freud. A metapsicologia seria, assim, um
conjunto de elaborações de nível teórico que possibilita formalizar a vida psíquica para além
dos fenômenos superficiais da consciência. A partir da metapsicologia, compreendemos a
dinâmica e a topologia psíquicas. Desse modo, é por meio dela que se sustenta a concepção de
homem do sujeito do inconsciente. Neto (2019, p. 24) ainda nos situa que “a metapsicologia
seria um esforço especulativo necessário para dar conta de explicar o desenrolar dos dados da
consciência que sem ela seriam episódios alheios uns aos outros, sendo impossível traçar uma
trama que os interligasse”. A teoria proposta e sistematizada por Sigmund Freud, a psicanálise,
impactou profundamente o pensamento do século XX. Suas influências extrapolaram o campo
da saúde mental e da psicologia, como bem sabemos, adentrando outras áreas, como a arte, a
educação e a pedagogia, a literatura, a cultura popular etc. Devido à noção de cientificismo
dominante (que leva em conta os métodos propostos nas ciências exatas e da natureza para a
construção de conhecimento), a psicanálise tem de enfrentar um certo descrédito. Houve na
psicologia um movimento que tentou adequar os métodos utilizados em outras ciências para o
estudo da subjetividade e do comportamento humanos. Grandes alterações na compreensão
da psicologia como ciência durante o início do século XX. Paralelamente à psicanálise, uma
outra escola de pensamento de origem americana (ou seja, com influência do pensamento de
7 James de modo a adequar a psicologia às metodologias tidas como científicas), conhecida
como behaviorismo, ganhou espaço no cenário da psicologia. O behaviorismo faz um grande
esforço para tornar a psicologia uma disciplina que se enquadra na noção de ciência
socialmente dominante, concentrando-se puramente no comportamento observável. Assim,
acabou trazendo uma grande mudança em relação às perspectivas teóricas anteriores (como as
de Wundt e Freud), rejeitando a ênfase tanto na mente consciente quanto no inconsciente,
com foco naquilo que poderia ser observado e “metrificado”: o comportamento.

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