Você está na página 1de 134

Psicologia Educacional


Período
Denise Cord

Florianópolis - 2010
Governo Federal
Presidente da República: Luiz Inácio Lula da Silva
Ministro de Educação: Fernando Haddad
Secretário de Ensino a Distância: Carlos Eduardo Bielschowky
Coordenador Nacional da Universidade Aberta do Brasil: Celso Costa

Universidade Federal de Santa Catarina


Reitor: Alvaro Toubes Prata
Vice-Reitor: Carlos Alberto Justo da Silva
Secretário de Educação a Distância: Cícero Barbosa
Pró-Reitora de Ensino de Graduação: Yara Maria Rauh Müller
Pró-Reitora de Pesquisa e Extensão: Débora Peres Menezes
Pró-Reitor de Pós-Graduação: Maria Lúcia de Barros Camargo
Pró-Reitor de Desenvolvimento Humano e Social: Luiz Henrique Vieira da Silva
Pró-Reitor de Infra-Estrutura: João Batista Furtuoso
Pró-Reitor de Assuntos Estudantis: Cláudio José Amante
Centro de Ciências da Educação: Wilson Schmidt

Curso de Licenciatura Letras-Português na Modalidade a Distância


Diretora Unidade de Ensino: Felício Wessling Margutti
Chefe do Departamento: Zilma Gesser Nunes
Coordenadoras de Curso: Roberta Pires de Oliveira e Zilma Gesser Nunes
Coordenador de Tutoria: Josias Ricardo Hack
Coordenação Pedagógica: LANTEC/CED
Coordenação de Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem: Hiperlab/CCE

Comissão Editorial
Tânia Regina Oliveira Ramos
Izete Lehmkuhl Coelho
Mary Elizabeth Cerutti Rizzati
Equipe de Desenvolvimento de Materiais

Laboratório de Novas Tecnologias - LANTEC/CED


Coordenação Geral: Andrea Lapa
Coordenação Pedagógica: Roseli Zen Cerny

Produção Gráfica e Hipermídia


Design Gráfico e Editorial: Ana Clara Miranda Gern; Kelly Cristine Suzuki
Responsável: Thiago Rocha Oliveira, Laura Martins Rodrigues
Adaptação do Projeto Gráfico: Laura Martins Rodrigues, Thiago Rocha Oliveira
Diagramação: Karina Silveira
Figuras: Tárik Assis Pinto
Tratamento de Imagem: Guilherme Vasconcellos, Maiara Ariño
Revisão gramatical: Tony Roberson de Mello Rodrigues

Design Instrucional
Responsável: Vanessa Gonzaga Nunes
Designer Instrucional: Tecia Estefana Vailati

Copyright © 2010, Universidade Federal de Santa Catarina/LLV/CCE/UFSC


Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer
meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Coordena-
ção Acadêmica do Curso de Licenciatura em Letras-Português na Modalidade a Distância.

Ficha Catalográfica
C794p Cord, Denise
Psicologia educacional : desenvolvimento e aprendizagem / Deni-
se Cord. – Florianópolis : LLV/CCE/UFSC, 2010.
134p. : 28cm

ISBN 978-85-61482-23-7

1. Psicologia educacional. 2. Psicologia da aprendizagem. 3. Prática de


ensino. I. Título.

CDU: 37.015.3
Catalogação na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca Universitária da
Universidade Federal de Santa Catarina.
Sumário
Apresentação....................................................................................... 7

Unidade A - Histórico da Psicologia geral e


educacional: objeto e método............................11
1  As Psicologias: origens históricas............................................................13
1.1 Presente de grego?...........................................................................................14
1.2 Questão de fé? ...................................................................................................15
1.3 Questão humana?.............................................................................................16
1.4 Questão de método?........................................................................................18
1.5 Questão de objeto?...........................................................................................20
2  Psicologias contemporâneas....................................................................23
3  Psicologia Educacional no Brasil. ............................................................27
3.1 Apresentação do campo.................................................................................27
3.2 Era uma vez... fatos históricos da relação entre
educação e psicologia no Brasil...................................................................29
4  Considerações Finais...................................................................................39

Unidade B - Abordagens em Psicologia e suas


relações com a educação......................................41
5  Contribuições da Psicanálise....................................................................43
5.1 Como Freud explicou o funcionamento dos sujeitos...........................44
5.2 Psicanálise e Educação: uma relação possível?.......................................47
6  Contribuições da Fenomenologia .........................................................51
6.1 O que é a fenomenologia?.............................................................................51
6.2 Psicologia da Gestalt.........................................................................................52
7  Contribuições do Comportamentalismo.............................................65
7.1 O comportamentalismo metodológico - Watson..................................65
7.2 O neocomportamentalismo: Tolman, Hull e Skinner............................68
7.3 O sociocomportamentalismo: Rotter e Bandura....................................73
8  Contribuições do Construtivismo Piagetiano. ...................................83
9  Contribuições da Psicologia Histórico-cultural..................................89
9.1 Uma psicologia marxista.................................................................................89
9.2 Contribuições de Vygotsky para a psicologia e a educação..............91
10  Considerações finais. ................................................................................97

Unidade C - Contribuições da Psicologia para


a prática escolar cotidiana....................................99
11  O cotidiano escolar................................................................................. 101
12  Desenvolvimento e aprendizagem. ................................................. 103
12.1 Qual a relação entre o desenvolvimento
humano e a educação escolar?................................................................103
12.2 Ainda há práticas escolares pautadas no inatismo?.........................104
12.3 O que é o ambientalismo? Qual aimportância do
contexto escolar nos processos de desenvolvimento
e aprendizagem segundo esta perspectiva?......................................107
12.4 O que é o cognitivismo e quais são as contribuições
deste para a compreensão dos processos de
desenvolvimento e de aprendizagem?................................................108
13  Características dos ciclos vitais e cotidiano escolar.................... 111
13.1 Principais características da infância em idade
de escolarização formal (6 aos 11 anos)...............................................113
13.2 Adolescência ou adolescentes?...............................................................115
13.3 Contribuições da perspectiva histórico-cultural
à compreensão do desenvolvimento humano..................................117
14  Interações sociais e mediação............................................................ 121
15  O fracasso escolar.................................................................................... 129

Referências....................................................................................... 133
Apresentação

A
disciplina Psicologia Educacional: desenvolvimento e aprendizagem
tem como objetivo permitir a você, estudante em formação para
o magistério em Letras-Português, o acesso ao conhecimento de
teorias psicológicas que tratam dos processos de desenvolvimento e aprendi-
zagem humanos e suas implicações nos processos de ensinar e aprender no
âmbito da educação formal.

É fundamental que se compreenda que estas teorias foram desenvolvidas em


contextos históricos e geográficos diferentes do nosso e por isso precisam,
além de ser conhecidas em suas bases filosóficas e epistemológicas, ser signifi-
cadas por cada um de nós, leitores, à luz da materialidade que constitui nossos
cenários de prática educacional.

Nosso intuito é possibilitar que você relacione as ideias e conhecimentos apre-


sentados ao seu papel profissional de educador. Para isso, será necessário que
você visualize a proposta que cada uma das teorias abordadas apresenta, rela-
cionando-a a construção e vivência deste papel em sala de aula. Pensamos que
você irá, inclusive, identificar que em alguns aspectos, sua prática já se organiza
de acordo com algumas das ideias apresentadas, mesmo que jamais tenha estu-
dado sistematicamente nenhuma delas. Isso se dá devido ao fato de que muitas
delas vêm sendo disseminadas no contexto educacional como forma de expli-
car determinados fenômenos, observáveis na prática pelos professores e enca-
minhados de acordo com o ideário pedagógico de cada momento histórico.

O que queremos dizer é que a Psicologia, como ciência e também como pro-
fissão, vem contribuindo para a construção deste ideário a partir de diferentes
concepções e estas permanecem, com maior ou menor força, como argumento
para elaboração de projetos educacionais, inclusive ao nível da definição de
políticas públicas em educação.

Outro aspecto que nos interessa destacar neste livro diz respeito ao papel do
aluno nos processos de ensino e de aprendizagem. A importância deste desta-
que está no fato de que, entendendo melhor como o ser humano se desenvolve
e aprende, você poderá elaborar metodologias de ensino e de avaliação mais
adequadas ao objetivo da sua prática profissional.
De um modo geral, você irá encontrar neste livro contribuições a um melhor
entendimento teórico dos fenômenos que observa no cotidiano da prática pe-
dagógica, o que poderá facilitar o manejo destas questões, estejam elas rela-
cionadas às características observáveis nos diferentes ciclos de vida humana e
suas implicações nos processos de ensinar e de aprender, ou aos aspectos que
contribuem para a produção do fracasso escolar.

Sua organização consta de três grandes unidades, A, B e C. Na primeira unida-


de você irá encontrar informações importantes sobre a história da psicologia
geral e da psicologia educacional no Brasil. Esta lhe será contada a partir da ar-
ticulação entre os aspectos filosóficos, tecnológicos, sociopolíticos e científicos
determinantes ao desenvolvimento desta ciência. O texto foi escrito visando
evidenciar a potência criativa do tempo histórico, convidando-o a superar a
perspectiva estritamente cronológica e linear de leitura. Objetiva-se que você
conheça e compreenda a história da psicologia como produção humana, dan-
do visibilidade às estratégias de produção de conhecimento em seu contínuo
processo de elaboração e desenvolvimento.

A segunda unidade traz as abordagens em psicologia e sua relação com a edu-


cação. Nele você encontrará dados importantes à compreensão dos aspectos fi-
losóficos e epistemológicos que contribuíram para as rupturas e os avanços no
desenvolvimento deste campo de conhecimento. Sendo uma ciência que trata
da constituição do indivíduo na sociedade moderna, a psicologia de um modo
geral tem demonstrado preocupar-se especialmente com o aspecto socializa-
dor da educação, ou seja, voltado para a adaptação deste mesmo indivíduo à
sociedade. A leitura atenta deste capítulo permitirá o reconhecimento de um
movimento de crítica a este reducionismo, bem como a indicação de perspec-
tivas transformadoras da relação entre psicologia e educação.

Na última unidade constam as contribuições da psicologia para a prática es-


colar cotidiana. Nela você encontrará explanações acerca das temáticas recor-
rentes no cotidiano da prática pedagógica, como a relação entre desenvolvi-
mento, aprendizagem e educação, características dos ciclos vitais, a questão da
mediação e das interações sociais e o fracasso escolar. Cada um destes itens foi
abordado de modo a contemplar o papel do professor na análise e intervenção
da temática abordada, visando não à elaboração de um receituário para resol-
ver questões cotidianas em geral, mas de um instrumento de base para refle-
xões e aprofundamentos futuros, no âmbito da disciplina ou como resultado
de seu interesse por novas informações.
O caráter introdutório deste livro, além de seu objetivo didático de atender às
particularidades da Educação à Distância, exigiu a concisão dos textos. Textos
concisos, além de poder contribuir para deixar a impressão de uma leitura
densa, plena de indagações abertas ao leitor iniciante, implicam em uma sele-
ção de ideias e sua consequente expressão de acordo com o que o organizador
do texto elege como prioridade para o que deve ser conhecido.

Deste modo, para que a leitura deste livro no bojo da disciplina lhe seja pro-
dutiva, faz-se importante que você se coloque como sujeito ativo na leitura, ou
seja, o qual se permita fazer perguntas a partir do texto e que não se contente
apenas em descobrir quais “verdades” ele revela. Até porque este livro não as
revela, apenas aponta algumas contribuições que poderão ser consideradas re-
levantes se trouxerem, como consequência para o seu fazer profissional, ações
transformadoras conscientes, ou seja, ações cuja finalidade é transformar aqui-
lo que já não serve aos objetivos da sua prática.

Denise Cord
Unidade A
Histórico da Psicologia geral e
educacional: objeto e método
As Psicologias: origens históricas Capítulo 01
1 As Psicologias: origens
históricas
Neste capítulo vamos conhecer a articulação entre os aspectos filosóficos,
tecnológicos, sócio-políticos e científicos determinantes no desenvolvimento da
ciência psicológica em geral.

Já há algum tempo se admite que a psicologia não tem uma história


no singular e que sua formalização no campo de conhecimento humano
denominado ciência se deu segundo uma complexa trama de fatos histó-
ricos, ocorridos em múltiplos espaços geográficos, envolvendo diferentes
pensadores e métodos, encadeados de forma não linear e descontínua.

Hermann Ebbinghaus é autor de uma frase sempre lembrada quando


se inicia o estudo da história da psicologia. Disse ele: “A Psicologia tem um
longo passado, mas uma curta história.” (VIDAL, 2000) Nesta frase está
contida uma longa e controversa discussão em torno da questão sobre até
onde retroceder no tempo para contar a história da psicologia científica.

Já explico: oficialmente a Psicologia foi reconhecida como área do


conhecimento científico apenas no final do século XIX, mas seu objeto
de estudos no sentido mais amplo, ou seja, o ser humano, já era do in-
teresse da Filosofia há séculos!

Por isso alguns historiadores da psicologia consideram que preci-


samos retroceder mais de dois mil anos para conhecer esta história, a
qual teria início com a própria história do Ocidente, entre os gregos, an-
tes da Era Cristã. Outros consideram que se deva contar esta história a
partir do século XVI, reconhecido como o marco da modernidade e da
vivência inédita da individualidade e da interioridade humanas. Assim,
aqueles que entendem que se deve começar a contar esta história a partir
de 700 a.C., vinculam-na à história do pensamento humano no ocidente
e aqueles que apostam no século XVI, como o marco de origem desta
história, a vinculam à gênese da vivência da subjetividade individualiza-
da, somente possível no contexto da modernidade ocidental.

Resolver por onde começar a contar esta história não é uma sim-
ples questão de escolha pessoal dos autores. Ainda que se trate de uma
escolha, ela revela aspectos do entendimento destes acerca do que seja o

13
Psicologia Educacional

objeto de estudos da psicologia científica e de que modo a constituição


e o reconhecimento deste estão relacionados ao conjunto de ideias e de
práticas sociais predominantes em cada momento histórico.

Uma coisa é certa: independentemente do marco histórico escolhi-


do, o desenvolvimento, o aprimoramento e a utilização dos métodos de
pesquisa e intervenção em psicologia ao longo da história encontram-se
diretamente relacionados às tentativas de resolução dos conflitos acerca
de qual seja o seu objeto de estudo e de qual seja a finalidade prática da
produção de conhecimentos nesta área.

Você verá que esta não é uma questão resolvida entre os psicólo-
gos, sejam eles cientistas ou não. Verá que do mesmo modo que não
podemos contar a história da psicologia no singular, também não pode-
mos afirmar sua existência única, mas de diferentes abordagens teóricas
voltadas à compreensão do fenômeno psicológico. Por isso não leia os
textos que as explicitam buscando depreender qual das abordagens é a
correta. Historicamente, elas coexistem tanto no campo de produção de
conhecimentos científicos (em universidades e institutos de pesquisa)
quanto no campo das aplicações práticas desta produção (psicoterapia,
psicologia hospitalar, organizacional, comunitária ou educacional).

1.1 Presente de grego?


O termo psicologia vem do grego psyché, que significa alma, mais
logos, que significa razão. Juntando os termos, temos que psicologia se
refere ao “estudo da alma”. Para os pensadores gregos, o termo alma
permitia expressar tudo aquilo que era observado como manifestação
de vida em um organismo, mas que não possuía materialidade, como as
sensações, as percepções, os pensamentos, os desejos etc.

O filósofo Sócrates (469-399 a.C.) foi o primeiro a se preocupar em


diferenciar o funcionamento do organismo humano do de outros orga-
nismos vivos e afirmou que a essência do humano é a razão. Para ele,
o que diferenciava os homens de outros seres vivos, especialmente dos
animais irracionais, era a capacidade de dominar os instintos.

Platão (427-322 a.C.) deu continuidade aos estudos filosóficos de


Sócrates e procurou, durante toda a sua vida intelectual, definir em que

14
As Psicologias: origens históricas Capítulo 01
lugar do corpo a razão ficava “hospedada”. Segundo ele, este lugar era a
alma, que ficava alojada na cabeça dos homens até o momento de sua
morte, momento em que se libertava e passava a ocupar outro corpo.

Platão também tinha um discípulo e este se chamava Aristóteles


(384-322 a.C.). Este discordava de seu mestre no que dizia respeito à
separação entre alma e corpo. Para ele estes elementos eram indissoci-
áveis. Partindo destas ideias discordantes, escreveu uma obra intitulada
Da anima a qual é considerada por alguns historiadores como sendo
o primeiro tratado de psicologia da história do pensamento ocidental.
Nesta obra afirmava que tudo aquilo que cresce, se reproduz e se ali-
menta possui psyché, ou alma.

Quando Aristóteles se referiu a “tudo aquilo que cresce”, estava in-


cluindo vegetais, animais e humanos. Todos possuíam alma, mas suas
almas apresentavam especificidades: a alma dos vegetais era chamada
por ele vegetativa e tinha por função a alimentação e a reprodução; os
animais possuiriam uma alma mais complexa, denominada sensitiva,
que lhes permitiria, além das funções anteriores, perceber e movimen-
tar-se; a alma do homem continha todos os elementos anteriores e in-
cluía o aspecto racional, que lhe permitiria pensar.

A definição de Sócrates de que o que caracteriza o humano é a ra-


zão e a discordância entre Platão e Aristóteles acerca da dissociabilidade
ou indissociabilidade entre o corpo - morada dos instintos, e a alma
- morada da razão, foram muitas vezes retomadas, especialmente no
campo da Filosofia e da Religião.

1.2 Questão de fé?


Dois importantes filósofos ligados à Igreja Católica, Santo Agosti-
nho (354-430) e São Tomás de Aquino (1225-1274) são exemplo deste
movimento de retomada. Viveram e registraram suas reflexões no pe-
ríodo histórico denominado Idade Média. A fase inicial desta foi espe-
cialmente marcada pela queda do Império Romano no Ocidente, o for-
talecimento e a expansão do cristianismo e a instalação do feudalismo.
Em sua fase final registram-se a crise do sistema feudal, as cruzadas, a
revitalização das cidades e da economia, a organização da burguesia, o

15
Psicologia Educacional

nascimento das universidades e o conseqüente estabelecimento de uma


cultura laica em oposição à cultura religiosa.

Embora tenham vivenciado momentos históricos marcadamente


diferentes, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino compartilhavam a
ideia de que a alma do homem é imortal e que representa mais que a
simples morada da razão, constituindo-se na prova de nossa ligação com
Deus. Para eles, a igreja deveria se ocupar do estudo e do controle de ma-
nifestações psíquicas humanas tais como os pensamentos e os desejos,
de modo a garantir que a principal tarefa humana na terra consistisse na
busca do equilíbrio entre a perfeição da essência (da alma, que era feita à
imagem e semelhança de Deus) e a realidade da existência humana.

São Tomás de Aquino morreu no século XIII. O período que vai deste
século até meados do século XV é considerado de transição entre a Idade
Média e a Idade Moderna e tem como principal marco o Renascimento.
Este termo está relacionado, por um lado, à revitalização das cidades e da
economia de algumas regiões da Europa (França, Inglaterra, Alemanha,
Espanha e Itália) fortemente empenhadas em atividades de exploração de
novos mercados e de novas terras, e por outro, à revitalização das formas
de expressar a compreensão humana sobre si e sobre o mundo.

1.3 Questão humana?


A exploração de novos mercados e de novas terras tornou-se pos-
sível pelas grandes navegações. Estas, por sua vez, exigiram a constru-
ção de inúmeros artefatos de reconhecimento, mapeamento e controle
de fenômenos naturais, impulsionando o desenvolvimento de novos
conhecimentos em física, matemática, astronomia e engenharia. O con-
tato com outros povos e culturas determinou novas elaborações nos
campos da filologia, medicina, artes e filosofia. A relação com o novo
e o diferente abriu espaço para questionamentos acerca das explicações
então predominantes sobre o homem, sua essência e existência. A ver-
são religiosa sobre como o homem e a sociedade deveriam funcionar,
baseada no teocentrismo remanescente da Idade Média, passou a ser
questionada e, não sem conflitos, com o custo de muitas vidas e ideias
silenciadas nos calabouços da história, foi superada.

16
As Psicologias: origens históricas Capítulo 01
Bons exemplos disso são as revoluções causadas pela defesa e de-
monstração das teses de Copérnico e Galileu, a partir das quais a terra
deixou de ser vista como o centro do Universo. Mais que isso, passou-se
a questionar a própria ideia de centro e a se pensar que os elementos de
uma relação possuíam uma realidade própria, movida por leis indepen-
dentes do conjunto a que pertenciam.

Historiadores da ciência admitem que este modelo de relação en-


tre os elementos de um mesmo sistema estaria na base da tese na qual
René Descartes (1596-1659) defende que o homem é constituído de
dois elementos distintos: o corpo e a mente (alma, espírito). A aceitação
do dualismo mente-corpo impulsionou o desenvolvimento das ciências
médicas e fisiológicas ao possibilitar o estudo do corpo humano morto,
já não mais considerado a sede da alma. Ao mesmo tempo, colocou em
cheque o poder de controle que a igreja exercia sobre o desenvolvimen-
to de formas mais complexas de se conhecer o homem e o mundo.

À medida que se autorizaram a “descobrir” novos lugares e ideias,


os pensadores da Renascença também compartilharam o ideal de que os
homens em geral são seres providos de intelecto e capazes de desenvol-
ver habilidades que lhes permitam transformar suas condições de exis-
tência. O século XV foi tomado por um grande otimismo em relação a
uma expansão histórica contínua e sempre para melhor, graças ao uso
da racionalidade humana.

De acordo com Ferreira (2007, p. 15), no que diz respeito à história


da psicologia, o conjunto das mudanças conceituais e das práticas so-
ciais iniciadas no século XV ganham consistência e método no século
XVI, quando se torna possível a “constituição de um domínio de interio-
ridade reflexiva (a nossa subjetividade), a separação desta do corpo, e a
produção de um campo de singularização valorativa num espaço coletivo
(a nossa individualidade).” Para este autor o século XVI fertiliza o espaço
de nascimento do “eu”, da experiência em primeira pessoa, a qual vai
demandar formas de explicação. Nesta concepção, o século XVI pos-
sibilita, portanto, o nascimento do objeto da psicologia científica, a qual
só terá reconhecimento enquanto tal no final do século XIX.

17
Psicologia Educacional

1.4 Questão de método?


A grande questão do século XIX continuava a ser a expansão dos
domínios do homem sobre a natureza e sua emancipação dos limites im-
postos pelo desconhecimento das respostas necessárias a este domínio. À
burguesia, classe social em expansão, interessava financiar a “descoberta”
das leis que regulamentavam tanto o funcionamento do universo quanto
o de outros grupos e culturas, por entender que o conhecimento per-
mitia a emancipação humana, mais especificamente dos territórios e da
cultura. É importante que você compreenda que este conhecimento, para
ser considerado emancipador, devia expressar o uso da razão no controle
dos instintos, ou seja, deveria expressar objetividade e neutralidade.

Nenhum outro período da história da humanidade foi tão propício


à elaboração de métodos rigorosos e objetivos de observação quanto este,
uma vez que a objetividade tornou-se critério de verdade. Na concepção
da época, ela era alcançada compreendendo-se o funcionamento e a sua
regularidade nos sistemas. Ao compreender-se como um sistema funciona
e qual a regularidade de seu funcionamento, se estará de posse da lei que o
determina e se poderá replicá-lo ou controlá-lo, dependendo do interesse.

Esta forma de pensar passou a ser utilizada também em relação


ao entendimento do homem, especialmente aplicada nos estudos em
Fisiologia, Neuroanatomia e Neurofisiologia. Alguns estudiosos dessas
áreas acabaram se interessando por conhecer como o “eu” processaria
experiências físicas ou fisiológicas e constituíram os campos “híbridos”
da Psicofísica e da Psicofisiologia.

Foi no âmbito da Psicofísica que Gustav Teodor Fechner (1801-


1887) e Ernst Heinrich Weber (1795-1878) formularam uma lei que se
tornou o marco histórico da Psicologia Experimental e contribuiu para
a sua constituição científica anos mais tarde, por comprovar ser possível
mensurar um fenômeno psicológico. O fenômeno mensurado, no caso,
foi o da sensação relatada por um sujeito frente a variação da inten-
sidade do mesmo estímulo físico apresentado pelo cientista. Segundo
Figueiredo (1991, p. 50),

[...] o evento físico era medido e controlado com os instrumentos da


física, e o evento psíquico era diretamente registrado mediante o relato

18
As Psicologias: origens históricas Capítulo 01
verbal dos sujeitos experimentais que recebiam como tarefa discriminar
da forma mais precisa possível as variações quantitativas a que eram
submetidos os estímulos em estudos paramétricos.

Weber e Fechner trabalhavam na Universidade de Leipzig, na Ale-


manha e foi lá que desenvolveram sua lei, baseada na relação entre fe-
nômenos físicos e psicológicos. Nesta mesma Universidade trabalhava
Wilhelm Maximilian Wundt (1832-1920), considerado o pai da Psico-
logia Científica Moderna. Wundt foi o responsável pela criação do pri-
meiro laboratório de psicologia, voltado à efetivação de experiências na
área da Psicofisiologia. Durante anos trabalhou no desenvolvimento da
concepção de paralelismo psicofísico, afirmando que aos fenômenos
mentais correspondem fenômenos orgânicos.

A ideia era simples: ao espetar o dedo, você sente a dor “se espalhar”,
o que para Wundt corresponderia a um fenômeno mental. Para compro-
var sua hipótese, desenvolveu um método de pesquisa denominado in-
trospeccionismo e descreveu, com a ajuda dos seus sujeitos de pesquisa,
o caminho percorrido pela dor no “interior” do eu após a estimulação
sensorial. Seu objetivo era medir o tempo decorrido entre a aplicação do
estímulo e o processamento deste pelos sujeitos. Os conhecimentos ob-
tidos com seus experimentos foram organizados e socializados em uma
obra intitulada Princípios de Psicologia Fisiológica, em 1873. Nela o
autor defendeu textualmente a diferenciação da Psicologia do campo da
Filosofia e sua demarcação como um novo domínio da ciência.

A fundação do seu laboratório e os resultados de seus estudos atra-


íram para a Alemanha novos estudiosos, os quais procuraram:

ǿǿ definir o objeto de estudos da Psicologia científica;

ǿǿ delimitar seu campo de estudos e diferenciá-lo de outras áreas


do conhecimento;

ǿǿ elaborar os métodos de estudo do objeto definido;

ǿǿ organizar as ideias produzidas no campo da psicologia como


um sistema teórico consistente;

Esta tarefa foi desenvolvida por pesquisadores importantes da área


na época, como o inglês Edward B. Titchner (1867-1927), precursor do

19
Psicologia Educacional

método de abordagem científica em psicologia denominado estrutu-


Estruturalismo
Perspectiva que explica ralismo; o norte americano William James (1842-1910), reconhecido
os fenômenos como como criador do funcionalismo; e o também norte americano Edward
sendo sistemas com- L. Thorndike (1874-1949), que desenvolveu seus estudos na perspectiva
postos da relação
do associacionismo.
entre seus elementos
ou estruturas e que
Estes autores procuraram validar seus métodos de pesquisa e, de
procura responder “o
que”, “como” e “por- algum modo, comprovar a utilidade da nova ciência para o desenvolvi-
que” se manifestam à mento e organização da sociedade burguesa capitalista do século XIX.
consciência humana. A tarefa foi realizada a contento e a partir destas abordagens iniciais, o
Explicavam-na a partir
da sua relação com
conhecimento tido como científico em psicologia era aquele que nascia
estruturas do Sistema em laboratórios, a partir do uso de instrumentos precisos de observação
Nervoso Central. e mensuração, e “a salvo” das questões do campo da Filosofia que ante-
riormente ameaçavam este status.

Funcionalismo
Esta perspectiva surgiu
1.5 Questão de objeto?
em oposição ao estru-
turalismo, preocupada A história da psicologia no século XX é a história dos conflitos em
em responder “para relação à definição de seu objeto. Na perspectiva funcionalista, a psico-
que” servem os proces- logia deveria se preocupar em entender como a consciência funciona e
sos mentais, ou seja,
qual a sua função no como o homem a utiliza para adaptar-se ao meio. A abordagem estru-
processo de adaptação turalista defendia ser objeto da psicologia o estudo dos elementos da
humana. experiência e suas relações de dependência com o organismo que os
experimenta. Já para a abordagem associacionista, o objeto de estudos
da psicologia deveria ser o processo de associação entre os estímulos na
Associacionismo produção de respostas do organismo ao meio.
Visa explicar as as-
sociações entre pro- Em torno destas diferentes perspectivas organizaram-se o que chama-
cessos mentais, dos
mos de “escolas psicológicas”, ou seja, sistemas teóricos e práticos a partir
mais simples aos mais
complexos, que levam dos quais se desenvolvem tanto a pesquisa e a produção do conhecimento
à aprendizagem. científico em psicologia, quanto os métodos de intervenção prática.

Atualmente são reconhecidas quatro importantes tendências teóri-


cas em Psicologia: a psicanalítica, a comportamental, a fenomenológica
e a histórico-cultural. O objeto de estudos da psicologia, na perspectiva
da psicanálise é a dinâmica do inconsciente; a abordagem comporta-
mental, como o próprio nome indica, entende que este objeto seja o
comportamento; a perspectiva fenomenológica estuda a totalidade do

20
As Psicologias: origens históricas Capítulo 01
humano; e a abordagem histórico-cultural busca compreender a cons-
tituição do psiquismo humano como uma construção histórica e cultu-
ral da humanidade.

Sistema/Teoria Objeto de Estudo Método Contribuições


No estudo do desenvolvimento e da perso-
Psicanalítica Inconsciente Associação livre nalidade humana; psicologia educacional;
psicologia clínica, social e institucional.
Principalmente no campo educacional e da
Observação e
Comportamental Comportamento aprendizagem humana; aplicável também à
experimentação
prática em clínica e organizações.
Observação e
Fenomenológica Totalidade Psicologia clínica, educacional e dos grupos.
experimentação
No estudo do desenvolvimento e da apren-
Historicidade do Observação e
Histórico-cultural dizagem humana; psicologia educacional e
psiquismo humano experimentação
social.

Quadro 1. Síntese dos principais sistemas em psicologia e suas contribuições.

Leia mais!
Você encontrará informações preciosas sobre o que acabamos de apre-
sentar neste capítulo e também sobre outros fatos importantes e deter-
minantes do desenvolvimento da ciência psicológica nos capítulos I e
II do livro organizado por: BOCK, Ana M. B.; FURTADO, Odair; TEI-
XEIRA, Maria de Lourdes T. Psicologias. Uma introdução ao estudo da
Psicologia. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

21
Psicologias contemporâneas Capítulo 02
2 Psicologias contemporâneas
Objetiva-se que você conheça e compreenda aspectos da psicologia con-
temporânea entendendo-a como produção humana, em contínuo processo de
elaboração e desenvolvimento.

Os sistemas teóricos apresentados acima devem ser entendidos


como matrizes do desenvolvimento da ciência psicológica, e como tal
deram origem às várias abordagens da Psicologia contemporânea.

A perspectiva psicanalítica, originada nos trabalhos de Sigmund


Freud (1856-1939), derivou em novos enfoques, alguns dos quais pro-
duzidos por discípulos seus que se tornaram dissidentes de sua teoria.
Dentre eles encontram-se Carl Gustav Jung (1875-1961) e Jacques Lacan
(1901-1981). Há ainda autores psicanalistas conhecidos por sua con-
tribuição ao estudo do desenvolvimento humano e de questões gerais
relacionadas à educação e ao trabalho com adolescentes e jovens, como
D.W.Winnicott, Ana Freud, Arminda Aberastury, Enrique Pichon-Ri-
vière, Françoise Dolto e Maud Mannoni.

A gênese da teoria comportamental é originalmente identificada com


os trabalhos do psicólogo norte americano Jonh B. Watson (1878-1958).
Em 1945, Burrhus Frederick Skinner (1904-1990), o mais conhecido autor
nesta perspectiva depois de Watson, elaborou uma nova abordagem, deno-
minada behaviorismo radical. Seu objetivo era apresentar uma filosofia da
ciência do comportamento que evoluísse a partir da Análise Experimental
do Comportamento (AEC). Esta sigla passou a identificar o estudo e a in-
tervenção na psicologia de inspiração comportamentalista desde então.

A caracterização da teoria fenomenológica em psicologia se deu


com a Gestalt (o termo em português que mais se aproxima do significa-
do desta palavra alemã é “forma”). A “Psicologia da Forma” teve origem
nos trabalhos de Max Wertheimer (1880-1943), Wolfgang Köhler (1887-
1967) e Kurt Koffka (1886-1941), os quais, com base em estudos psicofí-
sicos, desenvolveram uma teoria que relacionava a capacidade humana
de enxergar e atribuir forma as coisas ao processo psicológico básico
da percepção. Defendiam que conhecer aquilo que o indivíduo percebe
(estímulo), bem como a forma como o percebe (condições que alteram

23
Psicologia Educacional

a percepção) são determinantes para a compreensão do comportamen-


to humano, sustentando assim a base psicológica de sua teoria.

Destes estudos derivaram outros, como a Teoria de Campo, de


Kurt Lewin (1890-1947), bastante utilizada no estudo e intervenção dos
grupos e a Gestalt Terapia, fundada por Friederich S. Perls (1893-1970)
e de grande contribuição à Psicologia Clínica. Além destas duas deriva-
ções, temos a Gestalt-pedagogia, criada por Hilarion Petzold (*1944),
um filósofo e psicólogo russo, no ano de 1977, com o objetivo de instru-
mentalizar a intervenção em psicologia educacional e da aprendizagem,
a partir dos princípios terapêuticos da Psicologia da Gestalt.

Ainda no campo da fenomenologia, outros autores contribuem


com a produção teórico-técnica da psicologia, tais como Jean Paul Sartre
(1905-1980), precursor da Psicologia Existencialista; Carl Rogers (1902-
1987) autor da Abordagem Centrada na Pessoa, e Jacob Levy Moreno
(1889-1974), criador do Psicodrama.

A perspectiva histórico-cultural em psicologia é inspirada nos


princípios teórico-epistemológicos desenvolvidos por Karl Marx (1818-
1883). Marx defendia que os fenômenos fossem estudados como pro-
cessos em movimento e mudança. Para ele, todo fenômeno tem sua his-
tória, ao mesmo tempo em que revela a História.

Marx defendia também que toda mudança histórica na sociedade


resulta em mudanças no modo como os homens pensam e agem sobre
si mesmos e sobre o contexto no qual se encontram inseridos.

Um dos autores mais conhecidos da abordagem histórico-cultural


em psicologia é Lev Seminovich Vygotsky (1896-1934), psicólogo russo.
Apesar de seus primeiros escritos datarem da década de 1920, passou a
ser conhecido e a ganhar notoriedade no ocidente somente na década
de 1970 e, no Brasil, na década de 1980.

A principal preocupação deste autor foi o estudo da gênese das fun-


ções psicológicas superiores, tipicamente humanas, tais como a memó-
ria voluntária e a linguagem. Para ele tais funções surgem e se transfor-
mam ao longo do aprendizado e desenvolvimento humanos, mediadas
pelas condições materiais e simbólicas de existência dos indivíduos em
um determinado contexto histórico.

24
Psicologias contemporâneas Capítulo 02
Leia mais!

Você encontrará detalhes preciosos acerca de cada uma destas


abordagens em psicologia na contemporaneidade, consultando o livro
de: SCHULTZ, Duane P; SCHULTZ, Sydney Ellen. História da Psicolo-
gia Moderna. Tradução da 8a. edição americana. São Paulo: Thompson
Learning Edições, 2006.

25
Psicologia Educacional no Brasil Capítulo 03
3 Psicologia Educacional no
Brasil
Conhecer aspectos históricos da relação entre a psicologia e a educação,
seus principais desdobramentos e as transformações no modo como a psico-
logia educacional brasileira entendia e encaminhava questões do cotidiano
pedagógico escolar, comparando-se o passado e o presente desta relação.

3.1 Apresentação do campo

A partir deste ponto do texto, você obterá conhecimentos acerca de


um campo de estudos e de desenvolvimento da ciência psicológica,
relacionado aos temas da educação formal. Este campo é chamado psi-
cologia educacional e é o objeto de estudos desta disciplina.

Como lhe foi explicado anteriormente, a psicologia alcançou seu status


de ciência somente no século XIX, o que se tornou possível graças à vincula-
ção de diferentes disciplinas ao estudo de fenômenos denominados psicoló-
gicos. Foi este o caso dos experimentos de Fechner, no âmbito da Psicofísica
e de Wundt, no âmbito da Psicofisiologia, só para citar alguns exemplos.

Deve estar lembrado também que antes que a Psicologia fosse reconhe-
cida como ciência, temas relativos ao seu objeto de estudos no sentido am-
plo, ou seja, o ser humano, já eram tratados pela Filosofia e pela Religião.

A constituição do campo de estudos da psicologia educacional se deu


da mesma forma, isto é, temas relativos ao fenômeno educacional que an-
teriormente eram tratados mais amplamente no campo da Filosofia ou da
Fisiologia, com o tempo e a partir de necessidades identificadas no contex-
to educativo, passaram a ser abordados sob a perspectiva da psicologia.

Este campo foi inicialmente caracterizado como sendo de aplica-


ção dos conhecimentos científicos da psicologia à educação. Porém hoje
já há um acordo entre os historiadores da psicologia acerca de que esta
ciência acabou também se desenvolvendo na relação com a escola, uma
vez que, com o tempo e a consolidação do campo, se deixou simples-

27
Psicologia Educacional

mente de aplicar conhecimentos a esta realidade, passando-se a desen-


volver pesquisas e a produzir conhecimentos em psicologia a partir dos
fenômenos ali observados e estudados.

Neste livro vamos apresentar somente a história da psicologia educacio-


nal no Brasil, mas é importante que você tenha presente o fato de que
este campo de estudos também possui história em outros países. Além
disso, é fundamental que você considere que o desenvolvimento da psi-
cologia educacional no Brasil foi marcado por esta história mais ampla.

Outro aspecto a considerar é que a evolução de um campo de conhe-


cimento encontra-se intimamente relacionada a outras transformações,
sejam elas sociais, econômicas, ideológicas ou tecnológicas. No caso da
psicologia educacional, fica evidente que a ampliação do seu campo de in-
tervenção está relacionada às dificuldades que a escola historicamente tem
encontrado para cumprir o papel que a sociedade espera dela. Ao longo
da história da humanidade, na medida em que os desafios tecnológicos e
sociais se complexificaram, passou-se a exigir da educação escolar a for-
mação de indivíduos capazes de enfrentá-los e superá-los. Aqueles que não
correspondiam a estas expectativas representavam um problema para a es-
cola e uma ameaça aos projetos de desenvolvimento social preconizados e
se tornavam objeto de estudo e de intervenção da psicologia.

Como os desadaptados eram muitos e expressavam o fracasso em


corresponder às expectativas da escola de maneiras diferentes, foi ne-
cessário o estudo de uma multiplicidade de aspectos, fomentando o de-
senvolvimento deste campo.

Embora os parágrafos acima tenham sido escritos no pretérito, a reali-


dade do fracasso escolar é atual, continua presente em nossas escolas.
Os tempos são outros, mas os problemas permanecem. Mudaram, no
entanto, as perspectivas de análise e de abordagem a este fenôme-
no. Inicialmente, o fracasso escolar era tido como o fracasso do aluno.
Atualmente, tem-se discutido e considerado o papel social e político
da escola, a formação e intervenção dos professores e a questão dos
métodos de ensino e de avaliação na produção deste fenômeno.

28
Psicologia Educacional no Brasil Capítulo 03
Veremos em seguida como a relação entre a psicologia e a educação
começou, quais os principais desdobramentos desta história e o que mu-
dou no modo como a psicologia educacional brasileira entende e encami-
nha questões relacionadas ao cotidiano pedagógico escolar na atualidade.

3.2 Era uma vez... fatos históricos da relação


entre educação e psicologia no Brasil
Massimi (2004) demonstra em seus estudos que já no período co-
lonial os Jesuítas procuraram explicar as relações existentes entre ques-
tões educacionais como aprendizagem e motivação, por exemplo, e os
aspectos psicológicos.

Em seus escritos abordaram assuntos como: aprendizagem; deter-


minantes do desenvolvimento infantil; influência dos pais sobre o desen-
volvimento dos filhos; desenvolvimento motor, intelectual e emocional;
motivação; utilização de prêmios e castigos como forma de controle do
comportamento infantil; personalidade infantil; educação feminina e edu-
cação indígena. Nestes registros problematizavam o comportamento de Empirismo
crianças, mulheres e homens indígenas baseados principalmente em ideias Sistema filosófico que
filosóficas e do campo da medicina. Seu método de investigação era o em- considera a experiência
como fonte e razão do
pirismo e suas conclusões normalmente apontavam para a necessidade de conhecimento.
procedimentos de higienização (dos corpos e da alma) e de controle. Para
estes pensadores, a educação tinha papel fundamental nesse processo.

O empirismo sustenta a ideia de que o cérebro humano é tábula


rasa e que a aprendizagem é fruto da experiência. Uma decorrência na-
tural deste entendimento é que as experiências promotoras de aprendi-
zagem devem ser controladas, no sentido de que devem ser organizadas
de modo a promover as aprendizagens identificadas como necessárias.
Observem como não estão presentes nesta definição aspectos como
emoção, história ou cultura.

Como o Brasil era uma colônia de exploração, durante séculos re-


cebeu da coroa portuguesa somente a atenção necessária à garantia da
produção de riquezas a serem apropriadas pela metrópole. No entan-
to, quando Napoleão Bonaparte ameaçou invadir Portugal, o príncipe
regente D. João, orquestrou a transferência da família real para a sua

29
Psicologia Educacional

colônia mais importante, o Brasil. Juntamente com a família real aqui


chegaram, em março de 1808, centenas de funcionários, criados, asses-
sores e outras pessoas ligadas à corte.

Este é um marco histórico importante à história da educação e da


psicologia educacional no Brasil, uma vez que, parte dos investimentos
necessários a “transformar” a colônia em corte, foram direcionados ao
campo educacional.

Como você ainda deve lembrar, D. João permaneceu no Brasil até


o ano de 1821. Neste período, incrementou políticas importantes para
o desenvolvimento brasileiro, além de estimular o desenvolvimento das
artes e da cultura. D. João e a corte portuguesa se retiraram deixando
seus descendentes no poder. Dentre eles estava o Imperador D. Pedro I,
seu filho, o qual declarou a independência do Brasil em 1822.

O período imperial durou mais 67 anos e terminou no dia 15 de no-


vembro de 1889, com a proclamação da república. Nesta época a educa-
ção escolar já era problematizada, uma vez que a necessidade de formar
indivíduos letrados ia aumentando na proporção em que se avançava na
crítica ao modelo econômico agrário-comercial exportador. O projeto
de construção de uma nova configuração social, de uma nova nação,
trazia consigo a demanda pela formação de novos sujeitos sociais. Aces-
sível a um número restrito de crianças, as escolas existentes mostravam-
se pouco eficientes na tarefa de transformar súditos em cidadãos.

De 1890 a 1930, tanto a história da educação quanto a da psicolo-


gia educacional ganharam novas cores, devido ao grande investimento
do poder público na escolarização do povo. Intelectuais brasileiros for-
mados na Europa e nos Estados Unidos passaram e gerenciar grandes
projetos nas áreas de educação e saúde.

Em 1890, na cidade do Rio de Janeiro, foi criado o Pedagogium, um


centro de referência e estímulo a produção de conhecimentos especial-
mente voltados a novas realizações educacionais. Neste local organizou-
se o primeiro Laboratório de Psicologia do Brasil. É interessante ob-
servar que este laboratório foi anteriormente planejado em Paris, pelo
pedagogo e psicólogo francês Alfred Binet (1857-1911), que na época
trabalhava no desenvolvimento de uma escala métrica de inteligência

30
Psicologia Educacional no Brasil Capítulo 03
infantil por faixa etária. O resultado deste trabalho resultou no primeiro
teste de medida do Quoeficiente de Inteligência (QI), por idade.

Manoel Bonfim (1868-1932) foi seu idealizador e diretor por mais


de quinze anos, ao longo dos quais produziu várias obras sobre Pedagogia
e Psicologia, dentre as quais destacam-se: Noções de Psychologia (1916);
Lições de Pedagogia (3 ed. 1926) e Pensar e dizer: estudo do symbolo no
pensamento e na linguagem (1923). Em seus escritos acabou criticando
a prática de pesquisa psicológica em laboratórios, por considerá-la um
contexto limitado frente à complexidade e multiplicidade do fenômeno
psicológico, especialmente do pensamento.

A década de 1920 foi marcada por importantes Reformas Estaduais


de Ensino. Um dos eventos mais significativos desta década foi a im-
plantação das Escolas Normais, dentre as quais se destacam as funda-
das em São Paulo, Fortaleza, Salvador, Recife e Belo Horizonte. Muitas
delas possuíam seus próprios laboratórios de psicologia e seu objetivo
era formar docentes capazes de implementar as reformas propostas.

Essas reformas seguiam fundamentalmente o ideário da Escola


Nova, cuja gênese encontra-se nos estudos do John Dewey (1859-1952),
um importante filósofo e pedagogo norte-americano, para quem o prin-
cipal objetivo da educação escolar deveria ser o desenvolvimento da ca-
pacidade de raciocínio e do espírito crítico do aluno, de modo a manter
o equilíbrio entre o homem e suas particularidades psicológicas, de um
lado, e as exigências da sociedade em que vivia, de outro.

As Escolas Normais acabaram por se constituir no principal espaço


para o ensino das diferentes teorias e abordagens técnicas da psicologia
da época. Os professores de psicologia atuantes nessas unidades de ensino
acabaram por fomentar também o desenvolvimento deste campo de co-
nhecimento no Brasil, seja traduzindo obras de importantes pensadores
estrangeiros ou efetivando pesquisas que culminaram em obras nacionais
próprias, que serviram de material didático e de consulta em suas aulas.

Na década de 1930, com a fundação das Faculdades de Filosofia,


Ciências e Letras, a psicologia passou a ser ensinada nos cursos de Fi-
losofia e de Pedagogia como disciplina do ensino superior no Brasil.
Dentre os pioneiros da psicologia no Brasil, destaca-se Lourenço Filho

31
Psicologia Educacional

(1897-1970), autor do Teste ABC, catedrático em Pedagogia e Psicologia


da Escola Normal de São Paulo e um dos principais atores no Manifesto
Desenvolvido para me-
dir a “maturidade” para a dos Pioneiros da Educação Nova.
aprendizagem da leitura
e escrita, permitindo
caracterizar a “maturidade É no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova que se enfatizava a
educacional”. O ABC foi
o principal instrumento necessidade de o Brasil caminhar para mudanças educacionais que
usado para selecionar o colocassem no mesmo nível que o de outros países mais desenvol-
alunos aptos a frequentar
a escola, em escolas do vidos. A ideia era que somente um novo projeto de escola levaria ao
Rio de Janeiro e São Paulo progresso toda a sociedade brasileira.
a partir de 1928 e por
décadas a seguir.

O médico Ulisses Pernambucano também é considerado protago-


nista da história da psicologia educacional no Brasil. Diretor do Instituto
de Psicologia de Pernambuco, primeiramente o transfere para o Setor de
Educação do seu Estado, passando a denominá-lo Instituto de Seleção e
Orientação Profissional e, mais tarde, o anexa ao serviço de Higiene Men-
tal do Hospital dos Alienados do Recife. Nessas instituições foi constante
a participação de professoras formadas pela Escola Normal, cuja função
era empreender pesquisas e desenvolver técnicas em educação com base
em teorias psicológicas. Estas pesquisas, especialmente voltadas para o
mapeamento dos níveis de desenvolvimento mental, de aptidão e do vo-
cabulário de crianças, resultaram na padronização de testes de QI já exis-
tentes à realidade brasileira e na elaboração de testes pedagógicos.

Outro nome importante nesta história é Helena Antipoff, diretora


da Escola Normal, do Instituto de Educação e do Laboratório de Psi-
cologia de Belo Horizonte. Além de capacitar professoras normalistas
para a prática pedagógica, orientava suas pesquisa na área da psicolo-
gia educacional. Em 1940, Helena Antipoff idealizou e coordenou uma
experiência educacional pioneira na época, envolvendo a educação de
crianças superdotadas e abandonadas e no contexto rural. No bojo des-
ta experiência criticou o uso e a interpretação de testes psicológicos
em educação e alertou para o fato de que os fatores socioeconômicos
e culturais eram determinantes dos resultados obtidos no processo de
escolarização. Além disso, teve importância fundamental na implanta-
ção das cátedras de Psicologia Educacional na Universidade de Minas
Gerais e na Escola de Filosofia de Minas Gerais.

32
Psicologia Educacional no Brasil Capítulo 03
De 1924 a 1929, as reformas de ensino na Bahia foram adminis-
tradas por Anísio Teixeira, outro personagem renomado na história da
educação brasileira e autor reconhecido do Manifesto dos Pioneiros da
Educação Nova. Este autor, ainda que por vias indiretas, acabou con-
tribuindo também com a história da psicologia educacional no Brasil.
Vejamos como.

De 1931 a 1935, Anísio Teixeira ocupou o cargo de Diretor Geral


do Departamento de Educação do Distrito Federal (que ficava na cidade
do Rio de Janeiro, na época). No início de sua administração, aproxima-
damente um terço das crianças entre seis e doze anos não frequentava a
escola, em virtude de os sistemas de ensino público e particular estarem
saturados. Além de construir novas escolas públicas, transformou a Es-
cola Normal em Instituto de Educação. O Instituto passou a ministrar
aulas para os níveis primário e secundário, sendo que este último visava
preparar alunos para a escola de professores, que era de nível universi-
tário. Criou também o Instituto de Pesquisas Educacionais, IPE, e para
chefiar a seção Ortofrenia e Higiene Mental, convidou Arthur Ramos.

Arthur Ramos era um médico baiano, defensor e difusor da psica-


nálise no Brasil. Em 1934, ano em que fora convidado por Anísio Teixei-
ra para chefiar a seção de Ortofrenia e Higiene Mental do IPE, lançara
seu livro Psicanálise e Educação, no qual apresenta a teoria de Freud
sobre a sexualidade infantil, além das ideias de outros autores psicana-
listas, como Alfred Adler, Melanie Klein e Anna Freud, vinculando-as a
possíveis contribuições à prática pedagógica.

A Seção de Ortofrenia e Higiene Mental chefiada por Ramos ori-


ginou as chamadas clínicas de direção e orientação da criança, psico-
clínicas ortofrênicas ou simplesmente clínicas de higiene mental.
Suas equipes eram formadas por assistentes sociais, professores, psicó-
logos, médicos e psiquiatras, e os profissionais atuavam no atendimento
às crianças que necessitassem de intervenção psicológica em escolas pri-
márias do Rio de Janeiro, partindo dos conhecimentos da Psicanálise.

Durante os cinco anos (1935 a 1939) em que atuou à frente desta


Seção, as clínicas por ele chefiadas atenderam duas mil crianças. Tendo
constatado que 90% das crianças consideradas “anormais”, pelos resultados
obtidos em testes de inteligência, quando comparadas aos ditos “normais”,

33
Psicologia Educacional

não apresentavam qualquer tipo de anomalia mental. Ramos criou a deno-


minação “criança problema” para referir-se ao que considerava um fenô-
meno de desadaptação da criança ao contexto, seja do lar, seja da escola.

Sua contribuição à história da psicologia educacional se deu em


pelo menos dois níveis: ao abrir espaço para a abordagem psicanalítica
na educação (sobre a qual iremos tratar mais detidamente ainda neste
livro), e ao chamar a atenção para abordagens preventivas às dificul-
dades escolares (tema bastante explorado na atualidade e sobre o qual
voltaremos a falar mais adiante).

As décadas de 1940, 1950 e 1960 foram marcadas por grande efer-


vescência política e intelectual no Brasil e pela consolidação da psico-
logia como área autônoma do conhecimento. Vários institutos de pes-
quisa foram constituídos e passou-se oferecer cursos de especialização
em psicologia ligados a eles. Em 27 de agosto de 1962, a lei 4119, homo-
logada pelo Congresso Nacional, reconheceu a profissão de psicólogo
no país e fixou o currículo mínimo para a regulamentação dos cursos
superiores de psicologia em solo brasileiro.

Dois anos depois, em 10 de março de 1964 foi instaurada a ditadura


militar. Quatro anos mais tarde, a reforma universitária de 1968 regulamen-
tou a oferta de vagas no ensino superior pela iniciativa privada. Ou seja, o
período histórico que sucedeu ao reconhecimento da profissão também
influenciou profundamente as diretrizes de formação destes profissionais,
por dois motivos: pela censura prévia aos conteúdos ministrados, princi-
palmente nas universidades públicas e pela formação incipiente do ponto
de vista teórico e metodológico oferecida pelas universidades privadas.

O recrudescimento das políticas de Estado praticamente impediram


a reflexão crítica dos psicólogos em formação acerca do papel social
da educação e da própria psicologia, culminando com a expansão
de práticas psicológicas embasadas no modelo clínico, de atendi-
mento individual, no interior das escolas. Durante pelo menos uma
década os psicólogos, independentemente da abordagem adota-
da, se detiveram em aplicar testes nos educandos, cujos resultados
eram utilizados para revelar que características próprias dos sujeitos

34
Psicologia Educacional no Brasil Capítulo 03
os impediam de aprender ou de se adaptar à escola. Neste período,
a psicologia aplicada à educação contribuiu para responsabilizar os
educandos por suas dificuldades de aprendizagem.

O resultado mais conhecido e criticado desta prática diagnóstica


massiva são as chamadas classes especiais. Estas classes foram criadas
para agrupar crianças com histórias crônicas de fracasso escolar, cujo
ingresso dependia do diagnóstico psicológico. Uma vez integradas a
este sistema, nele poderiam permanecer por tempo indeterminado, pelo
menos até comprovar que as defasagens avaliadas pelos testes fossem
superadas e elas fossem consideradas aptas a frequentar uma classe re-
gular de alfabetização.

A década de 1980 foi marcada por pesadas críticas à psicologia


identificada com estas práticas e passou-se a enfatizar a necessidade Tal concepção tem origem
de se construir intervenções de caráter mais coletivo, voltadas para os nas teorias crítico-repro-
dutivistas de orientação
aspectos pedagógicos e institucionais da produção do fracasso escolar. marxista, as quais denun-
Até o final desta década muitos profissionais e pensadores da psicologia ciam que a escola, histo-
ricamente, tem assumido
haviam se declarado incapazes de delimitar como campo de atuação da o papel de reproduzir a
psicologia no universo escolar as determinações sociais e institucionais ideologia dominante, a
qual está na base da pro-
do fracasso escolar. Alguns por entenderem que intervenções voltadas à dução das desigualdades
função social da escola caracterizariam o campo da Sociologia da Edu- e injustiças sociais.
cação. Do mesmo modo, entendiam que intervir sobre os aspectos pe-
dagógicos, feria o domínio da Pedagogia. Na sua concepção, à psicologia
caberia intervir sobre os aspectos individuais das demandas escolares.

A partir da década de 1990, intelectuais da área e formadores de


psicólogos em universidades brasileiras passaram a negar a atuação do
psicólogo e a produção de conhecimentos em psicologia educacional
desvinculadas da análise dos fenômenos históricos, sociais e institucio-
nais determinantes das demandas escolares. Este grupo passou a criticar
a psicologia educacional clínica e a abordar o campo sob a perspectiva
da psicologia educacional crítica, de base marxista.

Nesta perspectiva, entende-se que o campo de estudos e de inter-


venção em psicologia educacional refere-se ao fenômeno educativo em
sua totalidade, ou seja, que este não se resume ao âmbito do sujeito. Um

35
Psicologia Educacional

psicólogo educacional crítico entende que uma criança ou uma turma


que demonstre dificuldades no domínio dos conteúdos escolares pode
estar sendo porta-voz de uma série de questões que devem ser anali-
sadas e que podem não estar relacionadas à defasagem cognitiva ou a
problemas de ordem emocional.

Os aspectos subjetivos também constituintes do processo edu-


cativo não são negados por esta perspectiva, mas considerados como
um dos aspectos passíveis de análise e de intervenção. Neste sentido,
procura-se evitar o encaminhamento de práticas individuais de inter-
venção, buscando-se depreender no âmbito dos processos coletivos a
gênese da dificuldade identificada, bem como a elaboração dos projetos
necessários à sua superação.

Assim, o enfrentamento às dificuldades escolares utilizando-se a


mediação dos conhecimentos psicológicos passaria a ser considerado
como uma forma de aprendizagem e de prevenção da origem das mes-
mas. Com isso tais conhecimentos poderiam ser apropriados pelos su-
jeitos envolvidos nas dificuldades relatadas e utilizados como tecnologia
social de abordagem a questões futuras.

Diferentemente da psicologia educacional clínica, que prevê uma


relação pautada na dependência dos profissionais da educação a um
atendimento “especializado” do psicólogo para “resolver” as dificulda-
des individuais de seus estudantes, a psicologia educacional crítica pro-
põe o estabelecimento de uma relação compromissada com a produção
de conhecimentos pela própria escola acerca das dificuldades que carac-
terizam seu cotidiano. Ela visa participar da construção da autonomia
escolar no manejo dessas questões e a transformação dos determinantes
sociais participantes da estruturação das mesmas.

É necessário que se diga que a psicologia educacional crítica ain-


da não conquistou o campo da educação, constituindo-se em UMA das
abordagens possíveis à psicologia. Como em todo movimento que en-
volve mudanças de paradigma científico, há coletivos de pensadores que
tomam a dianteira do processo, outros respondem mais tardiamente,
muitas vezes sugerindo reformas no lugar de mudanças e outros resistem
e persistem em seus posicionamentos epistemológicos em suas práticas.

36
Psicologia Educacional no Brasil Capítulo 03
Leia mais!
O livro de MASSIMI, M. & GUEDES, M. C. (Orgs.). História da Psi-
cologia no Brasil: novos estudos. São Paulo: Cortez, EDUC, 2004, pode
ser comparado a um baú cheio de tesouros para quem deseja conhecer
outros detalhes desta história.

37
Considerações Finais Capítulo 04
4 Considerações Finais
Compreender que a história da psicologia geral e a história da psicologia
da educação terminam por constituir uma trama comum, cujo objetivo é fazer
avançar um campo do conhecimento humano comprometido com as mudan-
ças sócio-históricas pelas quais passa e constituem a humanidade.

Como assinalamos no início deste texto, a história da psicologia é


múltipla e continua em movimento de construção e reconstrução. Pen-
so que não se deveria esperar outra coisa de uma ciência cujo pesqui-
sador é, de certa forma, também seu objeto de estudos. Cientistas em
psicologia são seres humanos a estudar outros seres humanos. Há uma
implicação mútua neste caso, o que exige profundo rigor teórico, ético e
técnico na abordagem dos fenômenos que se pretende conhecer. Espero
que estas poucas páginas tenham cumprido o papel de deixá-lo com
uma imagem aproximada do que tem sido e vem sendo feito na consti-
tuição da psicologia científica no ocidente.

O importante é que você lembre que a história da psicologia pode


ser dividida em dois períodos clássicos: pré-científica (ou filosófica) e
científica (metodológica) e que nestes períodos ocorreram importantes
transformações históricas e sociais, as quais influenciaram a produção
de conhecimentos possíveis nesta área.

Também é importante que você saiba que a psicologia do século


XIX não foi meramente transplantada para os séculos XX e XXI, mas
que sofreu transformações importantes em seus métodos de abor-
dagem e na definição do seu objeto de estudos. De um modo geral,
tais mudanças resultaram em quatro sistemas teóricos predominan-
tes em psicologia na atualidade: psicanalítico, comportamental, fe-
nomenológico e histórico-cultural.

No Brasil, a história da psicologia se encontra intimamente trama-


da à história da educação e foram os profissionais desta e da medicina
quem primeiramente utilizaram as ideias psicológicas como forma de
entender e de intervir nos fenômenos educativos.

39
Psicologia Educacional

Intelectuais da psicologia e da educação procederam a uma crítica


severa acerca desta relação. Deste movimento resultou a abordagem crí-
tica em psicologia educacional, a qual se diferencia das abordagens não
críticas pela superação do modelo de intervenção individual nas escolas
e pelo compromisso ético com a transformação dos determinantes so-
ciais e institucionais do fracasso escolar.

Como esta não é a única possibilidade de relação entre a psicologia


e a educação vigente na atualidade, no próximo capítulo lhe serão apre-
sentadas, além da perspectiva histórico-cultural, as abordagens psicana-
lítica, gestaltista, construtivista e comportamentalista sobre o desenvol-
vimento e a aprendizagem humana.

40
Unidade B
Abordagens em Psicologia e suas
relações com a educação
Contribuições da Psicanálise Capítulo 05
5 Contribuições da Psicanálise
Neste capítulo vamos conhecer as contribuições da psicanálise no desen-
volvimento da psicologia e suas contribuições para a educação.

A Psicanálise, ao contrário das demais abordagens em psicologia,


não se desenvolveu em ambiente acadêmico, mas a partir da prática de
seu fundador, o psiquiatra Sigmund Freud. Suas críticas e contestações,
portanto, tomavam como alvo as modalidades de tratamento dos dis-
túrbios mentais e não a concepção de ciência dos que a antecederam.

Freud é autor de uma vasta obra, fruto de observações e problemati-


zações oriundas do atendimento a clientes que o buscavam como médico,
mas cujos sintomas este não conseguia relacionar com aspectos orgâni-
cos. Seus métodos de coleta de dados foram duramente criticados, uma
vez que ele chegava a conclusões acerca de aspectos da dinâmica psíquica
de seus pacientes a partir do estudo de relatos que elaborava ao final do
seu dia de trabalho no consultório. As principais críticas relacionavam-se
a ausência de controle e de sistematização das variáveis do ambiente de
coleta de dados e à possibilidade de inferência dos dados, uma vez que as
anotações não correspondiam ao registro exato das palavras dos pacien- Sigmund Freud (1856-1939)

tes, mas a trechos destacados de memória por Freud.

Segundo consta, o autor considerou algumas das críticas recebidas


no decorrer da estruturação de sua obra e buscou precisar melhor al-
guns conceitos, revendo sua forma de sistematização. Nos últimos anos
de sua vida deu início a um projeto não concluído de desenvolver o
próprio conceito de psicologia científica com base nos princípios e no
modelo da física, principalmente da mecânica, hidráulica e elétrica.

Nas décadas de 1930 e 1940, a psicanálise começou a chamar a


atenção do público, especialmente do norte americano, o que levou al-
guns cientistas a buscarem a comprovação ou não da validade científica Como é o caso do Com-
plexo de Édipo e o papel
de alguns dos seus principais conceitos. Embora aspectos importantes das pulsões (triebe) como
que dão sustentação à Psicanálise de Freud tenham sido invalidados de forças motivadoras da
personalidade.
acordo com procedimentos científicos experimentais, Schultz e Schultz
(2006) atestam que pesquisas confirmaram a influência dos processos
inconscientes nos pensamentos, nas emoções e no comportamento.

43
Psicologia Educacional

Além disso, foi confirmada a ocorrência da repressão de conteúdos sim-


bólicos como forma de defesa do eu e atos falhos desencadeados por
conflitos e ansiedade inconscientes.

5.1 Como Freud explicou o funcionamento


dos sujeitos
O termo psicanálise é utilizado tanto para se referir à teoria quanto
ao método de investigação desenvolvido por ele. A prática profissional
é chamada de Análise, em referência à sua forma de tratamento, que
busca a cura através do autoconhecimento.

Freud iniciou seus trabalhos utilizando-se do recurso da hipnose


como forma de investigar a origem das condutas sintomáticas observá-
veis (comportamento) e suas relações com as estruturas mentais (psi-
quismo). Não demorou a abandonar esta técnica e se dedicou à livre
associação como método para a obtenção das informações necessárias
Este ainda se constitui ao autoconhecimento e à cura dos pacientes.
em um método reconhe-
cidamente psicanalítico Ao observar que os relatos dos pacientes tendiam a encadear-se
de análise e consiste em entre si, gerando novas associações e revelando sentidos anteriormente
que o paciente conte ao
terapeuta qualquer coisa não percebidos, Freud compreendeu que tais associações não eram exa-
que lhe ocorra na sessão, tamente livres, mas determinadas por mecanismos psíquicos, os quais
além do conteúdo dos
sonhos. Todo conteúdo precisavam ser conhecidos para que se compreendesse o sentido dos
expresso é considerado sintomas e da falta deles no funcionamento individual. Para ele, os sin-
importante pelo analista
(terapeuta), que o devolve tomas psicopatológicos têm o mesmo conteúdo e origem das manifesta-
interpretado ao paciente, ções da normalidade, mas expressam em graus variáveis de intensidade,
como forma de auxiliá-lo
na cura dos sintomas pelo outras formas de organização (de sentido). Com esta conclusão Freud
autoconhecimento. ampliou em muito o campo de estudos e de aplicação da psicanálise, a
qual deixou de ser uma técnica de atendimento a pessoas seriamente
comprometidas em seu funcionamento psíquico para se constituir em
uma teoria geral do funcionamento psíquico.

Primeiramente definiu que contribuem para este funcionamento


dois grandes sistemas: o inconsciente e o pré-consciente/consciente.
Entre eles há “[...]uma barreira (censura) que exerce ativamente uma
força (repressão) no sentido de expulsar certas representações (ideias,
lembranças, fantasias) do sistema pré-consciente/consciente e mantê-las

44
Contribuições da Psicanálise Capítulo 05
no sistema inconsciente.” (LOUREIRO, 2007, p. 378). A função repres-
sora é necessária para diminuir a angústia e a dor psicológica causadas
por algum evento traumático para o sujeito. A repressão não destrói o
conteúdo traumático, apenas o mantém desconhecido do sujeito até o
momento em que a associação entre este conteúdo e algum outro acon-
tecimento faça-o expressar-se na consciência.

Ao longo de seus estudos, Freud aprimorou este modelo e introduziu


os conceitos de id, ego e superego na explicação do funcionamento do
sistema psíquico. Estes elementos são interdependentes e não existem “em
si”, quer dizer, não são estruturas orgânicas localizáveis no cérebro, mas
instâncias psicológicas, organizadas simbolicamente no decorrer da vida
dos indivíduos e que interagem constantemente, interdeterminando seu
funcionamento psíquico. O id é regido pelo princípio do prazer e represen-
ta as pulsões inconscientes; o ego é responsável pelo estabelecimento do
equilíbrio entre o princípio do prazer (id) e o princípio da realidade (supe-
rego); este representa a internalização dos valores e das normas culturais.

Como exemplo, vamos considerar a gênese do sentimento de culpa


como fruto do funcionamento interdependente entre os três elementos:
a culpa nasce do conflito gerado na relação entre o fato do ego “saber”
que algo desejado (pulsão do id) é considerado mau por alguém impor-
tante para si ou pela sociedade, e não “conseguir fazer com que” este
desejo desapareça. Freud considerava que este sentimento nos serve de
alarme para as consequências de nossos atos e nos faz medi-las, princi-
palmente aqueles atos que podem nos levar a perder o amor daqueles
que são importantes à nossa sobrevivência física e emocional.

Pelo que se pode notar, os sistemas que regulam o funcionamen-


to psíquico vivem em constante estado de negociação. O resultado
destas negociações não é único. Conteúdos reprimidos pelo supere-
go podem voltar à consciência de várias formas, tais como sintomas,
sonhos, lapsos de memória ou chistes (piadas ou falas jocosas en-
volvendo um evento sério ou doloroso). O fato é que estas expres-
sões normalmente soam estranhas aos sujeitos que as expressaram
e em alguns casos podem causar sérios sentimentos de inadequa-
ção e sofrimento. O trabalho do analista consiste em assinalar para o

45
Psicologia Educacional

sujeito os sentidos que conseguiu depreender entre os encadea-


mentos formados pelas associações livres, auxiliando-o a construir
ou a reconstruir a história do seu sofrimento e o caminho para a cura
a partir do que foi manifesto, ou seja, “desfazer a deformação a que
foram submetidos os conteúdos reprimidos.” (LOUREIRO, 2007, p.378)

Um dos principais aspectos observados por Freud no atendimento


aos seus pacientes foi que o conteúdo, reprimido e gerador de neuroses,
normalmente se referia a conflitos de ordem sexual, localizados nos pri-
meiros anos de vida dos sujeitos. Esta observação determinou o lugar
central da sexualidade na teoria freudiana e, consequentemente, no seu
modo de explicar os processos de desenvolvimento humano.

A ideia de que a sexualidade é a base da vida psíquica humana ain-


da choca algumas pessoas, mesmo na atualidade. Imagine sua recepção
em 1905, quando Freud lançou seus Três ensaios para uma teoria da
sexualidade. É importante compreender, todavia, que ele utiliza este ter-
mo em seu sentido amplo e não simplesmente relacionado às atividades
genitais, voltadas para a procriação e é isso que torna possível, em sua
teoria, o reconhecimento de uma sexualidade infantil.

Na época em que Freud lançou sua obra, o tema da sexualidade ou


não era discutido ou era alvo de discursos normativos e moralistas. A
produção de conhecimento nesta área priorizava a elaboração de expli-
cações acerca dos desvios sexuais, normalmente associados à heredita-
riedade e à degenerescência. Freud desconsiderou o conceito biológico
de instinto sexual e criou conceitos próprios, dentre os quais o mais
importante é o conceito de triebe (impulso ou pulsão), sempre utilizado
para se referir às múltiplas, contingentes e mutantes feições que a sexua-
lidade humana pode assumir.

No início do processo de desenvolvimento humano a sexualidade


(Freud chamou de libido a energia vital resultante desta pulsão), tem
função autoconservadora ou de sobrevivência. Isto quer dizer que, em
cada fase do desenvolvimento a libido, investida no próprio corpo, en-
contra-se localizada em suas partes. Nos primeiros anos de vida passa
longos períodos toda investida na boca (fase oral), depois se concentra

46
Contribuições da Psicanálise Capítulo 05
no ânus (fase anal), e por fim, no órgão sexual (fase fálica). Após um
período de latência (que coincide com o período de ingresso da criança
na escola, por volta dos 7 anos de idade e se prolonga até a puberdade),
é atingido o último estágio (fase genital), quando o objeto de erotização
passa a ser um Outro.

5.2 Psicanálise e Educação: uma relação


possível?
Shirahige e Higa (2004) afirmam que embora no início de sua pro-
dução intelectual Freud tenha considerado o papel da educação escolar
secundário, a partir de 1911 passou a insistir na necessidade de uma
educação para a realidade. Para ele, a educação deveria servir de estímu-
lo para a superação do princípio do prazer pelo princípio da realidade,
ou seja, para a busca do equilíbrio entre o prazer individual e as neces-
sidades coletivas.

Nas palavras de Freud (1970, p.416-17),

[...] sob determinado aspecto isolado, a responsabilidade de um educador


pode, talvez, exceder a de um médico (psicoterapeuta). Este tem como
regra lidar com estruturas psíquicas que já se tornaram rígidas. O edu-
cador, contudo, trabalha com um material que é plástico, aberto a toda
impressão e tem de observar perante si mesmo a obrigação de não mol-
dar a jovem mente de acordo com ideias pessoais, mas antes segundo as
disposições e possibilidades do educando.

Em certa ocasião, Freud foi convidado a discursar na cerimônia de


comemoração dos 50 anos de sua antiga escola e afirmou que não sabia
precisar se seu interesse pelas ciências médicas havia nascido do contato
com os conteúdos estudados na escola ou da mediação que seus pro-
fessores realizaram buscando fazê-lo interessar-se por tais conteúdos e
aprender. Freud relembrou que ele e seus colegas compartilhavam emo-
ções conflitantes em relação aos seus professores que iam do profundo
ódio ao amor intenso; da necessidade de contestar sua eficácia ao desejo
de afirmar-lhes a sabedoria plena.

Os estudos de Freud sobre o desenvolvimento dos seres humanos,


nos termos de uma dinâmica intrapsíquica e inter-relacional, influen-

47
Psicologia Educacional

ciaram o pensamento educacional, sendo utilizados inclusive para clari-


ficar a compreensão dos processos de ensino e de aprendizagem.

Uma das ideias contidas em textos de Freud que circularam duran-


te muito tempo (e, embora contestadas talvez circulem ainda hoje) no
imaginário pedagógico, é de que a criança reage aos professores como
um substituto paterno. Esta ideia consiste no seguinte: no decorrer da
primeira infância, a criança processualmente identifica as incompletu-
des de seus pais em atender as suas necessidades e isso provoca um afas-
tamento afetivo desta em relação a estes. Este afastamento gera uma fal-
ta, abrindo espaço para outros vínculos a partir dos quais a criança dará
continuidade à sua relação com o mundo. Devido à idade em que isso
normalmente acontece, este momento coincide, na sociedade ocidental,
com a entrada da criança na escola e a tendência então é que a criança
busque o substituto para esta relação nos professores.

Como você viu anteriormente, esta fase do desenvolvimento é de-


nominada latência e está especialmente voltada a uma maior organiza-
ção do superego, pois a convivência com outras pessoas além da família
de origem contribui para a formação de valores e para a confrontação
por parte da criança entre diferentes sistemas de ideias.

De acordo com o entendimento de Freud, a criança deposita na


figura do(a) professor(a) a expectativa de recuperar o vínculo que en-
tendia haver vivenciado com seus pais (de satisfação plena de suas ne-
cessidades) e perdido. Ou seja, a criança visa meramente repetir a vi-
vência de uma situação em que um Outro identificava suas faltas e as
preenchia, sem exigir-lhe esforço.

Na perspectiva da psicanálise, a relação entre professores(as) e


alunos(as) é fundamental para que na dinâmica psíquica do ser huma-
no se abram caminhos para a aprendizagem dos conteúdos escolares.
A relação pedagógica ideal, aquela que facilita este processo, envolve
um educador ou educadora que não reage às intervenções da criança
simplesmente satisfazendo seus desejos, como ela pretendia. Tais in-
tervenções podem ser desconcertantes às vezes, envolvendo expres-
sões de idealização (quando o(a) professor(a) é o alvo de toda a sua
admiração e de seu amor), medo, ódio, orgulho ou inveja.

48
Contribuições da Psicanálise Capítulo 05
Como este mecanismo de projeção e as defesas dele decorrentes
Projeção
são processos inconscientes da maior importância tanto para o desen- A projeção é um
volvimento da personalidade da criança quanto de sua aprendizagem mecanismo de defesa
do ego (eu) a partir do
acadêmica, os(as) educadores(as) deveriam ser formados para observar
qual se deposita nos
estas manifestações da criança como sendo legítimas e não como um outros nossos próprios
equívoco a ser corrigido. conflitos. No caso, o
conflito da criança é
Aos professores cabe compreender que a criança está manifestando perceber que não é
um impulso inconsciente de receber “tudo pronto”, procurando evitar o completa e que seus
pais também não o
sofrimento causado pela falta. O que é legítimo por parte da criança, que
são. O eu incomple-
não é capaz ainda de compreender a importância da falta para o seu de- to projeta no outro
senvolvimento humano. O(a) professor(a), consciente desta importância, (professor) o desejo da
coloca no lugar da simples correspondência, uma relação de produção de completude, para não
vivenciar o sofrimento
novas faltas (cognitivas), acompanhada da oferta de caminhos para a sua que advém do próprio
superação (aspecto afetivo da relação) com a participação da criança (or- conflito.
ganização da inteligência como síntese da relação entre razão e afeto).

Para a psicanálise, as possibilidades de aprendizagem humana estão


diretamente relacionadas ao conceito de sublimação - que ocorre
quando a pulsão se dirige para outro objetivo, distante da satisfação
sexual - , ou seja, à capacidade de transformar a pulsão sexual (ou a
busca do prazer individual) em pulsão epistemofílica (busca de pra-
zer no conhecimento de si, do outro e do mundo) e estão vinculadas
a quatro fontes principais de tensão: crescimento fisiológico, frus-
trações, conflitos e perigos. Assim, a constituição do novo modelo
relacional exposto acima é essencial ao desenvolvimento afetivo e
cognitivo do ser humano, uma vez que este “se move” pela falta e é
entrando em contato com a falta que se ampliam e complexificam
as possibilidades de relação consigo mesmo e com o mundo.

Para finalizar, faz-se importante demarcar que os autores que con-


sideram factível estabelecer uma relação entre os princípios da psica-
nálise e a educação escolar não estão propondo a construção de uma
pedagogia psicanalítica, nem um método pedagógico inspirado no mé-
todo psicanalítico. Os escritos de psicanalistas sobre a educação têm
contribuído para chamar a atenção sobre a necessidade de se abrir es-

49
Psicologia Educacional

paço na relação pedagógica para o sujeito da educação. O sujeito, para


a psicanálise, é aquele que se constitui no conflito sempre atuante entre
as instâncias organizadoras do sistema psíquico. É, portanto, um sujeito
que também está se questionando quando faz perguntas, que também
está se inscrevendo no texto quando aprende a ler e a escrever, é um
sujeito simbólico.

Nas palavras de Maria Cristina Kupfer (2003, p.44),

[...] quando um educador opera a serviço de um sujeito, abandona téc-


nicas de adestramento e adaptação, renuncia à preocupação excessiva
com métodos de ensino e com conteúdos estritos, absolutos, fechados
e inquestionáveis. Ao contrário disso, apenas coloca os objetos do mun-
do a serviço de um aluno-sujeito, que ansioso por fazer-se dizer, ansioso
por fazer-se representar e apresentar com as palavras e os objetos da
cultura, escolherá nessa oferta aqueles que lhe dizem respeito, nos quais
está implicado [...].

Leia mais!
Para saber mais sobre o que é a psicanálise, quando ela surgiu e qual a
sua história no contexto da história da psicologia como ciência, consulte
o livro indicado para esta disciplina, CARRARA, K. (Org.) Introdução à
Psicologia da Educação. Seis Abordagens. São Paulo: Avercamp, 2004, e
também o livro de BOCK, Ana M. B. (Org.) Psicologias: um introdução
ao estudo da psicologia. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

50
Contribuições da Fenomenologia Capítulo 06
6 Contribuições da
Fenomenologia
Neste capítulo vamos conhecer a abordagem fenomenológica em psicolo-
gia e suas relações e contribuições com o campo educacional.

6.1 O que é a fenomenologia?


No primeiro capítulo deste livro vimos que a psicologia científica
nasceu no século XIX, tendo baseado seus métodos de investigação no
modelo das ciências naturais. Uma das características deste modelo é
a crença na neutralidade objetiva do pesquisador em relação ao objeto
pesquisado. À psicologia nascente pareceu correto afirmar que poderia
não só conhecer o homem (seu objeto de estudos) a partir deste mesmo
modelo, como controlar as interferências subjetivas na prática científi-
ca. Observem que a prática científica é descrita nesta perspectiva como
uma prática de descoberta de verdades (de leis) apriorísticas, ou seja, que
existem independentemente da participação humana em sua construção.
Nesta perspectiva, inclusive, a participação humana (de atribuir sentido
à lei) é indesejável. A ciência e o cientista são tidos como neutros.

Edmund Husserl (1859-1938), considerado o fundador da filosofia


fenomenológica, inverteu estes termos ao afirmar que conhecer o ho-
mem é precondição para conhecer o mundo, uma vez que ele é a fonte
de todo conhecimento e de toda a possibilidade de conhecer. Ou seja, a
existência de um objeto a ser conhecido depende de que um homem o
faça objeto de sua experiência e reflexão.

Está contido nesta ideia o conceito de intencionalidade da cons-


ciência, elaborado por F. Brentano (1838-1917), psicólogo austríaco
e professor de Husserl e Freud. Nesta perspectiva a consciência é tida
como ato e não como conteúdo. Ou seja, não se trata de identificá-la
analisando o que ela contém, mas como um ato que visa um objeto.
Nesse sentido, para analisá-la é preciso captar sua intencionalidade, o
que se torna possível tanto a partir das manifestações corporais quanto
das manifestações simbólicas (arte, linguagem, espiritualidade etc.)

51
Psicologia Educacional

É importante compreender também que para a fenomenologia a


consciência intencional é uma manifestação no tempo, ou seja, expressa
uma síntese do que o sujeito espera obter na relação consigo mesmo e
com o mundo em um determinado momento. Um ato de consciência
reúne, diferencia, compara e sintetiza no tempo. Essa temporalidade
pode assumir formas distintas, como uma lembrança, uma percepção,
uma fantasia etc. Cabe ao método fenomenológico descrever e com-
preender esta forma, bem como localizá-la no horizonte da consciência
como atualidade ou potencialidade. Segundo Figueiredo (1991, p.177),

[...] os horizontes são, na experiência pré-reflexiva, “inconscientes”, pas-


sam desapercebidos, e uma das tarefas das análises fenomenológicas
concretas é justamente elucidá-los. Uma descrição fenomenológica
bem-sucedida deve ser capaz de trazer à luz o “significado oculto” das
vivências, esclarecendo ao máximo o horizonte de experiências virtuais
que está de fato implicado na vivência.

6.2 Psicologia da Gestalt

Como você deve lembrar, no primeiro capítulo explicamos que a ci-


Max Wertheimer (1880-1943), psicólo-
go checo e fundador da Psicologia da ência psicológica atual se organiza em torno de quatro sistemas teó-
Gestalt.
ricos principais e que um deles é a perspectiva fenomenológica em
psicologia. Deste sistema, vamos lhe apresentar à psicologia da Gestalt
e às abordagens que derivaram dela, como a Gestalt terapia e a Gestalt
pedagogia.

Primeiramente vamos lhe apresentar a Psicologia da Gestalt, cujos


autores reconhecidos como seus “pais” são Max Wertheimer, Kurt Ko-
ffka e Wolfgang Köhler.

Sua tese principal é a de que existe uma diferença entre o caráter da


estimulação e da percepção em si. Segundo eles, a percepção humana
não poderia ser explicada como resultado da soma de elementos, uma
vez que o cérebro constitui-se em um sistema dinâmico, em que todos os
elementos ativos interagem em determinado momento. Quando somos
Kurt Koffka (1886-1941), psicólogo
estimulados visualmente, por exemplo, nosso cérebro não responde a
alemão fundador da Psicologia da cada estímulo separadamente, mas combinando elementos similares.
Gestalt.

52
Contribuições da Fenomenologia Capítulo 06

(c)
(a)

(b)
(d)
Wolfgang Köhler (1887 – 1967), psicó-
Exemplos de organização perceptual logo alemão fundador da Psicologia
da Gestalt.
Observando a figura acima, você poderá entender melhor os vá-
rios princípios da organização perceptual, estudados e demonstrados
pelos teóricos da psicologia da Gestalt. É importante esclarecer que a
percepção destes princípios pelas pessoas independe de um processo de
aprendizagem anterior.

1) Proximidade: aquelas partes do estímulo que estão mais próxi-


mas umas das outras tendem a ser percebidas juntas;

2) Continuidade: tendemos a perceber um estímulo seguindo


uma direção que conecta os elementos (de cima para baixo, da
esquerda para a direita);

3) Semelhança: as partes do estímulo que são similares tendem a ser


vistas juntas, formando um agrupamento. Na figura b, por exem-
plo, tendemos a formar um grupo de círculos e um grupo de
pontos. Deste modo, a tendência é perceber fileiras de círculos e
fileiras de pontos, e não colunas formadas por círculos e pontos;

4) Preenchimento: tendemos a preencher as lacunas e incompletu-


des com que nos chegam os estímulos, como no caso da figura
c, onde facilmente percebemos três quadrados, ainda que as
figuras estejam incompletas;

5) Simplicidade: consideramos um bom estímulo aquele que se


nos aparenta organizado de forma simples, estável e completa.

53
Psicologia Educacional

6) Figura/fundo: tendemos a organizar nossa percepção de modo a


separar o que está sendo visto (figura) da base a partir da qual o
estímulo é projetado (fundo). Observe a figura d. Dependendo do
modo como organizar sua percepção (tendo o preto ou o branco
como fundo) poderá ver dois rostos ou um vaso nela projetados.

Estes princípios foram utilizados pelos teóricos da Gestalt para fun-


damentar sua principal crítica ao comportamentalismo (sistema teórico
que você vai conhecer a seguir), a de que não há uma relação de causa e
efeito entre o estímulo e a resposta. Para os gestaltistas, entre o estímulo
e a resposta encontra-se o processo de percepção, o qual se organiza a
partir da relação entre os fatores centrais (dependentes de processos men-
tais superiores) e os periféricos (pertencentes ao próprio estímulo). Para
a psicologia da Gestalt, a compreensão do comportamento humano passa
pela compreensão do que o indivíduo percebe e de como ele percebe.

Em acordo com a base fenomenológica de sua teoria, os teóricos


da psicologia da Gestalt, afirmam que o objeto da psicologia deve ser
compreender o conjunto de estímulos determinantes do comportamen-
to. A este conjunto de estímulos chamaram meio, distinguindo-os em
geográfico e comportamental.

O meio geográfico é o meio físico propriamente dito e o comporta-


mental é resultante da interpretação que o indivíduo faz dos elementos
que percebe na interação com o meio físico. Deste modo, o meio com-
portamental acaba se definindo e redefinindo sempre, porque depende
da interpretação que o sujeito faz dos elementos presentes no meio físi-
co, utilizando-se para isso também de elementos subjetivos, adquiridos
em sua história de aprendizagens anteriores.

Como exemplo, consideremos que você está esperando o ônibus


para ir para casa e quando este se aproxima e para no ponto você “enxer-
ga” lá dentro, sentada, uma grande amiga. Você imediatamente “monta
uma cena” em que seguirá todo o trajeto de ônibus até sua casa sentado(a)
ao seu lado, conversando e se anima, porque afinal está cansado(a) e a
viagem vai parecer menos longa assim. Digamos que o acesso se dê pela
porta traseira do ônibus, por isso você não vê o rosto das pessoas quan-
do entra, mas suas costas. Antes de passar a catraca você ainda dá uma
olhada para conferir que o banco ao lado da sua grande amiga está vago

54
Contribuições da Fenomenologia Capítulo 06
e segue a passos largos na direção dela, para evitar que outro tome o seu
assento. Acontece que quando você se aproxima e senta, percebe que a
pessoa que está ocupando aquele banco não é quem você pensava que
fosse, mas uma ilustre desconhecida. O que aconteceu? A interpreta-
ção que você fez dos elementos presentes no meio físico pautou-se em
outros elementos, que não estavam presentes ali, mas que faziam parte
da sua história. O fato de a pessoa desconhecida ter cabelos e estatura
parecidos com os de sua amiga, além do fato de que sua amiga eventual-
mente faz o mesmo trajeto de ônibus e de que você estava cansado(a) e
gostaria de usufruir de momentos agradáveis na volta para casa, contri-
buíram para o fechamento de uma gestalt (uma forma) nesses moldes,
criando uma realidade subjetiva ou o meio comportamental. Isso ocor-
re uma vez que todo o seu comportamento a partir do momento no qual
percebeu a garota desconhecida como sendo sua amiga guiou-se pela
necessidade de conseguir sentar-se no banco vago ao seu lado.

Os gestaltistas afirmam que tendemos a “fechar” uma gestalt quan-


do identificamos a boa forma, ou seja, quando conseguimos organizar
os estímulos de acordo com a percepção de equilíbrio, simetria, simpli-
cidade e estabilidade. Essa tendência a juntar os elementos pautando-se
nestes critérios é denominada pela Gestalt como campo psicológico.

O campo psicológico está permanentemente se organizando como


um TODO de fatos concomitantes e este TODO é sempre mais do que,
é sempre diferente da soma das partes. Ou seja, é no movimento de
organizar-se que o estímulo ganha sentido para o sujeito e não a partir
da percepção de elementos isolados deste.

Na perspectiva da psicologia da Gestalt, o comportamento humano


está relacionado à percepção deste campo no presente, no aqui e
agora. Ao afirmar a importância do presente nos processos percep-
tivos e de organização do campo psicológico os teóricos da Gestalt
não negaram a importância das experiências passadas ou dos proje-
tos futuros, mas consideraram que passado e futuro só influenciam
o comportamento por meio dos efeitos que se constata no presente.
Nesta abordagem interessa conhecer o como do comportamento
em lugar do porquê deste comportamento.

55
Psicologia Educacional

6.2.1 Gestalt-terapia

Trata-se de uma derivação dos princípios da teoria da Gestalt e foi


elaborada por Fritz Perls. Perls formou-se em medicina em 1921 e depois
disso dedicou-se aos estudos e à prática terapêutica da psicanálise freu-
diana. Durante vários anos desenvolveu intervenções e pesquisas cujos
resultados o fizeram discordar dos fundamentos da psicanálise, até que no
ano de 1947 lançou o livro O ego, a fome e a agressão, no qual resumiu toda
Fritz Perls (1893-1970), médico alemão a sua crítica a esta perspectiva e desenvolveu os fundamentos da sua pró-
criador da Gestalt-terapia.
pria metodologia, a qual passou a ser conhecida como Gestalt-terapia.

Pode-se resumir sua crítica à psicanálise e a elaboração de suas


contra-argumentações com base da teoria da Gestalt nos seguintes as-
pectos:

1) a psicanálise freudiana supervaloriza o princípio causa-efeito, o


que leva o psicólogo a investir basicamente na busca do porquê
do comportamento; à Teoria da Gestalt interessa compreender o
como do comportamento, segundo o princípio da totalidade.

2) a psicanálise freudiana supervaloriza a perspectiva associacio-


nista em psicologia, segundo a qual estímulos isolados enca-
deiam-se estruturando uma resposta complexa; para a Gestalt
os estímulos não são percebidos isoladamente, mas organiza-
dos em um campo perceptual.

3) a prática terapêutica analítica ignora a relação entre a realidade


psíquica e o organismo; A gestalt-terapia busca a unidade entre
estes elementos.

4) o conceito de pulsão (criado por Freud para explicar a energia


psíquica da necessidade) é considerado muito geral e de pou-
co auxílio na compreensão dos aspectos envolvidos na autor-
regulação do psiquismo; a gestalt-terapia propõe o conceito
de homeostase, por entender que o ser humano é mobilizado
por diferentes necessidades, não generalizáveis nem redutíveis
umas as outras.

56
Contribuições da Fenomenologia Capítulo 06
5) a explicação de que os distúrbios psíquicos seriam causados
por uma obstaculização no fluxo da energia sexual (libido) foi
refutada; os estudos de Perls o levaram a concluir que outros
aspectos, como a fome, por exemplo, deveriam ser considera-
dos determinantes do sofrimento psicológico.

6) o método psicanalítico da busca da conscientização dos impul-


sos reprimidos do passado como fonte de cura foi considerado
inadequado; a gestalt-terapia defende que se busque compre-
ender o comportamento com base no aqui e no agora.

7) a técnica da associação livre e a concentração da busca da ori-


gem do sofrimento no passado levam a uma relação cliente-
terapeuta vaga, desorganizada e sem rumo; Perls propõe que a
terapia seja um momento de concentração sobre o presente, o
sintoma e a relação cliente-terapeuta.

Como você certamente percebeu, a gestalt-terapia se diferencia


da análise em vários aspectos, mas principalmente pelo fato de que
seu principal objetivo é auxiliar o sujeito a viver plena e consciente-
mente sua experiência atual. Passado e futuro são examinados ten-
do em vista seu significado para potencializar mudanças no agora. E
potencializar mudanças, para a gestalt-terapia, é trabalhar no senti-
do de que o sujeito tome consciência do como está sua percepção e
de como esta percepção pode estar em desequilíbrio por conta de
antigas gestalts que ficaram em aberto, contribuindo para a criação
de uma vivência confusa do momento atual.

Outra diferença importante entre estas duas perspectivas diz respei-


to ao fato de que para Freud a origem do sofrimento psicológico encon-
tra-se na primeira infância, o que o levou a focar em seus estudos esta
fase do desenvolvimento humano. Perls entende o desenvolvimento hu-
mano como um processo contínuo de organização da personalidade, no
qual não existe um estágio final de amadurecimento. A dinâmica deste
processo encontra-se entrelaçada as aprendizagens alcançadas pela expe-
riência e pela tomada de consciência de si no aqui e agora da existência.

57
Psicologia Educacional

6.3.2 Gestalt-pedagogia

Os princípios da Psicologia da Gestalt e da gestalt-terapia aplicados


à educação resultaram na gestalt-pedagogia, e é desta perspectiva que
vamos falar agora. Este campo de estudos organizou-se a partir de três
contribuições principais:

1) O modelo Confluence Education, decorrente de um amplo es-


tudo dirigido pelo psicoterapeuta gestaltista George I. Brown,
na Califórnia, em 1967, cujo objetivo era examinar a possibi-
lidade de aplicar aspectos da gestalt-terapia aos processos de
aprendizagem em sala de aula. O foco principal deste estudo
era contribuir para o desenvolvimento de currículos e meto-
dologias que auxiliassem na construção de aprendizagens sig-
nificativas por meio da integração entre os aspectos afetivos e
cognitivos da aprendizagem.

2) O método ICT – interação centrada no tema, desenvolvido


por Ruth Cohn e seus colaboradores, cujo foco é encontrar um
equilíbrio entre o tema (isto), o indivíduo (eu, minhas dificulda-
des, interesses e potencialidades) e o grupo (nós, a ação conjun-
ta comunicativa de todos que aprendem, incluindo o professor).
Segundo esta perspectiva, a promoção de aprendizagens signi-
ficativas depende do equilíbrio dinâmico entre estes elementos
em sua relação com o ambiente de ensino e aprendizagem.

Cohn considera que para trabalhar segundo este método o educa-


dor deve desenvolver cinco posturas fundamentais:

a) autenticidade – tornar sua função e personalidade transparen-


te para o grupo;

b) empatia – habilidade de compreender as manifestações dos


elementos do grupo segundo o conteúdo que procuraram ex-
pressar;

c) expressar avaliação positiva em relação a todos os participantes;

d) permissividade – renunciar à responsabilidade de “resolver”


todas as questões que aparecem no grupo. Para tanto, deve de-

58
Contribuições da Fenomenologia Capítulo 06
legar liberdade e responsabilidade ao grupo e aprender a plane-
jar junto com seus componentes o futuro das atividades;

e) interdependência – demonstrar o propósito de manter uma re-


lação equilibrada entre suas necessidades de poder e os desejos
de liberdade do grupo.

Já em relação ao grupo, desenvolveu dez regras técnicas de auxílio


ao equilíbrio das relações entre o tema, o eu e o nós:
Retirado de: Burow e
ǿǿ Represente você mesmo em suas afirmações; diga eu e não nós Scherpp (1985, p. 55).

ou a gente;

ǿǿ Quando você fizer uma pergunta, diga porque pergunta e o que


a sua pergunta significa para você. Faça afirmações e evite a
entrevista;

ǿǿ Seja autêntico e seletivo em suas comunicações. Torne cons-


ciente o que você pensa e sente e escolha o que você diz e faz;

ǿǿ Contenha-se tanto quanto possível de fazer interpretações dos


outros. Ao invés disso, procure colocar as suas reações pessoais;

ǿǿ Seja comedido com generalizações;

ǿǿ Quando você disser alguma coisa sobre o comportamento ou


sobre a característica de um outro participante, diga também
o que significa para você que ele seja assim como ele é, isto é,
como você o vê;

ǿǿ As conversas paralelas têm precedência. Elas não atrapalham e


na maioria das vezes são importantes. Elas não ocorreriam se
não fossem importantes. (Talvez vocês gostassem de nos contar
sobre o que conversam?);

ǿǿ Só um de cada vez, por favor;

ǿǿ Quando mais de um quiser falar ao mesmo tempo, entendam-


se por meio de palavras-chave sobre o que pretendem falar;

ǿǿ Fique atento a sinais de sua esfera corporal e a sinais do mesmo


tipo nos outros participantes.

59
Psicologia Educacional

3) A pedagogia integrativa, desenvolvida por Petzold e colabora-


dores, cuja proposta é estruturar a prática educativa como um
campo para o qual confluam tanto os aspectos afetivos, quanto
cognitivos, somato-corporais, sociais e ecológicos.

A gestalt-pedagogia tem como objetivo geral viabilizar relações de


ensino e aprendizagem nas quais os sujeitos possam sentir, formar e re-
alizar suas próprias habilidades, capacidades, possibilidades e potencia-
lidades, identificando e livrando-se dos bloqueios que as tolhem.

Burow e Scherpp apresentam em seu livro Gestalt-pedagogia um


caminho para a escola e a educação, os objetivos específicos desta abor-
dagem, todos baseados nos princípios da psicologia da gestalt e da ges-
Retirado de: Burow e
Scherpp (1985, p. 108). talt-terapia. São eles:

ǿǿ Conhecer e reconhecer, bem como desenvolver as próprias ne-


cessidades e interesses (tanto subjetivos como objetivos);

ǿǿ Perceber as possibilidades de aumento dos potenciais de ação e


vivência (experimentar);

ǿǿ Formar relações produtivas que se renovem constantemente


entre disciplina e espontaneidade;

ǿǿ Agir segundo as necessidades instantâneas e “colocar entre pa-


rênteses”; hierarquizar as necessidades;

ǿǿ Livre decisão e responsabilidade;

ǿǿ Polaridades individuais (por exemplo, proteger e ser protegido);

ǿǿ Autodeterminação (em oposição à heterodeterminação) na


consciência de laços sociais;

ǿǿ Engajamento social e consciência da auto-responsabilidade;

ǿǿ Estímulo da autonomia pessoal;

ǿǿ Estímulo da capacidade de vivência e sensitividade;

ǿǿ “Abertura” para a exigência da situação, ou seja, capacidade e


prontidão para compreender essas exigências e agir de acordo
com elas.

60
Contribuições da Fenomenologia Capítulo 06
Grande parte destes objetivos está voltada à dimensão prática que
a tarefa pedagógica deve assumir: possibilitar que as relações de ensino
e de aprendizagem constituam um campo onde seja possível construir a
unidade indivíduo-meio, ou seja, onde seja possível dimensionar tanto
os aspectos afetivos e cognitivos da aprendizagem, quanto os aspectos
sociais, corporais e ecológicos.

Para compreender melhor esta proposta é preciso levar em conta


que tanto para a gestalt-terapia quanto para a gestalt-pedagogia, o
ponto de partida é a identificação, pelo indivíduo, de suas próprias
necessidades. Na medida em que um indivíduo se conhece melhor,
aprende a ser ele mesmo, reconhece que para realizar-se plenamen-
te precisa também modificar o meio, possibilita-se a constituição da
unidade indivíduo-meio.

Por certo que um professor que trabalhe em uma escola organi-


zada nos moldes tradicionais terá mais dificuldades em implementar
o modelo de ensino e aprendizagem proposto pela gestalt-pedagogia.
Seus idealizadores tinham sérias críticas à realidade escolar e chegaram
a propor várias alterações ao sistema de ensino norte-americano e eu-
ropeu, tais como:

ǿǿ que se substituísse o modelo massificador, das grandes esco-


las centralizadas por “miniescolas”, compostas por um núme-
ro pequeno de alunos e professores, o que permitiria colocar a
ênfase do trabalho cotidiano no desenvolvimento da persona-
lidade pelo contato autêntico, direto e consciente entre o tema,
o eu e o nós;

ǿǿ que se abolissem as avaliações por nota, considerando-se seu


viés comparativo, massificador e promotor de competição en-
tre os estudantes;

ǿǿ que se abolissem os currículos padronizado e pré-planejados,


de modo que as instituições de ensino tivessem autonomia para
organizar os conhecimentos em unidades integradas de acordo
com as necessidades do contexto de vida da sua clientela;

61
Psicologia Educacional

ǿǿ que se eliminasse a negligência com que vinha sendo tratada


a relação entre os aspectos emocionais da aprendizagem e os
aspectos cognitivos, passando-se a lidar com o ser humano
como uma unidade corpo-mente-espírito. Uma das práticas a
se instituir nesse sentido seria a supressão da repressão ao mo-
vimento físico, colocando-se em seu lugar propostas de educa-
ção do movimento (pela mediação qualificada no aprendizado
do esporte, da dança, do teatro etc.);

ǿǿ que se abolissem as práticas de ajustamento destituídas de crí-


tica (castigos e punições), substituindo-as pelo exercício de re-
conhecimento de suas próprias necessidades e pelo desenvol-
vimento de um sentido de possibilidade de desenvolver suas
próprias escolhas.

Mesmo ainda não tendo as condições escolares ideais, algumas das


principais considerações da gestalt-pedagogia podem ser exercitadas
continuamente por aqueles educadores que avaliam que a prática pe-
dagógica cotidiana vivenciada não é aquela que gostariam de estar
vivenciando.

Investir na relação professor-aluno antes de se preocupar com téc-


nicas de ensino. Mudar a pergunta “como transmitirei da melhor forma
este conteúdo?” para “como conseguirei realizar a intersubjetividade
com meus alunos?” Deixar de se sentir obrigado a transmitir conteú-
dos e convidar os alunos para o aprendizado ofertando-lhes espaços e
situações em que experienciem a si próprios e ao contexto e possam vir
a conhecer suas necessidades e possibilidades.

É claro que tais mudanças em si mesmo e na sua prática não vão


acontecer magicamente, mas você pode começar solicitando cursos de
formação e aperfeiçoamento docente e durante a sua realização explicitar
suas necessidades e pedir auxílio para efetivar as mudanças necessárias.

ǿǿ Mudar seus objetivos e métodos de ensino, criando possibili-


dades de ampliação do potencial de ação e de vivência, estímu-
lo da consciência e capacidade de percepção (deste modo você

62
Contribuições da Fenomenologia Capítulo 06
estará respeitando a unidade corpo-mente-espírito do seu edu-
cando e estará contribuindo positivamente para a constituição
de sua personalidade);

ǿǿ Mudar seus objetivos implica também incluir o contexto social


ao qual seu aluno pertence como objeto de estudo e de apren-
dizagem. Ao fazer isso você estará colaborando para a consti-
tuição da unidade indivíduo-meio, essencial para o estabeleci-
mento de aprendizagens significativas;

ǿǿ Carregar “a matéria” de afetividade, utilizando-se de técnicas


vivenciais, que permitam a cooperação entre os estudantes.

Leia mais!
Para saber mais sobre a psicologia da Gestalt e a Gestalt-terapia, quando
ela surgiu e qual a sua história no contexto da história da psicologia como
ciência, consulte o livro de: BOCK, Ana M. B. (Org.). Psicologias: uma in-
trodução ao estudo da psicologia. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

63
Contribuições do Comportamentalismo Capítulo 07
7 Contribuições do
Comportamentalismo
Neste capítulo vamos conhecer as contribuições do comportamentalismo,
do neocomportamentalismo e do sociocomportamentalismo para o desenvolvi-
mento da ciência psicológica e suas possíveis relações com a educação escolar.

7.1 O comportamentalismo metodológico -


Watson
Numa época em que a psicologia se via às voltas com a ameaça de
perder o seu recém-conquistado status de ciência devido às críticas ao
método introspectivo predominantemente utilizado por Wundt, o psi-
cólogo norte americano John B. Watson postulou que o comportamen- John B. Watson, psicólogo norte-ame-
to era o objeto da psicologia – um objeto mensurável, observável, o qual ricano fundador do comportamenta-
lismo metodológico.
permitia comprovar o que era observado a partir da experimentação
com diferentes sujeitos em diferentes contextos.
Comte
Seus primeiros estudos, publicados em 1913, não resultaram so- Augusto Comte,
mente na organização de um novo sistema teórico explicativo do funcio- filósofo francês, é
namento humano, como também contribuíram para o reconhecimento considerado o pai do
positivismo, movimen-
do estatuto de cientificidade da Psicologia. Contribuíram para a siste-
to que afirmava que
matização de suas ideias a tradição filosófica objetivista e mecanicista de o conhecimento dos
Descartes e Comte, a psicologia animal e a psicologia funcional. fatos poderia levar a
constituição de verda-
Watson reconheceu textualmente a relação entre a psicologia ani- des inquestionáveis.
mal, e o comportamentalismo, afirmando que este seria “o resultado
direto dos estudos do comportamento animal realizados durante a pri-
Psicologia animal
meira década do século XX.” (WATSON, 1929, p. 327 apud SCHULTZ,
Inspirada na teoria evo-
2006, p. 229). lucionista de Charles
Darwin, objetivou com-
Edward Lee Thorndike (1874 - 1949) é considerado um dos princi- provar a existência da
pais teóricos deste campo. Já nos referimos a ele quando contamos um mente nos organismos
pouco da história da psicologia da educação. Ele é reconhecido por ha- inferiores e a relação
entre as formas de
ver elaborado uma teoria da aprendizagem segundo a tese de que apren- estruturação da mente
der é estabelecer conexões concretas entre o estímulo e a resposta (abor- animal e humana.
dagem conexionista). Sua teoria ficou conhecida como aprendizagem

65
Psicologia Educacional

por tentativa e erro. Tal forma de aprendizagem consiste na repetição


das tendências de respostas que levam ao êxito.

Este autor também formulou duas Leis da Aprendizagem (mais


tarde retomadas pelo comportamentalismo): a) Lei do Efeito: um ato
que produz satisfação em determinada situação tende a ocorrer nova-
mente quando a situação se repete; b) Lei do Exercício: a conexão entre
comportamento e situação se torna mais forte quanto mais se exercita
determinado comportamento em determinada situação.

Outro psicólogo dedicado ao estudo com animais é o russo Ivan


Petrovitch Pavlov (1849 – 1936). Seus estudos com cães são clássicos em
psicologia, principalmente aqueles que explicitaram a existência de re-
flexos condicionáveis, ou seja, de respostas criadas em antecipação ao
estímulo que normalmente faria o organismo dar aquela resposta. Ex-
plicando: Pavlov observou que o comportamento de salivar dos cães não
aparecia somente quando já estavam saboreando a comida, mas antes,
Funcional quando simplesmente a visualizavam ou até mesmo quando somente es-
É a conhecida psicolo- cutavam os passos dos homens que se aproximavam para alimentá-los.
gia norte-americana,
diretamente influen- Partindo desta observação, Pavlov construiu outros experimentos
ciada pelas ideias de
nos quais tornava um estímulo dependente de outro, que o antecedia,
Darwin e de Galton.
Bem de acordo com o comprovando sua tese de que era possível condicionar uma resposta do
pragmatismo da cultu- organismo (por exemplo: antes de servir a comida aos cães, tocava uma
ra americana, derivou sineta. Com o tempo, o simples toque da sineta fazia os cães salivarem,
em uma psicologia
aplicada, voltada para
mesmo quando não lhes era apresentada a comida). Inicialmente Pavlov
o estudo do funcio- denominou estas respostas de reflexos psíquicos, efetivando assim uma
namento da mente menção clara à perspectiva introspeccionista e mentalista que predo-
humana no desenvol-
minava na psicologia wundtiana e à qual se teciam inúmeras críticas.
vimento de atividades
práticas. Seu “labo- Decidido a superar esta perspectiva, passou a nominá-las reflexo con-
ratório” era o mundo dicionado ou aprendido, colocando-as em oposição às respostas consi-
real (a publicidade, as deradas reflexo inato ou não condicionado.
fábricas, as escolas, os
tribunais, os hospitais A formação de Watson foi transpassada por textos e palestras de
etc.). Alguns dos no-
psicólogos estadunidenses, adeptos da psicologia funcional, a qual, em-
mes de destaque são:
G. Stanley Hall (1844- bora não constituísse uma escola de pensamento totalmente objetiva,
1924), James M. Cattell tinha a objetividade como meta para a psicologia.
(1860-1944) e Alfred
Binet (1857 – 1911). Os dez anos que antecederam à fundação formal do comportamen-
talismo por Watson foram marcados por intensos debates e inúmeras

66
Contribuições do Comportamentalismo Capítulo 07
publicações que defendiam a retirada dos conceitos de mente e consci-
ência do vocabulário psicológico. No lugar deles deveria triunfar o con-
ceito de comportamento como único objeto da psicologia científica.

Por fim, em 1913 Watson publica a síntese da psicologia comporta-


mentalista, fortemente marcada pelas influências objetivistas, mecani-
cistas e materialistas, na qual não havia lugar para conceitos mentalistas
ou métodos subjetivos. Focava o visível, o audível e o palpável, expli-
cando o funcionamento humano como resultante das interações de-
sencadeadas por estímulos e determinantes das respostas dos sujeitos
ao ambiente. A teoria E-R (estímulo-resposta) consiste em que “certos
estímulos levam o organismo a dar determinadas respostas e isso ocorre
porque os organismos se ajustam aos seus ambientes por meio de equipa-
mentos hereditários e pela formação de hábitos.” (BOCK, 2002, p. 45).

Os métodos de pesquisa da “nova ciência psicológica” consistiam no


uso da observação (com ou sem instrumentos), dos testes, do relato
verbal e do reflexo condicionado. O uso do relato verbal foi bastante
criticado, uma vez que parecia trazer de volta a questão da interpre-
tação e introspecção como métodos. Watson o manteve, afirmando
que a fala expressa poderia ser considerada comportamento. O que
deveria importar ao psicólogo comportamental era o como da fala
(entonação, intensidade) e não seu conteúdo. Importava olhar o
que o sujeito faz onde está e quais as consequências do que faz e
não buscar compreender possíveis intenções subjetivas.

Watson afirmou que os sujeitos davam tanto respostas explícitas


como respostas implícitas. As primeiras eram observáveis no ambien-
te e as outras produziam modificações no organismo (como taquicar-
dia, por exemplo). Do mesmo modo, afirmou que existiam respostas
simples e complexas (as quais ele chamou atos de comportamento).
As respostas complexas culminavam em uma mudança mais ampla no
ambiente. Também os estímulos foram por ele classificados de simples
(como quando uma luz incide sobre nossos olhos e nos faz piscar) e
complexos (como quando alguém que tem medo de andar de elevador
paralisa frente a simples menção de que o apartamento que vai visitar
fica no 33o andar e o acesso pela escada estará interditado).

67
Psicologia Educacional

O autor também afirmou que instintos, emoções e pensamentos de-


veriam ser analisados e tratados segundo os termos objetivos de estímulo-
resposta. Ao negar a existência de instintos ou características herdadas, o
comportamentalismo watsoniano afirmou que a aprendizagem era a cha-
ve para compreender o desenvolvimento humano, ou seja, que o desen-
volvimento depende da aprendizagem. Nesse sentido, colocava ênfase no
papel do ambiente sobre o desenvolvimento dos sujeitos, autorizando a
ideia de que uma pessoa poderia se tornar qualquer coisa para a qual fos-
se treinada. Observa-se nesta afirmativa a clara influência da psicologia
funcional (a psicologia só poderia se aplicada se o seu objeto fosse passível
de modificação. Negando os instintos Watson tornava o comportamento
humano um objeto passível de modelagem pelo ambiente e consequente-
mente alterável pela aplicação do método comportamental).

Nesse sentido, as metas da psicologia deveriam incluir tanto a pre-


visão quanto o controle dos comportamentos humanos. Esta ideia pro-
vocou muita reação entre os psicólogos da época, mas o comportamen-
talismo de Watson ganhou fôlego. Apenas sete anos após a publicação
de sua primeira síntese teórica, as universidades norte americanas já
ofereciam cursos sobre esta abordagem e na década de 30 (17 anos de-
pois) passou a ser disciplina obrigatória nos cursos universitários. Do
mesmo modo, alcançou grande popularidade entre os leigos, principal-
mente entre os sedentos por uma sociedade baseada no comportamento
controlado e moldado cientificamente, livre de mitos como o de livre
arbítrio e o das tendências inatas.

Com o passar do tempo seu sistema explicativo, “sua psicologia”, foi


sendo absorvida e transformada no corpo de um sistema teórico mais
complexo e moderno do objetivismo psicológico americano. Outros
nomes despontaram na história do comportamentalismo e é deles que
trataremos a seguir.

7.2 O neocomportamentalismo: Tolman,


Hull e Skinner
A etapa da história da escola de pensamento comportamental de-
nominada neocomportamentalismo vai de 1930 a 1960, aproximada-

68
Contribuições do Comportamentalismo Capítulo 07
mente. Sua principal característica é o firme objetivo de livrar a ciência
psicológica dos “pseudoproblemas”, ou seja, de qualquer proposição não
observável, mensurável ou demonstrável a partir da efetivação de testes
experimentais. Como você já deve ter inferido, os neocomportamen-
talistas defendiam que o conceito de experiência consciente individual
não deveria fazer parte do repertório da ciência psicológica, devido ao
fato de que não é possível investigar a existência ou as características da
consciência por meio dos métodos científicos objetivos.

Fiel a determinação objetivista, Edward Chace Tolman (1886-


1959), desenvolveu o conceito de variável interveniente para definir
um conjunto de fatores não observáveis, mas que determinam o com-
portamento. Ao fazer isso modificou a sentença que definia a teoria de
Watson como sendo E – R para E _ O _ R, onde O designa os processos
internos que estabelecem a ligação entre o estímulo e a resposta obser-
vada (é a variável interveniente).

Sua abordagem é reconhecida como comportamentalismo inten-


cional, exatamente porque sua teoria da aprendizagem parte do
princípio sob o qual o objetivo (por exemplo, o rato de laboratório
alcançar a comida) preconiza estabelecer relações de intencionali-
dade que culminam no comportamento observável (ter seguido por
esta ou aquela direção dentro do labirinto). No intuito de resumir
seus pressupostos, poderíamos dizer que para Tolman toda ação
visa um objetivo e os comportamentos revelam tanto a intenciona-
lidade de alcançá-lo quando de aprender formas de fazê-lo.

Clark Leonard Hull (1884 – 1952) desenvolveu sua abordagem


partindo do modelo E – O – R proposto por Tolman. Em seus estudos
sobre motivação postulou a variável interveniente do impulso como o
estímulo provocado por um estado de necessidade do organismo que
impulsiona ou ativa um determinado comportamento. Para ele, a base
do reforço para a aprendizagem estava na satisfação ou controle deste
impulso. Preocupado em medir a força do impulso na determinação do
comportamento, deu ênfase à atividade de mensuração da intensidade
da resposta ao tempo de privação imposto aos organismos.

69
Psicologia Educacional

Na sua concepção podiam-se identificar dois tipos de impulsos: os


primários (inatos, como a necessidade de comer, dormir, defecar) e os
secundários (que se originavam da associação efetivada pelo organismo
entre estímulos situacionais ou ambientais e a redução ou ativação dos im-
pulsos primários). Um exemplo de impulso secundário é a reação de afas-
tar a mão do fogo por sujeitos que tiveram a experiência de ativar o impul-
so primário de necessidade de reduzir a dor após sofrer uma queimadura.
O impulso secundário foi aprendido, é fruto de uma experiência.

A partir destas observações, desenvolveu uma teoria da aprendiza-


gem pautada na lei do reforço primário. Segundo esta lei, toda relação
estímulo-resposta seguida da redução de uma necessidade primária (ou
corporal) aumenta a probabilidade de se conseguir respostas idênticas
em apresentações subsequentes do mesmo estímulo. O mesmo acontece
quando um impulso secundário funciona como reforço. O importante é
que, pra Hull, a aprendizagem não ocorre na ausência do reforço neces-
sário à redução dos impulsos primários.

B. F. Skinner, foi considerado herdeiro e principal responsável pela


renovação do comportamentalismo de Watson. Suas pesquisas volta-
ram-se para o estudo das respostas a partir da descrição dos comporta-
mentos. Para ele, a tarefa de um investigador científico consistia em “es-
tabelecer as relações funcionais entre as condições de estímulo controladas
pelo pesquisador e as respostas subsequentes do organismo.” (SCHULTZ;
SCHULTZ, 2006, p. 294).
B. F. Skinner (1904 – 1990), psicólogo Em seu trabalho, abandonou a preocupação com os conceitos de
norte-americano que propôs o Beha-
viorismo radical. variável interveniente, impulsos ou processos fisiológicos. Nada do que
acontecia na relação entre o estímulo e a resposta interessava a ele, por
não se constituir em dado objetivo, que se pudesse descrever. Na sua
visão, o comportamento humano é totalmente determinado pelas forças
do ambiente, pelo mundo exterior e não por forças internas. Apesar de
não negar a existência de condições mentais ou fisiológicas internas,
não as incluía em seus estudos por não aceitar sua classificação como
entidades explicativas e sua consequente validade para a ciência.

Skinner também abandonou a ideia de que fosse necessário con-


tar com grande quantidade de indivíduos nas experiências ou efetivar
comparações estatísticas entre as respostas médias dos grupos pesqui-

70
Contribuições do Comportamentalismo Capítulo 07
sados. Seu método consistia na análise compreensiva das respostas de
um único indivíduo, posicionando-se contrário à perspectiva de que a
compreensão do geral levasse à compreensão do particular.

Como você deve lembrar, Pavlov estudou o condicionamento re-


flexo no comportamento respondente. Skinner, por sua vez, dedicou-se
à investigação do condicionamento operante. Este tipo de condicio-
namento leva o indivíduo a operar sobre o ambiente movido por um
estímulo não observável pelo pesquisador, mas que serviu de condicio-
namento a uma resposta observável. A comprovação da possibilidade
deste condicionamento foi efetivada várias vezes a partir de experimen-
tações que se utilizavam da “caixa de Skinner” como instrumento. Skin-
ner desenvolveu um ambiente composto por mecanismos que, quando
acionados, possibilitavam a um rato de laboratório privado de água e
comida saciar sua fome e sua sede. O animal era colocado nesta caixa e
deixado livre para explorá-la. No início acidentalmente, o rato acabava
acionando a alavanca que liberava o alimento. Consumia-o e voltava a
explorar o ambiente até que novamente acionava o mecanismo. Skinner
observou que após algumas ocorrências o animal passava a manipular
a alavanca intencionalmente, ou seja, passava a operar sobre o ambien-
te para obter água e comida. Ao observar o comportamento operante
Skinner julgava estar observando uma situação típica de aprendizagem
e acreditava que a melhor forma de abordar cientificamente o fenôme-
no da aprendizagem era estudar os processos de condicionamento e de
extinção do comportamento operante.

Com base nesta experiência básica com o rato de laboratório, o


autor formulou a lei da aquisição, a partir da qual afirmou que a pro-
babilidade de se fixar um comportamento operante é maior quando ele
é seguido da apresentação de um estímulo reforçador. Ou seja, a prática
é importante para fixar um comportamento, mas a taxa de respostas
aumenta quando é oferecido um reforçamento adicional ao sucesso do
comportamento.

Ciente de que na vida real não é possível obter reforços positivos para
cada resposta e que estes, na melhor das hipóteses acontecem de forma in-
termitente, Skinner se dedicou a estudar que esquema de reforçamento
seria mais adequado para determinar as respostas dos indivíduos.

71
Psicologia Educacional

Suas pesquisas demonstraram que quanto menor o intervalo entre


os reforçamentos oferecidos, mais rápida a resposta do animal. Do mes-
mo modo, observou que o tempo de extinção de um comportamento
gerado pelo esquema de reforçamento intermitente é maior do que o
tempo de extinção de um comportamento gerado por reforço contí-
nuo. Pode-se concluir com isso que se estamos investindo na modela-
gem (na fixação) de uma resposta ou comportamento, devemos estar
atentos à quantidade de estímulos positivos com os quais reforçamos
este comportamento em um espaço de tempo. Reforçar seguidamente,
a cada resposta considerada positiva leva o indivíduo a procurar res-
ponder corretamente com maior rapidez, mas se pararmos de fazer isso
abruptamente, há uma grande probabilidade de que esta resposta seja
extinta quase que imediatamente. Caso contrário, quando reforçamos
o comportamento intermitentemente, após um número X de respostas
corretas, a probabilidade de fixação (manutenção) da resposta mesmo
na ausência do estímulo é maior.

Em uma situação de modificação de comportamento a filtragem dos


estímulos positivos deve ser ainda maior. Em hipótese alguma um com-
portamento indesejável deve ser reforçado, somente os comportamentos
aceitáveis socialmente o devem ser. Como técnica de reforço costuma-se
utilizar fichas, as quais podem ser trocadas por privilégios ou premiações
acertadas previamente com o psicólogo comportamentalista.

O autor acreditava que era possível antecipar, modificar e controlar


o comportamento desde que modificados e controlados os estímulos
do meio. Este processo exige uma minúcia enorme e uma organização
rigorosa das condições ambientais em que a aprendizagem se proces-
sa. Pelo contrário, em nada depende, segundo o autor, das disposições
internas, motivações ou estados emocionais do sujeito. Assim, todo o
comportamento aprendido resulta da história prévia de reforços e puni-
ções a que o sujeito foi exposto.

A punição não deve ser utilizada como técnica de modificação de


comportamentos. Segundo Schultz e Schultz (2006, p. 302), “de
acordo com Skinner, as pessoas não devem ser punidas por não se
comportarem da forma desejada. Ao contrário, devem ser reforçadas

72
Contribuições do Comportamentalismo Capítulo 07
ou recompensadas quando mudarem o comportamento na direção
positiva.” Em última instância, Skinner acreditava que se controlás-
semos as consequências dos comportamentos, controlaríamos
aquilo que o sujeito aprende e o seu comportamento no futuro.

Embora o seu trabalho empírico estivesse centrado no estudo la-


boratorial de animais, como os ratos e os pombos, ele tinha em vista a
compreensão e explicação da aprendizagem humana e a aplicação das
suas leis ao mundo da educação, da saúde e, até da política. Skinner am-
bicionou criar uma sociedade utópica, na qual o condicionamento e o re-
forço (dois dos seus principais conceitos) pudessem ser as grandes bases
científicas da reforma social e da construção de uma sociedade ideal.

7.3 O sociocomportamentalismo: Rotter e


Bandura
Estes autores opõem-se tanto ao comportamentalismo metodoló-
gico de Watson quanto ao modelo radical proposto por Skinner pelo
fato de reduzirem todo o comportamento humano aos níveis mais ele-
mentares de funcionamento, ou seja, aqueles em que os animais e os
seres humanos partilham aspectos comuns de aprendizagem. O con-
dicionamento, segundo estas novas perspectivas não permite explicar
comportamentos e aprendizagens tão complexas como o comporta-
mento imitativo, a aprendizagem de regras gramaticais, a criatividade,
e tantos outros aspectos do comportamento humano que ultrapassam a
escala de desenvolvimento máximo dos animais.
Julian Rotter (1916), psicólogo norte-
americano.
Julian Rotter considerava que os processos cognitivos são interme-
diários na relação entre o estímulo externo e o reforço. Referenciou seus
estudos como compondo uma teoria da aprendizagem social, afirman-
do a relação fundamental entre a aprendizagem do comportamento e as
experiências sociais.

Rotter (1975, p.57) afirmou que

[...] a teoria da aprendizagem social é uma teoria molar da personalidade


que procura integrar estas duas correntes teóricas (comportamentalismo

73
Psicologia Educacional

e cognitivismo), que embora antagônicas são significativas da psicologia


americana. Ela é uma teoria que procura lidar com a complexidade do
comportamento humano, sem deixar de utilizar construtos definidos
operacionalmente e hipóteses testáveis empiricamente.

Suas pesquisas envolveram predominantemente pessoas em situa-


ção de interação social e demonstraram que:
Schultz e Schultz
(2006, p. 310).
1) O indivíduo cria expectativas subjetivas em relação às conse-
quências ou aos resultados do seu comportamento com base na
quantidade e no tipo de reforço que recebe;

2) Ele calcula a probabilidade de determinado comportamento


conduzir a um reforço específico e o ajusta apropriadamente;

3) Atribui valores diferentes para os diversos reforços e avalia o


seu valor relativo nas variadas situações;

4) Como cada indivíduo apresenta um comportamento exclusivo


e único no ambiente psicológico, o mesmo reforço pode adqui-
rir diferentes valores para diversas pessoas.

Desse modo, para Rotter, os valores e as expectativas subjetivas,


que consistem em estados cognitivos internos, determinam os efeitos
das diferentes experiências externas (estímulos e reforços externos dife-
rentes) sobre o indivíduo.

Este autor defendeu a ideia de que a origem do reforço é explicada


diferentemente pelas pessoas, dependendo de onde identificam estar o
locus de controle do reforço. Para algumas pessoas, o reforço depende
do próprio comportamento (locus interno). Para outras, depende de
elementos como a sorte, o destino ou as atitudes de outros indivíduos
(locus externo). Segundo os resultados de suas pesquisas comprova-
ram, indivíduos desenvolvem teorias implícitas de sucesso ou fracasso
e recorrem a elas, não só para avaliar, compreender, explicar e prever os
próprios resultados e as consequências destes numa situação, mas tam-
bém para orientar, organizar e implementar a sua ação.

74
Contribuições do Comportamentalismo Capítulo 07
Estudos atuais indicam que há uma relação direta entre a vivência
contextual dos sujeitos (onde moram, quais as condições de vida
no lugar, se há maior ou menor possibilidade de mobilidade social,
etc) a internalidade ou externalidade do locus de controle (se sob
seu controle ou sob controle de outras pessoas, da sorte, do destino)
e o rendimento dos indivíduos em situações de aprendizagem. Ou
seja, as condições sociais (ambiente externo) configuram-se como
aspectos psicossociais (constituintes da estrutura cognitiva do sujei-
to) e interferem na aprendizagem, no desempenho de suas compe-
tências e no relacionamento com seus pares (comportamento).

Para este autor, a qualidade da aprendizagem depende sempre da


relação entre os fatores expectativa, valor do reforço e situação psico-
lógica (atribuição de significados à situação e à ação). O valor do refor-
ço vai depender das expectativas que a pessoa constrói a partir da an-
tecipação que faz da relação entre seu comportamento e a recompensa
que espera receber. Ou seja, para que algo funcione como motivação
para alguém, precisa estar ligado, de algum modo, às expectativas e as
expectativas dependem do significado que o sujeito atribui à situação.
Dependem de um processo que é psicossocial. Não somente psicológi-
co, individual, nem somente social (contextual).

A probabilidade de ocorrência do comportamento depende, tam-


bém, do valor subjetivo que o indivíduo atribui aos resultados esperados.
Trata-se aqui do conceito do valor de reforço. Se o valor da consequên-
cia esperada for alto, o indivíduo comporta-se de modo a obtê-lo. Se o
valor for baixo, o indivíduo não se esforça por conseguir esse reforço.
Rotter ainda defendeu que o agente crucial do comportamento dos in-
divíduos é o componente psicológico, ou seja, a percepção subjetiva da
ação e das diferentes situações de vida segundo um significado próprio.

75
Psicologia Educacional

Tomando estes conceitos conjuntamente como parâmetro, podemos


refletir acerca do quanto pode estar sendo valoroso para cada um dos
nossos alunos o que eles recebem como resultado (reforço) à tarefa de
realizar os deveres de casa, por exemplo. Por vezes, o fato de o professor
obter um baixo índice de efetivação dessas tarefas pode estar relaciona-
do ao baixo valor que os estudantes estão atribuindo à sua efetivação,
se comparado ao reforço que estão esperando receber como resultado
desta atividade.

Albert Bandura criticou a teoria de Rotter, afirmando que esta não


explicava a contento como se aprende novas respostas. Segundo o autor,
os conceitos de expectativa, probabilidade do reforço e valor do refor-
ço não ajudam a explicar como, alguém sem qualquer habilidade para
apresentar uma resposta poderia chegar a fazê-lo contando somente
com a expectativa de um reforço muito atrativo e com totais chances de
ser alcançado. Por exemplo: como alguém que não sabe nada de alemão,
mas tem a expectativa de conseguir um emprego muito bem pago na
Albert Bandura (1925) é um psicólogo
Alemanha, conseguiria aprender e dominar este idioma? Para explicar
nascido no Canadá e autor da Teoria as aprendizagens novas, como a da língua, seria necessário, segundo ele,
Social Cognitiva
introduzir uma variável social importante: o modelo social, neste caso,
o modelo de verbalização.

A aprendizagem por observação ou modelação explicaria as novas


aquisições. Esta forma de aprender é possível a partir da observação de
comportamentos que têm uma função informadora para o sujeito que
os observa.

Ao ser exposto às atividades de modelos significativos e ao apre-


ender as consequências que eles obtêm para os seus atos, o indivíduo
desenvolve representações simbólicas das atividades modeladas que
irão guiar o seu comportamento futuro em situações similares ou em
contextos cujas regras sejam as mesmas. Estas representações simbóli-
cas resultam das exposições que, no decorrer das suas interações sociais,
o sujeito vai tendo a diferentes situações e modelos sociais. Ao observar
diferentes situações e os comportamentos dos outros nessas situações,
o observador extrai uma regra conceptual (elabora um registro mental

76
Contribuições do Comportamentalismo Capítulo 07
dos dados da experiência) que lhe permite a generalização e a transfe-
rência de comportamentos e respostas a situações novas. Esta transfe-
rência faz-se adequadamente, quando o sujeito compreendeu que exis-
tem atributos comuns em diferentes situações e age de acordo com esse
conhecimento. É através da apreensão de regras conceptuais que apren-
demos, por exemplo, a falar uma língua ou a fazer julgamentos morais
(saber o que está bem e mal em cada situação).

Sua proposta ficou conhecida como Teoria Social Cognitiva. Nela,


o autor enfatiza a influência reforçadora externa que processos de pen-
samento como crenças, expectativas e instruções têm sobre o compor-
tamento. Na sua concepção os comportamentos não são ativados por
estímulos externos, mas auto-ativados segundo um processo cognitivo
que permite ao indivíduo antecipar respostas consideradas de sucesso
nas interações sociais. Schultz e Schultz (2006, p. 305) explicam: “para
Bandura […] quando um reforço externo altera o comportamento, é por-
que a pessoa tem consciência da resposta que está sendo reforçada e ante-
cipa a recepção do mesmo reforço ao repetir o comportamento da próxima
vez em que a situação ocorrer.”

Este autor relativizou a questão da necessidade ou determinação


do reforço sobre os comportamentos, tendo afirmado que não é preci-
so que o indivíduo receba reforços diretamente, sejam eles seguidos ou
intermitentes para aprender algo, e que a aprendizagem também ocorre
por meio do reforço vicário, “ou seja, mediante a observação do com-
portamento das outras pessoas e das suas consequências.” (SCHULTZ;
SCHULTZ, 2006, p. 305).

Esta modalidade de aprendizagem se pauta na capacidade de con-


trolar o próprio comportamento (optar conscientemente por agir de uma
ou outra forma) a partir da antecipação e da avaliação das consequências
da experiência comportamental de outras pessoas. O mecanismo que se
interpõe entre o estímulo e a resposta é, para Bandura, o processo cog-
nitivo do indivíduo. Assim, não é o esquema de reforço que determina
o comportamento do indivíduo, mas o que ele pensa desse esquema. A
partir da observação do comportamento de outros indivíduos, a pessoa
seleciona “modelos” e fundamentada neles, determina seu próprio com-
portamento. As aprendizagens se efetuam por influência dos modelos

77
Psicologia Educacional

tradicionais (familiares, amigos, professores) ou dos modelos simbólicos


(apreendidos do cinema, da televisão etc.) e são seus atributos que deter-
minam a modelação desta aprendizagem por imitação.

Em suas pesquisas, comprovou que a tendência é que a modelagem


do próprio comportamento seja fundamentada no que se observa da
experiência de pessoas da mesma idade e do mesmo sexo, ou seja, envol-
vidas com problemas semelhantes aos do indivíduo. Do mesmo modo,
tende-se a seguir modelos de status e prestígio superiores ao da pessoa.
Bandura afirmou ainda que os comportamentos simples são mais co-
mumente imitados que os extremamente complexos e que comporta-
mentos hostis e agressivos tendem a ser muito imitados, o que nos faz
refletir sobre a influência da mídia no comportamento das massas.

Nem todos os comportamentos sociais observados são efetivamente


aprendidos. A aprendizagem social, para que ocorra, depende tanto do
modelo observado quanto do aprendente (observador). A ocorrência de
aprendizagens efetivas e significativas depende de quatro processos cog-
nitivos básicos: atenção (estar atento ao modelo cujo comportamento
se quer aprender), capacidade de retenção da informação, reprodução
(exercitar o novo comportamento adquirido) e motivação (para imitar
o modelo social cujo comportamento é foco da aprendizagem).

O autor considera que a atenção depende de características valori-


zadas do modelo, tal como o seu prestígio e status aos olhos do observa-
dor, ou o tipo de relação que estabelecem entre si, no caso de o modelo
ser grupal. Estar atento ao modelo permitirá ao sujeito a retenção, ou
seja, a memorização das atividades que foram modeladas. A memoriza-
ção, por sua vez, corresponde a uma modelagem simbólica dos padrões
de resposta, a qual constitui uma espécie de mapa mental que guiará
comportamentos futuros, porque permitirá o acesso ao comportamento
aprendido a partir da experiência de observação do modelo.

A reprodução equivale à tradução das representações simbólicas


em ações. Estabelece-se a partir de aproximações sucessivas, por en-
saios e erros, ao comportamento final adequado. Trata-se de um pro-
cesso fundamental para que o sujeito possa tornar-se competente na
execução de tarefas mais complexas. No caso de aprendizagens como
nadar, escrever, dançar ou tocar um instrumento musical a resposta não

78
Contribuições do Comportamentalismo Capítulo 07
depende só da observação, mas também da prática, da execução gradual
e do feedback obtido.

Reforços e/ou punições associadas à conquista ou não da nova


aprendizagem pelo sujeito (ou seja, o sentido que o sujeito atribui ao
conteúdo da aprendizagem – reforçador ou punitivo) são elementos
importantes da motivação. Dentre as numerosas respostas que vamos
aprendendo durante a vida, preferimos aquelas que nos parecem mais
eficazes. São estas as que acabamos por repetir e integrar ao nosso re-
pertório comportamental.

Para Bandura, as consequências das respostas têm, na aprendiza-


gem, um papel informativo, autorregulador e motivacional, devido aos
seus efeitos antecipatórios sobre as ações futuras. O reforço age como
fator motivacional que interfere retroativamente sobre a atenção, a re-
tenção e a produção.

Outro conceito bastante conhecido deste autor é o de autoeficácia,


o qual se refere ao senso de valor próprio, ao sentimento de adequação,
eficácia e competência observáveis em um indivíduo em processo de
resolução de problemas. Seus estudos apontaram para uma relação di-
reta entre a conceituação de si como um indivíduo com baixo grau de
autoeficácia e o adoecimento e estresse. Pessoas com elevado grau de
autoeficácia, por sua vez, tendem a “obter notas altas, a analisar mais
opções de carreira, a obter maior sucesso profissional, a estabelecer metas
pessoais mais altas e a apreciar mais a saúde mental e física.” (SCHULTZ;
SCHULTZ, 2006, p. 307).

Além disso, afirmou que os grupos podem desenvolver níveis co-


letivos de eficácia e que estes níveis acabam influenciando no desempe-
nho de diversas tarefas. Nas palavras do autor,

[...] quanto mais intensamente percebida a eficácia coletiva, mais ele-


vadas são as aspirações do grupo e maior é a motivação para as reali-
zações; quanto mais intensa a persistência diante de impedimentos e
obstáculos, mais elevados são o moral e a capacidade de recuperação
diante do estresse, e maior a realização de proezas. (BANDURA apud
SCHULTZ; SCHULTZ, 2006, p. 307).

79
Psicologia Educacional

Em resumo, a aprendizagem por observação resulta da capacidade


humana de utilizar símbolos verbais e imagéticos a partir dos quais se
retém experiências (diretas ou observadas) sob a forma de representa-
ções cognitivas. Estas representações funcionam como mapas ou guias
para orientar o comportamento futuro em situações que exigem a re-
solução de problemas.

São as representações cognitivas que temos das situações que nos


permitem prever determinadas consequências geradas por um tipo de
resposta ou outro e, paralelamente, controlar nosso comportamento de
modo a dar à situação a resposta que mais nos fará obter êxito na tarefa.
A este processo (de antever e controlar) denomina-se autorregulação
do comportamento.

É importante considerar ainda que os modelos sociais a partir dos


quais aprendemos aptidões complexas (como a língua ou a moral) por
observação incluem aquelas pessoas com as quais convivemos no dia a
dia, como familiares, vizinhos, amigos, professores, etc, mas também os
modelos simbólicos, como os livros, personagens da televisão, dos gibis
e do cinema, a publicidade, os jogos eletrônicos, a internet etc.

Tomando por base os princípios da teoria da aprendizagem social,


o professor pode organizar aspectos de sua prática pedagógica de modo
a torná-la mais eficiente do ponto de vista do sucesso nas relações de
ensino e de aprendizagem:

1) Procurando observar, a partir de propostas iniciais menos com-


plexas, as características do locus de controle de seus alunos: de
externalidade ou internalidade. Procurar ser um modelo ou
trazer-lhes modelos de deslocamento do locus de controle ex-
terno para o interno, considerando que pautar seus comporta-
mentos em uma ou noutra perspectiva não constitui um traço
de personalidade das pessoas, mas uma aprendizagem social
que pode ser remodelada;

2) Buscar potencializar os efeitos da aprendizagem por observa-


ção, como a aprendizagem de novos comportamentos, o forta-
lecimento de comportamentos já aprendidos, o fortalecimento
e o enfraquecimento de inibições, a direcionalidade da atenção

80
Contribuições do Comportamentalismo Capítulo 07
e o direcionamento das emoções despertadas em situações de
observação de modelos. Para tanto, o professor deve procurar
definir claramente seus objetivos de ensino e procurar relacioná-
los às aprendizagens esperadas. Deve ser ele mesmo um modelo
a partir do qual se aprende, assim como proporcionar o conta-
to dos alunos com modelos simbólicos (livros, filmes, imagens,
palestras) coerentes com este objetivo. Deve aplicar regras cla-
ras, que sejam válidas para todos os alunos (cada aluno poderá
ajudar o professor a distribuir materiais aos colegas ou buscar
alguma coisa na secretaria da escola, seguindo um escalonamen-
to prévio, independentemente do seu desempenho escolar e não
como prêmio para alunos mais esforçados ou comportados).

Por último, faz-se importante considerar que estimular a aprendi-


zagem por observação não quer dizer estimular a competição pelo me-
lhor modelo, até porque a modelação do comportamento, ou a aprendi-
zagem social, vai depender de uma relação, a qual se estabelecerá entre
o que deve ser observado e o significado que o observador atribuir à
situação. Dependendo da história de aprendizagens da pessoa, o com-
portamento de competir pode ser totalmente aversivo. A aprendizagem
significativa por modelagem vai depender sempre da busca constante de
conhecimento acerca das pessoas que estão em relação entre si e com o
objeto de conhecimento e do esclarecimento do que funcionaria como
agente motivador para este e aquele aluno.

Leia mais
Para saber mais sobre o que é o comportamentalismo no contexto da
história da psicologia como ciência, consulte o livro indicado para esta
disciplina: CARRARA, K. (Org.) Introdução à Psicologia da Educa-
ção. Seis Abordagens. São Paulo: Avercamp, 2004 e também os livros
de BOCK, Ana M. B. (Org.). Psicologias: uma introdução ao estudo
da psicologia. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, e SCHULTZ, Duane P;
SCHULTZ, Sydney Ellen. História da Psicologia Moderna. Tradução da
8ª edição americana. São Paulo: Thompson Learning Edições, 2006.

81
Contribuições do Construtivismo Piagetiano Capítulo 08
8 Contribuições do
Construtivismo Piagetiano
Neste capítulo vamos conhecer aspectos da teoria de desenvolvimento e
aprendizagem desenvolvida por Jean Piaget e suas relações com a educação.

No início do século XX acreditava-se que os mecanismos básicos que


crianças e adultos utilizavam em seu raciocínio eram os mesmos. Herda-
dos, permaneceriam estáveis por toda a vida. A diferença entre os proces-
sos cognitivos de um e de outro era apenas de grau, atribuída ao acúmulo
de anos (maturação) e de experiências vividas (ambientalismo).

Piaget demonstrou que em muitas questões fundamentais (como


na relação de permanência ou não do objeto) as crianças não pensam
como os adultos porque ainda lhes faltam certas habilidades. O pensa-
mento das crianças é diverso do pensamento do adulto tanto em grau
(mais ou menos complexo) quanto em classe (tipos de pensamento que
ela consegue formular).

Piaget (1896 - 1980)


Um experimento clássico de Piaget: brinque com uma chave fren-
te a uma criança de menos de um ano de idade. Assegure-se que a
criança está prestando atenção em você e no objeto. Esconda a cha-
ve embaixo do tapete sobre o qual a criança está sentada, mostre-lhe
sua mão vazia e pergunte-lhe onde está a chave. A criança vai olhar
para a sua mão e para o seu rosto, demonstrando não entender o
que você está querendo dela. Para ela, quando um objeto não é mais
visto, ele desaparece, deixa de permanecer. Não lhe ocorre procurar. Além das centenas de ar-
tigos científicos, somente
no Brasil foram publicados
mais de 50 livros seus, al-
Nesta perspectiva, a construção do conhecimento pelo sujeito re-
guns em coautoria, mas a
sulta da interação sujeito-ambiente. Piaget estudou esta modalidade de maioria deles fruto de seu
trabalho individual.
interação por mais de 60 anos, tendo dedicado a maior parte deste tem-
po à compreensão de como se constrói a inteligência humana.

83
Psicologia Educacional

Na sua concepção, o desenvolvimento cognitivo depende de fatores


tais como: maturação (no sentido biológico do termo), experiência
(interação com objetos) aprendizagem social (valores, linguagem,
costumes e padrões socioculturais) e equilibração (processo de au-
torregulação interna do organismo, da busca interna de equilíbrio
entre as estruturas mentais após cada desequilíbrio causado pela e
na interação com o ambiente).

Piaget era biólogo de formação e o sistema concebido por ele para


explicar o desenvolvimento cognitivo foi bastante influenciado por este
aspecto de sua história. Por exemplo: ao afirmar que os atos cognitivos
constituem-se em atos de organização e de adaptação ao meio, utilizou
os mesmos conceitos que utilizara para explicar (como biólogo) que as
couraças dos moluscos sofriam modificações em sua forma e consistên-
cia dependendo do ambiente no qual estes organismos viviam (se em
águas calmas ou agitadas).

Ao utilizar conceitos semelhantes para definir fenômenos dife-


rentes, Piaget pretendeu chamar a atenção para o fato de que conceitos
comprovados na explicação do desenvolvimento biológico são úteis e
válidos à pesquisa do desenvolvimento cognitivo. Embora um fenôme-
no não seja redutível ao outro, pode-se partir dos mesmos princípios
básicos para a sua compreensão.

Organização (atividade intelectual) e adaptação (atividade biológica)


não podem ser vistos como processos separados, mas interdependentes,
pois a atividade mental é parte do funcionamento total do organismo.

A adaptação do organismo ao meio é resultado de organizações


cognitivas decorrentes da relação sujeito-ambiente e na base deste pro-
cesso estão quatro conceitos básicos:

1) Esquemas - são as estruturas mentais ou cognitivas. Obvia-


mente não há correlato biológico para estas estruturas, as quais
devem ser entendidas como construtos hipotéticos acerca do
conjunto de processos que ocorrem no sistema nervoso. Esque-
mas são as categorias ou conceitos que construímos a partir da

84
Contribuições do Construtivismo Piagetiano Capítulo 08
relação com o meio. Por exemplo: quando uma criança nasce,
possui um esquema bastante útil: sugar. Ao esquema presente
ao nascer, chamamos esquema reflexo. À medida que a criança
se desenvolve, vai complexificando sua relação com o mundo
e este esquema também ganha em qualidade e complexidade,
constituindo-se em uma categoria agora não mais reflexa, mas
cognitiva e o esquema sugar passa a ser aplicado a diferentes
situações: sugar o seio = alimentar-se; sugar a chupeta = acal-
mar-se; sugar o polegar = desenvolver a corporeidade etc.

2) Assimilação – é o processo pelo qual se integra uma nova in-


formação aos esquemas. Esta informação pode ser perceptual,
motora ou conceitual. Utilizando o exemplo acima, podemos
afirmar que cada vez na qual o bebê toca o seio da mãe, percebe
sua textura (informação perceptual), gradativamente seu toque
(informação motora) deixa de ser ao acaso e passa a ser inten-
cional e por fim ele entende (informação conceitual) que ele e
a mãe são pessoas diferentes, ou que mamar no seio dela não
é algo que acontece “naturalmente” independentemente da co-
municação entre ambos (o bebê chora, ou puxa a blusa da mãe
para demonstrar querer mamar e ela o atende ou não).

3) Acomodação – é o processo pelo qual a informação assimi-


lada passa a compor um esquema. Quando um sujeito se de-
para com uma informação nova, para a qual não possui um
esquema (porque não havia entrado em contato com esta in-
formação antes ou então porque a novidade exige adaptações
no esquema anterior por ser muito genérico, muito simples)
podem acontecer duas coisas: 1) um novo esquema é criado
para acomodar a informação, ampliando quantitativa e qua-
litativamente sua inteligência; ou 2) um esquema existente é
modificado para acomodar a informação, ampliando qualita-
tivamente sua inteligência.

4) Equilibração – é o processo de passagem de uma situação de


desequilíbrio cognitivo para uma situação de equilíbrio, de au-
torregulação da interação do sujeito com o meio. É por meio
do processo de equilibração que a experiência externa é incor-

85
Psicologia Educacional

porada à experiência interna da criança (aos seus esquemas ou


à sua inteligência). Piaget cunhou este termo para representar
a importância da síntese entre equilíbrio e desequilíbrio como
processos interdependentes e fundamentais ao desenvolvimen-
to cognitivo: o desequilíbrio é o agente motivador da busca
pelo equilíbrio, condição necessária ao desenvolvimento. Para
entender esta questão, vamos voltar ao exemplo do bebê que
utilizamos anteriormente: é fundamental para o seu desenvol-
vimento que em algum momento ele e a mãe compartilhem o
entendimento de que ele está com fome. Quando a mãe inter-
preta seu choro como sendo fome, ocorre um equilíbrio entre
sua atividade biológica e sua atividade mental. Mas também é
extremamente importante que tanto a forma de se alimentar
quanto a forma de se comunicar evoluam (entrem em dese-
quilíbrio com as anteriores) e ele desenvolva modalidades mais
complexas de pensamento e de linguagem para expressar suas
necessidades, promovendo adaptações ao meio mais condizen-
tes com os diferentes estágios do seu desenvolvimento.

Piaget dividiu o desenvolvimento humano em 4 estágios:

Estágio Sensório-motor (0 a 2 anos) - caracteriza-se pelo com-


portamento basicamente motor e pela evolução gradual da representa-
ção interna dos objetos;

Estágio Pré-operatório (2 aos 7 anos) – caracterizado pelo desen-


volvimento da linguagem e outras formas de representação, é tam-
bém marcadamente produtivo do ponto de vista da construção de
novos conceitos, embora numa perspectiva semilógica;

Estágio das Operações Concretas (7 aos 11 anos) – caracteriza-se


pelo desenvolvimento e aprimoramento do pensamento lógico e da ca-
pacidade de aplicar a lógica a problemas concretos. É o período em que
o indivíduo consolida as conservações de número, substância, volume
e peso. Já é capaz de ordenar elementos por seu tamanho (grandeza),
incluindo conjuntos, organizando o mundo de forma lógica ou operató-
ria. Sua organização social é a de bando, podendo participar de grupos
maiores, chefiando e admitindo a chefia. Já podem compreender regras,
sendo fiéis a ela, e estabelecer compromissos.

86
Contribuições do Construtivismo Piagetiano Capítulo 08
Estágio das Operações Formais (11-15 anos ou mais) – carac-
terizado pelo desenvolvimento da aptidão de aplicar o raciocínio
lógico a todas as classes de problemas (concretos e abstratos).
Corresponde ao nível de pensamento hipotético-dedutivo ou ló-
gico-matemático. É quando o indivíduo está apto para calcular uma
probabilidade, libertando-se do concreto em proveito de interesses
orientados para o futuro. Sua organização grupal pode estabelecer
relações de cooperação e reciprocidade.

Em um sentido amplo, a teoria de Piaget, nos possibilita refletir acer-


ca de múltiplos aspectos relacionados aos processos de desenvolvimento
e aprendizagem humanos que, se observados, em muito contribuem para
o planejamento e execução de práticas pedagógicas eficazes, a saber:

ǿǿ o desenvolvimento humano (no sentido mais amplo do termo)


antecede à aprendizagem. Dito de outro modo, a aprendiza-
gem é um processo construído internamente, depende do nível
de desenvolvimento dos sujeitos e se complexifica do ponto de
vista qualitativo a partir de inúmeras reorganizações cognitivas
ao longo da vida;

ǿǿ a interação organismo-meio é central à compreensão da subje-


tividade humana. A ela estão relacionados dois processos im-
portantes: a organização interna da inteligência e a adaptação
(inteligente) ao meio;

ǿǿ a inteligência é construída ativamente pelo sujeito, não sim-


plesmente pelo fato de que a interação com o meio é condição
da sua construção, mas no sentido de que ele compara, exclui,
ordena, categoriza, classifica, comprova, formula hipóteses e
as reformula continuamente;

ǿǿ toda esta atividade e seu resultado são observáveis, seja do


ponto de vista interno (expressão dos pensamentos), seja ex-
terno (ação efetiva sobre o meio);

ǿǿ os conflitos cognitivos são fundamentais para a aprendizagem;

ǿǿ a interação social favorece a aprendizagem, desde que contem-


ple desafios à estrutura cognitiva;

87
Psicologia Educacional

ǿǿ a formulação de objetivos de aprendizagem deve levar em con-


ta a atividade dos sujeitos;

ǿǿ os conteúdos não podem ter um fim em si mesmos, precisam


contemplar necessidades próprias da evolução cognitiva dos
sujeitos em cada estágio de desenvolvimento.

Leia mais!
Para saber mais sobre a epistemologia genética de Jean Piaget, consul-
te o capítulo VI do livro indicado para esta disciplina: CARRARA, K.
(Org.) Introdução à Psicologia da Educação. Seis Abordagens. São Paulo:
Avercamp, 2004.

88
Contribuições da Psicologia Histórico-cultural Capítulo 09
9 Contribuições da Psicologia
Histórico-cultural
Neste capítulo vamos conhecer as ideias de Lev S. Vygotsky e suas
contribuições para o desenvolvimento da abordagem histórico-cultural
em psicologia e em educação.

9.1 Uma psicologia marxista


A abordagem histórico-cultural foi inicialmente denominada “psi-
cologia soviética”, por ter-se originado na Rússia, uma das repúblicas URSS
A URSS era um país
da antiga URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) após a socialista localizado na
Revolução de 1917. Europa e na Ásia, que
era constituído por
Seu nascimento foi fortemente influenciado pela concepção mate- 15 repúblicas, onde a
rialista da história, desenvolvida por Marx, e pelo método dialético de maior e mais importan-
te era a Rússia (onde
construção do conhecimento, o qual enfatiza o caráter processual e em
fica a capital do país – a
desenvolvimento dos sistemas estudados. cidade de Moscou)

A psicologia soviética marxista opunha-se, de um lado, à ideia de


psicologia como ciência natural, articulada pela psicologia experimen-
Revolução de 1917
tal e, de outro, à de psicologia como ciência mental, nos moldes da Considerada a primeira
psicanálise e do cognitivismo. revolução comunista
inspirada pelas ideias
Rey (2007) explicita o alto grau de dificuldade encontrado pelos de Karl Marx, ocorrida
cientistas à época no que diz respeito à produção desta nova psicologia, no século XX.
principalmente no que tange à apropriação do método dialético pela
ciência psicológica. O primeiro passo nessa direção foi dado por Kons-
tantin N. Kornilov (1879-1957), cujas pesquisas buscaram comprovar a
independência entre o psíquico e o reflexológico.

Como você ainda deve lembrar, a reflexologia admitia a existência de


fenômenos internos, mas negava a possibilidade de estudá-los cientifica-
mente, tanto que Pavlov mudou sua referência aos reflexos observados em
seus estudos como psíquicos, passando a nominá-los reflexos condiciona-
dos. Pois bem, Kornilov propunha que a “nova psicologia” considerasse os
determinantes internos em sua relação com os determinantes externos,
preservando suas especificidades. Propunha que se considerasse a mate-

89
Psicologia Educacional

rialidade do psiquismo como algo mais complexo do que as respostas re-


flexas, mas ao fazer isso acabou absolutizando o psiquismo como resultado
das experiências sociais, retirando-lhe as determinações biológicas, histó-
ricas e culturais. Nesse sentido, não incluiu em seus trabalhos um princípio
fundamental do método dialético: para se chegar a conhecer um fenôme-
no, deve-se levar em conta a relação (sempre conflituosa/contraditória)
entre todos os sistemas que participaram de sua gênese e organização.

Kornilov era o diretor do Instituto de Psicologia de Moscou e no ano


de 1924, por ocasião do II Congresso de Psiconeurologia de Leningrado,
conheceu Lev S. Vygostsky, cuja apresentação de um trabalho que trata-
va exatamente da questão do método em psicologia, deixou a todos im-
pressionados. Até então, Vygotsky havia sido um professor universitário
de literatura e psicologia, desconhecido da comunidade científica, mas a
apresentação de seu trabalho levou Kornilov a convidá-lo a integrar, como
pesquisador, o Instituto de Psicologia de Moscou. Este encontro deu iní-
cio a mais profícua fase de desenvolvimento da psicologia soviética no
século XX. Além de Vygotsky, integravam o Instituto, Alexander R. Luria
e Alexei N. Leontiev, os quais tornaram-se seus colaboradores, inclusive
no processo de multiplicação das suas ideias, uma vez que este morreu
precocemente, dez anos depois, aos 37 anos, vítima de tuberculose.

A década que comporta seu casamento, sua ida para Moscou, o


nascimento de suas filhas e a sua morte, foi marcada por intensa pro-
dução acadêmica e de pesquisa, a partir da qual procurou dar conta de
duas grandes metas: a) reformular a teoria psicológica segundo os pre-
ceitos do marxismo; e b) desenvolver meios concretos de lidar com os
imensos problemas com os quais se confrontava, àquela época, a União
Soviética. Entre eles estavam o analfabetismo em massa e a falta de as-
sistência a pessoas com deficiências de qualquer tipo.

Vygotsky se opunha à ideia de que se pudesse compreender as fun-


ções psicológicas tipicamente humana a partir de experimentos realizados
com animais (prática largamente utilizada na pesquisa em psicologia na
Vygotsky (1896-1934), psicólogo bie-
lo-russo. época), cuja possibilidade de organização social e de vivência de papéis no
grupo é predefinida, determinada geneticamente. Para ele, o desenvolvi-
mento das funções psicológicas superiores é bem menos influenciado pela
maturação biológica, do que pela complexa mediação social e cultural.

90
Contribuições da Psicologia Histórico-cultural Capítulo 09
Nesta perspectiva, a cultura faz parte do desenvolvimento humano
e deve ser considerada parte integrante do estudo e da explicação
dos fenômenos tipicamente humanos. Como se percebe facilmente,
Vygotsky compartilha com Marx o princípio de que a relação dos ho-
mens com o mundo resulta em mudanças nos dois pólos da relação:
é próprio do homem transformar ativamente o contexto em que vive,
ao mesmo tempo em que tem suas formas de pensar e de se relacio-
nar consigo mesmo e com o contexto, transformadas nessa relação.

9.2 Contribuições de Vygotsky para a


psicologia e a educação
“Na elaboração histórico-
Se você leu atentamente a definição das abordagens anteriores, há cultural, um processo
de ter notado que todas as perspectivas apontadas definem como centro interpessoal se transforma
em processo intrapessoal
dos processos de desenvolvimento e aprendizagem, como locus onde se […] e essa transformação
processa e a partir de onde se pode acessar o conteúdo da experiência, o é resultado de uma longa
série de eventos em de-
sujeito individual. Vygotsky defendeu e implementou a ideia de cons- senvolvimento. […] Todas
truir uma nova Psicologia, que desse conta de explicar o Homem e seus as funções psicológicas es-
pecificamente humanas se
processos de um jeito novo, ou seja, de um jeito que permitisse superar originam da relação entre
as abordagens apresentadas ao incluir-se a dimensão histórico-cultural indivíduos.” (VYGOTSKY,
1978, p. 57)
à análise dos fenômenos psicológicos.

Para este autor, não chegaríamos ao nível de desenvolvimento hu-


Cultura
mano que nos permitiu criar a cultura sendo interna ou externamente
Cultura é “a totalida-
determinados. Na sua perspectiva, o que nos faz humanos é exatamente de das condições de
o fato de superar os limites impostos tanto pela biologia quanto pelo existência criadas pelos
ambiente. Na história do gênero humano, fisiologia, biologia e cultura homens ao longo da
história de cada povo.”
se entre tramaram, gerando, por veredas complexas, o psiquismo. Con-
(PINO, 2005, p. 151)
siderando o social em sua dimensão ampla, Vygotsky estruturou sua Cultura inclui da arte à
obra a partir do estabelecimento de relações entre este fenômeno e o tecnologia; dos mitos
e ritos à ciência; das
cultural, o simbólico e o individual.
instituições às práticas
Ao longo do processo evolutivo de nossa espécie, os homens deixa- sociais.

ram de simplesmente “viver juntos”, tendo criado formas diferentes de


organizar essa vivência, tanto do ponto de vista das relações quanto das

91
Psicologia Educacional

condições materiais do contexto. Ou seja, o fenômeno da sociabilidade


natural – ainda observável em outras espécies – deixou de existir como
tal, sendo modificado pelos homens à medida que estes modificavam a
si mesmos. Para Vygotsky, o social viabilizou a emergência do cultural,
do que se pode depreender que o sentido atribuído pelo autor ao desen-
volvimento humano como uma construção social remete ao conceito de
“apropriação, por parte dos indivíduos, das produções culturais da socie-
dade através da mediação desta mesma sociedade” (PINO, 1991, p. 32).

O objetivo fundamental de sua obra foi chamar a atenção para a


necessidade de que a ciência psicológica buscasse compreender as
expressões do psiquismo como uma experiência que é, ao mesmo
tempo, histórico-cultural e individual. Nesse sentido, “sua” Psicologia
não deixa espaço para interpretações e explicações deterministas e/
ou individualistas dos fenômenos psicológicos. Ao contrário disto,
convida o observador interessado nos processos humanos a buscar
Mediação a gênese dos fenômenos manifestos no conjunto de relações que os
Em termos genéricos, engendraram, considerando-as relações históricas.
o termo mediação se
refere à intervenção de
um elemento interme-
Tais relações, por sua vez, são mutuamente determinantes, ou dialé-
diário em uma relação.
Mediação Semiótica é ticas. Tanto “determinam” a humanidade dos homens quanto são por ela
o termo que se refere à “determinadas”. O homem se humaniza ao humanizar suas relações. Isto
intermediação dos sig- quer dizer que o autor considerou algum nível de especificidade nas rela-
nos na relação entre os
homens e o ambiente. ções que denominou humanas. Este nível de especificidade diz respeito ao
fato de que tais relações não são diretas, mas mediadas semioticamente.

A atividade simbólica guarda uma função especificamente organi-


Funções Psicológicas zadora em relação ao conjunto das ações humanas, não só interferin-
Superiores do no processo de criação e uso de instrumentos, mas possibilitando
São todas aquelas
a emergência de novas formas de comportamento, como o desenvol-
funções tipicamente
humanas, como a vimento da linguagem oral, escrita e matemática, o planejamento pré-
fala, o pensamento, a vio de soluções e a autorregulação da conduta. A união das atividades
memória voluntária, a instrumental e sígnica resultou, ao mesmo tempo, na humanização do
linguagem escrita, ma-
sujeito – pelo desenvolvimento de funções psicológicas superiores, es-
temática e imagética.
pecificamente humanas – e na produção e socialização da cultura.

92
Contribuições da Psicologia Histórico-cultural Capítulo 09
No desenvolvimento das ações humanas os objetos, investidos da
função de significantes, deixam de ser manipulados como coisas simples-
mente, passando a compor a rede de significações que dá sentido àquela
atividade, naquele contexto, para aqueles sujeitos em relação, ou seja, “o
objeto a ser internalizado é a significação das coisas, não as coisas em si mes-
mas”. Do mesmo modo, “o que é internalizado das relações sociais não são
as relações materiais, mas a significação que elas têm para as pessoas. Signi-
ficação que emerge da própria relação” (PINO SIRGADO, 2000, p. 66).

Em síntese, o sujeito se constitui no processo contínuo de apro-


priação das pautas relacionais emergentes da interação entre contextos
psicológicos mediados semioticamente, no âmbito das práticas socio-
culturais. Ao participar da trama social, o sujeito se apropria da cultura,
que pertence à ordem do simbólico, da significação da realidade. Cons-
titui, desse modo, seu universo sígnico, modificando e complexificando
qualitativamente o funcionamento psíquico.

Isto considerado, é possível afirmar que o processo de constituição


do psiquismo individual é indissociável do contexto sócio-histórico, uma
vez que as regulações sociais promovem reorganizações cognitivas.

Para Vygotsky, aprendizagem e desenvolvimento são processos


complementares. O autor afirmava que a boa aprendizagem é aquela
que antecede o desenvolvimento, aquela que incide sobre a Zona de De-
senvolvimento Proximal, ampliando e complexificando o repertório de Vygotsky dividiu o con-
respostas do sujeito. ceito de desenvolvimento
humano em duas catego-
Nesse sentido, os processos de aprendizado se constituem fundamen- rias: ZDR (Zona de Desen-
volvimento Real) e ZDP
talmente necessários ao desenvolvimento humano, mais especificamente, (Zona de Desenvolvimen-
ao desenvolvimento das funções psicológicas superiores, onde as carac- to Proximal). Com isso,
ampliou os horizontes da
terísticas psicológicas efetivamente humanas se organizam e estruturam. pesquisa em psicologia:
deixou-se de focar somen-
Sendo a aprendizagem o palco onde atua o desenvolvimento das te “aquilo que a criança já
é capaz de fazer” (ZDR) e
funções psicológicas superiores, não é de se surpreender que Vygotsky incluiu-se “aquilo que ela
tenha dado tanto valor à mediação pedagógica como prática social de será capaz de fazer com
ajuda.” (ZDP)
acesso ao desenvolvimento cultural da humanidade.

Uma vez que a teoria concebe todo o processo de desenvolvimento das


qualidades tipicamente humanas como um processo de educação, suas
investigações envolvem sempre contribuições para refletirmos sobre o

93
Psicologia Educacional

processo educativo, de um modo geral, e a prática pedagógica escolar,


em especial. (MELLO, 2004, p. 140).

Seu conceito de aprendizagem envolve e integra o conceito de en-


sino em um processo de ensino e aprendizagem no qual os indivíduos
se relacionam segundo uma perspectiva exclusiva à espécie humana, ou
seja, intencional e mediatizada por signos e instrumentos. A questão da
intencionalidade em sua obra encontra-se diretamente relacionada ao seu
entendimento de que o que permitiu o processo de hominização foi o agir
intencional, com a finalidade de alterar a realidade de modo a adequá-la
ao atendimento de nossas carências e à criação de um ambiente humano.

Por entender que a humanidade dos homens depende profunda-


mente de processos educativos, os quais encontram-se alicerçados em
O Modelo S -S -O sua interação com os Outros e com os instrumentos (materiais e síg-
(Sujeito – sujeito – objeto
de conhecimento) nicos), Vygotsky atribui especial importância à mediação pedagógica
enfatiza a importância da do(a) educador(a) na direção intencional do processo educativo.
mediação do Outro na
aprendizagem.
O “modelo pedagógico” associado a sua teoria é aquele no qual su-
jeito cognoscente, sujeito mediador e objeto do conhecimento, tramam
uma relação dialética de ensino e aprendizagem. De acordo com este
Uma relação dialética modelo, tanto o educador(a) quanto o(a) educando(a) participam ati-
pressupõe sempre a vamente da elaboração das pautas interativas necessárias à construção
implicação e a transfor-
mação mútua dos envol- do conhecimento. E o conhecimento construído, para ser significativo,
vidos no processo (quem deve possibilitar o entendimento das relações entre os conceitos apro-
ensina também aprende e
vice-versa). Ambos saem priados e suas implicações no entendimento de si e do contexto históri-
modificados da relação. co de sua gênese, desenvolvimento e aplicabilidade.

Uma pedagogia pautada nos princípios vygotskyanos abre espaço


para a relatividade histórica e combate o relativismo da/na história;
compreende e ensina as condições de produção histórica dos co-
nhecimentos e combate a fixação dos conceitos segundo a raciona-
lidade que defende a produção científica como produção da Verda-
de e instrumento de redenção da humanidade; entende e trabalha
com o conhecimento na perspectiva da construção, combatendo a
mitificação e a sensação de impotência e de incapacidade cognitiva
dos indivíduos; compreende que o comportamento e a capacidade

94
Contribuições da Psicologia Histórico-cultural Capítulo 09
cognitiva dos sujeitos dependem de suas experiências e de sua his-
tória educativa, as quais, por sua vez, estarão relacionadas com as
características do grupo social e do momento histórico em que es-
tão inseridos.

Nesta perspectiva, o objeto de conhecimento com o qual sujeitos


cognoscentes e sujeitos mediadores se relacionam em sala de aula, por
exemplo, não se restringe aos conceitos científicos. Uma relação peda-
gógica na qual não haja espaço para o conhecimento de si e do Outro
(no sentido da compreensão dos níveis de desenvolvimento alcançados
e que possibilitarão a significação daquela atividade, naquele momento,
para aquele sujeito) não será eficaz do ponto de vista da apropriação
(tornar próprio, tornar seu) do conhecimento formal, sistematizado pela
humanidade e compartilhado sob a forma de ciência, arte ou filosofia.

A questão central para uma pedagogia histórico-cultural é construir


mediações que possibilitem o desenvolvimento potencial de cada indi-
víduo ao provocar avanços via aprendizagem, os quais não ocorreriam
espontaneamente. Trata-se de uma proposta pedagógica pautada no pla-
nejamento e na intencionalidade da prática educativa como prática re-
lacional, ou seja, que considere tanto as especificidades do papel do(a)
educador(a) quanto do (a) educando(a) em sua mutualidade constitutiva.

Leia mais!
Para saber mais sobre a abordagem histórico-cultural em psicologia e
educação, consulte o capítulo V do livro indicado para esta disciplina:
CARRARA, K. (Org.). Introdução à Psicologia da Educação. Seis Abor-
dagens. São Paulo: Avercamp, 2004 e também o livro de BOCK, Ana M.
B. (Org.). Psicologias: uma introdução ao estudo da psicologia. 13. ed.
São Paulo: Saraiva, 2002.

95
Considerações Finais Capítulo 10
10 Considerações finais
Neste capítulo vamos compreender a importância da diversidade de abor-
dagens como forma de fazer avançar a produção do conhecimento científico
em psicologia e em educação.

Um dos objetivos deste capítulo é o de torná-lo consciente do fato


de que algumas ideias que hoje circulam no contexto educacional ou so-
cial mais amplo como “senso comum” (ou seja, aquilo que “todo mundo
sabe”), resultaram do trabalho sistemático de pesquisa e investigação, e
estiveram (e continuam) sujeitas a critérios de validação científica (crité-
rios estes questionados e recriados por certos segmentos da psicologia).

A pesquisa continua sendo uma ferramenta fundamental ao de-


senvolvimento da psicologia e os conteúdos constantes deste livro, são
fruto desta modalidade de produção do conhecimento. Sabendo disso,
você não procurará encontrar aqui receitas para aplicar em sala de aula,
mas princípios norteadores à compreensão dos fenômenos ali obser-
vados. Utilizando os conceitos que aprendeu e os que ainda aprenderá
como princípios norteadores e não como “verdades empacotadas, pron-
tas para o consumo”, você se constitui um leitor ativo e contribui para o
questionamento e o avanço, tanto da disciplina quanto de sua própria
prática em sala de aula. Sim, porque aquele que pauta sua prática em
“verdades” construídas por outros, abandona o papel de questioná-la e,
consequentemente, a possibilidade de transformá-la.

A psicologia poderia ser dita assim, no singular, caso todos os


pensadores em sua história tivessem concordado com e perpetuado as
ideias de Wundt, seu criador. Mesmo que isso facilitasse alguns aspectos
da relação desta ciência com e no mundo acadêmico, imagine quanta
riqueza e diversidade de temas e aspectos relevantes à compreensão da
constituição dos sujeitos e das relações sociais deixaria de ter sido reco-
nhecida e avaliada.

Podemos usar esta mesma analogia para pensar as questões da


escola: se os pensadores em educação determinassem por lei que um
mesmo método de ensino fosse aplicado em todas as salas de aula, inde-
pendente da série, talvez amenizassem as inquietudes provocadas pelas

97
Psicologia Educacional

dúvidas dos professores acerca da sua atuação, mas que outras inquie-
tudes o engessamento da relação cotidiana em sala de aula provocaria?
E como manejá-los sem poder questionar as ideias (a determinação do
método) que as provocaram?

Para que uma ciência continue válida precisa estar em contato com
as questões que a aplicabilidade de suas ideias provoca e, em alguns ca-
sos, abandoná-las em prol da elaboração de novas sínteses, mais úteis à
função social a que se propõe.

98
Unidade C
Contribuições da Psicologia para a
prática escolar cotidiana
O cotidiano escolar Capítulo 11
11 O cotidiano escolar
Neste capítulo vamos compreender a escola como um espaço
múltiplo e dinâmico e o cotidiano escolar como síntese da relação
entre as diferentes dimensões que o constituem.

Contribuir com a formação de professores, a meu ver, passa ne-


cessariamente pelo estudo e problematização do que seja o cotidiano
escolar. Quando nos aproximamos deste cotidiano, imediatamente nos
deparamos com a dinâmica das interações que o constituem, das forças
que o impulsionam ou paralisam, das relações e estruturas de poder que
atravessam a organização do trabalho pedagógico em suas múltiplas
instâncias, da diversidade de papeis e de estilos de atuação dos sujeitos,
entre outros fenômenos. A escola é um espaço onde ações, relações e
conteúdos são construídos, desconstruídos e reconstruídos continua-
mente, por sujeitos mais ou menos conscientes de sua participação nes-
sa teia interacional viva e multi determinada.

Quando enxergamos a escola assim, como um espaço social de


criação e recriação de significados e sentidos, rompemos com a visão de
cotidiano como algo estático, fixo, predefinido, repetitivo e passamos a
encará-lo como um terreno fértil para analisar e intervir em seus múlti-
plos graus de contestação, acomodação e resistência.

O cotidiano escolar normalmente apresenta características dinâ-


micas próprias, as quais podemos relacionar a três dimensões:

ǿǿ dimensão institucional - relativa ao contexto geral da práti-


ca escolar. Abrange a organização do trabalho pedagógico, in-
cluindo a distribuição dos recursos humanos e materiais. Esta
dimensão do trabalho pedagógico costuma ser diretamente
afetada pelas políticas de Estado para a educação e indireta-
mente pela cultura de cada escola (relações com a comunida-
de, expectativas e participação dos pais, professores e alunos
no processo de escolarização, estilos de vivência dos papéis do-
cente e discente etc.) e sua forma de gestão afeta diretamente o
cotidiano de trabalho em sala de aula.

101
Psicologia Educacional

ǿǿ dimensão instrucional ou pedagógica - abrange todos os as-


pectos da relação professor-alunos-objeto do conhecimento,
desde a comunicação, objetivos, conteúdos, metodologias, ma-
teriais didático-pedagógicos e instrumentos de avaliação do
processo de ensino e aprendizagem. Abrange ainda um intenso
processo interativo, transpassado por elementos éticos, estéti-
cos, afetivos, políticos, cognitivos e sociais.

ǿǿ dimensão sóciopolítica e cultural – refere-se aos determinan-


tes macroestruturais do momento histórico, tais como as forças
políticas no poder ou os valores predominantes na sociedade.

Em resumo, a compreensão do cotidiano da prática pedagógica


não ocorre no abstrato, a partir da simples aplicação de conceitos ou
teorias construídas fora dele. Para compreendê-lo e nele intervir visan-
do sua transformação é necessário buscar conhecer sua totalidade e as
múltiplas determinações que o tornam concreto e observável.

A seguir abordaremos alguns dos aspectos determinantes dos pro-


cessos que aí se desenrolam, objetivando instrumentalizá-lo para um
olhar e uma escuta diferenciada, pautada por estudos desenvolvidos no
campo da psicologia educacional.

Leia mais!
Há um livro que é fundamental conhecer quando se quer pensar o coti-
diano escolar, escrito por LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A. Pes-
quisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.

102
Desenvolvimento e aprendizagem Capítulo 12
12 Desenvolvimento e
aprendizagem
Compreender a relação entre desenvolvimento e aprendizagem humana e
suas implicações no processo de ensino e aprendizagem escolar.

Construímos este módulo a partir de algumas perguntas que fre-


quentemente são efetivadas por professores aos psicólogos da educação,
objetivando com isso torná-lo próximo às temáticas da prática pedagó-
gica cotidiana.

12.1 Qual a relação entre o desenvolvimento


humano e a educação escolar?
Esta pergunta costuma conter outras tantas, tais como: a educação
contribui de algum modo para o desenvolvimento ou, ao contrário, é o
desenvolvimento de características inatas que contribuem para a maior
ou menor eficácia educativa? A educação tem, de fato, alguma contri-
buição a dar no sentido de possibilitar a pessoas com ritmos próprios
de desenvolvimento o acesso ao conhecimento? A educação precisa se
preocupar em compreender outros aspectos do desenvolvimento além
do cognitivo? Para entender o que está se passando com o adolescente
ou jovem em termos de desenvolvimento o professor precisa conhecer
as etapas anteriores de seu crescimento?

Como você já deve ter observado, estas questões trazem à tona di-
ferentes aspectos: algumas fazem referência ao papel da biologia ou da
genética no desenvolvimento; outras destacam aspectos inter-relacio-
nais; em alguns casos há referência aos aspectos gerais e individuais do
desenvolvimento, além dos aspectos afetivos e cognitivos.

As pesquisas e produções teóricas na área da psicologia do desen-


volvimento também giram em torno destas questões e, de acordo com a
abordagem adotada, respondem-nas diferentemente, ora colocando ênfa-
se nos aspectos estruturais, ora nas questões ambientais ou inter-relacio-
nais. Em termos gerais, podemos indicar duas formas de responder a per-
gunta “qual a relação entre o desenvolvimento humano e a educação”?

103
Psicologia Educacional

1) Inatismo - o desenvolvimento humano se deve a fatores intrín-


secos (inatos) e ocorre natural e espontaneamente de acordo
com estes fatores. Deste modo, a educação não tem função es-
pecífica ou relevante neste processo.

2) Ambientalismo - o desenvolvimento humano é resultado da


interação dos sujeitos com o contexto e as situações educativas
em muito contribuem para o processo. Em psicologia, esta pers-
pectiva se divide em outras três: cognitivismo, construtivismo
e sociointeracionismo (ou perspectiva histórico-cultural).

12.2 Ainda há práticas escolares pautadas


no inatismo?
Durante séculos os estudiosos tentaram chegar a um consenso a
respeito da origem das capacidades especificamente humanas, como a
fala, os pensamentos, as intuições, a memória voluntária etc. A pergunta
era: as pessoas já nascem com potencialidades, dons e aptidões que se-
rão desenvolvidos de acordo com o amadurecimento biológico ou tudo
isso é desenvolvido através da experiência com o contexto externo?

Essa discussão provavelmente se iniciou com dois dos maiores filó-


sofos da história: Platão e Aristóteles. Embora ambos tenham sido dis-
cípulos de Sócrates, Platão defendia a ideia de que nascemos prontos,
enquanto Aristóteles pregava que tudo em nós se desenvolve a partir da
experiência.

Mesmo com uma origem tão longínqua estas posições não foram
totalmente superadas e o debate entre as perspectivas inatista e ambien-
talista persiste, especialmente quando são tratadas questões polêmicas
como a homossexualidade, o aborto, a genialidade ou a psicopatia. E no
campo da educação, terão sido superadas?

Conforme o exposto, sob um ponto de vista inatista não são valo-


rizados como relevantes ou determinantes do desenvolvimento fatores
como a experiência social e o intercâmbio ou a comunicação entre os
indivíduos, subentendendo-se que as situações educativas não repre-
sentam um aspecto que tenha qualquer relevância nesse processo.

104
Desenvolvimento e aprendizagem Capítulo 12
Por outro lado, quando paramos para refletir acerca de fatos cor-
riqueiros do cotidiano escolar, percebemos que esta perspectiva, em-
bora não seja integralmente inquestionda, inclusive porque é de difícil
sustentação frente aos resultados de pesquisas científicas, permanece
pautando certas práticas, como o fato de nossas salas de aula serem
organizadas por séries, as quais comportam um conjunto de crianças
que idealmente deveriam estar na mesma faixa etária, por exemplo.
Além deste fato, observam-se comumente professores e especialistas
em educação ocupando-se em avaliar o nível de prontidão das crian-
ças para a aprendizagem e a consequente montagem de turmas “ho-
mogêneas”. Há casos, inclusive, em que estas classes homogêneas são
constituídas por crianças com dificuldades escolares, segundo a crença
de que é possível fazê-las “avançar”, desde que consideremos seu nível
de desenvolvimento.

E mais: quão comum é na sua escola que professores não queiram


trabalhar com alunos de determinadas séries por considerá-los “ima-
turos”? Nesta expressão está contida a crença na perspectiva inatista, a
partir da qual se apregoa que o desenvolvimento humano é resultado de
processos de amadurecimento de determinadas potencialidades (dons,
talentos) inatas.

Outras vezes vislumbramos resquícios da presença desta perspectiva


na utilização de conceitos desenvolvidos pela psicologia e mesclados ao
senso comum, como é o caso de se acreditar que um aluno vai mal na
escola porque é filho de “fulano”, ex-aluno da escola, conhecido por suas
dificuldades e por seus anos de reprovação. Esse exemplo mostra a inter-
pretação de um fenômeno socialmente produzido segundo uma perspec-
tiva inatista: o filho “herdou” as dificuldades de aprendizagem do pai.

Do exposto se pode concluir que: a) esta perspectiva, por mais ab-


surda que possa parecer aos defensores de uma abordagem crítica em
psicologia e em educação ainda não foi totalmente superada no cotidia-
no escolar (e, em muitos casos, é validada no cotidiano em geral, como
vimos); e b) quando se faz alguma referencia a relação entre desenvol-
vimento humano e educação segundo esta perspectiva, cabe à educação
submeter-se e adaptar-se ao nível de evolução universal esperado para
aquele momento do ciclo vital da pessoa, o que normalmente emba-
sa relações escolares rígidas e estereotipadas, pautadas em programas

105
Psicologia Educacional

de ensino previamente organizados de acordo com uma expectativa de


prontidão para o aprendizado de determinados conteúdos e desvincu-
lados dos reais interesses e necessidades das crianças e jovens “de carne
e osso” com as quais os professores trabalham.

Podemos afirmar que a psicologia científica jamais buscou apoio


nesta concepção de desenvolvimento humano. Wundt, considerado o
pai da psicologia científica, é reconhecido como estruturalista. Os es-
truturalistas foram assim nominados por caracterizarem um movimento
de oposição ao empirismo e ao associacionismo (ambos originados em
oposição ao inatismo). O fundador da psicologia científica representava,
portanto, a “terceira geração” de oposicionistas ao inatismo, mas o fato é
que o estruturalismo não contribuiu verdadeiramente para a superação
desta perspectiva, embora tenha contribuído para tornar os estudos so-
bre o Homem menos deterministas do ponto de vista biológico.

Vejamos porque afirmo que a perspectiva estruturalista não favore-


ceu a total superação da perspectiva inatista:

O principal interesse de Wundt na pesquisa em psicologia consistiu


na demonstração de que a percepção não era um fenômeno associado à
mecânica fisiológica simplesmente, mas estava relacionada ao desencade-
amento de sínteses cognitivas provenientes de um processo de organização
dos elementos da experiência pela mente. A mente foi considerada uma
estrutura com a qual nascemos e que poderia vir a ser conhecida, uma
vez que se expressava sob a forma material das palavras e descrições.

A ideia de que nascemos dotados de uma estrutura na qual ocor-


rem as sínteses que expressamos por palavras e ações é que é o problema
para a psicologia educacional crítica. E é um problema porque se con-
tinua buscando formas de fazer o sujeito funcionar melhor. Mesmo
quando se promove mudanças no ambiente, se faz isso para que as es-
truturas subjetivas possam funcionar melhor, sem que, na maioria das
vezes se pergunte: funcionar melhor em comparação a quê? Para que
ou para quem é importante que o sujeito funcione melhor? Parte da
produção de conhecimentos em psicologia aponta para o sujeito todo o
tempo e contribui com a cristalização de um ideário que gira em torno
da questão de superar “falhas ou incompletudes na estrutura do sujeito”,
considerando isto um avanço científico!

106
Desenvolvimento e aprendizagem Capítulo 12
Penso que esta perspectiva subjetivo-individualista é responsável
pela sustentação de certas práticas de organização escolar até hoje, como
a questão da divisão das turmas em “séries” ou a composição de turmas
“homogêneas”, porque se entende que ao colocar estruturas similares (com
o mesmo “nível” de prontidão) em um mesmo contexto, poder-se-á mais
facilmente controlar as variáveis ambientais que não estejam contribuin-
do para o sucesso na organização dessas estruturas. Sem se questionar a
serviço de que estão estas variáveis ou o conceito existente do que seja
conhecer ou para que conhecer o proposto aos alunos que conheçam.

Pergunto - como forma de fundamentar a defesa da necessidade de


que a psicologia mude seu foco de referência do sujeito para as relações,
considerando-as históricas e culturais, contribuindo assim para que os
professores, os pais e a sociedade em geral modifiquem conceitos her-
dados da mescla entre uma psicologia equivocada e um senso comum
acrítico: como é que um leigo, ou aquela pessoa cujo conhecimento dos
temas da psicologia chegou filtrado pelo senso comum, poderia diferen-
ciar entre uma explicação de fracasso escolar pautada no entendimento
de que este expressa “falhas ou incompletudes na estrutura” de uma ou-
tra explicação onde o fracasso da criança é tido como fruto de herança
genética? “Tal pai, tal filho”, não é assim que se diz?

12.3 O que é o ambientalismo? Qual


a importância do contexto escolar
nos processos de desenvolvimento e
aprendizagem segundo esta perspectiva?
Sob o ponto de vista do ambientalismo as características universais
presentes em processos individuais de desenvolvimento não são negadas
ou descartadas, mas relativizadas frente a fundamental importância do
ambiente neste processo. Ou seja, os fatores biológicos e as experiências
genéricas (não intencionais) com o ambiente são considerados neces-
sários aos processos de desenvolvimento, mas não determinantes deste.

Neste sentido, todas as abordagens em psicologia podem ser con-


sideradas ambientalistas, na medida em que se opõem a perspectiva
inatista e afirmam a importância do ambiente sobre os processos de de-

107
Psicologia Educacional

senvolvimento e de aprendizagem dos sujeitos. Todas vão desenvolver


pesquisas e produzir conhecimento em psicologia partindo da análise
das expressões subjetivas em um dado contexto, ou seja, percebem a
importância desta variável nos modos de organização e expressão da
subjetividade humana.

O que muda é o grau de determinação atribuído ao contexto so-


bre os processos de desenvolvimento e aprendizagem. Autores cogni-
tivistas-comportamentalistas ou sociocognitivistas atribuem alto grau
de determinação do comportamento humano ao ambiente, afirmando
que desenvolvimento é aprendizagem. Piaget (cognitivismo-constru-
tivista) e Vygotsky (histórico-cultural) são contrários a esta ideia, mas
também não concordam entre si. Piaget considera que o desenvolvi-
mento precede a aprendizagem, ou seja, faz-se necessário alcançar um
determinado nível de desenvolvimento das estruturas para que aquilo
que é experienciado no ambiente se transforme em aprendizagem. Para
Vygotsky, desenvolvimento e aprendizagem são processos interde-
pendentes, que guardam especificidades, mas se articulam sob a forma
de síntese, como algo novo no processo de constituição do sujeito. Ou
seja, para este autor, a ênfase não deve ser colocada no ambiente ou no
sujeito, mas na interação entre eles, interação esta que nunca é direta,
mas mediada simbolicamente.

Nesta perspectiva, a relação entre desenvolvimento e educação es-


colar é extremamente importante. As práticas educativas constituem
uma fonte de constantes experiências a partir das quais o indivíduo
constrói e atualiza as habilidades necessárias ao seu desenvolvimento
cognitivo e sociocultural.

12.4 O que é o cognitivismo e quais são as


contribuições deste para a compreensão
dos processos de desenvolvimento e de
aprendizagem?
O cognitivismo procura explicar a arquitetura da mente humana
e as leis de representação, funcionamento e transformação dos conhe-

108
Desenvolvimento e aprendizagem Capítulo 12
cimentos focando na perspectiva relacional sujeito-ambiente-sujeito.
Busca definir a estrutura destes conhecimentos, como se efetiva sua ge- Esta perspectiva aceita
neralização, a forma como são adquiridos e como se modificam, pas- que a inteligência e a
personalidade cons-
sando de formas elementares a formas mais complexas e integradas. tituem-se a partir das
representações mentais
O cognitivismo parte do principio de que a mente humana é um provenientes da relação
do sujeito com o contexto.
sistema vivo, organizado segundo uma dinâmica onde o todo não é igual Por isso sujeito-ambiente-
à soma das partes. Este princípio pode ser mais bem compreendido se sujeito, pois tudo que é
vivenciado se transforma
considerarmos que a interação entre as diversas partes que compõem o em estrutura mental do
sistema altera o funcionamento isolado de cada uma delas sem se con- sujeito. Parte dele e a ele
retorna, constituindo-o.
fundir com esse funcionamento. O modelo é o da subjeti-
vidade constituidora do
Uma boa metáfora talvez seja o último filme que você assistiu no conhecimento.
cinema. Nele lhe foi impossível distinguir a sequência fotográfica da
imagem quadro a quadro, ou “separar” a música dos os efeitos especiais
da cena como um todo, certo? O resultado que lhe chegou é fruto da
relação desta partes entre si. Da relação, e não da soma de aspectos
isolados (a música + o raio luminoso que atravessou o céu + o choro da
mocinha = compaixão ou medo).

Com os processos de aprendizagem escolar dos sujeitos acontece o


mesmo, segundo os cognitivistas, que trabalham com a ideia de que
existe uma auto-organização interna ao sujeito, dependente da sua
história de aprendizagens e do conjunto de conhecimentos adqui-
ridos ao longo dessa história. Nessa perspectiva, os conhecimentos
prévios interferem definitivamente no modo como o sujeito inter-
preta e lida com o seu meio físico e social.

O processo de conhecer caracteriza-se, ao mesmo tempo, como re-


sultado de aprendizagens anteriores e base para novas aprendizagens. A
maneira como os conhecimentos se organiza forma a estrutura cogni-
tiva de um indivíduo e esta estrutura vai influenciar os modos de com-
preender, de reter informações e de agir.

109
Psicologia Educacional

Leia mais!
Você pode aprofundar seu conhecimento no assunto pesquisando em:
DAVIS, C. OLIVEIRA, Z. Psicologia na educação. São Paulo, Cortez,
1990 e OLIVEIRA, M. K. Vygotsky - Aprendizado e desenvolvimento:
Um processo sócio-histórico. São Paulo: Scipione, 1993.

110
Características dos ciclos vitais e cotidiano escolar Capítulo 13
13 Características dos ciclos
vitais e cotidiano escolar
Compreender os aspectos organizadores dos diferentes ciclos vitais e sua
relação com os fenômenos cotidianos da prática pedagógica escolar.

Uma escola é sempre um espaço privilegiado para observar a diver-


sidade de comportamentos e de agenciamentos vinculares. Um dos as-
pectos que contribuem para a manifestação de determinados comporta-
mentos do ponto de vista motor, vincular-relacional, cognitivo e social é
a localização dos sujeitos em um ou outro ponto do ciclo vital: primeira
infância, infância, adolescência, juventude, idade adulta ou velhice.

Além da diversidade própria às características específicas de cada


etapa do ciclo vital, temos que considerar ainda a diversidade de aspec-
tos que contribuem para a forma como cada um dos sujeitos perten-
centes ao contexto de uma determinada escola estruturou seu próprio
processo vital.

De um modo geral, concorrem para a organização dos ciclos vitais,


quatro aspectos:

1) multidirecionalidade – as características gerais de cada ciclo


tendem a se equilibrar em um jogo complexo de perdas e ga-
nhos: habilidades predominantes no período anterior tendem
a minimizar-se em períodos subsequentes; algumas continuam
a crescer, outras diminuem e podem aparecer habilidades no-
vas, anteriormente desconhecidas;

2) plasticidade – capacidade para desenvolver novas habilidades


ou aprimorar habilidades menos desenvolvidas, intencional-
mente. Considerar este aspecto é fundamental no desenvolvi-
mento de práticas de ensino e aprendizagem escolar;

3) história e contexto – circunstâncias ou condições que influen-


ciam/influenciaram o desenvolvimento;

4) multiplicidade causal – outros aspectos, além dos ambientais e


históricos envolvidos nos processos de desenvolvimento e de
aprendizagem humanos, como os biológicos, neuroquímicos.

111
Psicologia Educacional

Estes aspectos se inter-relacionam, organizando a história pessoal


de crescimento e as histórias pessoais se entretecem, compondo a histó-
ria da convivencialidade humana em sua diversidade, em locais públi-
cos. A escola é um destes lugares – e dentro dela, as salas de aula, mas há
outros, como os parques e praças, as áreas comuns do condomínio etc.

Voltando à escola e mais especificamente as salas de aula, independen-


temente da faixa etária com a qual você trabalha, da primeira infância
à velhice, cada indivíduo está passando por alterações gerais e espe-
cíficas, e estas influenciam tanto o modo de relação com o contexto
material da sala de aula, quanto com o contexto socioafetivo e cogniti-
vo. Do mesmo modo, são, em alguma medida, influenciadas por estes
aspectos.

As alterações gerais (ou globais) do desenvolvimento no decorrer


dos ciclos vitais normalmente são observáveis por todos que acompa-
nham a criança, adolescente ou jovem em sua trajetória. Obviamente,
aqueles adultos que passam mais tempo com a pessoa estão aptos a ob-
servar sutilezas, as quais por vezes escapam àqueles que se relacionam
com ela mais esporádica ou superficialmente. Por isso é tão importante
que escola, família e profissionais da saúde possam manter comunica-
ção ágil e constante.

De um modo geral estas alterações globais estão relacionadas ao


crescimento do corpo físico e suas mudanças (harmonia, equilíbrio, si-
lhueta etc.); à complexificação e ao aprimoramento das habilidades mo-
toras, da linguagem e relacionais; as transformações nos padrões nutri-
cionais e alimentares e nas necessidades de períodos de sono e descanso;
a mudanças nas formas de pensamento e memória.

As alterações globais provocam mudanças também específicas, ao


nível da subjetividade. Embora possam do mesmo modo serem facil-
mente observadas, seus manejos são mais complexos, porque resultam
de um processo de significação pessoal e único. Ou seja, mesmo que
você tenha gêmeos univitelinos e proporcione a eles o mesmo tempo
de atenção, os mesmos brinquedos e coloque os dois na mesma escola,
ambos terão compreensões e sentimentos diferentes em relação ao que

112
Características dos ciclos vitais e cotidiano escolar Capítulo 13
se passa em sua volta. Do mesmo modo, pessoas diferentes vivenciam
de modo diferente as alterações globais do desenvolvimento pelas quais
todos passam. Para alguns, crescer é motivo de orgulho, sinônimo de li-
berdade, para outros é motivo de medo ou vergonha. A produção destas
significações vai depender predominantemente das mediações simbó-
licas que as pessoas tomaram para sim como sendo determinantes (ou
autorizadas), como modelos de visão de mundo.

A visão de mundo dos sujeitos é fortemente determinada pelo con-


texto cultural (relativo a etnia) e socioeconômico (relativo à classe so-
cial) imediato, ou seja, locus da vida cotidiana. Neste contexto, o da vida
cotidiana, é que os aspectos globais do desenvolvimento adquirem sig-
nificados muitas vezes distintos. Assim, crianças advindas de contextos
sociais com famílias numerosas podem manejar com mais naturalidade
a queda dos dentes de leite ou a voz desafinada, uma vez que presencia-
ram a vivência e a superação deste fenômeno muitas vezes antes, através
da experiência de outras pessoas. Uma criança que seja filho(a) único(a)
poderá ter maiores dificuldades para lidar com este fato, uma vez que
não possui modelos de interação social introjetados, que lhe assegurem
a continuidade dos relacionamentos estáveis apesar da diferença que a
alteração global do desenvolvimento trouxe à sua vida.

13.1 Principais características da infância


em idade de escolarização formal (6 aos 11
anos)
Além do fato de ficarem a cada ano maiores, mais fortes e menos
inquietas do ponto de vista motor, o pensamento da criança em idade
escolar torna-se claramente multidimensional, ou seja, ela é capaz de
considerar o objeto sob varias perspectivas, além de comparar caracte-
rísticas de uma dada situação ou de um dado problema com outro.

Cole (2003, p. 495) afirmam que “é a capacidade das crianças para


manter duas coisas ao mesmo tempo na mente, em uma ampla variedade
de contextos, que permite aos pais fazer novas exigências a elas e lhes dar
maior liberdade.”

113
Psicologia Educacional

Estas alterações trazem mudança à lógica da ação, que passa a ser


coordenada, voltada para a criação de uma unidade com o pensamento.
No início da vida escolar, a possibilidade de construir conceitos está dire-
tamente relacionada à concretude de objetos e eventos. Piaget denominou
este estagio do desenvolvimento cognitivo como sendo operatório con-
creto. De acordo com a perspectiva construtivista, as principais caracte-
rísticas do estágio que marca o início da vida escolar das crianças são:

1) Descentração: capacidade de focar os objetos como unidades


autônomas, possuidoras de múltiplos atributos, com os quais
se podem formar categorias de acordo com critérios variados;

2) Conservação: capacidade de “conservar” características de um


objeto (como volume e quantidade) ainda que este sofra mu-
danças em algum dos seus atributos;

3) Identidade: capacidade de perceber a estabilidade dos atribu-


tos frente à instabilidade da forma;

4) Compensação: capacidade de observar e comparar as mudan-


ças em dois aspectos de um problema e perceber sua compen-
sação mútua;

5) Reversibilidade: capacidade de compreender que algumas


operações podem inverter ou anular outras;

6) Declínio do egocentrismo: capacidade de comunicar-se com


outros sobre um objeto ausente; de pensar sobre como os ou-
tros as percebem; de entender que pessoas podem sentir-se de
determinada maneira e agir de outra;

7) Mudanças nas relações sociais: capacidade de regular suas in-


terações com outros através de regras e de levar em conta as
intenções dos outros em julgamentos morais;

8) Alterações na memória: aumento na velocidade do proces-


samento de informações e na capacidade de memorização; au-
mento no conhecimento sobre os eventos de que tenta lembrar
(base do conhecimento); desenvolvimento de estratégias efi-
cientes para lembrar (como a repetição, por exemplo); capaci-
dade para pensar os próprios processos de memória;

114
Características dos ciclos vitais e cotidiano escolar Capítulo 13
9) Desenvolvimento do pensamento estratégico, que contempla
objetivos e metas;

10) Alterações na atenção, mais focada no que estão fazendo e


mais controlada, de modo a obter a informação de maneira
mais eficiente;

11) Capacidade de desenvolver planos para atingir objetivos, no


sentido de formar representações cognitivas das ações necessá-
rias para atingir um objetivo específico e a médio e longo prazo.
Exige atenção ao presente e capacidade de abstração elaborada,
além do autocontrole para atingir os objetivos futuros;

12) Capacidade de pensar sobre os próprios pensamentos (meta-


cognição): capacidade de avaliar o grau de dificuldade de um
problema e escolher estratégias flexíveis para resolvê-lo;

13) Alterações na linguagem: aumento substancial de vocabulá-


rio; ampliação da capacidade de entender e produzir sentenças
complexas; aumento do conhecimento de base, da complexi-
dade linguística e da capacidade para inferir eventos, que enri-
quecem e diversificam as formas de expressão e comunicação;

14) Alterações na capacidade de classificação dos objetos em ca-


tegorias e consequente complexidade de pensamento e expres-
são do conhecimento;

13.2 Adolescência ou adolescentes? Vale lembrar que em


nosso país, marcado pelas
Estudos mais recentes em psicologia concordam em relação ao fato desigualdades, nem todos
os jovens participam
de que a adolescência não define uma etapa do desenvolvimento huma- desta “moratória social”
no individual, uma vez que os critérios para definir esta etapa do ciclo que é a adolescência.
Muitos, principalmente os
vital são culturais, ou seja, voltados à explicação de um período da vida mais pobres ou oriundos
“de passagem” entre a infância e a vida adulta. do meio rural, entram na
“vida adulta” do trabalho
Nesta perspectiva, admite-se que a adolescência é uma fase típica ainda crianças.
do desenvolvimento do jovem na nossa sociedade, que exige um longo
período de preparação e de aquisição dos conhecimentos necessários ao
manejo e ao desenvolvimento das tecnologias que a estruturam.

115
Psicologia Educacional

O critério cultural para definir o que é a adolescência em nosso país


permanece vinculado à “falta de preparo” para assumir as responsabili-
dades da vida adulta, apesar de não corresponder à realidade de muitos
jovens, de não atingir a todos os segmentos socioeconômicos. Esta con-
tradição tem consequências psicossociais, uma vez que estes jovens de
quem as condições sociais exigiram que “amadurecessem” mais cedo,
no imaginário desta mesma sociedade não têm lugar como adultos. Os
apelos sociais que lhes chegam são aqueles direcionados a outros de sua
idade, mas que vivem o cotidiano em uma condição completamente di-
ferente da sua. Individualmente, muitos destes jovens-adultos incorpo-
ram à sua identidade o sentimento de que “perderam” a juventude, de
que são fracassados por não poderem corresponder aos apelos que o
mercado e a mídia fazem à sua participação social.

Adolescentes de um modo geral passam por uma significativa re-


organização da vida social, desenvolvendo não somente novas amizades,
mas novos tipos de amigos, baseados em critérios outros que o da in-
fância. Para um adolescente, os interesses comuns, a semelhança de ati-
tudes e de valores, a lealdade e a intimidade são requisitos importantes
para a estruturação de relações de amizade. É no contexto das conversas
intimas e reveladoras da convivência em grupo que os adolescentes de-
finem e exploram suas identidades, inclusive a identidade sexual.

Fazem parte da reorganização da vida social do adolescente, mu-


danças na relação com os adultos (pais e professores), normalmente em-
basadas no fato de que estes tentam estruturar a realidade do adolescen-
te de acordo com seus próprios padrões e modelos (representações de
como o mundo funciona) e o adolescente está exatamente começando
a perceber as “falhas” presentes no universo dos adultos e exercitando
definições próprias e lógicas.

Outro aspecto que contribui para a especificidade desta relação é


o fato de que apesar de toda a capacidade lógica que tem um adoles-
cente para imaginar um mundo próprio, ele não tem o poder, a idade,
ou as condições socioeconômicas para implementá-lo. A relação adul-
to/adolescente é permeada por vivências contraditórias: dependência x
autonomia; juventude x envelhecimento; força vital x debilidade; perda
do corpo infantil (para os filhos) x perda do filho criança (para os pais);
responsabilidade x moratória social etc.

116
Características dos ciclos vitais e cotidiano escolar Capítulo 13
Para Piaget, o tipo de relação que se tem consigo mesmo e com os
objetos (incluindo os outros) neste ciclo vital é fortemente determinado
pelo desenvolvimento de novas estruturas de pensamento, pautadas em
operações lógico-formais.

Estas novas habilidades incluem:

1) resolver problemas de maneira sistemática, levando em conta


uma série de variáveis complexas e desenvolvendo estratégias
alternativas a partir da combinação de elementos diversifica-
dos e da capacidade de criar na mente um “todo estruturado.”

2) levar em conta o julgamentos dos outros e o julgamento que


têm sobre o julgamento dos outros quando comparado às nor-
mas sociais no processo de formação da identidade pessoal;

3) aplicar o pensamento lógico-formal aos vários problemas da


vida, desde a politica até a ecologia, de modo a problematizar
os princípios éticos e a hipocrisia do mundo adulto.

13.3 Contribuições da perspectiva


histórico-cultural à compreensão do
desenvolvimento humano
A abordagem histórico-cultural do desenvolvimento humano não foi
organizada segundo ciclos vitais. Vygotsky fez questão de distinguir a “li-
nha” natural da “linha” histórico-cultural do desenvolvimento. Para tanto,
trabalhou todo o tempo na perspectiva inter-relacional entre desenvolvi-
mento e aprendizagem no processo de humanização do homem. Baquero
(1998, p. 36) esclarece perfeitamente esta ideia quando afirma que

O desenvolvimento [...] quando se refere à constituição dos Processos


Psicológicos Superiores, poderia ser descrito como a apropriação pro-
gressiva de novos instrumentos de mediação ou como o domínio de
formas mais avançadas de iguais instrumentos [...] (Esse domínio) impli-
ca reorganizações psicológicas que indicariam, precisamente, progres-
sos no desenvolvimento psicológico. Progressos que [...] não significam
a substituição de funções psicológicas por outras mais avançadas, mas,
por uma espécie de integração dialética, as funções psicológicas mais

117
Psicologia Educacional

avançadas reorganizam o funcionamento psicológico global variando


fundamentalmente as inter-relações funcionais entre os diversos pro-
cessos psicológicos.

Como vimos anteriormente, as funções psicológicas superiores ti-


picamente humanas são: a atenção ativa, a memória voluntária, o pensa-
mento, a linguagem (falada, escrita, matemática) e a afetividade. Estas se
desenvolvem graças à mediação semiótica, ou seja, graças à experiência
social mediada por símbolos e por pessoas mais competentes do ponto
de vista do manejo dos instrumentos e de outras habilidades do grupo
cultural em questão.

Segundo Pino (2001, p. 41),

Não é na mera manipulação de objetos que a criança vai descobrir a


lógica dos conjuntos, das seriações e das classificações; mas é na convi-
vência com os homens que ela descobrirá a razão que os levou a conce-
ber e organizar dessa maneira as coisas. Evidentemente, nesse processo
de apropriação cultural o papel mediador da linguagem (a fala e outros
sistemas semióticos) é essencial.

Vygotsky explicou a origem dos processos psicológicos superiores


a partir de uma lei geral do desenvolvimento cultural. De acordo com
essa lei, tais funções originam-se da relação do sujeito com os outros
e só depois são apropriadas pelo individuo. Tal afirmação, referida ao
universo inter-relacional de ensino e aprendizagem, pode ser entendida
da seguinte forma: a atenção voluntária, a memória lógica ou o pensa-
mento são processos complexos, colocados em funcionamento com a
ajuda de outras pessoas, são tornados efetivos na relação sujeito-sujeito,
de um modo único, como não poderia ser numa perspectiva meramen-
te individual.

Em outras palavras, o desenvolvimento dos processos psicológicos su-


periores significa a passagem da regulação intermental para a regulação
intramental: o que, a principio, somos capazes de fazer “sob a supervisão
e o controle” de outras pessoas e no âmbito de atividades conjuntas –
no plano intermental - é o que depois seremos capazes de efetuar de
maneira autônoma, sob o nosso controle – em um plano intramental
– ou, dito de outra maneira, o que somos capazes de efetuar individual-
mente em um determinado momento foi produzido anteriormente no
plano da interação com os outros. (SALVADOR, 1999, p.106)

118
Características dos ciclos vitais e cotidiano escolar Capítulo 13
Leia mais!
Você encontrará dicas preciosas para aprofundar este assunto na obra
de SALVADOR, César Coll. (Org.). Psicologia da Educação. Porto ale-
gre: Artes Médicas, 1999.

119
Interações sociais e mediação Capítulo 14
14 Interações sociais e mediação
Compreender a importância das interações sociais e dos processos de
mediação no cotidiano das vivências de ensino e aprendizagem escolar.

Um dos aspectos que contribuem para a vivência de um cotidiano


escolar voltado à construção de práticas transformadoras são interações
sociais fluidas e não obstaculizadas.

Chamamos interações sociais às relações que os sujeitos estabe-


lecem entre si, mediadas ou não pela fala (inclui os processos não
verbais de comunicação, como as expressões faciais, os gestos, a
roupa que se veste, dentre outros indicadores sociais). As interações
costumam girar em torno de três eixos principais: o mundo objetivo
das coisas, o mundo social das normas e instituições e o mundo sub-
jetivo das vivências e dos sentimentos.

Ao interagirem as pessoas coordenam suas ações no mundo objeti-


vo, ou seja, compartilham conhecimentos. Quanto maior o sucesso des-
te compartilhamento, quão mais próximos de um acordo em relação ao
que fazer no contexto, maior a chance de que suas ações conjuntas sejam
bem-sucedidas. O contrário também se aplica: quanto menos comparti-
lhada for a prática, maiores as chances de aparecerem conflitos gerados
pelos fracassos experienciados na relação cotidiana com o mundo das
coisas. Daqui se pode concluir pela importância de se definir objetivos
claros, norteadores das intervenções no contexto, além de compartilhá-
los junto ao coletivo de atores envolvidos no que fazer cotidiano.

Além das expectativas de construir um acordo com o outro em re-


lação ao que lhes é comum no universo objetivo das coisas, as pessoas
interagem orientando-se segundo normas sociais. Estas podem já existir
previamente ou podem ser produzidas durante a interação e definem
expectativas recíprocas de comportamento. Não costuma haver acordo
fácil quando um dos elementos da relação falha neste quesito, pois seu
principal objetivo é o reconhecimento intersubjetivo, a construção de
vínculos de confiança. Este aspecto das interações sociais normalmente
assinala a busca de um consenso valorativo da e na relação entre dois ou

121
Psicologia Educacional

mais sujeitos e sua violação costuma gerar sanções coletivas, que envol-
vem um alto grau de expressão afetiva.

Ao interagir com outros as pessoas normalmente revelam algo de


suas vidas, de suas intenções, necessidades ou sentimentos, seja através
de relatos ou de ações. Todo e qualquer conteúdo compartilhado nes-
se sentido é passível de comparações, julgamentos, conclusões pessoais
Mediação ou ainda de tornar-se conteúdo de outras interações, gerando por vezes
Elemento entreposto mal-entendidos, intrigas e sofrimento psicológico.
em uma relação
contraditória de Os objetivos que norteiam os processos de interação não são facil-
modo a possibilitar a mente encontrados em sua forma “pura”. Uma interação normalmente
emergência da síntese
envolve os três aspectos, em maior ou menor nível de correlação. Por
superadora.
exemplo, uma funcionária da escola pode estar agindo focadamente
segundo o objetivo de organizar a entrada dos alunos no refeitório de
modo que não haja empurrões ou ultrapassagens na fila. Seu comporta-
mento não inclui discursos morais ou queixas pessoais para obter a disci-
As interações sociais
estruturam-se segundo a plina dos alunos, apenas orientações objetivas, visando a mobilidade em
dialética conflito - ordem. No entanto, “nos bastidores” desta modalidade de interação está
consenso.
cada uma das possibilidades de conflito ou consenso acima mencionadas,
pois elas são condição intrínseca aos processos interativos humanos.
O consenso é necessário
até que se estabilize uma Basta que um dos elementos da relação deixe de participar da coorde-
zona de desenvolvimen-
to, mas tanto a evolução nação das ações, proposta pelos outros para desencadear um processo de
quanto a complexificação estranhamento intersubjetivo cujo resultado dependerá de uma multiplici-
dos processos desenvolvi-
mentais dependem da sua dade de aspectos, dentre os quais destacaremos a mediação. Uma situação,
superação. seja ela de consenso ou de conflito só poderá ser superada frente a um
desequilíbrio e este pode ser provocado por “acaso” ou segundo uma in-
tencionalidade objetiva, posta, entreposta, pelo(a) educador(a).

Refiro-me aqui não ao Um exemplo: João e Jonas tornaram-se colegas inseparáveis em


professor ou professora,
mas a qualquer pessoa classe, ajudando-se mutuamente e a outros colegas quando solicitados
que, no exercício do papel pela professora, que os considerava alunos aplicados e disciplinados. Em
de educador(a) exerça a
mediação necessária à determinado momento do ano escolar esta realidade mudou: estavam
emergência de sínteses sempre se desentendendo e um dos dois acabava choroso na mesa da
superadoras.
professora. Temos aí uma situação em que um consenso (João é amigo
de Jonas, que é amigo de João) se transformou em conflito (João não é
amigo de Jonas, que chora na mesa da professora). Perguntada, a profes-

122
Interações sociais e mediação Capítulo 14
sora não soube precisar os motivos que haviam possibilitado sua união
inicialmente, tampouco os que estavam provocando o conflito atual.

Após algumas observações, o psicólogo educacional percebeu que


as discussões ocorriam sempre que um dos dois compartilhava objetos
ou saberes com um terceiro aluno, Manoel. Em alguns momentos de
conversas individuais e depois no trio, soube que Manoel havia chegado
à classe depois das férias de julho e que a professora havia solicitado a
Jonas que lhe emprestasse seus cadernos, bem como lhe orientasse em
relação aos locais onde constavam os objetos de uso comum da sala.
Manoel e Jonas acabaram “amigos” e João, sentindo-se excluído, passou
a agir de modo agressivo toda a vez que não conseguia a atenção e a
parceria de um dos dois.

Aparentemente esta é uma situação corriqueira, “coisa de criança”,


mas sem a mediação adequada certamente interferirá no cotidiano da
sala de aula, além de poder ganhar dimensões maiores, estendendo-se
aos horários de pátio, as aulas de educação física, ou incluindo outros
alunos ou profissionais da escola. Além do aspecto “quantitativo” (o ta-
manho da confusão), temos que considerar o aspecto qualitativo, ou
seja, as consequências destes conflitos sob o ponto de vista afetivo e cog-
nitivo, individual e coletivo.

Um mediador que se proponha a analisar a situação vai compre-


ender que João está tendo dificuldades de conseguir superar sozinho o
conflito que lhe causou o fato de “ter que abrir mão” da situação vincular
confortável em que se encontrava sendo a dupla constante e consensual
de Jonas. Ao professor não cabe julgar isso, sequer emitir um parecer Conhecimentos úteis são
do tipo “João, já és grandinho, podes ficar um pouco só...” ou separar aqueles que contribuem
para a capacitação da pes-
os alunos em sala, mantendo-os sentados em fileiras opostas. Cabe sim soa, independentemente
compreender junto com João, Jonas e Manoel o que estaria acontecen- da sua classe social, etnia
ou gênero. Contrapõe-se
do, de qual forma o que está acontecendo interfere no cotidiano da sala à ideia de conhecimento
de aula e quais encaminhamentos podem ser dados no sentido de que útil à formação meramen-
te técnica, voltada para a
possam voltar a participar da construção do objetivo comum ao grupo- formação para o mundo
classe, o qual é a construção de conhecimentos úteis. Também cabe ao do trabalho.
professor compreender que se uma criança, jovem ou adulto, manifes-
ta uma dificuldade de superar uma questão, de fazê-la movimentar-se,
transformar-se em algo novo, em uma síntese, seja ela referente à que

123
Psicologia Educacional

âmbito da vida for, este obstáculo tornará mais lenta sua sistematização
em outros âmbitos da vida. Sua mediação deverá levar isso em conta, no
sentido de que o professor deve estar ciente que seu papel é contribuir
para que uma nova configuração conceitual e vivencial se organize. Esta
configuração deve incluir a consciência dos obstáculos à aprendizagem
e um projeto de aprendizagens futuras decorrentes de práticas alterna-
tivas presentes (exercício de outro que fazer).

Como você já deve ter percebido o próprio processo interativo é


fruto de mediações interpostas na relação dos sujeitos como o mundo
(coisas, normas e a história são mediadores “naturais”). Ou seja, não é
o acaso que une ou separa as pessoas no cotidiano, é o nível de acordo
ao qual se consegue chegar – ou, caso você preferira, é a qualidade do
vínculo - relacionando o contexto interativo ao objetivo que se tem e a
história que se compartilha/quer compartilhar (projeto de futuro).

Idealmente, o objetivo de docentes e discentes deveria ser a constru-


ção de conhecimentos úteis em sala de aula. Portanto, qualquer evento
Aspectos volitivos
interativo que não esteja contribuindo para isso deve se transformar em
A volição é resultado
de uma síntese entre objeto de análise e de intervenção. Esta intervenção, idealmente, teria
cognição e afeto. Re- um caráter mediador, no sentido de possibilitar a superação do confli-
fere-se a uma vontade to devido à gênese de nova possibilidade relacional, mais adequada ao
autor-regulada, inte-
grada à subjetividade. contexto, aos papéis sociais que ali desempenham e também em relação
aos aspectos volitivos do comportamento.

Por certo que a modalidade de mediação ou intervenção adotada


nas escolas não depende unicamente do professor, estando em
jogo também: a orientação pedagógica da escola; o seu modelo de
gestão; as regras “impostas” pela direção; as relações entre a dire-
ção e os professores; as características dessas relações (autoritárias
ou democráticas); se os professores possuem liberdade de propor
atividades diversificadas; se existe uma mobilização da escola para
a educação integral dos alunos; se há uma coordenação entre os
professores das diferentes disciplinas e suas atividades; se a esco-
la desenvolve ou possui uma adesão a projetos externos e quais as
articulações existentes entre a escola e a comunidade. Sem deixar

124
Interações sociais e mediação Capítulo 14
de considerar o contexto no qual atua, o importante é que cada
mediador busque implementar um processo de comunicação que
possibilite o entendimento mútuo e a produção de sínteses supera-
doras aos obstáculos de aprendizagem – sejam de ordem cognitiva,
afetiva ou social.

Além destas questões, contribuem para a qualidade das interações


sociais as características do desenvolvimento socioafetivo alcançado em
diferentes momentos do ciclo vital. Piaget desenvolveu um importante
estudo acerca destas características, cujas contribuições podem ajudá-lo a
compreender os aspectos individuais implicados nas interações sociais.

Ao longo do processo de socialização é importante que a criança


seja capaz de internalizar as regras e valores morais que regem a socie-
dade. Esse processo é responsável pelo desenvolvimento de mecanis-
mos de controle e regulação do próprio comportamento, adequando-
os ao convívio em sociedade. Piaget assegurou que as pessoas passam
por níveis ou estágios de desenvolvimento moral, no decorrer dos quais
reconstroem individualmente as regras externas, participando das re-
lações sociais de um jeito próprio, conforme seu desenvolvimento se
enquadre em cada um destes estágios.

Segundo este autor, ocorre uma correspondência, entre aspectos do Amorais


desenvolvimento cognitivo, afetivo, social e ético. Para Piaget, as ações O termo remete a um
tipo de relação onde a
do sujeito no mundo comportam, desde o início de seu desenvolvimen- questão moral como
to, aspectos socioafetivos (ligados à regulação de forças em um cam- construção social não é
po relacional, às metas) e cognitivos (estruturais ou meios para). Neste percebida pela crian-
ça, uma vez que esta
sentido, a conduta estaria mais relacionada ao processo de equilibração
não consegue ainda
afetiva, e a compreensão desta conduta à equilibração cognitiva, mas a descentrar-se. Suas
regulação do sistema cognitivo-afetivo é resultado da mútua determina- ações são focadas nas
ção entre ambos. necessidades do eu, e
é assim que ela perce-
Do ponto de vista sócio-afetivo, o autor procurou compreender be a ação de todos os
outros com os quais
como os homens chegam a estabelecer relações baseadas em princípios
convive.
éticos, considerando-se que as primeiras fases do desenvolvimento pau-
tam-se em atitudes basicamente amorais.

125
Psicologia Educacional

À perspectiva amoral de convivencialidade Piaget denominou he-


teronomia, termo que remete a uma relação na qual os comportamen-
tos sociais são aceitos como uma lei geral externa, à qual cabe à crian-
ça submeter-se e conformar-se ou receber a punição por não haver se
relacionado de acordo com esta lei. Neste estágio, sua relação com os
adultos é de respeito unilateral ou por coação: imitam as regras criadas
pelos adultos, mas ainda não regulam seus comportamentos por elas.
Julgam seus atos pelas suas consequências e não pelas intenções, o que é
chamado de realismo moral.

À medida que a criança se desenvolve, ocorre uma redução no ab-


solutismo e nas crenças de uma moral imanente. Ocorre então uma mu-
dança do realismo moral para o relativismo moral, e ela passa a avaliar
individualmente os seus atos e a considerar novas formas de estrutu-
ração das regras de convivencialidade. Essa passagem é explicada por
Piaget, em função da crescente demanda do meio social, principalmente
pela inserção em um novo regime, o escolar, que exige sua convivência
com grupos sociais diversos. A criança passa a perceber que seus pontos
de vista também podem ser levados em consideração, deixando de lado
o respeito unilateral para “adotar” o respeito mútuo. Nesse estágio as
figuras de autoridade não são mais aceitas sem questionamentos, uma
vez que as crianças compreendem que estas são construídas e só se man-
tem pelo consentimento mútuo.
Autonomia moral A partir da adolescência espera-se que o indivíduo alcance certo nível
A moral autônoma
de autonomia moral. Nesse período, as regras e os valores são seguidos
decorre de relações
sociais simétricas, da após um convencimento pessoal de seus sentidos e significados e as inten-
capacidade operatória ções são consideradas mais valorosas que suas consequências objetivas.
reversível e dos senti-
mentos de reciprocida- Como você viu, o desenvolvimento cognitivo e do raciocínio abs-
de (justiça). trato são pré-requisitos para a construção moral, embora não seja su-
ficiente para determinar que o indivíduo vá atingir os estágios mais
elevados. De todo modo, pode-se aliar a esta informação uma reflexão
acerca do papel fundamental da escola no processo de desenvolvimento
moral das pessoas. O desenvolvimento moral e ético inclui e expressa as
formas como vemos o Outro e nos relacionamos com ele, não se resu-
mindo, portanto, ao aprendizado das regras sociais primárias, mas a um
conjunto de atitudes, valores e crenças que regem nossas ações e nossa

126
Interações sociais e mediação Capítulo 14
disposição interna para empreendermos ações em prol do Outro e de
nós mesmos.

Para mediar este processo de modo a possibilitar as aprendizagens


necessárias à consolidação de um modelo de convivencialidade pautado
na cooperação e no respeito mútuo a escola deveria desenvolver ativi-
dades cotidianas voltadas ao desenvolvimento do pensamento lógico-
formal de modo que os aspectos cognitivos, as experiências de vida e a
afetividade possibilitassem tanto uma reavaliação interna quanto a ob-
servação e a troca com outros sujeitos, advindos de outros contextos e
porta-vozes de pontos de vista diversos.

Esta modalidade de mediação torna-se tão mais possível quanto


mais elevado for o nível de desenvolvimento moral alcançado pelos
adultos responsáveis pela organização e planejamento das práticas edu-
cativas. Adultos com nível de desenvolvimento moral elevado tendem
a mediar de modo a promover interações cooperativas, pautadas na
troca e no respeito mútuo crescentes. Mediadores com baixo nível de
desenvolvimento moral tendem a estabelecer relações mais ou menos
autoritárias, pautadas em níveis de coação que variam entre a punição
e a indiferença.

Leia mais!
Caso você deseje aprofundar seu conhecimento no assunto, indico a lei-
tura do livro: LA TAILLE, Yves de; OLIVEIRA, Martha Kohl de; DAN-
TAS Heloysa. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discus-
säo / Piaget, Vigotsky, Wallon: psychogenetics theories in discussión. São
Paulo; Summus; 1992, o qual vai tratar da questão na perspectiva de três
autores fundamentais no diálogo entre psicologia e educação escolar.

127
O fracasso escolar Capítulo 15
15 O fracasso escolar
Compreender o fenômeno do fracasso escolar em uma perspectiva crítica,
considerando aspectos institucionais, políticos, históricos, sócio-econômicos e
ideológicos que o constituem.

No primeiro capítulo você estudou que até a década de 1980 a psi-


cologia brasileira lidava com a questão do fracasso educacional/escolar
como sendo problema do aluno (de ordem médica, psicológica ou devi-
do à carência cultural).

Com a anuência às teorias críticas em educação e psicologia este


cenário mudou, e atualmente um bom número de intelectuais da área
busca compreender este fenômeno considerando também aspectos ins-
titucionais, políticos, históricos, sócio-econômicos e ideológicos. A mo-
dalidade de pesquisa predomintantemente utilizada neste campo é a et-
nográfica, que possibilita um maior tempo de permanência nas unidades
escolares e a escuta cuidadosa de todos os personagens envolvidos nos
processos de produção de situações de sucesso e de fracasso na escola.

Atualmente, ao problematizar a questão do fracasso escolar, a psi-


cologia o faz considerando a necessidade de se compreender e in-
tervir em uma situação em que não foram atingidos os objetivos
de ensino e de aprendizagem, superando a perspectiva de focar no
aprendiz a busca por conhecimentos úteis para a superação deste
fenômeno. Além disso, parte do princípio sob o qual a escola é um
campo múltiplo de relações, que não se limita ao processo peda-
gógico desenvolvido em sala de aula e na relação entre professores
e alunos, ou seja, que não se limita ao conjunto das relações que
se dão em seu interior. Considera que para compreender, intervir e
superar o fracasso escolar é preciso que se assuma a escola também
em sua externalidade, quer dizer, na sua relação com a sociedade.

Nesta perspectiva, não faz sentido sequer formular a pergunta “o


que esta criança tem, que não aprende?”, porque o foco não é a criança.
A psicologia educacional crítica tem procurado levar este conhecimento

129
Psicologia Educacional

aos professores, de modo que também para esta categoria esta pergunta
deixe de fazer sentido, até porque, de acordo com a síntese dos indica-
dores socias do IBGE para 2008, 2,1 milhões de crianças (8,4%) de 7 a
14 anos de idade frequentavam a escola e não sabiam ler e escrever.
<www.ibge.gov.br/home/
presidencia/noticias/noti-
cia_vizualiza.php> Acesso Na concepção crítica da psicologia, mudanças no quadro estatístico
em: 15 jan. 2010. do fracasso escolar serão impulsionadas quando pararmos de buscar o
que “falta” em nossos alunos (por meio de laudos médicos e psicológicos)
para que sejam “normais” e aprendam e passarmos a considerar o fracasso
escolar como cassação do direito ao exercício da cidadania plena. Nesse
sentido, o fracasso deixa de ser daquele que evade, do que não aprende
a ler ou a escrever, e passa a ser assumido por todos aqueles que de um
modo ou de outro participaram deste processo de exclusão social.

Uma escola que assim entendesse a questão do fracasso escolar en-


tenderia de maneira também diversa o seu papel social. Já não procura-
ria cumprir metas pautadas somente na quantidade de matriculados ou
na competência técnica de seu quadro, mas na qualidade da formação
humana de seus alunos.

Spozati (2000) revela com muita clareza os caminhos tortuosos nos


quais se originam a produção deste fenômeno que ganha nome na escola,
mas que tem início muito antes do primeiro dia de aulas de um brasileiro
ou brasileira oriundo(a) das classes populares: uma criança que esteja
nascendo nesta classe social no Brasil (especialmente nas regiões norte e
nordeste) no exato momento em que você está lendo este texto, tem boa
chance de morrer antes de completar um ano de vida e mais de 20% de
chance de: não ser registrada ao nascer; seus pais serem analfabetos ou
possuírem um grau instrucional menor que os 9 anos de ensino funda-
mental obrigatórios; de viver em uma família com renda mensal inferior
a ½ salário mínimo; de ter que trabalhar para ajudar no sustento familiar
antes dos 10 anos; de estar trabalhando entre os 15 e os 17 anos de idade.
Esta mesma criança terá mais de 90% de chance de se matricular no en-
sino fundamental, mas apenas 50% de chance de concluí-lo.

O que o quadro acima revela é o retrato de uma criança para quem


o poder público acena com grande probabilidade de um fracasso anteci-
pado. Uma das formas de manifestação deste fracasso é escolar, mas sua
principal faceta certamente é a exclusão social mais ampla. Uma exclu-

130
O fracasso escolar Capítulo 15
são da qual acabará sendo apontada como responsável (“quando você
souber se comportar, passará de ano”) ou como vítima (“ela é carente de
tudo, por isso não aprendeu e não vai passar de ano”). Pouco importa o
polo no qual a situem educadores ou psicólogos. O resultado é o mesmo:
fracasso escolar para a criança e a continuidade do imobilismo, da rigi-
dez, da ineficácia, da falta de sentido do período de escolarização e da
própria escola, na transformação da desigualdade e da exclusão social.

Não se trata, portanto, de negar atenção às crianças e adolescentes


que apresentam dificuldades com os conteúdos escolares. Trata-se de lidar
com estas manifestações sob uma perspectiva mais ampla, voltada à pro-
blematização destes resultados e não à culpabilização do aluno, do profes-
sor, da família do aluno ou à psicologização do fracasso. Mas, para isso,
precisaremos nos tornar educadores e educandos a um só tempo. Precisa-
remos aprender a lidar e a querer transformar tudo aquilo que não fizer
sentido à função social de uma instituição que se colocará ao lado de quem
luta por mudanças sociais promotoras da justiça e da dignidade humana.

Leia mais!
A leitura do livro de CARRAHER, Terezinha; SCHLIEMANN, Ana Lú-
cia; CARRAHER, David. Na vida dez, na escola zero. 9. ed. São Paulo:
Cortez,1995, vai tornar toda esta questão mais palpável, porque discute
a temática a partir de casos concretos de “dificuldades de aprendiza-
gem”.

131
Referências

Referências
BAQUERO, R. Vygotsky e a aprendizagem escolar. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1998.
BOCK, Ana M. B.; FURTADO, Odair; TEIXEIRA, Maria de Lourdes T.
Psicologias. Uma introdução ao estudo da Psicologia. 13. ed. São Paulo:
Saraiva, 2002.
BUROW, Olaf-Axel; SCHERPP, K. Gestaltpedagogia: um caminho para a
escola e a educação. São Paulo: Summus, 1985.
CARRARA, Kester (Org.). Introdução à Psicologia da Educação. Seis
Abordagens. São Paulo: Avercamp, 2004.
COLE, Michael. O desenvolvimento da criança e do adolescente. 4. ed.
Porto Alegre: Artmed, 2003.
FERREIRA, Arthur Arruda Leal. “O múltiplo surgimento da Psicologia”.
In: JACÓ-VILELA, Ana Maria; FERREIRA, Arthur Arruda Leal; POR-
TUGAL, Francisco Teixeira (Org.). História da Psicologia. Rumos e Per-
cursos. Rio de Janeiro: NAU, 2007. p. 13-46.
FIGUEIREDO, Luís Claudio M. Matrizes do Pensamento Psicológico. 11.
ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991.
FREUD, Sigmund. Sobre a Psicologia do colegial. In: Obras completas.
Rio de Janeiro: Imago, 1970. v. XII.
FONSECA, Vítor da. Desenvolvimento psicomotor e aprendizagem. Porto
Alegre: Artmed, 2008.
GOULART, Iris B. Psicologia da Educação. Fundamentos Teóricos. Apli-
cações à Prática Pedagógica. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
JACÓ-VILELA, Ana Maria; FERREIRA, Arthur Arruda Leal; PORTU-
GAL, Francisco Teixeira (Org.). História da Psicologia. Rumos e Percur-
sos. Rio de Janeiro: NAU, 2007.
KUPFER, Maria C. “Afetividade e cognição: uma dicotomia em discus-
são”. In: ARANTES, Valéria Amorim (Org.). Afetividade na Escola: alter-
nativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, 2003. p. 35-52.
LOUREIRO, Ines. “Luzes e sombras. Freud e o advento da psicanálise.”.
In: JACÓ-VILELA, Ana Maria; FERREIRA, Arthur Arruda Leal; POR-
TUGAL, Francisco Teixeira (Org.). História da Psicologia. Rumos e Per-
cursos. Rio de Janeiro: NAU, 2007. p. 371-386.
MASSIMI, M.; GUEDES, M. C. (Orgs.). História da Psicologia no Brasil:
novos estudos. São Paulo: Cortez, EDUC, 2004.

133
Psicologia Educacional

MELLO, Suely Amaral. “A Escola de Vygotsky”. In: CARRARA, Kester


(Org.). Introdução à Psicologia da Educação. Seis Abordagens. São Pau-
lo: Avercamp, 2004. p. 135-156.
PINO, A. O biológico e o cultural nos processos cognitivos. In: MOR-
TIMER, E.F.; SMOLKA, A. L. B. Linguagem, cultura e cognição: reflexões
para o ensino e a sala de aula. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 21-50.
______. O conceito de mediação semiótica em Vygotsky e seu papel na
explicação do psiquismo humano. In: Cadernos CEDES: Pensamento e
Linguagem – estudos na perspectiva da psicologia soviética, n. 24, p. 32-
43, Campinas, SP: Papirus, 1991.
PINO SIRGADO, Angel. “O social e o cultural na obra de Vigotski”.
Educação & Sociedade: Vigotski – O manuscrito de 1929: temas sobre
a constituição cultural do homem, v. 21, n.71. Campinas, SP: Cedes, jul.
2000.
REY, Fernando L. G. “A psicologia soviética: Vygotsky, Rubinstein e as
tendências que caracterizaram até o fim dos anos 1980”. In: JACÓ-VI-
LELA, Ana Maria; FERREIRA, Arthur Arruda Leal; PORTUGAL, Fran-
cisco Teixeira (Org.). História da Psicologia. Rumos e Percursos. Rio de
Janeiro: NAU, 2007. p. 349-366.
ROTTER, J. B. Some problems and misconceptions related to the cons-
truct of internal versus external control of reinforcement. Journal of
Consulting and Clinical Psychology, n. 43, p. 56-67, 1975.
SALVADOR, César Coll. (Org.). Psicologia da Educação. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1999.
SHIRAHIGE, Elena E.; HIGA, Marília Matsuko. “A contribuição da Psi-
canálise à educação”. In: CARRARA, Kester (Org.). Introdução à Psicolo-
gia da Educação. Seis Abordagens. São Paulo: Avercamp, 2004. p. 13-46.
SPOZATI, Aldaíza. Exclusão Social e Fracasso Escolar. Em Aberto, Bra-
sília, v. 17, n. 71, p. 21-32, jan. 2000.
SCHULTZ, Duane P; SCHULTZ, Sydney Ellen. História da Psicologia
Moderna. Tradução da 8a edição americana. São Paulo: Thompson Le-
arning Edições, 2006.
VIDAL, Fernando. “A mais útil de todas as ciências. Configurações da
Psicologia desde o Renascimento tardio até o fim do Iluminismo. In:
JACÓ-VILELA, Ana Maria; FERREIRA, Arthur Arruda Leal; PORTU-
GAL, Francisco Teixeira (Org.). História da Psicologia. Rumos e Percur-
sos. Rio de Janeiro: NAU, 2007. p. 47-73.
VYGOTSKY, L. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes,
1978.

134

Você também pode gostar