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catórias sobre a loucura. Lidar com a 1
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experiência da loucura como forma de 1

ACOMPANHAMENTO
expressar-se no mundo, mas também
o de acolher e cuidar do que se sofre
neste caminhar mais à margem é a
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Nosso trabalho sai em
busca de conceitos que
possam nos auxiliar nessa
experimentação de ats e é,
justamente como ats que
fa ze m o s pa sse io s por
conceitos que muitas vezes
parecem estar a léguas de
d i s t â n c i a da c l í n i c a .
De qualquer modo já esta­
mos acostumados, essa
clínica do AT realmente vai
longe.
A direção na qual
trabalhamos coloca então o
AT em uma posição privile­ um passeio " E & Ç U I Z Ü P elo
giada para que possamos
fazer uma crítica aos especi-
al i smos cl í ni cos. Isso ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO
porque acreditamos poder,
através de nosso passeio
pelos conceitos, engendrar
dos especialismos à política da amizade
uma concepção de subjetivi­
dade e de clínica aberta, isto
é, que possa se estender às
diversas formas de atuação
clínica. O que queremos
afirmar é que, além de um
dispositivo, de uma forma de
fazer clínica, isto é, o modos
operandi de determinados
clínicos, o AT é o modos
operandi da própria clínica,
ou seja, o AT está presente
em qualquer lugar onde a
clínica se dê. Dupla afirma­
ção nesse sentido: o AT é
apenas uma forma de fazer
AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer a todos que me ajudaram na realiza­


ção desse projeto:
A Eduardo Passos pela orientação e o acolhimento.
A Auterives Maciel pelas viagens filosóficas.
A André do Eirado, Eliana Reis, Regina Benevides e Ana
Paula pelas leituras atentas e sugestões.
A Karina Ferreira, com panheira que me acolheu e ajudou
durante todo o processo.
A meus pais que me deram condições para viabilização desse
projeto.
A Renan, que teve tantas vezes o seu tempo roubado.
Ficha Catalográfica
A663 A raújo, Fábio
Aos amigos de estudo, especialmente Danilo, Kiko e André.
U m passeio esquizo pelo acom panham ento terapêutico: dos As pessoas que acom panhei, sem elas esse trabalho não
especialism os à política da am izade / Fabio Araújo N iterói, RJ:
seria possível.
2007.
192 p. : 21 cm.
Inclui Bibliogafia
ISBN: 85-61107-00-0
1. A companham ento Terapêutico. 2. Clínica. 3. Amizade. I. Título

CDD 362.2.204.25

Editoração eletrônica', Fábio Araújo


Revisão: Fábio Araújo
Capa: Fábio Araújo
Diagramação e Supervisão Gráfica: M arcos Antônio de Jesus
O passeio do esquizofrênico: é um modelo melhor
do que o neurótico deitado no divã. Um pouco de ar
livre, uma relação com o exterior. Por exemplo, o
passeio de Lenz reconstituído por Buchner. É dife­
rente dos momentos em que Lenz se encontra na casa
de seu bom pastor, que o força a situar-se social­
mente, em relação ao Deus da religião, em relação
ao pai, à mãe. Lá, ao contrário, ele está nas m onta­
nhas, sob a neve, com outros deuses ou sem deus
algum, sem família, sem pai nem mãe, com a nature­
za. “ Que quer meu pai? Ele pode dar-m e m ais?
Impossível. Deixem-me em paz.” Tudo feito m áqui­
nas celestes, as estrelas ou o arco-íris, m áquinas
alpinas, que acoplam com as de seu corpo. Ruído
ininterrupto de máquinas. “ Ele pensava que deveria
ser um sentimento de uma infinita bealitude ser to­
cado pela vida profunda de toda forma, ter uma alma
para as pedras, os metais, a água e as plantas, aco­
lher d entro de si to d o s os o b jeto s da n atu reza,
sonhadoramente, como as flores absorvem o ar com
o crescer e o decrescer da lua.” Ser uma m áquina
clorofílica, ou de fotossíntese, pelo menos insinuar
seu corpo como peças em máquinas assim. Lenz se
colocou antes da distinção hom em -natureza, antes
de todas as marcações que essa distinção condiciona.
Ele não vive a natureza como natureza, mas apenas
o processo que produz um no outro e acopla as má­
qu in as. Em toda p arte, m áquinas p ro d u to ra s ou
desejantes, as máquinas esquizofrênicas, toda a vida
genérica: eu e não-eu, exterior e interior não querem
dizer mais nada.

Deleuze e Guattari - O Anti-Édipo


ÍNDICE

A PR ESE N TA Ç Ã O ...............................................................................11
PREFÁCIO ............................................................................................13
IN T R O D U Ç Ã O .................................................................................. 15
PARTE I - ESPAÇO, TEMPO E ACONTECIMENTO
NO ACOMPANHAMENTO TER A PÊU TICO ..............................35
Clínica: ciência, filosofia e arte - situando o plano dc
composição do tra b a lh o .................................................................... 37
A clínica enquanto acontecim ento................................................. 43
Onde e Quando algo acontece - a abertura intensiva
do espaço-tem po ................................................................................. 54
Os meios e a cartografia - um fragmento clín ico .......................70
Saber e poder - o extensivo e o intensivo.................................... 79
Partículas simples, abstratas ou virtuais - as pequenas
percepções na clín ica..........................................................................89
PARTE II - ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO
E TERRITÓRIO....................................................................................99
Uma h istó ria ........................................................................................ 101
Territórios.............................................................................................1.06
Atratores estranhos —um passeio pela ciência
c o n te m p o râ n e a ...................................................................................118
Uma c e n a .............................................................................................124
Ritornelo, expressão e desterritorialização................................. 128
PARTE III - ÉTICA E POLÍTICA
NO ACOMPANHAMENTO TER A PÊU TICO............................135
A co lh er-aco m p an h ar........................................................................137
Ética da hospitalidade...................................................................... 147
O amigo qualificado e a am izade..................................................152
Uma política da am izade.................................................................164
C O N C L U SÃ O ....................................................................................176
B IB L IO G R A FIA ................................................................................185
APRESENTAÇÃO

Esse livro foi realizado a partir da dissertação de mestrado


que defendi na U niversidade Federal Flum inense (UFF) no fi­
nal de 2005. Ele se coloca com o um m ovim ento de parada e
avaliação da prática que venho exercendo há alguns anos. Po­
rém, se há um a parada, é como em uma hospedagem : parada
que revigora as forças para que a viagem possa ser continuada.
E se há uma avaliação, ela se dá atravessando e em função do
próprio movimento, desestabilizando assim, qualquer ponto que
possa servir de apoio para lima avaliação que carregue em si as
pretensões da Verdade ou da Correção.

Fábio Araújo

11
PREFÁCIO

Margens, caminhos, desvios, um percurso. É assim que Fá­


bio nos apresenta a experiência do Acompanhamento Terapêutico
(AT): um passeio esquizo, fragm entário, um modo de fazer da
clínica e um modo como a clínica se faz. Assim como os concei­
tos, a su b je tiv id a d e é trab alh ad a em seu regim e co n ectiv o ,
e x p e rim e n ta n d o d e riv a s que e n fre n ta m as c o n c e p ç õ e s
classificatórias sobre a loucura. Lidar com a experiência da lou­
cura como form a de expressar-se no mundo, mas também o de
acolher e cuidar do que se sofre neste caminhar mais à margem é
a proposta/aposta a que Fábio nos convida.
A com panhar as práticas do andar, clínica peripatética, im ­
põe um traçar permanente das conexões intensivas que só podem
ser apreendidas quando também o que acompanha experim enta
m odulações nas coordenadas espaço-tem porais, inventando no
caminhar outros territórios. Fábio afirma: há uma inseparabilidade
entre o espaço e a subjetividade, eles emergem concom itantes.
Qual então o setting da clínica? A cidade? De fato, a experiência
do AT nos obriga a colocar em questão os limites da clínica, ou
melhor, fazer da clínica uma experiência do limite. Neste senti­
do, pensar a clínica como um movimento de acompanhamento é
\
deslocá-la de qualquer lugar especialista, é deslocalizá-la de qual­
quer setting privilegiado para, então, experim entá-la enquanto
passagem. A pergunta “Onde se passa a clínica” deve, portanto,
ser substituída por esta outra: “O que se passa na clínica?”
Há passagens construídas por Fábio em seu trabalho que
inovam, ligações conceituais que surpreendem, relatos de expe­
riências que emocionam, instigam. Como ele diz, relatos que não
exemplificam, mas fazem proliferar.
Com que verbos se faz o acompanhar? Conjugar, como li­
gar, é um dos verbos que dizem do texto-experiência de Fábio.
Mas conjugar também como acolher, estar com, viver em, sentir
através, ser pego, acontecer, ser arrastado, (des e co)nectar-se,
perder-se...

12 13
Neslas experim entações verbais há tam bém que exercitar
um desfazer-se (outro verbo!) do já dado sobre a clínica, colo­
INTRODUÇÃO
cando-a em análise.
Mas, qual a importância dos temas do AT, da clínica e, so­
Uma teoria é uma caixa de ferramentas. (...) Épreciso que
bretudo, do modo como eles são tratados neste texto? Faz-se a
sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não
crítica de um a clínica separada da política, a provocação de
há pessoa para utilizá-la, a começar pelo próprio teórico
uma clínica cujo setting é volante, um AT que se dá como polí­
que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada ou
tica da am izade, uma clínica da res p u b lica . Nas tram as dos que o momento ainda não chegou. (...) A teoria não totaliza;
conceitos-ferram entas e dos relatos-experiência fica clara esta a teoria se multiplica e multiplica
posição (e se trata mesmo de uma questão de posição, de ethos):
a clínica deve ser tratada em sua am pla relação com o modo Gilles Deleuze —Os Intelectuais e o Poder
como se vive no contem porâneo. A s situações clínicas não se
separam , então, de seus engen d ram en to s p o lític o s. M icro e A rua como espaço clínico (EQUIPE DE A.T. DO HOSPI-
m acropolítica se atravessando em velocidades incontroláveis: TAL-DIA A CASA, 1991). Esse é o título de um dos primeiros
tudo muito rápido, tudo muito lento, tudo fora de foco, tudo sem livros editados sobre acom panham ento terapêutico. Seu título
chão, mas tam bém sem ar, sem cheiro, tudo com m uito som , anuncia um novo local de atuação clínica: a rua. Entretanto o
mas sem escuta, sem um outro, sem possibilidade de outrar-se, que a rua teria de clínico? Por que atribuir a esse espaço a quali­
forçando a experim entação da alteridade. dade de clínica? Em que situações a rua pode ser entendida como
clínica? Pode-se chamar a perspectiva de um atendimento na rua
Há contribuições originais, potentes, instigantes sobre o AT, de clínica? Tais questionamentos nos levam a duas outras séries
sobre a clínica indicando suas faces, suas variações. Pensar a
de perguntas. A prim eira põe em análise o estatuto da clínica e
clínica pelo viés do AT permite argüir o que acontece, o que se do seu o b je to de in te rv e n ç ã o e n q u a n to a co m p an h am en to
passa. O AT se apresenta não só como um dispositivo, mas tam­ terapêutico: O que vem a ser clínica? O que vem a ser acompa­
bém como uma função presente em qualquer lugar onde a clínica nhamento terapêutico? O que acontece na rua e o que acontece
se dá, onde algo acontece. Dentre as contribuições principais do com as pessoas que acom panham os na rua? Que concepção de
texto está, sem dúvida, a de propor o AT como clínica da amiza­ sujeito ou de subjetividade nos perm ite pensar a clínica como
de, uma amizade que não seja qualificada e sim qualificante ou um passeio pela rua? Já uma outra série de perguntas coloca em
geradora de qualidades. análise a dim ensão ético-política da clínica vista pelo viés do
Este texto tem seu valor pelo que nele se expressa do que é acom panham ento terapêutico: O que acontece com a rua quan­
potência, invenção, desvio, acolhim ento tal como se espera de do a tom am os como clínica? Quais aspectos éticos e políticos
qualquer experiência clínico-política. Se não pelas ótimas idéias estão presentes quando a clínica toma a rua como seu espaço de
que ele nos traz, e que são muitas, vale ler o livro para que co­ intervenção? Qual a relação da cidade com a clínica?
nheçam os os S ilvios, os que se inquietam , se agitam e não Pretendemos fazer uma reflexão sobre essas e outras ques­
encontram passagens inventoras de mais vida, os Daniels, os que tões p artin d o , tanto das nossas viv ên cias e e x p eriên cias de
se assustam frente ao impalpável e indizível da experiência hu­ acom panhantes terapêuticos quanto de alguns conceitos que, a
mana. Vale a pena acompanhá-lo, vale acompanhar. p rin cíp io , nos parecem úteis. A tu an d o com o acom panhante
terapêutico desde 1196 m uitas foram as dúvidas, incertezas e
Eduardo Passos questionamentos que essa prática nos pôs e ainda põe. Criamos
então um texto que tenta produzir um discurso sobre o que acon­
Regina Benevides

14 15
tece no dia-a-dia da práíica de acompanhante terapêutico e sobre gos e, muito especialmente, psicanalistas); por um lado, é
o que acontece com as pessoas quando são acompanhadas, en­ verdade que pode ter muilo para receber em conexão com
fim sobre questões que se passam em uma clínica que é a um só eles, por outro, corre o risco de subordinar a sua singularida­
tempo na rua, mas também da rua. Discurso esse que tenta tran­ de tanto às idiossincrasias como às estereotipias dos mesmos.
sitar entre noções extraídas tanto da ciência quanto da filosofia, Obviamente não serei eu quem resolverá por esses agentes
tanto da arte quanto de nossas próprias vivências, pois, como quais são as sínteses produtivas e as alianças estratégico-
afirmaremos logo de início, a clínica, em algum nível, toca to­ táticas que lhes convêm, mas tomo respeitosamente a
das essas instâncias. Faremos então que cada instância dessas - liberdade de preveni-los contra os riscos de reduzir seu esta­
filosofia, ciência, arte, experiência - corra uma atrás da outra tuto gnosiológico e trabalhista às hierarquias do instituído,
num regime de variação constante. Isso com o objetivo de que organizado, estabelecido, prevalentes no próprio domínio
o pensam ento clínico emirja das passagens de um a instância a do qual, anedoticamente, organizaram-se.
outra. Muito mais recomendável me parece, repito, à primeira vista,
a associação com intelectuais de diversas áreas, assim como
Cabe ainda estarmos atentos ao fato de que a literatura so­ com a lucidez dos usuários, particularmente se estes reúnem
bre acompanhamento terapêutico é ainda muito escassa e dispersa. as condição de pensadores, artistas ou militantes políticos
Boa parte do que existe escrito se resum e a uma transposição não-convencionais. (BAREMBLITT, 1997 b, p. 180-179)
para o cam po do acom panham ento terapêutico, de teorias de­
senvolvidas em práticas de setting fechado. “Sem dúvida, ocorre Porém, em nossa visão, a clínica sempre se produziu produ­
igualm ente a aplicação de teorias já existentes, de tal m aneira zindo ao mesmo tempo o objeto no qual intervem , isto é, uma
que muito se perde da riqueza das experiências do acom panha­ concepção de subjetividade. Cremos com isso que concepções
m ento, o que to rn a o tex to á rid o , quando não in ó c u o ” de subjetividade são criadas para dar conta dos dramas afetivos
(BARRETO, f 997, p. 251). Em tal transposição - de teorias pro­ concernentes aos próprios dispositivos que dão expressão a es­
duzidas em um setting fechado para um setting aberto - é de sas mesmas subjetividades. Uma circularidade das práticas onde
costum e se m an ter a c o n c ep ç ã o de su b je tiv id a d e que fora o dispositivo de intervenção também concorre para produção do
pesquisado e elaborado dentro do próprio setting fechado. Nota­ objeto sob o qual ele incidirá. Nos perguntarem os dessa forma
mos então a manutenção das concepções de subjetividade como quais concepções de subjetividade vemos emergir quando m on­
se elas fossem as verdades do humano e não estivessem relacio­ tamos o dispositivo do acompanhamento terapêutico e não mais
nadas com os dispositivos através dos quais foram criadas. As como fazer para adaptar tal ou tal concepção de subjetividade
novidades produzidas na passagem para um setting aberto quase criada em um setting fechado ao acompanhamento terapêutico.
sempre giram em torno de um afrouxamento das técnicas do con­ “ ... afirm o que absolutam ente ninguém , a não ser os próprios
sultório - o que, diga-se de passagem, muitas vezes faz com que in te re s s a d o s , pode e sc o lh e r e p ro d u z ir os m eios te ó ric o s,
o acompanhamento terapêutico seja visto como uma prática clí­ metodológicos, técnicos e clínicos com os que se dispuser a dar
nica in fe rio r ou au x iliar. N esse sentido que vai o alerta de conta da sua práxis.” (BAREMBLITT, 1997, p. 179)
Baremblitt a respeito da posição do acompanhamento terapêutico Diante disso a pergunta que nos colocamos não é sobre quais
diante do campo: os efeitos que o dispositivo acom panham ento terapêutico pro­
Tenho a impressão de que o principal mérito dessa original duz em nossos acompanhados - ainda que também façamos essa
condição é, por redundante que pareça, sua potência de atu­ p e rg u n ta - e sim q uais os efe ito s que o a c o m p an h am en to
alização de virtualidades radicalmente novas, sendo que ta! terapêutico pode produzir na própria clínica. Tomamos dessa
capacidade a faz entrar numa relação muito delicada com os form a o acom panham ento terapêutico como um analisador da
precedentes específicos e profissionais (psiquiatras, psicólo­ clínica.

16 17
Sabemos que uma separação há muito já foi 1'eila: ela diz próprio desejo fabricando ações.” (NETO, 1997, p. 104) Será
que o acompanhamento terapêutico é uma prática para as pesso­ que esse “quê de vivo”, esse “im plicar-se com o próprio dese­
as que não co n seg u e m se b e n e fic ia r do c o n s u ltó rio . E j o ” não devem ser postos em questão na própria clínica da
grosseiram ente essa divisão praticam ente coincide com neuróti­ neurose? Haveria na clínica da neurose tam bém um acom pa­
cos para um lado e psicóticos e neuróticos graves para o outro. nhamento terapêutico a ser feito? Acom panham ento que diz de
Todavia, não será essa divisão um reflexo das concepções de algo vivo e de uma implicação dos desejos que envolvem uma
subjetividade hegem onicam ente construídas através dos dispo­ cena, sendo esses desejos tanto de quem é acompanhado como
sitiv o s de s e ttin g fech ad o ? N ão se rá o a c o m p a n h a m e n to de quem acom panha?
terapêutico uma clínica que leva a própria clínica ao seu limite?
É isso que Sereno (1996) nos força a pensar em um parágrafo de Talvez seja essa um a das funções do acom panham ento
terapêutico diante da clínica. Mais do que reivindicar um estatu­
sua dissertação.
to c lín ic o já e s ta b e le c id o para si m esm o, não teria o
Pessoalmente, prefiro dizer que faço acompanhamento acompanhamento terapêutico a função de colocar, através de sua
terapêutico; mas não que sou acompanhante terapêutica. O prática e de sua produção, a própria clínica em questão? Neto
acompanhamento terapêutico é uma função. O que parece
(1997) faz uma ótim a imagem dos efeitos que o acom panha­
não existir é essa figura do acompanhante terapêutico àpriorí.
mento terapêutico produz ao se colocar no campo da clínica:
Essa figura é transferenciai e se constitui a cada caso, quando
não a cada encontro. Poder-se-ia objetar: bem, mas no caso Procurei (...) evitar olhar os acontecimentos dessa clínica
do psicanalista, também o lugar é transferenciai, e ele não se exclusivamente com os códigos psicanalíticos, já que a in­
designa pela função (um fazedor de psicanálise). Então po­ tenção aqui foi recortar uma dimensão na qual esses códigos
deríamos dizer que na clínica das neuroses, o fazedor da são fortemente expostos, produzindo efeitos - à semelhança
análise é o próprio analisando e o analista, ocupando o lugar da fotografia e do cinema - às vezes de “imagem estourada”,
do morto, manejaria a transferência, favorecendo a retomada às vezes de nitidez absoluta. Em ambos os casos, a imagem
da associação quando esta se interrompe, de acordo com a continua imagem, mas é preciso “acostumar” o olho para
clínica laeaniana. O fato é que acompanhamento terapêutico poder vê-la. E isso o que ocorre, por exemplo com o conceito
não é psicanálise aplicada, quanto ao acompanhamento de transferência, que no dispositivo analítico se faz ressaltar
terapêutico, é a singularidade do sujeito psicótico que indica com clara nitidez. E possível vislumbrar, no caso relatado,
a direção do tratamento, no entanto há um quê de vivo na vestígios que podem conduzir a esse conceito; entretanto, o
transferência. Há uma implicação forçosa do terapeuta no nível de exposição a que está colocado faz com que se per­
tratamento de psicóticos. (SERENO, 1996, p. 28-29) cam as suas referências exatas de contorno. O acontecimento
A pesar de Sereno sustentar a divisão entre neuróticos e passa a não coincidir mais integralmente com o conceito -
psicóticos e atribuir a essa divisão m odos diferenciados de te­ imagem “estourada” que vira outra coisa (...) (NETO, 1997,
ra p ê u tic a (p sic a n á lis e p a ra n e u ró tic o s e a c o m p a n h a m e n to p. 107)
te ra p ê u tic o p a ra p s ic ó tic o s ), n ó s nos p e rg u n ta m o s p e la
pertinência dessa divisão. O que nos indica esse “quê de vivo Nosso trabalho assim sai em busca de conceitos que pos­
na tra n s fe rê n c ia ” que a au to ra a trib u i ao aco m panham ento sam nos a u x ilia r n essa e x p e rim e n ta ç ã o de a co m p an h an tes
terapêutico? Neto (1997) tam bém parece ser sensível a esse terapêuticos e é, justam ente com o acom panhantes terapêuticos
“quê de v iv o ” no acom panham ento terapêutico e, da m esm a que fazemos passeios por conceitos que m uitas vezes parecem
form a contrapondo-o ao lugar de m orto, dirá: “Na clínica do estar a léguas de distância da clínica. Entretanto já estamos acos­
acompanhamento terapêutico ( ...) a posição possível para ope­ tumados, essa clínica do acompanhamento terapêutico realmente
vai longe.
rar algum a ru p tu ra na pura re p e tiç ã o é im p lic a r-se com o

18 19
A direção na qual trabalhamos coloca então o acom panha­ sagem referenciada e evidenciada pelo próprio ato de passar (ou
m ento te ra p ê u tic o em uma p o siç ã o p riv ile g ia d a p ara que passear) pela cidade. Porém se tomamos a passagem como função
possamos fazer uma crítica aos especialismos clínicos. Isso por­ clínica não é unicamente pelo fato do acompanhamento terapêutico
que acreditamos poder, através de nosso passeio pelos conceitos, passear pela cidade e sim porque passeando pela cidade ele fa z
engendrar uma concepção de subjetividade e de clínica aberta, passar algo, e aí, nesse fazer passar algo encontramos a clínica.
isto é, que possa se estender às diversas formas de atuação clíni­ As passagens de um ponto a outro, sejam eles pontos da cidade,
ca. O que querem os afirm ar é que, além de um dispositivo, de de um discurso ou de um corpo se movimentando num consultó­
uma form a de fazer clínica, isto é, o modos operandi de determi­ rio, vão colocando lado a lado fragm entos, que vão form ando
nados clín ico s, o a co m p a n h a m en to tera p ê u tic o é o m odos paisagens e adquirindo sentidos. A clínica se revela então como a
o p e ra n d i da p ró p ria clín ica , ou seja, o a c o m p a n h a m en to bricolagem de fragmentos que ora se conectam produzindo uma
terapêutico está presente em qualquer lugar onde a clínica se figura, ora se desconectam desestabilizando figuras já constituí­
dê. Dupla afirmação nesse sentido: o acompanhamento terapêutico
das. Essa conexão/desconexão se dá a medida em que percorrermos
é ap en as um a fo rm a de fa z e r c lín ic a ; o a c o m p a n h a m e n to
os fragm entos rearrum ando-os. O acom panham ento terapêutico
terapêutico é a forma pela qual a própria clínica se faz. Tal afir­
enquanto o modo da clínica é a função de, junto aos acompanha­
m ação, certam ente, se põe enquanto um paradoxo ou parece
dos, criar linhas constituintes que façam dos puros fragm entos
mesmo ambígua, pois é justamente nesta sua natureza indecidível
novas paisagens, novos horizontes. Parece ser nesse sentido que
que ela nos permite a colocação de um problema, problema que
vai uma exclamação de Sereno (1996) em sua dissertação: “Mas o
propom os m ais percorrê-lo com o acom panhantes do que lhe
psicanalista sentado também está andando, em movimento, com o
apresentar uma solução definitiva. analisando! Talvez a implicação do corpo do At [acompanhante
Entretanto parece que não estam os sendo justos com nos­ terapêutico] seja mais evidente, mas o psicanalista sentado tam­
sos leitores ao colocarmos esse problema sem antes apresentar o bém está im plicado com o corpo, como presença.” (SERENO,
que seriam as duas caras do acompanhamento terapêutico. 1996, p. 18-19).

Por um lado, ou em uma de suas faces, o acompanhamento Nosso cuidado então é de não tomarmos o acompanhamen­
terapêutico é uma prática relativamente instituída de clínica, que to te ra p ê u tic o u n ica m en te com o um d isp o s itiv o c lín ic o e
serve como forma de atuação em determinados casos, em sua mai­ dissertarmos única e exclusivam ente sobre uma modalidade clí­
oria situações graves que exigem um cuidado bastante intenso. nica. Por isso faremos, já de início, uma distinção entre tecnologia
As táticas de atuação dessa clínica consistem em colocar as pes­ clínica (a montagem dos dispositivos) e clínica enquanto aconte­
soas que acompanhamos em contato direto com a vida prática e cim ento (a função clínica). A pesar da distinção, é necessário
com o socius. Isso com o intuito de ajuda-las no resgate de ativi­ afirmar a inseparabilidade dos dois termos. Inseparabilidade essa
dades que, devido às tram as subjetivas em que entraram, estão que encontram os na raiz grega da própria palavra técnica. Se­
com prom etidas ou tam bém na criação de atividades até então gundo Heidegger (1995) a experiência grega situa a técnica no
inéditas. Dessa conexão com a vida prática deriva o entendi­ campo do conhecer, isto é, do saber. Porém conhecer é a produ­
mento da rua como um espaço clínico. Uma forma de fazer clínica ção das condições da aparição do que é dado; é a produção que
onde o socius é envolvido de forma imediata. torna m anifesto algo que se dá a conhecer em uma posição de
presente. Diz o autor:
Por um outro lado, ou em sua outra face, o acompanhamento
terapêutico aparece como a forma da própria clínica, isto é, o que O termo “técnica” deriva do grego technikon. Isto designa o
é próprio da função clínica. Todavia, o que vem a ser essa função? que pertence à technè. Este termo tem, desde o começo da
Responderemos, antes de qualquer coisa, que é a função de p a s­ língua grega, a mesma significação que epistemè - quer di­
zer: velar sobre uma coisa, compreende-la. Technè quer dizer:

20 21
conhecer-se em qualquer coisa, mais precisamente no fato de
parece ganhar um pequeno deslocam ento, m esm o que ainda
produzir qualquer coisa. (...) Technè: conhecer-se no ato de
apareça como produtora de saber, mais especificamente do fazer
produzir. Conhecer-se é um gênero de conhecimento, de re­
saber. É nesse deslocamento, do saber para o fazer, que Heidegger
conhecimento e de saber. O fundamental do conhecer repousa, situa a questão da técnica moderna.
na experiência grega, sobre o fato de abrir, de tornar manifes­
to o que é dado como presente. No entanto, o produzir pensado A técnica como questão do fazer, diz o autor, é posta na
à maneira grega não significa tanto fabricar, manipular e ope­ m odernidade por duas visões conjugadas: uma antropológica,
rar, mas mais o que o termo alemão herstellen quer dizer outra instrum ental. A técnica cunhada nessa conjugação de vi­
literalmente: stellen, por, fazer levantar, her, fazendo vir paia sões, Heidegger dá o nome de técnica moderna, estabelecendo
ao m esm o tempo uma crítica a tal forma de encarar a técnica.
aqui, para o manifesto, aquilo que anteriormente não era dado
Heidegger, entendendo a técnica m oderna como instrum ento e
como presente.
como coisa do homem, vai relacioná-la à questão principal de
Para falar de maneira elíptica e sucinta: technè não é um con­
sua filosofia, isto é, 0 esquecimento do ser. A técnica moderna,
ceito do fazer, mas um conceito do saber. Technè e também
segundo o autor, não mais revelaria 0 ser e sim traria o seu justo
técnica querem dizer que qualquer coisa está posta 110 mani­ oposto, o ocultamcnto do ser. E esse é o perigo para Heidegger,
festo, acessível e disponível, e é dada enquanto presente à sua perigo de colocar todo 0 ser em estado de fundo, liberando ape­
posição. Ora, na medida que reina na técnica o princípio do nas “uma energia que possa como tal ser extraída e acumulada”
saber, ela fornece a partir de si própria a possibilidade e a exi­ (HEIDEGGER, 1958, 15), mas que nunca efetivamente revela 0
gência de uma formação particular do seu próprio saber ao ser. Nesse sentido, técnica e acontecim ento se encontram sepa­
mesmo tempo que se apresenta e se desenvolve uma ciência rados, pois a técnica m oderna somente serviria para a extração
que lhe corresponde. Eis aqui um acontecimento, e este acon­ de uma reserva de utilidades, separando-se assim do produzir
tecimento não se dá, de uma e só vez no decurso de toda a com o desvclam ento.
história da humanidade (...)(HE1DEGGER, Í995, p. 21-22)
Não acom panharem os as críticas heideggerianas à técnica
Hcidegger, referindo-se a experiência grega, identifica a téc­ m oderna já que nossa questão não é ontológica. Interessa-nos
nica à própria condição de surgim ento dos entes que se dão a re te r a q u e stã o da p ro d u ç ã o , logo do d e v ir, a p o sta n d o na
conhecer em seu ser. Técnica e acontecim ento são, desta feita, inseparabilidade entre técnica e acontecim ento. Diante disso fa­
as condições de abertura que tornam presente o que se manifes­ remos intervir, frente à questão da técnica, um conceito que se
ta, o já-aí. Isto quer dizer que 0 se tornar de algo é uma produção aproxim a m uito mais da epistem è de Foucault: o conceito de
que se dá a conhecer. Técnica e acontecimento se reúnem então agenciam ento.
como epistemè.
O agenciam ento agora situa a técnica em outra posição.
Foucault, a quem o conceito de epistemè é caro, enfatizou N esse sentido, D elcuze e G uattari afirm aram um prim ado do
justamente essa abertura que dá condições de enunciabilidade e agenciamento em relação às técnicas, ou seja, o agenciamento é
de visibilidade - logo condições do saber - em determinada épo­ o que dará ou não a utilidade técnica a um determinado objeto.
ca, localizando essas condições que são 0 a priori de qualquer Dado um objeto, ele não tem utilidade algum a enquanto não
forma no tempo. Foucault cria com isso a noção de um a priori encontrar 0 agenciam ento que lhe ofereça uma função. Dizem
histórico. A epistemè é então 0 a priori histórico que dá condi­ os autores:
ções de aparecimento ao que é, sendo esse aparecimento a própria
produção do que aparece. Porém Foucault fala de práticas, sendo Mas o princípio de toda tecnologia é mostrar como um ele­
elas discursivas e não-discursivas, que efetivam uma epistem è mento técnico continua abstrato, inteiramente indeterminado,
como determ inação histórica, e m ais ainda, em determ inados enquanto não for reportado a um agenciamento que a máqui­
casos chama essas práticas de tecnologias, que poderíamos reu­ na supõe. A máquina é primeira em relação ao elemento
nir sob o nome de tecnologias de saber. A questão da técnica técnico: não a máquina técnica que é ela mesma um conjunto

22 23
de elementos, mas a máquina social ou coletiva, o
Compromissos científicos, ou como diria Foucault, discipli-
agenciamento maquínico que vai determinar o que é elemen­
nares. Compromissos corporativos, profissionais e uma série
to técnico num determinado momento, quais são seus usos,
de compromissos comuns a qualquer cidadão que desenvol­
extensão, compreensão..., etc.
ve um trabalho, isto é, políticos, econômicos, éticos, estéticos
E por intermédio dos agenciamentos que o phylum selecio­
etc. todos esses podem ser reunidos na fórmula que diz serem
na, qualifica e mesmo inventa os elementos técnicos, de modo
edificados sobre saberes que envolvem poderes.
que não se pode falar de armas ou ferramentas antes de ter
Temos um lugar socialmente definido e supõe-se que sabe­
definido os agenciamentos constituintes que eles supõe e
mos sobre o que trabalhamos. Isto nos investe de um poder
nos quais entram. (DELEUZE e GUATTARÍ, 1997 b, p. 76)
irrecusável, o que não podemos deixar de assumir. Então,
E em outro texto dão os autores o seguinte exemplo: muito além da nossa obrigação de aprofundar, ampliar, es­
A máquina de justiça não é dita máquina metaforicamente: é tender esse saber, temos uma necessidade de questioná-lo.
ela que fixa o sentido primeiro, não somente com suas peças, (BAREMBLITT, 1991, p. 80)
seus escritórios, seus livros, seus símbolos, sua topografia,
mas também com seu pessoal (juizes, advogados, oficiais de Q uestionar as técnicas enquanto saberes constituídos, não
justiça), suas mulheres pegadas aos livros pornôs da lei, seus os naturalizando, desestabilizando suas formas, nos dará as con­
acusados que fornecem uma matéria indeterminada. Uma dições para que possam os extrair das práticas, uma experiência
máquina de escrever só existe em um escritório, o escritório clínica que pensarem os como um acontecimento. Falamos agora
só existe com secretárias, subchefes e patrões, com uma dis­ não mais do como nem do onde se dá a clínica e sim o que se
tribuição administrativa, política e social, mas erótica passa quando a clínica se dá'. E chamaremos esse o que se pas­
também, sem a qual não haveria e jamais teria havido “técni­ sa na clínica de acontecim ento, ou clínica-acontecim ento - a
ca”. (DELEUZE e GUATTARÍ, f 977, p. 118-119) ponta m ais desestratificada do agenciam ento clínico, que tam ­
bém será entendido como acom panham ento terapêutico.
Resta sab er a quais ag e n cia m e n to s o acom panham ento
Cremos que os profissionais de saúde mental são pessoas que,
te ra p ê u tic o e n q u a n to té c n ic a re sp o n d e , po is é nesses
em suas práticas, buscam —ou ao menos deveriam buscar - esse
agenciam entos que verem os surgir também os acontecim entos.
momento ou essa experiência de acontecimento que estamos atri­
No nosso estudo estam os nos ocupando então do acom panha­
buindo à clínica e, mais ainda, que acompanhar e experimentar
m ento terapêutico entendido com o uma tecnologia clínica, no
esses acontecim entos ao molde de um acompanhante terapêutico
entanto sem separar disso o acontecimento que essa técnica dei­
é a sua arte. Todavia acreditamos que tal momento ou experiência
xa revelar, ou seja, o modo de operação da própria clínica. Se
não é de fato nem de direito propriedade desses profissionais e
assim não fosse e nos situássem os exclusivam ente ao lado do
que nem mesmo é necessariamente garantido pelas suas técnicas;
dispositivo tecnológico estaríamos atados a regras e formas cons­
que muitas vezes tais experiências acontecem para além ou apesar
tituídas, vinculadas a uma profissionalização e a um saber, que
dão a algum as pessoas o estatuto de trabalhadores na área de das técnicas empregadas, entretanto não deixam de ser matéria de
saúde m ental, definindo ao mesmo tempo seu objeto de inter­ acompanhamento clínico. O que estamos afirmando e uma aber­
venção - o lado estratificado do agenciam ento clínico. Parece tura para as forças do fora, para o que é incalculável, para o que é
ser nesse se n tid o que B a re m b litt nos c o n v o c a a um irrem ediavelm ente novo. Essa abertura é o que vai nos permitir
questionam ento dos saberes constituídos: unir novamente técnica e acontecimento como uma coisa só, como
a arte de saber-lazer no próprio movimento de tornar-se.
(...) todas as definições que tentamos fazer do nosso objeto,
em relação ao qual também nos definimos, está profunda­
1 Ver o texto O que pode a clínica? A posição de um problema e de um paradoxo.
mente, historicamente, afetada por uma série de compromissos.
(PASSOS e BENEVIDES, 2004)

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25
Não querem os com isso pregar um a inutilidade ou uma passa por longos estudos, horas de estágio, de supervisões e, por
demonização das técnicas muito menos o fim dos trabalhadores vezes de terapia. Todavia é ainda nossa crença - e certamente essa
em saúde mental. Pelo contrário, as técnicas são úteis e até mes­ crença sustenta a anterior - que por baixo, ou entre, ou no meio,
mo importantes, assim como acreditamos na necessidade de que ou como que vindo de fora dessas técnicas está o acontecimento.
existam pessoas dedicadas à atividade clínica. Todavia possa­ Sem acontecimento teríamos apenas uma sucessão de estados de
mos falar de um minimalismo técnico, isto é, o mínimo de técnica coisas em instantes onde a diferença entre um estado e o próximo
necessário para o máximo de acontecim ento. não faria a menor diferença. Seria uma diferença indiferente ou
Também não deixam os de ver as pessoas que necessitam mitigada, já que o acontecimento é justamente o sentido da passa­
de viver tal experiência clínica, e que certamente se beneficiam gem de um estado a outro.
de intervenções realizadas por quem se dedica a tal atividade2. O Quando não encontram os esse momento da passagem que
que não queremos é fechar a idéia de acontecimento de tal forma é a própria clínica enquanto acontecimento, a clínica passa a ser
que crie a imagem que há um fazer de um especialista que, em entendida como um lugar de saber específico, e as conseqüênci­
matéria de clínica, seria responsável pelos acontecimentos. Isso as disso foram muito bem analisadas por Coim bra (1995), em
faria do acontecimento um objeto restrito nas mãos de uns pou­ seu livro sobre a história das práticas “psi” no Brasil. Um lugar
cos, que tomam para si um saber exclusivo pelo fato de possuírem determinado supõe um conhecimento de um especialista que di­
o conhecimento de algumas regras do fazer. Quando vemos gru­ rige a clínica através de regras e técnicas mais ou menos rígidas,
pos se fecharem em torno de um saber para fazer dele uma verdade porém certam ente garantidoras do saber, do seu local e do seu
dogmática vemos nascer os especialism os. Quando um saber se tempo. Dentro de uma tal concepção fundam entalista de clínica
diz detentor único e exclusivo de um determinado objeto, excluin­ há um afastam ento quase que intransponível entre quem detém
do como falsas ou erradas todas as outras intervenções possíveis os saberes de cura e os que estão para serem curados. As regras
que poderiam incidir sobre ele, vemos funcionar uma relação onde estratégicas tendem a ser especificadas, organizadoras das atitu­
as técnicas se tornam figuras de hegem onia e de dom inação des, do tem po e do próprio espaço. Q uando, por ventura, o
dogmática. Nessas circunstâncias o que há de novidade em um tratamento não dá certo, o paciente tende a ficar com a responsa­
acontecimento é, a cada vez, rechaçado através de sobrecodificações bilidade desse não funcionamento, seja porque não colabora ou
que o mitigam. resiste à cura, seja porque a sua patologia não permite, todavia o
Cabe ainda enfatizar a nossa crença de que as tecnologias dispositivo em tese está garantido, é assim que se faz, é assim
clínicas são apenas questão de gosto, estilo ou charme, cada pro­ que sempre se fez.
fissional usando a forma que lhe convém: uns não se deixam ver Como estam os vendo, pensar a clínica não somente como
pelo paciente, outros se mostram de frente; uns guardam silêncio, um dispositivo pré-m ontado é pensá-la também como aconteci­
outros interrogam, interrom pem , indagam ...; uns não permitem mento no que chamaremos de abertura intensiva. Tudo muda, as
serem tocados em seus corpos, outros tocam o corpo de seus paci­ regras já não garantem necessariamente mais nada e os saberes
entes; uns juntam várias pessoas, outro só individualmente; e assim se dissolvem em favor de uma potência, que crem os ser uma
sucessivamente em uma série incontável. Isso não exime tais pro­ força plástica de criação de novas form as de vida. Vemos os
fissionais de toda uma difícil e exaustiva preparação técnica, que especialism os caírem por terra em um lugar que já não porta
uma espacialidade nem uma temporalidade dada. Um espaço sem
2 Quanto a uma base filosófica para se pensar as questões de patologia ver O
lugar, um espaço qualquer. Não mais algo que se movimenta em
normal e o patológico (CANGUILHEM, 1978). Parece que a partir desse texto, um espaço, porém um espaço que, ele mesmo, se movimenta. E
mesmo que o autor advirta sobre a utilização de suas pesquisas em psicopatologias, se dizemos ele mesmo é apenas por força de expressão. Um es­
podemos pensar a patologia como a ação de furtar-se à vida.
paço que se move não mais por movimento e sim por velocidade.

26 27
De zero a cem ou mil ou ao infinito sem aceleração, velocidade narem e de serem extremamente eficientes, produzindo toda uma
pura, absoluta. Um espaço impessoal, intersticial, que não diz m icropolítica às avessas, ou seja, uma m icropolítica que enfada
respeito a m ais nada especificado; ao contrário um espaço 110 a vida gerando o niilismo como uma vontade de recusa da po­
m eio, entre as especificações. Espaço, que paradoxalm ente, é tência criativa e de suas forças diferenciantes.
constitutivo das próprias especificações.
Cremos que a clínica, em sua m icropolítica, deva ser um
Pensaremos, desta forma, a questão do especialismo na clí­
espaço de libertação constante, de libertação infindável, entre­
nica pelo viés das formações da subjetividade, o que quer dizer
tanto o que vemos boa parte das vezes, são saberes e técnicas
que não mais estaremos em busca de uma concepção de subjeti­
achatados em aparatos que só fazem reproduzir referências uni­
vidade aplicável e sim que teremos em foco a própria produção
versais e reducionistas, se parecendo mais como uma estereotipia
de subjetividades. Acreditam os ser essa uma tarefa de extrema
do que com o avivar da potência afirmativa e produtora da vida.
importância, pois muitas vezes as pessoas que se agarram a um
Fazer uma clínica libertária se torna, então, uma urgência e um
especialismo, a despeito de sua boa-vontade, não leva em conta
com prom isso. Todavia o que vem a ser uma clínica libertária?
o campo político em que atuam, criando processos de subjetivação
Nesse ponto concordamos com Baremblitt ao redefinir o concei­
to ta lm e n te se g re g a tiv o s e m u itas v ezes re a c io n á rio s e
to de lib e rd a d e , re tira n d o d e le todo c a rá te r id e a lís tic o e
mierofascistas. Guattari, ao falar de La Borde, nos alerta quanto universalizante:
ao perigo dessas pequenas práticas m ortificadoras, pois fazem
parte de um continuum que dá sustentação ao niilism o3 e suas Mas liberdade aqui não implica apenas a capacitação para, e
grandes form ações políticas: o desempenho das convenções segundo as quais ‘o direito de
um acaba onde começam os do outro’ (ainda que não seja
As atitudes segregativas formam um todo; as que se encontram
demais lembrar disso para avaliar e corrigir o grosseiro ou
entre as doenças mentais, as que isolam os doentes mentais do sutil autoritarismo de certas terapias). (...) Essa ‘liberdade
mundo ‘normal’, a que se tem em relação às crianças em difi­ condicional’, própria da democracia liberal e disciplinar, por
culdades, as que relegam as pessoas idosas a uma espécie de meio da qual se metaaprende muito bem a protagonizar rela­
guetos participam do mesmo continuum onde se encontram o ções contratuais ‘modernas’, terá de ser ampliada em todas as
racismo, a xenofobia e a recusa das diferenças culturais e exis­ direções necessárias e intensificada segundo um regime de
tenciais. (GUATTARI, 1992, p. 196) variação contínua. Não se trata de procurar uma ‘liberdade
incondicional’, trata-se de não ‘partir de condições de chega­
Dessa forma vemos que qualquer atividade clínica, em sua
da’, cuja estereotipia universalize os seus limites. Trata-se de
micropolítica, faz parte de práticas capilares que, como num fraclal
uma abertura tanto aos devires individualizantes quanto às
ou num continuum, podem legitim ar as políticas de poder e de
alteridades correspondentes, que terão que se produzir nesse
controle que tentam reger a vida como um todo. Tal perspectiva encontro único e irrepetível. Liberdade para jogar a aposta
faz com que o perigo das práticas clínicas do especialism o não que implica atualizar o virtual, quer dizer, o mais insólito e o
seja o de serem ineficientes ou inúteis e sim o oposto, de funcio­ melhor de cada pura diferença. (BAREMBLITT, 1997 a, p. 8)

Liberdade não como um universal ou um direito apriorístico


do humano; nem como a essência de uma consciência intencio­
3 Entre muitas formas nietzscheanas de definir o niilismo uma se destaca: o niilismo
como o produto da ilusão criada pela reversão das forças reativas sobre as nal que decide por si e para si sempre baseada em nada (SARTRE,
forças ativas, separando essas do que elas podem, ou seja, de sua potência. A 1997); nem como um objeto que nos foi usurpado ou perdido e
resultante dessa ilusão é a vontade de nada. Essa é a genealogia da vitória das que conseqüentemente nos torna faltantes. Liberdade é entendi­
forças reativas e a linha mestra do livro Genealogia da Moral, Uma Polêmica
(NIETZSCHE, 1998)
da aqui como processos constantes de libertação dado no espaço
do entre das relações; liberdade sempre a se construir, uma T.A.Z.

28 29
(Zona Autônom a Temporária)4 (BEY, 2001), um m otim que a O acompanhamento terapêutico é uma prática que se dá em
vida produz e que se dissipa antes da chegada da polícia para agenciam entos que vão da subjetividade hum ana aos espaços
que se constitua em outro lugar; liberdade relacionai, instantâ­ sociais, dos espaços sociais ao meio ambiente, do meio ambien­
nea e nom inal5 que nunca se com pleta ou se acaba, todavia se te à subjetividade - tudo isso com a força da instantaneidade.
está sempre por conquistar, numa tensão de forças que a faz sem­ Não é um a clínica unicamente do indivíduo problem ático/doen­
pre continuar querendo a si mesma como aumento de sua potência. te/necessitado, mas um a vivificação da subjetividade na cena/
A clínica então visa ser uma prática de liberdade] cenário público e da própria cena/cenário público, se dando em
Esse tipo de liberdade coincide com a prática de acom pa­ um registro ecosófico.6
nhamento terapêutico que cremos estar desenvolvendo há alguns Nunca é demais lembrar que a interpretação especialista do
anos. A abertura ao socius faz com que as conexões se multipli­ m undo é uma artim anha da form ação político-disciplinar que
quem e englobem não só o indivíduo, mas os muitos que falam ordena e gerencia a diferença e o desvio. Sob o peso dessas for­
em cada um, assim como os m uitos que falam nos outros, nos m as cristalizadas e endurecidas vemos excluída, do campo das
espaços sociais e no meio ambiente. Pode-se dizer isso quando possibilidades da clínica, a construção ético-estética de uma p o ­
experim entam os os tipos de intervenção que se realizam nessa lítica da am izade, entendida aqui como a série de produções de
prática, tanto intervenções do meio ambiente, como as produzi­ si que retornam sobre si descentrando-se. Esse descentram ento
das pelas relações sociais e subjetivas. É o céu que de repente se será entendido aqui com o uma relação libertária que surge no
fecha e arma um temporal, um ônibus cheio ou pessoas corren­ espaço intersticial, na fissura do entre-dois, espaço sempre entre
do para baixo da m arquise, um m edo que surge, a ajuda de um e outro, espaço que entendemos ser clínico por excelência.
terceiros, o contato com outros, a articulação subjetiva de um
No entanto, a questão verdadeiram ente positiva se torna a
corpo em plena afetação - tudo isso ao mesmo tempo e em rela­
de como construir uma clínica proteiforme e nômade que expur­
ção atenta, criativa e intuitiva.
gue de si as id en tid a d e s fa c ilm e n te c a p tu ráv e is e devenha
As intervenções se tornam múltiplas e imprevistas, não vão produtora de realidades permissivas ao surgimento das alteridades,
unicam ente do acom panhante ao acom panhado, e sim surgem realidades que possam acolher o outro, dar boas-vindas ao es­
de todos lugares. Tais intervenções obrigam a articulação dos trangeiro e ao que é estrangeiro. Clínica-amizade, ou uma amizade
diversos saberes. Saberes que passam pela arte de pescar um da c lín ic a , ou ain d a um a a m izad e na c lín ic a : A tiv id a d e
peixe na beira da praia, de jogar cartas ou xadrez em rodas de m icropolítica que busca através da criação de novos direitos
praças, de escolher verduras e frutas em uma feira livre, de ne­ relacionais construir novos espaços na cidade, como acreditava
gociar com a polícia, quando não com ladrões, de pedir e dar Foucault (1981).
informações, de ler alguns signos naturais, enfim, saberes m últi­
plos que co-produzem a com plexidade subjetiva da vida. Entretanto, se buscamos uma política da amizade articula­
da à clínica do acompanhamento terapêutico, é por entendermos
que um engajamento político esteve sempre presente na prática
do a c o m p a n h a m e n to te ra p ê u tic o , e sp e c ia lm e n te no seu
surgim ento. E aí retornam os aos agenciam entos efetivos pelos
4 Segundo o autor “assim que a TAZ é nomeada (representada, midiada), ela deve quais o acom panham ento terapêutico se faz enquanto técnica.
desaparecer, ela vai desaparecer, deixando para trás um invólucro vazio, e brotará
novamente em outro lugar, novamente invisível, por que é indefinível pelos termos
do espetáculo. (...) A TAZ é um acampamento de guerrilheiros ontologistas: ataque
e fuja. Continue movendo a tribo inteira, mesmo que ela seja apenas dados na
web." (BEY, 2001, p. 18 e 19)
0 Articulação política de três instâncias ecológicas: meio ambiente, relações sociais
5 Sobre uma concepção nominalista de liberdade em Foucault ver (RAJCHMAN, 1987) e subjetividade humana (GUATTARÍ, 1990).

30 31
Am igo qualificado foi o primeiro nome dado a essa prática, Diante disso, nossa proposta será pensar a clínica pelo viés
quando ela se inseria no contexto das lutas da psiquiatria social. do acompanhamento terapêutico. De qualquer forma, na história
O amigo qualificado foi então um a form a de fazer clínica que
não se separava de uma intervenção política 110 campo da saúde da clínica, foi sempre o trabalho com os casos m ais com plica­
m ental, que não se separava de uma prática de liberdade e da dos, casos que não respondiam às técnicas convencionais - casos
criação de novos direitos relacionais. que hoje em dia param na mão dos acompanhantes terapêuticos
- que forçou o limite da clínica fazendo com que ela avançasse.
Em nosso trabalho faremos uma análise justamente da m u­
Pois são esses casos extremos que colocam para a clínica proble­
dança de nomes, pois é quando 0 amigo qualificado quer construir
uma teorização e uma justificação clínica sobre o que faz que mas antes impensados. É ao se defrontar com tais problemas que
surge o movimento de mudança de nomes. Para que tal teorização a clínica é obrigada a se reinventar, a se recriar. Talvez essa prá­
se dê o amigo qualificado se afastará de sua base político-clínica tica do acompanhamento terapêutico possa cumprir hoje em dia
na psiquiatria social e se aproxim ará, agora como acom panha­ tal função. E se queremos alargar os limites da clínica, é somente
mento terapêutico, de uma inflexão estritamente clínica buscada para que possam os concebê-la com o um cam po ético-estético
na psicanálise. Mesmo que, como veremos, essa manobra vá jo­ propício à construção de uma política da amizade.
gar 0 acom panham ento terapêutico em uma espécie de engodo
que faz dele uma prática terapêutica entendida como inferior. Para tal tarefa nos serviremos da inspiração de autores como
Ou seja, o amigo qualificado perde sua especificidade política se Gilles Deleuze, Félix Guattari, Michael Foucault, Jacques Derrida,
tornando assim acom panham ento terapêutico, porém 0 agora Maurice Blanchot, Friedrich Nietzsche entre outros; usaremos os
acompanhamento terapêutico, diante das outras form as clínicas conceitos de acontecim ento, intem pestivo, território, ritornelo,
e im portando suas concepções de subjetividade, se torna um a atratores estranhos, devir, poder, saber, subjetivação, relação de
prática clínica destituída do valor de uma clínica stricto senso. forças, amizade, hospitalidade, etc. Isso tudo na intenção de que
O que percebemos - depois de resgatado o sentido político possamos lançar luz tanto sobre a clínica em geral quanto sobre
da amizade nessa prática - é que o acompanhamento terapêutico essa clínica em m ovim ento, essa clínica da/na rua, essa clínica
pode servir de analisador dos limites dos especialismos clínicos. na/da cidade que é o acom panham ento terapêutico.
Podemos dizer que o acompanhamento terapêutico é uma clíni­
ca peripatética7, isto é, uma clínica que se dá sem local fixo, Dividimos então nosso texto em três partes. Na primeira si­
sempre em relação com um a paisagem da cidade, uma clínica tuamos o acompanhamento terapêutico e a clínica cm relação ao
que se dá em passeios, ou ainda - como é comum entre os acom­ espaço, ao tempo e ao acontecimento. Falamos também da maté­
panhantes - uma clínica que se dá em saídas. Uma clínica das ria sobre a qual a clínica incide, ou seja, 0 que definiremos como
saídas, dos percursos de saída. Na cena/cenário da rua, dos espa­ partículas sim ples ou pequenas percepções. Na segunda parle
ços públicos, os acontecim entos são poliform es e não esperam entraremos nas noções de território e de desterritorialização para
pelas intervenções adequadas do especialista autorizado. A rua e falarmos da dinâmica da clínica. Ainda apresentaremos fragmentos
a sua m ultiplicidade fervilhante não respeita os form alism os e de casos que possam nos ajudar a visualizar tal dinâm ica. No
exige tragicam ente de um a intuição instantânea, norteadora do
meio do percurso faremos um desvio para estabelecer um diálo­
ato clínico, na duração do acontecim ento, com a m em ória e o
go com a ciência contem porânea e introduzirem os a noção de
impulso vital que lhe é inerente.
atratores estranhos. Na terceira parte entraremos em uma discus­
são ético-política ao redor da clínica. N ovam ente usarem os a
experiência do acom panham ento terapêutico com o analisador
da clínica, para que sua função política se evidencie. Nessa parte
7 Segundo o novo dicionário básico da lingua portuguesa (AURÉLIO, 1988), peripatético as noções de am izade e de hospitalidade é que conduzem as
diz respeito ao que se ensina passeando. Estamos nos apropriando desse sentido discussões.
para pensarmos justamente essa clinica que se dá em trânsito.

32 33
Em nossa escrita também estará presente a experiência, for­
te e m arcante, que tem os como acom panhantes, pois tentam os
ao máximo acompanhar os fluxos que o pensam ento nos im pu­
nha. Para isso, ora fizem os desvios para fugirm os de regiões
nebulosas, ora paramos para descansar, ora apertamos os passos
para chegarmos mais rápido a um determinado ponto, ora dim i­
nuímos a velocidade para poder olhar a paisagem, ora..., ora...,
o ra... Pois sabemos que o pensam ento também tem uma exten­
são e que por mais que caminhemos é sempre um novo horizonte
que vemos surgir, de modo que a viagem não pára, está sempre
PARTE I
em andam enlo.

ESPAÇO, TEMPO E ACONTECI­


MENTO NO ACOMPANHAMENTO
TERAPÊUTICO

34 35
CLÍNICA: CIÊNCIA, FILOSOFIA E
ARTE - SITUANDO O PLANO DE
COMPOSIÇÃO DO TRABALHO

Pedimos somente que nossas idéias se encadeiem segundo


um mínimo de regras constantes, e a associação de idéias
jamais teve outro sentido: fornecer-nos regras protetoras,
semelhança, contigüidade, causalidade, que nos permitem
colocar um pouco de ordem nas idéias, passar de uma a
outra segundo uma ordem do espaço e do tempo, impedindo
a nossa “fantasia ”(o delírio, a loucura) de percorrer o uni­
verso no instante, para engendrar nele cavalos alados e
dragões de fogo.
Deleuze e Guattari - O que é a filosofia?

Deleuze e Guattari fazem, em O que é a filosofia? (1992),


uma distinção entre filosofia, ciência e arte, situando esses três
campos em relação ao caos. O que distingue filosofia e ciência é
uma diferença de atitude diante do caos8. “(•••) a prim eira dife­
rença está na atitude respectiva da ciência e da filosofia com
relação ao caos” (DELEUZE e GUATTARI, J992, p. 153). Para
entenderm os essa distinção precisam os acom panhar a idéia que
os autores fazem do caos.
Caos é uma relação de velocidade infinita ou absoluta entre
partículas. Explicarem os: Imaginem partículas ínfim as que pre­
cisam se conectar. Juntas, conectadas, essas partículas se moldam
em uma forma qualquer. Essas conexões, uma vez estabelecidas,
exigem um mínimo de tempo, uma perm anência, uma duração
para que se apresentem nessa form a o rg an izad a. A s form as

8 Não levaremos adiante as conseqüências de tal distinção que irão resultar numa
diferenciação entre a ciência e a filosofia em três instâncias: a primeira posiciona
a ciência em um plano de referência enquanto a filosofia se situaria em um plano de
imanência; a segunda diz respeito as variáveis, onde a ciência trabalharia com
variáveis independentes e a filosofia com varáveis inseparáveis; a terceira
distinguiria os observadores parciais da ciência dos personagens conceituais da
filosofia. Para efeitos do nosso estudo ficaremos apenas com a formulação inicial
que distingue ambas por uma atitude diante do caos.

36 37
organizadas do mundo seriam então essas partículas ínfimas que auto-organização ele dirá que “apenas quando o padrão foi de­
se conectam e que insistem , perm anecem , duram nessa cone­ tectado, as pessoas puderam com eçar a pensar em estudar os
xão. A gora im aginem essas p a rtícu la s se m ovendo em uma siste m a s de a u to -o rg a n iz a ç ã o p o r seus p ró p rio s m é rito s ”
v e lo c id a d e in fin ita se c o n e c ta n d o a to d as as o u tra s e se (JOHNSON, 2003, p. 14). Nesse caso o autor vai pensar o fenô­
desconectando sem o mínimo de intervalo de tempo, sem o mí­ meno da emergência pelo surgimento de padrões mais complexos
nimo de duração, numa relação em que o contato se desfaz no a partir de padrões simples, ou seja, como funções ou proposi­
justo momento em que se faz. Essa parece ser a imagem de caos ções atingem níveis mais complexos a partir de si mesmo.
proposta pelos autores. Não propriam ente desordem e sim uma
relação entre partículas que, em função de suas velocidades, não Entretanto, mesmo uma ciência flexível, segundo a orienta­
conseguem ganhar um m ínim o de consistência, perm anecendo ção de Deleuze e Guattari guarda um regime diverso de traçados
assim abstratas, ou virtuais. O caos como um dinamismo absolu­ secantes sobre o caos. Quando situamos, por exemplo, a em er­
to. Dizem eles: gência no plano da filosofia ela se mostra ligada à proveniência.
Assim foi como Foucault (1971) desenvolveu o conceito de emer­
Define-se o caos menos por sua desordem que pela velocida­ gência a partir da noção de genealogia criada por N ietzsche
de infinita com a qual se dissipa toda forma que nele se esboça. (1998). Aqui emergência sempre se dirá de um encontro de for­
É um vazio que não é um nada, mas um virtual, contendo ças - se quiserm os podem os falar daquelas partículas abstratas
todas as partículas possíveis e suscitando todas as formas caóticas que discutíamos acima - e não de formas, isto é, a emer­
possíveis que surgem para desaparecer logo em seguida, sem gência é o movimento que resulta no surgimento de uma forma
consistência nem referência, sem conseqüência. E uma velo­ que se dá sobre relações de forças, sendo essas relações abstra­
cidade infinita de nascimento e de esvanescimento. tas ou virtuais. O que vemos então é que a filosofia diria respeito,
(DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 153) não à criação de funções e proposições e sim a criação de con­
A ciência seria o cam po de análise onde essas partículas c e ito s. O s c o n c e ito s não e s ta b e le c e ria m com o cao s um a
perderiam velocidade, sendo refreadas por funções e proposi­ desaceleração e sim preservariam “as velocidades infinitas, guar­
ções que já não guardariam do caos sua instância constituinte. O dando ao mesmo tempo consistência, dando uma consistência
que interèssa à ciência é a criação então de funções e proposi­ própria ao virtual” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 153). Esse
ções que dizem muito mais respeito às ordens constituídas que é o “crivo filosófico” no caos. A tarefa da filosofia é a de se
saltam para fora do caos do que o próprio movimento constituin­ colocar m uito mais em um plano constituinte ou de imanência
te. Pode-se dizer que a ciência se esforçará na busca de padrões, do que em um plano constituído, mesmo que toda uma ciência
fazendo das funções e proposições relações de analogia entre flexível se aproxime cada vez mais de um plano de constituição.
formas que ganham alguma perm anência e que podem ser che­ Sua tarefa é então a de flagrar a emergência no seu próprio ato
cadas ou reproduzidas. Isso corresponde a um tipo de ciência de emergir. Assim sendo não é tanto a com plexificação de pa­
que chamaremos de ciência dura. Uma ciência totalmente liga­ drões iniciais que irá im portar e sim a própria ação emergente.
da aos paradigmas do positivismo lógico. Nesse sentido a origem se dará não em padrões iniciais simples e
prim eiros e sim entre cada diferenciação, fazendo da repetição/
Porém há também uma ciência bem mais contemporânea, e diferença (DELEUZE, 1988) a figura da ação emergente. Assim
bem m ais interessante que caracterizarem os como uma ciência sendo, a complexidade será entendida como uma figura imanente
mais flexível. Essa ciência é a que vai pensar, por exemplo, o a um campo de forças, a complexidade está nas relações de for­
emergentismo. É o que pensa, por exemplo, Steven Johnson em ças (N IE T Z S C H E , sem d a ta ) ou nas re la ç õ e s de p o d er
seu livro Em ergência: a dinâm ica de rede em form igas, cére­ (FOUCAULT, 1975, 1988).
bros, cid a d es e so ftw a re s. E ntendendo a em erg ên cia com o

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O que precisamos é situar a clínica em um plano. Dar-lhe o por vezes no que se chama de habitat)'” (DELEUZE e GUATTARI,
seu estatuto. Estabelecer a constituição de seu próprio plano. Será 1992, p. 237). Entretanto para que isso se dê a função territorial
que é conveniente situar a clínica no campo da ciência? Desse necessita ganhar caráter de expressividade, isto é, a emergência
modo, a clínica seria a busca das funções que regulam o com ­ de qualidades sensíveis puras.
portam ento, assim com o as funções que regulam as próprias
mudanças ou alterações de com portam ento. Pensamos que toda O território implica na emergência de qualidades sensíveis
uma psicologia vai nesse sentido, atrás das organizações e das puras, sensibilia que deixam de ser unicamente funcionais e
ordens, identificando-as e as fazendo saltar de uma à outra, seja se tornam traços de expressão, tornando possíveis uma trans­
isso de forma normativa ou não. Ou será mais conveniente situ­ formação das funções. Sem dúvida essa expressividade já
armos a clínica no campo da filosofia? Aí entenderíamos a clínica está difundida na vida, e pode-se dizer que o simples lírio dos
como uma espécie de criação de conceitos, conceitos esses que campos celebra a glória dos céus. Mas é com o território e a
transbordariam para todos os lados, para todos os cantos, arras­ casa que ela se torna construtiva, e ergue os monumentos
tando consigo todas as formas numa consistência própria ao ato rituais de uma missa animal que celebra as qualidades antes
de tirar delas novas causalidades e finalidades. Esta emer­
de emergir.
gência já é arte, não somente no tratamento dos materiais
Talvez a escolha não precise se dar entre uma forma ou ou­ exteriores, mas nas posturas e cores do corpo, nos cantos e
tra, e possam os afirm ar a inseparabilidade desses dois campos nos gritos que marcam o território. (DELEUZE e GUATTARI,
em um plano conectivo onde afirmamos um e outro. Iremos en­ 1992, p. 237 e 238)
tão situar a clínica como um plano que não se encontra, nem
completamente na filosofia, nem completamente na ciência, mas Diante disso vemos que, assim como a ciência toca e é tocada
que toca e é tocada por ambas em uma zona de inseparabilidade. pela lilosofia, ambas tocam e são tocadas pela arte em uma zona
Zona essa que nos permitirá abordar a clínica ora pelo seu aspecto de indiscernibilidade. Funções, conceitos e sensações passam a
científico, ora pelo seu aspecto filosófico. se relacionar em um regim e de afetação mútua onde cada um
arrasta os outros dois em um regim e que agora entenderem os
Porém os campos onde a clínica toca não param por aí, te­ como construtivista:
mos tam bém a arte. Deleuze e Guattari situam a arte no plano
dos afectos, dos perceptos e dos blocos de sensações. Essas três Os três pensamentos se cruzam, se entrelaçam, mas sem sín­
figuras se distinguem respectivamente das afecções, das percep­ tese nem identificação. A filosofia faz surgir acontecimentos
ções e da opinião por dizerem m uito m ais respeito a forças com seus conceitos, a arte ergue monumentos com suas sen­
plásticas do que a formas organizadas. “A arte desfaz a tríplice sações, a ciência constrói estados de coisas com suas funções.
organização das percepções, afecções e opiniões que substitui Um rico tecido de correspondências pode estabelecer-se en­
por um monumento composto de perceptos, de afectos e de blo­ tre os planos. Mas a rede tem seus pontos culminantes, onde
cos de sensações...” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 228). A sensação se torna ela própria sensação de conceito, ou de
função; o conceito, conceito de função ou de sensação; a
arte então é o campo que faz surgir figuras estéticas, que podem
função, função de sensação ou de conceito. E um dos ele­
ser entendidas como imagens-movimento (DELEUZE, 1990), que
mentos não aparece sem que o outro possa estar ainda por
dão às forças plásticas um a ocasião para se expressarem , sem
vir, ainda indeterminado ou desconhecido. Cada elemento
que com isso percam sua plasticidade ou reproduzam um mun­ criado sobre um plano apela a outros elementos heterogê­
do já dado. Essa im agem -m ovim ento, essa figura estética pode neos, que restam por criar sobre outros planos: o pensamento
ser entendida como território, pois “a arte começa talvez com o como heterogênese. (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 254
animal, ao menos com o animal que recorta um território e faz e 255)
uma casa (os dois são correlativos ou até mesmo se confundem

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O que queremos afirmar é que a clínica precisa ser pensada
A CLÍNICA ENQUANTO
nessa m esm a zona de indiscernibilidade, isto é, cabe à clínica
um aspecto técnico, ura aspecto intuitivo e um aspecto estético. ACONTECIMENTO
O que temos na clínica então é um a zona, ou um plano, onde se
dá o contato com um caos produtivo. Isso faz com que a clínica
traga em si características híbridas, podendo dizer respeito a um Tornar-se digno daquilo que nos ocorre, por conseguinte,
só tempo, tanto à música quanto a etologia, tanto ao território querer e capturar o acontecimento, tornar-se o filho de seus
quanto à criação, tanto à filosofia quanto a saberes não formais, próprios acontecimentos e por aí renascer, refazer para si
tanto às praticas em setting fechado quanto ao acompanhamento mesmo um nascimento, romper com o seu nascimento de
tera p êu tico e etc, sem que ten h a que se d e te r em nenhum carne.
especialismo. nem creditar para si mesma a verdade dada de um
Gilles Deleuze - Lógica do Sentido
objeto exclusivo de intervenção. Passos e Benevides (2003) en­
ten d e rão essa reg iã o h íb rid a com o um a o p e ra ç ã o de
transversalização que desestabiliza os especialismos clínicos, fa­ Quando falamos da clínica do acompanhamento terapêutico
tem os como dado im ediato um a relação com o espaço. Desde
zendo assim surgir a figura da clínica transdisciplinar. “Com a
que um a intervenção em acom panham ento terapêutico com eça
desestabilizaçao, o que emerge é o plano de constituição da clí­ surgem questões em relação ao espaço, sua organização e o des­
nica onde as dicotom ias dão lugar aos híbridos, as fronteiras locamento através dele: ir à casa de quem acompanharem os ou
apresentando seus graus de abertura, suas franjas m óveis por se encontrar com ele ou ela em algum lugar marcado? Ora um,
onde os saberes se argúem, as práticas se mostram em sua com ­ ora outro? Sair para um simples passeio à deriva ou ir a algum
plexidade.” (PASSOS e BENEVIDES, 2003, p 84-85). lugar específico? Ambas as possibilidades? Acompanhar em sa­
ídas e v e n tu a is ou em a tiv id a d e s c o n sta n tes com o n ata ç ã o ,
Os operadores clínicos deixam de falar de uma pretensa
academia, faculdade, etc.? Na casa, ficar na sala de visitas, va­
verdade dada no mundo e ganham um caráter de uso, de inter­
randa, quarto, cozinha, corredor ou banheiro? A com panhar na
venção, de transform ação e de criação do m undo. “É preciso organização de um espaço demasiado esparramado por todos os
que sirva, é preciso que funcione” como disse certa vez Deleuze, cômodos? Expandir um espaço demasiado comprimido no can­
em conversa com Foucault, a respeito dos conceitos-ferramentas to de um quarto?
(FOUCAULT, 1972, p. 71). Ou seja, a clínica serve para que a
Talvez o acom panham ento terapêutico possa ser definido,
vida seja garantida em uma zona de indiscernibilidade criadora
em um prim eiro m om ento com o uma clínica que se propõe a
que lhe é de direito, pois se a vida é garantida aí é porque “só a
intervir junto ao espaço, sua organização e o deslocamento atra­
vida cria tais zonas, em que lurbilhonam os vivos” (DELUZE e vés dele. Parece ser esse o sentido que D ébora Sereno, uma
GUATTARI, 1992, p. 225). Isso não quer dizer que a clínica se acompanhante terapêutica, preconiza ao falar da circulação nes­
confunda com a vida, todavia a clínica, como a entendemos, é o sa clínica9:
que recoloca a vida em movimento, já que talvez seja a parada
do processo que ponha a vida em adoecim ento. Sendo assim ,
parodiando Deleuze, que uma vez falou de uma PopT ilosofia
onde “os conceitos são exatam ente como sons, cores ou im a­ 9 No fragmento que separamos há uma ligação imediata do acompanhamento
terapêutico à psicose. Apesar de sabermos que o acompanhamento terapêutico
gens, são intensidades que lhe convém ou não, que passam ou
nasce ju stam ente nessa relação, é parte desse trabalho ir na direção da
não passam” (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 12), possamos fa­ desconstrução desse estigma, e isso no sentido da dupla afirmação que estamos
lar em uma Pop’clínica que resgate os processos de criação da construindo, ou seja, o acompanhamento terapêutico enquanto dispositivo não se
vida. limita aos casos diagnosticados de psicose e muito menos o acompanhamento
terapêutico enquanto modos operandi de toda clínica.

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Gostaria de trazer a idéia de “circulação” para nos acercar­
mos, o quanto possível, do campo do acompanhamento A proxim idade que o acompanhamento terapêutico tem de
outras práticas exige que façamos tal distinção, já que o acompa­
terapêutico. A circulação no acompanhamento terapêutico
nham ento te ra p ê u tic o pode ser facilm en te c o n fu n d id o , por
refere-se tanto ao deslocamento pela cidade e seus cruzamen­
exemplo, com uma função de vigilância. Um ator que, ao se colo­
tos internos, na direção de um mapeamento dela pelo
car no espaço, guarda os locais de passagens sempre avaliando,
psicótico, como também ao deslocamento de lugares com os
de acordo com uma m oral pré-concebida, a pertinência dessas
quais o acompanhante terapêutico se implica ao se relacio­
passagens. Nesse sentido, o acompanhante pode ser confundido
nar com a psicose e sua peculiar circulação. (SERENO, com porteiros, policiais, cobradores de pedágio, seguranças, tuto­
AGUIAR e MENDONÇA, 1991, p. 68) res, câmeras, espiões, sombra, zagueiro, etc. O acompanhamento
terapêutico também pode ser confundido com uma função de cui­
A ocupação, a apropriação e a circulação pelo espaço como
dado serviçal. Nesse caso alguém que cuida do espaço sem que
operações clínicas. Se seguirm os nessa direção o que lerem os
quem deveria ser acom panhado se implique em (ais atividades:
que pensar é então como se dá a relação entre a ocupação, a
babá, em pregada d o m éstic a , m otorista, garçom , cozinheiro,
transform ação, a circulação através dos espaços (acom panha­
cuidador, dama de companhia, garoto ou garota de programa, etc"1.
mento terapêutico enquanto dispositivo) e o que chamaremos de
Claudia Cristina Trigo Aguiar, nos apresenta um relato de um ou­
clínica-acontecim ento (acom panham ento terapêutico enquanto
modos operandi da clínica). Tal relação é fundam ental pois se tro lugar - lugar de mãe ou irmã - que ela acabou por ocupar em
m ontamos o dispositivo do acompanhamento terapêutico é para um caso que acompanhava, o caso do Pedro. Nos fala ainda da
que, através dessa intervenção, possamos nos servir de um acon­ experiência de ter que circular por novos lugares, necessidade que
tecim ento enquanto clínica. Essa é a nossa proposta, o nosso se impôs ao próprio acompanhamento terapêutico para que a ati­
exercício, e também a nossa aposta. Parece ser nesse sentido que vidade clínica viesse a se realizar:
vai o questionamento do Grupo Trama:
A construção de algo no acompanhamento terapêutico é con­
Em que espaço opera a clínica do acompanhamento seqüência do sair dessas capturas, desses lugares que entramos
terapêutico? por questões pessoais [diria que não somente pessoais, mas
No momento o que podemos pensar aproxima esse espaço de também institucionais, logo sociais e políticas] e que se refe­
um lugar onde o acontecimento possa se dar. Um lugar de rem a vivências carregadas e fortemente condensadas do
experimentação de coisas que nunca foram experimentadas, paciente.
do poder significar e ressignificar, um terreno de fronteiras Assim como Pedro e eu deslocávamo-nos pela rua, era preci­
indeterminadas que faz encontrar/reencontrar lugares perdi­ so agora me deslocar para outro lugar, podendo nie oferecer
dos pela clausura. (GRUPO TRAMA, 1997, p. 125) como outra diferente de sua mãe e irmã em relação a quem ele
vive como aprisionantes. (SERENO, AGUIAR e MENDON­
Porém nessa direção não há nada de tranqüilo ou fácil, o ÇA, 1991, p. 69-70)
que nos leva a um constante questionam ento também do nosso
lugar. Como nos indicava D ebora Sereno acim a, a circulação
não diz respeito unicam ente a quem acom panham os, mas tam ­
bém aos lugares pelos quais o acom panhante terapêutico irá
circular. Diante disso é de extrema necessidade que sempre pos­
10 Trago esses exemplos, tanto da função de vigilância quanto de cuidado serviçal,
samos dobrar o nosso olhar sobre nós mesmos e lançar a pergunta: das nossas experiências enquanto acompanhante. Todas essas são figuras pelas
Estam os exercendo o acom panham ento terapêutico ou estamos quais já fomos muitas vezes confundidos no exercício da nossa prática, tanto por
confusos e confundidos em outras funções? quem acompanhávamos quanto por seus familiares e conhecidos. De qualquer
forma é, em boa parte das vezes, através da desmistificação dessas atribuições
confusas de função que a confiança e a possibilidade de um trabalho clínico
efetivo vai sendo conquistado.

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Essa experiência de circulação de um lugar a outro é então um acontecimento é apenas possível, no sentido clássico da
o que há de mais fundamental no acompanhamento terapêutico. palavra, se ele se inscreve em condições de possibilidade, se
Porém essa experiência de circulação não pode ser confundida outra coisa não faz senão explicar, desvelar, revelar, realizar
com a perm anência em um circuito fechado. A circulação da o que já é possível, então não é mais um acontecimento. Para
qual falamos é então uma experiência de desvio, de produção e que um acontecimento tenha lugar, para que seja possível, é
de criação que engendra o próprio circuito através do ato de cir­ preciso que seja, como acontecimento, como invenção, a vinda
cular. Assim pode-se dizer que o acom panham ento terapêutico do impossível. Eis aí uma pobre evidência, uma evidencia
crê em um circuito aberto e na criação dessa própria abertura e que nada mais é do que evidente. E ela que nunca terá deixa­
que tenderá sempre para tal abertura como uma experiência de do de me guiar, entre o possível e o impossível. E ela que terá
deriva. me levado tantas vezes a falar de condições de impossibili­
dade. (DERRIDA, 2004, p. 279)
Vejamos então o que a experiência de deriva ou de desvio
pode nos oferecer. O que faz desviar, o que cria um desvio é Reconhece-se aí uma luta, um a batalha ou talvez m esm o
sempre um encontro; um esbarrão, um tropeço, o surgimento de um a guerra contra toda a história da filosofia onde o possível
uma nova im agem , de uma nova paisagem , de um novo hori­ sem pre foi visto com o u m -sèr-em -potência, corno a sim ples
zonte são sempre encontros, isto é, são acontecimentos. Quando encarnação de idéias pré-dadas, como a realização de algo que
algo acontece um sentido se coloca, porém tam bém podem os pode acontecer ou não. Um acontecim ento de tal tipo, que se
dizer que quando um sentido se coloca algo acontece. A poria escreve em condições de possibilidade, seria como que um acon­
que é a própria experiência de desvio. Assim há desvio quando tecim en to m enor ou m itig ad o , um a c o n te c im e n to que nem
algo acontece e o que acontece é sempre o surgimento do senti­ m ereceria ser cham ado assim , pois seria o acontecim ento do
do. Vamos então à filo so fia c irc u la r um pouco sobre esses mesmo. De outra forma, o acontecimento cm que Derrida insis­
conceitos para podermos assim aproxim á-los da clínica. te, o acontecimento que mereceria esse nome, é sempre a chegada
A palavra acontecim ento é utilizada como conceitos tanto de um outro, um outro que visita sem convite, que surge em sua
urgência, sem aviso, sem que a casa esteja preparada, sem que
por Deleuze quanto por Derrida. Este último relaciona o concei­
as condições para o seu surgim ento estejam dadas. A conteci­
to de a c o n te c im e n to com o im p o ssív e l. N ão que um
mento com o a necessidade irresoluta do que já não tem mais
acontecimento seja impossível de acontecer, porém só há acon­
como não vir ao encontro, mesmo que ainda totalm ente desco­
tecimento se um possível salta do impossível de form a sempre
n h ecid o . Um a c o n te c im e n to que se dá em c o n d iç õ e s de
s u rp re e n d e n te , um p o s s ív e l in c a lc u lá v e l, im p re v is ív e l,
impossibilidade.
incondicionado. É o que Nietzsche já havia notado: “ Em cada
ínfim o instante há em nós uma necessidade de acontecim ento. A impossibilidade não é, portanto, o simples contrário do
Se pudéssemos conhece-la, poderíamos atribuir-lhe em cada caso possível. Ela parece somente se opor, porém dá-se do mesmo
o nome do dever incondicionado...” (NIETZSCHE, 2005, p. 98) modo à possibilidade: atravessa-a e deixa o rastro de seu
Um acontecimento que fosse possível, que fosse previsto, calcu­ rapto.
lável, antecipável ou condicionado não mereceria esse nome. A Um acontecimento não mereceria o seu nome, não faria nada
idéia é de que só o impossível acontece, já que possível apenas acontecer se outra coisa não fizesse senão desenvolver, ex­
se repete. plicar, atualizar o que já era possível, ou seja, em suma, se se
resumisse a desenvolver um programa ou a aplicar uma regra
Quando o impossível se faz possível, o acontecimento tem geral a um caso. Para que haja acontecimento, certamente é
lugar (possibilidade do impossível). Nisso consiste mesmo, preciso que ele seja possível, mas também que haja uma in­
de modo irrefutável, a forma paradoxal do acontecimento: se terrupção excepcional, absolutamente singular, no regime

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de possibilidade; é preciso que o acontecimento não seja O conceito de acontecimento nasce de uma distinção de ori­
simplesmente possível; é preciso que não se reduza a explica­ gem estóica: “não confundir o acontecimento com sua
ção, ao desenvolvimento, à passagem ao ato de um possível. efetuação espaço-temporal num estado de coisas” (Logique
O acontecimento, se há, não é a atualização de um possível, du Seus, 34). Dizer que “o punhal corta a carne” é exprimir
uma simples passagem ao ato, uma realização uma efetuação, uma transformação incorporai que difere em natureza da mis­
a concretização teleológica de uma potência, o processo de tura de corpos correspondente (quando o punhal corta
uma dinâmica que depende de “condições de possibilida­ efetivamente, materialmente a carne) (Mille Plateaux, 109). A
de”. Épreciso, portanto, que o acontecimento se anuncie efetuação dos corpos (encarnação ou atualização do aconteci­
também como impossível ou que sua possibilidade seja mento) gera apenas a sucessão de dois estados de coisas,
ameaçada. (DERRIDA, 2004, p. 281) antes-depois, segundo o princípio da disjunção exclusiva, ao
passo que a linguagem recolhe a diferença desses estados de
O que vem os com D errida é que a clínica-acontecim ento
coisas, o puro instante de sua disjunção (...): ocorre-lhe reali­
pode experimentar uma variação, e surgir como clínica-impossí-
zar a síntese disjuntiva do acontecimento, e é essa diferença
vel. Isso não se a s se m e lh a ria a tan ta s e x p e riê n c ia s que
que faz sentido. (ZOURABICHVILI, 2004, p. 16)
vivenciamos em processos clínicos? E certam ente diria respeito
àquelas situações, tão comuns, onde um novo trajeto irrompe - O acontecimento é então o exprimível da passagem de um
como um impossível desvio - do meio de um oceano de possí­ estado de coisas a um outro estado de coisas, porém o aconteci­
veis e sg o ta d o s, dc p o tên c ias m u rc h a d as, de p o ssib ilid a d e s mento ou o exprimível não se reduz de forma alguma a nenhum
insossas em que nossos acompanhados se encontravam. A clíni­ desses dois estados. Desvio, sentido, acontecim ento são nomes
ca-acontecim ento será sempre uma clínica-im possível. Era essa que dam os aos efeitos de passagem , porém toda a questão do
idéia que já surgia anônima nos muros de Paris em Maio de 68: acontecimento é a de como ser digno justamente à’isso que acon­
SEJAMOS REALISTAS, QUEIRAMOS O IMPOSSÍVEL. tece. Se por um lado, o acontecimento é o que se dá em detrimento
Já em Deleuze o acontecimento aparece vinculado ao senti­ de quem o recebe, como algo que vem totalm ente de fora e o
do. “ N ão p e rg u n ta re m o s, p o is, qual é o se n tid o de um arrasta, por outro lado, podemos ser indignos do que nos aconte­
acontecimento: o acontecimento é o próprio sentido” (DELEUZE, ce negando-o. Receber o que acontece como indevido é a tarefa
1998, p. 23). O acontecim ento puro é o que se extrai de um enfadonha do ressentim ento. O que importa quando se trata de
acontecim ento acidental, ou seja, é o sentido de um estado de acontecimento é então a questão ética que transforma uma von­
coisas. É a contra-efetuação de algo que se efetua em um estado tade ressentida que maldiz o acontecimento em uma vontade que
de coisas. Essa é uma “divisão” importante que Deleuze estabe­ passa a querer o acontecim ento. Deleuze cita Joe Busquet: “A
lece através dos estóicos: o que é, por um lado corporal, estado meu gosto da morte, que era falência da vontade, eu substituirei
de coisas, acidenle, profundidade, causa, existente e por outro o um desejo de morrer que seja a apoteose da vontade” (DELEUZE,
que em ana como incorporai, efeito, superfície, acontecim ento, 1998, p .152). Poderíamos ver nessa distinção da vontade em re­
sentido, insistências e subsistências. O acontecimento é então o lação ao acontecimento um critério para separarmos a saúde da
sentido, que não se confunde jam ais com um estado de coisas. doença na clínica, de qualquer forma essa distinção nos dá indi­
No entanto não o sentido como uma designação de significados cações de uma direção a seguir. Deleuze chama essa m udança
na direção da vontade de “intuição volitiva ou transm utação”
a posteriori, e sim como a necessidade própria do acontecimen­
(DELEUZE, 1998, p. 152) e depois comenta:
to, insistência que exlrai o acontecimento dos estados de coisas.
Segundo um com entador de Deleuze: Desse gosto [morte como falência da vontade] a esse desejo
[desejo de morrer que seja apoteose da vontade], nada muda
de uma certa maneira, salvo uma mudança de vontade, uma

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espécie de salto no próprio lugar de todo o corpo que troca a
de um sabor ao dinheiro, do dinheiro a um banco... a série seria
sua vontade orgânica por uma vontade espiritual, que quer
agora não exatamente o que acontece, mas alguma coisa no incontável, ainda mais se im aginarm os que entre um a coisa e
que acontece, alguma coisa a vir de conformidade ao que outra ainda há um a m ultiplicidade incalculável de estados a se­
acontece segundo as leis de uma obscura conformidade rem c o n s id e ra d o s e in te rlig a d o s em suas p a ssa g e n s. O
humorística: o Acontecimento. (DELEUZE, 1998, p.152) acompanhamento terapêutico é isso: esse passeio entre estados
que ora se dão em regim es m ais concretos de coisas, ora em
A clínica como uma transmutação: um salto no mesmo lu­ regimes mais abstratos de pensam entos e imaginações, ora em
gar, ao mesmo tempo simples e difícil; salto que faz o peso, o regimes mais sensórios-perceptivos, ora em regimes de afetos e
mal-humor e a tristeza girarem uma volta completa em torno de sentimentos, ora em regim es mais conscientes, ora em regim es
si e se revelarem leveza que descarrega, humor que ri e alegria menos conscientes. Regimes esses que se misturam na com ple­
trágica. E se dizemos que tal salto é difícil, o é somente no mo­ xidade de uma simples saída à rua.
mento que antecede a transmutação, no momento de esgotamento
dos possíveis e permanece árduo, repetitivo, pesado até o último Todavia esse passeio, essa deriva adquire sentido. O sentido
instante - a vontade, a cada acontecimento, o maldiz, maldizen­ que surge das passagens faz com que esses passeios façam dife­
do-se a si m esm a, um a espécie de m al-gosto ou gosto ruim ; rença. Que essas saídas encontrem uma saída. Tal operação que
lodavia após a transmutação, no momento seguinte ao aconteci- se faz justam ente no meio dos estados de coisas e que cham a­
mento-impossível, tudo se torna simples; a sim plicidade do que mos de acontecimento diz da dimensão propriamente clínica, ou
quase não se lembra mais, de um era que, se é lembrado, é so­ seja, de como a clínica se faz: acom panham ento terapêutico na
mente para esquecer ou rir, de um era que por força ativa de segunda acepção de nossa afirmação, o modus operandi da clí­
esquecim ento libera espaço para novos encontros e novas for­ nica. P ois é a c o m p a n h a n d o a p e sso a em seu p a sse io que
mas de vida. Um novo nascimento, uma nova concepção de si, acompanhamos também o surgimento do sentido, e mais funda­
uma gênese estática ou uma im aculada concepção. “Que haja m entalm ente, as m udanças de sentido. O advento do sentido
em todo acontecimento minha infelicidade, mas também um es­ através do passeio entre as coisas, todavia também um passeio
plendor e um brilho que seca a infelicidade e que faz com que, entre os sentidos, já que eles não são estáticos.
desejado, o acontecimento se efetue em sua ponta mais estreita, Aqui vale lembrar que o passeio do qual falamos é aquele
sob o corte de uma operação, tal é o efeito da gênese estática ou
que vai colocando lado a lado fragm entos para que formem em
da im aculada concepção.” (DELEUZE, 1998, p. 152)
conjunto paisagens parciais, incom pletas, inacabadas. Nenhum
Porém agora sentimos que é necessário que, como acompa­ desses fragmentos pode ser considerado a priori centralizado ou
nhantes terapêuticos, façamos com que esse passeio pela filosofia centralizador, pois se assim fosse todos os outros fragmentos se
se desvie e pegue novam ente os cam inhos do próprio acom pa­ arrastariam para constituir a m esm a e repetitiva paisagem. En­
nham ento terapêutico. Desse passeio guardam os o conceito de contramos então lado a lado um fragmento de rua, outro de cor,
acontecimento para que se junte à nossa afirmação primeira, seja outro de barulho, outro de afeto, outro de m em ória... todos eles
ela, o acompanhamento terapêutico é uma form a de fazer clíni­ concorrendo em paisagens que vão derivando de sentido con­
ca, assim como a forma que a clínica se faz. forme novos fragm entos ou novos rearranjos desses fragmentos
Quando nos pomos no espaço para percorrê-lo - e fazemos reconfiguram as cenas.
isso evidentemente como um modo de operar a clínica - passa­ Falamos então de uma concepção de subjetividade que fun­
mos sucessivam ente por diversos estados de coisas. Vamos do ciona sempre por superfície, por território, por ilhas, sejam elas
quarto à sala, de casa a um ponto de ônibus, do ponto ao próprio oceânicas ou vulcânicas (DELEUZE, 2005). Uma subjetividade
ônibus, do ônibus a uma lanchonete, da lanchonete a um sabor, assim é entendida como conexão-desconexão, não como p ro ­

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51
fundidade ou como interioridade. E é isso que o acom panha­ nu, pelas extensões e a idades das coisas. “Apropriamo-nos, ini­
m ento terap êu tico ev id en cia ao se c o lo car em um p lan o de cialmente, da rua concreta e dos espaços vazios deixados pelas
superfície, em passagens entre pontos de uma superfície, de um instituições (os fins de semana, por exemplo), para iniciar a de­
mapa, ao se colocar ao lado da criação dessas superfícies e des­ marcação de nosso território que agora, talvez, já se possa ampliar
ses mapas. E, assim como a superfície não é interioridade também para outros foras.” (GRUPO TRAMA, 1997. p. 125)
não é exterioridade, funciona muito mais como uma sobreposição
de superfícies que se destacam ou se misturam a outras, sempre A g o ra nos p e rg u n ta re m o s so b re a e sp a c ia lid a d e e a
criando novas superfícies. São superfícies m óveis. A oposição tem poralidade dessa operação clínica que estam os entendendo
interior-exterior não se coloca mais na superfície, pois trocamos enquanto acontecim ento. A pergunta é agora onde e quando a
agora o par interior-exterior por uma dinâm ica entre conexão e clínica-acontecimento se dá? Ou voltando a nossa afirmação, se
desconexão. A desestabilização da oposição interior-exterior é o acompanhamento terapêutico enquanto dispositivo nos coloca
um a das p rim e ira s c o n c lu sõ e s que ch eg a o a c o m p a n h a n te im ediatam ente no espaço e no tempo constituídos, o acom pa­
terapêutico imaginário criado por Rolnik: nhamento terapêutico enquanto modo da clínica se dá em que
tempo e em que espaço?
De repente nosso A.T virtual parece ter encontrado uma pista
do seu problema: interno e externo talvez não sejam apenas
espaços, nem apenas representáveis, mas muito menos e mui­
to mais que isso. Decide aventurar-se por essa via. Tentará
deslocar-se de modo a explorar o interno e o externo para
além de uma perspectiva meramente espacial. (ROLNIK,
1997, p. 85)

A com panhar o acontecim ento, saber que, ao acom panhar


uma pessoa pelos seus passeios, estamos nos colocando fora da
oposição interior-exterior e que, sendo assim, nos encontram os
em uma superfície horizontal à espreita dos acontecimentos: tal­
vez seja a primeira e mais importante sabedoria do acompanhante
terapêutico. Uma calm a do acom panhante terapêutico. “Nosso
personagem aprendeu que no delicado acom panham ento desse
processo é preciso ser cauteloso, para não abafar com excesso
de falatório aquilo que o desaieitam ento anuncia.” (ROLNIK,
1997, p. 93)
Situávamos então o acompanhamento terapêutico na circu­
lação pelo espaço, pelo estado de coisas. A preendem os assim
um modo de fazer clínica que não se separava do espaço que
percorria. Contudo vemos surgir, não dos estados de coisas, mas
sim das passagens de um a outro, o acontecimento ou o sentido
e flagram os o acom panham ento terapêutico com o o modo da
clínica se fazer. Com isso intuím os uma outra espacial idade e
uma outra tem poralidade que não pode mais ser medida a olho

52 53
ONDE E QUANDO ALGO acom panham ento terapêutico, pensar em uma tem poralidade e
ACONTECE - A ABERTURA uma espacialidade própria da clínica, isto é, da clínica enquanto
acontecim ento?
INTENSIVA DO ESPAÇO-TEMPQ
A ntes que com ecem os a discussão quero enfatizar nossa
posição em relação ao espaço. Sabemos que, na história da clíni­
ca, a s u b je tiv id a d e e a sua p ro d u çã o m u itas v e z es foram
Gostaríamos de emprestar de Bachelard essas palavras e
enfatizadas pelo seu aspecto temporal, porém o que queremos é
transpô-las ao acompanhamento terapêutico, espécie de
“instalação” móvel, poética, uma forma de arte que aban­ afirmar a produção de subjetividade também em seu aspecto es­
donou o suporte convencional e técnico (...), o setting, pacial, ou melhor, em um complexo espaço-tempo inseparável e
passando a uma esfera etérea de intervenção que brinca talvez até mesmo indistinguíveis. Obviamente, quando falamos
com o próprio ente espacial, que abre brechas no espaço em espaço-tempo na clínica, isto é, na clínica-acontecimento, já
codificado, inventando uma nova relação. “Venha, amigo, não falam os do tem po cronológico, assim com o tam bém não
no aberto...” (como diz Holderlin em P rom enade à la falamos de espaço métrico.
canipagne) Retornem os todavia às questões levantadas pelo acom pa­
Anna Aguilar - acompanhamento terapêutico: a filosofia nham ento terapêutico sobre sua tem poralidade e espacialidade
como ponto de partida próprias, assim como sobre a reflexão que ele pode lançar a ou­
tras práticas clínicas.
P ro sse g u in d o nas q u e stõ e s que o a c o m p a n h a m e n to
Para que possam os começar a falar de tais questões usare­
terapêutico nos coloca: nos perguntarem os agora sobre a locali­ m os a no ção de a b e rtu ra in te n siv a . A a b e rtu ra in te n siv a
dade e o tem poralidade que tal p rática ocorre. O setting do corresponde ao que vínhamos chamando de clínica-acontecimen-
acom panham ento terapêutico é aberto, se dando em qualquer to. E abertura tem esse sentido: uma desestabilização que da a
lugar, ou ao menos qualquer lugar é um potencial clínico para o ver, falar e sentir coisas novas. A bertura intensiva é então um
acom panham ento terapêutico; seu tempo varia de acordo com acontecim ento, uma instância de trânsito ou de passagem entre
situações, necessidades, contratos... o que faz com que um acom­ dois pontos determinados, é um meio entre caminhos. IJma aber­
panham ento possa variar de m inutos de atendim ento até dias tura é então algo que, como desestabilização das formas, ainda
inteiros. “Propor-se à desmontagem dos clichês, dos saberes con­ não tem form a, por isso direm os que a abertura se coloca em
sagrados e se lançar em um espaço aberto de atuação, sem uma dimensão u-tópica" do espaço, ou que toda abertura se abre
fronteiras demarcadas e sem medidas prévias de tempo, tem sido em uma utopia.
o desafio nesse campo” (PALOMBINI, 2004, p. 24). Diante dis­
so podemos perguntar: Que espaço clínico é esse que não se dá Todavia a abertura intensiva não abre somente o espaço para
em um local fixo, pré-determinado, podendo se dar em qualquer uma outra espacialidade, abre também o tempo para uma outra
lugar? Que tempo é esse em que não se obedece a uma única e tem poralidade. Ela é um instante, um m om ento, mas um m o­
exclusiva lógica e sim a várias lógicas simultâneas? Esse tempo mento que não se confunde mais com a história, se distinguindo
e esse espaço dizem respeito unicam ente a prática do acom pa­
nhamento terapêutico? Ou, voltando a nossa afirm ação de que
além de um modo de fazer clinica o acompanhamento terapêutico 11A utopia da qual falamos está livre de todo o caráter ideal que comumente tem essa
é o modo pelo qual a clínica se faz, podemos então, levando em palavra. Retemos como sentido de utopia apenas sua instancia de um lugar não
conta a desestabilização do tempo e do espaço provocada pelo dado, de um lugar a se construir; e também a dimensão de impulsão de quem se
iança na direção de um novo lugar, ou desse lugar a se fazer.

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dela sob a forma do intempestivo. Nesse sentido caminha Aguilar pode ser cham ado de suas obras da juventude. O autor, na S e­
falando da experiência do acompanhamento terapêutico: “ ...che­ gunda Consideração Intem pestiva13 (NIETZSCHE, 2003), vê no
garíam os, então, à possibilidade de que no acom panham ento excesso de conhecimento acumulado através da história, a razão
terapêutico, o A.T. ficasse à espreita de que, de algum modo, num da decadência do homem moderno, sua terceira idade, uma ve­
desses momentos de surgimento da defasagem entre o tempo vi­
lhice da hum anidade. A idéia de intem pestivo surge, então, em
vido e o tem po objetivo, por m eio de um contato feliz, um oposição ao uso excessivo da história. Contra tal acúmulo histó­
acontecim ento inaugurasse o sentim ento do real.” (AGUILAR, rico, N ietzsche lança mão de forças da juventude que entende
1997, p. 195) como forças inovadoras. O que Nietzsche pretende é subordinar
É assim em uma abertura intensiva do tempo e do espaço o conhecimento ou a ciência à vida, ao contrário do que identifi­
que vemos a clínica se dar como um acontecim ento. A clínica ca ser comum em sua época, ou seja, uma vida subordinada ao
e n tão com o um a im agem do esp aço e do tem po. Passos e conhecimento. O que entra em jogo aqui é a potência criativa da
Benevides (2001) falam dessa característica espaço-tem poral da vida, uma criação que não necessita da história, melhor dizendo,
clínica. Segundo eles a clínica é um a criação que é posta em risco quando a história e todo o
acúm ulo de conhecim ento se tornam os donos do jogo. Uma
necessariamente utópica e intempestiva. Essas duas liguras, criação que irrompe do meio da história como que contra o seu
uma do espaço (utopia) e a outra do tempo (intempestividade), próprio desenvolvim ento causai e lógico. Com isso a vida em
se entrelaçam pela característica comum da instabilidade. Pois sua intem pestividade, ganha, nas palavras do autor, um caráter
a clínica não está nem completamente aqui nem completa­ a-histórico ou supra-histórico. Pode-se dizer que tem os aí um
mente agora, sob o risco de ser acusada de adaptacionista,
tempo que se produz por irrupções, um tem po vulcânico, sem
utilitária, ortopédica. Entretanto, não podemos também di­
tradição, jovem , pois é nas brechas da história, dc uma potente
zer que ela seja uma clínica de lá ou do passado, sob o risco
força da natureza, que ele provém. Tal temporalidadc, disruptiva
de aprisionar as forças produtivas do desejo seja nas estrutu­
em sua em ergência, traz consigo a marca radical da diferença
ras arqueológicas, seja na história. Se a clínica não está aqui,
nem está lá, é porque se localiza em um espaço a ser pura, do outro, do estrangeiro ou como queremos pensar, a mar­
construído. Nesse sentido, podemos dizer que ela habita uma ca da criação. Como nos diz Derrida, “o acontecimento não tem
utopia, uma vez que é pela afirmação de um não-lugar (u- nada à ver com a história, se se entende história como processo
topos) que ela se compromete com os processos de produção Ideológico. Ele deve de uma certa maneira interromper esse tipo
de subjetividade. Assim é que ela também não pode ser uma de história.” (DERRIDA, 2004, p. 281)
ação do presente ou do passado. Sua intervenção se dá num A clínica-acontecimento se dá temporalmente como irrupção
tempo intempestivo, extemporâneo, impulsionado pelo que disruptiva, com o urna potência a-histórica ou supra-histórica,
rompe as cadeias do hábito para constituição de novas for­ sempre emergente, acionada num processo de devir. Através de
mas de existência. (PASSOS e BENEVIDES, 2001, p. 91) Deleuze, na Lógica do sentido (1998), iremos pensar o puro devir

A id éia de in tem p estiv o - ou extem porâneo, ou ainda


inatual12 - aparece nas prim eiras obras de N ietzsche, ou o que
13 Utilizaremos aqui somente a segunda consideração intempestiva pois nela Nietzsche
posiciona a intempestividade em relação à História, o que nos parece mais pertinente
ao nosso trabalho. Já na primeira intempestiva o posicionamento é em relação a
cultura alemã representada na grande repercussão que David Strauss desfruta
12Ver também a idéia de Atual que Foucault lança em A arqueologia do saber (1986). em sua época (NIETZSCHE, 1988). Na terceira intempestiva o posicionamento vai
Parece que, apesar da oposição entre os nomes, a questão de um tempo disruptivo contra os estabelecimentos de ensino em um elogio à Shopenhauer como um novo
se coloca tanto no Inatual de Nietzsche quanto no Atual de Foucault, ambos vem tipo de educador (NIETZSCHE, 2003) e na quarta contra a forma em que é concebida
diferenciar o devir do ser, buscando as forças do tornar-se. a arte em um elogio à W agner (NIETZSCHE, 1970).

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como um processo paradoxal. A série Do puro devir abre o livro
versando sobre o conceito de devir tanto como sobre o estatuto Seguindo o caminho, colocar-se fora do senso comum diz
do paradoxo. Isso nos é im portante, pois a tem poralidade pró­ respeito à quebra das identidades fixas. Isso é o que se dá com a
pria à c lín ica-aco n tecim en to só pode ser pensada com o um afirm ação dos dois sentidos, ou com a cham ada identificação
paradoxo do tem po, ou seja, um a tem poralidade inconcebível infinita. Trata-se de um jogo de inversões dos sentidos, que acon­
para o bom senso ou para o senso comum. Quanto a isso Deleuze tece no próprio instante em que o presente deixa um vácuo ao se
nos fala: “O paradoxo é, em primeiro lugar, o que destrói o bom furtar. Um processo que funde os sentidos ao mesmo tempo em
senso como sentido único, mas, em seguida, o que destrói o sen­ que os lança novamente recriados. No limite, é a própria identi­
so comum como designação de identidades fixas” (DELEUZE, dade fixa que cai por terra.
1998, p. 3). Ao se colocar fora do bom senso, o autor está se Isso nos é im p o rta n te, pois se querem os p ensar a
referindo à afirmação de dois sentidos ao mesmo tempo. Ou seja, temporalidade clínica como intempestiva, e, por isso mesmo, não
na idéia de devir, o presente perde a sua espessura fazendo com dependente da história, temos que pensar a impessoalidade desse
que o antes e o depois se encontrem em uma identificação infini­ instante ou a sua propriedade autoconstitutiva. Deleuze, na época
ta. São ambos afirmados no mesmo processo e em um só lance. em que escreveu a Lógica do sentido, se encontrava de alguma
O tornar-se, então, é a figura do processo de devir que se põe, forma envolvido com a idéia de contribuir para a psicanálise14 e
em um mesmo instante, para aquém ou além - pouco importa - usou a noção negativa de perda do nome próprio para pensar essa
do que já fo i e do que ainda será, ou seja, do passado e do impessoalidade. Segundo ele, as inversões de sentidos presentes
futuro. Deleuze, para tornar mais com preensível o processo de na identificação infinita fazem com que os substantivos e os adje­
devir, evoca em seus leitores as aventuras vividas por Alice nas tivos se desmanchem nas velocidades dos verbos de puro devir.
obras de Lewis Carroll (2002). Os substantivos e os adjetivos são entendidos como paradas em
Alice, em vários momentos de suas aventuras, tem a expe­ um processo contínuo, paradas ou lentificações, que permitem que
riên cia de c rescer ou de d im in u ir dem ais. A n te rio rm e n te a as identidades se realizem. Já os verbos tendem a dissolver as iden­
q u a lq u e r in te rp re ta ç ã o dos s ig n ific a d o s p o s s ív e is de tais tidades sólidas que os substantivos e adjetivos carregam junto a si.
vivências, Deleuze tenta focar sua leitura, na própria experiên­ Essa imagem do tempo - disruptiva, emergente, sem espes­
cia de tornar-se, em um acontecim ento puro. Lem bra-nos que sura, etc. - é chamada por Deleuze, ainda na Lógica do sentido
é ao m esm o tem po e em um só acontecim ento que A lice “se de Aion. Aion em oposição a Cronos; presente sem espessura de
torna m aior do que era” e m enor do que será, afirm ando os Aion versus presente espesso de Cronos. Esse presente espesso
dois sentidos. Não que ela seja m aior e menor ao mesmo tem­ pode se alargar em presentes cada vez maiores até recobrir todo
po, porém é em um m esm o tem po que e!a se torna, que ela o passado e o futuro, fazendo do passado e do futuro instâncias
avança em um processo de devir não lhe perm itindo, ao menos sempre relativas ao presente.
nesse instante em que avança, um a identidade personológica
clara. Esse processo é um m ovim ento de “furtar-se ao presen­ Esse tempo morto, que de certa forma é um não-tempo, bali­
te”, que arrasta o passado e o futuro por um vácuo que os mistura zado também como “entre-tempo”, é Aion. Nesse nível, o
em uma identificação infinita, recriando-os a cada acontecim en­ acontecimento não é mais apenas a diferença das coisas ou
to. Devir então é um processo intem pestivo que, apesar de não dos estados de coisas; ele afeta a subjetividade, insere a dife­
dever nada ao passado nem ao futuro, avança arrastando-os,
rença no próprio sujeito. Se chamarmos acontecimento a
recriando-os, lhes dando novos sentidos. “O sentido do devir
mudança na ordem do sentido (o que fazia sentido até o pre­
precisa ser cum prido, alcançado e com pletado a todo instante”
(NIETZSCHE, 2005, p. 263) Enfim, contra o bom senso, o devir sente tornou-se indiferente e mesmo opaco para nós, aquilo
se diz do passado e do futuro não m ais como encadeam entos
causais relativos a um presente espesso, mas como instâncias a
serem criadas no próprio acontecim ento, a serem afirmadas em
uma duplicidade de sentidos. 14 No prefácio do livro escreve o autor: “este livro é um ensaio de romance lógico e
psicanalítico” (DELEUZE, 1998, prefácio)

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a que agora somos sensíveis não fazia sentido antes), con­ socrática, transforma uma ilha plantada no meio da avenida
vém concluir que o acontecimento não tem lugar no tempo, em mirante privilegiado: de lá, lança sobre o torvelinho da
uma vez que afeta as condições mesmas de uma cronologia. cidade o seu sábio desprezo e pode enxergar, no formiga-
Ao contrário, ele marca uma cesura, um corte, de modo que mento humano circundante, apenas uma estranha afobação.
o tempo se interrompe para retomar em um outro plano (PELBART, f993, p. 65)
(daí a expressão “entre-tcmpo”) (ZOURABICHVILÍ, 2004,
p. 25-26) Esse momento, essa parada de Lászlo, o judeu-hungaro, nos
dá a refletir sobre o tempo, abrindo a perspectiva para um tempo
Essa divisão em Aion e Cronos corresponde àquela divisão
parado, instantâneo, aionico. O que nos coloca uma série de ques­
estóica que falávamos acima a respeito do acontecimento: Cronos
tões. E assim prossegue Pelbart:
como o tempo contínuo dos estados de coisas, como tempo exis­
tente e Aion como tempo parado, ou em velocidade infinita, dos A gagueira de Lászlo, a semiparalisia do corpo, a lentidão do
acontecimentos, tempo insistente ou subsistente dos incorporais. gesto no toque do dinheiro, sua parada final ao lado do mo­
numento, tudo isso faz pensar numa câmera lenta de
Aion será então para nós o nome positivo da temporalidade
minúsculas brusquidões, ou numa fotografia tremida, ou num
clínica. A tem poralidade que parada faz toda a diferença, faz
disco riscado, em suma, numa espécie de frustração do movi­
todo o sentido. Não se confundirá jamais essa temporalidade do
mento. Pareceriam tentativas de greve contra uni certo ritmo,
acontecimento - com tudo que ele tem de clínico - com os con­ contra uma certa velocidade, contra uma certa corrida do tem­
tratos que determ inam , em nosso caso do acom panham ento
po, talvez contra uma idéia do Cazuza de que o tempo não
terapêutico, a quantidade (cronologia) de tempo que ficarem os para. E se Cazuza não tivesse razão? E se fosse possível de
junto ao paciente, seja ele meia hora, uma hora ou um dia intei­ vez em quando parar o tempo, construindo pequenas barrica­
ro, visto que Aion é um tempo que irrompe do meio - porém um das contra sua impetuosidade, contra a violência intrínseca
meio que um fora - da cronologia. A clínica-acontecimento não ao frenético regime temporal vigente? E se Lászlo fosse, como
se dá pela marcação deste tempo cadenciado e sim pela produti­ tantos outros loucos nossos, um grevista a mais, pertencente
vidade e a criação levada à superfície em um instante qualquer, a esse movimento “político” muito disseminado mas pouco
instante esse que de qualquer forma o relógio não marca, não diz visível, que opera através de paralisações parciais,
quando. descontinuidades, greves brancas, operações tartaruga, pe­
quenas sabotagens em que se coloca em xeque certa economia
Nesse sentido vale a pena trazermos a descrição de um acon­
do tempo? (PELBART, 1993, p. 65-66)
tecimento vivido por um a acom panhante terapêutica e relatado
por Peter Pál Perbert em A nau do tempo-rei. Tal relato pode nos Não discutiremos nesse momento a visão política que o tex­
dar um exemplo de uma temporalidade aionica dissolvendo uma to nos coloca, ficaremos apenas com os perceptos desse relato
tem poralidade cronológica. E o caso da rapsódia húngara: que nos dão um a visão bastante intensa da operação tem poral
A io n , do co rte que p ro d u z, da fissu ra que in sta u ra , da
Um judeu-húngaro, refugiado de guerra, encontra-se nas cer­
desestabilização que convoca. Flagraremos apenas a vinda insó­
canias de um parque de grande afluência; de repente, se vê
lita do sentido em meio a um a abertura intensiva. Isso que
ilhado junto a um famoso monumento erigido em homena­
acontece, pela sua simples presença intensificante é um desvio.
gem à fundação de São Paulo. Cercado de carros e buzinas de
Todavia não podemos deixar de reconhecer nesse relato a forma
todos os lados, o personagem não se abala: parece alheio à
batalha da cidade, numa postura de altiva dignidade, que faz acom panham ento terapêutico desse desvio. É a acom panhante
a velocidade parecer loucura, a pressa deselegância, o ruído terapêutica que proporciona, junto a Lászlo, essa experiência de
desatino, o mundo névoa-nada. Na sua soberba quase desestabilização do tempo, no entanto também do espaço. Pode
parecer, à prim eira vista, um a estranha intervenção: levar um

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judeu-húngaro que sofreu ioda a desterritorialização provocada guir que Lászlo, na sua insubordinação contra o sentido e a
pela perseguição nazista a um m onum ento que, não podem os velocidade habitual desses fluxos, não só sobreviva, mas tam­
deixar de ressaltar, diz respeito ao desbravamento de novos ter­ bém manifesta sua densidade singular? Talvez entendendo
ritórios feita pelos bandeirantes; um m onum ento que, em sua que ele está tocando outra música, ou compondo um ritmo
im p o n e n te e n o rm id a d e , rev e la ju sta m e n te essa fo rç a de novo, ou inventando um instrumento inusitado. E aí, por
desbravamento necessária à vida desse personagem que teve que mais que ele soe desafinado na orquestra da cidade, seria
preciso “acompanha-lo”, musicalmente. (PELBART, 1993,
buscar novos m undos para sobreviver e que talvez ainda bus­
p. 70)
que; um m onu m ento que se en c o n tra no e n tro n c am e n to de
enorm es avenidas paulistas configurando, com a grandeza e Todavia a abertura intensiva dá a clínica-acontecimento tam­
im ponência de uma cena onde se m isturam bravos hom ens e bém uma figura de espaço, que definim os anteriorm ente como
cavalos majestosos, ele m esmo, enquanto presença, um interva­ um não-lugar. Já vislumbrávamos isso quando entendíamos o devir
lo na p ró p ria c id ad e m oderna de carro s v e lo z e s e hom ens como uma precipitação entre duas paradas, como um processo
atarefados. Essa intervenção - chegar a esse m onum ento que, onde o valor estava no tornar-se e não mais no que se deixava de
diga-se de passagem não é nada fácil por conta das grandes ave­ ser ou no que se tornaria. Nietzsche falando da diferença entre um
espaço constituído e um outro tipo de espaço nos diz:
nidas que o circundam - apresenta uma abertura; uma abertura
espaço-tem poral de Lászlo, porém em confluência com a aber­ Nossos sentidos nunca mostraram uma justaposição, mas sem­
tura tam bém espaço-tem poral que tal m onum ento cria no meio pre uma sucessão. O espaço e as suas leis humanas do espaço
da cidade. Esse encontro, esse estar ali que possibilita a abertura pressupõem a realidade de imagens, formas, substâncias e
é o que estam os cham ando de clíniea-acontecim ento. Com eça­ sua durabilidade, ou seja, nosso espaço se deve a um mundo
imaginário. Não sabemos nada a respeito do espaço que per­
mos com um passeio pela cidade (dispositivo acompanhamento
tence ao fluir eterno das coisas. (NIETZSCHE, 2005, p. 110)
terapêutico), todavia acabam os circulando por outros m undos
ainda inabitados (acontecimento clínico). Ação clínica do acom ­ Ao falarmos de um espaço onde se encontra o “fluir eterno
p a n h a m e n to te ra p ê u tic o que terá sem pre a c id a d e com o das coisas”, não estamos mais falando do espaço enquanto forma
intercessor em suas intervenções e a abertura intensiva que ar­ constituída. O entre-dois pode ser agora a figura. Entre duas para­
rasta o entorno em um instante e o devolve reconfigurado. Pelbart das, entre um lugar e outro, entre um momento e outro, entre a rua
nos fala dessa intervenção e de seu produto: e o acompanhado, entre o acompanhado e o acompanhante, entre
o acompanhado e ele mesmo, entre a rua e o acompanhante, entre
A narradora, intrigadíssima com a imobilidade ilhada de um mundo e outro, entre as palavras e as coisas, entre os sujeitos e
Lászlo, ao lado do monumento onde ela o deixou depois de os objetos, entre..., entre..., entre... como diz o poeta:
uma saída conjunta bem sucedida ao Ibirapuera, restitui a
Entre arco e flecha
esse senhor de mais de 50 anos uma certa dignidade, um
encanto misterioso, um sentido que nos cabe um pouco adi­ Entre flecha e alvo
vinhar, desdobrar, construir, multiplicar. (PELBART, 1993, Entre alvo e treva
p. 66) Entre treva e ocaso
Entre ocaso e terra
E o autor conclui nos falando exatamente do ato de acom ­ Entre terra e marte
panhar: Entre marte e perto
Uma cidade é, por excelência, o espaço da ordenação e da Entre parto e morte
regulação dos fluxos, fluxos de pessoas, viaturas, palavras, Entre parte e parte
mercadorias, ondas de rádio e TV, dinheiro etc. Como conse­ (ANTUNES, 2000, p. 30)

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A figura do entre-dois insiste como um espaço vazio ou um
inventado, engendrado, com posto. Lugar m estiço que m istura
vazio de espaço, pois não pode ser nunca identificado a algum
os termos de uma relação, todavia se os mistura não é para de­
dos dois termos dos quais é o meio. Os termos são apenas como
pois recom pô-los idênticos a si mesmo, e sim para que outros
as pontas mais extremas e mais endurecidas do espaço onde tudo
termos nasçam na deriva criadora imanente a um lugar mestiço.
aparece claro e distinto. São os espaços da segurança e da refe­
rência. O espaço formado. Michel Serres nos apresenta uma bela Seguindo em nossa compreensão do espaço encontraremos,
passagem onde situa os term os com o a ultrapassagem de dois através de Foucault, uma outra imagem: Foucault em A? p a la ­
limiares, sendo o espaço que chamamos entre-dois o espaço que vras e as coisas entende esse espaço do entre não como utópico,
toca ao mesmo tempo esses dois lim iares, como que numa ter­ e sim como heterotópico. O heterotópico, nessa pequena passa­
ceira margem de um rio'5. A esse lugar entre-dois, a essa terceira gem de Foucault, dá ao que vínham os cham ando de não-lugar
m argem , ele dá o nom e de lugar m estiço. Lugar da perda de (utópico) uma figura mais positiva:
referência e de segurança, espaço onde o chão e o céu se mistu­
As heterotopias inquietam, sem dúvida porque solapam
ram como se um corresse atrás do outro sem cessar:
secretamente a linguagem, porque impedem de nomear isso
Ninguém sabe nadar de fato antes de ter atravessado, sozi­ ou aquilo, porque fracionam os nomes comuns ou os emara­
nho, um rio largo e impetuoso, um braço de mar agitado. Só nham, porque arruinam de ante mão a “sintaxe”, e não somente
existe chão em piscina, território para pedestres em massa. aquela que constrói frases - aquela menos manifesta, que
Parta, mergulhe. Depois de ter deixado a margem, você con­ autoriza “manter juntos” (ao lado e cm frente umas das ou­
tinuará durante algum tempo muito mais perto dela do que tras) as palavras e as coisas. (...) as heterotopias (...) dessecam
da outra à sua frente, tempo bastante, pelo menos, para que o propósito, estancam as palavras nelas próprias, contestam
seu eorpo se aplique ao cálculo e silenciosamente reflita que desde a raiz, toda possibilidade de gramática; desfazem os
ainda pode voltar. Até um certo limiar, você conserva esta mitos e imprimem esterilidade ao lirismo das frases.,fi
segurança: o mesmo que dizer que ainda não partiu. Do outro (FOUCAULT, 1987, p. 7-8)
lado da aventura, o pé confia na aproximação, desde que Falávamos, com a idéia de utopia, dc um não-lugar; agora
tenha ultrapassado um segundo limiar: você está tão próxi­
com a idéia de heterotopia podemos falar de qualquer-lugar, toda­
mo da margem que pode dizei que já chegou. Margem direita
via um qualquer-lugar que por isso mesmo continua sendo um
ou esquerda, não importa, nos dois casos: terra ou chão. Você
não-lugar, pois o que o torna um a figura da clín ica é a sua
não nada, espera para andar, como quem salta, decola e atin­
ge o chão, mas não permanece em vôo indelerminação. As heterotopias são posicionamentos em relação
Ao contrário, o nadador sabe que um segundo rio corre neste ao qual todos “os outros posicionamentos reais que se podem en­
que todo mundo vê, entre os dois limiares, atrás ou à frente contrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados,
dos quais quaisquer seguranças desapareceram: ali ele aban­ contestados e invertidos, espécie de lugares que estão fora dc to­
dona toda referência. (SERRES, 1993, p. 11) dos os lugares, em bora eles sejam efetivam ente localizáveis.”
(FOUCAULT, 1984 b, p. 415). E diremos mais: não só localizáveis,
Espaço então sem referência, liso, onde nada indica um ca­ mas também vivíveis.
minho previamente traçado. Espaço também pleno onde qualquer
cam inho pode ser tentado, com a condição de que seja criado,
16 Nessa passagem Foucault está fazendo uma oposição entre utopia e heterotopia.
Como ele usa o nome utopia para designar o justo oposto do que estamos pensando
15Aterceira margem do rio é o título de um conto de Guimarães Rosa que está no livro com o mesmo nome, suprimimos os momentos em que ela fala de utopia para não
Primeiras Estórias. O conto versa sobre o mesmo tema que estamos desenvolvendo. gerar maiores confusões. De qualquer forma acreditamos ser apenas uma questão
Ver (ROSA, 1988). de nomenclatura, pois o nome heterotopia que aparece nesse texto de Foucault
corresponde ao nome utopia em nosso texto.

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Obviamente essa experiência de qualquer-lugar é presente
mundo, se dá o registro da vidência, se dá a clareza dos perceptos,
nas vivências de acom panhantes terapêuticos, o que faz dela
a clarividência, o sentido como próprio acontecim ento, o acon­
algo bastante pertinente para nossa discussão. Essa vivência
tecimento puro, a clínica. Vidência como efeito clínico: o que se
clínica do espaço como qualquer-lugar, fica clara no caso rela­
via a pouco desaparece em uma névoa de esquecimento e o que
tado acim a por Pelbart (1993), onde as experiências vividas
se vê vem claro, todavia p a ra d o x a lm e n te sob a fo rç a da
por Lászlo e sua acom panhante se dão no meio de uma praça indeterm inação18. Experiência delirante, porém um delírio do
pública. A parada de Lászlo e sua acom panhante nos rem ete sentido. Experiência clínica, no entanto o delírio da clínica.
ainda a uma outra forma de falar dessa imagem do espaço. Ela
é apresentada por Deleuze em Imagem e tem po como a noção Enfim, passamos por algumas figuras do tem po-espaço -
de “espaço qualquer” . O que acontece a Lászlo e sua acom pa­ intem pestivo, devir, aion, utopia, não-lugar, entre-dois, lugar
nhante na parada? Já vim os que o tem po é ai a rrastad o se mestiço, heterotopia, qualquer-lugar, espaço qualquer - som en­
apresentando com o puro devir. E ntretanto não só o tem po, o te para que pudéssem os desestabilizar as noções cronológicas
espaço é também arrastado e tudo na cidade que era rotineiro do tempo e as noções métricas do espaço. O que precisa ser dito
se desestabiliza passando a funcionar com o puros perceptos. e o que as experiências do acom panham ento terapêutico nos
Situações óticas, sonoras, táteis. . . 17 puras, diria Deleuze: “Eis convocam a dizer, é que a clínica-acontecim ento não pode ter
que, numa situação comum ou cotidiana, no curso de uma sé­ uma topologia e uma cronologia pré-concebida sem se tornar,
rie de gestos insignificantes, mas que por isso mesmo obedecem,
ao mesmo tempo, um especialismo, uma questão puram ente de
muito, a esquem as sensório-m otores sim ples, o que subitam en­
te su rg iu foi um a s itu a ç ã o ó tica p u r a ( ...) um e n c o n tro .” tecnologia. E que é função do acom panhante terapêutico dar
(DELEUZE, 1990, p. 12) sustentação a esse espaço e a esse tempo que se abrem em sua
força intensiva. Ao acompanhante cabe construir os dispositivos
As situações óticas e sonoras puras são as situações de um que favoreçam essa experiência, que viabilizem esse mergulho
espaço qualquer, do surgimento de um espaço qualquer. Espaço num mundo ainda não formado de intensidades velozes. Essa é
que é abertura em relação a respostas sensório-motoras já dadas:
a sua verdadeira função clínica, e o acompanhante faz isso cm
entre um m ovim ento e outro uma indeterm inação se coloca, já
não existe mais resposta possível, muito m enos provável, nada contato direto com o socius. Porém, viabilizar esse mergulho pres­
que a captação sensorial possa ordenar nem que a ação motora supõe construir também as sustentações para um cam inho de
possa fazer. Pura paralisia dos sentidos e dos músculos. Entre­ volta. Não é “desestratificando grosseiram ente” (D ELEU ZE e
tan to , eis que no m eio d essa p a ra lis ia , d essa a b e rtu ra do GUATTAR1, 1996, p. 23) que se chega a uma experiência inlen-
espaço-tem po algo se dar a ver, algo que já não é m ais algo
formado, que não tem os seus contornos determinados, algo que
nem bem podemos chamar de algo como se fosse um estado de 18 Bergson dá a esse momento o nome de liberdade: “Dizíamos que essa natureza
coisas: surgem perceptos, situações óticas, sonoras, táteis... pu­ podia ser considerada como uma consciência neutralizada e portanto latente, uma
ras. Letras e núm eros verdes em m ovim ento por toda m atrix. consciência cujas manifestações eventuais estariam reciprocamente em xeque e
Nesse espaço, um espaço qualquer, com a suspensão de todo e se anulariam no momento preciso em que quisessem aparecer. Os primeiros clarões
qualquer esquem a sensório-m otor de representação e ação no aí lançados por uma consciência individual não a iluminam portanto com uma luz
inesperada: essa consciência não faz senão afastar um obstáculo, extrair do todo
real uma parte virtual, escolher e separar enfim o que interessava; e, se, por esta
seleção inteligente, ela testemunha efetivamente que deve ao espírito sua forma, é
17 Falaremos apenas dessas três instâncias da dissolução do sensório-motor, pois
da natureza que obtém sua matéria. Ao mesmo tempo, aliás que assistimos à
são as que Deleuze fala em Imagem e tempo (1990). Nesse livro Deleuze está
eclosão dessa consciência, vemos desenharem-se corpos vivos, capazes, em sua
pensando o tempo através de uma articulação entre o cinema e a filosofia de
Bergson. Mas ao que nos parece, se não nos restringirmos ao cinema, nada nos forma mais simples, de movimentos espontâneos e imprevistos. (...) Assim, quer
impede de estender essas sensações puras para o paladar e para o olfato, assim consideremos no tempo e no espaço, a liberdade parece sempre lançar na
como para as sensações proprioceptivas. As experiências psicóticas parecem necessidade raízes profundas e organizar-se intimamente com ela. O espirito retira
damatéria as percepções que serão seu alimento, e as devolve a ela na forma de
dar razão ao que falamos.
movimento, em que imprimiu sua liberdade.” (BERGSON, 1999, p. 290-291)

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siva do tempo e do espaço. Manter tam bém dispositivos de re­ Conectar, conjugar, continuar: todo um “diagrama” contra
torno, não retorno para o mesmo, e sim retorno para outras formas, os programas ainda significantes e subjetivos. Estamos numa
para novas terras. O cuidado com o caminho não só de ida, mas formação social; ver primeiramente como ela é estratificada
também de volta é o que Deleuze e Guattari, ao se referirem a para nós, em nós, no lugar onde estamos, ir dos estratos ao
d e s e s tra tific a ç ã o do o rg a n ism o , da s ig n ific â n c ia e da agenciamento mais profundo em que estamos envolvidos;
subjetivação19, cham aram de prudência: fazer com que o agenciamento oscile delicadamente, faze-lo
passar do lado do plano de consistência. É somente aí que o
É necessário guardar o suficiente do organismo para que ele
CsO se revela pelo que ele é, conexão de desejos, conjunção
se recomponha a cada aurora; pequenas provisões de
significância e de interpretação, é também necessário conser­ de fluxos, continuum de intensidades. Você terá construído
var, inclusive para opô-las a seu próprio sistema, quando as uma pequena máquina privada, pronta, segundo as circuns­
circunstâncias o exigem, quando as coisas, as pessoas, inclu­ tâncias, para ramificar-se me outras máquinas coletivas.
sive as situações nos obrigam; e pequenas rações de (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 23-24)
subjetividade, é preciso conservar suficientemente para po­ Nessa passagem - que por sinal é uma passagem bastante
der responder à realidade dominante, imitem os estratos.
clín ica - podem os intuir a ex periência do acom panham ento
(DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 23)
terapêutico, todavia para que fique mais claro, irem os apresen­
E seguindo no texto encontram os um a passagem que m os­ tar, a seguir, um fragm ento de caso clínico onde toda essa
tra a c o m p le x id a d e do que se b u sc a nas in te rv e n ç õ e s em desestratificação e a prudência necessária para que ela se dê de
acompanhamento terapêutico, tanto em seu caráter de risco quanto uma forma eficaz estão amplamente presentes.
também de prudência. A necessidade de fazer funcionar e con­
jugar uma série imensa de linhas de força:

O pior não é permanecer estratificado - organizado, signifi­


cado, sujeitado - mas precipitar os estratos numa queda
suicida ou demente, que os faz recair sobre nós, mais pesados
que nunca. Eis então o que seria necessário fazer: instalar-se
sobre um estrato, experimentar as oportunidades que ele nos
oferece, buscar aí um lugar favorável, eventuais movimentos
de desterritorialização, linhas de fuga possíveis, vivenciá-
las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar
segmento por segmento dos contínuos de intensidades, ter
sempre um pequeno pedaço de uma nova terra. E seguindo
uma relação meticulosa com os estratos que se consegue li­
berar as linhas de fuga, fazer passar e fugir os fluxos
conjugados, desprender intensidades contínuas para um CsO.

19 O organismo, a significância e a subjetivação são os estratos contra os quais o


corpo-sem-orgãos (CsO) luta. Como não desenvolveremos o conceito de CsO,
basta entende-lo como a desestabilização do tempo e do espaço que estamos
desenvolvendo.

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OS MEIOS E A CARTOGRAFIA - exprime a identidade entre o percurso e o percorrido. Con­
UM FRAGMENTO CLÍNICO funde-se com seu objeto quando o próprio objeto é
movimento. (DELEUZE, 1997, p.73)
Ao se fa la r de m eios, de c irc u la ç ã o pela c id a d e e de
Mas talvez essas entidades' cartográficas pareçam misterio­ mapeamentos o que retorna para nós é o tema do acom panha­
sas a alguns! E verdade que já não temos um acesso mento terapêutico. D iante disso apresentarem os um a situação
espontâneo a elas, como nos bons tempos do pensamento vivida durante essa prática que cremos poder nos ajudar na com­
“animista”, ou como sucede ainda no transcurso de certas preensão desses conceitos que estam os discutindo.
experiências de ruptura com a “normalidade”. Disso se des­ Foi uma história vivida junto a Daniel20, um rapaz de apro­
prende a necessidade de construir cabalmente dispositivos
xim adam ente 19 anos que freqüentava um hospital-dia onde
de enunciação analíticos (...) para voltar a encontrar a efi­
começávamos a desenvolver um trabalho em acom panham ento
cácia.
terapêutico. Daniel, por conta de uma rede bastante complexa de
Felix Guattari - Cartografias esquizoanalíticas pensamentos, tinha muitas vezes a agressão como forma de ex­
pressão privilegiada. Nesses momentos, ele se via impedido de
Falamos então da possibilidade de encontrar meios que nos falar e os pensamentos, que ele não reconhecia como seus, regi­
permitam um mergulho no que, na seção anterior, chamamos de am suas ações através de ordens imperativas. Não conseguia dar
abertura intensiva do espaço-tempo. E é justam ente disso que se expressão para os desejos e/ou medos que não fosse pela violên­
trata: meios. Quando falávam os da abertura intensiva como um cia, pela agressão física. Quando começamos a trabalhar juntos
não-lugar ou como um qualquer-lugar, o que falávam os então foi-me dito pelos coordenadores da instituição que tivesse cui­
era de m eios. E se falam os de m eios, falam os obviam ente de dado com ele na rua, pois ele costumava fugir ou então bater nos
m eios prudentes, de m eios que efetivam ente garantam tanto o outros. O que contrastava bastante com seus insistentes pedidos
m ergulho quanto a volta desse m ergulho. Deleuze (1997), em de ir à rua.
um belo texto sobre as crianças, nos fala dos meios: Daniel tinha um percurso muito bem delimitado e bastante
A criança não pára de dizer o que faz ou tenta fazer: explorar rígido ao redor da clínica onde funcionava o hospital-dia. Só
os meios, por trajetos dinâmicos, e traçar o mapa correspon­ circulava por algumas ruas e para ir a alguns lugares específicos,
dente. Os mapas dos trajetos são essenciais à atividade sendo que em algumas ruas, o caminho só lhe era possível por
psíquica. O que o pequeno Hans reivindica é sair do aparta­ um dos lados da calçada, isso por conta dc pensam entos que
mento familiar para passar a noite na vizinha e regressar na atribuíam um caráter persecutório a algumas figuras da rua (ven­
manhã seguinte: o imóvel como meio. Ou então: sair do imó­ dedor de cachorro-quente, pipoqueiro, cachorros etc.). Enfim ,
vel para ir ao restaurante encontrar a menininha rica, passando era um m apa muito restrito da área que circundava o hospital-
pelo entreposto de cavalos - a rua como meio (...) um meio é dia. Fora isso sua circulação na rua estava impedida, tanto por
feito de qualidades, substâncias, potências e acontecimen­ sua estereotipia de percurso quanto pelo medo estereotipado das
tos: por exemplo a rua e suas m atérias, como os
pessoas à sua volta que não lhe proporcionavam nenhuma pos­
paralelepípedos, seus barulhos, como o grito dos mercado­
sibilidade de variação.
res, seus animais, como os cavalos atrelados, seus dramas (um
cavalo escorrega, um cavalo cai, um cavalo apanha...). O
trajeto se confunde não só com a subjetividade dos que per­
correm um meio mas com a subjetividade do próprio meio,
uma vez que este se reflete naqueles que o percorrem. O mapa 20 Em todos os relatos serão usados nomes fictícios.

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Um certo dia, Daniel chegou para mim e falou: quero co­
O que havia acontecido? Nós não chegam os a nenhum lu­
nhecer um lugar novo. Perguntei-lhe se ele tinha alguma idéia
gar específico nem havíamos encontrado nada. Não havia uma
desse novo lugar, o que ele me respondeu que não. Diante dis­
praça onde fôssemos nos sentar, nenhum a loja onde fôssem os
so, lhe propus irm os à rua para ver se e n co n tráv am o s esse
comprar algo ou olhar uma vitrine. Nenhum te/os, nada a atingir,
lugar novo, o que ele concordou. Tudo se dava de forma muito
somente um trajeto, um percurso. Só sentíamos uma espécie de
rápida, muito mais rápida que o de costume, e mesmo os rituais
cansaço, porém não o cansaço-fadiga de quem gastou energia à
que praticava invariavelm ente tinham sido abandonados. Pro­
loa em uma batalha contra uma resistência dura e sim o cansaço-
duzia-se no cam po entre ele e eu um a vibração, isto é, um a
alegre de quem acabou de jogar uma pelada ou de passar um dia
intensificação irrecusável, irresistível. E assim saímos, mais in­
surfando.
tensos, mais abertos as pequenas percepções a nossa volta. Ao
chegarm os ao prim eiro cruzam ento (um a esquina onde ele in­ O sentido desse passeio só pôde ser apreendido umas duas
variavelm ente dobrava para a esquerda) eu, apontando nas três sem anas depois, quando um outro episódio se deu. Passam os
direções, lhe perguntei: é por aqui, por aqui ou p o r aqui? Cabe agora à transcrição das anotações que fizemos desse dia:
entender que não só ele dobrava invariavelm ente para esquer­
Daniel chegou dizendo que queria bater 110 Carlinhos. Eu lhe
da, mais eu também, em nossas saídas já sabia que era esse o
perguntei quem era Carlinhos e ele ficou confuso (ele já ha­
percurso. O próprio ato de fazer a pergunta já era efeito das
via falado desse Carlinhos como alguém que ele quis bater
intensificações que vivíam os e se me questionassem o por que
na rua, mas que ele não conhecia). Falou então que queria
da pergunta não saberia explicar, era como se a pergunta tives­
bater era no moço da condução, pois queria saber o nome
se surgido do nada, sem que tivesse pensado para faze-la, na dele. Falei da possibilidade de perguntarmos a ele na hora da
verdade como se nem tivesse sido eu quem perguntou. Ele me saída. Nesse momento tentei fazer com que tomasse 0 medi­
respondeu também de uma form a mais veloz, quase que como camento, pois estava na hora. Ele recusou. Tentei fazer com
num a brincadeira de bate/rebate. Q ueria continuar em frente. que subisse para nossa sala, pois onde estávamos havia uma
N esse m om ento a m inha sensação era de apreensão e receio, circulação muito grande de pessoas e 0 próprio ambiente já
assim como de entusiasm o e vibração. Todas essas sensações estava muito confuso. Ele também recusou dizendo que que­
contraditórias e ambivalentes se misturavam em meu corpo, po­ ria sair para bater no moço da condução.
rém algo me dizia com um a firm eza incerta: vá. Não tinha a Conversamos um pouco, mas não estávamos saindo do lugar.
m enor idéia do que íam os encontrar ou onde íam os chegar, Falei então que não estava entendendo nada, que estava tudo
todavia andávam os e seu rosto m udava em form as de expres­ muito confuso, que o ambiente não estava ajudando em nada
são que ainda não conhecia. Na segunda esquina a cena se e que, por conta disso, estava subindo para a sala e que se ele
repetiu e ele novam ente escolheu, dentre as possibilidades, o quisesse conversar que viesse junto. Ele foi. Chegando na
nosso destino. Todas essas intensidades ficavam cada vez mais sala ele me disse que queria bater nas pessoas (queria bater
alegres e podíam os desfrutar, enquanto cam inhávam os, de um também nos faxineiros e porteiros do seu prédio), pois o seu
prazer silencioso cada vez mais crescente. Continuam os a an­ cuidador havia lhe ajudado a por a pouchete na cintura. De­
dar até que, em dado m om ento, as escolhas nos levaram ao pois de alguma conversa ele disse que queria me fazer uma
encontro de um percurso já conhecido e por esse percurso vol­ pergunta, pois eu poderia dizer se era verdade ou não. Ele me
tam os ao hospital-dia. Lá m antínham os silêncio sobre o que disse que quando o seu cuidador lhe pôs a pouchete ele que­
acontecera, como se as palavras fossem tirar um pouco da m a­ ria isso, mas 0 seu pensamento não queria e por isso ele iria se
gia do que v iv em o s. Eu apenas lhe p e rg u n te i se ele havia transformar em barbies, bonecas, comida, objetos etc. Ele
encontrado o novo lugar e ele disse que sim. pedia por minha opinião para que pudesse acreditar ou não
no pensamento de que se tornaria algo inanimado. Chega­
mos juntos à conclusão de que não era verdade, mas mesmo

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assim ele sentia raiva de algo e queria bater. Falou então que
A coragem da clínica é então um lançar-se na direção de algo
seu psiquiatra havia receitado um S.O.S para aliviar a angús­
novo, uma crença de que, ao lançar-se, a vida encontra os seus
tia e a ansiedade. Nesse momento consegui que tomasse o
próprios meios de se diferenciar. E se falamos em coragem tam­
seu medicamento rotineiro. Quando voltamos para a sala ele
insistiu no S.O.S.. Perguntei-lhe se não existiria outra possi­ bém falam os em prudência, no entanto prudência não como
bilidade para resolver o que sentia. Ele falou que bater no justificativa de um medo e sim prudência como a construção dos
motorista da condução iria fazer com que parasse de pensar meios necessários para que possam os nos lançar, todavia não
que ia virar uma boneca, mas somente no momento em que nos lançar de qualquer jeito. E se é uma aposta é sem pre uma
estivesse batendo, pois o pensamento não desapareceria. Per­ única e mesma aposta: a aposta que realmente algo novo aconte­
guntei-lhe por outra possibilidade. Ele disse que entrar numa ça, seja um lugar, um sentimento, uma produção. Na verdade é a
academia de boxe o ajudaria. Falei que isso deveria ser me­ aposta na possibilidade que se consiga, através de conexões
lhor pensado e que não dependia só de mim. Ele falou em ir desejantes e em contato com a alteridade da rua, realizar um novo
para a Porta de Entrada21. Imediatamente lhe perguntei se não m apeam ento. Isso porque sabem os que, como numa totalidade
havia nada que ele pudesse fazer junto de mim. Ele demorou ao lado dos mapas extensivos, traçam-se mapas intensivos. “Os
a responder. Tive que recordar todas as conclusões e pontos a mapas não devem ser compreendidos só em extensão, em rela­
que já havíamos chegado até ali. Depois de algum tempo ele ção a um espaço constituídos por trajetos. Existem também mapas
falou que queria andar por aquele caminho que ele tinha de intensidade, de densidade, que dizem respeito ao que preen­
passado 110 outro dia (o dia em que ele quis conhecer um che o espaço, ao que subtende o trajeto.” (Deleuze, 1997, p. 76).
lugar novo). Saímos para a rua. Fizemos o percurso e, na vol­
ta, perguntei se 0 passeio havia lhe ajudado. Ele me Extensividade como 0 plano constituído e intensividade como
respondeu que sim e passou 0 restante do dia melhor. Estáva- irru p ç ã o d ile re n c ia d o ra . E x te n siv id a d e com o o c u p a çã o e
intensividade com o afecção. Uma das prim eiras conclusões a
mos cansados, mas não esgotados.
Tenho certeza de que algo acontece nesse percurso, algo que que podemos chegar é sobre o caráter não evidente do aconteci­
não sei identificar, mas que nos deixa, a mim e a de alegres. mento na clínica ou desse novo traçado de um mapa intensivo.
Na situação descrita, mesmo depois do passeio dado, não conse­
24-IV-1997 guia compreender com clareza o que havia ocorrido, se realmente
um lugar novo havia sido descoberto ou se algo daquilo havia
Daniel pede, em um primeiro momento, para conhecer um
leito alguma diferença. Entretanto paticamente, cm sua qualida­
lugar novo. Que lugar seria esse? Não sabíamos. A única certeza
de de afetação, aquele passeio havia sido de grande intensidade,
que poderia ter era a importância dessa experiência espaço-tem-
pois era evidente a grande turbulência que estava sendo produ­
poral do trajeto por um novo lugar e da possibilidade de um
zida entre eu, D aniel e os elem entos da rua. O bjetivam ente
m apeamento que viesse se sobrepor à sua aluai condição, ope­
nenhum a m udança parecia haver ocorrido além de um a cam i­
rando assim alguma diferença. No acompanhamento terapêutico,
nhada comum pela rua.
de alguma forma, está sempre presente um certo caráter de apos­
ta, porém uma aposta, um ariscar-se que é apenas uma abertura. Todavia não era um a mudança desse tipo que evocávamos
Abrir-se então, arrastando a situação por essa abertura e depois quando falávamos do acontecimento? Não é como num salto no
se colocar à espreita dos acontecimentos que se põem em devir. mesmo lugar que passam os a desejar o acontecim ento em toda
sua força? Não é esse o momento da alegria, da força maior22,

21 O Porta de Entrada é um serviço que funciona como uma primeira abordagem para
22 Clémenf Rossef chama a alegria em Nietzsche de força maior, uma alegria trágica
os pacientes psiquiátricos conveniados com o CASSI. Daniel tem esse local como
que se extrai do fato de desejar o acontecimento, mesmo que esse acontecimento
um lugar seguro onde “faz com que a crise passe”. não seja nele mesmo prazeroso. (ROSSET, 2000)

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que faz o mundo girar 360 graus em um instante, deixando como
Levará ela a construção de novos territórios? A rrebentará no
resquício desse giro, apenas a vertigem e o prazer da vertigem?
meio do próprio cam inhar fazendo que o chão se precipite em
Entretanto se sentim os essa vertigem em instantes intensi­ uma queda livre infernal? Será subsumida pelo peso da história
vos é somente em um segundo tem po que esse acontecim ento e se enquadrará 110 esquem a de pensam entos im perativos, de
vai adquirindo clareza, pois é quando Daniel retoma o caminho agressões desesperadas, enfim , em todo 0 seu esquem a sensó­
que podemos vislum brar um sentido. É por aquele trajeto, na­ rio-m otor anteriorm ente constituído? Tudo isso e m uito m ais
quele ato de m apeamento extensivo/intensivo, que se começa a pode ser 0 destino de uma linha-trajeto de fuga. No nosso caso,
traçar uma fuga de lodo um sistem a de pensam entos im perati­ essa linha-trajeto se multiplicou em muitas outras, em um regi­
vos, de te n ta tiv a s d e se sp e ra d a s de a g re ssã o , de so lu ç õ e s me de variação contínua, ganhando novas cartografias. Muitos
puram ente m edicam entosas, de internações enclausurantes, isto trajetos surgiram e paradoxalm ente levavam tanto a novos ter­
é, de lodo um sistem a sensório-m otor já dado, já conhecido. ritórios quanto a becos sem saída. Por essas linhas-trajetos, ora
Começa-se a escapar de tudo isso pelas linhas das calçadas, pe­ chegávamos a uma praia onde se abria um imenso horizonte de
los buracos da rua, pelas nuvens que se abrem no céu, pelos relações, ora chegávam os à porta de 11111 asilo em um esquisito
gritos dos vendedores, pelos sinais de transito que basculam e pedido de internação do próprio Daniel, ora parávamos em um
dão ritmos a paradas e continuidades. E também através de nós cartório atrás de uma certidão de nascimento já perdida há muitos
acompanhantes terapêuticos, sempre ao lado, dando sustentação anos, ora rasgava-se a identidade diante de um policial. Porém
a essa fuga, a isso que foge, a isso que faz fugir. Somos em nossa o mais importante é que essas linhas se multiplicaram e pode­
profissão cúm plices dessa fuga, disso que põe a fugir, mesmo mos construir juntos novos m undos, novas formas de viver.
que não saibamos muito bem o que é, pois quando se foge não
se olha para o monstro que vem nos devorar e sim para os bura­ Como vimos, nessa situação estamos lidando a um só tem­
cos pelos quais encontram os uma saída, visam os às aberturas po com um plano intensivo que subsiste em um campo extensivo.
pelas quais fugiremos, olhamos para os caminhos que são mais M apas sobrepostos e inseparáveis: um que percorre a extensão
rápidos, e/ou m ais acessíveis, e/ou mais acessáveis, e/ou mais do m undo, porém tam bém um outro m apa, esse inextenso,
eficazes... nossa presença, a presença-acompanhar é garantia para tracejando vetores de força em pleno confronto e linhas velozes
quem acompanhamos, garantia de estar junto, ajudando a mon­ que são rastros de afetos em velocidade infinita. Em um mapa
tar a cada passo o trampolim para que o outro possa lançar-se na extensivo já constituído era lodo um nível de contratos, institui­
ções e esquemas sensório-molores que eslava em jogo. Tínhamos
nova aventura, todavia essa garantia somente é garantia porque
as ruas, as falas, os rem édios, os estabelecim entos, os pensa­
também nos lançamos juntos, acompanhando, amparando, cain­
m entos im p erativ o s, as ag ressõ es d esesperadas e m ais uma
do e levantando juntos. E se fazemos isso é somente para que
infinidade de coisas que nos permitiam nos reconhecer, que nos
mais uma vez o tram polim seja m ontado, e mais uma vez nos
orientavam cm nossas identidades. Entretanto ao lado, ou como
lancemos juntos, nesse risco insólito que é viver. Que é a clínica
que nas rachaduras das ruas, das palavras e de todas essas for­
enquanto vida.
m as jo rra v a m in te n sid a d e s que nos d eslocavam de nossos
Assim sendo, o trajeto de Daniel era apenas um momento, enquadres, que distorciam e desfocavam a visão. Jorravam afe­
algo que irrom pia, um instante que surgia em detrim ento das tos que não se sabia muito bem o que eram, que ainda não eram
histórias que o prendiam em todo um esquema de percepções e nem um a coisa nem outra, que vinham apenas desestabilizar
de ações já constituídos. H avia ainda todo um trabalho a ser qualquer estrutura que se quisesse em pé, fazendo em ergir ou­
feito: será suficientem ente forte essa linha-trajeto para que não tras. Isso é o que chamamos de plano intensivo, esse é o plano
se apresente como uma linha destrutiva, e se constitua em algu­ que é composto pelos elem entos abstratos que entram em rela­
ma consistência que lhe perm ita saltar para outros trajetos? ções variáveis de velocidade. E 0 plano das forças. O campo

76
77
exlensivo é como que a solidificação dessa massa vulcânica de
partículas caóticas. Essa solidificação é a organização ou a sedi­ SABER E PODER: O EXTENSIVO EO
mentação em formas e funções, em palavras e coisas. INTENSIVO
Para tentar entender a extensividade, a intensividade e suas
relações escolhem os acom panhar a leitura da obra de Foucault
feita por Deleuze (1988 b). Foucault no início de sua obra estu­ .. .nome p r ó p r i o ou singular é garantido pela p e r m a n ê n c ia
dou as relações de saber, posteriormente acrescentou a tal estudo de u m saber. Este saber é encarnado em nomes gerais que
as relações de poder. Para efeito da temática que estamos desen­ designam paradas e repousos, substantivos e adjetivos, com
volvendo analisaremos as relações de saber como extensividade os quais o próprio conserva uma relação constante. Assim,
o eu pessoal tem necessidade de Deus e do mundo e m geral.
e as relações de poder como intensividade.
Mas quando os substantivos e adjetivos começam a fundir,
quando os nomes de paradas e repousos são arrastados Pe~
los verbos de puro devir e deslizam na linguagem dos
acontecimentos, toda identidade se perde para o eu, o mun­
do e Deus.
Gilles Deleuze - Lógica do Sentido

D eleuze nas en trev istas que concede a respeito do livro


que escrevera sobre Foucault, repete incessantem ente o lema
das crises. Entende as crises do pensam ento de Foucault como
passagens de temática que, agrupadas no conjunto da obra, dão
a seu pensam ento uma “coerência superior” (DELEU ZE, 1992,
p. 130). Diz Deleuze: “com o todo grande pensador, seu pensa­
mento procedeu sem pre por crises e abalos como condição de
criação, como condição de uma coerência últim a” ( D E L E U Z E ,
1992, p. 105). Deleuze se propõe então a pensar esses m o m e n ­
tos de passagem , de rupturas do pensam ento de Foucault, não
como arrependimentos que teriam acometido o autor e sim uma
experiência-lim ite do próprio pensam ento que força F o u c a u lt a
colocar as questões sob novas perspectivas. Pelo m enos duas
grandes crises, duas passagens para três momentos. A primeira
consiste em descobrir as relações de poder sob as f o r m a s do
saber; e posteriorm ente fugir do poder através da am izade e da
criação de si como novos m odos de vida, ou seja, através tios
“m odos de su b jetiv ação ” . Segundo o próprio Foucault: “(■••)
três grandes tipos de problem as: o da verdade, o do poder e o
da conduta individual. Esses três grandes dom ínios da cxpcri*
ência só podem ser entendidos uns em relação aos o u t r o s , e
não podem ser com preendidos uns sem os outros” (FO U C A U L T ,
1984, p. 253).

78 79
E Deleuze, falando especificam ente desses três m omentos Saber é justamente o mundo extenso de posicionamento das
da filosofia de Foucault, os situa em relação ao que implica pen­ form as e das funções umas em ralação as outras. O saber é o
sar, nos diz: m undo formado e form alizado como tal. Deleuze cham a essa
Pensar é, primeiramente, ver e talar, mas com a condição de formação e essa formalização de estratos ou o estralificado. Nos
que o olho não permaneça nas coisas e se eleve até as “visibi- diz o autor: “O que é estratificado não é objeto indireto de um
lidades”, e de que a linguagem não fique nas palavras ou saber que surgiria depois, mas constitui diretamente um saber: a
frases e se eleve até os enunciados. É o pensamento como lição das coisas e lição da gramática” (DELEUZE, 1988 b, p.60).
arquivo. Além disso, pensar é poder, isto é, estender relações Saber então se compõe de duas parles coexislentes: ver e falar.
de forças, com a condição de compreender que as relações de Ver, ou “ a lição das coisas” e falar, ou “a lição da gram ática”
força não se reduzem à violência, mas constituem ações so­ são, desta forma, as operações desse campo. Palavras e coisas,
bre ações, ou seja atos, tais como “incitar, induzir, desviar, formas formadas e funções form alizadas são as resultantes com
facilitar ou dificultar, ampliar ou limitar, tornar mais ou me­ que lidamos no campo do saber. “Os estratos são formações his­
nos provável...”. É o pensamento como estratégia. Por fim, tóricas, positividades ou empiricidades. ‘camadas sedim entares’,
nos últimos livros, é a descoberta de um pensamento como eles são feitos de coisas e de palavras, de ver e de falar, de visí­
“processo de subjetivação”: (...) trata-se da constituição de vel e de d izív e l, de re g iõ e s de v isib ilid a d e e cam p o s de
modos dc existência ou, corno dizia Nietzsche, a invenção de legibilidade, dc conteúdos e de expressões.” (DELEUZE, 1988
novas possibilidades de vida. A existência não como sujeito, b, p. 57)
mas como obra de arte. (DELEUZE, 1992, p. 119-120)
Os sa b ere s são então os e s tra to s tid o s com o p rá tic a s
Para que possam os entender m elhor essas três problem áti­ discursivas e práticas não-discursivas. Podemos, para tentar en­
cas do pensamento de Foucault - e a relação que estamos traçando tender melhor tal questão, pegar, por exemplo, a primeira grande
desse pensamento com a clínica - iremos seguir a ordem de apa­ análise de Foucault feita nesses term os. No livro H istória da
rição em sua obra. Primeiro a questão do saber, dos estratos, o lo u c u ra na idade c lá ssic a (FO U C A U L T , 1972), p rá tic a s
que cham arem os do problem a da extensividade. No plano do discursivas e não-discursivas, falar e ver, encontravam -se em
saber ou da extensividade lidamos com formas e funções consti­ jogo na formação do objeto-sujeito da psiquiatria, que é o do­
tuídas, organizadas, atuais. E ncontram o-nos frente-a-frente ao ente mental e seu correlato o psiquiatra. As práticas discursivas
mundo que aí está, ao mundo que se apresenta em sua clareza, instauraram novas verdades sobre a desrazão através de uma
ao mundo que vemos e do qual falamos com toda a desenvoltura psiquiatria nascente e as práticas não-discursivas m aterializam
e evidência do dia-a-dia. É o campo das percepções úteis, onde um certo regime de segregação, através da constituição do asi­
percorremos o espaço extenso de ruas, calçadas, prédios, idéias lo, que dá um a visibilidade controlada aos loucos. Um novo
e palavras enquanto ordens prontas. O m undo enquanto visível m undo se forma onde ao m esm o tem po se pode falar sobre o
e enunciável. Esse é o campo das verdades, sejam elas as nossas doente mental e fazer algo com ele. Um regime de enunciado e
verdades pessoais ou as verdades as quais compartilhamos e so­ um regime de visibilidade.
mos levados - pela força das formações sociais - a acreditar c a
Falar e ver, então, se dão ao mesmo tempo, porém falar e
proferir. Verdade que é o mais imediato de um saber. Campo que
ver não podem ser totalmente identificados um ao outro. Guar-
se estende inclusive sobre o que sabem os de nós m esm os, se
da-se entre um e outro um regime de diferença intransponível,
revelando como a forma que nos vemos e da qual falamos sobre
uma lissura irrecuperável, uma diferença de natureza. Isso quer
o que somos. Saber então de nós mesmos e do mundo enquanto
dizer que falar não é ver e ver não é falar, ou melhor, não se vê o
extensividade, cam po que dita o que acreditam os ser e o que
que se fala e não se fala o que se vê. Voltando ao exemplo da
acreditamos ser o mundo.
questão da loucura, não é possível dizer que a medicina, ao ela­

80 81
borar um discurso sobre a loucura como grau extremo da desrazão, extensividade é o saber, é o regim e das palavras e das coisas
estivesse fazendo exatamente a m esm a coisa que o asilo ao se­ possíveis do m undo; já a intensividade diz respeito ao plano
g re g a r o lo u co em um c o n ju n to que vai dos p o b res aos que trabalha p o r baixo do cam po do saber. Porém trabalha
depravados. Enquanto a medicina produz uma discursividade, o p o r baixo não cria ainda um a idéia de um outro lugar distinto e
asilo produz uma evidência, percepção histórica, uma visibilida­ separado do prim eiro? Esse não seria um termo inapropriado
de. Jamais um pode ser reduzido ao outro ou derivado do outro, para falar de um plano inextenso? Diremos então que é na fissura
apesar de form arem , em conjunto, um saber sobre a loucura. intransponível entre o ver e o falar que vemos surgir esse plano
Esses dois regimes, o ver e falar, se locam, se entrecruzam , se inextenso. Não um outro lugar, e sim uma operação na fissura,
afastam, vivem em uma agonística que permite a ambos, em co­ da fissura. Essa é a fissura que posicionávam os entre as pala­
existência, tanto produzir mundos quanto m anter as form as em vras e as coisas que compõe o saber. Posicionamento esquisito
de um princípio im anente de diferenciação que não perm ite a
variação constante, sempre entrando em ralações diferenciadas
identificação entre os termos. Reencontramos com isso o entre-
um como outro.
dois, ou o espaço não métrico, intenso da clínica.
Quando falamos de uma prática clínica como a do acompa­
No dia-a-d ia de acom panhantes terapêuticos agim os no
nhamento terapêutico revela-se uma relação muito estreita com mundo, todavia não somente através das formas como também
o espaço enquanto m atéria form ada ou extensa. Não só a rua — - e aí queremos situar a função, porém função não-formalizada
esse meio ao qual o acom panham ento terapêutico se propôs e da clínica - através das intensidades. Encontramos mundos cons­
ainda insiste em desbravar com m uita audácia - , mas também, tituídos, entretanto deles extraímos intensidades que são a matéria
por exemplo, as casas de nossos acompanhados que, ao freqüen­ - estranha matéria, pois sem forma - da clínica. Não só extraí­
tarmos, acabam por se tornarem campos de intervenções. Desta m os, m as su s c ita m o s , p ro v o ca m o s, c o lo c a m o s em xeq u e,
form a, pensar o acom panham ento terapêutico exige o esforço forçam os, liberam os, abrim os cam inho, botam os para circular,
de entendermos a extensividade, as partes em jogo, os termos da disparam os, entretanto e principalm ente acom panham os essas
relação, quem são as pessoas, onde estão as coisas, quais são as intensidades. E assim se dá uma intervenção em acom panha­
palavras através das quais nos relacionam os. Porém vínham os mento terapêutico, acionando e acompanhando intensidades para,
de algum a form a, operar m odificações nos m undos co n stitu í­
vendo que a clínica sob o signo do acontecim ento não pode se
dos; para, de algum a form a, colocar novas questões, novos
resumir ao campo das matérias e funções formalizadas, ao esta­ problem as para esses mundos.
do de coisas de uma situação ou de uma pessoa, nem a entrada
em um estado de coisas, sob o risco constante de cairm os em Então temos, em primeira instância, um conjunto de técni­
ortopedias do comportamento. A clínica-acontecimento exige que cas que lidam com formas e funções determinadas. Técnicas que
trabalham , labutam , ocupam e percorrem territórios, todavia a
sob o saber possam os acionar não m ais um campo de form as,
clínica-acontecim ento não se dá no campo das formas e sim no
porém agora um plano de forças. Um plano informe de relações plano das gradações de intensidade. Se assim não fosse trabalha­
móveis que, nunca sem tensão, se reúnem, se aglomeram, com ­ ríamos apenas com as mudanças de comportamento, correndo o
partilham posições, se afastam , disputam entre si, tanto para risco de desenvolver práticas adaptacionislas e mantenedoras do
form ar quanto desconstruir os estratos. s ta tu s quo. E esse é um risco que, no a c o m p a n h a m e n to
O acom panham ento terapêutico, esse nom e entre outros terapêutico, está sempre presente. Precisamos, a cada momento,
da clínica, da clínica-aco n tecim en to , exige que tracem os os conjurar em nossas práticas, as encom endas de adaptação, de
mapas ou os diagram as que operam no plano, entendido agora manutenção, de preservação, de disciplina e de controle. A todo
como inextenso. As intensidades são o que circulam nesse pla­ tempo, desde a contratação até ao passeio pela rua, somos con­
no inextenso, por isso dizem os, seguindo D eleuze, que esse vocados a tutelar, a proteger, a conduzir, a tomar conta de nossos
plano é o plano intensivo ou não estratificado. Vimos que a acom panhados. Som os chamados sem pre em um a insatisfação
com formas. Entretanto não devemos nos furtar a isso, pois con-

82 83
jurar passa por dar passagem e acompanhar as tensões de forças
que subsistem nessas form as. C onjurar a encom enda adapta- Estado. Então, compreender o que é o poder exige um esforço,
cionista é então, através e ao lado das intensidades, questionar e visto que há sempre o risco de vermos esse conceito confundido
problem atizar as form as. Isso que é a clínica-acontecim ento é com noções de poder difundidas tanto pelo senso comum quan­
sobretudo algo que em erge, que provém (FOUCAULT, 1971) to por algumas teorias do poder.
desse outro lugar que não os constituídos, todavia conjurando- O poder em Foucault é uma relação, de tal forma que não
os; é algo que se dá, como vimos anteriorm ente, no entre-dois pode ser entendido como um objeto ao qual uns tem e outros
das form as, esse não-lugar que é ele m esm o um espaço qual­
não, já que enquanto relação diz sempre de no mínimo dois que
quer. A clínica-acontecim ento sem pre se dá com o instituinte,
se relacionam, um que exerce a ação e outro que a recebe.
form ando m undos e engendrando novas práticas (LOU RAU ,
2004). Ora, o estudo dessa microfísica supõe que o poder nela exer­
Então, que outro lugar é esse onde as formas e funções pa­ cido não seja concebido como uma propriedade, mas como
recem se desvanecer? Que lugar é esse que se parece mais com uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam
um não-lugar ou com um qualquer-lugar do que com um lugar atribuídos a uma “apropriação”, mas a disposição, a mano­
específico? Que plano é esse da abertura intensiva? bras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos; que lhe seja
dado como modelo antes a batalha perpétua que o contrato
Esse será então o plano do poder, não mais o do saber. Do
que faz uma sessão ou a conquista que se apodera de um
intenso e não mais do extenso. E se formos falar de metodologias
domínio. Temos em suma que admitir que esse poder se
podem os dizer que estam os saltando de um a arqueologia do
saber, com seus arquivos audiovisuais, para um a genealogia exerce mais que se possui, que não é “privilégio” adquirido
do po d er, com suas e s tra té g ia s e d iag ram as. Um pouco de ou conservado da classe dominante, mas o efeito de conjun­
m icrofísica segundo Foucault. Deleuze diria que “é uma física to de suas posições estratégicas-efeito manifesto e às vezes
da ação a b stra ta ” ou “ uma física da m atéria-p rim a ou nua” reconduzido pela posição dos que são dominados. Esse
(DELEUZE, 1988 b p.80). De qualquer forma, um grau de aná­ poder, por outro lado, não se aplica pura e simplesmente,
lise, que não se situa m ais nas form as de v isib ilid ad e e de como uma obrigação ou como uma proibição, aos que “não
dizibilidade. Segundo Foucault: tem”; ele os investe, passa por eles e através deles; apóia-se
neles, do mesmo modo que eles, em sua luta contra esse
O mais das vezes, apesar da coerência de seus resultados, ela poder, apóiam-se por sua vez nos pontos em que ele os al­
(a relação de poder) não passa de uma instrumentação cança. (FOUCAULT, 1977, p. 29)
multiforme. Além disso seria impossível localiza-la, quer num
tipo definido de instituição, quer num aparelho de Estado. Não falaremos mais em poder isolado e materializado, e sim
Estes recorrem a ela; utilizam-na, valorizam-na ou impõe al­ em relações de poder, em posicionamentos estratégicos que man­
gumas das suas maneiras de agir. Mas ela mesma, em seus têm em tensão um montante de forças que age e um montante de
mecanismos e efeitos, se situa num nível completamente di­ forças que sofre a ação. Com isso encontramos em Foucault um
ferente. Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do profundo nietzscheanism o, para quem tudo era relação de for­
poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições, mas cujo ças. Deleuze falando disso nos diz:
campo de validade se coloca de algum modo entre esses gran­
des funcionamentos e os próprios corpos com sua O que é o Poder? A definição de Foucault parece bem sim­
materialidade e suas forças. (FOUCAULT, 1977, p. 28-29) ples: o poder é uma relação de forças, ou melhor, toda relação
de forças é uma “relação de poder”. Compreendamos primei­
O que Foucault chama de poder, ou de m icrofísica do po­ ramente que o poder não é uma forma, por exemplo, a
der, é o conjunto de relações que trabalham de baixo ou por forma-Estado; e que a relação de poder não se estabelece
dentro de uma m atéria form ada, seja ela um a instituição, ou o entre duas formas, como o saber. Em segundo lugar, a força

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não está nunca no singular, ela tem como característica es­ estratégia de poder. A esse diagrama, a essa estratégia ele dará o
sencial estar em relação com outras forças, de forma que toda nome de disciplina, encontrando então o que veio a ser conhecido
força já é relação, isto é, poder: a força não tein objeto ou
como “sociedade disciplinar”. Todavia, em nossa discussão, não
sujeito a não ser a força. (DELEUZE, 1988 b, p. 78)
seguirem os por esse caminho, pois estamos tentando pensar as
No entanto precisam os entender a relação de forças não relações de poder não como o que determinou um período históri­
apenas de um a forma quantitativa onde velores em relação se co, e sim a sua operação constituinte de criação de mundos. Talvez
somariam ou se subtrairiam um do outro. É importante entender para tal operação nem devêssemos falar em poder e sim em potên­
que essas forças ao se colocarem em relação também geram uma cia - ou em poder constituinte, como o quer Negri (2002) - desde
qualidade, fazem saltar qualidades que são as qualidades do en­ que entendam os p o tência não com o possibilidades ou como
contro entre essas forças. Qualidade essa que é sempre positiva, potencialidades e sim como relações de forças efetivas de criação
jam ais nula e que jam ais anulam as forças em relação, apesar de de mundos já sempre em ato. Tudo bem que, em clínica, será toda­
redireciona-las. As forças então se dividem em forças que afe­ via necessária uma análise dos poderes constituídos, dos diagramas
tam e forças que são afetadas. Deleuze chamará de espontaneidade que compõem as formas que nos chegam cristalizadas em quem
por um lado, e receptividade por outro. acompanhamos, porém se tal analise é feita é somente para que
esse poder se faça novamcnle constituinte, para que se resgate a
(...) é cada força que tem o poder de afetar (oulras) e de ser operação diagramatizante das forças, a operação de elaboração de
afetada (por outras, novamente), de tal forma que cada força novas estratégias.
implica relações de poder; e todo o campo de forças reparte
as forças em função dessas relações e de suas variações. Es­ Diante dessa visão podemos dizer que, se existe um mundo
pontaneidade e receptividade adquirem agora um novo de onde falamos e vemos e do qual falamos e vemos é porque o
sentido - afetar, ser afetado. poder, com suas matérias não-formadas e suas funções não-for-
O poder de ser afetado é como uma matéria da força, e o malizadas, é capaz de se moldar em formas e funções formalizadas.
poder de afetar é como uma função da força. Só que se trata A microfísica do poder gera uma física do saber. O invisível do
de uma pura função, isto é, uma função não-formalizada, to­ poder se torna visibilidade do saber, o não enunciável do poder se
mada independentemente das formas concretas em que ela se torna enunciável no saber. Por um lado, cegueira e mudez do po­
encarna, dos objetos que satisfaz e dos meios que emprega der, por outro, visão e fala do saber. Diria Nietzsche: “O espaço só
(...) E trata-se de uma pura matéria, não-formada, tomada surgiu com a suposição do espaço vazio. Este não existe. Tudo é
independentemente das substancias formadas, dos seres ou força. Não podemos imaginar o movido e o movente juntos, mas
dos objetos qualificados dos quais ela entrará (DELEUZE, é o que constitui a matéria e o espaço.” (NIETZSCHE, 2005, p.
1988 b, p. 79-80) 121 )

Agora precisamos também entender as noções de estratégias Tudo ainda parece um pouco distante se pensarmos o poder
ou de diagrama do poder. Pois se as forças são sempre forças plás­ independente do saber ou o saber como mero representante do
ticas em relação, não significa que elas se relacionam de qualquer poder. O que temos é um complexo saber-poder que já não pode
m aneira e a qualquer momento ao sabor do acaso. Foucault em ser pensado separado, entretanto os termos jamais podem também
suas analises microfísicas de alguns seguimentos da história, nos ser identificados um ao outro. São duas dim ensões coexistentes,
revela uma certa maneira pela qual essas forças se põem a funci­ instantâneas uma à outra. Sua relação se dá em uma pura imanência.
onar. Essa certa maneira de se por em funcionamento que será o É como no sentido que Deleuze dá a afirmação em Nietzsche
diagrama ou a estratégia. Enlao, por exemplo, o que Foucault en­ (DELEUZE, 1976). A afirmação é sempre dupla: se há uma afir­
contra em sua m icrofísica da modernidade é um diagrama, uma mação do devir que é pura intensidade, há também uma afirmação

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do ser que se extraí do devir: pura extensividade. Um não sub­
siste sem o outro. Ou melhor, sem o ser que se extrai do devir o PARTÍCULAS s im p l e s , a b s t r a t as
mundo se dissolveria em uma pura evanescência, em uma pura OU VIRTUAIS - AS PEQUENAS
loucura. O ser é forma que se extrai das forças do devir, o ser é o
PERCEPÇÕES NA CLÍNICA
que substantiva e adjetiva o mundo, é a dimensão da verdade ou
da sedimentação. Por outro lado, o ser sem o devir, não poderia
se diferir no sentido forte do termo, a não ser que a diferença
fosse entendida como uma simples mudança de atributos, ou seja, Devemos pensar que um atributo não tem somente uma quan­
uma diferença mitigada. O devir então é da ordem das transfor­ tidade intensiva, mas uma qualidade extensiva infinita. É
mações, do acaso do encontro de forças, do que dá movimento es/a qualidade extensiva que é atualmente dividida em uma
ao ser. isso é p ara nós o po d er, rela çõ e s p lá s tic a s que se infinidade de partes extensivas. Estas partes são partes
diagram atizam dando consistência a uma forma. Dupla afirm a­ extrínsecas, que atuam de fora umas sobre as outras e dis-
ção nesse sentido, devir e ser, poder e saber, forças e verdades, tinguindo-se de fora. Todas em conjunto e sob todas as suas
intensidade e extensividade. “Ao devir impor o caráter do ser - relações, formam um universo infinitamente movente,
essa é a máxima vontade de p o d er... que tudo retorna é a mais correspondendo à onipotência de Deus. Mas sob tal ou tal
extrema aproximação de uni mundo do devir em relação ao do relação determinada, formam conjuntos infinitos maiores
ou menores, que correspondem a tal ou tal grau de potên­
ser: ápice da contemplação.” (NIETZSCHE, 2002, p. 94)
cia, quer dizer, a tal ou tal essência dc modo. Vão sempre
Entretanto há ainda um terceiro m om ento no pensam ento por infinidades: uma infinidade de partes corresponde sem­
de Foucault que diz respeito a uma nova forma da força se rela­ pre a um grau de potência, por pequeno que este seja; o
cionar. Nas relações de poder o que as forças fazem é interferir conjunto do universo corresponde a Potência que compre­
na ação de outras forças, porém agora, na subjetivação a força se ende todos os graus.23
dobra sobre si mesma, escapando assim das relações de poder, Gilles Deleuze - Spinosa y el problema de Ia expresión
ou m elhor, transform ando o poder que é poder de afetar outra
força em poder de afetar a si mesma. Todavia não desenvolvere­
Na sessão anterior falávamos de relações de forças enquan­
m os essa id éia de su b je tiv a ç ã o n e sse m o m en to , pois to relações de poder. Estendíamos isso à clínica para entendermos
consagraremos a ela uma seção interira quando formos falar da as relações de poder como a potência constituinte de novos mun­
política da amizade. Por hora queremos continuar nessa dinâmi­ dos e de novos modos de vida. Porém anteriormente, na sessão
ca das relações de forças, porém fazendo v ariar a inflexão. sobre a abertura intensiva, falávamos dessa instância como dis­
A bordarem os agora essa dinâm ica através de conceitos tanto solução do tempo cronológico e do espaço métrico e começamos
espinozistas quanto leibnizianos. a falar das situações óticas, sonoras, táteis... puras como efeitos
c lín ic o s d essa d isso lu ç ão . C ham ávam os essas situ a ç õ es dc
perceptos. Agora irem os explorar melhor as relações que ope­
ram na abertura do espaço e do tempo. Um universo infinitamente
m ovente, um caos dinâmico.
O que se passa nessa abertura intensiva como clínica-aconte­
cimento, são virtualidades. São partículas simples ou abstratas que

23 Esse fragmento de texto foi retirado de uma edição em espanhol. Ao longo da


dissertação manteremos os textos em português, assumindo a responsabilidade
das traduções.

89
não possuem nem formas nem funções antes de se porem em rela­
ção, partículas que se caracterizam justamente pelas relações que indefinidamente divisíveis. São as últimas partes infinita­
estabelecem. São partículas que só se movem por iníinidades, em mente pequenas de um infinito atual, estendido num mesmo
grupos, em bandos, em multiplicidades. Na realidade são partícu­ plano, de consistência ou de composição. Elas não se defi­
las às quais só podem os nos referir através das relações que nem pelo número, porque andam sempre por infinidades.
estabelecem umas com as outras. Partículas que carregam em si Mas, segundo o grau de velocidade ou a relação de movi­
apenas graus de potência, que se revelam em um poder de afetar mento e de repouso no qual entram (...) (DELEUZE e
umas às outras ou de serem afetadas umas pelas outras. Reencon­ GUATTARI, 1997, p. 39)
tramos assim aquelas partículas que habitavam o caos das quais
falávamos no início do trabalho. Essa figura de caos que estamos Esses elementos abstratos ou corpos simples, o que Deleuze
a explorar é desta form a um caos dinâm ico, pois habitado por e Guattari (1976, 1995, 1995 b, 1996, 1997 e 1997 b) chamam
infinitas partículas que se caracterizam por serem infinitamente de intensidades, se com põem em velocidades diferentes para
pequenas e se movimentando em velocidade também infinita. form ar indivíduos ou corpos com postos, que por sua vez, en­
tram em relações de c o m p o sição /d eco m p o sição com outros
Essas virtualidades podem ser entendidas como corpos sim ­
corpos compostos. Nas palavras de Espinoza:
ples, aos moldes de Espinoza no livro II da Ética (2002). Nesse
texto o autor enfatiza justamente as relações entre essas partícu­ Quando alguns corpos da mesma grandeza ou de grandeza
las, que são chamadas de corpos. Encontramos no livro da Ética diferente sofrem da parte de outros corpos uma pressão que
as seguintes definições: “todos os corpos m ovem -se ou estão
os mantém aplicados uns sobre os outros, ou, se se movem
parados” e que “cada corpo se move, ora mais lentamente ora
com o mesmo grau ou graus diferentes de velocidade, faz
m ais depressa” e em seguida acrescenta, “os corpos se distin­
guem uns dos outros em relação ao movimento e ao repouso, à com que se comunique uns aos outros o seu movimento, se­
v e lo c id a d e e à len tid ã o e não em re la ç ã o à s u b s tâ n c ia ” gundo certa relação, dizemos que esses corpos são unidos
(ESPINOZA 2002, p. 145-146). Ou seja, é a velocidade e a len­ entre si e que todos compõem conjuntamente um mesmo cor­
tidão, o m ovim ento e o repouso que darão form a aos corpos. po, isto é, um indivíduo que se distingue dos outros mediante
Isto quer dizer que a organização das formas é um salto para fora essa união de corpos (ESPINOZA, 2002, p 148)
do caos, salto esse que corresponde a uma desaceleração desses
E nessa com posição de corpos, que se m ovim entam em
corpos que antes, com suas velocidades infinitas, percorriam todo
conformidade de velocidade uns com os outros, que vemos nas­
o universo na fração de um instante. Desaceleração que permite
cer as form as do m undo. C ada form a é com posta por uma
então que tais corpos entrem em relação uns com os outros, po­
infinidade de partículas simples cm uma relação convergente de
rém agora em um regime de velocidade que lhes confere alguma
velocidade ou lentidão, de movimento ou de repouso. E duram
duração, alguma perm anência, algum a finitude.
exatam ente enquanto essa convergência durar.
Esses corpos são elementos que participam de uma única e
Diante disso a abertura intensiva é um não-lugar, um qual­
m esm a substância constituinte que se diferencia somente pelas
quer-lugar ou um espaço qualquer onde ocorre o fissuram ento
relações que estabelece. Essa parece ser a concepção de subs­
das formas que já é um convite a outras organizações dos corpos
tância que Espinoza cria. Segundo Deleuze e Guaitari, Espinoza
simples. A abertura intensiva é a desorganização das formas cons­
engendra, com isso, uma crítica radical do conceito de substân­
tituídas que põe os corpos simples em deriva, em um novo regime
cia e é essa crítica que conduz a esses de aceleração para que outras formas daí nasçam. Um mergulho
(...) elementos que não têm mais nem forma nem função, que no plano de composição ou constituinte, onde ainda não há for­
são portanto abstratos nesse sentido, embora sejam perfeita­ mas nem funções d eterm in ad as, mas que de acordo com as
relações de movimento e repouso e de velocidade e lentidão en­
mente reais. Dislinguem-se apenas pelo movimento e o
tre esses elem entos abstratos em ergirão novam ente form as e
repouso, a lentidão e a velocidade. Não são átomos, isto é,
funções.
elementos finitos ainda dotados de forma. Tampouco são

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Outra m aneira de falar dessas partículas é explorada por
Para melhor julgar sobre as pequenas percepções que somos
Leibniz. Ele nos fala de mônadas. Percebe-se no texto sobre as incapazes de distinguir em meio à multidão delas, costumo
mônadas uma clara influencia de Espinoza. Conta a história que utilizar o exemplo do bramido do mar, que nos impressiona
Leibniz havia se encontrado com Espinoza e lido os manuscritos quando estamos na praia. Para ouvir este ruído como se cos­
da Ética, livro que Espinoza não publicara em vida por medo de tuma fazer, é necessário que ouçamos as partes que compõem
retaliações. O texto agora é a m onadologia e já no prim eiro este todo, isto é, os ruídos de cada onda, embora cada um
aforismo Leibniz define a mônada: “A M ônada, de que falamos desses pequenos ruídos só se faça ouvir no conjunto confuso
aqui, c apenas uma substância simples que entra nos compostos. de todos os outros conjugados, isto é, no próprio bramir, que
Simples, quer dizer: sem partes.” E logo em seguida, no terceiro não se ouviria se esta onda que o produz estivesse sozinha,
aforismo define o seu caráter abstrato: “Ora, onde não há partes, com eleito é necessário afirmar que somos afetados, por me­
não há extensão, nem figura, nem divisibilidade possíveis, e, nos que seja, pelo movimento dessa minúscula onda, e que
temos alguma percepção de cada um de seus ruídos, por me­
assim , as M ônadas são os verdadeiros Á tom os da Natureza, e,
nores que sejam; se assim não fosse, não teríamos a percepção
em uma palavra, os E lem entos das c o isa s” (LEIB N IZ, 1983, dc cem mil ondas, pois cem mil ondas nunca poderiam pro­
p. 105) duzir alguma coisa. (LIEBNIZ, 1980, p. 12)
Em um outro texto Leibniz chama as mônadas de pequenas
percepções. Essas pequenas percepções são, segundo o autor, o E em seguida apresenta outro exemplo, só que agora relati­
vo ao sono:
que constituem as percepções assim como as conhecemos. Nos­
sos esquem as de percepção não passariam de um acum ulo de
Jamais dormimos tão profundamente, que não tenhamos al­
m icro percepções ou de m ônadas, acum ulo que dá ao m undo
gum sentido Iraco ou conluso; e jamais seriamos despertados
clareza e visibilidade. Nos fala Leibniz:
pelo maior ruído do mundo, se não tivéssemos alguma per­
... existe uma série de indícios que nos autorizam a crei que cepção dc seu início, que é pequeno, da mesma forma como
existe a todo momento uma infinidade de percepções em nós, jamais romperíamos uma corda com a maior força do mundo,
porém sem apercepção e sem retlexão: mudanças na própria se ela não começasse a ser esticada um pouco por esforços
alma, das quais não nos apercebemos, pelo fato de as impres­ iniciais menores, ainda que essa pequena distensão da corda
sões serem ou muito insignificantes e em numero muito elevado, não apareça. (LEIBNIZ, 1980, p. 12)
ou muito unidas, de sorte que não apresentam isoladamente
nada de suficientemente distintivo; porém, associadas a ou­ O autor continua a sua análise, no entanto desta vez intro­
tras, não deixam de produzir o seu efeito e de fazer-se sentir ao duzindo uma pequena variação. A s pequenas percepções são
menos confusamente. (LEIBNIZ, 1980, p. 11-12) agora chamadas de percepções insensíveis. Ele nos fala das in­
quietações que essas percepções insensíveis causam e como essa
É importante entender que Leibniz fala das pequenas per­ inquietação fervilhante pode ser entendida como uma m áquina
cepções não como percepções de nossa consciência e sim como de movimento do vivo:
percepção que, do ponto de v ista da co n sciên cia, aparecem
com o difusas, confusas, frouxas ou abstratas. “( ...) uma abs­ (...) são essas pequenas percepções que nos determinam em
tração não é um erro, desde que se tenha consciência de que muitas ocasiões sem que pensemos, e que enganam o homem
aquilo que se esconde não deixa de existir por isso.” (LEIBNIZ, vulgar pela aparência de uma indiferença de equilíbrio (...)
1980, p. 14) Porém é interessante notar que são justam ente es­ as pequenas percepções insensíveis produzem em nós essa
sas p e q u e n a s p e rc e p ç õ e s que irã o c o m p o r e n tre si inquietação, (...) inquietação que constitui muitas vezes o
agrupam entos, asso ciaçõ es, p arid ad es para que só assim as nosso desejo e o nosso prazer, dando a estes, por assim dizer,
percepções claras e distintas que a consciência é capaz de per­
um sal picante. (LEIBNIZ, 1980, p. 13)
ceber possam ser produzidas.
Leibniz nos dá um exemplo bastante esclarecedor: Estamos diante de uma microfísica, no sentido que essa aná­
lise trabalha com grandezas infinitesim ais. O interessante é que

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nesse momento Leibniz produz um discurso que vai de encontro dem ser apreendidos nesta dimensão de pequenas percep­
ao que entendem os com o clínica: tom ar essas “ inquietações” , ções e é aí que eles produzem efeitos. Analista e analisando
esse fervilhar das pequenas percepções, como o “sal picante” são afetados simultaneamente, embora ocupem lugares dife­
que constitui nossos desejos e prazeres. Sabendo assim compor renciados. (REIS, 2003, p. 201)
com a potência dessas inquietações, m esm o que a clareza não
seja o determ inante, pois segundo L eibniz “tudo o que pode­ Reis retoma aqui as pequenas percepções. E mais ainda, situa
m os, com re sp e ito às g ra n d e z a s in fin ita s , é c o n h e c e -la s tais percepções como justamente o que deve ser acolhido através
confusam ente, e saber ao m enos confusam ente que elas ex is­ de uma “abertura às forças presentes no mundo”. Ao clínico res­
tem ” (LEIBNIZ, 1980, p. 15). tam ações que em verdade são apenas respostas aos efeitos de tais
virtualidades. Porém essas respostas não podem consistir em sim­
Contudo, se trouxem os essas pequenas partículas para dis­
ples reações ao curso das forças, ao acaso. É necessário que se
cussão é pelo fato de entende-las como a matéria da clínica. Mais
extraia das situações em que se encontram tais virtualidades, a
ainda: através desses conceitos colocam os um problema para o
força ou as dobras para recolocar os questionamentos. Assim tais
próprio lugar do clínico, pois, diante de uma m atéria abstrata
reações podem devir ativas, e afirmar a necessidade que se faz
como tais partículas como fica então o clínico, o acompanhante?
saltar do acaso.
Não era na interação com tais partículas que situávamos a clínica
quando a entendíam os como acontecimento? E agora, como en­ A com posição das pequenas percepções pode ser entendi­
te n d e r a fig u ra do a c o m p a n h a n te , o b rig a d o a lid a r com da como uma função estética de criação de mundos e de novas
m icro-percepções, com percepções insensíveis? formas de senti-los. Assim podemos atingir uma dimensão esté­
tica da própria clínica. Pois é próprio da clínica buscar a recriação
Cabe desta forma ao clínico acolher-acom panhar o desdo­
da diversidade dc m undos. A presentar a quem acom panham os
brar da criação que surge do encontro de tais partículas, seus
mundos outros que possam desestabilizar seus mundos constitu­
efeitos. Para isso o corpo de quem acompanha precisa estar aber­
ídos e assim retomar sua própria potência dc recria-los. Dimensão
to, precisa ser permeável a essas virtualidades que a lodo o tempo
estética da clínica que lida com essas pequenas percepções. Essa
o atravessam. E, se como disse Leibniz essas partículas só po­
função estética se encontra, por exem plo, nos estudos que Gil
dem ser conhecidas confusamente, talvez seja pelo fato de Leibniz
(1986) faz de Fernando Pessoa.
só conceber o conhecim ento como clareza da consciência. E n­
tretan to em clín ica m uita coisa se dá por outras form as de Gil (1986) através dos escritos de Fernando Pessoa enfatiza
conhecim ento, talvez intuitivo, talvez pático, quem sabe possa­ a função estética de criação dc mundos e de formas dc senti-los
mos dizer mesmo inconsciente ou impercebidas. Esse parece ser através da com posição dessas pequenas percepções. Segundo o
o convite feito por Reis (2004) a quem por ventura ocupe o lugar autor, Fernando Pessoa elabora ativamente um sistema com ple­
de acom panhante: xo de com preensão e experim entação onde ele próprio se põe
em questão enquanto identidade fixa. As experim entações de
O que estou propondo, não é uma mudança de atitude, no Fernando Pessoa e seus heterônimos, se dão na direção de uma
sentido de uma técnica mais pragmática ou mais ativa. Mas, abertura as infinitas formas de sentir, já que sentir se torna “ ...
somente que o analista busque, em seu trabalho, a intensifi­ concentrar a atenção sobre o infinitamente pequeno, onde flutu­
cação do corpo e a abertura às forças presentes no mundo,
am as se n sa ç õ e s das co isas m ín im a s.” (G IL , 1997, p. 29).
deixando-se guiar pelo tato, ou seja, pela capacidade de sen­
Fernando Pessoa se apresenta então como um analista, mais pre­
tir com o paciente. Neste sentido, o analista pode devir
cisamente um “analisador de sensações”, ao se propor dividir os
sensível aos estímulos como o corpo auto-erótico do bebê é
grandes sentim entos em sensações das coisas m ínimas. Porém
sensível às primeiras percepções diferenciais. Os sintomas
para que tal análise ocorra, ele não pode estagnar em uma iden­
transitórios, as atmosferas, as mínimas manifestações, só po­

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tidade, ele mesmo enquanto analista-experim entador, há de vi­
ções essas que, m esm o confusam ente, deixam revelar figuras
ver o desassossego de estar em constante metamorfose: “O estado
estéticas. Figuras que, 11a clínica, são levadas à dimensão de no­
de estagnação representa a paragem do desassossego, a im obili­
vas form as de vida. Função estética da clínica que investe na
dade da ausência de vida. Se o desassossego é o movimento que
produção da vida como obra de arte.
prepara e conduz ao devir-outro, a estagnação, deve negar toda
a possibilidade de m etam orfose.” (GIL, 1997, p. 25) Nosso personagem tem a impressão de que está ficando cada
O desassossego, em verdade, retira da cena os contornos vez mais claro em que consiste 0 seu lugar: é uma espécie
dc nomadismo permanente 0 que ele faz —não entre espaços
que perm item delim itar até que ponto vai uma coisa e começa
constituídos de teorias e práticas clínicas como pensava no
outra, abrindo e espaço para o seu plano intensivo, para a m eta­
começo, mas entre dobras da clínica que se produzem ao
morfose. Essa ausência de contornos faz das sensações verdadeiras
sabor do acaso, incluindo marcas de dobras anteriores, apro­
atm osferas. Sensações que sem contorno se alastram , criando
priadas por novas relações de força. E mais, nomadizar entre
assim um clima. Todavia tudo isso é sentido e esse clima perpas­
as dobras de teorias e práticas que vão se desenhando à
sa também por quem assume o lugar do analista, do acompanhante medida que ele embarca nas linhas de tempo que se apre­
- que agora se torna acompanhante de micro sensações. sentam é condição para que obtenha efeitos clínicos em seu
O espaço da sensação é o espaço do corpo tornado idêntico trabalho. Trata-se de um nomadismo temporal; uma viagem
ao espaço da chuva: “Chove tanto, tanto. A minha alma é imóvel. (ROLNIK, 1997, p. 92-93)
húmida de ouvi-lo. Tanto . ..a minha carne é líquida e aquosa
em torno à minha sensação dela.” Espaço do corpo ou atmos­
fera são a mesma coisa, reagindo à emoção, dilatando-se,
retraindo-se, quebrando-se, amolecendo: eminentemente plás­
tico, o espaço toma todas as formas da emoção; criando a
indefinição dos contornos e abrindo a sensação a conexões
sensoriais múltiplas, permite o sonho. Assim, ao introduzir a
maior das mobilidades 110 próprio seio da sensibilidade,
Fernando Pessoa pode realizar todo o tipo de experiências de
sensações, atravessando todos os conjuntos sensoriais possí­
veis. (GIL, 1997, p. 28)

Já Rolnik (1997) falando do seu acompanhante terapêutico


imaginário postula sobre a sua função: “Seu trabalho depende,
antes de mais nada, da conquista em sua própria subjetividade
de um a disponibilidade para as reverberações do fora e suas
d e s e s ta b iliz a d o ra s to rm e n ta s. U m a d isp o n ib ilid a d e para
desencruar e acolher aquilo que excede a si mesmo, que excede
os territórios conhecidos e suas perspectivas cartografias . ..”
(ROLNIK, 1997, p. 91)
Abertura então do acompanhante a essas pequenas percep­
ções que p assam a resso ar cm seu corpo com o m até ria de
intervenção clínica, criando a atm osfera das mudanças. Percep­

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