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em percurso da psicologia geral à aplicada*
Achilles Delari Junior**
“Na futura sociedade, a psicologia será em realidade a ciência
do novo homem. Sem ela a perspectiva do marxismo e da
história da ciência seria incompleta. Entretanto, esta ciência
do novo homem será também psicologia. Por isso hoje man‐
temos suas rédeas em nossas mãos. Não há necessidade de
dizer que esta psicologia se parecerá tão pouco com a atual,
como, segundo as palavras de Espinosa, a constelação do Cão
se parece com o cachorro, animal ladrador (Ética, teorema
17, Escólio)”
— Lev Vigotski (1927/1991, p. 406) ***
Palavras Iniciais
Tem sido muito importante no Brasil a contribui‐
ção da obra de Lev Vigotski à psicologia da educa‐
ção e às práticas pedagógicas de modo geral. As‐
sim, predominantemente, sua obra tem sido apre‐
sentada e discutida no contexto de cursos de for‐
mação de educadores, tanto quanto nas discipli‐
nas da formação do psicólogo ligadas aos temas
do desenvolvimento humano e das relações de
L. S. Vigotski (1896‐1934): criador da teoria histórico‐cultural
ensino‐aprendizagem formais ou não formais. Isso
* **
não é despropositado. A educação tem um lugar
SUMÁRIO fundamental na proposta de Vigotski para uma
“nova psicologia”. Segundo ele “a educação é a
Palavras iniciais.............................................................01
primeira palavra que [a nova psicologia] mencio‐
1 Princípios éticos em psicologia histórico‐cultural.....03
1.1 Contextualização e critérios axiológicos (...) ...........04 na” (VIGOTSKI, 1926/1991, p. 144). Isso implica
1.2 Contradições enfrentadas pelo psicólogo (...).........08 mencionar a palavra “educação” numa acepção
1.3 O método construtivo e a psicologia (...).................10 antropológica, isto é, conceber que só o ser hu‐
2 Princípios de psicologia geral numa abordagem histó‐ mano é capaz de educar‐se, de aprender com a
rico‐cultural...................................................................12
2.1 Unidade psicofísica..................................................12 experiência histórica das gerações anteriores e
2.2 Determinação da consciência pela existência (...) ..13 assim constituir a sua própria vivência como ser
2.3 Consciência: psiquismo propriamente humano .....17 singular. Entende‐se que o ato de educarmo‐nos,
2.4 Consciência compreendida mediante unidades......20 na família, na escola, nas demais instituições em
2.5 Psiquismo mediante sua gênese histórica...............25
que se estabeleçam nossas relações com outras
3 Orientações gerais à psicologia aplicada numa aborda‐
gem histórico‐cultural ..................................................30 pessoas, seja essencial na constituição das fun‐
3.1 Princípios éticos em sua dimensão prática..............31 ções psíquicas propriamente humanas, de nossa
3.2 Princípios de psicologia geral em sua dimensão práti‐
ca...................................................................................32
Para continuar o diálogo ..............................................37
Referências ...................................................................38
***
Todas as citações para títulos que na bibliografia consta‐
rem em língua estrangeira são de minha autoria exceto Vi‐
gotski (1929/1989) e Puzirei (1989a) – cujas traduções do
inglês são da professora Enid Abreu Dobránszki. A marcação
*
Para referência: DELARI JR., A. Vigotski e a prática do psicó‐ de duas datas, e.g. “1927/1991”, uma para a primeira publi‐
logo: em percurso da psicologia geral à aplicada. Mimeo. cação ou término da redação da obra e outra para a publica‐
Umuarama, 2009. 40 p. (2ª versão) ção que utilizei, será adotada apenas para as obras de Vigots‐
**
Psicólogo pela UFPR, mestre em Educação pela Unicamp. E‐ ki, com fins didáticos de contextualização histórica, por se
mail: delari@uol.com.br. tratar da referência principal do texto.
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
consciência em especial e nossa personalidade tempo, a necessidade de compreender o específi‐
como um todo. co de sua realização para cada ser humano con‐
creto. Por outro lado, a nossa vivência mais espe‐
Contudo, neste texto pretendo relembrar que cífica, mais singular, mais situada e contextualiza‐
Vigotski não produziu exclusivamente uma psico‐ da, não pode deixar de ter algo de geral, partilha‐
logia educacional ou escolar, nem sua teoria se do com nossos semelhantes. Posto que nossa
restringe a uma subdivisão das teorias da aprendi‐ própria personalidade não tem como realizar‐se e
zagem. Ao contrário, trata‐se desde sua origem, e desenvolver‐se senão em relação com outras pes‐
principalmente, de uma contribuição geral à psico‐ soas, senão mediante processos sociais de signifi‐
logia concreta do homem (ver VIGOTSKI, 1929/ cação, senão no fluxo de uma gênese histórica.
1989, 1929/2000). A qual pode nos permitir pen‐
sar a atuação do psicólogo em diferentes contex‐ Esta, por sua vez, realiza‐se como um “tornarmo‐
tos práticos, como a promoção de saúde mental: nos” humanos, que só acontece em relação com
nas práticas sociais comunitárias, nos sistemas os dois primeiros critérios, mas não pode, para
públicos de saúde coletiva, nas relações de traba‐ nós, por alguma contingência ou arranjo conjuntu‐
lho, entre outros... Tanto quanto em qualquer ral, simplesmente “deixar de acontecer”, da noite
situação em que se efetivem simultaneamente: (a) para o dia, exceto no caso mesmo de a própria
relações simbolicamente mediadas entre as pes‐ humanidade deixar de existir. Sendo assim, a a‐
soas, (b) constituição social de sentidos para tais bordagem histórico‐cultural não se apresenta aqui
relações e (c) significação para nossa própria vi‐ como visão “relativista” na qual o homem poderia
vência no curso desse processo. Trabalharemos ser social ou não, simbólico ou não, histórico ou
aqui com a concepção de que um psicólogo orien‐ não, dependendo da situação... A caracterização
tado pela abordagem histórico‐cultural, buscando do humano como ser social, simbólico e histórico,
compreender o ser humano na concretude de compõe um conceito pertinente à constituição
suas relações sociais, a um só tempo: situa‐o na ontológica mais profunda e elevada da condição
especificidade delas (na família, no namoro, na humana, no interior da abordagem teórica à qual
escola, no trabalho, na vida comunitária, na luta estamos nos referindo. Ao mesmo tempo, essa
por direitos civis, no lazer, na atividade lúdica, na generalidade concretiza‐se em sua dialética com a
criação artística, noutras instituições, etc.); e arti‐ especificidade da condição singular de cada socie‐
cula tais contextos específicos no conjunto sistê‐ dade, de cada tempo e espaço históricos, de cada
mico, inter‐funcional, dinâmico e contraditório da classe e grupo sociais, de cada ser humano em
personalidade humana, no fluxo de seu desenvol‐ particular. Deduz‐se assim que não se trata de
vimento histórico. uma abordagem que só seria aplicada a um único
contexto específico de relações sociais, seja ele a
Por um lado, o que há de geral no psiquismo hu‐ escola, o mundo do trabalho, as organizações
mano solicita contextualização. Se todo o ser hu‐ comunitárias, as práticas terapêuticas e assim por
mano é um constante tornar‐se, aquilo em que diante. A psicologia histórico‐cultural busca com‐
nos tornamos demanda situações reais para a preender o ser humano, e assim ao seu contexto
realização do nosso devir. Se todo o ser humano é caberá articular sua condição genérica e vice ver‐
um animal social, o nosso modo de sermos sociais sa.
implica relações com outras pessoas que não nos
estão pré‐determinadas e só acontecem no pró‐ Partindo desse princípio, dirigindo‐me, nesse
prio ato, por vezes tenso, de se estabelecerem e momento, às componentes do grupo de estudos
de se refazerem. Se todo o ser humano é um ser orientado em “Teoria histórico‐cultural (sócio‐
simbólico, o nosso próprio modo de simbolizar as histórica) na prática do psicólogo”, buscarei orga‐
coisas, os outros e a nós mesmos está relacionado nizar uma breve introdução à contribuição de
à linguagem que nossa sociedade e nossos grupos Vigotski, principal propositor da teoria histórico‐
sociais criam e recriam para codificar sua experi‐ cultural 1 em psicologia. Neste texto introdutório,
ência histórica e dar‐lhe/impedir‐lhe acesso às
novas gerações. Assim o devir, a sociabilidade e a
significação, como características gerais da vida 1
propriamente humana colocam‐nos, ao mesmo Segundo Valsiner e Van der Veer (1996) “teoria histórico‐
cultural” é um termo cunhado por Vigotski e Luria para de‐
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
para fins de exposição, abordarei: (1) princípios que me pergunte por onde seria melhor começar
éticos em psicologia histórico‐cultural; (2) princí‐ a ler Vigotski, não pode deixar de ser a de que se
pios de psicologia geral numa abordagem históri‐ comece pelo próprio autor. Muitas vezes, disputas
co‐cultural; e (3) orientações gerais à psicologia se erguem ao redor de qual seria a melhor inter‐
aplicada numa abordagem histórico‐cultural. Digo pretação ou o melhor comentário a um autor clás‐
“para fins de exposição”, pois evidentemente a sico. Mas antes de avaliarmos os autores clássicos
ética, a teoria e a prática são aspectos simultâneos a partir de quem os lê, melhor seria avaliar tais
da realidade humana na qual se dá a construção leitores a partir dos primeiros. Nem sempre isso
tanto de uma obra como a de Vigotski quanto a de acontece na prática – algum grau de leitura intro‐
nossa aprendizagem acadêmica e atuação profis‐ dutória sempre é necessário. Mas saibamos ape‐
sional. Pese‐se que nossa consciência possa, para nas que este texto é um posicionamento de um
fins de sistematização e/ou organização, focar‐se homem concreto com seus limites e potencialida‐
mais num aspecto do que em outro, os demais des, que pode e deve ser questionado em seguida,
nunca deixarão de estar presentes, de algum mo‐ sob o critério da crítica e da leitura do próprio
do ou em algum grau de generalidade. Nosso mo‐ clássico a cujo estudo nos dedicaremos. De toda
do prático de viver e relacionarmo‐nos engendra forma, as escolhas para as leituras a serem reali‐
valores éticos. Nossos valores orientam práticas e zadas não são neutras, e se orientam pela visão de
opções por determinados modos de teorizar o mundo e pelas características de personalidade
real. Estes, por sua vez, (re)organizam ainda nos‐ social de quem as indica. Tais aspectos serão ex‐
sas formas de agir e viver. Agindo e vivendo reava‐ plicitados ao longo deste texto, justamente como
liamos nossos conceitos, destituímos e/ou conso‐ convite ao diálogo e à composição coletiva.
lidamos valores.
Antes de seguir, cabe ainda dizer que minha forma 1 Princípios éticos em psicologia histórico‐
de articular os conceitos aqui, tanto mais de modo cultural
tão abreviado e introdutório, é uma produção
minha com base nas leituras que venho fazendo “O método, ou seja, o caminho seguido, é visto como
desde o final dos anos oitenta, articuladas às ex‐ um meio de cognição: mas o método é determinado em
periências que tive, às vivências que nelas se cons‐ todos os seus pontos pelo objetivo a que conduz”
tituíram e às que hoje também me perpassam.
Assim como em psicanálise, em behaviorismo, ou — Vigotski (1927/1996, p. 346)
qualquer abordagem em psicologia e demais ciên‐
cias humanas, não há em teoria histórico‐cultural Quando falo aqui de ética não me refiro aos pa‐
apenas uma leitura quanto ao significado dos clás‐ drões de conduta que se formalizam em códigos
sicos. Minha orientação geral a qualquer pessoa de ética profissional, ou se normatizam em proce‐
dimentos solicitados por comitês de ética em pes‐
quisa com seres humanos ou animais. Estes são
importantes e necessários, mas refiro‐me antes ao
nominar sua concepção de desenvolvimento humano, traba‐ campo dos princípios e valores mais gerais que
lhada, sobretudo, entre 1928 e 1931. Embora não comporte,
permitem inclusive formular tais códigos e orien‐
portanto, toda a obra de Vigotski, serve para designá‐la como
uma metonímia da parte pelo todo. O termo “teoria sócio‐ tar as normas de comitês como esses. Valores sem
histórica da atividade” foi cunhado mais tarde por Leontiev. os quais eles se tornam destituídos de sentido ou
No Brasil existe uma diversidade de denominações, as quais exercidos apenas pelo motivo de fugir‐se à puni‐
por sua vez implicam diferenças teóricas e metodológicas na ção. Fazer ou deixar de fazer algo apenas pelo
interpretação do autor clássico como: sócio‐interacionismo,
sócio‐construtivismo, abordagem sócio‐cultural, abordagem critério de não ser punido em caso contrário é
sócio‐histórico‐cultural, etc. Não nos cabe entrar no mérito próprio do que poderíamos chamar de uma “ética
das disputas por qual denominação seria mais correta ou fraca”. Uma ética substancial, sobretudo, diz res‐
mais fiel à teoria do autor, pois a diversidade de leituras faz peito à reflexão do homem sobre os valores rela‐
parte do processo social da apropriação de qualquer obra.
tivos ao caráter bom ou ruim de suas próprias
Adotarei a denominação “histórico‐cultural” por ser a que o
próprio Vigotski teria cunhado e por ser a mais usada hoje na ações em termos das conseqüências que elas ve‐
própria Rússia. Contudo, como diz Vigotski “O mais importan‐ nham a ter para nós e para nossos semelhantes.
te é o significado, e não o signo. Mude‐se o signo, preserve‐se Historicamente, diferentes doutrinas éticas se
o significado” (1924/2009, p. 41).
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
diferenciam, ademais, em termos do que definem pio de tomar o ser humano e a realização de suas
como um “bem” a ser buscado e cuja ausência potencialidades como um valor que se não for o
deve ser evitada. A ética, assim, nos diz mais de principal, também não pode deixar de ser consi‐
um “bem que se quer” do que de uma “punição derado como imprescindível e inalienável ao seu
da qual fugir”. Desse modo as éticas que tiveram projeto em psicologia. Sobretudo, cabe o desta‐
como valor e bem maior a felicidade, foram cha‐ que de que, na concepção de Vigotski, as potenci‐
madas de “eudemonistas”. As que tiveram o pra‐ alidades humanas só se realizam e se ampliam no
zer como valor e bem maior se denominaram âmbito da ação coletiva e em aliança com a alteri‐
“hedonistas”. Àquelas que viam na utilidade das dade, com os outros sociais, não sendo seu foco
ações humanas o bem e o valor maior, pôde‐se ético uma realização humana apartada daquela de
chamar de “pragmatistas”. E assim por diante 2 . nossos semelhantes, o outro não é impeditivo de
Pensemos então em qual poderia ser o valor cen‐ nossa liberdade e realização pessoal, mas uma das
tral para a perspectiva histórico‐cultural, valor que suas principais condições de possibilidade.
se constitui então como seu objetivo principal, sua
meta, sem a qual nenhum método pode ser defi‐ Pode‐se interpretar que o valor da humanidade
nido. como bem a ser preservado e cultivado, do ponto
de vista da ética presente na obra de Vigotski: (a)
1.1 Contextualização geral e critérios axiológicos 3 em primeiro lugar não se traduz como humanismo
para um humanismo crítico na abordagem históri‐ ingênuo nem liberal; e (b) em segundo lugar, con‐
co cultural. seqüentemente, demanda, frente a outras orien‐
tações axiológicas, critérios próprios, como o seu
Certamente reduzir cada doutrina ética a uma entendimento quanto à superação, à cooperação
única palavra é temerário, tanto quanto cabe e à emancipação. Com relação ao que aqui deno‐
lembrar que pode haver duas ou mais doutrinas mino “humanismo ingênuo”, lembre‐se que pro‐
sob uma só categoria geral e portadoras de traços priamente humanas não são só as denominadas
específicos bem distintos – dependendo, por e‐ “grandes realizações”, expressões maiores de
xemplo, do que se define como felicidade, tere‐ criação artística, solidariedade ou luta pela vida e
mos diferentes “eudemonismos”, e assim por o bem comum. Não basta algo ser humano para
diante. Contudo, só levantamos estes exemplos de ser bom. Também são humanos, ausentes noutros
modo ilustrativo para articular o conceito de ética animais, muitos atos de crueldade, degradação da
com o de um “bem” que se busca, que se almeja, natureza e autodestruição da espécie. Tristes e‐
que se tem então como valor maior. Trabalharei xemplos de ganância, expropriação, intolerância,
aqui com a interpretação de que a ética da obra terrorismo, tortura, genocídio, destruição em
de Vigotski, pautada em princípios marxistas, e massa, dados ora pelo capitalismo fascista ou
como síntese ainda das demais tradições filosófi‐ liberal ora até mesmo por certas orientações no
cas e culturais às quais este autor se filia (como o dito “socialismo real”, são, infelizmente, também
espinosismo ou a própria tradição judaica na qual realizações humanas. Karl Marx dissera ser sua
foi educado 4 ), pode ser adjetivada como “huma‐ frase preferida um dizer de Terêncio: “Sou homem
nista”, lato sensu. Não se trata do mesmo huma‐ e nada do que é humano eu considero alheio a
nismo cristão de Carl Rogers, ou ateu de Jean‐Paul mim”. Os males da humanidade fazem parte do
Sartre. Mas tem em comum com o deles o princí‐ que somos, reconhecermo‐nos como humanos é
ver bens e males coletivos como algo de que so‐
mos todos potencialmente capazes e, em alguma
2
Para um estudo detalhado sobre a constituição histórica de medida, até mesmo responsáveis. A ética huma‐
diferentes doutrinas éticas, ver Vasquez (1975). nista que nos importa não elevará qualquer ato
3
Por “axiologia” entendo aqui apenas “discurso sistemático humano a valor maior. Portanto, a ela cabe acres‐
sobre os valores”, sobre sua hierarquia, sua apreciação e centar critérios diferenciadores frente ao huma‐
significação. O adjetivo “axiológico” aqui é utilizado apenas
nismo ingênuo, dos quais trataremos adiante.
com a acepção de “relativo aos valores éticos” e aos juízos
que com eles se estabelecem na/para a orientação de nossa
atividade vital e de nossa relação com outras pessoas no Outro aspecto que solicita critérios para definir de
interior dela. qual humanismo se trata, é o de não confundir
4
Sobre a influência do judaísmo no pensamento de Vigotski toda ética que dá à humanidade valor central,
ver Friedgutt e Kotik‐Friedgutt (2008).
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
com uma visão “liberal” de ser humano. O libera‐ Puzirei como algo que manifesta “as finalidades e
lismo como ideologia de sustentação de uma clas‐ os valores fundamentais presentes em todo o
se social ascendente com o advento do capitalis‐ pensamento de Vigotski” (PUZIREI, 1989b, p. 16 ‐
mo, coloca o “homem no centro” (antropocen‐ grifos na fonte). Uma leitura mais rigorosa da obra
trismo), em oposição à visão hegemônica na Idade de Vigotski nos permite identificar nela uma forte
Média, da “divindade no centro” (teocentrismo). “orientação ao ‘supremo’ no homem ou, para
Mas de que “homem” se tratava? Sem nos alon‐ dizê‐lo com palavras de Dostoiévski, ao ‘homem
garmos, apenas recordemos o que diferentes au‐ no homem’, à sua organização psíquica e espiritu‐
tores críticos já vêm alertando há algum tempo. O al, desde o ponto de vista do que pode ser, em
conceito de homem do liberalismo surgido na geral, o homem e dos caminhos que existem para
Europa, com a modernidade, o advento do capita‐ este estado possível, dos caminhos que abre, em
lismo e a ascensão da burguesia, envolve um privi‐ particular, a arte e a psicologia da arte.” (PUZIREI,
légio de certo modelo masculino, branco, euro‐ 1989b, p. 16 ‐ grifos na fonte). Tal orientação da
peu, adulto, heterossexual, letrado, proprietário, abordagem histórico‐cultural ao que “podemos
entre outros traços. O que flagra que, ao tentar‐se ser”, ao que podemos alcançar de “supremo”, no
apresentar a idéia de tal ser humano constituir sentido de mais elevado, mais avançado, implica,
valor universal, ao mesmo tempo se impunha às em outras palavras, que se vê o humano tanto
mais diversificadas manifestações da vida e cultu‐ como ser apto a ir além de seus limites, quanto
ra humana um modelo derivado de interesses como o que só se realiza quando se supera. Con‐
particulares, próprios de uma classe social restrita. tudo, realizarmo‐nos como humanos, é algo que
Não sem razão, Paul‐Michel Foucault (1995; 2009) pode ocorrer ou não, em função de dadas condi‐
é sério crítico do humanismo ocidental moderno ções materiais, concretas. Uma das principais
hegemônico, entendendo que ele seja uma inven‐ condições concretas para a superação humana é a
ção social questionável tanto quanto o próprio cooperação entre as pessoas.
conceito atual de “homem”, o qual já indicaria seu
fim próximo. Ademais, o conceito liberal de ho‐ Enquanto a ideologia liberal valoriza a competição
mem é, sobretudo, focado na nossa existência como força motriz da superação humana, a tradi‐
individual e na noção de que nossa liberdade é a ção à qual Vigotski se filia discorda de que um ser
priori para cada um de nós, algo que “nasce co‐ humano só avance quando outro é sobrepujado
nosco”. Trata‐se da ideologia de que se todos so‐ ou derrotado. Se aquela visão supõe o “homem
mos naturalmente livres para vender nossa força como lobo do homem”, e o outro como alguém a
de trabalho e para prosperar com nossos empre‐ temer ou subjugar, esta supõe que até para ser‐
endimentos pessoais, o fracasso ou sucesso de mos indivíduos necessitamos a presença e os cui‐
cada um será devido exclusivamente aos seus dados de outras pessoas para conosco. Se consi‐
méritos e defeitos individuais. derarmos o simples fato da fragilidade do “filhote
humano” e o tempo que demora para poder ga‐
Se a ética humanista que se insinua na psicologia rantir por conta própria a sua sobrevivência, já
de Vigotski não se pauta no critério ingênuo do teremos noção do quanto necessitamos colabora‐
homem como ser essencialmente bom, nem no ção de alguém para virmos a ser nós mesmos e
liberal com foco na sua realização individual, quais quanto podemos nos fazer necessários para al‐
critérios acrescentar para o valor dado ao humano guém vir a ser ele próprio... Isso pode ser ilustrado
nessa abordagem, se ela ainda não advoga a na própria teoria do desenvolvimento da persona‐
“morte do homem”? Na minha compreensão, há lidade e das funções da linguagem, do signo, se‐
pelo menos três ações próprias ao ser humano às gundo Vigotski. Para ele, a função das primeiras
quais a abordagem histórico‐cultural não valoriza palavras não é, como se pensa, estritamente afe‐
só em tese, mas também busca construir através tiva, "expressar emoções", mas primordialmente
de sua prática social, às quais podemos, de modo indicativa, para "pedir ajuda". O primeiro propósi‐
conciso, nomear como: (a) superação, (b) coope‐ to da linguagem "é, antes de tudo, um pedido de
ração e (c) emancipação. A noção de superação ajuda, uma chamada de atenção e, por conseguin‐
em Vigotski, entendida como ato e necessidade de te, a primeira transposição dos limites da persona‐
superarmo‐nos, de irmos além dos nossos limites lidade, isto é, uma colaboração..." (VIGOTSKI,
atuais, é ressaltada pelo estudioso russo Andrei 1931/2000a, p. 338). Ainda assim, a necessidade
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
de atuar junto a mais alguém para avançar em conta uma cooperação mais generalizada e uma
nossos potenciais não se restringe a aprendermos superação mais elevada, cabe articular esses dois
a andar, a falar, a cuidar de nossa própria higiene, primeiros critérios para o humanismo próprio à
a ler e escrever ou a contar. Por toda vida há situ‐ abordagem histórico‐cultural a mais um terceiro e
ações em que a superação de nossos limites exige decisivo: a busca da emancipação humana. Em
a presença de outrem, mais experiente, que pro‐ outras palavras: o valor ético da conquista e ma‐
porcione mediações necessárias e a quem dirija‐ nutenção da liberdade, no seu sentido mais pro‐
mos solicitações. Se desejo aprender uma língua fundo e substancial.
estrangeira, a exercer uma profissão ou a dominar
alguma arte, devo recorrer a outros. Mas não se Dizer que o conceito de liberdade em Vigotski não
restringe a necessidade de cooperação a obter é liberal poderá confundir o leitor, mas é preciso
instrução de alguém mais experiente: também que se entenda que se trata justamente disso. O
cooperamos com nossos pares, aprendemos com conceito de liberdade é uma construção da huma‐
amigos, colegas, familiares. E ainda com as crian‐ nidade que veio sofrendo várias alterações na
ças, os mais novos, menos experientes que nós, história do ocidente, desde a antiga polis grega ao
seja por sua perspicácia, seja por lhes tentarmos ideário da Revolução Francesa e desse ao sonho
ensinar algo – momento talvez em que mais de‐ socialista, nunca plenamente realizado, ou à pro‐
vemos nos superar. posta anarquista auto‐gestionária, também pou‐
cas vezes concretizada. Desse modo, carregando
Se para nos tornarmos nós mesmos necessitamos origens histórico‐sociais diversas, os sentidos para
do outro, caberia eticamente lembrarmos que a palavra “liberdade” também seguem sendo hoje
para irmos além do que já somos, o outro também os mais variados. Desde os mais ingênuos aos
é aliado essencial. Contudo, se não somos egoístas mais críticos, dos mais idealistas aos mais concre‐
por natureza (humanismo liberal) também não tos, dos mais demagógicos aos mais francos, dos
somos altruístas por natureza (humanismo ingê‐ mais racionalistas aos mais apaixonados. Quando
nuo). A cooperação é condição inevitável para o digo que o conceito de Vigotski não é liberal, refi‐
avanço de nossos potenciais, mas isso não signifi‐ ro‐me ao liberalismo como ideologia política pró‐
ca que toda e qualquer relação social nos permita pria do conceito europeu dominante desde a as‐
ir além. De fato, poderíamos ainda acrescentar censão da burguesia como classe hegemônica.
que nem toda cooperação, sendo para o bem de Sem nos alongarmos sobre esse ponto, reitera‐se
um dado grupo, necessariamente o é para o bem o já destacado acima: o conceito liberal de liber‐
da humanidade. Fascistas podem cooperar visan‐ dade, tanto quando o de humanismo, é pautado
do a derrota da democracia, liberais podem coo‐ fundamentalmente numa concepção individualis‐
perar formando cartéis monopolistas, dizendo‐se ta de mundo. A qual, mais das vezes, é sustentada
democratas, etc. Então, nesses casos, a superação por um discurso naturalista, pelo qual as diferen‐
pode estar sendo vista não como um constante ças individuais são fruto exclusivo da herança ge‐
processo de todos e cada um desafiarem seus nético‐molecular, e os méritos das pessoas são
próprios limites e tornarem‐se melhores em al‐ tratados como dons, capacidades abstratas, com
gum aspecto de sua personalidade, profissão ou as quais foram agraciadas independentemente de
trabalho criativo, mas apenas como uma forma educação social ou desenvolvimento histórico.
obter mais benefícios pessoais ou corporativos e Supõe‐se, portanto, que um autor como Vigotski,
prevalecer‐se sobre os demais. Pode haver então cujas bases filosófico‐metodológicas estão forte‐
formas de cooperação em função da restrição do mente articuladas com uma tradição da ontologia
potencial de avanço do outro, e até mesmo em do ser social marxista, não teria um conceito libe‐
função de subjugá‐lo e destruí‐lo. O crime organi‐ ral de liberdade ou de emancipação humana. Há
zado poderia ser um exemplo dos mais comuns, e dois pontos que cabe destacar no conceito de
mesmo as guerras não deixam de ser algo seme‐ liberdade/emancipação em Vigotski: (a) trata‐se
lhante, ainda que num plano político bem distinto de uma conquista não um pressuposto; (b) é uma
– o que têm de similar é a cooperação de um cole‐ conquista que se obtém cooperando com alguém
tivo para a destruição do inimigo como um ganho e não sozinho.
e uma meta. Desse modo, se nem toda ação con‐
junta leva a um aumento de força que tenha em
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Não há necessidade aqui de optarmos pela pala‐ criança, na qual para haver um simples jogo são
vra “liberdade” em preferência à “emancipação”, necessárias regras, mas brincar não só nos pode
nem o contrário. Contudo, entenda‐se que ao ser aprazível, como também permitir‐nos ir além
falarmos em “liberdade” concebemos o processo do que está posto de imediato frente aos nossos
de permanentemente obtê‐la, e não como um olhos, avançando ao distante no tempo ou no
estado ideal que atingido faz cessar a necessidade espaço no ato da imaginação criadora. Por fim
de buscá‐lo. E por “emancipação”, entenda‐se o poderíamos, de passagem, destacar que, em Vi‐
mesmo, ainda que a terminação da palavra talvez gotski, o conceito de liberdade alia‐se ao de von‐
ajude a nos sugerir uma idéia de “ação”, portanto tade, o qual por sua vez se traduz pelos atos hu‐
“movimento”. O bebê humano é o mais depen‐ manos que envolvem uma tomada de decisão,
dente de todos os filhotes conhecidos, o que nas‐ uma escolha. Diante de duas opções o ser humano
ce menos preparado, o que demora mais tempo necessita um ato volitivo para decidir o que have‐
para atingir a forma adulta, o que precisa mais rá de obter (realizar) e o que haverá de perder
aquisições do ambiente para justamente poder (deixar de realizar). Nessa decisão, na tensão que
lidar com ele. Sendo assim, é certo que não nas‐ ela envolve, está posta nossa possibilidade de
cemos livres, nem autônomos. Portanto, todo um superação com relação aos determinantes de
desenvolvimento humano é necessário para con‐ cunho estritamente condicionados pelos estímu‐
quistar maior autonomia, liberdade de pensamen‐ los do meio. Essas ações de escolher, por sua vez,
to e de ação, ou mesmo independência afetiva. passam por um processo de desenvolvimento ao
Esse curso de desenvolvimento, na concepção de longo de nossas vidas, que é o desenvolvimento
Vigotski, vai “do social ao individual”. A ênfase é de nossa própria vontade ou “volição”.
distinta da de autores como Freud e Piaget (ver
BRUNER, 2005), para quem a criança é um ser Em seu estudo sobre o “domínio da própria con‐
individual que só progressivamente se socializa. duta”, Vigotski (1931/2000b) explora mais deta‐
Na perspectiva da abordagem histórico‐cultural, lhadamente esses aspetos. Num dado momento,
nascemos já em mundo social, e só podemos nos ele retoma Marx e Engels para destacar que “o
manter vivos se em contato com outras pessoas. livre arbítrio (...) não significa mais do que a capa‐
Assim, pela mediação delas, processualmente, cidade de tomar decisões com conhecimento do
vamos nos diferenciando e nos “subjetivando”, assunto” (apud VIGOTSKI, 1931/2000b, p. 300).
tomando consciência de nossa própria existência, Desse modo, as decisões mais livres não seriam
constituindo nosso mundo privado e assumindo aquelas que tão somente se toma com base no
um lugar específico no mundo público no qual já impulso, no fazer “como eu quero” ou “tudo que
estávamos situados desde sempre. quero”, como dito no senso comum – pelo qual a
ideologia liberal perpassa. Até porque uma ação
Desse modo, não há qualquer liberdade a ser tão somente “por querer”, sem que se intuam os
constituída que não passe pela relação com os motivos pelos quais se deseja, pode não ser tão
outros. As próprias regras que, desde pequenos, livre quanto se imagine. Nota‐se que o conceito
aprendemos com os adultos e com outras crian‐ de liberdade aliado ao processo de tomada de
ças, são condição de possibilidade para o alcance consciência crítica, isto é, de percepção da dinâ‐
de maior autonomia e liberdade de pensamento, mica contraditória do real, lembra o conceito es‐
ação e afeto, e não necessariamente impedimen‐ pinosiano de emancipação, como relativa à supe‐
to. As modalidades de relação social que sejam ração das nossas superstições. Ou seja, de supera‐
impeditivas da autonomia humana não são consi‐ ção de paixões tristes, de receios, idéias e afetos,
deradas, como em outras teorias, algo natural e que nos imobilizem, por desconhecermos as cau‐
regra inevitável do desenvolvimento psicológico, sas reais das coisas. E também por, desse modo,
mas formas historicamente constituídas que po‐ ignorarmos as nossas próprias possibilidades e
dem predominar ou não. As quais, por sua vez, limitações com relação à transformação ou manu‐
estão em constante tensão com aquelas relações tenção do mundo que aí está. Vigotski assume,
que proporcionam o avanço para modos mais embora não explicite em quais termos, a identifi‐
integrados de compor com o mundo e de obter e cação de seus ideais éticos com os de Baruch de
exercer maior poder de realização junto a ele. Espinosa: “Não podemos deixar de assinalar que
Pensemos apenas no exemplo da brincadeira da nossa idéia da liberdade e o autodomínio coincide
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
com as idéias que Espinosa desenvolveu em sua contudo, mostrar em que tal argumento é falho –
“Ética”” (VIGOTSKI, 1931/2000b, p. 301). Caberá recurso muito usado por alguns advogados, jorna‐
aprofundar as formulações aqui apresentadas. listas, políticos e pseudo‐intelectuais. Mas sim no
Mas, articulando indícios e arriscando nossa pró‐ sentido mais profundo de argumentar “junto ao
pria interpretação, cabe ainda relacionar o ideário homem”, interpelando‐o em sua existência con‐
emancipatório em Vigotski com a busca social (na creta, pedindo‐lhe coerência entre palavras e vi‐
então União Soviética) de desenvolver o chamado vências, falando‐lhe de coisas que lhe digam res‐
“novo homem socialista”. Tal noção implicaria a peito pessoalmente e não apenas “em abstrato”,
ampliação das capacidades simbólicas e culturais solicitando‐lhe responsabilidade e tomada de
de cada pessoa num contexto societário livre da atitude.
expropriação de uma classe por outra (ver VI‐
GOTSKI, 1930/1994). Isto pode ser sintetizado no Evidentemente, para virmos um dia a argumentar
dito marxiano sobre o movimento de irmos “do assim precisaremos voltar o mesmo recurso para
reino da necessidade, para o reino da liberdade”. nós mesmos – do contrário, na ética do discurso
Algo que ainda não aconteceu na história da hu‐ poderá predominar a ação estratégica sobre a
manidade. comunicativa 5 , nos termos de Habermas (1989).
De todo modo, se no exemplo de Puzirei o “ho‐
1.2 Contradições enfrentadas pelo psicólogo que mem no homem” é o que se extrai para o mais
se orienta por um humanismo crítico e o critério alto, na fala de Marx é o que se retira do profun‐
ontológico da historicidade como recurso perti‐ do, em suas raízes, ou seja, em nós mesmos –
nente animais simbólicos, sociais e históricos. Sendo
assim, a realização da emancipação, como con‐
Uma vez que a ética humanista própria à perspec‐ quista permanente de maior liberdade será social
tiva histórico‐cultural, tal como lida aqui, implica não apenas porque cada indivíduo precisa se rela‐
um movimento de negação dos valores dominan‐ cionar com outras pessoas para desenvolver sua
tes, bem poderíamos atribuir a tal humanismo o capacidade de escolher, decidir voluntariamente,
adjetivo de “crítico”. Contudo, apenas o façamos mas também por algo mais. O processo social de
com o cuidado de não substantivar esse adjetivo, emancipação humana não é relativo só à emanci‐
para não criar rótulos que mais sirvam para dis‐ pação de cada um, mas à de todo o conjunto da
tanciar pessoas com metas comuns do que para sociedade, na construção de práticas democráti‐
aproximá‐las em projetos de cooperação por um cas de convívio e de gestão do que é de interesse
bem maior, o que nos faria entrar numa luta inco‐ público. Sabemos, contudo, que em nossa socie‐
erente por decidir qual seria o “melhor humanis‐ dade, as restrições são fortíssimas. Nossa demo‐
mo”. Até porque “humanista” já fora desde o iní‐ cracia é frágil, nossas instituições não são confiá‐
cio um adjetivo para dada ética. De qualquer ma‐ veis. E a ideologia de uma “liberdade” em termos
neira, no nosso caso, a crítica é também um crité‐ liberais, de jargões como “cada um para si” ou
rio fundamental para a psicologia de orientação “leve vantagem você também”, é hegemônica.
histórico‐cultural. Disse Karl Marx que: “é certo Colocamo‐nos diante de certo dilema ético quanto
que a arma da crítica não pode substituir a crítica a agir ou não agir, com relação a esse estado de
das armas, que o poder material tem que ser der‐ coisas. Se Marx fala do confronto entre arma da
rocado pelo poder material, mas também a teoria crítica e crítica das armas, Espinosa, no “Tractatus
se transforma em poder material logo que se apo‐ politicus” também recorre a termos bélicos para
dera das massas. A teoria é capaz de se apoderar
das massas quando argumenta ad hominem, e
argumenta ad hominem quando se torna radical:
5
ser radical é tomar as coisas pela raiz. Mas a raiz, Na ética do discurso de Habermas (1989), o agir estratégico
para o homem, é o próprio homem” (apud CHA‐ é tido como aquele em que nós argumentamos tão somente
para sobrepujar a posição do outro e convencê‐lo, enquanto
SIN, 1999, p. 9). Assim a crítica só é pertinente se
no agir comunicativo ambos dialogam e cedem mutuamente
argumenta “ad hominem”, não aqui no sentido tendo como objetivo a busca da verdade. Ainda segundo
vulgar de argumentar “contra o homem”, desqua‐ analistas dessa teoria, os dois modos de agir não se polarizam
lificando as características pessoais do outro para de forma pura e ideal, mas na prática logram influenciar‐se
assim destituir de valor o seu argumento sem, mutuamente em alguma medida, numa relação dialética, ou
seja, de contradição inter‐constitutiva.
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
dizer da liberdade humana: “se numa Cidade os tempo que existiu não chegou a atingir todo o
cidadãos não tomam das armas porque estão projeto a que se propôs, e talvez sua derrota seja
aterrados pelo medo, não se pode dizer que aí indício justo disso.
exista paz e sim mera ausência de guerra. A paz
não é pura ausência de guerra, mas virtude origi‐ Na atual sociedade, na qual hoje as obras de auto‐
nada da força d’alma no respeito às leis [...]. Uma res soviéticos como Vigotski, Luria, Leontiev, Ru‐
Cidade onde a paz é efeito da inércia dos súditos binstein, Elkonin e Bojovitch (ver figura 1) vêm
tangidos como um rebanho e feitos apenas para cobrar sentido, o ser humano nem sempre é o
servir merece antes o nome de solidão do que de valor central e, quando sim, geralmente o é em
Cidade” (apud CHAUI, 1995, p. 56). termos liberais ou ingênuos. Nossa atitude não
pode ser muito mais que a de distanciamento
Não é necessário crítico. Como disse
nos alongarmos a‐ meu colega o pro‐
qui no diagnósti‐ fessor Luiz Lastória
co da sociedade (com. pessoal,
contemporânea, 1998), parafrasean‐
dita “pós‐moder‐ do Adorno: “Se não
na”, também de‐ há cura, aprofunda
nominada “neoli‐ o diagnóstico”. Pro‐
iberal”. Trata‐se postas apressadas
de conteúdo cor‐ de “cura”, sem o
rente nas refle‐ conhecimento real
xões críticas sobre do que gera os
políticas públicas e “sintomas” pode
as que dedicam‐se implicar fatores
a algum tipo de etiológicos hiatro‐
análise das insti‐ gênicos, isto é, fa‐
tuições atuais. FIGURA1: PSICÓLOGOS SOVIÉTICOS tores patológicos
Contudo, fica pos‐ (1) Aleksis Nikolaevitch Leontiev (1903‐1979); (2) Lidia Il’initchna Bojovitch gerados pela pró‐
ta uma tensão en‐ (1908‐1981); (3) Aleksandr Romanovitch Luria (1902‐1977); (4) Serguei Leo‐ pria ação do trata‐
nidovitch Rubinstein (1889‐1960); (5) Daniil Borisovitch Elkonin (1904‐1984).
tre os valores que mento. O que nos
são o fundamento da ética da abordagem históri‐ remete também ao alerta presente em Hipócra‐
co‐cultural, tal como a lemos, e os valores privile‐ tes, para quem a missão do profissional da saúde
giados no mundo contemporâneo, de modo geral, é “curar se possível, ao menos não danar”. Eviden‐
mais drasticamente em países periféricos e subal‐ temente, estamos usando termos médicos de
ternos como o Brasil. Como agir de acordo com modo metafórico, não é esse nosso papel social.
valores como os da psicologia vigotskiana, num Mas trata‐se de uma analogia que pode ajudar‐
país em que tais valores hegemonicamente são nos a refletir. Pode‐se a ela adicionar que “diag‐
tidos como antiquados ou mesmo utópicos, quan‐ nosticar” não é um ato passivo e descompromis‐
do não inexistentes ou totalmente ignorados? De sado. Diagnosticar é, na raiz grega, conhecer “a‐
fato, o marcador semântico para nós importante travessando” a realidade, ou seja, desde o pro‐
nesse caso é a palavra “hegemonicamente”. O que fundo ao elevado, não se trata do sentido vulgar
é “hegemônico” é predominante, o que mais se da palavra como “rotular”. E para tanto é necessá‐
destaca, o que mina e subordina as visões contrá‐ rio compromisso, com o ato de conhecer e com
rias, mas não é o “absoluto”, não prevalece de aquele que se deseja conhecer, na relação com o
modo homogêneo, não existe sem fissuras – as qual passaremos também a nos conhecer melhor,
quais podem surgir como contestações organiza‐ posto que estamos falando de um conjunto social
das, como desobediência civil, ou ainda como do qual fazemos parte, desde que nascemos. Não
fraturas e convulsões de cunho retrógrado. A so‐ são as pessoas com quem trabalhamos objeto de
ciedade na qual foi criada a teoria histórico‐ piedade ou caridade, mas sujeitos co‐autores do
cultural não existe mais, foi derrotada na chamada mesmo processo histórico em que estamos inseri‐
“Guerra Fria”. Ela mesma, por sua vez, durante o dos e que (re)produzimos diariamente.
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
Desse modo, em suma, cabe destacar que aos o critério do chamado “método construtivo”, tal
princípios éticos aqui insinuados, comentados, como concebido por Vigotski, pois elucida um
acrescenta‐se um princípio ontológico que permi‐ pouco o já falado sobre o “aprofundamento do
te abordá‐los com mais visibilidade. Trata‐se do diagnóstico”, como um ato no qual nos envolve‐
princípio da historicidade dos valores. Se nossas mos como partícipes. Ato no qual, de certa forma,
relações com as pessoas, nossos modos de simbo‐ diagnosticamos a nós mesmos, nossa própria exis‐
lizar o mundo mediante a linguagem e de agir tência social e experiência histórica, no papel de
sobre ele mediante o uso de instrumentos, se psicólogos que não se desvincula dos nossos de‐
constituem historicamente, o mesmo se aplica aos mais lugares simbólicos. Vejo esse momento da
nossos valores morais, isto é, à nossa ética. Nos‐ discussão com um ponto de conexão importante
sos valores se constituem historicamente, e tam‐ entre os valores gerais e a proposta de atuação do
bém só historicamente podem se consolidar ou se psicólogo que se orienta numa perspectiva histó‐
enfraquecerem dando lugar a outros. A história rico‐cultural. Nesse sentido retomo uma discussão
implica contradições e lutas entre projetos políti‐ já proposta anteriormente (DELARI JR., 2000), na
cos e valores diversos, só em meio a tal contradi‐ qual me deparava com a trama de inter‐
ção a realização e/ou transformação dos nossos constituição das linguagens teóricas que assumi‐
valores pode ocorrer. A busca de cooperação em mos com a constituição de nossa própria subjeti‐
função de superação constante, como conquista vidade, consciência e personalidade. De fato, o
de uma mais potente emancipação humana, cons‐ vínculo profundo dos valores éticos com a prática
titui‐se, portanto, em um desafio histórico, coleti‐ social e então com a prática profissional com um
vo e pessoal. Não é pouco, nem é suficiente. Mas momento importante dela, em psicologia, está
é uma interpelação que está posta. Trabalhar ins‐ associado ao problema das relações entre o “abs‐
tigados por tal desafio é como assumir um dito trato” e o “concreto”. Para o marxismo não há
que ouvi de Paulo Freire em Curitiba, em 12 de como chegar ao concreto sem passar pela abstra‐
junho de 1992: “Cabe fazer o que é possível fazer ção, porque o concreto não é mais só o “empíri‐
hoje para que o que não é possível fazer hoje seja co”, ou seja, a experiência pela experiência. Para
feito amanhã”. Os limites do possível, segundo entendermos determinações concretas da reali‐
Vigotski, se ampliam na relação com o outro 6 (ver dade é preciso olhar para além do que se apresen‐
VIGOTSKI, 1935/1989) 7 , tanto quanto podem se ta diretamente aos sentidos, ver o que não se
estreitar dependendo de como nos relacionemos mostra, ouvir o que não foi dito, conectar, rela‐
com esse outro e de quem é ele ou pode ser para cionar, imaginar, interpretar, logo “abstrair”. Nes‐
nós. Nesse ponto nos cabe o ato volitivo de optar, se sentido entende‐se a proposição de Marx de
se possível, pelas relações mais potencializadoras. que é preciso “ascender ao concreto”. Ele é uma
Descobrir quando é possível ou não, no mesmo meta elevada, não só ponto de partida eventual.
ato de buscar produzir a possibilidade, é o próprio Mas para alcançarmos o concreto, a abstração
exercício da ética. não pode bastar‐se, nem perder seu vínculo com a
vida social, com as necessidades e lutas de cada
sociedade.
1.3 O método construtivo e a psicologia como
constitutiva da vida humana Infelizmente, se uma abstração é sempre necessá‐
ria ao cientista, ao psicólogo crítico, também é
Por fim, tendo já falado sobre o critério metodo‐ certo que nem sempre conseguimos ascender ao
lógico da crítica e o ontológico da historicidade, concreto. Para Puzirei, o fato de Vigotski dizer que
como suportes para a ética, coloquemos também sua “história do desenvolvimento cultural é a ela‐
boração abstrata da psicologia concreta.” (1929/
2000, p. 35) seria como uma “autocrítica” que
6
“não apenas mostra a liberdade e espírito crítico
Sobre a teorização da superação dos limites no desenvolvi‐
com que ele avaliava sua própria obra, mas tam‐
mento humano ontogenético e microgenético, mediante o
conceito de “zona blijaishego razvitia”, ver nota “17”, p. 29. bém a profundidade e a radicalidade de seu pen‐
7
A fonte só fornece o ano da primeira publicação, mas não a samento” (PUZIREI, 1989a, p. 76). Tal pensamento
data de quando o trabalho teria sido concluído. Trata‐se de teria formulado um projeto no qual Vigotski “via a
uma publicação póstuma, já que Vigotski morreu em 11 de ‘linha geral’ do desenvolvimento posterior da psi‐
junho de 1934.
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
cologia histórico‐cultural. Esta tendência poderia lho é também e sempre um trabalho com os ou‐
significar uma superação radical do ‘academicis‐ tros, os nossos valores, os valores da abordagem
mo’ na psicologia tradicional” (PUZIREI, 1989a, p. que assumimos justamente por serem condizen‐
76). Tal projeto para o futuro, visto do tempo de tes com os nossos ou por sentirmos que podem
Vigotski, nos interessa hoje no século XXI, embora potencializá‐los, passarão a interagir com os valo‐
as condições da psicologia atual não sejam muito res de nossos interlocutores, as pessoas com
melhores que as do período em que a perspectiva quem trabalhamos, tensionando com eles, numa
histórico‐cultural surgiu. Trata‐se de um projeto relação em que nos enriquecemos mutuamente e
que solicita: “um movimento em direção a um nos refazemos constantemente, se para tanto
tipo completamente novo de investigação, que, houver disposição.
em virtude de alguns dos aspectos fundamentais
do seu “objeto”, um objeto histórico‐cultural e em Sobre o processo pelo qual nosso trabalho com‐
desenvolvimento, e de exigências fundamentais põe‐se com nossa própria personalidade e a da‐
(derivadas deste último) de seus métodos, a sa‐ queles com quem nele dialogamos, deixo uma
ber, externalização e análise, deve, ele próprio, última sugestão de reflexão sobre o chamado
ser implementado dentro do quadro organizado “método construtivo” em pesquisa psicológica.
de alguma prática psicotécnica, servindo como um Vejo‐o como pertinente também para a prática
órgão necessário que torna possível a projeção, profissional, se considerarmos o que Puzirei colo‐
realização, reprodução e desenvolvimento dirigido cava, na citação acima, sobre a articulação entre
dessa prática. Esse projeto de reestruturação radi‐ método de investigação e “prática psicotécnica” 8 .
cal da psicologia permanece essencialmente irrea‐ Vigotski diz que “um método construtivo implica
lizado na história subseqüente da psicologia.” duas coisas: (1) ele estuda antes construções do
(PUZIREI, 1989a, p. 76) que estruturas naturais; (2) não analisa, mas cons‐
trói um processo” (VIGOTSKI, 1929/1989, p. 55).
A psicologia concreta proposta por Vigotski convi‐ “Construções” aqui está como sinônimo de “pro‐
da, assim, a uma mudança radical em nossa pró‐ cessos constituídos culturalmente”, aqueles que
pria atitude: a psicologia passaria a ser entendida não são dados pela natureza em seu estado pri‐
e conduzida como um componente da própria meiro, mas emergem nela, pela transformação
constituição dos fenômenos ou processos que ela dela mediante a ação humana, planejada, dirigida
mesma estuda, como ciência, e com os quais ela a metas, visando atender nossas necessidades
atua, como profissão. Trata‐se de algo sério, por básicas e as que criamos socialmente, para além
evidenciar nossa grande responsabilidade. Ao delas. Ou seja, “construções” são criações históri‐
mesmo tempo, trata‐se de algo previsível, no sen‐ co‐culturais, símbolos, instrumentos, modos de
tido de ser coerente com o que a própria aborda‐ usá‐los, relações humanas, papéis sociais, experi‐
gem postula em seus conceitos sobre a constitui‐ ências partilhadas, modos de organizar nossas
ção do humano, como ser social, simbólico e his‐ rotinas, procedimentos institucionais ou a contes‐
tórico. Coerente com seus conceitos psicológicos tação deles, enfim. Criações que, ao serem reali‐
(teóricos) e metodológicos (meta‐teóricos). Psico‐ zadas por nós, realizam ao mesmo tempo o que
lógicos como os de que “toda a palavra é já uma somos. Trata‐se então de um método de investi‐
teoria”, um modo de generalizar a realidade, e de gação, e porque não dizer de trabalho também,
que a consciência se constitui justamente median‐ no qual não só “analisamos” processos, mas tam‐
te o significado da palavra. Metodológicos como o bém os construímos culturalmente, com nossos
de que “a palavra é o gérmen da ciência, e neste atos, nossa linguagem e nossa sensibilidade. Tal
sentido cabe dizer que no começo da ciência esta‐
va a palavra” (VIGOTSKI, 1927/1991, p. 281). Se a
ciência é, desde o início, “palavra” e se é nela, dita
8
de corpo inteiro, que o humano realiza o específi‐ Evidentemente, nesse contexto, o conceito russo de “psico‐
técnica”, também traduzido como “psicotecnia” (em VIGOTS‐
co da sua existência social e histórica, é possível
KI, 1927/1991 e 1927/1996), não é sinônimo de “psicometri‐
deduzirmos que as palavras de uma abordagem a”, como se tornou comum no nosso contexto cultural. Ao
passam, de algum modo, a ser constitutivas das contrário, “psicotécnica” indica um conceito mais abrangente
pessoas que dela se apropriam e que com ela pas‐ com relação à aplicação prática da psicologia frente às de‐
sam a trabalhar. Na medida em que nosso traba‐ mandas concretas da sociedade, na educação, na clínica, no
mundo do trabalho, etc.
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
concepção sustenta a afirmação anterior de Puzi‐ tório” ou “abreviado” sobre cada aspecto da vi‐
rei de que a perspectiva iniciada por Vigotski se vência humana. O geral não é o “numeroso”, mas
orienta para uma superação do academicismo em o que implica uma visão articulada e profunda do
psicologia. Trata‐se justamente de uma psicologia conjunto. Aqui poderemos apenas colocar os con‐
que não recorre à “assepsia” para lidar com a rea‐ tornos de alguns princípios essenciais na psicolo‐
lidade de seu trabalho, mas a toca “de mãos nu‐ gia geral da perspectiva histórico‐cultural. O apro‐
as”, assumindo com ela um compromisso de com‐ fundamento desses princípios se desenvolverá
posição partilhada. Dessa maneira os valores de com o nosso estudo posterior, tendo em vista a
que falamos aqui estão implicados na ação e no prática social do psicólogo e os princípios éticos
método, orientado às metas que eles definem. E que a orientam. Organizei a exposição aqui se‐
abre‐se para nós o convite para produzir uma gundo os seguintes eixos: (2.1) Princípio da unida‐
prática profissional do psicólogo que pronuncia de psicofísica; (2.2) Princípio da determinação da
uma “palavra que realmente significa e é respon‐ consciência pela existência social; (2.3) Princípio
sável por aquilo que diz” (BAKHTIN, 1992, p. 196). da consciência como psiquismo propriamente
humano; (2.4) Princípio da compreensão da cons‐
ciência mediante unidades; (2.5) Princípio da
2 Princípios de psicologia geral numa abordagem compreensão do psiquismo humano mediante sua
histórico‐cultural gênese.
“Cada vez soam com maior freqüência vozes que colo‐ 2.1 Princípio da unidade psicofísica
cam o problema da psicologia geral como um problema
de primeiríssima importância. Essas colocações (...) não Segundo Serguei Rubinstein “O princípio da uni‐
partem dos filósofos (...) nem dos psicólogos teóricos,
dade psicofísica é o princípio mais importante da
mas dos psicólogos práticos, que estudam aspectos
concretos da psicologia aplicada (...)”
psicologia soviética” (1972, p. 40). Estamos habi‐
tuados a formar a partir da palavra “psicofísica” a
— Vigotski (1927/1996, p. 203) imagem do trabalho de laboratório com os aspec‐
tos fisiológicos do funcionamento mental humano
ou animal. Contudo, aqui o significado do termo
O conceito de psicologia geral na obra de Vigotski,
posto como adjetivo para “unidade” é mais filosó‐
tanto quanto na tradição russo‐soviética como um
fico e de orientação genérica. Lembremos que
todo, diferencia‐se do conceito escolar de “psico‐
“psikhe” para os antigos gregos era o “sopro vi‐
logia geral” com o qual comumente lidamos nas
tal”, nosso “impulso de vida”, “aquilo que nos
faculdades dessa área, e que nos faz lembrar uma
move”, e depois para alguns também “alma” ou
série de conteúdos introdutórios superficiais, não
“mente”, e que “physis” denotava a natureza,
necessariamente conectados numa lógica teórica
todo o mundo natural. Intuiremos então que uma
mais abrangente que lhes confira coerência. As‐
unidade entre o psíquico e o físico é a uma inte‐
sim, na psicologia acadêmica que conhecemos,
gração entre o que chamamos de funções mentais
“psicologia geral” soa mais como um vôo panorâ‐
e a natureza como um todo. Dito de outro modo,
mico por sobre um território desconhecido, do
nada na psique humana é considerado, nessa a‐
que como área científica relevante para o nosso
bordagem, como “sobrenatural”, “sobre‐huma‐
trabalho do profissional. Na psicologia soviética o
no”, substancialmente distinto do que compõe o
significado da palavra é distinto. Psicologia geral é
âmbito tangível e inteligível do real. No que a
o campo da ciência psicológica que trata de seus
perspectiva histórico‐cultural vai numa direção
fundamentos, de seus princípios articuladores
diferente de grande parte das psicologias surgidas
mais profundos, das categorias meta‐teóricas que
no final do século XIX e desenvolvidas ao longo do
visam organizar a discussão, como: o “objeto de
século XX, as quais trazem fortes traços do dua‐
estudo”; seu “princípio explicativo”; a “unidade de
lismo mente e corpo, psíquico e físico, herança
análise” necessária para e investigação; e o “modo
platonista e cartesiana. O mesmo monismo, des‐
de proceder” a própria análise, ligado às interven‐
tacado por Rubinstein, aparece também em Vi‐
ções sobre a realidade que ele comporta. Com
gotski, para quem “a psique não aparece isolada
inspiração nessa orientação, como eu já disse em
do mundo ou dos processos do organismo nem
outro lugar (DELARI, 2004), uma atitude generalis‐
por um milésimo de segundo” (1926/1991, p.
ta do psicólogo não é sinônimo de saber “introdu‐
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
150). É preciso olhar com atenção para essa pro‐ corpo e o que concluir do simples exame de sua
posição, pois já entrou para o senso comum aca‐ natureza” (apud VIGOTSKI 1925/1999, p. IX). É
dêmico o conceito de que “o homem não é um ser difícil para nós, habituados ao dualismo platônico
biológico, mas sim social, cultural, histórico”. Tal e cartesiano presente na formação do psicólogo,
oposição, embora esteja correta no seu sentido concebermos isto: como pode um corpo produzir
mais geral, não pode ser tomada ao pé da letra. obras de arte? Como pode um ser humano produ‐
Posto que sem a materialidade corporal, sem nos‐ zir o que há de mais belo e sublime, sem uma “al‐
sos órgãos vitais, sem nossa existência material, ma” que o guie? Mas entendamos apenas o se‐
também não há ser humano algum. O que a frase guinte: não se trata de que autor nos veja criando
acima significaria, se apresentada de um modo realidades culturais como se fôssemos “autôma‐
mais criterioso, é que “a constituição biológica do tos”, sem imaginar, conceber, projetar, sem o ato
homem é de tal ordem que ela não basta a si de pensar. Mas sim de que se antes se dizia que “o
mesma e exige dele que disponha de recursos corpo age e a alma pensa e sente”, podemos pelo
para além de seus traços orgânicos hereditários”. monismo de Espinosa entender que “o corpo age,
O animal Homo sapiens precisa recorrer a outros pensa e sente”, por si próprio. O pensar é um as‐
de sua espécie para realizar a sua existência, para pecto que pertence ao corpo humano, como tam‐
fazê‐lo utiliza‐se de mediações próprias a uma bém o sentir, das emoções mais básicas às mais
dada cultura, criadas, transmitidas e desenvolvi‐ sutis, tais quais as de cunho estético. Não preci‐
das historicamente. O bebê humano não desen‐ samos, nessa visão, adicionar a nós algo sobrena‐
volve funções psíquicas superiores sem a media‐ tural, insondável, inexplicável, incompreensível,
ção do outro e da cultura, linguagem e instrumen‐ para que nos reconhecermos capazes de realiza‐
tos. Mas também, por mais meios culturais que ções culturais diversas, no interior das leis dialéti‐
déssemos a um macaco, isso jamais o tornaria um cas da própria natureza, no sentido amplo da pa‐
ser humano, pois aquele não tem aparato biológi‐ lavra, da qual não estamos isolados “nem por um
co para isso. milésimo de segundo”. Nesse princípio se apóia o
posterior quanto às relações entre consciência e
O princípio da unidade psicofísica marca filosofi‐ existência, sobretudo entendida como existência
camente que somos uma totalidade psíquica e social.
física, mental e corporal, biológica e cultural. E
esses pares não jogam seus papéis complementa‐ 2.2 Princípio da determinação da consciência pela
res como “substâncias” opostas de modo antagô‐ existência social
nico, irredutíveis, mas como pares dialéticos, se só
existem um em relação ao outro, contradizendo‐ No tópico anterior destacamos que não estamos
se e compondo‐se mutuamente, na medida em alienados da natureza, não somos seres sobrena‐
que juntos formam uma só realidade. Trata‐se, turais, supra‐ordenados, reinando sobre toda a
assim, de aspectos, momentos, modos de ser, de criação. Precisamos pertencer à natureza para
uma mesma substância, uma mesma unidade nela poder viver e virmos a entender que estamos
dinâmica, extremamente complexa e contraditória vivos, que morreremos. Fenômenos físicos são
que é a realidade material – a totalidade da exis‐ necessários para existir vida na Terra, fenômenos
tência em suas múltipas determinações e diversos biológicos são constitutivos da vida humana, se
planos de organização. É interessante, nesse sen‐ não por inúmeras condições orgânicas, que seja
tido, o resgate de Vigotski à obra de Espinosa, ao tão somente pelo falto dela ser ainda “vida” –
valorizar o papel do corpo: “até hoje ninguém “bios” (βίος ). Mas a isto cabe acrescentar que o
definiu aquilo de que o corpo é capaz... mas dizem nosso modo de realizar um momento da realidade
que seria impossível deduzir apenas das leis da material da qual fazemos parte tem sua especifi‐
Natureza, uma vez considerada exclusivamente cidade, sua singularidade, seu modo particular de
como corpórea, as causas das edificações arquite‐ ser e devir. Considerando a formação social da
tônicas, da pintura e coisas afins que só a arte consciência como tema fundamental para a psico‐
humana produz, e que o corpo humano não con‐ logia histórico‐cultural, podemos articular que não
seguiria construir nenhum templo se não estivesse apenas somos parte viva da natureza, como tam‐
determinado e dirigido pela alma, mas eu já mos‐ bém nosso modo específico, distintivo de realizar
trei que tais pessoas não sabem de que é capaz o nosso lugar dentro dela, ao mesmo tempo, nos
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
diferencia das demais formas de seres naturais. samento e os produtos deste. A vida não é deter‐
Um traço marcante para tal distinção está no fato minada pela consciência, mas esta pela vida. No
de que o homem é, como diz Aristóteles, “zoon primeiro método de abordagem, o ponto de par‐
politicon” – animal social. Nossa própria constitui‐ tida é a consciência tomada como o indivíduo
ção biológica nos dá bases para que isso ocorra: vivo; no segundo, são os próprios indivíduos vivos
por um lado, pela fragilidade do nosso filhote que reais, tal como são na vida concreta, e a consciên‐
para se desenvolver e garantir sua própria exis‐ cia é considerada unicamente como consciência
tência demanda mais alguém com quem interagir deles" (MARX & ENGELS, 1983, p. 172 – grifo
por tempo prolongado; por outro, pela grande meu). Os aspectos ideológicos, culturais, não teri‐
complexidade de nosso aparato neurofuncional, am história autônoma, posto que, são produções
que nos permite a utilização complexa de instru‐ da existência humana, não existem independen‐
mentos e signos e nos demanda que eles sejam temente dela. Nessa tradição, a própria consciên‐
utilizados para que nosso próprio cérebro se de‐ cia não tem vida própria, não é nenhum ser à par‐
senvolva, na sua plasticidade funcional e organiza‐ te: “a consciência é o homem consciente”. Ao que
ção sistêmica. Sem entrarmos no mérito da dis‐ poderíamos acrescentar “o sentimento é o ho‐
cussão evolutiva sobre como essas características mem sentindo” ou “a atividade é homem agindo”,
vieram a surgir gerando os primeiros seres huma‐ são movimentos nossos, são processos e não en‐
nos, o fato é que somos animais para os quais a tidades com vida própria. Quem toma consciência,
existência sobre o planeta não é possível sem as sente e age é o homem. Mas quem é homem?
relações sociais. As quais por sua vez são media‐ Nessa abordagem, o homem, como já foi dito é
das pela linguagem, produto da própria prática um “ser social”. Digamos que só nesses termos
humana e que se materializa na cultura e se podemos conceber “quem ele é”, e não apenas “o
transmite e se transforma de geração para gera‐ que ele é”.
ção.
Dizer que o homem é um ser social requer ainda
Sendo o homem frente à natureza não um “impé‐ algumas especificações, pois há muitos sentidos e
rio dentro do império”, como critica Espinosa muitos modos de existir do social. Essa discussão,
(1979), mas um momento singular de realização como as demais já levantadas, não se esgota aqui,
dela, o pensamento marxista indica assim uma mas para uma organização introdutória eu gosta‐
relação de determinação da consciência pela vida, ria de destacar apenas cinco planos articulados e
entendida como vida social. No seu texto “A cons‐ interdependentes da existência social com os
ciência como problema da psicologia do compor‐ quais podemos trabalhar em psicologia histórico‐
tamento” Vigotski diz que “a existência determina cultural, embora outros possam ser acrescentados
a consciência” (VIGOTSKI, 1925/2005, p. 37) 9 . Ele e alguns deles tenham sido mais abordados que os
está parafraseando Marx e Engels em “A ideologia demais nas obras de Vigotski às quais tenho aces‐
alemã”: “Moral, religião, metafísica e todo o res‐ so: (a) relações sociais de classe; (b) relações soci‐
tante da ideologia e suas formas correspondentes ais institucionais; (c) relações sociais grupais; (d)
de consciência, pois, não mais conservam o aspec‐ relações sociais intersubjetivas; (e) relações soci‐
to de sua independência. Elas não têm história ais no plano do indivíduo, na dinâmica e estrutura
nem evolução; mas os homens, desenvolvendo de sua personalidade. Nas obras de Vigotski que
sua produção material e seu intercâmbio material, tive oportunidade de ler, desses cinco pontos os
alteram, a par disso, sua existência real, seu pen‐ três que mais se destacam e se explicitam são as
relações sociais de classe, as intersubjetivas e
aquelas no plano do indivíduo em sua personali‐
dade social. Pensar na articulação com esses pla‐
9
Cito aqui versão russa apenas porque nessa passagem, a nos o papel dos grupos e das instituições é um
edição brasileira (VIGOTSKI, 1925/1996) contém um erro desafio importante e atual, de todo modo isso não
também presente na edição espanhola (VIGOTSKI, 1925/
poderá se dar, nessa abordagem, sem integração
1991), da qual foi traduzida. Trata‐se de que onde ali se lê “a
experiência determina a consciência” (VIGOTSKI, 1925/1996, com os demais processos, aos quais nos detere‐
p. 80) ou “la experiencia determina la conciencia” (VIGOTSKI, mos aqui. Em primeiro lugar a abordagem de Vi‐
1925/1991, p. 56), no russo está “Бытие определяет созна‐ gotski a relação entre a formação e/ou desenvol‐
ние” [Bitie opredeliaet soznanie], ou seja, “a existência (bitie) vimento do psiquismo e a pertença do indivíduo a
determina a consciência”.
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
uma dada classe social não é mecanicista. Se a personalidade, seu modo de agir, sentir e pensar,
pertença de cada um de nós a uma classe nos os significados e sentidos que atribui para o mun‐
deixa as marcas das práticas e da ideologia pró‐ do, para os outros e para si. Senão vejamos o que
prias a ela, o que cada ser humano particular in‐ diz também Vigotski em outro texto: “Queremos
ternaliza não são só os traços da formação coleti‐ comparar o operário com o burguês. O fato não
va a qual pertence, mas o conjunto das contradi‐ consiste como pensava W. Sombart, em que para
ções pertinentes à luta entre classes no seio da o burguês o principal seja a avareza, em que tenha
sociedade como um todo. havido uma seleção biológica de pessoas avaras
para as quais o fundamental é a mesquinhez e a
Vigotski, no seu texto “A transformação socialista acumulação. Admito que existem muitos operá‐
do homem”, de 1930, entende que “do mesmo rios mais avaros que os burgueses. A essência da
modo pelo qual a vida de uma sociedade não re‐ questão não consiste em que o papel social se
presenta um todo singular e uniforme, e a socie‐ deduz do caráter mas em que, a partir deste, cria‐
dade é subdividida em diferentes classes, assim se uma série de conexões caracterológicas. Os
também, durante um dado período histórico, não traços sociais e de classe formam‐se no homem a
se pode dizer que a composição das personalida‐ partir de sistemas interiorizados, que nada mais
des humanas represente algo homogêneo e uni‐ são do que os sistemas e relações sociais entre
forme, e a psicologia deve levar em consideração pessoas trasladados para a personalidade” (VI‐
o fato básico de que a tese geral que foi formula‐ GOTSKI, 1930/1996, p. 133). Não há um tipo de
da agora mesmo, pode ter apenas uma conclusão personalidade hereditariamente dado que tenda a
direta: confirmar o caráter de classe, a natureza ser pertencente a uma classe ou outra por suas
de classe e as distinções de classe que são respon‐ aptidões inatas, isso é o mais óbvio, embora não
sáveis pela formação dos tipos humanos. As várias menos verdadeiro. Mas também, e tão importan‐
contradições internas que são encontradas em te quanto, cabe destacar que não há relação iso‐
diferentes sistemas sociais, têm sua expressão mórfica entre a pertença de classe e a formação
tanto no tipo de personalidade quanto na estrutu‐ do caráter e personalidade de cada um. Isso é
ra da psicologia humana naquele período históri‐ mediado por relações complexas no seio de cada
co” (VIGOTSKI, 1930/1994, p. 176). Sendo as rela‐ interação intersubjetiva que vamos estabelecendo
ções sociais heterogêneas a formação da persona‐ em meio aos grupos de que fazemos parte, na
lidade também não será homogênea, assim para família, na escola, nas práticas religiosas, nos cír‐
compreender os conflitos próprios à nossa consti‐ culos de amizade, nas relações de trabalho, e as‐
tuição psíquica, cabe contextualizá‐los no âmbito sim por diante – nos quais podemos conviver com
dos conflitos sociais mais amplos que organizam classes distintas e apreender junto a elas também
as condições de nossa existência, e dos quais par‐ distintos modos de agir, sentir e significar, não
ticipamos inevitavelmente, como dirigentes ou sempre de todo condizentes com os interesses
subalternos, como opressores ou oprimidos, como históricos de nossa própria classe social. Portanto,
expropriadores ou expropriados, na vivência clara ao critério de relações sociais de classe, cabe a‐
de cada papel desses ou na mescla de posições crescentar na perspectiva da teoria histórico‐
concomitantes ou alternadas entre um e outro, de cultural ainda o critério das relações intersubjeti‐
modo consciente ou não consciente. A sociedade vas, mediante as quais, modos de conversão das
é heterogênea tanto quanto a personalidade, mas práticas sociais públicas em práticas simbólicas
também é crítico, complexo e heterogêneo o pro‐ privadas são constituídos e postos em movimento.
cesso pelo qual se dão as transições recíprocas
entre relações sociais de classe e relações sociais Como destacado por Melo (2001), duas contribui‐
de um homem singular consigo mesmo. A relação ções importantes da psicologia de Vigotski podem
entre indivíduo e sociedade não é de simples có‐ ser trazidas ao diálogo quando precisamos ampliar
pia ou repetição mecânica. Há transformações de o conceito de relações sociais para além do de
um plano a outro. “relações sociais de classe”, mesmo este sendo
fundamental. Trata‐se de: (a) sua formulação so‐
Isso coloca questões para a psicologia. Pois não bre a “lei genética geral do desenvolvimento”; e
basta saber que determinada pessoa é de classe (b) sua formulação sobre a “psicologia do drama
trabalhadora ou burguesa para disso deduzir sua de papéis sociais”. A lei genética geral do desen‐
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
volvimento, também conhecida como “lei da du‐ fala do seu conceito de “drama” e lança‐nos uma
pla formação”, geralmente é identificada na obra espécie de provocação: “O teatro deve imitar a
de Vigotski nos seguintes termos: “Um processo vida? A psicologia, para escapar de uma tradição
interpessoal é transformado num processo intra‐ milenar e para retornar à vida, talvez deva imitar o
pessoal. Todas as funções no desenvolvimento da teatro” (POLITZER apud GABBI JR, 1998, p. XII).
criança aparecem duas vezes: primeiro no nível Isto se relaciona ao conceito moderno de “dra‐
social, e depois, no nível individual; primeiro entre ma”, pois se na antigüidade clássica essa palavra
pessoas (interpsicológica), e, depois, no interior da está relacionada aos textos que podem ser repre‐
criança (intrapsicológica). Isso se aplica igualmen‐ sentados no teatro, como “ação”, seja ela trágica
te para a atenção voluntária, para a memória lógi‐ ou cômica, na modernidade ela implicará princi‐
ca e para a formação de conceitos. Todas as fun‐ palmente o conflito. Conflito entre algo de trágico
ções superiores originam‐se das relações reais e algo de cômico, e assim uma expressão mais fiel
entre indivíduos humanos” (VIGOTSKI, 1930/ “da vida como ela é” – não como a de “deuses” e
1989a, p. 64) 10 . A personalidade, dirá o próprio “heróis” (típicos das tragédias), nem como de
Vigotski (1931/2000a) não se pode confundir com seres “grotescos” ou “inferiores” (típicos das co‐
cada função particular, nem é a mera junção arit‐ médias), mas como a de “seres humanos”. Essa
mética de todas, mas uma síntese de ordem supe‐ “vida como ela é”, em suas múltiplas determina‐
rior na qual o conjunto tem propriedades singula‐ ções, no choque entre diferentes papéis sociais
res e leis específicas com relação ao funcionamen‐ possíveis para uma mesma pessoa real, seria o
to das partes isoladas. Nesse sentido é mais im‐ drama pertinente à psicologia concreta. Vigotski
portante o homem que tem essa memória, essa usará um exemplo fictício de um magistrado que
imaginação ou essa inteligência, do que tais capa‐ deve julgar a própria esposa. Nessa situação críti‐
cidades que o homem tem. Mas a personalidade ca ele vive ao mesmo tempo dois papéis: o de juiz
como um todo também se desenvolve do interp‐ que condena e o de marido que absolve. Em cada
síquico para intrapsíquico. Ora, resta deduzir que caso há uma hierarquia diferente de funções men‐
o desenvolvimento de cada pessoa no conjunto de tais, no primeiro a racionalidade tenta prevalecer
suas relações com outras não pode se restringir a sobre a afetividade, no segundo a hierarquia se
apenas uma só classe, um só grupo, uma só rela‐ inverte. Desse modo não se sabe o que prevalece‐
ção de pertença. Múltiplas possibilidades de cam‐ rá e podemos dizer que nesse confronto surge
pos interpsicológicos podem se estabelecer para uma “suspensão” ou “epokhé”, uma recorrência à
cada um. Tal mulitiplicidade de relações intersub‐ dúvida, uma abertura ao imprevisível e ao mesmo
jetivas pode ser abordada teoricamente a partir tanto a demanda de uma ação deliberada, volitiva.
dos conceitos de papel social e drama de papéis
sociais. A “psicologia dos papéis” de Vigotski convida a
refletir sobre como eles se entrelaçam solicitando,
Nas suas anotações de 1929, depois chamadas possibilitando, ou impedindo, adiando, tais ações
pelos editores de “Psicologia concreta do ho‐ deliberadas. “O papel social (juiz, médico) deter‐
mem”, Vigotski dialoga, entre outros, com o pen‐ mina a hierarquia das funções: isto é, as funções
sador marxista francês de origem húngara Geor‐ mudam a hierarquia nas diferentes esferas da vida
ges Politzer (1903‐1942). Este, em dado momento social. Seu choque = o drama” (VIGOTSKI, 1929/
de sua pesquisa, na qual fazia a crítica da “psicolo‐ 2000, p. 37 – grifos na fonte). De todo modo, o
gia abstrata”, dos clássicos do século dezenove, e foco está dado no fato de que em nós diferentes
o elogio de uma nascente “psicologia concreta”, direções para a ação são possíveis em função de
nossa inserção nas relações sociais que marcam
nossos papéis (pai/filho; professor/aluno; subal‐
terno/dirigente; livre/cativo; etc.), e com isso vi‐
10
Os editores da coletânea na qual o texto citado foi editada, vemos um conflito com o qual se tecem nossos
no Brasil intitulada “A formação social da mente”, dizem ser
próprios sentidos para a vida. Tal conflito é tanto
os quatro primeiros capítulos retirados de “O instrumento e o
signo” – livro de 1930. Contudo, o conteúdo do capítulo é entre significados divergentes dos papéis opostos,
muito semelhante ao encontrado em “A história do desen‐ quanto entre os sentimentos, conceitos e valores
volvimento das funções psíquicas superiores” – livro de 1931. a eles amalgamados: “O drama realmente está
Manteremos 1930, confiando nos organizadores da obra repleto de ligações de tal tipo [conflitivo]: o papel
(COLE, JOHN‐STEINER, SCRIBNER e SOUBERMAN, 1989).
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
da paixão da avareza dos ciúmes, em uma dada mente humano: (a) consciência como conheci‐
estrutura da personalidade. Um caráter divide‐se mento partilhado; (b) consciência como vivência
em dois (...) O drama realmente está repleto de de vivências; (c) consciência como reflexo e refra‐
luta interna impossível nos sistemas orgânicos: a ção da realidade; (d) consciência como processo
dinâmica da personalidade é o drama (...) O dra‐ cognitivo e afetivo; (e) consciência e sua relação
ma sempre é a luta de tais ligações (dever e sen‐ com os processos não conscientes.
timento, etc.) Senão não pode ser drama, isto é,
choque dos sistemas. A psicologia ‘humaniza‐se’” A noção de consciência como “conhecimento par‐
(VIGOTSKI, 1929/2000, 34‐35 – grifos na fonte). tilhado”, advém da própria origem da palavra.
Podemos interpretar que a psicologia histórico‐ Tanto em russo quanto em português, a etimolo‐
cultural “retorna à vida” como quisera Politzer. Tal gia remete ao latim “conscientia”, que dentre suas
“humanização” da psicologia apresenta‐se assim várias acepções, comporta tanto a idéia de “co‐
como objetivo da proposta de Vigotski tanto no nhecimento comum a muitos” (“co‐conhecimen‐
sentido axiológico (ético) como no epistemológico to”), quando a de “reflexão, capacidade de distan‐
(científico). Para passarmos então das determina‐ ciamento” (“meta‐conhecimento”). Em Vigotski,
ções da consciência e personalidade humana pela as duas coisas estão intimamente ligadas. Sobre‐
nossa existência social mais geral, às suas dimen‐ tudo, por a consciência só poder vir a existir em
sões mais particulares, notamos que há media‐ função de relações sociais, tal como dissemos
ções, transições e complexidade, interpõe‐se o acima. Ele afirma, a respeito deste tema, que é
intersubjetivo, e na sua realização concreta per‐ “impossível relacionar‐se diretamente consigo
cebe‐se o drama da vida humana. Nele se for‐ mesmo” (VIGOTSKI, 1929/1989, p. 61), mas ape‐
mam, se desenvolvem, nossas funções psíquicas e nas indiretamente, uma vez que “eu sou uma re‐
a consciência como momento propriamente hu‐ lação social de mim comigo mesmo” (VIGOTSKI,
mano de organização das mesmas, de estrutura‐ 1929/1989, p. 67). Além disso, utiliza de modo
ção de nossa ação e pensamento, de vivência du‐ ilustrativo a alegoria de Pedro e Paulo, elaborada
plicada de nossos próprios sentimentos. É do que por Marx e Engels, a qual é retomada na íntegra
trataremos no próximo tópico. em nota de Andrei Puzirei: “Ao simplesmente
referir‐se à pessoa Paulo como alguém semelhan‐
2.3 Princípio da consciência como psiquismo pro‐ te a si próprio, a pessoa Pedro começa a referir‐se
priamente humano a si próprio como a uma pessoa. Mas até Paulo,
como o todo de sua corporalidade paulina, torna‐
É bastante conhecida, e nem por isso deixa de ter se, para ele, uma manifestação da espécie ‘ho‐
valor, a chamada oposição de Vigotski a duas ten‐ mem’” (MARX e ENGELS apud PUZIREI, 1989a, p.
dências clássicas em psicologia, no final do século 74). Assim, a atribuição de características ao ou‐
XIX e início do XX: o “mentalismo” e o “compor‐ tro, no campo “interpsíquico”, cria as possibilida‐
tamentalismo”. Segundo ele, ambas deixam de des de que as atribuamos a nós mesmos, como
estudar cientificamente a consciência. A primeira que num espelho sem o qual não podemos obter
porque a vê como importante, mas inexplicável a nossa própria imagem, já que não somos capazes
não ser pela apreensão direta de quem a vive. A de nos enxergamos por completo sozinhos. Ao
segunda porque entende ser a consciência um mesmo tempo, há algo ainda mais abrangente: a
fenômeno sem importância para a compreensão capacidade de reconhecer ao outro e a si mesmo
do comportamento que deveria ser explicado por como componentes do gênero humano, numa
fatores externos diretamente observáveis. Vigots‐ identificação de quem somos nós em diferencia‐
ki sugere que este estado de coisas na psicologia é ção aos outros seres no mundo. O outro nos no‐
crítico, pois se está deixando de lado justamente o meia primeiro, mesmo antes de nascer já pode‐
que diferencia o psiquismo humano do psiquismo mos ter um nome escolhido por nossos pais, de
animal, nossa consciência, nossa capacidade de início as crianças podem se referir a elas mesmas
observarmos a nós mesmos, como somos capazes do mesmo modo, pelo próprio nome, em terceira
de observar a outra pessoa, dentre as característi‐ pessoa. Mas o ato de referir‐se ao outro como
cas que nela podemos reconhecer. Tratarei aqui, alguém que tem nome próprio poderá lhe possibi‐
de modo resumido, alguns pontos pertinentes ao litar então perceber que também tem nome pró‐
conceito de consciência como psiquismo propria‐ prio e que ele pode ser designado por um prono‐
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
me pessoal singular na primeira pessoa: “eu”. O próprio dela para mim – naquela situação social
compartilhar o processo de comunicação e de dada num “aqui e agora”, mas também na memó‐
significação sobre as posições das pessoas nas ria posterior do já vivenciado, ampliação, redução,
relações umas com as outras, permitirá a emer‐ reinvenção do tempo‐espaço originário da vivên‐
gência da consciência tal como determinada pela cia em si.
existência social.
Deste ponto, podemos nos ater à dupla caracteri‐
Podemos a esta noção acrescentar a de consciên‐ zação da função da consciência como “reflexo e
cia como “vivência de vivências”, ou “experiência refração da realidade”. Na concepção de Vigotski
de experiências”, conforme a tradução. A “vivên‐ a consciência é mediada pela linguagem, a lingua‐
cia” (uma tradução para “perejivanie” 11 ), como gem não é tida como sua mera forma de expres‐
veremos a seguir é uma unidade da relação “per‐ são exterior, mas como sua própria “substância”
sonalidade e meio”, uma unidade da consciência. constitutiva, aquilo que lhe dá “corpo”. Falamos
Mas a consciência como tal, assim como é desdo‐ em “corpo” de modo metafórico, mas lembramos
bramento do conhecimento sobre o próprio co‐ da poesia de Osip Mandelshtan citada por Vigots‐
nhecimento, é ainda uma vivência duplicada. Não ki: “esqueci a palavra que pretendia dizer, e meu
só viver por estar vivo, como vive ou sobrevive um pensamento, privado de sua substância, volta ao
animal, mas ter a experiência vital com relação ao reino das sombras” (apud VIGOTSKI, 1934/1989c,
próprio ato de viver e todas as implicações que ele p. 103). Sendo então a consciência um processo
comporta. Isso não significa exatamente um ato semiótico, ou seja, constituído por signos e signifi‐
de domínio total sobre tudo que se passa em nos‐ cação, podemos trazer para a compreensão dela a
so viver, desde as sensações gerais que emanam orientação de Bakhtin (1992) para quem todo
dos órgãos dos sentidos (exterocepção), ou das signo “reflete e refrata a realidade”. Isto é, a lin‐
nossas estimulações internas (propriocepção e guagem e, portanto, a consciência, são ao mesmo
interocepção), até os movimentos pelos quais se tempo capazes de nos proporcionar um espelho
organiza a própria lógica de nosso pensamento. (reflexo) do real, fiel às suas contradições objeti‐
Não se trata de uma onisciência de nós mesmos, vas, quanto de nos proporcionar imagens diver‐
mas o sentir a experiência presente para nós gentes (refratárias) destas mesmas contradições.
mesmos, seja ela de qual fonte for, mesmo que Antes de me confrontar com a obra de Zaporojets
não tenha ainda um nome preciso que a defina. (2002), importante colaborador de Vigotski, eu
Nossa apropriação do mundo e de nossos próprios vinha compreendendo o duplo aspecto reflexi‐
estados corporais estará posta para nós não como vo/refratário da consciência como análogo à no‐
algo que nos é totalmente estranho. Mas como ção de “consciência como processo cognitivo e
algo com o que, ao nos estranharmos e perce‐ afetivo” (ver DELARI, 2000, p. 80‐103). Ocorre que
bermos o peso de sua singularidade, poderemos, para Rubinstein (1972), o aspecto cognitivo da
ao mesmo tempo, nos identificarmos e sentirmos consciência está em ser sempre “consciência de
como nosso. Vivo a emoção de passar por uma algo” (implicando a compreensão de uma dada
situação social intensa, de dor ou prazer, de ale‐ realidade objetiva) e seu aspecto afetivo consiste
gria ou tristeza, de esperança ou de medo, de em ser sempre “consciência da alguém” (sendo
frustração ou de realização, isso por si já é único. relacionada às suas necessidades e motivações
Mas, enquanto vivo, experiencio ainda o sentido subjetivas). Meu engano estava em pensar que
sempre o aspecto emocional estivesse envolvido
em uma “refração” do real, em dar um colorido
11
A palavra russa usada por Vigotski e outros autores como particular à nossa leitura de mundo, que fizesse
Rubinstein e Vasiliuk é “переживание” – “perejivanie”. Ela com que não déssemos conta da especificidade
tem várias traduções, como: “experiência”; “experiência concreta do objeto apreendido, mesmo que esse
emocional”; “experiência vital”; “vivência”; “emoção”; “afli‐ objeto fosse uma ação nossa.
ção”; “provação”; dentre as principais. Eu adotarei “vivência”
como na edição espanhola das “Obras Escolhidas” de Vigots‐
ki, apenas por ser uma palavra que traz em si um radical para Com a leitura de Zaporojets (2002) fui levado a
“vida”, e “perejivanie” em russo tem a ver com o verbo arcai‐ repensar. Pois segundo ele, as emoções também
co “jivat’”: viver. Não é necessariamente a mesma concepção têm a função de refletir a realidade, não são ape‐
de “vivência” da psicologia “fenomenológico‐existencial”, nas um modo irrealista de lidar com o mundo. É
embora haja espaço para esse diálogo.
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
possível compreender isso quando um medo nos mais como o turbilhão de água e gelo produzido
livra de situações desagradáveis, ou quando um quando um navio quebra‐gelo singra um mar gla‐
sentimento de solidariedade nos permite estabe‐ cial. A consciência não está num lugar, num “to‐
lecer alianças como alguém em função de um bem pos”, não é “tópica”, ela está mais para um movi‐
comum, ou quando um sentimento de responsabi‐ mento, uma dinâmica, um poder de realização,
lidade para com a fragilidade da vida de um bebê como se pode deduzir dos parágrafos anteriores.
nos impulsiona a estarmos mais atentos no cuida‐ Entretanto, a consciência não é tudo em nossa
do com ele. Assim o eixo refração/reflexão pode personalidade, mesmo para a psicologia histórico‐
ter uma relação combinatória com o eixo afec‐ cultural, até porque não é a consciência que reali‐
ção/cognição, mas não são sinônimos. Diríamos za o trabalho do homem, mas o homem que reali‐
por ora, que as emoções como aspecto inalienável za seu trabalho conscientemente e ao fazê‐lo não
da consciência e como mediadas pela linguagem, pode estar consciente de todos os aspectos de sua
podem assim tanto refletir quanto refratar o real, ação, o que se ocorresse nos levaria a um colapso.
e a cognição do mesmo modo. Podemos ter emo‐ O processo de agir conscientemente implica uma
ções que não condizem com a realidade como dialética com aspectos não conscientes da ativi‐
uma cólera com quem não nos fez exatamente um dade. Segundo Vigotski na realização de um de‐
mal efetivo, assim como podemos ter cognições terminado ato, “a atividade da consciência pode
que não condizem com a realidade, como uma seguir rumos diferentes” (1934/1989a, p. 78) 12 .
teoria da conspiração de que o homem nunca Tal foco não pode deter‐se todo tempo num só
chegou à lua. De todo modo, fica apenas registra‐ objeto, e não pode de modo algum deter‐se ao
do que a consciência em Vigotski não é um pro‐ mesmo tempo em todos os objetos de seu campo
cesso de natureza exclusivamente cognitiva ou de atuação e percepção. A própria análise do pen‐
racional, e a emoção no homem é momento fun‐ samento esquizofrênico leva Vigotski (1933/1987)
damental da formação de seu psiquismo: "O afeto a afirmar que a descontinuidade da consciência
é o alfa e ômega, o primeiro e o último elo, o pró‐ constitui‐se em uma de suas funções saudáveis,
logo e o epílogo de todo o desenvolvimento psí‐ ou seja, para um pensamento crítico com relação
quico" (VIGOTSKI, 1932/2006, p. 299). Está então ao real, é necessário “mudar de assunto”. Um
presente desde as formações sistêmicas mais bá‐ pensamento cujo foco fosse indefinidamente o
sicas, como o choro de um bebê, às mais comple‐ um mesmo tema discreto, ínfimo, insignificante,
xas e sutis, como a responsabilidade moral para não seria o de uma consciência saudável. Ora, no
com a vida desse mesmo bebê que chora. Um fluxo de nosso pensamento não temos todo o
suposto ser humano exclusivamente racional não domínio de como transitamos de uma associação
poderia ter uma visão realmente realista do mun‐ a outra, a própria motivação para cada mudança
do, estaria alheio às possibilidades de composição de assunto nem sempre está clara para nós.
que nos proporcionam mais ou menos avanço,
potência ou impotência, prazer ou dor, alegria ou Tudo isso já é sabido, porém cabe dizer que aqui
tristeza. não será de forma alguma esquecido ou ignorado,
embora não nos apressemos em encontrar causas
Por fim, muitas vezes ligado ao tema das emo‐ ocultas ou explicações míticas para como isso se
ções, vem o problema da “consciência e sua rela‐ dá. Como procurei destacar em outro lugar (DE‐
ção com os processos não conscientes”. Creio que LARI, 2001), Vigotski vê as formulações teóricas de
já esteja claro que “consciência” em Vigotski tem Freud sobre o tema inconsciente como demasiado
um papel muito diferente que o chamado “consci‐ biologizantes, reconhecendo o mérito deste autor
ente” em Freud, sobretudo o da primeira tópica mais na formulação de boas perguntas do que nas
que é tido apenas como algo superficial e sem
importância, uma “ponta do iceberg”. Quanto à
segunda tópica não cabe nos pronunciarmos aqui, 12
É sabido que o livro “Pensamento e linguagem” é uma
embora à consciência nela também não caiba
junção de textos anteriores, feita por Vigotski em 1934, mas
alguma atribuição muito maior do que a de lidar só os capítulos 1 e 7 são de 1934, os demais são de anos
com pressões de diferentes fontes. Mas se a me‐ anteriores. Como no momento não tenho as datas dos de‐
táfora histórico‐cultural fosse também com o gelo mais capítulos, os que forem citados aqui levarão a data
poderíamos dizer que a consciência em Vigotski é original também de 1934. Posteriormente corrigirei essa
imprecisão.
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
respostas que dá a elas. Por exemplo, elogia a essa discussão. Segundo Vigotski: “toda vivência
dúvida que se pretende responder com a hipótese está respaldada por uma influência real, dinâmica,
da “pulsão de morte”, dizendo não ser caminho do meio com relação à criança. Desde este ponto
fácil, mas “uma trilha alpina sobre os abismos para de vista, a essência de toda a crise reside na rees‐
aqueles que não padecem de vertigens” (VIGOTS‐ truturação da vivência interior, reestruturação
KI, 1991, p. 303). Mas não vê aí resposta apropria‐ que radica na mudança do momento essencial
da e enfatiza que “a ciência também tem necessi‐ que determina a relação da criança com o meio,
dade desses livros: livros que não descubram ver‐ isto é, na mudança de suas necessidades e moti‐
dades, mas que ensinem a buscar a verdade, ain‐ vos que são os motores de seu comportamento. O
da que não a tenham encontrado” (idem – p. 303). incremento e a mudança dessas necessidades e
Certamente, a obra do próprio Vigotski como de apetências é o aspecto menos consciente e volun‐
outros clássicos que conhecemos é também as‐ tário da personalidade e à medida que a criança
sim, muitas vezes mais instigante nas perguntas passa de uma idade a outra, nascem nela novos
do que conclusiva nas respostas. Desse modo, impulsos, novos motivos ou, dito de outro modo,
aceitando constatações comuns e o valor das dú‐ os propulsores de sua atividade experimentam um
vidas que elas nos trazem, é interessante lembrar reajuste de valores. O que antes era essencial para
também um tema talvez menos comum. Trata‐se a criança, valioso, apetecível, faz‐se relativo e
do problema da relação dos conteúdos e modo de pouco importante na etapa seguinte” (1933‐
operação da consciência com os seus motivos e 34/2006, p. 385 – grifo meu). No curso de nosso
sua orientação, os impulsos que animam e as me‐ desenvolvimento nossas prioridades mudam, e
tas a que se dirigem nossas ações. Para Vigotski, não temos total domínio quanto ao acontecimen‐
como para Freud (ver VIGOTSKI, 1925/1999 e to dessas mudanças, pois ocorrem no enlaçamen‐
1930/1987,), não há emoção inconsciente: não to de linhas biológicas e culturais, que não criamos
tenho como estar triste sem me entristecer, nem em absoluto e com as quais vamos criando a nós
alegre sem me alegrar. A emoção é sempre um mesmos em nossas vivências. Isso não só na onto‐
fato real e presente à consciência tal como desen‐ gênese com suas crises, mas também no interior
volvida socialmente. Contudo, posso estar triste de diversas outras crises próprias à nossa relação
ou alegre, incomodado ou satisfeito, sem ter co‐ tensa com e na realidade física, biológica e social
nhecimento claro do motivo que me levou a estar. da qual somos componentes e compositores, mas
É uma idéia simples, mas importante, que nos não necessariamente de modo confortável ou
conduzirá a discussões posteriores. Por ora, cabe‐ harmonioso. Isto por ser a vida drama e drama ser
ria apenas destacar que não temos domínio de conflito, por definição. Investigar o tema das ne‐
todo o conjunto de relações sociais nas quais se cessidades, impulsos, motivos e, sobretudo, valo‐
constitui nosso drama de papéis, e os conflitos res, na dialética consciência/inconsciente torna‐se
que lhes são próprios, mas a significação que da‐ tarefa árdua e necessária para o desenvolvimento
mos às coisas, aos outros e a nós mesmos, é cons‐ futuro da perspectiva histórico‐cultural. Tarefa
tituída no interior de tais relações cuja totalidade para cujo cumprimento o suporte reside nos pró‐
nos escapa. Só isso já nos dará o que pensar, se prios princípios comentados brevemente até aqui,
concebermos o que não nos é consciente como ainda que seu desfecho nos ultrapasse.
tão social, histórico e cultural quanto nossa cons‐
ciência, em sua dialética com ela. Poderíamos a 2.4 Princípio da compreensão da consciência me‐
isso acrescentar, portanto, a contribuição de Ba‐ diante unidades
khtin (2004) de que a natureza mais profunda de
nossos conflitos é essencialmente ideológica (va‐ Podemos, portanto, definir consciência de dife‐
lorativa) e não biológica (instintiva), tal qual em rentes e complementares maneiras, como: “co‐
outras abordagens. É quanto às motivações e ne‐ nhecimento partilhado” (co‐conhecimento); “pro‐
cessidades sociais, aos valores ideológicos, i.e., cesso reflexivo” (meta‐conhecimento); “vivência
próprios a uma “visão de mundo”, que nos per‐ de vivências”; “ato de reflexão e refração”; e ain‐
guntamos: quais as forças motivadoras dos nossos da “síntese afetivo‐cognitiva”. Mas cabe notar
atos, como tomarmos consciência delas? ainda que nada disso é dado para o homem de
modo imediato, instantâneo. Trata‐se de caracte‐
Cabe lembrar que o tema da vivência se articula a rísticas de nossa existência que se adquirem no
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curso de nossas relações com os outros, que se peça chave na compreensão da mente humana.
modificam ao longo do desenvolvimento biológi‐ Mas, atendo‐nos por enquanto apenas ao próprio
co‐cultural, com o suporte de distintas mediações. Vigotski, entendamos que há duas formas princi‐
O conjunto das funções da consciência, não só em pais dele mesmo compreender a unidade para a
suas características gerais, mas também na articu‐ consciência, uma unidade que é tanto no sentido
lação das funções mentais, como memória, aten‐ de como a consciência existe mesmo, se constitui,
ção, vontade, percepção, raciocínio, e a própria quando simultaneamente no sentido de como se a
linguagem que proporciona relações inter‐ pode estudar. No campo das relações entre “per‐
funcionais, é um todo complexo, dinâmico e sis‐ sonalidade e meio” essa unidade é a “vivência”
têmico, semanticamente estruturado. Não temos (“perejivanie” 13 ), no âmbito das relações entre
como apreendê‐lo de modo direto, nem instantâ‐ “pensamento e linguagem” essa unidade é o “sig‐
neo. A consciência de alguém só se nos dá a ver nificado da palavra”, “palavra significativa” ou
por pistas, indícios, processos de exteriorização simplesmente “palavra”, considerando que só
que por sua vez já transformam o que antes de pode ser palavra se tiver significado. No meu en‐
serem realizados estava posto na esfera privada tendimento não são “instâncias” separadas, pala‐
do psiquismo dessa pessoa. Não podemos ter vra e vivência compõem‐se mutuamente: com a
acesso direto ao ser do outro, tampouco temos palavra eu digo o que vivenciei; com a vivência
acesso direto ao nosso próprio ser, mas indireto, minha palavra tem realmente o que dizer. Contu‐
mediado por palavras que com mais alguém a‐ do, o campo das relações “personalidade e meio”
prendemos. Vigotski aborda esse problema não não pode deixar de nos parecer mais vasto, posto
pela via da postulação de um incomunicabilidade que meio social está ainda em composição com o
a todo custo de um ser humano com outro, isto é, meio biológico e o físico, posto que a personalida‐
não pelo chamado “solipsismo”. Mas por uma via de não envolve só o que é consciente, mas tam‐
indireta. Não se pode dizer que não somos capa‐ bém o que não é. Ainda assim, será só mediante a
zes de estudar o átomo tão somente porque não linguagem que esse campo vasto poderia deixar
podemos vê‐lo, que só o poderíamos estudar se de ser apenas algo “em si” e tornar‐se também
ele nos afetasse os órgãos dos sentidos. Assim “para si”, isto é: não só existir como tal, mas tam‐
também não se pode abdicar do estudo da cons‐ bém para alguém, significando‐lhe algo, fazendo‐
ciência, o que há de especificamente humano em lhe algum sentido. Desta forma, o menos vasto
nosso psiquismo, por não termos acesso direto a não é de importância ontológica nem metodológi‐
ela. Toma‐se um caminho indireto, aborda‐se o ca menor. Porém, pela ordem da exposição, co‐
objeto de estudo mediante suas manifestações, e mentemos primeiro algo sobre a vivência como
com apoio delas se busca reconstruir sua gênese. unidade e em seguida sobre o significado.
Nesse contexto, pode‐se colocar em pauta a dis‐
cussão sobre as chamadas “unidades de análise”. Um dos principais momentos em que Vigotski
A unidade, para Vigotski, diferente dos “elemen‐ discute a questão da vivência como unidade afeti‐
tos”, contém de modo condensado as principais vo‐cognitiva foi em uma comunicação oral sua,
contradições do todo. Como uma célula viva pos‐ cuja transcrição posteriormente recebeu o título
sui as funções principais de um ser vivo completo, de “O problema do ambiente” (VIGOTSKI, 1935/
como o processo de produção de valor de troca 1994) 14 . Ali Vigotski procura destacar que a influ‐
possui as contradições principais da economia ência do meio social sobre a criança não é absolu‐
capitalista. ta, mas relativa ao seu momento de desenvolvi‐
mento e a assim à sua vivência. Isso não se aplica
Contudo, se a célula pode ser uma unidade da só às crianças, mas o exemplo prático trabalhado
biologia, e a produção de valor de troca uma uni‐ pelo autor é o de três crianças com dificuldades
dade da economia política, qual seria a unidade de no processo educativo, que haviam presenciado o
análise da psicologia, para o estudo da consciên‐ adoecimento da mãe, por alcoolismo, e todas as
cia? Toda uma discussão sobre o método científi‐
co se ergue em torno disso, em outras abordagens
temos diversas unidades. Na própria psicologia 13
Confira a nota “11”, p. 18.
14
marxista soviética, há mais de uma formulação e Aqui também, a fonte só fornece o ano da primeira publi‐
nem todos concordam sobre qual deveria ser essa cação, mas não a data de quando o trabalho teria sido conclu‐
ído.
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conseqüências desse processo nas relações dela Nessa conferência o autor disse claramente: “po‐
com elas. O que ele argumenta é que com uma demos assinalar (...) a unidade para o estudo da
influência do meio relativamente estável, a doen‐ personalidade e o meio. Em psicologia e psicopa‐
ça da mãe, as crianças vieram a apresentar atitu‐ tologia essa unidade se chama vivência. A vivência
des bastante diversas. O mais novo desenvolve da criança é a aquela simples unidade sobre a qual
“sintomas neuróticos”, subjugado pelo horror é difícil dizer se representa a influência do meio
acaba por entrar em “estado de depressão com‐ sobre a criança ou uma peculiaridade da própria
pleta e desamparo”. O segundo experimenta um criança. A vivência constitui a unidade da persona‐
“complexo de mãe‐bruxa”, no qual “o amor pela lidade e do entorno tal como figura no desenvol‐
mãe e o terror pela bruxa coexistem” (VIGOTSKI, vimento. Portanto, no desenvolvimento, a unida‐
1935/1994, p. 340), o que o levava a um compor‐ de dos elementos pessoais e ambientais se realiza
tamento contraditório, como quando pediu para em uma série de diversas vivências da criança. A
ser levado para casa, mas logo demonstrou terror vivência deve ser entendida como a relação inte‐
quando se voltou a tocar no assunto. Por fim, o rior da criança como ser humano, com um ou ou‐
terceiro tinha habilidade mental limitada, mas tro momento da realidade. Toda a vivência é vi‐
“mostrou sinais de maturidade precoce, seriedade vência de algo. Não há vivências sem motivo, co‐
e solicitude” (VIGOTSKI, 1935/1994, p. 340), as‐ mo não há ato consciente que não seja ato de
sumindo um papel de “adulto da casa” e cuidando consciência de algo. Entretanto, cada vivência é
dos demais. Vigotski entende que “era uma crian‐ pessoal. A teoria moderna introduz a vivência
ça cujo curso do desenvolvimento normal foi vio‐ como unidade da consciência, isto é, como unida‐
lentamente cindido, um tipo diferente de criança” de na qual as possibilidades básicas da consciência
(1935/1994, p. 341) cujos interesses não eram figuram como tais, enquanto que na atenção, no
simples como os próprios de sua idade. Seriam pensamento não se dá tal relação. A atenção não
esses alguns exemplos clínicos de vivências dife‐ é uma unidade da consciência, senão um elemen‐
rentes, momentos de desenvolvimento distintos, to da consciência, carente de outros elementos,
mas, acima de tudo, sínteses diversas entre os com a particularidade de que a integridade da
momentos de desenvolvimento e as influências do consciência como tal desaparece. A verdadeira
meio social. Cabe ao psicólogo histórico‐cultural unidade dinâmica da consciência, unidade plena
investigar e compreender tais vivências e não ao que constitui a base da consciência é a vivência.”
meio como índice absoluto, nem à bagagem gené‐ (VIGOTSKI, 1933‐34/2006, p. 383). Nas funções
tica como índice absoluto. Outro exemplo, dado psicológicas isoladas (atenção, pensamento, me‐
por Vigotski no mesmo texto, de cunho mais geral, mória, percepção), não se poderia ter uma síntese
é o da influência da linguagem dos adultos sobre mais fiel do conjunto da ação da consciência. A
as crianças. Posto que o modo como os adultos vivência não é só o que pensamos, ou para o que
falam uns com os outros na presença da criança, a estamos atentos, mas o ato integral do homem de
estrutura gramatical, o vocabulário, etc., não é pensar, atentar, sentir, lembrar, perceber, um
distinto para uma criança pequena, para uma pré‐ dado momento de sua existência, produzindo
escolar, uma escolar, etc., contudo a influência é sentidos para ela. Nessa direção, entendemos que
distinta em cada momento. O processo de desen‐ a mediação da linguagem está presente na vivên‐
volvimento importa para a compreensão de como cia como um dos modos de buscarmos compre‐
o meio social pode influir sobre a criança. Embora ender a dinâmica da consciência da qual a vivência
o desenvolvimento não seja uma força isolada, é uma unidade viva essencial.
mas já um processo auto‐determinado geral que
sintetiza tanto a influência do meio, quanto da Assim, por um lado, a vivência é, como vimos,
herança. Tal idéia será apresentada talvez de mo‐ uma unidade cognitivo‐afetiva de interpretação e
do ainda mais dinâmico em outro texto do autor, sentimento do real na qual a consciência realiza
também proveniente de uma conferência minis‐ sua potência e ao mesmo tempo, portanto, uma
trada em Moscou, que se intitulou “a crise dos unidade “personalidade e meio”, uma vez que a
sete anos” (VIGOTSKI, 1933‐34/2006). 15 consciência também poder ser definida como “a
15
Já citado anteriormente para discutir a questão das mu‐ danças dos motivos, necessidades e valores na página 20.
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relação da criança com o meio” (VIGOTSKI, 1933‐ minha audição e transpõe sua codificação para as
34/2006, p. 386). Por outro, a consciência enten‐ áreas cerebrais correspondentes; tanto quanto
dida como referente também a uma relação entre (b’) se eu, além disso, atribuo sentidos para o que
a linguagem e o pensamento terá como sua uni‐ o outro pronuncia, no próprio ato de dirigir a ele
dade o “significado”, que é ao mesmo tempo um minha réplica, com aprovação e/ou rejeição, com
fenômeno da comunicação social e da organização algum juízo de valor. Pensando assim, como dizer
sistêmica das funções mentais. Não é um tema de se a linguagem é algo do meio social ou de nós
compreensão simples. Poderíamos imaginar que a mesmos? Não seria ao mesmo tempo de ambos,
linguagem fosse um aspecto do meio, e o pensa‐ até porque somos parte desse meio que não nos é
mento um aspecto da personalidade – para falar‐ externo? Não seria um fenômeno de “interface”?
mos de modo didático sobre pares distintos que O mesmo ocorre ao falarmos com alguém: falo
se inter‐relacionam. Assim, como nem tudo que é produzindo o signo de meu convite à réplica ao
meio é linguagem, e nem tudo o que é personali‐ outro, mas a um só tempo ouço o que falo como
dade é pensamento, seria uma distinção apenas que vindo de “fora”. O signo possui tanto “rever‐
quanto ao grau de abrangência. Contudo, como sibilidade” (pode originar‐se de mim e dirigir‐se
não se trata só de “combinação” ou “interação” também a mim) quanto “simultaneidade” (pode
entre os pólos distintos, mas de inter‐constituição existir ao mesmo tempo em mim e não apenas em
e integração dialética, a divisão “{meio (lingua‐ mim). O fenômeno ocorre em nossos cérebros,
gem)} <‐> {personalidade (pensamento)}” é im‐ mas também para além deles, em ligações que
precisa e insuficiente. Por quais motivos? Primeiro Luria chamou de “extra‐corticais”. As fronteiras
porque o ser humano faz parte de seu próprio “interno” e “externo” na linguagem se diluem.
meio e “seu meio nunca é externo para ele” (VI‐
GOTSKI, 1933‐34/2006, p. 382), depois porque a Que dizer então do pensamento? Talvez, em com‐
própria personalidade já é definida como “o social paração com os termos já comentados (personali‐
em nós” (VIGOTSKI, 1931/2000, p. 337). Ou seja, dade, meio, linguagem), seja aquele ao qual mais
ela não é algo independente, pré‐existente às comumente possamos atribuir uma característica
relações com o meio que pela pressão ou permis‐ privada, íntima, “interior” – pois “como saber
são dele apenas “é modificada”, ou “modelada” realmente o que outra pessoa está pensando?”.
como uma massa passiva antes indiferenciada que Mas também o pensamento é fenômeno de inter‐
toma forma pela ação de uma força exterior. Dito face. Em primeiro lugar, porque para pensarmos é
de modo metafórico, a personalidade não seria preciso pensar “sobre algo”. Não há pensamento
como uma marionete de uma peça de teatro, sob “puro”, sem imagens, sem impressões, sem influ‐
o controle de uma manipuladora “sociedade”, ências, sem voltar‐se à compreensão de alguma
seria mais como a encarnação do ator situado coisa que não seja só ele mesmo. Em segundo
com relação aos demais na performance do drama lugar, porque também é preciso pensar “de algum
da vida social, com toda tensão e conflito que ele modo”. Não há pensamento sem modos de orga‐
envolve. nizá‐lo, sem formas de construir um argumento,
mediante recursos retóricos que se voltem ao
De modo análogo, embora não idêntico, a lingua‐ convencimento e/ou à busca de consensos, etc. E
gem também não pode ser considerada como algo tais modos de organização também não nascem
totalmente “externo a nós”. Quando eu ouço al‐ conosco, precisamos aprendê‐los em práticas
guém falar, as suas palavras existem, por um lado, partilhadas com outras pessoas. Contudo, não por
independentemente de mim: (a) de meu corpo, na uma oposição externo‐interno, mas pela própria
materialidade sonora delas, como ondas, como complexidade dos fatores envolvidos nas relações
energia que se propaga, etc.; (b) de minha vonta‐ de constituição mútua entre pensamento e lin‐
de, na sua especificidade semântica como posição guagem, a noção do significado da palavra como
ideológica de alguém, com história própria, que unidade dessa relação se faz importante. Justa‐
não se subordina à minha, mesmo que para falar‐ mente porque uma palavra significativa é tanto
me sempre leve em conta minha possível réplica. algo que pertence às relações sociais quanto aos
Por outro lado, nesse mesmo ato de ouvir, a lin‐ processos de generalização do real próprios ao
guagem só se realiza: (a’) se é produzida em mim funcionamento do pensamento.
uma materialidade neurofisiológica que sustenta
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Na palavra, o seu som ou traço escrito não são um que não são ela mesma, mas que mediante ela, de
fenômeno que se esgote em sua própria existên‐ diversos modos, são evocadas, desde os mais sin‐
cia imediata, não são apenas uma “coisa” entre créticos, desorganizados, aos mais conceituais,
outras no mundo, que só pode nos afetar como sistemáticos e ordenados. Por este motivo, dentre
estímulo aos nossos órgãos sensoriais. Ao contrá‐ outros, o “significado” pode se tornar unidade de
rio, na palavra, o som ou traço estão ali designan‐ análise para as relações “pensamento e lingua‐
do ou significando algo que não eles mesmos, gem”, unidade para a compreensão da consciên‐
para além deles e que, mediante eles, de alguma cia.
maneira, torna‐se presente. Se alguém diz: “cho‐
verá”, a palavra evidentemente não é a própria Trata‐se, portanto, de um tema essencial na obra
chuva, mas ela é capaz de nos indicar o que pode de Vigotski, e também repleto de desdobramen‐
vir a acontecer. Se eu digo: “estive em Campinas”, tos impossíveis de retratar detalhadamente aqui.
também meus signos não têm sentido senão ao Neste momento, como algo a retomar em segui‐
possibilitar a outrem posicionar‐se frente ao que da, vale destacar que junto ao conceito de signifi‐
digo, perguntando que fui fazer lá ou sugerindo cado situa‐se o de sentido, o qual para Vigotski é
que não lhe importa o assunto, por exemplo. As‐ uma “região” mais ampla da significação, sendo o
sim, a linguagem para significar demanda que seu significado só “um potencial, que só pode ser rea‐
componente sensorialmente presente remeta a lizado na fala viva, e na fala viva o significado é
algo que não está necessariamente presente no apenas uma pedra no edifício do sentido” (Vigots‐
campo perceptivo. Seja por nossas palavras reme‐ ki, 1934/1987 p. 276). A noção de sentido em Vi‐
terem a algo distante no tempo e/ou no espaço: a gotski também é social. Não se trata exatamente
chuva (aqui, mas depois); Campinas (lá e antes). de que apenas o significado seja social e o sentido
Seja pelo dito/escrito não poder traduzir‐se por pessoal. Essa é uma forma de pensar, não é incor‐
imagem sensorial tão nítida, mesmo acontecendo reta, mas também não é de todo precisa. Se para
aqui e agora: a apreensão pela proximidade da haver sentido é necessário haver linguagem, e se
chuva; a satisfação pela lembrança da viagem, etc. o sentido é algo próprio da linguagem não pode
A palavra pode nos transportar à experiência da deixar de ser um processo tanto pessoal quanto
chuva ou da viagem, não apenas por ser feita de social. Contudo, o que leva alguns autores a cate‐
som ou traço, em si, mas por ter um “significado”. gorizar o sentido como algo predominantemente
Chamemos de “significado” o processo de genera‐ “subjetivo”, pode ser o fato de que o sentido im‐
lização que nos permite vincular som/traço (signi‐ plica uma singularidade mais evidente para o nos‐
ficante) com aquilo a que ele se refere (referente). so modo de sentir e compreender cada palavra,
Seja esse referente algo conversível em represen‐ cada signo. O sentido atribuído por cada pessoa
tação sensorial em nossa imaginação – como nu‐ em particular para uma mesma “chuva”, para uma
vens escuras carregadas para a chuva ou a dispo‐ mesma “viagem”, cujo significado já múltiplo
sição de estrelas junto à Lua num começo de noite permite a composição de regiões semânticas par‐
em Campinas. Seja ele algo mais dinâmico e/ou tilhadas, tende a ser ainda mais diverso e multifa‐
abstrato – como os sentimentos de apreensão ou cetado. O sentido é potencialmente único, no
satisfação com relação à experiência vivida ou por limite “intransferível” em sua totalidade, plasma‐
viver. O significado, portanto, não é nem o objeto do possivelmente à própria vivência singular de
em si, nem o som/traço em si, mas a nossa ação cada pessoa, um acontecimento que não se repe‐
semiótica em realizar algum modo de articulação te. Ainda assim, não é totalmente precisa a afir‐
entre os dois. Uma só palavra pode remeter e mação de que ele não seja social em sua origem e
remete a diferentes objetos: a palavra “homem” funcionamento. Por um lado, porque para se fazer
não se refere somente a “este” ser humano que tão impar e multifacetado, o sentido comporta em
aqui vejo e nomeio, ela se torna para mim um sua realização já toda a trajetória de vida de al‐
conceito geral, aplicável mesmo para pessoas que guém, na qual, junto aos outros, se constitui sua
ainda não vi ou jamais verei. Vigotski (1934/1987; “visão de mundo” (ou ideologia, lato sensu) e está
1934/1989b; 1934/2001) fala do significado como implicado o desenvolvimento de sua personalida‐
uma generalização ou um conceito. E a palavra de, social por definição. Por outro, porque sua
não é palavra se não tem esse poder de generali‐ definição envolve o reconhecimento de uma ten‐
zação, esse poder de remeter a outras realidades são constitutiva do processo de significação que
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realiza, tensão essa inerente ao drama de papéis dois pontos: (a) certamente que a palavra não
sociais assumidos por cada pessoa, e ao ato afeti‐ pode tomar todo o lugar da consciência, como
vo‐volitivo necessário para situar‐se nesse drama, célula e átomo não são mais importantes que
assumindo papéis e posições, confrontando moti‐ organismo e cosmos; mas também (b) como uni‐
vações e necessidades concorrentes, transfor‐ dade viva ela não é algo simplesmente “utilizado”
mando‐as em outras nesse mesmo ato, realizando pela consciência de tal modo que pudesse de al‐
escolhas imprescindíveis para a vida seguir seu guma maneira tornar‐se “dispensável”, ao contrá‐
curso. rio, a totalidade não se realiza sem sua unidade
constitutiva.
De qualquer maneira isso não diminui o lugar do
significado, pois não está isolado da construção do 2.5 Princípio da compreensão do psiquismo huma‐
“edifício” do sentido. Não é uma modalidade peri‐ no mediante sua gênese histórica (origem e de‐
férica da significação, mas uma unidade que pode senvolvimento)
permitir‐nos compreender os campos mais am‐
plos do sentido, da vivência e da própria consciên‐ Discorremos no tópico anterior sobre duas unida‐
cia. De fato palavras como “chuva” e “viagem”, des possíveis para a definição da própria existên‐
podem produzir inumeráveis efeitos de sentido, cia da consciência (critério ontológico) e para a
formações de sentido, em função de quem está definição de como analisá‐la, compreendê‐la (cri‐
falando, para quem, por quais motivos, com quais tério metodológico). Discorrendo brevemente
orientações, de que modo, com relação a quais sobre o lugar do conceito de “significado” em
referentes, e assim por diante. Contudo, o fato de Vigotski, pudemos tocar no tema das relações
haver um acordo social relativo à constituição dos pensamento e linguagem, e das relações sentido e
campos semânticos para tais palavras, isto é, com significado. Contudo, tal exposição fica devendo
relação que modalidades de generalização elas ainda a alusão a uma proposição que Vigotski
mais comumente são postas a produzir, não é considera um ponto central em sua teoria sobre
impeditivo da singularidade dos sentidos, mas as relações entre pensamento e linguagem. Refe‐
também uma das suas condições de possibilidade. rindo‐se a estudos realizados por seu grupo, diz
O mesmo se pode dizer para quando é necessário que eles: “mostraram que tomando o significado
nos fazermos, em meio a toda diversidade inesgo‐ da palavra como uma unidade do pensamento
tável dos sentidos, entender por alguém, dizer‐lhe verbal nós criamos o potencial para investigar seu
algo que posicione nossas motivações e necessi‐ desenvolvimento e explicar sua característica mais
dades, nossas orientações e propósitos, nossos importante nos vários estágios de desenvolvimen‐
compromissos e valores, mesmo sendo eles algo to. O resultado principal deste trabalho, contudo,
tão nosso, tão privado, tão íntimo e intransferível. não é esta tese por ela mesma, mas uma conclu‐
Assim tanto a difusão dos significados em senti‐ são subseqüente que constitui o centro conceitual
dos, quanto a condensação dos sentidos em signi‐ de nossa investigação, qual seja, a conclusão de
ficados, são momentos dialéticos de um mesmo que o significado da palavra desenvolve‐se. A des‐
processo que é a significação, ou a mediação se‐ coberta de que o significado da palavra muda e se
miótica, ambos os termos tomados em sua acep‐ desenvolve é nossa maior e fundamental contribu‐
ção mais abrangente, como produção de significa‐ ição à teoria do pensamento e da fala. É nossa
dos e sentidos mediante o signo, mediante a pala‐ principal descoberta, uma descoberta que tem
vra como signo humano por excelência, seja ela nos permitido superar o postulado da constância e
falada, escrita ou gesticulada. Por fim, o tema da imutabilidade do significado da palavra que garan‐
unidade de análise em Vigotski, do significado da te os fundamentos das teorias anteriores do pen‐
palavra como unidade de análise é correlato ao da samento e da fala” (VIGOTSKI, 1934/1987, p. 245‐
“palavra significativa” como “microcosmo”. Se‐ 245 – grifo na fonte). O desenvolvimento do signi‐
gundo este autor: “A palavra se relaciona com a ficado das palavras é tratado ao longo de todo o
consciência (...) como a célula viva com o orga‐ livro “Pensamento e linguagem” (VIGOTSKI,
nismo, como o átomo com o cosmos. (...) A pala‐ 1934/1987; 1934/1989b; 1934/2001). Há duas
vra significativa é o microcosmo da consciência formas importantes pelas quais tal processo de
humana.” (VIGOTSKI, 1934/1989d, p. 208 – grifo desenvolvimento é abordado: uma é o estudo dos
na fonte). Quanto a esta passagem devo destacar “conceitos artificiais”, outra é o estudo da relação
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
entre os “conceitos cotidianos e os científicos”. tivas” e “involutivas”. Tal processo envolve, por‐
Sem entrar em detalhes, do primeiro tipo de estu‐ tanto, avanços e retrocessos, períodos de aquisi‐
do se deduziram três grandes modalidades de ções gradativas, acúmulos quantitativos, mas
organização dos significados e/ou da relação pen‐ também momentos de crise que podem rumar
samento e linguagem: (a) sincretismo (aglomera‐ para pontos de culminância nos quais se realizem
ção); (b) pensamento por complexos (associa‐ sínteses dialéticas, pontos de virada, guinadas,
ções); (c) conceitos propriamente ditos (sistemati‐ saltos qualitativos, nos quais as nossas motiva‐
zação). Para a criança pequena predomina a pri‐ ções, orientações e valores se modificam, inver‐
meira, para o adulto a última, mas ao longo do tem‐se, subvertem‐se ou convertem‐se em ou‐
tempo ou num mesmo período elas se combinam tros, como vimos anteriormente 16 . Dito isso, po‐
também. Nada impede que nós adultos tenhamos demos destacar ainda, brevemente, mais alguns
compreensão sincrética de assuntos novos ou princípios metodológicos gerais que caracterizam
difíceis de aprender, nem que procedamos por a orientação da teoria histórico‐cultural para a
associações assistemáticas ou pré‐conceituais em pesquisa das funções psíquicas superiores, isto é,
alguns temas. O segundo tipo de estudo foi o que propriamente humanas, mas que no nosso ponto
procurou investigar as relações entre conceitos de vista são de valor primordial também para a
“cotidianos” e “científicos”. Disto se tiraram as prática profissional como um todo.
conclusões gerais de que: os conceitos cotidianos
avançam do concreto para o abstrato com ajuda No capítulo 5 da coletânea “A formação social da
dos científicos; já os científicos avançam do abs‐ mente”, são apresentados por Vigotski (1930/
trato para o concreto, com ajuda dos cotidianos. 1989b), três parâmetros básicos para pesquisas
psicológicas que se proponham a compreender
É algo semelhante o que pode se passar com um seu objeto de estudo do ponto de vista de sua
grupo de estudos. Agora este texto pode estar gênese, sua origem e desenvolvimento histórico:
abstrato, mas com ajuda dos exemplos cotidianos (a) a análise de processos e não de objetos; (b) a
que vão surgir nas discussões eles poderão se explicação dinâmico‐causal e não apenas a descri‐
tornar mais potentes, mais concretos, mais capa‐ ção; e (c) investigar processos aparentemente
zes de aplicar‐se à vida, à profissão, e de ajudar a “fossilizados” mediante a reconstituição da sua
organizá‐las. Isso será retomado constantemente. origem viva. O parâmetro “a” nos sugere que as
Por ora, apenas nos cabe deduzir que se a unidade funções psíquicas, assim como o homem no qual a
para a análise da consciência humana é um pro‐ síntese viva delas se realiza, não podem ser trata‐
cesso que se desenvolve, a própria consciência das como “coisas” que tão somente se possa me‐
também não permanece imutável ao longo de dir ou pesar, como algo estático e imutável. Fun‐
nossas vidas. Desenvolver‐se é uma propriedade ções psíquicas não são objetos, mas potências,
fundamental da consciência tanto quanto de sua modos de agir, sentir e pensar, cabendo conside‐
unidade de análise. Ela se transforma não só rá‐las sempre em seu movimento, nas transfor‐
quanto aos seus conteúdos, objeto de sua ação e mações que as tornaram aquilo que são, e que já
simbolização, mas também quanto aos seus mo‐ as estão tornando aquilo que serão. Uma apreen‐
dos de organizar‐se, em sua dialética entre forma são instantânea de qualquer manifestação psíqui‐
e conteúdo. A consciência transforma‐se, desen‐ ca isolada da processualidade da atividade huma‐
volvesse‐se ao longo de períodos sucessivos dife‐ na, não poderá ser suficiente para compreender a
renciados, passa por transições críticas entre eles dinâmica que a gerou, tampouco aquilo que agora
e se constitui, num momento atual (sincrônico) de ela é e pode vir a ser. Isso conduz ao parâmetro
seu funcionamento, da articulação entre suas “b” que indica, em Vigotski, uma diferenciação
aquisições anteriores e seu potencial futuro, em entre “explicar” e apenas “descrever”. Para expli‐
relação com os outros. Do mesmo modo, com car também é preciso descrever, mas esse é um
respeito a todo psiquismo humano, a abordagem movimento insuficiente para a explicação. Descre‐
histórico‐cultural, busca compreender sua forma‐ vendo superficialmente uma baleia podemos igua‐
ção social como processo de desenvolvimento, lá‐la a um peixe, ou falando das características
auto‐determinado e inter‐determinado, múltiplo,
complexo e que não se dá de modo linear, mas
“revolucionário”, na dialética entre linhas “evolu‐ 16
Ver página 20.
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
externas de um morcego, poderemos igualá‐lo a to de vista da espécie todos os grupos culturais
um pássaro. Mas do ponto de vista de sua origem, possuem o mesmo aparato e, portanto, o mesmo
baleia e morcego são os mais próximos um do potencial para desenvolver o que qualquer ser
outro do que dos pares similares em sua aparên‐ humano é capaz de desenvolver. As diferenças
cia. Vigotski recorre à contribuição de Marx, para entre os sucessos ou insucessos dos povos nada
quem “se as aparências coincidissem com a es‐ teriam a ver com os indivíduos que os compõem
sência, a ciência não seria necessária”. Assim ex‐ terem menor ou maior capacidade orgânica para
plicar é buscar a essência, e a isso só se chega pela desenvolver este ou aquele aparato simbólico ou
compreensão da gênese, origem e desenvolvi‐ técnico. Chamaremos de Sociogênese a própria
mento. Quanto ao parâmetro “c”, trata‐se tam‐ história do desenvolvimento dos diferentes gru‐
bém de algo que se desdobra do dito anterior‐ pos sociais, ou seja, a história no sentido mais
mente. Contudo, o foco está em que pode haver específico do termo, a história humana. Certa‐
comportamentos, hábitos motores ou intelectu‐ mente, mesmo pertencendo todos os seres hu‐
ais, modos de organizar talvez nossos próprios manos à mesma espécie, as sociedades têm suas
sentimentos, que tenham se tornado já tão auto‐ características culturais distintas, seus códigos
máticos, aparentemente tão “naturais”, que não peculiares, seu próprio domínio da técnica e da
percebamos que tiveram uma origem histórica, linguagem. Assim também uma mesma cultura, ao
social, cultural, mediada. Assim a tais organizações longo do tempo, terá sua própria trajetória, sua
“cristalizadas” do funcionamento psíquico, Vigots‐ tradição específica, avanços e retrocessos, sua
ki nomeou com a metáfora do “fóssil”. Um fóssil é formação política, seus inimigos e aliados, seus
algo sem vida que trás as marcas de que algo vivo conflitos internos e com outros povos, seus dispo‐
esteve ali antes e lhe deu origem. Contudo trata‐ sitivos de controle e suas lutas por emancipação, e
se de algo apenas aparentemente sem vida. O assim por diante. Certamente, ao longo desse
papel do psicólogo é reconstituir a origem media‐ longo tempo histórico, formas de significar o
da e viva desses processos tornados “imediatos” e mundo são desenvolvidas, modos de educar os
“sem vida”. mais novos, tanto quanto. De modo que a forma‐
ção social do psiquismo individual também decor‐
Na fusão desses três parâmetros reside a análise re das propriedades esse plano genético, embora
“genético‐causal”. Ela estuda processos e não só não sejam coincidentes.
objetos. Busca as causas e não só os efeitos, a
explicação e não só a descrição, a essência e não Chamamos de ontogênese a história do desenvol‐
só a aparência, bem como o vivo e não o fossiliza‐ vimento do ser humano singular. Trata‐se do pro‐
do. Ela o faz pelo recurso ao estudo da gênese. cesso histórico que compreende todo o tempo de
Uma última consideração sobre a abordagem dos vida de uma pessoa, de um indivíduo, de um ser
fenômenos pela gênese, ou, se preferirmos, por único. Para Vigotski “de nenhuma maneira (...) a
sua história, é a de que há, pelo menos, quatro ontogênese repete de alguma forma ou reproduz
planos (ou domínios) genéticos, conceitos de his‐ a filogênese ou constitui seu paralelo” (1931/
tória, encontrados nas pesquisas de Vigotski, por 1989, p. 93). Não repete basicamente pelo motivo
parte de seus estudiosos contemporâneos (ver de que ao surgirem os primeiros representantes
WERTSCH, 1985; e SCRIBNER, 1985). Aqui os no‐ adultos da espécie Homo sapiens, havia ainda
mearemos como: filogênesse; sociogênese; onto‐ adiante deles todo o desenvolvimento histórico
gênese; e microgênese. A filogênese define‐se das civilizações e culturas humanas por se dar.
como história do desenvolvimento da espécie. Enquanto que a criança em seu desenvolvimento
Esse domínio diz respeito ao longo processo evo‐ ainda não é um adulto em termos biológicos, mas
lutivo pelo qual viemos a surgir como espécie com já está imersa numa cultura com todo seu acúmu‐
traços distintivos decisivos para a organização lo simbólico e técnico disponível para ela – fun‐
biológica que possuímos hoje. Organização neces‐ dindo‐se seu desenvolvimento biológico com o da
sária, mas não suficiente para nos desenvolver‐ apropriação dos meios culturais que a sociedade
mos como indivíduos, já que se trata justamente lhe fornece. Num exemplo prosaico, poderíamos
de uma constituição orgânica de grande plastici‐ imaginar que para a humanidade ter chegado ao
dade e abertura às transformações próprias da domínio da tecnologia que permite criar os com‐
cultura. Vigotski (1931/1989) ressalta que do pon‐ putadores teve que passar por um longo avanço
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técnico, desde o domínio do fogo, à siderurgia, à danças qualitativas no desenvolvimento ontoge‐
eletrônica, etc.. Entretanto, é bem provável que a nético, pode ser encontrado no conceito de “crise
uma criança seja primeiro permitido usar um de desenvolvimento”. Segundo estudiosos de sua
mouse ou teclado de micro‐computador do que obra, Vigotski indicou que “o processo de involu‐
lidar com um fogão de cozinha ou uma churras‐ ção domina sobre o de evolução durante os perí‐
queira. A ontogênese do psiquismo humano não odos etários de ‘crise’. Contudo, cada ‘crise’ tem
repete as mesmas etapas pelas quais a humanida‐ seu próprio ‘ponto de culminância’ (kulminatsion‐
de passou, justo por nossa capacidade de intera‐ naia totchka) que é o locus no qual a síntese dialé‐
girmos desde crianças com um mundo cultural já tica se completa” (VALSINER e VAN DER VEER
constituído – com instrumentos, técnicas e siste‐ 1991, p. 9). Além disso, “os pontos exatos de início
mas de linguagem que jamais descobriríamos ou e fim das crises não podem ser noticiados de mo‐
criaríamos sozinhos numa só geração, dos quais do exato, mas os períodos durante os quais as
podemos nos apropriar no tempo de apenas uma transformações atuais das estruturas psicológicas
vida humana, com ajuda de outras pessoas já inse‐ têm lugar podem ser definidos por causa de sua
ridas na cultura, e das práticas sociais nas quais aparência desorganizada e natureza caótica. Seis
ela se organiza. O tema da ontogênese está articu‐ períodos de crise no desenvolvimento da criança
lado ao da periodização do desenvolvimento. foram sublinhados por Vigotski: aquele da idade
dos recém‐nascidos, o primeiro, o terceiro, o sé‐
Muito se discutiu sobre Vigotski conceber ou não timo, o décimo terceiro, e o décimo sétimo anos.
o desenvolvimento em termos de “fases”, por tal É durante estes períodos que a emergência de
conceito em geral ser muito ligado à idéia bastan‐ níveis mais elevados de organização psicológica
te criticada de uma “universalidade”, ou caráter têm lugar” (VALSINER e VAN DER VEER, 1991, p.
“trans‐cultural”, das mesmas fases, cuja explica‐ 8).
ção remeteria, via de regra, à determinação bioló‐
gica no sentido restrito do termo. É certo que Tais pontos de “culminância” podem ser vistos
Vigotski não concebe fases do mesmo modo que como pontos de “mudança de rumo” e não como
Piaget ou Freud, contudo também é certo que um ápice que atingido estabeleceria pleno equilí‐
assume a existência de distinções qualitativas brio, total ausência de tensão, suspendendo o
entre os diferentes momentos de vida do indiví‐ drama da existência humana. Justamente pela
duo. Vigotski não apresenta termos como “perío‐ visão de alternância nas relações de predominân‐
do sensório‐motor, pré‐operatório, operatório cia entre as linhas e fatores de desenvolvimento,
concreto e operatório formal” (Piaget), nem como e não um avanço de simples superação progressi‐
“fase oral, anal, fálica, período de latência e fase va linear, cabem ainda algumas considerações
genital” (Freud). Em geral nota‐se que ele fala em com relação à “ontogênese”. Leitores contempo‐
termos mais prosaicos como “crianças pequenas”, râneos dos conceitos de Vigotski sobre este domí‐
“crianças pré‐escolares”, “crianças escolares”, nio genético ressaltam não haver “modelo ideal”
“adolescentes”, “adultos”. Mas tais termos não de desenvolvimento a ser atingido por todas as
ganham, digamos um estatuto de rótulo fixo para pessoas. Tampouco a criança é vista como “ape‐
cada idade, e cada idade não deixa de ser com‐ nas alguém que ainda não atingiu esse modelo”.
preendida em função das relações sociais que lhe Cada momento de nossas vidas, singular no tempo
são predominantes e com as quais estão articula‐ e espaço, tem seu próprio valor, seu modo de ser
das as principais mudanças no desenvolvimento. e significar, suas motivações e necessidades. Con‐
Como as relações afetivas com os pais para as tudo, também vale lembrar que Vigotski estava
crianças pequenas, a brincadeira para as pré‐ ocupado em pensar uma educação, uma interven‐
escolares, a escolarização para as escolares, a ção social sobre o desenvolvimento que contribu‐
eleição de um projeto de vida para os adolescen‐ ísse para a conquista e manutenção de uma vida
tes, a atividade trabalho para os adultos, por e‐ tão saudável e autônoma quanto possível. Por
xemplo. De qualquer maneira, cabe lembrar o já certo, se não há “modelo ideal” de desenvolvi‐
dito anteriormente, quanto ao ser humano ser mento, “etapa final” preconcebida a ser necessa‐
componente das próprias relações sociais que o riamente atingida, também não é qualquer moda‐
impulsionam para novos patamares de desenvol‐ lidade de relação social que se incentiva, como
vimento. Além disso, um delimitador para as mu‐ aquelas mais coercitivas e limitantes que a injusti‐
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ça social, a intolerância e o abuso de poder im‐ “instantâneo”, pois gênese envolve duração, pro‐
põem a muitas pessoas, inclusive às que têm me‐ dução e não “criação do nada”. Mas subentende‐
nos força física para se defender. Ter clareza de se que inscreva‐se num tempo relativamente bre‐
que o ser humano sempre se desenvolverá de ve, articulado com processos concomitantes. Co‐
algum modo, atribuirá sentidos às coisas, mesmo mo nos domínios citados antes, o foco principal
que sofra severas adversidades, não é o mesmo não é a culminância, mas o próprio processo. Con‐
que assumir um relativismo de que todo e qual‐ tudo, na ontogênese as crises de idades podem
quer modo de as pessoas conviverem com as ou‐ dar talvez mais visibilidade sobre o curso geral do
tras seja igualmente desejável e aceitável do pon‐ desenvolvimento.
to de vista de nossos valores éticos e nossa visão
de mundo. A investigação dos diferentes momentos de um
processo microgenético parece mais exeqüível se
Por fim, o termo microgênese refere‐se à história notamos que a ontogênese é um processo que
do desenvolvimento de processos psíquicos parti‐ dura o tempo de toda uma vida e por vezes só a
culares de dada pessoa junto a outras num inter‐ vislumbramos retrospectivamente. Por outro lado,
valo de tempo relativamente curto. Por exemplo, a microgênese, por sua dinâmica e simultaneidade
o aprendizado de regras necessárias para solucio‐ de diferentes aspectos inter‐funcionais em jogo,
nar um problema lógico‐matemático novo, a com‐ também coloca dificuldades se pretendemos noti‐
preensão e uso de táticas até então desconheci‐ ciar seu exato surgimento, seus diferentes e des‐
das para se participar de um jogo de estratégia, o contínuos momentos constitutivos (avanços, re‐
ato de emocionarmo‐nos com a leitura de um livro trocessos, mudanças) ou sua exata “conclusão”,
ou uma peça de teatro, podem envolver processos ponto de culminância ou “mudança de rumo”.
microgenéticos. Pois funções psíquicas estão em Como a vida é ininterrupta e as conquistas e per‐
jogo na aprendizagem de regras ou procedimen‐ das anteriores estão sempre envolvidas no modo
tos assim como na fruição da obra de arte. Diga‐ de funcionamento atual, nem sempre será possí‐
mos, ainda, que atos de “tomada de consciência” vel discernir claramente tal gênese. Ainda assim,
com relação a um conceito relevante para nossa os processos microgenéticos emergem como im‐
atuação profissional, a direitos nossos como cida‐ portante objeto de pesquisa e talvez também foco
dãos ou ainda à concepção quanto aos nossos de atuação profissional. Estudiosos vêm desenvol‐
cuidados com a saúde, também podem ser vistos vendo a chamada “análise microgenética” como
como “ponto de culminância” de processos mi‐ aporte metodológico rico em possibilidades. Vol‐
crogenéticos. Trata‐se, por assim dizer, da onto‐ taremos a esse ponto em breve. Por ora, estes
genênese “em ato”, realizada no tempo presente, são os princípios teóricos básicos em psicologia
e “em potência”, abrindo caminhos para a aquisi‐ geral de orientação histórico‐cultural que nos
ção do novo, num futuro próximo 17 . Não é algo coube destacar. Em seguida trataremos de refletir
sobre sua ligação bem como a dos princípios éti‐
cos com a reflexão sobre a atuação do psicólogo.
17
O avanço do desenvolvimento humano em termos ontoge‐
néticos e microgenéticos pode ser conceituado, em Vigotski,
como relativo à chamada “zona blijaishiego razvitia”. Termo
que literalmente pode ser traduzido como “A zona do desen‐
volvimento mais próximo”, mas que tem ganhado diferentes
traduções para fins editoriais, como: “zona de desenvolvi‐
mento proximal” (da trad. americana); “zona de desenvolvi‐
mento próximo” (da trad. espanhola); “zona de desenvolvi‐
mento imediato” (da trad. brasileira de Paulo Bezerra); e tempo, mas aquela com a qual se relacionam as principais
“zona de desenvolvimento eminente” (da trad. brasileira de mudanças no desenvolvimento. O jogo de papéis na idade
Zóia Prestes). Em Vigotski, a ZBR indica a “distância” entre o pré‐escolar, e a instrução na idade escolar, são exemplos de
desenvolvimento “real” (posto em jogo pela pessoa em sua atividades principais. Pode‐se relacionar a ZBR com tais ativi‐
atividade individual) e o desenvolvimento “potencial” (emer‐ dades: o jogo gera ZBR (VIGOTSKI, 1933/1989), o processo de
gente da atividade partilhada da pessoa com alguém mais ensino‐aprendizagem escolar gera ZBR (VIGOTSKI, 1935/
experiente que lhe proporciona mediações necessárias para 1989). Ademais, as relações afetivas com a mãe para o bebê e
extrapolar seus limites individuais) (VIGOTSKI, 1935/1989). os sonhos com um projeto de vida para o adolescente tam‐
Para Leontiev (1989) na ontogênese há mudanças na “ativi‐ bém são considerados fonte de ZBR (VALSINER, com. pessoal,
dade principal”, que não é a que ocupa necessariamente mais jun. 1992).
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3 Orientações gerais à psicologia aplicada numa “usar a sua criatividade”, certamente não é a ati‐
abordagem histórico‐cultural. tude mais correta. Como diz Vigotski (1930/1987),
a imaginação tem como sua fonte a realidade e a
“O princípio da prática e sua filosofia se impõem uma experiência acumulada. Deixar tudo ao critério de
vez mais: a pedra que foi rejeitada pelos construtores, um abstrato “ser criativo”, sem necessidade de
esta veio a ser a pedra angular” 18 pesquisar, estudar, passar por experiências ante‐
riores, pode nos condenar a só repetir o já apren‐
— Vigotski (1927/1996, p. 346) dido sem necessidade de ciência alguma. Corren‐
do o risco de ficar‐se no senso comum e, por fim,
O que vem por último na exposição não é o menos propor o que poderia ser feito sem que estivés‐
importante, e pode fazer‐se a pedra angular de semos lá, sem que a psicologia como ciência fosse
todo nosso trabalho, sem a qual sua arquitetura necessária. Assim nos colocamos diante de um
se torna frágil. Cabe dizer, contudo, que na cons‐ desafio, não podemos fornecer um algoritmo, mas
trução de um edifício teórico é preciso evitar tan‐ também não podemos nos omitir de pensar sobre
to excessiva flexibilidade, quanto excessiva rigi‐ a ação, discutir a ação, formular exemplos de mo‐
dez. A primeira, para não abrirmos mão daquilo dos possíveis de agir. O caminho que adotei aqui é
sem o que nossa visão de mundo em nada se dife‐ intermediário entre a teoria e a técnica. Não pro‐
renciará do senso comum ou da alienação. A se‐ porei para cada princípio teórico anterior uma
gunda, para não nos afeiçoarmos a certas formu‐ técnica que o realiza, pois isso seria demasiado
lações dogmáticas, que tudo devem “explicar”, às artificial, sem o contexto da atuação de cada pes‐
quais tentemos fazer a realidade se adequar para soa. Mas, ao mesmo tempo tentarei traduzir os
não contradizê‐las. Não é para isso que devem princípios de psicologia geral em breves reflexões
servir as teorias, senão para permitir compreen‐ sobre atitudes necessárias ao agir do psicólogo
der a própria realidade, tanto quanto possível, que se orienta pela abordagem histórico‐cultural
como ela é, mesmo que não seja como imaginá‐ em psicologia, tal como a concebo hoje, neste
vamos ou desejávamos que fosse – e é a isso que momento histórico. Reflexões que o convido o
chamamos de “crítica”. É um desafio colossal pen‐ leitor a fazer e refazer comigo.
sar a dimensão prática de todo e qualquer enunci‐
ado teórico, e nenhuma abordagem em psicologia Façamos, então, um exercício de pensar as diretri‐
é ainda hoje capaz de fazê‐lo sem deixar alguma zes de ação profissional do psicólogo condizentes
lacuna ou forçar a situação. No entanto, o modo com cada um dos princípios éticos e teóricos cita‐
possível de articular os princípios com a prática dos antes já aqui neste texto.
não há de ser o de tudo operacionalizar previa‐
mente, o de tudo colocar em termos de técnicas
ou procedimentos especificamente desenhados
para toda e qualquer situação imaginável – tiran‐
do do profissional a capacidade de analisar criti‐
camente as situações diversas e formular seus
próprios planos de trabalho para agir com relação
a elas. Como há muito se tem tido, nos cursos de
psicologia, “não estamos numa profissão que para
tudo tenha receitas de bolo”. Ou hoje se diria
“não temos para cada relação humana um algo‐
ritmo computacional”. Mas essa é apenas parte da
verdade. Pois também está claro que não dar
qualquer orientação sobre a atuação prática e
simplesmente dizer ao profissional que ele deve
18
Vigotski está deve estar se referindo ao Salmo 117, ver. 22
(para os judeus salmo 118). O mesmo verso que é retomado
numa fala de Jesus, narrada no Evangelho de Mateus, cap.
21, ver. 42.
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PRÍNCÍPIOS EM SUA DIMENSÃO PRÁTICA
I ‐ Princípios éticos O psicólogo pode trabalhar:
1 ‐ Critérios axiológicos: * Orientando seu método por suas metas
a) O valor da superação * Em função de metas que vão além dos limites individuais atuais das pessoas e
dos seus próprios – participando da produção de “zonas de desenvolvimento
proximal” 19 .
b) O valor da cooperação * Propondo modalidades de atividades nas quais as potencialidades de uns con‐
tribuam para a superação dos limites dos outros e as dos outros para a superação
dos de cada um.
c) O valor da emancipação * Sugerindo, proporcionando e participando de atividades que permitam às pes‐
soas ampliar os limites de sua autonomia, sua capacidade de compor, de superar
criticamente superstições, de propor alternativas e engajar‐se ativamente em
ações para concretizá‐las.
2 ‐ Critério ontológico pa‐ * Dimensionando suas metas no horizonte dos limites e possibilida‐
ra a ética: des históricos
d) A historicidade dos valores * Avaliando criticamente a possibilidade de agir em conformidade com seus prin‐
cípios e a tensão que isso envolve.
* Não utilizando meios contrários aos fins a que se propõe.
* Sabendo que fins sem meios que os realizem tornam‐se fins inócuos.
* Compreendendo as contradições presentes no espaço de intervenção entre o
que joga a favor dos potenciais humanos e o que os restringe.
* Compreendendo que tanto propor o inalcançável, quanto apenas repetir o já
alcançado são ações que geram frustração.
* Propondo, portanto, desafios condizentes com as possibilidades concretas de
transformação da situação social, no momento histórico dado.
* Lembrando, por fim, as palavras de Paulo Freire de que “devemos fazer o que é
possível fazer hoje para que aquilo que não é possível fazer hoje seja feito ama‐
nhã”...
3 ‐ Critério metodológico * Agindo como um componente constitutivo da própria realidade na
para a ética qual se está intervindo.
e) A intervenção como constru‐ * Encaminhando sua própria atuação profissional como processo de mediação
ção que participa da construção das situações sociais às quais que se propõe a enten‐
der e sobre as quais pretende agir – situações não existentes até a efetivação
dessa mesma mediação.
* Percebendo, portanto, sua própria ação e consciência como processos que se
transformam juntamente com a realidade social sobre a qual se intervém, fazen‐
do parte dela também, tendo assim a transformação de si mesmo como um obje‐
tivo profissional e ético.
19
Conferir nota “17”, p. 29.
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PRÍNCÍPIOS EM SUA DIMENSÃO PRÁTICA
II ‐ Princípios de psicolo‐ O psicólogo pode trabalhar:
gia geral
1 ‐ Princípio da unidade * Entendendo mente e corpo como aspectos da mesma realidade complexa e
psicofísica contraditória, que é a existência humana concreta.
* Dialogando com outros saberes que permitam compreender melhor essa totali‐
dade e suas condições de possibilidade.
2 ‐ Princípio da determi‐ * Sendo psicólogo do homem concreto, que em sua existência social se faz cons‐
nação da consciência pela ciente, e não apenas “psicólogo da consciência ou do inconsciente” de um ho‐
mem, nem “psicólogo das funções mentais” de um homem.
existência social * Atuando na identificação e compreensão da multiplicidade de fatores que com‐
põem a vida social da qual a consciência humana emerge e na qual ela cumpre
função.
* Entendendo o próprio ser humano como componente de sua existência social,
não sendo ela externa a ele.
* Situando seu foco de ação com as pessoas na articulação dos diferentes modos
de existir do social frente aos quais/no interior dos quais suas vivências se consti‐
tuem (classes, instituições, grupos, intersubjetividade e indivíduo).
* Elegendo as táticas possíveis em cada plano da existência social, assim como
priorizando os planos em que transformações mais eficazes sejam exeqüíveis no
momento histórico dado em função das condições disponíveis. {por exemplo: tra‐
balhar com indivíduos não é deixar de trabalhar com o ser social, etc., nem sem‐
pre se pode intervir com o mesmo peso com relação a todos os planos de articu‐
lação da existência social}
* Identificando, registrando e buscando compreender a dinâmica geral do drama
de relações e papéis sociais próprios dos diferentes espaços intersubjetivos, gru‐
pais, institucionais, de classe e ainda de gênero, de etnia e de geração. Drama
esse que, com suas regras próprias de prescrição e performance de papéis sociais,
implica redes de ações partilhadas, complementares e/ou antagônicas, que cons‐
tituem a própria produção situada, contextualizada, de mediações simbólicas nas
quais cada pessoa, como ator social, se constitui – se limita, se delimita e se po‐
tencializa.
3 ‐ Princípio da consciên‐ * Privilegiando ações que viabilizem a potencialização das funções psíquicas pro‐
cia como psiquismo pro‐ priamente humanas, ou seja, aquelas nas quais o homem se realiza como tal e
que são a um só tempo: (a) voluntárias – que exigem tomada de decisão; (b)
priamente humano conscientes – que exigem pensar sobre o pensamento, sobre a emoção e a ação;
(c) mediadas – que exigem recorrer à linguagem; e (d) de origem social – que
implicam modos de participação de um outro e de ver a si mesmo como um ou‐
tro.
a) Consciência como conheci‐ * Sendo um organizador e participante de situações em que as pessoas comuni‐
mento partilhado cando‐se com demais (sobre o mundo, sobre os outros, sobre si mesmas) possam
ir reorganizando seu modo de agir e também sua própria consciência do real e de
si.
* Possibilitando ações em que a linguagem partilhada entre as pessoas trate de
situações relevantes, do ponto de vista vital, para as pessoas envolvidas, desco‐
lando‐se das formas mais automatizadas e imediatas de entendimento e senti‐
mento para a realidade, desarticulando‐as e permitindo o surgimento de novas e
mais potentes formações de sentido.
b) Consciência como vivência * Produzindo e dando visibilidade a situações em que a comunicação social permi‐
de vivências ta um ato de “espelhar” a ação, a fala e a emoção de cada um, proporcionando
uma relação de suspensão, estranhamento e distanciamento necessários para a
tomada de consciência da situação vivida junto com outros e junto a si mesmo.
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
c) Consciência como reflexo e * Atentando para que na sua própria consciência e na daqueles com quem atua,
refração da realidade tanto se “reflete” uma imagem do mundo real (já que toda consciência é “consci‐
ência de algo”), quanto se “refrata” essa mesma imagem (já que toda consciência
é “consciência de alguém”, ou seja, permeada pelas necessidades e orientações
desse alguém).
* Percebendo e lidando com a contradição dialética de a consciência tanto ser
poder de ação e compreensão quanto limite para agir e compreender – de forma
a não tratá‐la nem como impotente nem como onipotente no plano da transfor‐
mação da realidade.
d) Consciência como processo * Considerando que a compreensão que as pessoas têm da realidade não é ape‐
cognitivo e afetivo nas intelectual, mas nuançada por afetos, os quais compõem a realidade concreta
do homem consciente. Que a compõem não só como algo que pode atrapalhar
sua visão mais crítica da realidade, mas também como algo que permite que tal
visão se construa – se houvesse uma consciência totalmente desprovida de afeto,
ela não teria como lidar de modo realista com o mundo.
* Não operando no sentido da simples contenção dos processos afetivos como
garantia da emergência de ações eficazes e adaptadas, mas no da potencialização
das emoções propriamente humanas necessárias para a ampliação da capacidade
das pessoas de comporem com o mundo, com mais bem estar e alegria.
* Com atitude de empatia em relação às emoções do outro, no sentido de que
mesmo as causas das emoções sendo imaginárias, as próprias emoções continua‐
rão sendo reais e merecem consideração e respeito.
* Com atitude também de distanciamento com relação às emoções do outro, no
sentido de que, mesmo elas sendo reais, isso não quer dizer que se tenha claro o
que as está motivando. Além do que, sermos totalmente impregnados pelas emo‐
ções do outro não sempre os ajudará a lidar melhor com elas.
e) Consciência e o problema * Tendo conhecimento da dialética entre as funções da consciência e sua nega‐
dos processos não conscientes ção, não só pelo fato de que para saber de algo não é possível saber de tudo a um
só tempo, como também pelo fato de que, como diz Vigotski “mesmo sabendo
exatamente como agir, podemos agir de modo diferente” – pois nem sempre
conhecemos as motivações das nossas ações, sentimentos e pensamentos ou
dominamos a disposição deles/para eles em nós.
* Proporcionando momentos de simbolização, comunicação e ação partilhada que
permitam tomada de consciência quanto aos motivos até então não evidentes e
amparando, na relação com o outro, as dimensões afetiva, cognitiva e volitiva
constitutivas desse ato simbólico.
* Desmistificando tanto para si quanto para aqueles com quem se trabalha (na
medida em que se tornem crenças despotencializadoras do desenvolvimento da
autonomia humana) as noções animistas dos processos inconscientes (tomados
como forças com vida própria) e valorizando o homem como a unidade vida de
suas funções mentais conscientes ou não.
4 ‐ Princípio da compre‐ * Tomando diante das realidades sociais e pessoais com as quais se vai trabalhar
ensão da consciência me‐ uma atitude de investigação e compreensão crítica sobre sua origem e funciona‐
mento, sob o foco de fenômenos particulares (unidades) que as constituam e
diante unidades possibilitem uma visão integrada e sistêmica do psiquismo humano como um
todo.
a) Consciência e relações * Buscando formas de compreender e estar sensível às vivências (experiências
Personalidade Ù Meio vitais dinâmicas e singulares) das pessoas, as quais no curso e na situação social
= a vivência como unidade... de seu desenvolvimento proporcionam uma síntese dialética dos traços caracte‐
rísticos de formação da sua personalidade com as influências de todo o meio
social, do qual a própria pessoa também faz parte.
* Estabelecendo oportunidades e recursos de simbolização pelos quais tais vivên‐
cias sejam partilháveis e presentes ao diálogo das pessoas com os outros e com
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
elas próprias.
* Procurando não destituir as vivências de seu caráter de acontecimento, isto é de
processo único, incomparável, irrepetível, no qual o homem se engaja literalmen‐
te “em pessoa”, como personalidade social concreta, numa condição em que
nenhum outro pode estar em seu lugar.
* Procurando, ao mesmo tempo, não fechar as vivências no campo do insondável,
incompreensível e impossível de ser partilhado ou recriado.
* Buscando para si, como profissional responsável, e para o outro, como interlo‐
cutor essencial, recursos para visualizar as conexões entre experiência acumulada
histórica, social, e pessoal (auto‐biográfica), com as vivências no “aqui e agora” e
suas marcas na memória de cada um, tanto quanto contribuindo para a reorgani‐
zação do caráter dessas conexões na direção de mais saúde e autonomia.
b) Consciência e relações * Tomando uma atitude de dedicação sistemática à compreensão dos múltiplos
Pensamento Ù Linguagem significados da palavra do outro, como síntese dialética da linha do desenvolvi‐
= o significado da palavra como mento da fala com a do pensamento, tomando tal síntese em suas diferentes
unidade... variações funcionais e etapas de desenvolvimento, como mediação por excelência
para a gênese da consciência, tanto quanto como suporte à articulação inter‐
semiótica com outras formas de significação verbais e não verbais.
* Mantendo atitude de respeito ao universo vocabular, sintático e semântico do
outro, aos gêneros discursivos próprios das diferentes situações e grupos sociais
com os quais está habituado, sem negar‐se a contribuir sempre que possível para
a ampliação desse universo, reconhecendo que ao fazê‐lo também amplia o seu o
seu próprio.
* Procurando, assim, compreender os significados de suas palavras tanto como
múltiplos e inesgotáveis, quanto como passíveis de designações objetivas tangí‐
veis, desde que articuladas às condições de produção das trocas dialógicas em
que tais palavras se inserem.
* Compreendendo que o significado mais objetivo das palavras não esgota toda a
dinâmica da produção de sentidos que implica ainda o todo de sua visão de mun‐
do e sua personalidade.
* Pautando‐se na orientação de Vigotski de que para compreender o significado
das palavras é preciso ainda buscar compreender o pensamento e/ou o seu sub‐
texto, e que para compreender o pensamento cabe ainda buscar saber das moti‐
vações e da esfera afetivo‐volitiva de quem pronuncia tais palavras.
* Criando situações de comunicação social e ação partilhada contextualizada, nas
quais indícios desses diferentes modos de funcionamento dos processos de signi‐
ficação possam ser colhidos, interpretados e devolvidos ao fluxo do diálogo com
as pessoas envolvidas.
5 ‐ Princípio da compre‐ * Orientando sua prática com uma permanente atitude investigativa com relação
ensão do psiquismo hu‐ ao funcionamento, a estrutura e a origem mais próxima e mais distante das vivên‐
cias e processos de significação que se articulam e/ou se chocam na constituição
mano mediante sua gêne‐ social da personalidade daqueles com quem se está trabalhando.
se histórica (origem e de‐
senvolvimento)
a) Compreender os processos * Entendendo que para compreender o desenvolvimento de alguém se passa ao
psíquicos pela sua gênese: mesmo tempo a participar dele, já que saber do desenvolvimento não se restringe
a registrar uma anamnese, assim como a história da humanidade não se restringe
ao nosso passado.
i. Não estudar objetos fixos, * Buscando demover de si e daqueles com quem se trabalha a pré‐concepção de
mas processos que uma doença, um sintoma, uma capacidade, uma habilidade, um preconceito,
um sentimento, um conflito, uma lei, uma determinação institucional, um gesto
ou um sentido, a visão de mundo de alguém ou os traços de sua personalidade,
sua consciência, sua inteligência e seus sistemas afetivos, sejam algum tipo de
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
objeto estático, algo pronto e acabado, que sempre esteve ali daquele modo e
assim sempre haverá de estar.
* Portanto, não vendo esses processos como “coisas”, como “entidades”, como
algo que tão somente se classifica, se mede ou se enquadra, se tria, se usa, se
descarta, se conserta ou reforma, mas como movimentos produzidos por seres
humanos vivos, concretos.
* Agindo com relação a tais processos entendendo‐os como tais, portanto com
cautela no estabelecimento de juízos, e com compromisso para com a própria
constituição social dos mesmos – como sob a orientação de Aristóteles de que “só
em movimento é que um corpo mostra o que é”.
* Produzindo técnicas sistemáticas para obtenção de pistas que permitam com‐
preender e atuar com relação ao psiquismo humano na sua processualidade, por
mais focais que precisem ser as intervenções.
ii. Não ficar nas aparências, mas * Estando atento para o fato de que dois processos aparentemente idênticos
buscar a essência podem ter origens bem diferentes, e de que processos com origens semelhantes
podem não dar a vê‐lo, por na aparência mostrarem‐se diferentes. {válido para os
mesmos exemplos dados logo acima, uma doença, um sintoma, uma capacidade,
etc.}
iii. Olhar o já cristalizado pelas * Estando atento para o fato de que algo hoje já tido como automático, natural,
marcas de sua origem viva. cristalizado, simples de fazer, ou simples de dizer que não pode ser feito, teve
também um processo histórico de constituição que o trouxe até esse estado,
processo esse cujas marcas de vida anterior podem estar cristalizados no que
parece sem vida, como ocorre no caso de um “fóssil” (“comportamentos fossiliza‐
dos, diz Vigotski”).
iv. Lançar mão da análise gené‐ * Conhecendo a metodologia de pesquisa da investigação da mente humana pro‐
tico‐causal posta pela abordagem, para lançar mão de seus recursos como aporte aos pro‐
cessos diagnósticos da realidade e de compreensão da realidade durante o pró‐
prio trabalho de intervenção, com isso subsidiando avaliações futuras e reorienta‐
ção da prática.
* Permitindo situações de interação nas quais se produzam, em diferentes mo‐
mentos no tempo, processos nos quais novos recursos simbólicos sejam introdu‐
zidos para dar conta de uma tarefa significativa (num processo educativo para
prevenção de doenças, por exemplo – a apropriação dos conceitos não se dá de
modo instantâneo), tendo assim dimensão da origem de novas formações ampa‐
radas pela utilização/apropriação desses recursos.
* Buscando, portanto, compreender as causas dos processos por intermédio do
acompanhamento sistemático de sua origem (gênese) tal como ela se dá em sua
própria intervenção sobre ela.
b) Compreender a articulação * Entendendo que em teoria histórico‐cultural quando se fala de “história” consi‐
de diferentes planos genéticos dera‐se tanto o seu conceito mais geral de processo dialético de constituição
ou históricos processual do real, quanto de história no sentido estrito ou história da humanida‐
de. Procurando ampliar os princípios anteriores para os diferentes planos e domí‐
nios do conceito de história.
i. Filogênese ou história do * Tomando conhecimento do fato de que nossa espécie tem tanto limites quanto
desenvolvimento da espécie possibilidades, que a evolução é um processo que continua em curso, mas que
por hora ainda somos “Homo sapiens”. O que significa entender que temos tam‐
bém determinações biológicas e não somos onipotentes com relação a elas, tanto
quanto entender que a própria espécie é provida de aparatos biológicos, em ge‐
ral, e neuro‐funcionais, em particular, que permitem e solicitam a mediação do
outro e da linguagem para seu desenvolvimento efetivo e potencial.
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
ii. Sociogênese ou história do * Procurando sistematicamente compreender a história da sociedade na qual se
desenvolvimento dos diferentes está inserido assim como o estão as pessoas com quem se vai trabalhar – no sen‐
grupos sociais tido geral das lutas que a compõem, tanto quanto no sentido específico das narra‐
tivas sobre a cultura dos grupos e setores sociais específicos dentro da configura‐
ção societária mais ampla.
* Agindo com relação às pessoas como sujeitos do processo de constituição cole‐
tiva de sua história tanto quanto como constituídos por relações que vão além da
interferência de suas vontades individuais.
iii. Ontogênese ou história do * Assumindo que compreender sobre desenvolvimento ontogenético e seus perí‐
desenvolvimento do ser huma‐ odos não é só para quem “lida com crianças”, mas que todo ser humano para ser
no singular – envolve a questão tal como é hoje e para poder ser algo distinto amanhã, só o pode fazer com base
da periodização. nas conquistas e incompletude de seu desenvolvimento anterior. Com as sucessi‐
vas crises que esse processo envolve (não só na adolescência, como às vezes se
imagina, mas em toda a ontogênese), com o modo particular pelo qual tais crises
são vividas de acordo com a relação que cada um estabelece com o contexto no
qual se desenvolve e realiza seu constante “tornar‐se humano”.
* Sendo um agente que participa do processo de desenvolvimento do outro, por
intermédio de sua intervenção, cooperando com ele, nas suas atividades –
dirigidas a metas, dotadas de sentido e significados pertinentes à sua vivência e
sua história,.
* Sendo, sobretudo, um “organizador do meio social” que proporciona as media‐
ções necessárias para que o desenvolvimento se dê. Lembrando para o trabalho
do psicólogo o mesmo que Vigotski fala para o trabalho do educador, ou seja:
“quem educa, não é apenas o professor, mas sim o meio social educativo”, o pro‐
fessor é só o seu organizador. Assim também quem pode promover um desenvol‐
vimento psicológico tão saudável quanto possível, não é apenas o psicólogo, é um
“meio social promotor de relações saudáveis”... Ao psicólogo cabe um papel de
organizador desse meio social.
iv. Microgênese ou história do * Atuando como partícipe da produção, formação, constituição conjunta de pro‐
desenvolvimento de processos cessos psíquicos particulares (como a resolução de um problema cognitivo; como
psíquicos particulares de uma a transformação catártica de um dado sistema de afetos; como a aprendizagem
dada pessoa ou grupo num de um conceito novo; como uma tomada de decisão quanto a um tema de impor‐
intervalo de tempo relativa‐ tância vital; como a tomada de consciência de modos de agir prejudiciais à própria
mente curto. saúde; ou como a tomada de consciência de capacidades que até então não se
entendia ter ou não se valorizava como aptas a promover ações eficazes sobre o
real, sobre o outro e sobre si...). Compreendendo sua emergência relativamente
rápida não como algo mágico ou mecânico, mas como fruto de uma articulação
com os demais domínios, ou planos, genéticos envolvidos na totalidade do desen‐
volvimento psíquico das pessoas, em sua constituição como tais.
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
Para continuar o diálogo desafio, fazendo‐nos sentir até um tanto antiqua‐
dos em nossas idéias e práticas, lançando‐nos um
Foram expostos alguns princípios éticos, outros convite ao futuro. Ao depararmo‐nos com a ne‐
em psicologia geral e feito um breve exercício de cessidade de produzirmos o que ainda não há, é
reflexão sobre a atuação de um psicólogo genera‐ emblemática a imagem do trabalho do poeta ela‐
lista a partir de tais princípios. Feito isto, só nos borando versos que atinjam seus leitores do modo
cabe relembrar a necessidade de fazermos nossa mais fecundo. Como Carlos Drummond: “Eu pre‐
própria leitura de referências clássicas disponíveis paro uma canção / em que minha mãe se reco‐
em psicologia histórico‐cultural, tanto quanto dos nheça (...)” – uma linguagem na qual as pessoas se
estudos mais recentes que procurem assumir al‐ vejam como tais, tão crítica e afetuosa que faça
guns dos desafios que as primeiras nos colocam. “acordar os homens” e “adormecer as crianças”. A
Justamente no confronto dessas linhas introdutó‐ busca de uma psicologia concreta, reivindicada
rias traçadas aqui com a densidade dos textos por Politzer em analogia à arte, é também a da
mais complexos e profundos, é que este trabalho produção de um discurso no qual a humanidade
ganhará sentido e cumprirá sua função social pri‐ se reconheça, em que as vozes das pessoas te‐
meira: convidar à leitura de Vigotski e seus cola‐ nham lugar eqüipolente, não sejam sobrepujadas
boradores. Se retomarmos a citação de Vigotski, e mortificadas pelas categorias teóricas. Em geral
em epígrafe neste texto, nos depararemos com a psicologia parece falar de muitas coisas: de pro‐
uma constatação talvez paradoxal, mas bastante cessos mentais, de determinações inconscientes,
instigante, desafiadora. Ele nos diz que “a nova de contingências de reforço, mas poucas vezes
psicologia”, aquela que tem na dialética um prin‐ fala de “pessoas”, tampouco “com” elas. É uma
cípio geral organizador, “se parecerá tão pouco crítica que não deve ser feita só apontando erros
com a atual, como, segundo as palavras de Espi‐ alheios, mas, sobretudo, como “autocrítica”. Não
nosa, a constelação do Cão se parece com o ca‐ somos ainda a “constelação” pretendida, somos
chorro, animal ladrador” (VIGOTSKI, 1927/1991). mais como o “animal ladrador”. Nossa psicologia,
Como vimos, ele mesmo reconhece que sua “his‐ certas vezes, é também um saber que “ladra, mas
tória do desenvolvimento cultural é a elaboração não morde”, que promete, mas não cumpre. Co‐
abstrata da psicologia concreta.” (VIGOTSKI, 1929/ mo no discurso já vulgarizado do “compromisso
2000, p. 35). E assim a constituição de uma psico‐ social”, que não sempre orienta práticas correla‐
logia concreta de orientação histórico‐cultural, tas. Ou se alia a ideologias como a da “morte do
sobre a base de uma epistemologia materialista homem” e/ou do desprezo para com qualquer
dialética, não é pressuposto para o avanço da consistência epistemológica, satisfazendo‐se em
história da psicologia, mas objeto de busca, algo mudar de referências ao sabor da conjuntura e/ou
por ser criado ao longo dessa mesma história. Por com reduzir sua função social a “produzir efeitos”.
certo, os psicólogos do século XXI têm, cada qual, Tais atitudes apontam talvez para uma “morte da
suas próprias leituras dos clássicos, seus próprios psicologia”, tida como sem objeto nem método
projetos, necessidades e aspirações. Cedendo ou próprios, sustentada como instituição só por inte‐
não às conveniências da ideologia política neolibe‐ resses corporativos de agências formadoras e
ral e/ou da dita “pós‐modernidade”, expressão entidades de classe. Contraposta a tal tendência
cultural importante da primeira, estão todos ocu‐ hegemônica está a psicologia histórico‐cultural de
pados de constituir seus próprios espaços de in‐ Vigotski com seus valores éticos, seus princípios
terlocução, mesmo para resistir àquelas forças de psicologia geral e sua vinculação com a cons‐
hegemônicas. trução de uma psicologia aplicada coerente com
eles. Convidar o leitor ao diálogo sobre esta busca,
Trata‐se de um mundo complexo o nosso, povoa‐ e a assumir um papel social ativo dentro dela, de
do de composições diversas e formas de luta e modo crítico e criativo, foi o nosso objetivo aqui.
resistência nem sempre convencionais. Não se
pode, portanto, tomar Vigotski ou qualquer autor Achilles Delari Junior
como um oráculo, fonte explicações absolutas e Umuarama, 17 de fevereiro de 2009.
verdades definitivas, que se segue como dogmas. Última revisão em 07 de junho de 2009.
Cabe lê‐lo em sua radicalidade, naquilo que suas Passará por revisões posteriores.
palavras nos vêm interpelar ainda hoje em tom de Produção voluntária e independente.
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
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