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VIGOTSKI E A PRÁTICA DO PSICÓLOGO 

em percurso da psicologia geral à aplicada*
Achilles Delari Junior**
 
“Na futura sociedade, a psicologia será em realidade a ciência 
do  novo  homem.  Sem  ela  a  perspectiva  do  marxismo  e  da 
história  da  ciência  seria  incompleta.  Entretanto,  esta  ciência 
do novo homem será também psicologia. Por isso hoje man‐
temos  suas  rédeas  em  nossas  mãos.  Não  há  necessidade  de 
dizer que esta psicologia se parecerá tão pouco com a atual, 
como, segundo as palavras de Espinosa, a constelação do Cão 
se  parece  com  o  cachorro,  animal  ladrador  (Ética,  teorema 
17, Escólio)” 
— Lev Vigotski (1927/1991, p. 406) ***  
 
 
Palavras Iniciais 
 
Tem  sido  muito  importante  no  Brasil  a  contribui‐
ção da obra de Lev Vigotski à psicologia da educa‐
ção  e  às  práticas  pedagógicas  de  modo  geral.  As‐
sim, predominantemente, sua obra tem sido apre‐
sentada e discutida no contexto de cursos de for‐
mação  de  educadores,  tanto  quanto  nas  discipli‐
nas  da  formação  do  psicólogo  ligadas  aos  temas 
do  desenvolvimento  humano  e  das  relações  de 
L. S. Vigotski (1896‐1934): criador da teoria histórico‐cultural 
   ensino‐aprendizagem formais ou não formais. Isso 
    * **
   não  é  despropositado.  A  educação  tem  um  lugar 
SUMÁRIO  fundamental  na  proposta  de  Vigotski  para  uma 
  “nova  psicologia”.  Segundo  ele  “a  educação  é  a 
Palavras iniciais.............................................................01 
primeira  palavra  que  [a  nova  psicologia]  mencio‐
1 Princípios éticos em psicologia histórico‐cultural.....03 
1.1 Contextualização e critérios axiológicos (...) ...........04  na”  (VIGOTSKI,  1926/1991,  p.  144).  Isso  implica 
1.2 Contradições enfrentadas pelo psicólogo (...).........08  mencionar  a  palavra  “educação”  numa  acepção 
1.3 O método construtivo e a psicologia (...).................10  antropológica,  isto  é,  conceber  que  só  o  ser  hu‐
2 Princípios de psicologia geral numa abordagem histó‐ mano  é  capaz  de  educar‐se,  de  aprender  com  a 
rico‐cultural...................................................................12 
2.1 Unidade psicofísica..................................................12  experiência  histórica  das  gerações  anteriores  e 
2.2 Determinação da consciência pela existência (...) ..13  assim  constituir  a  sua  própria  vivência  como  ser 
2.3 Consciência:  psiquismo propriamente humano .....17  singular.  Entende‐se  que  o  ato  de  educarmo‐nos, 
2.4 Consciência compreendida mediante unidades......20  na  família,  na  escola,  nas  demais  instituições  em 
2.5 Psiquismo mediante sua gênese histórica...............25 
que  se  estabeleçam  nossas  relações  com  outras 
3 Orientações gerais à psicologia aplicada numa aborda‐
gem histórico‐cultural ..................................................30  pessoas,  seja  essencial  na  constituição  das  fun‐
3.1 Princípios éticos em sua dimensão prática..............31  ções  psíquicas  propriamente  humanas,  de  nossa 
3.2 Princípios de psicologia geral em sua dimensão práti‐
ca...................................................................................32 
Para continuar o diálogo ..............................................37 
Referências ...................................................................38 
  ***
  Todas  as  citações  para  títulos  que  na  bibliografia  consta‐
rem  em  língua  estrangeira  são  de  minha  autoria  exceto  Vi‐
gotski  (1929/1989)  e  Puzirei  (1989a)  –  cujas  traduções  do 
inglês  são  da  professora  Enid  Abreu  Dobránszki.  A  marcação 
*
 Para referência: DELARI JR., A. Vigotski e a prática do psicó‐ de duas datas, e.g. “1927/1991”, uma para a primeira publi‐
logo:  em  percurso  da  psicologia  geral  à  aplicada.  Mimeo.  cação ou término da redação da obra e outra para a publica‐
Umuarama, 2009. 40 p. (2ª versão)  ção que utilizei, será adotada apenas para as obras de Vigots‐
**
 Psicólogo pela UFPR, mestre em Educação pela Unicamp. E‐ ki,  com  fins  didáticos  de  contextualização  histórica,  por  se 
mail: delari@uol.com.br.  tratar da referência principal do texto. 
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
consciência  em  especial  e  nossa  personalidade  tempo, a necessidade de compreender o específi‐
como um todo.  co  de  sua  realização  para  cada  ser  humano  con‐
  creto. Por outro lado, a nossa vivência mais espe‐
Contudo,  neste  texto  pretendo  relembrar  que  cífica, mais singular, mais situada e contextualiza‐
Vigotski  não  produziu  exclusivamente  uma  psico‐ da, não pode deixar de ter algo de geral, partilha‐
logia  educacional  ou  escolar,  nem  sua  teoria  se  do  com  nossos  semelhantes.  Posto  que  nossa 
restringe a uma subdivisão das teorias da aprendi‐ própria personalidade não tem como realizar‐se e 
zagem. Ao contrário, trata‐se desde sua origem, e  desenvolver‐se senão em relação com outras pes‐
principalmente, de uma contribuição geral à psico‐ soas, senão mediante processos sociais de signifi‐
logia  concreta  do  homem  (ver  VIGOTSKI,  1929/  cação, senão no fluxo de uma gênese histórica. 
1989,  1929/2000).  A  qual  pode  nos  permitir  pen‐  
sar  a  atuação  do  psicólogo  em  diferentes  contex‐ Esta, por sua vez, realiza‐se como um “tornarmo‐
tos  práticos,  como  a  promoção  de  saúde  mental:  nos”  humanos,  que  só  acontece  em  relação  com 
nas  práticas  sociais  comunitárias,  nos  sistemas  os  dois  primeiros  critérios,  mas  não  pode,  para 
públicos de saúde coletiva, nas relações de traba‐ nós, por alguma contingência ou arranjo conjuntu‐
lho,  entre  outros...  Tanto  quanto  em  qualquer  ral, simplesmente “deixar de acontecer”, da noite 
situação em que se efetivem simultaneamente: (a)  para  o  dia,  exceto  no  caso  mesmo  de  a  própria 
relações  simbolicamente  mediadas  entre  as  pes‐ humanidade  deixar  de  existir.  Sendo  assim,  a  a‐
soas,  (b)  constituição  social  de  sentidos  para  tais  bordagem histórico‐cultural não se apresenta aqui 
relações  e  (c)  significação  para  nossa  própria  vi‐ como visão “relativista” na qual o homem poderia 
vência  no  curso  desse  processo.  Trabalharemos  ser  social  ou  não,  simbólico  ou  não,  histórico  ou 
aqui com a concepção de que um psicólogo orien‐ não,  dependendo  da  situação...  A  caracterização 
tado pela abordagem histórico‐cultural, buscando  do humano como ser social, simbólico e histórico, 
compreender  o  ser  humano  na  concretude  de  compõe  um  conceito  pertinente  à  constituição 
suas  relações  sociais,  a  um  só  tempo:  situa‐o  na  ontológica  mais  profunda  e  elevada  da  condição 
especificidade  delas  (na  família,  no  namoro,  na  humana, no interior da abordagem teórica à qual 
escola,  no  trabalho,  na  vida  comunitária,  na  luta  estamos  nos  referindo.  Ao  mesmo  tempo,  essa 
por direitos civis, no lazer, na atividade lúdica, na  generalidade concretiza‐se em sua dialética com a 
criação artística, noutras instituições, etc.); e arti‐ especificidade da condição singular de cada socie‐
cula  tais  contextos  específicos  no  conjunto  sistê‐ dade, de cada tempo e espaço históricos, de cada 
mico, inter‐funcional, dinâmico e contraditório da  classe  e  grupo  sociais,  de  cada  ser  humano  em 
personalidade humana, no fluxo de seu desenvol‐ particular.  Deduz‐se  assim  que  não  se  trata  de 
vimento histórico.  uma abordagem que só seria aplicada a um único 
  contexto  específico  de  relações  sociais,  seja  ele  a 
Por um lado, o que há de geral no psiquismo hu‐ escola,  o  mundo  do  trabalho,  as  organizações 
mano  solicita  contextualização.  Se  todo  o  ser  hu‐ comunitárias, as práticas terapêuticas e assim por 
mano  é  um  constante  tornar‐se,  aquilo  em  que  diante.  A  psicologia  histórico‐cultural  busca  com‐
nos  tornamos  demanda  situações  reais  para  a  preender  o  ser  humano,  e  assim  ao  seu  contexto 
realização do nosso devir. Se todo o ser humano é  caberá articular sua condição genérica  e vice ver‐
um animal social, o nosso modo de sermos sociais  sa.  
implica relações com outras pessoas que não nos   
estão  pré‐determinadas  e  só  acontecem  no  pró‐ Partindo  desse  princípio,  dirigindo‐me,  nesse 
prio  ato,  por  vezes  tenso,  de  se  estabelecerem  e  momento,  às  componentes  do  grupo  de  estudos 
de se refazerem.  Se todo  o ser humano é um ser  orientado  em  “Teoria  histórico‐cultural  (sócio‐
simbólico, o nosso próprio modo de simbolizar as  histórica) na prática do psicólogo”, buscarei orga‐
coisas, os outros e a nós mesmos está relacionado  nizar  uma  breve  introdução  à  contribuição  de 
à linguagem que nossa sociedade e nossos grupos  Vigotski,  principal  propositor  da  teoria  histórico‐
sociais  criam  e  recriam  para  codificar  sua  experi‐ cultural 1   em  psicologia.  Neste  texto  introdutório, 
ência  histórica  e  dar‐lhe/impedir‐lhe  acesso  às 
novas gerações. Assim o devir, a sociabilidade e a 
significação,  como  características  gerais  da  vida  1
propriamente  humana  colocam‐nos,  ao  mesmo    Segundo  Valsiner  e  Van  der  Veer  (1996)  “teoria  histórico‐
cultural”  é  um  termo  cunhado por  Vigotski  e  Luria  para  de‐
 
 
GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009  2 de 40
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
para  fins  de  exposição,  abordarei:  (1)  princípios  que me pergunte por onde seria melhor começar 
éticos  em  psicologia  histórico‐cultural;  (2)  princí‐ a ler Vigotski, não pode deixar de ser a de que se 
pios  de  psicologia  geral  numa  abordagem  históri‐ comece pelo próprio autor. Muitas vezes, disputas 
co‐cultural;  e  (3)  orientações  gerais  à  psicologia  se  erguem  ao  redor  de  qual  seria  a  melhor  inter‐
aplicada numa abordagem histórico‐cultural. Digo  pretação ou o melhor comentário a um autor clás‐
“para  fins  de  exposição”,  pois  evidentemente  a  sico. Mas antes de avaliarmos os autores clássicos 
ética, a teoria e a prática são aspectos simultâneos  a  partir  de  quem  os  lê,  melhor  seria  avaliar  tais 
da  realidade  humana  na  qual  se  dá  a  construção  leitores  a  partir  dos  primeiros.  Nem  sempre  isso 
tanto de uma obra como a de Vigotski quanto a de  acontece na prática – algum grau de leitura intro‐
nossa  aprendizagem  acadêmica  e  atuação  profis‐ dutória  sempre  é  necessário.  Mas  saibamos  ape‐
sional.  Pese‐se  que  nossa consciência  possa,  para  nas  que  este  texto  é  um  posicionamento  de  um 
fins  de  sistematização  e/ou  organização,  focar‐se  homem concreto com seus limites e potencialida‐
mais  num  aspecto  do  que  em  outro,  os  demais  des, que pode e deve ser questionado em seguida, 
nunca deixarão de estar presentes, de algum mo‐ sob  o  critério  da  crítica  e  da  leitura  do  próprio 
do ou em algum grau de generalidade. Nosso mo‐ clássico  a  cujo  estudo  nos  dedicaremos.  De  toda 
do  prático  de  viver  e  relacionarmo‐nos  engendra  forma,  as  escolhas  para  as  leituras  a  serem  reali‐
valores éticos. Nossos valores orientam práticas e  zadas não são neutras, e se orientam pela visão de 
opções  por  determinados  modos  de  teorizar  o  mundo  e  pelas  características  de  personalidade 
real.  Estes,  por  sua  vez,  (re)organizam  ainda  nos‐ social  de  quem  as  indica.  Tais  aspectos  serão  ex‐
sas formas de agir e viver. Agindo e vivendo reava‐ plicitados ao longo deste texto, justamente como 
liamos  nossos  conceitos,  destituímos  e/ou  conso‐ convite ao diálogo e à composição coletiva. 
lidamos valores.   
   
Antes de seguir, cabe ainda dizer que minha forma  1  Princípios  éticos  em  psicologia  histórico‐
de articular os conceitos aqui, tanto mais de modo  cultural 
tão  abreviado  e  introdutório,  é  uma  produção   
minha  com  base  nas  leituras  que  venho  fazendo  “O  método,  ou  seja,  o  caminho  seguido,  é  visto  como 
desde  o  final  dos  anos  oitenta,  articuladas  às  ex‐ um meio de cognição: mas o método é determinado em 
periências que tive, às vivências que nelas se cons‐ todos os seus pontos pelo objetivo a que conduz”  
tituíram  e  às  que  hoje  também  me  perpassam.   
Assim como em psicanálise, em behaviorismo, ou  — Vigotski (1927/1996, p. 346) 
qualquer abordagem em psicologia e demais ciên‐  
cias humanas, não há em  teoria histórico‐cultural  Quando  falo  aqui  de  ética  não  me  refiro  aos  pa‐
apenas uma leitura quanto ao significado dos clás‐ drões  de  conduta  que  se  formalizam  em  códigos 
sicos.  Minha  orientação  geral  a  qualquer  pessoa  de ética profissional, ou se normatizam em proce‐
dimentos solicitados por comitês de ética em pes‐
quisa  com  seres  humanos  ou  animais.  Estes  são 
importantes e necessários, mas refiro‐me antes ao 
nominar sua concepção de desenvolvimento humano, traba‐ campo  dos  princípios  e  valores  mais  gerais  que 
lhada, sobretudo, entre 1928 e 1931. Embora não comporte, 
permitem  inclusive  formular  tais  códigos  e  orien‐
portanto, toda a obra de Vigotski, serve para designá‐la como 
uma  metonímia  da  parte  pelo  todo.  O  termo  “teoria  sócio‐ tar as normas de comitês como esses. Valores sem 
histórica  da  atividade”  foi  cunhado  mais  tarde  por  Leontiev.  os quais eles se tornam destituídos de sentido ou 
No  Brasil  existe  uma  diversidade  de  denominações,  as  quais  exercidos  apenas  pelo  motivo  de  fugir‐se  à  puni‐
por sua vez implicam diferenças teóricas e metodológicas na  ção.  Fazer  ou  deixar  de  fazer  algo  apenas  pelo 
interpretação  do  autor  clássico  como:  sócio‐interacionismo, 
sócio‐construtivismo,  abordagem  sócio‐cultural,  abordagem  critério  de  não  ser  punido  em  caso  contrário  é 
sócio‐histórico‐cultural,  etc.  Não  nos  cabe  entrar  no  mérito  próprio do que poderíamos chamar de uma “ética 
das  disputas  por  qual  denominação  seria  mais  correta  ou  fraca”.  Uma  ética  substancial,  sobretudo,  diz  res‐
mais fiel à teoria do autor, pois a diversidade de leituras faz  peito à reflexão do homem sobre os valores rela‐
parte  do  processo  social  da  apropriação  de  qualquer  obra. 
tivos  ao  caráter  bom  ou  ruim  de  suas  próprias 
Adotarei  a  denominação  “histórico‐cultural”  por  ser  a  que  o 
próprio Vigotski teria cunhado e por ser a mais usada hoje na  ações  em  termos  das  conseqüências  que  elas  ve‐
própria Rússia. Contudo, como diz Vigotski “O mais importan‐ nham  a  ter  para  nós  e  para  nossos  semelhantes. 
te é o significado, e não o signo. Mude‐se o signo, preserve‐se  Historicamente,  diferentes  doutrinas  éticas  se 
o significado” (1924/2009, p. 41).
 
 
GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009  3 de 40
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
diferenciam, ademais, em termos do que definem  pio de tomar o ser humano e a realização de suas 
como  um  “bem”  a  ser  buscado  e  cuja  ausência  potencialidades  como  um  valor  que  se  não  for  o 
deve  ser  evitada.  A  ética,  assim,  nos  diz  mais  de  principal,  também  não  pode  deixar  de  ser  consi‐
um  “bem  que  se  quer”  do  que  de  uma  “punição  derado  como  imprescindível  e  inalienável  ao  seu 
da  qual  fugir”.  Desse  modo  as  éticas  que  tiveram  projeto  em  psicologia.  Sobretudo,  cabe  o  desta‐
como  valor  e  bem  maior  a  felicidade,  foram  cha‐ que de que, na concepção de Vigotski, as potenci‐
madas de “eudemonistas”. As que tiveram o pra‐ alidades humanas só se realizam e se ampliam no 
zer  como  valor  e  bem  maior  se  denominaram  âmbito da ação coletiva e em aliança com a alteri‐
“hedonistas”.  Àquelas  que  viam  na  utilidade  das  dade,  com  os  outros  sociais,  não  sendo  seu  foco 
ações  humanas  o  bem  e  o  valor  maior,  pôde‐se  ético uma realização humana apartada daquela de 
chamar  de  “pragmatistas”.  E  assim  por  diante 2 .  nossos semelhantes, o outro não é impeditivo de 
Pensemos então em qual poderia ser o valor cen‐ nossa liberdade e realização pessoal, mas uma das 
tral para a perspectiva histórico‐cultural, valor que  suas principais condições de possibilidade. 
se constitui então como seu objetivo principal, sua   
meta, sem a qual nenhum método pode ser defi‐ Pode‐se  interpretar  que  o  valor  da  humanidade 
nido.  como bem a ser preservado e cultivado, do ponto 
  de vista da ética presente na obra de Vigotski: (a) 
1.1  Contextualização  geral  e  critérios  axiológicos 3   em primeiro lugar não se traduz como humanismo 
para um humanismo crítico na abordagem históri‐ ingênuo nem liberal; e (b) em segundo lugar, con‐
co cultural.  seqüentemente,  demanda,  frente  a  outras  orien‐
  tações  axiológicas,  critérios  próprios,  como  o  seu 
Certamente  reduzir  cada  doutrina  ética  a  uma  entendimento  quanto  à  superação,  à  cooperação 
única  palavra  é  temerário,  tanto  quanto  cabe  e à emancipação. Com relação ao que aqui deno‐
lembrar  que  pode  haver  duas  ou  mais  doutrinas  mino  “humanismo  ingênuo”,  lembre‐se  que  pro‐
sob uma só categoria geral e portadoras de traços  priamente  humanas  não  são  só  as  denominadas 
específicos  bem  distintos  –  dependendo,  por  e‐ “grandes  realizações”,  expressões  maiores  de 
xemplo,  do  que  se  define  como  felicidade,  tere‐ criação artística, solidariedade ou luta pela vida e 
mos  diferentes  “eudemonismos”,  e  assim  por  o  bem  comum.  Não  basta  algo  ser  humano  para 
diante. Contudo, só levantamos estes exemplos de  ser bom. Também são humanos, ausentes noutros 
modo ilustrativo para articular o conceito de ética  animais, muitos atos de crueldade, degradação da 
com o de um “bem” que se busca, que se almeja,  natureza  e  autodestruição  da  espécie.  Tristes  e‐
que  se  tem  então  como  valor  maior.  Trabalharei  xemplos  de  ganância,  expropriação,  intolerância, 
aqui  com  a  interpretação  de  que  a  ética  da  obra  terrorismo,  tortura,  genocídio,  destruição  em 
de  Vigotski,  pautada  em  princípios  marxistas,  e  massa,  dados  ora  pelo  capitalismo  fascista  ou 
como  síntese  ainda  das  demais  tradições  filosófi‐ liberal  ora  até  mesmo  por  certas  orientações  no 
cas e culturais às quais este autor se filia (como o  dito  “socialismo  real”,  são,  infelizmente,  também 
espinosismo ou a própria tradição judaica na qual  realizações  humanas.  Karl  Marx  dissera  ser  sua 
foi  educado 4 ),  pode  ser  adjetivada  como  “huma‐ frase preferida um dizer de Terêncio: “Sou homem 
nista”,  lato  sensu.  Não  se  trata  do  mesmo  huma‐ e  nada  do  que  é  humano  eu  considero  alheio  a 
nismo cristão de Carl Rogers, ou ateu de Jean‐Paul  mim”.  Os  males  da  humanidade  fazem  parte  do 
Sartre. Mas tem em comum com o deles o princí‐ que  somos,  reconhecermo‐nos  como  humanos  é 
ver  bens  e  males  coletivos  como  algo  de  que  so‐
mos  todos  potencialmente  capazes  e,  em  alguma 
2
 Para um estudo detalhado sobre a constituição histórica de  medida,  até  mesmo  responsáveis.  A  ética  huma‐
diferentes doutrinas éticas, ver Vasquez (1975).  nista  que  nos  importa  não  elevará  qualquer  ato 
3
  Por  “axiologia”  entendo  aqui  apenas  “discurso  sistemático  humano a valor maior. Portanto, a ela cabe acres‐
sobre  os  valores”,  sobre  sua  hierarquia,  sua  apreciação  e  centar  critérios  diferenciadores  frente  ao  huma‐
significação.  O  adjetivo  “axiológico”  aqui  é  utilizado  apenas 
nismo ingênuo, dos quais trataremos adiante. 
com  a  acepção  de  “relativo  aos  valores  éticos”  e  aos  juízos 
que com eles se estabelecem na/para a orientação de nossa   
atividade  vital  e  de  nossa  relação  com  outras  pessoas  no  Outro aspecto que solicita critérios para definir de 
interior dela.  qual  humanismo  se  trata,  é  o  de  não  confundir 
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 Sobre a influência do judaísmo no pensamento de Vigotski  toda  ética  que  dá  à  humanidade  valor  central, 
ver Friedgutt e Kotik‐Friedgutt (2008). 
 
 
GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009  4 de 40
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
com uma visão “liberal” de ser humano. O libera‐ Puzirei como algo que manifesta “as finalidades e 
lismo como ideologia de sustentação de uma clas‐ os  valores  fundamentais  presentes  em  todo  o 
se  social  ascendente  com  o  advento  do  capitalis‐ pensamento de Vigotski”  (PUZIREI, 1989b, p. 16 ‐ 
mo,  coloca  o  “homem  no  centro”  (antropocen‐ grifos na fonte). Uma leitura mais rigorosa da obra 
trismo), em oposição à visão hegemônica na Idade  de Vigotski nos permite identificar nela uma forte 
Média,  da  “divindade  no  centro”  (teocentrismo).  “orientação  ao  ‘supremo’  no  homem  ou,  para 
Mas  de  que  “homem”  se  tratava?  Sem  nos  alon‐ dizê‐lo  com  palavras  de  Dostoiévski,  ao  ‘homem 
garmos,  apenas  recordemos  o  que  diferentes  au‐ no homem’, à sua organização psíquica e espiritu‐
tores críticos já vêm alertando há algum tempo. O  al,  desde  o  ponto  de  vista  do  que  pode  ser,  em 
conceito  de  homem  do  liberalismo  surgido  na  geral, o homem e dos caminhos que existem para 
Europa, com a modernidade, o advento do capita‐ este  estado  possível,  dos  caminhos  que  abre,  em 
lismo e a ascensão da burguesia, envolve um privi‐ particular, a arte e a psicologia da arte.” (PUZIREI, 
légio  de  certo  modelo  masculino,  branco,  euro‐ 1989b,  p.  16  ‐  grifos  na  fonte).  Tal  orientação  da 
peu,  adulto,  heterossexual,  letrado,  proprietário,  abordagem  histórico‐cultural  ao  que  “podemos 
entre outros traços. O que flagra que, ao tentar‐se  ser”, ao que podemos alcançar de “supremo”, no 
apresentar  a  idéia  de  tal  ser  humano  constituir  sentido  de  mais  elevado,  mais  avançado,  implica, 
valor  universal,  ao  mesmo  tempo  se  impunha  às  em  outras  palavras,  que  se  vê  o  humano  tanto 
mais diversificadas manifestações da vida e cultu‐ como  ser  apto  a  ir  além  de  seus  limites,  quanto 
ra  humana  um  modelo  derivado  de  interesses  como o que  só se realiza quando se supera. Con‐
particulares, próprios de uma classe social restrita.  tudo,  realizarmo‐nos  como  humanos,  é  algo  que 
Não sem razão, Paul‐Michel Foucault (1995; 2009)  pode  ocorrer  ou  não,  em  função  de  dadas  condi‐
é  sério  crítico  do  humanismo  ocidental  moderno  ções  materiais,  concretas.  Uma  das  principais 
hegemônico, entendendo que ele seja uma inven‐ condições concretas para a superação humana é a 
ção  social  questionável  tanto  quanto  o  próprio  cooperação entre as pessoas. 
conceito atual de “homem”, o qual já indicaria seu   
fim  próximo.  Ademais,  o  conceito  liberal  de  ho‐ Enquanto a ideologia liberal valoriza a competição 
mem  é,  sobretudo,  focado  na  nossa  existência  como força motriz da superação humana, a tradi‐
individual  e  na  noção  de  que  nossa  liberdade  é  a  ção à qual Vigotski se filia discorda de que um ser 
priori  para  cada  um  de  nós,  algo  que  “nasce  co‐ humano  só  avance  quando  outro  é  sobrepujado 
nosco”. Trata‐se da ideologia de que se todos so‐ ou  derrotado.  Se  aquela  visão  supõe  o  “homem 
mos  naturalmente  livres  para  vender  nossa  força  como lobo do homem”, e o outro como alguém a 
de  trabalho  e  para  prosperar  com  nossos  empre‐ temer  ou  subjugar,  esta  supõe  que  até  para  ser‐
endimentos  pessoais,  o  fracasso  ou  sucesso  de  mos indivíduos necessitamos a presença e os cui‐
cada  um  será  devido  exclusivamente  aos  seus  dados  de  outras  pessoas  para  conosco.  Se  consi‐
méritos e defeitos individuais.  derarmos o simples fato da fragilidade do “filhote 
  humano”  e  o  tempo  que  demora  para  poder  ga‐
Se a ética humanista que se insinua na psicologia  rantir  por  conta  própria  a  sua  sobrevivência,  já 
de  Vigotski  não  se  pauta  no  critério  ingênuo  do  teremos noção do quanto necessitamos colabora‐
homem  como  ser  essencialmente  bom,  nem  no  ção  de  alguém  para  virmos  a  ser  nós  mesmos  e 
liberal com foco na sua realização individual, quais  quanto  podemos  nos  fazer  necessários  para  al‐
critérios acrescentar para o valor dado ao humano  guém vir a ser ele próprio... Isso pode ser ilustrado 
nessa  abordagem,  se  ela  ainda  não  advoga  a  na própria teoria do desenvolvimento da persona‐
“morte  do  homem”?  Na  minha  compreensão,  há  lidade  e  das  funções  da  linguagem,  do  signo,  se‐
pelo menos três ações próprias ao ser humano às  gundo  Vigotski.  Para  ele,  a  função  das  primeiras 
quais  a  abordagem  histórico‐cultural  não  valoriza  palavras não é, como se pensa, estritamente afe‐
só  em  tese,  mas  também  busca  construir  através  tiva,  "expressar  emoções",  mas  primordialmente 
de sua prática social, às quais podemos, de modo  indicativa, para "pedir ajuda". O primeiro propósi‐
conciso,  nomear  como:  (a)  superação,  (b)  coope‐ to da linguagem "é, antes de tudo, um pedido de 
ração  e  (c)  emancipação.  A  noção  de  superação  ajuda, uma chamada de atenção e, por conseguin‐
em Vigotski, entendida como ato e necessidade de  te, a primeira transposição dos limites da persona‐
superarmo‐nos, de irmos  além dos nossos limites  lidade,  isto  é,  uma  colaboração..."  (VIGOTSKI, 
atuais,  é  ressaltada  pelo  estudioso  russo  Andrei  1931/2000a,  p.  338).  Ainda  assim,  a  necessidade 
 
 
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de  atuar  junto  a  mais  alguém  para  avançar  em  conta  uma  cooperação  mais  generalizada  e  uma 
nossos potenciais não se restringe a aprendermos  superação  mais  elevada,  cabe  articular  esses  dois 
a andar, a falar, a cuidar de nossa própria higiene,  primeiros  critérios  para  o  humanismo  próprio  à 
a ler e escrever ou a contar. Por toda vida há situ‐ abordagem histórico‐cultural a mais um terceiro e 
ações em que a superação de nossos limites exige  decisivo:  a  busca  da  emancipação  humana.  Em 
a  presença  de  outrem,  mais  experiente,  que  pro‐ outras  palavras:  o  valor  ético  da  conquista  e  ma‐
porcione  mediações  necessárias  e  a  quem  dirija‐ nutenção  da  liberdade,  no  seu  sentido  mais  pro‐
mos  solicitações.  Se  desejo  aprender  uma  língua  fundo e substancial. 
estrangeira, a exercer uma profissão ou a dominar   
alguma  arte,  devo  recorrer  a  outros.  Mas  não  se  Dizer que o conceito de liberdade em Vigotski não 
restringe  a  necessidade  de  cooperação  a  obter  é  liberal  poderá  confundir  o  leitor,  mas  é  preciso 
instrução  de  alguém  mais  experiente:  também  que  se  entenda  que  se  trata  justamente  disso.  O 
cooperamos  com  nossos  pares,  aprendemos  com  conceito de liberdade é uma construção da huma‐
amigos,  colegas,  familiares.  E  ainda  com  as  crian‐ nidade  que  veio  sofrendo  várias  alterações  na 
ças,  os  mais  novos,  menos  experientes  que  nós,  história do ocidente, desde a antiga polis grega ao 
seja  por  sua  perspicácia,  seja  por  lhes  tentarmos  ideário  da  Revolução  Francesa  e  desse  ao  sonho 
ensinar  algo  –  momento  talvez  em  que  mais  de‐ socialista,  nunca  plenamente  realizado,  ou  à  pro‐
vemos nos superar.  posta  anarquista  auto‐gestionária,  também  pou‐
  cas  vezes  concretizada.  Desse  modo,  carregando 
Se para nos tornarmos nós mesmos necessitamos  origens histórico‐sociais diversas, os sentidos para 
do  outro,  caberia  eticamente  lembrarmos  que  a palavra “liberdade” também seguem sendo hoje 
para irmos além do que já somos, o outro também  os  mais  variados.  Desde  os  mais  ingênuos  aos 
é aliado essencial. Contudo, se não somos egoístas  mais críticos, dos mais idealistas aos mais concre‐
por  natureza  (humanismo  liberal)  também  não  tos,  dos  mais  demagógicos  aos  mais  francos,  dos 
somos  altruístas  por  natureza  (humanismo  ingê‐ mais  racionalistas  aos  mais  apaixonados.  Quando 
nuo).  A  cooperação  é  condição  inevitável  para  o  digo que o conceito de Vigotski não é liberal, refi‐
avanço de nossos potenciais, mas isso não signifi‐ ro‐me  ao  liberalismo  como  ideologia  política  pró‐
ca que toda e qualquer relação social nos permita  pria  do  conceito  europeu  dominante  desde  a  as‐
ir  além.  De  fato,  poderíamos  ainda  acrescentar  censão  da  burguesia  como  classe  hegemônica. 
que  nem  toda  cooperação,  sendo  para  o  bem  de  Sem  nos  alongarmos  sobre  esse  ponto,  reitera‐se 
um dado grupo, necessariamente o é para o bem  o  já  destacado  acima:  o  conceito  liberal  de  liber‐
da  humanidade.  Fascistas  podem  cooperar  visan‐ dade,  tanto  quando  o  de  humanismo,  é  pautado 
do  a  derrota  da  democracia,  liberais  podem  coo‐ fundamentalmente  numa  concepção  individualis‐
perar  formando  cartéis  monopolistas,  dizendo‐se  ta de mundo. A qual, mais das vezes, é sustentada 
democratas, etc. Então, nesses casos, a superação  por  um  discurso  naturalista,  pelo  qual  as  diferen‐
pode  estar  sendo  vista  não  como  um  constante  ças  individuais  são  fruto  exclusivo  da  herança  ge‐
processo  de  todos  e  cada  um  desafiarem  seus  nético‐molecular,  e  os  méritos  das  pessoas  são 
próprios  limites  e  tornarem‐se  melhores  em  al‐ tratados  como  dons,  capacidades  abstratas,  com 
gum  aspecto  de  sua  personalidade,  profissão  ou  as quais foram agraciadas independentemente de 
trabalho  criativo,  mas  apenas  como  uma  forma  educação  social  ou  desenvolvimento  histórico. 
obter  mais  benefícios  pessoais  ou  corporativos  e  Supõe‐se,  portanto,  que  um  autor  como  Vigotski, 
prevalecer‐se  sobre  os  demais.  Pode  haver  então  cujas  bases  filosófico‐metodológicas  estão  forte‐
formas de cooperação em função da restrição do  mente articuladas com uma tradição da ontologia 
potencial  de  avanço  do  outro,  e  até  mesmo  em  do ser social marxista, não teria um conceito libe‐
função de subjugá‐lo e destruí‐lo. O crime organi‐ ral  de  liberdade  ou  de  emancipação  humana.  Há 
zado poderia ser um exemplo dos mais comuns, e  dois  pontos  que  cabe  destacar  no  conceito  de 
mesmo  as  guerras  não  deixam  de  ser  algo  seme‐ liberdade/emancipação  em  Vigotski:  (a)  trata‐se 
lhante, ainda que num plano político bem distinto  de uma conquista não um pressuposto; (b) é uma 
– o que têm de similar é a cooperação de um cole‐ conquista que se obtém cooperando com alguém 
tivo para a destruição do inimigo como um ganho  e não sozinho. 
e uma meta. Desse modo, se nem toda ação con‐  
junta  leva  a  um  aumento  de  força  que  tenha  em 
 
 
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Não  há  necessidade  aqui  de  optarmos  pela  pala‐ criança,  na  qual  para  haver  um  simples  jogo  são 
vra  “liberdade”  em  preferência  à  “emancipação”,  necessárias  regras,  mas  brincar  não  só  nos  pode 
nem  o  contrário.  Contudo,  entenda‐se  que  ao  ser  aprazível,  como  também  permitir‐nos  ir  além 
falarmos  em  “liberdade”  concebemos  o  processo  do  que  está  posto  de  imediato  frente  aos  nossos 
de  permanentemente  obtê‐la,  e  não  como  um  olhos,  avançando  ao  distante  no  tempo  ou  no 
estado ideal que atingido faz cessar a necessidade  espaço  no  ato  da  imaginação  criadora.  Por  fim 
de  buscá‐lo.  E  por  “emancipação”,  entenda‐se  o  poderíamos,  de  passagem,  destacar  que,  em  Vi‐
mesmo, ainda que a terminação da palavra talvez  gotski,  o  conceito  de  liberdade  alia‐se  ao  de  von‐
ajude a nos sugerir uma idéia de “ação”, portanto  tade,  o  qual  por  sua  vez  se  traduz  pelos  atos  hu‐
“movimento”.  O  bebê  humano  é  o  mais  depen‐ manos  que  envolvem  uma  tomada  de  decisão, 
dente de todos os filhotes conhecidos, o que nas‐ uma escolha. Diante de duas opções o ser humano 
ce  menos  preparado,  o  que  demora  mais  tempo  necessita um ato volitivo para decidir o que have‐
para  atingir  a  forma  adulta,  o  que  precisa  mais  rá  de  obter  (realizar)  e  o  que  haverá  de  perder 
aquisições  do  ambiente  para  justamente  poder  (deixar de realizar). Nessa decisão, na tensão que 
lidar  com  ele.  Sendo  assim,  é  certo  que  não  nas‐ ela  envolve,  está  posta  nossa  possibilidade  de 
cemos livres, nem autônomos. Portanto, todo um  superação  com  relação  aos  determinantes  de 
desenvolvimento  humano  é  necessário  para  con‐ cunho  estritamente  condicionados  pelos  estímu‐
quistar maior autonomia, liberdade de pensamen‐ los do meio. Essas ações de escolher, por sua vez, 
to  e  de  ação,  ou  mesmo  independência  afetiva.  passam  por  um  processo  de  desenvolvimento  ao 
Esse  curso  de  desenvolvimento,  na  concepção  de  longo  de  nossas  vidas,  que  é  o  desenvolvimento 
Vigotski,  vai  “do  social  ao  individual”.  A  ênfase  é  de nossa própria vontade ou “volição”. 
distinta  da  de  autores  como  Freud  e  Piaget  (ver   
BRUNER,  2005),  para  quem  a  criança  é  um  ser  Em  seu  estudo  sobre  o  “domínio  da  própria  con‐
individual  que  só  progressivamente  se  socializa.  duta”,  Vigotski  (1931/2000b)  explora  mais  deta‐
Na  perspectiva  da  abordagem  histórico‐cultural,  lhadamente  esses  aspetos.  Num  dado  momento, 
nascemos já em mundo social, e só podemos nos  ele  retoma  Marx  e  Engels  para  destacar  que  “o 
manter  vivos  se  em  contato  com  outras  pessoas.  livre arbítrio (...) não significa mais do que a capa‐
Assim,  pela  mediação  delas,  processualmente,  cidade  de  tomar  decisões  com  conhecimento  do 
vamos  nos  diferenciando  e  nos  “subjetivando”,  assunto”  (apud  VIGOTSKI,  1931/2000b,  p.  300). 
tomando consciência  de  nossa própria existência,  Desse  modo,  as  decisões  mais  livres  não  seriam 
constituindo  nosso  mundo  privado  e  assumindo  aquelas  que  tão  somente  se  toma  com  base  no 
um  lugar  específico  no  mundo  público  no  qual  já  impulso, no fazer “como eu quero” ou “tudo que 
estávamos situados desde sempre.   quero”, como dito no senso comum – pelo qual a 
  ideologia  liberal  perpassa.  Até  porque  uma  ação 
Desse  modo,  não  há  qualquer  liberdade  a  ser  tão somente “por querer”, sem que se intuam os 
constituída  que  não  passe  pela  relação  com  os  motivos  pelos  quais  se  deseja,  pode  não  ser  tão 
outros.  As  próprias  regras  que,  desde  pequenos,  livre  quanto  se  imagine.  Nota‐se  que  o  conceito 
aprendemos  com  os  adultos  e  com  outras  crian‐ de  liberdade  aliado  ao  processo  de  tomada  de 
ças,  são  condição  de  possibilidade  para  o alcance  consciência  crítica,  isto  é,  de  percepção  da  dinâ‐
de  maior  autonomia  e  liberdade  de  pensamento,  mica  contraditória  do  real,  lembra  o  conceito  es‐
ação e afeto, e não necessariamente impedimen‐ pinosiano  de  emancipação,  como  relativa  à  supe‐
to.  As  modalidades  de  relação  social  que  sejam  ração das nossas superstições. Ou seja, de supera‐
impeditivas da autonomia humana não são consi‐ ção de paixões tristes, de receios, idéias e afetos, 
deradas,  como  em  outras  teorias,  algo  natural  e  que  nos  imobilizem,  por  desconhecermos  as  cau‐
regra  inevitável  do  desenvolvimento  psicológico,  sas  reais  das  coisas.  E  também  por,  desse  modo, 
mas  formas  historicamente  constituídas  que  po‐ ignorarmos  as  nossas  próprias  possibilidades  e 
dem  predominar  ou  não.  As  quais,  por  sua  vez,  limitações com relação à transformação ou manu‐
estão  em  constante  tensão  com  aquelas  relações  tenção  do  mundo  que  aí  está.  Vigotski  assume, 
que  proporcionam  o  avanço  para  modos  mais  embora não explicite  em  quais termos, a identifi‐
integrados de compor com o mundo e de obter e  cação  de  seus  ideais  éticos  com  os  de  Baruch  de 
exercer  maior  poder  de  realização  junto  a  ele.  Espinosa:  “Não  podemos  deixar  de  assinalar  que 
Pensemos  apenas  no  exemplo  da  brincadeira  da  nossa idéia da liberdade e o autodomínio coincide 
 
 
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com  as  idéias  que  Espinosa  desenvolveu  em  sua  contudo, mostrar em que tal argumento é falho – 
“Ética””  (VIGOTSKI,  1931/2000b,  p.  301).  Caberá  recurso muito usado por alguns advogados, jorna‐
aprofundar  as  formulações  aqui  apresentadas.  listas,  políticos  e  pseudo‐intelectuais.  Mas  sim  no 
Mas,  articulando  indícios  e  arriscando  nossa  pró‐ sentido  mais  profundo  de  argumentar  “junto  ao 
pria interpretação, cabe ainda relacionar o ideário  homem”,  interpelando‐o  em  sua  existência  con‐
emancipatório em Vigotski com a busca social (na  creta,  pedindo‐lhe  coerência  entre  palavras  e  vi‐
então União Soviética) de desenvolver o chamado  vências,  falando‐lhe  de  coisas  que  lhe  digam  res‐
“novo  homem  socialista”.  Tal  noção  implicaria  a  peito  pessoalmente  e  não  apenas  “em  abstrato”, 
ampliação  das  capacidades  simbólicas  e  culturais  solicitando‐lhe  responsabilidade  e  tomada  de 
de  cada  pessoa  num  contexto  societário  livre  da  atitude. 
expropriação  de  uma  classe  por  outra  (ver  VI‐  
GOTSKI,  1930/1994).  Isto  pode  ser  sintetizado  no  Evidentemente, para virmos um dia a argumentar 
dito  marxiano  sobre  o  movimento  de  irmos  “do  assim  precisaremos  voltar  o  mesmo  recurso  para 
reino da necessidade, para o reino da liberdade”.  nós  mesmos  –  do  contrário,  na  ética  do  discurso 
Algo  que  ainda  não  aconteceu  na  história  da  hu‐ poderá  predominar  a  ação  estratégica  sobre  a 
manidade.  comunicativa 5 ,  nos  termos  de  Habermas  (1989). 
  De  todo  modo,  se  no  exemplo  de  Puzirei  o  “ho‐
1.2  Contradições  enfrentadas  pelo  psicólogo  que  mem  no  homem”  é  o  que  se  extrai  para  o  mais 
se  orienta  por  um  humanismo  crítico  e  o  critério  alto, na fala de Marx é o que se retira do profun‐
ontológico  da  historicidade  como  recurso  perti‐ do,  em  suas  raízes,  ou  seja,  em  nós  mesmos  – 
nente  animais  simbólicos,  sociais  e  históricos.  Sendo 
  assim,  a  realização  da  emancipação,  como  con‐
Uma vez que a ética humanista própria à perspec‐ quista permanente de maior liberdade será social 
tiva  histórico‐cultural,  tal  como  lida  aqui,  implica  não apenas porque cada indivíduo precisa se rela‐
um movimento de negação dos valores dominan‐ cionar  com  outras  pessoas  para  desenvolver  sua 
tes,  bem  poderíamos  atribuir  a  tal  humanismo  o  capacidade  de  escolher,  decidir  voluntariamente, 
adjetivo  de  “crítico”.  Contudo,  apenas  o  façamos  mas  também  por  algo  mais.  O  processo  social  de 
com o cuidado de não substantivar esse adjetivo,  emancipação humana não é relativo só à emanci‐
para  não  criar  rótulos  que  mais  sirvam  para  dis‐ pação  de  cada  um,  mas  à  de  todo  o  conjunto  da 
tanciar  pessoas  com  metas  comuns  do  que  para  sociedade,  na  construção  de  práticas  democráti‐
aproximá‐las  em  projetos  de  cooperação  por  um  cas de convívio e de gestão do que é de interesse 
bem maior, o que nos faria entrar numa luta inco‐ público.  Sabemos,  contudo,  que  em  nossa  socie‐
erente  por  decidir  qual  seria  o  “melhor  humanis‐ dade,  as  restrições  são  fortíssimas.  Nossa  demo‐
mo”. Até porque “humanista” já fora desde o iní‐ cracia  é  frágil,  nossas  instituições  não  são  confiá‐
cio um adjetivo para dada ética. De qualquer ma‐ veis. E a ideologia de uma “liberdade” em termos 
neira, no nosso caso, a crítica é também um crité‐ liberais,  de  jargões  como  “cada  um  para  si”  ou 
rio  fundamental  para  a  psicologia  de  orientação  “leve  vantagem  você  também”,  é  hegemônica. 
histórico‐cultural.  Disse  Karl  Marx  que:  “é  certo  Colocamo‐nos diante de certo dilema ético quanto 
que a arma da crítica não pode substituir a crítica  a  agir  ou  não  agir,  com  relação  a  esse  estado  de 
das armas, que o poder material tem que ser der‐ coisas.  Se  Marx  fala  do  confronto  entre  arma  da 
rocado pelo poder material, mas também a teoria  crítica e crítica das armas, Espinosa, no “Tractatus 
se transforma em poder material logo que se apo‐ politicus”  também  recorre  a  termos  bélicos  para 
dera das massas. A teoria é capaz de se apoderar 
das  massas  quando  argumenta  ad  hominem,  e 
argumenta  ad  hominem  quando  se  torna  radical: 
5
ser radical é tomar as coisas pela raiz. Mas a raiz,    Na ética do discurso de Habermas (1989), o agir estratégico 
para  o  homem,  é  o  próprio  homem”  (apud  CHA‐ é tido como aquele em que nós argumentamos tão somente 
para sobrepujar a posição do outro e convencê‐lo, enquanto 
SIN, 1999, p. 9). Assim a crítica só é pertinente se 
no agir comunicativo ambos dialogam e cedem mutuamente 
argumenta  “ad  hominem”,  não  aqui  no  sentido  tendo  como  objetivo  a  busca  da  verdade.  Ainda  segundo 
vulgar de argumentar “contra o homem”, desqua‐ analistas dessa teoria, os dois modos de agir não se polarizam 
lificando as características pessoais do outro para  de  forma  pura  e  ideal,  mas  na  prática  logram  influenciar‐se 
assim  destituir  de  valor  o  seu  argumento  sem,  mutuamente em alguma medida, numa relação dialética, ou 
seja, de contradição inter‐constitutiva. 
 
 
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
dizer  da  liberdade  humana:  “se  numa  Cidade  os  tempo  que  existiu  não  chegou  a  atingir  todo  o 
cidadãos  não  tomam  das  armas  porque  estão  projeto a que se propôs, e talvez sua derrota seja 
aterrados  pelo  medo,  não  se  pode  dizer  que  aí  indício justo disso. 
exista  paz  e  sim  mera  ausência  de  guerra.  A  paz   
não é pura ausência de guerra, mas virtude origi‐ Na atual sociedade, na qual hoje as obras de auto‐
nada da força d’alma no respeito às leis [...]. Uma  res  soviéticos  como  Vigotski,  Luria,  Leontiev,  Ru‐
Cidade onde a paz é efeito da inércia dos súditos  binstein,  Elkonin  e  Bojovitch  (ver  figura  1)  vêm 
tangidos  como  um  rebanho  e  feitos  apenas  para  cobrar  sentido,  o  ser  humano  nem  sempre  é  o 
servir merece antes o nome de solidão do que de  valor  central  e,  quando  sim,  geralmente  o  é  em 
Cidade” (apud CHAUI, 1995, p. 56).  termos  liberais  ou  ingênuos.  Nossa  atitude  não 
  pode  ser  muito  mais  que  a  de  distanciamento 
Não  é  necessário  crítico.  Como  disse 
nos  alongarmos  a‐ meu  colega  o  pro‐
qui  no  diagnósti‐  fessor  Luiz  Lastória 
co  da  sociedade  (com.  pessoal, 
contemporânea,  1998),  parafrasean‐
dita  “pós‐moder‐ do  Adorno:  “Se  não 
na”,  também  de‐ há  cura,  aprofunda 
nominada  “neoli‐ o  diagnóstico”.  Pro‐
iberal”.  Trata‐se  postas  apressadas 
de  conteúdo  cor‐ de  “cura”,  sem  o 
rente  nas  refle‐ conhecimento  real 
xões  críticas  sobre  do  que  gera  os 
políticas públicas e  “sintomas”  pode 
as que dedicam‐se  implicar  fatores 
a  algum  tipo  de  etiológicos  hiatro‐
análise  das  insti‐ gênicos,  isto  é,  fa‐
tuições  atuais.  FIGURA1: PSICÓLOGOS SOVIÉTICOS  tores  patológicos 
Contudo,  fica  pos‐ (1)  Aleksis  Nikolaevitch  Leontiev  (1903‐1979);  (2)  Lidia  Il’initchna  Bojovitch gerados  pela  pró‐
ta  uma  tensão  en‐ (1908‐1981);  (3)  Aleksandr  Romanovitch  Luria  (1902‐1977);  (4)  Serguei  Leo‐ pria  ação  do  trata‐
nidovitch Rubinstein (1889‐1960); (5) Daniil Borisovitch Elkonin (1904‐1984). 
tre  os  valores  que  mento.  O  que  nos 
são o fundamento da ética da abordagem históri‐ remete  também  ao  alerta  presente  em  Hipócra‐
co‐cultural, tal como a lemos, e os valores privile‐ tes, para quem a missão do profissional da saúde 
giados no mundo contemporâneo, de modo geral,  é “curar se possível, ao menos não danar”. Eviden‐
mais drasticamente em países periféricos e subal‐ temente,  estamos  usando  termos  médicos  de 
ternos  como  o  Brasil.  Como  agir  de  acordo  com  modo  metafórico,  não  é  esse  nosso  papel  social. 
valores  como  os  da  psicologia  vigotskiana,  num  Mas  trata‐se  de  uma  analogia  que  pode  ajudar‐
país  em  que  tais  valores  hegemonicamente  são  nos  a  refletir.  Pode‐se  a  ela  adicionar  que  “diag‐
tidos como antiquados ou mesmo utópicos, quan‐ nosticar”  não  é  um  ato  passivo  e  descompromis‐
do não inexistentes ou totalmente ignorados? De  sado.  Diagnosticar  é,  na  raiz  grega,  conhecer  “a‐
fato,  o  marcador  semântico  para  nós  importante  travessando”  a  realidade,  ou  seja,  desde  o  pro‐
nesse caso é a palavra “hegemonicamente”. O que  fundo  ao  elevado,  não  se  trata  do  sentido  vulgar 
é  “hegemônico”  é  predominante,  o  que  mais  se  da palavra como “rotular”. E para tanto é necessá‐
destaca, o que mina e subordina as visões contrá‐ rio  compromisso,  com  o  ato  de  conhecer  e  com 
rias,  mas  não  é  o  “absoluto”,  não  prevalece  de  aquele que se deseja conhecer, na relação com o 
modo  homogêneo,  não  existe  sem  fissuras  –  as  qual passaremos também a nos conhecer melhor, 
quais  podem  surgir  como  contestações  organiza‐ posto que estamos falando de um conjunto social 
das,  como  desobediência  civil,  ou  ainda  como  do qual fazemos parte, desde que nascemos. Não 
fraturas  e  convulsões  de  cunho  retrógrado.  A  so‐ são as pessoas com quem trabalhamos objeto de 
ciedade  na  qual  foi  criada  a  teoria  histórico‐ piedade  ou  caridade,  mas  sujeitos  co‐autores  do 
cultural não existe mais, foi derrotada na chamada  mesmo processo histórico em que estamos inseri‐
“Guerra  Fria”.  Ela  mesma,  por  sua  vez,  durante  o  dos e que (re)produzimos diariamente. 
 
 
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
Desse  modo,  em  suma,  cabe  destacar  que  aos  o  critério  do  chamado  “método  construtivo”,  tal 
princípios  éticos  aqui  insinuados,  comentados,  como  concebido  por  Vigotski,  pois  elucida  um 
acrescenta‐se um princípio ontológico que permi‐ pouco  o  já  falado  sobre  o  “aprofundamento  do 
te  abordá‐los  com  mais  visibilidade.  Trata‐se  do  diagnóstico”,  como  um  ato  no  qual  nos  envolve‐
princípio  da  historicidade  dos  valores.  Se  nossas  mos como partícipes. Ato no qual, de certa forma, 
relações com as pessoas, nossos modos de simbo‐ diagnosticamos a nós mesmos, nossa própria exis‐
lizar  o  mundo  mediante  a  linguagem  e  de  agir  tência  social  e  experiência  histórica,  no  papel  de 
sobre  ele  mediante  o  uso  de  instrumentos,  se  psicólogos  que  não  se  desvincula  dos  nossos  de‐
constituem historicamente, o mesmo se aplica aos  mais  lugares  simbólicos.  Vejo  esse  momento  da 
nossos  valores  morais,  isto  é,  à  nossa  ética.  Nos‐ discussão  com  um  ponto  de  conexão  importante 
sos  valores  se  constituem  historicamente,  e  tam‐ entre os valores gerais e a proposta de atuação do 
bém só historicamente podem se consolidar ou se  psicólogo  que  se  orienta  numa  perspectiva  histó‐
enfraquecerem  dando  lugar  a  outros.  A  história  rico‐cultural. Nesse sentido retomo uma discussão 
implica  contradições  e  lutas  entre  projetos  políti‐ já  proposta  anteriormente  (DELARI  JR.,  2000),  na 
cos e valores diversos, só em meio a tal contradi‐ qual  me  deparava  com  a  trama  de  inter‐
ção  a  realização  e/ou  transformação  dos  nossos  constituição  das  linguagens  teóricas  que  assumi‐
valores  pode  ocorrer.  A  busca  de  cooperação  em  mos  com  a  constituição  de  nossa  própria  subjeti‐
função  de  superação  constante,  como  conquista  vidade,  consciência  e  personalidade.  De  fato,  o 
de uma mais potente emancipação humana, cons‐ vínculo profundo dos valores éticos com a prática 
titui‐se, portanto, em um desafio histórico, coleti‐ social  e  então  com  a  prática  profissional  com  um 
vo e pessoal. Não é pouco, nem é suficiente. Mas  momento  importante  dela,  em  psicologia,  está 
é uma interpelação que está posta. Trabalhar ins‐ associado ao problema das relações entre o “abs‐
tigados  por  tal  desafio  é  como  assumir  um  dito  trato”  e  o  “concreto”.  Para  o  marxismo  não  há 
que  ouvi  de  Paulo  Freire  em  Curitiba,  em  12  de  como chegar ao concreto sem passar pela abstra‐
junho de 1992: “Cabe fazer o que é possível fazer  ção,  porque  o  concreto  não  é  mais  só  o  “empíri‐
hoje para que o que não é possível fazer hoje seja  co”,  ou  seja,  a  experiência  pela  experiência.  Para 
feito  amanhã”.  Os  limites  do  possível,  segundo  entendermos  determinações  concretas  da  reali‐
Vigotski, se ampliam na relação com o outro 6  (ver  dade é preciso olhar para além do que se apresen‐
VIGOTSKI,  1935/1989) 7 ,  tanto  quanto  podem  se  ta  diretamente  aos  sentidos,  ver  o  que  não  se 
estreitar  dependendo  de  como  nos  relacionemos  mostra,  ouvir  o  que  não  foi  dito,  conectar,  rela‐
com esse outro e de quem é ele ou pode ser para  cionar, imaginar, interpretar, logo “abstrair”. Nes‐
nós. Nesse ponto nos cabe o ato volitivo de optar,  se  sentido  entende‐se  a  proposição  de  Marx  de 
se possível, pelas relações mais potencializadoras.  que  é  preciso  “ascender  ao  concreto”.  Ele  é  uma 
Descobrir  quando  é  possível  ou  não,  no  mesmo  meta  elevada,  não  só  ponto  de  partida  eventual. 
ato de buscar produzir a possibilidade, é o próprio  Mas  para  alcançarmos  o  concreto,  a  abstração 
exercício da ética.  não pode bastar‐se, nem perder seu vínculo com a 
  vida  social,  com  as  necessidades  e  lutas  de  cada 
  sociedade. 
1.3 O método construtivo e a psicologia como   
constitutiva da vida humana  Infelizmente, se uma abstração é sempre necessá‐
  ria  ao  cientista,  ao  psicólogo  crítico,  também  é 
Por  fim,  tendo  já  falado  sobre  o  critério  metodo‐ certo  que  nem  sempre  conseguimos  ascender  ao 
lógico  da  crítica  e  o  ontológico  da  historicidade,  concreto. Para Puzirei, o fato de Vigotski dizer que 
como suportes para a ética, coloquemos também  sua “história do desenvolvimento cultural é a ela‐
boração  abstrata  da  psicologia  concreta.”  (1929/ 
2000,  p.  35)  seria  como  uma  “autocrítica”  que 
6
“não  apenas  mostra  a  liberdade  e  espírito  crítico 
 Sobre a teorização da superação dos limites no desenvolvi‐
com  que  ele  avaliava  sua  própria  obra,  mas  tam‐
mento  humano  ontogenético  e  microgenético,  mediante  o 
conceito de “zona blijaishego razvitia”, ver nota “17”, p. 29.  bém a profundidade e a radicalidade de seu pen‐
7
 A fonte só fornece o ano da primeira publicação, mas não a  samento” (PUZIREI, 1989a, p. 76). Tal pensamento 
data  de  quando  o  trabalho  teria  sido  concluído.  Trata‐se  de  teria formulado um projeto no qual Vigotski “via a 
uma  publicação  póstuma,  já  que  Vigotski  morreu  em  11  de  ‘linha geral’ do desenvolvimento posterior da psi‐
junho de 1934. 
 
 
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
cologia  histórico‐cultural.  Esta  tendência  poderia  lho  é  também  e  sempre  um  trabalho  com  os  ou‐
significar  uma  superação  radical  do  ‘academicis‐ tros,  os  nossos  valores,  os  valores  da  abordagem 
mo’  na  psicologia  tradicional”  (PUZIREI,  1989a,  p.  que  assumimos  justamente  por  serem  condizen‐
76).  Tal  projeto  para  o  futuro,  visto  do  tempo  de  tes  com  os  nossos  ou  por  sentirmos  que  podem 
Vigotski, nos interessa hoje no século XXI, embora  potencializá‐los, passarão a interagir com os valo‐
as condições da psicologia atual não sejam muito  res  de  nossos  interlocutores,  as  pessoas  com 
melhores que as do período em que a perspectiva  quem  trabalhamos,  tensionando  com  eles,  numa 
histórico‐cultural  surgiu.  Trata‐se  de  um  projeto  relação em que nos enriquecemos mutuamente e 
que  solicita:  “um  movimento  em  direção  a  um  nos  refazemos  constantemente,  se  para  tanto 
tipo  completamente  novo  de  investigação,  que,  houver disposição. 
em  virtude  de  alguns  dos  aspectos  fundamentais   
do seu “objeto”, um objeto histórico‐cultural e em  Sobre  o  processo  pelo  qual  nosso  trabalho  com‐
desenvolvimento,  e  de  exigências  fundamentais  põe‐se  com  nossa  própria  personalidade  e  a  da‐
(derivadas  deste  último)  de  seus  métodos,  a  sa‐ queles  com  quem  nele  dialogamos,  deixo  uma 
ber,  externalização  e  análise,  deve,  ele  próprio,  última  sugestão  de  reflexão  sobre  o  chamado 
ser  implementado  dentro  do  quadro  organizado  “método  construtivo”  em  pesquisa  psicológica. 
de alguma prática psicotécnica, servindo como um  Vejo‐o  como  pertinente  também  para  a  prática 
órgão  necessário  que  torna  possível  a  projeção,  profissional, se considerarmos o que Puzirei colo‐
realização, reprodução e desenvolvimento dirigido  cava,  na  citação  acima,  sobre  a  articulação  entre 
dessa prática. Esse projeto de reestruturação radi‐ método de investigação e “prática psicotécnica” 8 . 
cal da psicologia permanece essencialmente irrea‐ Vigotski  diz  que  “um  método  construtivo  implica 
lizado  na  história  subseqüente  da  psicologia.”  duas  coisas:  (1)  ele  estuda  antes  construções  do 
(PUZIREI, 1989a, p. 76)  que estruturas naturais; (2) não analisa, mas cons‐
  trói  um  processo”  (VIGOTSKI,  1929/1989,  p.  55). 
A psicologia concreta proposta por Vigotski convi‐ “Construções”  aqui  está  como  sinônimo  de  “pro‐
da,  assim,  a  uma  mudança  radical  em  nossa  pró‐ cessos  constituídos  culturalmente”,  aqueles  que 
pria atitude: a psicologia passaria a ser entendida  não  são  dados  pela  natureza  em  seu  estado  pri‐
e  conduzida  como  um  componente  da  própria  meiro,  mas  emergem  nela,  pela  transformação 
constituição dos fenômenos ou processos que ela  dela mediante a ação humana, planejada, dirigida 
mesma  estuda,  como  ciência,  e  com  os  quais  ela  a  metas,  visando  atender  nossas  necessidades 
atua,  como  profissão.  Trata‐se  de  algo  sério,  por  básicas  e  as  que  criamos  socialmente,  para  além 
evidenciar  nossa  grande  responsabilidade.  Ao  delas. Ou seja, “construções” são criações históri‐
mesmo tempo, trata‐se de algo previsível, no sen‐ co‐culturais,  símbolos,  instrumentos,  modos  de 
tido de ser coerente com o que a própria aborda‐ usá‐los,  relações  humanas,  papéis  sociais,  experi‐
gem  postula  em seus  conceitos sobre  a constitui‐ ências  partilhadas,  modos  de  organizar  nossas 
ção  do  humano,  como  ser  social,  simbólico  e  his‐ rotinas, procedimentos institucionais ou a contes‐
tórico.  Coerente  com  seus  conceitos  psicológicos  tação  deles,  enfim.  Criações  que,  ao  serem  reali‐
(teóricos) e  metodológicos (meta‐teóricos). Psico‐ zadas  por  nós,  realizam  ao  mesmo  tempo  o  que 
lógicos  como  os  de  que  “toda  a  palavra  é  já  uma  somos.  Trata‐se  então  de  um  método  de  investi‐
teoria”, um modo de generalizar a realidade, e de  gação,  e  porque  não  dizer  de  trabalho  também, 
que a consciência se constitui justamente median‐ no qual não só “analisamos” processos, mas tam‐
te o significado da palavra. Metodológicos como o  bém  os  construímos  culturalmente,  com  nossos 
de que “a palavra é o gérmen da ciência, e neste  atos,  nossa  linguagem  e  nossa  sensibilidade.  Tal 
sentido cabe dizer que no começo da ciência esta‐
va a palavra” (VIGOTSKI, 1927/1991, p. 281). Se a 
ciência é, desde o início, “palavra” e se é nela, dita 
8
de corpo inteiro, que o humano realiza o específi‐  Evidentemente, nesse contexto, o conceito russo de “psico‐
técnica”, também traduzido como “psicotecnia” (em VIGOTS‐
co  da  sua  existência  social  e  histórica,  é  possível 
KI, 1927/1991 e 1927/1996), não é sinônimo de “psicometri‐
deduzirmos  que  as  palavras  de  uma  abordagem  a”,  como  se  tornou  comum  no  nosso  contexto  cultural.  Ao 
passam,  de  algum  modo,  a  ser  constitutivas  das  contrário, “psicotécnica” indica um conceito mais abrangente 
pessoas que dela se apropriam e que com ela pas‐ com  relação  à  aplicação  prática  da  psicologia  frente  às  de‐
sam  a  trabalhar.  Na  medida  em  que  nosso  traba‐ mandas  concretas  da  sociedade,  na  educação,  na  clínica,  no 
mundo do trabalho, etc.  
 
 
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concepção  sustenta  a  afirmação  anterior  de  Puzi‐ tório”  ou  “abreviado”  sobre  cada  aspecto  da  vi‐
rei  de  que  a  perspectiva  iniciada  por  Vigotski  se  vência humana. O geral não é o “numeroso”, mas 
orienta para uma superação do academicismo em  o que implica uma visão articulada e profunda do 
psicologia. Trata‐se justamente de uma psicologia  conjunto. Aqui poderemos apenas colocar os con‐
que não recorre à “assepsia” para lidar com a rea‐ tornos  de  alguns  princípios  essenciais  na  psicolo‐
lidade  de  seu  trabalho,  mas  a  toca  “de  mãos  nu‐ gia geral da perspectiva histórico‐cultural. O apro‐
as”, assumindo com ela um compromisso de com‐ fundamento  desses  princípios  se  desenvolverá 
posição  partilhada.  Dessa  maneira  os  valores  de  com  o  nosso  estudo  posterior,  tendo  em  vista  a 
que  falamos  aqui  estão  implicados  na  ação  e  no  prática  social  do  psicólogo  e  os  princípios  éticos 
método,  orientado  às  metas  que  eles  definem.  E  que  a  orientam.  Organizei  a  exposição  aqui  se‐
abre‐se  para  nós  o  convite  para  produzir  uma  gundo os seguintes eixos: (2.1) Princípio da unida‐
prática  profissional  do  psicólogo  que  pronuncia  de  psicofísica;  (2.2)  Princípio  da  determinação  da 
uma “palavra que realmente significa e  é respon‐ consciência  pela  existência  social;  (2.3)  Princípio 
sável por aquilo que diz” (BAKHTIN, 1992, p. 196).  da  consciência  como  psiquismo  propriamente 
  humano; (2.4) Princípio da compreensão da cons‐
  ciência  mediante  unidades;  (2.5)  Princípio  da 
2 Princípios de psicologia geral numa abordagem  compreensão do psiquismo humano mediante sua 
histórico‐cultural  gênese. 
   
“Cada vez soam com maior freqüência vozes que colo‐ 2.1 Princípio da unidade psicofísica 
cam o problema da psicologia geral como um problema   
de primeiríssima importância. Essas colocações (...) não  Segundo  Serguei  Rubinstein  “O  princípio  da  uni‐
partem  dos  filósofos  (...)  nem  dos  psicólogos  teóricos, 
dade  psicofísica  é  o  princípio  mais  importante  da 
mas  dos  psicólogos  práticos,  que  estudam  aspectos 
concretos da psicologia aplicada (...)” 
psicologia  soviética”  (1972,  p.  40).  Estamos  habi‐
  tuados a formar a partir da palavra “psicofísica” a 
— Vigotski (1927/1996, p. 203)  imagem do trabalho de laboratório com os aspec‐
tos fisiológicos do funcionamento mental humano 
 
ou  animal.  Contudo,  aqui  o  significado  do  termo 
O conceito de psicologia geral na obra de Vigotski, 
posto como adjetivo para “unidade” é mais filosó‐
tanto quanto na tradição russo‐soviética como um 
fico  e  de  orientação  genérica.  Lembremos  que 
todo, diferencia‐se do conceito escolar de “psico‐
“psikhe”  para  os  antigos  gregos  era  o  “sopro  vi‐
logia  geral”  com  o  qual  comumente  lidamos  nas 
tal”,  nosso  “impulso  de  vida”,  “aquilo  que  nos 
faculdades dessa área, e que nos faz lembrar uma 
move”,  e  depois  para  alguns  também  “alma”  ou 
série de conteúdos introdutórios superficiais, não 
“mente”,  e  que  “physis”  denotava  a  natureza, 
necessariamente  conectados  numa  lógica  teórica 
todo o mundo natural. Intuiremos então que uma 
mais  abrangente  que  lhes  confira  coerência.  As‐
unidade  entre  o  psíquico  e  o  físico  é  a  uma  inte‐
sim,  na  psicologia  acadêmica  que  conhecemos, 
gração entre o que chamamos de funções mentais 
“psicologia geral” soa mais como um vôo panorâ‐
e a natureza como um todo. Dito de outro modo, 
mico  por  sobre  um  território  desconhecido,  do 
nada  na  psique  humana  é  considerado,  nessa  a‐
que  como  área  científica  relevante  para  o  nosso 
bordagem,  como  “sobrenatural”,  “sobre‐huma‐
trabalho do profissional. Na psicologia soviética o 
no”,  substancialmente  distinto  do  que  compõe  o 
significado da palavra é distinto. Psicologia geral é 
âmbito  tangível  e  inteligível  do  real.  No  que  a 
o  campo  da  ciência  psicológica  que  trata  de  seus 
perspectiva  histórico‐cultural  vai  numa  direção 
fundamentos,  de  seus  princípios  articuladores 
diferente de grande parte das psicologias surgidas 
mais profundos, das categorias meta‐teóricas que 
no final do século XIX e desenvolvidas ao longo do 
visam  organizar  a  discussão,  como:  o  “objeto  de 
século  XX,  as  quais  trazem  fortes  traços  do  dua‐
estudo”; seu “princípio explicativo”; a “unidade de 
lismo  mente  e  corpo,  psíquico  e  físico,  herança 
análise” necessária para e investigação; e o “modo 
platonista  e  cartesiana.  O  mesmo  monismo,  des‐
de proceder” a própria análise, ligado às interven‐
tacado  por  Rubinstein,  aparece  também  em  Vi‐
ções  sobre  a  realidade  que  ele  comporta.  Com 
gotski,  para  quem  “a  psique  não  aparece  isolada 
inspiração nessa orientação, como eu já disse em 
do  mundo  ou  dos  processos  do  organismo  nem 
outro lugar (DELARI, 2004), uma atitude generalis‐
por  um  milésimo  de  segundo”  (1926/1991,  p. 
ta do psicólogo não é sinônimo de saber “introdu‐
 
 
GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009  12 de 40
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
150).  É  preciso  olhar  com  atenção  para  essa  pro‐ corpo  e  o  que  concluir  do  simples  exame  de  sua 
posição,  pois  já  entrou  para  o  senso  comum  aca‐ natureza”  (apud  VIGOTSKI  1925/1999,  p.  IX).  É 
dêmico o conceito de que “o homem não é um ser  difícil para nós, habituados ao dualismo platônico 
biológico,  mas  sim  social,  cultural,  histórico”.  Tal  e  cartesiano  presente  na  formação  do  psicólogo, 
oposição,  embora  esteja  correta  no  seu  sentido   concebermos isto: como pode um corpo produzir 
mais  geral,  não  pode  ser  tomada  ao  pé  da  letra.  obras de arte? Como pode um ser humano produ‐
Posto que sem a materialidade corporal, sem nos‐ zir o que há de mais belo e sublime, sem uma “al‐
sos  órgãos  vitais,  sem  nossa  existência  material,  ma”  que  o  guie?  Mas  entendamos  apenas  o  se‐
também não há ser humano algum. O que a frase  guinte: não se trata de que autor nos veja criando 
acima  significaria,  se  apresentada  de  um  modo  realidades  culturais  como  se  fôssemos  “autôma‐
mais criterioso, é que “a constituição biológica do  tos”, sem imaginar, conceber, projetar, sem o ato 
homem  é  de  tal  ordem  que  ela  não  basta  a  si  de pensar. Mas sim de que se antes se dizia que “o 
mesma  e  exige  dele  que  disponha  de  recursos  corpo age e a alma pensa e sente”, podemos pelo 
para além de seus traços orgânicos hereditários”.  monismo de Espinosa entender que “o corpo age, 
O  animal  Homo  sapiens  precisa  recorrer  a  outros  pensa e sente”, por si próprio. O pensar é um as‐
de sua espécie para realizar a sua existência, para  pecto que pertence ao corpo humano, como tam‐
fazê‐lo  utiliza‐se  de  mediações  próprias  a  uma  bém  o  sentir,  das  emoções  mais  básicas  às  mais 
dada  cultura,  criadas,  transmitidas  e  desenvolvi‐ sutis,  tais  quais  as  de  cunho  estético.  Não  preci‐
das  historicamente.  O  bebê  humano  não  desen‐ samos, nessa visão, adicionar a nós algo sobrena‐
volve  funções  psíquicas  superiores  sem  a  media‐ tural,  insondável,  inexplicável,  incompreensível, 
ção do outro e da cultura, linguagem e instrumen‐ para  que  nos  reconhecermos  capazes  de  realiza‐
tos.  Mas  também,  por  mais  meios  culturais  que  ções culturais diversas, no interior das leis dialéti‐
déssemos a um macaco, isso jamais o tornaria um  cas da própria natureza, no sentido amplo da pa‐
ser humano, pois aquele não tem aparato biológi‐ lavra, da qual não estamos isolados “nem por um 
co para isso.  milésimo de segundo”. Nesse princípio se apóia o 
  posterior  quanto  às  relações  entre  consciência  e 
O  princípio  da  unidade  psicofísica  marca  filosofi‐ existência,  sobretudo  entendida  como  existência 
camente  que  somos  uma  totalidade  psíquica  e  social. 
física,  mental  e  corporal,  biológica  e  cultural.  E   
esses pares não jogam seus papéis complementa‐ 2.2 Princípio da determinação da consciência pela 
res como “substâncias” opostas de modo antagô‐ existência social 
nico, irredutíveis, mas como pares dialéticos, se só   
existem  um  em  relação  ao  outro,  contradizendo‐ No  tópico  anterior  destacamos  que  não  estamos 
se  e  compondo‐se  mutuamente,  na  medida  em  alienados  da  natureza,  não  somos  seres  sobrena‐
que  juntos  formam  uma  só  realidade.  Trata‐se,  turais,  supra‐ordenados,  reinando  sobre  toda  a 
assim,  de  aspectos,  momentos,  modos  de  ser,  de  criação.  Precisamos  pertencer  à  natureza  para 
uma  mesma  substância,  uma  mesma  unidade  nela poder viver e virmos a entender que estamos 
dinâmica, extremamente complexa e contraditória  vivos,  que  morreremos.  Fenômenos  físicos  são 
que é a realidade material – a totalidade da exis‐ necessários para existir vida na Terra, fenômenos 
tência em suas múltipas determinações e diversos  biológicos  são  constitutivos  da  vida  humana,  se 
planos  de  organização.  É  interessante,  nesse  sen‐ não  por  inúmeras  condições  orgânicas,  que  seja 
tido, o resgate de Vigotski à obra de Espinosa, ao  tão  somente  pelo  falto  dela  ser  ainda  “vida”  – 
valorizar  o  papel  do  corpo:  “até  hoje  ninguém  “bios”  (βίος  ).  Mas  a  isto  cabe  acrescentar  que  o 
definiu aquilo de que o corpo é capaz... mas dizem  nosso modo de realizar um momento da realidade 
que  seria  impossível  deduzir  apenas  das  leis  da  material  da  qual  fazemos  parte  tem  sua  especifi‐
Natureza,  uma  vez  considerada  exclusivamente  cidade, sua singularidade, seu modo particular de 
como corpórea, as causas das edificações arquite‐ ser  e  devir.  Considerando  a  formação  social  da 
tônicas,  da  pintura  e  coisas  afins  que  só  a  arte  consciência como tema fundamental para a psico‐
humana produz, e que o corpo humano não con‐ logia histórico‐cultural, podemos articular que não 
seguiria construir nenhum templo se não estivesse  apenas somos parte viva da natureza, como tam‐
determinado e dirigido pela alma, mas eu já mos‐ bém  nosso modo  específico,  distintivo  de  realizar 
trei que tais pessoas não sabem de que é capaz o  nosso  lugar  dentro  dela,  ao  mesmo  tempo,  nos 
 
 
GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009  13 de 40
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
diferencia  das  demais  formas  de  seres  naturais.  samento e os produtos deste. A vida não é deter‐
Um traço marcante para tal distinção está no fato  minada  pela  consciência,  mas  esta  pela  vida.  No 
de  que  o  homem  é,  como  diz  Aristóteles,  “zoon  primeiro  método  de  abordagem,  o  ponto  de  par‐
politicon” – animal social. Nossa própria constitui‐ tida  é  a  consciência  tomada  como  o  indivíduo 
ção  biológica  nos  dá  bases  para  que  isso  ocorra:  vivo; no segundo, são os próprios indivíduos vivos 
por um lado, pela fragilidade do nosso filhote que  reais, tal como são na vida concreta, e a consciên‐
para  se  desenvolver  e  garantir  sua  própria  exis‐ cia  é  considerada  unicamente  como  consciência 
tência demanda mais alguém com quem interagir  deles"  (MARX  &  ENGELS,  1983,  p.  172  –  grifo 
por  tempo  prolongado;  por  outro,  pela  grande  meu). Os aspectos ideológicos, culturais, não teri‐
complexidade  de  nosso  aparato  neurofuncional,  am  história  autônoma,  posto  que,  são  produções 
que  nos  permite  a  utilização  complexa  de  instru‐ da  existência  humana,  não  existem  independen‐
mentos  e  signos  e  nos  demanda  que  eles  sejam  temente dela. Nessa tradição, a própria consciên‐
utilizados  para  que  nosso  próprio  cérebro  se  de‐ cia não tem vida própria, não é nenhum ser à par‐
senvolva, na sua plasticidade funcional e organiza‐ te: “a consciência é o homem consciente”. Ao que 
ção  sistêmica.  Sem  entrarmos  no  mérito  da  dis‐ poderíamos  acrescentar  “o  sentimento  é  o  ho‐
cussão  evolutiva  sobre  como  essas  características  mem sentindo” ou “a atividade é homem agindo”, 
vieram a surgir gerando os primeiros seres huma‐ são  movimentos  nossos,  são  processos  e  não  en‐
nos,  o  fato  é  que  somos  animais  para  os  quais  a  tidades com vida própria. Quem toma consciência, 
existência  sobre  o  planeta  não  é  possível  sem  as  sente  e  age  é  o  homem.  Mas  quem  é  homem? 
relações  sociais.  As  quais  por  sua  vez  são  media‐ Nessa  abordagem,  o  homem,  como  já  foi  dito  é 
das  pela  linguagem,  produto  da  própria  prática  um  “ser  social”.  Digamos  que  só  nesses  termos 
humana  e  que  se  materializa  na  cultura  e  se  podemos conceber “quem ele é”, e não apenas “o 
transmite  e  se  transforma  de  geração  para  gera‐ que ele é”. 
ção.    
  Dizer  que  o  homem  é  um  ser  social  requer  ainda 
Sendo o homem frente à natureza não um “impé‐ algumas especificações, pois há muitos sentidos e 
rio  dentro  do  império”,  como  critica  Espinosa  muitos modos de existir do social. Essa discussão, 
(1979),  mas  um  momento  singular  de  realização  como as demais já levantadas, não se esgota aqui, 
dela,  o  pensamento  marxista  indica  assim  uma  mas  para  uma  organização  introdutória  eu  gosta‐
relação de determinação da consciência pela vida,  ria  de  destacar  apenas  cinco  planos  articulados  e 
entendida como vida social. No seu texto “A cons‐ interdependentes  da  existência  social  com  os 
ciência  como  problema  da  psicologia  do  compor‐ quais  podemos  trabalhar  em  psicologia  histórico‐
tamento” Vigotski diz que “a existência determina  cultural, embora outros possam ser acrescentados 
a  consciência”  (VIGOTSKI,  1925/2005,  p.  37) 9 .  Ele  e alguns deles tenham sido mais abordados que os 
está parafraseando Marx e Engels em “A ideologia  demais nas obras de Vigotski às quais tenho aces‐
alemã”:  “Moral,  religião,  metafísica  e  todo  o  res‐ so: (a) relações sociais de classe; (b) relações soci‐
tante da ideologia e suas formas correspondentes  ais  institucionais;  (c)  relações  sociais  grupais;  (d) 
de consciência, pois, não mais conservam o aspec‐ relações  sociais  intersubjetivas;  (e)  relações  soci‐
to  de  sua  independência.  Elas  não  têm  história  ais no plano do indivíduo, na dinâmica e estrutura 
nem  evolução;  mas  os  homens,  desenvolvendo  de  sua  personalidade.  Nas  obras  de  Vigotski  que 
sua produção material e seu intercâmbio material,  tive  oportunidade  de  ler,  desses  cinco  pontos  os 
alteram, a par disso, sua existência real, seu pen‐ três  que  mais  se  destacam  e  se  explicitam  são  as 
relações  sociais  de  classe,  as  intersubjetivas  e 
aquelas  no  plano  do  indivíduo  em  sua  personali‐
dade  social.  Pensar  na  articulação  com  esses  pla‐
9
  Cito  aqui  versão  russa  apenas  porque  nessa  passagem,  a  nos  o  papel  dos  grupos  e  das  instituições  é  um 
edição  brasileira  (VIGOTSKI,  1925/1996)  contém  um  erro  desafio importante e atual, de todo modo isso não 
também  presente  na  edição  espanhola  (VIGOTSKI,  1925/ 
poderá  se  dar,  nessa  abordagem,  sem  integração 
1991), da qual foi traduzida. Trata‐se de que onde ali se lê “a 
experiência  determina  a  consciência”  (VIGOTSKI,  1925/1996,  com  os  demais  processos,  aos  quais  nos  detere‐
p. 80) ou “la experiencia determina la conciencia” (VIGOTSKI,  mos  aqui.  Em  primeiro  lugar  a  abordagem  de  Vi‐
1925/1991, p. 56), no russo está “Бытие определяет созна‐ gotski  a  relação  entre  a  formação  e/ou  desenvol‐
ние” [Bitie opredeliaet soznanie], ou seja, “a existência (bitie)  vimento do psiquismo e a pertença do indivíduo a 
determina a consciência”. 
 
 
GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009  14 de 40
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
uma  dada  classe  social  não  é  mecanicista.  Se  a  personalidade, seu modo de agir, sentir e pensar, 
pertença  de  cada  um  de  nós  a  uma  classe  nos  os significados e sentidos que atribui para o mun‐
deixa  as  marcas  das  práticas  e  da  ideologia  pró‐ do, para os outros e para si. Senão vejamos o que 
prias  a  ela,  o  que  cada  ser  humano  particular  in‐ diz  também  Vigotski  em  outro  texto:  “Queremos 
ternaliza não são só os traços da formação coleti‐ comparar  o  operário  com  o  burguês.  O  fato  não 
va  a  qual  pertence,  mas  o  conjunto  das  contradi‐ consiste como pensava W. Sombart, em que para 
ções  pertinentes  à  luta  entre  classes  no  seio  da  o burguês o principal seja a avareza, em que tenha 
sociedade como um todo.  havido  uma  seleção  biológica  de  pessoas  avaras 
  para  as  quais  o  fundamental  é  a  mesquinhez  e  a 
Vigotski, no seu texto “A transformação socialista  acumulação.  Admito  que  existem  muitos  operá‐
do  homem”,  de  1930,  entende  que  “do  mesmo  rios  mais  avaros  que  os  burgueses.  A  essência  da 
modo  pelo  qual  a  vida  de  uma  sociedade  não  re‐ questão  não  consiste  em  que  o  papel  social  se 
presenta  um  todo  singular  e  uniforme,  e  a  socie‐ deduz do caráter mas em que, a partir deste, cria‐
dade  é  subdividida  em  diferentes  classes,  assim  se  uma  série  de  conexões  caracterológicas.  Os 
também, durante um dado período histórico, não  traços sociais e de classe formam‐se no homem a 
se  pode  dizer  que  a  composição  das  personalida‐ partir  de  sistemas  interiorizados,  que  nada  mais 
des  humanas  represente  algo  homogêneo  e  uni‐ são  do  que  os  sistemas  e  relações  sociais  entre 
forme, e a psicologia deve levar em consideração  pessoas  trasladados  para  a  personalidade”  (VI‐
o fato básico de que a tese geral que foi formula‐ GOTSKI,  1930/1996,  p.  133).  Não  há  um  tipo  de 
da agora mesmo, pode ter apenas uma conclusão  personalidade hereditariamente dado que tenda a 
direta:  confirmar  o  caráter  de  classe,  a  natureza  ser  pertencente  a  uma  classe  ou  outra  por  suas 
de classe e as distinções de classe que são respon‐ aptidões  inatas,  isso  é  o  mais  óbvio,  embora  não 
sáveis pela formação dos tipos humanos. As várias  menos verdadeiro. Mas também, e tão importan‐
contradições  internas  que  são  encontradas  em  te  quanto,  cabe  destacar  que  não  há  relação  iso‐
diferentes  sistemas  sociais,  têm  sua  expressão  mórfica  entre  a  pertença  de  classe  e  a  formação 
tanto no tipo de personalidade quanto na estrutu‐ do  caráter  e  personalidade  de  cada  um.  Isso  é 
ra  da  psicologia  humana  naquele  período  históri‐ mediado  por  relações  complexas  no  seio  de  cada 
co” (VIGOTSKI, 1930/1994, p. 176). Sendo as rela‐ interação intersubjetiva que vamos estabelecendo 
ções sociais heterogêneas a formação da persona‐ em  meio  aos  grupos  de  que  fazemos  parte,  na 
lidade  também  não  será  homogênea,  assim  para  família,  na  escola,  nas  práticas  religiosas,  nos  cír‐
compreender os conflitos próprios à nossa consti‐ culos  de  amizade,  nas  relações  de  trabalho,  e  as‐
tuição  psíquica,  cabe  contextualizá‐los  no  âmbito  sim por diante – nos quais podemos conviver com 
dos  conflitos  sociais  mais  amplos  que  organizam  classes distintas e apreender junto a elas também 
as condições de nossa existência, e dos quais par‐ distintos  modos  de  agir,  sentir  e  significar,  não 
ticipamos  inevitavelmente,  como  dirigentes  ou  sempre  de  todo  condizentes  com  os  interesses 
subalternos, como opressores ou oprimidos, como  históricos de nossa própria classe social. Portanto, 
expropriadores ou expropriados, na vivência clara  ao  critério  de  relações  sociais  de  classe,  cabe  a‐
de  cada  papel  desses  ou  na  mescla  de  posições  crescentar  na  perspectiva  da  teoria  histórico‐
concomitantes ou alternadas entre um e outro, de  cultural  ainda  o  critério  das  relações  intersubjeti‐
modo  consciente  ou  não  consciente.  A  sociedade  vas,  mediante  as  quais,  modos  de  conversão  das 
é heterogênea tanto quanto a personalidade, mas  práticas  sociais  públicas  em  práticas  simbólicas 
também é crítico, complexo e heterogêneo o pro‐ privadas são constituídos e postos em movimento. 
cesso  pelo  qual  se  dão  as  transições  recíprocas   
entre  relações  sociais  de  classe  e  relações  sociais  Como destacado por Melo (2001), duas contribui‐
de um homem singular consigo mesmo. A relação  ções importantes da psicologia de Vigotski podem 
entre  indivíduo  e  sociedade  não  é  de  simples  có‐ ser trazidas ao diálogo quando precisamos ampliar 
pia ou repetição mecânica. Há transformações de  o  conceito  de  relações  sociais  para  além  do  de 
um plano a outro.   “relações  sociais  de  classe”,  mesmo  este  sendo 
  fundamental.  Trata‐se  de:  (a)  sua  formulação  so‐
Isso  coloca  questões  para  a  psicologia.  Pois  não  bre  a  “lei  genética  geral  do  desenvolvimento”;  e 
basta  saber  que  determinada  pessoa  é  de  classe  (b)  sua  formulação  sobre  a  “psicologia  do  drama 
trabalhadora  ou  burguesa  para  disso  deduzir  sua  de  papéis  sociais”.  A  lei  genética  geral  do  desen‐
 
 
GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009  15 de 40
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
volvimento,  também  conhecida  como  “lei  da  du‐ fala do seu conceito de “drama” e lança‐nos uma 
pla  formação”,  geralmente  é  identificada  na  obra  espécie  de  provocação:  “O  teatro  deve  imitar  a 
de  Vigotski  nos  seguintes  termos:  “Um  processo  vida?  A  psicologia,  para  escapar  de  uma  tradição 
interpessoal  é  transformado  num  processo  intra‐ milenar e para retornar à vida, talvez deva imitar o 
pessoal. Todas as funções no desenvolvimento da  teatro”  (POLITZER  apud  GABBI  JR,  1998,  p.  XII). 
criança  aparecem  duas  vezes:  primeiro  no  nível  Isto  se  relaciona  ao  conceito  moderno  de  “dra‐
social, e depois, no nível individual; primeiro entre  ma”,  pois  se  na  antigüidade  clássica  essa  palavra 
pessoas (interpsicológica), e, depois, no interior da  está relacionada aos textos que podem ser repre‐
criança (intrapsicológica). Isso se aplica igualmen‐ sentados  no teatro,  como  “ação”,  seja ela  trágica 
te para a atenção voluntária, para a memória lógi‐ ou  cômica,  na  modernidade  ela  implicará  princi‐
ca  e  para  a  formação  de conceitos.  Todas  as  fun‐ palmente o conflito. Conflito entre algo de trágico 
ções  superiores  originam‐se  das  relações  reais  e algo de cômico, e assim uma expressão mais fiel 
entre  indivíduos  humanos”  (VIGOTSKI,  1930/  “da vida como ela é” – não como a de “deuses” e 
1989a,  p.  64) 10 .  A  personalidade,  dirá  o  próprio  “heróis”  (típicos  das  tragédias),  nem  como  de 
Vigotski (1931/2000a) não se pode confundir com  seres  “grotescos”  ou  “inferiores”  (típicos  das  co‐
cada função particular, nem é a mera junção arit‐ médias),  mas  como  a  de  “seres  humanos”.  Essa 
mética de todas, mas uma síntese de ordem supe‐ “vida  como  ela  é”,  em  suas  múltiplas  determina‐
rior na qual o conjunto tem propriedades singula‐ ções,  no  choque  entre  diferentes  papéis  sociais 
res e leis específicas com relação ao funcionamen‐ possíveis  para  uma  mesma  pessoa  real,  seria  o 
to  das  partes  isoladas.  Nesse  sentido  é  mais  im‐ drama  pertinente  à  psicologia  concreta.  Vigotski 
portante  o  homem  que  tem  essa  memória,  essa  usará  um  exemplo  fictício  de  um  magistrado  que 
imaginação ou essa inteligência, do que tais capa‐ deve julgar a própria esposa. Nessa situação críti‐
cidades  que  o  homem  tem.  Mas  a  personalidade  ca ele vive ao mesmo tempo dois papéis: o de juiz 
como  um  todo  também  se  desenvolve  do  interp‐ que condena e o de marido que absolve. Em cada 
síquico  para  intrapsíquico.  Ora,  resta  deduzir  que  caso há uma hierarquia diferente de funções men‐
o desenvolvimento de cada pessoa no conjunto de  tais, no primeiro a racionalidade tenta prevalecer 
suas relações com outras não pode se restringir a  sobre  a  afetividade,  no  segundo  a  hierarquia  se 
apenas uma só classe, um só grupo, uma só rela‐ inverte. Desse modo não se sabe o que prevalece‐
ção de pertença. Múltiplas possibilidades de cam‐ rá  e  podemos  dizer  que  nesse  confronto  surge 
pos  interpsicológicos  podem  se  estabelecer  para  uma “suspensão” ou “epokhé”, uma recorrência à 
cada um. Tal mulitiplicidade de relações intersub‐ dúvida, uma abertura ao imprevisível e ao mesmo 
jetivas  pode  ser  abordada  teoricamente  a  partir  tanto a demanda de uma ação deliberada, volitiva.  
dos  conceitos  de  papel  social  e  drama  de  papéis   
sociais.  A  “psicologia  dos  papéis”  de  Vigotski  convida  a 
  refletir sobre como eles se entrelaçam solicitando, 
Nas  suas  anotações  de  1929,  depois  chamadas  possibilitando,  ou  impedindo,  adiando,  tais  ações 
pelos  editores  de  “Psicologia  concreta  do  ho‐ deliberadas.  “O  papel  social  (juiz,  médico)  deter‐
mem”, Vigotski dialoga, entre outros, com o pen‐ mina  a  hierarquia  das  funções:  isto  é,  as  funções 
sador  marxista  francês  de  origem  húngara  Geor‐ mudam a hierarquia nas diferentes esferas da vida 
ges Politzer (1903‐1942). Este, em dado momento  social.  Seu  choque  =  o  drama”  (VIGOTSKI,  1929/ 
de sua pesquisa, na qual fazia a crítica da “psicolo‐ 2000,  p.  37  –  grifos  na  fonte).  De  todo  modo,  o 
gia abstrata”, dos clássicos do século dezenove, e  foco está dado no fato de que em nós diferentes 
o  elogio  de  uma  nascente  “psicologia  concreta”,  direções  para  a  ação  são  possíveis  em  função  de 
nossa  inserção  nas  relações  sociais  que  marcam 
nossos  papéis  (pai/filho;  professor/aluno;  subal‐
terno/dirigente;  livre/cativo;  etc.),  e  com  isso  vi‐
10
 Os editores da coletânea na qual o texto citado foi editada,  vemos  um  conflito  com  o  qual  se  tecem  nossos 
no Brasil intitulada “A formação social da mente”, dizem ser 
próprios sentidos para a vida. Tal conflito é tanto 
os quatro primeiros capítulos retirados de “O instrumento e o 
signo”  –  livro  de  1930.  Contudo,  o  conteúdo  do  capítulo  é  entre significados divergentes dos papéis opostos, 
muito  semelhante  ao  encontrado  em  “A  história  do  desen‐ quanto  entre  os  sentimentos,  conceitos  e  valores 
volvimento das funções psíquicas superiores” – livro de 1931.  a  eles  amalgamados:  “O  drama  realmente  está 
Manteremos  1930,  confiando  nos  organizadores  da  obra  repleto de ligações de tal tipo [conflitivo]: o papel 
(COLE, JOHN‐STEINER, SCRIBNER e SOUBERMAN, 1989). 
 
 
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
da  paixão  da  avareza  dos  ciúmes,  em  uma  dada  mente  humano:  (a)  consciência  como  conheci‐
estrutura  da  personalidade.  Um  caráter  divide‐se  mento  partilhado;  (b)  consciência  como  vivência 
em  dois  (...)  O  drama  realmente  está  repleto  de  de vivências; (c) consciência como reflexo e refra‐
luta  interna  impossível  nos  sistemas  orgânicos:  a  ção  da  realidade;  (d)  consciência  como  processo 
dinâmica  da  personalidade  é  o  drama  (...)  O  dra‐ cognitivo  e  afetivo;  (e)  consciência  e  sua  relação 
ma sempre é a luta de tais ligações (dever e sen‐ com os processos não conscientes. 
timento,  etc.)  Senão  não  pode  ser  drama,  isto  é,   
choque  dos  sistemas.  A  psicologia  ‘humaniza‐se’”  A noção de consciência como “conhecimento par‐
(VIGOTSKI,  1929/2000,  34‐35  –  grifos  na  fonte).  tilhado”,  advém  da  própria  origem  da  palavra. 
Podemos  interpretar  que  a  psicologia  histórico‐ Tanto em russo quanto em português, a etimolo‐
cultural “retorna à vida” como quisera Politzer. Tal  gia remete ao latim “conscientia”, que dentre suas 
“humanização”  da  psicologia  apresenta‐se  assim  várias  acepções,  comporta  tanto  a  idéia  de  “co‐
como  objetivo  da  proposta  de  Vigotski  tanto  no  nhecimento  comum  a  muitos”  (“co‐conhecimen‐
sentido axiológico (ético) como no epistemológico  to”), quando a de “reflexão, capacidade de distan‐
(científico). Para passarmos então das determina‐ ciamento”  (“meta‐conhecimento”).  Em  Vigotski, 
ções da consciência e personalidade humana pela  as  duas  coisas  estão  intimamente  ligadas.  Sobre‐
nossa existência social  mais geral, às suas dimen‐ tudo,  por  a  consciência  só  poder  vir  a  existir  em 
sões  mais  particulares,  notamos  que  há  media‐ função  de  relações  sociais,  tal  como  dissemos 
ções,  transições  e  complexidade,  interpõe‐se  o  acima.  Ele  afirma,  a  respeito  deste  tema,  que  é 
intersubjetivo,  e  na  sua  realização  concreta  per‐ “impossível  relacionar‐se  diretamente  consigo 
cebe‐se  o  drama  da  vida  humana.  Nele  se  for‐ mesmo”  (VIGOTSKI,  1929/1989,  p.  61),  mas  ape‐
mam, se desenvolvem, nossas funções psíquicas e  nas  indiretamente,  uma  vez  que  “eu  sou  uma  re‐
a  consciência  como  momento  propriamente  hu‐ lação  social  de  mim  comigo  mesmo”  (VIGOTSKI, 
mano  de  organização  das  mesmas,  de  estrutura‐ 1929/1989,  p.  67).  Além  disso,  utiliza  de  modo 
ção de nossa ação e pensamento, de vivência du‐ ilustrativo a alegoria de Pedro e Paulo, elaborada 
plicada de nossos próprios sentimentos. É do que  por  Marx  e  Engels,  a  qual  é  retomada  na  íntegra 
trataremos no próximo tópico.  em  nota  de  Andrei  Puzirei:  “Ao  simplesmente 
  referir‐se à pessoa Paulo como alguém semelhan‐
2.3 Princípio da consciência como psiquismo pro‐ te a si próprio, a pessoa Pedro começa a referir‐se 
priamente humano   a  si  próprio  como  a  uma  pessoa.  Mas  até  Paulo, 
  como o todo de sua corporalidade paulina, torna‐
É bastante conhecida, e nem por isso deixa de ter  se,  para  ele,  uma  manifestação  da  espécie  ‘ho‐
valor, a chamada oposição de Vigotski a duas ten‐ mem’”  (MARX  e  ENGELS  apud  PUZIREI,  1989a,  p. 
dências clássicas em psicologia, no final do século  74).  Assim,  a  atribuição  de  características  ao  ou‐
XIX  e  início  do  XX:  o  “mentalismo”  e  o  “compor‐ tro,  no  campo  “interpsíquico”,  cria  as  possibilida‐
tamentalismo”.  Segundo  ele,  ambas  deixam  de  des  de  que  as  atribuamos  a  nós  mesmos,  como 
estudar  cientificamente  a  consciência.  A  primeira  que num espelho sem o qual não podemos obter 
porque a vê como importante, mas inexplicável a  nossa própria imagem, já que não somos capazes 
não  ser  pela  apreensão  direta  de  quem  a  vive.  A  de  nos  enxergamos  por  completo  sozinhos.  Ao 
segunda  porque  entende  ser  a  consciência  um  mesmo  tempo,  há  algo  ainda  mais  abrangente:  a 
fenômeno  sem  importância  para  a  compreensão  capacidade de reconhecer ao outro e a si mesmo 
do comportamento que deveria ser explicado por  como  componentes  do  gênero  humano,  numa 
fatores externos diretamente observáveis. Vigots‐ identificação  de  quem  somos  nós  em  diferencia‐
ki sugere que este estado de coisas na psicologia é  ção  aos  outros  seres  no  mundo.  O  outro  nos  no‐
crítico, pois se está deixando de lado justamente o  meia  primeiro,  mesmo  antes  de  nascer  já  pode‐
que diferencia o psiquismo humano do psiquismo  mos  ter  um  nome  escolhido  por  nossos  pais,  de 
animal,  nossa  consciência,  nossa  capacidade  de  início as crianças podem se referir a elas mesmas 
observarmos a nós mesmos, como somos capazes  do mesmo modo, pelo próprio nome, em terceira 
de observar a outra pessoa, dentre as característi‐ pessoa.  Mas  o  ato  de  referir‐se  ao  outro  como 
cas  que  nela  podemos  reconhecer.  Tratarei  aqui,  alguém que tem nome próprio poderá lhe possibi‐
de  modo  resumido,  alguns  pontos  pertinentes  ao  litar  então  perceber  que  também  tem  nome  pró‐
conceito  de  consciência  como  psiquismo  propria‐ prio e que ele pode ser designado por um prono‐
 
 
GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009  17 de 40
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
me  pessoal  singular  na  primeira  pessoa:  “eu”.    O  próprio  dela  para  mim  –  naquela  situação  social 
compartilhar  o  processo  de  comunicação  e  de  dada num “aqui e agora”, mas também na memó‐
significação  sobre  as  posições  das  pessoas  nas  ria posterior do já vivenciado, ampliação, redução, 
relações  umas  com  as  outras,  permitirá  a  emer‐ reinvenção  do  tempo‐espaço  originário  da  vivên‐
gência  da  consciência  tal  como  determinada  pela  cia em si. 
existência social.    
  Deste ponto, podemos nos ater à dupla caracteri‐
Podemos a esta noção acrescentar a de consciên‐ zação  da  função  da  consciência  como  “reflexo  e 
cia  como  “vivência  de  vivências”,  ou  “experiência  refração  da  realidade”.  Na  concepção  de  Vigotski 
de  experiências”,  conforme  a  tradução.  A  “vivên‐ a consciência é mediada pela linguagem, a lingua‐
cia”  (uma  tradução  para  “perejivanie” 11 ),  como  gem  não  é  tida  como  sua  mera  forma  de  expres‐
veremos a seguir é uma unidade da relação “per‐ são  exterior,  mas  como  sua  própria  “substância” 
sonalidade  e  meio”,  uma  unidade  da  consciência.  constitutiva,  aquilo  que  lhe  dá  “corpo”.  Falamos 
Mas a consciência como tal, assim como é desdo‐ em “corpo” de modo metafórico, mas lembramos 
bramento  do  conhecimento  sobre  o  próprio  co‐ da poesia de Osip Mandelshtan citada por Vigots‐
nhecimento, é ainda uma vivência duplicada. Não  ki:  “esqueci  a  palavra  que  pretendia  dizer,  e  meu 
só viver por estar vivo, como vive ou sobrevive um  pensamento,  privado  de  sua  substância,  volta  ao 
animal, mas ter a experiência vital com relação ao  reino  das  sombras”  (apud  VIGOTSKI,  1934/1989c, 
próprio ato de viver e todas as implicações que ele  p.  103).  Sendo  então  a  consciência  um  processo 
comporta.  Isso  não  significa  exatamente  um  ato  semiótico, ou seja, constituído por signos e signifi‐
de domínio total sobre tudo que se passa em nos‐ cação, podemos trazer para a compreensão dela a 
so  viver,  desde  as  sensações  gerais  que  emanam  orientação  de  Bakhtin  (1992)  para  quem  todo 
dos  órgãos  dos  sentidos  (exterocepção),  ou  das  signo  “reflete  e  refrata  a  realidade”.  Isto  é,  a  lin‐
nossas  estimulações  internas  (propriocepção  e  guagem e, portanto, a consciência, são ao mesmo 
interocepção),  até  os  movimentos  pelos  quais  se  tempo  capazes  de  nos  proporcionar  um  espelho 
organiza  a  própria  lógica  de  nosso  pensamento.  (reflexo)  do  real,  fiel  às  suas  contradições  objeti‐
Não  se  trata  de  uma  onisciência  de  nós  mesmos,  vas,  quanto  de  nos  proporcionar  imagens  diver‐
mas  o  sentir  a  experiência  presente  para  nós  gentes  (refratárias)  destas  mesmas  contradições. 
mesmos,  seja  ela  de  qual  fonte  for,  mesmo  que  Antes de me confrontar com a obra de Zaporojets 
não  tenha  ainda  um  nome  preciso  que  a  defina.  (2002),  importante  colaborador  de  Vigotski,  eu 
Nossa apropriação do mundo e de nossos próprios  vinha  compreendendo  o  duplo  aspecto  reflexi‐
estados corporais estará posta para nós não como  vo/refratário  da  consciência  como  análogo  à  no‐
algo  que  nos  é  totalmente  estranho.  Mas  como  ção  de  “consciência  como  processo  cognitivo  e 
algo  com  o  que,  ao  nos  estranharmos  e  perce‐ afetivo” (ver DELARI, 2000, p. 80‐103). Ocorre que 
bermos  o  peso  de  sua  singularidade,  poderemos,  para  Rubinstein  (1972),  o  aspecto  cognitivo  da 
ao mesmo tempo, nos identificarmos e sentirmos  consciência  está  em  ser  sempre  “consciência  de 
como  nosso.  Vivo  a  emoção  de  passar  por  uma  algo”  (implicando  a  compreensão  de  uma  dada 
situação  social  intensa,  de  dor  ou  prazer,  de  ale‐ realidade  objetiva)  e  seu  aspecto  afetivo  consiste 
gria  ou  tristeza,  de  esperança  ou  de  medo,  de  em  ser  sempre  “consciência  da  alguém”  (sendo 
frustração ou de realização, isso por si já é único.  relacionada  às  suas  necessidades  e  motivações 
Mas,  enquanto  vivo,  experiencio  ainda  o  sentido  subjetivas).  Meu  engano  estava  em  pensar  que 
sempre  o  aspecto  emocional  estivesse  envolvido 
em  uma  “refração”  do  real,  em  dar  um  colorido 
11
  A  palavra  russa  usada  por  Vigotski  e  outros  autores  como  particular  à  nossa  leitura  de  mundo,  que  fizesse 
Rubinstein  e  Vasiliuk  é  “переживание”  –  “perejivanie”.  Ela  com  que  não  déssemos  conta  da  especificidade 
tem  várias  traduções,  como:  “experiência”;  “experiência  concreta  do  objeto  apreendido,  mesmo  que  esse 
emocional”;  “experiência  vital”;  “vivência”;  “emoção”;  “afli‐ objeto fosse uma ação nossa. 
ção”; “provação”; dentre as principais. Eu adotarei “vivência” 
 
como na edição espanhola das “Obras Escolhidas” de Vigots‐
ki, apenas por ser uma palavra que traz em si um radical para  Com  a  leitura  de  Zaporojets  (2002)  fui  levado  a 
“vida”, e “perejivanie” em russo tem a ver com o verbo arcai‐ repensar.  Pois  segundo  ele,  as  emoções  também 
co “jivat’”: viver. Não é necessariamente a mesma concepção  têm a função de refletir a realidade, não são ape‐
de  “vivência”  da  psicologia  “fenomenológico‐existencial”,  nas um modo irrealista de lidar com o mundo.  É 
embora haja espaço para esse diálogo. 
 
 
GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009  18 de 40
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
possível  compreender  isso  quando  um  medo  nos  mais  como  o  turbilhão  de  água  e  gelo  produzido 
livra  de  situações  desagradáveis,  ou  quando  um  quando um navio quebra‐gelo singra um mar gla‐
sentimento  de  solidariedade  nos  permite  estabe‐ cial.  A  consciência  não  está  num  lugar,  num  “to‐
lecer alianças como alguém em função de um bem  pos”, não é “tópica”, ela está mais para um movi‐
comum, ou quando um sentimento de responsabi‐ mento,  uma  dinâmica,  um  poder  de  realização, 
lidade para com a fragilidade da vida de um bebê  como  se  pode  deduzir  dos  parágrafos  anteriores. 
nos impulsiona a estarmos mais atentos no cuida‐ Entretanto,  a  consciência  não  é  tudo  em  nossa 
do  com  ele.  Assim  o  eixo  refração/reflexão  pode  personalidade, mesmo para a psicologia histórico‐
ter  uma  relação  combinatória  com  o  eixo  afec‐ cultural, até porque não é a consciência que reali‐
ção/cognição,  mas  não  são  sinônimos.  Diríamos  za o trabalho do homem, mas o homem que reali‐
por ora, que as emoções como aspecto inalienável  za seu trabalho conscientemente e ao fazê‐lo não 
da  consciência  e  como  mediadas  pela  linguagem,  pode estar consciente de todos os aspectos de sua 
podem assim tanto refletir quanto refratar o real,  ação, o que se ocorresse nos levaria a um colapso. 
e a cognição do mesmo modo. Podemos ter emo‐ O  processo  de  agir  conscientemente  implica  uma 
ções  que  não  condizem  com  a  realidade  como  dialética  com  aspectos  não  conscientes  da  ativi‐
uma cólera com quem não nos fez exatamente um  dade.  Segundo  Vigotski  na  realização  de  um  de‐
mal  efetivo,  assim  como  podemos  ter  cognições  terminado  ato,  “a  atividade  da  consciência  pode 
que  não  condizem  com  a  realidade,  como  uma  seguir  rumos  diferentes”  (1934/1989a,  p.  78) 12 . 
teoria  da  conspiração  de  que  o  homem  nunca  Tal  foco  não  pode  deter‐se  todo  tempo  num  só 
chegou à lua. De todo modo, fica apenas registra‐ objeto,  e  não  pode  de  modo  algum  deter‐se  ao 
do  que  a  consciência  em  Vigotski  não  é  um  pro‐ mesmo tempo em todos os objetos de seu campo 
cesso  de  natureza  exclusivamente  cognitiva  ou  de atuação e percepção. A própria análise do pen‐
racional, e a emoção no homem é momento fun‐ samento esquizofrênico leva Vigotski (1933/1987) 
damental da formação de seu psiquismo: "O afeto  a  afirmar  que  a  descontinuidade  da  consciência 
é o alfa e ômega, o primeiro e o último elo, o pró‐ constitui‐se  em  uma  de  suas  funções  saudáveis, 
logo  e  o  epílogo  de  todo  o  desenvolvimento  psí‐ ou seja, para um pensamento crítico com relação 
quico"  (VIGOTSKI,  1932/2006,  p.  299).  Está  então  ao  real,  é  necessário  “mudar  de  assunto”.  Um 
presente  desde  as  formações  sistêmicas  mais  bá‐ pensamento  cujo  foco  fosse  indefinidamente  o 
sicas, como o choro de um bebê, às mais comple‐ um  mesmo  tema  discreto,  ínfimo,  insignificante, 
xas  e  sutis,  como  a  responsabilidade  moral  para  não seria o de uma consciência saudável. Ora, no 
com  a  vida  desse  mesmo  bebê  que  chora.  Um  fluxo  de  nosso  pensamento  não  temos  todo  o 
suposto  ser  humano  exclusivamente  racional  não  domínio de como transitamos de uma  associação 
poderia ter uma visão realmente realista do mun‐ a  outra,  a  própria  motivação  para  cada  mudança 
do, estaria alheio às possibilidades de composição  de assunto nem sempre está clara para nós.  
que  nos  proporcionam  mais  ou  menos  avanço,   
potência ou impotência, prazer ou dor, alegria ou  Tudo  isso  já é  sabido,  porém  cabe  dizer  que  aqui 
tristeza.  não será de forma alguma esquecido ou ignorado, 
  embora não nos apressemos em encontrar causas 
Por  fim,  muitas  vezes  ligado  ao  tema  das  emo‐ ocultas  ou  explicações  míticas  para  como  isso  se 
ções, vem o problema da “consciência e sua rela‐ dá.  Como  procurei  destacar  em  outro  lugar  (DE‐
ção com os processos não conscientes”. Creio que  LARI, 2001), Vigotski vê as formulações teóricas de 
já esteja claro que “consciência” em Vigotski tem  Freud sobre o tema inconsciente como demasiado 
um papel muito diferente que o chamado “consci‐ biologizantes, reconhecendo o mérito deste autor 
ente”  em  Freud,  sobretudo  o  da  primeira  tópica  mais na formulação de boas perguntas do que nas 
que  é  tido  apenas  como  algo  superficial  e  sem 
importância,  uma  “ponta  do  iceberg”.  Quanto  à 
segunda tópica não cabe nos pronunciarmos aqui,  12
  É  sabido  que  o  livro  “Pensamento  e  linguagem”  é  uma 
embora  à  consciência  nela  também  não  caiba 
junção de textos anteriores, feita por Vigotski em 1934, mas 
alguma  atribuição  muito  maior  do  que  a  de  lidar  só  os  capítulos  1  e  7  são  de  1934,  os  demais  são  de  anos 
com pressões de diferentes fontes.  Mas se a me‐ anteriores.  Como  no  momento  não  tenho  as  datas  dos  de‐
táfora histórico‐cultural fosse também com o gelo  mais  capítulos,  os  que  forem  citados  aqui  levarão  a  data 
poderíamos dizer que a consciência em Vigotski é  original  também  de  1934.  Posteriormente  corrigirei  essa 
imprecisão. 
 
 
GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009  19 de 40
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
respostas  que  dá  a  elas.  Por  exemplo,  elogia  a  essa  discussão.  Segundo  Vigotski:  “toda  vivência 
dúvida que se pretende responder com a hipótese  está respaldada por uma influência real, dinâmica, 
da  “pulsão  de  morte”,  dizendo  não  ser  caminho  do meio com relação à criança. Desde este ponto 
fácil, mas “uma trilha alpina sobre os abismos para  de vista, a essência de toda a crise reside na rees‐
aqueles que não padecem de vertigens” (VIGOTS‐ truturação  da  vivência  interior,  reestruturação 
KI, 1991, p. 303). Mas não vê aí resposta apropria‐ que  radica  na  mudança  do  momento  essencial 
da e enfatiza que “a ciência também tem necessi‐ que  determina  a  relação  da  criança  com  o  meio, 
dade desses livros: livros que não descubram ver‐ isto  é,  na  mudança  de  suas  necessidades  e  moti‐
dades, mas que ensinem a buscar a verdade, ain‐ vos que são os motores de seu comportamento. O 
da que não a tenham encontrado” (idem – p. 303).  incremento  e  a  mudança  dessas  necessidades  e 
Certamente,  a  obra  do  próprio  Vigotski  como  de  apetências é o aspecto menos consciente e volun‐
outros  clássicos  que  conhecemos  é  também  as‐ tário  da  personalidade  e  à  medida  que  a  criança 
sim,  muitas  vezes  mais  instigante  nas  perguntas  passa  de  uma  idade  a  outra,  nascem  nela  novos 
do  que  conclusiva  nas  respostas.  Desse  modo,  impulsos, novos motivos ou, dito de outro modo, 
aceitando  constatações comuns e o valor das dú‐ os propulsores de sua atividade experimentam um 
vidas que elas nos trazem, é interessante lembrar  reajuste de valores. O que antes era essencial para 
também  um  tema  talvez  menos  comum.  Trata‐se  a  criança,  valioso,  apetecível,  faz‐se  relativo  e 
do problema da relação dos conteúdos e modo de  pouco  importante  na  etapa  seguinte”  (1933‐
operação  da  consciência  com  os  seus  motivos  e  34/2006,  p.  385  –  grifo  meu).  No  curso  de  nosso 
sua orientação, os impulsos que animam e as me‐ desenvolvimento  nossas  prioridades  mudam,  e 
tas  a  que  se  dirigem  nossas  ações.  Para  Vigotski,  não temos total domínio quanto ao acontecimen‐
como  para  Freud  (ver  VIGOTSKI,  1925/1999  e  to dessas mudanças, pois ocorrem no enlaçamen‐
1930/1987,),  não  há  emoção  inconsciente:  não  to de linhas biológicas e culturais, que não criamos 
tenho  como  estar triste sem me entristecer,  nem  em absoluto e com as quais vamos criando a nós 
alegre  sem  me  alegrar.  A  emoção  é  sempre  um  mesmos em nossas vivências. Isso não só na onto‐
fato real e presente à consciência tal como desen‐ gênese  com  suas  crises,  mas  também  no  interior 
volvida  socialmente.  Contudo,  posso  estar  triste  de diversas outras crises próprias à nossa relação 
ou  alegre,  incomodado  ou  satisfeito,  sem  ter  co‐ tensa  com  e  na  realidade  física,  biológica  e  social 
nhecimento claro do motivo que me levou a estar.  da qual somos componentes e compositores, mas 
É  uma  idéia  simples,  mas  importante,  que  nos  não  necessariamente  de  modo  confortável  ou 
conduzirá a discussões posteriores. Por ora, cabe‐ harmonioso. Isto por ser a vida drama e drama ser 
ria  apenas  destacar  que  não  temos  domínio  de  conflito,  por  definição.  Investigar  o  tema  das  ne‐
todo  o  conjunto  de  relações  sociais  nas  quais  se  cessidades,  impulsos,  motivos  e,  sobretudo,  valo‐
constitui  nosso  drama  de  papéis,  e  os  conflitos  res, na dialética consciência/inconsciente torna‐se 
que  lhes  são  próprios,  mas  a  significação  que  da‐ tarefa árdua e necessária para o desenvolvimento 
mos às coisas, aos outros e a nós mesmos, é cons‐ futuro  da  perspectiva  histórico‐cultural.  Tarefa 
tituída no interior de tais relações cuja totalidade  para cujo cumprimento o suporte reside nos pró‐
nos  escapa.  Só  isso  já  nos  dará  o  que  pensar,  se  prios princípios comentados brevemente até aqui, 
concebermos  o  que  não  nos  é  consciente  como  ainda que seu desfecho nos ultrapasse. 
tão social, histórico e cultural quanto nossa cons‐  
ciência,  em  sua  dialética  com  ela.  Poderíamos  a  2.4  Princípio  da  compreensão  da  consciência  me‐
isso  acrescentar,  portanto,  a  contribuição  de  Ba‐ diante unidades 
khtin  (2004)  de que a natureza  mais profunda de   
nossos  conflitos  é  essencialmente  ideológica  (va‐ Podemos,  portanto,  definir  consciência  de  dife‐
lorativa)  e  não  biológica  (instintiva),  tal  qual  em  rentes  e  complementares  maneiras,  como:  “co‐
outras abordagens. É quanto às motivações e ne‐ nhecimento  partilhado”  (co‐conhecimento);  “pro‐
cessidades  sociais,  aos  valores  ideológicos,  i.e.,  cesso  reflexivo”  (meta‐conhecimento);  “vivência 
próprios  a  uma  “visão  de  mundo”,  que  nos  per‐ de vivências”; “ato de reflexão e refração”; e ain‐
guntamos: quais as forças motivadoras dos nossos  da  “síntese  afetivo‐cognitiva”.  Mas  cabe  notar 
atos, como tomarmos consciência delas?  ainda  que  nada  disso  é  dado  para  o  homem  de 
  modo  imediato,  instantâneo.  Trata‐se  de  caracte‐
Cabe lembrar que o tema da vivência se articula a  rísticas  de  nossa  existência  que  se  adquirem  no 
 
 
GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009  20 de 40
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
curso  de  nossas  relações  com  os  outros,  que  se  peça  chave  na  compreensão  da  mente  humana. 
modificam  ao  longo  do  desenvolvimento  biológi‐ Mas, atendo‐nos por enquanto apenas ao próprio 
co‐cultural, com o suporte de distintas mediações.  Vigotski,  entendamos  que  há  duas  formas  princi‐
O conjunto das funções da consciência, não só em  pais  dele  mesmo  compreender  a  unidade  para  a 
suas características gerais, mas também na articu‐ consciência, uma unidade que é tanto  no sentido 
lação  das  funções  mentais,  como  memória,  aten‐ de como a consciência existe mesmo, se constitui, 
ção,  vontade,  percepção,  raciocínio,  e  a  própria  quando simultaneamente no sentido de como se a 
linguagem  que  proporciona  relações  inter‐ pode estudar. No campo das relações entre “per‐
funcionais,  é  um  todo  complexo,  dinâmico  e  sis‐ sonalidade  e  meio”  essa  unidade  é  a  “vivência” 
têmico,  semanticamente  estruturado.  Não  temos  (“perejivanie” 13 ),  no  âmbito  das  relações  entre 
como apreendê‐lo de modo direto, nem instantâ‐ “pensamento e linguagem” essa unidade é o “sig‐
neo.  A  consciência  de  alguém  só  se  nos  dá  a  ver  nificado  da  palavra”,  “palavra  significativa”  ou 
por  pistas,  indícios,  processos  de  exteriorização  simplesmente  “palavra”,  considerando  que  só 
que  por  sua  vez  já  transformam  o  que  antes  de  pode  ser  palavra  se  tiver  significado.  No  meu  en‐
serem  realizados  estava  posto  na  esfera  privada  tendimento  não  são  “instâncias”  separadas,  pala‐
do  psiquismo  dessa  pessoa.  Não  podemos  ter  vra  e  vivência  compõem‐se  mutuamente:  com  a 
acesso  direto  ao  ser  do  outro,  tampouco  temos  palavra  eu  digo  o  que  vivenciei;  com  a  vivência 
acesso  direto  ao  nosso  próprio  ser,  mas  indireto,  minha palavra tem realmente o que dizer. Contu‐
mediado  por  palavras  que  com  mais  alguém  a‐ do, o campo das relações “personalidade e meio” 
prendemos.  Vigotski  aborda  esse  problema  não  não pode deixar de nos parecer mais vasto, posto 
pela  via  da  postulação  de  um  incomunicabilidade  que meio social está ainda em composição com o 
a todo custo de um ser humano com outro, isto é,  meio biológico e o físico, posto que a personalida‐
não pelo chamado “solipsismo”. Mas por uma via  de  não  envolve  só  o  que  é  consciente,  mas  tam‐
indireta.  Não  se  pode  dizer  que  não  somos  capa‐ bém o que não é. Ainda assim, será só mediante a 
zes  de  estudar  o  átomo  tão  somente  porque  não  linguagem  que  esse  campo  vasto  poderia  deixar 
podemos  vê‐lo,  que  só  o  poderíamos  estudar  se  de  ser  apenas  algo  “em  si”  e  tornar‐se  também 
ele  nos  afetasse  os  órgãos  dos  sentidos.  Assim  “para si”, isto é: não só existir como tal, mas tam‐
também  não  se  pode  abdicar  do  estudo  da  cons‐ bém  para  alguém,  significando‐lhe  algo,  fazendo‐
ciência, o que há de especificamente humano em  lhe  algum  sentido.  Desta  forma,  o  menos  vasto 
nosso  psiquismo,  por  não  termos  acesso  direto  a  não é de importância ontológica nem metodológi‐
ela.  Toma‐se  um  caminho  indireto,  aborda‐se  o  ca  menor.  Porém,  pela  ordem  da  exposição,  co‐
objeto de estudo mediante suas manifestações, e  mentemos  primeiro  algo  sobre  a  vivência  como 
com apoio delas se busca reconstruir sua gênese.  unidade e em seguida sobre o significado.  
Nesse  contexto,  pode‐se  colocar  em  pauta  a  dis‐  
cussão  sobre  as  chamadas  “unidades  de  análise”.  Um  dos  principais  momentos  em  que  Vigotski 
A  unidade,  para  Vigotski,  diferente  dos  “elemen‐ discute a questão da vivência como unidade afeti‐
tos”,  contém  de  modo  condensado  as  principais  vo‐cognitiva  foi  em  uma  comunicação  oral  sua, 
contradições do todo. Como uma célula viva pos‐ cuja  transcrição  posteriormente  recebeu  o  título 
sui as funções principais de um ser vivo completo,  de  “O  problema  do  ambiente”  (VIGOTSKI,  1935/ 
como  o  processo  de  produção  de  valor  de  troca  1994) 14 . Ali Vigotski procura destacar que a influ‐
possui  as  contradições  principais  da  economia  ência do meio social sobre a criança não é absolu‐
capitalista.  ta,  mas  relativa  ao  seu  momento  de  desenvolvi‐
  mento e a assim à sua vivência. Isso não se aplica 
Contudo,  se  a  célula  pode  ser  uma  unidade  da  só às crianças, mas o exemplo prático trabalhado 
biologia, e a produção de valor de troca uma uni‐ pelo  autor  é  o  de  três  crianças  com  dificuldades 
dade da economia política, qual seria a unidade de  no processo educativo, que haviam presenciado o 
análise  da  psicologia,  para  o  estudo  da  consciên‐ adoecimento  da  mãe,  por  alcoolismo,  e  todas  as 
cia? Toda uma discussão sobre o método científi‐
co se ergue em torno disso, em outras abordagens 
temos  diversas  unidades.  Na  própria  psicologia  13
 Confira a nota “11”, p. 18. 
14
marxista  soviética,  há  mais  de  uma  formulação  e   Aqui também, a fonte só fornece o ano da primeira publi‐
nem todos concordam sobre qual deveria ser essa  cação, mas não a data de quando o trabalho teria sido conclu‐
ído.
 
 
GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009  21 de 40
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
conseqüências  desse  processo  nas  relações  dela  Nessa  conferência  o  autor  disse  claramente:  “po‐
com  elas.  O  que  ele  argumenta  é  que  com  uma  demos  assinalar  (...)  a  unidade  para  o  estudo  da 
influência do meio relativamente estável, a doen‐ personalidade  e  o  meio.  Em  psicologia  e  psicopa‐
ça  da  mãe,  as  crianças  vieram  a  apresentar  atitu‐ tologia essa unidade se chama vivência. A vivência 
des  bastante  diversas.  O  mais  novo  desenvolve  da criança é a aquela simples unidade sobre a qual 
“sintomas  neuróticos”,  subjugado  pelo  horror  é  difícil  dizer  se  representa  a  influência  do  meio 
acaba  por  entrar  em  “estado  de  depressão  com‐ sobre  a  criança  ou  uma  peculiaridade  da  própria 
pleta  e  desamparo”.  O  segundo  experimenta  um  criança. A vivência constitui a unidade da persona‐
“complexo  de  mãe‐bruxa”,  no  qual  “o  amor  pela  lidade  e  do  entorno  tal  como  figura  no  desenvol‐
mãe  e  o  terror  pela  bruxa  coexistem”  (VIGOTSKI,  vimento.  Portanto,  no  desenvolvimento,  a  unida‐
1935/1994, p. 340), o que o levava a um compor‐ de dos elementos pessoais e ambientais se realiza 
tamento  contraditório,  como  quando  pediu  para  em  uma  série  de  diversas  vivências  da  criança.  A 
ser levado para casa, mas logo demonstrou terror  vivência  deve  ser  entendida  como  a  relação  inte‐
quando  se  voltou  a  tocar  no  assunto.  Por  fim,  o  rior da criança como ser humano, com um ou ou‐
terceiro  tinha  habilidade  mental  limitada,  mas  tro  momento  da  realidade.  Toda  a  vivência  é  vi‐
“mostrou sinais de maturidade precoce, seriedade  vência  de  algo.  Não  há  vivências  sem  motivo,  co‐
e  solicitude”  (VIGOTSKI,  1935/1994,  p.  340),  as‐ mo  não  há  ato  consciente  que  não  seja  ato  de 
sumindo um papel de “adulto da casa” e cuidando  consciência  de  algo.  Entretanto,  cada  vivência  é 
dos demais. Vigotski entende que “era uma crian‐ pessoal.  A  teoria  moderna  introduz  a  vivência 
ça cujo curso do desenvolvimento normal foi vio‐ como unidade da consciência, isto é, como unida‐
lentamente cindido, um tipo diferente de criança”  de na qual as possibilidades básicas da consciência 
(1935/1994,  p.  341)  cujos  interesses  não  eram  figuram  como  tais,  enquanto  que  na  atenção,  no 
simples  como  os  próprios  de  sua  idade.  Seriam  pensamento não se dá tal relação. A atenção não 
esses  alguns  exemplos  clínicos  de  vivências  dife‐ é uma unidade da consciência, senão um elemen‐
rentes,  momentos  de  desenvolvimento  distintos,  to  da  consciência,  carente  de  outros  elementos, 
mas,  acima  de  tudo,  sínteses  diversas  entre  os  com  a  particularidade  de  que  a  integridade  da 
momentos de desenvolvimento e as influências do  consciência  como  tal  desaparece.  A  verdadeira 
meio  social.  Cabe  ao  psicólogo  histórico‐cultural  unidade  dinâmica  da  consciência,  unidade  plena 
investigar  e  compreender  tais  vivências  e  não  ao  que constitui a base da consciência é  a vivência.” 
meio como índice absoluto, nem à bagagem gené‐ (VIGOTSKI,  1933‐34/2006,  p.  383).  Nas  funções 
tica  como  índice  absoluto.  Outro  exemplo,  dado  psicológicas  isoladas  (atenção,  pensamento,  me‐
por Vigotski no mesmo texto, de cunho mais geral,  mória, percepção), não se poderia ter uma síntese 
é  o  da  influência  da  linguagem  dos  adultos  sobre  mais  fiel  do  conjunto  da  ação  da  consciência.  A 
as  crianças.  Posto  que  o  modo  como  os  adultos  vivência não é só o que pensamos, ou para o que 
falam uns com os outros na presença da criança, a  estamos atentos, mas o ato integral do homem de 
estrutura  gramatical,  o  vocabulário,  etc.,  não  é  pensar,  atentar,  sentir,  lembrar,  perceber,  um 
distinto para uma criança pequena, para uma pré‐ dado  momento  de  sua  existência,  produzindo 
escolar,  uma  escolar,  etc.,  contudo  a  influência  é  sentidos para ela. Nessa direção, entendemos que 
distinta em cada momento. O processo de desen‐ a mediação da linguagem está presente na vivên‐
volvimento importa para a compreensão de como  cia  como  um  dos  modos  de  buscarmos  compre‐
o meio social pode influir sobre a criança. Embora  ender a dinâmica da consciência da qual a vivência 
o  desenvolvimento  não  seja  uma  força  isolada,  é uma unidade viva essencial. 
mas  já  um  processo  auto‐determinado  geral  que   
sintetiza  tanto  a  influência  do  meio,  quanto  da  Assim,  por  um  lado,  a  vivência  é,  como  vimos, 
herança. Tal idéia será apresentada talvez de mo‐ uma  unidade  cognitivo‐afetiva  de  interpretação  e 
do ainda mais dinâmico em outro texto do autor,  sentimento  do  real  na  qual  a  consciência  realiza 
também  proveniente  de  uma  conferência  minis‐ sua  potência  e  ao  mesmo  tempo,  portanto,  uma 
trada  em  Moscou,  que  se  intitulou  “a  crise  dos  unidade  “personalidade  e  meio”,  uma  vez  que  a 
sete anos” (VIGOTSKI, 1933‐34/2006). 15 consciência  também  poder  ser  definida  como  “a 

15
  Já  citado  anteriormente  para  discutir  a  questão  das  mu‐ danças dos motivos, necessidades e valores na página 20. 
 
 
GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009  22 de 40
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
relação da criança com o  meio” (VIGOTSKI, 1933‐ minha audição e transpõe sua codificação para as 
34/2006,  p.  386).  Por  outro,  a  consciência  enten‐ áreas  cerebrais  correspondentes;  tanto  quanto 
dida como referente também a uma relação entre  (b’) se eu, além disso, atribuo sentidos para o que 
a  linguagem  e  o  pensamento  terá  como  sua  uni‐ o  outro  pronuncia,  no  próprio  ato  de  dirigir  a  ele 
dade o “significado”, que é ao mesmo tempo um  minha réplica, com aprovação e/ou rejeição, com 
fenômeno da comunicação social e da organização  algum juízo de valor. Pensando assim, como dizer 
sistêmica das funções mentais. Não é um tema de  se  a  linguagem  é  algo  do  meio  social  ou  de  nós 
compreensão simples. Poderíamos imaginar que a  mesmos?  Não  seria  ao  mesmo  tempo  de  ambos, 
linguagem  fosse  um  aspecto  do  meio,  e  o  pensa‐ até porque somos parte desse meio que não nos é 
mento um aspecto da personalidade – para falar‐ externo? Não seria um fenômeno de “interface”? 
mos  de  modo  didático  sobre  pares  distintos  que  O  mesmo  ocorre  ao  falarmos  com  alguém:  falo 
se inter‐relacionam. Assim, como nem tudo que é  produzindo  o  signo  de  meu  convite  à  réplica  ao 
meio é linguagem, e nem tudo o que é personali‐ outro, mas a um só tempo ouço o que falo como 
dade  é  pensamento,  seria  uma  distinção  apenas  que vindo de “fora”. O signo possui tanto “rever‐
quanto  ao  grau  de  abrangência.  Contudo,  como  sibilidade”  (pode  originar‐se  de  mim  e  dirigir‐se 
não  se  trata  só  de  “combinação”  ou  “interação”  também  a  mim)  quanto  “simultaneidade”  (pode 
entre os pólos distintos, mas de inter‐constituição  existir ao mesmo tempo em mim e não apenas em 
e  integração  dialética,  a  divisão  “{meio  (lingua‐ mim).  O  fenômeno  ocorre  em  nossos  cérebros, 
gem)}  <‐>  {personalidade  (pensamento)}”  é  im‐ mas  também  para  além  deles,  em  ligações  que 
precisa e insuficiente. Por quais motivos? Primeiro  Luria  chamou  de  “extra‐corticais”.  As  fronteiras 
porque  o  ser  humano  faz  parte  de  seu  próprio  “interno” e “externo” na linguagem se diluem.  
meio  e  “seu  meio  nunca  é  externo  para  ele”  (VI‐  
GOTSKI,  1933‐34/2006,  p.  382),  depois  porque  a  Que dizer então do pensamento? Talvez, em com‐
própria personalidade já é definida como “o social  paração com os termos já comentados (personali‐
em  nós”  (VIGOTSKI,  1931/2000,  p.  337).  Ou  seja,  dade, meio, linguagem), seja aquele ao qual mais 
ela  não  é  algo  independente,  pré‐existente  às  comumente  possamos  atribuir  uma  característica 
relações com o meio que pela pressão ou permis‐ privada,  íntima,  “interior”  –  pois  “como  saber 
são  dele  apenas  “é  modificada”,  ou  “modelada”  realmente  o  que  outra  pessoa  está  pensando?”. 
como uma massa passiva antes indiferenciada que  Mas também o pensamento é fenômeno de inter‐
toma forma pela ação de uma força exterior. Dito  face. Em primeiro lugar, porque para pensarmos é 
de  modo  metafórico,  a  personalidade  não  seria  preciso  pensar  “sobre  algo”.  Não  há  pensamento 
como uma marionete de uma peça de teatro, sob  “puro”, sem imagens, sem impressões, sem influ‐
o  controle  de  uma  manipuladora  “sociedade”,  ências,  sem  voltar‐se  à  compreensão  de  alguma 
seria  mais  como  a  encarnação  do  ator  situado  coisa  que  não  seja  só  ele  mesmo.  Em  segundo 
com relação aos demais na performance do drama  lugar, porque também é preciso pensar “de algum 
da vida social, com toda tensão e conflito que ele  modo”. Não há pensamento sem modos de orga‐
envolve.   nizá‐lo,  sem  formas  de  construir  um  argumento, 
  mediante  recursos  retóricos  que  se  voltem  ao 
De modo análogo, embora não idêntico, a lingua‐ convencimento e/ou à busca de consensos, etc. E 
gem também não pode ser considerada como algo  tais  modos  de  organização  também  não  nascem 
totalmente  “externo  a  nós”.  Quando  eu  ouço  al‐ conosco,  precisamos  aprendê‐los  em  práticas 
guém falar, as suas palavras existem, por um lado,  partilhadas com outras pessoas. Contudo, não por 
independentemente de mim: (a) de meu corpo, na  uma  oposição  externo‐interno,  mas  pela  própria 
materialidade  sonora  delas,  como  ondas,  como  complexidade dos fatores envolvidos nas relações 
energia que se propaga, etc.; (b) de minha vonta‐ de  constituição  mútua  entre  pensamento  e  lin‐
de, na sua especificidade semântica como posição  guagem,  a  noção  do  significado  da  palavra  como 
ideológica  de  alguém,  com  história  própria,  que  unidade  dessa  relação  se  faz  importante.  Justa‐
não se subordina à minha, mesmo que para falar‐ mente  porque  uma  palavra  significativa  é  tanto 
me sempre leve em conta minha possível réplica.  algo  que  pertence  às  relações  sociais  quanto  aos 
Por  outro  lado,  nesse  mesmo  ato  de  ouvir,  a  lin‐ processos  de  generalização  do  real  próprios  ao 
guagem só se realiza: (a’) se é produzida em mim  funcionamento do pensamento. 
uma  materialidade  neurofisiológica  que  sustenta   
 
 
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
Na palavra, o seu som ou traço escrito não são um  que não são ela mesma, mas que mediante ela, de 
fenômeno  que  se  esgote  em  sua  própria  existên‐ diversos modos, são evocadas, desde os mais sin‐
cia  imediata,  não  são  apenas  uma  “coisa”  entre  créticos,  desorganizados,  aos  mais  conceituais, 
outras  no  mundo,  que  só  pode  nos  afetar  como  sistemáticos e ordenados. Por este motivo, dentre 
estímulo aos nossos órgãos sensoriais. Ao contrá‐ outros, o “significado” pode se tornar unidade de 
rio, na palavra, o som ou traço estão ali designan‐ análise  para  as  relações  “pensamento  e  lingua‐
do  ou  significando  algo  que  não  eles  mesmos,  gem”,  unidade  para  a  compreensão  da  consciên‐
para além deles e que, mediante eles, de alguma  cia.  
maneira,  torna‐se  presente.  Se  alguém  diz:  “cho‐  
verá”,  a  palavra  evidentemente  não  é  a  própria  Trata‐se, portanto, de um tema essencial na obra 
chuva, mas ela é capaz de nos indicar o que pode  de  Vigotski,  e  também  repleto  de  desdobramen‐
vir a acontecer. Se eu digo: “estive em Campinas”,  tos  impossíveis  de  retratar  detalhadamente  aqui. 
também  meus  signos  não  têm  sentido  senão  ao  Neste  momento,  como  algo  a  retomar  em  segui‐
possibilitar  a  outrem  posicionar‐se  frente  ao  que  da, vale destacar que junto ao conceito de signifi‐
digo,  perguntando  que  fui  fazer  lá  ou  sugerindo  cado situa‐se o de  sentido, o qual para Vigotski  é 
que  não  lhe  importa  o  assunto,  por  exemplo.  As‐ uma “região” mais ampla da significação, sendo o 
sim, a linguagem para significar demanda que seu  significado só “um potencial, que só pode ser rea‐
componente  sensorialmente  presente  remeta  a  lizado  na  fala  viva,  e  na  fala  viva  o  significado  é 
algo  que  não  está  necessariamente  presente  no  apenas uma pedra no edifício do sentido” (Vigots‐
campo perceptivo. Seja por nossas palavras reme‐ ki, 1934/1987 p. 276). A noção de sentido em Vi‐
terem a algo distante no tempo e/ou no espaço: a  gotski  também  é  social.  Não  se  trata  exatamente 
chuva  (aqui,  mas  depois);  Campinas  (lá  e  antes).  de que apenas o significado seja social e o sentido 
Seja  pelo  dito/escrito  não  poder  traduzir‐se  por  pessoal. Essa é uma forma de pensar, não é incor‐
imagem sensorial tão nítida, mesmo acontecendo  reta, mas também não é de todo precisa. Se para 
aqui  e  agora:  a  apreensão  pela  proximidade  da  haver  sentido  é  necessário  haver  linguagem,  e  se 
chuva; a satisfação pela lembrança da viagem, etc.  o  sentido  é  algo  próprio  da  linguagem  não  pode 
A  palavra  pode  nos  transportar  à  experiência  da  deixar  de  ser  um  processo  tanto  pessoal  quanto 
chuva  ou  da  viagem,  não  apenas  por  ser  feita  de  social. Contudo, o que leva alguns autores a cate‐
som ou traço, em si, mas por ter um “significado”.  gorizar  o  sentido  como  algo  predominantemente 
Chamemos de “significado” o processo de genera‐ “subjetivo”, pode ser o fato de que o sentido im‐
lização que nos permite vincular som/traço (signi‐ plica uma singularidade mais evidente para o nos‐
ficante) com aquilo a que ele se refere (referente).  so  modo  de  sentir  e  compreender  cada  palavra, 
Seja esse referente algo conversível em represen‐ cada  signo.  O  sentido  atribuído  por  cada  pessoa 
tação  sensorial  em  nossa  imaginação  –  como  nu‐ em particular para uma mesma “chuva”, para uma 
vens escuras carregadas para a chuva ou a dispo‐ mesma  “viagem”,  cujo  significado  já  múltiplo 
sição de estrelas junto à Lua num começo de noite  permite a composição de regiões semânticas par‐
em  Campinas.  Seja  ele  algo  mais  dinâmico  e/ou  tilhadas, tende a ser ainda mais diverso e multifa‐
abstrato – como os sentimentos de apreensão ou  cetado.  O  sentido  é  potencialmente  único,  no 
satisfação com relação à experiência vivida ou por  limite  “intransferível”  em  sua  totalidade,  plasma‐
viver. O significado, portanto, não é nem o objeto  do  possivelmente  à  própria  vivência  singular  de 
em  si,  nem  o  som/traço  em  si,  mas  a  nossa  ação  cada pessoa, um acontecimento que não se repe‐
semiótica  em  realizar  algum  modo  de  articulação  te.  Ainda  assim,  não  é  totalmente  precisa  a  afir‐
entre  os  dois.  Uma  só  palavra  pode  remeter  e  mação de que ele não seja social em sua origem e 
remete  a  diferentes  objetos:  a  palavra  “homem”  funcionamento. Por um lado, porque para se fazer 
não  se  refere  somente  a  “este”  ser  humano  que  tão impar e multifacetado, o sentido comporta em 
aqui  vejo  e  nomeio,  ela  se  torna  para  mim  um  sua  realização  já  toda  a  trajetória  de  vida  de  al‐
conceito geral, aplicável mesmo para pessoas que  guém,  na  qual,  junto  aos  outros,  se  constitui  sua 
ainda não vi ou jamais verei. Vigotski (1934/1987;  “visão de mundo” (ou ideologia, lato sensu) e está 
1934/1989b; 1934/2001) fala do significado como  implicado  o  desenvolvimento  de  sua  personalida‐
uma  generalização  ou  um  conceito.  E  a  palavra  de,  social  por  definição.  Por  outro,  porque  sua 
não é palavra se não tem esse poder de generali‐ definição  envolve  o  reconhecimento  de  uma  ten‐
zação, esse poder de remeter a outras realidades  são  constitutiva  do  processo  de  significação  que 
 
 
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
realiza,  tensão  essa  inerente  ao  drama  de  papéis  dois  pontos:  (a)  certamente  que  a  palavra  não 
sociais assumidos por cada pessoa, e ao ato afeti‐ pode  tomar  todo  o  lugar  da  consciência,  como 
vo‐volitivo necessário para situar‐se nesse drama,  célula  e  átomo  não  são  mais  importantes  que 
assumindo papéis e posições, confrontando moti‐ organismo  e  cosmos;  mas  também  (b)  como  uni‐
vações  e  necessidades  concorrentes,  transfor‐ dade viva ela não é algo simplesmente “utilizado” 
mando‐as em outras nesse mesmo ato, realizando  pela  consciência  de  tal  modo  que  pudesse  de  al‐
escolhas  imprescindíveis  para  a  vida  seguir  seu  guma maneira tornar‐se “dispensável”, ao contrá‐
curso.  rio,  a  totalidade  não  se  realiza  sem  sua  unidade 
  constitutiva. 
De  qualquer  maneira  isso  não  diminui  o  lugar  do   
significado, pois não está isolado da construção do  2.5 Princípio da compreensão do psiquismo huma‐
“edifício” do sentido. Não é uma modalidade peri‐ no  mediante  sua  gênese  histórica  (origem  e  de‐
férica da significação, mas uma unidade que pode  senvolvimento) 
permitir‐nos  compreender  os  campos  mais  am‐  
plos do sentido, da vivência e da própria consciên‐ Discorremos no tópico anterior sobre duas unida‐
cia.  De  fato  palavras  como  “chuva”  e  “viagem”,  des  possíveis  para  a  definição  da  própria  existên‐
podem  produzir  inumeráveis  efeitos  de  sentido,  cia  da  consciência  (critério  ontológico)  e  para  a 
formações  de  sentido,  em  função  de  quem  está  definição  de  como  analisá‐la,  compreendê‐la  (cri‐
falando, para quem, por quais motivos, com quais  tério  metodológico).  Discorrendo  brevemente 
orientações,  de  que  modo,  com  relação  a  quais  sobre  o  lugar  do  conceito  de  “significado”  em 
referentes, e assim por diante. Contudo, o fato de  Vigotski,  pudemos  tocar  no  tema  das  relações 
haver um acordo social relativo à constituição dos  pensamento e linguagem, e das relações sentido e 
campos semânticos para tais palavras, isto é, com  significado.  Contudo,  tal  exposição  fica  devendo 
relação  que  modalidades  de  generalização  elas  ainda  a  alusão  a  uma  proposição  que  Vigotski 
mais  comumente  são  postas  a  produzir,  não  é  considera  um  ponto  central  em  sua  teoria  sobre 
impeditivo  da  singularidade  dos  sentidos,  mas  as relações entre pensamento e linguagem. Refe‐
também uma das suas condições de possibilidade.  rindo‐se  a  estudos  realizados  por  seu  grupo,  diz 
O mesmo se pode dizer para quando é necessário  que  eles:  “mostraram  que  tomando  o  significado 
nos fazermos, em meio a toda diversidade inesgo‐ da  palavra  como  uma  unidade  do  pensamento 
tável dos sentidos, entender por alguém, dizer‐lhe  verbal nós criamos o potencial para investigar seu 
algo  que  posicione  nossas  motivações  e  necessi‐ desenvolvimento e explicar sua característica mais 
dades,  nossas  orientações  e  propósitos,  nossos  importante nos vários estágios de desenvolvimen‐
compromissos  e  valores,  mesmo  sendo  eles  algo  to. O resultado principal deste trabalho, contudo, 
tão nosso, tão privado, tão íntimo e intransferível.  não é esta tese por ela mesma, mas uma conclu‐
Assim  tanto  a  difusão  dos  significados  em  senti‐ são subseqüente que constitui o centro conceitual 
dos, quanto a condensação dos sentidos em signi‐ de  nossa  investigação,  qual  seja,  a  conclusão  de 
ficados,  são  momentos  dialéticos  de  um  mesmo  que o significado da palavra desenvolve‐se. A des‐
processo  que  é  a  significação,  ou  a  mediação  se‐ coberta de que o significado da palavra muda e se 
miótica,  ambos  os  termos  tomados  em  sua  acep‐ desenvolve é nossa maior e fundamental contribu‐
ção mais abrangente, como produção de significa‐ ição  à  teoria  do  pensamento  e  da  fala.  É  nossa 
dos e sentidos mediante o signo, mediante a pala‐ principal  descoberta,  uma  descoberta  que  tem 
vra  como  signo  humano  por  excelência,  seja  ela  nos permitido superar o postulado da constância e 
falada,  escrita  ou  gesticulada.  Por  fim,  o  tema  da  imutabilidade do significado da palavra que garan‐
unidade  de  análise  em  Vigotski,  do  significado  da  te os fundamentos das teorias anteriores do pen‐
palavra como unidade de análise é correlato ao da  samento e da fala” (VIGOTSKI, 1934/1987, p. 245‐
“palavra  significativa”  como  “microcosmo”.  Se‐ 245 – grifo na fonte). O desenvolvimento do signi‐
gundo  este  autor:  “A  palavra  se  relaciona  com  a  ficado  das  palavras  é  tratado  ao  longo  de  todo  o 
consciência  (...)  como  a  célula  viva  com  o  orga‐ livro  “Pensamento  e  linguagem”  (VIGOTSKI, 
nismo, como o átomo com o cosmos. (...) A pala‐ 1934/1987;  1934/1989b;  1934/2001).  Há  duas 
vra  significativa  é  o  microcosmo  da  consciência  formas  importantes  pelas  quais  tal  processo  de 
humana.”  (VIGOTSKI,  1934/1989d,  p.  208  –  grifo  desenvolvimento é abordado: uma é o estudo dos 
na fonte). Quanto a esta passagem devo destacar  “conceitos artificiais”, outra é o estudo da relação 
 
 
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
entre  os  “conceitos  cotidianos  e  os  científicos”.   tivas”  e  “involutivas”.  Tal  processo  envolve,  por‐
Sem entrar em detalhes, do primeiro tipo de estu‐ tanto,  avanços  e  retrocessos,  períodos  de  aquisi‐
do  se  deduziram  três  grandes  modalidades  de  ções  gradativas,  acúmulos  quantitativos,  mas 
organização dos significados e/ou da relação pen‐ também  momentos  de  crise  que  podem  rumar 
samento  e  linguagem:  (a)  sincretismo  (aglomera‐ para pontos de culminância nos quais se realizem 
ção);  (b)  pensamento  por  complexos  (associa‐ sínteses  dialéticas,  pontos  de  virada,  guinadas, 
ções); (c) conceitos propriamente ditos (sistemati‐ saltos  qualitativos,  nos  quais  as  nossas  motiva‐
zação).  Para  a  criança  pequena  predomina  a  pri‐ ções,  orientações  e  valores  se  modificam,  inver‐
meira,  para  o  adulto  a  última,  mas  ao  longo  do  tem‐se,  subvertem‐se  ou  convertem‐se  em  ou‐
tempo ou num mesmo período elas se combinam  tros,  como  vimos  anteriormente 16 .  Dito  isso,  po‐
também. Nada impede que nós adultos tenhamos  demos  destacar  ainda,  brevemente,  mais  alguns 
compreensão  sincrética  de  assuntos  novos  ou  princípios  metodológicos  gerais  que  caracterizam 
difíceis  de  aprender,  nem  que  procedamos  por  a  orientação  da  teoria  histórico‐cultural  para  a 
associações  assistemáticas  ou  pré‐conceituais  em  pesquisa  das  funções  psíquicas  superiores,  isto  é, 
alguns temas. O segundo tipo de estudo foi o que  propriamente humanas, mas que no  nosso ponto 
procurou  investigar  as  relações  entre  conceitos  de  vista  são  de  valor  primordial  também  para  a 
“cotidianos”  e  “científicos”.  Disto  se  tiraram  as  prática profissional como um todo. 
conclusões gerais de que: os conceitos cotidianos 
avançam  do  concreto  para  o  abstrato  com  ajuda  No capítulo 5 da coletânea “A formação social da 
dos  científicos;  já  os  científicos  avançam  do  abs‐ mente”,  são  apresentados  por  Vigotski  (1930/ 
trato para o concreto, com ajuda dos cotidianos.   1989b),  três  parâmetros  básicos  para  pesquisas 
  psicológicas  que  se  proponham  a  compreender 
É algo semelhante o que  pode se  passar com  um  seu  objeto  de  estudo  do  ponto  de  vista  de  sua 
grupo  de  estudos.  Agora  este  texto  pode  estar  gênese,  sua  origem  e  desenvolvimento  histórico: 
abstrato, mas com ajuda dos exemplos cotidianos  (a) a análise de processos e não de objetos; (b) a 
que  vão  surgir  nas  discussões  eles  poderão  se  explicação dinâmico‐causal e não apenas a descri‐
tornar  mais  potentes,  mais  concretos,  mais  capa‐ ção;  e  (c)  investigar  processos  aparentemente 
zes de aplicar‐se à vida, à profissão, e de ajudar a  “fossilizados”  mediante  a  reconstituição  da  sua 
organizá‐las. Isso será retomado constantemente.  origem  viva.  O  parâmetro  “a”  nos  sugere  que  as 
Por ora, apenas nos cabe deduzir que se a unidade  funções psíquicas, assim como o homem no qual a 
para  a  análise  da  consciência  humana  é  um  pro‐ síntese viva delas se realiza, não podem ser trata‐
cesso  que  se  desenvolve,  a  própria  consciência  das como “coisas” que tão somente se possa me‐
também  não  permanece  imutável  ao  longo  de  dir  ou  pesar,  como  algo  estático  e  imutável.  Fun‐
nossas  vidas.  Desenvolver‐se  é  uma  propriedade  ções  psíquicas  não  são  objetos,  mas  potências, 
fundamental  da  consciência  tanto  quanto  de  sua  modos  de  agir,  sentir  e  pensar,  cabendo  conside‐
unidade  de  análise.  Ela  se  transforma  não  só  rá‐las  sempre  em  seu  movimento,  nas  transfor‐
quanto aos seus conteúdos, objeto de sua ação e  mações que as tornaram aquilo que são, e que já 
simbolização,  mas  também  quanto  aos  seus  mo‐ as estão tornando aquilo que serão. Uma apreen‐
dos de organizar‐se, em sua dialética entre forma  são instantânea de qualquer manifestação psíqui‐
e  conteúdo.  A  consciência  transforma‐se,  desen‐ ca isolada da processualidade da atividade huma‐
volvesse‐se  ao  longo  de  períodos  sucessivos  dife‐ na, não poderá ser suficiente para compreender a 
renciados, passa por transições críticas entre eles  dinâmica que a gerou, tampouco aquilo que agora 
e se constitui, num momento atual (sincrônico) de  ela  é  e  pode  vir  a  ser.  Isso  conduz  ao  parâmetro 
seu  funcionamento,  da  articulação  entre  suas  “b”  que  indica,  em  Vigotski,  uma  diferenciação 
aquisições  anteriores  e  seu  potencial  futuro,  em  entre “explicar” e apenas “descrever”. Para expli‐
relação  com  os  outros.  Do  mesmo  modo,  com  car  também  é  preciso  descrever,  mas  esse  é  um 
respeito  a  todo  psiquismo  humano,  a  abordagem  movimento insuficiente para a explicação. Descre‐
histórico‐cultural,  busca  compreender  sua  forma‐ vendo superficialmente uma baleia podemos igua‐
ção  social  como  processo  de  desenvolvimento,  lá‐la  a  um  peixe,  ou  falando  das  características 
auto‐determinado  e  inter‐determinado,  múltiplo, 
complexo  e  que  não  se  dá  de  modo  linear,  mas 
“revolucionário”,  na  dialética  entre  linhas  “evolu‐ 16
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
externas  de  um  morcego,  poderemos  igualá‐lo  a  to  de  vista  da  espécie  todos  os  grupos  culturais 
um pássaro. Mas do ponto de vista de sua origem,  possuem o mesmo aparato e, portanto, o mesmo 
baleia  e  morcego  são  os  mais  próximos  um  do  potencial  para  desenvolver  o  que  qualquer  ser 
outro  do  que  dos  pares  similares  em  sua  aparên‐ humano  é  capaz  de  desenvolver.  As  diferenças 
cia. Vigotski recorre à contribuição de  Marx, para  entre  os  sucessos  ou  insucessos  dos  povos  nada 
quem  “se  as  aparências  coincidissem  com  a  es‐ teriam  a  ver  com  os  indivíduos  que  os  compõem 
sência,  a  ciência  não  seria  necessária”.  Assim  ex‐ terem  menor  ou  maior  capacidade  orgânica  para 
plicar é buscar a essência, e a isso só se chega pela  desenvolver  este  ou  aquele  aparato  simbólico  ou 
compreensão  da  gênese,  origem  e  desenvolvi‐ técnico.  Chamaremos  de  Sociogênese  a  própria 
mento.  Quanto  ao  parâmetro  “c”,  trata‐se  tam‐ história  do  desenvolvimento  dos  diferentes  gru‐
bém  de  algo  que  se  desdobra  do  dito  anterior‐ pos  sociais,  ou  seja,  a  história  no  sentido  mais 
mente.  Contudo,  o  foco  está  em  que  pode  haver  específico  do  termo,  a  história  humana.  Certa‐
comportamentos,  hábitos  motores  ou  intelectu‐ mente,  mesmo  pertencendo  todos  os  seres  hu‐
ais,  modos  de  organizar  talvez  nossos  próprios  manos  à  mesma  espécie,  as  sociedades  têm  suas 
sentimentos, que tenham se tornado já tão auto‐ características  culturais  distintas,  seus  códigos 
máticos,  aparentemente  tão  “naturais”,  que  não  peculiares,  seu  próprio  domínio  da  técnica  e  da 
percebamos  que  tiveram  uma  origem  histórica,  linguagem. Assim também uma mesma cultura, ao 
social, cultural, mediada. Assim a tais organizações  longo  do  tempo,  terá  sua  própria  trajetória,  sua 
“cristalizadas” do funcionamento psíquico, Vigots‐ tradição  específica,  avanços  e  retrocessos,  sua 
ki nomeou com a metáfora do “fóssil”. Um fóssil é  formação  política,  seus  inimigos  e  aliados,  seus 
algo sem vida que trás as marcas de que algo vivo  conflitos internos e com outros povos, seus dispo‐
esteve ali antes e lhe  deu origem. Contudo trata‐ sitivos de controle e suas lutas por emancipação, e 
se  de  algo  apenas  aparentemente  sem  vida.  O  assim  por  diante.  Certamente,  ao  longo  desse 
papel do psicólogo é reconstituir a origem media‐ longo  tempo  histórico,  formas  de  significar  o 
da e viva desses processos tornados “imediatos” e  mundo  são  desenvolvidas,  modos  de  educar  os 
“sem vida”.  mais novos, tanto quanto. De modo que a forma‐
  ção social do psiquismo individual também decor‐
Na  fusão  desses  três  parâmetros  reside  a  análise  re  das  propriedades  esse  plano  genético,  embora 
“genético‐causal”.  Ela  estuda  processos  e  não  só  não sejam coincidentes.  
objetos.  Busca  as  causas  e  não  só  os  efeitos,  a   
explicação e  não só a descrição, a essência e  não  Chamamos de ontogênese a história do desenvol‐
só a aparência, bem como o vivo e não o fossiliza‐ vimento do ser humano singular. Trata‐se do pro‐
do.  Ela  o  faz  pelo  recurso  ao  estudo  da  gênese.  cesso histórico que compreende todo o tempo de 
Uma última consideração sobre a abordagem dos  vida  de  uma  pessoa,  de  um  indivíduo,  de  um  ser 
fenômenos  pela  gênese,  ou,  se  preferirmos,  por  único.  Para  Vigotski  “de  nenhuma  maneira  (...)  a 
sua  história,  é  a  de  que  há,  pelo  menos,  quatro  ontogênese repete de alguma forma ou reproduz 
planos  (ou  domínios)  genéticos,  conceitos  de  his‐ a  filogênese  ou  constitui  seu  paralelo”  (1931/ 
tória,  encontrados  nas  pesquisas  de  Vigotski,  por  1989, p. 93). Não repete basicamente pelo motivo 
parte  de  seus  estudiosos  contemporâneos  (ver  de  que  ao  surgirem  os  primeiros  representantes 
WERTSCH,  1985;  e  SCRIBNER,  1985).  Aqui  os  no‐ adultos  da  espécie  Homo  sapiens,  havia  ainda 
mearemos  como:  filogênesse;  sociogênese;  onto‐ adiante  deles  todo  o  desenvolvimento  histórico 
gênese;  e  microgênese.  A  filogênese  define‐se  das  civilizações  e  culturas  humanas  por  se  dar. 
como  história  do  desenvolvimento  da  espécie.  Enquanto  que  a  criança  em  seu  desenvolvimento 
Esse  domínio  diz  respeito  ao  longo  processo  evo‐ ainda não é um adulto em termos biológicos, mas 
lutivo pelo qual viemos a surgir como espécie com  já está imersa numa cultura com todo seu acúmu‐
traços  distintivos  decisivos  para  a  organização  lo  simbólico  e  técnico  disponível  para  ela  –  fun‐
biológica que possuímos hoje. Organização neces‐ dindo‐se seu desenvolvimento biológico com o da 
sária,  mas  não  suficiente  para  nos  desenvolver‐ apropriação  dos  meios  culturais  que  a  sociedade 
mos  como  indivíduos,  já  que  se  trata  justamente  lhe  fornece.  Num  exemplo  prosaico,  poderíamos 
de  uma  constituição  orgânica  de  grande  plastici‐ imaginar  que  para  a  humanidade  ter  chegado  ao 
dade  e  abertura  às  transformações  próprias  da  domínio  da  tecnologia  que  permite  criar  os  com‐
cultura. Vigotski (1931/1989) ressalta que do pon‐ putadores  teve  que  passar  por  um  longo  avanço 
 
 
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
técnico,  desde  o  domínio  do  fogo,  à  siderurgia,  à  danças  qualitativas  no  desenvolvimento  ontoge‐
eletrônica, etc.. Entretanto, é bem provável que a  nético, pode ser encontrado no conceito de “crise 
uma  criança  seja  primeiro  permitido  usar  um  de  desenvolvimento”.  Segundo  estudiosos  de sua 
mouse  ou  teclado  de  micro‐computador  do  que  obra,  Vigotski  indicou  que  “o  processo  de  involu‐
lidar  com  um  fogão  de  cozinha  ou  uma  churras‐ ção domina sobre o de evolução durante os perí‐
queira.  A  ontogênese  do  psiquismo  humano  não  odos  etários  de  ‘crise’.  Contudo,  cada  ‘crise’  tem 
repete as mesmas etapas pelas quais a humanida‐ seu próprio ‘ponto de culminância’ (kulminatsion‐
de  passou,  justo  por  nossa  capacidade  de  intera‐ naia totchka) que é o locus no qual a síntese dialé‐
girmos  desde  crianças  com  um  mundo  cultural  já  tica  se  completa”  (VALSINER  e  VAN  DER  VEER 
constituído  –  com  instrumentos,  técnicas  e  siste‐ 1991, p. 9). Além disso, “os pontos exatos de início 
mas  de  linguagem  que  jamais  descobriríamos  ou  e fim das crises não podem ser noticiados de mo‐
criaríamos  sozinhos  numa  só  geração,  dos  quais  do  exato,  mas  os  períodos  durante  os  quais  as 
podemos nos apropriar no tempo de apenas uma  transformações  atuais  das  estruturas  psicológicas 
vida humana, com ajuda de outras pessoas já inse‐ têm  lugar  podem  ser  definidos  por  causa  de  sua 
ridas  na  cultura,  e  das  práticas  sociais  nas  quais  aparência  desorganizada  e  natureza  caótica.  Seis 
ela se organiza. O tema da ontogênese está articu‐ períodos  de  crise  no  desenvolvimento  da  criança 
lado ao da periodização do desenvolvimento.  foram  sublinhados  por  Vigotski:  aquele  da  idade 
  dos  recém‐nascidos,  o  primeiro,  o  terceiro,  o  sé‐
Muito se discutiu sobre Vigotski conceber ou não  timo, o décimo terceiro, e o décimo sétimo anos. 
o desenvolvimento  em  termos de “fases”, por tal  É  durante  estes  períodos  que  a  emergência  de 
conceito em geral ser muito ligado à idéia bastan‐ níveis  mais  elevados  de  organização  psicológica 
te  criticada  de  uma  “universalidade”,  ou  caráter  têm  lugar”  (VALSINER  e  VAN  DER  VEER,  1991,  p. 
“trans‐cultural”,  das  mesmas  fases,  cuja  explica‐ 8).  
ção remeteria, via de regra, à determinação bioló‐  
gica  no  sentido  restrito  do  termo.  É  certo  que  Tais  pontos  de  “culminância”  podem  ser  vistos 
Vigotski  não  concebe  fases  do  mesmo  modo  que  como pontos de “mudança de rumo” e não como 
Piaget  ou  Freud,  contudo  também  é  certo  que  um  ápice  que  atingido  estabeleceria  pleno  equilí‐
assume  a  existência  de  distinções  qualitativas  brio,  total  ausência  de  tensão,  suspendendo  o 
entre  os  diferentes  momentos  de  vida  do  indiví‐ drama  da  existência  humana.  Justamente  pela 
duo. Vigotski não apresenta termos como “perío‐ visão de alternância nas relações de predominân‐
do  sensório‐motor,  pré‐operatório,  operatório  cia  entre  as  linhas  e  fatores  de  desenvolvimento,  
concreto e operatório formal” (Piaget), nem como  e não um avanço de simples superação progressi‐
“fase  oral,  anal,  fálica,  período  de  latência  e  fase  va  linear,  cabem  ainda  algumas  considerações 
genital” (Freud). Em geral nota‐se que ele fala em  com  relação  à  “ontogênese”.  Leitores  contempo‐
termos mais prosaicos como “crianças pequenas”,  râneos dos conceitos de Vigotski sobre este domí‐
“crianças  pré‐escolares”,  “crianças  escolares”,  nio  genético  ressaltam  não  haver  “modelo  ideal” 
“adolescentes”,  “adultos”.  Mas  tais  termos  não  de  desenvolvimento  a  ser  atingido  por  todas  as 
ganham, digamos um estatuto de rótulo fixo para  pessoas.  Tampouco  a  criança  é  vista  como  “ape‐
cada  idade,  e  cada  idade  não  deixa  de  ser  com‐ nas  alguém  que  ainda  não  atingiu  esse  modelo”. 
preendida em função das relações sociais que lhe  Cada momento de nossas vidas, singular no tempo 
são predominantes e com as quais estão articula‐ e espaço, tem seu próprio valor, seu modo de ser 
das  as  principais  mudanças  no  desenvolvimento.  e significar, suas motivações e necessidades. Con‐
Como  as  relações  afetivas  com  os  pais  para  as  tudo,  também  vale  lembrar  que  Vigotski  estava 
crianças  pequenas,  a  brincadeira  para  as  pré‐ ocupado em pensar uma educação, uma interven‐
escolares,  a  escolarização  para  as  escolares,  a  ção social sobre o desenvolvimento que contribu‐
eleição de um projeto de vida para os adolescen‐ ísse  para  a  conquista  e  manutenção  de  uma  vida 
tes,  a  atividade  trabalho  para  os  adultos,  por  e‐ tão  saudável  e  autônoma  quanto  possível.  Por 
xemplo.  De  qualquer  maneira,  cabe  lembrar  o  já  certo,  se  não  há  “modelo  ideal”  de  desenvolvi‐
dito  anteriormente,  quanto  ao  ser  humano  ser  mento,  “etapa  final”  preconcebida  a  ser  necessa‐
componente  das  próprias  relações  sociais  que  o  riamente atingida, também não é qualquer moda‐
impulsionam  para  novos  patamares  de  desenvol‐ lidade  de  relação  social  que  se  incentiva,  como 
vimento. Além disso, um delimitador para as mu‐ aquelas mais coercitivas e limitantes que a injusti‐
 
 
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ça  social,  a  intolerância  e  o  abuso  de  poder  im‐ “instantâneo”,  pois  gênese  envolve  duração,  pro‐
põem a muitas pessoas, inclusive às que têm me‐ dução e não “criação do nada”. Mas subentende‐
nos  força  física  para  se  defender.  Ter  clareza  de  se que inscreva‐se num tempo relativamente bre‐
que  o  ser  humano  sempre  se  desenvolverá  de  ve,  articulado  com  processos  concomitantes.  Co‐
algum  modo,  atribuirá  sentidos  às  coisas,  mesmo  mo  nos  domínios  citados  antes,  o  foco  principal 
que  sofra  severas  adversidades,  não  é  o  mesmo  não é a culminância, mas o próprio processo. Con‐
que  assumir  um  relativismo  de  que  todo  e  qual‐ tudo,  na  ontogênese  as  crises  de  idades  podem 
quer modo de as pessoas conviverem com as ou‐ dar talvez mais visibilidade sobre o curso geral do 
tras seja igualmente desejável e aceitável do pon‐ desenvolvimento.  
to de vista de nossos valores éticos e nossa visão   
de mundo.  A  investigação  dos  diferentes  momentos  de  um 
  processo  microgenético  parece  mais  exeqüível  se 
Por fim, o termo microgênese refere‐se à história  notamos  que  a  ontogênese  é  um  processo  que 
do desenvolvimento de processos psíquicos parti‐ dura  o  tempo  de  toda  uma  vida  e  por  vezes  só  a 
culares de dada pessoa junto a outras num inter‐ vislumbramos retrospectivamente. Por outro lado, 
valo  de  tempo  relativamente  curto.  Por  exemplo,  a microgênese, por sua dinâmica e simultaneidade 
o aprendizado de regras necessárias para solucio‐ de  diferentes  aspectos  inter‐funcionais  em  jogo, 
nar um problema lógico‐matemático novo, a com‐ também coloca dificuldades se pretendemos noti‐
preensão  e  uso  de  táticas  até  então  desconheci‐ ciar  seu  exato  surgimento,  seus  diferentes  e  des‐
das para se participar de um jogo de estratégia,  o  contínuos  momentos  constitutivos  (avanços,  re‐
ato de emocionarmo‐nos com a leitura de um livro  trocessos,  mudanças)  ou  sua  exata  “conclusão”, 
ou uma peça de teatro, podem envolver processos  ponto  de  culminância  ou  “mudança  de  rumo”. 
microgenéticos.  Pois  funções  psíquicas  estão  em  Como a vida é ininterrupta e as conquistas e per‐
jogo  na  aprendizagem  de  regras  ou  procedimen‐ das  anteriores  estão  sempre  envolvidas  no  modo 
tos  assim  como  na  fruição  da  obra  de  arte.  Diga‐ de  funcionamento  atual,  nem  sempre  será  possí‐
mos, ainda, que atos de “tomada de consciência”  vel  discernir  claramente  tal  gênese.  Ainda  assim, 
com  relação  a  um  conceito  relevante  para  nossa  os  processos  microgenéticos  emergem  como  im‐
atuação profissional, a direitos nossos como cida‐ portante objeto de pesquisa e talvez também foco 
dãos  ou  ainda  à  concepção  quanto  aos  nossos  de atuação profissional. Estudiosos vêm desenvol‐
cuidados com a saúde, também podem ser vistos  vendo  a  chamada  “análise  microgenética”  como 
como  “ponto  de  culminância”  de  processos  mi‐ aporte  metodológico  rico  em  possibilidades.  Vol‐
crogenéticos.  Trata‐se,  por  assim  dizer,  da  onto‐ taremos  a  esse  ponto  em  breve.    Por  ora,  estes 
genênese “em ato”, realizada no tempo presente,  são  os  princípios  teóricos  básicos  em  psicologia 
e “em potência”, abrindo caminhos para a aquisi‐ geral  de  orientação  histórico‐cultural  que  nos 
ção  do  novo,  num  futuro  próximo 17 .  Não  é  algo  coube destacar. Em seguida trataremos de refletir 
sobre  sua  ligação  bem  como  a  dos  princípios  éti‐
cos com a reflexão sobre a atuação do psicólogo. 
17
 
 O avanço do desenvolvimento humano em termos ontoge‐
 
néticos e microgenéticos pode ser conceituado, em Vigotski, 
como  relativo  à  chamada  “zona  blijaishiego  razvitia”.  Termo   
que literalmente pode ser traduzido como “A zona do desen‐  
volvimento mais próximo”, mas que tem ganhado diferentes 
traduções  para  fins  editoriais,  como:  “zona  de  desenvolvi‐
mento  proximal”  (da  trad.  americana);  “zona  de  desenvolvi‐
mento  próximo”  (da  trad.  espanhola);  “zona  de  desenvolvi‐
mento  imediato”  (da  trad.  brasileira  de  Paulo  Bezerra);  e  tempo,  mas  aquela  com  a  qual  se  relacionam  as  principais 
“zona  de  desenvolvimento  eminente”  (da  trad.  brasileira  de  mudanças  no  desenvolvimento.  O  jogo  de  papéis  na  idade 
Zóia Prestes). Em Vigotski, a ZBR indica a “distância” entre o  pré‐escolar, e a instrução na idade escolar, são exemplos de 
desenvolvimento  “real”  (posto  em  jogo  pela  pessoa  em  sua  atividades principais. Pode‐se relacionar a ZBR com tais ativi‐
atividade individual) e o desenvolvimento “potencial” (emer‐ dades: o jogo gera ZBR (VIGOTSKI, 1933/1989), o processo de 
gente  da  atividade  partilhada  da  pessoa  com  alguém  mais  ensino‐aprendizagem  escolar  gera  ZBR  (VIGOTSKI,  1935/ 
experiente  que  lhe  proporciona  mediações  necessárias  para  1989). Ademais, as relações afetivas com a mãe para o bebê e 
extrapolar  seus  limites  individuais)  (VIGOTSKI,  1935/1989).  os  sonhos  com  um  projeto  de  vida  para  o  adolescente  tam‐
Para  Leontiev  (1989)  na  ontogênese  há  mudanças  na  “ativi‐ bém são considerados fonte de ZBR (VALSINER, com. pessoal, 
dade principal”, que não é a que ocupa necessariamente mais  jun. 1992). 
 
 
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3  Orientações  gerais  à  psicologia  aplicada  numa  “usar a sua criatividade”, certamente  não é a ati‐
abordagem histórico‐cultural.  tude mais correta. Como diz Vigotski (1930/1987), 
  a imaginação tem como sua fonte a realidade e a 
“O  princípio  da  prática  e  sua  filosofia  se  impõem  uma  experiência acumulada. Deixar tudo ao critério de 
vez  mais:  a pedra  que  foi  rejeitada pelos  construtores,  um  abstrato  “ser  criativo”,  sem  necessidade  de 
esta veio a ser a pedra angular” 18 pesquisar,  estudar,  passar  por  experiências  ante‐
 
riores, pode nos condenar a só repetir o já apren‐
— Vigotski (1927/1996, p. 346)  dido  sem  necessidade  de  ciência  alguma.  Corren‐
  do o risco de ficar‐se no senso comum e, por fim, 
O que vem por último na exposição não é o menos  propor  o  que  poderia  ser  feito  sem  que  estivés‐
importante,  e  pode  fazer‐se  a  pedra  angular  de  semos lá, sem que a psicologia como ciência fosse 
todo  nosso  trabalho,  sem  a  qual  sua  arquitetura  necessária.  Assim  nos  colocamos  diante  de  um 
se torna frágil. Cabe dizer, contudo, que na cons‐ desafio, não podemos fornecer um algoritmo, mas 
trução de um edifício teórico é preciso evitar tan‐ também não podemos nos omitir de pensar sobre 
to  excessiva  flexibilidade,  quanto  excessiva  rigi‐ a ação, discutir a ação, formular exemplos de mo‐
dez.  A  primeira,  para  não  abrirmos  mão  daquilo  dos possíveis de agir. O caminho que adotei aqui é 
sem o que nossa visão de mundo em nada se dife‐ intermediário entre a teoria e a técnica. Não pro‐
renciará  do  senso  comum  ou  da  alienação.  A  se‐ porei  para  cada  princípio  teórico  anterior  uma 
gunda, para  não nos afeiçoarmos a certas formu‐ técnica  que  o  realiza,  pois  isso  seria  demasiado 
lações dogmáticas, que tudo devem “explicar”, às  artificial, sem o contexto da atuação de cada pes‐
quais tentemos fazer a realidade se adequar para  soa.  Mas,  ao  mesmo  tempo  tentarei  traduzir  os 
não  contradizê‐las.  Não  é  para  isso  que  devem  princípios de psicologia geral em breves reflexões 
servir  as  teorias,  senão  para  permitir  compreen‐ sobre  atitudes  necessárias  ao  agir  do  psicólogo 
der  a  própria  realidade,  tanto  quanto  possível,  que  se  orienta  pela  abordagem  histórico‐cultural 
como  ela  é,  mesmo  que  não  seja  como  imaginá‐ em  psicologia,  tal  como  a  concebo  hoje,  neste 
vamos ou desejávamos que fosse – e é a isso que  momento  histórico.  Reflexões  que  o  convido  o 
chamamos de “crítica”. É um desafio colossal pen‐ leitor a fazer e refazer comigo. 
sar a dimensão prática de todo e qualquer enunci‐  
ado teórico, e nenhuma abordagem em psicologia  Façamos, então, um exercício de pensar as diretri‐
é  ainda  hoje  capaz  de  fazê‐lo  sem  deixar  alguma  zes de ação profissional do psicólogo condizentes 
lacuna  ou  forçar  a  situação.  No  entanto,  o  modo  com cada um dos princípios éticos e teóricos cita‐
possível  de  articular  os  princípios  com  a  prática  dos antes já aqui neste texto.  
não  há  de  ser  o  de  tudo  operacionalizar  previa‐
mente,  o  de  tudo  colocar  em  termos  de  técnicas 
ou  procedimentos  especificamente  desenhados 
para toda e  qualquer situação imaginável – tiran‐
do  do  profissional  a  capacidade  de  analisar  criti‐
camente  as  situações  diversas  e  formular  seus 
próprios planos de trabalho para agir com relação 
a elas. Como há muito se tem tido, nos cursos de 
psicologia, “não estamos numa profissão que para 
tudo  tenha  receitas  de  bolo”.  Ou  hoje  se  diria 
“não  temos  para  cada  relação  humana  um  algo‐
ritmo computacional”. Mas essa é apenas parte da 
verdade.  Pois  também  está  claro  que  não  dar 
qualquer  orientação  sobre  a  atuação  prática  e 
simplesmente  dizer  ao  profissional  que  ele  deve 

18
 Vigotski está deve estar se referindo ao Salmo 117, ver. 22 
(para os judeus salmo 118). O mesmo verso que é retomado 
numa  fala  de  Jesus,  narrada  no  Evangelho  de  Mateus,  cap. 
21, ver. 42. 
 
 
GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009  30 de 40
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
PRÍNCÍPIOS  EM SUA DIMENSÃO PRÁTICA 
I ‐ Princípios éticos  O psicólogo pode trabalhar: 
1 ‐ Critérios axiológicos:  * Orientando seu método por suas metas 
 
a) O valor da superação     * Em função de metas que vão além dos limites individuais atuais das pessoas e 
dos  seus  próprios  –  participando  da  produção  de  “zonas  de  desenvolvimento 
proximal” 19 . 
 
b) O valor da cooperação  * Propondo modalidades de atividades nas quais as potencialidades de uns con‐
tribuam para a superação dos limites dos outros e as dos outros para a superação 
dos de cada um.  
 
c) O valor da emancipação  * Sugerindo, proporcionando e participando de atividades que permitam às pes‐
soas ampliar os limites de sua autonomia, sua capacidade de compor, de superar 
criticamente  superstições,  de  propor  alternativas  e  engajar‐se  ativamente  em 
ações para concretizá‐las.  
 
2 ‐ Critério ontológico pa‐ * Dimensionando suas metas no horizonte dos limites e possibilida‐
ra a ética:  des históricos 
 
d) A historicidade dos valores  * Avaliando criticamente a possibilidade de agir em conformidade com seus prin‐
cípios e a tensão que isso envolve. 
* Não utilizando meios contrários aos fins a que se propõe. 
* Sabendo que fins sem meios que os realizem tornam‐se fins inócuos. 
*  Compreendendo  as  contradições  presentes  no  espaço  de  intervenção  entre  o 
que joga a favor dos potenciais humanos e o que os restringe. 
*  Compreendendo  que  tanto  propor  o  inalcançável,  quanto  apenas  repetir  o  já 
alcançado são ações que geram frustração. 
*  Propondo,  portanto,  desafios  condizentes  com  as  possibilidades  concretas  de 
transformação da situação social, no momento histórico dado. 
* Lembrando, por fim, as palavras de Paulo Freire de que “devemos fazer o que é 
possível fazer hoje para que aquilo que não é possível fazer hoje seja feito ama‐
nhã”... 
 
3 ‐ Critério metodológico  * Agindo como um componente constitutivo da própria realidade na 
para a ética  qual se está intervindo. 
 
e) A intervenção como constru‐ *  Encaminhando  sua  própria  atuação  profissional  como  processo  de  mediação 
ção  que participa da construção das situações sociais às quais que se propõe a enten‐
der  e  sobre  as  quais  pretende  agir  –  situações  não  existentes  até  a  efetivação 
dessa mesma mediação. 
*  Percebendo,  portanto,  sua  própria  ação  e  consciência  como  processos  que  se 
transformam juntamente com a realidade social sobre a qual se intervém, fazen‐
do parte dela também, tendo assim a transformação de si mesmo como um obje‐
tivo profissional e ético. 
 
 
 
 
 
 

19
 Conferir nota “17”, p. 29. 
 
 
GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009  31 de 40
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
PRÍNCÍPIOS  EM SUA DIMENSÃO PRÁTICA 
II ‐ Princípios de psicolo‐ O psicólogo pode trabalhar: 
gia geral 
1 ‐ Princípio da unidade  *  Entendendo  mente  e  corpo  como  aspectos  da  mesma  realidade  complexa  e 
psicofísica  contraditória, que é a existência humana concreta. 
* Dialogando com outros saberes que permitam compreender melhor essa totali‐
  dade e suas condições de possibilidade. 
 
2 ‐ Princípio da determi‐ * Sendo psicólogo do homem concreto, que em sua existência social se faz cons‐
nação da consciência pela  ciente,  e  não  apenas  “psicólogo  da  consciência  ou  do  inconsciente”  de  um  ho‐
mem, nem “psicólogo das funções mentais” de um homem. 
existência social  * Atuando na identificação e compreensão da multiplicidade de fatores que com‐
  põem  a  vida  social  da  qual  a  consciência  humana  emerge  e  na  qual  ela  cumpre 
função. 
* Entendendo o próprio ser humano como componente de sua existência social, 
não sendo ela externa a ele. 
* Situando seu foco de ação com as pessoas na articulação dos diferentes modos 
de existir do social frente aos quais/no interior dos quais suas vivências se consti‐
tuem (classes, instituições, grupos, intersubjetividade e indivíduo).  
*  Elegendo  as  táticas  possíveis  em  cada  plano  da  existência  social,  assim  como 
priorizando os planos em que transformações mais eficazes sejam exeqüíveis no 
momento histórico dado em função das condições disponíveis. {por exemplo: tra‐
balhar com indivíduos não é deixar de trabalhar com o ser social, etc., nem sem‐
pre se pode intervir com o mesmo peso com relação a todos os planos de articu‐
lação da existência social} 
* Identificando, registrando e buscando compreender a dinâmica geral do drama 
de relações e papéis sociais próprios dos diferentes espaços intersubjetivos, gru‐
pais,  institucionais,  de  classe  e  ainda  de  gênero,  de  etnia  e  de  geração.  Drama 
esse que, com suas regras próprias de prescrição e performance de papéis sociais, 
implica redes de ações partilhadas, complementares e/ou antagônicas, que cons‐
tituem a própria produção situada, contextualizada, de mediações simbólicas nas 
quais cada pessoa, como ator social, se constitui – se limita, se delimita e se po‐
tencializa. 
 
3 ‐ Princípio da consciên‐ * Privilegiando ações que viabilizem a potencialização das funções psíquicas pro‐
cia como psiquismo pro‐ priamente  humanas,  ou  seja,  aquelas  nas  quais  o  homem  se  realiza  como  tal  e 
que  são  a  um  só  tempo:  (a)  voluntárias  –  que  exigem  tomada  de  decisão;  (b) 
priamente humano   conscientes – que exigem pensar sobre o pensamento, sobre a emoção e a ação; 
  (c)  mediadas  –  que  exigem  recorrer  à  linguagem;  e  (d)  de  origem  social  –  que 
implicam modos de participação de um outro e de ver a si mesmo como um ou‐
tro. 
 
a) Consciência como conheci‐ * Sendo um organizador e participante de situações em que as pessoas comuni‐
mento partilhado   cando‐se com demais (sobre o mundo, sobre os outros, sobre si mesmas) possam 
  ir reorganizando seu modo de agir e também sua própria consciência do real e de 
si. 
*  Possibilitando  ações  em  que  a  linguagem  partilhada  entre  as  pessoas  trate  de 
situações  relevantes,  do  ponto  de  vista  vital,  para  as  pessoas  envolvidas,  desco‐
lando‐se  das  formas  mais  automatizadas  e  imediatas  de  entendimento  e  senti‐
mento para a realidade, desarticulando‐as e permitindo o surgimento de novas e 
mais potentes formações de sentido. 
 
b) Consciência como vivência  * Produzindo e dando visibilidade a situações em que a comunicação social permi‐
de vivências  ta um ato de “espelhar” a ação, a fala e a emoção de cada um, proporcionando 
  uma  relação  de  suspensão,  estranhamento  e  distanciamento  necessários  para  a 
tomada de consciência da situação vivida junto com outros e junto a si mesmo. 

 
 
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c) Consciência como reflexo e  * Atentando para que na sua própria consciência e na daqueles com quem atua, 
refração da realidade  tanto se “reflete” uma imagem do mundo real (já que toda consciência é “consci‐
  ência de algo”), quanto se “refrata” essa mesma imagem (já que toda consciência 
é  “consciência  de  alguém”,  ou  seja,  permeada  pelas  necessidades  e  orientações 
desse alguém). 
*  Percebendo  e  lidando  com  a  contradição  dialética  de  a  consciência  tanto  ser 
poder de ação e compreensão quanto limite para agir e compreender – de forma 
a não tratá‐la nem como impotente nem como onipotente no plano da transfor‐
mação da realidade. 
 
d) Consciência como processo  * Considerando que a compreensão que as pessoas têm da realidade não é ape‐
cognitivo e afetivo  nas intelectual, mas nuançada por afetos, os quais compõem a realidade concreta 
  do  homem  consciente.  Que  a  compõem  não  só  como  algo  que  pode  atrapalhar 
sua visão mais crítica da realidade, mas também como algo que permite que tal 
visão se construa – se houvesse uma consciência totalmente desprovida de afeto, 
ela não teria como lidar de modo realista com o mundo. 
*  Não  operando  no  sentido  da  simples  contenção  dos  processos  afetivos  como 
garantia da emergência de ações eficazes e adaptadas, mas no da potencialização 
das emoções propriamente humanas necessárias para a ampliação da capacidade 
das pessoas de comporem com o mundo, com mais bem estar e alegria. 
*  Com  atitude  de  empatia  em  relação  às  emoções  do  outro,  no  sentido  de  que 
mesmo as causas das emoções sendo imaginárias, as próprias emoções continua‐
rão sendo reais e merecem consideração e respeito. 
* Com atitude também de distanciamento com relação às emoções do outro, no 
sentido de que, mesmo elas sendo reais, isso não quer dizer que se tenha claro o 
que as está motivando. Além do que, sermos totalmente impregnados pelas emo‐
ções do outro não sempre os ajudará a lidar melhor com elas. 
 
e) Consciência e o problema  *  Tendo  conhecimento  da  dialética  entre  as  funções  da  consciência  e  sua  nega‐
dos processos não conscientes  ção, não só pelo fato de que para saber de algo não é possível saber de tudo a um 
  só  tempo,  como  também  pelo  fato  de  que,  como  diz  Vigotski  “mesmo  sabendo 
exatamente  como  agir,  podemos  agir  de  modo  diferente”  –  pois  nem  sempre 
conhecemos  as  motivações  das  nossas  ações,  sentimentos  e  pensamentos  ou 
dominamos a disposição deles/para eles em nós.  
* Proporcionando momentos de simbolização, comunicação e ação partilhada que 
permitam tomada de consciência quanto aos motivos até então não evidentes e 
amparando,  na  relação  com  o  outro,  as  dimensões  afetiva,  cognitiva  e  volitiva 
constitutivas desse ato simbólico. 
*  Desmistificando  tanto  para  si  quanto  para  aqueles  com  quem  se  trabalha  (na 
medida em que se tornem crenças despotencializadoras do desenvolvimento da 
autonomia  humana)  as  noções  animistas  dos  processos  inconscientes  (tomados 
como  forças  com  vida  própria)  e  valorizando  o  homem  como  a  unidade  vida  de 
suas funções mentais conscientes ou não. 
 
4 ‐ Princípio da compre‐ * Tomando diante das realidades sociais e pessoais com as quais se vai trabalhar 
ensão da consciência me‐ uma atitude de investigação e compreensão crítica sobre sua origem e funciona‐
mento,  sob  o  foco  de  fenômenos  particulares  (unidades)  que  as  constituam  e 
diante unidades  possibilitem  uma  visão  integrada  e  sistêmica  do  psiquismo  humano  como  um 
  todo. 
 
a) Consciência e relações   *  Buscando  formas  de  compreender  e  estar  sensível  às  vivências  (experiências 
Personalidade Ù Meio   vitais dinâmicas e singulares) das pessoas, as quais no curso e na situação social 
= a vivência como unidade...  de seu desenvolvimento proporcionam uma síntese dialética dos traços caracte‐
  rísticos  de  formação  da  sua  personalidade  com  as  influências  de  todo  o  meio 
social, do qual a própria pessoa também faz parte. 
* Estabelecendo oportunidades e recursos de simbolização pelos quais tais vivên‐
cias sejam partilháveis e presentes ao diálogo das pessoas com os outros e com 
 
 
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
elas próprias. 
* Procurando não destituir as vivências de seu caráter de acontecimento, isto é de 
processo único, incomparável, irrepetível, no qual o homem se engaja literalmen‐
te  “em  pessoa”,  como  personalidade  social  concreta,  numa  condição  em  que 
nenhum outro pode estar em seu lugar. 
* Procurando, ao mesmo tempo, não fechar as vivências no campo do insondável, 
incompreensível e impossível de ser partilhado ou recriado. 
* Buscando para si, como profissional responsável, e para o outro, como interlo‐
cutor essencial, recursos para visualizar as conexões entre experiência acumulada 
histórica, social, e pessoal (auto‐biográfica), com as vivências no “aqui e agora” e 
suas marcas na memória de cada um, tanto quanto contribuindo para a reorgani‐
zação do caráter dessas conexões na direção de mais saúde e autonomia.  
 
b) Consciência e relações   *  Tomando  uma  atitude  de  dedicação  sistemática  à  compreensão  dos  múltiplos 
Pensamento Ù Linguagem   significados  da  palavra  do  outro,  como  síntese  dialética  da  linha  do  desenvolvi‐
= o significado da palavra como  mento  da  fala  com  a  do  pensamento,  tomando  tal  síntese  em  suas  diferentes 
unidade...  variações funcionais e etapas de desenvolvimento, como mediação por excelência 
  para  a  gênese  da  consciência,  tanto  quanto  como  suporte  à  articulação  inter‐
semiótica com outras formas de significação verbais e não verbais. 
* Mantendo atitude de respeito ao universo vocabular, sintático e semântico do 
outro, aos gêneros discursivos próprios das diferentes situações e grupos sociais 
com os quais está habituado, sem negar‐se a contribuir sempre que possível para 
a ampliação desse universo, reconhecendo que ao fazê‐lo também amplia o seu o 
seu próprio. 
*  Procurando,  assim,  compreender  os  significados  de  suas  palavras  tanto  como 
múltiplos  e  inesgotáveis,  quanto  como  passíveis  de  designações  objetivas  tangí‐
veis,  desde  que  articuladas  às  condições  de  produção  das  trocas  dialógicas  em 
que tais palavras se inserem. 
* Compreendendo que o significado mais objetivo das palavras não esgota toda a 
dinâmica da produção de sentidos que implica ainda o todo de sua visão de mun‐
do e sua personalidade. 
* Pautando‐se na orientação de Vigotski de que para compreender o significado 
das palavras é preciso ainda buscar compreender o pensamento e/ou o seu sub‐
texto, e que para compreender o pensamento cabe ainda buscar saber das moti‐
vações e da esfera afetivo‐volitiva de quem pronuncia tais palavras. 
* Criando situações de comunicação social e ação partilhada contextualizada, nas 
quais indícios desses diferentes modos de funcionamento dos processos de signi‐
ficação possam ser colhidos, interpretados e devolvidos ao fluxo do diálogo com 
as pessoas envolvidas. 
 
5 ‐ Princípio da compre‐ * Orientando sua prática com uma permanente atitude investigativa com relação 
ensão do psiquismo hu‐ ao funcionamento, a estrutura e a origem mais próxima e mais distante das vivên‐
cias e processos de significação que se articulam e/ou se chocam na constituição 
mano mediante sua gêne‐ social da personalidade daqueles com quem se está trabalhando. 
se histórica (origem e de‐  
senvolvimento) 
 
a) Compreender os processos  * Entendendo que para compreender o desenvolvimento de alguém se passa ao 
psíquicos pela sua gênese:   mesmo tempo a participar dele, já que saber do desenvolvimento não se restringe 
  a registrar uma anamnese, assim como a história da humanidade não se restringe 
ao nosso passado. 
 
i. Não estudar objetos fixos,  * Buscando demover de si e daqueles com quem se trabalha a pré‐concepção de 
mas processos  que uma doença, um sintoma, uma capacidade, uma habilidade, um preconceito, 
  um  sentimento,  um  conflito,  uma  lei,  uma  determinação institucional,  um  gesto 
ou um sentido, a visão de mundo de alguém ou os traços de sua personalidade, 
sua  consciência,  sua  inteligência  e  seus  sistemas  afetivos,  sejam  algum  tipo  de 
 
 
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objeto  estático,  algo  pronto  e  acabado,  que  sempre  esteve  ali  daquele  modo  e 
assim sempre haverá de estar. 
*  Portanto,  não  vendo  esses  processos  como  “coisas”,  como  “entidades”,  como 
algo  que  tão  somente  se  classifica,  se  mede  ou  se  enquadra,  se  tria,  se  usa,  se 
descarta,  se  conserta  ou  reforma,  mas  como  movimentos  produzidos  por  seres 
humanos vivos, concretos. 
*  Agindo  com  relação  a  tais  processos  entendendo‐os  como  tais,  portanto  com 
cautela  no  estabelecimento  de  juízos,  e  com  compromisso  para  com  a  própria 
constituição social dos mesmos – como sob a orientação de Aristóteles de que “só 
em movimento é que um corpo mostra o que é”. 
*  Produzindo  técnicas  sistemáticas  para  obtenção  de  pistas  que  permitam  com‐
preender e atuar com relação ao psiquismo humano na sua processualidade, por 
mais focais que precisem ser as intervenções. 
 
ii. Não ficar nas aparências, mas  *  Estando  atento  para  o  fato  de  que  dois  processos  aparentemente  idênticos 
buscar a essência  podem ter origens bem diferentes, e de que processos com origens semelhantes 
  podem não dar a vê‐lo, por na aparência mostrarem‐se diferentes. {válido para os 
mesmos exemplos dados logo acima, uma doença, um sintoma, uma capacidade, 
etc.} 
 
iii. Olhar o já cristalizado pelas  * Estando atento para o fato de que algo hoje já tido como automático, natural, 
marcas de sua origem viva.  cristalizado,  simples  de  fazer,  ou  simples  de  dizer  que  não  pode  ser  feito,  teve 
  também  um  processo  histórico  de  constituição  que  o  trouxe  até  esse  estado, 
processo  esse  cujas  marcas  de  vida  anterior  podem  estar  cristalizados  no  que 
parece sem vida, como ocorre no caso de um “fóssil” (“comportamentos fossiliza‐
dos, diz Vigotski”). 
 
iv. Lançar mão da análise gené‐ * Conhecendo a metodologia de pesquisa da investigação da mente humana pro‐
tico‐causal  posta  pela  abordagem,  para  lançar  mão  de  seus  recursos  como  aporte  aos  pro‐
  cessos  diagnósticos  da  realidade  e  de  compreensão  da  realidade  durante  o  pró‐
prio trabalho de intervenção, com isso subsidiando avaliações futuras e reorienta‐
ção da prática. 
*  Permitindo  situações  de  interação  nas  quais  se  produzam,  em  diferentes  mo‐
mentos no tempo, processos nos quais novos recursos simbólicos sejam introdu‐
zidos  para  dar  conta  de  uma  tarefa  significativa  (num  processo  educativo  para 
prevenção de doenças, por exemplo – a apropriação dos conceitos não se dá de 
modo instantâneo), tendo assim dimensão da origem de novas formações ampa‐
radas pela utilização/apropriação desses recursos. 
*  Buscando,  portanto,  compreender  as  causas  dos  processos  por  intermédio  do 
acompanhamento sistemático de sua origem (gênese) tal como ela se dá em sua 
própria intervenção sobre ela. 
 
b) Compreender a articulação  * Entendendo que em teoria histórico‐cultural quando se fala de “história” consi‐
de diferentes planos genéticos  dera‐se  tanto  o  seu  conceito  mais  geral  de  processo  dialético  de  constituição 
ou históricos  processual do real, quanto de história no sentido estrito ou história da humanida‐
  de. Procurando ampliar os princípios anteriores para os diferentes planos e domí‐
nios do conceito de história. 
 
i. Filogênese ou história do  * Tomando conhecimento do fato de que nossa espécie tem tanto limites quanto 
desenvolvimento da espécie  possibilidades,  que  a  evolução  é  um  processo  que  continua  em  curso,  mas  que 
  por hora ainda somos “Homo sapiens”. O que significa entender que temos tam‐
bém determinações biológicas e não somos onipotentes com relação a elas, tanto 
quanto entender que a própria espécie é provida de aparatos biológicos, em ge‐
ral,  e  neuro‐funcionais,  em  particular,  que  permitem  e  solicitam  a  mediação  do 
outro e da linguagem para seu desenvolvimento efetivo e potencial. 
 
 
 
 
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
ii. Sociogênese ou história do  * Procurando sistematicamente compreender a história da sociedade na qual se 
desenvolvimento dos diferentes  está inserido assim como o estão as pessoas com quem se vai trabalhar – no sen‐
grupos sociais  tido geral das lutas que a compõem, tanto quanto no sentido específico das narra‐
  tivas sobre a cultura dos grupos e setores sociais específicos dentro da configura‐
ção societária mais ampla. 
* Agindo com relação às pessoas como sujeitos do processo de constituição cole‐
tiva de sua história tanto quanto como constituídos por relações que vão além da 
interferência de suas vontades individuais. 
 
iii. Ontogênese ou história do  * Assumindo que compreender sobre desenvolvimento ontogenético e seus perí‐
desenvolvimento do ser huma‐ odos não é só para quem “lida com crianças”, mas que todo ser humano para ser 
no singular – envolve a questão  tal como é hoje e para poder ser algo distinto amanhã, só o pode fazer com base 
da periodização.  nas conquistas e incompletude de seu desenvolvimento anterior. Com as sucessi‐
  vas crises que esse processo envolve (não só na adolescência, como às vezes se 
imagina, mas em toda a ontogênese), com o modo particular pelo qual tais crises 
são vividas de acordo com a relação que cada um estabelece com o contexto no 
qual se desenvolve e realiza seu constante “tornar‐se humano”. 
* Sendo um agente que participa do processo de desenvolvimento do outro, por 
intermédio  de  sua  intervenção,  cooperando  com  ele,  nas  suas  atividades  –
dirigidas a metas, dotadas de sentido e significados pertinentes à sua vivência e 
sua história,.  
* Sendo, sobretudo, um “organizador do meio social” que proporciona as media‐
ções necessárias para que o desenvolvimento se dê. Lembrando para o trabalho 
do  psicólogo  o  mesmo  que  Vigotski  fala  para  o  trabalho  do  educador,  ou  seja: 
“quem educa, não é apenas o professor, mas sim o meio social educativo”, o pro‐
fessor é só o seu organizador. Assim também quem pode promover um desenvol‐
vimento psicológico tão saudável quanto possível, não é apenas o psicólogo, é um 
“meio  social  promotor  de  relações  saudáveis”...  Ao  psicólogo  cabe  um  papel  de 
organizador desse meio social. 
 
iv. Microgênese ou história do  * Atuando como partícipe da produção, formação, constituição conjunta de pro‐
desenvolvimento de processos  cessos psíquicos particulares (como a resolução de um problema cognitivo; como 
psíquicos particulares de uma  a  transformação  catártica  de  um  dado  sistema  de  afetos;  como  a  aprendizagem 
dada pessoa ou grupo num  de um conceito novo; como uma tomada de decisão quanto a um tema de impor‐
intervalo de tempo relativa‐ tância vital; como a tomada de consciência de modos de agir prejudiciais à própria 
mente curto.  saúde;  ou  como  a  tomada  de  consciência  de  capacidades  que  até  então  não  se 
  entendia ter ou não se valorizava como aptas a promover ações eficazes sobre o 
real, sobre o outro e sobre si...). Compreendendo sua emergência relativamente 
rápida  não  como  algo  mágico  ou  mecânico,  mas  como  fruto  de uma  articulação 
com os demais domínios, ou planos, genéticos envolvidos na totalidade do desen‐
volvimento psíquico das pessoas, em sua constituição como tais. 
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   

 
 
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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 

 
Para continuar o diálogo   desafio, fazendo‐nos sentir até um tanto antiqua‐
  dos em nossas idéias e práticas, lançando‐nos um 
Foram  expostos  alguns  princípios  éticos,  outros  convite  ao  futuro.  Ao  depararmo‐nos  com  a  ne‐
em psicologia geral e feito um  breve  exercício de  cessidade  de  produzirmos  o  que  ainda  não  há,  é 
reflexão sobre a atuação de um psicólogo genera‐ emblemática a imagem do trabalho do poeta ela‐
lista  a  partir  de  tais  princípios.  Feito  isto,  só  nos  borando versos que atinjam seus leitores do modo 
cabe  relembrar  a  necessidade  de  fazermos  nossa  mais  fecundo.  Como  Carlos  Drummond:  “Eu  pre‐
própria leitura de referências clássicas disponíveis  paro  uma  canção  /  em  que  minha  mãe  se  reco‐
em psicologia histórico‐cultural, tanto quanto dos  nheça (...)” – uma linguagem na qual as pessoas se 
estudos  mais  recentes  que  procurem  assumir  al‐ vejam  como  tais,  tão  crítica  e  afetuosa  que  faça 
guns  dos  desafios  que  as  primeiras  nos  colocam.  “acordar os homens” e “adormecer as crianças”. A 
Justamente no confronto dessas linhas introdutó‐ busca  de  uma  psicologia  concreta,  reivindicada 
rias  traçadas  aqui  com  a  densidade  dos  textos  por  Politzer  em  analogia  à  arte,  é  também  a  da 
mais complexos e profundos, é que este trabalho  produção  de  um  discurso  no  qual  a  humanidade 
ganhará sentido e cumprirá sua função social pri‐ se  reconheça,  em  que  as  vozes  das  pessoas  te‐
meira:  convidar  à  leitura  de  Vigotski  e  seus  cola‐ nham  lugar  eqüipolente,  não  sejam  sobrepujadas 
boradores.  Se  retomarmos  a  citação  de  Vigotski,  e  mortificadas  pelas  categorias  teóricas.  Em  geral 
em  epígrafe  neste  texto,  nos  depararemos  com  a psicologia parece falar de muitas coisas: de pro‐
uma  constatação  talvez  paradoxal,  mas  bastante  cessos  mentais,  de  determinações  inconscientes, 
instigante,  desafiadora.  Ele  nos  diz  que  “a  nova  de  contingências  de  reforço,  mas  poucas  vezes 
psicologia”,  aquela  que  tem  na  dialética  um  prin‐ fala  de  “pessoas”,  tampouco  “com”  elas.  É  uma 
cípio  geral  organizador,  “se  parecerá  tão  pouco  crítica que não deve ser feita só apontando erros 
com  a  atual,  como,  segundo  as  palavras  de  Espi‐ alheios,  mas,  sobretudo,  como  “autocrítica”.  Não 
nosa,  a  constelação  do  Cão  se  parece  com  o  ca‐ somos  ainda  a  “constelação”  pretendida,  somos 
chorro,  animal  ladrador”  (VIGOTSKI,  1927/1991).  mais como o “animal ladrador”. Nossa psicologia, 
Como vimos, ele  mesmo reconhece  que sua “his‐ certas vezes, é também um saber que “ladra, mas 
tória  do  desenvolvimento  cultural  é  a  elaboração  não  morde”,  que  promete,  mas  não  cumpre.  Co‐
abstrata da psicologia concreta.” (VIGOTSKI, 1929/  mo  no  discurso  já  vulgarizado  do  “compromisso 
2000, p. 35). E assim a constituição de uma psico‐ social”,  que  não  sempre  orienta  práticas  correla‐
logia  concreta  de  orientação  histórico‐cultural,  tas.  Ou  se  alia  a  ideologias  como  a  da  “morte  do 
sobre  a  base  de  uma  epistemologia  materialista  homem”  e/ou  do  desprezo  para  com  qualquer 
dialética,  não  é  pressuposto  para  o  avanço  da  consistência  epistemológica,  satisfazendo‐se  em 
história  da  psicologia,  mas  objeto  de  busca,  algo  mudar de referências ao sabor da conjuntura e/ou 
por ser criado ao longo dessa mesma história. Por  com reduzir sua função social a “produzir efeitos”. 
certo, os psicólogos do século XXI têm, cada qual,  Tais atitudes apontam talvez para uma “morte da 
suas  próprias  leituras  dos  clássicos,  seus  próprios  psicologia”,  tida  como  sem  objeto  nem  método 
projetos,  necessidades  e  aspirações.  Cedendo  ou  próprios, sustentada como instituição só por inte‐
não às conveniências da ideologia política neolibe‐ resses  corporativos  de  agências  formadoras  e 
ral  e/ou  da  dita  “pós‐modernidade”,  expressão  entidades  de  classe.  Contraposta  a  tal  tendência 
cultural importante da primeira, estão todos ocu‐ hegemônica está a psicologia histórico‐cultural de 
pados  de  constituir  seus  próprios  espaços  de  in‐ Vigotski  com  seus  valores  éticos,  seus  princípios 
terlocução,  mesmo  para  resistir  àquelas  forças  de  psicologia  geral  e  sua  vinculação  com  a  cons‐
hegemônicas.   trução  de  uma  psicologia  aplicada  coerente  com 
  eles. Convidar o leitor ao diálogo sobre esta busca, 
Trata‐se de um mundo complexo o nosso, povoa‐ e a assumir um papel social ativo dentro dela, de 
do  de  composições  diversas  e  formas  de  luta  e  modo crítico e criativo, foi o nosso objetivo aqui. 
resistência  nem  sempre  convencionais.  Não  se   
pode, portanto, tomar Vigotski ou qualquer autor  Achilles Delari Junior 
como  um  oráculo,  fonte  explicações  absolutas  e  Umuarama, 17 de fevereiro de 2009. 
 
verdades definitivas, que se segue como dogmas.  Última revisão em 07 de junho de 2009. 
Cabe  lê‐lo  em  sua  radicalidade,  naquilo  que  suas  Passará por revisões posteriores. 
palavras nos vêm interpelar ainda hoje em tom de  Produção voluntária e independente.  

 
 
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