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SEMÂNTICA1 que este se confunda, em es- certeza, o sujeito, em essência, pois de Descartes, sujeito, cer-
Luiz Roberto Monzani2*3 sência, com a subjetividade, é a consciência imediata de teza e consciência formaram
maneira esta que ira persistir suas operações: “Mas o que é um nó indissociável, constituí-
até os tempos contemporâneos. que eu sou? Uma coisa que do o que podemos denominar
Basta lembrar a fenomenolo- pensa. O que é uma coisa que axioma da paridade da consci-
gia. O pensamento cartesiano pensa? É uma coisa que dúvida, ência e do sujeito, i.é, de que o
(pedimos, de antemão, descul- que concebe, que afirma, que campo da consciência é coex-
pas pelas simplificações e nega, que quer, que não quer, tensivo ao do sujeito, fazendo
distorções que seremos obriga- que imagina também e que deste algo sem fissuras, sem
dos a fazer) inaugura-se pela sente”. Assim Descartes confe- lacunas ou qualquer clivagem.
recusa radical seja do saber re ao pensamento uma extensão Axioma que, pesem suas diver-
recebido pela tradição e pelo idêntica ao conjunto dos atos gências quanto à origem do
senso comum, seja por aquele realizados pelo espírito e, como conhecimento, os empiristas
que nos é oferecido imediata- os conteúdos representativos partilham plenamente, como
mente pelos sentidos, que no desses atos foram colocados em deixa claro J. Locke no Essai...
enganam frequentemente. questão pela dúvida, só esses (1,§5). Aqui, como antes, trata-
Dado isso, o caminho já está atos definem o sujeito enquanto se de uma querela de família.
predeterminado: colocar entre sujeito. Nesse processo, portan- Se o axioma da pari-
parêntesis todo saber recebido to, assistimos a identificação do dade dominou a modernidade
Sigmund Freud (1856 – 1939) só pode levar a uma atitude de sujeito com o pensamento e a desde seus inícios nem por isso
suspensão, radicalizada através transparência desses atos atra- deixou de suscitar problemas
da dúvida metódica, cuja inten- vés da consciência. É essa que se foram avolumando com
Q ual foi, no fim das contas
a revolução operada por ção é examinar se algo a ela transparência que confere aos o decorrer do tempo e que
Freud na concepção de sujeito e resiste. A técnica e as etapas atos de maneira intrínseca que acabaram por levar à revolução
qual seu alcance? Esclarecemos dessa operação são complexas, advém, então de fato de que freudiana. Tomemos, dentro
melhor o sentido de nossa ques- mas podemos resumir grossei- entre o ato e a certeza a distân- dos limites deste contexto,
tão. Numa perspectiva ampla, ramente o seu resultado da cia é igual a zero. alguns elementos sumários. Já
do ponto de vista histórico, seguinte maneira: por mais que na segunda metade do século
estamos querendo saber o que eu estenda a dúvida, ela não XVII, aparece a obra de La
foi mudado na tradição ociden- pode se exercer com relação ao Rochefoucauld consolidando
tal moderna com a introdução seu próprio ato, ao seu próprio uma linhagem de pensamento
da concepção freudiana de exercício. O ato da dúvida não que já existia, mas de forma
sujeito e, sobre tudo, que vazi- pode ele mesmo ser colocado tímida. Ele enfatiza, insiste no
os, que questões ela veio pre- em dúvida enquanto ação for- fato de que, frequentemente, se
encher ou responder? A segun- mal do espírito mesmo que não sempre, os sujeitos se des-
da faceta da questão que esta- todos os conteúdos desse ato conhecem e que suas consciên-
mos colocando – quase nunca tenham por esse mesmo pro- cias “falsificam” a verdade.
posta – é a de se tentar saber o cesso sido eliminados. Duvidar Damos explicações para nossos
que tornou possível Freud mon- do ato da dúvida é uma contra- desejos e atos completamente
dição nos termos porque a Thomas Hobbes (1578 – 1679) opostas as suas verdadeiras
tar essa nova maquinaria con-
ceitual que redundou numa dúvida enquanto dúvida (e não razões. Acreditamos praticar
mutação do conceito de sujeito
no pensamento moderno. A
em relação àquilo que ela exer-
ce) é uma função da qual a
consciência imediata gera uma
A partir desse momento está
consumada o que se con-
vencionou denominar a revolu-
atos altruístas quando estamos
sendo profundamente egoístas.
Acreditamos amar quando na
questão desdobra-se, então, em:
certeza imediata. É nesse esgo- ção cartesiana que, deste ponto verdade queremos ser amados
o que mudou, que respostas
tamento do processo que Des- de vista, significou operar uma etc. o aviso já está dado: a
isso trouxe e o que tornou pos-
cartes encontra sua primeira identificação do sujeito com o consciência não é um bom
sível essa mutação? cogito e deste com a consciên-
O pensamento moder- certeza, esse ponto inabalável operador para se ler o sujeito.
que vai desencadear todo o cia. Para simplificar: do sujeito Delineia-se o tema da opacida-
no está indissoluvelmente liga-
processo de construção do com a consciência. Foi a partir de do sujeito para si próprio.
do à figura de R. Descartes que
edifício da filosofia cartesiana: dessa coincidência que se mo- E uma segunda pro-
inaugura não só uma nova
se duvido, penso, se penso, delou quase todo saber da mo- blemática aparece em meados
forma de filosofar completa- dernidade. A subjetividade é o
mente diferente da que existia existo. “penso, logo existo”, do século XVII e se intensifica
certeza pontual e inabalável lugar da transparência e da nos seguintes. Trata-se do tema
até então, como também instau-
através da qual o desenrolar da certeza e é a essência do sujei- dos desejos e do prazer. E em
ra, de uma maneira absoluta-
meditação cartesiana vai procu- to, que no caso de Descartes, Hobbes que encontramos for-
mente inédita, a forma de se
rar conferir fundamento objeti- será registrada e autenticada mulada a ideia de razão fria,
vo a essa certeza. O desenrolar por um deus transcendente. indiferente, calculadora e moti-
1 da reflexão cartesiana conferirá Mas esse foco originário passa- vada pelo desejo. Inverte-se a
Jornal – O ESTADO DE SÃO PAU-
LO, número 480, ano VII págs. 7-8-9, ao cogito recheios objetivos. rá, ele mesmo, nos movimentos perspectiva intelectualista e o
data 07/10/1989. Nessa “démarche” a posteriores, a ser o fundamento ser humano, nas suas dimen-
operação da dúvida foi assimi- único e originário, i.é, a ser sões essenciais passa a ser
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Luiz Roberto Monzani é professor de também doador de sentido.
filosofia da Unicamp e autor de Freud lada a uma operação do pensa- entendido através do desejo. O
O Movimento de um pensamento. mento e este acaba sendo coex- Isso, pesem todas as aparências egoísmo original leva os sujei-
tensivo ao sujeito. Estando os em contrário, como mostrou tos a buscarem aquilo que lhes
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Texto transcrito em 30/11/2008, Para conteúdos representativos Deleuze, vale também para o traz deleite e fugir do que lhes
Professora Carlota Ibertis – Acadêmico empirismo.
de filosofia, UNIFRA, Edilton Cogo. (mundo exterior, corpo próprio causa aversão ou dor. O ser
humano se configura como que, quando este se cristaliza serenidade dessa ordem. Ele- determinante da sexualidade,
prisioneiro desse movimento, na realidade, reabre um novo mentos que têm uma existência do desejo, e mostra que somos
na medida em que, satisfeito ciclo. A consciência começa a marginal, subterrânea, ás vezes. essencialmente alienados, mas
um desejo, já se forma outro ser o locus da constatação da Seres, como se costuma dizer que isso não constitui nenhuma
imediatamente, criando um falta. A emergência da impor- corriqueiramente, “sem eira maldição, mas é a condição
processo indefinido que só tância determinante da sexuali- nem beira”, que o pensamento mesma de acesso à cultura, que
culminará com a morte: “por- dade vai se construir noutro moderno simultaneamente ela é a condição para que o
que vemos que todo o prazer é fator que colocará o axioma da reconhece o papel determinan- sujeito se humanize, já o acesso
apetência e supõe um fim ulte- paridade em questão. Aponte- te, mas denega-os por não en- ao simbólico tem como condi-
rior, não pode existir contenta- mos apenas dois ou três fatores contrar para eles nenhum ponto ção o recalcamento originário,
mento senão continuando a significativos neste domínio de alocação conceitual. Seres i. é, a cisão, a Spaltung e a
apetecer”. (Elements of Law, que é, ainda, uma verdadeira sombrios, às vezes sem contor- constituição do inconsciente
VII,§6). O ser humano é dese- terra inexplorada. Foucault nos definidos claramente, que como instância determinante.
jante e seu desejo é insaciável. mostrou-nos a proliferação do navegam sem encontrar ne-
Locke, neste ponto, nada mais discurso sobre a sexualidade
vai fazer que reforçar essa linha na modernidade. Isso está
quando insiste que na base de aliado ao progressivo reconhe-
tudo isso existe uma inquieta- cimento de sua importância
ção (uneasines) original ao ser como fator determinante do
humano que o obriga a agir sujeito. Houve uma crescente
incessantemente em busca da predominância do “hedonis-
evitação desse mal-estar Essai, mo” na modernidade no senti-
II, XX, §§ 6 e 29). Agora, o ser do de igualar a felicidade ao
humano é inquietude, estado de prazer e este prazer físico.
desprazer constante que o incita Hobbes acentuava que de
a procurar a calmaria que nunca todas as paixões a que provoca
será encontrada, como mostra a desejos mais intensos é a se-
experiência. xual. La Mettrie mostrava,
mais tarde, simultaneamente, o nhum ponto de ancoragem.
caráter laborioso e mesmo John Locke (1632 – 1704)
La Rochefoucauld: (1613 –
antinatural da atividade intelec- axioma partilhado
1680) falsificação da verdade
tual e realiza uma verdadeira
apologia dos prazeres, sobretu-
do sexuais, no seu Anti-Sêneca. A ssim, no entardecer do
século XIX, o pensamento
F oi abandonando o que de-
nominava o “pressuposto
consciencialista”, i. é, o axioma
Mas é no sisudo De L’Esprit” ocidental encontra-se frente a
de Helvétius que encontramos da paridade, que Freud operou
um impasse ou dilema, uma
desenvolvida, sob forte in- essa enorme mutação conceitu-
espécie de situação paradoxal: al e, através disso, conseguiu
fluência aristotélica, a ideia de de um lado continua, teimosa- chegar a noção de inconsciente
que o ser humano só atinge a mente, afirmando e reiterando o
felicidade no gozo sexual e, e – não “dissolver” o sujeito –
axioma da paridade sobre o
dessa maneira (isso para não mostrar que somos seres “des-
qual se alicerça a quase totali-
tocar nem em Diderot e nem centrados”. Talvez se tenha
dade do discurso cultural. De valorizado demais a clínica na
Descartes (1596 – 1650): novo em Sade), é com Helvétius que outro, sabe-se que esse mesmo
filosofar elaboração das teorias, que sem
a importância da sexualidade axioma já não da conta de um
ela a psicanálise não existiria e
como motor fundamental do ser grande número de fenômenos
que ela foi o lugar, por exce-
I sso porque (a analise da
“querela do luxo” no século
XVIII mostra claramente) o ser
humano é introduzida explici-
tamente e à soberania serena e
tranquila da ratio cartesiana se
que o desafiam abertamente:
opacidade da consciência, po-
tência determinante das pai-
lência, de emergência das hipó-
teses e teses de Freud. Isso está
humano é o único que rompe o fora de dimensão. Mas ressal-
opõe agora a turbulência opaca xões, do desejo, da sexualidade
ciclo biológico-vital, não por- tamos outro ponto. Quando se
e determinante da sexualidade. etc. que estão provocando a
que possui uma alma imaterial lêem certos textos que tentam
Haveria outros exem- erosão desse mesmo edifício
ou imortal, nem porque possui plos como a temática da aliena- retraçar a história da descoberta
tão pacientemente modelado. É
atributos “superiores” (razão ção no século XIX. Mas fique- freudiana tem-se a impressão
nesse momento que Freud
inteligência, etc.), mas pela mos por aqui. O que assistimos que ele estava preocupado
intervém e coloca um pouco de exclusivamente com o proble-
pura e simples razão de que como o leitor notou, no desen- ordem nessa situação razoa-
nele está instalada uma inade- ma das psiconeuroses e acabou
rolar do pensamento moderno, velmente confusa. Freud não
quação original que lhe provo- não foi uma história linear e desembocando, um pouco sem
vem defrontar a razão (não nos
ca uma constante inquietação, contínua e sim algo que se deu querer, em verdades de alcance
esqueçamos de sua famosa
motor de seu desejo (na verda- em dois movimentos: de um muito mais geral. Parece-nos,
frase; “nosso deus, lógos”),
de essa distinção terminológica lado, a tenaz afirmação do no entanto, que uma leitura
mas mostrar seus limites; não mais atenta dos textos mostra
será introduzida por Condillac), axioma da paridade e de outro afirma o caráter totalmente
desejo indefinido de ir cada vez que, a lado dessas questões,
desde o século XVII, uma len- ilusório do saber da consciência
mais além, em busca de novos ta, penosa, mas progressiva Freud, desde o início, tinha
(“a consciência é nosso único
prazeres sem nunca se satisfa- tomada de consciência, muitas preocupações de espectro mais
farol nas trevas da psicologia
zer. O homem, nos bastidores vezes fragmentária, do caráter amplo. Os indícios não faltam.
profunda”), mas mostra que ela A psicanálise nasceu como uma
do século XVIII, descobre-se problemático dessa forma. fornece um valor limitado, que
como falta, como desejo insaci- técnica de cura e poderia muito
Vimos à inclusão de novos não passa de um órgão de per-
ável que atiça seu imaginário e elementos que perpetuam a cepção interna. Explica o papel
bem ter se resumido nisso e se mas fazendo-o existir sob um de gênio. O que Freud realizou, Delineia-se assim uma
amoldado aos padrões teóricos novo regime, um novo registro. na base, foi um profundo alar- noção de sentido que se perfaz
vigentes, que foi, de resto, o É nesse novo regime, nesse gamento na noção de sentido, sem necessidade de ser lido ou
que Breuer fez na parte teórica novo registro que encontramos de significado, tal como Lévy- decifrado por nenhum sujeito,
Studien. Quando Freud recusa a a grande originalidade do dis- Strauss, anos mais tarde (e em principio. Existiram e exis-
teoria dos estados hipnóides de curso psicanalítico com relação explicitamente inspirado em tirão uma miríade de sonhos
Breuer para explicar a histeria, a todos os anteriores: sua ins- Freud) mostrou com relação sem interpretação. Qual freudi-
é exatamente o modelo clássico crição no inconsciente e suas aos povos selvagens i. é, que ano ousaria dizer que não fo-
que está colocando em questão. incidências no sistema pré- aquilo que era rotulado de iló- ram ou serão fenômenos do
Já veremos melhor isso. Em consciente-consciente. gico, pré-lógico, nada mais era estado de sentido. A psicanálise
segundo lugar, sabemos que que uma ordem lógica tão so- nos ensinou que há um sentido
desde o início Freud esteve fisticada quanto a ocidental. que nos perpassa, nos perfaz,
preocupado em construir uma que constitui nossa verdade e
teoria psicológica geral que que nos escapa: sentido que
abarcasse o patológico e o está inscrito em nós e que nun-
normal. Se a clinica foi para ca alcançaremos (lembremo-
Freud o ponto de arranque, o nos do “umbigo” do sonho ao
ponto de chegada já se revela qual se referia Freud), já que há
bem mais ambicioso. Em ter- um ponto cego, eternamente
ceiro lugar, desde cedo, sabe- obscuro, que jamais será eluci-
mos (antes mesmo de uma dado e que torna o adágio: “Wo
Helvétius (1715 – 1771):
famosa paciente forçá-lo a dar Es war...” uma idéia regulado-
sexualidade
atenção aos seus sonhos), Freud ra. Verdade e consciência se
tinha sua atenção voltada para cindem, o sujeito se descentra e
os sonhos, colecionava chistes,
estava atento aos atos falhos.
A ceitamos tudo isso e
formulemos nossa ultima Breuer (1842 – 1925): estados
questão: como foi possível hipnóticos
o cartesianismo se desmorona.