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Capítulo 4

A psicologia no recurso aos vetos kantianos


Arthur Arruda Leal Ferreira

Para entender os rumos da psicologia, especialmente na Alemanha


do século XIX, é necessário em primeiro lugar entender as críticas a que foi
submetida desde o inal do século XVIII. E o mais notável de todos os seus
críticos foi IMANNUEL KANT, considerado o inaugurador da filosofia
contemporânea. A ele caberá a colocação dos novos IMANNUEL KANT
parâmetros para o conhecimento ocidental. Neste nasceu em Konigsberg, na
Prússia Oriental (hoje Rússia), em
aspecto, processa-se uma transformação capital 1724, cidade em que viveu até a sua morte
com relação ao século XVIII, uma vez que se em 1804. A sua ilosoia criticista constitui-se
como base do pensamento contemporâneo, a
passa a distinguir ciência de metafísica, esta partir de seu projeto de estabelecer os novos
entendida como um saber sem fundamento. parâmetros para o conhecimento, a ética e os
juízos estéticos. Essa tentativa de delimitação dos
É aí que ameaçavam ser alojados os saberes parâmetros nos quais a razão poderia operar
psicológicos do século XVIII, relegados constituiu respectivamente os três principais
livros de Kant, quais sejam: A crítica da razão
à mera metafísica na impossibilidade de pura (1781), A crítica da razão prática
(1785) e A crítica do juízo
serem ciências legítimas, graças às críticas (1790).
kantianas. No capítulo 2 pudemos ver tais críticas
voltadas para um dos pilares da psicologia de língua alemã
do século XVIII, Christian Wolff. Mas essas não se voltaram apenas para a
psicologia racional de Wolff, mas também para a sua psicologia empírica. Segundo
Kant, em seus Princípios metafísicos da ciência da natureza (1786/1989: 32-33), a
psicologia empírica para se provar como ciência propriamente dita deveria:
1. descobrir o seu elemento de modo similar à química, para com isto efetuar
análises e sínteses;
2. facultar a esse elemento um estudo objetivo, em que sujeito e objeto não se
misturem como na introspecção;
3. produzir uma matematização mais avançada que a geometria da linha reta,
apta a dar conta das sucessões temporais da nossa consciência (o sentido
interno).

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Durante todo o século XIX, a psicologia, para se fundar e ser aceita no
restrito clube das ciências, tentou pleitear o recurso a tais vetos e aos de outros
ilósofos, como o positivista AUGUSTO COMTE. Assim, nesse intento, esboçaram-
se alguns projetos de psicologia como os de Rudolph Lotze (1817-1881), na
AUGUSTO COMTE (1798-1857) foi um dos fundadores do
Alemanha, e Francis Galton (1822-
movimento positivista, surgido na França do século XIX, 1911), na Inglaterra (cf. capítulo 6).
e que buscava uma reforma no âmbito do conhecimento,
da política e mesmo da religião. A primeira proposta
Contudo, como veremos a seguir, essas
positivista de Comte situa-se no âmbito do conhecimento questões serão respondidas de modo de-
e airma que este só pode ser obtido através de juízos
empíricos, públicos e controláveis. Como a psicologia
cisivo indiretamente graças ao trabalho
de sua época não preenchia estes critérios, Comte de alguns fisiólogos e de um físico,
concluiu que a psicologia não poderia ser uma ciência. contribuindo para a constituição da
Posteriormente, algumas correntes psicológicas, como o
behaviorismo, propuseram-se a contornar o veto comteano psicologia como ciência independente
e fazer uma psicologia cientíica, utilizando, para isto, o no inal do século XIX.
paradigma comteano de ciência.

A superação dos vetos kantianos: fisiologia sensorial e psicofísica


O primeiro problema listado, a falta de um elemento objetivo, será
resolvido pela teoria das energias nervosas especíicas de JOHANNES MÜLLER, formulada
explicitamente em seu Manual de isiologia de 1826. Para
esse isiólogo, cada via nervosa aferente possuía uma
JOHANNES MÜLLER (1801-1858)
energia nervosa específica que se traduziria em foi um dos mais importantes isiólogos
uma sensação especíica de cada nervo. Assim, o da primeira metade do século XIX,
forneceu a base da moderna isiologia
nervo ótico excitado pela ação da retina, ou por nervosa ao conceber os nervos não
forças mecânicas e químicas, produziria sempre mais como dutos de uma matéria sutil,
os espíritos animais, mas de energias
imagens luminosas. O mesmo ocorreria com os nervosas especíicas.
demais sentidos.
A posição de Müller conduziu a uma espécie de
“kantismo isiológico”, em que o mundo percebido seria uma mera propriedade
das nossas energias nervosas especíicas (no lugar do sujeito transcendental),
estimuladas sempre por um fator físico qualquer, não importando a sua
natureza. A sensação, enquanto variação das energias nervosas especíicas,
representaria um elemento preciso, corporalmente situado como fenômeno,
ao contrário das idéias e impressões descritas pelos ilósofos empiristas do século
XVIII. Foi por tal razão que a sensação veio a ser utilizada como elemento
para a construção de uma possível psicologia, pois ela liga a) o mundo físico
que constantemente estimula os sentidos; b) o isiológico, uma vez que as

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energias nervosas especíicas estão ligadas aos nervos e c) o psicológico, uma
vez que a sensação seria a base de nossas representações.
Quanto ao segundo problema kantiano, quem apresenta a solução
é um discípulo de Müller, HERMANN VON HELMHOLTZ. Esse autor elaborou
em 1860 uma teoria sobre o surgimento das HERMANN VON HELMHOLTZ
(1795-1878) foi um dos perso-
representações psicológicas, ou apercepções, nagens mais relevantes da ciência do
que, no seu reverso, irá fomentar um século XIX, trabalhou de modo especial
novo método para o estudo objetivo com a fisiologia nervosa, hidrodinâmica,
eletrodinâmica e ótica física. No âmbito da isiologia
das sensações. A teoria proposta é destacam-se seus estudos sobre as sensações (especialmente
a das inferências inconscientes, de claro as óticas e auditivas, objeto de seus mais extensos manuais),
que conduziram ao levantamento de uma série de teorias,
cunho empirista, e o método, o da métodos, instrumentos e resultados. Sobre as teorias
introspecção experimental, bem diferente destaca-se a da ressonância auditiva. No campo dos instru-
mentos, inventou o oftalmoscópio e o olfatômetro, ao
do produzido na psicologia do século passo que no campo das medições destaca-se o registro da
XVIII. Vejamos primeiro a teoria das velocidade de condução dos impulsos nervosos. Na física
foi um dos principais proponentes da moderna
inferências inconscientes. Para esse isiólogo teoria da conservação de energia, muito
alemão, as nossas sensações seriam utilizada por algumas orientações
psicológicas, como a psicanálise
organizadas por experiências passadas, que e o behaviorismo.
seriam armazenadas como as premissas maiores
de um SILOGISMO, aptas a ordenar de modo
Um SILOGISMO, enquanto unidade funda-
mental da lógica clássica (desenvolvida da inconsciente e rápido as premissas menores
antigüidade grega ate o início do século XIX) informadas pelos sentidos, produzindo como
é composto de três partes: 1) Premissa maior,
ligando um conceito geral a um termo médio conclusão as nossas representações psicológicas.
(do tipo, “Todo homem é mortal”), 2) Premissa O modo de análise das sensações, a introspecção
menor, ligando o termo médio a um conceito
especíico ou um indivíduo (do tipo “Sócrates experimental, se processaria de modo inverso a
é homem”), e 3) Conclusão, ligando o conceito essas sínteses inconscientes, visando neutralizar
maior ao especiico ou ao indivíduo (do tipo
“Logo, Sócrates é mortal). os efeitos dessa inferência silogística operada
pela experiência passada.
Para neutralizar essa síntese inconsciente, processa-se então uma
análise consciente, em que os sujeitos dos experimentos são treinados para
reconhecer o aspecto mais bruto e selvagem de nossa experiência. Fazendo
uma analogia, isso ocorreria da mesma maneira que a reeducação de animais
selvagens domesticados em seu retorno ao ambiente natural. Essa necessidade
de treinamento dos sujeitos faz com que esse estudo não possa ser feito com
crianças, primitivos, ou doentes mentais, visando evitar o erro do estímulo, qual
seja, a confusão do objeto percebido com os juízos inconscientes acumulados
pela experiência passada. Por isso, o estudo objetivo das sensações em um
sujeito só poderia ser feito se esse mesmo sujeito fosse também um isiólogo,
apto a distinguir o joio da experiência passada do trigo das sensações. Por todos

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esses cuidados metodológicos, o treinamento e a presença de um estímulo
objetivo a ser percebido pelo sujeito (mesmo que a experiência observada
ocorra com o próprio sujeito), é que o método introspectivo se distingue da
introspecção dos ilósofos-psicólogos do século XVIII.
Restava ainda o problema da matematização, o terceiro colocado por
Kant. É aqui que entra a psicofísica de GUSTAV FECHNER, delineada no livro
Elementos de psicofísica, de 1860. Pode-se dizer que ela também oferece uma
resposta experimental ao segundo veto kantiano, referente à impossibilidade
de estudos objetivos. Mas a sua principal conquista está em oferecer a
qualquer estudo psicológico a possibilidade de desenvolver uma matemática
mais avançada que a “geometria de uma linha reta” (nos termos da críticas
kantianas). Isso, através do estabelecimento da primeira lei matemática na
psicologia, batizada por ele Lei Weber-Fechner, em função do aproveitamento da
equação desenvolvida por ERNST WEBER sobre a relação de proporcionalidade
entre as diferenças apenas percebidas (dap) entre dois estímulos (Ea e Eb) e os valores
absolutos destes, gerando a fórmula: dap = Ea – Eb/ Eb. Para entendermos
o que Weber quis mostrar com sua fórmula, basta pensarmos na diferença
percebida na relação entre um peso de 1 kg e outro de 2 kg, e a compararmos
com a diferença percebida entre um peso de 21 kg e outro de 20 kg. A diferença
absoluta é a mesma (um quilo), mas a diferença relativa, que é a efetivamente
percebida, depende da relação da diferença com os valores absolutos.
Fechner, além de complexiicar a equação, irá transformar as diferenças
apenas percebidas (daps) em sensações (S), sugerindo a primeira medição
psicológica, e chegando à fórmula S = k log R, em que k é uma constante
matemática e R signiica limiar de percepção do ESTÍMULO. Mas, antes de se
GUSTAV FECHNER (1801-1887) foi também um personagem bastante versátil: formado em medicina em 1822, dedicou-se
no início de sua carreira às matemáticas e especialmente à física. Até 1839 destacava-se nesse campo, quando renunciou
à cátedra em função de um comprometimento ocular, adquirido no exame da luz solar através de lentes coloridas. Essa
enfermidade lhe causou uma reclusão de cerca de cinco anos, quando Fechner passou a meditar sobre uma série de
postulados metafísicos e religiosos, o panpsiquismo e a sua visão diurna. Sua recuperação, creditada por ele a esse pensamento,
conduziu à publicação de uma série de livros, dos quais o mais conhecido é Elementos de psicofísica (1860), em que o autor
busca comprovar empiricamente a relação indissociável entre matéria e espírito. Nesse período, ele se dedica ao estudo
de fenômenos diversos como a estética experimental (determinação estatística das formas do gosto comum) e fenômenos
paranormais, ao acompanhar o médium espírita Henry Slade.
ERNST WEBER (1795-1878) foi fisiólogo e anatomista, tendo lecionado na Universidade de Leipzig. Fez parte também
da fundação da moderna isiologia alemã, realizando uma série de estudos sobre sensibilidade tátil e propondo a lei das
diferenças apenas percebidas (dap), posteriormente retrabalhada por Fechner em termos logarítmicos, gerando a rebatizada
Lei Weber-Fechner, em que as daps são assumidas como medidas de sensação.
ESTE TRABALHO, proposto em 1860, tem a sua importância não apenas por ser um suposto marco para a psicologia, mas por
ter gerado uma linha de pesquisa presente até os dias de hoje. Ainda que a psicofísica atual seja mais inspirada nos trabalhos
de Stanley Stevens (1906-1973), a Sociedade Internacional de Psicofísica (ISP – Intenational Society of Psychophysics) ainda
hoje promove congressos internacionais. No Brasil destacam-se pesquisadores como José Aparecido da Silva (USP), Nílton
Ribeiro Filho (UFRJ) e Élton Matsushima (UFF), organizadores do Congresso da ISP no Brasil em 2002.

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identiicar o trabalho de Fechner como o início da psicologia experimental
(ao menos na Alemanha), deve-se perguntar por que um físico como ele iria
se dedicar a estabelecer uma lei rigorosamente matemática sobre a relação
entre o domínio físico e o psicológico (daí o termo da área de conhecimento
proposto, psicofísica). Temos então que relacionar esse texto com o conjunto de
sua obra, que caracteriza um trabalho mais ou menos sistemático na direção
do que o próprio Fechner designou como visão diurna ou panpsiquismo. Por
panpsiquismo entendia-se um conjunto de pensamentos e relexões sobre o
mundo enquanto composto por uma hierarquia de seres em que o espírito e o
corpo seriam coextensivos, em todas as esferas. O domínio físico e o mental não
seriam duas naturezas, mas uma única natureza composta de duas perspectivas,
de resto um mistério tão complexo como saber se uma esfera é côncava ou
convexa (Fechner, 1850, p. iv). Ficariam assim excluídas as concepções dualistas
da natureza (que crêem na existência de substâncias), e principalmente as
materialistas (que negam a existência de qualquer fator de natureza espiritual),
denominadas por Fechner visão noturna. O trabalho psicofísico de Fechner não
representa, pois, uma exceção dentro de sua concepção da natureza, mas uma
tentativa de estabelecer a prova e o rigor matemático desta.
Por se tratar da possível superação do último veto kantiano é que se pode
dizer que o trabalho de Fechner representa o primeiro pilar de uma psicologia
a nascer. As fundações desse pilar se encontrariam no sonho de Fechner de
22 de outubro de 1850, em que intuiu matematicamente a relação entre os
elementos físicos (estímulos) e espirituais (sensações), data que é reconhecida por
alguns historiadores da psicologia como o marco do surgimento da psicologia
experimental (Boring, 1950). Mas deve-se lembrar que o valor desse trabalho
está correlacionado ao poder de resposta que ele oferece às críticas kantianas.
É nesse circuito que se concretiza a importância do trabalho de Fechner, pois
ele abriu espaço para a primeira formulação de psicologia reconhecida como
cientíica pelos novos padrões do século XIX, ou seja, superando os impasses da
psicologia empírica do século XVIII. Assim, quando em 1879 Wilhelm Wundt
inaugura a psicologia como formação e área de investigação acadêmica, todos
os elementos possibilitadores desse ato já estarão garantidos, pelas respostas
indiretas tanto da isiologia quanto da psicofísica aos vetos kantianos.
Antes do sonho de Fechner havia o sonho da psicologia de acordar
do sono dogmático de todo saber metafísico denunciado por Kant. O sonho
de Fechner pode ter brevemente acordado a psicologia (ou ter feito sonhar
que acordou) do sono dogmático, apesar de sua intenção ter sido mais nos
acordar do sono materialista. Pois correlacionar o físico (estímulo) e o espiritual

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(sensação), para Fechner, não visava provar uma psicologia matematizável,
mas um duplo aspecto de uma mesma natureza extensível a todos os seres, o
seu panpsiquismo. Contudo, a história da psicologia prosseguirá na proliferação
de escolas e sistemas que se postulam como a quintessência da cientiicidade
na psicologia. Em função da proliferação desses mundos cientíicos possíveis
é que se pode perguntar se os vetos kantianos, formulados no inal do século
XVIII, não continuam a assombrar a psicologia.

Indicação estética e bibliográfica


O livro indicado para este capítulo é Textos básicos em história da psicologia,
de E. G. Boring e R. J. Herrnstein (1971), da Editora Herder, de São Paulo.
Nesse livro, encontraremos alguns textos de autores citados neste capítulo e que
não possuem livros traduzidos em português, como Johannes Müller, Ludwig
von Helmholtz, Ernest Weber, Gustav Fechner e Wilhelm Wundt. Também
encontraremos textos de Imannuel Kant. Sobre esse ilósofo, existe ainda a
coleção de textos da Editora Abril, Os Pensadores. Ainda que um texto clássico, o
livro de E. G. Boring (1979), História de la Psicología Experimental (México: Trillas),
é um bom guia na exposição da isiologia e psicofísica do século XIX.
O trecho de Moby Dick citado no capítulo 1 é expressivo do problema
do conhecimento e da representação abordado neste capítulo. Mas, para
entender a nova concepção da percepção e da experiência surgida no século
XIX, agora devidamente encarnada no corpo e nos nervos, e tendo como base
a noção de sensação, temos que seguir a indicação de Jonathan Crary (1990),
e ver que esses trabalhos têm uma perfeita correspondência com a pintura
moderna (especialmente a impressionista) de Monet, Matisse e Turner. Mais
do que a realidade em si, busca-se pintar o que o olho vê.

Referências
Boring, E. G. (1979 [1929, 1950]) História de la Psicología Experimental (tradução R. Ardilla).
México: Trillas.
Boring, E. G. e Herrnstein, R. J. (1971) Textos básicos em história da psicologia. São Paulo: Herder
e EDUSP.
Crary, J. (1990) Technics of the Observer. Massachusetts: Cambridge University Press.

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