Você está na página 1de 32

Currículo, sexualidade e ação docente

Elizabeth Macedo
Thiago Ranniery (Orgs.)

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

F83

Currículo, sexualidade e ação docente / organização Elizabeth Macedo; Thiago


Ranniery / 1ª ed. – Petrópolis, RJ : DP et Alii, 2017.
240 p. ; 23 cm.

Inclui bibliograia
ISBN 978-85-8427-040-8

11. Educação – currículo – sexualidade – Brasil. 2. Professores – formação


docente. 3. Prática de ensino – gênero e identidade.
16.36353 CDD: 370.71
CDU: 37.02

15/08/2017 20/08/2017
Currículo, sexualidade
e ação docente

Elizabeth Macedo
Thiago Ranniery (Orgs.)

Andrea Braga Moruzzi Denise Bastos de Araújo


Anete Abramowicz Leandro Colling
Shirlei Rezende Sales Elizabeth Sara Lewis
Marcos Nascimento Susana de Castro
Luan Carpes Barros Cassal Viviane Vergueiro
DP et Alii

Teoria(s) Queer e performaividade:


mudança social na matriz heteronormaiva

Elizabeth Sara Lewis

Gosto muito de começar aulas sobre gênero, sexualidade e Teoria


Queer com a seguinte pergunta: desde quando existe a homossexu-
alidade? As duas respostas mais frequentes geralmente são: “Desde
sempre” e “Pelo menos desde a Grécia antiga – os homens eram bis-
sexuais”. Depois respondo: “O que acontece se digo para vocês que
a homossexualidade só existe desde 1869?”. Esta provocação geral-
mente acende uma polêmica: “Mas como assim, se os gregos tinham
relações homoafetivas séculos antes?”, “Mas como assim, se textos
religiosos antigos dizem que homem não deve deitar com homem?”
e assim por diante, até alguém dizer: “Ah, foi naquele ano que a pa-
lavra foi inventada?”. Daí explico que a palavra “homossexual” foi
cunhada em 1869, pelo austro-húngaro Karl-Maria Benkert, e que a
palavra “heterossexual” também foi inventada por ele, anos depois
(SULLIVAN, 2003; MENGEL, 2009). Foi só a partir desse momento
que a prática de sodomia entre duas pessoas do mesmo sexo “bioló-
gico” começou a ser vista como uma expressão da sua psique e usada
para definir e constituir o sujeito homossexual; portanto, o sujeito ho-
mossexual é uma invenção do século XIX (FOUCAULT, 1988; SOM-
MERVILLE, 2000; LOURO, 2004). Porém, durante os primeiros cem
anos de uso, o termo “homossexual” tendia a ser empregado com
uma conotação patologizante; só começou a ser usado como uma ca-
tegoria identitária por volta dos anos de 1960, com o ativismo dos
crescentes movimentos para a “liberação gay”. Portanto, categorias
identitárias como “gay”, “lésbica”, “bi” e “hétero” que hoje em dia
usamos com tanta frequência, e que nos parecem tão naturais e atem-
158 Currículo, sexualidade e ação docente

porais, na verdade são maneiras relativamente recentes – dos últimos


60 anos – para descrever a sexualidade. Por que gosto de começar
a aula com este tipo de discussão e historicização? Não é simples-
mente por ser linguista e querer que os e as estudantes aprendam a
etimologia das palavras; é uma forma de desconstrução, um exemplo
de performatividade e um primeiro passo em direção à queerificação do
conhecimento sobre a sexualidade.
No presente capítulo, começaremos com uma breve história das
trajetórias da(s) Teoria(s) Queer nos Estados Unidos, na América La-
tina e no Brasil. A seguir, discutiremos os conceitos de performance e
performatividade, desde suas origens na teoria dos atos de fala de Aus-
tin às teorizações atuais de Judith Butler sobre gênero e sexualidade.
Depois, examinaremos vários outros conceitos-chave na(s) Teoria(s)
Queer, particularmente a heterossexualidade compulsória, a hetero-
normatividade, o heterossexismo e a matriz heteronormativa. Final-
mente, discutiremos possibilidades de transformação social, olhando
em particular para o papel da educação e dos/as educadores/as nas
mudanças sociais.

Uma breve história das trajetórias da(s) Teoria(s) Queer

Antes de começar a discutir a(s) Teoria(s)1 Queer, é importante


considerar a etimologia da palavra “queer”, que vem da língua ingle-
sa. No passado seu significado era “estranho”, mas com o decorrer
do tempo começou a ser usada como uma palavra depreciativa para
falar, em particular, de pessoas homossexuais, mas também de qual-
quer pessoa cujos desejos, práticas sexuais e/ou performances de gê-
nero não se encaixavam na norma heterossexual. Mais tarde, foi rea-
propriada por movimentos sociais (considere, por exemplo, palavras
de ordem como We’re here, we’re queer, get used to it! ou “Estamos aqui,

1. O uso do plural aqui é proposital, pois, como veremos ao longo desta seção, embora a Teoria Queer
tenha sido “fundada” inicialmente nos Estados Unidos, hoje em dia há uma pluralidade de perspectivas
surgindo de vários cantos do planeta.
Teoria(s) Queer e performaividade – E.S. Lewis 159

somos queer, acostume-se!” do grupo militante Queer Nation) para su-


blinhar que ser diferente da norma heterossexual não era anormal e
deveria ser respeitado. Como veremos mais adiante, esta prática de
reapropriação da palavra queer é, em si mesma, uma prática queer
e performativa de ressignificação. A palavra também começou a ser
usada como um verbo, to queer, em vez de só como um substantivo
ou adjetivo, para frisar processos de mudança social.
Continuando com o processo de ressignificação, a feminista italia-
na Teresa de Lauretis cunhou o termo Queer Theory durante um con-
gresso que organizou na Califórnia, EUA, em 1990, e publicou-o pela
primeira vez em 1991 em um número especial da revista Differences: A
Journal of Feminist Cultural Studies, intitulado “Queer Theory: Lesbian
and Gay Sexualities”. Em relação à escolha lexical, De Lauretis (1991,
p. iv) esclareceu: “a intenção detrás do uso do termo ‘queer’, justapos-
to ao ‘lésbico e gay’ do subtítulo [do número especial da revista], é de
marcar certa distância crítica dessa última formulação, já estabelecida
e frequentemente conveniente”.2 A autora explicou, ainda:
O projeto do congresso foi baseado na premissa especulativa
de que a homossexualidade não deve continuar a ser vista
como algo marginal em relação a uma forma dominante e
estável da sexualidade (a heterossexualidade) contra a qual
seria definida ou por oposição ou por homologia. Em outras
palavras, não deve mais ser vista nem como simplesmente
transgressiva ou desviante vis-à-vis uma sexualidade correta
e natural (i.e. a sexualidade institucionalizada reprodutiva),
de acordo com o modelo mais antigo patologizante, nem
como simplesmente mais um “estilo de vida” optativo, de
acordo com o modelo de pluralismo contemporâneo norte-
-americano. [...] Nessa perspectiva, o trabalho do congresso
visava a articular os termos nos quais sexualidades lésbicas
e gays podem ser compreendidas e imaginadas como formas
de resistência à homogeneização cultural, contrapondo-se a
discursos dominantes com outras construções do sujeito na
cultura. (DE LAURETIS, 1991, p. iii)

2.Todas as traduções são minhas se não indicado diversamente nas referências.


160 Currículo, sexualidade e ação docente

Desta maneira, a palavra queer emprestou seu nome a uma cor-


rente teórica que emergiu ao início dos anos de 1990. A Teoria Queer
estadunidense desenvolveu-se por meio de uma relação recíproca
entre o ativismo político de grupos militantes antiassimilacionistas
como Queer Nation e Act Up e o trabalho acadêmico de teóricas e
teóricos como De Lauretis, Judith Butler, Eve Kosofsky Sedgwick e
Steven Seidman, influenciadas/os pelo pós-estruturalismo, pela des-
construção derrideana, pelas obras de Michel Foucault e pelas teorias
feministas.3 A Teoria Queer estadunidense contestava certos aspectos,
particularmente a visão essencialista e homogeneizante, de dois cam-
pos de estudos institucionalizados na academia: os “estudos das mu-
lheres” (women’s studies) e os mais recentes “estudos gays e lésbicos”
(gay and lesbian studies), como vimos na citação de De Lauretis acima.
À diferença da academia estadunidense, que começou com os
estudos das mulheres, depois abordou os estudos gays e lésbicos, e
finalmente chegou à Teoria Queer, que questionava as duas verten-
tes anteriores, as trajetórias latino-americanas tendiam a tomar outro
rumo. Os países da América Latina têm uma grande história própria
de estudos sobre gêneros e sexualidades, mas geralmente sem divi-
sões institucionais nítidas como no caso dos campos de estudos das
mulheres e de estudos gays e lésbicos nos Estados Unidos. Portanto,
nas teorizações latino-americanas, o queer tendia a aparecer como algo
diferente, mas não necessariamente em oposição aos estudos LGBT já
existentes. Por exemplo, era comum estudos falarem do “sujeito gay”
ao mesmo tempo em que questionavam a estabilidade da categoria
“gay” (VITERI; SERRANO; VIDAL-ORTIZ, 2011). No Brasil, algumas
pessoas viam a Teoria Queer estadunidense como uma possibilidade
3. É interessante notar que, a partir dos anos de 1990, as imbricações entre militância e academia também
resultaram em dois usos da palavra “queer” que frequentemente são algo contraditórios. Por um lado,
queer às vezes é usado como uma palavra guarda-chuvas para facilitar a referência a toda performance
identitária não-heteronormativa (em vez de usar listas longas como gay, lésbica, bissexual, transexual,
travesti, intersex, assexuado etc.) ou como uma categoria identitária em si. Por outro lado, também é
usado para “se refer[ir] àquilo que não está alinhado com nenhuma identidade em particular e que resiste
à categorização” (SAUNTSON, 2008, p. 271-272). Ou seja, paradoxalmente, às vezes o termo é usado
como uma categoria identitária; às vezes é usado para insistir na importância de evitar categorizações.
Teoria(s) Queer e performaividade – E.S. Lewis 161

de “atualizar” os estudos brasileiros sobre sexualidades gays e lés-


bicas, enquanto outras criticavam tal visão, observando que poderia
acabar reforçando exatamente o que as teorizações estadunidenses
questionavam, ao insistir na ideia de “minoria” em vez de pensar
sobre como as margens são constituídas e fixadas (PELÚCIO, 2014).
No Brasil, o surgimento da Teoria Queer se deu quase exclusiva-
mente no âmbito acadêmico e não através de uma relação recíproca
com os movimentos sociais, à diferença dos Estados Unidos, talvez
devido à força das políticas das identidades nesses movimentos (PE-
LÚCIO, 2014). A Teoria Queer estadunidense chegou na academia
brasileira na segunda metade da década de 1990, com a leitura das
obras de Butler em diversos grupos de pesquisa, com a publicação de
uma resenha do livro canônico Gender Trouble de Butler nos Cadernos
Pagu (BESSA, 1995)4 e com algumas publicações de professoras e pro-
fessores como Tânia Navarro Swain, Mário César Lugarinho e Denil-
son Lopes após o contato que tiveram com a teoria durante estágios
no exterior (BENETTI, 2013). A popularização da teoria, porém, se
deu a partir de 2001, com a publicação do artigo “Teoria Queer: uma
política pós-identitária para a Educação”, escrito por Guacira Lopes
Louro, professora de Educação. Aqui vemos outra diferença na tra-
jetória da Teoria Queer nos Estados Unidos e no Brasil;5 no primeiro,
as principais áreas iniciais de recepção foram os Estudos Literários

4. O livro Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity (1990) só foi traduzido em 2003,
sob o título Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade, oito anos após a publicação
da resenha escrita por Bessa. A primeira tradução de Butler para o português brasileiro foi a publicação
do ensaio “Fundamentos Contingentes: o Feminismo e a questão do ‘pós-modernismo’”, nos Cadernos
Pagu em 1998.
5. Já que falamos da ressigniicação da palavra queer em inglês, pode-se perguntar por que, a partir
da recepção e desenvolvimento da Teoria Queer no Brasil, não se traduz o termo. Existem tentati-
vas de tradução, como “estranho” e “raro”, ou “estranhar” e “rariicar”, assim como novas graias,
como “queeriicar” e “queerizar”. Em espanhol, às vezes se usa “cuir” ou “cuirizar”, uma maneira de
“espanholizar” a palavra inglesa e romper com o discurso colonial anglo-americano e destacar a des-
localização geopolítica (CAMPAGNOLI, 2017). Em português, Pelúcio (2014) sugeriu falar de uma
“Teoria Cu”, brincando com a ideia do Sul ser visto pelo Norte como o “cu do mundo” e com a ideia
de transgressão no sexo anal, insistindo que o cu é queer pois excita e repele simultaneamente. Lewis
et al. (2017) misturaram esses dois conceitos, usando o termo “cu-irizar” com hífen, para sublinhar a
importância de produções locais.
162 Currículo, sexualidade e ação docente

e os Estudos Culturais, enquanto no Brasil foi na área da Educação


(MISKOLCI, 2012), onde teóricas e teóricos como Guacira Lopes Lou-
ro e Tomaz Tadeu da Silva propuseram pedagogias queer e currículos
queer (ver RANNIERY, este volume).
Recentemente, teóricos/as brasileiros/as e latino-americanos/
as têm levantado questões sobre o problema do fluxo unilateral de
teorias entre países de América do Norte, Europa etc. e o “resto” do
mundo (BORBA et al., 2014). Na Teoria Queer estadunidense há uma
tendência a “ver o resto do mundo [...] a partir de dinâmicas internas
aos Estados Unidos, mas ainda assim caracterizar o que se cria como
internacional, transnacional, global” (MISKOLCI; PELÚCIO, 2017, p.
69). Enquanto pessoas em países como o Brasil leem, criticam, mo-
dificam e desenvolvem a(s) Teoria(s) Queer produzidas no “Norte”,
nossas produções raramente chegam a nossos pares que residem
além das fronteiras da América do Sul. Este fluxo unidirecional ig-
nora a riqueza das produções locais, que frequentemente favorecem
abordagens interseccionais6 que apontam para a imbricação de mar-
ginalizações de classe, raça, gênero, sexualidade, religião etc.7

Performance e performaividade

Um dos conceitos mais caros à(s) Teoria(s) Queer é o da performa-


tividade do gênero, proposto por Butler no livro Problemas de Gênero:
Feminismo e subversão da identidade (2003). A autora critica certas ver-

6. A interseccionalidade ressalta “a interação complexa entre uma gama de discursos, instituições, iden-
tidades e formas de exploração que estruturam subjetividades (e as relações entre elas) em maneiras ela-
boradas, heterogêneas e frequentemente contraditórias” (SULLIVAN, 2003, p. 72). A interseccionalidade
não estuda simplesmente certas variáveis que às vezes se cruzam; reconhece que a sexualidade é sempre
racializada (e inluenciada por classe social etc.) e a raça é sempre sexualizada (e inluenciada por classe
social etc.) (BARNARD, 2004; ANZALDÚA, 1991). Ou seja, identiicar-se como uma lésbica negra
proletária pode ser uma performance identitária em si, em vez de uma combinação de uma performance
identitária de lésbica, uma performance identitária de negra e uma performance identitária de proletária.
A Teoria Queer estadunidense é frequentemente criticada por uma falta de interseccionalidade – por não
estudar todas as relações e sobreposições entre tais construções, tratando-as como variáveis separadas e
aditivas em vez de inseparáveis e interligadas (ver também Vergueiro, neste volume).
7. Pereira (2012), por exemplo, mostra como a Teoria Queer estadunidense não consegue dar conta da impor-
tância das religiões afro-brasileiras nas performances identitárias de travestis em diversas cidades do Brasil.
Teoria(s) Queer e performaividade – E.S. Lewis 163

tentes do feminismo, em particular o feminismo da diferença ou femi-


nismo da segunda onda,8 por pressuporem que o termo “mulher(es)”
denote uma identidade comum e um sujeito estável, assim criando
um paradoxo: a reificação das relações de gênero que o feminismo
pretende combater. Para a autora, “não há identidade de gênero por
trás das expressões do gênero; essa identidade é performativamente
constituída, pelas próprias ‘expressões’ tidas como seus resultados”
(2003, p. 48, grifo da autora); ou seja, o gênero não é uma propriedade
essencial, inata, estável ou pré-discursiva das pessoas, é performati-
vo. “Peformativo” aqui não quer dizer “teatral”; algo performativo
no sentido butleriano cria o que nomeia. Para entender melhor o que
Butler quer dizer com este uso de “performativo” ou “performativa-
mente constituído”, precisamos olhar primeiro para a teoria dos atos de
fala do filósofo John L. Austin (1990).

Ausin e os atos de fala

Na filosofia da linguagem antes de Austin, estudavam-se qua-


se exclusivamente declarações, asserções e proposições – frases que
podem ser verdadeiras ou falsas ou, em outras palavras, têm “valor
de verdade”. Isso criava dificuldades para analisar as condições de
verdade para frases como “Prometo fazer X”. Uma promessa pode
8. O feminismo da segunda onda começou por volta do início dos anos 1960 nos Estados Unidos e
espalhou-se pelo mundo. Enquanto o feminismo da primeira onda se concentrava sobre a luta para
direitos à igualdade de gênero (em particular o sufrágio e direitos de propriedade), o feminismo da
segunda onda ampliou essas lutas para incluir questões de violência doméstica, estupro, aborto e direitos
reprodutivos, divisão igualitária de tarefas na família, sexualidade feminina etc. É também conhecido
como “feminismo da diferença” por insistir, apesar de pleitear a igualdade de gênero, que existem
diferenças naturais entre homens e mulheres, baseadas no fato das mulheres poderem engravidar e ter
ilhos. Foi criticado, porém, particularmente a partir do início dos anos 1980, por ignorar diferenças
entre mulheres, tratando-as de maneira homogeneizante como se todas fossem de classe média, brancas
e heterossexuais. Essas questões, assim como debates sobre pornograia e prostituição, contribuíram
para a inauguração do feminismo da terceira onda ao início dos anos 1990, fortalecida pelas emergentes
questões levantadas pela Teoria Queer. É importante lembrar, porém, que a divisão em “ondas” não
signiica que um tipo de feminismo terminou e outro começou; há sobreposições temporais, particu-
larmente entre a segunda onda e a terceira onda. Além disso, a própria divisão em ondas também é
problemática e criticável, pois é uma visão centrada nas lutas das mulheres da Europa e da América
do Norte que reproduz a ideia equivocada de que as conquistas feministas (desde o sufrágio ao direito
de abortar) teriam acontecido na mesma época em todos os países do mundo.
164 Currículo, sexualidade e ação docente

ser cumprida ou não, mas pode ser verdadeira ou falsa em si? Na sua
celebre obra How to Do Things with Words (1962), traduzida para o
português sob o título Quando dizer é fazer: palavras e ação (1990), Aus-
tin se preocupou com o estudo de tais frases, inicialmente fazendo
uma distinção entre atos de fala constativos e performativos. Compa-
re as elocuções “Está chovendo lá fora” e “Eu vos declaro marido e
mulher”. A primeira pode ser qualificada de verdadeira ou falsa – basta
olhar pela janela para verificar se de fato está chovendo. A segunda, po-
rém, pode ser bem-sucedida ou malsucedida, mas não qualificada de
verdadeira ou falsa. A primeira frase, “Está chovendo lá fora”, portan-
to, é um ato de fala constativo: descreve algo e tem valor de verdade. A
segunda, “Eu vos declaro marido e mulher”, por outro lado, é um ato
de fala performativo: não descreve nada e não pode ter valor de verdade;
a própria elocução faz algo, realiza uma ação – no caso, a ação de casar
duas pessoas. É bem-sucedida (ou “feliz”, na terminologia austiniana)
quando é dita pela pessoa adequada, nas circunstâncias adequadas e no
momento adequado. No caso de um casamento católico, por exemplo, a
pessoa adequada seria o padre, as circunstâncias adequadas incluiriam
um casal cisgênero e heterossexual, dentro de uma igreja, na frente de
convidados/as etc. e o momento adequado seria o final da cerimônia.
Se eu, enquanto professora, falo “Eu vos declaro marido e mulher” para
um casal de estudantes em sala de aula, as condições de felicidade não
são respeitadas e o casamento não será bem-sucedido.
Depois de várias tentativas de subdividir a classe dos performa-
tivos e descrever seus vários aspectos, Austin chega a uma conclu-
são surpreendente: que é difícil manter qualquer distinção entre os
atos de fala performativos e constativos, pois elocuções constativas
também podem ser performativas, ao realizar o ato de informar ou
declarar. O filósofo esqueceu, porém, outro aspecto mais pragmático
que também complica a distinção entre performativos e constativos.
Vamos ilustrar com um exemplo: a frase “Está chovendo lá fora” que
vimos no parágrafo anterior. Embora possa parecer uma elocução
Teoria(s) Queer e performaividade – E.S. Lewis 165

constativa cuja veracidade é verificável (simplesmente olhando pela


janela para ver se chove ou não), a frase pode também fazer trabalho
performativo. Ao me ouvir dizer “Está chovendo lá fora” em uma
sala de aula com uma janela aberta, uma estudante pode levantar
para fechar a janela e evitar que a chuva entre na sala. Neste caso,
a elocução “Está chovendo lá fora” foi interpretada como “Feche a
janela”9 (ou pelo menos levou a estudante a decidir fechar a jane-
la, mesmo se não fosse interpretada diretamente como um pedido
ou imperativo); assim, uma frase aparentemente constativa teve um
efeito performativo, mostrando mais uma razão pela qual é difícil
manter distinções entre as duas categorias.

Performaividade butleriana

Voltamos agora a Butler e à ideia da performatividade de gênero.


Para a filósofa, uma frase como “É uma menina”, declarada por um
médico ou uma médica no momento do nascimento de um bebê, não
é simplesmente um ato de fala constativo, descrevendo o que vê; é
um ato de fala performativo. Mais especificamente, a enunciação “É
um menina” é semelhante à frase “Está chovendo” – ambas parecem
constativas à primeira vista, mas podem fazer trabalho performativo
(ser interpretada como “Feche a janela”, no caso da segunda). Uma
menina não nasce menina; ela é “meninificada” no momento do nas-
cimento ou até antes (possibilitado pela tecnologia do ultrassom),
com base em um ou uma profissional da saúde observar certo aspec-
to da sua anatomia – um pênis ou uma vagina – e anunciar seu “sexo
biológico”. Portanto, a frase “É uma menina!”, como observa Salih
(2007, p. 61), “não é uma declaração de um fato, mas uma interpe-
lação que inicia o processo de ‘meninificação’, um processo baseado
em diferenças percebidas e impostas entre homens e mulheres, dife-
renças que estão longe de serem ‘naturais’”.
9. Podemos ver uma conexão aqui entre a ação realizada (ato perlocucionário) com base na frase
supostamente descritiva e o conceito de implicatura conversacional em Grice (1982; ver também
LEVINSON, 2007 e MARCONDES, 2005).
166 Currículo, sexualidade e ação docente

Tendo em mente essas considerações sobre atos de fala performa-


tivos, podemos começar a olhar agora para a “definição” de gênero
que Butler (2003, p. 59) propõe:
O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto
de atos repetidos no interior de uma estrutura regulado-
ra altamente rígida, [os quais] se cristaliza[m] no tempo
para produzir a aparência de uma substância, de uma
classe natural de ser.

Como vimos, esse “conjunto de atos repetidos” inclui atos de fala


performativos, como “É uma menina”. Porém, a ideia da repetição aqui
é de extrema importância, pois declarações performativas como aque-
la somente dão início ao processo de generificação. Declarar que o bebê
é uma menina uma vez só não é suficiente – um bebê só se tornará uma
menina, e uma mulher, com o passar do tempo, através de processos
repetidos de socialização vinculados ao uso do termo “menina”. Tais
processos incluem ser encorajada a vestir saias e vestidos, usar a cor
rosa, ter cabelo cumprido e usar colares, pulseiras e brincos (a “estiliza-
ção repetida do corpo” mencionada na citação acima); ser encorajada
a brincar com bonecas em vez de carrinhos e bolas; ser submetida à
expectativa de mostrar suas emoções e não ser agressiva e, mais tarde
na vida, de sentir desejo por homens. Em outras palavras, a criação do
gênero (e da sexualidade) não é um ato ou evento singular; é uma pro-
dução, uma performance, ritualizada e reiterada. É importante frisar
que essas performances não envolvem simplesmente atos de fala, mas
também estilizações corporais (roupa, cabelo etc.), gestos e ações cor-
porais (por exemplo, um menino que mostra os músculos dos braços,
sugerindo força e masculinidade), silêncios (não contestar um insulto
homofóbico pode reforçar a marginalização da homossexualidade, por
exemplo) etc. Como observa Loxley (2007, p. 119, grifos do autor), “é
através da repetição desses estilos reconhecíveis que chegamos a ser o
self generificado que aprendemos a performar”.
Teoria(s) Queer e performaividade – E.S. Lewis 167

Com essa ênfase nas repetições, Butler vincula a noção do ato


de fala performativo com a citacionalidade derrideana. Para Derrida
(1991), a força do ato de fala performativo vem da força acumulada
da iterabilidade (a possibilidade de repetir) e citacionalidade (a possibili-
dade de repetir em contextos diferentes e assim produzir significados
diferentes), não somente do fato de cumprir certas condições (pes-
soa, momento e circunstâncias adequados) como dizia Austin (1990).
O processo de reapropriação da palavra queer que vimos ao início
deste capítulo é um exemplo dessa possibilidade de repetir algo em
novos contextos e assim produzir novos significados – uma prática
performativa de ressignificação. Para Butler, as repetições se tornam
sedimentadas com o passar do tempo, fazendo com que as catego-
rias de gênero pareçam atributos naturais e preexistentes em vez de
construções performativas e sócio-históricas. É isso que a autora frisa
na citação em destaque acima quando afirma que os atos performa-
tivos “se cristaliza[m] no tempo para produzir a aparência de uma
substância, de uma classe natural de ser”. Para Butler, este processo
de (re)produção performativa do gênero e sua aparência de natura-
lidade também se aplica às categorias de sexo “biológico”10 e sexua-

10. De modo parecido a nossa historização das categorias da sexualidade, podemos fazer uma contex-
tualização histórica com a categoria de “sexo biológico”. De acordo com Laqueur (1990), para os/as
gregos/as antigos/as havia somente um sexo biológico, mas pelo menos dois gêneros. Pensava-se que
os órgãos genitais das mulheres e dos homens eram iguais, mas que uma diferença de calor resultava
na externalização ou internalização desses órgãos. Destarte, no modelo antigo, havia “um só corpo,
uma só carne, à qual se atribu[ia]m distintas marcas sociais – inscrições, certiicados culturais baseados
em caracteres sociais mais que biológicos e que comporta[va]m uma relação hierárquica entre seres
considerados de acordo com uma escala de perfeição” (ROHDEN, 1998, p. 129). Este exemplo nos
mostra que “o que conta como um sexo é culturalmente determinado e obtido” (RUBIN, 1975, p. 165).
A mudança da visão de um só sexo com graus diferentes e hierarquizados de perfeição para uma visão
de dois sexos biologicamente distintos, “uma biologia da incomensurabilidade, um novo dimorismo,
instituindo uma diferença radical entre homens e mulheres” (ROHDEN, 1998, p. 129), aconteceu
durante o Renascimento e é essa classiicação que se usa ainda na atualidade. Porém, essa mudança
não representa uma chegada a uma “verdade cientíica” depois de séculos seguindo um pensamento
“errado”; é simplesmente outra maneira de classiicar os corpos.
Aprofundando essa visão, Butler airma que nossa maneira de categorizar os “dois” sexos é uma cons-
trução histórico-social que é condicionada por discursos normativos. Criticando a distinção sexo/gênero
originalmente concebida no feminismo para questionar a ideia da biologia ser nosso destino, a autora
assevera que “não faz sentido deinir o gênero como a interpretação cultural do sexo” (2003, p. 25). Para
Butler, lógicas como “gênero é cultural e sexo é natural/biológico” (e portanto, pré-discursivo) não se
168 Currículo, sexualidade e ação docente

lidade.11 Ao início deste capítulo, vimos um exemplo historicizando


a invenção do sujeito homossexual, no qual observamos que as pa-
lavras que usamos para descrever nossas sexualidades (como “gay”,
“lésbica”, “bi” e “hétero”) só se tornaram categorias identitárias nos
últimos 60 anos. Porém, apesar de serem tão recentes, nos parecem
totalmente naturais, como se a sexualidade sempre fosse descrita da-
quela maneira. Isso é um ótimo exemplo do processo performativo
de cristalização e naturalização de ideias sobre gênero e sexualidade.

Sedgwick: repensando como deinimos sexualidades

Até agora, com nosso exemplo inicial de historização da palavra


“homossexual”, reconhecemos que categorias identitárias que des-
crevem a sexualidade são invenções relativamente recentes, naturali-
zadas e substancializadas através de processos performativos. Porém,
nos faltam algumas outras considerações para melhor desenvolver
nossa desconstrução, desnaturalização e queerificação das catego-
rias. Vamos começar com uma pergunta aparentemente simples: o
que rótulos identitários como “homossexual”, “gay”, “lésbica”, “bis-
sexual” e “heterossexual” têm em comum? Ou seja, qual o critério
para definir a sexualidade de uma pessoa? A resposta é: o gênero do
parceiro ou da parceira. Em outras palavras, rotulamos uma pessoa
como “heterossexual” quando sente desejo sexual pelo gênero “opos-

 sustentam, pois “colocar a dualidade do sexo num domínio pré-discursivo é uma das maneiras pelas
quais a estabilidade interna e a estrutura binária do sexo são eicazmente asseguradas. Essa produção
do sexo como pré-discursivo deve ser compreendida como efeito do aparato de construção cultural que
designamos por gênero” (BUTLER, 2003, p. 25-26). Dessa maneira, não somente o gênero, mas também
o sexo, são construções performativas. É importante lembrar, porém, que ao airmar isso, Butler não
está ignorando a materialidade dos corpos e o fato das pessoas, em particular as pessoas transexuais
e travestis, sofrerem discriminações com base nos seus corpos. O que a ilósofa está frisando é que as
interpretações sociais dos corpos são inluenciadas pelo discurso e outros processos histórico-sociais.
Em outras palavras, as “leituras” que fazemos dos corpos são performativamente constituídas, mas
isso não quer dizer que os corpos sejam discursivos e não materiais.
11. Além disso, como observa Pennycook (2007, p. 72), esta perspectiva também pode ser aplicada
à gramática, às línguas, e a muitas outras categorias identitárias ou propriedades aparentemente es-
truturadas ou essenciais – todos seriam “uma sedimentação de atos repetidos com o passar do tempo
dentro de contextos regulados”.
Teoria(s) Queer e performaividade – E.S. Lewis 169

to”, como “homossexual” quando sente desejo sexual pelo “mesmo”


gênero e como “bissexual” quando gosta de “ambos” gêneros.
Por que definimos a sexualidade usando esse critério? Mais uma
vez a performatividade e a ocultação do processo de naturalização
entram em jogo. A resposta é: porque estamos tão acostumados/as
com essas categorias que quase nunca nos questionamos se existem
outras maneiras de pensar a sexualidade. Eve Kosofsky Sedgwick,
outra autora canônica da Teoria Queer estadunidense, fez precisa-
mente este questionamento:
É um fato bastante incrível que, de todas as muitas dimen-
sões através das quais as atividades genitais de uma pessoa
podem ser diferenciadas (dimensões que incluem preferên-
cias para certos atos, certas zonas ou sensações, certos tipos
físicos, uma certa frequência, certos investimentos simbó-
licos, certas relações de idade ou poder, uma certa espécie,
um certo número de participantes, etc. etc. etc.), exatamente
uma, o gênero do objeto escolhido, emergiu a partir do início
do século, e tem permanecido, como a dimensão denotada
pela atualmente ubíqua categoria da “orientação sexual”.
(SEDGWICK, 1990, p. 8, grifo da autora)12

Portanto, para Sedgwick, todas as categorias de sexualidade que


usamos hoje em dia podem ser consideradas inadequadas porque
“a sexualidade se estende em tantas dimensões que não podem, de
modo algum, ser bem descritas em termos do gênero do objeto esco-
lhido” (p. 35; ver também BORNSTEIN, 1995). As classificações atu-
ais da sexualidade “não simplesmente descrevem a existência, mas
a constituem em maneiras históricas e culturalmente específicas”
(SULLIVAN, 2003, p. 2), limitando e apagando, ao mesmo tempo,
outras possibilidades. Isso é uma questão importante para pensar nas
nossas práticas de ensino, pois é mister que nós professores e profes-

12. É importante notar que muitos dos desejos e práticas sexuais que se encontram na lista de Sedgwick
nesta citação eram/são considerados patologias – não somente a homossexualidade, mas também a
“cronoinversão” (preferência de jovens para relações com idosos ou idosas), o sadomasoquismo etc.
(FÍGARI; DÍAZ-BENÍTEZ, 2009). Portanto, as poucas vezes que a sexualidade é deinida para além
do gênero do parceiro ou da parceira, tende a ser em um contexto patologizante.
170 Currículo, sexualidade e ação docente

soras não simplesmente nos preocupemos com o combate a precon-


ceitos contra categorias marginalizadas mas já estabelecidas; também
devemos olhar para toda vez que contribuímos para continuar defi-
nindo a sexualidade somente com base no gênero do parceiro ou da
parceira. Em outras palavras, em uma prática pedagógica queer te-
mos que ir além de simplesmente defender as “minorias” e combater
atitudes homofóbicas, lesbofóbicas etc.; também precisamos contri-
buir para mudanças na maneira de pensar a sexualidade em geral.13

Da heterossexualidade compulsória à matriz heteronormaiva

Outros conceitos caros à(s) Teoria(s) Queer são a heterossexuali-


dade compulsória, o heterossexismo, a heteronormatividade e a ma-
triz heteronormativa. Vamos olhar para as várias facetas desses con-
ceitos, considerando brevemente suas histórias e críticas e olhando
para como estão imbricados e relacionados com a performatividade.

A heterossexualidade compulsória

A heterossexualidade compulsória é um conceito inicialmente desen-


volvido, ao final dos anos de 1960 e início dos anos de 1970, por femi-
nistas lésbicas e ativistas do movimento para a liberação gay que “ar-
gumentavam que a heterossexualidade normativa cria uma ordem
estrutural de binarismo de gênero, divisão heterossexual-homosse-
xual, dominação masculina e privilégio heterossexual”, uma ordem
hierárquica que condiciona “psiques ocidentais, esquemas classifica-
13. Esta questão também é importante porque embora a(s) Teoria(s) Queer ofereça(m) as bases para
questionar a naturalização do sexo, gênero e sexualidade e desestabilizar visões normativas e limitadoras,
a maioria dos estudos continua a privilegiar o desejo homossexual, reforçando uma “norma homos-
sexual oculta na teoria queer” (GUSTAVSON, 2009, p. 414; ver também ERICKSON-SCHROTH;
MITCHELL, 2009). Embora o alvo das críticas de Gustavson e Erickson-Schroth & Mitchell seja (com
razão!) o problema da(s) Teoria(s) Queer reforçar(em) o binário heterossexual/homossexual ao não
prestar atenção adequada à bissexualidade, eu gostaria de frisar outra questão. Enquanto os Estudos
Queer pretendem desconstruir as categorias que usamos atualmente para apreender as sexualidades e
nos referirmos às identidades de sexualidade (hétero, gay, lésbica etc.), tendem a não prestar atenção
suiciente (ou nenhuma) a performances de sexualidade e práticas sexuais que não se encaixam em
tais rótulos ou vão além deles – rótulos que sempre deinem a sexualidade com base no gênero do(s)
parceiro(s) e da(s) parceira(s) sexuais (ver LEWIS, 2016).
Teoria(s) Queer e performaividade – E.S. Lewis 171

tórias, organizações sociais e rituais públicas” e sob cujas condições a


heterossexualidade vira compulsória (SEIDMAN, 2009, p. 19).
O termo foi popularizado pela feminista Adrienne Rich no arti-
go “Heterossexualidade compulsória e existência lésbica” (2010). De
acordo com a autora, uma variedade de instituições e forças físicas e
de controle da consciência (desde o casamento infantil até a idealiza-
ção do amor romântico heterossexual na literatura e no cinema até
a destruição de registros da lesbianidade) convencem as mulheres
que “o casamento e a orientação sexual voltada aos homens são [...]
inevitáveis componentes de suas vidas – mesmo se opressivos e não
satisfatórios” (RICH, 2010, p. 26). Para Rich, “Essa mentira coloca um
sem-número de mulheres aprisionadas psicologicamente, tentando
ajustar a mente, o espírito e a sexualidade dentro de um roteiro pres-
crito, uma vez que elas não podem olhar para além do parâmetro do
que é aceitável” (RICH, 2010, p. 41). A autora frisou também que a he-
terossexualidade compulsória aflige todas as esferas da vida, dando
destaque ao trabalho, às simples conversas e interações cotidianas, e
à educação e currículo. Embora a autora tenha inicialmente utiliza-
do o termo para se referir às experiências de mulheres, seu uso tem
sido amplificado, reconhecendo que a heterossexualidade obrigató-
ria pode afetar qualquer ser humano, embora de modos diferentes.
Embora o conceito de heterossexualidade compulsória tenha le-
vado a muitas reflexões e teorizações importantes, não é sem críticas.
Para o teórico queer Steven Seidman, um dos problemas de muitas
concepções da heterossexualidade compulsória é que acabam refor-
çando binários de gênero e sexualidade e ignoram ou até eliminam
a possibilidade da capacidade de agir, ou a agência humana. Se a or-
dem de gênero vigente é “reproduzida por estruturas psíquicas e so-
ciais que agem com a força do inconsciente”, parece que sua força vai
“além de deliberação e intenção” (SEIDMAN, 2009, p. 22). Embora a
heterossexualidade compulsória possa exercer pressão e influência
e ser uma força regulatória, é importante reconhecer que as pessoas
172 Currículo, sexualidade e ação docente

podem viver gênero e sexualidade também como construções sociais


a serem negociadas e subvertidas.
Para Seidman (2009, p. 22), é um erro pressupor que a heteros-
sexualidade compulsória sempre “traduza um código normativo de
gênero em uma realidade comportamental social” de uma maneira
direta e unívoca, pois isso pode apagar atos de transgressão das nor-
mas e outras vivências. Por exemplo, embora entre meados do sé-
culo XIX e meados do século XX a maioria das mulheres de classe
média brancas tenha seguido o roteiro de fazer o trabalho doméstico
enquanto seus maridos trabalhavam fora, isso não foi o caso para a
maioria de mulheres não brancas, imigrantes, da classe trabalhadora
e/ou camponesas, que frequentemente trabalhavam fora do âmbito
doméstico e também cuidavam da casa.
Adicionalmente, é importante lembrar que a heterossexualidade
compulsória contribui para produzir não somente sujeitos homosse-
xuais, mas diferenças e hierarquias entre homossexualidades e hete-
rossexualidades. Uma pessoa homossexual em um relacionamento
estável monogâmico, por exemplo, ao se aproximar mais ao modelo
heteronormativo burguês de relacionamentos, frequentemente será
mais bem-vista do que uma pessoa homossexual solteira e supos-
tamente promíscua. Além disso, a heterossexualidade compulsória
também contribui para estabelecer o que conta como um “heterosse-
xual normal” ou um “heterossexual desviante” (por exemplo, traba-
lhadores e trabalhadoras de sexo e de pornografia, praticantes hete-
rossexuais de BDSM etc. que também sofrem preconceito).
Em breve, veremos como o conceito da matriz heteronormativa
da(s) Teoria(s) Queer preenche algumas dessas lacunas nas conceptu-
alizações da heterossexualidade compulsória. Primeiro, porém, olha-
remos para outros dois conceitos importantes para pensar a manu-
tenção da heterossexualidade como a norma: a heteronormatividade
e o heterossexismo.
Teoria(s) Queer e performaividade – E.S. Lewis 173

A heteronormaividade e o heterossexismo

De acordo com a feminista Stevi Jackson (2006), é possível consi-


derar o conceito de heterossexualidade compulsória como um pre-
cursor do conceito de heteronormatividade, um termo que foi popula-
rizado pelo teórico queer Michael Warner no artigo Introduction: Fear
of a Queer Planet (1991) em uma seção especial da revista Social Text. A
heteronormatividade é “a ordem sexual do presente, fundada no mo-
delo heterossexual, familiar e reprodutivo” (MISKOLCI, 2012, p. 43),
uma ordem com regras que “normatizam e naturalizam a heteros-
sexualidade como modo ‘correto’ de estruturar o desejo” (BORBA,
2015, p. 96), assim estabelecendo e coagindo como pessoas devem se
comportar, desejar etc. É importante lembrar que heteronormativi-
dade não significa que todo mundo é heterossexual; frisa o funciona-
mento da norma. De acordo com Chambers, “Heteronormatividade
enfatiza até que ponto todo mundo, heterossexual ou queer, será jul-
gado, medido, investigado e avaliado desde a perspectiva da norma
heterossexual. Significa que todos e tudo são julgados desde a perspecti-
va da heterossexualidade” (CHAMBERS, 2009, p. 35, grifos do autor).
Heteronormatividade também prescreve uma certa maneira de viver
a heterossexualidade e, como veremos em breve ao falar da matriz
heteronormativa, pessoas heterossexuais que fogem daquilo que é
considerado “normal” para uma pessoa heterossexual (desde pes-
soas com “fetiches” sexuais a pessoas que decidem não ter filhos...)
também podem sofrer discriminações e pressões de se conformarem
à norma.
Como vimos anteriormente, frases aparentemente descritivas
podem ter efeitos performativos. É importante lembrar também que
performances de gênero e sexualidade são realizadas constantemen-
te, mesmo quando as pessoas estão dizendo e fazendo coisas que
parecem, na superfície, não ter nada a ver especificamente com gê-
nero e sexualidade. Pessoas heterossexuais, por exemplo, mesmo em
174 Currículo, sexualidade e ação docente

interações e conversas que tratam de acontecimentos banais e apa-


rentemente não relacionadas com a sexualidade, continuamente se
produzem como heterossexuais (ao mencionarem seus maridos ou
suas esposas em conversas sobre férias, por exemplo), mas sem se
afirmarem diretamente como heterossexuais (e.g. dizendo “Sou héte-
ro”). De acordo com Kitzinger,
esta falta de atenção à heterossexualidade como uma eventu-
al categoria identitária, assim como a facilidade com a qual
os/as interactantes fazem com que a heterossexualidade
apareça sem serem percebidos/as como ‘falando sobre’ a he-
terossexualidade, não somente reflete, mas também constrói,
a heteronormatividade. (KITZINGER, 2005, p. 223)

Performances de heterossexualidade frequentemente são “invi-


síveis”, já que a heterossexualidade é percebida como a norma no
trabalho interacional.
Relacionado com a heteronormatividade é o heterossexismo, um
sistema de ideias, preconceitos e discriminações a favor da heteros-
sexualidade e dos relacionamentos heterossexuais (ou seja, apoiando
a heterossexualidade compulsória na sociedade), que pode aconte-
cer de uma variedade de formas, desde as mais diretas até as mais
dissimuladas (JUNG; SMITH, 1993). Na sua forma mais direta, o he-
terossexismo inclui a crença que a heterossexualidade é a norma e,
portanto, superior a qualquer outra forma de sexualidade. Na sua
forma mais dissimulada, surge como heterossexualidade presumida, a
pressuposição de que toda pessoa seja heterossexual até se revelar
como “diferente”. Isso acontece, por exemplo, quando uma mulher
recebe um convite acompanhado pela frase “Pode levar seu namo-
rado”, em vez de “Pode levar sua namorada ou seu namorado” ou,
simplesmente e menos binário, “Pode levar outra pessoa, se quiser”.
De acordo com Butler, que parte das teorizações de Monique Wittig
(1980), a heterossexualidade presumida “age no interior do discur-
so para transmitir uma ameaça: ‘você-será-hetero-ou-não-será-nada’”
(BUTLER, 2003, p. 168). No nosso dia a dia, vemos exemplos de hete-
Teoria(s) Queer e performaividade – E.S. Lewis 175

rossexismo constantemente, não somente nas nossas conversas com


outras pessoas como no exemplo acima, mas também em publicida-
des, materiais didáticos etc. que mostram majoritariamente, se não
exclusivamente, casais compostos de um homem e uma mulher.14
Porém, como nos lembra Jackson (2006, p. 109), “a ordenação
social de gênero, sexualidade e heterossexualidade não pode ser re-
duzida somente à heteronormatividade”, nem ao heterossexismo. Se
a heteronormatividade depende do processo de privilegiar a hete-
rossexualidade por meio de sua normalização, para compreendê-la
é necessário olhar para como o gênero e a sexualidade estão imbri-
cados com a institucionalização e prática da heterossexualidade na
produção de seres generificados e sexualizados. A(s) Teoria(s) Queer
nos oferecem um caminho neste sentido, com as teorizações sobre a
matriz heteronormativa.

Butler e a matriz heteronormaiva

Na perspectiva queer, de acordo com Seidman (2009, p. 22), “ape-


sar das restrições estruturais da heterossexualidade compulsória, os
indivíduos podem agir em maneiras que desafiam normas de gêne-
ro”. Continuando, o autor afirma: “Em outras palavras, se a identida-
de de gênero é em parte uma realização performativa, então o gênero
deve assumir um padrão mais fluido, irregular e relacionado com a
agência do que é possível no modelo binário”. Pessoas que trabalham
com a perspectiva queer não abandonaram a ideia da heterossexuali-
dade compulsória, mas a rearticularam.
Na seção “Performatividade butleriana”, começamos a desmem-
brar a “definição” de Butler da performatividade do gênero. Só falta
comentar uma parte: a “estrutura reguladora altamente rígida” den-
tro da qual os atos performativos e estilizações corporais se repetem.
Esta estrutura é um conjunto complexo de pressões, expectativas e
14. Tais representações não somente são heterossexistas; também reforçam várias outras normas inter-
-relacionadas, como a cisgeneridade, a monogamia, o estilo de vida burguês etc.
176 Currículo, sexualidade e ação docente

restrições sociais e institucionais que Butler chama de “a matriz he-


teronormativa”. Nos esquemas de inteligibilidade disponíveis nesta
matriz, o sexo “biológico” de uma pessoa deve se alinhar com seu
gênero, e essa pessoa deve sentir desejo sexual por pessoas do sexo
e gênero “opostos”. Em outras palavras, uma pessoa que nasce com
uma vagina deve se identificar como mulher e desejar pessoas que
nasceram com pênis e se identificam como homens. As pessoas cujo
sexo, gênero e desejo não se alinham desta maneira – e/ou cujas prá-
ticas e gostos sexuais borram os limites do alinhamento15 – são con-
sideradas doentes, desviantes, estranhas, inumanas... ou, talvez pior,
não são consideradas de modo algum. De acordo com Butler (2015,
p. 21, grifos da autora), “uma vida tem que ser inteligível como uma
vida, tem de s[e] conformar a certas concepções do que é a vida, a
fim de se tornar reconhecível”. A matriz heteronormativa é também
uma matriz de inteligibilidade, uma maneira de entender, interpretar
e reconhecer o mundo e as vidas. Ao não ser “inteligível” dentro das
prescrições da matriz heteronormativa – ao não ser cisgênero e hete-
rossexual, com práticas e performances heteronormativas – as pesso-
as não são reconhecidas como pessoas no sentido pleno.
É por isso que o processo de sedimentação resultando em uma
aparência de naturalidade, mencionado anteriormente na citação em
destaque, é uma “poderosa estratégia de ocultação” da naturalização
(CHAMBERS; CARVER, 2008, p. 37) – as pessoas que não se alinham
com o modo “natural” de ser e viver são marginalizadas e apagadas
com a justificativa de supostamente serem “desnaturais”. Entender
este funcionamento performativo da matriz heteronormativa é en-
tender o funcionamento de um processo de marginalização. Não de-
vemos continuar a ver sexualidades não-heterossexuais como algo
15. Embora Butler inicialmente coloque a ênfase no alinhamento de sexo-gênero-desejo, é importante
lembrar que a matriz heteronormativa não exige simplesmente este alinhamento; também exige que
o alinhamento seja feito dentro de certos padrões de gênero e desejo. Homens, por exemplo, devem
gostar de penetrar, não de serem penetrados, mesmo quando a pessoa que realiza a penetração é uma
mulher (LEWIS, 2015, 2016). Portanto, como observam Sáez e Carrascosa (2011), o ânus e as ordens
de penetração também são uma parte fundamental da matriz heteronormativa.
Teoria(s) Queer e performaividade – E.S. Lewis 177

marginal, definidas em relação à forma “normal” dominante (como


vimos na discussão sobre De Lauretis na seção sobre a historia da(s)
Teoria(s) Queer); precisamos desconstruir os processos através dos
quais alguns sujeitos são marginalizados e outros normalizados.
Para Seidman, o conceito da matriz heteronormativa não somen-
te reconhece as forças que fazem com que a heterossexualidade seja
obrigatória na sociedade, mas também suprime algumas das lacunas
presentes nas teorias anteriores da heterossexualidade compulsória,
em particular, a questão do apagamento da agência humana e das
transgressões. As possibilidades de transformação social são uma
parte importante do conceito butleriano da matriz heteronormativa
e, como veremos a seguir, a possibilidade de subversão é o que dá
força aos performativos.

Transformação social

Infelizmente, não é possível simplesmente destruir a matriz hete-


ronormativa e recomeçar do zero. Pode parecer agora que as pessoas
estejam presas, incapazes de agir dentro dela, fadadas a repetir as
mesmas palavras e práticas muitas e muitas vezes. Porém, à diferen-
ça das conceptualizações de heterossexualidade compulsória critica-
das por Seidman que discutimos anteriormente, nas teorizações da
matriz heteronormativa de Butler os seres humanos não estão total-
mente sujeitados e subordinados ao discurso e ao poder. Podemos
sim mudar as coisas, e isso se deve graças à agência humana e o fun-
cionamento das repetições dentro do processo da própria performa-
tividade. Para Butler (1988, p. 520),
Se a base da identidade de gênero é a repetição estilizada de
atos através do tempo, e não uma identidade aparentemente
sem falhas, então, as possibilidades de transformação do gê-
nero devem ser encontradas na relação arbitrária entre esses
atos, na possibilidade de uma forma diferente de repetição,
na quebra ou repetição subversiva desse estilo.
178 Currículo, sexualidade e ação docente

Em outras palavras, desde que a matriz não é um dado natural,


mas algo (re)produzido com o passar do tempo, podemos introduzir
novas ideias, falas, práticas, estilizações corporais etc. – novas per-
formances. Podemos repetir, mas de modo diferente (o que é par-
ticularmente importante para educadores e educadoras). Enquanto
essas repetições “pegam” e proliferam, a matriz pode mudar. Como
no caso do médico proclamar “É uma menina!” uma vez só não ser
o suficiente para que o bebê se torne menina, as novas performances
devem ser repetidas para realmente efetuar transformações. Como
observa Pennycook (2007, p, 77), “a performance transgressiva só al-
cança seus efeitos em relação à sedimentação da performatividade”.
Portanto, nas palavras de Butler,
A tarefa não consiste em repetir ou não, mas em como repe-
tir, ou, a rigor, repetir e por meio de uma proliferação radical
do gênero, afastar [ou deslocar] as normas do gênero que fa-
cultam a própria repetição. (BUTLER, 2003, p. 213, grifos no
texto fonte)

Dado que não há significados antes do uso discursivo, podemos


ressignificar palavras e ideias agentivamente, ou criar novos significa-
dos, contribuindo para transformações na sociedade (PENNYCOOK,
2007). Desse modo, a visão de Butler é prática e inovadora porque não
elimina toda possibilidade de mudança e agência, ao mesmo tempo
que evita cair em uma visão voluntarista de liberdade total (ou seja, a
possibilidade de trocarmos de gênero tão fácil e rapidamente quanto
trocamos de roupa) ao reconhecer a existência de um alto nível de
regulação social, fossilizada nas instituições.16
Destarte, a formulação de Butler mostra a bidirecionalidade da
performatividade: ao (re)produzir o “normal”, também abre a possi-

16. A visão de performatividade de Butler foi criticada por ser supostamente voluntarista, dizendo que
podemos trocar de gênero facilmente como trocamos de roupa. Porém, essas críticas não se sustentam
dada a insistência de Butler nas limitações sociais às performances de gênero, sexualidade etc. impostas
pela matriz heteronormativa. Portanto, discordo plenamente com críticos como Boucher (2006, p. 137)
que acusam Butler de “oscilações entre voluntarismo e determinismo” – ao contrário, ela se planta
irme e pragmaticamente entre esses dois extremos.
Teoria(s) Queer e performaividade – E.S. Lewis 179

bilidade de (re)produzir o “anormal”; (re)produz as convenções nor-


mativas, mas ao mesmo tempo abre a possibilidade de mudá-las.17
Através da performatividade não é produzido simplesmente o que é
considerado “normal”, mas também o que é considerado “anormal”.
Portanto, dentro da performatividade normalizadora há sempre uma
oportunidade para atos dissonantes, perturbadores, desestabilizado-
res e subversivos. Apesar de criticar intensamente os processos de
regularização e normalização possibilitados pela performatividade,
Butler também vê na própria performatividade as melhores oportu-
nidades para combatê-los. Para Butler, então, a performatividade é
“simultaneamente a força traumática da normalização e o que a re-
siste” (LOXLEY, 2007, p. 137).
Essas discussões estão relacionadas com a questão da força do
performativo. Como vimos anteriormente, para Austin (1990), a força
do performativo vinha das condições da enunciação – o performativo
tinha que ser dito pela pessoa adequada, no momento adequado e
nas circunstâncias adequadas para que fosse bem-sucedida. Derrida
(1991), por outro lado, considerava que a força do performativo vi-
nha da sua repetição no decorrer do tempo. Butler, porém, critica esta
visão de Derrida, observando que “a força do performativo não é [...]
herdada de usos prévios, mas provém precisamente da sua ruptura
com todo e qualquer uso anterior. Esta fratura, esta força de ruptura,
é a força do performativo” (BUTLER, 1997, p. 148). Butler também
refuta Bourdieu (1996), que criticou Austin por esquecer as relações
de poder e o fato dos performativos só serem bem-sucedidos quan-
do proferidos por uma pessoa autorizada a falar pelo poder institu-
cional. Para Butler, Bourdieu exclui “a possibilidade de uma agência
que emerja das margens do poder” (BUTLER, 1997, p. 156), pois, ao
não reconhecer a possibilidade de uma pessoa não-autorizada a falar
17. Aqui vemos a inluência da visão de poder de Foucault na performatividade butleriana: o poder
não é simplesmente repressivo, mas produtivo. “Onde há poder, há resistência” (FOUCAULT,1988, p.
91), e onde há performances que reforçam a normatividade, há performances que a subvertem. Como
diz Foucault, “O discurso veicula e produz poder; reforça-o mas também o mina, expõe, debilita e
permite barrá-lo” (ibid, p. 96).
180 Currículo, sexualidade e ação docente

conseguir fazer algo com suas palavras (e outras ações), elimina a


possibilidade de ressignificações e mudanças sociais que partem das
margens. É suficiente lembrar as recentes ocupações de escolas pú-
blicas em São Paulo, Rio de Janeiro e outros estados para saber que
os atos de pessoas não autorizadas, no caso, os alunos e as alunas,
podem sim ter efeitos performativos bem-sucedidos.

Considerações inais: Teoria(s) Queer, educação e mudança


social

Neste capítulo, além de elucidar conceitos da(s) Teoria(s) Que-


er como performatividade e a matriz heteronormativa, realizamos a
historização e desconstrução das categorias de sexualidade vigentes
hoje em dia. Sedgwick (1990, p. 10) nos adverte, porém, que embora
uma análise desconstrutivista de categorias e binários seja um pas-
so necessário, “não é de modo algum suficiente para desabilitá-los”.
Embora a desconstrução abra possibilidades para mudanças e por
isso é frequentemente vista como ação política em si, não podemos
parar por ali, pois não há uma garantia que desconstruções e concei-
tos abstratos provocarão a mobilização da sociedade (KIRSCH, 2000).
De acordo com Wilchins (2004, p. 99), a ênfase na desconstrução “sig-
nifica que abordagens pós-modernas à política muitas vezes parecem
insistir que a subversão é um fim em si mesma”. Primeiro, os efeitos
das subversões não são previsíveis; não têm sempre os resultados
desejados e liberadores que se quer. Por exemplo, a crescente fluidez
das performances de gênero não pode ser vista “simplesmente como
outra indicação de progresso e liberação” (HALBERSTAM, 2005, p.
18), porque a flexibilidade dos corpos também se tornou um tipo de
mercadoria, no caso das cirurgias plásticas ou do uso de substân-
cias farmacêuticas, por exemplo, e uma estratégia de marketing das
grandes empresas capitalistas (HALBERSTAM, 2005; PRECIADO,
2008). Segundo, o medo dos/as teóricos/as queer de dar algum grau
de fixidez ao queer pode limitar as possíveis aplicações da teoria para
Teoria(s) Queer e performaividade – E.S. Lewis 181

além da desconstrução e subversão. Wilchins (2004, p. 106) critica a


Teoria Queer (estadunidense) por não ter se posto em prática sistema-
ticamente, observando que se não conseguirmos tirar a Teoria Queer
“fora da sua torre de marfim para trabalhar nas ruas, podemos estar
presenciando o nascimento de um grande movimento filosófico que
consegue politicizar praticamente tudo, mas não produz quase nada
de mudanças sociais organizadas e sistêmicas”.
Uma das maneiras de conjugar a(s) Teoria(s) Queer com ação po-
lítica é através das nossas intervenções enquanto educadoras e edu-
cadores, pondo as reflexões dessa(s) teoria(s) em prática em sala de
aula. Como observa Miskolci (2012, p. 44), “[i]nfelizmente, quase
toda educação e produção de conhecimento ainda é feita em uma
perspectiva heterossexista”. Adicionalmente, professores e professo-
ras frequentemente são encorajados/as, ou até coagidos/as, a evi-
tar falar de “assuntos polêmicos” (ou “ideológicos”, como vários/
as políticos/as do projeto Escola Sem Partido vêm dizendo hoje em
dia) como gênero, sexualidade, raça e classe social. Isso resulta em
um processo de ocultação e esquecimento que “naturaliza ideais cor-
póreos de raça como branquitude, de gênero como masculinidade e
de sexualidade como heterossexualidade” (MOITA LOPES, 2008, p.
126). Evitar falar sobre “assuntos polêmicos” e afrontar problemas
como o heterossexismo, porém, não é uma postura “ideologicamente
neutra” e “apolítica”; só reforça a norma burguesa masculina, hete-
rossexual e branca, e é, portanto, uma escolha muito parcial, política
e ideológica. Em outras palavras, decidir evitar uma questão é uma
escolha igualmente política que a de enfrentá-la.
A escola é “uma das agências principais de (re-)produção e orga-
nização das identidades sociais de forma generificada, sexualizada e
racializada” (MOITA LOPES, 2008, p. 127), mas também pode ser um
lugar para transgressões, subversões e transformações. Como vimos
anteriormente, Butler (2003) nos diz que a performatividade permite
não somente reforçar o status quo, mas também levar a sua subversão.
182 Currículo, sexualidade e ação docente

Já que um aspecto importante da performatividade são as repetições,


a questão não é se repetir ou não, mas de pensar sobre o que repetir e
como repetir, sempre questionando, desconstruindo e criticando. Nós
educadoras e educadores, portanto, precisamos intervir para ques-
tionar normas e estereótipos de gênero e sexualidade, desconstruin-
do sua aparente naturalidade. Devemos encorajar nossos alunos e
nossas alunas a pensarem criticamente sobre tais normas e estereóti-
pos, e, sobretudo, ouvir e valorizar os questionamentos e críticas que
já estão fazendo.
Teoria(s) Queer e performaividade – E.S. Lewis 183

Referências
ANZALDÚA, Gloria. To(o) queer the writer: loca, escrita y chicana. In: WARLAND, B. (Org.). In-
Versions: Writing by Dykes, Queers and Lesbians. Vancouver: Press Gang. p. 249-263. AUSTIN, John
L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Trad. D. Marcondes. Porto Alegre: Artes Médicas. 1990.
AUSTIN, John L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Trad. D. Marcondes. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1990.
BARNARD, Ian. Queer Race: Cultural Interventions in the Racial Politics of Queer Theory. Nova
Iorque: Peter Lang, 2004.
BENETTI, Fernando José. Genealogias abjetas: o que tem de queer o Brasil dos anos 1990?. TIRÉSIAS/
UFRNAnais... Seminário Internacional Desfazendo Gênero: Subjetividade, Cidadania e Transfeminismo,
2013. p. 1102-1114. Disp.: <http://www.sistemas.ufrn.br/shared/verArquivo?idArquivo=1756520&ke
y=0741b5bed3f81acd352e9ae60d41be44>. Acesso: 23 mar. 2014.
BESSA, Karla Adriana Martins. Gender Trouble: outra perspectiva de compreensão do Gênero. Ca-
dernos Pagu, n. 4, p. 261-267, 2005.
BORBA, Rodrigo. Linguística queer: uma perspectiva pós-identitária para os estudos da linguagem.
Revista Entrelinhas, v. 9, n. 1, jan./jun. 2015.
BORBA, Rodrigo; LEWIS, Elizabeth Sara; FABRÍCIO, Branca Falabella; PINTO, Diana de Souza.
Introduction: A Queer Postcolonial Critique of (Queer) Knowledge Production and Activism. In:
LEWIS, E.S.; BORBA, R., FABRÍCIO, B.F.; PINTO, D. (Orgs.). Queering Paradigms IV: South-North
Dialogues on Queer Epistemologies, Embodiments and Activisms. Oxford: Peter Lang, 2014.p. 1-10.
BORNSTEIN, Kate. Gender Outlaw: On Men, Women, and the Rest of Us. Nova Iorque: Vintage
Books, 1995.
BOUCHER, Geoff. The Politics of Performativity: A Critique of Judith Butler. Parrhesia, n. 1, p.
112-141, 2006.
BOURDIEU, Pierre. A linguagem autorizada: as condições sociais da eicácia do discurso ritual. In:
BOURDIEU, P.. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. Trad. S. Miceli. São Paulo:
Edusp, 1996. p. 85-96.
BUTLER, Judith. Performative Acts and Gender Constitution: An Essay in Phenomenology and Fem-
inist Theory. Theatre Journal, v. 40, n. 4, p. 519-531, dez. 1988
_______. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. Nova Iorque: Routledge, 1990.
_______. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Trad. R. Aguiar. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
_______. Fundamentos Contingentes: o Feminismo e a questão do ‘pós-modernismo’. Trad. P. M.
Soares. Cadernos Pagu, n. 11, p. 11-42, 1998.
_______. Excitable Speech: A Politics of the Performative.Nova Iorque: Routledge, 1997.
_______. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Trad. S. Lamarão; A.M. Cunha. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
CAMPAGNOLI, Mabel Alicia. Cuirizar los Derechos Sexuales. In: LEWIS, E.S.; BORBA, R.; FA-
BRÍCIO, B.F.; PINTO, D.S. (Orgs.). Queering Paradigms IVa: Insurgências queer ao Sul do equador.
Oxford: Peter Lang, 2017, p. 111-133.
CHAMBERS, Samuel A. The Queer Politics of Television. Londres e Nova Iorque: I.B. Tauris, 2009.
184 Currículo, sexualidade e ação docente

CHAMBERS, Samuel; CARVER, Terrell. Performativity/Citationality/Repetition. In: CHAMBERS,


S.; CARVER, T. Judith Butler and Political Theory: Troubling Politics. Londres e Nova Iorque:
Routledge, 2008, p. 34-50.
DE LAURETIS, Teresa. Queer Theory: Lesbian and Gay Sexualities. Differences: A Journal of Feminist
Cultural Studies, v. 3, n. 2, p. iii-xviii, 1991.
DERRIDA, Jacques. Assinatura, Acontecimento, Contexto. In: DERRIDA, J. Limited Inc. Trad. C.
M. Cesar. Campinas: Papirus, 1991. p. 11-37. Disponível em: <http://www.witz.com.br/cibercultura/
derrida.html>. Acesso em: 22 out. 2010.
ERICKSON-SCHROTH, Laura; MITCHELL, Jennifer. Queering Queer Theory, or Why Bisexuality
Matters. Journal of Bisexuality, v. 9, n. 3-4, p. 297-315, 2009.
FÍGARI, Carlos Eduardo; DÍAZ-BENÍTEZ, Maria Elvira. Introdução. exualidades que importam: Entre
a perversão e a dissidência. In: FÍGARI, C. E.; DÍAZ-BENÍTEZ, M. E. (Orgs.). Prazeres Dissidentes.
Rio de Janeiro: Garamond, 2009, p. 21-29.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Trad. M.T.C. Albuquerque e J.
A. G. Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
GRICE, Paul. Lógica e conversação. Trad. J. W. Geraldi. In: DASCAL, M. (Org.). 1982. Fundamentos
metodológicos da linguística. Pragmática, v. 4. Campinas: Unicamp, 1982, p. 81-193.
GUSTAVSON, Malena. Bisexuals in Relationships: Uncoupling Intimacy From Gender Ontology.
Journal of Bisexuality, v. 9, n. 3-4, p. 407-429, 2009.
HALBERSTAM, Judith/Jack. In a Queer Time and Place: Transgender bodies, subcultural lives. Nova
Iorque: New York University Press. 2005.
JACKSON, Stevi. Gender, sexuality and heterosexuality The complexity (and limits) of heteronorma-
tivity. Feminist Theory, v. 7, n. 1, p. 105-121, 2006.
JUNG, Patricia Beattie; SMITH, Ralph S. Heterosexism: An Ethical Challenge. Albany: State University
of New York Press, 1993.
KIRSCH, Max H. Queer Theory and Social Change. Londres e Nova Iorque: Routledge. 2000.
KITZINGER, Celia. “Speaking as a Heterosexual”: (How) Does Sexuality Matter for Talk-in-Interac-
tion? Research on Language and Social Interaction, v. 38, n. 3, p. 221-265. 2005.
LAQUEUR, Thomas. Making Sex: Body and Gender from the Greeks to Freud. Cambridge, Mass.:
Harvard University Press. 1990
LEVINSON, Stephen C. Pragmática. Trad. L. C. Borges e A. Mari. São Paulo: Martins Fontes. 2007.
LEWIS, Elizabeth Sara. “Acreditem em mim, rapazes, convencer sua namorada a meter algo no seu
cu é mais difícil do que realmente levar no cu”: performances identitárias de masculinidade e heteros-
sexualidade de praticantes de pegging. Actas del V Coloquio Internacional de Estudios Sobre Varones
y Masculinidades. Santiago, Chile, 2015. p. 1-12. Disp.: <https://mega.nz/#F!t9J2CCCY!cBFwIF-
W8ashPjxramxuJbg>. Acesso: 27 jan. 2015.
_______. Pegging, masculinities and heterosexualities: How narratives of men who enjoy being pene-
trated by women can contribute to queering the hidden homosexual norm in Queer Studies. In: VITERI,
M.A.; PICQ, M.L. (Orgs.). Queering Paradigms V: Queering Narratives of Modernity. Oxford: Peter
Lang. 2016, p. 241-263.
LEWIS, Elizabeth Sara; BORBA, Rodrigo: FABRÍCIO, Branca F. PINTO, Diana S. Introdução: Cu-
-irizando desde o Sul. In: LEWIS, E.S.; BORBA, R.; FABRÍCIO, B.F.; PINTO, D.S. (Orgs.). Queering
Paradigms IVa: Insurgências queer ao Sul do equador.Oxford: Peter Lang, 2017, p. 1-12.
Teoria(s) Queer e performaividade – E.S. Lewis 185

LOURO, Guacira L. Teoria Queer – uma política pós-identitária para a educação. Estudos Feministas,
ano 9, n. 2, p. 541-553, 2001.
_______. Um corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
LOXLEY, James. Performativity. Londres e Nova Iorque: Routledge, 2007.
MARCONDES, Danilo. A pragmática na ilosoia contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
MENGEL, Karl. Pour et contre la bisexualité: Libre traité d’ambivalence érotique. Paris: La Musar-
dine, 2009.
MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
MISKOLCI, Richard; PELÚCIO, Larissa. Ao Sul da Teoria: notas sobre Teoria Queer e a geopolítica
do conhecimento. In: LEWIS, E.S.; BORBA, R.; FABRÍCIO, B.F.; PINTO, D.S. (Orgs.). Queering
Paradigms IVa: Insurgências queer ao Sul do equador.Oxford: Peter Lang, 2017, p. 69-89.
MOITA LOPES, Luiz Paulo. Gêneros e sexualidades nas práticas discursivas contemporâneas: desaios
em tempos queer. Em: PÁDUA, A. (Org.). Identidades de gênero e práticas discursivas. Campina
Grande: Editora da Universidade Estadual da Paraíba, 2008, p. 13-20.
PELÚCIO, Larissa. Possible Appropriations and Necessary Provocations for a Teoria Cu. In: LEWIS,
E.S.; BORBA, R.; FABRÍCIO, B.F.; PINTO, D.S. (Orgs.). Queering Paradigms IV: South-North Di-
alogues on Queer Epistemologies, Embodiments and Activisms. Oxford: Peter Lang, 2014, p. 31-51.
PENNYCOOK, Alastair. Performance and Performativity. In: PENNYCOOK, A. Global Englishes
and Transcultural Flows. Nova Iorque: Routledge, 2007. p. 58-77.
PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. Queer nos trópicos. Contemporânea, v. 2, n. 2, p. 371-394, jul./dez.
2012.
PRECIADO, Beatriz/Paul. Texto Yonqui.Madri: Espasa Calpe. 2008.
RICH, Adrienne. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Trad. C. G. do Valle. Bagoas,
n. 5, p. 17-44, 2010.
ROHDEN, Fabíola. O corpo fazendo a diferença. Mana: Estudos de Antropologia Social, v. 4, n. 2,
p. 127-142, 1998.
RUBIN, Gayle. The Trafic in Women: Notes on the ‘Political Economy’ of Sex. In: REITER, R.
(Org.). Toward an Anthropology of Women. Nova Iorque: Monthly Review Books, 1975. p. 157-210.
SÁEZ, Javier; CARRASCOSA, Sejo. Por el culo: políticas anales. Barcelona e Madri: Egales, 2011.
SALIH, Sara. On Judith Butler and Performativity. In: LOVAAS, K.E.; JENKINS, M.M. (Orgs.). Sexual-
ities and Communication in Everyday Life: A Reader. Thousand Oaks, California: Sage, 2007, p. 55-68.
SAUNTSON, Helen. The Contributions of Queer Theory to Gender and Language Research. In:
HARRINGTON, K.; LITOSSELITI, L.; SAUNTSON, H.; SUNDERLAND, J. (Orgs.). Gender and
Language Research Methodologies. Hampshire e Nova Iorque: Palgrave MacMillan, 2008, p. 271-282.
SEDGWICK, Eve. Epistemology of the Closet.Berkeley e Los Angeles: University of California Press,
1990.
SEIDMAN, Steven. Critique of Compulsory Heterosexuality. Sexuality Research & Social Policy, v.
6, n. 1,.p. 18-28, mar. 2009
SOMMERVILLE, Siobhan B. Queering the Color Line: Race and the Inventions of Homosexuality
in American Culture. Durham: Duke University Press. 2000.
186 Currículo, sexualidade e ação docente

SULLIVAN, Nikki. A critical introduction to Queer Theory. Nova Iorque: New York University Press.
2003.
VITERI, María Amelia, SERRANO, José Fernando; VIDAL-ORTIZ, Salvador. ¿Cómo se piensa lo
‘queer’ en América Latina? Íconos: Revista de Ciencias Sociales, n. 39, v. 15, p. 47-60, jan. 2011.
WARNER, Michael. Introduction: Fear of a Queer Planet. Social Text, n. 29, p. 3-17, 1991.
WILCHINS, Riki. Queer Theory, Gender Theory: An Instant Primer. Los Angeles: Alysin Books, 2004.
WITTIG, Monique. The Straight Mind. Feminist Issues, v. 1, n. 1, p. 103-111, 1980.

Você também pode gostar