Você está na página 1de 23

Problemas de gênero (2003)

2 A ordem compulsória do sexo/gênero/desejo

Concebida originalmente para questionar a formulação de que a biologia é


o destino, a distinção entre sexo e gênero atende a tese de que, por mais
que o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é
culturalmente construído: consequentemente, não é nem resultado causal
do sexo, nem tampouco tão aparentemente fixo quanto o sexo. Assim, a
unidade do sujeito já é potencialmente contestada pela distinção que abre
espaço ao gênero como interpretação múltipla do sexo (p. 24).

Gênero como significados culturalmente assumidos pelo corpo sexualdo


demonstra que um sexo não decorre de um sexo que é desta ou daquela forma.
Essa distinção entre sexo/gênero supõe uma descontinuidade entre corpos
sexuados e gêneros que são construídos culturalmente. Nesse sentido, o gênero
como culturalmente construído é radicalmente independente do sexo, sendo o
próprio gênero um “artifício flutuante”.
A autora acrescenta ainda que a categoria sexo como algo imutável e
biológico, também deve ser questionada, e essa contestação induz a possibilidade
do próprio constructo “sexo” ser, assim como gênero, culturalmente construído, “a
rigor, talvez o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre
sexo e gênero revela-se absolutamente nenhuma” (p. 25).
O gênero não deve ser compreendido como “inscrição cultural de
significados” em um sexo previamente estabelecido (concepção jurídica);
devemos designar o aparato de produção ao qual os sexos são
estabelecidos. Nesse sentido, “o gênero não está para a cultura como o
sexo para a natureza; ele também é o meio discursivo/cultural pelo qual ‘a
natureza sexuada’ ou ‘um sexo natural’ é produzido e estabelecido como
2‘pré-discursivo’, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra
sobre a qual age a cultura (p. 25).

3 Gênero: As ruínas circulares do debate contemporâneo

Ao considerarmos que a cultura constrói o gênero, há a ideia de que o gênero


é tão determinado e fixo como a formulação de que a biologia é o destino, nesse
caso sendo a cultura o destino. Porém, Butler apresenta argumentos de Simone de
Beauvoir, em O segundo sexo, de que “a gente não nasce mulher, torna-se mulher”,
explicando que para ela, o gênero é construído, mas há um agente envolvido em
sua formação, um “cogito” que assume e/ou se apropria desse gênero.
Beauvoir diz claramente que a gente ‘se torna’ mulher, mas sempre sob
uma compulsão cultural a fazê-lo. E tal compulsão claramente não vem do
‘sexo’. [...]Se, como afirma ela, ‘o corpo é uma situação’, não há como
recorrer a um corpo que já não tenha sido sempre interpretado por meio
de significados culturais; consequentemente, o sexo não poderia
qualificar-se como uma facticidade anatômica prá-discursiva. Sem dúvida,
será sempre apresentado, por definição, como tendo sido gênero desde o
começo (p. 27).

Butler argumenta que a dificuldade em definir construção provém da


polaridade filosófica entre livre-arbítrio e determinismo. Dessa forma, algumas
restrições linguísticas costumeiras ao pensamento além de formarem, limitam os termos. O
corpo aparece como um desses termos, tido como passivo, sobre o qual são inscritos
significados culturais, ou sendo instrumentos no qual a vontade de apropriar-se dele ou
interpretá-lo determina seu significado. Em ambas as situações, o corpo é um instrumento,
um meio. “Mas o ‘corpo’ é em si mesmo uma construção, assim como o é a miríade de
‘corpos’ que constitui o domínio dos sujeitos com marcas de gênero” ( p. 27).
O discurso é a função de rigidez ou liberdade do gênero e do sexo, buscando
estabelecer limites às análises, ou manter dogmas do humanismo. Ao observamos os
limites da análise discursiva do gênero, pressupomos e definimos, de maneira antecipada,
as possibilidade de configurações imagináveis do gênero na cultura. Os limites das
experiências discursivas são estabelecidas nos termos de um discurso hegemônico, que se
constitui por meio de estruturas binárias, apresentadas como a “linguagem da racionalidade
universal. Assim, a coerção é introduzida naquilo que a linguagem constitui como o domínio
imaginável do gênero” (p. 28).

O gênero pode ser entendido como um significado assumido por um corpo que já é
diferenciado sexualmente, mas, esse significado só é possível em relação ao seu
significado oposto. Nesse sentido, algumas teorias feministas afirmar ser o gênero
uma relação, e não um atributo individual. Outras, argumentam que apenas o
gênero feminino é marcado, sendo a pessoa universal e o gênero masculino um só
gênero, definindo as mulheres de acordo com o sexo deles e enaltecendo os
homens como portadores de uma pessoalidade universal que consegue transcender
sua corporalidade.

Luce Irigaray apresenta que as mulheres constituem um paradoxo no


discurso da identidade. “As mulheres são o ‘sexo’ que não é ‘uno’. Numa linguagem
difusamente masculinista, uma linguagem falocêntrica, as mulheres constituem o
irrepresentável” (p. 28). Nesse sentido, as mulheres representam o sexo que é
impensado, havendo a ausência e opacidade linguística. As mulheres, para a
autora, não são o sexo uno, mas múltiplo.

Em oposição a Beauvoir, para quem as mulheres são designadas como o


Outro, Irigaray argumenta que tanto o sujeito como o Outro são esteios de
uma economia significante falocêntrica e fechada, que atinge seu objetivo
totalizante por via da completa exclusão do feminino (p. 29).

Ao considerar a mulher como sexo que não é uno, é possível criticar


as representações ocidentais hegemônicas e as que compõem a metafísica da
substância, sendo essa estruturante da própria noção de sujeito. Para explicar o que
é metafísica da substância, Butler argumenta que as concepções humanas de
sujeito presumem uma “pessoa substantiva”, que tem pose de vários atributos que
são essenciais e que não são. O posicionamento feminista humanista define o
gênero como atributo pessoal, caracterizando-o como substância. A teoria social do
gênero possui como ponto de partida a relação entre os sujeitos para conceituar o
gênero. Com isso, o que a pessoa é, e seu gênero, está de acordo com as relações
construídas em contextos específicos. “Como fenômeno inconstante e contextual, o
gênero não denota um ser substantivo, mas um ponto relativo de convergência
entre conjuntos específicos de relações, culturais e historicamente convergentes” (p.
29).

Igaray, em desacordo com essas posições, afirmaria que o “sexo” feminino


denota o ponto de “ausência linguística”, sendo impossível haver uma substância
gramatical, e a perspectiva que expõe essa substância ilusória é fundante e
perpetua o discurso masculinista. O feminino para a autora não poderia ser
teorizado por meio da relação entre masculino e feminino em qualquer discurso
dado, pois a noção de discurso é irrelevante. Os discursos constituem formas da
linguagem falocêntrica.

“As distinções existentes entre as posições acima mencionadas estão


longe de ser nítidas, podendo cada uma delas ser compreendida como a
problematização da localização e do significado do “sujeito” e do “gênero”
no contexto de uma assimetria de gênero socialmente construída (p. 30).

Para Beauvoir, o sujeito é sempre masculino, universal, e o “Outro”,


feminino, e fora das normas universalizantes que compõem a condição de pessoa.
Apesar da autora ser uma defensora do direito das mulheres se tornarem sujeitos
existenciais, ela também apresenta uma crítica em relação à “descorporificação do
sujeito epistemológico masculino abstrato”. É um sujeito abstrato por repudiar a
corporificação socialmente demarcada, projetando essa corporificação renegada e
desacreditada na condição feminina, demarcando o corpo feminino.

A associação do corpo com feminino, tem a função de estabelecer relações


as quais o sexo feminino se restringe ao corpo, e o corpo masculino é,
paradoxalmente, “instrumento incorpóreo de uma liberdade ostensivamente radical”
(p. 31). Sobre isso, “Beauvoir propõe que corpo feminino deve ser a situação e o
instrumento da liberdade da mulher, e não uma essência definidora e limitadora” (p.
31-32). A esse respeito, Butler argumenta que a análise da autora mencionada é
limitada por uma reprodução acrítica da distinção cartesiana entre liberdade e corpo,
visto que ela mantém o dualismo entre mente e corpo.

Butler apresenta ainda que a tradição filosófica iniciada por Platão, e


continuada por Descartes, Hussel e Sartre, a respeito da distinção ontológica entre
alma e corpo, permite a sustentação das relações de subordinação e hierarquia
políticas e psíquicas. Dessa forma, a mente não apenas subordina o corpo, mas
perpetua a fantasia de fuga completa da corporificação. “As associações entre
mente e masculinidade, por um lado, e corpo e feminilidade, por outro, são bem
documentadas nos campos da filosofia e do feminismo” (p. 32).

4 Teorizando o binário, o unitário e além

“A crítica feminista tem de explorar as afirmações totalizantes da economia


masculinista, mas também deve permanecer autocrítica em relação aos gestos
totalizantes do feminismo” (p. 33). Butler argumenta que os debates feministas
contemporâneos a respeito do essencialismo colocam em pauta a universalidade de
identidade feminina e a opressão masculina. Mas, essa característica globalizante
gerou críticas de mulheres que afirmam que a categoria “mulheres” era normativa e
excludente, por não demarcar privilégios de classe e raça. Essa unidade em uma
categoria rejeitou a multiplicidade das intersecções culturais, sociais e políticas que
constitui o espectro concreto de “mulheres”.

Políticas de coalizão foram propostas, as quais não pressupunham o


conteúdo que preencheria a noção de “mulheres”. Essas políticas propõem diálogos
entre mulheres, com posicionamentos diferentes, no sentido de articular identidades
diversas em uma mesma coalizão emergente. Todavia, essa teórica aliancista pode
tornar-se soberana no processo, buscando constituir uma estrutura ideal de
coalizão. ao tentar determinar o que é ou não um verdadeiro diálogo, quando a
unidade é alcançada, podem impossibilitar a dinâmica de autoformação e
autolimitação dessas coalizões.

A autora aponta que talvez seja necessário as coalizões reconhecerem suas


contradições e atuar deixando essas contradições intactas. Talvez o diálogo encerre
a aceitação das divergências, rupturas e fragmentações, como parcela de um
processo de democratização. A ideia de diálogo é culturalmente específica e
delimitada historicamente, mas “em primeiro lugar, é importante questionar as
relações de poder que condicionam e limitam as possibilidades dialógicas” (p. 35).

Seria errado supor de antemão a existência de uma categoria “mulheres”


que apenas necessitasse ser preenchida com os vários componentes de
raça, classe, idade, etnia e sexualidade para tornar-se completa. A
hipótese de sua incompletude permite a categoria servir
permanentemente como espaço disponível para os significados
contestados. A incompletude por definição dessa categoria poderá, assim,
vir a servir como um ideal normativo, livre de qualquer força coercitiva (p.
36).

Referente a necessidade ou não da “unidade” para a ação política, a autora afirma


que as formas de fragmentação podem facilitar a atuação, pois as unidade da categoria
mulheres não é pressuposta e também não é desejada. Nesse sentido, o objetivo de
“unidade” pode, instituído no nível conceitual, emergir de maneira provisória para ações
concretas que possuam propostas diversas, que não sejam a articulação de uma
identidade. Ao não haver essa expectativa compulsória de instituir um acordo a respeito da
identidade, as ações poderão ocorrer de maneira mais rápida e adequada, englobando um
maior número de mulheres, para as quais a definição de mulheres encontra-se em debate
constante.

5 Identidade, sexo e metafísica da substância

Gênero ‘inteligíveis’ são aqueles que, em certo sentido, instituem e


mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática
sexual e desejo. Em outras palavras, os aspectos de descontinuidade e
incoerência, eles próprios só concebíveis em relação a normas existentes
de continuidade e coerência, são constantemente proibidos e produzidos
pelas próprias leis que buscam estabelecer linhas causais ou expressivas
de ligação entre o sexo biológico, o gênero culturalmente constituído e a
“expressão” ou “efeito” de ambos na manifestação do desejo sexual por
meio da prática sexual (p. 38).

Nesse sentido, algumas identidades de gênero são visualizadas como falhas do


desenvolvimento ou uma impossibilidade lógica, por não se enquadrarem às normas de
inteligibilidade culturalmente estabelecidas pela matriz cultural. Todavia, a existência dessa
identidades dissidentes permite expor os limites e os objetivos que regulam os campos de
inteligibilidade e de disseminar, na própria matriz de inteligibilidade, as matrizes rivais e que
subvertem o gênero.

Vale ressaltar a divergência entre autoras(es) em relação ao conceito de sexo e


identidade sexual. Para Irigaray, só existe o sexo masculino, o qual estrutura a si mesmo
na e por meio da produção do “Outro”. Para Foucault, o sexo feminino e o masculino são
produtos de uma economia que regula de maneira difusa a sexualidade. Wittig afirma que a
categoria sexo é, em condições de heterossuxualidade compulsória, sempre feminina, e o
masculino permanece como o não mascado e sinônimo de universal. Mas há um aspecto
comum entre os posicionamentos dessas(es) autoras(es):

A noção de que o sexo aparece na linguagem hegemônica como


substância, ou falando metafisicamente, como ser idêntico a si mesmo, é
central para cada uma dessas concepções. Essa aparência se realiza
mediante um truque performativo da linguagem e/ou do discurso, que
oculta o fato de que “ser” um sexo ou um gênero é fundamentalmente
impossível (p. 40).

Para Irigaray, a gramática substantiva do gênero, a qual caracteriza homens e


mulheres como atributos de masculino e feminino, constitui-se como exemplo do sistema
binário que mascara o fato do discurso unívoco e hegemônico masculino, o falocentrismo,
que silencia o feminino como posição de multiplicidade subversiva. Foucault acrescenta que
essa gramática substantiva do sexo impõe uma relação binária artificial entre sexo feminino
e masculino, além de uma coerência interna artificial em relação a cada termo desse
sistema binário. Essa regulação binária não considera a multiplicidade subversiva de
sexualidade que rompem com as hegemonias heterossexual, reprodutiva e médico-jurídica.

Wittig estabelece que a restrição binária que estrutura o sexo obedece objetivos
reprodutivos de um sistema de heterossexualidade compulsória; e a derrubada da
heterossexulidade compulsória poderia ocasionar um real humanismo da “pessoa” livre da
categoria sexo. Ela sugere que a difusão de uma economia erótica não falocêntrica é capaz
de banir as ilusões do sexo, gênero e identidade. E parece ser “a lésbica” o terceiro gênero
que transcenderia a restrição binária do sexo, por acreditar que a lésbica é o conceito que
está além das categoria de sexo. Sobre isso, Butler afirma:

Como sujeito que pode realizar a universalidade concreta por meio da


liberdade, a lésbica de Wittig confirma, ao invés de contestar, as
promessas normativas dos ideias humanistas cuja premissa é a
metafísica. Nesse aspecto, Wittig se diferencia de Irigaray, não só nos
termos das oposições hoje conhecidas entre essencialismo e
materialismo, mas naqueles da adesão a uma metafísica da substância
que confirma o modelo normativo do humanismo como o arcabouço do
feminismo (p. 42).

Butler argumenta, em outro momento, a respeito do gênero e sua relação com a


metafísica da substância. O gênero não se constitui como substantivo, sendo “um conjunto
de atributos flutuantes”, e seu efeito substantivo é produzido performativamente e imposto
por práticas reguladoras das normas de gênero. O gênero se demonstra performativo no
interior do discurso que é herdado pela metafísica da substância. Então, “não há identidade
de gênero por trás das expressões do gênero; essa identidade é performativamente
constituída, pelas próprias ‘expressões’ tidas como seus resultados”(p. 48).

6 linguagem, poder e estratégias de deslocamento

Para Wittig, a linguagem é um instrumento ou utensílio que absolutamente


não é misógino em suas estruturas, mas somente em suas aplicações.
Para Irigaray, a possibilidade de outra linguagem ou economia significante
é a única chance de fugir da “marca” do gênero, que, para o feminino,
nada mais é o que a obliteração misógina do sexo feminino. Enquanto
Irigaray busca expor a relação ostensivamente “binária” entre os sexos
como um ardil masculinista que exclui por completo o feminino, Wittig
argumenta que posições como a de Irigaray reconsolidam a lógica binária
existente entre o masculino e o feminino, e reatualizam uma idéia mítica
do feminino (p. 50).

Wittig argumenta que o “sexo” configura-se como categoria que é produzida e


disseminada pelo sistema de heterossexualidade compulsória, com função de
restringir a produção de identidades de acordo com o eixo do desejo heterossexual.
Nesse sentido, ela elabora uma economia alternativa dos prazeres, a qual
contestaria a construção da subjetividade feminina baseada na função reprodutiva.
A proliferação de prazeres, não restrita à economia reprodutiva, propicia uma forma
especificamente feminina de difusão erótica, que seria uma contra-estratégia em
relação a constituição reprodutiva da genitalidade.

Para a autora, O corpo lésbico seria entendido como uma leitura “invertida”
dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de Freud, obra na qual o “invertido”
os homossexuais, deixam de “atingir” a norma genital. Ao considerar esses
aspectos da obra freudiana, Wittig, ao elaborar a crítica política da genitalidade,
adota a “inversão” como prática de leitura crítica, e valoriza os aspectos da
sexualidade não desenvolvida, designada por Freud, inaugurando a “política pós-
genital”. Butler argumenta que a crítica de Wittig

presume justamente a teoria psicanalítica do desenvolvimento, nela


plenamente “invertida”, que ela busca subverter. Uma resposta
psicanalítica feminista possível às colocações de Wittig seria
argumentar que ela tanto subteoriza como subestima o significado e
a função da linguagem em que ocorre “a marcado gênero” (p. 51).

Wittig também articula sua crítica destacando uma sexualidae subversiva que
se constituiria antes da imposição da lei, após seu declínio ou durante sua vigência.
A esse respeito, Foucault afirma que a sexualidade e o poder coexistem, então a
postulação de uma sexualidade subversiva livre da lei é refutada. Para o autor, o
poder, além de abranger funções jurídicas (proibitivas e reguladoras), também
abarca as funções produtivas, e a sexualidade que emerge nessa matriz de
relações de poder não é apenas a duplicação da lei em si, mas essas produções se
desviam de seus propósitos e mobilizam “sujeitos” que além de ultrapassarem os
limites da inteligibilidade cultural, expandem as fronteiras do que é culturalmente
inteligível. Ainda sobre isso, Butler apresenta que:

Se a sexualidade é construída culturalmente no interior das relações


de poder existentes, então a postulação de uma sexualidade
normativa que esteja “antes”, “fora” ou “além” do poder constitui uma
impossibilidade cultural e um sonho politicamente impraticável, que
adia a tarefa concreta e contemporânea de repensar as
possibilidade subversivas da sexualidade e da identidade nos
próprios termos do poder (p. 55)

No fim do capítulo, Butler define gênero, e como a genealogia política atua


mediante essa conceituação:

O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos


no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se
cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma
classe natural de ser. A genealogia política das ontologias do gênero, em
sendo bem-sucedida, desconstruiria a aparência substantiva do gênero,
desmembrando-a em seus atos constitutivos, e explicaria e localizaria
esses atos no interior das estruturas compulsórias criadas pelas forças
que policiam a aparência social do gênero (p. 59).

Nesse sentido, a autora ainda afirma que o sexo como unidade, a coerência
do gênero e a estrutura binária para o sexo e para o gênero, são consideradas
ficções reguladoras, as quais possibilitam a consolidação e naturalização de
regimes de poder de opressão masculina e heterossexista.

Proibição, psicanálise e a produção da matriz heterossexual

A teoria feminista já se propôs a debater sobre a existências de culturas pré-


patriarcais, se elas possuíam uma estrutura matricial ou matrilinear, e se o
patriarcado teve um início e se está sujeito a um fim. A esse respeito, apesar da
presente crítica à argumentos antifeministas que frisavam a inevitabilidade do
patriarcado, constituindo uma reificação e naturalização de um fenômeno histórico,
Butler argumenta que “embora se pretendesse que o retorno ao estado cultural pré-
patriarcal expusesse a auto-reificação do patriarcado, esse esquema pré-patriarcal
acabou mostrando outro tipo de reificação”(p. 63).

Todavia, algumas feministas realizaram críticas à alguns constructos do


próprio feminismo. O patriarcado, por exemplo, foi criticado pela ameaça de torna-se
um conceito universalizante que anularia ou reduziria assimetrias do gênero em
diversos contextos culturais. “A história das origens é, assim, uma tática astuciosa
no interior de uma narrativa que, por apresentar um relato único e autorizado sobre
um passado irrecuperável, faz a construção da lei parecer uma inevitabilidade
histórica” (p. 64).

Engels busca, assim como o feminismo socialista e as postulações


feministas baseadas na antropologia estruturalista, localizar na história ou na
cultura momentos em que se estabeleceram hierarquias de gênero. “Busca-se isolar
essas estruturas ou períodos-chave de maneira a repudiar as teorias reacionárias
que naturalizam ou universalizam a subordinação das mulheres. [...] Contudo, é
preciso esclarecer se essas importantes críticas da hierarquia do gênero
fazem ou não uso de pressuposições fictícias que implicam ideais normativos
problemáticos” (p. 65).

Algumas teóricas feministas se apropriaram da antropologia estruturalista de


Lévi-Strauss, incluindo a distinção natureza/cultura, usada para dar suporte para a
distinção sexo/gênero: supondo que haveria um feminino natural, biológico, que se
transformaria em uma mulher subordinada socialmente, estando o sexo em
consonância com a natureza, ou matéria prima, e gênero referindo-se à cultura,
ou como fabricado. Nessa perspectiva o sexo vem antes da lei e que só começa a
sua significação por intermédio de e após sua subordinação às regras de
parentesco.
A respeito disso, Butler argumenta que essa concepção se fundamenta em
um discurso da naturalização da distinção natureza/cultura, e das estratégias de
dominação que as sustentam. “A relação binária entre cultura e natureza promove
uma relação de hierarquia em que a cultura ‘impõe’ significado livremente à
natureza, transformando-a, consequentemente, num Outro a ser apropriado para
seu uso ilimitado” (p. 66).

As antropólogas Marilyn Strathern e Carol MacCormack elucidam que esse


discurso natureza/cultura costuma postular a natureza como “feminina” e que se
subordina à cultura, concebida como masculina, sendo ativa e abstrata. Nesse
mesmo sentido, a dialética existencial da misogenia também postula outro
exemplo em que a razão e a mente referem-se à masculinidade e ação, e o corpo e
natureza dizem respeito à feminilidade, que encontra-se a espera de significação
por meio do sujeito masculino.

1. A permuta crítica do estruturalismo

A lei, do discurso estruturalista de Lévi-Strauss, estabelece que existe uma estrutura


universal da troca que caracteriza os sistemas de parentesco. As estruturas
elementares de parentesco configuram a mulher como objeto de troca para
consolidação e diferenciação das relações de parentesco, ofertadas como dote de
um clã patrilinear para outro, por via do casamento. “Em outras palavras, a noiva
funciona como termo relacional entre grupos de homens; ela não tem uma
identidade, e tampouco permuta uma identidade por outra Ela reflete a identidade
masculina, precisamente por ser o lugar de sua ausência” (p. 68). Com isso, Lévi-
Strauss elabora com a sistematicidade das relações de parentesco, o apelo a uma
lógica universal que estrutura as relações humanas.

No que diz respeito à linguagem, o caráter total e fechado dessa área é


contestado pelo estruturalismo. As teorias pós-estruturalistas, ao romperem com
Suassure e com as estruturas identitárias de trocas, elaborada por Lévi-Strauss,
refuta as afirmações que dizem respeito a totalidade e universalidade.

Ainda sobre as relações patrilineares, Irigaray elucida que essas vinculações


ocorrem devido a um desejo homossocial (denominado por Irigaray como “homo-
sexualidade), em uma sexualidade recalcada que permite os laços entre os homens,
que ocorre por meio da troca e distribuição heterossexual das mulheres.

Lévi-Strauss apresenta a relação do tabu do incesto com os laços


homoeróticos. “ A troca- e, consequentemente, a regra da exogamia- não é
simplesmente a da permuta de bens. A troca - e, consequentemente, a regra da
exogamia que a expressa - tem em si mesma um valor social. Propicia os meios de
manter os homens vinculados” (, LÉVI-STRAUSS, ano, apud BUTLER, ano, p. 71).
Esse tabu produz a heterossexualidade exogâmica, que é obra artifical da
heterossualidade não incestuosa, que é obtida por via da proibição de uma
sexualidade mais natural e sem restrições.

“A lei que proíbe o incesto é o locus da economia de parentesco que proíbe a


endogamia. Lévi-Strauss afirma que a centralidade do tabu do incesto estabelece o
nexo significante entre a antropologia estrutural e a psicanálise” (p. 72). O
antropólogo afirma ainda que esse tabu não é um fato social, mas uma fantasia
cultural muito difundida. Em contraposição a isso, Butler argumenta que o fato de
haver desejos incestuosos que são fantasísticos não implica que esses não sejam
fatos sociais. Para ela, o ponto central é saber como essas fantasias são produzidas
por intermédio de sua proibição.

Para Lévi-Strauss, tanto o tabu contra o ato do incesto heterossexual entre


filho e mãe como a fantasia incestuosa instalam-se como verdades
culturais universais. [...] Nessa perspectiva fundadora do estruturalismo, a
naturalização tanto da heterossexualidade como da agência sexual
masculina são construções discursivas em parte alguma explicadas, mas
em toda parte presumidas (p. 73).

Lacan apropria-se de partes da teoria de Lévi-Strauss que dizem respeito à


proibição do incesto e a regra da exogamia na reprodução da cultura, sendo a cultura
entendida como conjunto de estruturas e significações linguísticas. A Lei, para esse autor,
proíbe a união incestuosa entre filho e mãe, e inicia as estruturas de parentesco, que
configura-se como série de deslocamentos libidinais decorrentes da linguagem. Diante
disso, a fala emerge em situações de insatisfação, sendo a insatisfação produto da
proibição incestuosa, “perde-se a jouissance [o gozo] original” (p. 73) devido ao
recalcamento primário que constitui o sujeito. Em sua posição surge o signo que é barrado
de seu significante, e que busca naquilo que significa a recuperação do prazer que não será
recuperado. Com isso, “o sujeito só fala para deslocar o desejo pelas substituições
metonímicas desse prazer irrecuperável. [...] O fato da linguagem, inevitavelmente, não
conseguir significar é a consequência necessária da proibição que alicerça a possibilidade
da linguagem e marca a futilidade de seus gestos referenciais.”

2 Lacan, Riviera e as estratégias da mascarada

Ao afirmar que o Outro a quem falta o Falo é aquele que é o Falo, Lacan
sugere claramente que o poder é exercido por essa posição feminina de
não ter, e que o sujeito masculino que “tem” o Falo precisa que esse Outro
confirme e, consequentemente, seja o Falo em seu sentido “ampliado” (p.
74 - 75).

O simbólico produz a inteligibilidade cultural por via das posições


mutuamente excludentes de “ter” o Falo (posição masculina) e “ser” o Falo
(posição paradoxal feminina). Essas posições serem interdependentes, evoca as
estruturas hegelianas da reciprocidade falha entre senhor e escravo, na qual o
senhor estabelece sua identidade por depender do escravo. Esse esforço para
constituir a identidade entre “ter” e “ser” retorna à “falta” e “perda”, as quais
alicerçam as construções fantasísticas e demarcam a incomensurabilidade do
Simbólico e do Real.

Ainda para esse autor, o sujeito só começa a existir, se colocando como


significante auto-referido na linguagem, em condição de recalcamento primário dos
prazeres indesctuosos relacionados com o corpo materno. O sujeito masculino se
manifesta para dar origem a significados, e significar, e sua suposta autonomia
busca ocultar o recalcamento. Com isso, o conflito da masculinidade pauta-se na
demanda por reconhecimento de sua autonomia plena, o qual dará fim a promessa
do retorno aos prazeres anteriores ao recalcamento.

As mulheres “são” o Falo por manterem o poder e refletir ou representar a


realidade das posturas masculinas, poder esse que, se for retirado, é capaz de
romper com as ilusões que fundam a posição desse sujeito. Para

as mulheres têm de se tornar, têm de “ser” (no sentido de “posarem como


se fossem”) precisamente o que os homens não são e, por sua própria
falta, estabelecer a função essencial dos homens. Assim, “ser” o Falo é
sempre “ser para” um sujeito masculino que busca reconfirmar e aumentar
sua identidade pelo reconhecimento dessa que “é para” (p. 76).

Ser o Falo é insatisfatório, visto que as mulheres jamais poderão refletir a lei
de maneira plena, sendo que algumas feministas argumentam que para isso seria
necessário que as mulheres renunciassem ao próprio desejo, representando a
expropriação desse desejo como não sendo nada além do reflexo. Lacan argumenta
ainda que a posição das mulheres é de um parecer, que substitui um ter, para de
um lado protegê-lo, e do outro mascarar sua falta no outro.

Esse “parecer” o Falo que as mulheres acabam tendo que representar é uma
mascarada.

O termo é significativo porque sugere sentidos contraditórios: por um lado,


se o “ser”, a especificação ontológica do Falo, é a mascarada, então isso
pareceria reconduzir todo ser a uma forma de aparência, a aparência de
ser, com a consequência de que todo ontologia do gênero é redutível a
um jogo de aparência. Por outro lado, mascarada sugere que existem um
“ser” ou uma especificação ontológica da feminilidade anterior à
mascarada, um desejo ou demanda feminina que é mascarado e capaz de
revelação, e que, na verdade, pode pressagiar uma ruptura e
deslocamento eventuais da economia significante falocêntrica (p. 78).

Lacan apresenta a discussão da máscara junto com a argumentação sobre a


homossexualidade feminina. Para ele, a homossexualidade feminina é orientada por
uma decepção, a qual é capaz de reforçar a demanda de amor. Butler afirma que
possivelmente o autor refere-se às lésbicas com status dessexualizado, havendo a
incorporação de uma recusa que surge como ausência de desejo. Ela acrescenta
ainda que essa afirmação de Lacan é feita de observações a partir de um ponto de
vista masculino e heterossexualizado, que tem a sexualidade lésbica como recusa
de uma sexualidade per se, sendo a sexualidade presumida por ele como
heterossexual, “e o observador, aqui entendido como heterossexual masculino, está
claramente sendo recusado” (p. 81).

Em 1929, Joan Riviere publica um ensaio chamado Womanliness as a


Masquerade o qual introduz a ideia de feminilidade à mascarada. A autora “parte de
noções estabelecidas sobre o que é exibir características sexuais, e como essas
características óbvias são compreendidas como expressando ou refletindo uma
orientação sexual ostensiva” (p. 82). Em sua crítica a tipologia naturalizada presente
na explicação confusa sobre gênero na teoria psicanalítica, ela argumenta que a
consumação da orientação homossexual ou heterossexual decorre da resolução de
conflitos que possuem o objetivo de eliminação da angústia. Sobre as mulheres
homossexuais ela afirma que “embora não se interessem por outras mulheres,
desejam o ‘reconhecimento’ da sua masculinidade pelos homens e afirmam ser
iguais aos homens ou, em outras palavras, homens elas próprias” (p. 85). Nesse
sentido, assim como em Lacan, a lésbica é representada aqui como uma posição
assexual, a qual recusa a sexualidade.

Stephen Heath apresenta sobre isso ainda, em “Joan Riviere and the
Mascarade” que a feminilidade é a mascarada, e com isso, a postulação de que a
libido é masculina e dela brota toda a sexualidade possível. Ela conclui que a
feminilidade é a negação dessa libido.

Ora, sua explicação pressupõe a primazia da agressão sobre a


sexualidade, o desejo de castrar e tomar o lugar do sujeito masculino, um
desejo admitidamente enraizado numa rivalidade, mas que, para ela, se
axaure no ato de deslocamento (p. 87).

Butler apresenta outras teorias psicanalíticas que argumentam sobre a


feminilidade. Algumas dessas explicações apresentam que a feminilidade
constituem-se pela exclusão da masculinidade, sendo essa parte excluída elemento
da composição psíquica bissexual. Com isso, supõe-se a existência desse
binário, que com o ocorrer o recalcamento e exclusão, transforma-se em
identidades de gêneros distintas. Essa restrição decorre da cultura, que age sobre a
bissexualidade pré-cultural. Porém, Butler apresenta suas críticas à essas
suposições:

Desde o começo, contudo, a restrição binária à sexualidade mostra


claramente que a cultura não é de modo algum posterior à bissexualidade
que ela supostamente reprime: ela constitui a matriz pela qual a própria
bissexualidade primária se torna pensável. A “bissexualidade” postulada
como fundação psíquica, e que se diz ser recalcada numa data posterior,
é uma produção discursiva que afirma ser anterior a todo discurso, levada
a efeito mediante práticas excludentes compulsórias e geradoras de uma
heterossexualidade normativa (p. 88).

Ainda sobre teoria psicanalíticas, Lacan compreende o pré-discursivo como


impossível, realizando uma crítica ao conceituar que a Lei é ao mesmo tempo
proibitiva e generativa. Entretanto, as restrições binárias continuam operando,
estruturando e formulando a sexualidade. Ao demarcar o que está sujeito ao
recalcamento, a exclusão opera antes do própria recalcamento. Embora em sua
teoria seja apresentado que o recalcamento produz o recalcado, essa
argumentação não é capaz de explicar a “nostalgia da plenitude do gozo
perdido” (p. 88) que ele também apresenta.

Ora, a perda não poderia ser compreendida como perda, a menos que a
própria irrecuperabilidade do prazer em questão não designe um passado
barrado do presente pela lei interditora. [...] o passado pré-jurídico do gozo
é incognoscível a partir do interior da língua falada; isso não quer dizer,
todavia, que esse passado não tenha realidade (p. 89).

Butler apresenta críticas também sobre a formulação do simbólico, ao


duvidar da credibilidade de sua explicação que determina uma conformidade com
uma lei que demonstra ser impossível de cumprir e que não permite flexibilidades
para reformulações culturais. Com isso, essa representação da lei paterna como
autoridade inevitável e incognoscível, à qual o sujeito sexuado está fadado ao
fracasso, é o impulso teológico que a estimula, impondo aos sujeitos sua
impotência diante da lei, por meio da obediência e do sofrimento, de maneira
semelhante à resentação de Deus no Velho Testamento.

3 Freud e a melancolia do gênero

Freud isola o mecanismo da melancolia, caracterizando-o como essencial


à “formação do ego” e do “caráter”, mas só faz menção indireta à
centralidade da melancolia no gênero. [...] Freud esclarece,
posteriormente, que o processo de internalização e preservação dos
amores perdidos é crucial para a formação do ego e de sua “escolha de
objeto” (p. 91-92).

O processo de internalização de amores perdidos constitui-se como


pertinente na formação do gênero ao haver a compreensão de que o tabu do
incesto dá inicio, para o ego, à perda do objeto de amor, e esse ego se recupera
dessa perda por meio da internalização do” objeto tabu do desejo”. Na união
heterossexual, o objeto é negado, mas não a modalidade do desejo. Já na união
homossexual, o objeto e a modalidade do desejo são renunciados, tornando-se
sujeitos à internalização característica da melancolia.
Na formação inicial de identificação menino-pai, Freud especula que a
identificação não provém de investimento objetal anterior, sendo essa identificação
não tida como consequência de um amor perdido do filho por seu pai. Entretanto,
com a postulação da bissexualidade primária, o processo de formação do caráter
e do gênero torna-se mais complicado. Mesmo considerando a disposição bissexual
da libido, Freud nega o amor sexual original do filho pelo pai, havendo um
investimento primário na mãe, e a bissexualidade sendo manifesta no
comportamento feminino e masculino no qual o menino tenta seduzir a mãe. Butler
apresenta suas colocações sobre essa organização do desejo:

Com efeito, não é primordialmente o desejo heterossexual pela mãe que


deve ser punido e sublimado, mas é o investimento homossexual que
deve ser subordinado a uma heterossexualidade culturalmente
sancionada. Ora, se é a bissexualidade primária, e não o drama edipiano
da rivalidade, que produz no menino o repúdio da feminilidade e sua
ambivalência em relação ao pai, então a primazia do investimento materno
torna-se cada vez mais duvidosa e, consequentemente a
heterossexualidade primária do investimento objetal do menino (p. 94).

Freud aponta que independentemente da razão pela qual o menino repudia a


mãe, esse repúdio é um momento fundador da consolidação do gênero. Ao
renúncia-la como objeto de amor, o menino internaliza a perda por meio da
identificação com esse objeto, ou desloca seu apego heterossexual, fortalecendo
sua ligação com o pai, e “consolidando” a masculinidade. Ao renunciar ao objetivo e
ao objeto, o menino internaliza a mãe e constitui um superego feminino, que
dissolve e desorganiza a masculinidade, de maneira a consolidar as disposições
libidinais femininas em sua local.

Em relação à menina, o complexo de Édipo pode ser positivo


(identificação com o mesmo sexo) ou negativo (identificação com o sexo oposto). A
perda do pai, iniciada com o tabu do incesto, pode ocasionar a identificação com o
objeto perdido (consolidação da masculinidade) ou fazer que o alvo se desvie do
objeto, caso da heterossexualidade triunfando sobre a homossexualidade. Freud
observa que o complexo de Édipo negativo é realizado pela força ou fraqueza da
masculinidade e da feminilidade em sua predisposição, mas não apresentando uma
explicação para o que seria exatamente essa predisposição.

A conceituação da bissexualidade em termo de predisposição, feminina


e masculina, que têm objetivos heterossexuais como seus correlatos
intencionais sugere que, para Freud, a bissexualidade é a coincidência de
dois desejos heterossexuais no interior de um só psiquismo. Com efeito, a
predisposição masculina nunca se orienta para a mãe a predisposição
feminina (a menina pode assim se orientar, mas isso antes de ter
renunciado ao lado “masculino” de sua natureza disposicional). Ao
repudiar a mãe como objeto do amor sexual, a menina repudia
necessariamente sua masculinidade e “fixa” paradoxalmente sua
feminilidade como consequência. Assim, não há homossexuais na tese de
bissexualidade primária de Freud, e só os opostos se atraem. (p. 95).

Em seguida, Butler apresenta as definições de luto e melancolia, abordados por


Freud. Para Freud, o processo de identificação referente à melancolia, constitui-se
como única possibilidade pela qual o id abre mão de seus objetos. Nesse sentido, a
identificação com amores perdidos, característico da melancolia, é a precondição do
processo do luto. Os dois processos então, originalmente conceituado como
opostos, são concebidos como aspectos que compõem o luto.

Freud observa também que essa internalização é compensatória, pois


quando o ego adere às características do objeto, está impondo-se à perda do id,
como se dissesse ao id: “Olhe, você também pode me amar - sou muito parecido
com o objeto” (p. 97). Nesse processo de internalização, a raiva e a culpa,
aumentadas pela perda, se voltam para dentro e são preservadas, e o ego substitui
o objeto internalizado. Com isso, o ego concede sua raiva ao ideal de ego, e esse
se volta contra o próprio ego, que o mantém e preserva, sendo assim, o ego
constrói uma maneira de voltar contra si.

A construção desse ideal de ego internalizado envolve também a


internalização da identidade de gênero. Freud observa que o ideal de ego
constitui-se como solução do complexo de Édipo.Dessa forma, o ideal de ego é tido
como agência interna de sanção e tabu, a qual consolida identidades de gênero por
via da reorientação e sublimação do desejo. “O genitor não só é proibido como
objeto amoroso, mas é internalizado como objeto de amor proibidor ou imperativo”
(p. 98). Com isso, o ideal de ego atua para inibir ou reprimir a expressão do desejo
pelo genitor, e também permite a existência de um “espaço” interno no qual esse
amor é preservado. No que concerne ao Complexo de édipo, a solução do dilema
edipiano pode ser positiva ou negativa, sendo que a proibição do genitor do sexo
oposto pode levar à uma identificação com o sexo do genitor perdido ou uma recusa
dessa identificação, ocorrendo o desvio do desejo heterossexual.

Considerando que as identificações substituem as relações de objeto e


são consequência de uma perda, a identificação de gênero é uma
espécie de melancolia em que o sexo do objeto perdido é
internalizado como proibição. [...] A resolução do complexo de Èdipo
afeta a identificação de gênero por via não só do tabu do incesto, mas,
antes disso do tabu contra a homossexualidade. O resultado é que a
pessoa se identifica com o objeto amoroso do mesmo sexo, internalizando
por meio disso tanto o objetivo como o objeto do investimento
homossexual [...] Aliás, quanto mais rigorosa e estável é a afinidade de
gênero, menos resolvida é a perda original, de modo que as rígidas
fronteiras de gênero agem inevitavelmente no sentido de ocultar a perda
de um objeto amoroso original,o qual, não reconhecido, não pode se
resolver (grifo meu, p. 98).
Apesar de Freud não argumentar explicitamente sobre isso, o tabu contra a
homossexuaidade precede o tabu heterossexual do incesto; o tabu contra a
homossexualidade cria as “predisposições” heterossexuais que torna o conflito
edipiano possível. Essas predisposições supostas por Freud como fatos primários
ou que constituem a vida sexual, para Butler, são efeitos de uma lei, que quando
internalizada, produz e regula diferentes identidades de gênero e a
heterossexualidade.

Contada do ponto de vista que toma a lei proibitiva como momento


fundador da narrativa, a lei tanto produz a sexualidade sob forma de
“predisposição” como reaparece ardilosamente, num momento posterior,
para transformar essas predisposições aparentemente “naturais” em
estruturas culturalmente aceitáveis de parentesco exogâmico (p. 100)

A respeito ainda da teoria psicanalítica, Butler apresenta as contraposições de


Foucault. Esse autor critica, no primeiro volume de A história da sexualidade, a
hipótese repressiva, por supor um desejo original (gozo nos termos lacanianos),
conservando a integridade ontológica e prioridade temporal referente à lei
repressiva. Foucault argumenta que o desejo, que é tido como original e
também como recalcado, é efeito da própria lei coercitiva. O tabu contra o
incesto, e contra a homossexualidade, é repressor, por presumir um desejo original,
localizado na suposição de “predisposição”, o qual sofre repressão de um
direcionamento libidinal de origem homossexual, e que produz o deslocamento do
desejo heterossexual. Nesse sentido, as predisposições se definem como pré-
discursivos, pela psicanálise, e são imbuídos de um propósito e de um significado
anterior ao seu surgimento na linguagem e na cultura.

Assim, a lei repressiva efetivamente produz a heterossexualidade, e atua


não como um código meramente negativo ou excludente, mas como uma
sanção e, mais apropriadamente, uma lei do discurso, distinguindo o que é
dizível do que é indizível (delimitando e construindo o campo do indizível),
o que é legítimo do que é ilegítimo.

4 A complexidade do gênero e os limites da identificação

O recurso ao inconsciente como fonte de subversão só faz sentido,


parece, se a lei paterna for compreendida como um determinismo rígido e
universal que faz da “identidade” um questão fixa e fantasística. Mesmo se
aceitarmos o conteúdo fantasístico da identidade, não há razão para supor
que a lei que fixa os termos dessa fantasia é impermeável à variabilidade
e às possibilidades históricas (p. 103).
Butler afirma que uma perspectiva alternativa psicanalítica sugere que as
identificações múltiplas e coexistentes produzem conflitos, convergências e
dissonâncias nas constituições de gênero, e contestam a fixidez dos
posicionamentos masculino e feminino referente à lei paterna. Essa possibilidade de
identificações múltiplas supõe que a Lei não é determinante e que pode até ser
singular.

Sobre o luto e a melancolia, Abraham e Torok afirmam que no trabalho de


luto, ocorre a introjeção, na qual o objeto não é apenas perdido, mas é
reconhecido como perdido. Na melancolia, é mais recorrente a incorporação, e o
objeto é preservado “no interior” do sujeito. Essa introjeção da perda, no luto,
caracteriza um espaço vazio, o qual é interpretado literalmente pela boca,
permitindo a fala e a significação, havendo o deslocamento da libido com a
formulação de palavras. Já na incorporação a metáfora não se faz possível,
mantendo a perda como inomimável, sendo não apenas a impossibilidade de
nomear e admitir a perda, mas corroendo as possibilidades de significação
metafórica.

O tabu do incesto é, claro, mais abrangente do que o tabu contra a


homossexualidade, mas no caso do tabu do incesto heterossexual,
mediante o qual se estabelece a identidade heterossexual, a perda é
experimentada como tristeza.Já no caso da proibição do incesto
homossexual mediante a qual se estabelece a identidade heterossexual,
a perda é preservada por intermédio de uma estrutura melancólica. A
perda do objeto é heterossexual, argumenta Freud, resulta no
deslocamento desse objeto, mas não do objetivo heterossexual; por outro
lado, a perda do objeto homossexual exige a perda do objetivo e do
objeto. Em outras palavras, não só o objeto é perdido, mas o desejo é
plenamente negado.[...] Pela trajetória total da negação, salvaguarda-se
ainda mais a preservação melancólica desse amor (p. 106)

A melancolia também se associa com a feminilidade. Irigaray argumenta


que há semelhanças no trabalho de Freud a respeito da estrutura da melancolia e
da feminilidade, ao referir-se a negação do objetivo e do objeto. Para a autora, o
reconhecimento da castração introduz a menina em uma perda não capaz de ser
representada. Dessa forma, a melancolia é a norma psicanalítica que paira o
desejo de ter o pênis, desejo que não pode ser sentido ou conhecido. Ressalta-se
que a recusa heterossexual do reconhecimento da existência da atração
homossexual primária é imposta socialmente pela proibição da homossexualidade,
acontecimento que não é verificado em casos do homossexual melancólico.

Butler faz alguns adendos sobre as partes corporais responsáveis pelo


prazer. Comumente, diz-se que os prazeres localizam-se no pênis e na vagina, mas
a autora afirma que tais concepções correspondem à corpos construídos e
naturalizados como possuidores de traços de gênero, ou seja, algumas partes do
corpo configuram-se como concebíveis de prazer por corresponderem a um ideal
normativo de corpo que é portador de um gênero específico. A esse respeito, para
saber os prazeres que viverão e os que morrerão, considera-se os que estão
relacionados às práticas legitimadoras de formação de identidade, as quais
são produzidas na matriz das normas de gênero.

5 Reformulando a proibição como poder

Dentre os motivos pelos quais as teóricas feministas se interessam pelas


explicações psicanalíticas da diferença sexual, alguns deles são as dinâmicas
edipianas e pré-edipianas como maneira de localizar a construção primária do
gênero. Uma das interpretações feministas mais influentes de Leví-Strauss, Lacan
e Freud encontra-se no artigo de Gayle Rubin, denominado “The Traffic of Women:
The ‘Political Economy’ of Sex” (Tráfico de mulheres: a ‘economia política’ do
sexo)que foi publicado em 1975.

Apoiando-se na teoria da sublimação de Freud e Marcuse (nas obras Mal-


estar da civilização e Eros e civilização), Foucault articula as produções culturais da
lei da proibição. Divergindo dessas teorias, ele defende uma lei produtiva, sem
postular a existência de um desejo original, e a forma como essa lei opera é
justificada e consolidada pela construção de uma narrativa a respeito de sua
genealogia (origem), a qual mascara sua imersão nas relações de poder. Sob essa
perspectiva, o tabu do incesto não teria como função reprimir predisposições
primárias, mas criar a distinção entre as predisposições “primárias” e
“secundárias”, narrando e reproduzindo a distinção entre a
heterossexualidade legítima e a homossexualidade ilegítima.

Sobre isso, Butler apresenta a seguinte citação de Rubin:

o tabu do incesto impõe o objetivo social da exogamia e da aliança aos


eventos biológicos do sexo e da procriação. O tabu do incesto divide o
universo da escolha sexual em categorias sexuais permitidos e proibidos
(BUTLER, ANO, p. 111 apud RUBIN, ANO, p. 173)

Como as culturas procuram reproduzir a si mesmas e manter a identidade do


grupo, a exogamia é instituída, e também a heterossexualidade exogâmica. Nesse
sentido, o tabu do incesto não apenas proíbe a união desual entre pessoas da
mesma linhagem de parentesco, mas relaciona-se com o tabu contra a
homossexualidade.

o tabu do incesto pressupõe um tabu anterior, menos anunciado, contra a


homossexualidade. Uma proibição contra algumas uniões heterossexuais
supõe um tabu contra as uniões não heterossexuais. O gênero é não
somente uma identificação com sexo; ele também implica que o desejo
sexual seja dirigido para o sexo oposto. A divisão sexual do trabalho está
implícita em ambos os aspectos do gênero - ela os cria masculino e
feminino, e os cria heterossexuais (BUTLER, ANO, p. 111 apud RUBIN,
ANO, p. 180) .

O constante esforço de descrever a sexualidade anterior à lei, caso da


bissexualidade primária e do polimorfismo ideal, demonstra que a lei é anterior à
sexualidade. Todavia, se a crítica foucaultiana da hipótese de repressão for
aplicada no tabu do incesto, percebe-se que a lei produz além da
heterossexualidade sancionada, a homossexualdade trangressora. “Ambas são na
verdade efeitos, temporal e ontologicamente posterior à lei ela mesma, e a ilusão de
uma sexualidade antes da lei é, ela própria, uma criação dessa lei” (p. 112).

Butler, ainda argumentando sobre Rubin, acrescenta que a autora possui o


compromisso de distinguir sexo e gênero, distinção essa que presume uma
realidade ontológica anterior e divergente de um “sexo” que é reformulado em nome
da lei, transformado-se depois em gênero. Para Butler, essa distinção exige uma
ordem temporal de eventos presumindo que o narrador conheça tanto o antes como
o depois. Porém, a narração decorre de uma linguagem que é posterior à lei,
consequência dela, e tendo isso em vista, não seria possível haver a narração de
algo que encontra-se fora da lei, anterior a ela.

Sobre a bissexualidade, Rubin não conceitua sobre a bissexualidade


primária, mas afirma que a bissexualidade é consequência de práticas nas quais os
pais de ambos os sexos estão presentes e cuidam da criança, e como pré-condição
da identidade de gênero, o repúdio à feminilidade não ocorre, tanto para homens
como para mulheres. Rubin afirma ainda que o colapso da heterossexualidade
compulsória ocorreria com o colapso também do gênero, e existindo, dessa
forma, a possibilidade de subversão da lei, o que possibilitaria a interpretação
cultural de corpos sexuados de maneiras diferentes sem recorrer ao gênero.

Já para Foucault, a lei pode ser compreendida como formação de poder, e


como produtora de desejo, o qual supostamente reprimiria. Nesse sentido, o
objeto do recalcamento não é o desejo, mas as variadas configurações de poder em
si, cuja variedade deslocaria as supostas universalidade e necessidade de lei
jurídica ou repressora.

A partir disso, ele faz algumas considerações a respeito do tabu do incesto.


Classificado como lei jurídica que supostamente proibiria desejos incestuosos e
construiria subjetividades com traços de gênero por via da identificação
compulsória. Sobre a universalidade dessa lei, é elucidado que uma lei ser
universal, não significa que ela opera da mesma forma em diversas culturas, mas
implica dizer que ela opera como estrutura dominante na qual ocorrem relações
sociais em seu interior. Já em relação às funções do tabu do incesto, é afirmado que
a lei que proíbe a união é a mesma que a incita, não sendo possível “isolar a função
recalcadora da função produtiva do tabu jurídico do incesto”. “Se a mãe é o desejo
original, e isso bem pode ser verdade para um grande número de famílias do
capitalismo recente, trata-se de um desejo que tanto é produzido como proibido nos
termos desse contexto cultural” (p. 115).

Capítulo 3 Atos corporais subversivos

1 A corpo-política de Julia Kristeva

Para Kristeva, o semiótico expressa a multiplicidade libidinal original no


âmbito dos termos da cultura ou, mais precisamente, no campo da
linguagem poética, em que prevalecem os significados múltiplos e a
semântica em aberto. Com efeito, a linguagem poética é a recuperação do
corpo materno nos termos da linguagem, um resgate que tem o potencial
de romper, subverter e deslocar a lei paterna (p. 122).

Butler afirma que apesar da estratégia de subversão de Kristeva, sua


teoria depende da estabilidade da lei paterna que ela busca se distanciar.
Mesmo expondo os limites de Lacan a respeito da universalidade da lei paterna na
linguagem, o semiótico é subordinado ao Simbólico.

Além disso, Butler apresenta dois pontos da tese de Kristeva dos quais
ela discorda, sendo o primeiro a falta de clareza a respeito do relacionamento
primário com o corpo materno ser um constructo viável em termos de suas teorias
linguísticas. As pulsões múltiplas que constituem o semiótico são uma economia
libidinal pré-discursiva que são conhecidas por meio da linguagem, mas que
preserva um status ontológico anterior à linguagem. O segundo ponto é o fato da
fonte libidinal de subversão não ser mantida na cultura, sendo que sua presença no
âmbito cultural induz a psicose e o colapso da vida cultural. Nesse sentido, Kristeva
postula e nega o semiótico como um ideal emancipatório, admitindo que é um tipo
de linguagem que não pode ser mantido de maneira coerente.

Kristeva argumenta ainda que o corpo materno é o portador de vários


significados que são anteriores à cultura e a noção de cultura é uma estrutura
paterna. Butler afirma que suas elucidações naturalistas do corpo materno reificam
a maternidade, restringindo uma análise de sua configuração e variabilidade
culturais. Dessa forma, ao considerar a multiplicidade libidinal pré-discursiva, deve-
se considerar se o que Kristeva conceitua sobre o corpo materno como pré-
discursivo não é produto de um discurso histórico pré-estabelecido, efeito cultural,
ao invés de causa primária.

Especificamente a respeito da linguagem poética, Kristeva estabelece que:

Diferenciando-se de Lacan, ela afirma que a linguagem poética não se


baseia num recalcamento das pulsões primárias. Ao contrário,afirma que a
linguagem é a oportunidade linguística de as pulsões romperem os termos
usuais e unívocos da linguagem. [...] a linguagem poética possui sua
própria modalidade de sentido, a qual não se conforma às exigências da
designação unívoca (p. 124).

Já o semiótico é definido como a multiplicidade de pulsões que são


manifestas na linguagem. Em sua obra “Desejo na linguagem” (1977), Kristeva
conceitua o semiótico em termos psicanalíticos, explicitando que as pulsões
primárias, as quais são recalcadas pelo simbólico e indicadas pelo semiótico,
compreendem-se como pulsões maternas. Enquanto o simbólico constitui-se como
rejeição da mãe, o semiótico, por meio de ritmos, assonâncias, entonações, jogos
sonoros e repetições, recuperam o corpo materno no discurso poético. As primeiras
ecolalias do bebê, as glossolalias presentes no discurso do psicótico, são
manifestações da continuidade da relação mãe-bebê.

O semiótico é descrito por Kristeva como destruição ou erosão do


Simbólico; diz-se que está “antes” do significado, como quando a criança
começa a vocalizar, ou “depois”, como quando o psicótico já não usa
palavras para significar. Se o Simbólico e o semiótico são entendidos
como duas modalidades de linguagem, e se compreende que o semiótico
é geralmente reprimido pelo Simbólico, então, para Kristeva, a linguagem
é entendida como um sistema em que o Simbólico permanece
hegemônico, exceto quando o semiótico rompe ou perturba seu processo
significante por via de elisão, repetição, sons isolados e multiplicações de
significados, por meio de imagens e metáforas indefinidamente
significantes (p. 126).

Kristeva considera a cultura como equivalente ao Simbólico, e esse


subordinado à “Lei do Pai”, e os modos de atividade não psicótica são os que
participam do Simbólico. Seu objetivo estratégico é validar as experiências no
Simbólico que possibilitam a manifestação das fronteiras que o segregam do
semiótico.

A autora ainda relaciona a psicose com a homossexualidade feminina:

Kristeva considera a heterossexualidade claramente como pré-requisito do


parentesco e da cultura. Consequentemente, identifica a experiência
lésbica como a alternativa psicótica à aceitação das leis paternamente
sancionadas (p. 131).

A respeito disso, Butler apresenta que ao definir a lésbica com o “Outro” da


cultura, Kristeva analisa a sexualidade lésbica como “intrinsecamente ininteligível”.
Essa redução da experiência homossexual de mulheres, ocorridas em nome da lei,
localizam Kristeva no domínio do privilégio paterno-heterossexual. A lei paterna que
permite essa incoerência, é o mecanismo que configura o lesbianismo como
constructo irracional.
Significativamente, essa descrição da experiência lésbica é feita de fora
para dentro, e nos diz mais sobre as fantasias produzidas por uma cultura
heterossexual amedrontada, para se defender de suas próprias
possibilidades homossexuais, do que sobre a próprias experiência lésbica
(p. 131).

Em seu último capítulo do primeiro volume de A história da sexualidade,


Foucault nos alerta sobre a utilização da categoria sexo como “unidade fictícia”,
princípio causal, o que facilita a inversão das relações causais, sendo o “sexo”
compreendido como causa da estrutura e do significante do desejo.

Para Foucault, o corpo não é “sexuado” em nenhum sentido significado


antes de sua determinação num discurso pelo qual ele é investido de uma
“ideia” de sexo natural ou essencial. O corpo só ganha significado no
discurso no contexto das relações de poder. A sexualidade é uma
organização historicamente específica do poder, do discurso, dos corpos e
da afetividade. Como tal, Foucault compreende que a sexualidade produz
o “sexo” como um conceito artificial que efetivamente amplia e mascara as
relações de poder responsáveis por sua gênese (p. 137).

Nesse sentido, a argumentação anterior de Kristeva, a respeito do corpo


materno, possivelmente seria interpretada por Foucault de outra forma. O corpo
materno não seria compreendido como a base de toda significação, causa de toda a
cultura, seria efeito, consequência, de um sistema de sexualidade que impõe que
o corpo feminino assuma a maternidade como essência do seu eu e lei de seu
desejo.

Para evitar a emancipação do opressor em nome do oprimido, temos de


levar em conta toda a complexidade e sutileza da lei, e nos curarmos da
ilusão de um corpo verdadeiro além da lei. Se a subversão for possível,
será uma subversão a partir de dentro dos termos da lei, por meio das
possibilidades que surgem quando ela se vira contra si mesma e gera
metamorfoses inesperadas. O corpo culturalmente construído será então
libertado, não para seu passado “natural”, nem para seus prazeres
originais, mas para um futuro aberto de possibilidades culturais (p. 139).

2 Foucault, Herculine e a política da descontinuidade sexual

“[...] Foucault entende que a sexualidade é saturada de poder, e oferece


uma visão crítica das teorias que reivindicam uma sexualidade anterior ou
posterior à lei. [...] No primeiro volume de A história da sexualidade,
Foucault argumenta que o constructo unívoco do ‘sexo’ (a pessoa é de um
sexo e, portanto, não é de outro) é (a) produzido a serviço da
regularização e do controle sociais da sexualidade; (b) oculta e unifica
artificialmente uma variedade de funções sexuais distintas e não
relacionadas e ( c) então aparece no discurso como causa, como uma
essência interior que tanto produz como torna inteligível todo tipo de
sensação, prazer e desejo específico de um sexo (p. 140-141).
Foucault propõe o discurso do “sexo” como efeito e não como origem,
então, ao invés do “sexo” como causa e significação de origem e
continuidade dos prazeres corporais, o autor apresenta a “sexualidade” como
“sistema histórico aberto e complexo de discurso e poder” (p. 141), que
produz o “sexo” como componente para ocultação e perpetuação do poder.

Uma das maneiras pelas quais o poder é ocultado e perpetuado é pelo


estabelecimento de uma relação externa ou arbitrária entre o poder,
concebido como repressão ou dominação, e o sexo, concebido como
energia vigorosa mas toldada, à espera de libertação ou auto-expressão
autêntica.[...] Quando o “sexo” é essencializado dessa maneira, torna-se
ontologicamente imune às relações de poder e à própria historicidade (p.
142).

Ainda em sua obra A história da sexualidade, Foucault se posiciona contra


os modelos de emancipação ou libertários da sexualidade, por esses modelos
se conformarem à um modelo jurídico que não reconhece o sexo como categoria
enquanto produção histórica, ou seja, “efeito” que mistifica as relações de poderes.
Dessa forma, para o autor, ser sexuado é encontra-se submetido à uma série de
regulações sociais, e ter a lei que compõe essas regulações como princípio
que forma o sexo, gênero, prazeres e desejos.

pdf 72

livros 144

Você também pode gostar