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Em síntese, o projeto de pesquisa proposto traz como problema central de que modo a

criminalização do aborto funciona historicamente como mecanismo de subversão da


autonomia privada da mulher e, no caso das mulheres brasileiras, levando em conta a
historicidade marcada pelo colonialismo, em quais condições de produção filiadas ao
discurso patriarcal, continuam cerceando os direitos das mulheres, especialmente sobre
o próprio corpo.
Traz-se como fundo da analista sua monografia, desenvolvida a partir da identificação
do discurso feminista na Constituição de 1988, onde aponta como recorte o artigo 5º,
inciso I, que diz que “homens e mulheres são iguais em direitos e deveres”.
Importa salientar que, em termos de organização do movimento feminista para a
positivação dos direitos das mulheres na constituição, o Conselho Nacional dos Direitos
da Mulher atuou de forma ímpar e descentralizada, comunicando-se com mulheres de
todo o Brasil através de cartas, onde estas diziam quais as suas propostas em termos de
direitos das mulheres para serem apresentadas à Assembleia constituinte.
Sabe-se que uma das reivindicações propostas era a legalização do aborto enquanto
política pública de saúde da mulher, pleito que não foi acolhido pelos membros da
assembleia, apesar das garantias de igualdade, liberdade e autonomia privada à todos
estarem explicitamente definidas.
Em verdade, o que se trás para discussão é, por que em um ordenamento jurídico
explicitamente liberal, no sentido em que se protege a liberdade dos indivíduos em
muitas formas, uma conduta que diz respeito à individualidade feminina e seu direito de
escolha é proibido?
É nesta perspectiva que se traz a teoria feminista como fundamental para entendermos
porquê o corpo da mulher, especificamente seu útero, é tido como propriedade do
Estado. Ao apontar que “não se nasce mulher, torna-se”, Simone de Beauvoir constrói
brevemente o ser mulher além da biologia, trazendo a este sujeito uma perspectiva
sociocultural. Tal perspectiva nos permite entender que o corpo feminino e a leitura que
se tem dele abrange marcadores sociais que predefinem papéis e comportamentos a
serem performados pelo sujeito feminino.
Neste sentido, o texto “Os atos performativos e a constituição do gênero: um ensaio
sobre fenomenologia e teoria feminista” de Judith Butler, fundamentado na constatação
de Simone de Beauvoir, desenvolve mais abrangentemente o performativo de gênero no
contexto social.
Quando Beauvoir declara que a “mulher” é uma ideia histórica e
não um fato natural, fica claro que sublinha a distinção entre
sexo, como facticidade biológica, e gênero, como interpretação
cultural ou significado dessa facticidade. De acordo com essa
distinção, ser mulher é uma facticidade sem significado, mas ser
mulher é ter se tornado mulher, ou compelir o corpo a se
conformar a uma noção histórica de “mulher”, induzir o corpo a
se tornar um signo cultural, a se materializar obedecendo uma
possibilidade historicamente delimitada, e a levar adiante esse
projeto corporal, de modo contínuo e reiterado.
A binaridade de gênero, portanto, é a base do performativo, tanto masculino quanto
feminino. Ela delimita o que se chama de “heteronormatividade”. O homem, que deve
ser heterossexual, assim como a mulher, deve portar-se de tal maneira, atrair-se por
determinada performance feminina, vestir-se de maneira condizente, enfim, obedecer
aos padrões performativos da heteronormatividade, para ser aceito como “normal” pelo
contexto que o engloba.
Apesar de uma categoria individual, os atos performativos são uma convenção social e
não é diferente quando se trata de gênero. “Sem dúvida, existem maneiras matizadas e
individuais de alguém fazer o gênero, mas o fato de que esse alguém o faz de acordo
com certas sanções e proscrições claramente não é uma questão apenas individual”
(butler).
Butler afirma que “as performances de gênero em contextos não teatrais são regidas por
convenções sociais claramente mais punitivas e reguladoras. “Desse modo, ver uma
travesti subir ao palco pode suscitar prazer e aplausos, enquanto vê-la sentada ao nosso
lado no ônibus pode despertar medo, raiva e até mesmo violência”.
Importa citar, para melhor compreensão da teoria de gênero elaborada por Butler, um
trecho do seu livro "Problemas de gênero”, onde explicita-se a desconstrução do sistema
binário para a desvinculação gênero e do sexo biológico:
“a hipótese de um sistema binário dos gêneros encerra
implicitamente a crença numa relação mimética entre gênero e
sexo, na qual o gênero reflete o sexo oi é por ele restrito.
Quando o status construído do gênero é teorizado como
radicalmente independente do sexo, o próprio gênero se torna
um artifício flutuante, com a consequência de que homem e
masculino podem, com igual facilidade, significar tanto um
corpo feminino como um masculino, e mulher e feminino, tanto
um corpo masculino como um feminino”.
O gênero só é real a medida em que é performado.
Partindo desta leitura, insere o problema da presente pesquisa. O punitivismo presente
no ordenamento jurídico relativo à proibição do aborto, diz muito mais que a proteção à
vida que os movimentos contrários a legalização afirmam: ele diz do ato performativo
designado à mulher.
Simone de Beauvoir em “O Segundo Sexo: fatos e mitos”, traz, sem assim dizê-lo,
alguns apontamentos sobre o performativo feminino na sociedade heteronormativa.
“Assim, o paternalismo, que reclama a mulher no lar, define-a
como sentimento, interioridade e imanência; na realidade, todo
existente é, ao mesmo tempo, imanência e transcendência;
quando não lhe propõem um objetivo, quando o impedem de
atingir algum, quando o frustram em sua vitória, sua
transcendência cai inutilmente no passado, isto é, recai na
imanência; é o destino da mulher, no patriarcado; não se trata,
porém, da mesma vocação tal como a escravidão não é a
vocação do escravo. Identificar a Mulher ao Altruísmo é garantir
ao homem direitos absolutos à sua dedicação, é impor às
mulheres um dever-ser categórico”.
Desta forma, definindo a mulher como naturalmente altruísta, sentimental, do lar, com
um destino traçado, reforça-se o discurso patriarcal de que a mulher, de acordo com o
gênero biológico, vem ao mundo para desempenhar um determinado papel.
Entretanto, embora o discurso patriarcal defenda a existência desse determinismo social,
designando papéis sociais a partir do gênero biológico, escondendo-se em doutrinas
cristãs conservadoras, é necessário que se tire o véu para enxergar o mecanismo
perpetuado através destas afirmações.
A descriminalização do aborto não impactaria somente na autonomia privada sobre o
corpo feminino. Os papéis sociais, mais que performativos individuais, são necessários
para a manutenção do sistema capitalista. Syvia Friederici afirma que
“as políticas que proíbem o aborto podem ser decodificadas
como dispositivos para a regulação da oferta de mão de obra, e o
colapso da taxa de natalidade e o aumento do número de
divórcios podem ser lidos como instâncias de resistência à
disciplina capitalista do trabalho. O pessoal tornou-se político, e
houve o reconhecimento de que o capital e o Estado haviam
subordinado nossa vida e a reprodução ao quarto”
Partindo desta afirmação, também pode-se ler o performativo heteronormativo feminino
como parte da manutenção econômica, à medida que seu corpo não é seu, suas escolhas
não são suas e seu desejo é subordinado à vontade do Estado.
Ademais, o ato do aborto transgrede a heteronormatividade, a medida em que rejeitar a
maternidade não está inscrito no performativo esperado pelo sexo feminino dentro de
uma perspectiva binária de gênero. Butler afirma que:
Assim, o gênero é feito em conformidade com um modelo de
verdade e falsidade que não só contradiz a sua própria fluidez
performativa, mas serve a uma política social de regulação e
controle do gênero. Performar o gênero de modo inadequado
desencadeia uma série de punições ao mesmo tempo óbvias e
indiretas, e performá-lo bem proporciona uma sensação de
garantia de que existe, afinal de contas, um essencialismo na
identidade de gênero.
Assim, o que conclui-se em um primeiro momento a partir da teorização de gênero de
Judith Butler, aplicada ao projeto proposto ao programa, é que as politicas
proibicionistas relativas ao aborto não tratam-se, como propõe o discurso religioso, de
proteção à vida e aos direitos do nascituro, mas, na verdade, dizem de um mecanismo de
controle institucionalizado, pautado no falocentrismo e na heterossexualidade
compulsória, que compele a mulher, compulsoriamente inscrita numa performance
heterossexual, a exercer um papel que já lhe foi definido pelo Estado.
Questionar, portanto, o binarismo de gênero, não se trata só de discutir a leitura da
existência de corpos que performam de maneira deslocada do normativo sociocultural,
ou ainda, discutir a sexualidade destes corpos, mas sim pôr em pauta direitos negados à
todas as pessoas a partir deste discurso.

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