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A PALAVRA NO DICIONÁRIO

FEMININO DA INFÂMIA:
SENTIDOS DE ESTUPRO
Fernanda Surubi Fernandes (UEG)1

Resumo: A palavra possui, na relação com o outro/Outro, a possibilidade de sentidos múltiplos e


variados, quando ela textualiza, significa. Quando a palavra remete à condição da mulher, sentidos
são retomados e ressignificados. Entre essas palavras, o termo estupro é uma regularidade constante.
Assim, este estudo analisa o verbete estupro do Dicionário feminino da infâmia: acolhimento e
diagnóstico de mulheres em situação de violência (FLEURY-TEIXEIRA, MENEGHEL, 2015),
pois, ao refletir sobre as relações sociais que têm significado as posições-sujeitos mulher na
contemporaneidade, a violência e, principalmente, a violência contra o seu corpo, fez-se como uma
regularidade, que precisa ser dita, significada. Nessa relação, o estupro é uma violência, tomado
aqui, portanto, como objeto simbólico, na relação com o corpo da mulher, compreendendo a
relação entre corpo, violência, crime/criminalização a partir do verbete estupro.

Palavras-chave: Discurso. Verbete. Crime.

WORD IN THE DICIONÁRIO FEMININO DA INFÂMIA: SENSES OF ESTUPRO

Abstract: The word has, in the relationship with the other/Other, the possibility of multiple and
varied senses, when it textualizes, it means. When the word refers to the condition of women,
meanings are resumed and re-signified. Among these words, the term estupro is a constant regularity.
Thus, this study analyzes the entry estupro of the Dicionário feminino da infâmia: acolhimento e
diagnóstico de mulheres em situação de violência (FLEURY-TEIXEIRA, MENEGHEL, 2015),
because when reflecting on the social relations that have meant the positions-subjects of women in
contemporary times, the violence and, mainly, the violence against his body, was made as a regularity,
which needs to be said, signified. In this relationship, rape is violence, taken here, therefore, as a
symbolic object, in the relationship with the woman’s body, comprising the relationship between
body, violence, crime/criminalization from the entry estupro.

Keywords: Discourse. Entry. Crime.

1 Doutorado em LINGUÍSTICA pela Universidade do Estado de Mato Grosso, Brasil(2020)


Docente do ensino superior da Universidade Estadual de Goiás , Brasil. Email: fesurubi.fernandes@gmail.com

ISSN 2179-0027
DOI 10.5935/2179-0027.20220049
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Primeiras palavras... outro e suas condições de produção.
Vivemos pela/na palavra, tomando-a e
A minha relação com a palavra, começa tomados por ela. Por isso, na relação com o si-
na infância, em minhas reminiscências mais lêncio, tomar a palavra é “O ato de falar é o de
presentes é a voz de meu pai que ouço, contan- separar, distinguir e, paradoxalmente, vislum-
do suas histórias, narrativas de sua vida, ou len- brar o silêncio e evitá-lo” (ORLANDI, 2007a,
das, contos que conhecia, narrativizando-os a p. 27). Não há como viver sem as palavras que
sua maneira. Nesse contato com a palavra tenho nos constituem, sem se ater a elas, sem inscre-
também em meu pai, naquele momento, o ser vê-las, sem relacioná-las, sempre materializadas
que sabia tudo, sabia o significado de todas as em nossa língua, historicizadas, ressignificadas.
palavras, tal como o pai da obra O menino que Pensando nessa recursividade, na forma
vendia palavras2. material e na relação entre língua e história, ana-
Meu pai era, assim, para mim quem pos- liso, neste estudo, o verbete estupro do Dicio-
suía o conhecimento, sempre o questionava so- nário feminino da infâmia: acolhimento e diag-
bre tudo, e ele sempre tinha uma resposta. En- nóstico de mulheres em situação de violência
tretanto, chegou um ponto em que ele não as (FLEURY-TEIXEIRA, MENEGHEL, 2015),
me dava mais. Isso ocorreu quando meu proces- partindo da compreensão de que o dicionário
so de alfabetização começou, com o ato de ler se materializa como um lugar institucional, le-
e escrever, outros acessos à palavra foram possí- gitimado, marcado fortemente pela relação de
veis, foi dessa formo que meu pai me ensinou a unidade (imaginária) da língua. Entrementes,
usar o dicionário. nesse processo, observa-se a dispersão dos sujei-
Desde esse momento, o dicionário foi um tos e dos sentidos em diferentes condições de
companheiro constante e refletiu no meu modo produção.
de ser como pessoa e como pesquisadora. Foi
assim que em minhas pesquisas de mestrado e Palavras, discurso, dicionário
doutorado, também discutia o verbete principal
de meu estudo, em um era “puta”3, em outro, A palavra possibilita a reflexão sobre a
“estupro” 4. produção dos sentidos, não especificamente na
Desse modo, o ato de questionar e pes- palavra, única, mas no modo como ela materia-
quisar as acepções das palavras é algo que ainda liza e significa a partir de diferentes processos de
me constitui. Nessa perspectiva, para este estu- significação.
do, também busquei quais serias as acepções do Ainda ponderando sobre dicionários, fui
verbete palavra. Já afirmava Orlandi (2007a, p. olhar no Dicionário de Símbolos (CHEVA-
14): “As palavras são cheias de sentidos a não di- LIER, GHERBRANT, 2020), como o verbete
zer e, além disso, colocamos no silêncio muitas palavra apareceria. Interessante observar as suas
delas”, a palavra significa em sua relação com o primeiras acepções, colocando-a em duas cate-
gorias que se relacionam, como palavra seca e
2 O menino que vendia palavras, de Ignácio de Loyola
Brandão (2016), apresenta a relação entre pai e filho, e úmida. Na acepção de seca, a palavra é:
como era significativo para o filho poder mostrar aos ou-
tros como seu pai sabia o significado das palavras. [...] atributo do Espírito Primeiro Amma, an-
3 O verbete puta foi analisado no artigo “De puta às pro- tes de ele ter empreendido a criação, é a palavra
fissionais do sexo: uma memória da língua” (FERNAN- indiferenciada, sem consciência de si. Ela exis-
DES, MALUF-SOUZA, 2013). te no homem, assim como em todas as coisas,
4 O verbete estupro foi analisado em dicionários de língua mas o homem não a conhece: é o pensamento
portuguesa em outro trabalho. “Cópula com virgem”:
divino, em seu valor potencial e, no nosso plano
processos de significação em dicionário de língua portu-
microcósmico, é o inconsciente. (CHEVALIER,
guesa. (FERNANDES, MALUF-SOUZA, 2021).

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GHERBRANT, 2020, p. 753). precisa ser fecunda, germinar e assim produzir
efeito (embrião).
Observando, portanto, em um dicionário A palavra também apresenta uma posição
de símbolo, faz-nos refletir sobre como a palavra masculina, algo que vem/se relaciona ao ho-
é simbólica. É símbolo, atravessada por mitos, mem, e se reproduz na mulher, em seu útero,
lendas, crenças, ela se materializa, ganha cor- são posições históricas e sociais que refletem for-
po e, assim, vida, “o verbo se fez carne” (João: mações ideológicas sobre os papeis da mulher, o
1:14). que permite evocar o silêncio das mulheres na
Essa relação significa a ascensão aos céus. história, pois dizer, ter a palavra é posição de po-
Ou seja, a palavra é atributo do Espírito, mas o der, e durante muito tempo, essa posição esteve
homem não a conhece, e é o inconsciente. Os atrelado ao masculino. Muitas mudanças ocor-
efeitos desses termos projetam para a palavra reram, deslocamento se fizeram presente, mas os
uma forma material na relação com o divino, efeitos históricos e sociais ainda reverberam na
com algo que ainda não veio a existir para o ho- contemporaneidade, em que a palavra ainda as-
mem, ou seja, ainda não fez sentido, por isso é sume posição de poder, numa diversidade cada
divino, ainda não está a seu alcance. vez maior, mas ainda atrelada ao masculino.
O modo de conceber a palavra como seca Por outro lado, a palavra é possibilidade
resvala, fazendo uma relação, com o conceito de de sentidos na mulher, em quem germina, efei-
silêncio de Orlandi (2007a), um silêncio fun- tos possíveis, possibilidades que permitem des-
dante, “silêncio como significação” (ORLAN- locar e assumir posições diferentes aos estabe-
DI, 2007a, p. 27). Entretanto, a autora desloca lecidos historicamente, mas ainda interpelados
dessa acepção, pois aqui em Chevalier e Gher- por um processo de legitimação, de quem pode
brant (2020), a palavra seca é preexistente, para dizer o que. Assim, é que a definição do verbete
Orlandi (2007a, p. 23) “[...] o silêncio é garan- no dicionário de símbolos também se constitui
tia de movimento de sentidos. Sempre se diz a numa interpelação ideológica, marcando posi-
partir do silêncio.” Enquanto a palavra seca ain- ções sujeitos instalados historicamente.
da não significa para o homem, por ser divina, Nessa mesma perspectiva, as duas acep-
o silêncio é a possibilidade do vir a ser sentido. ções da palavra, seca e úmida, remetem a um
Desse modo, a outra acepção diz da pala- místico, religioso, divino, produzindo efeitos
vra úmida: que regularizam seu modo de significar, estabi-
lizando os sentidos, mas também podem germi-
A palavra úmida germinou, como o próprio prin- nar, podem deslocar para outras palavras, outros
cípio da vida, no ovo cósmico. É a palavra que sentidos.
foi dada aos homens. É o som audível, conside- Dessa forma, compreende-se que: “Toda
rado uma das expressões da semente masculina, palavra é sempre parte de um discurso. E todo
o equivalente do esperma. Ela penetra na orelha,
discurso se delineia na relação com outros: dize-
que é outro sexo da mulher, e desce para enrolar-
se em torno do útero para fecundar o germe e res presentes e dizeres que se alojam na memó-
criar o embrião. (CHEVALIER, GHERBRANT, ria” (ORLANDI, 2007b, p. 43). Nessa direção,
2020, p. 753). que ao tratar do dicionário, pode-se visualizar
uma constituição histórica, lembrando sempre
A palavra úmida produz sentidos no ho- que nosso olhar como analista está também in-
mem, é viva, é vida, fecunda, reproduz, é som, terpelado pela ideologia. Por isso, a análise de
aqui remete a palavra a sua formulação, seu di- discurso possui conceitos teóricos e analíticos
zer, a oralidade. A palavra é falada. Mas para isso que permitem um olhar para o material, para
compreender como o sentido faz sentido.

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Esse funcionamento de fazer falar na lín- se tomá-los como documentos transparentes ou
gua algo que é da ordem de uma exteriorida- simplesmente como antecessores ou precursores
da ciência moderna. Tais discursos atestam, de
de, de uma memória, convoca a tensão entre a fato, modos específicos de se produzir conheci-
paráfrase e a polissemia (ORLANDI, 2007b), mento em determinadas conjunturas históricas.
pois é na repetição, no mesmo, na cristalização (NUNES, 2008, p. 110).
dos sentidos, de um já-dito, já existente que o
sentido outro/novo se instala, assim, o sentido
Trabalhar com a História das Ideias Lin-
pode sempre ser outro mesmo na repetição, vis-
guísticas no Brasil é compreender o processo de
to que, ao repetir, ocorre a instalação do equí-
formulação e legitimação da língua nacional e
voco, pois a língua não é transparente e, por sua
os modos de desnaturalizar os sentidos cristali-
opacidade, abre-se permanentemente à falha, à
zados em relação às questões de linguagem, de
deriva, aos deslocamentos.
língua e de linguísticas, razão pela qual o dicio-
A língua, para a Análise de Discurso, é
nário é um instrumento que permite estudar tal
constituída na relação com a história, enquan-
relação.
to o lugar de onde se materializa a ideologia,
Pela História das Ideias Linguísticas no
na produção e no silenciamento dos sentidos.
Brasil trazemos as noções de língua imaginária
A partir dessa compreensão, analisar os verbe-
e língua fluida, uma distinção proposta por Or-
tes permite compreender o dicionário enquanto
landi (2013) para demonstrar o contato e in-
um objeto discursivo, uma lexicografia discur-
fluência entre línguas e nações, que constituem
siva:
nossa historicidade. Para a autora, “[...] a língua
imaginária é a que os analistas fixam com suas
A lexicografia discursiva vê, nos dicionários, dis-
sistematizações e a língua fluida é a que não se
cursos. Desse modo, na escuta própria à análise
de discurso, podemos ler os dicionários como deixa imobilizar nas redes de sistemas e fórmu-
textos produzidos em certas condições tendo seu las” (ORLANDI, 2013, p. 22).
processo de produção vinculado a uma determi- Desse modo, o dicionário se coloca como
nada rede de memória diante da língua. (OR- língua imaginária, na qual há a cristalização, a
LANDI, 2013, p. 115).
fixidez, o caráter referencial dos sentidos. Con-
tudo, mesmo que o dicionário funcione como
um instrumento de homogeneização dos senti-
Para Orlandi (2013), todas as acepções diciona- dos, a deriva, os sentidos outros vão estar sempre
rizadas de uma palavra/verbete não dão conta da presentes, pois há uma ordem de real da língua,
movência dos sentidos que cada palavra possui.
que, marcado por sua incompletude, produz a
falha, o equívoco, a falta como efeito.
Desse modo, Análise de Discurso (AD) se O real da língua é um conceito trazido por
relaciona com a História das Ideias Linguísticas Lacan (1998) que, ao trabalhar os registros do
(HIL) a partir dos processos históricos e ideoló- sujeito do inconsciente, um sujeito constituído
gicos, os quais se tem da noção de ciência, en- por/pela linguagem, afirma-o como constituí-
volvendo as duas teorias, pois cada uma carrega do por três ordens de funcionamento: o real, o
sua especificidade, portanto: simbólico e o imaginário. Assim, o real diz da
impossibilidade constitutiva da linguagem, por-
Tomando as diversas formas de discurso sobre tanto do sujeito, de tudo dizer. É, pois essa im-
a(s) língua(s) para análise, efetuam-se leituras possibilidade de dizer, é este resto, esse resíduo
que remetem esses discursos a suas condições de perdido da linguagem que garante o seu caráter
produção, considerando-se a materialidade lin-
guística na qual eles são produzidos e evitando- de incompletude.

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A esse funcionamento a Análise de Dis- Dicionário feminino da infâmia:
curso acrescenta o caráter constitutivo do políti- deslocamento e sedimentação
co na língua, pois discutir sobre a língua/lingua-
gem é buscar compreender relações históricas e Falar de estupro é compreender seu sig-
sociais presentes nos discursos institucionais, nificado na relação com o processo histórico e
uma vez que na “[...] sua incompletude consti- ideológico, pois, para a Análise de Discurso, a
tutiva, a língua configura um espaço político. E ideologia remete aos efeitos de evidência que se
o saber que se constrói sobre ela delimita traje- constituem na relação entre a língua e a histó-
tos, propõe continuidades, silencia percursos.” ria (ORLANDI, 2007b), assim, sentidos sobre
(LAGAZZI-RODRIGUES, 2007, p. 11). o sujeito-mulher se constituem nesse processo.
Esses percursos podem ser observados nos Destarte, uma das mais importantes mu-
dicionários de diferentes épocas abordando mu- danças na definição de estupro em sua história
danças constitutivas dos processos de significa- de constituição, conforme Vigarello (1998), re-
ção, que fazem funcionar um político-ideológi- feriu-se ao fato de a mulher casada ser também
co na língua, de forma a produzir a ilusão de inclusa na lei, como propriedade do marido ou
completude, de transparência, de literalidade. pai. Essa adesão implicou que a redação sofresse
Assim: “O dicionário adquire aqui o sentido alteração, assegurando que “[...] todo ato sexual
de uma tecnologia própria à configuração de de qualquer natureza imposto a terceiros [...]”
relações sociais específicas e entre seus sujeitos, (VIGARELLO, 1998, p. 215) passasse a ser
na história. Ele é, desse modo, constitutivo da considerado estupro. Entretanto, definir o que
formação social.” (ORLANDI, 2013, p. 116), é ato sexual ou de qualquer natureza, faz no-
é um instrumento linguístico que possibilita vamente que se questione que ações devem ser
compreender como essas relações produzem julgadas como estupro.
efeitos nos/para/sobre os sujeitos. Essa (in)definição implicou que, nas as-
Nas palavras do poeta: “Lutar com pala- sembleias, as discussões continuassem, até que
vras é a luta mais vã, mas ainda lutamos” (AN- a definição final, para aquele momento histó-
DRADE, 2012, p. 14), mesmo assim lutamos rico, na França, fosse: “Todo ato de penetração
“mal rompe a manhã”, pois esse é o trabalho do sexual, de qualquer natureza, cometido contra
analista de discurso, que busca compreender e a pessoa de terceiro, por violência, coação ou
dar visibilidade aos processos de significação, surpresa, constitui um estupro” (VIGARELLO,
pelos efeitos de sentido que eles produzem so- 1998, p. 216). Assim, o estupro instala-se como
bre/no discurso através da relação entre a his- lei e passa a ser compreendido como crime.
tória, a língua e a ideologia. Portanto, trabalhar Esse processo de mudança, na França,
com as palavras é estar atento aos processos de conforme apresenta Vigarello (1998), faz refle-
constituição. tir como a definição de estupro, no Brasil, es-
Para Orlandi (2007b, p. 43), “[...] as pa- teve atribuída ao Código Penal, mas, até 2009
lavras falam com outras palavras”, é nessa pers- (Lei nº 12.015/2009) o Código Penal em vigor
pectiva que darei visibilidade as significações do era de 1940. Então, até a sua mudança, toda a
termo estupro, em um dicionário especializado, discussão legal sobre estupro colocava-se como
relacionada a ações de auxílio às mulheres em si- fortemente vinculada a sentidos que tomavam a
tuação de violência. Assim, compreende-se que mulher ainda como propriedade e objeto.
os verbetes, as palavras textualizam significando Trata-se de sentidos atrelados à constituição
o que diz uma sociedade (MAZIÈRE, 1989). histórica e social de formação do Brasil. Nesse as-
Nesse caso, o que dizemos como sociedade bra- pecto, a colonização e a escravidão (re)significam
sileira quando falamos de estupro? diferentemente os sentidos sobre/do estupro.

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No Brasil, há um silenciamento da mu- língua” (ORLANDI, 2013, p. 116). Contudo,
lher negra5 e indígena, que, também tomadas o efeito de completude é uma ilusão imaginária,
como propriedades, conformam uma formação daí a necessidade de dicionários específicos, em-
imaginária que as tomam como objetos de de- bora todos os dicionários não consigam abarcar
sejos, de prazer, daí a demora nas mudanças na a movência e a provisoriedade dos sentidos. Ou
lei, materializando a memória que é constitutiva seja, o fato de haver dicionários especializados
do olhar do estrangeiro como objeto de posse, em diferentes áreas remete ao real da língua, sua
tanto do Brasil quanto da mulher brasileira. incompletude, não se pode dizer tudo. Assim os
Diante dessas considerações, analiso o dicionários procuram abarcar uma totalidade de
verbete estupro do Dicionário feminino da in- forma específica, sendo uma situação ilusória,
fâmia: acolhimento e diagnóstico de mulheres mas necessária, faz parte do processo de signifi-
em situação de violência (FLEURY-TEIXEIRA, cação, os sujeitos se constituem na relação com
MENEGHEL, 2015), possibilitando dar visibi- o outro, e os verbetes mudam, surgem a par-
lidade ao trabalho da ideologia, que é o de “[...] tir de uma necessidade de significar, a partir de
produzir evidências, colocando o homem na re- uma abertura do simbólico, e ao mesmo tempo,
lação imaginária com suas condições materiais numa relação coma ideologia, procura restringir
de existência” (ORLANDI, 2007b, p. 46). os sentidos.
Nessa relação, a necessidade de se produ- Biderman afirma que os dicionários espe-
zir um dicionário sobre a violência de gênero e a cializados se dão “[...] num domínio específico
recorrência a outros temas que atravessam a his- do conhecimento (Dicionário de Análise do
tória da mulher, diz de um lugar de poder dizer Discurso, Dicionário Médico Ilustrado, Di-
na atualidade sobre como a violência está sendo cionário dos Animais do Brasil, entre outros)”
significada, e como a mulher ainda é atravessada (apud CENTURION, MORAES, 2013, p.
por um processo de interdição. 137). Com base nessa consideração, o dicioná-
Assim, analisar o verbete permite visuali- rio especializado eleito para a análise: Dicioná-
zar uma relação com diferentes discursividades, rio feminino da infâmia: acolhimento e diag-
com a violência contra a mulher, as condições nóstico de mulheres em situação de violência
contemporâneas e, portanto, vislumbrar o des- (FLEURY-TEIXEIRA, MENEGHEL, 2015),
locamento sobre os sentidos de estupro mar- se constitui como meio de compreensão sobre a
cados no termo “crime”, pois a criminalização violência contra a mulher.
representa conquista de direitos, lutas para im- O dicionário especializado remete a pro-
plantar e melhorar leis para que não haja a vio- blemáticas enfrentadas pelas mulheres, e isso diz
lência contra a mulher, ou seja, para que não sobre a necessidade de direcionar e especificar
haja estupros. o dicionário. Também é especializado por ser
Essas condições específicas de produção produzido por especialistas na área temática do
de um dicionário para abordar a questão do fe- dicionário, da área da saúde, por exemplo.
minino não deixam, contudo, de referir-se ao Dessa maneira, o dicionário, organizado
imaginário de unidade que a língua e o dicioná- por Fleury-Teixeira e Meneghel (2015), apre-
rio asseguram, pois, pela noção de “[...] unidade senta-se como uma especialidade da condição
da língua e sua representatividade: supõe-se que feminina que, conforme o prefácio, “[...] intro-
um dicionário contenha (todas) as palavras da duz normas e procedimentos no trato do coti-
diano de atendimento a mulheres em situação
5 Como pode ser visualizado na análise do estupro no de violência, conferindo às políticas públicas
filme Cidade de Deus (2002), presente no artigo “Cor-
po, estupro e processo de não-nomeação em Cidade de
que as originaram a devida dimensão histórica”
Deus” (FERNANDES, MALUF-SOUZA, 2021). z9).

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As autoras expõem, ainda na apresenta- Antes da análise do verbete faz-se necessá-
ção, o objetivo da obra que é “[...] contribuir ria a análise do título do dicionário: Dicionário
para que tanto o público leigo quanto as equi- feminino da infâmia, cujo nome faz remissão à
pes multiprofissionais de saúde, assistência so- memória discursiva que constituiu/constitui as
cial, segurança e justiça que atendem mulheres mulheres nas relações sociais, pois, marcando o
em situação de violência tivessem uma obra de feminino pela infâmia, recupera-se a condição
referência à mão, em seu cotidiano nem sempre que constituiu a situação da mulher na história
fácil” (FLEURY-TEIXEIRA; MENEGHEL, e seus efeitos na contemporaneidade, tal como
2015, p. 11). apresentado no prefácio do livro, que é escrito
Nessas definições, o dicionário se apre- por Freira (2015, p. 09)7, e que traz, de início,
senta como um manual de orientação que, em a definição de infâmia:
meio às situações difíceis do cotidiano que pre-
cisam de suporte, instala-se como uma espécie 1 – má fama. 2 – perda de boa fama. 3 – dano
de tutorial para lidar com o atendimento de social ou legal feito à reputação de alguém; de-
mulheres em condição de violência. Nesse con- sonra, desdouro, ignomínia, labéu. 4 – caráter
daquilo que é infame; torpeza, vileza, abjeção, ...
texto, o dicionário coloca-se como um material ato ou dito infame.
necessário, dado que a violência contra a mulher
só tem aumentado e é necessário saber lidar com
essas situações. Ao olhar para as definições, compreende-
Compreende-se, portanto, que o gesto mos que há uma relação de sentido com o ver-
de criar um dicionário especializado coloca-se bete “estupro”, a partir de sua história de cons-
como um imperativo de mudança, pois, con- tituição, apresentando a noção da imagem da
forme nos ensina Pêcheux (2008), nem sempre mulher enquanto virgem pura e casta e da mu-
o modo de lidar está estabelecido, colocando lher puta, é produzida, retomada, atualizada em
como emergencial a necessidade de rompimen- termos como desonra, infame. Isso mostra que,
to com o que se coloca como sendo da ordem se por um lado essas mudanças são evidentes, na
de um semanticamente estabilizado, o que mar- contemporaneidade, pelas lutas e movimentos
ca, mais uma vez, o processo de mudança como sociais, por outro, a condição da mulher ain-
constituído pelo batimento entre a unidade e a da resvala em sentidos ditados alhures. Assim, o
dispersão. alhures realizado, o que está fora, ao se construir
Nessas condições de produção, o dicioná- os “novos” dicionários, instala-se como um rea-
rio é constituído por verbetes produzidos por lizado alhures (PÊCHEUX, 1990).
diferentes especialistas, dentre pesquisadores da Partindo, então, das condições de produ-
área, gestores da saúde, segurança pública etc. ção dos dicionários específicos, recorta-se alguns
Desse modo, cada verbete é descrito e atualiza- trechos nos quais se materializa a definição de
do por autores distintos, que se autorizam como estupro, pois diferentemente dos verbetes dos
responsáveis pelos verbetes, segundo suas áreas dicionários tradicionais, que são breves e, de cer-
de atuação. ta forma, sucintos, a forma de apresentação da
Esse funcionamento remete-se às políticas definição, no dicionário feminino da infâmia,
públicas atuais e às mudanças que ocorreram em Violência: um tema de saúde pública, realizado em Belo
relação aos papeis sociais da mulher. Assim, o di- Horizonte (2010); a Tenda da Infâmia, montada no 9º
cionário distribuiu 100 verbetes a especialistas, Seminário Internacional Rede Unida, em Porto Alegre
que os levaram a debates em diferentes Fóruns e (2010); o Seminário Fazendo Gênero: diásporas, diversi-
dade e deslocamentos, Florianópolis (2010).
Seminários6, objetivando suas construções. 7 Freira é representante da Fundação Ford, no escritório
6 Como o I Fórum Fiocruz Mulheres em Situação de do Rio de Janeiro.

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se faz como um texto dissertativo-argumentati- pois, conforme afirma Vigarello (1998), o estu-
vo, produzido por um dos especialistas sobre o pro ocorrido com mulheres era tido como um
assunto. Assim, o verbete que analiso vai da pá- fato natural, visto que os homens tinham dese-
gina 137 a 140, razão pela qual retomo apenas jos que necessitavam ser satisfeitos, além de ser
alguns trechos dele: difícil de provar, pois o embate se dava entre a
palavra da vítima contra a do agressor, prevale-
Estupro é definido pelo Código Penal Brasileiro cendo, muitas vezes a palavra do agressor, que
como um crime de ação pública, que consiste no apresentava como justificação uma pretensa in-
ato de “constranger alguém, mediante violência dução ao ato, pela vítima. Naquelas condições
ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a pra-
ticar ou permitir que com ele se pratique outro de produção, patriarcal9 e sexista, não era difícil
ato libidinoso” (CP, art. 213). (FLEURY-TEI- de considerar como verdadeira a justificativa do
XEIRA, MENEGHEL, 2015, p. 137). agressor, assim, atos de estupro praticado contra
crianças e contra homens era um tipo de violên-
As autoras do verbete iniciam a aborda- cia muito mais condenável, mas que, sequer iam
gem com a definição de estupro, a partir da lei a julgamento, dado o caráter de tabu atribuído
brasileira. Nessa noção, coloca como primeira a tal prática.
palavra da definição o estupro como “crime”, e A mudança do termo mulher para alguém
contra “alguém”, estabelecendo sentidos com a abarca todas essas conjunturas apresentadas,
história de alteração na lei, marcada por parte pois apenas a substituição pelo termo “alguém”
do enunciado do artigo 213 do Código Penal não garante que esse alguém não continue sen-
Brasileiro, de 19408. do a mulher usurpada no direito sobre seu cor-
Segundo Braz, Fortes e Warmeling (2019), po ou raptada do homem que lhe deu nome.
essa mudança é recente, pois antes constava Esses sentidos se constituem por processos para-
como ato ocorrido contra a “mulher” e na atu- frástico e polissêmico entre “contra a mulher” e
al definição abrange mais sujeitos com o termo “contra alguém”. É interessante perceber como
“alguém”. A adoção da expressão crime pratica- a posição sujeito-mulher instala sentidos nes-
do contra alguém é uma mudança que produz sa relação, quando o estupro é definido como
diversos sentidos, pois se apaga a mulher pelo violência “contra a mulher”, colocando-a como
termo “alguém”, projetando uma indetermina- único sujeito exposto ao estupro, e, em “contra
ção acerca do sujeito estuprado. alguém” o termo apaga a definição de estupro
Historicamente, a relação entre a mulher como “crime contra a mulher”. Vejamos, pois,
virgem e o estupro não se trata de nenhuma que, entre o mesmo e o diferente, a posição su-
forma de privilégio dado à condição feminina, jeito-mulher se constitui entre o dizer e o não
dizer, sendo, nessa ambivalência, interditada de
8 Uma comissão de juristas elaborou um anteprojeto com seus direitos e de suas vontades.
a finalidade de reformular o Código Penal vigente, ten-
tando refletir nele a evolução da sociedade brasileira e as 9 Para a Análise de Discurso, a formação discursiva, segun-
diferenças do ordenamento jurídico ao código de 1940. do Pêcheux (2009), determinada o que pode e deve ser
A Comissão, presidida pelo Ministro Gilson Dipp, do dito. Sendo, portanto, espaço de identificação do sujeito
Superior Tribunal de Justiça, protocolou o anteprojeto que se reconhece em certos sentidos, produzidos a partir
em 09 de julho de 2012, mas a quantidade de pontos de uma relação com o interlocutor e a memória do dizer.
polêmicos fez com que a proposta passasse por oitenta e No caso da formação social estruturada pelo patriarcado,
três reformas, sem que houvesse consenso sobre tais pon- temos em seu aspecto histórico a relação com a noção
tos. Atualmente, o anteprojeto encontra-se na Comissão de propriedade em que figura o papel da mulher como
de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal objeto do masculino, do pai, marido, irmão, senhor de
(CCJ para análise de sua constitucionalidade). Disponí- escravos etc. São essas relações históricas e sociais que são
vel em https://www.aurum.com.br/blog/codigo-penal retomadas em outras formulações, retomando efeitos de
-brasileiro/. Acesso em 23 fev. de 2019. propriedade, preconceito e submissão.

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Na definição do dicionário especializado, dem da mulher. Assim, o emprego da expressão
além do emprego do termo conjunção carnal, “dignidade sexual” pretende substituir e apagar
insere-se o dizer ou outro ato libidinoso, refe- as condições históricas vexatórias de outrora e
rindo-se a qualquer ato de caráter sexual, abran- considerar a atualidade como um momento de
gendo, para além da conjunção carnal (do coi- afirmação da sexualidade, do trabalho, do cor-
to), qualquer ato que represente ameaça e que po feminino em igualdade de direitos ao mas-
venha a se constituir como imposição sexual ao culino. Trata-se de um processo discursivo que
outro. Pêcheux (2009, p. 148) descreve como sendo
Outra mudança ocorrida, na sequência da aquele que passou “[...] a designar o sistema de
definição de Fleury-Teixeira e Meneghel (2015), substituição, paráfrases, sinonímias etc., que
se faz pela expressão “crimes contra a dignidade funcionam entre elementos linguísticos – ‘sig-
sexual”, substituindo a expressão “crimes con- nificantes’ – em uma formação discursiva dada”.
tra os costumes”. Essa mudança faz-se na Lei n. Na definição de estupro presente no Di-
12.015, de 07 de agosto de 200910: cionário feminino da infâmia (2015), as auto-
ras trazem dados para comprovar o aumento da
Tal tipificação passou a vigorar no título VI, que prática de estupro:
trata de crimes contra a dignidade sexual, confor-
me disposto na lei n. 12.015, de 7 de agosto de Em todo o mundo desenvolvido [é preciso que
2009, alterando a redação anterior, que tipificava se diga] registra-se o aumento dessas práticas
tais atos como crimes contra os costumes e previa violentas, bem como também as organizações
que a ação penal decorrente deveria se dar em criminosas que praticam o tráfico de mulheres
âmbito privado. (FLEURY-TEIXEIRA, MENE- para fins sexuais. [...]. No Brasil, as estatísticas de
GHEL, 2015, p. 137). segurança pública registram que em 2012 os ca-
sos de estupro superaram os de homicídio doloso
O termo “costumes”, por suas próprias (com intenção de matar), com 50.617 ocorrên-
cias de estupro contra 47.136 assassinatos. [...]
condições de produção, indica algo que pode (FLEURY-TEIXEIRA, MENEGHEL, 2015, p.
mudar, pois o que antes era aceito, em outro 137-138).
momento pode ser negado ou até rechaçado
como prática que perdeu legitimidade, tornan-
Em toda a definição, as autoras do verbe-
do-se politicamente incorreta. Ou seja, em al-
te trazem dados sobre o aumento desse tipo de
guns momentos históricos o estupro podia ser
violência, incluindo o tráfico de pessoas. O uso
mais facilmente aceito dada a naturalização dos
de tal recurso produz efeitos de validação dos ar-
costumes patriarcais e sexistas, enquanto na atu-
gumentos, pelo discurso estatístico, ou seja, mo-
alidade não, pois o processo de empoderamento
biliza conceitos de um campo semanticamente
feminino11 mudou sentidos para o que é da or-
estabilizado, como é o caso das Ciências Exatas,
10 A referida Lei altera o Título VI da Parte Especial do e mais especificamente dos dados estatísticos,
Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 do Có- para comprovar de forma mais explícita e elu-
digo Penal, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de
1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos
cidativa a violência ocorrida contra às mulheres.
do inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal e re- Essa necessidade de argumentos, dados,
voga a Lei nº 2.252, de 1º de julho de 1954, que trata expõe uma necessidade recorrente de compro-
de corrupção de menores. Disponível em: https://www2. vação da violência, algo que se materializa na
camara.leg.br/legin/fed/lei/2009/lei-12015-7-agosto-
2009-590268-exposicaodemotivos-149280-pl.html. própria análise do verbete estupro, em seus di-
Acesso em 15 mar. de 2019. vimento feminista, mas, mesmo estando interligados, os
11 Empoderamento feminino é a consciência coletiva, ex- dois movimentos não são coincidentes. Disponível em:
pressada por ações para fortalecer as mulheres e desenvol- https://impacthubcuritiba.com/empoderamento-femi-
ver a equidade de gênero. É uma consequência do mo- nino/. Acesso em 18 mar. de 2019.

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ferentes modos de dizer e às vezes de silenciar a um funcionamento considerado atávico, pois
violência contra a mulher. Assim, como o pro- remonta toda a história de dominação, de des-
cesso de silenciamento faz parte desses dizeres, prezo, de humilhação e de submissão violenta
antecipadamente busca-se argumentos em ou- da mulher por um sistema patriarcal. Lagarde
tras áreas, ou em outro modo dizer para poder (2004 apud MENEGHEL, 2015, p. 148) con-
significar uma violência que é recorrente na his- sidera que o feminicídio “[...] é um crime polí-
tória das mulheres. tico, que geralmente ocorre com a complacência
Por isso, ao expor aos dados, as autoras do Estado, o qual, ao deixar de intervir segundo
apontam também a necessidade do desenvolvi- as obrigações pautadas pelo direito internacio-
mento de políticas públicas que impliquem em nal, permite a impunidade”. Ora, é sabido que
campanhas que visem ao fim da violência contra o estupro pode ocorrer com diferentes sujeitos
a mulher. em diversas situações, entretanto, a interdição
Esse funcionamento é reafirmado ao fina- sobre o sexo, sobre o desejo, faz escopo sobre a
lizar a definição apontando o aumento de estu- violência, produzindo efeitos de silenciamento.
dos nessa área: “Há, hoje, diversos estudos que
evidenciam principalmente os agravos à saúde e Palavras finais (?)
a necessidade de treinamento das equipes para
o atendimento adequado nos casos de violên- Ao refletir sobre a palavra, como ela(s) nos
cia sexual [...]” (FLEURY-TEIXEIRA, MENE- constitui, penso sobre as relações de sentidos e
GHEL, 2015, p. 140). de força que atravessam as condições materiais
O próprio dicionário e os termos apre- de existência. São essas relações que permitem
sentados por ele se colocam nas condições de que os sentidos se cristalizem, rompam-se, des-
produção de um material que leva em conta as locam-se, a partir de condições determinadas,
mulheres em situação de risco de vida, como numa relação entre língua, história e ideologia,
materializa o subtítulo do dicionário: acolhi- constituindo-nos num processo contínuo. Ou
mento e diagnóstico de mulheres em situação seja, sempre retorno ao dicionário para olhar as
de violência. Ou seja, considera-se o termo acepções que me escapam, mas buscando enten-
numa relação com os outros termos – entre eles der de que é um movimento que coloca em jogo
aborto, assédio sexual, corpo, feminicídio etc. e a língua e os sujeitos, e a maneira na qual me
diversos tipos de violência, como violência de significo, significamos.
gênero, violência doméstica, violência na gravi- Assim, essa análise expõe um olhar sobre o
dez etc. verbete estupro no Dicionário feminino da infâ-
Assim, a constituição de um dicionário, mia (2015), que coloca em funcionamento dis-
tomado como “dicionário feminino da infâmia”, cussões sobre a língua, o sujeito e a história atra-
traz para o funcionamento da língua palavras vés dos processos de dicionarização, processos
como má fama, dano social, desonra, ou seja, pensados como objetos simbólicos, portanto,
expressões que materializam sentidos de violên- constituídos pela/na incompletude, ao contrá-
cia contra a mulher, promovendo uma mudan- rio da condição imaginária de cristalização dos
ça sobre os modos de compreender a condição sentidos e de completude dadas aos dicionários.
feminina, ou seja, um movimento necessário Dessa forma, o Dicionário feminino da
para que haja “[...] novos espaços de experiência infâmia (2015), ao marcar sentidos atrelados ao
e de significação para que haja deslocamentos, caráter de “crime”, permitindo que se trate de
percursos de sentidos não experimentados, ain- um crime com sanção registrada, prevista na lei.
da irrealizados.” (ORLANDI, 2013, p. 223). Da vítima resta saber se ela foi “constrangida”,
O estupro contra a mulher tem, então, “induzida”, “forçada” ao ato, se o forçamento

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ocorreu por meio da violência ou ameaça, o que CRUZ, 2015. P. 137- 140.
abrange qualquer indivíduo, rompendo com os BRAZ, Vagner Vainer Teixeira; FORTES, Fe-
sentidos essencialmente dados à condição de lipe Michelin; WARMELING, Keila Rejane.
virgindade feminina. Como também ao pensar Discurso jurídico e sujeito: sentidos sobre es-
além da condição de vítima feminina apenas. tupro e dignidade. In: FLORES, Giovanna G.
Os sentidos de estupro, portanto, estão Benedetto et. al (Org.). Discurso, cultura e mí-
relacionados a um funcionamento histórico e dia: pesquisas em rede. V. 3. Santiago: Oliveira
ideológico que se constitui por uma memória Books. 2019. p. 215-234.
discursiva, pois o sentido “[...] é determinado
pelas posições ideológicas que estão em jogo LACAN, Jacques. O estádio do espelho como
no processo sócio-histórico no qual as palavras, formador da função do eu. In: LACAN, Jac-
expressões e proposições são produzidas (isto é, ques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p.
reproduzidas)” (PÊCHEUX, 2009, p. 146). 96-103.
Olhar para o Dicionário feminino da in- LAGAZZI-RODRIGUES, Suzi. O político na
fâmia (2015) é olhar para um objeto simbólico linguística: processos de representação, legitima-
que produz efeitos, a partir de uma conjuntura ção e institucionalização. In: ORLANDI, Eni P.
dada, possibilitado pelos movimentos sociais, (org.). Política Linguística no Brasil. Campinas,
que se constituem também como um movimen- SP: Pontes Editores, 2007. p. 11-18.
to na história, apresentando ao mesmo tempo MAZIÈRE, Francine. O enunciado definidor:
mudança e sedimentação, dispersão e unidade, discurso e sintaxe. In: GUIMARÃES, Eduardo.
o diferente e o mesmo, que numa tensão pos- (Org.) História e sentido na linguagem. Pontes:
sibilita que os sentidos possam vir a ser outros, Campinas, 1989. p. 47-59.
mas não qualquer um.
NUNES, José Horta. “Uma articulação da aná-
REFERÊNCIAS lise de discurso com a história das ideias linguís-
ticas”. In: Letras, Santa Maria. V. 18, jul./dez.
ANDRADE, Carlos Drummond de. O Luta- 2008. p. 107-124.
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