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Observe, no parágrafo anterior, dois termos grifados: recepção e diálogo. Esse é um princípio básico:
quem escreve deseja ser lido e espera uma resposta. Esse é um caminho sócio histórico que
caracteriza o desenvolvimento das competências cogni vas de nossa espécie. Quando recebemos
qualquer força (um discurso, uma no cia, uma pessoa, um evento) sen mos a necessidade de nos
organizarmos para fazê-lo bem, afinal, nessa ocasião, nossos sen dos (não confunda com
significados) são provocados. Quanto mais organizados, melhor recebidos e mais respostas a vas
movimentam nossa percepção.
Para Mikhail Bakh n, referência fundamental para meu exercício docente (e social, cultural, polí co,
afe vo, religioso...) o dialogismo é a condição do sen do do discurso, da linguagem. Todos os textos
são dialógicos porque são resultantes do embate, do confronto de muitas vozes sociais, seja este
aspecto discursivo desdobrado pela interação (sócio cogni va, verbal, discursiva) entre enunciador e
enunciatário do texto (nenhuma palavra é nossa, mas traz em si a perspec va de outra (s) voz (es);
seja pela intertextualidade, no interior do discurso; pela polifonia, dentro e fora dele.
O conceito de dialogismo nasce com Bakh n (La Poé que de Dostoïevski, 1970, Barcelona: Barral
Editores), que aponta para duas diferentes concepções do princípio dialógico: a do diálogo entre
interlocutores e a do diálogo entre discursos. Para Bakh n o discurso, em todas as suas formas
estruturadas (há quem perceba na tradução de sua obra uma referência ao texto), define-se como:
a) objeto significante ou de significação, isto é, o texto significa;
b) produto da criação social ou de uma enunciação, com tudo o que está aí subtendido: contexto
histórico, sociedade, economia, cultura, etc. Em outras palavras, o texto não existe fora da
sociedade, só existe nela e para ela e não pode ser reduzido à sua materialidade linguís ca
(empirismo obje vo- abstrato) ou dissolvido nos estados psíquicos daqueles que o produzem ou o
interpretam (empirismo subje vo);
c) dialógico: já como consequência das duas caracterís cas anteriores o texto é, para o autor,
cons tu vamente dialógico; define-se pelo diálogo entre os interlocutores e pelo diálogo com
outros textos;
d) único, não reproduzível: os traços mencionados fazem do texto um objeto único, não reiterável
ou repe vel.
Organizando-nos para conhecer orientados pelos métodos que derivam da obra de Bakh n, notamos
uma diferença entre as ciências naturais e as humanas: as primeiras tendem a ser monológicas e as
segundas poderiam dialógicas: enquanto nas ciências naturais ainda se procura conhecer o objeto
(abstrato, fora da pessoa que inves ga), nas ciências humanas deve-se conhecer um sujeito, um
produtor de significados, um provocador e receptor de provocações aos sen dos, os discursos
humanizados, textos.
“As ciências exatas são uma forma monológica do conhecimento: o intelecto contempla
uma coisa e pronuncia-se sobre ela. Há um único sujeito: aquele que pra ca o ato de cognição
(de contemplação) e fala (pronuncia-se). Diante dele, há a coisa muda. Qualquer objeto do
conhecimento (incluindo o homem) pode ser percebido e conhecido a tulo de coisa. Mas o
sujeito como tal não pode ser percebido e estudado a tulo de coisa porque, como sujeito,
não pode, permanecendo sujeito, ficar mudo; consequentemente, o conhecimento que se
tem dele só pode ser dialógico”.
A Vaguidão Específica
Millôr Fernandes
- Não ponha junto com as outras, não. Senão pode vir alguém e querer fazer coisa com
elas. Ponha no lugar do outro dia.
- Sim senhora. Olha, o homem está aí.
- Aquele de quando choveu?
- Não, o que a senhora foi lá e falou com ele no Domingo.
- Que é que você disse a ele?
- Eu disse pra ele con nuar.
- Ele já começou?
- Acho que já. Eu disse que podia principiar por onde quisesse.
- É bom?
- Mais ou menos. O outro parece mais capaz.
- Você trouxe tudo pra cima?
- Não senhora, só trouxe as coisas. O resto não trouxe porque a senhora recomendou
para deixar até a véspera.
- Mas traga, traga. Na ocasião nós descemos tudo de novo. É melhor, senão atravanca
a entrada e ele reclama como na outra noite.
- Está bem, vou ver como.
Millôr Fernandes. Trinta anos de mim mesmo. Rio de Janeiro: Desiderata, 2006.
Enfim, os discursos representados no trabalho literário do Millôr provocaram efeitos em você? Ou
devo corrigir a organização da minha enunciação a fim de que possa percebê-la tal como ela
significa (tanto na construção, quanto no contexto de uso da expressão)?
Enfim, os discursos representados na forma textual provocaram os sen dos do seu corpo na
medida em que eram recebidos, pois você pôde se perceber como se visse a situação (bastante
comum em eventos domés cos co dianos), como se ouvisse as representações de fala das
personagens com os tons de voz que caracterizam a situação sócio comunica va representada, e
até o tato foi provocado, pois seu corpo se percebeu carregando coisas ou reparando outras.
Não? Ops! Leia de novo permi ndo-se sen r o que a enunciação representa. Depois, me conta se
os efeitos foram diferentes. ;)
Agora vamos nos encontrar com alguns trabalhos do artista mineiro Henfil.
Agora, com poesia:
Aula de Voo
O conhecimento
caminha lento feito lagarta.
Primeiro não sabe que sabe
e voraz contenta-se com o co diano orvalho
deixado nas folhas vividas das manhãs.
Depois pensa que sabe
e se fecha em si mesmo:
faz muralhas,
cava trincheiras,
ergue barricadas.
Defendendo o que pensa saber
levanta certezas na forma de muro,
orgulhando-se de seu casulo.
Até que maduro
explode em voos
rindo do tempo que imaginava saber
XXXIII - Ismália
ou guardava preso o que sabia.
Quando Ismália enlouqueceu, Voa alto sua ousadia
Pôs-se na torre a sonhar... reconhecendo o suor dos séculos
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar. no orvalho de cada dia.
Mesmo o voo mais belo
No sonho em que se perdeu, descobre um dia não ser eterno.
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu, É tempo de acasalar:
Queria descer ao mar... voltar à terra com seus ovos
à espera de novas e prosaicas lagartas.
E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar... O conhecimento é assim:
Estava perto do céu, ri de si mesmo
Estava longe do mar... e de suas certezas.
E como um anjo pendeu É meta da forma
As asas para voar... metamorfose
Queria a lua do céu, movimento
Queria a lua do mar...
fluir do tempo
As asas que Deus lhe deu que tanto cria como arrasa
Ruflaram de par em par...
a nos mostrar que para o voo
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar... é preciso tanto o casulo
como a asa.
GUIMARAENS, Alphonsus de. Obra completa. Organização de
Alphonsus de Guimaraens Filho. Introdução de Eduardo Portella. MAURO IASI
Notas biográficas de João Alphonsus. Rio de Janeiro: J. Aguilar, 1960.
p. 231-232. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira, 20)
Vamos trabalhar com este trabalho discursivo e aproveitar para reconhecer seu gênero?
ISSO É QUE É TER ESTÔMAGO
Morgan Spurlock nunca foi exatamente um asceta: adora um filé, acha que presunto é uma
invenção divina e encara qualquer culinária regional, da cubana à indiana. Foi enquanto estava
vendo televisão largado no sofá da mãe, posto a nocaute pelo almoço do Dia de Ação de Graças de
2002, que ele soube de um fato curioso: duas adolescentes americanas estavam processando a
rede de lanchonetes McDonald's por torná-las obesas. Em princípio, diz Spurlock, a ação não
parecia ter mérito real – ela seria mais um sintoma de um país infestado pela li gância, em que os
cidadãos se recusam a assumir suas responsabilidades pessoais e atribuem a culpa por suas falhas
às forças maiores das corporações. Mas talvez, raciocinou Spurlock, essas forças sejam de fato
maiores. Dessa idéia nasceu o documentário Super Size Me (Estados Unidos, 2004).
Para fazer Super Size Me, Spurlock se transformou, durante um mês, em sua própria cobaia.
Determinou que nesse período tudo o que ele ingerisse, até a água, deveria vir do McDonald's.
Cada item do cardápio teria de ser provado pelo menos uma vez e ele teria de dizer “sim” sempre
que um atendente oferecesse o lanche na porção super size. Essa opção, que deixou de constar do
menu da rede mais ou menos na ocasião em que o documentário estreou nos Estados Unidos
(mero acaso, divulgou a empresa), é um dos melhores negócios do ramo de fast-food: por alguns
centavos a mais, o cliente ganha quan dades muito maiores de comida. Custa pouco para ele, custa
menos ainda para a lanchonete, e proporciona ao freguês a sa sfação de ter conseguido uma
pechincha. O número de calorias na bandeja, porém, sobe assustadoramente. Spurlock nha de
aceitar o super size porque isso é o que um americano comum faria – e por isso também ele reduziu
de forma drás ca sua a vidade sica, até que ela se encaixasse na média nacional.
A primeira refeição super size de Spurlock é um espetáculo dantesco. Seu bom humor logo dá
lugar ao fas o, depois à náusea e, finalmente, à rejeição completa da comida, que termina, meio
digerida, numa poça ao lado da janela de seu carro. Antes de começar o experimento, Spurlock
passou por exames minuciosos com três médicos diferentes. Todos concordaram que, aos 33 anos,
ele exibia saúde e forma sica perfeitas. Faltando dez dias para a maratona gastronômica terminar,
os três pediram a Spurlock que desis sse: seu colesterol disparara, a deposição de gordura tornara
seu gado pastoso como o de um alcoólatra, e o paciente vivia atormentado por fortes dores de
cabeça, mau humor e exaustão. Num depoimento cândido, a namorada de Spurlock, que é chef
vegetariana, revela o impacto da dieta sobre a vida amorosa do casal: Spurlock não nha ânimo
para mais nada entre os lençóis que não roncar. Após trinta dias, a silhueta do diretor contabilizava
11 quilos adicionais, que ele demoraria mais de um ano para perder.
VEJA, 18 agosto. 2004, p.p. 114-115.
Agora, diga o efeito que este ato discursivo lhe provoca e o que significa em você.
Como desejamos nos apropriar daquilo que recebemos a fim de tê-lo como referência para
seguir nossa existência obje va (para a sa sfação de uma necessidade humana), optamos
por promover um movimento bastante inteligente: o movimento de síntese. Este pode ser
resultado de duas estratégias: análise (decomposição), possível a vando a percepção dos
fatores que nos provocam os sen dos; e organização, instante em que, no rearranjo da
análise (decomposição), tendo os sen dos já percebidos e provocados, encontra-se o
sujeito (o quê, quem) exposto no discurso, o tema (aquilo que se escolheu enunciar a
respeito do sujeito) e a referenciação (ponto de vista da enunciação, o que se vê de onde se
observa o tema) .
Quando nos predispomos a receber discursos numa perspec va dialógica (por que é
essencial ao nosso conhecimento), organizamo-nos para recebê-lo de tal modo respeitoso
que sen mos tudo o que a enunciação provoca (lembrando que a enunciação não existe
sem a pessoa que o enuncia, tampouco sem a que a recebe). Vamos viver esse movimento?
Enquanto isso...