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Te c e n d o r e d e s
e transpondo
desafios

Organizadoras:
Paula Land Curi
Paloma Lima Ramos Jashar
Hildete Pereira de Melo
Thais Ferreira Rodrigues

Financiamento:
Fomento à Ações de Extensão (FOEXT) 2021
SIGPROJ: 370609. 2101.206051.13072021
2022
Capa e ilustração: Nicole Mocarzel

Comissão Científica:
Adriana Valle Mota – AMB- Seção Rio
Luiza Rodrigues de Oliveira – UFF
Monica Abrantes Galindo – UNESP
Regina Marques – UFRB
Sônia Maria Dantas Berger- UFF

Projeto Gráfico: Nicole de Abreu | Tikinet


Diagramação: Robson Santos | Tikinet

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP


C975 Curi, Paula Land, Org; e Outras
Tecendo redes e transpondo desafios / Organização de Paula Land Curi,
Paloma L. R. Jashar, Hildete Pereira de Melo e Thais Ferreira Rodrigues. Prefácio de
Fernanda Sixel. Posfácio de Paula Landi Curi, Thais Ferreira Rodrigues e Paloma L.
R. Jashar. Autoretrato de Érica Louredo. Ilustração de Nicole Mocarzel. – Niterói:
UFF, PROEX; São Paulo: Tiki Books, 2022.
296 p.; IL.

Programa de Extensão “Mulherio - Tecendo Redes de Resistência e Cuidados”.


Seminário de Políticas Públicas para o Enfrentamento às Violências de Gênero
contra as mulheres da cidade de Niterói “Tecendo redes e transpondo desafíos
porque resisitir é cuidar e cuidar é resistir”, 29 de novembro a 4 de dezembro de
2021.

ISBN 978-65-87080-38-3
1. Psicologia Social. 2. Política Social. 3. Mulheres. 4. Movimento Feminista.
5. Relações de Gênero. 6. Direitos. 7. Cuidados. 8. Resistência. 9. Rede. 10. História
de Vida. 11. Niterói. 12. Estado de Rio de Janeiro. I. Título. II. Elas por nós. III.
Entre nós. IV. Em-caminhando juntas. V. Curi, Paula Land, Organizadora. VI.
Jashar, Paloma L. R., Organizadora. VII. Melo, Hildete Pereira de, Organizadora.
VIII. Rodrigues, Thais Ferreira. IX. Sixel, Fernanda. X. Louredo, Érica, XI.
Mocarzel, Nicole, Ilustradora. XII. UFF - Universidade Federal Fluminense. XIII.
PROEX – Pró-Reitoria de Extensão. XIV. Mulherio – Tecendo redes de resistência
e cuidados.

CDU 316.6 CDD 158


Sumário
Prefácio – Fernanda Sixel

Introdução – Paloma Lima Ramos Jashar, Paula Land Curi e


Thais Ferreira Rodrigues

Parte I: Elas por nós

1. Mulher...................................................................................... 30
Dani Lopes

2. As políticas públicas brasileiras: uma reflexão feminista ........... 32


Hildete Pereira de Melo

3. Apresentação de Jacqueline Pitanguy ....................................... 43


Jacqueline Pitanguy

4. Gestão pública e políticas para as mulheres .............................. 59


Angela Fontes

5. A longa luta das mulheres pela conquista de direitos ................ 71


Leila Linhares Barsted
Parte II: Entre nós

6. Cinco a menos .......................................................................... 86


Marcelle Ferrete

7. Rastros em descontextos ........................................................... 87


Marcelle Ferrete

8. Enfrentamento à pandemia de COVID-19:


dirimindo o impacto das violências de gênero .......................... 88
Camile Macedo Gomes de Mattos, Camilla Cartágenes Pinto,
Paula Land Curi, Rita de Cassia Vieira Filippo e
Thais Ferreira Rodrigues

9. Aumento da violência doméstica contra as mulheres no


contexto pandêmico da COVID-19: um estudo realizado
a partir do movimento de mulheres em São Gonçalo ............... 103
Marisa Chaves de Souza e Victória do Livramento

10. Justiceiras: promovendo o enfrentamento da violência de


gênero em tempos de pandemia ............................................... 113
Jussara Antônia Almeida

11. A disparidade da violência doméstica contra as meninas:


um estudo realizado no NACA Niterói .................................... 120
Jessika Prates Machado, Sandra Fratane Maciel de Oliveira e
Victória do Livramento
12. Maria da Penha nas escolas: educação jurídica popular na
prevenção e combate à violência doméstica .............................. 132
Fernanda Andrade Almeida, Jane Estanilau Roriz, Mariana
Nogueira Moraes, Julia Martins Rocha, Larissa Batista Franco e
Bárbara Macieira Ribeiro Macedo

13. Grupo reflexivo para homens: masculinidades e sua


interface na violência contra a mulher ...................................... 142
Carla Mara Machado Hyppolito, Márcia Valéria Guinâncio da
Mota e Marcos Paulo Henriques Maricato

14. Acolhe-dor? Considerações sobre o atendimento às


mulheres vítimas de violência doméstica na Unidade de
Acolhimento Lélia Gonzalez.................................................... 121
Clara Santos Henriques de Araújo, Silvonete Furtado Paz e
Thaís Pereira da Silva

15. Arteterapia com as mulheres em situação de violência ............. 163


Luciana Vasconcellos

16. Enfrentamento à violência sexual contra a mulher e


os desafios colocados às universidades públicas brasileiras ........ 178
Ludmila Fontenele Cavalcanti

17. Desafios no atendimento de mulheres em situação de violência


sexual em um serviço de referência no Rio Grande do Norte ...... 189
Natália Lucena Guimarães, Fabiana Lima Silva e
Débora Silva de Oliveira Nunes
18. Violência sexual, percepção e atitudes de médicos de
maternidade pública universitária: dilemas e desafios ............... 199
Chiara Musso Ribeiro de Oliveira Souza, Ivana Sassak Puls,
Luisa Lirio Pela, Getúlio Sérgio Souza Pinto e
Angélica Espinosa Miranda

19. Afinal, quem decide pelo aborto legal? ..................................... 214


Simone Marçal Brasil dos Passos e Iara Boeira dos Reis

20. Aborto legal em casos de estupro: entre os direitos


e os dilemas............................................................................... 223
Nirelle Rodrigues Marinho

21. Aspectos de vulnerabilidade em mulheres vivendo com


HIV/aids sob a perspectiva de gênero....................................... 233
Joy Possoni Bejar

22. Tecendo redes de cuidado com mulheres em tratamento do


câncer de mama ........................................................................ 244
Virginia Dresch, Juliana Caminha, Maria Eduarda Ferrandi Vilas,
Boas Bertocco, Ana Júlia Dresch, Layssa Cruz de Oliveira, Vitória
Ramos Santana e Ariel Moura Alves

23. Grupo de apoio a pais de recém-nascidos das unidades


neonatais – construindo redes ................................................... 255
Andréia Maria Thurler Fontoura e Cintia de
Oliveira Castelo Branco Sales
24. Os impactos da pobreza menstrual: relato sobre ações
sociais no município de Campos dos Goytacazes/RJ................ 264
Kelly Viter Campos e Marusa Bocafoli da Silva

Parte III: Em-caminhando Juntas

25. Umuntu Ngumuntu Ngabantu (Somos pessoas através de


outras pessoas) .......................................................................... 278
Érica Louredo

26. A atuação do Programa Mulherio no ciclo de políticas


públicas para mulheres em Niterói/RJ ...................................... 281
Thais Ferreira Rodrigues e Ana Clara Oliveira da Cunha Soares

Posfácio – Paula Land Curi, Thais Ferreira Rodrigues e


Paloma Lima Ramos Jashar

Autoretrato – Érica Louredo


P ref ácio

Prefaciar este e-book é um desafio e, ao mesmo tempo, um exercício praze-


roso. Afinal, não se trata de prefaciar um único autor ou convidar o leitor a
mergulhar na defesa de uma ideia ou tese de uma única acadêmica, o que
já seria motivo de orgulho. Mas aqui estou lhe convidando a mergulhar na
pluralidade, na coletividade, nos saberes e fazeres de diferentes mulheres, de
diferentes instâncias, de diferentes gerações e vivências. Mulheres que esti-
veram juntas, no Seminário “Tecendo redes e transpondo desafios porque
resistir é cuidar e cuidar é resistir” do Programa Extensionista da Psicologia
da Universidade Federal Fluminense (UFF), que contou com nosso apoio
enquanto Coordenadoria de Políticas e Direitos das Mulheres (CODIM)
da Prefeitura de Niterói, refletindo a partir da sua própria práxis cotidiana.
Aqui, me proponho a fazer também esta reflexão, articulando os artigos com
a nossa própria vivência e prática enquanto estou coordenadora de políticas e
direitos das mulheres do poder público municipal e como agente política da
transformação que queremos vivenciar, todas nós, enquanto construtoras de
uma sociedade democrática, plural, equânime e garantidora dos direitos e da
vida das mulheres.
Compreendemos a transversalidade como princípio norteador das políticas
públicas. a concretização das nossas ações e projetos passa necessariamen-
te pela incorporação da perspectiva de gênero pelo conjunto das secretarias
municipais e órgãos governamentais, assim como o envolvimento e compro-
misso das instituições e de toda a sociedade civil organizada. Nesse sentido,
é de suma importância a parceria ativa que a UFF possui com a Prefeitura de
Niterói pelo Programa de Desenvolvimento de Projetos Aplicados (PDPA),
e, com base neste princípio de atuação conjunta em prol da construção de
políticas públicas, celebramos o movimento e o trabalho desenvolvido pela
Prefácio

Professora Paula Land à frente do “Mulherio” quando propõe a criação de


uma comunidade para além dos muros da universidade, trazendo uma con-
cepção ampliada e compreendendo o potencial e a expertise da universidade
em contribuir, de maneira efetiva, para o fortalecimento da rede de atenção e
proteção às mulheres.
Em 2021, renovamos nosso termo de cooperação que possibilita a presença
do programa junto às equipes do nosso Centro Especializado de Atendimento
às Mulheres em Situação de Violência (CEAM) e do Núcleo de Atendimento
à Mulher (NUAM), atuando diretamente nos estudos de casos e no fortale-
cimento das profissionais que estão na ponta do serviço público e que mate-
rializam nossas políticas junto às mulheres atendidas. Por isso, aqui estamos!
Cuidando e resistindo! Resistindo e cuidando!
O livro está dividido em três partes. Na primeira, nos deparamos com
grandes nomes da luta e construção feminista. As boas-vindas são dadas pela
Professora Hildete Pereira, que nos apresenta um resgate histórico e uma
reflexão feminista sobre as conquistas ao longo do tempo, nos guiando entre
os avanços e retrocessos desse processo. Destaca como um marco a criação
do Estatuto da Mulher Casada em 1962; o despertar das lutas feministas em
1975, com a criação do Centro da Muher Brasileira; a importância histórica
da criação do Conselho Nacional de Direitos da Mulher (CNDM), em 1985,
até o ápice da presença da pauta de gênero no âmbito do poder Estatal; a
criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM); e a garantia da
participação de milhares de mulheres por meio das Conferências Nacionais.
Ela afirma que a SPM, assim como o CNDM não inauguraram na sociedade
brasileira o diálogo entre os feminismos e o Estado, mas contribuíram para a cons-
trução de um espaço de poder dentro da máquina pública, que permitiu “trans-
versalizar” a perspectiva feminista para as políticas públicas através da presença
de feministas como gestoras desses órgãos públicos e seguramente, isso aproximou
ativistas e acadêmicas feministas com o comando político nacional.
No segundo artigo, Jacqueline Pitanguy resgata a luta das mulheres ao
longo dos anos, destacando a Carta das Mulheres aos Constituintes, que bus-
cava, dentre outras coisas, eliminar da lei a expressão “mulher honesta”. Seu
texto relata a conquista das cadeiras no parlamento nacional em 1986, após

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Tecendo redes e transpondo desafios

uma luta polítca, ainda atual, visto que temos apenas 15% de participação
feminina no Congresso Nacional, e a violência política ainda é presente nos
espaços de poder e decisão. Pitanguy apresenta o “Manifesto nossos direitos
são conquistas diárias”, o que me remeteu diretamente à campanha desenvol-
vida este ano pela Codim no mês da mulher, e, da mesma forma que direitos
são conquistados, ela aponta que também podem ser retirados, principal-
mente quando observamos [...] um distanciamento da democracia em direção
ao autoritarismo que tem a perspectiva de um mundo binário; de um lado os que se
autoproclamam defensores da pátria, da família, da infância, arautos do bem, e de
outro, seus opositores transformados pelo discurso conservador fundamentalista em
perigosas categorias políticas de acusação. A politização da religião, qualquer que
seja, e sua interferência em leis e políticas públicas, acirra essa divisão e a aversão a
quem não se coaduna com o projeto conservador de moral e costumes.

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Ainda na primeira parte do livro, temos a contribuição de Angela Fontes,
que recupera e dialoga com as duas autoras que a antecedem, compartilhan-
do sua experiência como gestora federal da SPM, espaço que a fez adquirir
uma visão macro nacional, e a certeza da necessidade de se garantir e exe-
cutar um orçamento sensível a gênero, em todas as esferas, federal, estadual
e municipal. Após as Conferências já citadas, Angela afirma queas políticas
públicas para as mulheres buscaram traduzir em programas e ações as demandas
reivindicadas ao longo dos ciclos de Conferências Nacionais, interrompidos com o
impeachment da Presidenta Dilma Rousseff (16 de agosto de 2016). É possível
dizer que, ao longo entre 2004 e 2016, tanto os órgãos governamentais quanto os
movimentos de mulheres e movimentos feministas reconheceram a intersecciona-
lidade presente e necessária nas políticas para as mulheres.
Ainda com uma contribuição histórica, ela retoma a construção da polí-
tica estadual de defesa da mulher como a criação do Conselho Estadual de
Direitos das Mulheres (CEDIM), o terceiro a ser criado no país, e a atual
Sub Secretaria de Políticas para as Mulheres do Governo Estadual do Rio de
Janeiro, e sua participação neste processo.
Infelizmente, hoje estamos vivendo em nível nacional um período de esva-
ziamento da agenda de gênero. Segundo Flávia Birolli e demonstrado pelas três
autoras, foi nas democracias que as conquistas de legislações e políticas públicas
se efetivaram. A Lei Maria da Penha é exemplo de conquista dentro de uma
construção política que compreendeu, legitimou e deu voz às reivindicações dos
diferentes movimentos sociais e instituições de mulheres. Infelizmente, as con-
ferências como instrumentos de participação e democracia direta foram silen-
ciadas. Nesse cenário, tenho tranquilidade em afirmar que Niterói surge como
resistência por ter governos progressistas ao longo dos últimos anos, enquanto
em nível federal acompanhamos um desmonte dos fundamentos da democracia
e do Estado de Direito. Aqui, construímos mecanismos de participação cidadã
por meio dos conselhos, políticas afirmativas e uma gestão que preza pela de-
mocracia, reagindo aos movimentos ultraconservadores que tentaram se utilizar
“[...] da ameaça supostamente representada pela perspectiva de gênero para
desmantelar instituições democráticas, mudar currículos escolares e atacar or-
ganizações que apoiam a pesquisa científica no país.” (BIROLLI, 2020, p. 156).
Tecendo redes e transpondo desafios

É com a clareza de que é possível resistir e construir um modelo alternativo


ao desmonte que reestruturamos a Codim, tendo como missão a construção
de políticas públicas que promovam equidade entre homens e mulheres, com
respeito às orientações sexuais, a igualdade racial e étnica, dentro do princípio
da interseccionalidade. Estabelecemos cinco eixos de trabalho, reconhecendo
a pluralidade feminina, seus anseios e diversidades de agendas. São eles: en-
frentamento às violências; diversidade e interseccionalidade; saúde, maternar
e bem-estar; empreendedorismo feminino; e dados e comunicação.
Assim como nós nos organizamos, a segunda parte do presente livro é
composta exatamente por essa pluralidade de agendas, sem perder o foco no
enfrentamento à violência, pois esta é a maior violação dos direitos huma-
nos femininos. O artigo da Jussara Almeida apresenta dados sobre o projeto
“Justiceiras” e seus impactos no município de Barra Longa. O artigo, resultado
da pesquisa desenvolvida pelo programa “Mulherio”, e o artigo do “Movimento
de Mulheres de São Gonçalo”, trabalho desenvolvido sob a coordenação da
Marisa Chaves (referência não só para aquele município, como para todo o
Estado do Rio de Janeiro), contribuem para a nossa reflexão, apontando as
rotas críticas, desafios vivenciados durante a pandemia e a necessidade de
institucionalização das políticas públicas. Em Niterói, os dados revelaram o
crescimento da violência doméstica durante a pandemia da COVID-19, e
sabemos que a carga de trabalho do cuidar, o chamado à responsabilidade com
a família, recai e recaiu ainda mais sobre as mulheres. Segundo Chaves, a di-
visão sexual do trabalho é uma questão de gênero, pois as mulheres dedicam o dobro
do tempo, quando comparadas aos homens, na administração de tarefas domésticas,
em especial, nos cuidados com os filhos e com a casa.
E aumentou a pressão e as cobranças sociais sobre as mesmas. Em Niterói,
a prefeitura estabeleceu, além do respeito à ciência, um protocolo e políticas
de proteção social, como o auxílio emergencial de R$ 500,00, que beneficiou
50 mil famílias no município, desde as cadastradas no CadÚnico até todas
as crianças da rede municipal de educação, e O programa de distribuição de
cestas básicas, coordenado pela Sub Secretaria de Segurança Alimentar, asso-
ciado a programas como o Empresa Cidadã, que garantiu empregos e reduziu
os impactos da crise da pandemia. Segundo dados do Fórum Brasileiro de

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Prefácio

Segurança Pública, a dificuldade de garantir autonomia financeira foi o princi-


pal fator de vulnerabilidade à violência durante a pandemia, 25% das mulheres
relataram perda de seus empregos ou impossibilidade de trabalhar por conta
dos cuidados familiares que recaem sobre elas. Marisa Chaves destaca ainda
o confinamento como fator agravante para a violência doméstica pois, [...]
além do medo da contaminação pelo SARS-COV-19, as mulheres que perderam seus
empregos ou tiveram contratos de trabalho suspensos passaram a viver mais tempo
em companhia de seus agressores domésticos.
A dependência econômica muitas vezes impossibilita a mulher de romper
com o ciclo da violência e a mantém presa ao relacionamento abusivo, correndo
risco de morte, visto que o feminicídio é uma dolorosa realidade. Em Niterói,
desde dezembro de 2021, o Programa Auxílio Social para as Mulheres em
Situação de Violência Doméstica foi sancionado pelo prefeito Axel Grael e
está ativo. O Auxílio Social prevê um repasse mensal no valor de R$ 1.000,00
durante seis meses, prorrogável por mais seis, para que as mulheres recebam o
acompanhamento da equipe técnica, oferta de cursos de capacitação e banco
de oportunidades de emprego, encaminhamentos para a rede de saúde, de
assistência social e educação, e seu fortalecimento por meio de um grupo re-
flexivo para que possam romper com seu agressor e iniciar, com autonomia,
uma nova trajetória de vida. Em 2022, será possível uma primeira análise do
programa como política pública institucionalizada, a médio e longo prazo,
para mitigar os impactos da violência e, principalmente, evitar a sua reincidên-
cia. Acompanhar cada mulher desde a entrada no Auxílio tem sido vital para
esta avaliação futura.
O artigo do Projeto de Extensão do Direito (UFF/Macaé) ressalta a impor-
tância do trabalho preventivo à violência pela educação. Elas desenvolveram
junto às escolas um projeto do ensino da Lei Maria da Penha e a construção
da cartilha “Direito das Mulheres: educação na luta contra a violência domés-
tica”. Sabemos que a garantia de direitos se dá a partir da sua não violação;
por isso, são fundamentais as ações de prevenção. Destacamos dois projetos
que desenvolvemos: a Codim Itinerante e o “Treinamento Lilás”. Juntos, eles
atenderam, em 2021, quase duas mil pessoas, entre agentes públicos e po-
pulação, levando informação sobre gênero, direitos femininos e apresentação

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Tecendo redes e transpondo desafios

da rede local de proteção e atendimento à mulher. Os impactos dessas ações


resultaram em mudança de atitudes concretas na relação com a Codim, seus
equipamentos e na abordagem em situações de violência, tanto pelos agen-
tes da Guarda Civil Municipal (GCM) como pelos agentes de trânsito, que
atuam na cidade e presenciam situações de violência. Com isso, ampliamos
nossa capilaridade, tornando a política de atenção à mulher mais conhecida
e, ao mesmo tempo, provocamos uma mudança de postura e almejamos uma
transformação cultural.
O “Treinamento Lilás” é flexível e estruturado pensando em cada públi-
co distinto. Com a GCM Masculina, foi introduzido o módulo modelo de
masculinidade, porque acreditamos ser fundamental a mudança de postura
dos homens, como propõe o movimento “Laço Branco” e o artigo do Juizado
da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher ( JVDFM), que traz
para a nossa reflexão coletiva [...] os grupos reflexivos, previstos na Lei Maria da
Penha em seu artigo 45, como forma de reeducação e recuperação do homem autor
de violência doméstica e familiar, trazendo uma discussão inovadora para pensar a
responsabilização do homem, além de uma prática punitivista. Realizado com os
homens agressores, nos apresenta suas experiências e análises, contribuindo
para que possamos compreender as contradições presentes no processo, visto
que as relações hierárquicas de gênero e os papéis sociais estão cristalizados
no indivíduo, e, em alguns casos, o próprio homem não consegue perceber-se
enquanto agressor.
As violências, em diferentes níveis, estão presentes na vida de toda mulher e
nenhuma está livre de sofrer um ato de assédio, agressão ou abuso sexual. Dentro
do Posto Regional de Polícia Técnico-Científica (PRPTC-IML), funciona a
nossa Sala Lilás (equipamento inaugurado durante a pandemia pelo prefeito
Rodrigo Neves, fruto da parceria entre a Prefeitura de Niterói, o Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro, a Polícia Civil e a Prefeitura de Maricá). A sala é um
espaço de acolhida, escuta ativa e encaminhamento para as redes das duas cida-
des e funcionando com plantões de 24h. Ali, o principal objetivo é evitar a re-
vitimização da mulher ou da criança/adolescente por meio de um atendimento
humanizado. Em 2021, foram atendidas 1.070 pessoas; como estamos falando
de um equipamento que acompanha o exame pericial das vítimas, são aquelas

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Prefácio

que já denunciaram e registraram Boletim de Ocorrência junto à Polícia, apon-


tando para um número muito superior dos casos que não chegam à delegacia
ou à nossa rede na cidade. De qualquer forma, os dados colhidos pela equipe
técnica da Sala Lilás corroboram com a reflexão contida no artigo “A dispari-
dade da violência doméstica contra as meninas: um estudo realizado no NACA
Niterói”, visto que 69,9% dos casos registrados ocorreram dentro da residência,
e mais de 56% das vítimas de estupro eram menores de 18 anos. Refletir sobre
a violência contra as mulheres perpassa, obrigatoriamente, por refletirmos sobre
a violência contra as nossas crianças e, como bem traz o artigo, as relações de
poder ali presentes, segundo a autora Saffioti (2004), ressalta que o adultocentris-
mo é legitimado pela sociedade e que se expressa nas relações intrapessoais e familiares
bem como o androcentrismo, sendo este uma supervalorização do homem, concedendo
a ele o exercício do poder sobre mulheres, crianças e adolescentes. Tais características se
alimentam do patriarcado com livre reprodução.
Um grande desafio presente nas análises da rede de Niterói diz respeito
ao abrigamento temporário das mulheres em situação de violência. Já esta-
mos na fase licitatória do “Programa Hotel de Passagem”. Com previsão de
lançamento ainda no primeiro semestre de 2022, o programa disponibilizará
vagas em hotéis da cidade para o acolhimento temporário de mulheres, que
hoje acontece no Abrigo Lélia Gonzalez, destinado à população em situação
de rua. Com muita alegria, li o artigo apresentado pela equipe da Secretaria de
Assistência Social e Economia Solidária da Prefeitura de Niteroi sobre o tra-
balho desenvolvido no Abrigo Lélia Gonzalez a partir das reflexões surgidas
in loco, nas reuniões de equipe do equipamento e da busca por um atendimen-
to humanizado que permita a mulher se colocar, expressar-se no momento de
alta fragilidade. As autoras afirmam que um aspecto importante que precisa ser
pontuado é que muitas mulheres que estão sofrendo violência acabam não querendo
ir para essas instituições, (Casa Abrigo), alegando que, por se tratar de um serviço
de caráter sigiloso (na justificativa de garantir maior segurança), são elas que não
poderão sair por um período, sendo obrigadas a se afastar de suas redes familiares e
comunitárias, tendo suas vidas modificadas, ainda que sejam elas as vítimas.
Essa percepção também apareceu enquanto concebíamos o “Programa
Hotel de Passagem”, que não substitui a “Casa Abrigo Estadual”, mas visa

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Tecendo redes e transpondo desafios

atender os casos de baixa e média complexidade, garantindo a permanência


da mulher próxima ao seu núcleo, familiar, comunitário ou de trabalho. Serão
disponibilizados três hóteis diversos justamente para a garantia do sigilo.
São vários os artigos que se propuseram a pautar a saúde feminina, tra-
zendo a mulher para o centro do debate. Fiquei refletindo sobre o ser forte.
Precisamos ser fortes e guerreiras o tempo todo? Como receber a notícia de
um câncer de mama, um diagnóstico de HIV, uma gravidez decorrente de um
estupro, como ser mãe e encarar uma UTI neonatal... Como se manter forte?
Os artigos trazem reflexões dentro de uma perspectiva de gênero justamente
sobre a vulnerabilidade da mulher nesses cenários e a fragilidade do sistema de
saúde como um todo, as rotas críticas no atendimento, no percurso de garantia
do tratamento das pacientes diagnosticadas com HIV, no tratamento de um
câncer, na busca para garantir o direito ao aborto legal. Com diferentes enfo-
ques, eles revelam, no conjunto, a violência contra a mulher se materializar nos
espaços e sua revitimização nos processos, pela ausência de fluxos claros, por
falta de formação, por preconceitos religiosos dos profissionais ou por falta de
infraestrutura. Fica clara a necessidade de investir na formação profissional,
no interior das universidades e em formação continuada, com a criação e/
ou fortalecimento das redes nos municípios. Aqui para nós, do Codim, fica
um chamado à responsabilidade, nossa rede local existe e funciona, porém
a realização dos encontros permanentes “lubrificam” a engrenagem, fazendo
com que a intersetorialidade aconteça com maior fluidez e clareza. No caso da
garantia de diagnóstico e tratamento dos cânceres que acometem na maioria
dos casos as mulheres, como de mama ou útero, a Prefeitura de Niterói, pela
Secretaria de Saúde em parceria com a Codim, identificou os entraves e assu-
miu, com o “Programa Niterói Mulher” e investimentos próprios, a garantia do
atendimento integral a todas as etapas do tratamento, dos primeiros exames,
como mamografia, colposcopia e biópsia do colo uterino, até as radioterapias,
quimioterapias e as cirurgias de mastectomia e de reconstrução mamária no
Hospital Municipal Gilson Cantarino ( Hospital Municipal Oceânico).
No livro, a temática do direito ao aborto legal foi abordada em três arti-
gos que tomam como base de análise as experiências da Maternidade Pública
Universitária do ES, do Hospital Maternidade Carmela Dutra e do Instituto

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Prefácio

Fernandes Figueira com a demanda pelo abortamento legal. Todos os artigos


demonstram claramente as dificuldades da garantia do direito, principalmen-
te quando o aborto legal é demandado como fruto de uma violência sexual,
havendo muitas vezes a recusa do procedimento pelo profissional ou mesmo
a inexistência do procedimento em municípios do interior do Estado. E nós
sabemos, como demonstra o trecho do artigo das pesquisadoras do Instituto
Federal Fluminense que:

[...] de acordo com Giugliani et al. (2021), a gravidez decor-


rente do estupro caracteriza-se como uma das situações mais
danosas para a mulher, causando grande desorganização social
e psíquica. Neste sentido, negligenciar o direito da mulher ao
aborto legal, obrigando-a a manter uma gravidez decorrente de
estupro, pode ser considerado uma segunda violência.

As profissionais da Maternidade Carmela Dutra buscam por meio da pes-


quisa responder ao questionamento: “afinal, quem decide pelo aborto legal?”,
ressaltando que a legislação garante a palavra da mulher, mas que, na prática, a
decisão não cabe a ela. E segundo as autorasno que tange ser um direito concedido
ao aborto para a mulher violentada sexualmente desde a década de 40, a atitude de
desconfiança se torna corriqueira no cotidiano dos profissionais. Então, por se tratar
de um crime fazer aborto sem justificativa legal, abre-se a porta da “falsa denúncia”
e, com isso, toda a história dela pode ser desqualificada por pequenos e, às vezes,
nenhum ato em falso. O problema desse fato é o enfraquecimento de um sistema que
deveria proteger as vítimas de violência sexual. Decorrente a isso, são postas muitas
barreiras para as mulheres vítimas, pois, além da culpabilização consequente do
machismo patriarcal intrincado na sociedade brasileira, os profissionais fazem parte
de um silenciamento orgânico a dispor da análise do comportamento que diversas
vezes é deslocada para a vítima, não para o violador.
O artigo da OAB do município de Campos levanta o debate atual sobre
Pobreza Menstrual e apresenta o resultado da campanha desenvolvida no
município. Vimos esse debate ganhar força com o veto do governo federal
ao programa que disponibilizaria absorventes em todo território nacional,

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Tecendo redes e transpondo desafios

fazendo com que a sociedade passasse a olhar e compreender a gravidade


da situação e as consequências da não garantia ao acesso de itens básicos de
higiene, como absorventes. Em Niterói, articulamos, por meio da Codim,
o Programa de Promoção à Dignidade Menstrual que prevê a distribuição
universal dos absorventes descartáveis pelo sistema de saúde e como item
obrigatório nas cestas básicas da Assistência Social. Ao mesmo tempo, um
programa de formação coordenado pela Codim junto às escolas municipais,
instituições e movimentos sociais aborda a dita “menstruação sem tabu”,
com foco na saúde reprodutiva, sexualidade e distribuição de absorventes
reutilizáveis, de tecido ou coletores menstruais, a depender da opção e da
idade do nosso público-alvo.
Outro ponto que gostaria de destacar e que vem ao encontro da proposta
defendida pelo Seminário e pelo próprio “Mulherio” é a potência de se cons-
truir redes que se tecem e se mantêm no apoio mútuo e no fortalecimento dos
pares. O trabalho desenvolvido pelas autoras do artigo “Grupo de apoio a pais
de recém-nascidos das unidades neonatais: construindo redes, na maternidade
do Hospital Universitário Antônio Pedro (HUAP/ UFF)” reforça essa con-
vicção, quando, na conclusão, elas afirmam que:infere-se que o grupo possibilitou
a formação de uma rede de sustentação, principalmente para as mães, que muitas
vezes permaneciam no alojamento para favorecer a amamentação e compartilha-
vam dores, alegrias e experiências. Evidenciaram-se mudanças comportamentais de
mães na relação com a equipe e na participação nos cuidados com o bebê, mostrando-
-se mais ativas e afirmativas.
O pensar em equipe, o estabelecimento dos grupos, das rodas de conversas,
da troca ativa, da escuta das mulheres perpassaram todos os artigos, quando
falamos das Conferências Nacionais ou quando se olhou para as “Justiceiras”
ou para um grupo de alunas debatendo a Lei Maria da Penha. Não é falso
afirmar que necessitamos expor nossas vozes, mas principalmente aquelas
vozes caladas pela invisibilidade, pelo medo, pela anulação, vozes que iriam
ecoar na recente Comissão de Ética e Integridade Mulher (CEIM) da PMN,
que receberá as denúncias de assédio internas da prefeitura, vozes que ecoam
diariamente no nosso CEAM Neuza Santos, sim, nosso centro especializado
carrega o nome dessa mulher preta e lutadora dos direitos das mulheres, que

20
Prefácio

compôs, há 19 anos, a primeira equipe técnica e infelizmente foi levada pela


COVID-19, mas segue viva ali em cada voz que se liberta! Vozes que a nossa
arteterapeuta Luciana Vasconcellos registrou em seu artigo. Com a certeza
de que a arte tem o poder de ressignificar a dor, ela nos fala que Só aquilo
que somos realmente tem o poder de nos curar” ( JUNG, 2011, p. 258). Com isso,
liberando a energia criativa, é possível conhecer as forças e as fraquezas, aliviar
as tensões, se surpreender com o que é capaz de criar, ter insights e tomar melhores
escolhas na vida. A criatividade é inerente ao ser humano. As mãos são como canais
de comunicação com o inconsciente e, no ato de criar, somos impelidos a refletir e
tomar decisões.

“Só aquilo que somos tem o poder de nos curar”

Que imensa alegria ter esse trabalho da arteterapia ofertado ao nosso equi-
pamento e ler relatos como o que reescrevo abaixo:
Com isso, conduzi que ela fechasse os olhos, acessando o momento em que se sentiu
abusada (e que posteriormente tinha se automutilado). Ela entrou em contato com a
cena e sentiu novamente a emoção, a raiva, abriu os olhos e, à sua frente, tinha um
papel branco e alguns materiais – lápis de cor, giz de cera, canetinha e carvão. Ela
pediu uma tesoura e uma base para proteger a mesa – ofereci um papelão no formato
retangular. Ela rasgou com a tesoura o papel acima do papelão – em um movimento
como uma faca – e chorou durante o processo em que acessou o seu instinto. Olhando
os pedaços de papel, ela disse querer jogar fora – ofereci a lixeira. O papelão, a base,
ficou com as marcas/arranhões da tesoura. Ela ficou encantada, contou que desejava
fazer isso, mas não queria gastar dinheiro comprando uma tela para rasgar. Afirmei
que acabara de criar uma tela, respondeu que fez sentido para ela, quis levar para
casa e disse que iria emoldurar a sua obra.
Gratidão! Gratidão a cada mulher que esteve à frente da Codim nestes
quase 20 anos, gratidão a cada uma que compôs as equipes, a cada conse-
lheira municipal, a cada uma que esteve nas diferentes trincheiras da cidade.
Caminhamos trabalhando para tornar Niterói cidade referência nas politícas
públicas que garantam a equidade de gênero. Já avançamos e podemos avançar
ainda mais! Como?

21
Tecendo redes e transpondo desafios

– Reforçando nosso diálogo intersetorial de forma permanente e contínua;


– Acelerando os processos formativos com toda a rede de atendimento,
agentes públicos e sociedade, inclusive virtualmente pela Escola de Governo
e Gestão (EGG);
– Fortalecendo o Conselho Municipal de Políticas para as Mulheres
(CMP-MULHER);
– Disponibilizando o nosso relatório com todos os indicadores dos equipa-
mentos e criando um site/observatório da mulher;
– Intensificando o trabalho com foco no eixo maternar, em especial com as
nossas gestantes e puérperas pelo Programa Escola da Família (componente
do Pacto Niterói Contra a Violência);
– Ampliando as portas de entrada com a inauguração de um segundo
NUAM na região do Largo da Batalha, atingindo e facilitando o acesso de
um conjunto de mulheres daquelas regiões;
– Intensificando o trabalho do “Treinamento Lilás” com a educação para
atender ao conjunto da comunidade escolar, além de concluir o treinamento
com todos os motoristas das empresas de ônibus, táxis e aplicativos de trans-
porte, visando coibir o crime de importunação sexual;
– Intensificando o “Projeto Codim Itinerante” e a “Ação Mulher” junto aos
bairros, às comunidades, às instituições e com presença nas ruas e praças;
– Ampliando as parcerias com o setor produtivo, universidades, sindicatos e
organizações internacionais a fim de garantir empregabilidade e capacitações
para as nossas atendidas, em especial as beneficiárias do Auxílio Social;
– Ampliando as campanhas de comunicação que impactam diretamente na
procura pelos equipamentos;
– Construindo espaços públicos para as mulheres, como coworking e espa-
ços de negócios colaborativos;
– Apoiando a rede de economia solidária da cidade, majoritariamente
feminina;
– Reforçando projetos de redes como o “Círculo Feminino” e o “Quinta
D’Elas”, mobilizando cada vez mais mulheres a caminharem juntas, inclusive
como voluntárias do Codim.

22
Prefácio

Por fim, quero novamente agradecer a parceria com o “Programa Mulherio”,


parceria sólida que agrega ao trabalho da Prefeitura e que produzirá, tenho
certeza, outros frutos para além deste Seminário e E-book. Que possamos
permanecer tecendo, resistindo e construindo a Niterói que queremos!

Fernanda Sixel
Coordenadora da Coordenadoria de Políticas e Direitos das Mulheres
(CODIM) da Prefeitura de Niterói

23
I n t ro d u ç ã o

Há algum tempo temos nos dedicado a encontrar mulheres em seus territó-


rios, especialmente na cidade de Niterói. Começamos conversando com elas
e tentando pensar, juntas, as questões que as/nos atravessavam enquanto, na
condição de minoria social e de subalternidade, precisam/os lutar arduamente
pelo direito a se ter direitos.
Muitas violências e violações foram escutadas em nossas andanças por
aqui, ali e acolá. A todo tempo, sensações estranhas nos tomavam, pois,
quando achávamos que já tínhamos escutado de tudo, surgia outra história,
que conseguia fazer nossos olhos se arregalarem de surpresa e/ou espanto.
Várias delas nos interpelaram pelo modo como eram contadas: naturali-
zadas, banalizadas, apesar do sofrimento que junto carreavam. Outras nos
aturdiam. Ir aos serviços para estar com mulheres cada vez mais se inscre-
via como ação fundamental, mas, ao mesmo tempo, insuficiente diante de
tanta consternação.
Vimo-nos exigidas a produzir encontros de trocas compartilháveis acerca
dos direitos humanos, sexuais e reprodutivos. Mas não só. Urgia também a
necessidade de construção de um espaço para falar sobre as violências e as
violações vividas. Elas se apresentavam de diversas formas, explicitas ou não, e
reverberavam de forma contundente nas suas/nossas vidas.
Sabíamos, cada qual a seu modo, atravessadas por características que nos
localizam nas hierarquias sociais de poder, o que é ser mulher(es) em uma so-
ciedade patriarcal. Afinal, somos um grupo de mulheres, e não há sequer uma
única entre nós que não tivesse passado por algum tipo de situação abusiva,
violenta e/ou tivesse sido violada em seus direitos – à dignidade, à liberda-
de, ao corpo, à sexualidade... Não havia uma! Afinal, nós éramos exatamente
como elas. Ou, ainda, não poderíamos mais falar delas, mas de nós, juntas,
Introdução

provas vivas dos entrelaces do patriarcado ao racismo, capitalismo, classismo,


cristianismo e capacitismo, dentre outras categorias.
Com os dados em mãos de uma recente pesquisa1 oriunda do Programa
Extensionista “Mulherio: tecendo redes de resistência e cuidados”, conver-
samos pela primeira vez sobre a organização de um seminário de Políticas
Públicas para mulheres, referidas às violências de gênero. O intuito era conhe-
cer, promover e tensionar o debate sobre como essas políticas vinham sendo
implementadas e operacionalizadas em Niterói. Uma aposta na troca de expe-
riências como canal que nos permitisse compreender a rede de enfrentamento,
as violências de gênero, onde estão seus “desalinhos”, e quais estratégias estão
sendo gestadas para que possamos diminuir as Rotas Críticas e alcançar a
efetivação do que ainda se faz necessário.
O entusiasmo que nos movia diz de uma aposta na qual reflexões sobre as
nossas práticas cotidianas se tornem mais rotineiras e que agenciem cada vez mais
atores que compõem as redes intersetoriais e interprofissionais. Aos nossos olhos,
isso é fundamental para a efetivação de serviços mais eficientes e qualificados.
Havíamos compreendido que se faria necessário avaliar mais detalhada-
mente as Políticas Públicas municipais e seus fluxos, e o Seminário compunha
parte importante nesse processo. Aliados às fragilidades preexistentes nos
entrelaces que formam a rede de enfrentamento, prevenção, atendimento e
combate às violências de gênero, o atravessamento da pandemia e o levante
conservador que possibilitou os resultados das eleições de 2018 agravaram
ainda mais algumas fissuras que atravancaram mais o caminho do cuidado
e da garantia de direitos e proteção para as mulheres, complexificando ainda
mais suas/nossas existências.
Após meses costurando a proposta de trabalho e contando com muitas par-
cerias, entre 29 de novembro e 04 de dezembro de 2021, estivemos juntas, com-
partilhando dias de muita potência, uma a uma, lado a lado, e também ao lado
daquelas que, historicamente, vêm lutando há muitas décadas por nós – Hildete

1 A pesquisa referida trata-se de “Mulherio: no enfrentamento à pandemia de COVID-19:


dirimindo o impacto das violências contra as mulheres e meninas”, executada em 2020 a
partir de edital de fomentos da PROPPI/PROEX – UFF.

25
Tecendo redes e transpondo desafios

Pereira Melo, Jacqueline Pitanguy, Iriny Lopes, Angela Fontes e Leila Linhares
Barsted. Foram cinco manhãs maravilhosas nas quais elas nos contaram suas
histórias de lutas e deixaram suas sementes para que, nos grupos de trabalhos,
também ocorridos durante a semana, pudéssemos seguir conversando.
Cinquenta e dois trabalhos foram inscritos no Seminário por muitas mãos.
Foram mais de cem pessoas envolvidas, contando um pouco sobre suas práti-
cas. Pessoas de Niterói, dos municípios vizinhos, de outros mais distantes e até
mesmo de outros estados. Experiências que falam da diversidade de práticas,
de mulheres, de redes e de problemas.
Os trabalhos recebidos foram divididos em Grupos de Trabalho (GTs)
a partir da proximidade entre as temáticas apresentadas. Primeiramente,
pensamos dividi-los em quatro eixos, correspondendo aos grandes eixos da
Política de Enfrentamento às violências contra as mulheres, mas não acon-
teceu como programamos.
Em um primeiro momento, veio a surpresa do envio de alguns trabalhos
que (aparentemente) se distanciavam da proposta. Poderíamos tê-los descar-
tado, porém as temáticas trazidas, embora não diretamente circunscritas na
Política, tratavam de violações gravíssimas dos direitos das mulheres. Eram
denúncias de mulheres sobre as violações vividas por outras mulheres, em
especial, naquilo que tange aos direitos à saúde e aos direitos reprodutivos:
direito de ter ou não filhos – suas maternidades e abortos.
Sem nenhum descarte dos materiais recebidos, percebemos que os trabalhos
traziam vivências e questionamentos a respeito dos cruzamentos entre a expe-
riência de ser mulher, trabalhar com mulheres e a pandemia, a violência estatal, a
violência sexual, saúde, educação, prevenção, cuidados humanizados e um olhar
interseccional sobre os enfrentamentos vividos pelas mulheres em nossa socie-
dade. O número de trabalhos propostos sobre aborto demarcava a diversidade
que habita também essa temática, como também sobre hierarquias reprodutivas
que criam maternidades subalternizadas e tendem à criminalização da pobreza.
Temáticas urgentes para as mulheres e para os gestores se atentarem.
Este livro surge do encontro de mulheres com mulheres e da necessidade
em visibilizar nossos cotidianos de mulheres que compõem as redes de resis-
tência e cuidados. Deveria ter sido um pouco diferente, mas, mais uma vez,

26
Introdução

a vida escapa ao programado. Sabíamos que não iríamos publicar todos os


trabalhos apresentados, não imaginávamos que uma variante do vírus mortal
apareceria e tumultuaria nossos afazeres e prazos. A Ômicron, que, em janeiro
de 2022, apareceu no Brasil, com altos níveis de contaminação, acabou por
deixar algumas mulheres de fora... Como mulheres em tempos pandêmicos,
não tiveram meios de cumprir os prazos, pois estavam à frente de atividades
de cuidado.
Agradecemos a todas as mulheres que estiveram nessa empreitada, organi-
zando, participando, escrevendo, palestrando e publicando. Lutando conosco
pelas mulheres, por suas histórias, construções, modos de ser e viver e exercer
suas mulheridades.
Porque resistir é cuidar e cuidar é resistir!

Paloma Lima Ramos Jashar


Paula Land Curi
Thais Ferreira Rodrigues

27
28
Introdução

29
M u l h er

Dani Lopes

Hoje eu acordei com um chamado


não era bem uma frase ou palavra
parecia um coro orquestrado de
fêmeas selvagens e suas caças
bruxas entoando seus cantos
uma parteira segurava minha mão
e minha mão era o encontro de todas
as gerações da resistência mulher
uma grande roda se abria diante de mim
formada por todas as línguas, de todas as cores,
em todas as duras caminhadas
no solo espinhoso do patriarcado
elas, matriarcas na construção da história
com seus espartilhos sufocantes,
mordaças cortantes, saltos desconfortantes,
algemas, grilhões, ventres carregados
nesse instante uma mulher armada gritou:
– matem o patriarcado! e foi assassinada
sua filha chorou por toda a humanidade
evocou a força gerida no útero das dores
então eu vi a fenda se abrir no seu corpo
e de lá saírem crias de todos os povos
espalhando suas sementes ancestrais
Mulher

em pouco tempo já éramos brotos


dentes e unhas fincadas na terra árida
ideias alçando voos para a liberdade
do nascedouro das civilizações, vieram
às origens das tribos primitivas, voltaram
e se encontraram no meio das ruas
se reconheceram no meio da poesia
da rebeldia tatuada nos corpos mulheres
foram à luta contra as opressões
levantaram bandeiras e punhos cerrados
pintaram faixas, gritaram “basta!”
despiram-se de suas inúteis vaidades
saíram nuas pelos campos e cidades
empunhando a espada da desobediência
e ostentando o escudo da coragem
elas foram notadas em suas falas
percebidas, repreendidas, silenciadas
eu vi o amanhã distante e arredio
e pensei nas minhas tantas batalhas
virei bicho acuado dentro do meu lar
vítima fácil do bicho macho no cio
e mais uma vez senti o frio da dor
do ódio orgânico e dissimulado
não à toa fomos paridas para resistir
conseguimos ressurgir do medo
recebendo o ódio, produzimos amor
em nossos ventres, com nossos gritos
sobrevivemos desde quando e até quando
formos o celeiro da resistência humana.

*****

Dani Lopes. Poeta, escritora e artista visual. Participante do “Coletivo de


Mulheres Poetas de Niterói”.

31
As polít i cas p ú b l i ca s b r a s ile ir a s :
uma ref l exão f e m in is ta

Hildete Pereira de Melo

O Estado brasileiro constituiu-se com a Proclamação da Independência em


1822, mas transcorreu um longo tempo para que as mulheres fossem reco-
nhecidas como cidadãs e formuladas políticas públicas para elas. Só no século
20, com o avanço dos direitos sociais, o Brasil consolidou políticas públicas de
Trabalho, Educação, Saúde e Bem-Estar Social.
Mas as mulheres esquecidas pelas leis e silenciadas no interior de suas fa-
mílias, resistiram e, já no início do século 20, com determinação foram à luta
pelo direito de votar e serem votadas, uma realidade pleiteada pelas mulheres
em muitos países e que, a partir de 1910, se impõe no Brasil. Assim, essas
lutas coletivas de mulheres contra o sexismo, inferioridade das mulheres e as
práticas rotineiras de subordinação feminina consolidaram um movimento
feminista no Brasil a partir da segunda década do século 20.
O objetivo destas reflexões é fazer a trajetória dessas lutas e das políticas
públicas para as mulheres que elas possibilitaram construir ao longo desses
200 anos do Estado Nacional, conscientes de que podemos afirmar que as
mulheres viveram tuteladas pelo Estado patriarcal do Império à República.
Primeiro, praticamente ignoradas pelas leis imperiais e, depois, excluídas da
cidadania pela Constituição Federal de 1891 e pelo Código Civil de 1916.
Este, em uma afirmação do poder patriarcal, tutelou as mulheres casadas
pelos maridos, consagrando uma cidadania partida para estas mulheres por
muitas décadas. Estas notas acompanham as lutas travadas pelas mulheres
para viver a cidadania; primeiro, narrando o momento de sua construção
As políticas públicas brasileiras

na década de 1930; no segundo item, apresentando as demandas femininas


e políticas públicas para as mulheres construídas nos tempos da redemo-
cratização e escrita da Constituição Federal de 1988. No terceiro tópico,
os tempos áureos das políticas públicas para mulheres implementadas no
século 21 e interrompidas pelo impeachment da Presidenta Dilma Vana
Rousseff em 2016.

Breves notas das lutas pela construção da


cidadania feminina

A luta pelo direito ao voto para as mulheres emerge ainda no cenário do


Brasil Imperial na década de 1880. Com a promulgação da Lei Saraiva, as
mulheres letradas sonharam em participar da vida política nacional, mas todos
os esforços foram em vão, e a tão sonhada República ficou maculada, porque,
por razão do sexo, metade da população ficou fora do cenário político nacional
(MELO; MARQUES, 2000).
Dessa forma, a luta pelo sufrágio universal dominou o espaço político das
mulheres. Ao longo das primeiras décadas republicanas e na década de 1920,
esteve praticamente presente na maioria dos estados brasileiros. Finalmente,
no rastro da Revolução de 1930, com o enfraquecimento da economia expor-
tadora pela crise de 1929, o poder oligárquico que governava o Brasil desde
o século 19 foi substituído pela burguesia industrial e por militares liderados
pelo presidente do Estado do Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas, que toma-
ram de assalto o poder em outubro de 1930, e a luta pelo direito de votar e ser
votada foi vitoriosa.
Desde o final da Primeira Guerra Mundial (1914-18), o Brasil vivia mo-
mentos tensos com a emergência de uma classe operária aguerrida, pelo êxito
da Revolução Russa de 1917 e a efervescência feminista na luta pelo direito
ao voto (MELO; RODRIGUES, 2017). Vargas estava comprometido com os
trabalhadores desde sua campanha eleitoral de 1929, enfrentava a burguesia
paulista, que lutava por nova leis, e o governo provisório saiu na frente e criou
uma comissão para rever as leis eleitorais brasileiras e promover a reconstitu-
cionalização do País O decreto publicado em 24 de fevereiro de 1932, com

33
Tecendo redes e transpondo desafios

a revisão das leis eleitorais, acomodava as demandas eleitorais da sociedade


e permitiu o voto feminino sem condições excepcionais, como demandavam
as feministas (MARQUES, 2016). De concreto, a elas só foram assegurados,
além do direito de votar e ser votadas, uma tímida política pública de “prote-
ção à maternidade”, que consistia em uma licença de 30 dias antes e depois
do parto. Esses direitos e políticas públicas foram posteriormente ratificados
por uma legislação do trabalho que garantiu uma cidadania partida para a
classe trabalhadora: a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), Decreto-
Lei no 5.452, de 1o/05/1943, o primeiro pacto social nacional, aprovado em
um momento que o País vivia um regime de exceção. Assegurou a proteção
à maternidade, embora não tenha contemplado as trabalhadoras domésticas,
assim como os/as trabalhadores/as rurais.
Nas décadas seguintes, a despolitização das mulheres associada a uma so-
cialização para cuidar da família reduz as lutas feministas, embora um núcleo
da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF) tenha resistido e
mantido a chama, mas tudo seguiu seu curso tradicional. Lutas sociais, políti-
cas e culturais, mas a temática da igualdade entre os sexos ficou praticamente
invisível. Desta resistência, destacamos, em relação à família, que as mulheres
lutaram para alterar o item do Código Civil que tornava as mulheres casadas
incapazes e, finalmente em 1962, esse movimento foi vitorioso, com a pro-
mulgação do Estatuto da Mulher Casada (Lei no 4.121), que as igualava aos
maridos (MARQUES; MELO, 2008), embora a chefia conjugal continuasse
sob sua guarda. A igualdade na sociedade conjugal só foi conseguida com a
Constituição Federal de 1988 (MELO, 2018; PITANGUY, 2018). A outra
foi a luta pelo direito ao divórcio, que teve a liderança do político do Rio de
Janeiro Nelson Carneiro. Só vitoriosa no final da década de 1970, caudatária
do novo feminismo que emergia com força naquele período.
Portanto, a conquista do direito ao voto não foi suficiente para superar a
socialização despolitizada das mulheres brasileiras, e a principal associação fe-
minista nacional (FBPF), responsável pela campanha sufragista, praticamente
desaparece da vida política nacional nas décadas seguintes. Assim, entre 1932
e 1964, as mulheres participaram da política nacional de forma acanhada
e voltaram ao cenário nacional na luta contra a ditadura, acompanhando a

34
As políticas públicas brasileiras

efervescência política das feministas no mundo, como na luta pelo sufrágio.


O Brasil não foi diferente, e essas lutas explodiram. Apesar do cerceamento
das liberdades democráticas, as mulheres foram para as ruas e novas organiza-
ções emergiram no País (MELO; THOMÉ, 2018).

O despertar das lutas feministas da segunda


metade do século 20

Notem que, apesar de o País viver uma crise democrática, os feminismos or-
ganizados ganharam a sociedade, empenhados contra a supremacia masculina,
a violência doméstica e pelo direito ao prazer. O Centro da Mulher Brasileira,
criado no Rio de Janeiro em setembro de 1975 como consequência da rea-
lização do seminário de julho do mesmo ano, patrocinado pela ONU e pela
Associação Brasileira de Imprensa (ABI) no rastro do Ano Internacional da
Mulher, organizado na Cidade do México, foi a pólvora acessa que espocou
no território nacional, e multiplicaram-se os grupos de mulheres, jornais femi-
nistas e a mobilização ganhou o Brasil. Na década de 1980, a pauta feminista
foi marcada pela diversidade das agendas feministas, com encontros nacionais
de mulheres negras e lésbicas, com destaque para as intelectuais negras Lélia
Gonzalez (1935-1994) e Beatriz Nascimento (1942-1995). A violência domés-
tica ganhou espaço na mídia depois de assassinatos cometidos por maridos e
companheiros, a consigna “Quem Ama Não Mata” ganhou o Brasil, e foram
criadas as Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres (DEAM). A
primeira foi inaugurada em São Paulo em 1985. Relacionando-se com as Po-
líticas Públicas, o ponto alto desse período foi a criação do Conselho Nacional
dos Direito da Mulher (CNDM), a primeira instituição pública responsável
por Políticas Públicas federais específicas para mulheres no Brasil. Estas ações
eram rarefeitas, salvo o Programa Integral de Apoio à Saúde para a Mulher
(PAISM), criado em 1983 e resultante da luta das feministas da área da Saúde,
preocupadas com assistência à gravidez e ao parto e a realização do aborto nos
itens permitidos por Lei – risco de vida da mãe e gravidez resultante de estu-
pro – bem como aos temas da saúde da mulher, como métodos contraceptivos,
gravidez precoce, em suma a saúde reprodutiva feminina.

35
Tecendo redes e transpondo desafios

O CNDM pautou-se pelo compromisso de servir como canal de repre-


sentação dos interesses do movimento das mulheres. No final de 1985, lançou
a campanha “Mulher e Constituinte” com a convocatória “Constituinte para
valer tem que ter palavra de Mulher”, coordenada pela advogada e ativista
feminista Comba Marques Porto, que percorreu a maioria dos estados bra-
sileiros, lançando a campanha e incentivando a discussão em cada capital.
E, em 26 de agosto de 1986, o CNDM organizou um grande encontro em
Brasília, com 1.500 mulheres vindas de todas as regiões brasileiras para es-
crever a “Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes” (PORTO, 2018).
A capilaridade dos movimentos sociais foi grande, e escrever novas leis para
uma vida democrática tinha um grande significado para mulheres, negros,
indígenas e trabalhadores das cidades e do campo. Em 26 de março de 1987,
o CNDM levou a Carta escrita por milhares de mãos, ela foi entregue em
solenidade na Câmara Federal ao Presidente da Casa, o Deputado Ulysses
Guimarães, acompanhada por toda a bancada feminina federal, eleita em
1986, e as galerias estavam lotadas pelas mulheres. E elas foram à luta ao longo
desses meses de discussão nas comissões constitucionais. As vitórias e derro-
tas aconteceram, não foi possível remover todo o lixo discriminatório contra
as mulheres, mas seguramente avançamos muito mais que nossas colegas do
passado (MELO, 2018, p.102; BANDEIRA; MELO, 2010, p.27).

Os feminismos da década de 1990 aos


governos petistas

A nossa renúncia melancólica do CNDM em 1989, como protesto às ati-


tudes patriarcais do Ministro da Justiça – Oscar Dias –, olhando trinta anos
depois, enfraqueceu as Políticas Públicas que vinham sendo desenvolvidas,
e logo o desfecho da eleição e a vitória do candidato conservador Fernando
Collor esmoreceram a luta feminista dentro do aparelho do Estado. Este,
com um discurso moralista, retirou o orçamento próprio que as feministas
haviam negociado, e o CNDM viveu nesta década como um órgão fantasma,
às sombras dos governos de antanho, mesmo quando comandado pelo presi-
dente Fernando Henrique.

36
As políticas públicas brasileiras

No entanto, o movimento feminista não se rendeu. Aproveitando o ciclo


de palestras e conferências patrocinado pelas Nações Unidas, por meio de
uma miríade de grupos espalhados pelo Brasil, atuando em partidos políti-
cos, sindicatos, grupos autônomos, associações de moradores e organizações
não governamentais, resistiu em torno de agendas gerais e especificas: saúde
das mulheres, combate à violência doméstica, fortalecimento da autonomia
econômica e a inclusão das demandas das mulheres negras, indígenas, traba-
lhadoras domésticas e rurais e LGBTQIAP+.
Um ponto importante foi que nestes anos também cresceram os núcleos
de pesquisa sobre as mulheres e as relações de gênero nas universidades bra-
sileiras, embora, desde a década de 1980, feministas acadêmicas começaram
a se articular para o reconhecimento das temáticas feministas e de sexo nos
núcleos, associações acadêmicas e em redes de pesquisas em todo o Brasil
e, ainda hoje, permanecem atuantes no seio da comunidade acadêmica, com
revistas, cursos e pesquisas (BANDEIRA; MELO, 2010, p. 33-38).
Até que as eleições de 2002 aconteceram, e a vitória do líder operário Luís
Inácio Lula da Silva do Partido dos Trabalhadores (PT) mudou esse cenário.
No processo eleitoral, as mulheres feministas tinham forte presença no PT,
e a vitória eleitoral do seu candidato permitiu uma reviravolta na atuação do
Estado com relação às questões das mulheres. Ao tomar posse, o presidente
Lula criou, pela Lei no 10.683/2003, a Secretaria Especial de Políticas para
as Mulheres, vinculada à Presidência da República. Até então, o órgão que
conduzia as demandas femininas era a Secretaria Especial dos Direitos da
Mulher (SEDIM), alocada no Ministério da Justiça, que havia sido estabe-
lecida em 2002, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, mas um
órgão subordinado à gestão de outro ministério.
A atuação do SPM em parceria com o CNDM continuou inspirada no
princípio da igualdade entre os sexos, e seu objetivo era o desenvolvimen-
to de políticas para as mulheres, baseada no princípio da transversalidade,
ou seja, da incorporação da perspectiva de gênero e raça nas ações desen-
volvidas por todos os órgãos do governo federal. Pode-se concluir que a
SPM legitimou a implantação das políticas públicas para as mulheres no
aparelho do Estado, com objetivo de eliminar todas as discriminações de

37
Tecendo redes e transpondo desafios

gênero e raça. Para traçar essas ações, a SPM e o CNDM convocaram


quatro Conferências Nacionais, em 2004, 2007, 2011 e a última em 2016
(no apagão conduzido pelos conservadores do governo Dilma Rousseff, que
culminou no processo de impeachment, não teve suas resoluções transfor-
madas em ações e políticas públicas).
Essas conferências receberam milhares e milhares de mulheres de todo o
País. E delas resultaram os grandes instrumentos de luta política dentro e
fora do Estado: os Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres, que de-
finiram os eixos estratégicos da ação política social e feminista na sociedade:
autonomia econômica e igualdade, educação inclusiva e sem discriminações,
saúde das mulheres, enfrentamento de todas as formas de violência contra as
mulheres, participação política das mulheres e igualdade em todos os espaços
de poder, desenvolvimento sustentável no mundo rural, urbano e na floresta,
justiça ambiental, inclusão social, soberania e segurança alimentar, enfrenta-
mento ao racismo, sexismo e lesbofobia e gestão e monitoramento do Plano,
entre outros (BANDEIRA; MELO, 2010, p. 39-40).
A SPM e o CNDM não inauguraram na sociedade brasileira o diálogo
entre os feminismos e o Estado, mas contribuíram para a construção de um
espaço de poder dentro da máquina pública que permitiu “transversalizar” a
perspectiva feminista para as políticas públicas com a presença de feministas
como gestoras desses órgãos públicos e, seguramente, isso aproximou ativistas
e acadêmicas feministas com o comando político nacional.
O governo Temer, que assumiu a presidência da República em 2016, teve
uma postura conservadora, mas de imediato não destruiu as políticas públicas,
elas ficaram no limbo e, mesmo a mais conhecida delas no enfrentamento à
violência – a Lei Maria da Penha, ficou em banho-maria. Funcionavam as
ações que eram executadas pelas Unidades da Federação e municípios, mas,
do ponto de vista dos ministérios, em que havia gestoras simpáticas ao femi-
nismo, estas tentavam manter a chama acesa. Tudo veio abaixo com a eleição
e posse do presidente Jair Messias Bolsonaro, sua agenda ultraconservadora
e a adoção de uma política antigênero, sob comando da pastora evangélica
Damares Regina Alves, que assumiu o Ministério da Mulher, da Família e
dos Direitos Humanos, uma pasta que ocupou o lugar das antigas Secretarias

38
As políticas públicas brasileiras

trigêmeas: Políticas para as Mulheres, das Políticas para a Igualdade Racial e


dos Direitos Humanos.

O desafio do ativismo feminista no século 21

No percurso feito por este trabalho sobre os feminismos e as políticas públi-


cas nacionais que acompanharam essa caminhada ao longo do século 20 com
seus avanços e retrocessos, a batalha das mulheres por igualdade e equidade
segue atualmente intensa em todas as esferas das nossas vidas. As reflexões
teóricas estão passando por um processo de construções do conhecimento,
no qual as questões de raça e classe se entrecruzam igualmente sem velar as
desigualdades especificas dos diversos grupos de mulheres.
Inegavelmente, as mulheres avançaram em todos os aspectos na educação,
no mundo do trabalho, gritam, e há leis contra a violência doméstica, possibi-
litadas pela vigência da Lei Maria da Penha. No espaço político, o avanço tem
sido mais lento nas posições de poder e na política propriamente dita.
Sabemos que as conquistas sociais e os direitos de hoje que contemplam
as mulheres brasileiras originaram-se do esforço de gerações de mulheres.
No século 21, processa-se uma revolução feminista potente e urge sair do
binarismo redutor, ser outra e ser juntas. Isso é que nos ensina a radicalidade
do “#METOO” e do “Ele não!”, da luta pela descriminalização do aborto na
Argentina, “nin una a menos”, das argentinas, chilenas, equatorianas, nicara-
guenses e das jovens brasileiras, brancas, negras, LGBTQIAP+ que, desde
2016, lutam pela igualdade, são todas feministas e interseccionais.

Conclusões

Apesar da invisibilidade da História Oficial do Brasil, as mulheres esta-


vam e estão presentes em todos os tempos da Colônia, Império e República.
Nossas antepassadas se organizaram nas lutas pela Abolição e pela República,
mas todo o empenho delas não correspondeu à inclusão de direitos civis e
sociais. A Constituição Republicana de 1891 marcou o divisor de água nas
formas de participação política adotada para as mulheres. A Monarquia caiu,

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Tecendo redes e transpondo desafios

mas a República foi masculina e, mesmo no século 21, ela ainda continua
marcada pelo patriarcalismo, apesar dos avanços vividos pela execução das po-
líticas públicas dos Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres (PNPM)
de 2004, 2007 e 2011. Estes foram uma conquista da sociedade e das mulheres
brasileiras que, anônimas, enfrentam no cotidiano as dificuldades impostas
por uma sociedade que ainda tem muito a se desenvolver em direção à igual-
dade de gênero e raça.

Referências bibliográficas:

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Mulheres (SPM), dezembro de 2010.

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40
As políticas públicas brasileiras

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Disponível em: <https://www.emerj.tjrj.jus.br/publicacoes/serie_anais_de_semi-
narios/2018/serie_anais_de_seminarios_da_emerj_2018_72.pdf>. Acesso em:
25 maio 2022.

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Tecendo redes e transpondo desafios

*****

Hildete Pereira de Melo, Doutora em Economia, Professora Associada da


Faculdade de Economia e do Programa de Pós-Graduação de Políticas Sociais,
do Núcleo de Pesquisas em Gênero e Economia da Universidade Federal
Fluminense. Autora, entre outros, de “Mulheres e poder: histórias, ideias e
indicadores”, “Cuidados no Brasil: conquistas, legislação e políticas públicas”,
“Economia, história e memórias: a trajetória da Faculdade de Economia da
UFF”, “Maria da Conceição Tavares: vida, ideias, teorias e políticas” (organi-
zadora). Eufrásia Teixeira Leite (1850-1930), a paixão e os negócios na vida
de uma ousada mulher do século XIX, São Paulo, Hucitec Editora, 2021, 2°
Edição, 198 p. E-mail: hildete43@gmail.com.

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Ap resen t aç ã o d e
Jacq u el i n e P ita n g u y 2

1 o de dezembro de 2021

Bom dia.
Cumprimento as organizadoras deste seminário e agradeço o convite para
participar deste evento que fecha este ano muito difícil de 2021, transcorrido
em meio à instabilidade política, social, econômica e sanitária, com efeitos
dramáticos nas políticas públicas para as mulheres.
Pensando nesta nossa conversa, hoje me vieram à mente dois mitos gregos
que, creio, se relacionam ao contexto que vivemos: o mito de Penélope, ou
melhor, o mito do manto que Penélope tecia durante o dia e desfazia à noite,
uma analogia à instituição de políticas públicas para as mulheres e seu atual
desmantelamento, e o mito de Pandora, que, ao abrir a caixa contendo todos
os males, deixou nela a esperança. E é com a esperança de que este cenário
se renove em 2022 que converso hoje com vocês sobre direitos e políticas
públicas para as mulheres no Brasil.
Ao falarmos sobre políticas públicas, é importante fazer referência aos direi-
tos humanos que devem ser compreendidos no marco dos processos históricos
por meio dos quais são enunciados em leis, convenções, tratados, demarcando
o espaço da cidadania formal, assim como a dinâmica de seu exercício. As leis,
sua interpretação e implementação, assim como as políticas públicas decorren-
tes do marco legal, refletem relações de poder e padrões culturais prevalentes

2 Diretora Executiva da Cidadnia, Estudo, Pesquisa, Iinformação e Ação (Cepia)


(www.cepia.org.br).
Tecendo redes e transpondo desafios

em determinada sociedade. Tanto o seu conteúdo normativo quanto a sua prá-


tica se situam na esfera política, envolvendo disputas de poder por significados
e vivências, tanto a nível nacional como internacional.
O contexto econômico e social do País e, particularmente, a existência de
instituições democráticas e a garantia do exercício de liberdades civis, assim
como o contexto internacional, têm papel crucial na definição dos limites e
possibilidades da afirmação e do exercício dos direitos humanos e das polí-
ticas públicas. De fato, leis e políticas públicas estão diretamente ligadas a
processos políticos.
Entendendo que não existe uma trajetória linear em direção ao progresso,
posto que os direitos são conquistas históricas sujeitas a retrocessos, é pos-
sível distinguir dois grandes momentos na luta pelos direitos das mulheres
no Brasil: a ditadura e a democracia. Tais períodos determinaram limites e
possibilidades no exercício da advocacy feminista, ator fundamental em todas
as etapas desse processo de afirmação de direitos das mulheres e de elaboração
de políticas públicas de gênero.
Por advocacy, entendo uma ação política desenvolvida junto ao Estado ou
a outras instâncias nacionais ou internacionais no sentido de alcançar deter-
minado objetivo. Requer uma análise do campo, ou seja, dos diferentes atores
com interesses comuns ou divergentes que disputam objetivo semelhante,
bem como o estabelecimento de alianças e a utilização de instrumentos diver-
sos ao longo do processo. Uma das características marcantes do movimento
feminista brasileiro é sua capacidade de realizar ações de advocacy por leis e
políticas públicas, definindo objetivos e estratégias de atuação. Cabe ressaltar
que, no Brasil, o feminismo, como ator político, nunca abraçou o anarquismo
e, mesmo durante a ditadura, buscou influenciar leis e políticas públicas.
A análise de Hannah Arendt (1963) sobre a importância da ação políti-
ca (práxis) na construção de um conceito dinâmico de cidadania poderia ser
utilizada para descrever a ação política do feminismo como um ator social no
cenário do Brasil. De fato, ao longo das três últimas décadas do século 20 e,
ainda hoje, existe uma clara conexão entre o ativismo feminista e mudanças
em legislações discriminatórias, proposição de novas leis, implementação de
políticas públicas e resistência aos retrocessos.

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Apresentação de Jacqueline Pitanguy

Durante a ditadura, que marcou por 21 anos o cenário político brasileiro,


com diferentes graus de repressão e violência de Estado, o feminismo ad-
quiriu visibilidade enquanto movimento político, questionando as relações de
poder, as desigualdades e as hierarquias que definiam a mulher como cidadã
de segunda categoria. Organizado em coletivos informais, grupos de reflexão,
centros de estudos em universidades, trabalhando em articulação com outras
forças sociais que lutavam contra a ditadura militar, as feministas levaram a
agenda de direitos das mulheres a espaços diversos, como sindicatos, associa-
ções profissionais, academia, imprensa, dentre outros.
Entretanto, no contexto da luta contra o Estado autoritário, pautada pela
construção de grandes frentes de resistência, com o slogan “O povo unido
jamais será vencido,” agendas específicas não eram sempre bem-vindas, pois,
para alguns setores da resistência democrática, poderiam dividir a unidade
do movimento. Assim, o conceito de povo não comportava diferenças de
sexo, raça e etnia, o que dificultava a construção de uma agenda identitária
naquele contexto.
Por outro lado, a interlocução do movimento feminista com a Igreja
Católica, um ator importante contra a violência do Estado, era difícil e com-
plexa na medida em que, tendo seu apoio em questões ligadas à justiça social,
havia barreira dogmática intransponível no tocante aos direitos e à saúde re-
produtiva. O movimento feminista, com o slogan “Nosso corpo nos pertence”,
defendia a autonomia sexual e reprodutiva das mulheres. O direito ao aborto, e
mesmo o acesso a certos métodos contraceptivos, contrariavam drasticamente
a posição da Igreja.
Apesar desses obstáculos no sentido de ampliar suas alianças estratégicas, o
movimento ganhou visibilidade e legitimidade na defesa da mulher vítima de
violência, denunciando as esferas de segurança e justiça como espaços impreg-
nados pela cultura patriarcal. O feminismo retirou o manto de invisibilidade
que cobria a violência doméstica e questionou a aceitação, por parte da socie-
dade e das instâncias policiais e da justiça, das agressões perpetradas no espaço
do lar e/ou envolvendo homens e mulheres com relacionamentos afetivos.
Compreendendo a estreita relação entre a subordinação legal da mulher na
família e a violência doméstica, o movimento feminista atribuiu importância

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Tecendo redes e transpondo desafios

central à luta pela reforma das leis que regiam a família, tendo apresentado
diversos projetos nesse sentido, mesmo durante a ditadura, contestando as leis
que regiam o casamento e legitimavam a cidadania incompleta da mulher no
âmbito da família, em que o homem era o chefe da sociedade conjugal. Como
tal, ele tinha o direito de administrar os bens familiares, inclusive os de sua
esposa, de ter relações sexuais mesmo sem o seu consentimento, de deser-
dar a filha por comportamento desonesto, sendo o conceito de honestidade
diretamente ligado à moralidade sexual, o direito de acabar com o trabalho
da mulher se esse interferisse com seus deveres familiares, o direito de fixar
residência. Isto porque a família se regia ainda pelo Código Civil de 1916,
profundamente patriarcal, ancorado em valores hierárquicos das relações fa-
miliares e na subalternidade da mulher (pater famílias).
Outra bandeira de luta do feminismo dizia respeito ao papel da educação
e dos meios de comunicação em reforçar estereótipos do masculino e do fe-
minino, configurando o espaço da mulher como o da domesticidade e outor-
gando ao homem o domínio simbólico do mundo externo. A década de 1970
coincidiu com o avanço da televisão no País, a inauguração de redes nacionais
de TV e seu papel cada vez mais marcante na difusão de valores culturais
que, se por um lado reforçam a ideia da família nuclear como símbolo da
modernidade, por outro perpetuam o sexismo e o racismo, com a reiteração da
subalternidade da mulher, particularmente da mulher negra, nas novelas que
começam a impregnar o imaginário coletivo do País.
Na medida em que avança a participação da mulher no mercado de traba-
lho, evidenciam-se as discriminações que a afetam em termos salariais e de sua
posição na ocupação, outra bandeira de luta do feminismo. Na academia, tem
início uma extensa produção de pesquisas e estudos sobre a posição da mulher
no mercado de trabalho. Mulheres sindicalistas incorporam essa agenda em
suas plataformas, em um momento em que o sindicalismo ressurge como uma
força política no cenário nacional.
No final da década de 1970 e início da de 1980, coincidentes com a Anistia
de 1979, o movimento feminista já é uma força política, junto com outras
forças sociais que adquirem visibilidade no País, trazendo, com maior expres-
são, a defesa dos povos indígenas, do meio ambiente, dos direitos sexuais e a

46
Apresentação de Jacqueline Pitanguy

interseccionalidade entre gênero e raça para a área pública, propondo novas


pautas para a agenda política do País.
As eleições de 1982, constituíram um marco na transição democrática, pois
consagraram a vitória da oposição nos principais colégios eleitorais do País,
com Franco Montoro em São Paulo, Tancredo Neves em Minas Gerais e
Leonel Brizola no Rio de Janeiro. A eleição de governos democráticos levou a
uma aproximação, a nível estadual, do movimento feminista com os governos
eleitos e a criação do Conselho dos Direitos da Mulher em Minas Gerais e do
Conselho da Condição Feminina em São Paulo.
A criação desses órgãos, mesmo sem dotação orçamentária e com uma
posição secundária na constelação de secretarias estaduais, é de grande im-
portância, pois marca o início de políticas públicas a partir de órgãos especi-
ficamente voltados para as mulheres. Nesse período, é também elaborada, em
uma articulação bem-sucedida entre médicas feministas e centros acadêmicos,
a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM), pro-
grama do Ministério da Saúde, o que, pela primeira vez, retira a saúde sexual
e reprodutiva da mulher do âmbito materno/infantil no qual estava confinada.
Nessa mesma época, feministas demandam a criação de delegacias espe-
cializadas, onde a violência doméstica fosse tratada como um crime, sujeito à
inquérito policial e a processo devidamente encaminhado às instâncias da jus-
tiça. Surgem, assim, as Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher
(DEAMs), a primeira delas em São Paulo, em decorrência da atuação das
feministas no Conselho da Condição Feminina.
Um marco fundamental para a elaboração e implementação de políticas
públicas para as mulheres foi a criação do Conselho Nacional dos Direitos
das Mulheres (CNDM) em 1985, que tem como parâmetro o processo de
redemocratização do país em nível federal. A eleição de Tancredo Neves como
primeiro presidente civil e seu compromisso, pactuado com feministas, que em
uma bem articulada campanha, da qual participei, estão no pano de fundo da
criação deste órgão com a finalidade de instituir políticas públicas para as mu-
lheres. Apesar do nome Conselho, na realidade, se tratava de um Ministério
ou Secretaria com funções executivas, autonomia administrativa e que contava
com um conselho deliberativo e com orçamento próprio, o Fundo Especial

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Tecendo redes e transpondo desafios

dos Direitos da Mulher (FEDM), que lhe permitiu ter grande protagonismo.
O Conselho contava com uma Diretoria Executiva e uma Diretoria Técnica,
além da estrutura financeira e administrativa. Desenvolvia seus projetos e pro-
gramas por comissões que atuavam em diferentes áreas. Fui Presidente deste
órgão de 1986 a 1989, anos marcantes para a afirmação dos direitos humanos
das mulheres brasileiras.
Uma das primeiras preocupações do CNDM foi organizar um programa
de trabalho voltado para a Assembleia Constituinte, que seria instalada em
1987, a partir das eleições de 1986 para o Congresso Nacional. Dois slogans
resumem o objetivo desse trabalho: “Constituinte para valer tem que ter di-
reitos da mulher” e “Constituinte para valer tem que ter palavra da mulher”.
Tem início uma das principais ações de advocacy pelos direitos das mulhe-
res na história do Brasil, desenvolvida ao longo de três anos, antecedendo e
acompanhando a todo o processo constitucional. O CNDM conseguiu mo-
bilizar mulheres de todo o País em uma época em que as comunicações eram
péssimas e nem havia internet. Mesmo assim, houve uma massiva resposta das
mulheres que entenderam que aquele era o momento de eliminar legislações
discriminatórias e garantir a igualdade legal das mulheres.
Essa campanha começou com a organização de eventos nas diversas capi-
tais, em articulação com os movimentos locais e Conselhos Estaduais e Muni-
cipais. Paralelamente, o CNDM fazia também campanha por maior presença
feminina no Congresso, o que foi alcançado pois as eleições de 1986, quando
mais que dobrou a proporção de mulheres deputadas e senadoras em relação
aos homens, passando de nove para 26 parlamentares.
O objetivo do CNDM era descentralizar a campanha no sentido de engajar
a todos os estados nessa mesma iniciativa. Abriu-se também um canal direto
de comunicação do CNDM com os movimentos de mulheres, por meio da
solicitação para que enviassem ao Conselho suas demandas e propostas para a
Assembleia Constituinte, resultando daí a Carta das Mulheres aos Constituintes.
A Carta está dividia em capítulos, com proposições relativas a Princípios
Gerais, como a revogação automática de todas as disposições legais que impli-
quem em classificações discriminatórias, e Reivindicações Específicas na área
da família, como a plena igualdade entre os cônjuges, o acesso da mulher rural

48
Apresentação de Jacqueline Pitanguy

à titularidade de terras independente de seu estado civil e o dever do Estado


em coibir a violência nas relações familiares.
No trabalho, demandam igualdade de oportunidades, isonomia salarial, exten-
são de direitos trabalhistas e previdenciários às empregadas domésticas e trabalha-
doras rurais, a proteção da maternidade e do aleitamento, a garantia do emprego
da gestante e a extensão do direito a creche para crianças de zero a seis anos.
Propõe também uma licença aos pais no período natal e pós-natal e uma licença
especial no momento da adoção. As mulheres demandavam também o direito ao
marido ou companheiro de usufruir os benefícios previdenciários da mulher.
Na saúde, propunham a garantia de assistência integral à saúde da mulher
pelo Estado, a garantia da livre opção pela maternidade e da assistência ao
pré-natal, parto e puerpério, a garantia do direito de interromper a gravidez,
bem como de ter acesso gratuito aos métodos contraceptivos.
Na educação e cultura, destacavam o dever do Estado em zelar pela imagem
social da mulher sem preconceitos e estereótipos discriminatórios e discri-
minar as estatísticas por sexo, raça e cor. São fundamentais as demandas na
área da violência, como a criminalização de qualquer ato que envolva agressão
física, psicológica ou sexual à mulher, dentro ou fora do lar, a eliminação da lei
da expressão “mulher honesta” e do crime de adultério. Propõe também que
o Estado ofereça assistência médica, jurídica, social e psicológica à mulher
vítima de violência, que o crime de estupro independa da relação do agressor
com a vítima e ainda que o crime sexual deve enquadrar-se como crime contra
a pessoa, e não contra os costumes. E propõe ainda a responsabilidade do
Estado em criar delegacias especializadas e albergues.
Esse documento foi entregue por uma sufragista, Carmen Portinho, ao
Deputado Ulisses Guimaraes, Presidente do Congresso, em março de 1987,
em uma cerimônia com a presença de mulheres de todo o País, na qual as
constituintes afirmaram seu compromisso com a Carta.
A partir desse momento, o CNDM passou a ter presença constante no
Congresso Nacional, defendendo as propostas das mulheres, trabalhando de
forma articulada com as mulheres brasileiras em sua diversidade, com o apoio
da bancada feminina na Câmara e no Senado. Esse trabalho, que se estende ao
longo de todo o processo constituinte, é conhecido como o “Lobby do Batom”

49
Tecendo redes e transpondo desafios

e resultou na inclusão de cerca de 80% de nossas propostas na Constituição


Federal, com efeitos em mudanças no Código Penal, em proposições incorpo-
radas ao Novo Código Civil e em leis complementares. Resultou também na
definição de parâmetros constitucionais que legitimaram a criação de novas
leis, como a Lei do Planejamento Familiar, de 1996, a Lei Maria da Penha, de
2006, e a Lei do Feminícidio, de 2015. O CNDM realizou também campa-
nhas de comunicação na imprensa escrita, na TV e no rádio para conscientizar
a sociedade sobre os debates da Constituinte.
Mas a atuação do CNDM não se limitou ao seu incansável trabalho junto
aos constituintes, pois, simultaneamente, desenvolvíamos diversos programas
em diferentes áreas. Na saúde, por exemplo, inauguramos, as Conferências
Nacionais de Saúde da Mulher e conseguimos regulamentar, em 1986, o
Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM). Atuamos,
desde esta época, para a implementação de serviços de aborto legal e imple-
mentação de amplo leque de contraceptivos, lembrando que o DIU sofria
forte resistência por ser considerado abortivo.
Na área da violência, atuamos para criar coordenações nacionais de
DEAMs, apoiando sua atuação. Na área de educação e cultura, instituímos
concurso de livros didáticos menos discriminatórios e sexistas e programas
de apoio a pesquisas sobre a situação das mulheres junto à CAPES; levamos
a escolas públicas programas de redações discutindo, na escola, o papel da
mulher na sociedade, concurso literário intitulado “Prêmio Cora Coralina”,
festivais de vídeos e filmes; atuamos fortemente na questão das creches;
realizamos encontros nacionais de mulheres trabalhadoras para identificar
suas principais pautas e reivindicações; e trabalhamos com sindicatos de
mulheres rurais, associações de empregadas domésticas, levando suas rei-
vindicações à Constituinte.
E atuamos fortemente, por meio da Comissão da Mulher Negra, na de-
núncia da discriminação racial das mulheres negras, organizando o Tribunal
Winie Mandela para julgar ficticiamente os crimes de racismo contra as mu-
lheres negras, apesar da forte objeção do Ministério da Justiça a essa iniciativa,
que considerava subversiva aos valores da “democracia racial” que o governo
afirmava existir no Brasil.

50
Apresentação de Jacqueline Pitanguy

É importante recordar os avanços conquistados e refletir sobre este mo-


mento que agora vivemos, de fechamento do ciclo virtuoso de afirmação de
direitos, iniciado com a Constituição de 1988, em que, em uma campanha
vitoriosa do feminismo, que uniu movimentos sociais, associações, sindica-
tos e conselhos estaduais e com a eficiente atuação do Conselho Nacional
dos Direitos da Mulher, inscrevemos, em nossa Constituição, um patamar de
igualdade e equidade entre mulheres e homens.
As conquistas das mulheres são conquistas diárias porque nada está asse-
gurado e, como no manto de Penélope, o que conquistamos pode ser desfeito.
E nada nos foi presenteado. O que conquistamos foi tecido por nós, mulheres,
em nossa diversidade. Desde a conquista do direito ao voto, a nossa luta para
afirmar nossa cidadania plena e nossa igualdade na família, na educação, no
trabalho, na política, na vida sexual e reprodutiva, para afirmar o nosso direito
à segurança e a viver uma vida sem violência física, sexual ou psicológica.
Em maio de 2021, por meio do Instituto de Estudos Avançados (IEA)
da Universidade de São Paulo (USP), realizamos um seminário com mulhe-
res que ocuparam, ao longo de quatro décadas, a chefia deste espaço federal
voltado à implementação de políticas públicas para as mulheres, denominado
inicialmente de Conselho ou CNDM, depois de Secretaria de Políticas para
as Mulheres (SPM), com status de Ministério, e finalmente, já no final do go-
verno da Presidenta Dilma, incorporada a um Ministério mais amplo que en-
globava a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade racial (SEPPIR)
e a Secretaria de Direitos Humanos. Independente da nomenclatura, ressal-
tamos, neste encontro, que o respeito ao pluralismo, à diversidade, à laicidade
do Estado, única forma de garantir a liberdade religiosa, foram pilares das
políticas públicas para as mulheres e das leis e normas que orientaram tais
políticas ao longo de 40 anos.
Certamente havia diferenças e divergências entre os diferentes governos.
Mas as políticas públicas para as mulheres se desenvolviam no embate de-
mocrático que permite o contraditório, a discussão e o diálogo, mas que não
aceita o autoritarismo que aniquila o debate republicano. Ao longo destes
anos, não houve, tampouco, a imposição de qualquer dogma ou credo reli-
gioso por sobre as leis que regem uma sociedade plural e que garantem a suas

51
Tecendo redes e transpondo desafios

cidadãs e cidadãos o direito de exercerem qualquer fé religiosa em suas vidas


individuais, assim como o direito de não o fazerem.
Nestas quatro décadas, representado em foros internacionais, o Brasil era
ouvido e respeitado. Tinha o que dizer porque realizava uma política insti-
tucional voltada para a plena igualdade e autonomia das mulheres em sua
diversidade. Seus aliados eram os países que defendiam os direitos humanos
das mulheres, sua autonomia reprodutiva, e combatiam as desigualdades e o
patriarcalismo. Ocupava papel de destaque nas reuniões da Convenção contra
Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), comitê
que monitora a implementação da Convenção porque, no processo de rede-
mocratização de sua vida política, o País estabelecia também parâmetros de
plena igualdade para o usufruto da vida democrática pelas cidadãs brasileiras.
Hoje, na esfera das Nações Unidas, o Brasil aliou-se a países islâmicos,
onde as mulheres são ainda cidadãs de segunda categoria, e a alguns países
com governos ultraconservadores para negar às mulheres seus direitos huma-
nos, particularmente seus diretos sexuais e reprodutivos. Este grupo de países
criou uma articulação chamada Consenso de Genebra, do qual os EUA se
retiraram tão logo Biden foi eleito, e que tem como principal objetivo proibir
o acesso ao abortamento em qualquer circunstância, mesmo em casos de estu-
pro, atentando contra a dignidade e saúde das mulheres e meninas.
Em reunião do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, cujo
tema principal era a aprovação de resolução proposta pelo México sobre a
discriminação contra mulheres e meninas, o Brasil, aliado a esses países, se
colocou contra a inclusão de parágrafos inteiros que recomendavam o acesso a
informações e métodos contraceptivos, o acesso a direitos e saúde sexual livre
de coerção e discriminação, assim como contra textos relativos à prevenção e
tratamento de infecções sexualmente transmissíveis e acesso ao aborto legal.
A delegação do Brasil nessa reunião ainda se posicionou contra a inclusão do
direito ao acesso universal à educação sexual.
Em nome de quem fala o Ministério de Relações Exteriores ao se colocar
contra direitos assegurados às cidadãs brasileiras? Será que fala apenas em
nome de radicais fundamentalistas, como os que negaram a uma menina de 10
anos o direito de interromper uma gestação resultante de estupro?

52
Apresentação de Jacqueline Pitanguy

É importante aproximar essas posições do governo em foros internacionais


do quotidiano das mulheres e meninas brasileiras, alertar para o fato de que
política externa e políticas públicas nacionais se entrelaçam e incidem sobre os
direitos humanos das mulheres.
Os efeitos desta posição regida por dogmas religiosos e ideologias con-
servadoras se fazem sentir no âmbito nacional, no acirramento de posições
extremadas, no crescimento da intolerância. A discussão republicana de ideias
é deslocada para o plano de ofensas pessoais na tentativa de aniquilar moral-
mente seus defensores.
As políticas públicas para as mulheres nunca foram tão ameaçadas em nível fe-
deral, com graves efeitos nos estados e municípios. O atual Ministério da Família,
da Mulher e dos Direitos Humanos impõe uma perspectiva religiosa, familista e
patriarcal a seus programas e desmonta políticas exitosas, sem nada criar.
Observamos um distanciamento da democracia em direção ao autorita-
rismo que tem a perspectiva de um mundo binário; de um lado, os que se
autoproclamam defensores da pátria, da família, da infância, arautos do bem
e, de outro, seus opositores, transformados pelo discurso conservador funda-
mentalista em perigosas categorias políticas de acusação. A politização da re-
ligião, qualquer que seja, e sua interferência em leis e políticas públicas acirram
essa divisão e a aversão a quem não se coaduna com o projeto conservador de
moral e costumes.
O atual debate sobre a educação para a abstinência sexual dos jovens em
contraposição à educação sexual nas escolas, a objeção ao conceito de gênero,
confundido com uma tal “ideologia de gênero” que nada significa, a objeção
ao ordenamento jurídico do País que determina o direito ao acesso ao aborto
em situações de risco de vida, estupro ou feto com anencefalia, uma ideologia
patriarcal que prega a obediência da mulher ao homem na família dominam
hoje as políticas públicas para as mulheres no Brasil.
Entretanto, a sociedade brasileira e as mulheres, em sua diversidade, reagem.
Denunciam as políticas antigênero, denunciam o racismo estrutural, a substi-
tuição de princípios de direitos humanos por princípios religiosos, a negação
da ciência e a desqualificação moral da oposição. Por isso, porque resistimos,
nos reunimos hoje aqui para defender os direitos humano das mulheres em

53
Tecendo redes e transpondo desafios

sua diversidade, as políticas públicas para as mulheres e reafirmar que esses


direitos são conquistas diárias.
Gostaria de finalizar apresentando o Manifesto apresentado nesta reunião
do Instituto de Estudos Aavançados.

Manifesto das ex-Presidentas e ex-Ministras


dos organismos de políticas para mulheres

Os direitos das mulheres são conquistas diárias

Ao longo da ditadura militar, nós, mulheres, lutamos pela redemocratização


das instituições políticas do País e pela qualificação do conceito de democracia
para que incluísse o princípio da igualdade entre mulheres e homens.
Em 1985, a criação do Conselho Nacional de Direitos da Mulher foi uma
conquista política do movimento feminista e de movimentos diversos de mu-
lheres unidas na afirmação da necessidade de criar um órgão com autonomia
administrativa e recursos orçamentários que levasse a cabo políticas públicas
para as mulheres em sua diversidade.
O Conselho inaugurou a institucionalização de políticas públicas para as
mulheres em nível federal. Atuou com as mulheres brasileiras na luta para
inscrever na Constituição de 1988 os princípios da igualdade e da equida-
de em todas as dimensões da sua vida: na família, no trabalho, na saúde, na
educação, na política, para afirmar a plena igualdade entre os cônjuges no
casamento, a ampliação da licença-maternidade, o dever do Estado em coibir
a violência doméstica, o direito de decidir livremente sobre sua vida repro-
dutiva. Compreendendo a heterogeneidade da categoria mulher, inscreveram
direitos das trabalhadoras domésticas, de mulheres rurais, de mulheres negras,
de mulheres em situação prisional.
No segundo mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso, foi ins-
tituída, em 2002, a Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher, com status
de Ministério, vinculada ao Ministério da Justiça. A esse novo patamar de
institucionalidade, se acrescenta importante medida do governo do Presidente
Lula que, em 2003, estabeleceu a Secretaria Especial de Políticas para as

54
Apresentação de Jacqueline Pitanguy

Mulheres da Presidência da República, com status ministerial, fortalecida e


consolidada no governo da Presidenta Dilma, com recursos orçamentários e
de pessoal próprios.
Até 2016, por diversos programas, as políticas públicas para as mulhe-
res foram institucionalizadas no País. Em diálogo com os movimentos de
mulheres e ações articuladas com outros ministérios, avançou a igualdade
de gênero. São muitas as conquistas formalizadas pelas Conferências de
Políticas para as Mulheres e a elaboração de Planos Nacionais de Políticas
para as Mulheres, o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as
Mulheres, a implementação da Central de Atendimento à Mulher – Ligue
180, o Programa Mulher, Viver sem Violência e a criação da Casa da Mulher
Brasileira, o Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça, o apoio à aprovação
e implementação da Lei Maria da Penha, à Lei do Feminicídio, o programa
Gênero e Diversidade nas Escolas, Mulher e Ciência, o PNAISM voltado
para a saúde da mulher, o Pronatec de qualificação para o trabalho e a PEC
das Trabalhadoras Domésticas são alguns exemplos.
Nos foros internacionais, o Brasil foi escutado e respeitado por sua pos-
tura de compromisso com o avanço dos direitos humanos das mulheres.
Inicialmente, representado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
e, depois, pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, o País contribuiu com
exemplos de uma política institucional voltada para a plena igualdade e auto-
nomia das mulheres em sua diversidade.
Nesse percurso democrático, na Quarta Conferência Mundial sobre
a Mulher (Beijing, 1995), no começo do primeiro mandato do Presidente
Fernando Henrique Cardoso, o CNDM assumiu a delegação oficial do Brasil
e trouxe consigo a Plataforma de Ação de Beijing, conjunto de compromis-
sos assumidos pelos países e que ocupariam sua trajetória na implementação
desses compromissos em Estratégias da Igualdade.
Na década de 2000, a SPM deu continuidade à representação na política
internacional, ampliando a participação do governo federal nos foros regio-
nais e internacionais de direitos humanos. Como resultado desse processo,
construiu importantes alianças com os países que defendiam os direitos das
mulheres, sua autonomia sexual e reprodutiva, e combatiam as desigualdades

55
Tecendo redes e transpondo desafios

de gênero em todas as suas expressões, principalmente a violência contra me-


ninas e mulheres.
Ao longo de 40 anos, em contextos políticos e econômicos diversos, os
princípios de igualdade e equidade das mulheres com relação aos homens, o
respeito à diversidade e ao pluralismo e a afirmação da laicidade do Estado
foram considerados pilares das políticas públicas desenvolvidas nos governos
democráticos que se sucederam, afirmados também nas esferas internacionais,
onde o Brasil sempre foi respeitado por sua afirmação dos direitos humanos.
O golpe institucional contra a Presidenta Dilma Rousseff, em maio de
2016, marcou o ponto de inflexão nesse processo, e passamos a assistir ao des-
mantelamento do que foi construído ao longo destas décadas e ao fechamento
do ciclo virtuoso de afirmação dos direitos humanos das mulheres.
Nós, que, entre 1986 e 2016, exercemos os cargos de Presidentas, Secretárias
e Ministras de órgãos voltados para a afirmação e o exercício dos direitos
das mulheres, nos reunimos hoje, profundamente consternadas com as mi-
lhares de vida perdidas em nosso País pela pandemia do coronavírus. E pelo
grave momento de retrocessos e desrespeito aos espaços de controle social,
que caracterizam a atuação do governo federal, principalmente em relação às
conquistas e avanços das políticas públicas para as mulheres, jovens e idosos.
Alertamos para o avanço de uma agenda política de moral e costumes que
desrespeita a laicidade do Estado e utiliza a religião para atentar contra os
direitos humanos das mulheres, arduamente conquistados na Constituição,
regulamentados em legislações nacionais, afirmados em tratados, convenções
e acordos internacionais das quais o País é signatário, e exercidos por meio de
políticas públicas.
O atual Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos atua
como o “braço forte” do chamado núcleo ideológico deste governo. Impõe
uma perspectiva fundamentalista/religiosa, familista e patriarcal a seus pro-
gramas e a transversaliza aos Ministérios da Saúde, das Relações Exteriores,
da Educação, sob a orientação da Presidência da República e com o aval de
grupos conservadores presentes no Legislativo e no Judiciário.
Com particular empenho, em um esforço concertado de vários
Ministérios, o governo atua, nacional e internacionalmente, no sentido de

56
Apresentação de Jacqueline Pitanguy

negar a todas o direito a interromper a gestação, mesmo nos casos previstos


em lei, visando impor, em nome de princípios religiosos que devem guiar
vidas individuais, normas coletivas. Atua também no sentido de dificultar o
funcionamento dos serviços de atenção à saúde sexual e reprodutiva, rejei-
tando inclusive orientação da OMS neste sentido, com graves consequên-
cias para a saúde integral das mulheres e o agravamento da mortalidade
materna durante a COVID-19.
A atual Secretaria das Mulheres ignora os avanços anteriores, desconsidera
o papel de monitoramento e deliberação do Conselho Nacional de Direitos da
Mulher e não possui recursos orçamentários suficientes para viabilizar políti-
cas públicas para as mulheres, principalmente neste momento de aumento da
pobreza, da fome, do desemprego e da violência doméstica.
A educação também sofre com o conservadorismo atual – o conceito de
gênero e o enfrentamento à violência contra as mulheres são banidos de
planos educacionais e de programas governamentais, proibindo a educação
sexual nas escolas.
Destacamos as três importantes Leis aprovadas pelo Congresso Nacional e
sancionadas pelo ex-Presidente Lula e a ex-Presidenta Dilma, que hoje correm
sérios riscos de retrocesso com propostas da bancada fundamentalista: Lei
Maria da Penha, Lei do Feminicídio e PEC das Trabalhadoras Domésticas.
Vexatória é a postura do Brasil nos foros internacionais, unindo-se a
países que, historicamente, negam os direitos humanos das mulheres, o que
é exemplificado na liderança exercida pelo Brasil no chamado Consenso
de Genebra, que reúne países árabes, além da Hungria e da Polônia, com
governos de extrema direita.
É urgente chamar atenção das mulheres, em sua diversidade, para este
projeto de destruição de seus direitos – preconceituoso, racista, homofóbico
e transfóbico – e para a necessidade de que seja revertido por nós, da geração
que contribuiu para escrevê-los e, sobretudo, pelas jovens, para que as futuras
gerações vivam em um País que respeita as mulheres como cidadãs plenas
de direitos em suas vidas educacional, profissional, afetiva, familiar, sexual,
reprodutiva, política. Para que vivam sem violência e a imposição de dogmas e
preconceitos que tolhem sonhos, liberdades, autonomia e dignidade.

57
Tecendo redes e transpondo desafios

Nossa caminhada conjunta fez e com certeza continuará fazendo a diferen-


ça. Resistam e fortaleçam as trincheiras de luta e de trabalho em defesa dos
direitos das mulheres.
São Paulo, 14 de maio de 2021.

Subscrevem,

Jacqueline Pitanguy
Rosiska Darcy de Oliveira
Solange Bentes Jurema
Emília Fernandes
Iriny Lopes
Eleonora Menicucci
Nilma Lino Gomes

*****

Jacqueline Pitanguy. Socióloga. Estudou na Université Catholique de Louvain,


na Bélgica, e na Universidade Católica de Chile. Pós-graduação na USP.
Foi professora na PUC/RJ e na Rutgers University, New Jersey (EUA). Co-
coordenadora e professora do curso Corpo, Saúde e Sociedade, da Faculdade
de Medicina da UFRJ entre 1996-2006 e professora no curso Gênero e Direito
da EMERJ. Em 1986, foi nomeada pelo Presidente da República, para o cargo
de Presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), que
exerceu até 1989. No CNDM, desempenhou papel fundamental no sentido
de assegurar os direitos da mulher na Constituição de 1988. Em 1990, fundou
a Cidadania, Estudos, Pesquisa, Informação e Ação (CEPIA), uma organiza-
ção não governamental localizada no Rio de Janeiro, e exerce, desde então, sua
coordenação executiva. Tem extensa publicação no Brasil e no exterior. Sua mais
recente publicação é o livro Feminismo no Brasil, memórias de quem fez acon-
tecer, em co-autoria com Branca Moreira Alves, ed Bazar do Tempo, 2022, Rio
de Janeiro. Saiba mais em: <https://cepia.org.br/>.

58
Ge st ão p ú b l i ca e p o lític a s
p ara as mu l h e r e s

Angela Fontes

É com satisfação que observo o interesse de instituições como a Pró-Reitoria


de Extensão (PROEX) da Universidade Federal Fluminense (UFF), da
Coordenadoria de Políticas e Direitos das Mulheres de Niterói (CODIM),
assim como do “Grupo Mulherio” (UFF), enquanto apoiadoras nas constru-
ções de políticas públicas em prol da vida das mulheres, das nossas vidas.
E, nesse sentido, agradeço à Profa. Dra. Paula Land Curi (Coordenadora de
Curso de Psicologia da UFF), o convite feito no sentido de dividir minha
experiência enquanto gestora pública nas esferas federal e estadual, no Estado
do Rio de Janeiro, no que diz respeito às políticas para as mulheres. Aproveito
para parabenizar as palestrantes que me antecederam pelas falas que tão bem
contextualizaram os respectivos temas.
Pretendo abordar os desafios enfrentados pela gestão pública no que diz
respeito à formulação de políticas públicas em prol da defesa dos direitos das
mulheres, o que exige um olhar abrangente do que significa ser mulher.
Ao longo do viver a interseção das linhas que (des)organizaram o meu ser
economista, pragmática, feminista, tendo o histórico das mulheres que saíram
para o mercado de trabalho na década de 1970, constatei que o ato do “cuidar
afetivo” pressupõe o trabalho não pago no mais das vezes realizados pelas mu-
lheres que estavam em casa, trabalho essencial para a reprodução da força
de trabalho, e o contínuo “rodar” das engrenagens da economia. Entretanto,
quando nós, mulheres, saímos do mundo doméstico, da casa, do espaço res-
trito da família, e avançamos para o espaço público, as ações dos cuidados
Tecendo redes e transpondo desafios

ali desenvolvidas ganham contornos de trabalho pago. Poderíamos enumerar


áreas como os cuidados com as pessoas idosas, com as pessoas enfermas, com
as crianças, assim como as atividades de cozinhar, lavar e passar roupas, cos-
turar e limpar as casas. O atendimento às necessidades humanas básicas são
cuidados essenciais para a sobrevivência da humanidade, tanto os cuidados
individuais, no interior das famílias, como os cuidados profissionais.
Estamos falando das atividades remuneradas realizadas, por exemplo, no
sistema educacional, como as creches em período integral, e crianças menores
chegando em casa já de banho tomado e alimentadas. Crianças maiores e adoles-
centes alimentadas e tarefas de casa encaminhadas por “explicadoras”. Isso em um
contexto em que são poucas as famílias que podem contar com esse “plus” em seus
rendimentos, visto que, no mais das vezes, dada a precariedade da situação educa-
cional no País, pagam por essas atividades realizadas no interior das casas quando
contratam os serviços de alguém, no mais das vezes de uma mulher3. Nesse sen-
tido, destaca-se a área da saúde nos serviços de cuidados, ressaltando que, em
meio à pandemia, se mostrou primordial, revelando, inclusive, a forte presença das
mulheres em diversas categorias, das mais elementares às mais sofisticadas, no que
diz respeito ao conhecimento específico no enfrentamento da doença. Portanto,
são atividades que, quando realizadas fora do ambiente doméstico, ganham valor
de mercado, com remunerações diferenciadas de acordo com os locais e classes
sociais em que ocorrem, mas, no espaço da família, espera-se que as mulheres ou
quem as realize o façam por “amor incondicional”.
Tendo essa compreensão como pano de fundo, fruto da militância no mo-
vimento feminista desde a década de 1970, minha aproximação com as políti-
cas públicas se deu a partir da esfera municipal, quando comecei a trabalhar no
Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM), na década de 1980.
O IBAM me proporcionou chegar até as realidades municipais a partir da
realização de projetos que levavam em conta as especificidades dos diferentes

3 Mulheres representam mais de 92% das pessoas ocupadas em trabalho doméstico, das
quais mais de 65% são negras. Dieese. Trabalho Doméstico no Brasil. 2021. Disponível
em: <https://www.dieese.org.br/outraspublicacoes/2021/trabalhoDomestico.html>.
Acesso em: 25 maio 2022.

60
Gestão pública e políticas para as mulheres

universos populacionais e contribuir na formulação de políticas públicas em


cooperação com gestores municipais. Políticas públicas relacionadas com o
urbano, pensar as áreas de transporte, saneamento, habitação, mercado de tra-
balho, considerando o atendimento dos diferentes perfis de seus habitantes
para as quais deveriam ser formuladas.
E as mulheres?
Como as mulheres usamos as cidades? Como tornar as cidades seguras,
em particular para as mulheres? Como os trabalhos de cuidado são atendidos
pelas cidades? Ou como esses cuidados são remunerados pela execução de ati-
vidades urbanas? Foram questões levantadas pelas feministas, pelos organis-
mos internacionais, organizações não governamentais e alguns setores entre as
três esferas governamentais da administração pública.
Vale ressaltar que a década de 1990 foi a década das conferências interna-
cionais promovidas pela Organização das Nações Unidas (ONU). Os proces-
sos de globalização se acirraram. A lógica nos diz que o local se torna global.
A internet se impôs.
A Conferência Eco-92, também conhecida como Rio-92, foi a primei-
ra da década e tratou sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento em 1992.
Com a aprovação da Agenda 21, buscou alcançar o desenvolvimento susten-
tável, travar a destruição do meio ambiente e eliminar as desigualdades entre
os países. Naquela ocasião, o alerta sobre a destruição do planeta foi dado, e
as mulheres com a tenda do Planeta Femea estivemos presente com força e
criatividade. Em 1995, tivemos a IV Conferência Mundial sobre as Mulheres,
tendo como tema central “Ação para a Igualdade, o Desenvolvimento e a
Paz”, em Beijing, China, que se encerra com a “Plataforma de Beijing”, pa-
vimentando a continuidade das lutas dos movimentos feministas e dos mo-
vimentos de mulheres. Em 2001, aconteceu, em Durban (África do Sul), a
“Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia
e Intolerência”, que reconheceu em sua declaração que os principais obje-
tivos das três Décadas de Combate ao Racismo e à Discriminação Racial
não foram alcançados e selou o compromisso político de permanecer na luta
para o alcance daqueles objetivos.

61
Tecendo redes e transpondo desafios

O ciclo das conferências foi fundamental para a compreensão das inter-re-


lações presentes no planeta, fortalecendo a consigna “pensar global, agir local-
mente” e o reconhecimento da importância do papel das políticas públicas nas
ações do “cuidar”. Cuidar das pessoas, cuidar do planeta.
Em setembro de 2000, refletindo as grandes conferências e encontros, a
ONU chamou o mundo para adotar a Declaração do Milênio da ONU, com os
oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). Com a Declaração e
os oito ODMs, as Nações se comprometeram a uma nova parceria global para
reduzir a pobreza extrema em 15 anos, ou seja, a consecução dos objetivos até
2015. Em setembro de 2015, os 193 países membros da ONU adotaram uma
nova política global: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, com
17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), 16 temáticos e um sobre
meios de implementação, que visam alcançar um futuro melhor “sem deixar
ninguém para trás”, orientam os países comprometidos para o desenvolvimento
sustentável, a melhora da qualidade de vida de todas as pessoas. Estão apoiados
nos três eixos principais: social, econômico e ambiental. É o comprometimento
dos governantes com a redução das desigualdades e da justiça social.
Foi neste contexto internacional que a entrada do século 21 me levou, em
2004, a vivenciar a construção de políticas públicas em prol das mulheres
na esfera do governo federal quando, fui Subsecretária de Planejamento de
Políticas para as Mulheres na Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres
da Presidência da República (SPM-PR).
Adquiri o olhar macro e aprendi a importância de formular ações de cui-
dados coletivos que impactariam a vidas das responsáveis pelos cuidados in-
dividuais no interior de suas famílias. Foi a partir das demandas apresentadas,
debatidas e votadas nas Conferências Nacionais, em especial na 1a CNPM4,
que o norte das políticas para as mulheres adquiriu concretude em sua formu-
lação nacional.

4 Registradas no Relatório de Implantação 2005 do PNPM, produzido pelo Comitê de


Articulação e Monitoramento do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM),
que tive a honra de coordenar. Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/nave-
gue-por-temas/politicas-para-mulheres/arquivo/assuntos/pnpm/pnpm-relatorio.pdf>.
Acesso em: 25 maio 2022.

62
Gestão pública e políticas para as mulheres

O planejar e o fazer estavam no caminho trilhado pelas mulheres, por


suas demandas vindas de todo o País. O desafio se mostrou maior no treinar
o olhar para transmitir às demais áreas governamentais que as mulheres não
somos e não vivemos em guetos. Estamos em todos os lugares, em todas as
políticas setoriais e que, portanto, a leitura do orçamento necessariamente
deveria ser um orçamento sensível a gênero e etnorracial. Não há execução
de políticas sem recursos, tanto financeiros como equipes técnicas compro-
metidas, pessoas que levam adiante o que se desenha como política, propos-
to com o objetivo de atender demandas específicas. As ações precisam ser
executadas por todos os setores da administração pública. Nas três esferas
governamentais: nacional, estadual e municipal.
Ao desafio de espelhar no governo federal um orçamento sensível a gênero,
somava-se sua execução. Ressalta-se que o desenho da política é nacional, mas
sua execução é descentralizada e realizada pelos estados, distrito federal e mu-
nicípios. Os programas e projetos que compõem uma política ganham con-
cretude em última instância no chão dos municípios, onde moram as pessoas.
Se nos setores consolidados como saúde e educação, exemplificando, exis-
tem resistências à execução de programas e projetos que passam por situações,
ou entendimentos, tanto por questões políticas quanto técnicas, é possível
compreender que, no que diz respeito às políticas para as mulheres, os obstá-
culos enfrentados ocorreram não apenas em função da ausência de organismos
do poder executivo na ponta, como, e talvez tenha sido o mais relevante, o
sentimento de desimportância da política, de tratar-se de uma política menor,
de uma política direcionada para mulheres.
Construir ramificações de Organismos de Políticas para as Mulheres
(OPMs) nas demais esferas de governo – estadual e municipal – foi a estra-
tégia desenhada e adotada para levar adiante “o fazer”, a execução do PNPM.
Assim, foi possível construir pactos de enfrentamento à violência contra as
mulheres, criar redes de serviços especializados de vítimas da violência domés-
tica, buscar o fortalecimento de posições de tomada de decisões no mercado
de trabalho, realizar campanhas por “Mais Mulheres na Política”, entre muitas
outras ações. A partir do reconhecimento da importância e do valor econômi-
co existente nos trabalhos de cuidado realizados pelas mulheres no interior de

63
Tecendo redes e transpondo desafios

suas famílias, enfrentou-se o desafio de valorizá-los em seu reconhecimento


profissional quando os mesmos vão ao mercado de trabalho, representados em
suas ocupações5. Neste sentido, tem-se a Lei da Empregada Doméstica, após
anos de luta dos movimentos feministas e de mulheres, tendo, na Deputada
Federal Benedita da Silva (PT/RJ), uma das principais, se não a principal, de
suas defensoras na batalha travada no Congresso para a promulgação da Lei
Complementar no 150/2015.
As políticas públicas para as mulheres buscaram traduzir em programas
e ações as demandas reivindicadas ao longo dos ciclos de Conferências
Nacionais, interrompidos com o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff
(16 de agosto de 2016). É possível dizer que, ao longo dos anos de 2004 a
2016, tanto os órgãos governamentais quanto os movimentos de mulheres e
movimentos feministas reconheceram a interseccionalidade presente e neces-
sária nas políticas para as mulheres.
No início da segunda década do século 21, me encontro atuando na esfera
estadual, especificamente no Estado do Rio de Janeiro. E o olhar macro
adquirido no governo federal me orienta na execução das políticas públicas
estaduais. Desde a criação da SPM-PR, em 2003, que os movimentos femi-
nistas e de mulheres passaram a incluir em suas reivindicações a criação de
uma Secretaria Estadual de Políticas para as Mulheres, um órgão executor
das políticas públicas objetivando a igualdade de gênero e a defesa dos di-
reitos das mulheres.
No Estado do Rio de Janeiro não foi diferente. E, em 2007, foi criada a
Superintendência de Direitos da Mulher (SUDIM), na Secretaria de Estado
de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro (SEASDH-RJ),

5 A Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) classifica como cargos domésticos um


amplo leque de profissionais, que abrange desde as empregadas domésticas, diaristas,
governantas, aos jardineiros, mordomos, camareiros, roupeiros, entre outros, mas
vale registrar que mesmo sendo uma ocupação onde as mulheres representam no Brasil
mais de 92% das pessoas ocupadas em trabalho doméstico, das quais mais de 65% são
negras, seguem invisíveis pelas regras ortográficas que regem o idioma português. Dieese.
Trabalho Doméstico no Brasil. 2021. Disponivel em: <https://www.dieese.org.br/outras-
publicacoes/2021/trabalhoDomestico.html>. Acesso em: 25 maio 2022.

64
Gestão pública e políticas para as mulheres

que passou a ter o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDIM-RJ)


vinculado a ela em sua estrutura.
Mais do que o engajamento em uma estratégia do governo federal para a
criação de OPMs, a história do Rio de Janeiro remete à criação do CEDIM-RJ6
em 1987. Vinculado ao Gabinete Civil da Governadoria do Estado, em 1997, o
que possibilitou proximidade aos órgãos de políticas setoriais, favorecendo ações
de integração nas políticas públicas. Vale dizer, favoreceu o papel desempenhado
à época pelo Conselho executor das políticas para as mulheres no estado.
Cronologicamente, o CEDIM-RJ é o terceiro Conselho dos Direitos das
Mulheres criado no País. São Paulo foi o primeiro, com a criação do Conselho
Estadual da Condição Feminina de São Paulo em 19837. O segundo foi o
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM)8 em 1985, ano do pri-
meiro governo civil após a Ditadura Militar. Nunca é demais registrar que o
CNDM foi uma conquista das mulheres, dos movimentos feministas e de
mulheres, militantes engajadas na luta pela democracia e pelos direitos das
mulheres. O órgão fez a ponte entre as demandas das mulheres em sua diver-
sidade e os poderes públicos. Vinculado ao Ministério da Justiça, o CNDM
dispunha de um Fundo Especial, tinha autonomia administrativa e operava
com um Conselho Deliberativo, Secretaria Executiva e Assessoria Técnica.
O CNDM foi de relevância ímpar ao longo da Assembleia Nacional Constituinte
na defesa dos direitos das mulheres inscritos na Constituição Federal de 1988.

6 Decreto no 9.906, de 06/05/1987, e, posteriormente, a Lei Estadual no 2.837, de


19/11/1997, regula a vinculação do CEDIM/RJ ao Gabinete Civil da Governadoria do
Estado do Rio de Janeiro. O Conselho Deliberativo do CEDIM RJ é composto por 21
integrantes, sendo 80% representantes da sociedade civil e 20% representantes governa-
mentais, com mandato de quatro anos. Disponível em: <http://www.cedim.rj.gov.br>.
Acesso em: 25 maio 2022.

7 Decreto no 20.892, de 04/04/1983, regido pela Lei no 5.447, de 19/12/1986, SP.


Disponível em: <https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/1983/decre-
to-20892-04.04.1983.html>. Acesso em: 25 maio 2022.

8 Lei no 7.353 de 29 de agosto de 1985. Disponível em: <https://www.cfemea.org.br/plata-


forma25anos/_anos/1985.php?iframe=criacao_cndm>. Acesso em: 25 maio 2022.

65
Tecendo redes e transpondo desafios

Retornando à história do CEDIM-RJ, vale ressaltar seu papel de aglu-


tinador das demandas feministas e dos movimentos de mulheres com um
desempenho de órgão executor de políticas para as mulheres até a criação em
2007 da SUDIM, vinculada à SEASDH, à qual o CEDIM foi vinculado em
sua estrutura.
Com a criação da SUDIM, o Estado do Rio de Janeiro aderiu à estratégia
nacional de criação de OPMs, de modo a efetivar a execução do PNPM. E o
Conselho passa a exercer o papel de monitoramento e fiscalização do cumpri-
mento das leis que asseguram os direitos das mulheres. E não mais executor
das políticas.
Se antes da criação da SUDIM, órgão executor das políticas para as mulheres, a
presidência do CEDIM-RJ era exercida por nomeação do Governador do Estado,
a partir de lista tríplice formada entre as integrantes do Conselho Deliberativo,
após sua criação, a presidência passou a ser exercida pela Superintendente no-
meada pelo mandatário da pasta à qual estava vinculada. Em 2017, após mais de
dez anos de luta e de idas e vindas, foi aprovado o novo Regimento Interno do
CEDIM-RJ9 que institui a alternância de poder entre a representação governa-
mental e a da sociedade civil. Para o período de 2018 a 2022, foi eleita a primeira
gestão da sociedade civil para a presidência do CEDIM-RJ, da qual participo
como Conselheira Titular representante do IBAM.
Com a criação dos OPMs, os Conselhos têm ressaltada sua importância
e explicitada a necessidade de ocupar os espaços de controle social, ou seja, a
participação efetiva de suas conselheiras nas tomadas de decisões em prol do
interesse popular e social, e no âmbito desta fala, em prol das mulheres, res-
peitando nossa diversidade de cor/raça/etnia, classe social e orientação sexual.
Como elo estadual responsável pela execução das políticas para as mulhe-
res, vale destacar a ação da antiga SUDIM enquanto garantidora da realização
das II e III Conferências de Políticas para as Mulheres no Estado do Rio de
Janeiro e a execução do Plano Estadual de Políticas para as Mulheres, cujas
propostas foram aprovadas nas conferências. Deu continuidade às políticas de

9 Decreto no 46.052, 28/julho/2017. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/dia-


rios/155030012/doerj-poder-executivo-31-07-2017-pg-1>. Acesso em: 25 maio 2022.

66
Gestão pública e políticas para as mulheres

enfrentamento à violência contra as mulheres, que, antes de 2003, eram sim-


bolizadas pelas casas abrigo e pelas delegacias especializadas de atendimento
às mulheres, respondendo às demandas surgidas, envidando esforços para que
o Estado do Rio de Janeiro estivesse entre os primeiros a se comprometer
com a assinatura do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra
as Mulheres. Atuou também nos eixos estruturantes apontados pelo PNPM;
ações voltadas para o fortalecimento da autonomia econômica e financeira
das mulheres; e apoio e incentivo à maior participação política das mulhe-
res. Além de ter mantido o funcionamento do Espaço Cultural Heloneida
Studart, voltado para a construção e o fortalecimento da cidadania feminina
por meio da implementação de atividades artístico-culturais.
Em fevereiro de 2013, a SUDIM deixou de existir, com a criação da
Subsecretaria de Políticas para as Mulheres (SPMulheres-RJ/SEASDH),
conferindo maior agilidade administrativa ao organismo responsável por ela-
borar e executar as políticas públicas para as mulheres no Estado do Rio de
Janeiro, mantidas as atribuições da extinta Superintendência.
Fui a primeira Subsecretária de Políticas para as Mulheres e, consequen-
temente, a última Superintendente, vinculada à SEASDH-RJ (2012-2013),
período em que também assumi a presidência do CEDIM-RJ.
No exercício do mandato, foram considerados pontos importantes para
a execução das políticas públicas: (i) promover ações no território, traba-
lhando em conjunto com a Câmera Temática de Gênero, Raça e Etnia do
CONLESTE10 no processo de interiorização das questões de gênero nas po-
líticas de desenvolvimento sustentável, em especial nas regiões norte, noroeste
e centro-sul fluminense, buscando o protagonismo das mulheres moradoras
naquelas localidades; (ii) fortalecer o Fórum de Gestoras dos OPMs com o
objetivo de promover a implementação de novos OPMs e fortalecer e ampliar

10 Consorcio Intermunicipal de Desenvolvimento do Leste Fluminense (Conleste).


Consórcio público formado por 16 municípios do Leste Fluminense. Tem como princi-
pal objetivo traçar estratégias de atuação conjuntas, conquistando, por meio de parcerias,
atrativos que possam contribuir para o crescimento econômico, cultural e sustentável das
regiões consorciadas. Disponível em: <http://conleste.com.br/institucional/>. Acesso em:
25 maio 2022.

67
Tecendo redes e transpondo desafios

a Rede de Serviços Especializados de Atendimento à Mulher; (iii) manter


as articulações necessárias à parceria formada pelos governos estadual e fe-
deral responsável pelo funcionamento do Pacto Nacional de Enfrentamento
a Violência ; (iv) promover as primeiras ações para a implementação do
Programa “Mulher: Viver sem Violência”, também em parceria com o gover-
no federal, em especial para a construção da “Casa da Mulher Brasileira” e o
recebimento de unidades móveis para atendimento a mulheres em situação
de violência no campo e na floresta; e (v) atuar junto à Comissão Parlamentar
Mista de Inquérito (CPMI) sobre Violência Contra a Mulher, informando
sobre a situação no Estado do Rio de Janeiro.
Vale ressaltar a importância de ações visando à melhoria no fluxo para a
execução de convênios, fonte do maior percentual de recursos, assim como
na captação de novos recursos, pois não se executa políticas formuladas
com as melhores das intenções sem orçamento. Buscou-se, também, junto
à Subsecretaria de Planejamento, Orçamento e Administração (SSPOA-
SEASDH), liberar o uso do Fundo CEDIM existente desde a criação do
Conselho, mas que, na prática, ainda não havia sido usado. E, a bem da ver-
dade, apenas no correr da atual gestão estão sendo dados os primeiros passos
para efetivar seu uso.
Especificamente com relação ao CEDIM-RJ, além da manutenção dos
calendários de reuniões ordinárias e celebrações de datas importantes aos
movimentos feministas, buscou-se a criação e/ou a recuperação de grupos ou
comissões de trabalho, as mais relevantes a responsável pelo andamento do
processo de reformulação do Regimento Interno, em curso desde agosto de
2010, que veio a ser resolvido apenas em 2017, como já apontado, e a Comissão
de Segurança, até hoje com atuação importante no Conselho.
Buscou-se fortalecer os Conselhos Municipais existentes, assim como
apoiar a criação de novos. Foi estabelecida a realização de Rodas de Conversa
semestrais com as conselheiras municipais, lembrando que eram presenciais
e as dificuldades financeiras com as quais os Conselhos convivem até os dias
atuais restringiam as viagens à capital do estado.
Algumas ações realizadas em parceria entre a CEDIM-RJ e a SPMulheres-
RJ merecem destaque: (i) Roda de Conversa que contou com a participação da

68
Gestão pública e políticas para as mulheres

Sra Michell Bacheleet, na época Subsecretária-Geral e Diretora Executiva da


ONU Mulheres, e da Sra Eleonora Menicucci, então Ministra da SPM-PR,
por ocasião da Rio+20; (ii) Café da manhã com Prefeitas e Vice-prefeitas elei-
tas, em fevereiro de 2013, quando foi anunciada a criação da SPMulheres-RJ;
(III) Seminário Trabalho Doméstico, com a presença da Deputada Federal
Benedita da Silva (PT-RJ), relatora do Projeto recém-aprovado no Congresso
em maio de 2013.
Em seguida, retornei ao governo federal, atuando como Secretária Adjunta
de Articulação Institucional e Ações Temáticas da Secretaria de Políticas para
as Mulheres da Presidência da República, de agosto de 2013 a outubro de 2015.
Voltando aos tempos atuais, e caminhando para minhas observações finais,
impossível não recordar que, em dezembro de 2019, o mundo conheceu o
Coronavírus a partir de notícias vindas da cidade de Wuhan (China) e passou
a viver em função do enfrentamento à pandemia da COVID-19.
A maior parte dos trabalhos de cuidar e de sobrevivência das famílias recaiu
sobre as mulheres, que perderam seus empregos, ficaram em casa arcando,
também, com parte dos trabalhos dos cuidados coletivos, que praticamen-
te deixaram de existir, como ocorreu com o sistema escolar, que, fechado no
modo presencial, aumentou a carga dos trabalhos no interior das famílias.
E o mantra “fique em casa, lave a mão, use máscaras” se impôs de modo
mais intenso no mundo como um todo do que no País. A vida se alterou
bastante neste período, tanto no que diz respeito às questões tecnológicas
quanto ao comportamento das pessoas presas em casa, quando as tinham,
ou jogadas nas ruas por falta de trabalho, de assistência humanitária, de
políticas públicas e do negacionismo científico por parte do atual chefe
do governo federal. É necessário registrar que, mesmo tendo passado por
grandes processos de desestruturação ao longo dos últimos anos, foi o
Sistema Único de Saúde (SUS) que deu conta de atender à população,
vulnerável ou não. Podem-se reconhecer deficiências, mas também se
acrescentam nesta análise coragem, dedicação e senso de responsabilidade
profissional de seus servidores.
Os cenários para 2022 ainda apontam para dificuldades mundiais nos as-
pectos sociais, econômicos e ambientais, mas quero crer que a humanidade

69
Tecendo redes e transpondo desafios

tenha aprendido a importância da solidariedade planetária e que alcançar o


desenvolvimento sustentável “sem deixar ninguém para trás” de fato se trans-
forme em um mantra real, e não apenas em um slogan.
Obrigada pela atenção de vocês.

*****

Angela Fontes. Doutora em Geografia, área de concentração Organização e


Gestão do Território e Mestre em Planejamento Urbano e Regional, ambos
pela Universiade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bacharel em Economia pela
Universidade Candido Mendes (UCAM). Especialista em Desenvolvimento
Local pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Atuou nos gover-
nos federal e estadual na área de políticas para as mulheres, em que ocupou
cargos de direção. Foi coordenadora de programa no Unifem, hoje ONU
Mulheres. Atualmente, participa no Instituto Brasileiro de Administração
Municipal como consultora e professora da Faculdade IBAM. Representa o
Instituto como Conselheira no CEDIM-RJ na primeira gestão da sociedade
civil (2018-2022). Ativista feminista desde a década de 1970.

70
A lo n g a l u t a d as m u lh e r e s
pe la co n q u i st a d e d ir e ito s

Leila Linhares Barsted

“[...] ao escrever encontro-me constantemente na obriga-


ção de resistir a uma forte pressão interior que me leva a
encarar o antigo como muito mais admirável que o novo, e
o novo como algo condenável, sem que para tal me baseie
na minha compreensão consciente do material de que dis-
ponho. Estou, pois, a olhar esse material através da lente
deformadora da nostalgia: fiz o que me foi possível para
obstar os seus efeitos.11”

Introdução

Neste artigo, recupero muito das questões por mim abordadas em textos
anteriores relativas à advocacy feminista por direitos e, em especial, por
direito a uma vida sem violência. Busco resgatar, em parte, o processo
político de construção de uma agenda feminista que serviu de base para a
conquista dos direitos das mulheres expressos na Constituição Federal de
1988, processo que faz parte de uma longa trajetória de luta das mulheres
por cidadania no Brasil.
Observar e refletir sobre um processo histórico do qual se fez parte, coloca
para a autora o desafio de fazer um esforço para não olhar com nostalgia para

11 HOGGART, R. As utilizações da cultura. Lisboa: Editorial Presença, 1973. p. 21.


Tecendo redes e transpondo desafios

os 50 anos de minha atuação e militância feminista, não deixar de relativizar


o vivido a partir do que já encontramos construído e a manter a esperança de
continuarmos lutando por uma cidadania verdadeiramente inclusiva na lei e
na vida, mesmo em contextos políticos e sociais adversos marcados por práti-
cas e valores conservadores e fundamentalistas.
Nesse resgate, destaco, em paralelo às lutas das mulheres por direitos civis
e sociais, a luta contra a violência de gênero, em especial a violência domés-
tica, luta antiga travada contra as diversas formas de violência, dentre elas
a privação da liberdade a escravização e o controle dos corpos, a exclusão
de direitos civis, a negativa de direitos políticos e do acesso à educação,
dentre outros direitos de cidadania. É importante lembrar e valorizar nossas
antecessoras que, em décadas e em séculos passados, em contextos violentos
e discriminadores, lutaram pelo direito à educação, à participação política,
à liberdade, ao trabalho e aos direitos dele decorrentes, à promoção social,
contra a subordinação das mulheres à cruel ordem patriarcal e escravocata.
Muitas dessas mulheres ficaram anônimas na história, em especial as mu-
lheres negras, indígenas, operárias, trabalhadoras domésticas e rurais que
carregavam, além da discriminação de gênero, as discriminações de classe
e de raça/etnia, em relação às quais ainda somos devedoras da recuperação
de suas histórias. Cito como exemplos algumas de nossas precursoras que
fazem parte de uma longa lista de mulheres pela conquista de direitos e que,
de alguma forma, conseguiram romper a invisibilidade: Nísia Floresta, no
século 19, uma pioneira do feminismo, jornalista e escritora; as sufragistas
Bertha Lutz e Maria Lacerda de Moura, que criaram a Federação Brasileira
para o Progresso Feminino, em 1932, tendo como missão a defesa do direito
ao voto, do direito ao trabalho e à promoção social das mulheres; Carlota
Pereira de Queiroz, também sufragista e primeira e única mulher eleita para
a Câmara Federal em 1934; Laudelina de Campos, pioneira na luta das
trabalhadoras domésticas, que abriu caminho para o reconhecimento de
direitos dessa categoria de mulheres; Romy Medeiros da Fonseca, a quem
devemos o Estatuto Civil da Mulher Casada, que ampliou direitos a favor
das mulheres, diminuindo o alcance do patriarcal Código Civil de 1916;
Lélia Gonzalez, escritora, professora, filósofa e pioneira nos estudos sobre

72
A longa luta das mulheres pela conquista de direitos

cultura negra no Brasil12. A luta das mulheres por direitos é tributária dessas
antecessoras13 e se reconstrói14 na década de 1970, no processo de luta contra
a ditadura, com a ativa participação de grupos e movimentos feministas na
resistência política, aliados a outros movimentos sociais, como o Movimento
de Mulheres pela Anistia, de modo a formar um campo político novo no
cenário nacional, fortalecido no processo de redemocratização do Brasil na
década de 1980.
A agenda feminista foi formada também pela produção teórica de inte-
lectuais francesas e norte americanas15 e pela ampla produção de intelectuais
brasileiras, dentre as quais Heleith Saffiotti, Eva Blay, Lélia Gonzalez, Fanny
Tabak, Rose Marie Muraro, Moema Toscano e muitas e muitas outras, no
conjunto de uma vasta produção bibliográfica sobre trabalho, política, edu-
cação, ciência, família, relações raciais, sexualidade, arte, valores e percepções,
cultura, dentre outros temas, e que estão referidas em diversas publicações16,
demostrando a diversidade de enfoques e temas sobre as mulheres no Brasil.
Essa produção realizada na academia e fora dela, ampliada nas décadas se-
guintes até os dias de hoje, permite que a luta feminista aprofunde suas ques-
tões e reforce o diálogo entre a militância por direitos e a academia em um
processo de sinergia.
Ainda na década de 1970, também se constituíram no Brasil os chama-
dos “grupos de reflexão” feministas ou grupos de “conscientização” formados

12 GONZALES; HASENBALG (1982).

13 Nas últimas décadas, houve um esforço para dar visibilidade à história das mulheres no
Brasil. Cito alguns exemplos – PRIORI, Mary Del (1997), SHUMAHER, S. e BRAZIL,
E. (2000); CARNEIRO, Sueli (2004), PINSKY, Carla B. e PEDRO, Joana Maria (2012).

14 Importante reconhecer as lutas anteriores pelo sufrágio feminino, por direitos trabalhistas,
por direitos civis e pelo divorcio, dos movimentos de mulheres por moradia e saneamento
que se estenderam ao longo do período republicano.

15 Entre elas, Simone de Beauvoir, Kate Milet e Juliet Mitchell.

16 Destaco a publicação Cadernos da Fundação Carlos Chagas, São Paulo, de 1975, que
reúne artigos reveladores da condição das mulheres na sociedade brasileira. Ver, também,
ROSEMBERG, Fulvia, PIZA, Edith Pompeu e MONTENEGRO (sem data).

73
Tecendo redes e transpondo desafios

exclusivamente por mulheres e que deram origem a novas formas de atua-


ção ao questionarem valores e práticas do patriarcado presentes na família,
na sociedade, na relação entre os sexos e, também, nos chamados setores
progressistas que atuavam contra a ditadura, mas que consideravam a pauta
feminista como uma pauta divisionista da luta geral17, uma forma de des-
considerarem os direitos das mulheres. Fato importante para a legitimidade
da pauta por direitos das mulheres foi a inauguração, em 1975, pelas Nações
Unidas, da chamada Década da Mulher e a realização na Cidade do México
da I Conferência Internacional das Mulheres, quando se descortinaram as
denúncias de violência e de discriminações contra as mulheres e se firmou,
internacionalmente, a luta por igualdade.
Foram os grupos feministas de reflexão, incentivados por esse grande evento
da ONU, que organizaram, no Rio de Janeiro, ainda em 1975, o Seminário
Nacional sobre O Papel e o Comportamento da Mulher na Sociedade
Brasileira, marco histórico da “segunda onda” do feminismo no Brasil18. Esse
seminário, do qual me orgulho de ter sido uma das organizadoras, realizado
na Associação Brasileira de Imprensa (ABI) sistematizou as demandas fe-
ministas por uma ampla gama de direitos individuais e sociais e incentivou a
criação, no Rio de Janeiro, do Centro da Mulher Brasileira e, em São Paulo,
do Jornal “Nós Mulheres”.
Os movimentos feministas ressurgem no Brasil com uma dupla identi-
dade: como ator político contra a ditadura e como um novo ator social na
luta pelo reconhecimento dos direitos específicos das mulheres, introduzindo
temas e questões até então excluídas do espaço político. Luta por reformas
legais, denúncia da opressão do Estado e do mercado de trabalho, denúncia
dos esquemas de dominação da família, declaração do direito de dispor do
próprio corpo, luta pela legalização do aborto, contra a repressão sexual, contra

17 Sobre a trajetória do movimento feminista e sua relação com os setores de esquerda, ver
BARSTED, Leila de A Linhares (1983), GOLDBERG, Annette (1982), LIBARDONI,
Marlene e SUAREZ, Mireya (1992), dentre outras.

18 Destaco, dentre os grupos organizadores, o Grupo Ceres do Rio de Janeiro e, em especial,


a grande atuação da psicóloga de Mariska Ribeiro.

74
A longa luta das mulheres pela conquista de direitos

a violência sexual e doméstica. Dessa forma, ainda no final da década de 1970,


no início do processo de redemocratização, nós feministas estávamos nas ruas
denunciando a violência doméstica.
A luta contra essa violência ganhou força em meados da década de 1970,
quando, ainda sob a ditadura, grupos feministas denunciaram a violência
contra as mulheres, em especial a ocorrida no espaço doméstico, e a impu-
nidade dos agressores que justificavam esses assassinatos sob a alegação de
que o fizeram em legítima defesa da honra. A prevalência desse argumento
cruel e patriarcal levava à impunidade desses crimes (hoje seriam considerados
feminicídio) que encontravam a complacência do júri popular, que absolvia os
autores e tornava as vítimas culpadas pelo próprio assassinato. Essas denúncias
se ampliaram com a visibilidade dada pela imprensa a alguns desses crimes co-
metidos contra mulheres de classe média alta19, assassinadas por seus maridos
ou companheiros. Como reação a esses crimes, em 1980, grupos feministas
de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte definiram novas estratégias
de ação, além das denúncias, e criaram os SOS-Mulher, grupos de apoio a
mulheres vítimas de violência. As feministas denunciavam também a ocorrên-
cia cotidiana de estupros, quase sempre encobertos pela chamada “cultura do
silêncio”, ampliada pela complacência das autoridades, pelo pudor das vítimas
em denunciar e pelo descaso das autoridades.
Assim, os SOS-Mulher passaram a atender e dar assistência jurídica àque-
las que não tinham tratamento respeitoso nas delegacias de polícia, por meio
de um trabalho voluntário e interdisciplinar que, de certo modo, inspirou a
criação das delegacias especializadas e abrigos de mulheres em situação de
violência. A denúncia da violência doméstica incluía também a denúncia
da legislação civil, que mantinha dispositivos claramente discriminatórios.
O espaço da família, regido até 1988 pelo Código Civil de 1916, legitimava
o poder do marido sobre a mulher e permitia a manutenção de uma cultura
de violência nas relações entre os cônjuges, naturalizada como um simples

19 Trata-se dos crimes cometido contra Angela Diniz, no Rio de Janeiro, Maria Regina
Rocha e Eloísa Ballesteros, em Minas Gerais, Eliane de Gramont, em São Paulo, e de
Cristhel Johnston, no Rio de Janeiro.

75
Tecendo redes e transpondo desafios

conflito familiar a ser tratado na esfera estritamente privada. Os chamados


“crimes da paixão” ou “crimes passionais” passaram a ser desmascarados pelo
slogan “quem ama não mata”, pichado em muros das cidades pelas feministas.
A divulgação pelo IBGE dos resultados da PNAD de 1988, explicitou esta-
tisticamente as características de gênero desse fenômeno: o principal locus de
ocorrência de violência para os homens era a rua, o espaço público e, para as
mulheres, era a casa, o espaço privado, sendo o principal agressor maridos e
companheiros20, padrão que se mantém até os nossos dias.
Ainda na década de 1970, nós feministas demandávamos por creches,
por acesso à assistência integral à saúde das mulheres, dentre outros pontos e
participávamos da luta pela Anistia e eleições livres e diretas. Apesar da dita-
dura, nós feministas apoiamos o projeto de lei, do Senador Nelson Carneiro,
que permitiu a Lei do Divórcio, e apresentamos sucessivas propostas ao
Poder Legislativo Federal para alterar as leis discriminatórias, em particular
os Códigos Civil e Penal e, em 1977, a Câmara dos Deputados criou uma
Comissão Parlamentar de Inquérito, em que muitas feministas foram ouvidas,
para examinar as discriminações contra as mulheres no Brasil.
A aprovação, em 1979, pela ONU da Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) e o do-
cumento elaborado na III Conferência Mundial da Mulher, em Nairóbi, em
1985 – “Estratégias para o Ano 2000”, estabeleceu o compromisso dos países
signatários de implementar políticas públicas voltadas para a eliminação das
desigualdades entre os sexos, fortalecendo os movimentos feministas. A con-
venção tornou-se o modelo para elencar os direitos das mulheres na legislação
dos países membros da ONU e definir as obrigações dos Estados na promo-
ção desses direitos.
No início da década de 1980, antes mesmo do pleno restabelecimento da
democracia no Brasil, o movimento feminista já se mostrava extremamente
organizado por todo o País, incluindo a forte presença de feministas negras.

20 Anterior à pesquisa do IBGE, a publicação do CNDM “Quando a vítima é mulher” já reve-


lara que as violências contra as mulheres tinham características especificas e eram praticadas
por pessoas que privavam da intimidade da vítima, em geral maridos e companheiros.

76
A longa luta das mulheres pela conquista de direitos

Visibilizado por uma imprensa alternativa e também pela grande mídia, criação
de centros de estudos e pesquisas, de organizações não governamentais e grupos
autônomos. Encontros nacionais, publicações, manifestações de rua eram uma
reafirmação clara de que surgia no Brasil novas vozes pela luta por direitos.
Assim, as mulheres em movimento passaram a dialogar com os partidos po-
líticos de oposição, o que explica a introdução da agenda feminista no espaço
partidário. A criação, no Rio de Janeiro, do “Alerta Feminista para as Eleições” é
um exemplo de ação voltada para estimular candidaturas de mulheres. O diálo-
go político com setores da oposição possibilitou que, em 1982, nas eleições para
os governos estaduais, em alguns estados, como São Paulo, Minas Gerais e Rio
de Janeiro, fossem criados os Conselhos Estaduais da Condição da Mulher, as
primeiras delegacias de mulheres, abrigos e centro de atenção às mulheres em
situação de violência doméstica. A pressão feminista foi decisiva para a primeira
condenação pelo júri popular de um acusado de assassinar sua mulher, deixando
de reconhecer a chamada justificativa da legítima defesa da honra.
A partir de 1982, o movimento de mulheres, na questão de saúde, soube
detectar as brechas que possibilitaram algum diálogo com o Estado, que ainda
não declarara o fim da ditadura e que deu origem ao Programa Assistência
Integral à Saúde da Mulher – PAISM.
Com o fim da ditadura, em 1985, a agenda feminista consolidava as de-
mandas de mulheres dos mais amplos setores da sociedade. No mesmo ano,
no processo de eleição direta para a presidência da República, as mulheres
organizadas demandaram não só por direitos, mas também por políticas
públicas e pelo reconhecimento pelo Estado de seu protagonismo como
atrizes políticas, o que possibilitou, no âmbito do Ministério da Justiça, a
criação do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM), inau-
gurando-se a inclusão de uma agenda feminista no interior do Estado com
histórico impacto no texto da nova Constituição de 1988. A atuação do
CNDM colocou como questão de Estado as demandas dos movimentos
de mulheres construídas na década anterior, fortalecidas e consolidadas na
“Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes”, entregue ao Presidente
do Congresso Nacional em 1987, pressionando que essas demandas fossem
incluídas no texto da Constituição Federal de 1988.

77
Tecendo redes e transpondo desafios

O texto Constitucional reflete em grande medida o sucesso legislativo dessa


luta; nele, se encontram os direitos civis plenos das mulheres, a igualdade entre
mulheres e homens na família, o reconhecimento de direitos reprodutivos, a
licença-maternidade de 120 dias, o direito de a mulher presidiária amamen-
tar sua criança, o dever do Estado de atuar contra a violência doméstica, o
direito das mulheres a terem a titularidade da terra nos planos de reforma
agrária e, também, nos planos de reforma urbana, os direitos das empregadas
domésticas mesmo que ainda parciais, além de muitos outros direitos que,
mesmo não sendo específicos das mulheres, foram defendidos por elas junto
aos Constituintes, como o Sistema Único de Saúde, os direitos individuais e
sociais na sua totalidade, previdenciários, trabalhistas e assistenciais como um
todo, o reconhecimento de terras quilombolas, o reconhecimento da igualdade
entre filhos nascidos ou não no casamento. Mesmo não conseguindo incluir
no texto da Constituição o direito à interrupção voluntária da gravidez21, a ad-
vocacy feminista conseguiu impedir a total criminalização do aborto, proposta
por os grupos conservadores religiosos.
Nesse processo de avanços, o direito a uma vida sem violência e à saúde
sexual e reprodutiva ganhou visibilidade exatamente pelo fato de represen-
tar as questões relativas ao controle dos corpos das mulheres, historicamente
dominados pela sociedade patriarcal22,conforme bem observa a socióloga
Heleieth Saffiotti (1992).
A luta contra a violência de gênero se intensificou, a partir da década
de 1990, com o ciclo de Conferências das Nações Unidas sobre Direitos
Humanos, em especial com a Conferência Mundial de Direitos Humanos,
de 1993, que, em sua declaração final, reconheceu que a violência contra as
mulheres e as meninas é uma violação dos direitos humanos. Em 1994, a
Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou
a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra as Mulheres – Convenção de Belém do Pará, em 1994, aprovada pela
Assembleia Geral da Organização, que reconheceu que a violência contra as

21 A esse respeito ver BARSTED, Leila Linhares (1992).

22 SAFFIOTI, Heleieth; IARA, Bongiovani (1992).

78
A longa luta das mulheres pela conquista de direitos

mulheres constitui violação dos direitos humanos e liberdades fundamentais


e limita total ou parcialmente a observância, gozo e exercício de tais direitos e
liberdades. A Convenção de Belém do Pará define o que é violência contra as
mulheres, aponta que tais crimes podem ocorrer no espaço familiar, na socie-
dade e no Estado ou por seus agentes, define um conjunto de obrigações dos
Estados-parte da OEA para cumprir com o acordado na Convenção. A pro-
dução de dados estatísticos demonstra o quanto a violência contra as mulheres
afeta mais fortemente as mulheres negras e as mulheres jovens, o que indica
a articulação entre gênero e raça como fator presente em uma sociedade com
alto padrão de misoginia e racismo.
Na mesma década, as feministas se fortaleceram com a ação das organiza-
ções não governamentais, redes e associações feministas que desenvolveram
forte processo de advocacy para a adoção de políticas públicas voltadas para
o cumprimento do direito das mulheres a uma vida sem violência. Ao longo
das décadas seguintes, os movimentos de mulheres vêm exigindo do Estado o
cumprimento dos direitos expressos na Constituição, lutando pela implemen-
tação de políticas públicas, advogando pelos direitos sexuais e reprodutivos,
em especial pelo direito à interrupção voluntária da gravidez, pelo fim da vio-
lência de gênero, articulando a interseccionalidade entre gênero, raça e etnia,
resistindo e reagindo às pautas conservadoras e fundamentalistas.
Nesse processo de advocacy, já na década de 2000, são acionadas estratégias
como atuação de organizações feministas junto à Comissão Interamericana
de Direitos Humanos e a apresentação de projeto de lei, elaborado por um
consórcio feminista, voltado para a inclusão da Convenção de Belém do Pará no
ordenamento jurídico brasileiro. Encontrando, em 2006, um contexto político
nacional favorável ao avanço democrático e apoiado por parlamentares aliadas
e pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), foi possível
aprovar a Lei Maria da Penha, que prevê ações articuladas nacionalmente
voltadas para a prevenção, a assistência às mulheres em situação de violência e
a responsabilização dos agressores.
Nessas últimas décadas, a atuação contínua dos movimentos de mulheres
possibilitou, além da retirada de expressões sexistas do Código Penal, o avanço
legislativo como a Lei Maria da Penha e a tipificação do feminicídio como

79
Tecendo redes e transpondo desafios

agravante do crime de homicídio, a ampliação, mesmo que ainda limitada,


de serviços voltados para a atenção às mulheres em situação de violência, a
produção de dados estatísticos e uma maior divulgação dos direitos das mu-
lheres. No entanto, o Estado não promoveu os avanços necessários em ações
de prevenção de todas as formas de discriminação e de violência contra as
mulheres, incluindo ações voltadas para a mudança de mentalidades e de pa-
drões de comportamento sexistas ainda calcados na dominação patriarcal, o
que se reflete na persistência dos altos índices de violência de gênero contra as
mulheres, em especial de feminicídios. Da mesma forma, não houve suficiente
investimento para democratizar as instituições de segurança e justiça, com a
introdução da perspectiva de gênero e étnico-racial, tendo por preocupação o
bom acolhimento e o acesso das mulheres a esses espaços do Estado.
Não podemos subestimar alguns avanços recentes, em especial no que se
refere à capacitação de agentes públicos promovida por alguns Tribunais de
Justiça pela Escola Nacional de Formação de Magistrados -ENFAM por
meio de cursos voltados especificamente para juizes. O Conselho Nacional de
Justiça (CNJ) lançou, 2021, um Protocolo de Julgamento com Perspectiva de
Gênero, cumprindo em parte a Resolução 33 da CEDAW sobre acesso das
mulheres à justiça. Esse Protocolo visa garantir a importância de se assegurar
tratamento adequado aos conflitos decorrentes de prática de violência contra a
mulher, especialmente quanto aos crimes enquadrados na Lei Maria da Penha
e nos demais crimes provocados em razão de gênero.
A magnitude da violência contra as mulheres, em especial nas relações in-
terpessoais, revela o quanto a vida privada não se democratizou e tão pouco a
sociedade e o Estado. Coloca-se, assim, a necessidade de refletirmos sobre as
bases e os mitos da “democracia brasileira” em um País que, durante séculos,
escravizou e torturou africanos sequestrados, negando sua humanidade, assim
como uma sociedade que já admitiu na sua legislação o direito de o marido
matar a mulher23.

23 Trata-se da legislação portuguesa chamada de Ordenações Filipinas que vigorou no Brasil até
1840 e que, mesmo revogada, manteve-se viva nos valores da sociedade patriarcal brasileira.

80
A longa luta das mulheres pela conquista de direitos

No contexto atual, as ameaças aos direitos conquistados tão arduamente


pelas mulheres apontam o quão frágil é a democracia brasileira, o quanto a
reação conservadora fundamentalista cresceu em tempo tão rápido e tenta
sequestrar as conquistas das mulheres. Essas questões, dentre outras, apontam
para os desafios que surgem para os movimentos sociais como um todo e, em
especial, para os movimentos de mulheres – ter capacidade de fortalecer a
resistência para a defesa dos direitos e para promoção dos novos direitos que
contemplem a cidadania plena das mulheres; ter capacidade de investir em
um amplo diálogo para resistir às forças do atraso e para avançar em busca
de uma sociedade plural e democrática. Esse diálogo precisa abrir espaço à
participação da juventude, em especial da juventude negra, nas suas diversas
expressões, singularidades, demandas e questões. Somente comprometidos
com esse diálogo, os movimentos de mulheres poderão dar continuidade e
ampliar a luta das gerações anteriores por direitos e liberdades na construção
de uma democracia inclusiva. Parodiando Hoggart, a quem cito na introdução,
ao escrever este texto tenho a esperança de que possamos observar, em breve,
novos tempos com a mesma admiração que temos pela trajetória da lutas das
mulheres, sem a necessidade da lente da nostalgia.

Referências bibliográficas:

BARSTED, Leila Linhares. Legalização e descriminalização do aborto no


Brasil: 10 anos de luta feminista. Revista Estudos Feministas, Rio de Janeiro,
n. 0, 1992. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/
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vimento feminista na luta anti-racista. In: MUNANGA, Kabengele. O Negro
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GOLDBERG, Annette. Feminismo em Regime Autoritário: a experiência do mo-


vimento de mulheres no Rio de Janeiro Rio de Janeiro: PUC-RJ, 1982.

81
Tecendo redes e transpondo desafios

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SAFFIOTTI, Heleieth. Formas de Participação da Mulher em Movimentos


Sociais. Movimentos Sociais no Brasil Rio de Janeiro: FESP, 1985.

82
A longa luta das mulheres pela conquista de direitos

*****

Leila Linhares Barsted. Advogada, Membro do Comitê de Especialista


(CEVI) do Mecanismo de Seguimento da Convenção para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra as Mulheres (MESECVI) da Organização dos
Estados americanos (OEA), Coordenadora Executiva da Cidadania, Estudo,
Pesquisa, Informação e Ação (CEPIA), Professora Emérita da Escola de
Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ).

83
84
A longa luta das mulheres pela conquista de direitos

85
Ci n co a me n o s

Marcelle Ferrete

Imersa em números que são mulheres – e tentando respirar para não afogar
em meio ao líquido vermelho que escorre cinco dias a cada trinta –, calculo
mentalmente o que as estatísticas dizem. Aumento vertiginoso, vertigem que
derruba em queda quem acompanha.
Os dados conflituosos chegam à pele em forma de arrepios. Ser mulher é
condição de risco iminente.
Feito bicho acuado, caminho até o banheiro em busca de abrigo... Sem
pensar que, enquanto eu me habitar, não há refúgio que ampare. Abro
a torneira da pia cor de carne e observo a água escorrer: bruta, pesada,
invasiva. A cor continua vermelha vibrante, em vida que pulsa e se esvai,
ainda viva. Vida que ninguém sabe ao certo para onde vai, mas deixa para
trás – nós nas gargantas em medo e indignação por uma a menos. Uma de
nós. Mais uma de nós.
Em papel toalha de pele firme que não se desfaz, mas deixa de ser depois
de invadido, escrevo nomes que conheço sem ter conhecido. A tinta guache,
vulgar como quase tudo, resiste à agressão da água corrente, mas não à poça
inerte – que talvez seja ainda mais violenta, por se fazer inofensiva. Afasto a
pele-papel que resta como sobra, negada até pelo ralo. O olho de metal que
olho me olha de volta em ameaça, como quem anuncia o destino em comum.
Acaba como começa. O vermelho vibrante que pulsou a vida em cinco dias
a cada trinta pulsa a morte de cinco mulheres a cada dia.
Ra s t ro s em d esc o n te x to s

Marcelle Ferrete

Em um bloco sem pauta, transcrevo em desalinho feridas expostas. Minhas, dela


e de outras. Desenho frases em textura chorosa, esperando que sequem e percam
o sentido no correr do tempo. Dizem que o correr do tempo cura tudo... A pele,
depois de gasta, se renova. Mas descubro – cinco anos depois – que a palavra não.
Ainda aguado e ainda salgado (além de surpreendentemente amargo), tudo
que havia sido escrito mantinha o tom de quando abriu a carne. Talvez não
mais em corte, mas enraizado em cicatriz. A pele, agora, enquanto registro de
memórias não quistas.
Começo como todo começo artístico: em angústia de não caber. Ando pela
casa, lendo e relendo o caderno redescoberto, apanho um batom vermelho
vencido e preencho meu corpo com trechos daquilo que era arquivo. Pincelo,
em busca de entranhar ao contrário – de dentro para fora. Adensar a pele em
inverso, sangrar palavras pelos poros. Percebo uma beleza estética tão dolorosa
que fere a ética que me trouxe até aqui.
Lavo o rosto. O peito. As mãos. As dores – com suas vozes – escorrem e
escoam ralo abaixo. Absolutamente desimportantes. Diluído, desfeito em água,
o vermelho nem existe. Penso sobre a força de realidade que essa representação
traz. Cada voz sendo de uma e de todas elas – que somos nós. Personagens que
me compõem em gestos, marcas e vísceras de ser (e me saber) mulher.

*****
Marcelle Ferrete é artista, graduada pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Enfr en t amen t o à p a n d e m ia d e
COVID - 19: d i ri mi n d o o im p a c to
da s vi o l ên ci as d e g ê n e r o

Camile Macedo Gomes de Mattos 24


Camilla Cartágenes Pinto 25
Paula Land Curi 26
Rita de Cassia Vieira Filippo 27
Thais Ferreira Rodrigues 28

Introdução

Podemos afirmar que, desde 2016, temos presenciado uma série de retroces-
sos políticos, sociais e econômicos a nível federal que impactam diretamente
na vida das mulheres. A eles, em 2020, somaram-se ainda a pandemia de
COVID-19 e a crise sanitária dela decorrente, que, ao mesmo tempo em que
recrudesceram as violências de gênero, também revelaram outra pandemia,
ainda mais crônica, insidiosa, silenciosa, invisível e letal.

24 Psicóloga graduada pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

25 Psicóloga graduada pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

26 Professora do Departamento de Psicologia – Instituto de Psicologia da Universidade


Federal Fluminense (UFF).

27 Psicóloga graduada pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

28 Cientista Política, Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Enfrentamento à pandemia de COVID-19

Atualmente, muito bem retratada em notícias que se espalham nas mídias


e nas redes sociais, as violências de gênero contra as mulheres vêm chamando
muito atenção de organismos internacionais. Para eles, a situação das mu-
lheres piorou consideravelmente, expressando-se em números de registros de
violências que aumentaram substancialmente29.
O distanciamento social imposto colocou as mulheres confinadas em suas
casas – locais perigosos para elas – com seus agressores, e dificultou, por conse-
guinte, os pedidos de ajuda, endereçados à sua própria rede de afeto e apoio
ou aos dispositivos e serviços disponibilizados nos territórios.
O presente capítulo descreve os resultados obtidos na Pesquisa e Extensão
“Mulherio no enfrentamento à pandemia de COVID-19: dirimindo o impac-
to das violências contra as mulheres e meninas”. Executada em 2020, a pesqui-
sa foi concretizada a partir de edital de fomentos da PROPPI/PROEX-UFF
e utilizou documentos públicos para sua realização.
Partindo do pressuposto que é dever do poder público, com ou sem pande-
mia em curso, garantir às mulheres o direito de uma vida livre de opressão, dis-
criminação, violências e violações, objetivamos com esta pesquisa a produção
de um relatório diagnóstico circunstanciado sobre o grau de institucionalidade
das políticas municipais de enfrentamento às violências de gênero, exacerba-
das pela pandemia, em Niterói, município onde estamos inseridas.
O texto se divide em duas partes, a primeira apresenta as dimensões que
compõem a ferramenta utilizada como método de medição e a importância
de cada uma para a institucionalidade da política analisada. A segunda parte
apresenta os resultados obtidos após análise dos dados referentes à cidade de
Niterói. Ressalta-se que são feitas análises da rede de serviços antes e durante
a pandemia de COVID-19.

29 Dados referentes ao aumento da violência doméstica em meio à pandemia estão disponí-


veis em: <https://www.naosecale.ms.gov.br/chefe-da-onu-alerta-para-aumento-da-vio-
lencia-domestica-em-meio-a-pandemia-do-coronavirus/>. Acesso em: 25 maio 2022.

89
Tecendo redes e transpondo desafios

Metodologia

A pesquisa se pautou na análise de documentos oficiais internacionais, na-


cionais e municipais, tais como leis, decretos, portarias e normas que orientam
a execução de políticas públicas de enfrentamento às violências de gênero.
Utilizamos os sites públicos e o material fornecido, por demanda, pelo Portal
de Transparência do Município de Niterói.
Escolhemos analisar eixos das políticas que entendemos ser fundamentais
e, para isso, utilizamos a ferramenta de trabalho criada por Latgé (2016) com o
objetivo de medir o grau de institucionalidade das políticas públicas. A autora/
criadora, por meio deste instrumento, converte institucionalidade em unidade
de medida, a partir de indicadores multidimensionais, para auxiliar gestores na
tomada de decisão. Para isso, considera sete dimensões, a saber: regulamen-
tação/instrumentais de análise e planejamento; financiamento e orçamento;
gestão; recursos humanos; rede de serviços; assistência; e controle social.
Em relação à construção de um indicador sintético, a proposta permite a
utilização de um número de dimensões e indicadores de acordo com o grau
de aproximação desejado, como também a utilização de um sistema de pesos.
A combinação de dimensões pode agregar elementos distintos, possibilitando
comparações por período e, dependendo do nível de análise, comparações entre
serviços e equipamentos, instigando na direção de um refinamento em busca de
novas práticas de cuidado, e tecnologias sociais de intervenção (LATGÉ, 2016).
Cedida por Latgé, a ferramenta foi adaptada às políticas públicas de en-
frentamento às violências, reorganizada a partir de algumas modificações: rede
de serviços e assistência passaram a integrar a mesma dimensão e houve acrés-
cimo de uma segunda tabela para analisar essa rede durante a pandemia de
COVID-19, em última instância, os efeitos da pandemia sobre a própria rede.
Ao aferirmos o funcionamento da rede de enfrentamento durante a crise
sanitária e investigarmos possíveis alterações em seus modos de funcionamen-
to, foi possível lançar luz sobre os efeitos de novos agravos decorrentes da
pandemia e/ou a intensificação de problemáticas previamente existentes.
Neste segundo tempo de análise da rede em funcionamento em tempos
pandêmicos, precisamos recorrer aos dispositivos parceiros que integram a

90
Enfrentamento à pandemia de COVID-19

Rede de Atendimento às Mulheres. Contamos também com informações


fornecidas pelos Mecanismos Institucionais de Mulheres de Niterói como a
Coordenadoria de Políticas e Direitos das Mulheres (CODIM) e o Centro
Especializado de Atendimento às Mulheres (CEAM).

Dimensões da análise

Para o proposto, foram utilizadas seis das sete dimensões criadas por Latgé
(2016) para análise das políticas. Essas dimensões foram usadas na ferramenta
adaptada e descritas a seguir:

Regulamentação

A dimensão da regulamentação e seus instrumentais de análise apontam para


a formalização legal das políticas municipais de enfrentamento às violências
contra as mulheres, no que diz respeito à elaboração de leis, decretos, portarias e
normas emitidas pelo poder executivo e legislativo de Niterói. Foram conside-
radas também orientações e normas técnicas ministeriais, enfatizando aquelas
oriundas da Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM) do governo federal.
Tabela 1 – Dimensão 1 – Regulamentação/Instrumentais
R1– Existência de lei (ou similar) municipal que cria a estrutu-
ra do órgão gestor voltado para a política de enfrentamento às
REGULAMENTAÇÃO violências contra mulheres.
DA POLÍTICA
R2 – Existência de Lei Municipal de Regulamentação da
Política de Enfrentamento às Violências contra Mulheres.
R3 – Existência de instrumento que regula o fluxo da rede
REGULAMENTAÇÃO
especializada.
DE FLUXOS R4 – Existência de instrumento que regula o processo de noti-
ficação das violências contra mulheres.
R5 – Existência de Plano Municipal para o desenvolvimento
INSTRUMENTAIS
DE AVALIAÇÃO E da Política.
MONITORAMENTO
R6 – Presença de relatório de gestão.
Fonte: Elaborada pelas autoras.

91
Tecendo redes e transpondo desafios

Orçamento

O orçamento e o financiamento permitem analisar o grau de autonomia


da política, tendo em vista que a sustentabilidade dela deriva de sua presença
como programa de trabalho no planejamento orçamentário anual e uma lógica
de financiamento que atenda a critérios de partilha e modelos de transferên-
cia continuados, principalmente quando operada na lógica de sistema único,
envolvendo as três esferas de governo. Os livros de orçamento do município e
os relatórios de gestão fiscal, circunscritos no período de exercício de 2016 a
2019, foram utilizados como documentos oficiais para análise desta dimensão.
Não tivemos acesso aos dados de 2020, tanto por conta da situação emergen-
cial da pandemia, quanto pelas eleições municipais.

Tabela 2 – Dimensão 2 – Financiamento/Orçamento


F1 – Existência de programa de trabalho no orçamento municipal
ORÇAMENTO
voltado para o enfrentamento às violências contra mulheres.
F2 – O Município recebe recursos do Governo Federal para gestão
da Política de enfrentamento das violências contra mulheres.
FINANCIAMENTO
F3 – O Município aloca recursos próprios para gestão da Política de
enfrentamento às violências contra mulheres.
F4 – Os recursos previstos no orçamento foram executados em até
25%.
F5 – Os recursos previstos no orçamento foram executados em até
EXECUÇÃO
FÍSICO/ 50%.
FINANCEIRA
F6 – Os recursos previstos no orçamento foram executados em mais
de 50%.
F7 – Os recursos previstos não foram executados.
Fonte: Elaborada pelas autoras.

92
Enfrentamento à pandemia de COVID-19

Gestão

A dimensão da gestão objetiva analisar como a política de combate às vio-


lências contra as mulheres está ordenada na estrutura pública do Município de
Niterói. Investigar a gestão faz-se importante para verificar o grau de forma-
lidade do órgão responsável pela condução das políticas voltadas às mulheres
em situação de violência, de maneira a reduzir o caráter de improviso na gestão
pública, sustentando uma articulação entre técnica e política.

Tabela 3 – Dimensão 3 – Gestão


G1 – Existência de órgão específico para condução da Política
da Mulher.
G2 – Presença de órgão gestor independente (com unidade
ORGANIZAÇÃO DA orçamentária própria).
GESTÃO
G3 – Presença de órgão gestor na estrutura formal.
G4 – Presença de órgão gestor na estrutura informal.
G5 – Não existência de órgão gestor específico.
Fonte: Elaborada pelas autoras.

Recursos Humanos

Esta dimensão aborda a forma de seleção e contratação dos profissionais


que formam a rede de atendimento às mulheres em situação de violência. O
tipo de vínculo de tais profissionais se torna um indicador importante para
pensarmos o atendimento realizado, assim como a capacitação destes. Para
isso, foram utilizados marcadores de porcentagem do número de profissionais
que pertencem ao quadro municipal.

93
Tecendo redes e transpondo desafios

Tabela 4 – Dimensão 4 – Recursos humanos


RH1 – Presença de profissionais de acordo com a demanda do
ADEQUAÇÃO
município.
RH2 – Presença de mais de 20% dos profissionais pertencentes ao
quadro municipal.
RH3 – Presença de mais de 40% dos profissionais pertencentes ao
quadro municipal.
RH4 – Presença de mais de 60% dos profissionais pertencentes ao
VÍNCULO
quadro municipal.
RH5 – Presença de mais de 80% dos profissionais pertencentes ao
quadro municipal.
RH6 – Presença de 100% dos profissionais pertencentes ao quadro
municipal.
Fonte: Elaborada pelas autoras.

Rede de Serviços

A estrutura da rede de atendimento às mulheres em situação de violência


de gênero faz parte desta dimensão. Seu objetivo é verificar se os equipamentos
existentes no município que compõem as redes de saúde, socioassistencial e de
segurança pública/justiça estão aptos a assistir esse público, no que tange ao
recebimento de capacitações e conhecimento acerca dessa rede para o exercício
de um trabalho articulado e integrado e, portanto, não revitimizante. Ressalta-
se que esta dimensão foi analisada também à luz do modo de funcionamento
da rede intersetorial de atendimento às mulheres em situação de violência de
gênero durante a pandemia de COVID-19. Sendo assim, seus componentes
se relacionam com a possibilidade de redução, ampliação ou manutenção do
funcionamento regular dos serviços.

94
Enfrentamento à pandemia de COVID-19

Tabela 5 – Dimensão 5 – Rede de serviços


S1 – Hospitais públicos, incluindo sua maternidade pública,
estão aptos a receber mulheres em situação de violência?
S2 – As UPAS estão aptas a receber mulheres em situação de
violência?

REDE DE SAÚDE S3 – As unidades de saúde de nível intermediário no SUS


(Policlínicas), destinadas a desenvolver o atendimento espe-
cializado na promoção e recuperação, estão aptas a receber
mulheres em situação de violência?
S4 – As unidades de Atenção Básica – UBS e PMF – estão
aptas a receber mulheres em situação de violência?
S5 – Os serviços da rede de PSB estão aptos a receber mulhe-
res em situação de violência?
S6 – Os serviços da rede de PSE de Média Complexidade
REDE
estão aptos a receber mulheres em situação de violência?
SOCIOASSISTENCIAL S7 – Os serviços da rede de PSE de Alta Complexidade estão
aptos a receber mulheres em situação de violência?
S8 – Possui equipamento específico para acolhimento institu-
cional de mulheres em situação de violência?
S9 – Possui Delegacia Especializada de Atendimento à
Mulher (DEAM)?

SEGURANÇA PÚBLICA /
S10 - Possui “Sala Lilás” no espaço do Posto Regional de
JUSTIÇA Polícia Técnico-Científica?
S11 – Possui “Patrulha Maria da Penha”?
S12 – Possui Juizado de Violência Doméstica?
Fonte: Elaborada pelas autoras.

95
Tecendo redes e transpondo desafios

Tabela 6 – Funcionamento da Rede de Enfrentamento às Violências


contra Mulheres na Pandemia
S1 – Hospitais públicos, incluindo sua maternidade pública, se
mantiveram em funcionamento regular durante a pandemia?
S2 – Hospitais públicos, incluindo sua maternidade pública, se
mantiveram em funcionamento somente em caráter emergen-
cial durante a pandemia?
S3 – As UPAS se mantiveram em funcionamento regular du-
rante a pandemia?
S4 – As UPAS tiveram ampliação do seu modo de funciona-
mento durante a pandemia?
S5 – As UPAS tiveram redução do seu modo de funciona-
mento durante a pandemia?
S6 – As unidades de saúde de nível intermediário no SUS (po-
liclínicas) se mantiveram em funcionamento regular durante
REDE DE SAÚDE a pandemia?
S7 – As unidades de saúde de nível intermediário no
SUS (policlínicas) tiveram ampliação do seu modo de
funcionamento durante a pandemia?
S8 – As unidades de saúde de nível intermediário no SUS
(policlínicas) tiveram redução do seu modo de funcionamento
durante a pandemia?

S9 – As unidades de Atenção Básica – UBS e PMF – se


mantiveram em funcionamento regular durante a pandemia?

S10 – As unidades de Atenção Básica – UBS e PMF – tiveram


ampliação do seu modo de funcionamento durante a pandemia?
S11 – As unidades de Atenção Básica – UBS e PMF – tiveram
redução do seu modo de funcionamento durante a pandemia?
S12 – Os serviços da rede de PSB se mantiveram em funcio-
namento regular durante a pandemia?
REDE S13 – Os serviços da rede de PSB tiveram ampliação do seu
SOCIOASSISTENCIAL modo de funcionamento durante a pandemia?
S14 – Os serviços da rede de PSB tiveram redução do seu
modo de funcionamento durante a pandemia?
(continua)

96
Enfrentamento à pandemia de COVID-19

Tabela 6 – Continuação

S15 – Os serviços da rede de PSE de Média Complexidade se


mantiveram em funcionamento regular durante a pandemia?
S16 – Os serviços da rede de PSE de Média Complexidade
tiveram ampliação do seu modo de funcionamento durante a
pandemia?
S17 – Os serviços da rede de PSE de Média Complexidade
tiveram redução do seu modo de funcionamento durante a
REDE
pandemia?
SOCIOASSISTENCIAL S18 – Os serviços da rede de PSE de Alta Complexidade se
mantiveram em funcionamento regular durante a pandemia?
S19 – Os serviços da rede de PSE de Alta Complexidade
tiveram ampliação do seu modo de funcionamento durante
a pandemia?
S20 – Os serviços da rede de PSE de Alta Complexidade
tiveram redução do seu modo de funcionamento durante a
pandemia?
S21 – A Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher
(DEAM) se manteve em funcionamento regular durante a
pandemia?
S22 – A Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher
(DEAM) teve ampliação do seu modo de funcionamento
durante a pandemia?
S23 – A Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher
(DEAM) teve redução do seu modo de funcionamento du-
rante a pandemia?
SEGURANÇA PÚBLICA
S24 – O Posto Regional de Polícia Técnico-Científica (Sala
Lilás) se manteve em funcionamento regular durante a
pandemia?
S25 – O Posto Regional de Polícia Técnico-Científica (Sala
Lilás) teve ampliação do seu modo de funcionamento durante
a pandemia?
S26 – O Posto Regional de Polícia Técnico-Científica (Sala
Lilás) teve redução do seu modo de funcionamento durante
a pandemia?
Fonte: Elaborada pelas autoras.

97
Tecendo redes e transpondo desafios

Controle Social

Este indicador se relaciona à função de monitorar as políticas públicas. Os


conselhos municipais são espaços de deliberação onde os planos municipais são
aprovados, e as conferências reúnem segmentos representativos para debater a
situação das políticas para mulheres e propor diretrizes para a formulação destas.
Esta dimensão pretende verificar a existência e a manutenção de tais conselhos e
conferências, bem como aferir se eles estão ativos e se reúnem com regularidade.

Tabela 7 – Dimensão 6 – Controle social

C1 – O Município possui Conselho Municipal de Políticas para Mulheres?


CONSELHO
MUNICIPAL E C2 – O CMPM se reúne com regularidade?
PARTICIPAÇÃO
C3 – O Município realiza conferências com regularidade?

Fonte: Elaborada pelas autoras.

Resultados e discussões

Cada dimensão possuía componentes com indicadores que assumiram va-


lores de 0 para situações de baixa institucionalidade e 1 para institucionalidade
avançada. Após a busca por cada item, os dados foram lançados nas planilhas
criadas, cujos resultados estão traduzidos nas seguintes tabelas e gráficos:

Tabela 8
DIMENSÃO 1 – REGULAMENTAÇÃO/INSTRUMENTAIS

R1 R2 R3 R4 R5 R6 X X X X X X TOTAL
1 0 0 1 0 1 X X X X X X 0,50
DIMENSÃO 2 – FINANCIAMENTO/ORÇAMENTO

F1 F2 F3 F4 F5 F6 F7 X X X X X TOTAL
0 0 1 1 0 0 0 X X X X X 0,29
(continua)

98
Enfrentamento à pandemia de COVID-19

Tabela 8 – Continuação
DIMENSÃO 3 – GESTÃO
G1 G2 G3 G4 G5 X X X X X X X TOTAL
1 0 1 0 0 X X X X X X X 0,40
DIMENSÃO 4 – RECURSOS HUMANOS
RH1 RH2 RH3 RH4 RH5 RH6 X X X X X X TOTAL
0 1 0 0 0 0 X X X X X X 0,17
DIMENSÃO 5 – REDE DE SERVIÇOS
S1 S2 S3 S4 S5 S6 S7 S8 S9 S10 S11 S12 TOTAL
1 1 1 1 0 1 1 0 1 1 1 1 0,83
DIMENSÃO 6 – CONTROLE SOCIAL
C1 C2 C3 X X X X X X X X X TOTAL
1 1 1 X X X X X X X X X 1,00
Fonte: Elaborada pelas autoras.

Tabela 9
REDE DE SERVIÇOS NA PANDEMIA – SAÚDE
S1 S2 S3 S4 S5 S6 S7 S8 S9 S10 S11 X TOTAL
0 1 1 0 0 0 0 0 0 0 0 X 0,18
REDE DE SERVIÇOS NA PANDEMIA – SOCIOASSISTENCIAL
S12 S13 S14 S15 S16 S17 S18 S19 S20 X X X TOTAL
1 0 0 1 0 0 1 0 0 X X X 0,33
REDE DE SERVIÇOS NA PANDEMIA – SEGURANÇA PÚBLICA

S21 S22 S23 S24 S25 S26 X X X X X X TOTAL


1 0 0 1 0 0 X X X X X X 0,33
Fonte: Elaborada pelas autoras.

Após o lançamento dos dados nas planilhas, a ferramenta gerou dois


gráficos no formato radar, também conhecido como rastreador sintético.
De acordo com Latgé (2016), a escolha por esse formato gráfico se deu por ele
possibilitar a apresentação de várias dimensões simultaneamente, comparando

99
Tecendo redes e transpondo desafios

valores agregados de várias séries. Sendo assim, o primeiro se relaciona à ins-


titucionalidade da política de enfrentamento às violências de gênero contra as
mulheres em Niterói e o segundo ao funcionamento da rede de enfrentamento
às violências contra as mulheres durante a pandemia:

Gráfico 1 – Institucionalidade da Política de Enfrentamento às


Violências Contra Mulheres

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Gráfico 2 – Funcionamento da Rede de Enfrentamento à Violência


Contra Mulher na Pandemia

Fonte: Elaborado pelas autoras.

100
Enfrentamento à pandemia de COVID-19

No primeiro gráfico, nota-se que apenas as dimensões de controle social


e rede de serviços se aproximam de um valor ideal de institucionalidade, as
demais estão situadas em um nível baixo de institucionalidade.
Na dimensão da regulamentação, percebe-se que, além da criação de um
plano municipal e leis que regulamentem o funcionamento das políticas de
enfrentamento, faz-se necessária a criação de instrumentos de regulamentação
de fluxos da rede especializada.
Em relação às dimensões de orçamento e gestão, verificamos que o órgão gestor
das políticas não tem autonomia financeira para planejar de gastos e implemen-
tar políticas. Ressalta-se também que há necessidade de maior detalhamento dos
gastos públicos para facilitar a fiscalização das destinações orçamentárias.
Acerca dos recursos humanos e da rede de serviços, constatamos ausência
de transparência de informações. Não foi possível analisar, pelos documentos
públicos, o quadro de funcionários da rede e os vínculos dos trabalhadores.
Ademais, ainda que o município disponha de diversos equipamentos voltados
para a atenção às situações de violência, a articulação entre eles é frágil e não
é fácil acessá-los, especialmente em tempos pandêmicos.
Quanto ao controle social, a característica do município de possuir conse-
lhos e conferências institucionalizados é de grande relevância. Porém, faz-se
necessário investigar, seus modos de funcionamento para garantir que as de-
mandas sociais sejam ouvidas nestes importantes espaços para políticas públi-
cas direcionadas às mulheres.
Em relação ao segundo gráfico, percebe-se que os serviços relacionados à
segurança pública e aqueles classificados como socioassistenciais conseguiram
se adaptar melhor ao atendimento remoto emergencial e mantiveram o fun-
cionamento durante a pandemia. Por outro lado, os serviços de saúde tiveram
mais dificuldade, provavelmente em decorrência das próprias características e
demandas da pandemia, em que os ambientes de saúde eram locais de con-
taminação em potencial e estavam focados nos atendimentos diretamente
relacionados à COVID-19.

101
Tecendo redes e transpondo desafios

Conclusões

Niterói é uma cidade que caminha, atualmente, na contramão do nível fe-


deral. Segue “lutando” para que as políticas públicas para as mulheres sejam
implementadas enquanto políticas de Estado.
A proposta de aferição do grau de institucionalidade vem ao encontro da
necessidade de se reduzir o caráter de improviso na gestão pública, sustentan-
do uma articulação entre técnica e política, possibilitadora do refinamento e
da efetivação de um projeto de governo que atenda às necessidades das mu-
lheres durante a pandemia.
Os seis pontos analisados nos dão evidências que, a despeito de alguns
pontos fortes, a exemplo da presença de diversos dispositivos, serviços, re-
cursos e mesmo controle social, encontramos que, até 2020, havia uma baixa
institucionalidade nas políticas públicas de enfrentamento às violências contra
as mulheres. As consequências deste quadro foram ainda exacerbadas pela
pandemia de COVID-19, produzindo ainda mais Rotas Críticas.
Ressalta-se que em 2021, ano seguinte à pesquisa e primeiro ano da nova
gestão municipal, houve uma tentativa de reorganização dos Mecanismos
Institucionais de Mulheres em Niterói com a separação estrutural da CODIM e
do CEAM, por exemplo. Foram identificados também cursos de formação para
funcionários da prefeitura e de empresas conveniadas relacionados ao enfren-
tamento às violências de gênero. Faz-se necessária, portanto, a continuidade da
pesquisa para averiguar a institucionalidade das políticas neste novo momento.

Referência bibliográfica:

LATGÉ, Paula Kwamme. A institucionalidade como medida de gestão.


2016. 100 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Instituto de Saúde
Coletiva, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Faculdade de
Medicina, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016. Disponível em:
<https://app.uff.br/riuff/handle/1/4937>. Acesso em: 25 maio 2022.

*****

102
Aume nt o d a vi o l ên c ia d o m é s tic a
c ontr a as mu l h eres n o c o n te x to
p a ndê mi co d a CO V I D -1 9 : u m e s tu d o
r e a lizad o a p art i r do M o v im e n to
de Mul h eres em S ã o Go n ç a lo

Marisa Chaves de Souza 30


Victória do Livramento 31

Introdução

O objetivo deste artigo é relatar o aumento da violência doméstica contra as mu-


lheres no contexto pandêmico da COVID-19 por meio de um estudo feito na
associação sem fins lucrativos “Movimento de Mulheres em São Gonçalo” (RJ).
O “Movimento de Mulheres em São Gonçalo” é uma entidade da sociedade
civil, sem fins lucrativos, de utilidade pública municipal e estadual, fundada em
1989, certificada como Entidades Beneficentes de Assistência Social (CEBAS),
cuja missão é enfrentar todas as formas de preconceitos e discriminações de
gênero, raça/etnia, orientação sexual, credo, classe social e aspectos geracionais.
O trabalho do “Movimento de Mulheres em São Gonçalo” tem como base
a defesa dos direitos de crianças, adolescentes, jovens, mulheres e idosas, em
especial, vítimas de violência de gênero ou que vivam com HIV/aids.

30 Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Movimento
de Mulheres em São Gonçalo.

31 Graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF).


Tecendo redes e transpondo desafios

A associação tem como missão a defesa dos direitos civis, sociais e


políticos, sob a perspectiva de gênero, raça/etnia, aspectos geracionais,
classe social e deficiências, priorizando ações voltadas à prevenção e ao
enfrentamento de todas as formas de violência, de liberdade no campo dos
direitos sexuais e reprodutivos e de superação de qualquer preconceito e/
ou discriminação social.
No decorrer dos 32 anos de existência, a instituição encontrou desafios de
difícil superação, tendo obtido êxito em muitos deles. Contudo, o surgimento
e a propagação do novo coronavírus no Brasil (março de 2020) impuseram
uma nova forma de existir. Para que o trabalho não fosse paralisado, imple-
mentou-se uma nova modalidade de atendimento às mulheres, crianças e
adolescentes, o atendimento remoto e/ou híbrido.
O novo coronavírus é uma doença contagiosa causada pelo vírus SARS-
CoV-2, que afeta diversas pessoas de maneiras distintas. Os pesquisadores
ainda investem em pesquisas em busca de respostas que venham a evitar a
propagação e a cura dos agravos decorrentes da contaminação. Embora o vírus
tenha sido descoberto há dois anos na China, ainda é pouco tempo para a
ciência descobrir a prevenção e a cura dessa doença.
Diante desse panorama, é possível afirmar que o avanço da pandemia do
novo coronavírus no Brasil trouxe diversas consequências para as pessoas, e
uma delas foi adotar medidas sanitárias para a não propagação do vírus. Sendo
assim, para auxiliar na diminuição da taxa de transmissão do vírus, foram rea-
lizadas ações preventivas, como lavar as mãos constantemente, usar máscaras,
aferir temperatura e manter o distanciamento social.
Se por um viés esse isolamento social auxiliou na prevenção contra o novo
coronavírus, por outro provocou um ambiente doméstico mais violento para
as mulheres. A pandemia da COVID-19 demonstrou o quanto é perceptível
o aumento quantitativo da violência contra a mulher devido ao confinamento
doméstico a que muitas foram submetidas.
Os lares nem sempre são espaços considerados seguros para as mu-
lheres. Com o avanço da pandemia, muitas foram obrigadas a ficar con-
finadas no espaço da casa, passando a conviver mais tempo com os seus
respectivos agressores.

104
Aumento da violência doméstica contra as mulheres

Portanto, a violência doméstica se intensifica em situações de calamidade e


emergência. Esses contextos emergenciais acarretam diversos problemas eco-
nômicos e sociais que atingem diretamente a mulher. É necessário ressaltar
a importância de avançar neste debate, visando à superação das expressões
relacionadas à questão de gênero no Brasil.

Desenvolvimento

A categoria teórica “mulher” possui uma importante conotação política,


pois está vinculada aos aspectos geracionais e políticos de determinada so-
ciedade. Historicamente, na sociedade, a mulher é subordinada ao homem,
e a construção do conceito de família fundamenta-se no patriarcado e no ra-
cismo. O sistema societário ainda legitima o uso da violência e a imposição
da autoridade a partir do pressuposto de que os homens são os detentores do
poder e dos corpos das mulheres.
Tendo em vista isso, Mészáros (2002) disserta:

Considera-se que o espaço de produção da violência de


gênero é “societal” e seu caráter é relacional, ou seja, é um
fenômeno social produzido no contexto de densas relações
de poder imersas na sociedade contraditória um tempo e
espaço pleno de paradoxos e contradições no qual, a ideo-
logia do poder mantém o seu controle sobre a consciência
popular, pregando com sucesso a eterna validade do siste-
ma de capital estabelecido. (MÉSZÁROS, 2002, p. 130).

Torna-se importante considerar a dominação-exploração das mulheres


pelos homens e dos brancos sobre os negros. O patriarcado é um sistema ba-
seado em uma sociedade que busca favorecer os homens nos meios culturais,
sociais e econômicos, e o racismo estrutural está tão enraizado na formação
escolar de tantas crianças e adolescentes, que ainda é de difícil superação.
A interseccionalidade de classe social, gênero, raça/etnia permeia as re-
lações sociais de qualquer regime econômico, mas torna-se mais presente

105
Tecendo redes e transpondo desafios

quando o país se estrutura nas relações sociais capitalistas, pois é nesse regime
econômico que as desigualdades sociais estão mais presentes. Além disso, é
importante ressaltar que o fenômeno da violência doméstica não é recente na
história brasileira, pois decorre de relações desiguais de poder em diferentes
contextos sociais à luz da lógica patriarcal.
O aumento da violência doméstica e/ou sexual contra as mulheres no con-
texto da pandemia do novo coronavírus trouxe desafios de difícil enfrenta-
mento, em especial para as instituições que integram as redes especializadas
de atendimento às mulheres no Estado do Rio de Janeiro.
Após o primeiro semestre de 2020, um número significativo de instituições
governamentais (Centros de Referência e/ou Atendimento) e não governa-
mentais (ONGs feministas), especializado no acolhimento das mulheres em
situação de violência, adotou medidas de segurança sanitária que determina-
ram o atendimento às mulheres em situação de violência estritamente remoto.
Tal medida se fez necessária para assegurar a não propagação comunitária do
novo coronavírus, pois tanto o isolamento como o distanciamento social foram
recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) que precisaram ser
atendidas. Além da mudança na modalidade de atendimento, novas rotinas
foram instituídas, como a higienização constante das mãos, uso de papel-toa-
lha, aferição de temperatura, uso de álcool gel 70%, máscaras descartáveis e/ou
de tecido, tendo como objetivo central a preservação da vida humana.
Outrossim, a violência que já apresentava índices altos, anteriores ao surgi-
mento da pandemia, não apresentou redução. Ao contrário, um novo cenário co-
meçou a ser delineado em nível nacional, mostrando a face mais cruel da violência
contra a mulher, pois, além do medo da contaminação pelo SARS-COV-19, as
mulheres que perderam seus empregos ou tiveram contratos de trabalho suspen-
sos passaram a viver mais tempo em companhia de seus agressores domésticos.
Além dos altos índices de violência intrafamiliar, desde 2016, a pobreza no
Brasil vem se acentuando e mostrando a todos que a face é feminina e a cor é
predominantemente preta.
É possível afirmar que a divisão sexual do trabalho é uma questão de gênero,
pois as mulheres dedicam o dobro do tempo, quando comparadas aos homens,
na administração de tarefas domésticas, em especial nos cuidados com os

106
Aumento da violência doméstica contra as mulheres

filhos e com a casa. Isso demonstra quais são os papéis sociais desempenhados
por homens e mulheres na reprodução social da vida humana. A depender dos
interesses econômicos, existem “chamados” diferentes, ora valorizando a inser-
ção da mulher no mundo produtivo e em outros na centralidade e dedicação
ao lar. A exemplo das guerras, quando os homens se veem obrigados a entrar
em combate, as mulheres são chamadas a exercerem atividades externas à casa,
no mundo do trabalho e, por conseguinte, quando não há mais interesse, o
discurso se volta para a culpabilização das mulheres, principalmente quando o
assunto se refere ao fracasso escolar e social dos filhos.
Em dias atuais, as mulheres não são mais excluídas da esfera pública e
passam a ter um reconhecimento social no quesito produtividade, porém exis-
tem desvantagens e desigualdades ao serem comparadas aos homens. É válido
ressaltar que essas diferenças são evidenciadas principalmente em relação às
mulheres negras, tendo em vista que as mesmas são submetidas a trabalhos
mais precarizados e mal remunerados.
A mulher é chamada à responsabilidade social da família, enquanto os
homens são poupados de tal atribuição. A responsabilidade desigual na socie-
dade está refletida no recebimento de um salário menor quando comparado
ao pago aos homens. Essa renda desigual está associada à marcação de um
trabalho gratuito, cuidar de alguém, dando menos importância e status social
para o exercício de tal atividade.
Resta comprovado que a desigualdade social entre homens e mulheres cres-
ceu de forma vertiginosa e, com o surgimento e propagação da COVID-19, as
mulheres têm sido as mais prejudicadas, pois, além de perderem renda e trabalho,
tiveram que desempenhar novas funções domésticas, a exemplo das atividades es-
colares dos filhos e cuidados intensivos com os idosos e pessoas com deficiências.
A sobrecarga de horas de trabalho desvelou a face mais perversa da não divisão
sexual das atividades domésticas, permitindo que as mulheres ficassem à mercê de
jornadas de trabalho extenuantes e, por conseguinte, geradoras de adoecimentos.
Os marcadores de gênero e raça nunca foram tão evidentes como em dias
atuais, pois, além das desigualdades históricas, as mulheres passaram a não con-
seguir acessar os serviços de ajuda e acolhimento especializado, dificultando o
acesso aos direitos fundamentais conquistados no novo marco legal brasileiro.

107
Tecendo redes e transpondo desafios

Cabe mencionar que, segundo a OMS (2020), a violência é o uso inten-


cional da força física, expressa relações de poder, e ocorre por meio de amea-
ças e intimidações contra determinados grupos, comunidades ou indivíduos.
Pode-se afirmar também que a violência é algo estruturado e constituído
historicamente, pois a vítima perde a condição de sujeito. Somado a isso, é
possível relatar que:

A sociedade ainda cultiva valores que incentivam à violên-


cia, o que impõe a necessidade de se tornar consciente de
que a culpa é de todos. O fundamento é cultural e decorre
da desigualdade no exercício do poder e que leva uma rela-
ção dominante e dominada. Essas posturas acabam sendo
referendadas pelo Estado. (DIAS, 2010, p. 15-16).

A violência contra a mulher se apresenta de diversas formas, podendo ser social,


extrafamiliar, doméstica, intrafamiliar, institucional e/ou comunitária, sendo que a
doméstica é a prevalente ao ser comparada com as demais. É uma violação aos
direitos humanos, cujas raízes são históricas e reproduzidas pelas gerações.
As violências domésticas são cometidas por familiares e/ou pessoas que
possuem um grau de afinidade afetiva/sexual com as mulheres, é um fenôme-
no cultural, que abrange diversos grupos sociais, econômicos e étnicos, mate-
rializando-se em diversos tipos: psicológica, moral, física, patrimonial e sexual.
Saffioti (1998) relata que a relação de gênero é um dos fundamentos da
vida social. Com isso:

Considera-se que o espaço de produção da violência de


gênero é “societal” e seu caráter é relacional, ou seja, é um
fenômeno social produzido no contexto de densas relações
de poder imersas na sociedade contraditória um tempo e
espaço pleno de paradoxos e contradições no qual, a ideo-
logia do poder mantém o seu controle sobre a consciência
popular, pregando com sucesso a eterna validade do siste-
ma de capital estabelecido. (MÉSZÁROS, 2008, p. 130).

108
Aumento da violência doméstica contra as mulheres

Estudos recentes, conforme o publicado por MACIEL, Ethel (2020), com-


provam o aumento de casos de violência contra a mulher durante a pandemia
da COVID-19. Os pedidos de ajuda foram verificados junto aos serviços te-
lefônicos Disque 100 e o Ligue 180 (24 horas), administrados pelo Ministério
da Mulher, Família e Direitos Humanos, da Presidência da República, e pelo
Disque 190 (Polícia Militar). No entanto, os registros de ocorrências nas de-
legacias policiais, em especial, nas especializadas, decresceram nesse período.
Acredita-se que o aumento de chamadas telefônicas se justifica pelo fato
de as mulheres terem ficado mais confinadas em espaços domésticos com
seus agressores e, devido ao maior tempo de convivência doméstica, ficaram
mais suscetíveis às violências interpessoais. Nessa direção, cabe afirmar que a
COVID-19 gerou diversos impactos e agravos na saúde mental das mulheres
e que estes poderão ser minimizados ou resolvidos a partir de acompanha-
mentos especializados ofertados por equipes interdisciplinares lotadas nos
Centros de Atendimento e/ou Orientação à Mulher.
Somado a isso, constatou-se uma maior demanda por atendimento emer-
gencial no “Movimento de Mulheres em São Gonçalo”, trazendo de volta an-
tigas usuárias como novas mulheres, cujos relatos se associavam às violências
domésticas conjugais. Dentre as narrativas, destacam-se as violências morais,
psicológicas, físicas e sexuais perpetradas pelos parceiros ou ex-parceiros afeti-
vos, restando comprovado que o isolamento social ampliado e o confinamento
doméstico reduziram a rede social de proteção primária destas mulheres.
Considerando o aumento de demanda emergencial de atendimento diário
no “Movimento de Mulheres”, decorrente de violência doméstica baseada no
gênero, com destaque para as meninas e adolescentes, os horários dos técnicos
foram gradualmente ampliados.
No início da pandemia, a partir de março de 2020, cada técnico comparecia
uma vez por semana ao trabalho. No mês de julho, passaram a ir dois dias presen-
cialmente e, a partir de setembro, três vezes por semana, permanecendo assim até
os dias atuais. O restante da carga horária passou a ser cumprida de forma remota.
Embora o “Movimento de Mulheres”, por meio dos projetos Núcleo de
Atendimento à Criança e ao Adolescente Vítimas de Violência Doméstica
e/ou Sexual (Neaca), Núcleo de Atendimento à Criança e ao Adolescente

109
Tecendo redes e transpondo desafios

em Situação de Violência (Naca-FIA/RJ), Roda de Gestantes e Projeto


Rede Vida, tenha ofertado as duas modalidades de atendimento: presencial e
remota, de segunda a sexta-feira das 9h às 17h, as estatísticas revelam que as
mulheres vieram de forma expressiva para o atendimento presencial.
Ao comparar os atendimentos realizados pela instituição no período de
março a setembro de 2019, foi perceptível a entrada de 36 casos novos de mu-
lheres em situação de violência, enquanto no período de março a setembro de
2020 foram recebidos 145 novos casos e, no mesmo período de 2021, foram
recepcionados 253 casos novos. O aumento dessa procura desvela um sério
problema de saúde pública, sobretudo pelo sofrimento psíquico agravado pela
dependência emocional.

Gráfico 1 – Quantitativo de mulheres recepcionadas no Movimento


de Mulheres em São Gonçalo nos períodos de março a setembro de
2019, 2020 e 2021

253
145
36
2019 2020 2021
Fonte: Elaborado pelas autoras.

Um dos projetos da entidade, o Neaca São Gonçalo, cuja expertise é o


atendimento especializado às vítimas e familiares, foi referência para mu-
lheres adolescentes e jovens. Além disso, diversos são os projetos que a
organização desenvolve, com destaque para os voltados ao atendimento às
crianças, adolescentes, jovens e mulheres adultas que sofreram ou apresen-
tam sintomas psíquicos por terem sido vítimas de violência doméstica, em
especial, a conjugal. Além da prevenção e garantia de direitos, a entidade
oferece apoio psicossocial e jurídico às mulheres que voluntariamente acei-
tam o acompanhamento especializado.
Com o avanço da pandemia do novo coronavírus, a instituição criou uma
plataforma no Wix para que as pessoas, principalmente as mulheres vítimas

110
Aumento da violência doméstica contra as mulheres

de violência, fossem orientadas sobre os serviços socioassistenciais e o fun-


cionamento durante a pandemia, garantindo o acolhimento das vítimas de
violência até o retorno ao atendimento presencial.
O aplicativo trouxe como inovação um atendimento maior às mulheres
de diversas regiões, ou seja, se anteriormente era possível atender solicitações
de mulheres em São Gonçalo e Niterói, com a internet, foi possível alcançar
mulheres de outros estados e regiões. Além disso, foi possível analisar, por
meio da plataforma de atendimentos, um grande número de solicitações das
mulheres em relação à violência psicológica.

Conclusão

Segundo Almeida (1998), a violência de gênero é o fenômeno social que


deve ser deslindado no campo contraditório da sociedade contemporânea, não
pode resumir as ações de forma individualizada, pois é necessário compreen-
der que o desafio da questão de gênero é algo ligado ao capitalismo como uma
das expressões mais cruéis das desigualdades.
Além disso, é possível afirmar que o espaço familiar onde a mulher se insere
acaba se tornando um dos que mais contribui para as desigualdades de gênero,
visto que a mulher, por muita das vezes, é colocada como a maior responsável
pelo cuidado com a família, assumindo a função da reprodução social.
O método de produção do sistema capitalista é voltado às formações so-
ciais; ele delimita os comportamentos da sociedade e impõe o capital como
o alicerce de toda a vida material. E é por meio dessas imposições que a re-
produção das opressões contra o gênero feminino é perceptível, a violência de
gênero é um fenômeno da ordem da cultura e da família.
Conclui-se que a conjuntura social e econômica do Brasil já era preocupan-
te anterior a pandemia da COVID-19, porém se agravou com o aumento da
violência contra a mulher. A emergência internacional sanitária imposta pela
COVID-19 revelou o despreparo técnico e político das autoridades brasileiras e,
ao mesmo tempo, a desigualdade entre os gêneros aumentou. Como desdobra-
mento, aprofundou-se a desigualdade social enquanto resposta à minimização
da ação do Estado nas políticas públicas assistenciais destinadas à população.

111
Tecendo redes e transpondo desafios

Para melhor compreensão e reversão dos altos índices de violência contra a


mulher, é fundamental que este assunto seja incluído na pauta do debate dos
poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, pois, além da questão orçamen-
tária-financeira, que é essencial, é importante conjugar os esforços coletivos,
envolvendo a sociedade para implementar uma ação de Estado capaz de des-
contruir a cultura do estupro. Nessa direção, são prioritárias ações voltadas à
promoção de direitos e à prevenção para que a violência contra a mulher sob a
perspectiva de gênero não seja tolerável no Brasil.
A entidade “Movimento de Mulheres”, enquanto associação privada sem
fins lucrativos, tem feito sua parte. No entanto, é fundamental que redes
descentralizadas, intersetoriais e humanizadas, envolvendo o autocuidado
e o atendimento humanizado, sejam estabelecidas para que atores e atrizes
tenham condições de tear uma nova sociedade sem opressão de gênero e raça.

Referências Bibliográficas:

ALMEIDA, Suely Souza. Femicídio: algemas invisíveis do público-privado. Rio de


Janeiro: Revinter, 1998.

DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça: a efetividade da Lei


11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 2. ed.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

MACIEL, Ethel. Isolamento social e o aumento da violência doméstica: o que isso


nos revela?. Rio de Janeiro: Revista Brasileira de Epidemiologia, 2020.

MÉSZÁROS, István. A liberação das mulheres: a questão da igualdade substantiva.


In: Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002.

SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo:


Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.

112
J us t i cei ras, p ro m o v e n d o o
e nfr e n t amen t o d a v io lê n c ia d e
gê ne r o em t emp o s d e p a n d e m ia

Jussara Antônia Almeida 32

Introdução

Um dos fatores determinantes que marcaram a aproximação do Serviço Social


com os estudos das relações de gênero foi a militância das mulheres à frente do
movimento feminista brasileiro, que ganhou expressiva visibilidade na década
de 1980. Embora o citado movimento englobe inúmeras correntes, norteamo-
-nos pela corrente feminista marxista, por ser a que melhor dialoga com a dire-
ção da profissão e a que efetivamente contribui para as transformações sociais.
O Serviço Social vem ganhando crescente importância e centralidade
nas formas de atuação das diversas formas de expressões das questões so-
ciais. Assim, o trabalho do assistente social conforma um movimento que
articula conhecimentos legais em seus estatutos normativos e regulamen-
tares, fundamentados, neste caso, na Lei Maria da Penha. Considerando
o aumento significativo da violência de gênero durante o período de qua-
rentena e acrescendo fatores como o receio da vítima em fazer a denúncia,
por não ter para onde ir e/ou a dependência financeira fazem com que o
agressor fique impune e venha a repetir os mesmos atos posteriormente. A
falta de ações punitivas, concretas e eficazes agravam a situação da mulher

32 Assistente Social. Prefeitura Municipal de Barra Longa. Voluntária do Projeto “Justiceiras”.


Tecendo redes e transpondo desafios

vitimizada que continua alvo de todo tipo de violência, psicológica, sexual,


econômica, física, patrimonial e moral. O “Projeto Justiceiras” é um projeto
institucional, desenvolvido para facilitar o acesso ao sistema de justiça e à
rede de proteção voltada a meninas e mulheres vítimas de violência do-
méstica. Exatamente para suprir essa necessidade, a Promotora de Justiça
Gabriela Manssur, fundadora do “Instituto Justiça de Saia”, idealizou o
projeto e, com o apoio do “Instituto Willians” e “Bem Querer Mulher”, se
uniram para desenvolver o projeto em questão. É composto por mulheres,
uma rede de atendimento totalmente virtual que trabalha para informar,
apoiar, fortalecer e encorajar as meninas e mulheres em situação de vio-
lência doméstica. Caminhando nessa esteira, o projeto reuniu mulheres
que acreditam que existe vida “após” a violência e formaram um grande
exército de voluntárias, a primeira rede multidisciplinar on-line no Brasil,
que atende em território nacional e mulheres brasileiras residentes fora do
País. Nele, estão inseridas psicólogas, advogadas, assistentes sociais e uma
rede de apoio com lideranças nacionais e regionais, bem como estagiárias
que nos auxiliam nas buscas por instituições municipais para que possamos
dar início ao encaminhamento da mulher. E é neste momento que se atenta
para a Lei Maria da Penha, a qual traz em um de seus artigos a definição de
violência e aponta formas de evitar, enfrentar e punir o agressor. Atrelado
a esse conjunto de leis, segue o Projeto de Lei no 8.330/15, que tramita no
Senado Federal, em consonância com a Comissão dos Direitos da Mulher,
em que aprova proposta que altera a Lei Maria da Penha para criar um
benefício eventual a ser pago a mulheres vítimas de violência doméstica e
familiar. Observado que muitas retornam ao atendimento com outras de-
mandas de agressão, pode-se notar que, em algum momento, houve ruptura
no atendimento encaminhado e/ou os órgãos competentes não deram o
atendimento adequado e, por vezes, sofrem também agressões nas redes de
defesa dos direitos socioassistenciais.

Toda mulher, independente de classe, raça, etnia, orientação


sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião,
goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana,

114
Justiceiras, promovendo o enfrentamento da violência

sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilildades de


viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e
seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. (Artigo 2o,
Lei Maria da Penha no 11.340/2006).

Metodologia

No primeiro momento, a ênfase no trabalho voluntário remoto da equipe


multidisciplinar do “Justiceiras” é essencial para dar visibilidade aos profissio-
nais envolvidos. Em seguida, o destaque ficou para o serviço social extrema-
mente necessário ao enfrentamento das inúmeras questões de expressão social
e após os resultados obtidos mediante aos atendimentos e encaminhamentos
à rede de apoio à mulher vitimizada. Depois, as atividades executadas durante
o atendimento e, por fim, as intervenções com a finalidade de ampliar, contri-
buir com novas possibilidades de intervenção profissional, enquanto preconiza
e intensifica os processos de trabalho. Como resultado, espera-se ampliar essa
rede de atendimento e qualificar os profissionais envolvidos. As fontes foram
extraídas de materiais do Serviço Social contidas em arquivos, no retorno de
casos e pelos relatos das vítimas.

Resultados

Observados durante a pesquisa realizada, os resultados comprovam que


mulheres são reincidentes a alguns atendimentos por motivo de não acom-
panhamento da rede a ela direcionada, medo de denunciar ou por falta de
estrutura específica nos órgãos que dão suporte à vítima, por vezes por mau
atendimento, descaso e humilhação, falta de capacitação de agentes públicos
ou ter de comprovar a violência, essas razões fazem com que ela desista e o
agressor fique impune.
A constituição e o fortalecimento da rede de atendimento às mulheres em
situação de violência devem ser compreendidos no âmbito do I e II Planos
Nacionais de Políticas para as Mulheres (PNPM) e, em especial, da Política
e do Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, que

115
Tecendo redes e transpondo desafios

estabelecem os conceitos, as diretrizes e as ações de prevenção e combate à


violência. No período anterior à criação da Secretaria de Políticas para as
Mulheres, a atuação governamental não se traduzia, de fato, em uma polí-
tica de enfrentamento à violência, estando concentrada no atendimento via
Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deams) e no encami-
nhamento das mulheres às casas-abrigo. A infraestrutura social de atendimen-
to às mulheres em situação de violência, colocada à disposição da sociedade, era
ainda muito precária, tanto nos termos de quantidade de serviços ofertados,
quanto pela inexistência de uma articulação entre os serviços que propiciasse
a constituição de uma rede.
Estatísticas mostram que esses casos ainda são relevantes. Em 2019, o
Ligue 180 registrou um total de 1,3 milhão de atendimentos telefônicos.
Desse número, 6,5% foram denúncias de violações contra a mulher.33 Com a
pandemia do novo coronavírus, a ouvidoria Nacional de Direitos Humanos
ampliou os canais de atendimento do serviço, contando com mais esse apoio
do trabalho das “Justiceiras” no Brasil. Nos primeiros quatro meses de 2020,
houve um crescimento médio de 14,1% no número de denúncias feitas ao
Ligue 180 em relação ao mesmo período do ano passado. No “Justiceiras”,
no período de atendimento entre 30 de março de 2020 a 30 de agosto de
2021, 6.823 atendimentos realizados, 7.514 respostas. Destes, 1.660 foram
casos de alta gravidade, 2.998 de média gravidade, 3.094 tiveram seu primeiro
atendimento e 31 mulheres de outros países foram atendidas, sete a cada dez
mulheres têm renda de até um salário mínimo e quatro a cada dez mulheres
estão desempregadas. Gráficos mostram o aumento de casos nos períodos
mencionados acima:

33 https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/denuncie-violencia-contra-a-mulher/
violencia-contra-a-mulher

116
Justiceiras, promovendo o enfrentamento da violência

Gráfico 1 – representativo da porcentagem de mulheres vítimas no


Ligue 180 - 6,5%

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Gráfico 2 – Representativo do número dos atendimentos no Projeto


“Justiceiras”

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Conclusão

A intervenção do assistente social nos casos de violência doméstica contra


a mulher é realizada dentro de uma rede de atendimento nas quais o trabalho
é feito remotamente para apoio e orientação nas situações de vulnerabilidade.

117
Tecendo redes e transpondo desafios

O assistente social é parte fundamental desse trabalho, como parte que realiza
encaminhamentos para efetivação das leis de políticas públicas na rede socioas-
sistencial (saúde, justiça, assistência social e segurança pública), articulador, tem
conhecimento das variadas formas de violência e, pela Lei Maria da Penha,
garante, em seu artigo 9o, que toda mulher será atendida conforme os princípios
da Lei Orgânica da Assistência Social em seu artigo 4o e outras normas:
“Art. 4o A assistência social rege-se pelos seguintes princípios:
I – Supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências
de rentabilidade econômica;
II – Universalização dos direitos sociais, a fim de tornar o destinatário da
ação assistencial alcançável pelas demais políticas públicas;
III – respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a
benefícios e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e comu-
nitária, vedando-se qualquer comprovação vexatória de necessidade;
IV – Igualdade de direitos no acesso ao atendimento, sem discriminação de
qualquer natureza, garantindo-se equivalência às populações urbanas e rurais;
V – Divulgação ampla dos benefícios, serviços, programas e projetos assis-
tenciais, bem como dos recursos oferecidos pelo Poder Público e dos critérios
para sua concessão.”
No “Projeto Justiceiras”, esse processo detecta os graus de urgência e
emergência, e cada profissional faz seu atendimento, mas somente o serviço
social articula com a rede socioassistencial do município de origem da mulher
agredida para acompanhamento e que se dê cumprimento aos seus direitos.
Pode-se observar que, após anos de lutas pela conquista do enfrentamento da
violência contra as mulheres direcionadas às redes de apoio de atendimento,
muita coisa não mudou, elas ainda permanecem em situação de vulnerabilida-
de acometidas pelos seus companheiros(as).
Algumas leis foram sancionadas no combate à violência doméstica neste
período. Em abril de 2020, tornou-se obrigatório perante a lei o agressor fre-
quentar programas de recuperação e reeducação, além de contar com acom-
panhamento psicossocial. A mudança na lei foi sancionada em 3 de abril
de 2020. Uma conquista histórica, com imenso potencial positivo. A justiça
determinará em quais casos de descumprimento o réu deverá participar de

118
Justiceiras, promovendo o enfrentamento da violência

grupos reflexivos e, para estes casos, o descumprimento da medida gera ordem


de prisão. Como a promotora Gabriela Mansur aponta no documentário “O
silêncio dos homens”, sem os grupos, 65% dos homens que cometeram uma
agressão acabaram reincidindo e cometeram outra. Quando os autores de
agressões passam a frequentar os grupos, a reincidência cai para 2%.
Nova lei inclui combate à violência contra a mulher no currículo escolar. A
prevenção da violência contra a mulher será incluída nos currículos da educa-
ção básica. É o que determina a Lei no 14.164. O Projeto de Lei no 5.509/19
também inclui assuntos relativos à prevenção de todas as formas de violência
contra a mulher como conteúdo curricular de caráter transversal na educação
básica. Resta trabalharmos para formar facilitadores em todo o País e, assim,
dar conta da imensa demanda que virá pela frente.
Hoje, os dados já evidenciam que a reeducação ou ressocialização do agres-
sor que cometeu a agressão tem um papel importante na redução da reinci-
dência da violência contra as mulheres e, portanto, a mudança da lei é uma
vitória a ser comemorada por todas e todos. Portanto, ainda se faz necessário
quebrar barreiras para que o trabalho multidisciplinar seja eficaz.

Referências bibliográficas:

BRASIL, Lei Maria da Penha. Lei no 11.340, de 7 de agosto de 2006, Brasília, 2006.

SENADO FEDERAL. Disponível em: <www.camara.leg.br/noticias/628974-pro-


jeto-inclui-prevencao-da-violencia-contra-a-mulher-no-curriculo-escolar-brasi-
leiro>. Acesso em: 12 dez. 2021.

GOVERNO FEDERAL. Ministério da Família, da mulher e dos direitos humanos.


Violência doméstica e familiar contra a mulher: Ligue 180 e tudo o que você
precisa saber. Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt/assuntos/denuncie-
-violência-contra-a-mulher>. Acesso em: 06 out. 2021.

PROJETO JUSTICEIRAS. Seja voluntária nessa força: tarefa pro-mulher. Dispo-


nível em <http://www.justiceiras.org.br>. Acesso em: 30 set. 2021.

119
A di sp ari d ad e d a v io lê n c ia
dom é s t i ca co n t ra as m e n in a s : u m
e s tudo real i z ad o n o N A C A N ite r ói

Jessika Prates Machado 34


Sandra Fratane Maciel de Oliveira 35
Victória do Livramento 36

Introdução

O objetivo deste trabalho é relatar a violência doméstica contra a criança e o


adolescente com ênfase nas violações de gênero a partir de estudos realizados
no Núcleo de Atendimento à Criança e ao Adolescente (NACA) de Niterói.
Assim, foi efetivada uma pesquisa no referido núcleo para analisar se, entre os
perfis das vítimas atendidas, existe uma discrepância no que tange às violações
sofridas por meninas e por meninos.
Além da busca por verificar a hipótese de que a desigualdade de gênero se
manifesta já nas violências perpetradas contra crianças e adolescentes, também
intenciona-se discutir e compreender as razões para essa disparidade.

34 Graduanda em Psicologia pela Universidade Salgado de Oliveira.

35 Advogada do NACA-Niterói e Mestranda em Teorias Jurídicas Contemporâneas na UFRJ.

36 Graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF).


A disparidade da violência doméstica contra as menina

Desenvolvimento

O NACA é um programa da Fundação para a Infância e Adolescência


(FIA) em parceria com a organização não governamental “Movimento de
Mulheres em São Gonçalo”. Trata-se de uma entidade da sociedade civil,
sem fins lucrativos, de utilidade pública municipal e estadual, fundada em
1989, cuja missão é enfrentar todas as formas de preconceitos e discriminações
de gênero, raça/etnia, orientação sexual, credo, classe social e aspectos gera-
cionais. O trabalho é voltado à defesa dos direitos de crianças, adolescentes,
jovens, mulheres e idosas, em especial, àquelas vítimas de violência de gênero
ou doméstica ou que estejam vivendo com HIV/aids 37.
Diversos são os projetos que a organização desenvolve. No entanto, possui
especial atenção aos projetos voltados para o atendimento às crianças, adoles-
centes e jovens que sofrem ou apresentam sintomas psíquicos por terem sido
vítimas de violência doméstica (com destaque para a sexual) e/ou exploração
sexual. Além da prevenção às violências, a entidade oferece apoio psicossocial
e jurídico às mulheres, crianças, adolescentes e jovens.
O NACA compõe o Sistema de Garantia de Direitos (SGD) e atende os
casos de suspeita de violência doméstica, intrafamiliar e de bullying contra
crianças e adolescentes.
O trabalho é desenvolvido com as famílias e com os supostos autores da
violência, a partir de técnicas adequadas por meio de entrevistas e escutas cau-
telosas com as pessoas envolvidas na denúncia e que participam do convívio
direto da criança/adolescente, a fim de analisar suas relações e interromper as
situações de violação de direitos.
O Núcleo tem o objetivo de atuar na prevenção e no atendimento especia-
lizado de casos de violência doméstica e sexual de média e alta complexidade.
Os projetos atuam nos municípios de São Gonçalo e Niterói; o último abran-
ge os casos de Itaboraí e Maricá.

37 Dados disponibilizados em: <https://www.movimentomulheres.com.br/quemsomos>.


Acesso em: 28 nov. 2021.

121
Tecendo redes e transpondo desafios

A equipe interdisciplinar é composta por assistentes sociais, psicólogos, ad-


vogados, educadores sociais, pedagogos e profissionais de apoio administrativo.
Somado a isso, cada caso atendido fica sob a responsabilidade de uma dupla
de profissionais (psicólogos e assistente social), garantindo-se o estudo e refle-
xão nas reuniões semanais de equipe.
O Atendimento do NACA é gratuito e destinado a crianças, adolescentes
e familiares vítimas de violência ocorridas no ambiente familiar e/ou extrafa-
miliar e tem como previsão de atendimento o quantitativo de 112 crianças/
adolescentes por convênio.
Exposto isso, é possível relatar que o trabalho no NACA é complexo e
tende a ser intersetorial e interdisciplinar, buscando constantemente o inves-
timento em capacitações e debates de casos avaliados no Núcleo para uma
melhor atuação e intervenção com as famílias atendidas.
O Núcleo de Atendimento à criança e ao Adolescente de Niterói atua sub-
sidiando tecnicamente as ações dos Conselhos Tutelares, Delegacias, Ministério
Público, Juizados como o da Infância, Juventude e do Idoso e da Família e todos
os órgãos que fazem parte do SGD das Crianças e dos Adolescentes.
O Programa38 tem por finalidade atuar na prevenção da dinâmica da vio-
lência e no atendimento especializado em uma perspectiva interdisciplinar,
intersetorial, humanizada e integral, subsidiando o SGD, principalmente
fornecendo subsídio técnico ao Ministério Público e à justiça com relatórios
técnicos, cuja primazia absoluta é a defesa dos direitos de cidadania das crian-
ças e dos adolescentes que estejam expostos às situações de violência.
Somado a isso, o Núcleo visa estreitar parcerias com o Sistema de Garantia
dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGD) de cada região. A atuação
ocorre por diversas formas, por meio de participação em reuniões com a equipe
de proteção ou fazendo parte de grupos técnicos, construindo e alinhando
metodologias e planejamento que visam expandir os equipamentos da região.

38 Os dados foram obtidos do plano de ação do MMSG/NACA – Niterói de 2021, dispo-


nibilizado ao Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS) de Niterói.

122
A disparidade da violência doméstica contra as menira

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente39, é considerado criança


quem tem até 12 anos incompletos. Já entre 12 e 18 anos são adolescentes.
Exposto isso, o programa atende na faixa etária de 0 a 18 anos, familiares de
forma ampliada, supostos autores de violência e todos os que, com o decorrer
do caso, são considerados importantes para a avaliação psicossocial.
Observado isso, é importante relatar que os casos encaminhados recebem
avaliação e acompanhamento técnico especializado com vistas à redução dos
possíveis agravos decorrentes da violência notificada e inserção na rede de
proteção social.
O NACA-Niterói executa como metodologia de atendimento o respeito e
o cumprimento dos direitos humanos. A abordagem metodológica baseia-se
nos direitos humanos das crianças e jovens como garantias universais e legais
que protegem esse segmento social de ações e omissões que afetam a sua liber-
dade e dignidade humana; são baseados no respeito, na dignidade e no valor
como pessoas em condições peculiares de desenvolvimento que são detentoras
de direitos, tanto como indivíduos como quanto membros de uma sociedade.
Esses valores cobrem as características de qualidade de vida a que todos
têm direito, independentemente da idade, raça, gênero, etnia, religião, na-
cionalidade, classe social, orientação sexual, limitações de convívio social ou
quaisquer outros valores.
Na abordagem fundamentada nos direitos, os detentores destes são enco-
rajados a reivindicá-los e têm direito de fazê-los. Isto quer dizer que crianças
e jovens não devem ser vistos como meros objetos da vontade dos adultos ou
como receptores passivos de informações e normas. Devem ser formados para
a participação no processo decisório e para a reivindicação dos direitos legais40.
O Núcleo é apresentado como um programa com especialização que se volte
às ações que vão erradicar qualquer tipo de violência contra a criança e o adoles-
cente ou proporcionar a redução dos agravos causados pela violência notificada.

39 BRASIL. Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990.

40 Os dados foram obtidos do plano de ação do MMSG/ NACA – Niterói de 2021, dispo-
nibilizado para o Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS) de 2021.

123
Tecendo redes e transpondo desafios

As notificações no NACA chegam por meio de encaminhamentos dos


Conselhos Tutelares, do Poder Judiciário, do Ministério Público e de toda a
rede local que atua no fluxo de atendimento em casos de suspeita da violência.
A equipe multidisciplinar do NACA-Niterói inicia os procedimentos téc-
nicos por meio da avaliação psicossocial dos casos suspeitos de violências e
que possuem intervenções especializadas e definidas a partir da singularidade
de cada caso.
Observado isso, é possível relatar que as profissionais do NACA possuem
como metodologia no atendimento dos casos de violência doméstica a escuta
especializada de crianças e dos adolescentes, um método de entrevista sobre
uma suposta situação de violência com criança ou adolescente voltada à rede
de proteção da criança e do adolescente, que demanda como limites os relatos
estritamente essenciais ao cumprimento do objetivo.
Portanto, a escuta especial foi normatizada pela Lei no 13.431, de 04 de
abril de 2017. Ela organiza o sistema de garantia de direitos da criança e do
adolescente vítima ou testemunha de violência41.
Em sintonia com o que dispõe a Constituição Federal de 1988 e o ECA,
o presente decreto visa, assim como a Lei no 13.431/17, reforçar a doutri-
na da proteção integral, reconhecendo as crianças e os adolescentes como
titulares de direitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.
(NASCIMENTO, S; ALVES, J. 2019, p. 07).
Essa lei apresenta a importância de ter um espaço na rede de proteção
em que se priorize uma escuta especializada voltada à proteção dos direitos
e garantias fundamentais às crianças e aos adolescentes, priorizando seus di-
reitos de fala, suas opiniões e até mesmo de permanecer em silêncio. Sendo
assim, por meio do Decreto no 9.603/2018, a escuta especializada pode ser
definida como:

41 Informação retirada do texto: NASCIMENTO, S; MORAIS, J. Breves considerações sobre


a escuta especializada de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência: Lei no
9.603/2018.
Brasília: CBAS, 2019. Disponível em: <https://broseguini.bonino.com.br/ojs/index.php/
CBAS/article/download/1359/1328/>. Acesso em: 03 dez. 2021.

124
A disparidade da violência doméstica contra as menina

Art. 19. A escuta especializada é o procedimento realizado


pelos órgãos da rede de proteção nos campos da educação,
da saúde, da assistência social, da segurança pública e dos
direitos humanos, com o objetivo de assegurar o acompa-
nhamento da vítima ou da testemunha de violência, para a
superação das consequências da violação sofrida, limitado
ao estritamente necessário para o cumprimento da fina-
lidade de proteção social e de provimento de cuidados.
(BRASIL, 2018).

O trabalho do Núcleo é proteger e encerrar com o ciclo da violência no-


tificada, garantindo, viabilizando e defendendo os direitos das crianças e dos
adolescentes que estão sob ameaça ou com os direitos violados.
A violência doméstica é uma violação dos direitos humanos fundamentais
à vida, à dignidade, à segurança e à integridade física e psíquica, fundante sob
uma relação de gênero desigual social e política em que se constituiu histori-
camente. Portanto, a violência doméstica pode ser definida como:

[...] todo ato ou omissão, praticado por pais, parentes


ou responsáveis contra crianças e/ou adolescentes que,
sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológi-
co à vítima, implica numa transgressão do poder/dever
de proteção do adulto e, por outro lado, numa coisifi-
cação da infância, isto é, numa negação do direito que
crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujei-
tos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.
(AZEVEDO; GUERRA, 2001)

Para Minayo (2001), a violência contra a criança e o adolescente implica,


de um lado, em uma transgressão do poder/dever de proteção do adulto e da
sociedade em geral; e de outro, em uma coisificação da infância que nega os
direitos de serem tratados como sujeitos e pessoas em condições especiais de
crescimento e desenvolvimento.

125
Tecendo redes e transpondo desafios

A violência contra a criança e o adolescente é um fenômeno social e cultural


que pode abranger todos os grupos sociais, econômicos e os mais divergentes.
É um fenômeno complexo que combina ações individuais e sociais. Uma das
formas de violência mais vistas pela criança e pelo adolescente é a doméstica, tra-
tada como violência social, enquanto algumas outras são postas como estruturais.
A violência ocorre quando se perde a condição de sujeito e de como ser
sujeito de seu corpo. Por muitas vezes, o adulto objetifica e coisifica a pessoa
em desenvolvimento social, o que acaba prejudicando esse pleno segmento.
Saffioti (2004) ressalta que o adultocentrismo é legitimado pela sociedade e
que se expressa nas relações intrapessoais e familiares, bem como o androcen-
trismo, este uma supervalorização do homem, concedendo a ele o exercício do
poder sobre mulheres, crianças e adolescentes. Tais características se alimen-
tam do patriarcado com livre reprodução.
A violência de gênero está presente em diversas esferas sociais, tanto na
vida privada quanto pública, que aponta à preservação da organização social
de gênero por hierarquia e desigualdade de espaços sociais sexuais. Sendo
assim, é possível entender que:

O termo violência de gênero abrange violência doméstica e


intrafamiliar, referindo-se normalmente às agressões direcio-
nadas às mulheres, estando imbricada pela concepção de supe-
rioridade masculina, sendo esta reafirmada pela cultura sexista
presente nas sociedades, na qual legitima que as características
de força, virilidade e potência pertencem aos homens, cor-
roborando para a manifestação da violência. A violência de
gênero não ocorre apenas no âmbito privado, onde acontece
a maioria dos casos de violência doméstica, mas manifesta-se
em todos os lugares, sejam públicos ou privados, expressando-
-se na forma de agressão física, moral, psicológica, sexual ou
simbólica. (MADEIRA; COSTA, 2012, p. 89)

Para Bourdieu (2003), a família é o berço da dominação masculina, dando


início à divisão dos papéis de gênero na sociedade. Outras instituições contri-

126
A disparidade da violência doméstica contra as menina

buem para tal dominação, como a igreja, que atravessa os séculos perpetuando
uma noção moralista patriarcal de submissão feminina, na qual qualquer prá-
tica contrária a tal noção é considerada subversiva e abominável. A violência
de gênero se apresenta muitas vezes de modo simbólico por ser construída
culturalmente, refletindo comportamentos de gerações anteriores, aprendidos
histórica e socialmente. Com isso, tal violência se torna simbólica, pois é natu-
ralizada pela sociedade, o homem continua assumindo o papel de dominador,
e a mulher, por sua vez, absorve a condição de submissão inconscientemente.
Segundo a teoria de Foucault (1979), não existe poder, mas, sim, relações
de poder, que agem sobre o indivíduo de forma a coagi-lo, discipliná-lo e
reprimi-lo. O gênero consistiria em uma forma legitimada socialmente de
significar as relações de poder. O poder deve ser analisado como algo que só
opera em cadeia nas relações sociais. Partindo dessa análise, podemos dizer
que o machismo presente em nossa cultura patriarcal é uma forma de relação
de poder, influenciando o comportamento do indivíduo, inclusive na constru-
ção da sua identidade.
O fundamento que sustenta a violência contra meninas e adolescentes
está ligado à posição inferior que mulheres e crianças ainda ocupam na so-
ciedade por meio de normas culturais construídas relacionadas a gênero e
masculinidade, nas quais práticas de violência perpetuadas por meninos e
homens se naturalizam. Diante disso, é tão necessário quanto urgente que
ocorram mudanças profundas nas normas sociais vigentes que legitimam
tais violências e naturalizam o poder masculino sobre corpos para o combate
às violências cometidas.
Dados presentes no Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2020) re-
velam que, em 2019, (1) 70,5% dos casos registrados de estupro eram de vul-
neráveis, que, pela Lei no 12.015/09, trata-se de vítimas menores de 14 anos
de idade ou pessoas que não podem oferecer resistência ao ato. A maior parte
das vítimas de estupro e estupro de vulnerável são do sexo feminino, aproxi-
madamente 85,7%, com destaque entre meninas de 10 a 14 anos com maior
proporção de casos, evidenciando que a discrepante desigualdade nas relações
de gênero está enraizada na violência e posições hierárquicas. Em 84,1% dos
casos de estupro, o autor era conhecido da vítima. Tal dado ilustra o grave

127
Tecendo redes e transpondo desafios

contexto de violência intrafamiliar em que crianças e adolescentes são violadas


por pessoas próximas, como familiares ou pessoas de confiança dos mesmos.
O tema é cercado de grandes desafios. Em muitos casos, a própria
vítima não se reconhece como tal, o que lhe pesa o discurso social de
uma perspectiva moralizante, muitas vezes a culpabilizando pela violência
sofrida com indagações sobre a roupa que usava, o horário em que estava
na rua ou se ingeriu álcool.
Em agosto de 2020, no nosso País, uma criança de dez anos, vítima de
abuso sexual cometido pelo seu tio, teve seu direito ao abortamento legal vio-
lado ao ter informações a seu respeito vazadas e, decorrente disso, um grupo
de fundamentalistas religiosos tentaram impedir esse direito com protestos
no local onde a criança realizaria a interrupção da gravidez. Antes mesmo de
haver essa intervenção por parte desse público de conservadores, uma equipe
médica do Espírito Santo (local onde a mesma vive) se recusou a realizar
o procedimento, mesmo com a determinação da justiça sobre o caso. Dias
depois a interrupção foi realizada em outra unidade médica.
As repercussões de casos como esse são frequentes, nos quais ocorrem a
revitimização e a violação de direitos; por isso, a identificação de pessoas em
situação de violência demanda um cuidado intersetorial, com trabalho técnico
de acolhimento, aconselhamento e manejo, prevalecendo a garantia de direi-
tos. É preciso manter-se vigilante para que haja avanços, e não retrocessos,
e possamos caminhar para uma sociedade mais justa e igualitária em que os
direitos humanos sejam preservados.
O NACA-Niterói está inserido no SGD, desde 2010, com o quantitativo
de 513 casos atendidos. O levantamento realizado em julho42 de 2021 em
relação aos casos ativos foi de: 79 crianças e adolescentes, entre estes: 59 me-
ninas e 20 meninos. De acordo com os dados levantados neste período sobre
a tipificação da violência ocorrida, no que concerne à violência sexual, temos o
quantitativo de 54 meninas e 12 meninos. Tais informações podem ser melhor
observadas no seguinte gráfico:

42 O levantamento realizado abrange os dados até 08 de julho de 2021.

128
A disparidade da violência doméstica contra as menina

Gráfico 1 – Incidência dos casos de Violência Sexual em


meninos e meninas

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Esses dados podem ser referentes apenas aos municípios de Niterói, Itaboraí
e Maricá, onde o Núcleo em análise atua, porém, quando realizada uma com-
paração com estatísticas mais amplas, é possível perceber que a tendência se
mantém. Segundo a Organização Mundial da Saúde (2018), estima-se que
18% das meninas sofrem abuso sexual na infância, enquanto em relação aos
meninos esse valor é de 8%.

Conclusões

As explicações para essa discrepância são de diversas ordens e não se pode


deixar de considerar que qualquer estatística não necessariamente reproduz a
realidade, uma vez que a subnotificação também é um problema. Desse modo,
é possível que mais meninos sejam vítimas do que de fato se sabe, porém, com
os dados existentes atualmente, não é possível afirmar isso com segurança.
Além disso, ainda que a disparidade seja menor, o fato de uma possível
subnotificação dos casos de abuso sexual envolvendo meninos também pode
ser devido aos estereótipos de gênero, que faz com que aqueles identificados

129
Tecendo redes e transpondo desafios

com o sexo masculino não possam se colocar nessa posição de vítima ou não
sejam reconhecidos pela família como tal. Nesse sentido, ao tratar das causas
fundamentais da violência contra crianças, a OMS (2018) divulgou uma pu-
blicação em que se consta que:

Um fator chave que torna as crianças, e especialmente as


meninas, vulneráveis à violência (e que aumenta a proba-
bilidade de que meninos e homens pratiquem tais violên-
cias) é a tolerância social, tanto da vitimização de meninas
quanto da perpetração por parte de meninos e de homens.
Esse tipo de abuso ou exploração é frequentemente per-
cebido como normal e fora do controle das comunidades,
o que, ao lado da vergonha, do medo e da crença de que
ninguém pode ajudar, resulta em baixos níveis de denún-
cia às autoridades. Além disso, as vítimas muitas vezes são
consideradas culpadas pela violência que sofreram. Essa
tolerância da sociedade em relação à violência em geral
e, particularmente, à violência sexual e perpetrada por
parceiros íntimos decorre do status inferior de mulheres
e crianças em muitas sociedades, e de normas culturais re-
lacionadas a gênero e masculinidade.

Conclui-se que, embora a problemática do abuso sexual de crianças e ado-


lescentes atinja a sociedade em seus diferentes estratos sociais, afeta e agride de
forma desigual os diferentes gêneros. Por isso, não é possível se pensar ou discu-
tir soluções para a proteção destes vulneráveis sem antes adentrar nos méritos da
mentalidade patriarcal que normaliza e esconde esse tipo de violência.

Referências bibliográficas:

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Editora Bertrand


Brasil, 2002.

130
A disparidade da violência doméstica contra as menina

Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança


Pública. 2020. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/wp-content/
uploads/2020/10/anuario-14-2020- v1-interativo.pdf>. Acesso em: 08 out. 2021.

FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

MADEIRA, Maria Zelma; COSTA, Renata Gomes da. Desigualdades de gênero,


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SAFFIOTI H.I.B.; ALMEIDA S.S. Brasil: Violência, poder, impunidade. In:


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10 out. 2021.

131
Ma r ia d a P en h a n a s e s c o la s :
e ducaç ã o j u rí d i c a p o p u la r
na p reven ção e c o m b a te
à vi o l ên ci a d om é s tic a

Fernanda Andrade Almeida 43


Jane Estanislau Roriz 44
Mariana Nogueira Moraesb 45
Julia Martins Rocha 46
Larissa Batista Franco 47
Bárbara Macieira Ribeiro Macedo 48

Introdução

O trabalho tem como objetivo apresentar o projeto “Maria da Penha


nas Escolas”, atividade extensionista desenvolvida no curso de direito da
Universidade Federal Fluminense (UFF), campus Macaé (RJ), destacando o
seu impacto na comunidade local e a sua importância na formação jurídica
dos(as) estudantes participantes da ação.

43 Professora Associada da Universidade Federal Fluminense (UFF).

44 Advogada da Coordenadoria de Políticas Públicas Para Mulheres de Macaé.

45 Advogada graduada pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

46 Graduanda em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

47 Graduanda em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

48 Graduanda em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF).


Maria da Penha nas escolas

A ação teve início em fevereiro de 2019 e conta com a parceria da


Coordenadoria Geral de Políticas para as Mulheres de Macaé – por meio do
Centro Especializado de Atendimento à Mulher Pérola Bichara Benjamim
(CEAM) de Macaé –, da Secretaria Municipal de Educação de Macaé
(SEMED), da Patrulha Maria da Penha (Macaé) e do Juizado de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher (Comarca de Macaé).
O projeto desenvolve-se a partir da perspectiva da Educação Jurídica
Popular e tem como público-alvo estudantes dos 8o e 9o anos do Ensino
Fundamental de escolas municipais macaenses. A ação extensionista tem
como objetivo o desenvolvimento de atividades que abordem a temática da
violência doméstica e a Lei Maria da Penha nas referidas escolas, partindo da
ideia de que a informação é uma ferramenta importante para o acesso à justiça
e para a garantia de direitos. No caso específico de questões de gênero, com-
preende-se que a disseminação desses saberes é fundamental para o avanço na
luta por igualdade de direitos, bem como para a redução da violência domés-
tica e ampliação da presença de mulheres nos espaços de poder e de decisão.
A atividade é realizada de forma organizada e sistematizada, de ma-
neira a facilitar a disseminação do conhecimento e a reaplicação da ação.
O projeto também prevê um processo pedagógico amplo, na medida em
que não apenas discute a Lei Maria da Penha, mas insere essa discussão no
âmbito de um debate maior, sobre a desconstrução da sociedade patriarcal.
O uso de uma metodologia participativa permite, ainda, que as comunida-
des ganhem autonomia no processo, além de possibilitar um diálogo entre
saberes populares e científicos.
É importante destacar que a experiência apresentada está inserida no âmbito
do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Direito das Mulheres (NUPEDIM/
UFF) –, que tem como objetivo desenvolver, no contexto macaense, uma série
de ações coordenadas de pesquisa e extensão em torno da temática do direito
das mulheres. Dentre essas ações, destaca-se o projeto “Elas por Elas”, curso de
formação e capacitação em direito das mulheres, que tem como público-alvo
líderes comunitárias e outras mulheres residentes no em Macaé que tenham
interesse em aprender sobre o assunto para atuar como multiplicadoras desse
conhecimento em suas comunidades.

133
Tecendo redes e transpondo desafios

No caso específico do projeto “Maria da Penha nas Escolas”, o foco está na


disseminação de soluções participativas para um problema grave, a violência
doméstica. Compreende-se que essa problemática está inserida dentro de uma
demanda por educação e direitos. Sendo assim, a solução é buscada a partir
de um mecanismo que permita (1) uma apropriação do saber jurídico pelo
público-alvo do projeto, além de (2) um questionamento mais amplo sobre a
própria educação dentro de uma sociedade patriarcal. Isso porque os ditames
do patriarcado também perpassam os processos educacionais de mulheres e
homens, podendo afetar o modo como os sujeitos se comportam e falam,
construindo símbolos e estereótipos, bem como influenciando o tratamento
das mulheres nos espaços públicos e privados.

Metodologia e resultados

O Projeto “Maria da Penha nas Escolas” prevê uma metodologia que se


aprimora a partir da interação da Universidade com a população, na medida
em que transforma o público-alvo em protagonista, permitindo que ele assuma
o processo de mudança.
As ideias de gênero provêm de uma construção histórica, levando a po-
sicionamentos motivados pelas relações de poder que causam danos físicos,
psicológicos e sexuais às mulheres. A violência se agrava quando se pensa nas
classes sociais mais desfavorecidas, que geralmente não possuem acesso à edu-
cação e à justiça. Dessa forma, políticas públicas são fundamentais para a luta
pelos direitos das mulheres de forma a combater a desigualdade.
Partindo dessa compreensão, e dentro de uma perspectiva de Educação
Jurídica Popular, o Projeto visa articular o conhecimento produzido acade-
micamente com aquele produzido pela comunidade, compreendendo que a
extensão não pode ser algo imposto verticalmente, mas, sim, uma troca de sa-
beres. O Programa pretende reforçar o intercâmbio entre saber sistematizado
e saber popular (FREIRE, 1983).
A ação extensionista aproxima-se da linha de pensamento do projeto
“O direito achado na Rua”, que existe desde a década de 1980 na Universidade
de Brasília (UnB) e tem como objetivo a luta por justiça e por direitos, a partir

134
Maria da Penha nas escolas

de uma reflexão que emana da própria práxis social. Essa abordagem visa supe-
rar a separação entre teoria e prática, compreendendo que uma não pode existir
sem a outra. Outro elemento fundamental desta perspectiva é a interdiscipli-
naridade, rejeitando-se a visão hierarquizada e compartimentada dos saberes
disciplinares (SOUSA JUNIOR; APOSTOLOVA; FONSECA, 2011).
Dentro dessa proposta, e por metodologias diversas e uma linguagem
acessível, a ação extensionista apresentada intenta aproximar o direito da po-
pulação, sem perder de vista a necessidade de uma troca de saberes entre a
Universidade e a comunidade. Ademais, objetiva contribuir para a formação
acadêmica das estudantes da UFF participantes da atividade, a partir da inter-
disciplinaridade, da interprofissionalidade e de uma articulação entre Ensino,
Pesquisa e Extensão. Por fim, o projeto tem como meta implementar um
espaço propositivo de diálogo com o público-alvo, repensando a condição da
mulher e promovendo o engajamento em busca da igualdade de gênero.
Vale destacar que a ação vai ao encontro da demanda do Munícipio de
Macaé, onde, em 2017, foi aprovada uma Lei Municipal (Lei no 4.378/2017)
que “Dispõe sobre a inclusão da temática contra a violência às mulheres e
meninas no currículo escolar das escolas municipais.” (MACAÉ, 2017). Em
âmbito federal, essa obrigatoriedade foi estabelecida recentemente pela Lei
no 14.164/21, que:

Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de


Diretrizes e Bases da Educação Nacional), para incluir con-
teúdo sobre a prevenção da violência contra a mulher nos
currículos da educação básica, e institui a Semana Escolar
de Combate à Violência contra a Mulher. (BRASIL, 2021)

No processo de escolha da metodologia adequada para o projeto, optou-se


pela utilização de meios lúdicos e dinâmicos, com o objetivo de prender a
atenção dos(as) alunos(as) e transmitir a mensagem de maneira leve. Tendo
em vista que o objetivo não é a formação técnica do público-alvo, os conteú-
dos são apresentados em uma linguagem acessível para permitir a apropriação
do saber jurídico pelos(as) estudantes.

135
Tecendo redes e transpondo desafios

O tema da popularização da educação jurídica encontra-se bastante di-


fundido no meio legislativo, o que torna evidente a necessidade de uma re-
flexão sobre o assunto. O projeto “Maria da Penha nas Escolas” parte dessas
questões, mas compreende que existe uma nítida limitação da metodologia
“instrucionista” em um projeto com esse perfil por diversos motivos. O princi-
pal deles reside na dificuldade inerente a qualquer tentativa de ministrar, com
limitações de tempo, um tema técnico para um público “leigo” (dificuldade
de adequar a linguagem técnico-científica à linguagem leiga). Ademais, no-
ta-se a dificuldade de “ensinar” o tema “direitos” para crianças e adolescentes
que, muitas vezes, sofrem constantes violações em seus direitos. Assim, muito
mais que ensinar, é necessário escutar, valorizando, como aponta Pedro Demo
(2001), os “saberes alternativos”.
Aliada à perspectiva da Educação Jurídica Popular, a ação extensionista
aqui apresentada compreende que o conhecimento é produzido a partir das
interações realizadas. Reafirma-se o protagonismo que cada um exerce em
sua própria vida e que muitas vezes é perdido em históricos de submissão.
Ao ouvir e incentivar a comunicação, entende-se as demandas mais específicas
dos participantes, dando voz aos mesmos e compreendendo-os como sujeitos
ativos na busca por seus direitos.
Ao desconstruir o papel instrucionista da educação, Paulo Freire (2020)
reforça a necessidade da participação social na construção do conhecimento.
Explorar as complexidades sociais para o desenvolvimento de um pensamento
capaz de atender suas especificidades deve ser tratado de forma sensível pelo
extensionista, evitando a simplificação dos objetos de estudo.
bell hooks (2020, p. 50) enfatiza que a pedagogia engajada é feita a partir
da participação mútua, criando um movimento de ideias trocadas entre todas
as pessoas. Essa forma de educar ressalta a importância do pensamento in-
dependente de cada aluno. Assim, “[...] pressupõe que todo estudante tem
uma contribuição valiosa para o processo de aprendizagem.”. Portanto, aliada
à perspectiva da educação popular e da pedagogia engajada, a ação extensio-
nista visa possibilitar, assim como escreve hooks (2020, p. 51), “[...] um rela-
cionamento mútuo entre professor e estudantes que alimenta o crescimento

136
Maria da Penha nas escolas

de ambas as partes, criando uma atmosfera de confiança e compromisso que


sempre está presente quando o aprendizado genuíno acontece”.
Além da adoção da metodologia da Educação Jurídica Popular, opta-se no
projeto pela perspectiva de gênero, tendo em vista que os valores patriarcais de
dominação do gênero feminino pelo masculino expressam-se como um poder
que se exerce por meio de complexos mecanismos de controle social, que opri-
mem e marginalizam as mulheres. Sendo um dos aspectos centrais da cultura
patriarcal, a violência contra a mulher se manifesta, principalmente, no âmbito
das relações privadas. Mulheres e crianças estão, geralmente, na posição mais
fraca, sem meios de reação efetiva (SABADELL, 2017).
A violência de gênero pode começar no ambiente familiar, ainda na infân-
cia, sendo muito difícil perceber como violentas as ações naturalizadas e que
se tornam corriqueiras nas relações entre gêneros, perdurando a tendência de
não reconhecer a gravidade da violência contra a mulher no âmbito familiar
(SABADELL, 2017). Levar o debate acerca da violência contra a mulher
cada vez mais para os espaços públicos – o que inclui também as instituições
de ensino – é uma estratégia fundamental na prevenção e no enfrentamento
dessa forma de opressão.
Em 2019, o projeto passou por 13 escolas, contemplando mais de 1.500
alunos e alunas da rede municipal de Macaé.
Durante o período de isolamento social, em razão da pandemia de COVID-
19 e diante da suspensão das aulas presenciais, as atividades foram adaptadas.
Primeiramente, o público-alvo foi ampliado, visando contemplar lideranças
comunitárias, professores de escolas municipais, equipe pedagógica escolar,
assim como mulheres e homens adultos interessados nos debates acerca da
violência doméstica e dos direitos das mulheres. Além disso, as atividades
foram diversificadas e realizadas de forma remota, incluindo eventos – como
os debates realizados em 2020 e 2021, por ocasião do “Agosto Lilás”, mês de
conscientização pelo fim da violência contra a mulher – e a oficina “Maria da
Penha nas Escolas: debatendo violência doméstica na educação básica”, reali-
zada em 2021, em parceria com a Secretaria Municipal de Educação de Macaé
e direcionada aos professores das escolas visitadas em 2019 pelo projeto.

137
Tecendo redes e transpondo desafios

Ademais, a equipe extensionista lançou a cartilha “Direito Das Mulheres:


Educação na luta contra a violência doméstica”, voltada, especialmente, ao públi-
co infanto-juvenil, mas que contempla também dinâmicas que podem ser reali-
zadas pelos professores da educação básica em suas aulas, remotas ou presenciais.

138
Maria da Penha nas escolas

Fonte: Elaboradas pelas autoras.

Considerações finais

A extensão pode ser compreendida como um instrumento que viabili-


za o cumprimento da função social que a universidade – como instituição
pública – possui. Aliada ao ensino e à pesquisa, ela permite democratizar o
conhecimento produzido e ensinado, assim como atender às demandas mais
urgentes da sociedade de forma crítica, construindo uma realidade mais justa
(NOGUEIRA, 2013).
Tendo por norte os princípios da Educação Jurídica Popular, a ação ex-
tensionista pode contribuir para ampliar o debate social sobre o direito,
bem como para aumentar a capacidade de intervenção popular nesse campo
(SILVA, 2008). Essa ideia, aplicada ao Projeto “Maria da Penha nas Escolas”,
permite que as alunas e alunos que constituem o público-alvo da ação criem
autonomia e sintam-se parte da construção do conhecimento.
A experiência foi simultaneamente enriquecedora e desafiadora, visto que
desenvolver ações no âmbito de uma temática tão sensível exige uma série de
cuidados metodológicos. Dentre os pontos positivos, destaca-se a democrati-
zação do saber jurídico, a contribuição para a rede de prevenção ao combate à

139
Tecendo redes e transpondo desafios

violência contra a mulher em Macaé, a capacitação da equipe executora, além


da formação de multiplicadores, o que permite agregar agentes na luta pela
efetivação dos direitos das mulheres.

Referências bibliográficas:

BRASIL. Lei no 14.164, de 10 de junho de 2021. Altera a Lei no 9.394, de 20 de


dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), para
incluir conteúdo sobre a prevenção da violência contra a mulher nos currículos
da educação básica, e institui a Semana Escolar de Combate à Violência contra
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140
Maria da Penha nas escolas

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2008. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/
cp126967.pdf>. Acesso em: 25 maio 2022.

141
Gr upo ref l exi vo p a r a h o m e n s :
ma s c ul i n i d ad es e s u a in te r fa c e
na v i o l ên ci a co n t r a a m u lh e r

Carla Mara Machado Hyppolito 49


Márcia Valéria Guinâncio da Mota 50
Marcos Paulo Henriques Maricato 51

Introdução

Este relato constitui uma reflexão teórica e prática realizada a partir da ex-
periência da equipe de trabalho interprofissional do Juizado de Violência
Doméstica e Familiar Contra Mulher ( JVDFM) de Niterói (RJ) com homens
autores de violência contra mulheres.
Compreendemos que as intervenções e estratégias de atuação no campo
da violência doméstica e de gênero devem incluir em seu debate a construção
das masculinidades e o trabalho com homens, além da preocupação com a
segurança pública e práticas punitivistas.
Neste sentido, apresentamos o trabalho de grupo com homens autores
de violência doméstica como importante intervenção no enfrentamento da

49 Assistente Social do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher.

50 Psicóloga do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher.

51 Graduando em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Estagiário


do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher.
Grupo reflexivo para homens

violência contra a mulher, uma vez que pode possibilitar reflexão, respon-
sabilização e prevenção de reincidências. Os grupos reflexivos com homens
cresceram após o advento da Lei Maria da Penha, com diversas experiências
pelo Brasil, cenário que tem proporcionado diversas pesquisas, entre elas, o
mapeamento dos grupos, com análises e recomendações (BEIRAS, 2021).
Nossa proposta de trabalho consiste em reuniões semanais, presenciais ou
remotas, de cinco a oito encontros por grupo de homens, em que buscamos
conectar temas e conceitos associados ao cotidiano dos usuários e suas expe-
riências de vida. Em uma perspectiva crítica de gênero, suscitamos diálogos
sobre a construção das masculinidades, os tipos de violência contra a mulher,
parentalidade e seus conflitos, uso abusivo de álcool e drogas, a própria Lei
Maria da Penha e a violência experimentada, bem como temas, transversais,
apontados pelos homens durante os encontros. As narrativas dos participantes
são valorizadas e trabalhadas de forma reflexiva, reconhecendo-se a transver-
salidade das questões de gênero (LOURO, 2008).
Refletimos que nosso trabalho, mesmo apresentando possibilidades no
enfrentamento da violência contra mulher, possui limitações que vão desde o
caráter institucional do judiciário à participação compulsória dos homens no
grupo. Observamos também que, para responder a demanda tão complexa, as
ações da rede devem orientar-se no desenvolvimento de políticas públicas de
atendimento individual e coletivo aos homens, para além da esfera judicial.
Nesta perspectiva, Beiras e colaboradores (2019) enfatizam que as interven-
ções não devem se reduzir a estratégias de segurança pública e punição, nem
de forma estrita de saúde ou de assistência social, mas precisam se organizar de
forma interdisciplinar em diversas frentes e iniciativas e incluir o debate sobre
a construção das masculinidades na interface com a violência contra a mulher.

Possibilidades de atuação no enfrentamento da


violência contra a mulher

Para enfrentar a violência doméstica e de gênero, até o início da década


de 1990, os esforços eram voltados à atenção a mulheres em situação
de violência, com incentivo a realização das denúncias e organização de

143
Tecendo redes e transpondo desafios

serviços especializados de atenção com estímulo para ações de prevenção


(BEIRAS; NASCIMENTO; INCROCCI, 2019). Ações que se embasavam
na perspectiva de gênero, com destaque para as consequências psicossociais,
de saúde, econômicas e políticas desse tipo de violência. Constituindo-se,
também, em importante pauta do movimento de mulheres e feministas. Neste
mesmo período, iniciam-se estudos sobre homens e masculinidades, incluindo
reflexões acerca da participação masculina na violência doméstica e de gênero
(AGUAYO; NASCIMENTO, 2016).
Reflexões e críticas têm surgido a partir dessas iniciativas, que buscam avan-
çar nos estudos e intervenções em relação à violência doméstica e de gênero.
Neste aspecto, Aguayo e Nascimento (2016) destacam o papel relevante dos
movimentos feministas e de mulheres, do setor da saúde e das organizações
da sociedade civil, que se dedicam a trabalhar com masculinidades a partir de
uma perspectiva crítica de gênero.
A equipe técnica interprofissional do JVDFM de Niterói (RJ) desenvolve
um trabalho que se constitui em diversas iniciativas no enfrentamento da vio-
lência contra a mulher. Entre elas, destacamos o atendimento individualizado
e em grupo para homens e mulheres.
As experiências iniciais com homens autores de violência aconteceram no
fim da década de 1970 e início de 1980 nos EUA e Canadá. A proposta era não
substituir, mas complementar as iniciativas de prevenção voltadas às mulheres,
bem como responsabilizar a pessoa autora de violência (DURAND, 2016).
No Brasil, as experiências com grupos de homens, antes da Lei no 11.340,
visavam não só a redução da violência contra a mulher, mas também refletir
sobre os impactos da masculinidade e sua performance violenta de gênero
(BEIRAS et al, 2021, p. 23-24). Esses grupos inspiraram, por meio dos seus
arcabouços teóricos e metodológicos, as construções dos grupos reflexivos que
acontecem atualmente nos JVDFMs.
A trajetória dos atendimentos a homens autores de violência contra a
mulher no Brasil não é muito longa. Com o advento da Lei Maria da Penha,
constitui-se um dispositivo legal sistêmico, com desdobramento em várias
áreas e indicando-se o compartilhamento de responsabilidades com vista ao
enfrentamento da violência (NOLASCO; WANDERLEY, 2019).

144
Grupo reflexivo para homens

Dentre elas, os grupos reflexivos, previstos na Lei Maria da Penha em seu


artigo 45, como forma de reeducação e recuperação do homem autor de vio-
lência doméstica e familiar, trazendo uma discussão inovadora para pensar a
responsabilização do homem, além de uma prática punitivista.
Neste caminho, em 2014, iniciamos os grupos reflexivos para homens
autores de violência como modalidade de atendimento no JVDFM-Niterói,
orientando-se na legislação vigente e no reconhecimento da importância da
inclusão da abordagem ao homem no enfrentamento da violência contra a
mulher. A participação dos homens no grupo é compulsória, por sentença
judicial ou como medida protetiva. São realizados de cinco a oito encontros
por grupo, inicialmente apenas na forma presencial e, com a pandemia de
COVID-19, também realizados de forma remota.
Não podemos deixar de pensar no efeito coercitivo das instituições jurídi-
cas, que afetam o usuário em seu contato com os grupos. Os profissionais no
sociojurídico atuam em consonância com o grupo jurídico e com o direito,
entendendo que o universo do direito se difere do universo da política, se
diferenciando, também, de quem atua no poder executivo, nas secretarias de
assistência social, nas secretarias de saúde, na educação, na habitação, cuja
atuação é baseada na correlação de forças, por meio de pactuações e consen-
sos. Já no sociojurídico, a resolução dos conflitos entre os seres humanos se
dá pela imposição do Estado, pela determinação de ato, pela mão de um juiz.
Essa diferenciação do campo político traz questões contraditórias, complexas
e extremamente sérias do ponto de vista ético-político para atuação profissio-
nal no campo sociojurídico (BORGIANNI, 2012).
Podemos pensar nas instruções sociais de processos, sentenças e decisões
enquanto dispositivos que, na maioria das vezes, determinam mudanças de
histórias de vida, podendo ser entendidas pelo usuário como um processo pu-
nitivo (FÁVERO, 2009). Essa relação desencadeia posturas de tensão, repulsa
e pouca abertura para diálogo. E, quando pensamos no caráter reflexivo dos
grupos, ao entender as contradições institucionais postas e a visão dos usuários
para com estes profissionais, torna-se necessário repensar práticas sociais e in-
tervenções pedagógicas que auxiliem nesse processo, não se trata de colocá-los
como vítimas ou agressores desse contexto histórico-cultural em que estão

145
Tecendo redes e transpondo desafios

inseridos, mas de compreendê-los em sua totalidade como sujeitos históricos,


de direitos e deveres.
Observando estes aspectos, utilizamos como metodologia de trabalho a
perspectiva dialógica, a partir de questões geradoras (FREIRE, 2002) e con-
tribuições da comunicação não violenta (ROSENBERG, 2019). Buscamos
conectar temas e conceitos que coincidam com o cotidiano experimentado
no mundo pessoal dos usuários, onde o diálogo é realizado por meio de ques-
tionamentos e dinâmicas que, de acordo com as contribuições freireanas, são
ferramentas que auxiliam no diálogo, gerando novas perguntas e reflexões.
Realizamos reflexões a partir de uma perspectiva crítica de gênero, da vivência
da masculinidade e da situação de violência experimentada:

A reflexão que propõe, por ser autêntica, não é sobre este


homem abstrato nem sobre este mundo sem homens, mas
sobre homens em suas relações com o mundo. Relações em
que consciência e mundo se dão simultaneamente. Não há
uma consciência antes e um mundo depois e vice-versa.
(FREIRE, p. 68, 1997)

Quanto às questões de gênero, apontamos um olhar singular sobre os modos


considerados histórica e socialmente como masculino e feminino de viver/rea-
lizar, transversais a qualquer intervenção e que são chave para a compreensão
da violência doméstica e de gênero. A forma de socialização masculina e as
consequências dos atos praticados são alguns dos temas sobre os quais dialoga-
mos. Busca-se a desconstrução de comportamentos socialmente apreendidos,
baseados no machismo, no sexismo e na concepção de sociedade patriarcal.
A perspectiva de gênero constitui uma ferramenta conceitual fundamental
para o trabalho com os grupos de homens, pois visa compreender como as
formas diversas de ser homem, mulher ou mesmo a constituição de identida-
des de gênero outras, que não estas, binárias, afetam as diversas possibilidades
de vida. Trata-se de um movimento importante no que se refere ao reposi-
cionar as possibilidades identitárias masculina em relação à violência nestes
grupos para homens autores de violência (BEIRAS, 2021).

146
Grupo reflexivo para homens

Nossa compreensão acerca das masculinidades como construções se dá a


partir dos estudos feministas e de gênero. O modelo de homem normativo
no ocidente, branco, cis-heterossexual, proprietário, cristão, e o modelo do
patriarcado. Tal modelo associa o ser homem a um controle sobre si e sobre
outros, o que vincula masculinidade e violência (Ibid, p. 32). Homens negros,
homens com outras construções da sexualidade diversas da norma ou tentam
se aproximar desse modelo ou sofrem as consequências de não adesão a uma
identidade “ideal”. Essa discussão evidencia a complexidade dos estudos sobre
masculinidades e seus desdobramentos na construção dos diálogos com os
homens nos grupos de homens autores de violência doméstica e de gênero.
Conforme nos coloca Guinancio e Teixeira (2021), é preciso colocar em
discussão o modelo de masculinidade construído por um padrão machista, pa-
triarcal, androcêntrico, heteronormativo, seus impactos nas relações sociais e
o desafio de construir relações com equidade de gênero, são objetivos centrais
do trabalho nos grupos.
Observamos que, nos relatos iniciais, os participantes justificam suas ações
como “defesa”, forma de “impor respeito” ou apontam justificativas como o não
cumprimento dos papéis sociais atribuídos à mulher, além da compreensão de
que a lei foi indevidamente usada contra eles. Todavia, no decorrer dos encon-
tros, refletimos a respeito das formas de classificação de homens e mulheres,
por meio de comportamentos aprendidos socialmente e das experiências de
cada um, e como esses padrões atingem as mulheres, subalternizando-as e des-
respeitando sua autonomia, bem como atingem também os homens, causando
angústias e sofrimentos, geradores de comportamentos violentos. Assim, as
discussões avançam, possibilitando aprendizado e reflexão e, em alguns casos,
transformando a forma do entendimento inicial.
Muitos homens, dada a naturalização da violência contra a mulher, resistem
em se implicar no ato violento praticado. Surpreendem-se quando falamos
sobre as diversas formas de violência física. Para um homem, um “puxão de
cabelo”, antes não percebido como violência, pode ser ressignificado durante a
discussão sobre formas de violência.
Consideramos que os fatores associados à violência de gênero apresen-
tam aspectos sociais, culturais, individuais e também da própria relação

147
Tecendo redes e transpondo desafios

afetiva. Essa visão ampliada, além de evidenciar o homem autor de violên-


cia, associa a violência individual gerada por ele a uma violência estrutural.
De acordo com Beiras (2016), ao pensar a violência e sua relação com
as normas de gênero de uma forma relacional, articulam-se as dinâmicas
históricas e sociais.
Observamos, no decorrer do trabalho, a potencialidade destes grupos que
colabora, principalmente, na prevenção da reincidência de violência. Visto
que a função pedagógica, inerente à ação profissional com grupos reflexivos,
está inserida na disputa ideológica e formadora de cultura, podendo, por ins-
trumentos e novas práticas sociais, formar um modo de pensar, agir, sentir e
formar uma nova sociabilidade (ABREU; CARDOSO, 2009).

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do Sociojurídico 2.

150
A c olhe - d o r? Co n si d e r a ç õ e s s o b r e
o a te ndimen t o à s mulh e r e s v í tim a s
d e v iolê n ci a d o mést ic a n a U n id a d e
de A c ol h i men t o L é lia G o n z a le z

Clara Santos Henriques de Araújo 52


Silvonete Furtado Paz 53
Thaís Pereira da Silva 54

Introdução

No Brasil, uma em cada quatro mulheres com mais de 16 anos afirmou


ter sofrido algum tipo de violência ou agressão em 2021 (POLÍTICAS
PÚBLICAS, 2021). A violência contra a mulher é, portanto, um tema crucial
para ser discutido dentro das práticas em políticas públicas. Atualmente, o
Brasil conta com uma rede de enfrentamento à violência contra as mulheres
que atua em âmbitos como prevenção, garantia de direitos e responsabilização
dos agressores (BRASIL, 2011).
Entretanto, não apenas as instituições criadas para compor essa rede preci-
sam lidar com o assunto: tendo em vista os altos índices de violência, qualquer

52 Psicóloga da Secretaria de Assistência Social e Economia Solidária, Prefeitura de Niterói.

53 Assistente Social da Secretaria de Assistência Social e Economia Solidária, Prefeitura


de Niterói.

54 Psicóloga da Secretaria de Assistência Social e Economia Solidária, Prefeitura de Niterói.


Tecendo redes e transpondo desafios

equipamento que atenda mulheres está sujeito a lidar com casos de agressões
e violência. Não é surpreendente que as políticas de Assistência Social que
visam atender um público vulnerabilizado na perspectiva de garantia de direi-
tos acabem precisando lidar com esta temática.
Este trabalho tem por objetivo analisar dados de atendimentos realiza-
dos em 2021 às mulheres vítimas de violência doméstica na Unidade de
Acolhimento Lélia Gonzalez, uma instituição pública municipal de Niterói,
assim como informações dos encaminhamentos das suas demandas para a
rede de proteção às mulheres vítimas de violência. Vamos refletir sobre a vul-
nerabilidade dessas mulheres em situação de rua, em um país como o Brasil
– que possui Políticas Públicas com caráter fragilizado, inconsistente e que
sofre com a falta de recursos. Em seguida, iremos discutir aspectos da atuação
da equipe técnica e identificar as dificuldades que a equipe interdisciplinar
encontra nos atendimentos a essas usuárias. Para tal, foi realizado um relato
de experiência e uma pesquisa bibliográfica. Ao final, teceremos algumas con-
clusões e desafios deste trabalho.

Desenvolvimento

A residência é o local onde 48,8% das mulheres sofreram violência


(POLÍTICAS PÚBLICAS, 2021). Sendo assim, por vezes, se faz necessário
que, para escapar de um espaço de ameaças e agressões, mulheres e suas crian-
ças tenham um local onde possam morar, longe do agressor. Em termos de
políticas públicas, este local seguro toma forma nas Casas-Abrigo. Segundo as
Diretrizes Nacionais para o Abrigamento de Mulheres em Situação de Risco
de Violência, as Casas-Abrigo:

[...] constituem serviços públicos (municipais, estaduais,


regionais e/ou consorciadas) que compõe a Rede de
Atendimento à Mulher em situação de violência com
propósito de prover, de forma provisória, medidas emer-
genciais de proteção e locais seguros para acolher mulheres
e seus filhos(as). Trata-se de um serviço de caráter sigiloso

152
Acolhe-dor?

e temporário, no qual as usuárias poderão permanecer


por um período determinado, após o qual deverão reunir
condições necessárias para retomar o curso de suas vidas.
(BRASIL, 2011, p. 31)

No entanto, um aspecto importante que precisa ser pontuado é que muitas


mulheres que estão sofrendo violência acabam não querendo ir para essas ins-
tituições, alegando que, por se tratar de um serviço de caráter sigiloso (na jus-
tificativa de garantir maior segurança), são elas que não poderão sair por um
período, sendo obrigadas a se afastar de suas redes familiares e comunitárias,
tendo suas vidas modificadas, ainda que sejam elas as vítimas.
A alternativa usada por algumas mulheres que não desejam se retirar com-
pleta, ainda que momentaneamente, de seu contexto, é buscar abrigos que não
sejam de proteção, embora sejam locais em que eventualmente seria mais fácil
serem encontradas. Esses abrigos, chamados de “portas abertas”, de maneira
geral, permitem que os usuários entrem e saiam durante a maior parte do dia,
não restringem o uso de celulares e permitem ligações telefônicas. É neste
contexto que se insere nosso trabalho.
A Unidade de Acolhimento Institucional Lélia Gonzalez é uma entida-
de pública, sem fins lucrativos, de natureza assistencial, parte integrante do
Sistema Único de Assistência Social (SUAS) no âmbito da Proteção Social
Especial de Alta Complexidade, com sede e foro em Niterói. Inaugurada em
2016, a instituição é um abrigo de curta-média permanência, que acolhe,
abriga, orienta e encaminha mulheres cis e trans, além de famílias em situação
de rua, preferencialmente de Niterói, onde realiza ações de promoção social
com o objetivo da reinserção sociofamiliar, comunitária e da inclusão social.
O equipamento possui capacidade de acolhimento de 50 pessoas, recebendo
adultos com faixa etária entre 18 a 59 anos e crianças e adolescentes entre 0 a
17 anos – desde que acompanhadas de seus responsáveis – em acordo com a
Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais.
Apesar de não ser uma unidade específica da rede de proteção às mu-
lheres vítimas de violência doméstica, as experiências das profissionais
da equipe técnica da instituição indicam que as usuárias que buscam o

153
Tecendo redes e transpondo desafios

atendimento no equipamento com frequência passaram por situações de


violência, sendo esse inclusive um dos principais motivos para buscarem
acolhimento institucional. Por vezes, as mulheres são acolhidas junto com
seus agressores, situação que gera indagações e inquietudes na equipe a res-
peito da violência de gênero. As críticas e reflexões presentes neste trabalho
nasceram nas reuniões de equipe da instituição, em que ocorrem debates a
respeito dos diversos obstáculos enfrentados para efetuar o atendimento e
o acolhimento dessas mulheres de forma humanizada, que já se encontram
em uma posição fragilizada.
A princípio se faz necessário falar brevemente sobre o fenômeno e o au-
mento progressivo da população em situação de rua na contemporaneida-
de, uma das expressões da questão social que vem crescendo mundialmente.
“A população em situação de rua tem suas singularidades, comporta pessoas
com diferentes realidades, mas que têm em comum a condição de pobreza
absoluta e a falta de pertencimento à sociedade formal.” (SAMPAIO, 2014, p.
41). Esse fenômeno é complexo e compreende diversos comportamentos de
sobrevivência nos centros urbanos. Por exemplo, pessoas que utilizam as ruas
como sua moradia podem ser indivíduos que, apesar de terem endereço fixo,
preferem passar a maior parte do tempo nas ruas; outros que estão nas ruas
há muito tempo e perderam referências das suas casas e famílias; imigrantes;
desempregados; egressos do sistema penitenciário e psiquiátrico; transeuntes;
entre outros (SAMPAIO, 2014).
Silva (2009) classifica seis aspectos da população em situação de rua, a
saber: as múltiplas determinações que os levam para a rua (como renda, mora-
dia, laços familiares e comunitários rompidos); ser uma expressão implacável
da questão social na atualidade; sua concentração nos grandes centros urba-
nos, pois nesses locais eles conseguem maior possibilidade de sobrevivência;
o preconceito como um dos maiores estigmas; as peculiaridades relacionadas
ao território onde se expressam, levando em consideração os seus costumes
e princípios; a naturalização dessas pessoas nas ruas, pois é nítida a falta de
políticas sociais universais que venham garantir a cidadania de forma eficaz
para essa população que cresce mundialmente e significativamente com a crise
sanitária que vivemos.

154
Acolhe-dor?

A população em situação de rua é oriunda de várias regiões, portanto, é de


extrema importância que os profissionais que atendem essa população levem em
consideração a sua trajetória de vida, respeitando sempre os seus valores e pro-
curando entender suas diferenças culturais, sua história, suas crenças, pois todo
esse contexto vai influenciar para que se tenha uma intervenção mais eficaz,
levando em consideração como é a relação do acesso dessa população com os
equipamentos e serviços prestados (CARVALHO; SANTANA, 2016).
Além dos aspectos apontados acima, estudos sobre mulheres em situação
de rua indicam também o grande risco de violência física e sexual a que estão
submetidas. (BISCOTTO et al., 2016). De acordo com o art. 5o da Lei 11.340
de 2006 – Lei Maria da Penha, o conceito de violência doméstica e familiar
contra a mulher é: “[...] qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe
cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou
patrimonial.” (BRASIL, 2006). Quando nos referimos às mulheres que usam
as ruas como moradia, estamos nos referindo à situação de uma mulher que
já está com seus direitos violados, e a violência doméstica por parte de seus
companheiros se entrelaça a essa configuração.
Mas, afinal, como isso aparece dentro da Unidade de Acolhimento? Pode
ser relevante mencionar que, entre as mulheres que sofrem violência, as mulhe-
res pretas sofrem mais violência, seguidas por mulheres pardas (POLÍTICAS
PÚBLICAS, 2021). As usuárias da Unidade de Acolhimento também são,
em sua maioria, pretas e pardas. Nos deparamos com um enorme desafio nos
atendimentos às usuárias: muitas vezes, elas não possuem perspectiva de sair
da situação de violência, que está naturalizada. Frequentemente, não conse-
guem enxergar alternativas para um caminho próprio que rompa com essa
realidade.
A seguir, discutiremos alguns dados quantitativos sobre o acolhimento
de mulheres adultas, entre 19 e 59 anos, que deram entrada na Unidade de
Acolhimento Lélia Gonzalez durante 2021. Para a análise, foram usados
dados contidos em documentos internos da Unidade, como a Planilha de
Acolhimento e relatórios compostos pela equipe técnica. Visando resguardar
o sigilo das usuárias, seus nomes não serão citados, assim como qualquer outra
informação que possa identificá-las.

155
Tecendo redes e transpondo desafios

A entrada na Unidade de Acolhimento ocorre a partir de solicitação do


Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua
(Centro Pop) de Niterói. O Centro Pop é um serviço da Proteção Social
Especial de Média Complexidade, que tem por objetivo assegurar o atendi-
mento para pessoas que utilizam as ruas como espaço de moradia e/ou sobre-
vivência (BRASIL, 2009) de forma temporária ou permanente. Entre suas
atribuições, está a mediação do acesso aos acolhimentos do município.
Mas como se dá a relação das usuárias com a equipe técnica? Como são
realizados os atendimentos? Ao chegar à Unidade de Acolhimento, as usuárias
passam por um atendimento com ao menos um membro da equipe técnica,
assistente social ou psicólogo, em que se realiza seu Plano de Atendimento
Continuado (PAC). Neste atendimento, a Assistente Social ou a Psicóloga
fazem uma entrevista que vai além de apenas ouvir um relato, pois, nesse mo-
mento será, feita uma análise social desse sujeito com uma escuta qualificada,
em que será preenchido junto à acolhida um documento com informações
sobre sua história de vida, seus acompanhamentos de saúde, sua vida de es-
tudos e laboral, os documentos pendentes, seus gostos etc. A partir disso,
traça-se um plano de quais são as responsabilidades e direitos da instituição e
da usuária. Geralmente, o técnico responsável pelo PAC de determinada usuá-
ria é intitulado “técnico de referência” dela, acompanhando mais de perto as
ações cabíveis ao caso. Há, neste momento, algo muito importante: ao mesmo
tempo em que é possível ser um mero preenchimento protocolar, pode ser ali
o início do vínculo que vai permitir que a equipe técnica entenda um pouco
aquela história de vida e possa, em sua escuta e ações, acolher aquela usuária.
É a equipe técnica a responsável pelos atendimentos e encaminhamentos,
mas o equipamento conta também com educadores sociais, profissionais pre-
sentes nas demandas do dia a dia das usuárias, além de uma pedagoga que
desenvolve atividades educativas. Além das demandas burocráticas, a Unidade
de Acolhimento é também responsável por promover atividades de interação e
debates, sempre na perspectiva da autonomia do usuário e da promoção social.
Entre janeiro e setembro de 2021, a Unidade de Acolhimento recebeu 98
entradas de acolhimentos e pernoites de mulheres adultas, acompanhadas
ou não de filhos e/ou companheiro. Aqui, pode se fazer necessário explicar

156
Acolhe-dor?

a diferenciação entre acolhimento e pernoite: enquanto os acolhimentos são


para mulheres e famílias que vêm para morar no equipamento após atendi-
mento realizado pelo Centro Pop, os pernoites são ocasiões em que usuários
vêm para a Unidade de Acolhimento para passar uma noite, ou um final de
semana, enquanto aguardam seu atendimento por equipe técnica no Centro
Pop. Normalmente, é utilizado nas ocasiões em que os usuários estão em si-
tuação de rua e demandam acolhimento emergencial, porém fora do horário
de atendimento do Centro Pop. O pernoite não necessariamente garante pos-
terior acolhimento no equipamento.
De todas as entradas, 37 eram de pernoite. Tendo em vista que os usuários
que passam apenas o pernoite no equipamento não são atendidos pela equipe
técnica da Unidade de Acolhimento, os dados dessas usuárias foram descarta-
dos para a análise deste trabalho. Discutiremos apenas as usuárias que tiveram
uma estada de acolhimento na Unidade.
Das 61 usuárias adultas que entraram, 22 mulheres – um pouco mais de um
terço – relataram que haviam passado recentemente, ou estavam passando, por
uma situação de violência (Gráfico 1). Situação entendida pela técnica que a
recebeu como um dos fatores contribuintes para o atual acolhimento institu-
cional. No entanto, entre essas 22 mulheres, apenas 6 já eram acompanhadas,
ou começaram a ser durante o período em que estiveram na Unidade, por um
Centro Especializado de Atendimento à Mulher (CEAM).

Gráfico 1 – Acolhimentos 2021 – 64% mulheres que passaram por


situação de violência – 36% outras mulheres

Fonte: Elaborado pelas autoras.

157
Tecendo redes e transpondo desafios

Ainda cabe ressaltar que, em alguns casos de usuárias que foram acolhidas
na modalidade de família junto de seus companheiros, houve situações de
violência verbal, física e/ou patrimonial por parte do parceiro, que ocorre-
ram dentro da Unidade de Acolhimento. Nessas situações, o procedimento
adotado pela equipe foi o de desligar esses agressores, buscando preservar a
integridade e a segurança da mulher. Entretanto, observa-se que, passada a
briga, a usuária prefere solicitar sua saída da Unidade para estar junto do com-
panheiro, mesmo que isso signifique retornar às ruas, do que estar dentro da
Unidade sem o parceiro. Em outros casos, o companheiro não era usuário da
Unidade, porém vinha encontrá-la na porta do equipamento e, neste momen-
to, aconteciam agressões verbais que acabavam requerendo a intervenção da
equipe de plantão para mediar à situação.
Diante deste cenário, quais são os desafios postos? Talvez esteja, dentre
tantos outros, com uma palavra inserida no próprio nome da instituição: aco-
lhimento. Como, de fato, acolher essas mulheres?
Para começar, talvez seja necessário ter sempre como norteador do trabalho
que a violência sofrida por essas mulheres é parte fundamental da condição
de vulnerabilidade na qual elas se encontram, e não algo à parte, conforme já
observado em outros estudos (LOPES; BORBAS; REIS, 2003). Entendendo
isso, é possível pensar em articulações, ações e escuta no campo do acolhimen-
to, e não do mero protocolo.

Considerações e desafios

Ao longo do texto, buscamos trazer alguns dados sobre o trabalho realizado


na Unidade de Acolhimento Lélia Gonzalez. A temática da violência contra
a mulher é complexa – sem pretensões de haver esgotado esse assunto e cien-
tes de que existem importantes aspectos que não foram possíveis discutir, em
razão do pouco tempo de execução da pesquisa, vamos agora tecer algumas
considerações sobre o que foi apresentado.
A Unidade de Acolhimento Lélia Gonzalez é uma das poucas institui-
ções capazes de receber mulheres em situação de vulnerabilidade em Niterói.

158
Acolhe-dor?

Embora não seja parte direta da Rede de Atenção à Mulher, 36% das mulheres
acolhidas na Unidade entre janeiro e setembro de 2021 apresentaram a vio-
lência doméstica como um fator que contribuiu para precisarem de acolhi-
mento institucional. Portanto, é de se concluir a crucial importância que tem
a Unidade na rede de apoio às mulheres vítimas de violência no município, já
que, por diversas vezes, o equipamento é a porta de entrada destas mulheres
às políticas públicas.
Contudo, o estar na instituição por si só não é garantia de que elas irão
acessar a rede de proteção e terão seus direitos garantidos – o que demonstra
o reduzido número de mulheres que de fato buscam o CEAM e os casos
de violência que ocorrem mesmo dentro das paredes do Acolhimento.
A dificuldade em romper o ciclo da violência também se coloca quando ob-
servamos que, mesmo estando em um local que teoricamente irá acolhê-las,
prover por suas necessidades imediatas e apoiá-las em seus projetos futuros,
algumas usuárias preferem sair da Unidade a ficar longe de seus companhei-
ros, perpetradores da violência.
A partir disso, é possível concluir a importância que se tem em pensar sobre
o tema na perspectiva de um trabalho conjunto, articulado, em rede, visto
que, nos atendimentos, a rede fragilizada, precária, somada a um imaginário
social que coloca as mulheres como responsáveis pelos processos de violência
por elas vividos, trazem embargos e angústias a quem atende, e um distancia-
mento das vítimas que às vezes não entendem aquele espaço como um espaço
acolhe-dor. Levando em conta o que preconiza a Lei Maria da Penha no art.
8o, em que trás que “[...] a política pública que visa coibir a violência doméstica
e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de
ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações
não-governamentais.” (BRASIL, 2006).
Segundo Senna e Garcia (2014), a intersetorialidade, além de ser um campo
de aprendizagem, também se constitui em uma direção que vai possibilitar
a construção de resultados para as políticas públicas das demandas atuais,
além da inserção do território e dos direitos sociais. Para a sua efetivação,
temos também que enfrentar muitos desafios, como as diferenças, restrições,

159
Tecendo redes e transpondo desafios

obstáculos e a decisão política. Elas também pontuam a necessidade de mu-


dança no planejamento, na execução e no controle do atendimento dos servi-
ços, pois é preciso assegurar a provisão de direitos iguais aos desiguais.
Os desafios são enormes, e a questão da violência não é mero detalhe, pelo
contrário, é motivo principal de institucionalização para mulheres. Logo, é
importante pensar não por elas, mas, mais do que isso, com elas. A partir de
suas demandas, encontrar alternativas de promoção social que superem os
obstáculos colocados pelas violências vividas. Isso só é possível com práticas e
escuta sem preconceitos, articulação entre as políticas públicas e debate cons-
tante e acessível sobre o tema em todos os espaços sociais.

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160
Acolhe-dor?

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Tecendo redes e transpondo desafios

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162
Ar te terap i a co m a s m u lh e r e s
e m si t u ação d e v io lê n c ia

Luciana Vasconcellos 55

Introdução

Neste artigo, apresento a arteterapia de abordagem junguiana realizada com as


mulheres em situação de violência no Centro Especializado de Atendimento
à Mulher (CEAM) Neuza Santos, em Niterói, único centro especializado
do Estado do Rio de Janeiro que oferece esse serviço. A Arteterapia envolve
processos de autoconhecimento, fortalecimento e através das expressões cria-
tivas espontâneas, que acontecem em um ambiente seguro e confidencial, na
perspectiva de contribuir com o rompimento do ciclo da violência.
O CEAM atende mulheres em situação de violência desde 2003 e, em
25 de novembro (Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra
a Mulher) de 2021, aconteceu a reinauguração após a reforma que garan-
tiu maior acessibilidade. A instituição passou a ser chamada CEAM Neuza
Santos – uma homenagem a uma mulher, negra e feminista que fez parte
da primeira equipe da Coordenadoria de Políticas e Direitos das Mulheres
(CODIM) há 19 anos.
A CODIM da Prefeitura de Niterói (RJ), coordenada pela Fernanda
Sixel, tem o equipamento CEAM Neuza Santos, coordenado pela
Ana Lúcia Fernandes, que atende mulheres em situação de violência domés-
tica e de gênero, tipificadas da seguinte maneira: doméstica, institucional,

55 CEAM Neuza Santos.


Tecendo redes e transpondo desafios

social-comunitária e trabalhista/profissional. Segundo a Política Nacional de


Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres:

O conceito de violência contra as mulheres, adotado


pela Política Nacional, fundamenta-se na definição da
Convenção de Belém do Pará (1994), segundo a qual
a violência contra a mulher constitui “qualquer ação ou
conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou so-
frimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no
âmbito público como no privado.” (Art. 1°, 2011)

A Norma Técnica de Uniformização dos Centros de Referência de


Atendimento à Mulher em Situação de Violência promulgada em 2006, previs-
ta no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres em 2005, apresenta a equipe
técnica que realiza atendimento à mulher com a seguinte composição: assistente
social, assistente jurídica, psicóloga e arteterapeuta. Assim, o serviço de:

Arteterapia consiste numa extensão do atendimento psi-


cológico e compreende sessões de atendimento individuais
ou em grupo realizadas por um(a) arteterapeuta, com o ob-
jetivo de resgatar o potencial criativo da mulher em situa-
ção de violência, ativando núcleos saudáveis de sua psique
e estimulando movimentos de autonomia e transformação.
(NORMA TÉCNICA, p. 37)

A arteterapia, a terapia por meio da arte, engloba fundamentos teóricos


e práticos multi e transdisciplinares. Sua base estrutural origina-se nas áreas
do conhecimento da Psicologia, Arte, Criatividade, Educação, Filosofia,
Antropologia e Sociologia, inserindo-se na área das Ciências Humanas.
A formação/especialização se dá pelas escolas regulamentadas pela associação
local, incluindo teoria e prática, e estágio supervisionado.
A primeira associação de arteterapeutas do Brasil, a Associação de Arteterapia
do Rio de Janeiro (AARJ), foi criada em 1998, com objetivos em torno da

164
Arteterapia com as mulheres

pesquisa, da produção do saber e de uma ética arteterapêutica com raízes


nos direitos humanos. Em 2006, foi criada a União Brasileira de Associações
de Arteterapia (UBAAT) e, em 2013, a Arteterapia foi incluída no Código
Brasileiro de Ocupações (CBO), no grupo das Terapias Criativas. Em 2017,
por meio da Portaria no 849, a Arteterapia foi incluída na lista das Práticas
Integrativas e Complementares (PICs) do Sistema Único de Saúde (SUS).
A arteterapia no CEAM Neuza Santos propicia reflexões sobre o ma-
chismo estrutural e o patriarcado, gênero e sexualidade, cultura da violência,
família, identidade, crenças, perspectivas de vida, autonomia e as mais diversas
subjetividades. O caráter feminino carrega memórias de violências e supera-
ções ao longo da história da humanidade; com isso, a importância de exercitar
a reflexão e o fortalecimento.

A definição das mulheres como seres demoníacos, e as


práticas atrozes e humilhantes a que muitas delas foram
submetidas deixaram marcas indeléveis em sua psique co-
letiva e em seu senso de possibilidades. De todos os pontos
de vista – social, econômico, cultural, político –, a caça às
bruxas foi um momento decisivo na vida das mulheres;
foi o equivalente à derrota histórica a que alude Engels
em A origem da família, da propriedade e do Estado (1884)
como causa do desmoronamento do mundo matriarcal,
visto que a caça às bruxas destruiu todo um universo de
práticas femininas, de relações coletivas e de sistemas de
conhecimento que haviam sido a base do poder das mu-
lheres na Europa pré-capitalista, assim como a condição
necessária para sua resistência na luta contra o feudalismo.
(FEDERICI, 2019, p. 203)

Arteterapia no CEAM Neuza Santos

Em novembro de 2020, a arteterapeuta Luciana Vasconcellos ofereceu o


seu serviço como voluntária e foi incorporada à equipe técnica em janeiro de

165
Tecendo redes e transpondo desafios

2021. As mulheres atendidas pela psicologia, após a elaboração do diagnósti-


co, são encaminhadas para a arteterapia, indicando se o atendimento será in-
dividualizado ou em grupo. A arteterapia tem autonomia no seu atendimento,
há produção de relatórios e discussão de casos na reunião de equipe e na su-
pervisão do Programa Extensionista “Mulherio: tecendo redes de resistência e
cuidados” (GSI/PROEX/UFF).
A arteterapia revela imagens e símbolos do mundo interior da psique,
da alma, entrando em contato com o que sente, tem dificuldade de lidar, e
com o que às vezes nem sabe nomear. Trazendo à luz da consciência os con-
teúdos imagéticos da sombra presentes no desconhecido inconsciente – os
conteúdos que desprezamos no processo de aculturação. Segundo Jung, “[...]
não é apenas o lado da ‘sombra’ de nossas personalidades que dissimulamos,
desprezamos e reprimimos. Podemos fazer o mesmo com nossas qualidades
positivas.” (1964, p. 58).
“Só aquilo que somos realmente tem o poder de nos curar.” ( JUNG, 2011,
p. 258). Com isso, liberando a energia criativa, é possível conhecer as forças e
as fraquezas, aliviar as tensões, se surpreender com o que é capaz de criar, ter
insights e tomar melhores escolhas na vida. A criatividade é inerente ao ser
humano. As mãos são como canais de comunicação com o inconsciente e, no
ato de criar, somos impelidos a refletir e tomar decisões.

No trabalho, o homem intui. Age, transforma, configura,


intuindo. O caminho em toda tarefa será novo e neces-
sariamente diferente. Ao criar, ao receber sugestões da
matéria sob suas mãos, nesse processo configurador o in-
divíduo se vê diante de encruzilhadas. A todo instante, ele
terá de se perguntar: sim ou não, falta algo, sigo, paro...
(OSTROWER, p. 70)

Segundo a norte-americana Margaret Naumburg, a primeira a sistematizar


a Arteterapia em 1941, as imagens viriam antes das palavras por serem mais
diretas e inteiras. Um símbolo é entendido como uma forma de energia psí-
quica, se manifestando por uma imagem. Os símbolos são imagens, mas nem

166
Arteterapia com as mulheres

todas as imagens são símbolos. O símbolo é diferente de alegoria (imagem que


representa um pensamento abstrato, uma parábola) e sinal (signo informativo).
O símbolo é uma produção espontânea da psique, possibilitando a cura.
Pode ser de natureza pessoal ou coletiva, comum a toda a humanidade ou ca-
racterístico de uma determinada cultura. Não está confinado ao tempo linear,
pois pode expressar o futuro, o passado e a vida intrauterina. No símbolo, estão
contidos materiais reprimidos, conteúdos de níveis pré-verbais e memórias de
longa duração. Quanto mais energia psíquica estiver contida em um símbolo,
maior será o seu efeito na consciência. Segundo Silveira:

É através das transmutações da energia psíquica, da forma-


ção de símbolos novos sucedendo a símbolos caducos, esva-
ziado da energia que antes os animava, que se processa, na
sua essência, o desenvolvimento da psique do homem. (p. 17)

A arteterapia desenvolvida na instituição tem como base a psicologia


analítica de Carl Gustav Jung. As bases da teoria junguiana são: arquétipos,
inconsciente pessoal, inconsciente coletivo, processo de individuação, sonhos,
anima e animus, complexos, sincronicidade, personas, energia psíquica, símbo-
lo, entre outros. Isso serve como fonte de análise no espaço alquímico – a sala
de arteterapia. Segundo a fundadora da AARJ:

O setting de Arteterapia, com sua formatação de labora-


tório de alquimia, recria nos tempos atuais o tão necessário
território sagrado. Funciona como local de criação, de res-
gatar e expandir potencialidades adormecidas, de desvelar
sentimentos e de compreender conteúdos inconscientes.
(PHILIPPINI, 2013, p. 39)

Arteterapia não é ensino de artes, criação de objetos utilitários nem pas-


satempo. Por meio dos processos criativos e da análise de imagens e símbolos
do inconsciente – projetados no desenho, pintura, sonho, bordado, colagem,
escrita, modelagem, som, movimento, criação de personagem etc. –, é possível

167
Tecendo redes e transpondo desafios

ampliar o conhecimento de si e dos outros, aumentar a autoestima, lidar


melhor com sintomas e experiências traumáticas, desenvolver recursos inter-
nos e sentir prazer no ato de criar.
Os materiais utilizados nas expressões criativas são escolhidos de acordo
com a vivência arteterapêutica a ser proposta na sessão, como também podem
ser apresentados para a mulher escolher de maneira intuitiva. Conforme foi
dito anteriormente, as mãos são como canais de comunicação com o incons-
ciente, e há sempre escolhas no ato criativo – o tipo de material, a quantidade,
a cor e a maneira que irá utilizar.

Seu corpo, sua mente e sua alma estão intimamente re-


lacionados nesse momento de criação. É visceral, consiste
em uma sequência de experiências sensorial e intelectual,
despertando sensações de prazer e desprazer. A aprecia-
ção e o reconhecimento dos materiais de arte pelo toque,
sensação de frieza, moleza, dureza, texturas, o despertar de
emoções pela música, uma escuta para a sensibilidade do
som, o cheiro dos materiais, levando a lembranças mais
remotas, tudo isso acontecendo ao mesmo tempo por meio
da ponte erguida entre o material de arte e os sentidos.
(CARRANO; REQUIÃO, 2013, p. 13)

Dessa maneira, o atendimento de arteterapia no CEAM Neuza Santos


acontece semanalmente, individualmente, com duração média de 1 hora e 2
horas em grupo. A usuária, a mulher atendida, é consultada se deseja levar a
sua criação para casa; as criações são fotografadas e arquivadas. Na sessão de
arteterapia, há variadas expressões criativas, visualização/meditação, partilha/
análise sobre a criação, respiração/relaxamento, fundo musical etc. A vivência
é proposta a partir da demanda da mulher. A seguir alguns casos.
Após a leitura do conto “As árvores filhas” do livro A ciranda das mulheres
sábias: ser jovem enquanto velha, velha enquanto jovem, a usuária A desenhou a
sua árvore com lápis de cor, representando a si mesma. Em outra sessão, criou
um autorretrato com carvão vegetal se olhando no espelho e relembrou as

168
Arteterapia com as mulheres

violências de quando era casada. Afirmou estar conseguindo desapegar dele e


perguntada se gostaria de falar algo se olhando no espelho, disse “você é forte,
você consegue”.

Dentro da psique de muitas mulheres existe algo que en-


tende intuitivamente que o conceito de “curar” está incluí-
do na palavra “saúde”. Quando ferida, ela se torna “cheia
de cura” — cheia de recursos de cura —, o que significa
que algum filamento vibrante, gerador de vida, no seu es-
pírito e na sua alma se move persistentemente na direção
da nova vida, seja na busca de muitos tipos de forças, seja
na reconstituição da integridade perdida, seja na criação de
um novo tipo de integridade, diferente da que havia antes.
(ESTÉS, 2007, p. 28)

Nos últimos atendimentos, ela afirmou se sentir “mais otimista e guer-


reira”, reconhecendo a importância de viver um dia de cada vez e acolher as
suas “recaídas” (assim nomeou a sua dificuldade em lidar com a separação, as
lembranças e as oscilações das emoções), e citou o novo ciclo oriundo do seu
aniversário. Com isso, foi proposta a vivência para entrar em contato com a
persona “nova mulher”, criando uma máscara de papietagem.
Persona é um termo originário do teatro romano, referindo-se à máscara do
ator que, ao colocar, assumia um papel específico e uma identidade dentro do
enredo. Jung utiliza esse termo no campo psicológico, associado à adaptação
no mundo, pois desempenhamos papéis na sociedade, e os nossos compor-
tamentos ou atitudes são moldados de acordo com as situações e ambientes
– família, escola, trabalho, círculo de amizades etc.
Jung nos alerta sobre o perigo da superidentificação com um papel es-
pecífico e afirma que há duas fontes da persona: as expectativas da socieda-
de e as aspirações do indivíduo. Então, por ser uma adaptação à realidade
social, também tem grande potencial para mudança – podemos nos tornar
cada vez mais flexíveis, mudando antigos padrões e integrando os opostos
‘persona e sombra’.

169
Tecendo redes e transpondo desafios

A usuária B pintou com guache como se sentia e revelou um pescoço ver-


melho fechado com um zíper. Ela sofreu violência psicológica e patrimonial
do ex-marido, assim, somatizando no corpo com algumas doenças, precisou
tirar a tireóide. Reconhece a sua dificuldade em se comunicar, já relatou uma
situação em que, após se sentir abusada, se automutilou – bateu e se mordeu
– e parou porque não queria marca no corpo (sinalizei esse autocontrole).
Afirmou que sente raiva de si mesma por ter permitido abusos.
Com isso, conduzi que ela fechasse os olhos, acessando o momento em que
se sentiu abusada (e que posteriormente tinha se automutilado). Ela entrou
em contato com a cena e sentiu novamente a emoção raiva, abriu os olhos e à
sua frente tinha um papel branco e alguns materiais – lápis de cor, giz de cera,
canetinha e carvão. Ela pediu uma tesoura e uma base para proteger a mesa –
ofereci um papelão no formato retangular.
Ela rasgou com a tesoura o papel acima do papelão – em um movimento
como uma faca – e chorou durante o processo em que acessou o seu instinto.
Olhando os pedaços de papéis, ela disse querer jogar fora – ofereci a lixeira.
O papelão, a base, ficou com as marcas/arranhões da tesoura. Ela ficou
encantada, contou que desejava fazer isso, mas não queria gastar dinheiro
comprando uma tela para rasgar. Afirmei que acabara de criar uma tela,
respondeu que fez sentido para ela, quis levar para casa e disse que iria
emoldurar a sua obra.
No fim, afirmou que se sentia bem porque colocou para fora o que estava
engasgado, não foi julgada e estava sentindo que consegue ter autocontrole.
Sinalizei a confiança no espaço arteterapêutico e a força dos atos simbólicos
para a psique. Na arteterapia, não há certo nem errado, pois toda criação é
importante e possibilita transformações. Esse caso apresenta um complexo
constelado e que pode ser analisado pelo viés da anima/us.
Anima (o feminino interno no homem) e animus (o masculino interno na
mulher) representam a alma da pessoa. A persona é a adaptação ao mundo
exterior – a relação do ego com o objeto; já anima/us é a adaptação ao mundo
interior – relação do ego com o sujeito. A alma comporta-se complementar-
mente em relação ao caráter externo (persona). Quando há possessão: “[...]
os homens sob o domínio da anima tendem a refugiar-se em sentimentos de

170
Arteterapia com as mulheres

mágoa e resignação; as mulheres sob o domínio do animus tendem a atacar


[...]” (STEIN, p. 121).

O sexo masculino tem sido quase universalmente definido


por adjetivos tais como ativo, rijo, vigoroso, penetrante,
lógico, peremptório, dominante; o sexo feminino tem sido
amplamente definido como receptivo, suave, doce, genero-
so, nutriente, emotivo, empático. Quer alojadas num corpo
masculino ou feminino, essas categorias de atributos pare-
cem manter-se estáveis. O debate gira em torno de saber
se essas categorias devem ser associadas ao sexo. Algumas
mulheres são mais masculinas do que femininas em suas
personas, alguns homens são mais femininos do que mas-
culinos, mas isso não muda os seus sexos como fêmeas e
machos biológicos. Os termos Yin e Yang foram propostos
como termos neutros mais adequados para esses grupos de
atributos, e poderiam ser usados em vez dos termos mascu-
lino e feminino. De um modo ou de outro, estamos falando
das mesmas qualidades. Partindo dessa base, Jung diria que
a atitude interior mostra as qualidades que são deixadas
fora da persona: se uma pessoa é Yang na persona, ele ou
ela será Yin na estrutura de anima/us. Mas a atitude inte-
rior, porque está no inconsciente, está menos sob o controle
do ego e é menos refinada e diferenciada do que a persona.
Assim, é um Yang inferior que se manifesta numa persona
individual dominada por Yin, e um Yin inferior que se
apresenta em momentos de desatenção de uma consciência
dominada por Yang. (STEIN, p. 125)

Deste modo, compreendemos que cada pessoa possui as energias opostas


e complementares feminina e masculina – Yin e Yang, que têm seus aspectos
positivos e negativos. Assim, é importante trazer à luz da consciência essas
energias para integrá-las, lidando melhor com elas, em vez de ser dominada

171
Tecendo redes e transpondo desafios

por elas. Essa integração pode ser associada à coniunctio – a união dos opostos,
das partes consciente e inconsciente da personalidade individual.

A união do masculino com o feminino não pode realizar-


-se enquanto, inconscientemente, projetamos uma metade
de nós num parceiro humano e pomos em ação a outra
metade. Pelo contrário, como Nicholas Berdyaev obser-
vava, “somente a união desses dois princípios (masculino
e feminino) é que constitui um ser humano completo.
Não somos o príncipe ou a princesa que caminha para a
união com tal pessoa que vai desempenhar para nós o papel
de nosso parceiro místico. Antes: o príncipe e a princesa, o
par divino, unem-se dentro de nós num grande ato nupcial
que se realiza no inconsciente. (SANFORD, p. 148)

Qualquer relação humana é movida a projeções, e esse espelhamento pro-


picia tomadas de consciência e aprendizados. Na arteterapia em grupo, uma
mulher pode se ver na imagem criada pela outra, assim como na fala – o mo-
mento de partilha sobre o seu processo criativo, os seus sentimentos e a obra
criada. Em uma sessão, as mulheres sopraram as cores da alma, com o corpo
em movimento e canudo na mão.
Na pintura de sopro, é utilizada a tinta aguada, fluida, favorecendo a libera-
ção de barreiras internas na medida em que se expande na superfície pintada.
Uma tinta bem líquida exercita a flexibilidade diante da vida. Não há controle
no ato de pintar, as cores se misturam, e o resultado é inesperado. Cada mulher
vê símbolos na imagem criada, proporcionando revelações sobre a própria
pessoa que interpreta.
Na vivência conduzida no dia da reinauguração do CEAM Neuza Santos,
foram construídas bonecas feitas com retalhos, simbolizando o amuleto, a
conexão com a própria intuição e o seu instinto de autopreservação. Para a
sensibilização do grupo, as mulheres ficaram de olhos fechados, e foi con-
duzida uma visualização de uma cena em que entrava em contato com a sua
sabedoria interna.

172
Arteterapia com as mulheres

Para o mês de março, idealizei o projeto “SOU MULHER”, exposição de


bordados, estimulando um grupo de cinco mulheres a refletir sobre o que é
ser mulher, a variedade de personas e as suas múltiplas subjetividades. Afinal,
como afirmou Simone de Beauvoir: ninguém nasce mulher, torna-se mulher.
Nos encontros, teve leitura de contos e poesias, reflexão, meditação, desenho,
bordado e escrita criativa.
O bordado é uma expressão criativa minuciosa e delicada, os pontos entre-
laçam emoções e narram sentimentos. Assim como o mundo precisou desace-
lerar nesta pandemia, o bordado nos convida à calmaria, a vivenciar um tempo
mais lento e a exercitar a paciência e a concentração. Flexibilizando o fio da
vida, dando novos contornos e preenchimentos, às vezes precisando desfazer
os pontos e desatar os nós.
As palavras (e suas ausências) contêm símbolos, poderes, significados e in-
tenções. A escrita criativa possibilita dar forma e materializar os pensamentos
e sentimentos, é um exercício estruturante e organizador da psique. Na escrita
espontânea – sem a preocupação com as regras gramaticais e ortográficas – as
mãos têm “vida própria”, são como canais de comunicação do self (o divino
interior). Escrever é um movimento corporal, é a pressão da caneta no papel,
é o ritmo, é a reflexão, é a respiração.
Em uma sessão individual e em grupo, as obras criadas não são expostas.
O projeto teve o caráter de exposição, então, as mulheres sabiam que esta-
vam comunicando as suas interpretações do que é ser mulher. O título “SOU
MULHER” foi criado em conjunto em uma base circular – bordaram juntas
as letras. A seguir, os bordados e as escritas criadas nos versos:

173
Tecendo redes e transpondo desafios

174
Arteterapia com as mulheres

Fonte: Elaboradas pelas autoras.

Considerações finais

Este artigo explicou o que é arteterapia, como é o encaminhamento para


esse serviço no CEAM Neuza Santos e o desenvolvimento das vivências arte-
terapêuticas, destacando alguns casos. A instituição tem o recorte da violência
doméstica e de gênero, trata-se de uma arteterapia planejada para esse perfil
de pessoas. É um serviço novo, que está construindo a sua atuação na medida
em que atende às demandas das usuárias.
A arteterapia facilita processos de autoconhecimento, autocuidado, amor
próprio e contato com a sabedoria interna – o divino interior. Jung afirma que
o processo de individuação é tornar-se mais fiel a si mesmo, um processo de

175
Tecendo redes e transpondo desafios

uma vida inteira. É necessário acolher-se e entrar em contato com a persona


heroína para enfrentar os desafios diários e conquistar transformações, saindo
da condição de vítima, que é transitória.
Dar à luz é o equivalente psíquico de adquirir identidade, um self, ou seja,
ter uma psique não dividida. Antes desse nascimento de nova vida no outro
mundo, é provável que a mulher considere que todas os aspectos e personali-
dades dentro de si sejam como um caldeirão de nômades que entram e saem
da sua vida ao acaso. Com o nascimento no outro mundo, a mulher aprende
que tudo que a toque mesmo de leve faz parte dela. Às vezes, é difícil fazer
essa diferenciação de todos os aspectos da psique, especialmente no que diz
respeito às tendências e impulsos que consideramos repulsivos. O desafio de
amar aspectos desagradáveis de nós mesmas é um dos maiores esforços já
enfrentados por uma heroína (ESTÉS, 1994 p. 320).

Referências bibliográficas:

ANDRADE, Liomar Quinto de. Terapias expressivas. São Paulo: Vetor, 2000.

BRASIL. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Norma Técnica de


Uniformização dos Centros de Referência de Atendimento à Mulher em
Situação de Violência. 2006.

BRASIL. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Política Nacional de


Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, 2011.

CARRANO, Eveline; REQUIÃO, Maria Helena. Materiais de arte: sua linguagem


subjetiva para o trabalho terapêutico e pedagógico. Rio de Janeiro: Wak, 2013.

ESTÉS, Clarissa Pinkola. A ciranda das mulheres sábias: ser jovem enquanto velha,
velha enquanto jovem. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do
arquétipo da mulher selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

176
Arteterapia com as mulheres

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpos e acumulação primitiva. São


Paulo: Elefante, 2019.

JUNG, Carl Gustav. Obras completas. Petrópolis: Vozes, 2011.

JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. São Paulo: Paulus, 1997.

PHILIPPINI, Angela. Para entender Arteterapia: cartografias da coragem. Rio de


Janeiro: Wak, 2013.

SANFORD, John A. Os parceiros invisíveis: o masculino e o feminino dentro de


cada um de nós. São Paulo: Paulus, 1997.

SILVEIRA, Nise da. Jung: vida e obra. São Paulo: Paz e Terra, 1981.

STEIN, Murray. Jung: o mapa da alma: uma introdução. 5 ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

177
Enfr e nt amen t o à vi o lê n c ia s e x u a l
c ontra a mu l h er e o s d e s a fio s
c olocad o s às u n i v e r s id a d e s
p ú b l i cas b ras ile ir a s

Ludmila Fontenele Cavalcanti 56

Introdução

Os estudos sobre a violência de gênero constituem-se em um campo teórico-


-metodológico fundado a partir das reivindicações do movimento feminista
brasileiro e internacional. De acordo com Corrêa (2017), gênero e sexualidade,
consideradas dimensões centrais da vida social, têm sido parte importante do
debate político em uma intricada arena de disputas. As pesquisas que temos
empreendido no Grupo de Pesquisa e Extensão Prevenção da Violência
Sexual da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) nas duas últimas décadas situa-se no campo teórico-metodológico
dos estudos sobre violência sexual como uma das expressões da violência de
gênero e dos estudos avaliativos sobre as políticas públicas.
O reconhecimento da violência contra a mulher como questão de inte-
resse público requer o envolvimento de toda a sociedade para reduzir a sua
incidência. Isso tem possibilitado, especialmente até o início da década de
2010, a criação de novos marcos legais e a implementação de programas e

56 Professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).


Enfrentamento à violência sexual contra a mulher

ações governamentais coordenadas na prevenção e enfrentamento à violência


doméstica e sexual.
De acordo com Pasinato e Ávila (2021), a literatura especializada fomenta
uma perspectiva de políticas preventivas em três vertentes: primária, secundá-
ria e terciária. As políticas de prevenção primária, nomeadas como prevenção,
são aquelas voltadas às causas primordiais da violência de gênero na sociedade
como um todo, relacionadas a papéis estereotipados de gênero e ao discipli-
namento das mulheres. Já as políticas de prevenção secundárias se referem às
intervenções precoces e têm como alvo indivíduos pertencentes a grupos de
risco, evitando o seu agravamento. A prevenção terciária engloba intervenções
de longo prazo para mitigar os impactos da violência e prevenir a sua rein-
cidência, tendo em vista o caráter usualmente cíclico da violência de gênero.
A noção de enfrentamento adotada nos Planos Nacionais não se restringe
apenas à questão do combate, mas compreende também as dimensões da pre-
venção, da assistência e da garantia de direitos das mulheres. O enfrentamento
nessa perspectiva requer a ação intersetorial das áreas envolvidas com a questão
(saúde, segurança pública, justiça, educação, assistência social, entre outras).
A despeito do avanço legislativo e no campo da formulação das políticas
até 2016, nesses últimos anos, o Brasil vive uma escalada de retrocessos em
relação à garantia de direitos sexuais e reprodutivos e um conservadorismo
em grande escala, afetando o campo do direito à uma sexualidade livre de
violência (MACHADO, 2020).
O tema da violência sexual vem, por um lado, alcançando a visibilidade
necessária na formulação da política pública de saúde, e, por outro, deparan-
do-se, no âmbito do planejamento e organização dos serviços, com a comple-
xidade ainda não dimensionada de culturas institucionais distintas, programas
diferenciados e atores sociais variados.
É necessário um esforço permanente de promover a integração e articu-
lação dos serviços e instituições de atendimento às mulheres em situação de
violência, por meio da implantação e fortalecimento da rede de atendimento
às mulheres em situação de violência, com fluxo orgânico institucionalizado
e um compartilhamento de informações para o atendimento qualificado das
situações de violência sexual contra a mulher (CAVALCANTI, 2016).

179
Tecendo redes e transpondo desafios

Desafios colocados às universidades públicas


brasileiras

O atendimento humanizado e qualificado às mulheres em situação de vio-


lência implica na formação continuada de agentes públicos e comunitários;
no funcionamento adequado dos serviços especializados; na constituição/
fortalecimento da Rede de Atendimento a partir da articulação dos governos
– federal, estadual, municipal –; e da sociedade civil para o estabelecimento de
uma rede de parcerias ao enfrentamento da violência contra as mulheres, no
sentido de garantir a integralidade do atendimento.
Nesse processo, destaca-se a construção da Norma Técnica Prevenção e
Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual Contra Mulheres e
Adolescentes (BRASIL, 2012), editada em 1999, e constantemente revisada,
que buscou organizar a atenção nos serviços públicos, normatizar o atendi-
mento clínico, bem como os cuidados médicos e de enfermagem, a coleta de
material para identificação do agressor, a anticoncepção de emergência e a
prevenção de doenças sexualmente transmissíveis (IST/AIDS). Essa Norma
Técnica também regulou a realização dos exames laboratoriais, o fornecimen-
to de medicação, o apoio psicológico e os procedimentos para interrupção
da gravidez e vem sendo traduzida para os serviços de saúde sob o formato
de protocolo, um plano escrito que define, para uma realidade específica, os
procedimentos que devem ser seguidos para identificar e responder apropria-
damente às vítimas de violência sexual.
A Norma Técnica, por meio de variadas recomendações, vem incorporan-
do os avanços técnicos, éticos, legais e humanitários na perspectiva da sus-
tentabilidade do atendimento integral às mulheres em situação de violência
sexual. Nesse atendimento, cabe aos profissionais de saúde ajudar na garantia
de direitos, operacionalizar e dar sentido e qualidade às políticas de saúde.
A complexidade relacionada às situações de violência sexual e às consequên-
cias imposta às vítimas requisitam uma abordagem multiprofissional capaz de
prevenir, detectar e atuar em diferentes momentos.
Por outro lado, a incorporação diferenciada dos parâmetros sugeridos
pela Norma Técnica (BRASIL, 2012) decorre da trajetória de consolidação

180
Enfrentamento à violência sexual contra a mulher

dos serviços, da inserção diversificada dos profissionais e gestores, na qual o


processo de qualificação pode contribuir para a ampliação e a qualidade dos
serviços prestados (CAVALCANTI et al., 2012).
As etapas do atendimento, incluindo os mecanismos de detecção, a no-
tificação, as medidas de emergência, o acompanhamento, a reabilitação e o
tratamento dos impactos da violência sexual sobre a saúde da mulher, de-
mandam qualificação por parte dos profissionais de saúde para perceber essa
problemática como um fenômeno social capaz de produzir sérios agravos à
saúde das mulheres e adolescentes.
Apesar do avanço conceitual na organização formal da atenção às mulheres
em situação de violência sexual, é no espaço dos serviços que os profissionais
de saúde protagonizam um conjunto diferenciado de práticas capazes ou não
de romper com as estruturas e mecanismos de fragmentação do cuidado.
A pesquisa “Análise comparativa da abordagem às violências sexuais contra
a mulher na formação profissional na área da saúde em diferentes univer-
sidades”, desenvolvida no período de 2017 a 2020 pelo Grupo de Pesquisa
e Extensão Prevenção da Violência Sexual, da Escola de Serviço Social
(ESS) da UFRJ, apontou que, embora haja um reconhecimento do diálogo
das formações profissionais estudadas (Serviço Social, Psicologia, Medicina
e Enfermagem) com o campo dos Direitos Humanos e com os princípios e
diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), a materialização de conteúdos
curriculares obrigatórios incorporam de modo insuficiente o tema da violência
sexual contra a mulher como uma das expressões da violência de gênero e
violação de Direitos Humanos. Os quatro cursos estudados têm importante
inserção na área da saúde, o que requisita a aproximação entre o ensino e o tra-
balho em saúde capaz de produzir posturas na atuação diante das necessidades
da população no SUS (OLIVEIRA; BALARD; CUTOLO, 2013).
De acordo com os três segmentos estudados (docentes, discentes e gesto-
res), os campos de estágio dos cursos estudados, especialmente os que integram
projetos de extensão, foram apontados como possibilidades concretas de abor-
dagem teórico-prática do tema da violência sexual na formação profissional,
embora haja uma abordagem diferenciada no currículo associada aos perfis
profissionais e à respectiva aproximação dos cursos com a atenção integral à

181
Tecendo redes e transpondo desafios

saúde. Por outro lado, também foi apontada a dificuldade de inserção dos es-
tudantes em pesquisas sobre o tema. Um limite ainda presente nas estruturas
curriculares dos cursos da saúde é a não inclusão da perspectiva interseccional
na análise do fenômeno. Entre os desafios apontados pela pesquisa, encontra-
-se a necessidade de formação no campo dos direitos sexuais e reprodutivos
como parte dos Direitos Humanos e a adequação da formação profissional à
realidade da saúde da população.
As experiências de execução de políticas de enfrentamento à violência
sexual contra a mulher no contexto das universidades públicas brasileiras,
pelos serviços de atendimento à população feminina local (unidade de saúde e
centro de referência) ou pela implementação de estratégias de enfrentamento
à violência sexual no contexto da própria universidade, ainda são pouco co-
nhecidas (MAITO et al., 2019).
É importante ressaltar o contexto recente de intenso debate nas univer-
sidades sobre as violências sexuais ocorridas nestes espaços, decorrente da
visibilidade do tema proporcionada pelos coletivos feministas de alunas, pes-
quisas (INSTITUTO AVON; DATA POPULAR, 2015), blogs, seminários e
grupos de trabalho.
Nesse cenário, o Grupo de Pesquisa e Extensão Prevenção da Violência
Sexual vem apontando a necessidade de a formação profissional ser norteada
pelos princípios de criticidade, competência e compromisso com a democracia
e a cidadania. Nesse sentido, os profissionais devem estar capacitados, sob o
ponto de vista teórico, político e técnico, a investigar, formular, gerir, executar,
avaliar e monitorar políticas sociais, programas e projetos em diferentes áreas,
incluída a prevenção da violência sexual contra a mulher.
A inserção no “Grupo de Extensão Prevenção da Violência Sexual” per-
mite a aproximação com a rede de serviços das diferentes políticas públicas,
com as demandas vivenciadas no cotidiano profissional e com as estratégias
adotadas pelos diferentes profissionais e gestores no atendimento às mulheres
em situação de violência sexual.
Essa inserção qualifica a formação profissional do estudante para a futura
atuação em instituições públicas, privadas, em organizações não governamen-
tais e junto aos movimentos populares na área da violência de gênero.

182
Enfrentamento à violência sexual contra a mulher

A extensão universitária é compreendida como ação política, estratégia de-


mocratizante e metodologia voltada aos problemas sociais, como um processo
que consolida a aproximação da produção de conhecimento e da formação
profissional à diversidade de situações sociais, na qual os futuros profissionais
poderão atuar como integrantes das equipes multiprofissionais. A violência
sexual contra a mulher passa a ser um dos problemas sociais enfrentados
cotidianamente pelos profissionais de saúde e pelos profissionais das demais
políticas públicas.
Sua concepção e implementação é respaldada por um arcabouço teórico-
-metodológico advindo das ciências sociais e humanas, com ênfase nas dis-
cussões relativas à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos. Sua atuação
permite viabilizar e fortalecer o compromisso da universidade pública em
atender demandas reais e emergentes diante um problema de alta magnitude.
A trajetória do Grupo de Extensão Prevenção da Violência Sexual”, ba-
seia-se no princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão
(FÓRUM DE PRÓ-REITORES DAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS DE
EDUCAÇÃO SUPERIOR BRASILEIRAS, 2012) por um processo inter-
disciplinar educativo, cultural, científico e político que promove a interação
transformadora entre a universidade e os outros setores da sociedade.
A articulação com o ensino ocorre nos níveis de graduação e pós-gra-
duação (residências, mestrado, doutorado e pós-doutorado), envolvendo
diferentes cursos (Serviço Social, Psicologia, Medicina, Enfermagem,
Odontologia, Jornalismo, entre outros) da UFRJ, campos de estágio profis-
sional, além de outras universidades, institutos de pesquisa e organizações
não governamentais.
O Grupo de Extensão também possibilita a participação contínua de do-
centes e discentes no processo de qualificação das ações municipais e estaduais,
em diferentes localidades no campo da prevenção à violência sexual, e contri-
bui com a consolidação das ações públicas de prevenção à violência sexual
contra a mulher. Assim, não se limita ao espaço físico da dimensão tradicional
do ensino, mas compreende todos os espaços, dentro e fora da universidade,
em que se realiza o processo histórico-social com suas múltiplas determina-
ções, trabalhando conteúdos interdisciplinares decorrentes da prática.

183
Tecendo redes e transpondo desafios

Até 2021, as ações do Grupo de Extensão articularam-se com 15 pesquisas


já realizadas, possibilitando a produção de conhecimento na interface univer-
sidade/comunidade, priorizando metodologias participativas e conhecimentos
que impactassem no atendimento no âmbito dos serviços das várias política
públicas envolvidas na rede intra e intersetorial na atenção às mulheres em
situação de violência sexual.
Além da perspectiva interdisciplinar com que o tema da violência sexual
é abordado nas ações de extensão, articuladas ao ensino e à pesquisa, em que
participam estudantes, docentes e profissionais de diferentes formações, as
atividades são dirigidas aos profissionais e gestores das diferentes áreas de
políticas públicas com distintas formações. O processo de construção das ati-
vidades e os espaços de divulgação também sintetizam o conhecimento acerca
da abordagem do fenômeno.
Do ponto de vista do crescimento pessoal e cidadão, a inserção no projeto
permite: o intercâmbio de experiências nacionais; a ampliação da vivência aca-
dêmica pela articulação ensino, pesquisa e extensão; a produção e veiculação
de conteúdo educativo; a produção de textos; a participação junto ao movi-
mento organizado de mulheres; e a participação em eventos diversificados.
O primeiro material educativo produzido coletivamente pelo Grupo de
Extensão foi o “Álbum seriado Prevenção da violência sexual”, para utilização
em diferentes contextos (unidades de saúde, escolas, entre outros), composto
de informações sobre a prevenção da violência sexual contra a mulher para
utilização pelos profissionais com diferentes grupos de usuários dos servi-
ços. Esse material foi publicado em cinco edições e distribuído para todas
as unidades públicas de saúde do Município e do Estado do Rio de Janeiro.
Também foi distribuído em escolas municipais do Estado do Rio de Janeiro
na execução do Projeto de Extensão “Escola que Protege”.
Outra experiência exitosa foi o desenvolvimento do site <http://www.pre-
vencaoaviolenciasexual.ess.ufrj>, que, durante dez anos, disseminou informa-
ções sobre o enfrentamento à violência sexual contra a mulher.
Considerando a intensificação da utilização das tecnologias da informação
pelo uso dos dispositivos móveis em diferentes setores das políticas públicas
que permitem uma maior conectividade, e a importância do desenvolvimento

184
Enfrentamento à violência sexual contra a mulher

de redes e da ampliação de acesso a serviços prestados aos diferentes grupos


populacionais, na área da violência de gênero, diferentes aplicativos foram pro-
duzidos nos últimos anos na América Latina voltados às mulheres em situação
de violência de gênero com enfoque na proteção. No entanto, há uma lacuna na
produção de dispositivos voltados aos estudantes, pesquisadores, profissionais e
gestores, em relação às diferentes expressões da violência de gênero.
A complexidade relacionada às situações de violência sexual requisita uma
abordagem multiprofissional capaz de prevenir, detectar e abordar em diferentes
momentos, o que implica em acesso simplificado a informações atualizadas.
Neste cenário, foi desenvolvido o aplicativo “EVISU - Informações sobre
o enfrentamento à violência sexual contra a mulher”, em parceria com a
Universidade de Fortaleza. Este aplicativo foi idealizado e desenvolvido por
uma equipe interdisciplinar, marcada pela presença de estudantes e profissio-
nais das áreas de Serviço Social, Enfermagem, Publicidade e Propaganda e
Tecnologia da Informação.
O aplicativo, disponível para iOS e Android, é uma ferramenta de interface
simples, original e pioneira na disseminação de informação sobre o tema da
violência sexual. Considerando a complexidade do fenômeno, fica evidente a
importância de um instrumento de fácil manejo que forneça informações de
múltiplas formas para aqueles implicados no atendimento às mulheres em
situação de violência sexual.
Dados do Rastreador Global de Resposta à COVID-19 com viés
de gênero (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O
DESENVOLVIMENTO, 2020) apontam que os governos de 135 países
concentraram seus esforços contra a COVID-19 relacionados ao gênero prin-
cipalmente na prevenção e/ou na resposta à violência contra mulheres, cujos
esforços concentram-se no reforço de serviços essenciais, como abrigos, linhas
de apoio e outros mecanismos de denúncia. No entanto, apenas 48 países,
menos de um quarto dos analisados, trataram os serviços relacionados com
violência contra mulheres como parte de seus planos nacionais e locais de res-
posta à COVID-19 com pouco financiamento adequado para essas medidas.
Diante do cenário pandêmico, que limitou as atividades em caráter excepcio-
nal, o Grupo de Extensão, cumprindo as diretrizes institucionais e instrumentos

185
Tecendo redes e transpondo desafios

jurídicos voltados à proteção da comunidade universitária, construiu coletiva-


mente um conjunto de atividades produzidas e disseminadas remotamente com
maior acessibilidade (tradução para libras, vídeo descrição e #PraCegoVer).
Até o presente momento, foram produzidos, mensalmente, 11 webinários
da Série “Aproximações Interdisciplinares” sobre temas relacionados aos deba-
tes de gênero, masculinidades e violências contra as mulheres, contando com a
participação dos docentes, técnicos-administrativos, estudantes e profissionais
integrantes do Grupo, bem como de pesquisadores de variadas instituições e
integrantes da sociedade civil. Essa iniciativa foi acompanhada da produção
de um Manual de Webinários (CAVALCANTI et al., 2020), tendo como
objetivo contribuir para a organização de seminários on-line como estratégia
de divulgação e promoção de debates que envolvam a comunidade acadêmica
e a sociedade em geral em ambientes virtuais. Essa iniciativa exitosa poten-
cializou a articulação ensino, pesquisa e extensão, construiu um acervo para
consulta (YouTube) e, também, foi replicada em outros contextos.
Outra iniciativa do Grupo de Extensão, iniciada no período de isolamento social,
foi o Programa de Rádio “Prevenção em Foco”, que propõe debater mensalmente
assuntos relativos a gênero, sexualidade, violência, políticas públicas, legislação,
saúde, raça e outros temas que atravessam esse campo. Por meio de entrevistas,
em um “bate-papo dinâmico”, pesquisadores(as), professores(as), servidores(as) e
ativistas apresentam e discutem novas visões e ideias para o debate. Essa iniciativa
foi selecionada pelo Edital da Rádio UFRJ, destinado a veicular conteúdos radio-
fônicos em diversas plataformas da Rádio UFRJ (Spotify, Deezer, Google etc.).
Além dessas iniciativas, a produção e divulgação sistemática e convergente
de informações sobre a prevenção da violência sexual em diferentes contex-
tos ocorre pelas redes socais do Grupo de Extensão (Instagram, Facebook e
YouTube) e da participação na Rede Nacional de Combate à Desinformação,
permitindo um maior alcance no cumprimento dos objetivos propostos.

Considerações finais

Diante dos resultados apontados na pesquisa sobre a formação profissional,


da escassez de produção sobre o tema e o papel estratégico das universidades

186
Enfrentamento à violência sexual contra a mulher

no enfrentamento à violência sexual, demos início a pesquisa “Abordagem


comparativa acerca das estratégias de enfrentamento à violência sexual contra
a mulher no contexto das universidades públicas brasileiras”, que busca analisar
comparativamente as estratégias de enfrentamento à violência sexual contra
a mulher no contexto das 69 universidades públicas federais brasileiras, pelos
grupos de pesquisa e de extensão que abordam o tema da violência sexual
contra a mulher; dos serviços universitários voltados para o atendimento às
mulheres em situação de violência sexual; e das estratégias institucionais de
enfrentamento à violência sexual no contexto universitário.

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Ministério da Saúde. 3ª revisão, 2012.

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187
Tecendo redes e transpondo desafios

FÓRUM DE PRÓ-REITORES DAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS DE


EDUCAÇÃO SUPERIOR BRASILEIRAS. Política Nacional de Extensão
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PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO.


PNUD e ONU Mulheres lançam o rastreador global de resposta à COVID-19
com viés de gênero, 2020.

188
D e s af i o s n o at en d im e n to d e
mulhe r es em si t u açã o d e v io lê n c ia
se x ua l em u m servi ço d e r e fe r ê n c ia
no Ri o G ran d e d o N o r te

Natália Lucena Guimarães 57


Fabiana Lima Silva 58
Débora Silva de Oliveira Nunes 59

Introdução

A violência sexual é um fenômeno multidimensional que afeta cidadãos de


todas as classes sociais, raças, etnias e orientações sexuais e que se consti-
tui como uma das principais formas de violação dos direitos humanos,
atingindo as pessoas no seu direito à vida, à saúde e à integridade física
(BRASIL, 2012). O autor de uma violência pode ser conhecido ou desconhe-
cido e, no caso da violência sexual contra mulheres, com muita frequência,
são os parceiros, maridos ou namorados, o que é favorável ao silenciamento,
devido ao medo de represálias, ambivalências afetivas e sentimentos de culpa
e vergonha (VILLELA; LAGO, 2007).

57 Hospital Universitário Ana Bezerra (HUAB) da Universidade Federal do Rio Grande do


Norte (UFRN).

58 Maternidade Escola Januário Cicco (MEJC)/EBSERH.

59 Hospital Universitário Ana Bezerra (HUAB)/EBSERH.


Tecendo redes e transpondo desafios

Entre os principais obstáculos para o enfrentamento dessa violência


estão a articulação e a integração dos serviços, a garantia de atendimento
que não gere revitimização e a oferta de um atendimento humanizado e
integral (BRASIL, 2015). Nesse sentido, este trabalho objetiva discorrer
sobre os desafios enfrentados no atendimento a mulheres vítimas de vio-
lência sexual, em um hospital-escola vinculado à Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN).
Nomeado AMAE e criado em 2017, no Hospital Universitário Ana
Bezerra (HUAB), uma instituição com perfil materno-infantil, o serviço é
referência para o atendimento às crianças, adolescentes até 14 anos e mulheres
vítimas de violência sexual. Localizado no Município de Santa Cruz, cidade
do interior do Estado do Rio Grande do Norte, a instituição é responsável
pelo acolhimento dos casos na V Região de Saúde, que compreende um total
de 21 municípios. Com equipe multiprofissional que conta com profissionais
de Psicologia, Serviço Social, Medicina, Enfermagem, Fisioterapia, Farmácia
e Odontologia, realiza acolhimento em situação de urgência, que apareça tanto
por demanda espontânea quanto encaminhado por outros dispositivos da rede
intersetorial; garante profilaxia de emergência quando possível; procedimen-
tos cirúrgicos quando necessário; seguimento ambulatorial especializado e
multiprofissional; e abortamento legal, se viável e desejável.
A construção deste trabalho se deu a partir da experiência profissional de
psicólogas que atuaram ou atuam no AMAE. Essas profissionais participa-
ram da construção inicial do serviço, das ações de capacitação, da criação das
estratégias, internas e externas, de fortalecimento, além de terem vivenciado
rotineiramente o atendimento na ponta, dando assistência psicológica, desde
as situações de urgência até os seguimentos ambulatoriais.
Assim, a partir de um olhar da Psicologia, este relato de experiência tra-
tará dos desafios persistentes e emergentes, no acolhimento, atendimento
multiprofissional e seguimento ambulatorial, a partir das práticas reais em
um serviço do Sistema Único de Saúde (SUS), dentro de um contexto so-
ciocultural específico. A partir da vivência dessas profissionais, esse relato
irá pensar nas possibilidades vislumbradas para a construção de um modo
de atendimento ético, qualificado, humanizado e integral para as mulheres

190
Desafios no atendimento de mulheres em situação de violência sexual

vítimas de violência sexual. Este trabalho é também um breve levantamento


histórico e um relato de reflexões críticas e encarnadas, sendo a formação
profissional, a qualidade da assistência e a articulação e efetivação da rede de
serviços pontos centrais da discussão.

Do surgimento ao fortalecimento: desafios são


uma constante

Em 1999, com o lançamento das bases operacionais da política de aten-


dimento a mulheres e adolescentes vítimas de violência sexual, por meio da
Norma Técnica para Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da
Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, houve o estímulo pela cria-
ção, no âmbito do SUS, de serviços e redes de referência para atendimento
às mulheres e adolescentes vítimas de violência sexual, para a facilitação do
acesso a estes equipamentos (VILLELA; LAGO, 2007).
Foi somente em 2016 e 2017 que ocorreram capacitações e sensibilizações
para a habilitação do HUAB como um serviço de referência, o que ocorreu, de
fato, em 2017. Como afirmam Villela e Lago (2007), a estruturação e manu-
tenção destes serviços e redes não é uma tarefa simples, exigindo continuados
esforços de articulação técnica e política, principalmente nos casos de serviços
de saúde capacitados a realizar todos os procedimentos previstos na norma
técnica, incluindo a interrupção da gravidez. A criação do AMAE mostrou-se
um desafio e uma oportunidade em prestar à região assistência especializada
às vítimas de violência sexual, com equipe multiprofissional capacitada e fun-
damentada em preceitos técnicos e éticos.
Assim, desde 2017, capacitações e sensibilizações são frequentes. É im-
portante ressaltar que, enquanto uma instituição de ensino, estudantes e
profissionais em formação participam dos atendimentos, propositalmente,
para possibilitar uma experiência capaz de qualificar e humanizar a formação
profissional. Inclusive, por isso, são necessárias formações constantes, devido
à alta rotatividade desses recursos humanos associada ao perfil universitário,
além de buscar garantir a qualificação técnica e ética de todos os profissionais
de saúde envolvidos, independentemente do nível de formação, da catego-

191
Tecendo redes e transpondo desafios

ria profissional ou do “tempo de casa”. Entendendo que essa é uma temática


sensível, é necessário estar sempre sendo tocada, de forma leve, para que as
resistências pessoais e culturais sejam superadas aos poucos, ao invés de infla-
madas com uma abordagem muito intensa. Além disso, é promovida também
a qualificação da equipe administrativa e de apoio, de forma que todos possam
compreender que são parte do serviço e que o mesmo exige um cuidado es-
pecífico e uma postura ética. Corroborando com Bedone e Faúndes (2007):

Quanto mais profissionais estiverem capacitados para


realizar o atendimento, melhores serão as condições de se
oferecer uma atenção digna e desburocratizada. Assim, a
capacitação das equipes deve incluir tanto conhecimentos
técnicos quanto a reflexão sobre suas atitudes, seus concei-
tos de violência e o contato direto com as vítimas de agres-
são. Aspecto que não pode ser negligenciado é o constante
suporte técnico e psicológico às equipes de atendimento,
no sentido de que não se afastem do objetivo de um aten-
dimento humanizado, porém, não paternalista. Todos os
profissionais, desde o motorista da ambulância, o vigia de
quarteirão e o policial militar até os profissionais que tra-
balham no hospital, devem estar motivados e sentirem-se
peças importantes dentro da equipe. Devem ter a cons-
ciência de que todo o atendimento poderá ser comprome-
tido se não fizerem adequadamente cada um a sua parte. O
entendimento mais apropriado das várias conotações que
envolvem o atendimento e acompanhamento de mulhe-
res nesta situação só se adquire se houver a participação
de profissionais de várias áreas. As diferentes percepções
de diferentes profissionais contribuem para a melhor ca-
pacitação de cada um. As equipes devem contar com a
participação de médicos, enfermeiras, assistentes sociais e
psicólogas que se disponham a se reunir periodicamente

192
Desafios no atendimento de mulheres em situação de violência sexual

para discutir e avaliar os diversos aspectos que envolvem o


atendimento dessas mulheres. (pp. 467-468)

Ademais, fluxos e estratégias de atendimentos foram instituídos, visando


garantir um espaço físico minimamente adequado, sigilo e privacidade.
Cabe pontuar que, além da construção e do fortalecimento do serviço
dentro da própria instituição, a articulação na rede intersetorial também é
um desafio permanente para consolidar o lugar e o papel desse serviço e para
garantir a sua visibilidade e acessibilidade à população. Especialmente em
2017 e 2018, aconteceram momentos de articulação e capacitação com a rede
intersetorial municipal e da V Unidade Regional de Saúde Pública do Estado
que se mostraram essenciais para o reconhecimento e a interação entre os
entes, de modo a favorecer o funcionamento dos fluxos e serviços.
De acordo com a Norma Técnica de Atenção Humanizada às Pessoas
em Situação de Violência Sexual com Registro de Informações e Coleta
de Vestígios (BRASIL, 2015), reunir iniciativas para a unificação de pro-
cedimentos é possível quando a articulação e atuação do serviço expressam
o desejo de possibilitar à pessoa em situação de violência sexual um aten-
dimento digno, humanizado e resolutivo, buscando evitar revitimizações e
torná-lo mais ágil e com menos exposição. A atenção às pessoas em situação
de violência sexual não pode ser uma ação isolada, e o seu enfrentamento
depende de iniciativas intersetoriais que possibilitem ações de atendimento,
proteção e prevenção de novas situações.
O reconhecimento do serviço e das suas potencialidades, tanto dentro da
instituição, por parte de todos os trabalhadores, como pela rede em que está
inserido, não é o único desafio nesse sentido. A falta de conhecimento da po-
pulação também é uma realidade. Buscando vencer essa barreira de acesso, di-
versas estratégias são colocadas em ação simultaneamente. Permanentemente
é realizada a divulgação do serviço, interna e externamente. Internamente, são
realizadas ações educativas interativas com as pessoas que acessam os serviços
do hospital, seja na sala de espera para o atendimento ambulatorial, nas en-
fermarias de internação ou na sala de espera da urgência. Tem como objetivo
não só a divulgação do serviço e do funcionamento da rede de acolhimento,

193
Tecendo redes e transpondo desafios

mas também a orientação sobre as formas como a violência de gênero pode


se apresentar, suas características, sobre o que é o ciclo de violência, como re-
conhecê-lo e como buscar ajuda, sobre como ajudar mulheres em situação de
violência, sobre as nuances da violência sexual e as possibilidades de enfrenta-
mento. Para a difusão externa dessas informações, outra estratégia é utilizada.
À primeira vista, pode parecer antiquada, mas tem se demonstrado muito efe-
tiva. Em Santa Cruz, o rádio é um forte meio de comunicação, assim, também
são realizadas explanações sobre o tema nas rádios difusoras locais.
Como sinaliza Pitanguy (2014), alicerces históricos construíram um arca-
bouço que sustenta a ideia da inferioridade da mulher, o que se expressa na
construção dos campos da violência e da saúde, cabendo à mulher comprovar
que não tem parcela de culpa na violência sofrida, que “não fez por merecer”
e que é uma “mulher direita” (sic). Assim, apesar de todos os esforços, por se
tratar de uma temática socialmente ainda considerada tabu e recorrentemente
descontextualizada, lidar com discursos e práticas conservadoras, julgadoras,
revitimizantes e com as fragilidades da rede intersetorial para acolher e enca-
minhar é um trabalho constante para os profissionais éticos e implicados da
instituição, para a gestão e para as mulheres que demandam atendimento.
Desse modo, além da falta de conhecimento do serviço, os sentimentos de
medo, vergonha e julgamentos também afetam a busca por atendimento. E se,
por vezes em situações de urgência mulheres não buscam o serviço para aco-
lhimento e atendimento precoce (pelo menos 72h após a ocorrência, tempo
limite para a administração da profilaxia de emergência), o mesmo ocorre
durante o acompanhamento. Enquanto psicólogas atuando na assistência à
saúde, durante o seguimento ambulatorial para atendimento clínico, as auto-
ras deste artigo precisaram reconhecer e lidar com o abandono do tratamento
psicológico como possível (e, às vezes, provável) no processo de cuidado.
O estigma sobre a mulher vítima de violência sexual e todo o sofrimento
associado a essa vivência é muito complexo e multifatorial e acaba por im-
pactar na continuidade do acompanhamento, principalmente no seguimen-
to ambulatorial. Os medos, as resistências e outras dificuldades necessitam
ser acolhidas, ouvidas, compreendidas e respeitadas, sem julgamento ou
suposições prévias, para, se possível, serem superadas ou atenuadas. A partir

194
Desafios no atendimento de mulheres em situação de violência sexual

de um olhar integral para o cuidado em saúde, o tratamento psicológico é um


direito de todas as mulheres vítimas de violência sexual, mas jamais uma obri-
gação. Como sujeitos das suas vidas, elas são livres para escolherem o melhor
modo e momento para cuidarem de si, inclusive considerando suas condições
subjetivas para tal (BARBOZA; ALMEIDA JR., 2017).

Um desafio emergente: a pandemia de


COVID-19

No contexto da pandemia de COVID-19, além desses antigos e já co-


nhecidos obstáculos, novos desafios emergiram. Diante da necessidade de
medidas restritivas e de isolamento social, mulheres ficaram mais vulneráveis
às situações de violência, tendo em vista que a maior frequência desse evento
é no ambiente doméstico (BAIGORRIA et al., 2017).
A violência sexual é um agravo em saúde que revela o complexo contex-
to de poder que marca as relações sociais entre os sexos, acarretando maior
uso dos serviços de saúde por parte das mulheres (OLIVEIRA et al., 2005;
SCHRAIBER et al., 2000). Desse modo, compreendendo a atenção a esse
agravo em saúde como um serviço essencial, o AMAE seguiu e segue aberto,
inclusive para o procedimento legal de interrupção de gravidez. Além disso, as
estratégias de fortalecimento continuam acontecendo, mesmo que adaptadas
à atual conjuntura sanitária. Quando necessário, adaptações são realizadas,
como medidas de prevenção e redução de danos. Assim, atendimentos à dis-
tância passaram a ser realizados, especialmente no seguimento ambulatorial,
de modo a favorecer a continuidade dos acompanhamentos e evitando a in-
terrupção dos tratamentos realizados, inclusive no que diz respeito ao segui-
mento da assistência psicológica.
Até o momento em que este trabalho foi escrito, foi identificado um
aumento no número de casos atendidos pelo serviço durante a pandemia.
Em um primeiro momento, poderíamos concluir que a pandemia, em função
do isolamento no ambiente doméstico, foi um fator de aumento para a vio-
lência sexual. Todavia, tendo em vista que o trabalho de divulgação do serviço
seguiu em funcionamento e cresceu, não seria honesto associar esse aumento

195
Tecendo redes e transpondo desafios

somente à pandemia, mesmo reconhecendo que, sim, ela pode ser um fator
influenciador. Segundo o Anuário de Brasileiro de Segurança Pública 2021
(BRASIL, 2021), houve um crescimento de 2,4% dos registros de estupro e
estupro de vulnerável no Rio Grande do Norte em 2020, apesar de ter sido
verificada uma tendência de queda na análise nacional. Os registros sempre
correspondem à realidade? Ou o isolamento social devido à pandemia com-
plexificou mais ainda a mensuração da realidade?
Diversas questões ficam em aberto: o aumento dos registros de casos pelo
HUAB seria um sinal do aumento no número de casos de violência sexual
contra mulheres na região? Ou seria um sinal de um crescimento geral no
número de casos de violência sexual em função da pandemia de COVID-19?
Ou é uma demonstração de que as estratégias de divulgação estão sendo mais
efetivas? Estaria a rede menos frágil e mais articulada? As estratégias tomadas
estão superando os desafios?
Não há resposta certa e linear para essas perguntas, a única resposta verda-
deiramente adequada é que a violência sexual precisa ser combatida, prevenida
e abolida da nossa sociedade. Até isso ocorrer, todas as pessoas vítimas desse
tipo de violência precisam ser acolhidas e cuidadas de maneira digna e respei-
tosa. Meninas, adolescentes e mulheres necessitam ter garantia de acesso aos
serviços de referência capacitados para acolher todas as suas necessidades, de
modo integral, tecnicamente qualificado e eticamente orientado.

Conclusões

A partir do trabalho desenvolvido pela equipe do AMAE, é possível perce-


ber que são vários os desafios vivenciados por serviços que se propõem a aten-
der a demanda das mulheres vítimas de violência sexual. O estigma associado,
as fragilidades da rede intersetorial, bem como a própria complexidade da
atenção integral à saúde, seguem como desafios que necessitam ser superados.
As estratégias precisam ser diversas, assertivas e constantes, não é possível
acreditar que uma única intervenção é capaz de solucionar tamanha comple-
xidade, os esforços precisam ser permanentes.

196
Desafios no atendimento de mulheres em situação de violência sexual

O serviço AMAE segue em constante aprimoramento, cujos protocolos


sempre são reavaliados, apostando na qualificação permanente de seus profis-
sionais, buscando mitigar as dificuldades, ofertando o cuidado que as usuárias
precisam, fortalecendo a desconstrução de práticas conservadoras e morali-
zantes, construindo alianças com outros dispositivos da rede e divulgando à
população o serviço existente.

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e at i t u d es d e m é d ic o s d e
m a te r nid ad e p ú b l i ca u n iv e r s itá r ia :
d i l emas e d e s a fio s

Chiara Musso Ribeiro de Oliveira Souza 60


Ivana Sessak Puls 61
Luisa Lirio Pela 62
Getúlio Sérgio Souza Pinto 63
Angélica Espinosa Miranda 64

Introdução

De acordo com o Ministério da Saúde (2012), A violência contra a mulher,


uma das principais formas de violação dos direitos humanos, abrange também
a violência sexual (VS), definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS)
como ações que vão desde assédio até apenetração forçada, sob diversos

60 Professora do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Universidade Federal do


Espírito Santo (UFES).

61 Mestranda em Psicologia Social pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

62 Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

63 Psicólogo da Secretaria Estadual de Saúde do Espírito Santo.

64 Professora do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal do Espírito


Santo (UFES).
Tecendo redes e transpondo desafios

tipos de coerção, incluindo situações em que não se pode dar consentimen-


to e abrangendo o estupro dentro do casamento ou relações de namoro.
Em alguns países, a VS marca o início da vida sexual de um terço das adoles-
centes (WORLD..., 2012).
A VS afeta a maioria das vítimas e suas famílias (ANDRADE, 2017),
repercutindo na saúde física, pelo risco de aquisição de infecções sexualmente
transmissíveis (BROOKMEYER et al., 2017), e na saúde mental, gerando
principalmente estresse pós-traumático, transtorno de comportamento e gra-
videz (CERQUEIRA, 2014).
No Brasil, há garantia, por lei, do atendimento obrigatório e imediato, no
Sistema Único de Saúde (SUS), a pessoas em situação de VS (ANDRADE,
2017). A rede pública deve oferecer contracepção de emergência, profilaxia de
IST, abordagem de lesões genitais, assistência psicológica e social e acesso a in-
formações sobre direitos e serviços disponíveis (ANDRADE, 2017). Normas
técnicas publicadas pelo Ministério da Saúde (MS) orientam a assistência no
SUS aos casos de VS, tendo a importante função de instruir a atuação do setor
de saúde quanto às questões técnicas, éticas e jurídicas. É também direito da
mulher vítima de VS acesso ao aborto legal (AL), realizado em unidades de
saúde específicas (BRASIL, 2011).
Ainda assim, diversos estudos trazem dados sobre a inadequada assistência
que as mulheres vítimas de VS recebem nos hospitais, o que costuma impactar
severamente na assistência àquelas que engravidam (CERQUEIRA, 2014;
DELZIOVO, 2018). Os serviços de AL permanecem em relativa invisibilida-
de até mesmo nos hospitais onde funcionam, sendo comum que prepondere as
concepções morais e religiosas no trabalho da equipe de saúde (FAÚNDES;
BARZELATTO, 2011), e que médicos se sintam despreparados emocional
e tecnicamente para lidar com os casos (FARIAS; CAVALCANTI, 2012).
Mesmo nos hospitais de referência, a objeção de consciência prevalece
entre médicos e médicas, principalmente em abortos por motivo de estupro
(BENUTE, 2012; ROCHA et al., 2015).
Portanto, faz-se necessário investigar a forma como médicos percebem e
reagem perante sua prática diária na assistência hospitalar a mulheres em si-
tuação de VS.

200
Violência sexual, percepção e atitudes de médicos de maternidade

No Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (HUCAM),


está inserido o Programa de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual
(PAVÍVIS), Programa de Extensão do Departamento de Ginecologia e
Obstetrícia, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Espírito
Santo (UFES), em Vitória (ES). Sua equipe é multidisciplinar e presta assis-
tência principalmente ambulatorial.
A presente pesquisa, aprovada pelos comitês de ética do Centro de Ciências da
Saúde, investigou a forma como médicos plantonistas e residentes da maternidade
do HUCAM percebem e reagem perante sua prática diária na assistência hospita-
lar às mulheres em situação de VS. Por meio de método qualitativo, entrevistamos
médicos preceptores ginecologistas e obstetras e residentes em ginecologia e obs-
tetrícia, responsáveis, dentre outras atividades, pela indução e acompanhamento do
AL. As entrevistas semiestruturadas foram realizadas durante plantões, gravadas e
posteriormente transcritas com anuência dos entrevistados, que assinaram termo
de consentimento livre e esclarecido e foram nomeados “Médico(a) preceptor(a)
A, B, C...” e “Médico(a) Residente A, B, C...”.
Os discursos foram analisados com base na técnica de análise de conteú-
do categorial e foram distribuídos em quatro categorias: a problemática da
violência sexual; o médico e a assistência hospitalar; o médico e a objeção de
consciência; e o médico, o desconhecimento da legislação e as normas técnicas
e o juízo de valor.
A equipe médica da maternidade constituía-se, no momento da pesquisa,
em 21 médicos preceptores e 15 médicos residentes. Foram entrevistados 19
preceptores e 14 residentes. Dois preceptores homens e uma residente recu-
saram responder.
A maioria dos entrevistados crê que existem fatores de risco para VS, atri-
buindo-os a fatores socioeconômicos, violência em geral e outros. Algumas
falas, que não expressam o resultado geral da pesquisa, apontam que a mulher
é vítima e não tem culpa da VS sofrida.

“Vulnerabilidade do sexo, né? Feminino… acho que é o


principal, né?, a questão social de como a mulher é enxergada
pela sociedade.” (Médica residente A).

201
Tecendo redes e transpondo desafios

A violência doméstica, familiar e sexual ocorre em grande parte porque


culturalmente estabeleceu-se a desigualdade de tratamento e de poder entre
homens e mulheres (ANDRADE, 2017). Por meio da cultura patriarcal,
mulheres têm sido consideradas seres cuja humanidade é problemática (mais
perigosa ou menos capaz) quando comparadas aos homens, um senso comum
que alimenta e reproduz a dominação sexual, ainda hoje perpetrada por prá-
ticas cotidianas de instituições e de relações sociais, que seguem produzindo e
reproduzindo preconceito e desigualdade (SANTOS, 2011).
Não há conflitos sobre acolhimento emergencial para profilaxia de IST e gra-
videz, no entanto, a assistência aos traumatismos físicos, genitais ou extragenitais
não constitui o principal problema assistencial na VS (FAÚNDES, 2017).

“A responsabilidade do médico é acolher e tomar as primeiras


condutas de acordo com o protocolo.” (Médica preceptora F)

Diversas respostas denotam maior aceitação quando a vítima decide ter o


parto, ficando com a criança ou entregando-a para adoção.

“‘Você é uma guerreira se você aceitou sua gestação, seu bebê


‘tá’ aqui, parabéns’, eu as vejo como guerreiras, entendeu? As
parabenizo por terem levado a gestação.” (Médica residente J).

“No momento que a mulher opta pela interrupção da gravidez,


ela sai da posição de vítima, que ela é, ‘pra’ posição de algoz do
próprio bebê.” (Médica preceptora M).

“Entregar uma criança para adoção é uma solução muito heroi-


ca da mulher que foi vítima de abuso, [...] um bebê que não é
dela e que não foi consentido dentro dela, entregar para adoção
é um ato de heroísmo, eu acho.” (Médico preceptor K)

“É mais digno você entregar ‘pra’ adoção do que você fazer


um abortamento.” (Médica residente Q)

202
Violência sexual, percepção e atitudes de médicos de maternidade

“[...] não sei como poderia ser feita essa intervenção, mas um
trabalho de tentar fazer com que essas mulheres mantenham
a gestação, [...] que deem ‘pra’ adoção os bebês, existe pouco
trabalho aqui no hospital. A maioria das pacientes que a gente
atende aqui na urgência são para o processo do abortamento
legal.” (Médica preceptora F)

Os entrevistados trazem demanda por melhor orientação às pacientes que


farão AL.

“A conscientização dessas mulheres de como é feito o aborto


legal, porque a maioria que chega não tem noção como é o
processo, [...] elas vêm e acham que vai ser uma menstruação.”
(Médico residente G)

Apareceu certo inconformismo quanto à demora em acessar o serviço de


saúde em tempo hábil para profilaxia.

“E, quando a gente começa a fazer o aborto legal de todo


mundo, a gente ‘tá’ concordando que tudo bem se ela não
conseguiu chegar até o hospital para fazer a profilaxia.”
(Médica residente J)

Mesmo o HUCAM sendo credenciado junto ao MS para realizar AL,


mais de 70% dos entrevistados manifestou objeção de consciência para con-
dução dos casos, índice maior que o encontrado em outros estudos brasileiros
(entre 43,5% e 60%) (LEÓN; JIMÉNEZ, 2010).

“Não sou a favor do aborto, independente das circunstâncias,


sei que por lei elas estão amparadas, né? Mas [...], não sendo
emergência, acabo deixando para outro profissional que não se
importe.” (Médica preceptora B)

203
Tecendo redes e transpondo desafios

“Até que ponto posso ajudar e essa ajuda me faz mal, contra
meus princípios, meus princípios básicos, não posso mudar por
causa da minha profissão.” (Médico preceptor P)

“Não coloco misoprostol interno e deixo que alguém da equipe


venha fazer isso, porque... não sei se por religião, da forma
que fui criada, não consigo, eu vou dar assistência se ela eli-
minar o feto, aí vou fazer a curetagem se precisar, mas colocar
o comprimido, realmente é uma coisa que não consigo.”
(Médica preceptora B)

Observamos também que diferentes indicações de abortamento acarretam


diferentes percepções e atitudes, tendo maior aceitação do AL por anencefalia
do que por VS.

“No abuso sexual, não ponho o misoprostol, mas na anence-


falia ponho, se precisar, coloco.” (Médica preceptora K)

“Costumo fazer mais quando é malformação, abortamento legal


por malformação do feto do que abuso sexual puro e simples
entre aspas vamos dizer assim.” (Médica residente D)

Diferentes posturas frente distintas causas de aborto foram demonstradas


previamente.

“Se o neném tiver tudo certinho, tudo bonito, maravilhoso,


por causa de um estupro, eu não...não! Se o neném tiver uma
malformação, incapacidade com a vida, ‘tá’ previsto em lei, eu
penso em ajudar a paciente sim. [...] Uma, eu tenho que estar
muito convencido da situação, a outra, eu vendo que a paciente
tem uma lesão, o neném tem uma lesão irreversível, é uma coisa
que vai sofrer, [...] é incompatível com a vida, aí tenho como
ajudar a paciente, entendeu?” (Médico preceptor P)

204
Violência sexual, percepção e atitudes de médicos de maternidade

Ficou evidente que um considerável percentual dos entrevistados desco-


nhecia recomendações legais e as normas técnicas do MS sobre AL. Atrelado
ao desconhecimento, as falas denotam juízo de valor.

“Acho que não tem hoje um modelo bom, acho que o modelo que
‘tá’ aí é excessivo, ‘tá’ sem regulação nenhuma, é preciso pensar
algum mecanismo de regulação pra isso, acho que, quando
a mulher se declara vítima, ela muitas vezes não é, e aí o
profissional, ele tem que lidar com esse caso, como é que funciona
isso?” (Médico preceptor O)

“Os casos que a gente recebe aqui não é a gente que avalia se a
paciente foi estuprada [...] Como é que ‘tá’ sendo esse critério de
seleção?” (Médico residente G)

“Foi oferecido, [treinamento] foi oferecido justamente por causa


desse escopo aí do aborto ser liberado em todas as situações.”
(Médico preceptor O)

Entre 2010 e 2018, o HUCAM realizou 67,7% das solicitações de AL. As


normas técnicas do Ministério da Saúde (2018) orientam sobre a possibilidade de
assistência pré-natal e encaminhamento para adoção, porém algumas falas mostram
insegurança frente à assistência (BRASIL, 2012). Além de desconhecer os proce-
dimentos indicados, os profissionais denotam desconfiança nos relatos das vítimas.

“Eu não sei qual é a história, o que aconteceu. Então, às vezes, me


sinto como se eu estivesse assim... provocando um aborto de uma
paciente sem necessidade, assim como se ela não tivesse progra-
mado aquela gravidez e quer interromper e aí eu ‘tô’ provocando
um mal ‘pra’ essa criança entendeu?” (Médica residente D)

“[...] Mas eu acho que, muitas das vezes, a gente pega paciente
que tem uma história um pouco dúbia, um pouco confusa, que

205
Tecendo redes e transpondo desafios

realmente às vezes a gente fica assim: ‘até que ponto isso é uma
aborto previsto por lei’, entendeu?” (Médica residente H)

Diversos estudos discorrem sobre preconceito e desconfiança nas informações


trazidas pelas mulheres, levando à postura inadequada, julgamento dos profissionais
de saúde e manutenção do estigma social do aborto. Mulheres que apresentam lesões
decorrentes da VS recebem melhor acolhimento nos serviços, pois assemelham-se
ao estereótipo de “vítima ideal”, havendo menor questionamento da história e
maior oportunidade de receber atenção qualificada (FAÚNDES, 2017).

“[...] não ‘tá’ claro quem é vítima de violência sexual e quem


vem fazer aborto espontâneo aqui no hospital, quem vem fazer
aborto porque quer [...] Hoje não tem crivo nenhum, a pessoa
que se declara vítima de violência, ela pode ser e pode não ser
[...]” (Médico preceptor O)

“[...] deixar também solto como hoje está, né?, normativas aí do


Ministério da Justiça que a mulher se autodeclare vítima de vio-
lência sexual e isso não precise de comprovação nenhuma, também
não me parece que é razoável, é... hoje o que sinto é que o Hospital
das Clinicas virou uma clínica de aborto, é fácil ter acesso, e esse
acesso contempla mulheres que foram vítimas de violência sexual
e outras que não foram [...] Acho que, quando a mulher declara,
ela pode estar mentindo e acho que o profissional que discorda desse
tipo de procedimento, ele fica exposto.” (Médico preceptor E)

“Sei que não cabe à gente ficar investigando, né?, mas, às


vezes, a gente fica em dúvida se aquilo realmente foi uma
violência ou se aquilo foi consentido, entendeu? Tem pacientes
aqui que internam que a gente tem dúvida, isso ocorre assim
com uma certa frequência [...]. Então, assim, às vezes, fico
em dúvida, né?, de como foi isso aí, se realmente foi uma
violência.” (Médica preceptora B)

206
Violência sexual, percepção e atitudes de médicos de maternidade

Outras falas trazem uma postura um pouco mais profissional, visto que os
procedimentos dos trabalhadores da saúde não devem ser confundidos com os
reservados à justiça (FRANÇA, 2005).

“[...] é nossa responsabilidade tentar entender algo do con-


texto em que aconteceu, mas sem nenhum tipo de julga-
mento quanto aos fatos ocorridos ou quanto à veracidade
do que venha a ser relatado.” (Médica preceptora M)

Discussão

A OMS (2012) reconhece múltiplos fatores de risco para um homem co-


meter VS, problema cujo enfrentamento requer cooperação entre setores como
de saúde, educação e justiça para melhorar condições de vida das mulheres.
O lugar da mulher na sociedade é relevante para pensar a forma como a
vítima lida com a violência. Não se pode observar cruamente o tempo em
que as mulheres sofrem violências crônicas nem a demora em denunciar ou
procurar serviços de saúde, sem considerar que estas vivem em uma cultura
patriarcal, judaico-cristã, que historicamente tende a culpá-las, especialmente
quando se trata de questões sexuais. Responsabiliza-se a mulher que sofre
VS como provocadora/culpada, em vista de algum comportamento ou ati-
tude considerados impróprios. Nesse sentido, todos esses julgamentos são
internalizados pelas mulheres ao longo do tempo, fazendo com que, muitas
vezes, o próprio processo de perceber que está sofrendo violência seja uma luta
pessoal (VASCONCELOS et al., 2020; SOMMACAL; TAGLIARI, 2017).
É comum a ocorrência do transtorno de estresse pós-traumático, onde pa-
cientes desenvolvem, entre outros sintomas, revivescência traumática e evita-
ção de estímulos que evoquem lembranças do evento gerador, duas experiên-
cias essencialmente dolorosas (FRANÇA, 2005). Nesse sentido, a gravidez
em decorrência do estupro é considerada uma segunda violência, intolerável
para muitas mulheres (FRANÇA, 2005), e pode constituir-se como estímulo
evocador do trauma sofrido, aumentando o risco de resultantes como suicídio
(CHAVKIN; SWERDLOW; FIFIELD, 2017). Faz-se necessário avaliar

207
Tecendo redes e transpondo desafios

como a perspectiva da mulher que leva a gravidez a termo como heroína pode
também operar como violência, se considerarmos o traumatismo psíquico em
que se encontram essas mulheres.
O trauma da VS altera também a autopercepção, traz culpa, desejo de in-
visibilidade, vergonha e negligência com o próprio corpo (ADESSE, 2016).
A profunda desesperança e autodepreciação que podem acometer essas mu-
lheres dificultam a busca por ajuda em tempo hábil para profilaxia. A socie-
dade e as instituições, estruturadas pela cultura do estupro, buscam encontrar
condutas consideradas desviantes na sexualidade das mulheres no intuito de
culpá-las (ADESSE, 2016).
Considerando o trauma e a discriminação que a vítima sofre por parte dos apa-
relhos ideológicos repressivos, denunciar torna-se um ato desafiador e, por vezes,
multiplicador da violência, isolando a vítima no silêncio que aparentemente dará
fim àquela dor (ADESSE, 2016). Além disso, fatores como vulnerabilidade social,
medo do descrédito, sentimento de humilhação e temor do exame pericial podem
influenciar na forma e tempo da busca por ajuda (CHAVKIN; SWERDLOW;
FIFIELD, 2017). Ademais, o baixo conhecimento sobre serviços de atendimento
às vítimas de VS e direito ao AL é uma realidade (BENUTE, 2012).
Estudos com profissionais de saúde em serviços de AL evidenciaram desco-
nhecimento elevado sobre dispensa de documentos (86% a 92% dos entrevistados)
(BENUTE, 2012; ROCHA et al., 2015). De acordo com a legislação brasileira,
não existe obrigação em noticiar o fato à polícia, fazer o boletim de ocorrência
policial ou passar pelo exame de corpo de delito e conjunção carnal, ainda assim,
a mulher deve ser orientada a tomar providências policiais e judiciais, mas, caso
não o faça, não lhe pode ser negado o direito ao AL (ANDRADE, 2017).
Pelo ordenamento jurídico brasileiro, a palavra da mulher que busca
o serviço de saúde afirmando ter sofrido VS deve ter credibilidade, ética e
legalmente, deve ser recebida com presunção de veracidade (DELZIOVO,
2018). Mesmo sendo induzido ao erro, caso realize abortamento acreditando
no relato, o médico não responderá criminalmente, conforme artigo 20 do
Código Penal: “É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas
circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legíti-
ma.” (BRASIL, 2009).

208
Violência sexual, percepção e atitudes de médicos de maternidade

Segundo Código de Ética Médica (2010), evoca-se objeção de consciência para


assegurar autonomia no exercício da medicina, exceto em situações de ausência de
outro médico, em casos de urgência e emergência ou quando a recusa possa trazer
danos à saúde do paciente. Porém, se o médico atua como operador do acesso a
um direito, não pode simplesmente se negar a realizar o procedimento, devendo
garantir que o procedimento seja realizado por outro profissional (DELZIOVO,
2018). Independentemente das complexas questões conceituais, a condição
da aceitação ou não de um profissional a respeito de um procedimento jamais
poderá figurar como obstáculo ao acesso a um direito. Portanto, de acordo com o
Ministério da Saúde (2005), faz-se necessária a organização da equipe de modo
que a assistência garantida por lei à mulher em situação de VS seja cumprida.
Uma estratégia é selecionar membros para a equipe considerando a realização de
abortamentos como parte do trabalho (CHAVKIN; SWERDLOW; FIFIELD,
2017). Ademais, o Ministério da Saúde (2005) ainda aporta que a objeção de
consciência é invocável apenas pelo médico, não pela instituição, portanto, é dever
do Estado e dos gestores de saúde manter profissionais que não manifestem obje-
ção de consciência para efetuar o AL nos hospitais públicos.
Crimes sexuais são, em geral, de difícil apuração e punição, costumam ser
cometidos às escondidas, nem sempre há evidências, lesões físicas aparentes
ou testemunhas (FRANÇA, 2005). A atitude do profissional, ao reforçar a
culpabilização, reforça o sofrimento silencioso ao qual estão submetidas, geral-
mente, essas mulheres. Tais valorações atravessam perigosamente a percepção
dos profissionais a respeito das mulheres que chegam aos serviços buscando
atendimento e podem ocasionar violências de ordem institucional.
Observou-se que muitos desconhecem trâmites preconizados por lei e normas
técnicas do MS para realização do AL e agregam juízo de valor ao desconheci-
mento, além de apresentarem objeção de consciência especialmente para iniciar o
AL. Conhecer a percepção e as atitudes dos médicos que prestam essa assistência
é fundamental para qualificar os serviços e garantir direitos reprodutivos.
Remetendo-nos às instâncias garantidoras de direitos (Declaração Universal
dos Direitos Humanos, Organização das Nações Unidas, normas internacio-
nais, Constituição Federal e leis brasileiras), reforçamos que: (a) os direitos
das mulheres e das meninas são partes inalienáveis, integrais e indivisíveis dos

209
Tecendo redes e transpondo desafios

direitos humanos universais; (b) que a saúde sexual e reprodutiva envolve o di-
reito a se reproduzir ou não; (c) que o direito à saúde deve ser garantido em
todas as situações, inclusive naquelas relativas ao AL; (d) e que o Brasil pode ser
responsabilizado internacionalmente em caso de violação ou negligência desses
direitos (FRANÇA, 2005). O acesso ao AL é um direito humano sexual e re-
produtivo e de cidadania e é dever do estado brasileiro garanti-lo.

Conclusão

Quanto à oferta de assistência médica inicial e/ou emergencial (profilaxia


de IST e gravidez) e ao abortamento já iniciado, os entrevistados não de-
monstraram conflitos de ordem moral-afetiva. No entanto, muitos apresen-
tam objeção de consciência para realização do AL, especialmente para iniciar
o processo. Alguns a evocam apenas em casos de VS, e não em malformação
fetal. Muitos desconhecem trâmites preconizados por lei e normas técnicas
do MS para realização do AL e agregam juízo de valor ao desconhecimento.
Os resultados mostram o quanto ainda precisamos avançar nos debates e nas
decisões políticas sobre o aborto. Mesmo nos casos previstos em lei, estão presen-
tes obstáculos construídos pela cultura patriarcal, judaico-cristã, classicista e racis-
ta. Fica evidente que a lei não pode ser executada corretamente sem que haja uma
verdadeira reforma na consciência social, para tanto o aborto, a violência sexual, a
dominação de gênero e tantos outros assuntos precisam estar constantemente em
discussão e desconstrução nas mais variadas esferas da sociedade.

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212
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213
A f i n al , q u em d e c id e
p el o ab o rt o le g a l?

Simone Marçal Brasil dos Passos 65


Iara Boeira dos Reis 66

Introdução

A demanda pela realização do aborto legal tem aumentado gradativamente


desde 2019 no conjunto das maternidades do município do Rio de Janeiro.
Embora previsto no Código Penal de 1940, conforme o Artigo 128, inciso
II, até recentemente o procedimento ocorria em apenas uma maternidade
municipal. Somente a partir de 2019, após reuniões sistemáticas do Grupo
de Trabalho (GT) de Aborto, coordenadas pela Subsecretaria de Urgências
e Emergências (SUBHUE), e com representantes de algumas maternidades
da Secretaria Municipal de Saúde (SMS-RJ), o atendimento ao aborto legal
foi implementado nas demais maternidades do Município do Rio de Janeiro.
Embora, com muitas dificuldades e desafios, foi, sem dúvida, um avanço sem
precedentes, fruto dos principais esforços da militância feminista.

65 Assistente Social – Hospital Maternidade Carmela Dutra – Secretaria Municipal de


Saúde (SMS-RJ). Mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro (PUC-RJ).

66 Graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).


Estágio Supervisionado no Hospital Maternidade Carmela Dutra da Secretaria Municipal
de Saúde (SMS-RJ).
Afinal, quem decide pelo aborto legal?

O aborto previsto em lei traz consigo questões internas vivenciadas pelos


profissionais que se veem no dever de realizá-lo. A prática no cuidado ao abor-
tamento – precoce, tardio, espontâneo, induzido, de ameaça, incompleto, em
curso – é vivenciada como parte do cuidado em saúde da mulher e comum na
vivência dos profissionais das maternidades. Mas, ao se deparar com a solici-
tação de interrupção de gravidez após o estupro, visto como direito da mulher
vítima de violência sexual, passa a ser um desafio para essas equipes, principal-
mente no tocante a aspectos éticos e religiosos. Observa-se que o direito da
mulher vítima de violência sexual fica submetido às questões pessoais e às de
julgamento dos profissionais.
O aborto legal passa pelo viés da objeção de consciência justamente por
revelar as concepções pessoais dos profissionais e da dificuldade em lidar com
o tema. Rocha et al. observam que:

[...] o suposto sofrimento da mulher que aborta e do pro-


fissional que o executa, cabe destacar que todos aqueles
envolvidos no abortamento, mesmo legal, parecem estar
vulneráveis a diferentes processos de estigmatização e dis-
criminação. [...] De fato, Soares (apud Rocha et al) verificou
em seu estudo que a dificuldade de identificar profissionais
de saúde dispostos a atuar em serviços de abortamento legal
é um dos principais obstáculos para a instauração desse tipo
de assistência na rede hospitalar. Segundo a autora, tais difi-
culdades devem-se a diversos fatores, entre eles: o desconhe-
cimento, por parte dos profissionais de saúde, da legislação
vigente sobre aborto legal; a forte influência dos valores
ético-religiosos sobre esses profissionais, que, na maioria
das vezes, não conseguem desvincular a prática profissional
de suas concepções e valores pessoais; o repúdio de serem
tachados de “aborteiros”. (ROCHA et al., 2015).

Além do que se enfrenta, quanto à aceitação do aborto legal como assunto


atinente à ética e à religião, a formação dos serviços de saúde também requer

215
Tecendo redes e transpondo desafios

organização e preparo. Seguir os protocolos determinados pela Portaria no


2.561, de 1o de setembro de 2005, demandou padronização dos procedimen-
tos, formação de uma equipe multidisciplinar e protocolo de atendimento.
Não se trata mais de obstar o procedimento por concepções pessoais. O tema
alcançou a dimensão do direito da mulher vítima de violência em um momen-
to histórico em que as mulheres buscam por seus direitos sexuais e reproduti-
vos e qualidade nos atendimentos. Se parte da população ainda permanece à
margem da obscuridade, outra parte avançou nos debates, incentivando outras
mulheres a conhecerem seus direitos e a lutarem por eles.
Diante do cenário de direitos conquistados, profissionais da saúde sexual
e reprodutiva tiveram que lidar com as reivindicações feministas que exigiam
o estabelecimento de serviços de assistência ao abortamento legal, direito
adquirido há décadas. Apesar da Norma Técnica, na Atenção Humanizada
ao Abortamento (BRASIL, 2011), apresentar normas para o atendimento,
somente a partir de 2019 foi que as maternidades do município passaram a
executar o serviço de aborto legal. Tiveram que adequar o serviço para atender
às reivindicações da política para as mulheres. Recente no funcionamento dos
serviços nesse novo paradigma, os atendimentos ainda são permeados de pre-
conceitos, receios e objeções.
Além dessas, outro tipo de dificuldade ocorre durante os atendimentos,
a saber: critérios utilizados pela equipe multidisciplinar diante da decisão de
realizar ou não o procedimento. As demandas que chegam às maternidades
não devem ser obstaculizadas pelo despreparo das equipes de saúde, muito
menos por preconceitos apoiados em concepções pessoais. Reconhece-se a
amplitude da complexidade desses atendimentos, pois neles se apoiam pilares
importantes. Por um lado, o “relato circunstanciado” da mulher vem acompa-
nhado por sua história de vida e por questões de gênero. Por outro, o enten-
dimento de profissionais (assistentes sociais, psicólogos[as] e enfermeiros[as])
sobre o fato relatado que se pautam em questões bio-psico-sociais envolvidas;
e, ainda, o conhecimento técnico do médico(a) sobre a relação entre a data da
violência e a idade gestacional. Esses três pilares tornam as avaliações dema-
siadamente densas, o que se deflagra na pergunta: a quem recai a decisão sobre
o abortamento legal? Questões relacionadas ao direito da mulher decidir sobre

216
Afinal, quem decide pelo aborto legal?

seu corpo, histórias pessoais permeadas por violações, entraves legais somados
à objeção de consciência, tudo isso se transforma em um tanto de muitas
incertezas para a tomada de decisão.
Inicialmente, o relato da violência deveria ser o parâmetro para se iniciar
o procedimento, contudo, contradições aparentes dificultam a realização do
aborto legal. Para ser aprovado, é fundamental que o relato da mulher apresen-
te coerência entre a violência sexual e a idade gestacional, não podendo haver
possibilidade de a gestação ter ocorrido por outra circunstância.
Buscamos conhecer a opinião de profissionais de saúde, que, de alguma
forma, estão vinculados ao tema do aborto legal. Para isso, realizamos um
pequeno questionário pela ferramenta “Google Forms”, visando mensurar a
realidade vivenciada pelos profissionais nos atendimentos e o nível de com-
preensão detido em seus espaços de trabalho. Na busca por conhecimento,
as ciências se utilizam de métodos padronizados para coletar, tratar e inter-
pretar dados, sendo o questionário um desses recursos de pesquisa. Segundo
Minayo (2012 apud TOASSY et al., 2021), “[...] o modo de fazer depende
de perguntas, dos instrumentos e das estratégias utilizadas na coleta de dados
[...]” e evoca criatividade no realizar. Assim, buscamos identificar como as
equipes interagiam e se comunicavam durante a análise das solicitações das
mulheres por meio de um questionário eletrônico, em que não era necessária a
identificação do profissional. O sucinto estudo revelou que, de um lado, existe
o entendimento de alguns profissionais de que apenas o parecer técnico do
médico(a) valida a decisão. E, por outro, profissionais revelam que essa decisão
cabe única e exclusivamente à mulher. Mas quem, de fato, após cuidadosa
avaliação, decide sobre o aborto legal e quais os parâmetros utilizados para a
conclusão do parecer técnico?
Conforme citamos acima, o Artigo 128, inciso II, do Código Penal garante
a legalidade do aborto quando decorrido de estupro, um crime previsto no
Artigo 213 do mesmo Código. A gravidez, como produto de um estupro,
pode ser interrompida sem que os profissionais envolvidos sejam culpabiliza-
dos pelo ato. Recentemente, no seu escopo, a Portaria 2561, de 23 de setem-
bro de 2020, reafirmou à equipe multidisciplinar o direito à proteção jurídica.
A partir da documentação apresentada, a mulher assume total responsabilidade

217
Tecendo redes e transpondo desafios

para a realização do aborto legal – que compreende o Termo de Relato


Circunstanciado, o Termo de Responsabilidade e o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido –, e a equipe multidisciplinar fica isenta de responder por
algum crime se não houver veracidade dos fatos. Afastada a responsabilidade
pelo ato, somente restam questões de consciência, éticas e religiosas que, por-
ventura, possam objetar a prática do aborto legal. Contudo, vale lembrar que
a objeção de consciência é um direito do profissional, mas não da unidade de
saúde que presta o atendimento. Havendo objeção de consciência dos profis-
sionais envolvidos, a maternidade deve apresentar outro profissional disposto
a realizar o aborto. Jamais negar o procedimento após criteriosa análise da
equipe multidisciplinar.
O “parecer técnico” é um documento assinado pelo(a) médico(a). Esse do-
cumento compõe parte da documentação necessária, nele só há campo para a
assinatura do(a) médico(a) que aprova após detalhada anamnese, exame físico
geral, exame ginecológico, avaliação do laudo ultrassonográfico e dos demais
exames complementares que porventura houver (Portaria no 2561/2020, Art.
3o, inciso 2o). A referida Portaria inclui outros profissionais como participantes
da avaliação da história relatada pela mulher, dos dados concretos do estupro
e da gravidez. Estabelece quais profissionais irão compor a equipe: obstetra,
anestesista, enfermeiro(a), assistente social e/ou psicólogo(a). Quanto ao anes-
tesista, há um questionamento da citação desse profissional na Portaria, pois
sua presença só é notada após a aprovação e durante o processo de esvazia-
mento uterino, quando todos os processos de avaliação já foram realizados.
Assim, para compor a equipe multidisciplinar, não há necessidade da presença
do anestesista. Sua presença é imprescindível para o alívio da dor.
Se aprovado, a equipe multidisciplinar assina o Termo de Aprovação de
Procedimento de Interrupção da Gravidez, bem como os campos citados nos
documentos em que se exige a assinatura de membros da equipe, normalmente
enfermagem, serviço social e psicologia. Cabe ressaltar que, ao assinar tais do-
cumentos, não são imputadas as responsabilidades pelos fatos ao profissional.
Mesmo diante da militância das organizações de direitos humanos (por
exemplo, Centro de Ação dos Direitos Humanos e Organizações Não
Governamentais), que há décadas tentam consolidar que o aborto é uma decisão

218
Afinal, quem decide pelo aborto legal?

exclusiva da mulher pelo direito de decidir, as experiências vividas no cotidiano


das unidades de saúde parecem não andar juntas com esses ideais, enfraquecen-
do sensivelmente a necessidade de a mulher abortar, por questões pessoais ou até
mesmo de violência sexual. Enfim, qual é o sentido do relato da mulher, quando
a Portaria no 2561, atualizada em 2020, apresenta a necessidade de uma ava-
liação atenta da equipe multidisciplinar para a efetivação desse procedimento?
Para além das discussões, o fato é que quem “bate o martelo” é o(a) obstetra. E,
então, qual é o peso da avaliação social e psicológica nesses termos?
Conforme mencionado inicialmente, profissionais como assistente social,
enfermeiro(a), obstetra e psicólogo(a), de forma anônima, contribuíram
para a construção desta análise e revelaram dados de suas percepções indivi-
duais quanto ao atendimento do aborto legal em suas práticas profissionais.
Considera-se que 50% desses profissionais têm entre 16 a 20 anos de serviço
público e há no mínimo três anos participam da equipe multiprofissional.
Uma pergunta se destacou no questionário: qual “parecer tem maior peso”
na decisão? De oito respostas, seis responderam que seria do médico(a), sig-
nificando que a maioria dos entrevistados consideram ser o(a) obstetra o(a)
profissional responsável pela efetivação do direito da mulher abortar em casos
de violência sexual. Apenas uma pessoa considerou o relato da mulher; e
outra, o parecer do(a) psicólogo(a) teria o poder de decisão. Interessante uma
pessoa, apesar de considerar ser o(a) médico(a) o principal viabilizador do
direito, apontar que tal profissional age de forma a negar esse direito, fato que
expressa a realidade de alguns serviços. 58% dos entrevistados responderam
que o relato da mulher deve ser considerado como o mais importante ponto de
avaliação. Outros marcadores para a aprovação vêm na sequência: 41,7% (data
da violência), 25% (idade gestacional), 16,7% (data da última menstruação
[DUM]) e 16,7% (exames laboratoriais). O boletim de ocorrência policial e
exame físico não foram considerados parâmetros para a avaliação.
Embora a equipe seja composta por outros profissionais, das seis pessoas
que responderam à pergunta sobre a influência de seus pareceres, três respon-
deram que o parecer e os registros de outros profissionais contribuem para
a tomada de decisão do(a) obstetra; a outra metade avalia que a opinião do
médico(a) é que tem total importância. Isso se dá pelo fato de o(a) obstetra ser

219
Tecendo redes e transpondo desafios

o responsável pelo procedimento. Lembrando que nem sempre o(a) médico(a)


que assina o “parecer técnico” é quem realiza o procedimento, acarretando
atraso e adiamentos do procedimento. Os parâmetros utilizados pelo(a) obs-
tetra são mais objetivos: comparação das datas da DUM, do estupro e da idade
gestacional. Para os profissionais, o desejo e o relato da mulher deveriam ser
decisórios para a realização do aborto legal. Esse argumento pondera a luta
das mulheres pelo direito de decidir e fortalece o discurso da legalização do
aborto no Brasil. Contudo, devido às amarras da legislação brasileira e ao mo-
vimento conservador do País que trabalha para o retardamento ou anulação
desse direito, quem, de fato, decide pelo abortamento legal é o(a) médico(a).
Evidentemente, pôde-se observar o conservadorismo como cenário explí-
cito nas justificativas dos profissionais da análise. Apesar de alguns membros
da comissão de aborto legal acreditarem que deveria contar somente a palavra
da mulher, a prática conta outra história. No que tange ser um direito conce-
dido ao aborto para a mulher violentada sexualmente desde a década de 1940,
a atitude de desconfiança se torna corriqueira no cotidiano dos profissionais.
Por se tratar de um crime, fazer aborto sem justificativa legal, abre-se a porta
da “falsa denúncia” e, com isso, toda a história dela pode ser desqualificada
por pequenos e, às vezes, nenhum ato em falso. O problema desse fato é o
enfraquecimento de um sistema que deveria proteger as vítimas de violência
sexual. Decorrente disso, são postas muitas barreiras para as mulheres vítimas,
pois, além da culpabilização consequente do machismo patriarcal intrincado
na sociedade brasileira, os profissionais fazem parte de um silenciamento or-
gânico a dispor da análise do comportamento que diversas vezes é deslocada
para a vítima, não para o violador.

Conclusões

À guisa de conclusão, o referido questionário demonstrou o empenho dos


profissionais para que o aborto fosse decidido pela mulher. Consideramos
que tal decisão atravessa também conflitos internos da mulher que aborta.
Ao ofertar a adoção legal como alternativa, as mulheres relatam que jamais
pensariam em ter um filho e não poder criá-lo. Jamais entregariam um filho,

220
Afinal, quem decide pelo aborto legal?

considerando tal atitude um fracasso de suas decisões. Por outro lado, o debate
aponta para discussões mais maduras sobre o que é entregar um filho para
adoção. Pensamos que nem abortar nem doar o filho sejam decisões fáceis
para a mulher, muito mais quando se trata de um filho gerado sob a força da
violência ou de uma gravidez não desejada. A mulher se encontra em um lugar
de muita solidão, comparecendo quase sempre sozinha ou acompanhada de
apenas uma amiga. Pouco ou nenhum familiar tem conhecimento do fato, o
que se conclui que a decisão é difícil para ser tomada e cercada de insegurança.
A composição da equipe multidisciplinar funciona para subsidiar o(a) mé-
dico(a) na tomada de decisão, muito embora não é ele(a) quem inicia o proce-
dimento, mas um(a) outro(a) colega. A equipe multidisciplinar efetua análises
sobre o relato da mulher, atua como amparo das decisões, ponto de apoio e
acolhimento da mulher que aborta, levando em consideração o relato pessoal.
A equipe, de modo geral, busca compreender os impactos da violência, da
internação e do aborto na vida da mulher para proceder com os encaminha-
mentos. Contudo, sem a perspectiva de invalidar o conteúdo do entendimen-
to de outros membros da equipe, o questionário revelou que os pareceres da
psicologia, do serviço social e da enfermagem não consubstanciam valor para
a tomada da decisão. De fato, o abortamento legal apenas será realizado se a
idade gestacional estiver relacionada com a violência relatada.

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Ações Pragmáticas Estratégicas. Atenção Humanizada ao abortamento: norma
técnica. 2. ed. Brasília, 2011.

221
Tecendo redes e transpondo desafios

BRASIL. Portaria MS/GM Nº 1.508, de 1º de setembro de 2005. Dispõe sobre o


Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos
previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

BRASIL. Portaria MS/GM Nº 2561, de 23 de setembro de 2020. Dispõe sobre o


Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos
previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

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TOASSI, Romana Fernanda Ceriotti; PETRY, Paulo Cauhy. Metodologia


Científica Aplicada à Área da Saúde. Série Ensino, Aprendizagem e Tecnologias.
2. ed. Porto Alegre Editora da UFRGS, SEAD UFRGS, 2021.

222
Abor to l eg al em casos d e e s tu p r o :
e ntr e o s d i rei t o s e o s d ile m a s

Nirelle Rodrigues Marinho 67

Introdução

No Brasil, o aborto é tipificado como crime contra a vida pelo Código Penal
de 1940, porém existem três casos em que o aborto é permitido por lei: diante
de riscos à vida da gestante, em situações de estupro (os dois previstos no
Código Penal de 1940) e em gravidez de feto anencéfalo ou anomalia fetal que
comprometa a vida extrauterina do feto, autorizado em 2012, pelo Supremo
Tribunal Federal por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental no 147. Essas são importantes conquistas dos movimentos fe-
ministas e das organizações protagonizadas por mulheres.
Diante disso, este estudo foi elaborado a partir da inserção enquanto assis-
tente social na maternidade de um hospital federal no Município do Rio de
Janeiro, o qual atende casos de interrupção de gravidez de feto anencéfalo ou
anomalia fetal que compromete a vida extrauterina do feto e de gravidez em
situações de estupro, dois casos dos três permitidos por lei.
No cotidiano de trabalho, depara-se com alguns entraves na viabilização
do direito à interrupção de gravidez em decorrência de estupro. Nesta mesma

67 Assistente Social no Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz). Mestranda em Política


Social do Programa de Estudos Pós-Graduados em Política Social da Universidade
Federal Fluminense (UFF).
Tecendo redes e transpondo desafios

perspectiva, Madeira e Diniz (2016) ressaltam que há muitos impedimentos para


que a assistência às mulheres que buscam o aborto legal no Brasil seja adequada.
Neste sentido, este estudo objetiva discorrer sobre o contexto histórico do
aborto legal por estupro no cenário brasileiro e abordar a dinâmica do percur-
so enfrentado pelas mulheres grávidas em decorrência de estupro no acesso ao
direito ao aborto legal, a partir do olhar de uma assistente social inserida na
maternidade de um hospital federal no Município do Rio de Janeiro, à luz de
estudos bibliográficos sobre a temática.

A violência contra mulher: tipificando as


manifestações da violência sexual

A violência é uma forma histórica de relacionamento das sociedades, variando


em expressões e explicações (SANCHEZ; MINAYO, 2006). Desta forma, trata-se
de uma ocorrência histórica que perpassa diferentes cenários mundiais, como
a aculturação dos indígenas, a escravização dos negros, as ditaduras políticas, o
comportamento patriarcal e machista que perpetua processos de discriminação, o
racismo, a opressão, a homofobia, a misoginia, a exploração do trabalho e entre outros.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), “[...] a violência é
o uso intencional da força física ou do poder real ou em ameaça, contra si
próprio ou contra outra pessoa, grupo ou comunidade, resultando ou que
tenha a possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência
de desenvolvimento ou privação.” (OMS, 2010, p. 8).
Em relação à violência contra a mulher, de acordo com a Organização Pan-
Americana de Saúde (OPAS) e a Organização Mundial de Saúde (OMS),
ela diz respeito a “qualquer ato de violência de gênero que resulte ou possa
resultar em danos ou sofrimentos físicos, sexuais ou mentais para as mulheres,
inclusive ameaças de tais atos, coação ou privação arbitrária de liberdade, seja
em vida pública ou privada”. Essa definição também está presente na Lei no
11.340, de 07 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que
cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra
a mulher, atualmente a principal ferramenta legal de enfrentamento à violên-
cia de gênero no Brasil.

224
Aborto legal em casos de estupro

Entre os tipos de violência presentes na Lei Maria da Pena, estão: as vio-


lências físicas, morais, psicológicas, patrimoniais e sexuais. De acordo com
Souto et al. (2017), as mulheres estão mais suscetíveis a vivenciarem situações
de violência sexual devido às desigualdades nas relações de gênero e aos va-
lores patriarcais da sociedade; por isso, esse tipo de violência é considerado
uma violência de gênero, no qual meninas e mulheres “[...] são vítimas de atos
nocivos à sua integralidade física e mental, apenas pelo fato de pertencerem ao
sexo feminino” (GUIMARÃES, 2006).
Para diversos autores, o estupro de mulheres é uma das faces mais perversas
da violência de gênero e, nos casos em que uma das consequências é a gravidez
da vítima, seus transtornos podem ser agravados (MADEIRA; DINIZ, 2016;
GIUGLIANI et al. 2021).
O estupro, conforme preconizado pela Organização Pan-Americana de
Saúde (OPAS) e pela Organização Mundial de Saúde (OMS), é compreen-
dido como a penetração mediante coerção física ou de outra índole, da vulva
ou ânus com um pênis, outra parte do corpo ou objeto. A partir da Lei no
12.015, de 7 de agosto de 2009, o estupro passa a ter uma nova descrição no
Brasil, designado como o ato de: “Constranger alguém, mediante violência ou
grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se
pratique outro ato libidinoso: pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos”.
Vale ressaltar, que as mulheres em situação de estupro, sobretudo quando
se resulta em gravidez, possuem alguns direitos garantidos por lei, assim como
presente no próximo item.

Uma retrospectiva histórica do aborto legal em


caso estupro no Brasil: como fica a garantia de
direito dessas mulheres?
O Brasil é signatário de acordos e convenções internacionais, como
a Conferência de Cairo (1994) e a de Beijing (1995), que enfatizam e são
de grande importância no que diz respeito à saúde sexual e aos direitos
reprodutivos. Todavia, ainda que tenham sido angariadas importantes con-
quistas, alguns aspectos da saúde sexual e reprodutiva, tais como a violência

225
Tecendo redes e transpondo desafios

de gênero e o aborto, as desigualdades produzidas pelas categorias de raça e


classe, ainda são negligenciados (GIUGLIANI et al., 2021).
No contexto brasileiro, são expressivas as conquistas resultantes dos mo-
vimentos feministas. Dentre os marcos para os direitos das mulheres, estão a
promulgação da Constituição Federal de 1988 e a criação do Sistema Único
de Saúde (SUS) em 1990. Este possibilitou que fosse fornecido às mulheres
atenção integral à saúde, inclusive no que diz respeito às demandas de violên-
cia, de planejamento reprodutivo, de saúde sexual e de casos de abortamento.
Quanto ao abortamento, do ponto de vista da área da saúde, ele é a “[...]
interrupção da gravidez até a 20a ou 22a semanas de gestação, e com produto
da concepção pesando menos de 500g. Aborto é o produto da concepção eli-
minado pelo abortamento.” (BRASIL, 2012, p. 76).
Sendo assim, em casos de gravidez por situação de estupro, o Código Penal
(Decreto- lei no 2.848, de 07 de dezembro de 1940) prevê a interrupção da
gravidez nos serviços públicos de saúde: “[...] se a gravidez resulta de estupro
e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de
seu representante legal.” (Artigo 128).
No entanto, ainda que permitida a interrupção da gravidez pelo Código Penal,
por muitos anos, as unidades de saúde não foram regulamentadas. Somente em
1989, o primeiro serviço de atendimento às mulheres em situação de violência
sexual foi implantado pela Prefeitura de São Paulo no Hospital Municipal Arthur
Ribeiro de Saboya. Naquele momento, para que ocorresse o acesso ao serviço de
aborto legal, a mulher precisava apresentar o Boletim de Ocorrência (BO) e o
laudo pericial do Instituto Médico Legal (IML) (TALIB; CITELI, 2005).
Em nível nacional, o aborto legal só foi regulamentado em 1999, com
a publicação da norma técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos
Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, que nor-
matizava e estimulava os serviços de saúde para atendê-las. Esta foi reeditada
em 2005 e é considerada um grande avanço. A partir dela, para o aborto ser
realizado, a investigação policial ou judicial não era mais necessária, sendo a
fala da mulher recebida com presunção de veracidade.
Ademais, os serviços de atendimento obrigatório e integral às pessoas
em situação de violência sexual e de interrupção de gravidez devem ser

226
Aborto legal em casos de estupro

oferecidos pelo SUS e, para tanto, os profissionais de saúde devem seguir


as orientações presentes na Portaria no 2.561, de 23 de setembro de 2020,
sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da
Gravidez, que atualiza a Portaria no 1.508, de 1o de setembro de 2005.
Considera-se essa atualização um retrocesso nos direitos das mulheres,
pois traz um novo escopo para o acesso ao direito ao abortamento legal e
seguro, o que pode acarretar maior incidência dessas mulheres nos serviços
de abortamento clandestinos.
Ressalta-se que o aborto clandestino e inseguro emerge como questão de
saúde pública e pode comprometer a saúde da mulher, provocando diversas
implicações biopsicossociais, como a elevada morbimortalidade, além de ser
uma violação dos direitos humanos, principalmente para as mulheres com
baixo grau de escolaridade, pobres e negras (ANJOS et al., 2013).
Em 2013, foi sancionada pela Presidência da República a Lei no 12.845,
que normatiza o atendimento emergencial, integral e multidisciplinar para
vítimas de violência sexual nas unidades do SUS. Segundo ela, os hospitais
devem ofertar atendimento, garantindo profilaxia da gravidez e Infecções
Sexualmente Transmissíveis (ISTs), tratamento aos agravos físicos e psíquicos
decorrentes da violência vivida e fornecimento de suporte social, facilitando o
encaminhamento para rede socioassistencial.
No mesmo ano, foi implementada a Portaria no 528/2013 pelo Ministério
da Saúde a fim de regulamentar os serviços de saúde de referência para o aten-
dimento integral às pessoas em situações de violências e para a interrupção de
gravidez em casos previstos por lei.
Neste contexto, destaca-se que ambos os documentos visam melhorias
aos atendimentos às mulheres em situação de violência sexual. Em relação
à Portaria no 528/2013, até a sua promulgação, eram restritos os hospitais de
referência que realizavam interrupção de gravidez, ainda que estivesse previsto
em lei o direito a esse serviço desde o Código Penal de 1940. Corrobora a
isso o fato de até 2016 somente duas maternidades no Município do Rio
de Janeiro realizarem aborto legal em casos de violência sexual e, somente
após esse ano, o serviço começou a ser executado por outras maternidades do
Município (MUDJALIEB, 2020).

227
Tecendo redes e transpondo desafios

Conforme apresentado, as conquistas em relação ao aborto legal por situa-


ções de estupro ocorreram de forma bem lenta e a partir de muitas lutas advin-
das do movimento feminista. Porém, ainda que a oferta desses serviços tenha
aumentado, percebe-se nos atendimentos que muitas mulheres em situação de
violência sexual que chegavam à maternidade para realizar a interrupção de
gravidez antes percorreram outros serviços socioassistenciais, inúmeras sofre-
ram revitimizações, tendo em vista que verbalizavam a ocorrência da violência
nos diferentes serviços em que percorreram.
Além disso, diversos profissionais que atuam nas diferentes políticas sociais
desconhecem o direito ao aborto legal em casos de violência sexual. Outro
ponto que observa- se é a influência da perspectiva moral de alguns profissio-
nais de saúde nesses atendimentos, o que pode impedir que seja realizado um
tratamento humanizado, que vise à garantia dos direitos das usuárias. E ainda,
conforme exposto por Diniz (2011), existem aqueles que alegam objeção de
consciência, que diz respeito a um dispositivo normativo de códigos profissio-
nais e de políticas públicas, com o intuito de proteger pessoas em situação de
conflito moral, como no caso do médico que declara objeção de consciência
para não atender uma mulher que deseja abortar legalmente.
De acordo com Giugliani et al. (2021), a gravidez decorrente do estupro
caracteriza-se como uma das situações mais danosas para a mulher, causando
grande desorganização social e psíquica. Negligenciar o direito da mulher ao
aborto legal, obrigando-a a manter uma gravidez decorrente de estupro, pode
ser considerado uma segunda violência.
Vale ressaltar que esses apontamentos vão ao encontro de alguns estudos
sobre a temática. Assim como apresentado por Mudjalieb (2020), entre os
obstáculos para acessar a interrupção de gravidez em casos de violência sexual,
estão: a falta de informação dos profissionais sobre a legislação e as políticas
públicas, a solicitação inadequada do Boletim de Ocorrência policial e a di-
ficuldade de identificação de profissionais que se disponibilizem a assistir o
aborto previsto em lei. Giugliani et al. (2021) apontam que o viés moral e
religioso ocasiona um silenciamento social sobre as condições da realização
do aborto no Brasil e, além dessas mulheres muitas vezes não conhecerem
o direito ao aborto legal, muitos agentes públicos da saúde e da segurança

228
Aborto legal em casos de estupro

também desconhecem tal direito, o que torna a situação ainda mais crítica,
tendo em vista que, na maioria das vezes, são os primeiros serviços que aquelas
mulheres procuram ajuda.
De acordo com Farias e Cavalcanti (2012), mesmo que exista um cresci-
mento no número de serviços de aborto legal em nível nacional, ainda é forte
a resistência de profissionais e gestores em sua implementação. Além disso,
grande parte desses serviços está presente apenas em cidades grandes e em
capitais, o que pode dificultar o acesso de mulheres que residem fora dessas
áreas. Esta questão também é observada nos atendimentos realizados nesta
maternidade, tendo em vista que algumas das mulheres atendidas vieram do
interior do Estado do Rio de Janeiro, já que, em suas cidades de origem, esses
procedimentos não são realizados.
Acredita-se que esses obstáculos apresentados são acentuados diante do
atual cenário político, neoconservador e de desmontes de políticas sociais, em
que, de acordo com Behring (2008), a tendência geral é a redução de direitos,
e as políticas sociais são transformadas em ações pontuais e compensatórias.
Sabe-se que a ausência de investimentos para a garantia dos direitos pode
acarretar no aumento da vulnerabilidade dos sujeitos, majoritariamente das
mulheres negras e de classe social mais desfavorecida, que precisam recorrer
às redes de serviços às mulheres em situação de violência e se deparam com
a precarização dessas instituições. O campo das políticas públicas de gênero
também é afetado, sobretudo em casos de abortamento previsto em lei.

Considerações finais

Diante do que foi apresentado, pode-se observar a complexidade que en-


volve a temática, e as inúmeras conquistas que as mulheres tiveram, as quais
não ocorreram sem lutas e resistências. Elas estão presentes até hoje, a despei-
to de muitos ataques conservadores ainda estarem em jogo tentando retroce-
der os direitos conquistados, o que pode dificultar o acesso das mulheres aos
serviços de atendimento à mulher em situação de violência, que muitas vezes
encontram-se sucateados, além de burocratizar cada vez mais o atendimento
à interrupção de gravidez.

229
Tecendo redes e transpondo desafios

Acredita-se na necessidade de os atendimentos a essas mulheres serem in-


terdisciplinares. Também é importante pensar na intersetorialidade, de forma
que seja realizada uma articulação entre as diferentes políticas sociais em que
essas mulheres venham a ser atendidas para que elas não sejam revitimizadas
a cada serviço socioassistencial que percorram; e com atuações interseccio-
nais, tendo em vista que considera-se importante pensar em violência contra
mulher a partir da interseccionalidade, pensando em raça/cor, classe social,
território, entre outros, pois as violências não se manifestam da mesma forma
a todas as mulheres.
Junto a isso, considera-se importante a inserção da temática na grade curri-
cular das universidades das áreas de saúde e dos programas de residências em
saúde, além de ser oferecida educação continuada sobre a temática aos profis-
sionais de saúde inseridos nos hospitais que atendem essas mulheres, de forma
que conheçam o direito previsto em lei e possam vir a ter um olhar mais sen-
sível, oferecendo um acolhimento humanizado, com escuta individualizada.
Portanto, conforme exposto por Rago (1985), a transformação radical da
condição da mulher apenas poderá ocorrer em outra organização da socie-
dade, a emancipação da mulher não se restringe pela reivindicação à esfera
pública, sendo primeiramente uma questão de ordem moral. Dito isso, a luta
deve ser constante pela emancipação política e alicerçada pela ideia da eman-
cipação humana, tendo em vista que esse modo de produção tem como pilares
a exploração, a opressão, o sexismo e a dominação masculina.

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230
Aborto legal em casos de estupro

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setembro de 1990.

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da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos,
nos termos do inciso XLIII do art. 5o da Constituição Federal e revoga a Lei no
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em 7 de agosto de 2009.

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em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS. Diário Oficial da União de
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em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS. Diário Oficial da União de
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Tecendo redes e transpondo desafios

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232
A s pe c to s d e vu l n er a b ilid a d e e m
mulheres vi ven d o c o m H IV /a id s
s ob a p ersp ect i va d e g ê n e r o

Joy Possoni Bejar 68

Introdução

O acontecimento da infecção pelo HIV, mesmo após muito anos de notifi-


cação dos primeiros casos, ainda se mostra como um momento de intenso
sofrimento para quem descobre o diagnóstico. No caso das mulheres, essa
vivência também é atravessada pelas malezas de uma sociedade patriarcal que
estigmatiza a sexualidade feminina, violenta e sobrecarrega as mulheres das
mais diversas formas.
De acordo com o último boletim epidemiológico, lançado pelo Ministério
da Saúde em 2021, entre o período de 2007 a junho de 2021 foram notificados
pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) 115.333 casos
da infecção pelo HIV em mulheres (BRASIL,2021).
Na década de 1980, o surgimento da aids evocou uma série de questões re-
lacionadas à moralidade, sexualidade e políticas públicas em saúde. No início,
o panorama epidemiológico da epidemia no Brasil apontava que a maioria dos
casos se concentrava na população de homens que faziam sexo com homens,
hemofílicos, pessoas que receberam transfusão de sangue e usuários de drogas
injetáveis (BRASIL, 2004).

68 Mestranda em psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).


Tecendo redes e transpondo desafios

O panorama inicial da epidemia sinalizava que, com exceção das profissionais


do sexo, as mulheres não eram consideradas vulneráveis à infecção pelo HIV,
uma vez que a incidência do vírus estava atrelada à ocorrência de comporta-
mentos sexuais considerados promíscuos. Entretanto, isso passou a se modificar
quando começaram a surgir casos de AIDS em mulheres com relacionamentos
sexuais e amorosos estáveis (SOUTO; KUCHEMANN, 2011).
Em meados da década de 1990, o perfil epidemiológico da aids já apresenta-
va uma significativa mudança: a diferença expressiva da notificação da infecção
entre homens e mulheres. Entre 1994 e 1998, observou-se um aumento de cerca
de 10,2% da incidência do vírus na população masculina; enquanto isso, no caso
das mulheres, o aumento foi de mais de 75,3%. Cabe ressaltar que, nesse mesmo
período, também foi observado um crescimento de 113% nos casos de HIV em
heterossexuais, 8,6% em homossexuais e bissexuais, além de uma diminuição de
18% nos casos em usuários de drogas injetáveis (BRASIL, 2000).
Portinari e Wolfgang (2017) apontam que o fato de a infecção ter sido asso-
ciada a alguns nichos específicos da sociedade e sua transmissão se dá pelo conta-
to de fluídos corporais nas relações sexuais, as questões morais sempre se fizeram
presentes nas discussões sobre o HIV. Assim, “[...] se a década de 1960 ficou
marcada pelas fantasias de liberação sexual, a de 1980, graças à condução social
da epidemia, inseriu-se em um contexto de controle absoluto e de uma suposta
higienização dos hábitos sexuais [...]” (p. 45). Diante desse cenário, a primeira
resposta do governo para o combate à epidemia ocorreu com a promoção do
controle das práticas sexuais, aludindo à ideia do exercício responsável e saudável
da sexualidade. Esse tipo de entendimento direcionava para uma estratégia de
prevenção pautada nas questões morais, exaltando a castidade, a monogamia e o
matrimônio como possibilidade de afastar o risco de exposição ao HIV.
Ferraz e Kraiczyk (2010) ressaltam que o enfrentamento à epidemia exige
a análise de questões que estão para além do campo da saúde. Assim, é preciso
considerar mais do que apenas a recomendação da camisinha, mas inserir nas
discussões ações que promovam a construção de condições que viabilizem as
pessoas a terem práticas sexuais seguras. E, para isso, é necessário considerar
as condições de vida da população, inclusive, as desigualdades de gênero a que
estão expostas.

234
Aspectos de vulnerabilidade em mulheres vivendo com HIV/aids

HIV/aids: as vulnerabilidades das mulheres

O fato de a prevenção do vírus HIV estar ligada ao controle dos compor-


tamentos sexuais torna inevitável que essa questão tenha impactos sobre a
reprodução humana e os papéis de gênero. A compreensão da conjuntura da
incidência da AIDS em mulheres é complexa pelo fato de que as mulheres
são vistas como seres que exercem apenas uma função reprodutora, tendo seu
corpo e sua sexualidade desvalorizados quando não têm a finalidade de re-
produzir. A AIDS expôs algo ainda não reconhecido e aceito pela sociedade
conservadora: as mulheres possuem sexualidade ativa, sejam elas profissionais
do sexo ou donas de casa, casadas ou solteiras (PAIVA,1999).
O cenário da epidemia do HIV pode ser analisado em três momentos dis-
tintos. O primeiro, constituído por um contexto mais voltado ao acontecimen-
to da infecção sem si, que se debruçava sobre as formas de transmissão e os
grupos envolvidos nesta. Nesse período, o panorama do HIV aproximava-se do
conceito de “grupo de risco”, apontando, principalmente, para a ocorrência de
casos em homens que fazem sexo com homens de alta escolaridade (BRASIL,
1999). A utilização dessa concepção de grupo de risco propiciou ainda mais a
estigmatização e discriminação em torno do diagnóstico de HIV e dos grupos
populacionais mais atingidos pela infecção à época (SCHAURICH, 2013).
Além disso, o fato desse termo ter potencializado a ideia da incidência
de casos em determinados grupos populacionais gerou a percepção de que
as pessoas que não faziam parte dessas populações não estavam suscetíveis
à infecção do vírus. O curso da epidemia demonstrava que esse conceito de
“grupo de risco”, além de estigmatizante, não era capaz de caracterizar a tota-
lidade do perfil epidemiológico da época e passou-se a considerar a utilização
da nomenclatura de “comportamento de risco” (NASCIMENTO, 2005).
Nessa conjuntura, questionava-se sobre os tipos de comportamentos que favo-
reciam a exposição à infecção pelo HIV.
Apesar dessa nova nomenclatura ter o objetivo de distanciar o estigma do
diagnóstico de HIV de determinados grupos sociais, o fato de se debruçar
sobre o comportamento individual incidia diretamente na propensão de cul-
pabilização do indivíduo, uma vez que tornava-o encarregado de suas ações,

235
Tecendo redes e transpondo desafios

inclusive pela falha na prevenção ao vírus (AYRES et al., 2009). Além disso,
pelo fato de ser focada no comportamento individual, essa conceituação não
abarcava toda a multiplicidade dos fatores envolvidos nas vivências da popu-
lação, na prevenção e na transmissão da infecção.
Diante do aumento de casos nos mais diversos grupos, emergiu a exigência
de um conceito que fosse capaz de englobar outros aspectos relacionados ao
HIV, principalmente, à propensão ao risco da infecção. No terceiro momento
da epidemia, quando ocorre o aumento dos casos entre heterossexuais, mulhe-
res, pessoas com baixo grau de escolaridade e nas populações interioranas, pas-
sou-se a utilizar uma nova forma para pensar a incidência do vírus. Começou
a se considerar o conceito de “vulnerabilidade” nesse cenário (BRASIL, 1999).
Para Ayres et al. (2009), o conceito de vulnerabilidade considera que a
maior ou menor chance de exposição à infecção, os agravos e até mesmo a
possibilidade de acesso aos meios de prevenção não estão relacionados apenas
a questões individuais, mas também aos aspectos coletivos. Dessa forma, para
pesquisar a vulnerabilidade envolvida no contexto do HIV, é necessário con-
siderar três componentes que se articulam. São eles: componentes individual,
social e programático. O componente individual corresponde à forma como
o indivíduo se relaciona com as informações sobre um tema, tanto no que diz
respeito ao acesso e qualidade quanto à compreensão. Além disso, esse com-
ponente também considera se o indivíduo irá inserir essa informação em sua
vida como algo que mereça sua atenção e possa servir como base para pensar
as formas de proteção.
O componente social também se pauta sobre a relação do indivíduo com a
informação. Entretanto, aponta que, nessa circunstância, se faz necessária a in-
clusão de questões que não dependem apenas dos indivíduos, mas de aspectos
sociais relacionados ao acesso à educação, aos meios de comunicação, às dis-
cussões políticas e culturais. Já os componentes programáticos dizem respeito
à disponibilidade dos recursos sociais que visam à prevenção e aos agravos da
infecção pelo HIV. Dessarte a isso, quanto mais efetivos e acessíveis são os
programas e as ações voltadas para os diversos níveis de cuidado relacionados
ao HIV/aids, maior é a probabilidade de os indivíduos enfrentarem essa epi-
demia adequadamente (AYRES et al., 2009).

236
Aspectos de vulnerabilidade em mulheres vivendo com HIV/aids

Como a epidemia do HIV, ao longo dos anos, foi demonstrando que a infec-
ção se coloca como algo de grande impacto em diversos campos sociais, as forças
governamentais buscaram uma estratégia para a construção de políticas públicas
de cuidado assertivas e com participação social. Procurou-se definir em quais
grupos a incidência do HIV mostrava-se mais alta quando comparada com a
população em geral. Surgiu a partir daí, o conceito de “populações-chave”. Além
disso, nesse contexto, também foram inseridas as “populações prioritárias”, ou
seja, “[...] os segmentos que também apresentam vulnerabilidades aumentadas
devido à situação de vida ou contextos históricos, sociais e estruturais: jovens,
população negra, indígenas e pessoas em situação de rua” (BRASIL, 2018, p. 36).
Para Mattos (2013) ao considerar a incidência da infecção do HIV em
mulheres, é possível verificar a presença do gênero como uma forma de “[...]
corporificar as relações entre homens e mulheres, assim como estruturar as
identidades subjetivas, e estende-se para as demais instâncias sociais, como
política, economia, sociedade [...]” (p. 70). Dessa forma, as instituições sociais
pertencentes, tais como, a família, a mídia e as escolas, atuam na perpetuação
de um modelo de comportamento padrão e estereotipado que define o que é
ser homem e ser mulher.
Quando se discute as questões de gênero, é notável uma certa desigualdade
ao se tratas do exercício das sexualidades masculina e feminina. A construção
simbólica da sexualidade masculina é atravessada por representações sociais
que marcam a liberdade da prática sexual e da busca pelo prazer. Entretanto,
avesso a esse contexto, a expressão da sexualidade feminina foi posta em um
local de silenciamento, conformismo e, até mesmo, desconhecimento no que
diz respeito aos processos biológicos do próprio corpo (GUIMARÃES, 1996).
Diante disso, a partir de uma perspectiva que considera as questões de
gênero, é possível discorrer sobre os demais aspectos que levam as mulheres a
terem um baixo poder de negociação nas relações sexuais com seus parceiros,
tornando-as mais vulneráveis a uma atividade sexual sem o uso do preserva-
tivo. No que diz respeito às questões reprodutivas e sexuais, há uma espécie
de submissão das mulheres aos homens, que engloba o exercício da própria
sexualidade e a responsabilidade pelas formas de concepção e contracepção
impostas a elas (SANTOS et al., 2009).

237
Tecendo redes e transpondo desafios

Pierre Bourdieu (1998) aponta que a relação sexual é uma representa-


ção social da dominação dos homens sobre as mulheres, em que não existe
apenas uma divisão entre ambos, mas uma relação de subordinação erotizada.
O homem fundamentado como o ser ativo e a mulher como passiva. A divisão
sexual entre homens e mulheres também está relacionada à divisão da produ-
ção do trabalho e ao funcionamento de uma lógica mercadológica que coloca
os homens enquanto produtores e detentores de bens e as mulheres reduzidas
ao lugar de objeto.
De acordo com Villela, Monteiro e Vargas (2009), tomar o gênero como
um conceito a ser analisado no contexto das discussões em saúde:

[...] é uma aposta na possibilidade de que a produção de


evidências sobre desigualdades em saúde entre mulheres
e homens, decorrentes das desigualdades de gênero, seja
capaz de impactar políticas públicas voltadas para a redu-
ção destas desigualdades. (p. 1003)

Assim, discutir sobre a construção de ações adequadas no combate à epi-


demia do HIV/aids é levar em conta que a perspectiva de gênero atravessa
diretamente as questões sobre a saúde sexual e reprodutiva.
Para Goldstein (1996), como no início a incidência de HIV estava atrelada,
principalmente, ao grupo dos homossexuais, tornou-se difícil propor a ideia de
que a infecção tenha se posto como um risco para os mais diversos grupos popu-
lacionais, e as questões relacionadas à prevenção mostraram-se, particularmente,
mais complexas em alguns nichos, como, por exemplo, das mulheres heterosse-
xuais. Na percepção dessas mulheres, a infecção pelo vírus ainda soa como algo
distante, uma vez que possuem parceiros fixos. Contudo, um fato preponderante
desse contexto é o fato de que, apesar de possuírem parceiros fixos, esses podem
se relacionam sexualmente com outras pessoas. Além disso, ainda que seja des-
coberta alguma prática sexual extraconjugal por parte do homem, é possível que
muitas mulheres tenham dificuldade de se posicionar de forma contrária a essa
situação, haja vista a relação de poder que vivenciam em seus relacionamentos.
Essa situação coloca-se como mais um obstáculo à prevenção.

238
Aspectos de vulnerabilidade em mulheres vivendo com HIV/aids

Ao considerar a incidência da infecção pelo HIV em mulheres, é possível


notar que esse diagnóstico evidenciou a existência da culpabilização destas
pelo exercício da sua sexualidade, uma vez que se trata de uma infecção sexual-
mente transmissível. Além disso, expôs a queda do ideal materno até então
existente na sociedade, já que a infecção oferece riscos para a vida da criança
no ventre, com a possibilidade de transmissão do vírus da mãe para o bebê,
pelo parto ou pela amamentação (BARRETO; CECARELLI, 2015).
Ademais, ainda que se tenha avanços nas ações voltadas para as mulheres
vivendo com HIV/aids, a atuação das políticas de saúde ainda é insuficiente
para suprir as demandas das mulheres. Esse cenário se agrava, principalmente,
com as mulheres mais jovens e as que se encontram em situação de vulnerabi-
lidade social, pois, além de não conseguirem acesso adequado às informações
sobre saúde e sexualidade, muitas vezes, ficam privadas de conhecer e exer-
cer seus direitos. Além disso, nem todas as estratégias de prevenção ao HIV
estão amplamente acessíveis nas unidades de saúde ou para todas as pessoas,
como é o caso da PrEP (Profilaxia pré-exposição), indicada para o caso da
mulher profissional do sexo. E, o acesso das mulheres à Profilaxia pós-expo-
sição (PEP), além de ainda ser precário em alguns serviços de saúde, também
perpassa a conduta moralista dos profissionais de saúde (SANTAMARINA,
SANTIAGO, TAVARES, 2021).

Considerações finais

Diante do que foi exposto até aqui, é evidente a força que uma sociedade
machista e patriarcal é capaz de instituir sobre a vivência das mulheres com
HIV/aids. Tratar o exercício da sexualidade feminina como um tabu gera con-
sequências para a subjetividade dessas mulheres, gerando culpa e sofrimento.
Não é incomum que uma mulher diagnosticada com HIV se sinta enver-
gonhada, amedrontada e culpada pela transmissão da infecção do vírus. Um
dos efeitos presentes em uma sociedade patriarcal e machista é o fato de uma
mulher sentir vergonha do exercício da sexualidade ou ter receio de ser jul-
gada como promíscua. Além disso, mesmo quando descobrem que a infecção
veio pela relação sexual seu companheiro fixo, algumas mulheres permanecem

239
Tecendo redes e transpondo desafios

nesses relacionamentos, mesmo sem vontade, por acreditarem que não serão
dignas de se relacionar afetiva e sexualmente com outras pessoas.
Além do estigma relacionado à infecção, a situação de hospitalização ou a
possibilidade de agravo da saúde por complicações da Aids também é difícil
para essas mulheres na medida em que elas ocupam o papel cuidadora prin-
cipal dos filhos e da casa. Assim, ao considerar as expectativas impostas pela
sociedade para o exercício da maternidade, é possível compreender o receio
das mulheres de serem culpabilizadas e não poderem cuidar dos filhos, ainda
que estes tenham pais ou demais redes de apoio presentes.
O fato de a aids estar tão intimamente relacionada a fatores de discri-
minação acaba favorecendo com que as pessoas que vivem com HIV
tenham medo de revelar seu diagnóstico e acabem, por medo do precon-
ceito, se privando do acesso aos meios de assistência e promoção à saúde
(ALMEIDA; LABRONICI, 2007).
A necessidade de reestruturação das estratégias de saúde se faz indispensá-
vel para que os papéis de gênero e suas desigualdades sejam analisadas e seja
possível construir uma política pública em saúde que alcance os mais diversos
aspectos de vulnerabilidade das mulheres.
Oferecer um cuidado integral e equitativo para uma mulher que vive com
HIV significa considerar que ela é um ser provido de sexualidade, com seus
direitos sexuais e reprodutivos preservados, com possibilidade de escolha entre
o trabalho doméstico e o trabalho externo e com direito de vivenciar a mater-
nidade a seu modo.

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243
Te cen d o red es de c u id a d o
c om mu l h eres em tr a ta m e n to
d o cân cer d e m a m a

Virginia Dresch 69
Juliana Caminha 70
Maria Eduarda Ferrandi Vilas Boas Bertocco 71
Ana Júlia Dresch 72
Layssa Cruz de Oliveira 73
Vitória Ramos Santana 74
Ariel Moura Alves 75

Introdução

Este manuscrito é um dos produtos do projeto de extensão “Escutando mulheres


com câncer de mama na tecitura do autocuidado” (protocolos Sigproj PROEX/

69 Professora do Departamento de Psicologia – Instituto de Psicologia da Universidade


Federal Fluminense (UFF).

70 Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

71 Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

72 Discente da Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha.

73 Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

74 Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

75 Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).


Tecendo redes de cuidado com mulheres

UFF 344331.1925.122299.28012020 e 367594.2033.122299.29042021), ini-


ciado em agosto de 2020 no Serviço de Mastologia do Hospital Universitário
Antônio Pedro (HUAP) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Em
2021, o projeto recebeu fomento do FOEXT/UFF para publicação da cartilha
“Autocuidado no câncer” (Figura 2), outro produto deste projeto.
O câncer de mama é considerado uma doença potencialmente curável, se
detectada precocemente. No entanto, trata-se, atualmente, da causa mais fre-
quente de morte por câncer em mulheres (excluindo o câncer de pele não me-
lanoma), representando 25% do total de casos de câncer no mundo (WORLD
HEALTH ORGANIZATION [WHO], 2020) e 28,1% dos casos de câncer
no Brasil (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2017). Dos-Santos-Silva et al.
(2019) descobriram que a prevalência de câncer de mama diagnosticado em
estadiamento tardio permaneceu alta entre 2001 e 2014 em aproximadamente
40% dos casos e foi inversamente associada ao nível educacional, mais alta em
mulheres negras e pardas do que em mulheres brancas no Brasil.
A demora no diagnóstico e início do tratamento é um complicador no
tratamento do câncer de mama. O diagnóstico em estadiamento avançado
é dispendioso para tratar e está associado ao aumento da morbidade e baixa
sobrevivência em países de alta renda (MOLLER et al., 2016; RIES et al.,
2007) e no Brasil (LIEDKE et al., 2014). Além disso, o estadiamento definirá
o grau de invasão potencial do tratamento: desde quimioterapia/radioterapia
até mastectomia radical com esvaziamento dos nódulos linfáticos da axila e
presença de metástases (INCA, 2017). Portanto, quanto mais cedo o câncer
for detectado e tratado, mais possibilidade de cura e menos impacto na qua-
lidade de vida das mulheres e de suas famílias. Ao contrário, o retardo no
diagnóstico e/ou na busca por cuidado tem resultado em que até 70% das
mulheres com diagnóstico de câncer de mama sofram cirurgias mutilantes
(CARVALHO et al., 2013).
Dentre as mudanças desencadeadas no processo de adoecimento, os
impactos na função cuidadora contribuem para alterações na economia
emocional das mulheres constituída ao longo da história, configurada, em
especial, pela valorização das necessidades dos outros e a “auto”rresponsa-
bilização pelo seu atendimento (BORDO, 1997). A mudança, ainda que

245
Tecendo redes e transpondo desafios

temporária na posição de cuidadora para a de recebedora de cuidados, pode


ser descrita como dúbia (PORTELA; DRESCH; FREIRE; SIQUEIRA,
2019). De um lado, a mulher pode se sentir segura e acolhida pela família e/
ou amigos; de outro, deixa de ocupar um lugar que sempre foi dela, gerando
a sensação de “inutilidade” e a necessidade de aceitar ser “substituída” por
alguém supostamente menos capacitado naquele momento (MOLINA;
MARCONI, 2006). Há de se considerar também as perdas. Não se trata
apenas das perdas objetivas, como, por exemplo, a perda da mama ou dos
cabelos, mas tratamos também das perdas subjetivas, objeto do processo de
luto necessário para construir a elaboração e a ressignificação das perdas
objetivas e subjetivas (FARIA et al., 2016).
Responsáveis pela transmissão de informações sobre a doença e sua evo-
lução, além do encorajamento e conforto dos pacientes, os profissionais de
saúde são elementos importantes no enfrentamento do câncer. Portanto,
mulheres e profissionais de saúde se tornam agentes ativos no tratamento
do câncer de mama. O acolhimento humanizado por parte dos profissionais
de saúde, somado a ações de autocuidado das mulheres, tecidas na interação
com a equipe de saúde, promovem a saúde e o bem-estar, apesar do adoeci-
mento (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2010). Face ao exposto, o projeto de
extensão teve os seguintes objetivos: a) promover trocas entre universidade e
sociedade; b) estimular discussões sobre autocuidado a fim de que as parti-
cipantes reconheçam os processos em que estão inseridas; e c) compreender
os atravessamentos do papel social de gênero nos processos saúde-doença,
especialmente como a função cuidadora das mulheres tem influência na
forma em que experienciam seu adoecimento.

Metodologia

Durante um ano, de 1o/08/2020 a 31/07/2021, foram atendidas 167 mu-


lheres após a avaliação da doença para planejamento do tratamento do câncer
de mama pelo Serviço de Mastologia do Hospital Universitário Antônio
Pedro às terças-feiras pela manhã. A gestão do hospital disponibilizou um
dos consultórios para esse atendimento individualizado, contíguo ao Serviço

246
Tecendo redes de cuidado com mulheres

de Mastologia. Embora façamos o recorte de um ano para a publicação deste


relato de experiência, este trabalho continua sendo realizado.
As pacientes são encaminhadas pela média complexidade (Niterói, São
Gonçalo e outros municípios da região metropolitana 2 do Rio de Janeiro)
para iniciar o tratamento do câncer de mama na alta complexidade da rede
SUS (HUAP/UFF). A cada terça-feira pela manhã, são atendidas em torno
de seis pacientes na Sessão Clínica do Serviço de Mastologia do hospital.
Em razão do tipo de tumor e do estadiamento da doença, algumas pacien-
tes são encaminhadas para a realização do risco cirúrgico e programação
da cirurgia, e outras são encaminhadas para o Ambulatório de Oncologia
do hospital, para iniciar o tratamento pela quimioterapia/hormonioterapia.
As pacientes submetidas à cirurgia em um primeiro momento são enca-
minhadas posteriormente para o Ambulatório de Oncologia para avaliação
de necessidade de tratamentos complementares (quimioterapia/hormonio-
terapia/radioterapia). Aquelas pacientes que iniciam com quimioterapia/
hormonioterapia retornam posteriormente para a Mastologia para avaliação
da cirurgia. Quando a cirurgia é realizada, é priorizada uma cirurgia conser-
vadora da mama e/ou reconstrução da mama na mesma cirurgia, sempre que
possível do ponto de vista clínico.

Resultados e discussão

O propósito do acolhimento e escuta individual das pacientes pela equipe


da extensão é realizar os primeiros cuidados psicológicos. A atuação da equipe
de Psicologia, neste momento, é promover o bem-estar psicossocial e a redu-
ção do estresse crônico. Durante o atendimento, utilizamos o recurso do plano
singular (Figura 1), apresentando o ciclo do tratamento do câncer de mama,
explicando cada passo do ciclo, esclarecendo as dúvidas e preenchendo com
ela o passo a passo seguinte. Dependendo do tipo de tumor e estadiamento
da doença, algumas pacientes iniciam com a cirurgia, e outras iniciam com a
quimioterapia/hormonioterapia. O objetivo do plano singular é dar ciência
de que o tratamento do câncer de mama tem início/meio/fim e tornar claro
em qual etapa do ciclo a paciente está naquele momento, contribuindo para

247
Tecendo redes e transpondo desafios

sua adesão ao tratamento. Este plano singular pode ser adaptado para outras
redes públicas de saúde: o passo 1 refere-se ao diagnóstico do câncer de mama
pela média complexidade do SUS; o passo 2 consiste no planejamento do
tratamento do câncer de mama pela alta complexidade do SUS.

Figura 1 – Plano singular

Fonte: Elaborada pelas autoras.

O plano singular integra a cartilha “Autocuidado no câncer” (Figura 2),


outro produto do nosso projeto de extensão. A cartilha é entregue a cada pa-
ciente no atendimento psicológico para que leia em casa e compartilhe com
familiares e amigos. Nossas orientações de autocuidado no câncer foram
tecidas por mulheres, com mulheres e para mulheres a partir da escuta de
mulheres com câncer de mama, mas muitas dicas também são indicadas para
todas as pessoas que estejam em processo de tratamento de alguma doença.
As dicas de autocuidado também são postadas no perfil do Instagram
@autocuidadonocancer, que também é produto deste projeto de extensão.

248
Tecendo redes de cuidado com mulheres

Figura 2 – Cartilha Autocuidado no câncer

Fonte: Elaborada pelas autoras.

Ao analisarmos os relatos das pacientes trazidos nos atendimentos, encon-


tramos aspectos comuns em seus discursos, que dividimos em cinco blocos
temáticos. O primeiro bloco, “Desproteção social do Estado e percalços na
rede pública de saúde”, descreve o modo como essas mulheres lidam com a
precariedade dos dispositivos de proteção social que o Estado oferece frente
ao seu papel social de cuidadora. Expõe a inexistência e/ou insuficiência de
dispositivos de proteção social do Estado que possibilitem que mulheres
possam cuidar da própria saúde, mostrando-se como limitantes no sucesso
do rastreamento precoce e tratamento. A precariedade de mecanismos de
proteção social do Estado faz com que o autocuidado de cada mulher seja
relativizado, contribuindo para que seja visto como “descuidado” das mulheres.
A ausência de dispositivos de proteção social que possam oferecer suporte às
mulheres torna-se um novo elemento que se soma aos impactos que serão en-
frentados durante o tratamento. Em termos de proteção social, não só o acesso
aos serviços de saúde precisa ser planejado, como também condições para que
as mulheres possam se manter aderentes ao tratamento após o diagnóstico.
Além disso, essas mulheres enfrentam percalços na rede pública de saúde,
que não provê os recursos necessários ao rastreamento e ao diagnóstico pre-
coce da doença. A grande maioria das pacientes, mesmo com idade avançada
(superior a 70 anos), refere nunca ter feito uma mamografia antes de notar o
nódulo mediante apalpação da mama. Essas pacientes frequentaram a rede de
atenção primária várias vezes, sem que o médico de família as encaminhasse

249
Tecendo redes e transpondo desafios

para realização de mamografia, mesmo sendo mulheres elegíveis (com idade


superior a 50 anos). Somente 13,8% das mamografias foram solicitadas a mu-
lheres elegíveis por Unidades Básicas de Saúde de 2010 a 2012 no Município
do Rio de Janeiro (TOMAZELLI; GIANELLI; SILVA, 2018).
Desde o momento inicial do diagnóstico, e ao longo do tratamento, referem
demoras na fila da regulação para realizar mamografia, ultrassom e biópsia na
baixa e média complexidade. Muitas vezes, relatam ter arrecadado dinheiro de
familiares e amigos para fazer os exames complementares requeridos pelo(a)
médico(a) (mamografia, ultrassom da mama, biópsia, tomografia e/ou resso-
nância) para não esperar na fila do SUS porque, no caso do câncer de mama,
o tempo urge. No geral, as mulheres desconhecem a doença e as formas de
tratamento ao chegar ao Serviço de Mastologia do HUAP/UFF.
Faz-se urgente que as redes básicas de saúde cumpram o protocolo do
SUS de rastreio do câncer de mama a partir dos 50 anos (bianualmente) ou
a partir dos 40 anos (anualmente), conforme indica a Sociedade Brasileira de
Mastologia, garantido pela Lei no 11.664/2008.
Além disso, o Estado precisa organizar um sistema de cuidados integra-
do, à semelhança do “Sistema de Dependência” da Espanha76 e do “Sistema
de Cuidados” do Uruguai77. Esses sistemas partem do pressuposto de que o
cuidado é tarefa a ser compartilhada entre as famílias (pai, mãe e filhos/as),
o Estado (por meio de creches, escolas de turno integral, centros de dia para
idosos etc.) e a iniciativa privada.
Em suma, pensar o cuidado das mulheres em tratamento do câncer de
mama passa pelo cumprimento dos protocolos do SUS e pela construção/in-
tegração dos dispositivos de proteção social e assistência sanitária, no sentido
de proporcionar, de fato, possibilidades de diagnóstico precoce e amparo social
aos(às) usuários(as) do SUS para tratamento da doença.

76 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=8eqILsTUa6o>. Acesso em:


25 maio 2022.

77 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=4NnEFnPAm9Q>. Acesso em:


25 maio 2022.

250
Tecendo redes de cuidado com mulheres

O segundo bloco, “Impacto do trauma emocional no aparecimento e de-


senvolvimento do câncer”, parte de que as mulheres, ao serem perguntadas
sobre como descobriram o câncer, é muito frequente a paciente iniciar com o
relato de algum “trauma”: “há três anos perdi meu filho de 23 anos”, “há dois
anos perdi meu marido”, “há dois anos minha neta teve um aborto espontâ-
neo”, “há um ano meu neto de dois anos faleceu em um acidente de carro”.
Ou seja, a própria paciente inicia o relato da doença associado a um evento
traumático emocionalmente. O estudo de Roberts et al. (2019) comprova que
o estresse crônico acelera o crescimento de tumores, corroborando para o risco
que fatores emocionais oferecem para o avanço do câncer.
O terceiro bloco, “O medo do tratamento agressivo”, descreve como algu-
mas mulheres haviam notado o nódulo há muito tempo, mas tiveram medo
de buscar assistência médica e receber o diagnóstico. O medo se dá pelo fato
de que o tratamento do câncer de mama causa impacto direto em pontos que
socialmente caracterizam o feminino: as mamas e o cabelo.
O quarto bloco, “Sofrimento em solitário”, descreve como as pacientes rela-
tam intenso esforço em demonstrar força diante de familiares e amigos. Por se
sentirem o alicerce de seus lares e a pessoa principal encarregada dos cuidados
da família e tarefas domésticas, procuram manter uma imagem confiante e
inabalável pela crença de que, se desabarem publicamente, tudo ao redor de-
sabará também.
O quinto e último bloco, “Parada obrigatória do corpo, aparecimento do
psiquismo”, descreve o modo como as pacientes trazem suas reflexões advin-
das da “parada obrigatória” do corpo ao iniciarem o tratamento. Dizem que
começaram a analisar sua vida e suas relações. Referem que negligenciaram
o cuidado de si por muito tempo por priorizar o cuidado do outro (cônjuge,
filhos, pais idosos etc.) e, agora que precisam, muitas vezes não são retribuídas.

Considerações finais

Reconhece-se que a condição de cuidadora como atribuição individual se


apresenta como sobrecarga para aquelas que o assumem. A ausência de dis-
positivos sociais públicos de cuidado de forma integrada, no Brasil, que deem

251
Tecendo redes e transpondo desafios

suporte para quem necessita de cuidados, reafirma a necessidade de delegação


do cuidado a outra mulher. Assim, a consideração do cuidado como condição
de direito coletivo se apresenta como saída para que haja a divisão comparti-
lhada desse mandato, entre as famílias, o Estado e as empresas. Além disso,
destaca-se a quase inexistência de campanhas de prevenção e de rastreio do
câncer de mama como prática habitual pela rede básica de saúde e os atrasos
na transferência das pacientes entre os níveis de atenção de saúde pública, da
baixa para a média, e da média para a alta complexidade do SUS, por meio do
Sistema Estadual de Regulação (SER).

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dez. 2018. DOI: <https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2018v64n4.200>.
Acesso em: 25 maio 2022.

254
Gr u p o d e ap o i o a p a is d e
r e c é m- n asci d o s da s u n id a d e s
ne ona t ai s – co n st r u in d o r e d e s

Andréia Maria Thurler Fontoura 78


Cintia de Oliveira Castelo Branco Sales 79

Introdução

Este trabalho objetiva compartilhar a experiência de construção de um


espaço grupal com pais de bebês internados nas unidades neonatais (UNs) do
Hospital Universitário Antônio Pedro (HUAP) e como se teceu um trabalho
multiprofissional nesta unidade que possibilitou repensar e recriar o cuidado.
Com foco nos usuários e na humanização em saúde, a equipe exercitou um
dos princípios da humanização que trata da inseparabilidade entre atenção e
gestão, entre cuidar e trabalhar em saúde (MS, 2010).
Primordialmente, entende-se que gestar uma vida acarreta implicações
múltiplas e complexas à mulher. Esta é uma fase de transformações físi-
cas-corporais, de mobilização psicoemocional e de construção de um novo
papel ocupacional, o de mãe. Entretanto, algumas vivências sobrevêm fora das
condições de normalidade, de modo que a gestação, o parto e o nascimento

78 Hospital Universitário Antônio Pedro – Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares


(HUAP/EBSERH).

79 Hospital Universitário Antônio Pedro – Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares


(HUAP/EBSERH).
Tecendo redes e transpondo desafios

podem ocorrer em situação de crise. Como exemplo, temos as intercorrências


gestacionais como infecções, malformação fetal; complicações de parto com
hipóxia neonatal; e nascimento prematuro.
A chegada de um filho nessas ou em outras condições que demandam cui-
dado em saúde, de caráter intermediário ou intensivo em UN, além da súbita
separação provocada pela necessidade de internação do bebê, é inevitavelmen-
te um duro impacto no psiquismo materno. Almeida e colaboradores (2018)
corroboram que as mães, por figurarem como principais acompanhantes e
cuidadoras do bebê, vivenciam marcadamente a experiência. Ademais, essa é
uma situação que impacta todos os membros da família e acarreta mudanças
no cotidiano familiar.
Naturalmente, gestantes e puérperas vivenciam curiosidades, dúvidas, an-
siedades e expectativas frente ao mundo novo que se apresenta e que as en-
volvem por completo, sobre a emersão de suas emoções e o modo como lidam
com tais conteúdos do contexto da maternidade. Viçosa (1997) depreende
que, em grupo, ao compartilhar vivências e preocupações com seus pares, as
mulheres são capazes de dizer, refletir e, também, acessar informações seguras.
É, portanto, no espaço coletivo de representatividade que se alicerça a tomada
de consciência sobre si e sobre o fenômeno que as envolvem, minorando pos-
síveis medos.
Em corroboração a Viçosa (1997), autora supracitada, Balbino e colabora-
dores (2015) asseguram que a existência de grupo de apoio em UN, além de
viabilizar suporte informacional, aproxima famílias e profissionais. Na ambiên-
cia do grupo, mediante a validação das angústias e preocupações, da valorização
de expressão de dúvidas e sentimentos, as participantes se sentem encorajadas a
buscar esclarecimentos sobre a situação do bebê e condutas em curso.
Os autores reafirmam a importância do grupo como oferta de cuidado aos
pais em UN, mas vale destacar de que grupo estamos falando neste trabalho,
de onde partimos para pensar este trabalho em grupo.

Experiência que não se reduz a um conjunto de indivíduos


nem tampouco pode ser tomada como uma unidade ou
identidade imutável. É um coletivo ou uma multiplicidade

256
Grupo de apoio a pais de recém-nascidos das unidades neonatais

de termos (usuários, trabalhadores, gestores, familiares,


etc.) em agenciamento e transformação, compondo uma
rede de conexão na qual o processo de produção de saúde e
de subjetividade se realiza. (MS, 2010)

O grupo, assim como a experiência, ultrapassa uma velha concepção deste


como unidade, como um todo que reflete certo modo de subjetivação do
século 19, mas que ainda nos atravessa, no qual o indivíduo e o privado seriam
formas hegemônicas de expressão da subjetividade. O grupo aparece como
a possibilidade de se experimentar o outro, se deslocar de si mesmo para se
reinventar (BENEVIDES, 2013).
E assim, sobre a experiência que tivemos com pais (majoritariamente com
as mães) de bebês internados no HUAP, o que pudemos evidenciar foi como
o grupo, enquanto espaço terapêutico, processualmente possibilitou a reinven-
ção dessas famílias frente ao vivido nas UNs. Ainda, sobressaiu a observância
da transformação provocada na equipe profissional e, por conseguinte, na
instituição para dar passagem e contorno aos novos perfis das famílias, agora
mais informadas, conectadas com o real e integradas não somente no âmbito
espacial, mas na rotina das nossas unidades neonatais.
E, nesse sentido, a experiência do grupo aqui apresentado se agencia
com a discussão de formas possíveis de enfrentamento das violências pro-
duzidas sobre os diversos aspectos, no campo materno-infantil, como a
violência de gênero, aquela veladamente desferida contra as mulheres que
a sobrecarregam em responsabilidades e tarefas maternas, a partir da cons-
trução social de papéis femininos e masculinos, de mãe e pai, e a violência
institucional que, neste caso, detém o saber, estabelece condutas e determi-
na o lugar dos sujeitos.
Tomando a violência institucional como “[...] a violência praticada por
órgãos e agentes públicos que deveriam responder pelo cuidado, proteção e
defesa dos cidadãos [...]” (LADEIA et al., 2016), podemos pensar que ela
aconteça de forma sutil e que se relaciona, muitas vezes, à forma como os ser-
viços e equipes se organizam na relação com os usuários e quanto ao modelo
de cuidado exercido.

257
Tecendo redes e transpondo desafios

Atualmente, discute-se cada vez mais o modelo biomédico hegemônico.


É urgente a discussão sobre modelos e estratégias com inferência na sua
desconstrução para produção de saúde integral e centrada no protagonismo
dos usuários. Dessa forma, o grupo aparece como um dispositivo de partici-
pação e autonomia, um elemento importante de enfrentamento da violência
(LADEIA et al., 2016).
Nesse cenário, o grupo em questão pretendeu oportunizar o desenvolvi-
mento da paternagem e da maternagem; promover educação em saúde com
temáticas relativas à gravidez, parto e nascimento, puerpério, além dos com-
partilhados cuidados com o recém-nascido (RN); facilitar a formação de vín-
culo e fortalecimento da relação afetiva com o bebê; e aproximar a equipe da
família, facilitando a comunicação e qualificação da relação de cuidado.
Constituiu-se como grupo aberto, heterogêneo (composto por mães, pais, pro-
fissionais de saúde), de periodicidade semanal (normalmente às quartas-feiras, mas
também realizado em outros dias, conforme quórum), com duração aproximada de
uma hora. Instituiu-se por caráter terapêutico, informativo e produtivo, com ativi-
dades variadas, planejadas ou não, atendendo às demandas de seus componentes.
No que toca o caráter terapêutico, enquanto espaço compartilhado do
vivido, o grupo se colocou como ambiente de escuta dos pais sobre suas ex-
periências na maternidade e/ou nas unidades neonatais; curiosidades sobre o
ambiente, as tecnologias aplicadas, condutas terapêuticas; preocupações em
relação à vida e desenvolvimento dos bebês; anseios da participação nos cui-
dados. Foi, portanto, recurso de fortalecimento da relação com a equipe e de
promoção da participação familiar na rotina hospitalar, e do bebê, de modo
mais autônomo e criativo.
Referente ao aspecto informativo que facilitou a construção de vínculo e às
práticas de cuidados com o RN (e, por vezes, já lactente dado o tempo prolon-
gado de internação e ausência de Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica no
HUAP), o grupo abordou temas, como: amamentação, crescimento e desen-
volvimento infantil, calendário vacinal, visita hospitalar e domiciliar da família
ampliada, direitos e rede de apoio familiar.
Sobre o eixo produtivo, o grupo partilhou de atividades artesanais que pude-
ram ser usadas como recursos de humanização do ambiente físico e dinâmico

258
Grupo de apoio a pais de recém-nascidos das unidades neonatais

das UNs, evidenciando a existência dos bebês enquanto sujeitos, para além de
pacientes, e promovendo e reafirmando a construção identitária de cada um
deles. As atividades geraram elementos de aproximação e interação entre pais
e filhos, família e equipe.
Ao que se segue, será apresentada a experiência vivenciada no período de
janeiro de 2019 a março de 2020, totalizando 31 encontros. É fundamental
ressaltar que, em função da pandemia de SARS-COV-2, os encontros foram
interrompidos em março de 2020, tendo sido realizada a tentativa de retorno,
com a ocorrência de três encontros em setembro de 2020, e, depois, os traba-
lhos foram retomados em setembro de 2021.
Destacamos neste percurso alguns encontros emblemáticos desse movimen-
to de produção de autonomia dos pais frente à internação de seus filhos em uma
UN e também das equipes frente ao seu processo de trabalho, tomado como
vivo e possível de ser reinventado, de acordo com as necessidades dos envolvidos.
A primeira cena exposta, composta por arquivo com cinco fotos, trata do
momento que teve desdobramentos tanto terapêuticos quanto produtivos, a
partir de dois encontros que aconteceram em semanas consecutivas. O pri-
meiro possibilitou a discussão sobre os papéis colocados socialmente de mãe
e pai e suas possíveis adequações a partir das figuras heroicas de personagens
da ficção. A figura materna surgiu como grande heroína por atribuição de
características como força, coragem, luta pela garantia de direitos relativos às
mulheres e às crianças (seus filhos) e, diante da vida, o humor como elemento
de retroalimentação da sua potência.
Refletiu-se sobre a marcante presença materna, o lugar paterno, e se, afinal,
os pais são heróis de seus filhos. Como as referências são construídas e os mo-
delos são seguidos? E em quais momentos a fragilidade de um recém-nascido
se converte em força e coragem, tornando-o herói de seus pais, com capaci-
dade de fortalecê-los emocionalmente e, também, de motivar profissionais?
O segundo momento ainda pertinente à primeira cena, mostra uma oficina
de confecção de fantasias, ministrada por artesã voluntária e mediada por uma
psicóloga e uma terapeuta ocupacional. A culminância se deu no ato compar-
tilhado entre pais e equipe (incluindo alunos e residentes) de vestir os bebês e
fotografá-los como heróis, que se tornou um exemplo de atenção humanizada

259
Tecendo redes e transpondo desafios

em saúde, no qual o protagonismo de usuários e cuidadores impactaram dire-


tamente a ambiência tomada como “[...] espaço físico entendido como espaço
social, profissional e de relações interpessoais que deve proporcionar atenção
acolhedora, resolutiva e humana.” (MS, 2010), e a rotina das UN.

Fonte: Fotos do arquivo do serviço.

Outra cena seguiu os passos anteriores, de modo a instigar nos pais a reflexão
sobre a interação com o bebê. Por que, quando e como fazê-la? Entendendo
os benefícios para o desenvolvimento neuropsicomotor e socioafetivo. Partiu-
se das seguintes perguntas disparadoras: Como vejo meu filho?; O que meu
filho é capaz de fazer?; O que eu posso fazer pelo meu filho e com ele?; Como
interajo com meu filho?
A partir disso, foi possível explorar a relação e o vínculo dos pais com seus
bebês e a importância do brincar para o desenvolvimento global deles, neste
momento, com destaque para um sentido específico, a visão. Da mesma forma,
foi feito, posteriormente, uma oficina de feltro, na qual os pais confeccionaram
brinquedos, como dedoches e móbiles para serem usados na interação com
seus filhos na UN. Outra vez, o grupo foi potencializador do senso de capaci-
dade dos pais, emponderando-os e tornando-os agentes transformadores do
ambiente e da rotina do bebê.

260
Grupo de apoio a pais de recém-nascidos das unidades neonatais

Um analisador importante dessa experiência e sua possibilidade de pro-


dução de autonomia foi o movimento das mulheres de proposição de uma
comemoração do Dia das Mães, planejado e construído por elas nos encontros
daquele mês. Mais uma vez, o trabalho é disparado por essa temática – a ma-
ternidade e seus significados – e construído um mural por elas com mensagens
e recados para seus bebês. Além disso, elas organizaram um café da manhã e
participaram de uma oficina de autocuidado com a realização de uma vivência
psicodramática, orientação de maquiagem com uma revendedora voluntária
de marca de cosméticos e uma vivência de Atenção Plena e Relaxamento com
outro colaborador voluntário.
Mais um destaque foi a elaboração de evento em alusão à Semana Mundial
de Amamentação, com engajamento de pais e equipe multiprofissional da
UN em diversas atividades: Roda de Conversa compartilhando experiências
e (des)construindo verdades; espaço para os pais – “O pai em foco” – paterni-
dade ativa e desdobramentos na amamentação; oficina com os profissionais –
“Que rede somos nós?”; e cinema temático.

Fonte: Fotos do arquivo do serviço.

261
Tecendo redes e transpondo desafios

Pode-se destacar que o grupo foi um elemento fundamental para o for-


talecimento dessas famílias frente às condições de saúde de seus bebês e ao
processo de internação. Infere-se que o grupo possibilitou a formação de uma
rede de sustentação, principalmente para as mães, que, muitas vezes, perma-
neciam no alojamento para favorecer a amamentação e compartilhavam dores,
alegrias e experiências.
Evidenciaram-se mudanças comportamentais de mães na relação com a
equipe e na participação dos cuidados com o bebê, mostrando-se mais ativas e
afirmativas. O grupo estimulou a equipe a buscar outras tecnologias e parcei-
ros, como o trabalho de voluntários e profissionais de outros setores.
Para além disso, outro analisador importante do trabalho foi a construção
de espaços de discussão da equipe sobre o cuidado produzido e a relação com
os pais, que se desdobrou em redesenhos de processos de trabalho e cuidado
fundamentais, como a visita da família ampliada, alojamento de mães e proto-
colos de mínimo manuseio e cuidados paliativos perinatais.
Conclui-se, portanto, que o grupo se colocou como rede de fortalecimento
dessas famílias frente às condições de saúde de seus bebês e seu processo de
internação; sustentação de um cuidado e vinculação compartilhadas com a
significativa participação dos pais; e desconstrução de modelos tradicionais
de maternidade e paternidade, o que pôde gerar movimentos importantes de
prevenção à violência de gênero.
Foi possível observar reposicionamentos das mães frente à equipe, com mães
incialmente tímidas e introspectivas, e que, com o grupo, foram se recolocando no
espaço de forma mais ativa e afirmativa. Um processo de tornar-se mulher, tornar-
-se mãe! E, com isso, a facilitação da identificação e favorecimento da apropriação
do seu papel nesse contexto, promovendo uma prevenção à violência institucional.
E, assim, as redes permanecem se tecendo, articulando e recompondo pes-
soas, afetos, processos de trabalho, famílias, dentro e fora das unidades neonatais.

Referências bibliográficas:

ALMEIDA, C. R.; MORAIS, A. C.; LIMA, K. D. F.; SILVA, A. C. O. C.


Cotidiano de mães acompanhantes na unidade de terapia intensiva neonatal.

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Grupo de apoio a pais de recém-nascidos das unidades neonatais

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Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2010.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da


Política Nacional de Humanização. Ambiência/Ministério da Saúde, Secretaria
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LADEIA, P.S.S, MOURÃO, T.T, MELO, E.M. O silêncio da violência institucional


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VIÇOSA, G. R. Grupos com gestantes. In.: ZIMERMAN, D. E.; OSORIO, L. C.


(Org.). Como trabalhamos com grupos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997, cap.
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263
Os i mp act o s d a p o b r e z a
m e ns t ru al : rel at o s o b r e a ç õ e s
s oci ai s n o M u n ic í p io d e
C a m p o s d o s G o y ta c a z e s /R J

Kelly Viter Campos 80


Marusa Bocafoli da Silva 81

Introdução

A pobreza menstrual é uma das faces da desigualdade social que afeta milhares
de mulheres no mundo inteiro. Diante da situação de precarização econômica,
muitas meninas e mulheres vivenciam o seu ciclo menstrual sem a mínima
dignidade. Em muitos casos, colocando em risco a própria saúde ao utilizar
materiais não adequados para conter o seu fluxo, como, por exemplo, pedaços
de pano, jornais velhos, miolo de pão e sacolas plásticas.
Esse problema de saúde pública, como foi classificado pela Organização
das Nações Unidas (ONU, 2014), ainda é invisibilizado. Tanto o poder pú-
blico, quanto parte da sociedade não o enxergam como urgente e relevante.
Exemplo disso é a longa espera para que ações efetivas do governo, via políti-
cas públicas, sejam realizadas, o silenciamento do tema nos debates na esfera
pública e no espaço escolar e, mais recentemente, o veto presidencial para a
distribuição gratuita de absorventes para pessoas em vulnerabilidade.

80 12a Subseção da OAB-RJ – Campos dos Goytacazes (triênio 2019-2021).

81 Universidade Candido Mendes.


Os impactos da pobreza menstrual

A menstruação, apesar de ser parte do ciclo biológico da vida de todas as


pessoas que menstruam, é vista como um tabu. Algo que deve ser escondido
por ser compreendido socialmente como “sujeira”. Muito dessa percepção
se deve às bases patriarcais que forjam a nossa sociedade. Nesse cenário,
as mulheres são tidas como objetos apropriados pelos homens. Esse corpo
deve ser exibido quando dentro da normatização dos corpos (BUTLER,
2015; FOUCAULT, 1984). Assim sendo, o período menstrual e tudo que
diz respeito a ele deve permanecer oculto.
Todavia, apesar do silenciamento histórico sobre o tema, recentemente
esse debate vem ganhando maior notabilidade, muito pelas condições sociais
profundamente desiguais vivenciadas por parte significativa das pessoas. Esse
fato colaborou para a publicização do debate. Desse modo, vimos eclodir nas
últimas décadas tentativas de trazer o problema para o centro das discussões.
Muitos movimentos de mulheres e organizações da sociedade civil buscaram
meios de dar uma resposta a essa problemática.
A solidariedade e o espírito coletivo motivaram a criação de campanhas e
projetos em todo o País que visam atender as demandas mais urgentes dessas
pessoas, distribuindo absorventes femininos e também debatendo com meni-
nas e mulheres a questão da saúde menstrual.
Este trabalho tem por finalidade discutir os impactos da pobreza mens-
trual na vida de milhares de pessoas que menstruam e relatar a experiência de
um projeto social engendrado pela OAB Mulher/Campos em parceira com
o “Blog Generalizando” e o “Por Amor ao Outro” na cidade de Campos dos
Goytacazes no norte do Estado do Rio de Janeiro.
A motivação para a campanha se deu a partir da divulgação do Relatório
do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e o Fundo das
Nações Unidas para a Infância (UNICEF), que apresentou dados alar-
mantes sobre a situação de mulheres e meninas brasileiras que vivem em
situação de vulnerabilidade social e não possuem condições de vivenciar
dignamente o período menstrual. De acordo com o relatório denominado
“Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos”, 713
mil meninas vivem sem acesso a banheiro ou chuveiro em seu domicílio

265
Tecendo redes e transpondo desafios

e mais de quatro milhões não têm acesso a itens mínimos de cuidados


menstruais na escola82.
Diante de tal realidade, a campanha idealizada pela Comissão da OAB
Mulher da 12a Subseção da OAB-RJ em Campos dos Goytacazes tomou
formato e angariou parceiros, como o “Blog Generalizando”, que se dedica à
produção de conteúdo gratuito sobre igualdade de gênero, e o “Por Amor ao
Outro”, criado em 2021 visando ajudar pessoas em situação de vulnerabilidade
social no período da pandemia. O objetivo da campanha era arrecadar ab-
sorventes para serem doados a instituições que atendem mulheres e meninas
em situação de vulnerabilidade social. E, para além disso, publicizar o tema,
levando-o para as escolas e atuando no sentido de informar a sociedade sobre
a importância de falar sobre saúde menstrual.
Para dar cabo ao projeto, materiais de divulgação sobre a campanha e
também sobre a temática foram produzidos, conseguindo alcançar um público
bastante amplo na cidade de Campos. Foram produzidos posts, vídeos, lives,
entrevistas e palestras.

Pelas Mulheres para as Mulheres: campanha


contra a pobreza menstrual

A pobreza que assola muitas mulheres no mundo todo possui pontos cegos
que não são problematizados, debatidos e visualizados. Esse é o caso da po-
breza menstrual. Para se ter uma ideia mais clara desse cenário, é importante
lançar mãos dos números. No Brasil, 26% das meninas com idade entre 15 e
17 anos não têm acesso a absorventes. Entre as meninas de 12 e 14 anos, 22%
afirmam não ter acesso a produtos confiáveis para conter o fluxo menstrual83.

82 Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/no-brasil-


-milhoes-de-meninas- carecem-de-infraestrutura-e-itens-basicos-para-cuidados-mens-
truais>. Acesso em: 27 out. 2021.

83 Pesquisa realizada pela Sempre Livre com 9.062 brasileiras com idade entre 12 e 25 anos
em 2018.

266
Os impactos da pobreza menstrual

De acordo com a ONU Mulheres, 12% das mulheres do mundo não pos-
suem dignidade menstrual, sobretudo as que vivem em situação de rua e as
presidiárias. Outro dado alarmante é que 1,25 milhão de meninas e mulhe-
res no mundo não tem acesso a banheiros seguros e privados, e 526 milhões
sequer têm acesso a banheiros onde vivem84.
Esse retrato da desigualdade, que afeta de maneira muito específica meni-
nas e mulheres em todo o mundo, coloca-as em situação de extrema fragilida-
de e perigo. Essas pessoas lançam mão de práticas que impactam a sua saúde,
como, por exemplo, a utilização de folhas de jornal, sacolas plásticas, panos ou
meias velhas e miolo de pão para conter o fluxo menstrual. O que pode levar
a inúmeras infecções e demais problemas de saúde.
Além disso, deve-se considerar que o custo médio de uma brasileira du-
rante o ciclo menstrual é de R$ 7,00 por mês. Um valor significativo para
aquelas que vivem em situação de vulnerabilidade social e que causa impactos
variados, como, por exemplo, a ausência nas aulas durante a duração do ciclo.
Em uma escola pública de Brasília, classificada como de classe D pelo
Ministério da Educação, uma escola que possui alunos em situação de fra-
gilidade social, a diretora percebeu que as meninas faltavam às aulas durante
cinco dias corridos por mês. O motivo? A pobreza menstrual85.
Diante desse triste quadro, muitas ações da sociedade civil organizada
são realizadas com oo intuito de mitigar os efeitos da pobreza menstrual.
Campanhas de doação de absorventes e rodas de conversa sobre saúde mens-
trual são alguns exemplos positivos dessa intervenção. No que tange à esfera
pública, algumas iniciativas recentes foram apresentadas como forma de en-
frentamento da miséria menstrual.
Motivados por essa realidade, a campanha Pelas Mulheres e para as
Mulheres, uma parceria entre OAB/Mulher-Campos, “Blog Generalizando”
e “Por Amor ao Outro”, foi iniciada em 2021, tendo como objetivo a arreca-
dação de absorventes para serem destinados a instituições e/ou projetos sociais

84 Disponível em: <ponte.org/pobreza-menstrual>. Acesso em: 25 out. 2021.

85 Disponível em: <ponte.org/pobreza-menstrual>. Acesso em: 25 out. 2021.

267
Tecendo redes e transpondo desafios

que atendem pessoas em situação de vulnerabilidade social no município de


Campos dos Goytacazes/RJ.
Além do objetivo imediato da campanha, a arrecadação de absorventes,
vislumbra-se realizar um trabalho de conscientização/informação sobre saúde
menstrual por meio de palestras e rodas de conversas realizadas com as mulhe-
res atendidas pela campanha e também com alunos de escolas da rede pública
e privada do município em questão.
Para dar cabo ao objetivo da campanha, foi necessário, em um primeiro mo-
mento, mapear quais eram as instituições e/ou projetos sociais que atendiam
pessoas em situação de pobreza e de extrema pobreza no município para, em
seguida, identificar quantas das pessoas atendidas menstruavam. Desse modo,
os absorventes arrecadados foram destinados para as seguintes instituições/
projetos sociais, a saber: Hospital Psiquiátrico Espírita Doutor João Viana,
Casa Irmãos da Solidariedade, Bem faz Bem, Residência Inclusiva, Centro
POP, Coletivo Nós por Nós, Amigos do Rim, Lar de Débora, Tribo Ame,
Casa de Caridade Maria Franc, Quentinhas da Dona Cotinha, Presídio Nilza
da Silva Santos, Alegria Projeto, CREAS, ONG Luz e Vida e Comunidade
Sonhos de Deus, contabilizando 25.167 unidades de absorventes, além das
moradoras da comunidade do Carvão, que receberam 1.024 unidades.
Outra etapa importante para a campanha foi a adesão de parceiros para
serem pontos de entrega das doações. Foram priorizados estabelecimen-
tos localizados nas áreas centrais da cidade. Em um primeiro momento,
a Clínica Plenus serviu de ponto de arrecadação. Posteriormente, a loja
VICSO passou a ser um importante parceiro na campanha e se tornou o
ponto de entrega das doações.
Uma grande conquista do projeto foi a inclusão do absorvente nas cestas
básicas vendidas pelo Super Mini Auto Serviço, que se trata de um mercado
local, onde os movimentos sociais do munícipio efetuam a compra de cestas
básicas para serem doadas na cidade, dado o preço acessível praticado pelo
estabelecimento. O proprietário do mercado, Sr. Eduardo Amaral, ficou mo-
bilizado e impactado ao ter conhecimento do que era a pobreza menstrual
após um diálogo com as integrantes do projeto, passando não só a incluir os

268
Os impactos da pobreza menstrual

absorventes nas cestas básicas, como também fazendo doações do item para
a campanha.
Considerando que a pobreza menstrual inclui também a falta de informa-
ção, o projeto realizou, no perfil do Instagram @poramoraooutro, uma live
com a médica Ginecologista e Obsteta, Dra Clícia Crespo, levando informa-
ções sobre a importância do uso de produto adequado no período do ciclo
menstrual, esclarecendo os impactos e consequências na saúde da mulher em
decorrência do uso de produtos inapropriados para conter o fluxo, bem como
a importância de se realizar consultas ginecológicas, devendo sempre observar
o ciclo, o seu tempo de duração e a sua intensidade.
Etapa igualmente importante do projeto foi a realização de rodas de con-
versa com mulheres atendidas pela “Ong Luz e Vida” e pela “Casa de Caridade
Maria Franc”, dialogando com as mesmas e informando sobre pobreza e saúde
menstrual, além de distribuir absorventes e esclarecer sobre a importância de
políticas públicas voltadas à promoção da dignidade menstrual.
Como é sabido, a menstruação é parte importante e natural da vida dos
corpos que menstruam. Entretanto, chama atenção o silenciamento e a desin-
formação sobre esse tema. Compreende-se que a superação da pobreza mens-
trual ou a garantia da dignidade menstrual precisam vir acompanhados de
conhecimento e de informação. Por isso, ações como lives e rodas de conversa
são consideradas etapas fundamentais nesse processo.
Objetivando descrever as etapas da campanha abordada neste artigo, sina-
lizamos a parceira efetuada com o colégio ALPHA, escola da rede privada do
Município de Campos dos Goytacazes que atende alunos da educação infantil
ao ensino médio. Por meio dessa parceria, o tema pobreza menstrual foi levado
para as salas de aulas dos 8o e 9o anos do ensino fundamental e 1o e 2o anos
do ensino médio. Foram realizadas palestras e debates sobre a realidades das
mulheres que vivenciam a experiência de não ter acesso a absorventes e demais
itens importantes para o período menstrual. Além disso, foi apresentada aos
alunos a taxa de mulheres nessa situação em todo o mundo, com base nos
dados divulgados pelo relatório da UNICEF, a fim de informar e solidarizar
os discentes acerca dessa problemática.

269
Tecendo redes e transpondo desafios

Em conjunto, os alunos criaram perfis informativos no Instagram, ar-


recadaram absorventes e criaram uma vaquinha virtual86 para receber doa-
ções em dinheiro para compra de absorventes, doados para instituições que
atendem mulheres que vivenciam a pobreza menstrual. Com o intuito de
levar informações além dos muros da escola, para familiares de alunos e
professores, bem como para toda a sociedade, foi realizada uma live com o
tema “Projeto Pedagógico em Combate à Pobreza Menstrual” no Instra-
gram @casadasartesalpha.
Outra importante parceria foi a realizada com estudantes da Faculdade de
Medicina de Campos (FMC) por meio das ligas acadêmicas de Ginecologia
e Obstetrícia, Pediatria, Saúde Coletiva, Humanidades em Saúde, Medicina
de Família e Comunidade, Sociedade Universitária de Pesquisa e Diretório
Acadêmico Luiz Sobral Estudos Médicos que, conjuntamente, arrecadaram
absorventes para mulheres em situação de vulnerabilidade econômica e social,
tendo como ponto de arrecadação a própria Faculdade, direcionando as doa-
ções para o projeto, além de realizarem postagens informativas nas redes so-
ciais das referidas ligas, debaterem e problematizarem a pobreza menstrual na
faculdade com outros estudantes e professores.
Posteriormente, em dezembro de 2021, foi realizada uma parceria com a
Universidade Estácio de Sá por meio do Núcleo de Prática Jurídica do Curso
de Direito, de Campos dos Goytacazes, tendo como ponto de coletas a própria
universidade e a Casa do Advogado da 12a Subseção do Rio de Janeiro –
Campos/RJ e arrecadado 5.516 unidades de absorventes, doados mais uma
vez para mulheres privadas de liberdade que se encontram no Presídio Nilza
da Silva Santos.
A partir das etapas apresentadas acima, é possível constatar que ações e mo-
bilizações da sociedade civil organizada são de fundamental importância no
combate às desigualdades sociais, uma vez que nem sempre o poder público
consegue ou possui vontade política para mitigar os efeitos danosos da pobreza.

86 Disponível em: <https://www.vakinha.com.br/vakinha/pobrezamestrual-ana-paula-lo-


pes-ribeiro-gomes>. Acesso em: 25 maio 2022.

270
Os impactos da pobreza menstrual

Importa também sinalizar que uma análise que se pretenda crítica sobre
a desigualdade social precisa ser realizada a partir da interseccionalidade.
A pobreza tem cor e gênero. São as mulheres, sobretudo as negras no Brasil,
aquelas que se encontram em maior quantidade em situação de vulnerabili-
dade. O fenômeno denominado feminização da pobreza aponta justamente
para esse cenário.
O termo foi utilizado pela primeira vez na década de 1970 para apontar a
presença maior de mulheres entre os mais pobres. São muitos os estudos que
relacionam esse fenômeno com a omissão dos companheiros em compartilhar
as responsabilidades e o ônus do sustento das famílias. Como pontua Novelino
(2004), “[...] o processo de feminização da pobreza tem início quando a mulher,
sozinha, tem que prover o seu sustento e o de seus filhos [...]”, o que não exclui
a possibilidade de existência de mulheres pobres em famílias monoparentais.
Esse fenômeno possui uma série de explicações, uma das mais consensuais
a posição que as mulheres ocupam na divisão sexual do trabalho. Desse modo,
recai sobre elas a responsabilidade maior com o cuidado da casa, dos filhos,
dos doentes e dos idosos, o que leva a uma posição marginal no mercado de
trabalho, ocupando-se de funções menos valorizadas e de empregos infor-
mais, refletindo significativamente na condição econômica dessas mulheres.
Desse modo, buscou-se por meio da campanha atender o público fragilizado
socialmente no nosso município.

Conclusões

A pobreza menstrual é uma realidade que afeta milhares de pessoas em


todo o mundo. Alguns desdobramentos dessa desigualdade acabam ficando
invisibilizados, como é o caso da pobreza menstrual e seus efeitos sobre o pro-
cesso de aprendizado, o trabalho, a saúde física e psicológica dessas pessoas.
O silenciamento sobre o tema da dignidade menstrual precisa ser obser-
vado à luz dos artefatos culturais, das relações de poder e da normatização da
sexualidade presentes na sociedade e que traduz os corpos como “plásticos”,
ou seja, sempre prontos para serem consumidos e, nessa lógica, a menstruação
é tida como algo sujo e um tabu.

271
Tecendo redes e transpondo desafios

O enfrentamento da pobreza menstrual se dá via ações que atendam as de-


mandas imediatas dos corpos que menstruam, mas também com informação.
Superar esse problema de saúde pública passa pelo debate sincero e transparente
sobre saúde menstrual que deve ser realizado em instituições como a escola.
Considerando isso, a campanha descrita neste trabalho vai na direção de colabo-
rar para mitigar alguns impactos da pobreza menstrual no Município de Campos
dos Goytacazes/RJ, além de servir como mecanismo de publicização do tema.
Por meio de rodas de conversa, palestras e lives, buscou-se informar mulheres e a
sociedade de maneira geral sobre a realidade das pessoas que vivem em situação de
pobreza menstrual, bem como debater a importância da saúde menstrual.
Afinal, dignidade menstrual é direito humano e, em sua órbita, estão ques-
tões fundamentais para que meninas, mulheres e todos os corpos que mens-
truam possam viver esse momento com dignidade e humanidade.
No âmbito da esfera federal, o governo sancionou Projeto de Lei no
14.214/21, que institui o Programa de Proteção e Promoção da Saúde
Menstrual. No entanto, pontos importantes da proposta, como a previsão de
distribuição gratuita de absorventes higiênicos para estudantes carentes do
ensino fundamental e médio, mulheres em situação de vulnerabilidade e pre-
sidiárias, foram vetados sob a justificativa de não explicitar a fonte de recursos.
O que se verifica ao acompanhar de perto essa situação é que, durante
muito tempo, vigorou o silêncio sobre esse assunto. E esse silenciamento é
simbólico porque não falar sobre um determinado assunto é fingir que ele não
existe. A pergunta que deve ser feita em seguida é: para quem ele não existe?
Perceberemos que ele não existe para o Estado, para a escola, para o mercado
de trabalho e, também, para a sociedade. Esse silêncio sobre o direito à digni-
dade menstrual resulta em violação, em violência e na inércia da sociedade e
do poder público de agir no sentido de reverter essa situação.
Em 2014, a Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu que o
direito das mulheres à higiene menstrual é uma questão de saúde pública e
de direitos humanos. Mas, o que deveria ser um direito passa a ser, em muitos
casos, um luxo. Por isso, é preciso falar de dignidade menstrual e compreendê-
-la como direito que deve ser garantido para todos os corpos que menstruam,
exigindo políticas públicas que garantam dignidade para todas, todes e todos.

272
Os impactos da pobreza menstrual

Referências bibliográficas:

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273
Tecendo redes e transpondo desafios

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Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú MG – Brasil,
de 20- 24 de setembro de 2004.

SILVA, Marusa. O que é pobreza menstrual? Generalizando, Campos dos


Goytacazes, agosto, 2020. Disponível em: <http://generalizando.blog.br/o-que-
-e-dignidade-menstrual/>. Acesso em: 25 maio 2022.

274
276
277
Umuntu Ngumuntu Ngabantu
(s o mo s p esso a s a tr a v é s
d e o u t ras p es s o a s ) 8 7

Érica Louredo 88

Quem via aquela menina assim tão magrinha, dançando até o chão e dando
risada com a meninada, com um lindo sorriso largo, daqueles que vão “de
uma orelha à outra”, usando aquelas roupas de um amarelo tão vivo, nem
podia imaginar o tamanho de mortificação que carregava o sujeito que tinha
acabado de chegar naquele espaço de cuidados.
Essa era a Dalva, que nos era apresentada pelos meninos em uma confra-
ternização despretensiosa.
Fazia pouco tempo que estava na rua. O flerte com a droga era incipien-
te. Dalva tinha, na realidade, uma questão com a prostituição. Sua família
também! E, assim bem cedo, teve seu corpo infantil mortificado por usos e
abusos recorrentes.
A família não garantia proteção, a sociedade dizia que ela encontrava o que
buscava, outros entendiam que ela não aceitava ajuda.
Quando fugiu desse desgosto doméstico, chegou à rua. Esse mundão sujo e
mal cheiroso, cheio de vulnerabilidades, com pitadas do que já vivia, salpicadas

87 Estilo MLA: Nelson Mandela e o Arco-íris da Cultura. NobelPrize.org. Divulgação do


Prêmio Nobel AB 2021. Seg. 9 de agosto de 2021. Disponível em: <https://www.nobel-
prize.org/prizes/peace/1993/mandela/article/>. Acesso em: 25 maio 2022.

88 Psicóloga e Mestranda em Saúde Coletiva pela Universidade Federal Fluminense (UFF).


Umuntu Ngumuntu Ngabantu

de cenas e situações de violências múltiplas, na abstinência de elementos es-


senciais à vida humana, mas com alguma coisa que a fez escolher estar ali.
Assim ela chegou e assim se apresentou. Estava com aqueles com quem pode
se identificar: os meninos de rua, moleques, pivetes, cracudinhos, enfim, o nome
que se costuma dar a esse povo pequeno que habita as ruas da cidade. Mas o que
importava é que eles a receberam e acolheram de bom grado, ela já não era tão
só e não havia nada que lhe faltasse que sobrasse aos outros do seu grupo.
Passou, assim, a circular com eles. E eles foram sua ponte para chegar ao
CAPSi construindo algum pedido. Estava sendo ouvida e passou a estar por
lá com alguma frequência.
Mas um dia, alguém “de um planeta distante” decidiu que ela, assim como
os outros, estavam errados em fugir dos problemas entre paredes e escolher o
problema a céu aberto. E esses “estrangeiros”, ou “alienígenas”, que desconhe-
cem que cada sujeito deste planeta tem uma vivência, uma história, escolhas
e desejos, desde bem pequenos, decidiu guardar todo mundo em uma “nave
espacial” que pudesse formatar pessoas. Dalva, que estava ali há pouco, foi
neste pacote. Seu nome nem era da lista! Mas acabou sendo guardada junto
dos outros por estar junto. E, estranhamente, acabou sendo guardada por mais
tempo que os outros, pois seu nome não estava na lista para sair. Mesmo as
tecnologias mais avançadas falham!
Quando a nave abriu, Dalva saiu etiquetada e nunca mais conseguiu des-
grudar desse decalque. Dalva não pode mais ser a mesma, suas escolhas se
tornaram ainda mais prejudiciais e seu futuro foi decidido aquém de sua ca-
pacidade de remodelar.
Dalva, bem como outros pequenos da cidade, são nossos. Produção e cria-
ção do nosso sistema. Quem diz que eles não podem estar nas ruas e que
precisam de alguma coisa somos nós! Porque, muito antes de estarem sendo
conduzidos a tratamento ou encerrados em acolhimentos ou sistema socioe-
ducativo, eles já sofreram com nossos olhares de reprovação e desprezo, além
de outras violências estruturais corriqueiras. Ao nascer, o sujeito é apresentado
ao um Universo significante.
Na lógica da boa mendicância, deveriam ser discretos, pacíficos e síni-
cos. Podiam ser suportados em sua invisibilidade. Mas essas crianças não se

279
Tecendo redes e transpondo desafios

escondem, não se curvam facilmente e ainda usam drogas a céu aberto, fazem
sexo entre si, tudo isso em plena luz do dia, em ruas nobres da cidade.
Por que precisam se adequar? Ao que eles precisam se adequar? O que
demandam? Por que não podem estar na rua? Onde podem estar? Quem
pode cuidar? Abrigo? Acolhimento? Eles desejam acolhimento? O que eles
desejam? O que, de fato, faz diferença? O que, de fato, podemos oferecer?
Costumam dizer que essas crianças de rua andam em bando. É como se,
cientes de sua pequeneza e fragilidade, se acoplassem feito “Megazord”89.
Assim, ao formarem esse corpão, essa espécie de família, conseguem sobre-
viver às adversidades da vida nas ruas. Tem que haver laços muito fortes e
íntimos para conseguir formar um grupo tão coeso.
Talvez seja preciso estar, de algum modo, a salvo dessa cultura colonizada
que nos consome e individualiza para construir uma alternativa tribal, coleti-
va, resistente em meio a essa selva.
O que me proponho discutir com essa narrativa é o efeito iatrogênico de
ações violentas travestidas de cuidados. A ação de proteção que não inclui a
vivência e cultura do sujeito e não o coloca no centro do cuidado o destitui de
saberes sobre si mesmo e pode se tornar ação de violência.
Não podemos nos esquecer que vivemos uma estrutura cultural violenta,
está enraizada na nossa história, e nós a reproduzimos cotidianamente em
lógicas e práticas verticalizadas.
A alienação das ações, a paixão pelo poder, o isolamento das estratificações
sociais nos distanciam ainda mais de reconhecer inteligência no outro, o saber
sobre si. É urgente a necessidade de lançarmos olhar crítico sobre o trabalho,
sobre os encontros, sobre usuários e trabalhadores. É urgente horizontalizar
saberes e fazeres, respeitar os pares e os ímpares.
Encerro minha fala com um desejo: que os poderes não nos corrompam!

89 Na série “Power Rangers”, os personagens se acoplam e formam um robô grande e forte,


que consegue vencer os monstros gigantes. Esse robô é chamado “Megazord”.

280
A a tua ção d o P ro g r a m a Mu lh e r io
no c icl o d e p o l í t i c a s p ú b lic a s
pa r a mu l h eres em N ite r ói/R J

Thais Ferreira Rodrigues 90


Ana Clara Oliveira da Cunha Soares 91

O Programa “Mulherio: Tecendo Redes de Resistência e Cuidados”, formu-


lado como um programa de extensão universitária que, por princípio, é a ação
da Universidade junto à comunidade, possibilitando o compartilhamento do
conhecimento adquirido pelo ensino e pela pesquisa acadêmica, se desdobrou
em outras frentes e se tornou, inclusive, objeto de estudos.
Em processo de finalização, a pesquisa de pós-doutoramento no Programa
de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP) da Universidade Federal Fluminense
(UFF), sob a supervisão da professora Paula Land Curi, intitulada “Programa
Mulherio: ‘burocratas de rua’ na despatriarcalização do Estado”, procura ana-
lisar o papel do Programa no ciclo de políticas públicas para mulheres em
Niterói. Embora pesquise as políticas de forma intersetorial, o foco recai nas
políticas de enfrentamento às violências de gênero.
Em um modelo ideal, esse ciclo é composto pelos estágios de construção da
agenda; formulação da política; processo decisório, implementação e avaliação.
O argumento inicial da pesquisa se baseava na ideia de que o Programa
“Mulherio”, além de instrumentalizar um processo dialético, interdisciplinar e
intersetorial em relação às mulheres e às políticas públicas, vem se constituindo

90 Cientista Política. Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

91 Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).


Tecendo redes e transpondo desafios

enquanto proposta de uma política feminista. O que vai de encontro ao que


tem sido denominado a quarta onda do feminismo brasileiro. Talvez menos
pelo viés tecnológico que esta traz como marca, por meio dos ativismos digi-
tais, mas pelo lugar de destaque alçado na sua participação na formulação de
políticas públicas em instituições vinculadas aos entes federativos.
Sendo assim, o Programa tem se voltado ao auxílio de gestores públicos de
Niterói na sustentação de políticas públicas de enfrentamento às violências
de gênero, fortalecendo o ativismo feminista com um movimento de dentro
para fora, feita pela associação com diversos coletivos feministas. Defende-se
que, ao atuar junto à gestão municipal niteroiense, tanto no atendimento às
mulheres em situação de violência, quanto na capacitação de agentes públicos
ao oferecer atividades que discutem a problemática das violências contra as
mulheres, o “Mulherio” assume um papel na “burocracia de rua” da cidade.
O “Seminário de Políticas Públicas para o Enfrentamento às Violências de
Gênero Contra as Mulheres da cidade de Niterói: Tecendo redes e transpondo
desafios porque resistir é cuidar e cuidar é resistir” trouxe um novo ponto de aná-
lise para a pesquisa. A promoção do evento fez com que o Programa Mulherio
fosse classificado também como agência avaliadora de políticas públicas. é possível
identificar ações vinculadas ao Programa no processo de construção de agenda por
meio da participação nas Conferências Municipais de Políticas para Mulheres
(CMPM) e na formulação das políticas ao atuar na assessoria da construção do
Plano Municipal de Políticas para Mulheres. Além disso, integrantes do Programa
“Mulherio” atuam na burocracia de rua da gestão municipal, principalmente na
área de saúde como psicólogas e na capacitação de trabalhadores da rede de servi-
ços da cidade em relação a uma atuação que compreenda e coloque em prática as
demandas feministas no enfrentamento às violências de gênero.
O presente texto irá focar no primeiro ponto acima citado e procura enten-
der como as discussões suscitadas em cada Grupo de Trabalho (GT) realizado
no Seminário e os encaminhamentos decorrentes podem ser considerados
uma avaliação da gestão municipal e um passo importante para a construção
de novas agendas e reformulações das políticas já existentes em Niterói. Para
tal, foi feita observação participante nos GTs e uma análise dos documentos
de relatoria apresentados ao final de cada dia do Seminário.

282
A atuação do Programa Mulherio no ciclo de políticas públicas

Ação pública feminista por meio da burocracia


de rua

Os estudos sobre o papel fundamental da burocracia de rua na imple-


mentação de políticas públicas ganharam contornos consistentes a partir da
década de 1980 e a referência na denominação do termo foi de Lipsky (1980).
Para o autor, os burocratas de nível de rua (BNR) são agentes estatais que
trabalham diretamente no atendimento aos usuários dos serviços públicos. O
que os define não é a posição hierárquica, mas serem o elo de conexão e acesso
entre usuários e Estado. Ao estarem em contato direto com os usuários dos
serviços, eles são fonte importante de informações para o próprio Estado e
para o desenho de políticas públicas (LOTTA, 2021).
O principal elemento para análise dos BNR é o conceito de discriciona-
riedade, definido como o espaço de liberdade para tomada de decisão, dentro
do constrangimento colocado pelas regras. Pode ser entendido também como
o espaço de racionalidade utilizado para transformar uma regra geral em uma
determinação específica, o poder de exercer escolhas dentre um conjunto
de alternativas que a lei não predetermina. De acordo com Lotta (2021), a
discricionariedade é um elemento central para a compreensão da ação dos
burocratas de rua porque é a partir dela que a ação se materializa, as decisões
são tomadas e a implementação das políticas ocorre (LOTTA, 2018, p 15-16).
Os “burocratas de nível de rua” são agentes implementadores que prestam
seus serviços diretamente ao usuário-cidadão ou monitoram os serviços públicos
prestados por terceiros. Por estarem na linha de frente, acaba sendo inevitável
que adotem ações discricionárias para garantirem, de alguma forma, a aplicação
das políticas. No processo de implementação de policies, esses agentes adquirem
habilidades específicas – tanto técnico-administrativas como relacionais – para
lidar com os diferentes atores envolvidos nas incertezas e ocorrências não pre-
vistas nas normas. As decisões desses burocratas, que frequentemente fazem
parte do contexto social em que atuam, podem oscilar dentro de uma margem
de discricionariedade relativamente ampla, dependendo do seu grau de autono-
mia e da existência de regras claras e completas que delimitem comportamentos
e tomadas de decisão (LIPSKY, 1980; BONELLI et al., 2019).

283
Tecendo redes e transpondo desafios

Dessa forma, o Programa “Mulherio”, representado por suas integrantes,


diante da complexidade que envolve as políticas públicas para mulheres e da
dominação masculina que permeia a ação pública, pode utilizar da discriciona-
riedade para implementar ações pautadas por ideias feministas. Davis (1969)
alega que o agente público tem discricionariedade onde quer que os limites
efetivos de seu poder deixem-no livre para fazer uma escolha entre possíveis
cursos de ação e inação. Para Hupe e Hill (2007), a existência de regras não
impede que qualquer tipo de norma precise ser interpretado e aplicado à situa-
ção fática. Portanto, o exercício da discricionariedade é essencial na execução
de policies diante da necessidade de tomar decisões que atendam ou excluam
potenciais usuários ou beneficiários de serviços públicos.
Para além das interações entre os agentes públicos em diversos níveis e que
permite certa discricionariedade, a ação pública é pautada por regras, normas e
estruturas predeterminadas. Todos esses elementos influenciam mutuamente
no complexo processo de tomada de decisão que permeia a prestação de ser-
viços públicos para os cidadãos. Assim, sustenta-se que a aderência às regras,
a ação individual dos burocratas de nível de rua e suas interações afetam con-
juntamente a implementação de políticas públicas.
Deve-se destacar que o Seminário promovido pelo Programa “Mulherio”
tinha como público alvo as/os burocratas da gestão pública municipal de
Niterói. Além disso, funcionárias da Coordenadoria de Políticas e Direitos das
Mulheres (CODIM) e do Centro Especializado de Atendimento à Mulher
(CEAM) participaram da organização do Seminário e trabalharam durante a
realização do mesmo como relatoras e coordenadoras de GTs. A partir dessa
composição, considera-se que o Seminário estava avaliando a ação pública
municipal a partir de quem a implementa.

Os Grupos de Trabalho e a avaliação da gestão


municipal

As discussões travadas durante o Seminário foram divididas em dez Grupos de


Trabalho (GTs) que ocorreram simultaneamente durante o evento. Os GTs foram
organizados, inicialmente, a partir dos eixos estruturantes da Política Nacional de

284
A atuação do Programa Mulherio no ciclo de políticas públicas

Enfrentamento à Violência Contra a Mulher, formulada em 2011, denominados


Prevenção; Educação e Combate; Assistência; Acesso; e Garantia. No entanto, à
medida que os trabalhos começaram a ser submetidos, a divisão por temas ganhou
outros contornos. Por fim, ficaram divididos em: Pandemia; Saúde e violência estatal;
Violência sexual; Prevenção às violências; Educar e prevenir; Grupos de prevenção;
Aborto; Cuidado humanizado; Maternidades subalternas; e Interseccionando.
Diversos encaminhamentos foram retirados a partir das contribuições das
pessoas participantes, no entanto, nem todos se referiam especificamente à
cidade de Niterói ou se relacionavam às questões direcionadas aos entes mu-
nicipais. A estratégia adotada para contornar esse fato foi a utilização dos
documentos disponibilizados por bolsistas da Agência de Inovação (AGIR)
da Universidade Federal Fluminense (UFF) que investigam as rotas críticas
em Niterói e também participaram do Seminário. A partir disso, foram sele-
cionados e divididos em cinco categorias, demonstradas nas tabelas a seguir.

Tabela 1 – Sistematização de dados e Monitoramento de Resultados


• Disponibilizar os dados estatísticos sobre as campanhas lançadas.
• Maior transparência e detalhamento do orçamento referente às políticas para as mulheres.
• Construir espaços seguros para avaliação e reformulação de políticas.
• Destacar os fluxos e os furos da rede – as Rotas Críticas –, assim como os mecanismos
como as políticas públicas são implementadas e operacionalizadas.
• Dar amplo conhecimento do número de casos no município, de preferência, cruzando
com outras categorias, como raça, bairro, horário etc.
• Determinar o impacto da violência sexual na vida das mulheres e o gasto do dinheiro público.
• Monitoramento e indicadores qualitativos e quantitativos com consequências nos serviços.
Fonte: Elaborada pela autora.

Tabela 2 – Reformulação e aperfeiçoamento das políticas


• Priorizar o atendimento de mulheres periféricas que não têm acesso à justiça.
• Ampliar a interação entre a rede e seus profissionais, minimizando os gargalos nos
atendimentos e seus impactos nas mulheres em situação de violência.
(continua)

285
Tecendo redes e transpondo desafios

Tabela 2 – Continuação
• Tornar a CODIM uma Secretaria Municipal, dotada de orçamento próprio.
• Promover espaços de diálogo entre a saúde e outros setores, aproximando a CODIM
de propostas na educação e saúde nos territórios.
• Reavaliar as situações de abrigamento das mulheres.
• Efetivação das rodas de conversa com as gestantes, proposta pela Rede Cegonha, nos
postos de saúde, facilitando a entrada e o acesso.
• Ampliação das vagas para cuidado de saúde mental das mulheres puérperas.
Fonte: Elaboração pela autora.

Tabela 3 – Informação e divulgação


• Estruturar a política pública, definindo nomenclaturas nacionais.
• Implementar em cada distrito geográfico um Centro Especial de Orientação,
Acolhimento e Atendimento para Mulheres Vítimas de Violências (CEAM).
• Informações de prevenção e cuidados devem ser repassadas de modo claro e efetivo aos
pacientes, visando à compreensão dos caminhos dos pacientes.
• Determinar quais são as unidades de referência para a violência sexual e para aborto
legal; explicitar as redes e os fluxos para as mulheres, facilitando o acesso de seus direitos
(portas de entrada para o aborto legal).
• Dar maior visibilidade ao Conselho Municipal de Políticas para as Mulheres,
estimulando a participação popular.
• Divulgar o Estatuto da Pessoa Gestante de Niterói e monitorar o seu cumprimento.
Fonte: Elaborada pela autora.

Tabela 4 – Capacitação da rede de serviços


• Capacitar profissionais de toda a rede intersetorial de serviços.
• Voltar-se ao trabalho pela qualificação dos funcionários que operam nos serviços, com a
sugestão de transformar em agenda no Departamento de Saúde da Mulher discussões
voltadas às equipes questionando o que tem sido feito.
• Capacitar para o preenchimento adequado do Sistema de Informação de Agravos de
Notificação (SINAN).
• Capacitação para professores da rede municipal de educação sobre violências contra as mulheres.
• Operar uma formação continuada de agentes públicos e comunitários em uma
abordagem multiprofissional.

286
A atuação do Programa Mulherio no ciclo de políticas públicas

Fonte: Elaborada pela autora.

Tabela 5 – Criação de novas políticas


• Criar ouvidorias municipais para mulheres (Observatório de Mulheres).
• Fomentar concursos públicos visando ao provimento de vagas para servidores, de modo
a possibilitar a continuidade dos atendimentos e serviços.
• Determinar multas para pessoas que praticam violência contra as mulheres.
• Criação de Fundos de Políticas para mulheres vinculados aos Conselhos de Direitos
para que se tenha orçamento e recursos financeiros que permitam a implementação e
implantação de projetos, programas e atividades.
• Elaboração de agendas com eventos voltados à atenção, prevenção e cuidado da saúde
da mulher.
• Levar as discussões sobre violência de gênero para fora dos muros das instituições de
ensino. É mais do que urgente levá-las para as instâncias do Estado.
• Fazer em maio um seminário sobre estudos, pesquisas e práticas sobre maternidades
insurgentes, atípicas e não assistidas pelo Estado.
• Promover concurso público para profissionais na rede intersetorial de enfrentamento
às violências de gênero.
Fonte: Elaborada pela autora.

Alguns encaminhamentos foram recorrentes nos relatórios dos GTs, com


destaque para a necessidade de capacitação dos burocratas de rua para o enfren-
tamento às violências de gênero contra as mulheres que apareceu em todos os
documentos. Embora existam capacitações pontuais oferecidas pela Prefeitura
Municipal de Niterói, inclusive em parceria com o Programa “Mulherio”, é pre-
ciso que seja algo institucionalizado na gestão e que ocorra em todos os níveis
de prestação de serviço. Além disso, é fundamental que os vínculos trabalhistas
sejam menos precários para que essa capacitação seja progressiva e constante.
Evitando que seja necessário reiniciá-la a cada mudança dos burocratas de rua
que atuam no enfrentamento às violências de gênero.
Os resultados do estudo apresentado por Batista, Schraiber e D’Oliveira
(2018) apontaram para o fato de que capacitações específicas e maior aten-
ção a elas em nível local podem produzir resultados positivos importantes.
Embora a adesão à perspectiva de gênero apareça como característica pessoal,
os resultados também sugerem que tomar a violência como parte do escopo

287
Tecendo redes e transpondo desafios

profissional pode ser resultado de políticas mais integradas, mais claras quanto
a seus propósitos e mais responsáveis quanto à implantação das normas e for-
mulações gerais que constam de seus discursos, ao gerarem ações específicas
de implementação. O que demonstra que os encaminhamentos formulados
durante o Seminário estão de acordo com boas práticas de gestão pública que
devem servir de inspiração.

Considerações finais

Ainda que seja um apontamento em processo de construção, a análise feita


até aqui demonstra que a atuação extensionista do Programa “Mulherio” se
divide, principalmente, em três frentes: implementação, institucionalização e
avaliação de políticas para mulheres em Niterói.
Utiliza a discricionariedade presente na burocracia de rua para implemen-
tar pautas feministas na ação pública, possibilitando uma despatriarcalização
do Estado. Além da articulação com a gestão pública municipal na institucio-
nalização das políticas de enfrentamento às violências de gênero, contribuindo
para o fortalecimento das mesmas. Colocando em prática, portanto, o papel
da extensão universitária ao influenciar a realidade social, transformando-a.
O Seminário promovido pelo Programa demonstra que a Prefeitura
Municipal de Nitéroi precisa alinhar aquilo que está contido na documentação
oficial com as práticas executadas pela burocracia de rua. Ainda há um descom-
passo entre aquilo que foi demandado nas Conferências Municipais de Políticas
para Mulheres e o que está sendo implementado. Além disso, os agentes da
burocracia de rua necessitam ser mais ouvidos e envolvidos nos processos que
envolvem o ciclo de políticas de enfrentamento às violências de gênero.

Referências bibliográficas:

BATISTA, K. B; SCHRAIBER, L. B.; D’OLIVEIRA, A.F.P.L. Gestores de saúde e


o enfrentamento da violência de gênero contra as mulheres: as políticas públicas e
sua implementação em São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, 34, 2018.

288
A atuação do Programa Mulherio no ciclo de políticas públicas

Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0102-311X00140017>. Acesso em:


25 maio 2022.

BONELLI, F.; FERNANDES, A.S.A; COELHO, D.B; PALMEIRA, J.S. A atuação


dos burocratas de nível de rua na implementação de políticas públicas no Brasil:
uma proposta de análise expandida.CAD.EBAPE.BR,v.17,Edição Especial,Rio de
Janeiro, nov. 2019. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1679-395177561>.
Acesso em: 25 maio 2022.

DAVIS, K. C. Discretionary justice. Baton Rouge: Louisiana StateUniversity Press, 1969

HUPE, P.; HILL, M. Street‐Level bureaucracy and public accountability.


Public Administration, v. 85, n. 2, p. 279-299, 2007. Disponível em:
<https://doi.org/10.1111/j.1467-9299.2007.00650.x>. Acesso em: 25 maio 2022.

LIPSKY, M. Street-level bureaucrats. Nova York: Russel Sage, 1980.

LOTTA, G. Burocracia e implementação de políticas públicas: desafios e poten-


cialidades para redução de desigualdades. Brasília: ENAP, 2021.

289
290
291
P o sf áci o

Eu não estou aceitando mais as coisas que eu não posso mudar:


estou mudando as coisas que eu não posso aceitar. (Angela Davis)

Este e-book é resultado de um árduo trabalho que envolveu muitas mãos


e que, a cada dia, nos alimenta e nos enche de esperança. Uma construção
coletiva, que revela a importância de tecermos juntas redes de resistência e
cuidados, exatamente porque resistir é cuidar e cuidar é resistir.
Diversos trabalhos foram apresentados, muitas experiências foram com-
partilhadas, demostrando que, a despeito da diversidade das formas de estar
com mulheres, temos que seguir lutando por uma sociedade sem opressão, dis-
criminação, violências e violações de direitos humanos, sexuais e reprodutivos.
Temos que seguir apostando na construção de uma sociedade mais igualitária,
na qual todas, todos e todes, com toda a pluralidade que a anima, possam ser
incluídos e respeitados. Possam gozar de uma existência digna e livre.
Nesta perspectiva, ratificamos a nossa esperança freiriana. Poderíamos seguir
esperando por dias melhores. Esperando por milagres. Mas não! Resolvemos
esperançar e fazer valer a nossa luta pela luta por direitos e pelas mulheres.
Essa esperança transborda, nos permite ir para além das bordas, transfor-
ma. A esperança, como salienta Paulo Freire:

[...] enquanto necessidade ontológica, precisa de ancorar-


-se na prática. Enquanto necessidade ontológica, precisa da
prática para tornar-se concretude histórica. É por isso não
há esperança na pura espera, nem tampouco se alcança o
que se espera na espera pura, que vira, assim, esperança vã.
(FREIRE, 2013, p.13)
Posfácio

Enquanto alinhavávamos os últimos detalhes deste livro digital, as feminis-


tas Debora Diniz e Ivone Gebara lançaram uma preciosidade. Em Esperança
Feminista (2022), ratificam que precisamos “[...] estranhar a conjugação
patriarcal naturalizada em nós [...]” e o que “[...] o feminismo não deve ambi-
cionar unidades ou coerência, mas permanente inquietação [...]”.
Essas mulheres, cuja potência bem conhecemos, nos ensinam a “[...] conju-
gar os verbos para a construção de uma desobediência criativa ao patriarcado
e suas tramas.” (DINIZ; GEBARA, 2022). Auxilia-nos a lembrar que “[...] a
esperança feminista não pode temer a diversidade, e se falamos em feminis-
mos no plural é [...] a prova de que encontros entre territórios de pronuncias
são necessários e possíveis.” (DINIZ; GEBARA, 2002).
Ao colocarmos em causa nossos fazeres cotidianos como mulheres em redes
que cuidam de mulheres, intentamos não só perturbar a ordem patriarcal, mas,
sim, nos fortalecermos para subvertê-la.

É assim a pedagogia feminista: uma mistura criativa de


possibilidades, um eterno assombrar-se, uma permanente
alegria com outras feministas, um futuro pleno de esperan-
ça de que o tempo ainda a ser vivido será livre e seguro para
todas. (DINIZ; GEBARA, 2022)

Esperamos, por último, que iniciativas como o Seminário e este e-book,


fruto das discussões suscitadas nele, se tornem uma constante, se enraízem na
cultura política feminista de Niterói e cidades parceiras. Que a universidade
seja uma ponte entre a gestão pública e as mulheres niteroienses na imple-
mentação de políticas públicas que estejam em consonância com os anseios e
necessidades das mulheres. Algo que passa, invariavelmente, por uma atuação
pública que eleja o enfrentamento às violências de gênero como prioritário.

Paula Land Curi


Thais Ferreira Rodrigues
Paloma Lima Ramos Jashar

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Tecendo redes e transpondo desafios

Referências bibliográficas:

DINIZ, Debora; GEBARA, Ivone. Esperança feminista. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos, 2022 – Kindle Edition.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do


oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013 – ePub.

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Au t o ret ra to

Érica Louredo 92

Ella leu Frida e chorou…

“Onde não puder amar não se demore.” – dizia o bastidor em letras bordadas.

Um profundo mergulho para entender que nesse mundo só podemos ter cinco
sentidos, e tudo o mais que seja sentido nem pode existir.

Ella era assim desde pequena e recebia broncas porque era sensível demais.

O que esse mundo reserva a quem sente demais? Temos tanto a fazer, tantos
compromissos e rotinas, que horas sobra para sentir? Não sobra... sentir custa
tempo e “time is money”.

A criança que sentia demais se calou e se formatou orgulhosamente para aten-


der ao que se esperava dela: operar. Sejam máquinas, pessoas, coisas. O tempo/
dinheiro precisa pagar as contas. Precisa para ontem e a conta nunca fecha.
Viver é foda, morrer é difícil.

Sentir que é difícil, já é sentir. E pronto, recaída de sentimento.

E assim a vida segue matando aos poucos, um dia por vez, e todos esperam a
redenção, o paraíso, a luz ao final do túnel.

Nas mensagens das redes sociais, dizem: aproveite o percurso, a felicidade está
no meio, não no fim.

92 Psicóloga e Mestranda em Saúde Coletiva pela Universidade Federal Fluminense (UFF).


Tecendo redes e transpondo desafios

Ella se questiona: onde é o meio? E o meio passa a ser o novo fim. Se manter
vivo até o meio

pode ser mais fácil. Mas será que vai poder sentir no fim? E no meio? Mas
hoje não, agora não, não dá tempo porque atrapalha, é coisa de mulherzinha.

Opa! Ella é mulher, se identifica como mulher, mas não pode sentir porque é
fraqueza, e mulher tem que ser forte, mesmo sendo mulherzinha.

Onde cabe sentir? Por que a lua me influi? Por que o sexto sentido? Onde, de
fato, tenho lugar?

Amar é coisa de outro mundo. Ella quer saber por que sente, por que ama e
odeia? Inclusive sente raiva e mágoa por não poder sentir. E engolir o senti-
mento é mais difícil que remédio amargo, porque remédio cura e sentimento
engolido faz adoecer.

Ella segue como água que tenta encontrar fissuras nas pedras para seguir um
caminho onde possa caber e passar. Por onde passa, molha, deixa um pouco
de si, perde um pedaço e ganha outros diferentes. Segue, porque amor calado
ainda é sentido.

E, ainda que de passagem, Ella segue resistindo em vida. Se desdobrando em


formas. Porque para as mulheres os caminhos são mais tortos, e o peso de não
sentir e privar-se das energias

femininas é torturante, mas boas bruxas não se deixam queimar sem resisti-
rem. E ao final ainda resta um resto de sedução e gargalhadas para torná-las
inesquecíveis.

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