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O Pensamento de

Paulo Freire
em Ação
Diálogos Freirianos em Tempos de (Pós) Pandemia

Organizadoras
Maria Tereza Goudard Tavares
ValÉria Oliveira de Vasconcelos
Dedicamos este livro à querida Dulce Whitaker e ao
querido Carlos Rodrigues Brandão, educadora e educador
incansáveis na tarefa de esperançar e na luta por tornar o
mundo um lugar onde caibam todas as pessoas.
Que suas travessias sigam servindo de sendeiro em nossa
perene caminhada, de mãos dadas, na busca por Ser Mais.
Com sincero amor e especial admiração,

Maria Tereza e Valéria.


© NAU Editora
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Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo, SP)
Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Pedro Anizio Gomes - CRB-8 8846
_________________________________________________________________________________
T231p Tavares, Maria Tereza Goudard; Vasconcelos, Valéria Oliveira de (org.).

O Pensamento de Paulo Freire em ação: Diálogos freirianos em tempos de (Pós) pandemia / Or-
ganizadoras: Maria Tereza Goudard Tavares e Valéria Oliveira de Vasconcelos; Prefácio de Sandro
de Castro Pitano. - 1. ed. - Rio de Janeiro, RJ : NAU Editora, 2023.
226 p.; il.; fotografias.
E-Book: 1 Mb; PDF.

Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-8128-110-0.

1. Educação popular. 2. Ensino Literário. 3. Escola Pública. 4. Formação de Professores. 5.


Movimentos Sociais. 6. Pedagogia da Autonomia. I. Título. II. Assunto. III. Organizadoras.

CDD 370.71
CDU 377.8
_________________________________________________________________________
1a. edição • 2023
Sumário

Apresentação ................................................................................. 7
Maria Tereza Goudard Tavares, Valéria Oliveira de Vasconcelos
Prefácio ........................................................................................ 11
Prof. Dr. Sandro de Castro Pitano
Por que Estudar Paulo Freire Hoje? as esperanças do
pensamento de Paulo Freire ....................................................... 14
Dulce Consuelo Andreatta Whitaker
Por que Estudar Paulo Freire Hoje? transcendendo o
pensamento de Paulo Freire........................................................ 21
Carlos Rodrigues Brandão
Experiências de Educação Popular e Práticas Integrativas
e Complementares em Saúde no enfrentamento à
pandemia da Covid-19 na atenção primária............................... 34
Pedro Cruz, Laís Maria Silva de Carvalho, Felipe Marques
da Silva, Ingrid Gabriele de Souza, Pedro Nascimento
Araújo Brito, Pedro José Santos Carneiro Cruz, Ana Claudia
Cavalcanti Peixoto de Vasconcelos
O Teatro Revolucionário no Centro Popular de Cultura:
algumas questões sobre o Teatro do Oprimido e a
Educação Popular ....................................................................... 49
Maria Tereza Goudard Tavares, Caroline Silva Barbosa
Entre Situações-Limite e Inéditos Viáveis: rotas feitas de
luta e esperança............................................................................ 69
Ricardo Bragança Pinheiro Tammela, Fabiana Eckhardt
Ideias-força do Pensamento de Paulo Freire e da
Educação Popular na práxis do movimento social de
prostitutas no Brasil................................................................... 84
Fabiana Rodrigues de Sousa, Fernanda Priscila Alves da Silva
A Formação Continuada com Professores/as Formadores/as
em Tempos de Pandemia................................................................ 99
João Vitor Gomes Alves, Tiago Zanquêta de Souza,
Gercina Santana Novais
Caminhos de Esperança: Paulo Freire em espaços de
privação de liberdade.................................................................115
Raylene Barbosa Moreira, Amanda Motta Castro
À Procura de um Caminho Libertador: o ensino de
literatura e a prática da biblioterapia a partir do
pensamento freiriano................................................................. 130
Beatris Barbosa Moreira, Camila Citadin Milaneze,
Janine Moreira
O Legado de Paulo Freire como Inspiração às Ações
Educativas Escolares e não Escolares .................................... 142
Orlandil de Lima Moreira, Ana Célia Silva Menezes,
Maria Margareth de Lima
O Papel de Paulo Freire na Luta Por uma Educação
Libertadora: uma contribuição para a emancipação dos
povos............................................................................................ 157
Florentino Maria Lourenço, Adrielle Karolyne da Silva Lisboa
Jovens em Situação de Acolhimento Institucional:
tematizando com Paulo Freire ................................................ 169
Vanessa Aguiar Cruz, Valéria Oliveira de Vasconcelos
Educação Popular na Perspectiva do Bem Viver..................... 189
Reinaldo Matias Fleuri
Educação Popular e Agroecologia: diálogos à sombra de
copaíbas, jatobás, ipês e manacás “y otras más”....................... 203
Valéria Oliveira de Vasconcelos, Renata Evangelista de Oliveira
Sobre as/os Autoras/es .............................................................. 219
Apresentação

Maria Tereza Goudard Tavares


Valéria Oliveira de Vasconcelos

O Grupo de Trabalho Educação Popular da ANPEd (GT06), ao longo de


seus 40 anos de existência e consolidação acadêmica e institucional no ce-
nário educacional brasileiro e latino-americano, tem procurado estabelecer
uma relação de diálogo com diferentes universidades, grupos de pesquisa,
redes de educação e ensino, bem como movimentos sociais distintos que
trabalham com a obra, o legado e o pensamento vigoroso de Paulo Freire em
suas atividades de Ensino, Pesquisa e Extensão.
A partir dessas considerações iniciais realizamos, enquanto coordena-
doras do GT 06 no biênio 2019-2021, uma ação extensionista denominada
Conversatórios – “O pensamento de Paulo Freire em ação: diálogos Freirianos
em tempos de (pós) pandemia”. Essa atividade extensionista, de caráter na-
cional e latino-americano, pensada, planejada e realizada totalmente de forma
remota em plena pandemia da Covid-19, objetivou “promover o debate sobre
o pensamento e o legado de Paulo Freire a partir das comemorações de seu
centenário de nascimento em setembro de 2021 (1921-2021)”. Sendo que o
foco epistêmico e político dos diferentes Conversatórios foi a questão do en-
frentamento das desigualdades sociais, econômicas e educacionais em tempos
de (pós) pandemia, tanto nas escalas locais e nacionais, quanto nas escalas de
países latino-americanos.
Os Conversatórios, constituídos enquanto espaço-tempo de conver-
sas e compartilhamentos entre diferentes pesquisadoras e pesquisadores do
GT – Educação Popular da ANPEd e convidados/convidadas do campo
da Educação Popular, foram materializados a partir de sete encontros vir-
tuais, que constituíram parte dos capítulos deste E-book. No movimento

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Apresentação

de realização dos diferentes Conversatórios, outros e outras pesquisadores e


pesquisadoras foram se agregando ao projeto coletivo da obra que temos a
alegria e a honra de apresentar.
No primeiro capítulo, Dulce Whitaker nos brinda com alguns te-
mas que ela considera estar na evolução do pensamento de Paulo Freire
nos anos 1960: a “conscientização” – que explica a consciência ingênua
e a consciência crítica –; a “utopia”, como possibilidade que as pessoas
vislumbram em direção ao futuro; “o caráter necrófilo da opressão”, que
emerge em tempos passados e atuais; e a “esperança”, que torna possível
romper com as situações-limite.
O segundo capítulo trata de uma fala de Carlos Rodrigues Brandão
com a qual nos provoca com seu “estranhamento antropológico” afirman-
do que “a melhor maneira de compreender Paulo Freire é ‘compreendê-lo
com’, ‘compreendê-lo em’”, atentando para sua conectividade e sensibili-
dade com as quais educa para transformar pessoas em pessoas dialógicas.
No capítulo 3, de autoria de Pedro Cruz, são apresentadas experiên-
cias pautadas em duas importantes metodologias no enfrentamento à pan-
demia da Covid-19: a Educação Popular em Saúde (EPS) e as Práticas Inte-
grativas e Complementares em Saúde (PICS). Os resultados apontam que
essas ações podem potencializar o protagonismo comunitário no cuidado
integral, ampliando e difundindo espaços e experiências locais de cuidado,
apesar das limitações impostas pelo contexto.
O capítulo 4, elaborado por Maria Tereza Goudard Tavares e Caro-
line Silva Barbosa, discute o papel do teatro – compreendido como “arte
revolucionária” – e a Educação Popular no interior das ações do Centro
Popular de Cultura (CPC), focalizando principalmente a relação entre arte,
cultura e conscientização. As autoras buscam conhecer e problematizar o
teatro popular – como dispositivo de Educação Popular e partilha do sensível
– a partir do diálogo entre Augusto Boal e Paulo Freire.
O capítulo 5, escrito por Ricardo Pinheiro Tammela e Fabiana
Eckardt, traz o relato de reflexões tecidas em uma pesquisa de Mestrado em
Educação a partir de um projeto de extensão universitária. O texto apresen-
ta histórias entrelaçadas no cotidiano e seus atravessamentos causados pela
pandemia da Covid-19, tomada como “situação-limite”, que gerou dificul-
dades e aumentou a escassez, mas promoveu “inéditos-viáveis”, mudando o
rumo e criando rotas feitas de luta e esperança.

8
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

No capítulo 6, Fabiana Rodrigues de Sousa e Fernanda Alves da Sil-


va analisam as ressonâncias de três ideias-força advindas da obra de Paulo
Freire na organização e práxis do Movimento Social de Prostitutas – leitura
de mundo desde o interior da prática social vivida; ampliação das fronteiras
do Ser Mais; cidadania coletiva e participação popular – a fim de evidenciar
como mulheres trabalhadoras sexuais brasileiras vêm aprendendo a tecer sua
autonomia e a dizer a sua palavra coletivamente.
João Vitor Gomes Alves, Tiago Zanquêta de Souza e Gercina San-
tana Novais assinam o capítulo 7, cuja temática trata da Formação Con-
tinuada com professores/as formadores/as em tempos de pandemia. O
estudo revelou, sobretudo, a importância da comunicação, do diálogo,
do compartilhamento de experiências como processo de humanização e
comprometimento com o ato de educar entendido como sustentáculo da
experiência humana em sociedade.
No capítulo 8 – “Caminhos de esperança: Paulo Freire em espaços de
privação de liberdade” –, Raylene Barbosa Moreira e Amanda Motta Castro
tecem reflexões sobre o encarceramento em massa, mais especificamente na
Penitenciária Estadual de Rio Grande. Nesse contexto, buscam investigar
o trabalho das educadoras que desenvolvem um movimento de remição de
pena por meio da leitura e, a partir dele, compreender a perspectiva freiriana
nesse espaço majoritariamente masculino.
No capítulo 9 – “À procura de um caminho libertador: O ensino de Li-
teratura e a prática da biblioterapia a partir do pensamento freiriano” – Beatris
Barbosa Moreira, Camila Citadin Milaneze e Janine Moreira, ancoradas em
uma pedagogia engajada, apontam o ensino de Literatura e o estudo e prática
da biblioterapia como uma forma de espaço para emancipação do sujeito com
vistas à contraposição de uma educação bancária, não emancipatória.
“O legado de Paulo Freire como inspiração às ações educativas escola-
res e não escolares” é aprofundado no capítulo 10 por Orlandil Moreira, Ana
Célia Menezes e Maria Margareth de Lima. Aqui, buscam desenvolver uma
reflexão acerca da atualidade e da contribuição de seu pensamento para o
campo da Educação Popular em espaços acadêmicos e dos movimentos sociais
populares. Apontam que seu legado ultrapassa o tempo histórico e se configu-
ra como um pensamento clássico na área da educação.
Para o capítulo 11, intitulado “O papel de Paulo Freire na luta
por uma educação libertadora: uma contribuição para a emancipação dos

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Apresentação

povos” Florentino Maria Lourenço e Adrielle Lisboa trazem experiências


vivenciadas e reflexões construídas a partir de duas pesquisas atravessadas
pelo pensamento de Paulo Freire que refletem sobre seu engajamento po-
lítico-educacional na consolidação das independências e emancipação dos
países africanos e a reverberação desta cultura no Brasil.
No capítulo 12, Vanessa Aguiar Cruz e Valéria Oliveira de Vasconcelos
aprofundam considerações sobre “Jovens em situação de Acolhimento Institu-
cional: tematizando com Paulo Freire”, que, no decorrer de suas vidas, vivem
numa situação concreta de ruptura de vínculos com a família de origem, e
sua educação não é promovida como “prática da liberdade”, pelo contrário.
Partindo da problematização dos temas geradores, a autora desvela vidas em
busca de sonhos, desejos e aspirações numa realidade em que suas vozes difi-
cilmente são escutadas.
No capítulo 13 – Educação Popular na perspectiva do Bem Viver –,
Reinaldo Fleuri busca – tendo como pano de fundo seu projeto de pesquisa
de mais de 50 anos, e consolidado nos trabalhos da Rede de Pesquisas “Mover”
– reformular categorias teóricas no campo da Educação Popular no intuito de
conseguir auscultar em profundidade o que “as classes populares estão queren-
do nos dizer”.
Por fim, no capítulo 14, intitulado “Educação Popular e Agroecologia:
diálogos à sombra de copaíbas, jatobás, ipês e manacás”, Valéria Vasconcelos
e Renata Evangelista de Oliveira traçam considerações sobre os vínculos orgâ-
nicos entre essas duas práxis – tomadas como Ciência, Prática e Movimento
Social – gestadas na interação entre sujeitos sociais ‘em movimento’.
Esperamos que estes trabalhos contribuam para o fortalecimento do
Pensamento de Paulo Freire em ação e, mais especificamente, para ampliar a
abrangência e influência da Educação Popular no Brasil e na América Latina.

Boa Leitura!

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Prefácio

Foi com grande prazer que recebi o convite para prefaciar a obra O pensa-
mento de Paulo Freire em ação: diálogos freirianos em tempos de (Pós) Pande-
mia. Ela é fruto do “Conversatórios”, uma atividade de abrangência con-
tinental (América Latina) promovida e executada em meio à sindemia da
Covid-19, sob a coordenação de Maria Tereza Goudard Tavares e Valéria
Oliveira de Vasconcelos, então coordenadoras do GT6 – Educação Popu-
lar da ANPEd. Igualmente organizada por Tereza e Valéria, a obra reúne e
expressa algumas das principais características da educação popular como
uma prática social genuinamente latino-americana. Dentre elas, destacarei
três, refletindo os afetos provocados pela leitura.
A primeira, que se acha estampada no título, consiste na centrali-
dade atribuída ao pensamento de Paulo Freire, um dos mais importantes
nomes da área da Educação em geral, e da Educação Popular, em especial.
Na perspectiva da ação diante de conjunturas históricas distintas, o livro se
coloca no desafio de reinvenção, lançado por Freire sobre o seu pensamento.
Refletir sobre problemas contemporâneos exige de quem o faz o exercício
desse reinventar, em consonância com a substantividade de suas ideias. Uma
substantividade afirmada e descrita por Freire em Pedagogia do compromisso
(2021), com ênfase no respeito pelo outro, na compreensão da história como
possibilidade, rejeitando qualquer compreensão fatalista ou determinista da
historicidade que nos constitui; no amor incondicional pela liberdade e pela
convicção da possibilidade de virmos a nos tornarmos seres transformativos
e dialógicos, com capacidade para tomar decisões e promover rupturas.
Em Freire, a ação educativa se situa na cultura dos educandos. Por quê?
Como essa compreensão nos auxilia no necessário esforço analítico sobre o
presente, desafiados a reinventar? Freire se mostrava preocupado com a pro-

11
prefácio

gressiva construção de uma cultura impositiva, afirmadora do sistema capita-


lista, cuja condição de crise permanente impunha – e continua impondo – no-
vas atualizações. E como imposição, ela demanda a organização de resistência,
sendo que a dialética da denúncia – anúncio, expressão do pensamento-ação
freiriano – pode ser um caminho frutífero a trilhar. A partir dela, somos impe-
lidos a avançar para além de uma hermenêutica política, social e educacional
do período contemporâneo, elaborando, utopicamente, alternativas possíveis
de resistência, reinventando a própria cultura na perspectiva da libertação.
A segunda característica compreende a dimensão coletiva, contrária
ao individualismo afirmado pela lógica do capital, que se concretiza pela
presença de tantas vozes problematizadoras e utópicas. Uma polifonia, na
qual cada uma se ergue na busca por sistematizar, a partir de um recorte
específico, os desafios complexos dos campos social, político e pedagógico,
entre outros, amalgamados em meio à sindemia da Covid-19. Sindemia,
pois sofremos ao mesmo tempo com a associação de doenças causadas pelo
novo Coronavírus (SARS-CoV-2) e pelo aprofundamento de históricas
mazelas sociais, como a fome. Sindemia na qual nos encontramos ainda
em processo de sofrida transição para um momento de abrandamento cha-
mado de pós-pandemia (sindemia).
Contra o individualismo crescente, Freire lembra que a condição in-
dividual é uma parte, um momento da existência mais ampla, que é social.
Somos com os outros. Porém, o estar com os outros vem se constituindo como
interatividade virtual, alheia a relações sociais concretas, embora estejamos
envolvidos em redes, como Facebook, WhatsApp, Telegram, Instagram e Tik-
Tok. Como resultado dessa virtualização do viver interativo, que desterrito-
rializa o corpóreo, a tendência é o surgimento de comportamentos agressivos,
como consequência imediata da redução do corpo a um mero sustentáculo do
mundo virtual. Um corpo individual, submetido a uma mentalidade global,
formada por uma cibercultura de rede, na qual cada membro segue a automa-
tização imposta como princípio de inclusão, ignorando dimensões básicas de
reciprocidade e de afetividade, pilares da vida em comum.
Por último, a terceira característica compreende a afirmação de catego-
rias fundantes da Educação Popular e do pensamento de Paulo Freire, desde
o título, pelos 14 capítulos aqui reunidos. Cultura, revolução, situação-limi-
te, inédito-viável, oprimido, luta, esperança, liberdade, bem viver e diálogo,
entre outras, expressam essa riqueza conceitual, articulada em movimentos

12
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

de crítica, de busca e de reflexão por parte dos respectivos autores e auto-


ras. É importante lembrar que o diálogo, por exemplo, implica assumir um
compromisso relacional com o outro, com os outros, afirmando-se como um
fator de resistência. Sua dinâmica está assentada em uma lógica comunicativa,
contrária à lógica técnica da conectividade virtual, na qual o eu se totalitariza
e o tu se restringe a um outro abstrato, sem corpo, sem nome, sem história.
Sim, dialogar é resistir!
A luta emerge da insistência em libertar, no sentido freiriano, afir-
mando os princípios de uma sociedade dialógica e dialética, que envolve
conflitos e rupturas. Libertadora, a ação educativa afirmada na presente obra
se configura como ação cultural antagônica à perspectiva dominante, opres-
sora, como um momento fundante da necessária revolução cultural. Resistir
é negar a transformação do sujeito em autômato, enfrentar a dominação
contemporânea na forma da autodominação disfarçada de liberdade. É in-
sistir no viver conjuntivo diante do conectivo que nos arrasta, fazendo uso
dele, invertendo o instrumental.
Cabe lembrar que, como seres históricos, estamos vinculados organi-
camente às características de um tempo presente. Somos e fazemos as nossas
condições materiais, aprimorando as relações que estabelecemos em meio a
elas. E os caminhos e rotas, esperançosamente delineados ao longo dessas pá-
ginas, contribuem para sedimentar e fortalecer movimentos em curso, assim
como outros a serem criados, suleadores de uma reexistência solidária e respei-
tosa da vida. Afinal, o futuro não está dado, ele é possibilidade, como Freire
define na expressão: “o mundo não é; o mundo está sendo”.

Prof. Dr. Sandro de Castro Pitano


Universidade Federal de Pelotas/UFPEL
Vice-Coordenador do GT Educação Popular da ANPEd
biênio 2022-2023

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Por que Estudar Paulo Freire Hoje?
As Esperanças do Pensamento de Paulo Freire

Dulce Consuelo Andreatta Whitaker1

Esse convite maravilhoso, extraordinário, me dá oportunidade de sair de uma


certa melancolia e contemplar as esperanças do pensamento de Paulo Freire.
Falar sobre o pensamento de Paulo Feire é falar sobre atualidade. Na verdade,
o pensamento de Paulo Freire, no meu entender, será eterno e clássico como é
o de Marx, como é o de Edgar Morin, como é o de Rosa Luxemburgo.
Para falar sobre essa atualidade vou tentar explorar um pouquinho al-
guns temas que estão na evolução do pensamento de Paulo Freire nos anos
1960 quando realmente o fenômeno Paulo Freire emerge no Brasil.
São os temas da “conscientização” – que explica a consciência ingênua
e a consciência crítica –, e ligado a isso está o tema da “utopia”.
Posteriormente, Paulo Freire vai falar do caráter necrófilo da opressão,
um pouco menos esperançoso, digamos assim. Essa ideia do caráter necrófilo
da opressão é cada vez mais atual, não só atual como é real, é visível a olho nu,
por exemplo, no Brasil de hoje.
Mas para falar sobre esse Brasil de hoje e sobre a iluminação que cer-
tos momentos históricos nos proporcionam, ou nós é que os procuramos, eu
tenho que falar sobre a história – porque a História está plena de períodos de

1 A professora Dulce Whitaker completou, em setembro de 2022, 88 anos. Por uma


opção política não possui aparelho celular, televisão ou computador. A comunicação
com ela, nesse período de pandemia, deu-se exclusivamente por telefone. Assim, para
a participação nos Conversatórios “O pensamento de Paulo Freire em ação: diálogos
freirianos em tempos de (pós) pandemia”, do qual emergiu a maior parte dos capítulos
deste livro, sua fala foi gravada e partilhada no evento remoto. Este texto é a transcri-
ção, corrigida e revisada, de seu depoimento no encontro de abertura.

14
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

iluminação em que os homens e mulheres, naquele momento, conseguiram


enxergar além dos véus da ideologia.
Eu não sabia muito bem como chamar esses momentos de iluminação,
aí voltei a um pequeno grande livro de Paulo Freire que estava em minha
biblioteca (que comprei em 1979). O livro está cheio de ácaros, mas também
cheio de sabedoria. E lá Paulo Freire fala em utopia. Então pronto, achei: há
momentos utópicos. Utopia para Paulo Freire não é o irrealizável, Utopia é a
possibilidade que existe e que as pessoas vislumbram, em direção ao futuro. É
claro que o futuro não existe, então o que se está vislumbrando não é concreto,
é fruto dos nossos desejos, é fruto daquilo que Paulo Freire chama a vocação
que o ser humano tem para Ser Mais.
Eu vou citar três ou quatro momentos na história em que isso acon-
teceu para depois falar sobre os anos 1960, que é o momento da Utopia, da
iluminação do pensamento de Paulo Freire.
Um deles sobre o qual eu já li muito aconteceu em Paris: a Comuna de
Paris. Leiam sobre isso. Naquele momento todos que participavam da Comu-
na de Paris sentiram pulsar a utopia da igualdade, da liberdade, de um mundo
melhor. Bom, foram esmagados em sangue.
Um outro momento está no começo da Revolução Russa: a ideia de
um mundo sem males, de um mundo igualitário, e distorcida pelo stalinismo.
Não podemos nos esquecer que a história do Brasil está cheia desses
momentos. Basta pensar no quilombo de Palmares que resistiu 100 anos.
Aqueles escravos e ex-escravos que fugiam das fazendas, ajuntavam-se na Serra
da Barriga ou em outros lugares, eles vislumbravam a Utopia. Eles não só
vislumbraram como a realizaram. Eu gostaria muito que os currículos de His-
tória ensinassem isso para as nossas crianças. Mas vamos deixar os momentos
históricos e vamos falar sobre como a questão da consciência se manifesta
nesses momentos. Para isso, eu vou retomar só mais dois desses momentos: a
Alemanha das primeiras décadas do século XX, quando o socialismo estava em
marcha e parecia que ia ser vitorioso – e que depois provocou, como sempre
provoca, a ira e o ódio dos defensores do status quo –, então, como resposta,
o capitalismo inventou o nazismo. Esmagou todo aquele movimento de ilu-
minação de visão da Utopia e de mudança. Em 1933, com o Holocausto veio
aquilo que Paulo Freire chama de necrofilia, que hoje está sendo equacionado
como necropolítica. O que nós tivemos? Seis milhões de judeus mortos e 60
milhões de mortos na Segunda Guerra Mundial. Bem, deixemos isso para
vocês pesquisarem ou refletirem.

15
Por Que Estudar Paulo Freire Hoje? As Esperanças do Pensamento de Paulo Freire

E agora eu dou um salto para os anos 1960, quando Paulo Freire emer-
ge como o maior pensador brasileiro, quiçá do mundo naquele momento. Os
anos 1960 foram, talvez, na minha visão sociológica, o momento de maior
iluminação da História do Ocidente. Para quem conhece um pouco de his-
tória cultural – os Beatles; a minissaia; a libertação sexual; Paris gritando “é
proibido proibir”, os movimentos estudantis pelo mundo todo; círculos de
cultura; lutas de movimentos feministas; movimentos negros; conflitos sociais
raciais dos Estados Unidos; a descolonização da África! É uma época real-
mente em que o mundo parecia querer se transformar! O que veio no Brasil?
Paulo Freire surge com seu pensamento de que é possível a conscientização.
Essa palavra magnífica está um tanto esquecida. O que é a conscientização
para Paulo Freire? É pensar sobre a própria consciência. É tomar consciên-
cia da própria consciência. Então, aqueles que têm uma consciência ingênua,
que está obscurecida pela ideologia, eles não percebem os véus da ideologia
obscurecendo as possibilidades de futuro. Futuro não existe, mas ele tem po-
tência. A consciência ingênua não percebe isso. A conscientização é uma coisa
bastante complicada, mas eu penso que dá para resumir: é a transformação da
consciência ingênua em consciência crítica. A isso Paulo Freire dá o nome de
conscientização, que ele diz que tomou de dois filósofos importantes na época
do Brasil nos anos 1950: Álvaro Vieira Pinto e Guerreiro Ramos.
Fazendo um parêntese: nos anos 1950, no pós-Guerra, houve um fenô-
meno mundial chamado de “o grande despertar dos países subdesenvolvidos”,
que foi quando os países pobres, explorados, começaram a tomar consciência
de que precisavam vencer a opressão. No Brasil nós temos pensadores como
Paulo Freire que ilustra o ápice, o clímax desse momento de descortinar as
possibilidades do futuro. Então, esse pequeno grande livro, Conscientização,
me parece que está muito, muito atual, porque ele fala em Utopia e essas pa-
lavras, “Utopia”, “Consciência”, “Conscientização”, foram muito desprezadas,
até por nós sociólogos, porque é mais chique ser pessimista e achar que tudo
vai mal... Mas temos que procurar nesse momento de hoje, como Paulo Freire
procurou, todas as possibilidades da libertação.
Ele pega a ideia dialógica – não é simplesmente: “vamos tomar
consciência” –, mas contemplar o concreto, aquilo que está obscurecido,
que eu chamaria de sincrético, porque é um concreto confuso, é tomar
esse concreto e colocar em posição de admiração. O que é admiração? É
descodificar e ver que lugar ocupa no mundo esse objeto concreto. Por
exemplo: a fome. A fome não é simplesmente o fenômeno biológico de

16
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

quem está sem comida. A fome tem uma explicação dialética em todo o
sistema capitalista. E agora chegamos no fabricante dos véus ideológicos
que é o capitalismo. O capitalismo é uma máquina mortífera. Quando
você coloca um objeto em admiração, percebe uma totalidade histórica
que está provocando esse problema, a crise desse objeto está rompendo
com aquilo que Paulo chama de uma situação-limite, que é aquela que nos
parece impossível de vencer. Vejam o momento em que estamos vivendo:
estamos vivendo uma situação-limite – um vírus infernal auxiliado por um
governo de extrema direita assassinando parte do povo brasileiro. Então, o
pensamento de situação-limite é absolutamente atual.
Mas vou tentar um procedimento analítico: por um lado, nós temos
a Utopia, contemplando o futuro e pensando na esperança (isso está muito
claro para Paulo Freire de que é possível um mundo melhor se as pessoas
forem capazes de adquirir a consciência crítica). Por outro lado, nós temos
uma resposta da extrema direita que afoga esse momento, fecha essas portas
e cria a impossibilidade desse mundo melhor. Isso aconteceu em todos os
momentos históricos que eu citei aqui – é a Comuna de Paris afogada em
sangue; é o socialismo caminhando na Alemanha (aliás, na Europa toda) que
provoca o nazismo, Hitler e Mussolini massacrando e matando; e agora esse
é o modelo do nosso presidente (nosso não, o presidente aí deles, é o modelo
de caricatura); é Franco que ficou 40 anos na Espanha; é Salazar; e até no
Brasil temos a ditadura Vargas, o Estado Novo a partir de 1937.
Todos esses movimentos de reação da extrema direita são expressões
daquilo que Paulo Freire, na Pedagogia do Oprimido, lá pelo terceiro capí-
tulo, vai chamar de necrofilia, que é o amor à morte, que é o instinto da
morte atuando. E isso está nos filósofos atuais, está muito claro. Há um
filósofo africano do qual vocês já devem ter ouvido falar, Achille Mbembe,
que fala em necropolítica, quer dizer, o que nós estamos vendo no Brasil.
Agora, o que nós temos que aproveitar do pensamento de Paulo Freire para
explicar a atualidade?
Nós temos que aproveitar aquela esperança que está no livro Conscien-
tização, que fala em descodificar a situação-limite, o que torna possível rom-
pê-la, para que nós possamos – e agora chegamos no terreno da educação,
já que estamos falando entre professores – criar nossas crianças percebendo
situações-limite, discutindo com elas! E não me digam que criança não tem
possibilidade de entender. Eu dei aula muito tempo para adolescentes e eles,
às vezes, tinham mais consciência do que eu. Quando eu falava sobre um

17
Por Que Estudar Paulo Freire Hoje? As Esperanças do Pensamento de Paulo Freire

problema concreto na sala de aula sempre tinha um adolescente que abria as


portas da compreensão, então isso é possível!
É possível restabelecer a esperança neste país desesperado. Agora, não
podemos perder de vista, com Paulo Freire, que a opressão e a dominação são
necrófilas, ou seja, elas trazem a morte, como estão trazendo, e a única forma,
no meu entender, de combater a necropolítica que vigora neste país é tentar
romper com os limites tenebrosos dessa situação. Quer dizer: nós estamos
debaixo de uma necropolítica. O que é essa necropolítica? No caso brasileiro,
ela é uma resposta que está sendo dada pela extrema direita, financiada pelas
petrolíferas do mundo internacional, da burguesia internacional e nacional
também, é uma resposta a um processo de iluminação que nós tivemos no
Brasil, a que eu chamo de “Primavera Petista”. Não que eu queira dizer que a
primavera petista foi tão iluminada e tão esclarecedora quanto foi, por exem-
plo, a Comuna de Paris nos anos 1960. Mas só uma pessoa da minha idade
(eu tenho 87 anos) pode dizer para vocês o que foi de extraordinário ter uma
mulher na Presidência da República. Eu não pensei, como feminista, que eu ia
assistir a uma coisa tão extraordinária! Foi tão extraordinário, foi uma abertura
tão grande que a extrema direita tinha que tirá-la do poder. Vocês não podem
imaginar – e vamos sair até um pouquinho do Brasil – o que foi para mim ver
um negro na Presidência da República – são momentos utópicos nos Estados
Unidos. Imaginem, no país do apartheid, no país do linchamento de negros,
de repente assume um negro na Presidência da República! É certo que ele não
pôde fazer tanta coisa quanto queria... E vejam: a resposta foi o Trump! Ele foi
a resposta da extrema direita.
Agora, quando nós vemos os movimentos de resistência que citei –
não só de resistência, mas movimentos de avanço, por exemplo, Quilombo
de Palmares, que durou 100 anos –, são movimentos utópicos. Então, quan-
do o movimento utópico avança de alguma forma, ele se torna ameaçador
para o status quo. E o que é o status quo? É o capitalismo que tem sido de-
nunciado muito recentemente, mas Marx já sabia disso: o capitalismo é uma
máquina mortífera, é um vampiro que suga nosso sangue! O capitalismo
empunha suas armas e mostra sua verdadeira face e deixa de ser a pseudode-
mocracia, como a ideologia proclama, e passa a ser o fascismo!
Toda vez que os oprimidos avançam, usando agora a expressão de
Paulo Freire, toda vez que o oprimido expulsa o opressor que está dentro de
si, o capital mostra suas armas! E aí o resultado disso é o fascismo. Segundo
Maurício Lazzarato, por exemplo, que é um grande pensador italiano radi-

18
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

cado na França, o fascismo está em marcha. E não é só no Brasil. No Brasil


ele não está propriamente em marcha, ele está no poder, ele está na quadri-
lha que nos governa! Esse fascismo em marcha é a resposta do capitalismo
aos movimentos utópicos.
Então, a minha tese – se é que se pode falar em tese em uma fala de 20
minutos – é essa, de que a humanidade, pelo menos a do Ocidente, é capaz
de vislumbrar Utopia, direitos, igualdade, fraternidade, um mundo melhor;
é capaz, como foi e tem sido capaz, de pronunciar direitos humanos, direitos
das mulheres, dos negros, dos LGBT, enfim, dos indígenas. O ser humano
é capaz de tudo isso.
Mas o modo de produção capitalista tem uma máquina mortífera
que é o próprio capital que produz mercadorias, produz sedução, então, a
maioria fica com o cérebro obscurecido pelo êxtase da mercadoria, produz
ideologia, mas não derrota completamente a Utopia. Isso é o que eu acho
mais importante em Paulo Freire, quando ele fala da esperança! E se os seres
humanos, homens e mulheres, são capazes, como foram, de projetar utopias,
de pensar em vencer situações-limite, de pensar num mundo igualitário –
vejam, a utopia dos anarquistas, que é uma coisa belíssima; leiam a obra toda
de Paulo Freire -, aí a gente vai se sentir um pouco menos desconfortável.
Para encerrar, qual o papel da educação escolar, sobretudo na escola
pública? É criar com os alunos a ad-miração, no sentido de Paulo Freire.
Quer dizer, de extrair cada problema do contexto histórico e discutir isso
com os alunos, para que eles possam transformar a sua consciência bloquea-
da pela infantilização – porque o que nós temos hoje é uma total infanti-
lização das crianças via tecnologia, via TV. Não quero falar muito dessas
coisas, porque seria tema para outras falas, mas o que é a Disney senão uma
colonização do cérebro infantil?
Precisamos contribuir para tornar o cérebro infantil apto a ver-se, a
realizar ad-miração, quer dizer, a praticar operações de ad-miração para as
quais ele está preparado. O adolescente, principalmente, é caracterizado pelo
espírito crítico. A escola, adotando a visão de Paulo Freire, vai desenvolver
esse espírito crítico do adolescente, que é reprimido pela própria disciplina
escolar, que é uma hipercoerção.
Então, a atualidade de Paulo Freire é de tal ordem que dá para falar
em conscientização, Utopia, situação-limite, temas geradores, tudo que ele
propôs para qualquer tema cotidiano. Porque a atualidade está rodeada por

19
Por Que Estudar Paulo Freire Hoje? As Esperanças do Pensamento de Paulo Freire

essa situação-limite, que é o fascismo em ascensão e o capitalismo cada vez


mais poderoso e funcionando cada vez mais com as suas armas de guerra.
Esse sistema é necrófilo – que posso estar enganada, mas de cujo conceito
Paulo Freire é o precursor na análise da opressão como necrófila – e deve ser
combatido em todas as frentes possíveis, com a esperança inquebrantável
que rege o pensamento de Freire em ação.
Por fim, refletindo sobre a situação escolar, esta deve ser entendida
como um processo e todo processo é dialético, não é inexorável e sempre
oferece brechas. Então, o professor criativo descobre formas, temas de re-
dação, trabalhos, pesquisas que possam criar uma situação de iluminação
no adolescente. Por exemplo: por que não discutir a pandemia como um
tema de uma determinada aula? A pandemia é um vocábulo que possui as
exigências do método Paulo Freire: tem riqueza semântica e está carregado
de simbologia para todas as áreas de pensamento, além de riqueza silábica.
Outro dia fiz uma lista de palavras possíveis a serem extraídas da expressão
“pandemia” e ela não acabava mais. Se o professor discutir a pandemia nin-
guém pode acusá-lo de estar sendo subversivo. Está simplesmente discutin-
do um momento histórico que nós estamos vivendo. Essa fala é produto de
reflexões de uma vida, então, a deixo em suspenso como se fosse um roman-
ce moderno, cujo final fica em aberto.

20
Por que Estudar Paulo Freire Hoje?
Transcendendo o Pensamento de Paulo Freire1

Carlos Rodrigues Brandão

Essa é uma imagem muito querida, nós estamos em Manágua na Nicarágua,


em 1981/82, logo depois da Revolução Sandinista de 1979 – educadores po-
pulares de boa parte da América Latina dos Estados Unidos da Europa. Foi um
grande encontro numa Nicarágua recém-destruída pelo terremoto e ao mesmo
tempo pelos anos de Guerra Civil. Nessa imagem – que guardo com muito

1 Este texto traz a transcrição, corrigida e revisada, da fala do professor Carlos Brandão
na abertura dos Conversatórios “O pensamento de Paulo Freire em ação: diálogos
freirianos em tempos de (pós) pandemia”.

21
Por que Estudar Paulo Freire Hoje? Transcendendo o pensamento de Paulo Freire

carinho e nem sei quem tirou – estamos nós, Paulo Freire no centro, de barba
branca, abraçado com um homem e uma mulher. Nós somos um grupo de jo-
vens, numa ponta está Carlos Calvo, equatoriano, que foi meu aluno, na outra,
quase ao fim, Oscar Jara, Paulo Freire, tem uma loura mais alta, Vera Gianot-
ten, uma holandesa que durante anos militou com Educação Popular no Peru;
aqui, ao lado de Paulo Freire tem um outro homem, mais alto com cara de
holandês, também, Tom De Wit, marido da Vera Gianotten. Essa foto mos-
tra uma pequena parte de uma geração de jovens, alguns ainda universitários,
outros recém-professores, outros professores e militantes da Educação Popular,
que implantaram, que instauraram a Educação Popular na América Latina.
Eu sempre gosto de lembrar, entre as muitas peculiaridades, uma que
parece extremamente estranha que é a seguinte: Paulo Freire não usava a ex-
pressão Educação Popular. Se vocês forem consultar todos os livros dele não
vão encontrar: educação emancipadora, problematizadora, questionadora,
conscientizadora... E as pedagogias do Oprimido, da Esperança, da Autono-
mia, da Indignação, mas nunca Educação Popular.
Em 1964, Paulo vai para o exílio, primeiro no Chile, depois na Europa.
E é essa geração, essa gente, esses jovens, que começam a se congregar primei-
ro no Brasil, e depois na Argentina, no Chile e no Uruguai, o que nos fazem
pensar em algo extremamente sugestivo.
Nunca desejamos ditaduras, no entanto esses anos de ditadura no Cone
Sul foram uma demonstração para a História e para a memória de como nós,
essa geração dessa foto, e muitas outras pessoas, fomos capazes de, entre com-
panheiros e companheiras presos, torturados, exilados, mortos, criar, semear e
espalhar, da ponta da Argentina a Monte Rey, na Ponta do México (e eu estive
nessas duas pontas), o que veio a ser a Educação Popular. Na foto, entre os
sentados tem um ali de cabeça baixa, não sei se ele está orando, meditando,
olhando alguma formiga no chão. Esse aí sou eu, no meio da turma sentado.
Dulce Whitaker acabou de nos dar o que eu chamaria uma aula magna
pedagógica a respeito das ideias de Paulo Freire. Excelente que ela tenha falado
antes porque eu vou falar agora e não vou falar como educador popular, eu
vou falar como antropólogo.
Eu sou antropólogo. Aliás, tenho uma tríplice personalidade em termos
de ação: sou educador popular – comemorando 60 anos nesse ano de 2021.
Cem anos do Paulo e 60 de Brandão na Educação Popular –, mas eu sou
profissionalmente um antropólogo, meus trabalhos de pesquisa em grande
parte das dissertações e teses são todos no campo da antropologia. E o antro-

22
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

pólogo tem o que para nós é uma enorme virtude: nós somos profissionais do
estranhamento. Talvez porque tenhamos começado a própria Antropologia
na pesquisa da cultura dos outros; a Sociologia é uma ciência social do “si
mesmo”. A antropologia é uma ciência social do outro, do outro oceano, do
outro lado do mundo, da floresta amazônica, do deserto. Os grandes livros
de Antropologia são todos eles junto a comunidades que vão de indígenas a
esquimós, de camponeses a quilombolas, e para compreender esses outros nós
precisamos praticar o que nós chamamos “o estranhamento antropológico”.
Ou seja, nada do que parece ser ou do que sempre foi assim é assim ou sempre
foi assim – tudo é estranhável, tudo é perguntável.
Então, enquanto uma socióloga como Dulce e sua aula magna nos diz
“isto é a Educação Popular”, vem um antropólogo e pergunta o seguinte: es-
cuta, por que Educação Popular? Por quê? A Educação Popular durante muito
tempo não existiu, e o mundo não acabou por isso. E mais ainda, em que
contextos, em que cenários ela existiu – porque é isso que interessa para usar
uma expressão querida de Miguel Arroyo –, e em que território de disputa
se encontra isso que nós chamamos de Educação Popular? Um conjunto de
pessoas, entre muitas outras que não usam essa expressão, são contra ela ou até
desconhecem a Educação Popular.
Eu gostaria de dar uma continuidade a isso fazendo outro estranha-
mento e não se espantem com o que eu vou dizer e nem é a primeira vez: eu
penso que a pior maneira de pensar Paulo Freire é pensar só Paulo Freire; a
pior maneira de estudar Paulo Freire é ler e estudar só Paulo Freire... Se ele
encontrasse alguém fazendo isso, certamente diria: “escuta, eu procurei abrir
tanto a sua cabeça e você a está fechando, e ainda por cima em cima de mim?
”. A melhor maneira de compreender Paulo Freire é compreendê-lo com, com-
preendê-lo em. Paulo gostava de se chamar o “menino conectivo”, um alguém
junto à. Claro, ele escreveu sozinho, escrever é um ato solitário, mas em Paulo
tudo o que escreveu e pôs no papel, desde a Educação como prática da liber-
dade, Pedagogia do Oprimido e outros livros, foi produto de trabalhos com
equipes e de uma sensibilidade enorme de escuta das pessoas com quem ele
estava, inclusive as pessoas do povo.
Isso não só está escrito nos livros dele, mas ele nos contava em seguidos
momentos. Eu tive a felicidade de partilhar anos da intimidade, inclusive de
mesa de bar, com Paulo Freire. Aliás, outra teoria antropológica minha é que
o Círculo de Cultura Freiriano nasceu em mesas de bar, um dos preferidos
lugares dele. Paulo sempre foi esse homem inserido em equipes. Vocês que-

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Por que Estudar Paulo Freire Hoje? Transcendendo o pensamento de Paulo Freire

rem um exemplo? Em 1960, Paulo e a primeira nordestina equipe dele estão


trabalhando no Serviço de Extensão Comunitária da Universidade do Recife,
hoje Universidade Federal de Pernambuco, e juntos criam o que – inclusive
não pelo Paulo, mas pelos companheiros de equipe – veio a se tornar o siste-
ma Paulo Freire de Educação Popular. Não apenas um método Paulo Freire
de alfabetização. Eles escrevem quatro artigos pioneiros, muito anteriores à
Pedagogia do Oprimido (que estão no livro de Osmar Fávero, Cultura popular
e Educação popular –Memória dos anos sessenta). Quem escreve sobre o método
Paulo Freire é Aurenice Cardozo; quem apresenta o sistema Paulo Freire é o
Jarbas Maciel e Paulo escreve um artigo mais filosófico sobre as ideias dele; e o
Gilmar Brito, que é o mais cristão, escreve um artigo quase teológico. Eles saí-
ram primeiramente na revista Estudos Universitários, número 4, depois foram
reunidos nesse livro do Osmar Fávero. Acho que essas são as raízes, para inclu-
sive compreender coerências, e até incoerências, desses momentos de origem
do que veio a ser, mais tarde e ao longo de todo o processo latino-americano,
a Educação Popular.
Em segundo lugar, eu gostaria de fazer uma memória que é o lado
feminino de tudo isso. A Educação Popular não é machista, mas é muito
masculina. Quase todas as pessoas de maior proeminência que publicaram,
que têm visibilidade, são homens. Na foto acima há três mulheres, inclusive
a querida Vera Gianotten (que aliás tem trabalhos em espanhol excepcio-
nais), de quem pouco nos lembramos. Elza Freire foi não só a esposa, mas
uma figura central na vida de Paulo, até professora mais experiente do que
ele, e deu boas ideias ao método Paulo Freire. Não se fala em Madalena
Freire, filha de Paulo Freire. Aurenice Cardoso, de quem eu falei, foi a pri-
meira pessoa a ter posto no papel o método Paulo Freire. Quando Paulo
está no exílio, uma interlocutora preciosa veio a ser uma grande amiga mi-
nha, Marcela Gajardo. Maria Edy Ferreira de Chonchol, esposa de Jacques
Chonchol, com quem Paulo Freire trabalhou no exílio. Rosiska Darcy de
Oliveira e depois, em todo o processo de criação, de fermentação, de agito
em torno da Educação Popular, Maria Thereza Sirvent, Adriana Puiggrós,
Moema Viezzer, Beatriz Bibiano Costa, Alda Maria Borges Cunha, uma po-
lissemia de presenças femininas. E aí sim, quando a Educação Popular salta
do Brasil e se “latinoamericaniza”, ela se torna uma experiência de uma par-
tilha entre educadores e educadoras invejável, inclusive também inovadora,
durante esses tempos todos.

24
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Outra pergunta muito importante que trago mais para contextualizar


e estranhar a Educação Popular do que dizer o que ela é: em que cenário
Paulo Freire cria a Pedagogia do Oprimido? Nós centramos Paulo Freire de
tal maneira que nos esquecemos que Paulo só pensou e só produziu o que
veio a ser esse livro – não apenas excelente, mas talvez único – porque ele
estava totalmente imerso num cenário sociocultural artístico político peda-
gógico de uma efervescência talvez igualmente única.
Das minhas grandes alegrias como um homem dos anos 1960: entrei
na universidade em 1961, menino do Rio. Naquele tempo eu era um menino
carioca preocupado com praia e montanha, eu era escalador de montanhas
e abandonei isso inclusive só depois de uns três anos de vida universitária e
me envolvi totalmente com a Educação Popular e os seus desdobramentos.
E fui uma pessoa desse cenário e só consigo pensar Paulo Freire vivendo
um círculo entre outras pessoas, uma pessoa chamada Paulo Freire naquele
tempo, sem mais destaque do que as outras.
Eu me lembro, naquele tempo trabalhei num Movimento de Educação
de Base – MEB (sobre o qual vou falar em breve) e nós estávamos ali começan-
do a descobrir o tal professor Paulo Freire, anterior à Pedagogia do Oprimi-
do, estabelecendo primeiros diálogos, inclusive com documentos biografados.
Como pensar Paulo Freire sem Dom Hélder Câmara, sem João Cabral de
Melo Neto, sem Anísio Teixeira, sem Manuel Bandeira, sem Augusto Boal
e o Teatro do Oprimido, sem Ariano Suassuna, sem Paulo Rosas, sem Eliete
Santiago, sem Elza Freire e o pai de Nita Freire – que foi o professor que aco-
lheu Paulo na sua escola – e todo o movimento que se constituiu, e que não se
chamava Educação Popular, mas Movimento de Cultura Popular?
E mais na frente: a Missa da Terra sem Mares, a Missa dos Quilom-
bos, a Investigação Ação Participativa, a Sociologia da Libertação, propos-
ta por Fals Borda, a Teologia da Libertação, as Comunidades Eclesiais de
Base, os sindicatos rurais, a Psicologia da Libertação, a Política de Liber-
tação de Enrique Dussel.
Somos nós, argentinas, chilenas, brasileiros, colombianos, equatoria-
nos, mexicanos, aos montes, que geramos, não a Educação Popular, mas um
movimento que no momento original, inclusive do começo dos escritos de
Paulo Freire, se chamou Movimento de Cultura Popular. E que depois se es-
praia como o fluxo, como todo um processo que vai gerando todas essas expe-
riências insurgentes, umas ligadas às outras, umas após as outras, entre os anos
1960, 1970 e 1980 e um pouco dos anos 1990.

25
Por que Estudar Paulo Freire Hoje? Transcendendo o pensamento de Paulo Freire

Grande parte dos movimentos que vão aparecer depois, envolvendo a


questão ambiental, os movimentos feministas, os movimentos de minorias
étnicas, indígenas, são, digamos assim, a ponta de lança que avança entre os
1980/1990 de tudo isso que se gerou desses tempos anteriores e era – para
quem viveu como eu, um menino do Rio de Janeiro, mas já no MEB viajando
pelo Brasil – tempos de uma polivalência de criatividade inacreditável: o Ci-
nema Novo, o Teatro do Oprimido, a música de protesto, a poesia de protesto
do Brasil e depois se esparramando pelo mundo... Esses cantores, meninos
ainda, universitários que foram a nossa herança mais imediata: Milton Nasci-
mento, Chico Buarque, Caetano Veloso... E o Teatro Opinião, a Arena Conta
Zumbi... Não podemos, a não ser que tenhamos viseiras pedagógicas, pensar
a Educação Popular a não ser nesse fluxo, nesse emaranhado de experiências
insurgentes. Tanto isso é verdadeiro que, em janeiro de 1963, Paulo Freire e
essa equipe do Serviço de Extensão Comunitária (SEC) vai patrocinar com
parcos recursos, naquele tempo, o primeiro Encontro Brasileiro de Movimen-
to de Cultura Popular, que reunia poetas, músicos, cantores, artistas plásticos.
Inclusive Francisco Brennand, que desenhou as primeiras fichas de cultura do
Método Paulo Freire. Era essa interação que não produziu apenas o Pedagogia
do Oprimido, que produziu também Deus e o Diabo na Terra do Sol, Arena
conta Zumbi, que produziu Vidas Secas, O Pagador de Promessas...
Vocês conseguem pensar que tudo isso está acontecendo junto? Tudo
isso é o círculo que se abre para que, num desses lugares, alguém se sente e
diga: eu estou trabalhando com a cultura popular através da educação. Para
vocês terem uma ideia curiosa: nos anos 1960 havia mais estudantes da área de
medicina do que pessoas da área de educação. Havia uma efervescência políti-
co-cultural que a todos nós nos envolvia e nessa efervescência algumas pessoas
se dedicaram ao trabalho na área da educação, especificamente de educação de
adultos e mais especificamente de alfabetização de adultos.
Para vocês terem uma ideia do que que eram as cabeças abertas daquele
tempo, inclusive nas instituições (eu trabalhei no MEB e minha esposa, Maria
Alice, coordenava o MEB Goiás), o MEB se esparramava por todo então cha-
mado Brasil subdesenvolvido, de Minas Gerais para cima. A equipe nacional
ficava no Rio de Janeiro e eu trabalhava nela. Eu considero o Movimento de
Educação de Base o movimento mais avançado e arejado de todas as áreas, não
só do Brasil, mas do mundo inteiro, de tudo que eu conheço. Ele tinha em sua
equipe, para pensar alfabetização de adultos, através de escolas radiofônicas,
um coordenador e uma coordenadora: Osmar Fávero (Matemático) e Vera Jac-

26
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

coud (Farmacêutica). Além disso, tinha uma assistente social (que inclusive me
coordenava, porque entrei no setor de Animação Popular): Aldair Brasil. Está-
vamos na equipe eu, psicólogo, Luiz Eduardo Wanderley (sociólogo), um cien-
tista político, um antropólogo, um filósofo, duas psicólogas e duas pedagogas.
O movimento tinha esse leque aberto de pessoas para pensarem, através
das suas diferenças e convergências, a alfabetização de adultos através de esco-
las radiofônicas. Esse foi o cenário constitutivo da Educação Popular.
No mundo da educação como um todo, e da Educação Popular de
uma maneira muito específica, existe uma convergência muito interessante.
Reparem uma coisa curiosa agora, por exemplo, em tempos de pandemia:
quando se fala cientificamente de pandemia, quem fala são médicos – e não
todos os médicos –, são epidemiologistas, são especialistas em epidemias, em
pandemias, e assim por diante. São eles que têm a palavra competente para fa-
lar. Pode ser que haja pessoas falando desde a problemática política, econômi-
ca, pedagógica, mas a centralidade está nesse especialista. Se eu, antropólogo,
quiser explicar as cepas da Covid19, provavelmente vão dizer que não tenho
competência para tal.
No campo da pedagogia – e especialmente da Educação Popular – o
que se chama de competência é uma área aberta, justamente criada por meio
de uma convergência entre não pedagogos de carreira: Osmar Fávero (mate-
mático), Vanilda Paiva (historiadora), Paulo Freire (advogado especialista em
Gramática da língua portuguesa), Marcos Arruda (geólogo), Eymard Vascon-
celos (médico), ou seja, pessoas de várias áreas. Eu, mais tarde, antropólogo,
companheiros da psicologia, do direito, e pessoas da área de pedagogia, que
inclusive chegaram depois. Então havia todo um grupo de profissionais que
entrava no território do que vem a ser Educação Popular, vindo de fora, e
trazendo, no seu conjunto, olhares da antropologia, da sociologia, da filosofia,
da geologia, da paleontologia, da psicologia... E pessoas que ordenavam esse
campo polissêmico vindas da pedagogia.
Nessa linha, queria trazer para vocês um outro elemento extremamente
significativo. Apesar de a centralidade do trabalho assentar-se na educação e
possuir uma feição pedagógica, Paulo Freire não era um pedagogo, nunca se
apresentou como pedagogo e tem mais um detalhe: não lia livros de peda-
gogia. Isso não só ele nos contava como eu posso mostrar a vocês: peguem
o Pedagogia do Oprimido (que escreveu todo ele à mão, no exílio, e agora foi
publicada a versão manuscrita). Paulo dedica seu Pedagogia do Oprimido aos
esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem, e assim, descobrindo-se

27
Por que Estudar Paulo Freire Hoje? Transcendendo o pensamento de Paulo Freire

com eles, sofrem, mas, sobretudo com eles, lutam. Paulo não escreve um livro
de pedagogia, não está ensinando como praticar a Pedagogia do Oprimido.
Paulo escreve um livro sobre a problemática do ser humano. E nisso ele vai se
basear muito mais em Frantz Fanon e Alfredo Memmi, vai recorrer a Lenin, a
Che Guevara e a Fidel Castro. Ao longo do Pedagogia do Oprimido, está preo-
cupado com a condição humana, com um humanismo crítico, que se dispõe
a, em nome dos esfarrapados do mundo, transformar o mundo. Paulo ainda
tem uma perspectiva de libertação que, ao mesmo tempo que insurgente e
emancipatória, é profundamente conciliadora, razão pela qual muitas pessoas
mais radicais não fecham com a Pedagogia do Oprimido. Ele vai dizer uma
coisa que parece Jesus Cristo, que parece Mahatma Gandhi, que parece Nelson
Mandela, ele vai dizer o seguinte: é tarefa do oprimido libertar-se da sua con-
dição de oprimido transformando, através de uma ação revolucionária, uma
sociedade de opressão em uma sociedade de comunhão, de igualdade, e a ta-
refa do oprimido é libertar-se da opressão e libertar o opressor de ser opressor.
Nas versões escritas não aparece, mas no manuscrito original, ele faz
dois esquemas: um esquema é a teoria da ação opressora e outro, a teoria da
ação revolucionária, que inclusive ele vai detalhar. Assim, eu retomo a propos-
ta: Por que estudar com Paulo Freire? Aliás, tenho certeza de que ele também
diria isso: Não me estudem e não fiquem em me estudar. Me estudem para,
através de mim, estudarem aqueles a quem eu estudei, e outros mais que eu
não consegui alcançar, porque não foram do meu tempo, e outras razões.
No percurso que eu fiz, ao ler os originais em que não consta a biblio-
grafia, Paulo Freire trabalha com Erich Fromm (esse psicanalista alemão mar-
xista é o autor mais citado), trabalha com Marx e com Engels, com Simone
de Beauvoir (por sinal, a única mulher presente), com Sartre, com Alfredo
Memmi (que vai ser, repito, fundamental na constituição da oposição opres-
sor/ oprimido), com Frantz Fanon, com Edmund Husserl, com Che Guevara,
com Pierre Further, com Mao Tsé-Tung. Ele cita Álvaro Vieira Pinto, que
entre os brasileiros é quem talvez mais tenha influência sobre ele, Karel Kosík,
João Guimarães Rosa, Lucién Goldman, José Maria Fiori (o filósofo de Paulo
Freire), Lenin, Fidel Castro, Francisco Weffort, Getúlio Vargas, Martin Buber
(um filósofo judeu alemão que também me influencia muito).
Vejam vocês, nessa polissemia de autores, o que explica a Pedagogia do
Oprimido? Eu penso, embora seja uma abordagem legítima fazer uma pesqui-
sa puramente pedagógica de Paulo Freire, que isso deixa uma lacuna aberta,
porque Paulo não cita sequer, pelo menos para esse livro, um pedagogo nem

28
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

grandes pedagogos do passado e de sua era. Ele vai ser influenciado por um
poeta (Thiago de Mello), por um teatrólogo (Augusto Boal), pelo filósofo Er-
nani Maria Fiori, pelo sociólogo Francisco Weffort, por tantos outros, e é essa
polissemia que se encontra em Paulo Freire. E essa é a grande contribuição de
Paulo, juntando tudo isso em seu pensamento. A grande porta de entrada à
Pedagogia do Oprimido reside não em movimentos pedagógicos de Educação
Popular, que iria nascer ainda, mas na área de educação dos movimentos de
cultura popular. Paulo Freire aprende a pensar a educação como cultura.
Aliás, o movimento de Educação Popular se antecipa à própria An-
tropologia, estabelecendo que medicina, teatro, circo, carpintaria, pedagogia,
odontologia, direito, engenharia... são dimensões diferenciais e convergentes
da cultura, sendo cultura não só aquilo que nós chamamos de alta cultura.
A cultura letrada inclusive, a cultura de quem lê Pedagogia do Oprimido, de
quem participa das tertúlias e dos congressos, desde aquele tempo até hoje em
dia. Cultura é aquilo que todo ser humano cria e é todo o contexto em que
qualquer comunidade humana se insere. Daí o método Paulo Freire começar
com as fichas de cultura criadas belamente por Francisco Brennand, que fale-
ceu no ano passado.
O famoso artigo de Osmar Fávero, “As fichas de cultura do sistema
Paulo Freire – O ovo de Colombo”, recupera essas belíssimas imagens. Eram
tempos em que se educava com Arte algo que está se perdendo. O MEB, por
exemplo, tinha uma cartilha chamada Mutirão, para as escolas radiofônicas,
toda ela produzida em mutirão e linguagem de cordel do Nordeste. Nós alfa-
betizávamos “cantando e poetando”. Não chegamos a levar para frente porque
logo depois o golpe militar acabou com tudo isso.
Paulo pensa a educação como cultura, por isso, as fichas de cultura, por
isso, o círculo de cultura, e pensa educação como cultura numa viagem seme-
lhante à de Walter Benjamin – de ida e volta na ida. Foi esse o caminho pelo
qual eu me fiz antropólogo, foi por aí: parti em busca do que chamávamos o
Brasil profundo, não apenas o que o povo canta, dança, como se veste, como
é a culinária do Nordeste, o que é a roda de capoeira, coisa para turista ver.
Mas o que que há por debaixo disso? O que numa dança de congo,
numa dança de São Gonçalo, numa marujada, numa roda de capoeira, do
candomblé, o que está sendo dito entre eles e a nós? Que linguagens cifra-
das, que mensagens? Assim como no Rap, no Hip Hop, de hoje em dia, en-
tão, ir ao povo. Eu comecei meu trabalho de MEB inocentemente, sem ne-
nhum traquejo, procurando gravar, procurando compreender no Nordeste,

29
Por que Estudar Paulo Freire Hoje? Transcendendo o pensamento de Paulo Freire

em Goiás, essas culturas populares, para na viagem de volta, fazer interagir


o que nós temos com uma cultura conscientizadora, trazendo os elementos
das culturas populares. Daí a ideia fundamental do diálogo.
O diálogo de Paulo Freire não é uma metodologia pedagógica: não se
usa diálogo para educar, educa-se para transformar pessoas em pessoas dia-
lógicas. E o diálogo é fundamental em Paulo Freire, que parte do princípio,
hoje em dia tornado universal, mas naqueles anos algo revolucionário, de que
todos os saberes e conhecimentos de carpinteiros, cozinheiras, mães de santo,
doutoras em pedagogia, músicos, teatrólogos, médicos, são conhecimentos
diferentes. Há uma regência de diferença entre eles, mas jamais desiguais!
Eu não sei mais do que o pedreiro que construiu minha casa. Eu sei
diferente dele e aliás, talvez ele seja muito mais útil em muitos mais momen-
tos do que eu, com os meus saberes. Este é o diálogo. Por isso, Paulo Freire
cria como Pedagogia do Oprimido uma pedagogia da escuta, uma pedagogia
em que eu ouço o que o outro tem a dizer – daí porque o círculo, onde cada
um está face a face com o outro – não apenas para me apropriar do que ele
disse, misturar com os meus saberes acadêmicos e devolver algo conscienti-
zador. Mas para me conscientizar com ele.
Há outro passo ainda, que aliás vai ser o passo que vai dar a marca da
Pedagogia do Oprimido: a educação pensada como cultura e a cultura pen-
sada como política. Se quisermos fazer todo o percurso: a educação pensada
como cultura, como uma dimensão da cultura, interagindo com outras, nun-
ca podendo ser praticada sozinha, mas sempre em interconexão com outras
experiências insurgentes da cultura; e a cultura pensada como política, ou seja,
como um projeto em que eu me transformo a mim mesmo.
Conscientizo-me, mas a minha conscientização só faz sentido e se reali-
za quando ela se volta para fora de mim, associa-se aos meus outros e se trans-
forma num projeto de transformação, não apenas minha e da minha pequena
comunidade, mas do mundo social em que eu vivo.
Estou lendo o livro Paideia, de Werner Jaeger, um livro imenso nos dois
sentidos da palavra: mil quinhentas e poucas páginas e sem um momento que
não seja luminoso! Num momento, em que fala sobretudo de Platão, Werner
diz o seguinte: “Nós somos todos idiotas, todos somos idiotas, mas somos
também políticos.” Essa frase, que parece uma incoerência absurda, no sentido
grego original da palavra tem toda a razão de ser: idios, em grego, significa a
dimensão de mim comigo. Digamos assim, sou eu e o meu eu interior. Nesse
sentido, nós somos, em termos gregos, todos idiotas. Todos nós temos uma di-

30
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

mensão de nós mesmos que busca realizar-se como “eu mesmo”. Aquele velho
ideal da cultura grega herdado por Paulo Freire. Nem é direito que a educação
não me transforme apenas numa pessoa politicamente radical inconsequente,
mas que me faça político por me fazer um sujeito na minha inteireza cultural
e espiritual, e não apenas um macaco revolucionário. Essa é a grande diferença
em Paulo Freire. E o ideal da cultura grega é justamente criar uma pessoa que
na sua dimensão idiota seja a obra de arte de si mesmo. Daí por que o ser um
alguém que se educa para ser a excelência de si mesmo, enquanto um idiota,
no sentido grego da palavra, é um alguém cuja realização idiota só se realiza, só
se apresenta, só se corporifica fora de mim, nos meus outros, entre eles e num
projeto, no caso grego, de manutenção da sociedade democrática.
Eu queria dizer que nós estamos tentando levantar, às vezes, farrapos, li-
nhas de esperança frente a esse mundo em que nós estamos vivendo – um Brasil
cheio de idiotas, agora no duplo sentido – no sentido grego do passado e no
sentido carioca do presente. E eu tenho me colocado: eu acho que isso é muito
uma propriedade de octogenários, a Dulce Whitaker é uma, e eu sou outro.
O que eu queria dizer é o seguinte: nós estamos preocupados com o que
o governo, com que esse regime está tentando fazer e, claro, temos que nos
preocupar. Temos que estar com o olhar mais aberto, primeiro com relação
à América Latina. A América Latina está desmoronando, não é só o Brasil.
O que nós estamos vivendo aqui ainda não é o que alguns companheiros de
Equador, de Colômbia, de Argentina estão vivendo em situações talvez muito
piores. Essa semana houve livres passeatas pelo Brasil. Na Colômbia foram 49
mortos. Então, uma atenção para ver que realmente essa cobertura malévola
dos projetos capitalistas é muito mais impositiva e muito mais bem armada
do que nós imaginamos.
Mas temos nós hoje, embora não pareça, porque a pandemia nos reteve
em casa, talvez mais que nunca, até do que nos anos 1960, nós estejamos vi-
vendo um tempo de tantas pessoas fazendo uma nova efervescência fantástica.
Nesse país de agora Daniel Munduruku está sendo indicado à Academia Bra-
sileira de Letras; Aílton Krenak acabou de escrever um livro chamado A Vida
Não É Útil, que provavelmente vai ser um dos livros mais lidos e vendidos no
Brasil de agora para frente, espero! Davi Kopenawa (com quem eu inclusive
compartilhei uma mesa da Universidade de Brasília junto com Ailton Kre-
nak), que, ao lado de um antropólogo francês, publicou um livro também de
mais de 500 páginas, A Queda do Céu, que se tornou, de imediato, um dos
trabalhos antropológicos mais importantes desses tempos.

31
Por que Estudar Paulo Freire Hoje? Transcendendo o pensamento de Paulo Freire

Estamos vivendo um tempo agora em que outras pessoas, outras cul-


turas, estão não apenas sendo estudadas por nós, principalmente antropó-
logos, como sujeitos/objetos de pesquisa, para que nós façamos sobre eles
as nossas teses. Vemos com muita felicidade pessoas não só ingressando na
universidade, em programas de Pedagogia da Terra, de Educação do Campo,
mas que estão se recolocando como uma gente que agora nos diz: “chega de
nos ouvir como sujeitos pitorescos ou como objetos de pesquisa para uma
futura tese de doutorado e nos ouçam de igual para igual, como alguém que
tem a dizer a vocês alguma coisa substantiva.”
E para isso precisamos ampliar nossas leituras. Estamos lendo só
Paulo Freire e Paulo Freire nos diria: “Parem! Me leiam não só através da-
queles que me fizeram a cabeça e me ajudaram a escrever a Pedagogia do
Oprimido, como aqueles que foram além de mim, que me superaram, não
porque subiram mais alto, mas porque, estando em outro tempo, estão
pensando para além de mim.”
Eu sempre gosto de repetir uma coisa que eu não presenciei: eu não
estava com Paulo nesse momento, quem me contou foi o Gadotti: quando
um grupo de intelectuais resolveu criar o Instituto Paulo Freire, perguntou ao
Paulo sobre sua opinião. Paulo pensou e respondeu que “se for para me repetir
não vale a pena, mas se for para me superar podem criar”.
Para finalizar, queria ler três mensagens relacionadas à esperança, de
Darcy Ribeiro, Aílton Krenak e Paulo Freire.
Darcy Ribeiro pouco antes de nos deixar afirmou que:

Sou um homem de causas, vivi sempre pregando


e lutando como um cruzado por causas que me
comovem. Elas são muitas, demasiadas: a salvação
dos índios, a escolarização das crianças, a reforma
agrária, o socialismo em liberdade, a universidade
necessária. Na verdade, somei mais fracassos do
que vitórias nessas minhas lutas. Mas isso não im-
porta. Seria horrível ter estado ao lado dos que se
venderam nessas batalhas.

Aqui, o nosso querido Aílton Krenak:

A vida não é para ser útil, isso é uma besteira. A


vida é tão maravilhosa que a nossa mente tenta dar

32
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

uma utilidade para ela. A vida é fruição. A vida é


uma dança, só que ela é uma dança cósmica e a
gente quer reduzi-la a uma coreografia ridícula e
utilitária, a uma biografia. Alguém nasceu, fez isso,
fez aquilo, fundou uma cidade, inventou o fordis-
mo, virou doutor, fez revolução, fez um foguete,
foi para o espaço. Tudo isso, gente, é uma histori-
nha ridícula. A vida é mais do que tudo isso. Nós
temos que ter a coragem de ser radicalmente vivos
e não negociar sobrevivência.

Paulo Freire:
A esperança da libertação não significa já a liber-
tação. É preciso lutar por ela entre condições his-
toricamente favoráveis. Se estas não existem temos
de lutar de forma esperançada para criá-las. A li-
berdade é uma possibilidade, não é a sorte, nem
o destino, nem a fatalidade. Neste contexto, per-
cebemos a importância da educação, não para a
decisão, para a ruptura, para a escolha, para a ética
e finalmente enquanto eu luto eu sou movido pela
esperança.

33
Experiências de Educação Popular e
Práticas Integrativas e Complementares
em Saúde no Enfrentamento à Pandemia
da Covid-19 na Atenção Primária

Pedro Cruz
Laís Maria Silva de Carvalho
Felipe Marques da Silva
Ingrid Gabriele de Souza
Pedro Nascimento Araújo Brito
Pedro José Santos Carneiro Cruz
Ana Claudia Cavalcanti Peixoto de Vasconcelos

Introdução
A implementação de medidas de controle e prevenção, decorrente da pan-
demia da Covid-19, impactou não só a saúde, mas a política, a cultura, a
economia e a dinâmica social (SOHRABI et al., 2020; HARAPAN et al.,
2020). O grande poderio de propagação da doença vem implicando agudos
e profundos desafios humanos, sociais e políticos de forma que, nessa nova
realidade, variadas estratégias vêm sendo aplicadas na Atenção Primária à Saú-
de (APS) (MENDONÇA et al., 2020; BEZERRA et al., 2020; SILVA et al.,
2020; CABRAL et al., 2020).
Nesse sentido, duas importantes metodologias vêm se destacando no
enfrentamento à pandemia da Covid-19, por potencializarem a possibilida-
de de mobilização comunitária, do apoio social e da formação permanente
das pessoas e dos profissionais frente a essa nova realidade: tratam-se da Edu-
cação Popular em Saúde (EPS) e das Práticas Integrativas e Complementa-
res em Saúde (PICS), sendo ambas abordagens de baixo custo e de baixa

34
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

densidade tecnológica, consistindo, portanto, em uma potencial forma de


enfrentar os desafios referentes à precariedade de condições da estruturação
e aprimoramento do SUS na atual situação sanitária.
A Educação Popular (EP) constitui um referencial teórico-metodo-
lógico voltado ao empoderamento crítico dos sujeitos das classes popula-
res, mediante abordagens participativas e dialógicas, pautadas na realida-
de concreta das pessoas (FREIRE, 1997). Entende-se que, ao voltar-se à
condição humana inconclusiva e em processo de construção, o processo
formativo mobilizado e orientado pelos princípios políticos e pedagógicos
da Educação Popular contribui com a atuação das pessoas como prota-
gonistas sociais e políticos em seus contextos, desvelando exercícios de
autonomia pela leitura crítica da realidade e dos fatores determinantes da
existência individual e social (PITANO, 2017). Essa perspectiva educativa
é tecida, portanto, com os saberes e as práticas das pessoas conforme suas
óticas culturais, realçando a construção do conhecimento nas ações de
resistência e de emancipação humana. No âmbito da saúde coletiva, as
práticas de EP remetem ao contexto de resistência à Ditadura Militar, ao
promover a aproximação de profissionais às classes populares, estabele-
cendo vínculos e promovendo experiências de apoio social e de educação
em saúde em serviços comunitários (PALUDO, 2015; PICCIN; BETTO,
2018; VASCONCELOS; PRADO, 2017).
A EPS tem como pressuposto metodológico o diálogo, tomando
como ponto de partida o respeito e o reconhecimento aos saberes e cultu-
ras populares, expressos em suas formas de sentir, pensar e agir (BRASIL,
2012). A abordagem da EPS visa transpor o modelo fragmentado de saúde,
enxergando a integralidade do outro, auxiliando-o na construção de conhe-
cimentos e de práticas úteis à promoção da vida e ao enfrentamento concre-
to dos desafios do viver (PALUDO, 2015).
Por sua vez, as PICS estão inseridas no SUS desde 2006, através da
Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS (PNPI-
C-SUS), que, com sua vigência, possibilitou a implementação de práticas de
cuidado – como acupuntura, fitoterapia e yoga – por profissionais da saúde no
âmbito de espaços e serviços do SUS (BRASIL, 2007).
Conforme demonstrado em obras como a organizada por Rodrigues
e Cruz (2020), tanto as PICS quanto a EPS possuem interfaces significa-
tivas na APS, como a focalização nos sujeitos em seus contextos sociais/

35
Experiências de Educação Popular e Práticas Integrativas e Complementares em saúde

familiares, a apreciação dos saberes e práticas não cartesianas e o reco-


nhecimento das diversas maneiras de cuidado (AMARAL et al., 2014;
BOING et al., 2019), de modo que, na esfera da APS, a EPS e as PICS
podem colaborar para o cuidado integral e o estímulo a redes comunitá-
rias de apoio, diante da emergência do quadro pandêmico e das incertezas
advindas desse cenário.
Este estudo destaca experiências vivenciadas pelo Programa de Exten-
são PINAB, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), no tocante ao en-
frentamento à pandemia, particularmente as iniciativas de PICS orientadas
pela EPS. Nessa perspectiva, busca-se apontar – a partir dos saberes e fazeres
empreendidos na relação do Programa com uma equipe de saúde da família e
com protagonistas de um território – caminhos e possibilidades de desenvolvi-
mento de PICS pela EPS, como modo de enfrentar os efeitos da pandemia na
vida das pessoas da comunidade e gerar processos de prevenção e de promoção
à saúde nesse contexto preocupante e desafiador.
Trata-se de um relato de experiência, para o qual foram adotados
os fundamentos da perspectiva metodológica da Sistematização de Expe-
riências, conforme indicado nos pressupostos de Jara Holliday (2006), os
quais identificam a sistematização na perspectiva da “Concepção Metodo-
lógica Dialética, que entende a realidade histórico-social como uma to-
talidade, como processo histórico”. Assim, procuramos desenvolver uma
descrição da experiência, acompanhada de sua análise crítica. Como fontes
para composição do relato, optou-se pela consulta documental, a qual foi
realizada por protagonistas do PINAB, particularmente dois docentes e
três discentes. Estes recorreram aos seguintes documentos selecionados de
forma intencional: a) registros de atas de reuniões, de atividades forma-
tivas e de ações comunitárias promovidas pelo programa, disponíveis na
conta do Google Drive do mesmo; b) publicações das páginas eletrônicas
do programa, tanto o Blog como o perfil no Facebook; c) material de di-
vulgação científica produzido pelos extensionistas a convite do Grupo Te-
mático de Educação Popular em Saúde da Associação Brasileira de Saúde
Coletiva (ABRASCO) e publicado na página dessa instituição.
Com isso, embasado nos achados dos documentos resgatados e nas
percepções dos estudantes, que além de relatores da experiência, também
atuaram nos processos desenvolvidos, foram criados os relatos descritos
neste artigo.

36
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Situando dimensões contextuais do programa de extensão PINAB


O PINAB realiza suas ações conjuntamente aos profissionais da Unidade de
Saúde da Família (USF) Vila Saúde, no bairro do Cristo Redentor, em João
Pessoa/PB, desde 2007. As atividades propostas pelo Programa visam qualifi-
car e ampliar as iniciativas em EPS nos movimentos sociais e nos serviços do
SUS na Paraíba, estimulando a EP com a construção de práticas de saúde com
postura ético-política humanística, interdisciplinar e participativa, sobretudo
no que se refere à valorização dos saberes e práticas populares em saúde.
Nos dias de hoje, atua com quatro frentes de atividades: a) promoção
de cursos de formação para o aprimoramento teórico-metodológico na peda-
gogia freiriana, para protagonistas de diferentes experiências e movimentos
sociais do Brasil; b) editoração de publicações com textos oriundos de expe-
riências de EP vinculadas aos movimentos e às práticas populares de saúde da
Paraíba; c) promoção de conteúdos e cursos voltados à valorização e divul-
gação das PICS com o fomento a espaços de diálogo com as comunidades;
d) processos formativos de lideranças comunitárias no âmbito da APS com
ênfase na participação popular e controle social no SUS.
Em virtude do momento sanitário atual vivenciado em todo o mundo,
o PINAB vem mantendo suas ações, desde março de 2020, por meio de ferra-
mentas digitais, para assegurar o cuidado continuado, a partilha de saberes e a
promoção de espaços de formação.
Ante ao exposto, e uma vez que são foco deste manuscrito, serão descri-
tas, a seguir, algumas das atividades realizadas no período de março a dezem-
bro de 2020, sendo elas: o Grupo de Relaxamento e Bem Viver, o Cantinho
do Chá Virtual e a produção de um E-book com relatos de experiência em
EPS e PICS.

Grupo de relaxamento e bem viver


Junto a agentes comunitários e demais profissionais de saúde da USF, o PINAB
vem desenvolvendo, desde 2019, o Grupo de Relaxamento e Bem Viver, ativida-
de criada a partir de uma demanda crescente de alguns moradores do território
por espaços de encontro para compartilhamento de saberes, ações e dicas sobre
práticas integrativas de cuidado. Isso foi, naquele contexto, muito mobilizado
através da busca pela auriculoterapia, por discussão acerca de ervas e plantas
medicinais (mobilizada pela experiência de uma horta comunitária na USF),
bem como por atividades de autocuidado com massoterapia e alongamentos.

37
Experiências de Educação Popular e Práticas Integrativas e Complementares em saúde

Nesse sentido, o Grupo surgiu como um lugar semanal de encontro


para compartilhar práticas de cuidado integrativas e populares e, aos poucos,
foi se consolidando como um espaço comunitário para escuta mútua e apoio
social das pessoas participantes. De forma que, por meio do Grupo se desvela-
ram uma série de atividades em EPS promovidas pela USF em conjunto com
o PINAB, por meio das quais foi percebido um aumento da integração comu-
nitária e do engajamento popular na USF para a implementação na agenda da
unidade das PICS e atividades de EPS.
As atividades eram mediadas por líderes comunitários, profissionais
da USF local, extensionistas do PINAB, uma doutoranda em Educação pela
UFPB (linha de Educação Popular) e estudantes do curso de Medicina, tendo
como participantes um público adulto, majoritariamente feminino, de usuá-
rios da região, com uma média de dez integrantes por encontro.
A dinâmica dos encontros se constituía de três etapas: o momento
inicial de acolhimento, no qual uma fitoterapeuta atuante no local e/ou lí-
der comunitária abordava aspectos sobre plantas medicinais, alimentação e
bem-estar; Sequenciado por um momento de vivência, que incluía rodas com
músicas brasileiras e danças, meditação guiada, relaxamentos, alongamentos
e experiências de massagem; e por fim, um terceiro momento, com espaço de
reflexão sobre a percepção individual de cada um, seu entendimento sobre o
experienciado em suas dinâmicas sociais, familiares e comunitárias, suas proje-
ções para a semana e demais assuntos reflexivos que repercutam no bem-estar.
No período entre fevereiro de 2019 e fevereiro de 2020, as reuniões ocorriam
semanalmente às segundas-feiras, das 8h às 10h, em um amplo salão paroquial
situado no território.
Considerando a conjuntura da Covid-19, na qual o distanciamento
social se tornou necessidade, as atividades presenciais foram pausadas. Toda-
via, por reconhecermos que as mudanças repentinas e as incertezas geradas
pelas muitas informações sobre os desdobramentos da pandemia são fatores de
risco à saúde mental da população, organizamos as atividades para o funciona-
mento remoto, no intuito de oferecermos um ambiente de suporte empático,
informativo e prático, auxiliando no fornecimento de orientações confiáveis e
buscando manter e fortalecer o vínculo com as pessoas da comunidade.
Assim, as atividades seguiram semanalmente no mesmo dia e horário
do modo presencial, mobilizando a participação dos autores do artigo e tam-
bém de outros extensionistas, agentes comunitários, terapeutas e pessoas da
comunidade. As mediações passaram a ocorrer de forma mais participativa do

38
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

que no período presencial, na medida em que passou a ser mais sistemático


o estímulo ao protagonismo de todos na organização e mediação dos encon-
tros. Desse modo, os extensionistas atuavam no suporte técnico, criação das
salas virtuais e no apoio à condução do encontro, bem como na produção de
registros em fotos, vídeos e atas. Nesse período, nossa ação seguiu o seguinte
esquema: introdução, realização de exercícios respiratórios, prática de alon-
gamento e, em seguida, uma dinâmica de grupo para estimular o diálogo e
trocas de experiências.
No momento introdutório, assim como na modalidade presencial,
ocorre a abertura para conversamos sobre temáticas livres, objetivando a pro-
moção do acolhimento e a dialogicidade entre os participantes, enquanto
aguardamos a chegada dos demais. Esse, geralmente, é um momento de maior
informalidade no grupo, quando as pessoas ficam à vontade para “jogar con-
versa fora”. Em seguida, iniciamos a atividade com exercícios, mediados pelos
extensionistas e coletivamente praticados, para higiene brônquica e fortaleci-
mento pulmonar, trazendo o foco para a respiração, ampliando a consciência
no presente, promovendo uma maior integração, percepção corporal, resis-
tência pulmonar e relaxamento, por meio do afastamento de outros pensa-
mentos. Posteriormente, seguimos com a realização de alongamentos, visando
possibilitar, através da movimentação, o relaxamento de tensões e o estímulo
à consciência corporal.
Passadas essas etapas, realizamos a dinâmica de grupo, que varia de
acordo com a semana e com as demandas trazidas pelas próprias pessoas par-
ticipantes do grupo. Já foram utilizadas atividades de automassagem, conver-
sações sobre fatos que marcaram a semana, meditação guiada, aulas de yoga,
entre outras. Em muitos momentos, utilizou-se da escuta de músicas e do
compartilhamento de imagens e poesias trazidas pelos integrantes como for-
ma de mobilizar diálogos e compartilhamentos de elaborações, sentimentos e
inquietações das pessoas diante de seu cotidiano e de sua saúde.
Dentre outras contribuições, a comunicação no grupo colaborou para
o combate às fake news, as quais, infelizmente, passaram a ser uma constante
entre as pessoas do grupo que moram na comunidade, com ênfase na des-
legitimação das medidas de isolamento social, da disseminação da defesa de
medicações e demais tratamentos para Covid-19 sem fundamentação cien-
tífica, bem como por ataques às vacinas. Diante dessas situações, procede-
mos ao debate de forma aberta e dialógica, sem julgamentos ou acusações

39
Experiências de Educação Popular e Práticas Integrativas e Complementares em saúde

peremptórias a quem, originalmente, postava as informações falsas, procu-


rando explicar as informações e suas bases científicas de forma didática e
clara, sempre acolhendo as dúvidas recorrentes da conjuntura atual e acom-
panhando o dia a dia das pessoas durante o decurso da pandemia, compar-
tilhando também orientações com fontes confiáveis quando demandados.
Como resultado dessa experiência, tornou-se perceptível, ao decorrer
dos encontros, o desenvolvimento de uma maior criticidade das participan-
tes referentes a notícias do WhatsApp e questões relacionadas à saúde, pre-
venção e cuidados no tocante à Covid-19 e a outras temáticas que envolvem
o bem-estar, além de um aumento na mobilidade de algumas integrantes,
pelo incentivo à prática do alongamento.

Cantinho do chá virtual


A fitoterapia é uma abordagem terapêutica que se baseia na utilização de
plantas medicinais e fitoterápicos para o cuidado em saúde. Parte-se primor-
dialmente do campo do conhecimento popular, através da oralidade, mas
também do meio científico, no qual são apresentadas cada vez mais evidên-
cias para o uso das plantas. Das diversas modalidades de PICs encontradas
nos serviços públicos, podemos destacar a fitoterapia, por ser uma prática
que possui caráter econômico de fácil acesso, manejo e reconhecimento, que
aproxima e estimula o usuário da autonomia do seu processo de cuidado
(WIGGINS; PÉREZ, 2016; BARBOSA et al., 2020).
A forte presença da fitoterapia na APS e o importante papel cultural
e tradicional das plantas medicinais no Brasil fundamentaram a criação do
projeto intitulado de “Cantinho do Chá” no PINAB, em 2018, com atua-
ção até os dias atuais. No período pré-pandêmico, o Cantinho do Chá era
realizado semanalmente no espaço da USF Vila-Saúde e contava com a co-
laboração dos estudantes do curso de graduação em medicina da UFPB do
primeiro período letivo, com extensionistas do PINAB, profissionais de saú-
de da USF e moradores da comunidade que tinham saber anterior acumu-
lado sobre o uso de plantas medicinais e seus usos terapêuticos. O objetivo
dessa ação consistia em estimular, propagar e aproximar a comunidade dos
conhecimentos da fitoterapia, compartilhando, com as pessoas do território,
saberes e dicas de práticas calcadas em informações sobre as características
físicas, a nomenclatura popular e científica, o modo de preparo e uso, as
ações, indicações e contraindicações de plantas medicinais e fitoterápicos,

40
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

em especial, os chás. Para tal, dentre as atividades realizadas, destacaram-se


a divulgação das ervas por meio da exposição de banners na unidade, pro-
moção de momentos de conversas com os usuários no ambiente da USF,
enquanto estes estavam na sala de espera, a oferta de chás para degustação
e convite aos moradores para conhecerem e participarem da horta comuni-
tária da USF. Os chás utilizados na dinâmica da atividade eram preparados
com ervas cultivadas nessa horta, como, por exemplo, manjericão, flor de
laranja e erva cidreira.
No atual contexto, as mídias digitais têm ganhado um papel de des-
taque, na medida em que tendem a criar oportunidades de, ainda que vir-
tualmente, compartilhar conhecimento e propiciar a comunicação entre as
pessoas, visando ofertar informações seguras e assistência de qualidade, consi-
derando que, de um modo geral, há uma grande disseminação de informações
e notícias falsas sobre a Covid-19 (AGUIAR et al., 2020; ANTONIO et al.,
2013; BEAUNOYER et al., 2020). Nesse sentido, o cenário da pandemia
estimulou a criatividade e a habilidade dos membros organizadores do Can-
tinho do Chá, que são os extensionistas do projeto PINAB, dentre eles os
autores do texto, no sentido de planejar ações que pudessem ser desenvolvidas
virtualmente, de modo a compartilhar, construir e ampliar o conhecimento da
fitoterapia e auxiliar as pessoas da comunidade para o enfrentamento da pan-
demia. Assim, a atividade foi denominada de “Cantinho do Chá Virtual” e
passou a ser construída conjuntamente por estudantes do PINAB, com a par-
ticipação de duas lideranças comunitárias que possuem conhecimento sobre
fitoterápicos e que atuam no Grupo de Relaxamento e Bem Viver, anterior-
mente apresentado, tendo ainda o apoio de trabalhadores da USF, em especial
para a divulgação e envolvimento dos moradores do território.
Semanalmente, o Cantinho virtual ocorre com o lançamento de in-
formações sobre chás e ervas medicinais em redes sociais nas quais o PINAB
possui perfil (como Instagram, Facebook, Blog), além de outras mídias so-
ciais e espaços de socialização virtual, como grupos de WhatsApp, com co-
munitários e com trabalhadores da equipe local de saúde. Tais informações
são delineadas junto às lideranças comunitárias do território, que participam
na formulação dos textos a serem compartilhados, incluindo a ação terapêu-
tica de cada erva. No atual contexto, priorizou-se a sugestão de chás voltados
a aspectos demandantes diante da pandemia, como alterações ou distúrbios
do sono, ansiedade, medo, entre outros (BEAUNOYER et al., 2020). Regu-
larmente, são feitas enquetes no Instagram para que os seguidores informem

41
Experiências de Educação Popular e Práticas Integrativas e Complementares em saúde

dúvidas, curiosidades e demandas por assuntos a serem abordados nos episó-


dios subsequentes da série. Cabe ainda pontuar que as informações são com-
partilhadas de modo lúdico e visualmente atrativo, como forma de facilitar a
comunicação e a apropriação da comunidade e dos trabalhadores de saúde.
Foram elaboradas imagens com conteúdo relacionado às plantas da sé-
rie, contendo: informações gerais, indicações de outras ações da planta, quan-
tidade para preparo, posologia e contraindicações. As quais acabaram por
contribuir para uma maior propagação do conhecimento científico-popular,
incentivando a utilização de chás na promoção da saúde. Alguns exemplos de
ervas que foram tema de publicações no Cantinho do Chá Virtual são a erva-
cidreira, hortelã-homem, gengibre, aroeira e caruru.

Apoio a publicações sobre experiências em educação popular e PICS


No período de 2018 e 2019, o PINAB, em parceria com a Residência em
Medicina de Família e Comunidade da UFPB, desenvolveu vários processos
de formação de médicos residentes sobre EPS. Assim, ocorreram aulas e se-
minários, que abordaram diferentes concepções teóricas e orientaram práticas
apoiadas no referencial da EP na APS, no cuidado em saúde, nos processos
formativos junto à comunidade e aos trabalhadores. Como resultado desses
processos, foi elaborado um E-book que reuniu tanto textos já publicados
anteriormente na literatura da área, como relatos de residentes com atuação na
USF Vila Saúde sobre as práticas educativas em EPS nesse serviço, enfatizando
como a EP colaborou para o desenvolvimento das atividades.
Apesar dessa obra ter sido organizada a partir de um processo ante-
rior de formação e de estudos em EPS, sua organização foi dinamizada pela
equipe do PINAB no período da pandemia, como forma de se constituir
um produto de cunho teórico e metodológico capaz de apoiar e subsidiar as
equipes da APS no processo de construção de práticas educativas e de apoio
social e comunitário diante do enfrentamento à pandemia de Covid-19
no contexto da APS. Desse modo, a produção apresenta textos que tanto
podem contribuir para a propagação dos conhecimentos da EPS de modo
geral, como podem fundamentar a atuação das equipes de saúde, permitin-
do ações e reflexões sobre os processos de cuidado, de gestão, de formação
e de participação social. A publicação tem como título Educação Popular,
Participação e Promoção da Saúde: ideias, saberes e práticas para a Atenção
Primária à Saúde e foi lançada pela Editora do CCTA/UFPB, reunindo

42
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

textos que enfocam diversos assuntos, dentre os quais podemos destacar:


educação e saúde, movimentos sociais, educação popular, redes de apoio,
assistência a populações excluídas, territorialização e construção de vínculos
entre trabalhadores e usuários.
Além dessa produção, o PINAB assumiu a organização de um E-book
com a publicação de experiências e de práticas voltadas à interlocução entre
as PICS e a EPS na produção do cuidado em saúde na APS. Tal iniciativa
teve como objetivo ampliar a visibilidade das experiências, produções, co-
nhecimentos e abordagens forjadas no cotidiano dos territórios, ampliando
o cuidado integral em saúde, reconhecendo as PICS e a EPS como processos
dinamizadores da participação comunitária nas ações de saúde. Compreen-
dendo o contexto pandêmico, a dinamização dessa produção foi importante
como forma de o PINAB disponibilizar publicamente mais uma alternativa
de compartilhamento de saberes e de conhecimentos úteis para os vários
serviços de APS do Brasil.
Inicialmente, o E-book foi construído por meio do lançamento de
edital de chamada de textos, enfocando, particularmente, experiências da
Paraíba. Contudo, posteriormente, ampliamos, e foram incluídos trabalhos
da Bahia e do Mato Grosso. Em resposta ao edital de chamada para compo-
sição do E-book intitulado Vivências e Ações de Educação Popular e Práticas
Integrativas em Saúde na Paraíba, foram recebidos 11 textos no formato de
artigos completos, com um total de 38 autores, dentre eles doutores, mes-
tres, especialistas, profissionais da saúde e graduandos das áreas de enferma-
gem, fisioterapia, fonoaudiologia, medicina, nutrição, odontologia, peda-
gogia, psicologia, saúde coletiva e serviço social. Entre os diversos assuntos
presentes nas obras, podem-se destacar temáticas relativas à EPS e PICS nas
realidades de saúde da mulher, saúde dos idosos, saúde mental e inclusão
social, como também vivências de práticas integrativas em redes de saúde
e escolas. O e-book foi lançado no segundo semestre de 2021, por meio da
editora do CCTA/UFPB, sendo divulgado e disponibilizado gratuitamente
pelas redes do programa PINAB.

Aprendizados desvelados pela experiência


As vivências com a EP e as PICS vêm propiciando a trabalhadores de saúde da
USF, a lideranças comunitárias, a estudantes e docentes universitários, o exer-
cício do protagonismo criativo e criador, graças à possibilidade de construção

43
Experiências de Educação Popular e Práticas Integrativas e Complementares em saúde

compartilhada ao longo do processo de organização e desenvolvimento dessas


atividades. Nas dinâmicas desenvolvidas, são tecidos exercícios de práticas de
cuidado orientadas a partir do estabelecimento de vínculos e da priorização da
escuta ativa das pessoas, que vem a ser um “método de responder aos outros
de forma a incentivar uma melhor comunicação e compreensão mais clara das
preocupações pessoais” (DEPOUX et al., 2020)
O fazer cotidiano das experiências de PICS orientadas pela EPS pos-
sibilita o aprendizado sobre a diferença entre desenvolver ações de cuidado
para a comunidade e construir o cuidado em conjunto com a mesma, seus
saberes, culturas e experiências. Essa percepção ratifica que é por meio da
dialogicidade e do compartilhamento de saberes que ocorrem aprendizados
potentes para que se desvelem caminhos, possibilidades e estratégias para o
cuidado integral em saúde.
Para além das vivências nas práticas desveladas pelo PINAB, avalia-
mos ainda que as publicações efetuadas permitiram a socialização de saberes
e de práticas oriundas das experiências, e que apontam habilidades que po-
dem contribuir para o agir profissional em saúde e na APS, na perspectiva de
estabelecimento de vínculo e de uma relação horizontalizada no cuidado, na
qual o profissional da saúde atua como facilitador do cuidado, mas o usuário
é quem protagoniza esse processo.
O papel de participarmos da construção dessas experiências permitiu a
troca não só com a comunidade, mas com estudantes de cursos diferentes, o
que ressaltou a importância da interprofissionalidade nesses processos. Esses
espaços também foram potentes para o desenvolvimento e a maturação de
várias habilidades, como a comunicação, a dinâmica do trabalho em equipe,
resolução de conflitos, criatividade, entre outros.
Em que pesem os significativos desafios impostos pela necessidade
de distanciamento social, a experiência em tela aponta para possibilidades
no que tange à promoção de práticas de cuidado durante a pandemia, es-
pecialmente aquelas caracterizadas pelo protagonismo dos usuários. Para
tanto, percebeu-se a importância de se promover incessantemente o con-
vite e o estímulo à participação ativa das pessoas nas práticas de cuidado e
nos grupos terapêuticos, valorizando seu saber, seu olhar, suas iniciativas e
suas elaborações sobre temas prioritários.
Em nossa visão, as vivências das pessoas com as PICS colaboram tam-
bém para uma paulatina desconstrução do olhar puramente tecnicista ou
reducionista (consumo de medicamentos e procedimentos) que parte da

44
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

população tem sobre o cuidado em saúde. Ao vivenciarem momentos de en-


contro pautados não pela doença, mas pelo acolhimento, pela escuta e pelo
apoio social, muitas das pessoas passam a investir tempo e dedicação em suas
vidas para práticas integrais de cuidado e passam a compreendê-las como
projeto de viver, e não apenas de cura e de reabilitação. Desse modo, muitas
participantes das ações de cuidado em PICS mediadas pelo PINAB com a
USF têm se formado como efetivas lideranças comunitárias, procurando
maior formação para também serem agentes promotoras de cuidado através
de várias atividades, garantindo microevoluções e pequenas mudanças no
cotidiano que oferecem uma melhor qualidade de vida e condições de saúde.

Considerações finais
Frente aos desafios impostos pela Covid-19, considera-se que a EPS e as PICS
demonstraram ser estratégias importantes no que tange à organização dos ser-
viços de saúde e dos processos de cuidado na APS. Compreendemos que a
experiência revelou como principais aprendizados:
1) As PICS podem potencializar a possibilidade de protagonismo co-
munitário no cuidado integral, ampliando e difundindo espaços e experiên-
cias locais de cuidado;
2) O desvelar de experiências de PICS pela EPS traz aprendizados e
aponta estratégias e perspectivas que necessitam de registro, de socialização e
de publicação, de maneira que seus aprendizados, caminhos, potencialidades
e criatividades estejam disponíveis para um público cada vez maior, inspiran-
do-o para o desvelamento de saídas aos desafios localmente sentidos em cada
contexto;
3) Ao experienciar encontros pautados não na doença, mas no aco-
lhimento, na presença, no ouvir e no apoio social, possibilitamos a muitas
pessoas da comunidade, mesmo a distância, a oportunidade de perceber o
cuidado integral não apenas como curativo e reabilitativo, mas como um pro-
jeto de vida, uma possibilidade de bem-estar e de melhoria em suas condições
de ser e estar em saúde.
Entretanto, algumas limitações foram encontradas durante o processo,
por exemplo, destacam-se dificuldades no manejo até na adaptação de parte
das pessoas com as tecnologias da comunicação, bem como limitações de aces-
so à conexão de internet por alguns participantes, o que levou a um número
de participantes menor do que o esperado e almejado. Além disso, foi desafia-

45
Experiências de Educação Popular e Práticas Integrativas e Complementares em saúde

dor criar processos respeitosos de dialogar com pessoas que compartilhavam


notícias falsas nos espaços dos grupos, muitas resultando de compartilhamen-
tos sem maior análise e ponderação do que estava escrito nas mensagens. Ti-
vemos receio de que as pessoas se sentissem restringidas em sua participação
no grupo. Contudo, fomos encontrando formas de superação, sobretudo pela
publicação, em sequência às notícias falsas, de informes e comunicações de
contraponto didático, em forma respeitosa e sem nos voltar individualmente
contra as pessoas que compartilharam, mas focando no conteúdo em questão,
de maneira a socializar informações e orientações cientificamente respaldadas
quanto às medidas de enfrentamento à pandemia.
Essas limitações impostas pelo contexto e pelas tecnologias de comuni-
cação foram motivações para o desenvolvimento e aprimoramento de habili-
dades tanto dos autores quanto dos outros participantes, além de evidencia-
rem potencialidades nas atividades. Dessa forma, puderam desvelar processos
de cuidado integral, tendo como marca o protagonismo popular e a criação de
espaços de encontro comunitário calcados na escuta autêntica, no diálogo e na
valorização do apoio social para enfrentar a pandemia e suas consequências.
Assim, destacamos o potencial das experiências apresentadas, principalmente,
no que tange a reforçar e apoiar novas estratégias para a APS e o SUS de forma
mais ampla, que associam os avanços das tecnologias de informação, as práti-
cas integrativas e a educação popular em saúde.

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48
O Teatro Revolucionário
no Centro Popular de Cultura:
Algumas Questões Sobre o Teatro
do Oprimido e a Educação Popular

Maria Tereza Goudard Tavares


Caroline Silva Barbosa

Introdução
Este artigo busca discutir o papel do teatro compreendido como “arte revo-
lucionária” e a Educação Popular no interior das ações do Centro Popular
de Cultura (CPC) no período de 1961 a 1964, quando este foi extinto em
função do golpe empresarial militar no Brasil. Procuraremos apresentar o
papel do CPC, focalizando principalmente a relação entre arte, cultura e
conscientização, a partir das ações do teatro politicamente engajado, dire-
cionado à conscientização popular e formação política no movimento das
reformas de base do governo João Goulart. Buscaremos, também, investigar
nos percursos dos diretores teatrais e pensadores da cultura Oduvaldo Vian-
na Filho e Augusto Boal, as concepções de arte, teatro, cultura e Educação
Popular presentes no CPC, bem como no trabalho de teatro revolucionário
presente nas obras desses dois diretores. Nessa perspectiva, procuraremos
dialogar com Paulo Freire e com seu conceito de cultura popular, ressal-
tando que no início da década de 60 do século passado, Freire, ao assumir
a coordenação do Serviço de Extensão Comunitária na então Universidade
de Recife (1961), já procurava ampliar as bases para a criação de vínculos
políticos e pedagógicos com as classes populares recifenses, objetivando a
maior inserção desses grupos na vida cultural e política de uma sociedade a

49
O Teatro Revolucionário no Centro Popular de Cultura

ser transformada. Nesse sentido, conhecer e problematizar o teatro popular


e o seu caráter revolucionário a partir do diálogo entre Augusto Boal e Paulo
Freire torna-se um desafio contemporâneo de fortalecer o papel da cultura,
em especial do teatro como dispositivo de Educação Popular e partilha do
sensível, no sentido dado por Rancière (2005). Isto posto, procuraremos no
movimento do artigo pensar e problematizar o teatro revolucionário como
um dispositivo político fundante das ações do CPC na cena político-cultu-
ral brasileira, um inédito viável no sentido dado por Paulo Freire presente em
experiências brasileiras de Educação Popular no período 1961-1964.

O Centro Popular de Cultura (CPC) e Movimentos da Educação


Popular – algumas Aproximações
Para apresentar o percurso do Centro Popular de Cultura no Brasil, torna-se
fundamental tecer algumas reflexões sobre o inventário da Educação Popu-
lar no Brasil. Discorrer sobre o seu legado histórico e sobre as suas possibi-
lidades de (re)criação e mobilização de inéditos viáveis (FREIRE, 1987) na
Educação Brasileira contemporânea.
Ressaltamos que objetivamos pensar neste artigo, sobretudo, as pos-
sibilidades de diálogo da Educação Popular com a história e a memória das
lutas pela educação e pelo acesso aos direitos fundamentais de todos e todas.
Sobretudo reconstruir a memória dos embates travados pelos movimentos so-
ciais no Brasil, especialmente com as lutas anticoloniais na África e na América
latina, nas Ligas Camponesas no Nordeste Brasileiro, no Movimento dos Sem
Terra (MST), Movimento Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem
Teto (MNTST), no Momento de Mulheres, sobretudo no Movimento negro,
principalmente de mulheres negras nas periferias urbanas. Acreditamos que
as práticas de Educação Popular explicitadas nesses movimentos tiveram um
especial recrudescimento, instigadas pelo cenário de inspiração desses eventos,
ocorridos tanto na metade do século XX, como nos eventos de lutas e partici-
pação popular nas grandes metrópoles brasileiras a partir de 2013.
Por conta da força e da vigorosidade das questões emergentes oportuni-
zadas tanto pelos movimentos das “jornadas de Junho de 2013”, quanto pelas
questões trazidas pelos diferentes atores/pensadores(as) da Educação Popular
e dos Movimentos Sociais presentes na contemporaneidade, entendemos ser
necessário pensar e aprofundar questões relativas ao papel da Educação Po-
pular na atual conjuntura da sociedade brasileira, em especial junto aos mo-

50
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

vimentos sociais que não param de se mobilizar em todo o país, sobretudo o


MST, especialmente no cenário atual, considerado estratégico para se pensar
outro projeto de país, depois do cenário do impeachment da presidenta Dilma
Roussef, da assunção ao poder de Michel Temer a partir do golpe de 2016, e
das eleições de 2018, nas quais a eleição do presidente Jair Messias Bolsonaro
significou um retrocesso na frágil democracia brasileira e no estado de direito
que o país buscava consolidar após a Constituição de 1988.
Para fins de melhor compreensão das questões anunciadas, denomina-
remos a Educação Popular abreviadamente por EP, como de modo geral a de-
finimos no Grupo de Trabalho nº 6 da ANPEd, no qual nos inserimos como
professoras pesquisadoras e participantes de grupos de pesquisas.
Numa perspectiva histórica, passadas quase seis décadas de sua criação
como uma pedagogia que nasce articulada aos movimentos sociais do final
dos anos 1950, a EP é, para se expressar na linguagem de Paulo Freire, um
movimento situado e datado na história da educação brasileira. Na sua certidão
de batismo consta como local a cidade do Recife (PE) e como “data de nasci-
mento”, maio de 1960, sendo necessário não esquecer a vinculação histórica
e política entre a Educação Popular e os movimentos sociais, tanto no Brasil,
quanto na América Latina e África, principalmente nas décadas de 1960 a
1980, quando estes continentes viviam conjunturas colonialistas e de opressão
através de regimes ditatoriais impostos a partir de golpes de Estado, como, por
exemplo, no caso da ditadura militar no Brasil, violentamente imposta ao frá-
gil campo democrático que se constituía no país, a partir de março de 1964.1
A EP aqui entendida como uma pedagogia, isto é, como um conjunto
de princípios políticos, epistêmicos e pedagógicos que fundamentavam ações
e políticas junto ao movimento popular, pode ser explicada em sua genealogia
a partir do estudo de conjuntura do período e dos cortes históricos que foram
possíveis realizar para oferecer maior visibilidade à questão do campo políti-
co e educativo da época. Nessa leitura do mundo (para continuar o diálogo
com a temática utilizando a linguagem de Paulo Freire), são evidentes alguns
impulsos políticos que vão constituir o tecido social e histórico do final dos
anos 1950 e início dos 1960, a saber: a Revolução Cubana e a convocação
do Concílio do Vaticano II da Igreja Católica (1959), isso externamente, e
nos limites brasileiros, a chegada do grupo industrial à condição de elemen-

1 O livro de Conceição Paludo, Educação Popular em Buscas de Alternativas: Uma Leitura


desde o Campo democrático e popular, de 2001 retrata bem esse período histórico.

51
O Teatro Revolucionário no Centro Popular de Cultura

to hegemônico do sistema nacional do poder, na década de 1960, como


ensina Celso Furtado; o surgimento das Ligas Camponesas de Francisco
Julião (1958); o crescimento político da área sindical urbana e do movimen-
to estudantil com o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), o Pacto de
Unidade e Ação (PUA) e a União Nacional dos Estudantes (UNE); a longa
discussão da LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional –, que
serviu de tribuna para a luta de defesa da escola pública; a organização da
Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste-SUDENE (1959) e a
Frente do Recife (1958) aliando comunistas, socialistas, liberais e católicos
de esquerda na eleição de Arraes para a Prefeitura da capital de Pernambuco
e servindo de estímulo para a eleição de Djalma Maranhão para a Prefeitura
de Natal (1960). Estes eventos e outros explicam a efervescência cultural da
passagem dos anos 1950 para os 1960 no Brasil, apresentando nessa efer-
vescência política e social o campo democrático e popular que iria irrigar o
governo de João Goulart-Jango no incandescente e interrompido período
das reformas de Base, entre 1961 e março de 1964 no Brasil.
Com base na leitura do imprescindível livro De pé no chão também se
aprende a ler, de Moacyr de Góes (1980), aprendemos que, na questão dos
princípios da EP propriamente ditos, as propostas do que seria a Educação
Popular dos anos 1960 começam a ser encaminhadas em 1958 com o II Con-
gresso Nacional de Educação de Adultos. Na preparação deste, no Seminário
Regional de Pernambuco, Paulo Freire é relator do tema A educação dos adultos
e as populações marginais: o problema dos mocambos. Como a linguagem é uma
produção viva e para usar uma expressão dos nossos dias, em populações mar-
ginais leia-se populações excluídas, pobres, oprimidas.
Esta é uma das retomadas do vetor social e político na educação, ques-
tão escamoteada durante o Estado Novo (GÓES, 1980). Naquele II Congres-
so, os intelectuais, operários, camponeses e estudantes pernambucanos envol-
vidos com a EP convocam a um trabalho de construção de uma escola popular
com os homens e mulheres e não para os homens e mulheres do povo (GÓES,
1980), propondo a substituição da aula expositiva centrada na autoridade
do professor(a) pela discussão coletiva e dialógica; a utilização de modernas
técnicas de educação de grupos com a ajuda de recursos audiovisuais, tais
como o filme e uso do retroprojetor (PAIVA, 1973). Estes princípios teóricos
e metodológicos constituem dispositivos concretos dessa intenção política e
metodológica de transformar a educação como prática de liberdade, como nos

52
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

convocava a pensar Paulo Freire. Esse posicionamento emergirá, novamente,


na tese de Paulo Freire Educação e atualidade brasileira, em 1959, em que, em
termos individuais, estabelece o “trânsito” da consciência intransitiva para a
consciência transitiva e crítica e, em termos sociais, o “trânsito” de uma socie-
dade fechada para uma sociedade aberta (GÓES, 1980).
Estes são, em linhas gerais, alguns dos princípios epistêmicos e teó-
ricos dirigidos aos movimentos populares dos anos 1960, em que a Educa-
ção Popular era entendida ainda de forma romântica e, muitas vezes, ingê-
nua, como um dos fundamentos e estratégias intencionais que poderiam
mudar o mundo, sobretudo romper com as profundas e históricas desi-
gualdades sociais e educacionais impostas ao povo brasileiro, especialmen-
te aos setores subalternos do campo, aos trabalhadores(as) negros(as), aos
favelados(as) das periferias urbanas e aos povos indígenas aculturados(as) e
historicamente dizimados em quase todas as regiões brasileiras.
Do ponto de vista de uma possível tentativa de síntese, essas ideias,
inúmeras vezes difusas e pouco sistematizadas à época, ganham encarnação
com a vitória eleitoral da esquerda no Recife e em Natal em 1958 e 1960,
Miguel Arraes e Djalma Maranhão, respectivamente (GÓES, 1980). Assim, é
possível estabelecer uma cronologia para o surgimento dos quatro movimen-
tos de Educação Popular que são considerados fundacionais na constituição
do campo da EP no Brasil:
1- O Movimento de Cultura Popular (MCP), criado em maio de 1960,
sob o patrocínio da Prefeitura do Recife, como sociedade civil autônoma;
2- A Campanha De Pé no Chão também se Aprende a Ler, deflagrada
pela Secretaria Municipal de Educação de Natal, em fevereiro de 1961;
3- O Movimento de Educação de Base (MEB), lançado pela Conferên-
cia Nacional dos Bispos do Brasil, em convênio com o Governo Federal, em
março de 1961;
4- O Centro Popular de Cultura (CPC), criado pela União Nacional
dos Estudantes (UNE), em abril de 1961.
Esses movimentos tiveram como objetivo comum, para usar uma lin-
guagem contemporânea, discutir as profundas desigualdades sociais brasileiras
e incluir os excluídos da sociedade num processo educacional, cultural e polí-
tico. Para alcançar essa estratégia, várias táticas, em diálogo com a perspectiva
certeauniana de que “a tática é a arte do fraco” (CERTEAU, 1994), foram
desenvolvidas, diversificadas, dando a cada uma delas uma face própria, ape-

53
O Teatro Revolucionário no Centro Popular de Cultura

sar da ideologia comum de esquerda, esta mais ousada em uns e em outros


não. Assim, nos limites deste artigo, é possível identificar alguns princípios
básicos que identificam cada uma delas. No Movimento de Cultura Popular
predomina a diversificação: a pesquisa educacional, que vai elaborar o Método
Paulo Freire, em 1962 (GÓES, 1980), a alfabetização, o ensino fundamental,
as praças de cultura, a editoração de textos e o teatro popular. A Campanha
De Pé no Chão, partindo da proposta de erradicar o analfabetismo em Natal
vai criar acrescentamentos culturais como o estímulo e a organização de autos
populares e folclóricos, assumindo a preparação do magistério municipal com
o seu Centro de Formação de Professores, a iniciação ao trabalho com a sua
Campanha de Pé no Chão também se Aprende uma Profissão, as praças de
cultura e a criação de bibliotecas populares, programações diárias em rádios,
construindo uma política educacional orgânica de e com as classes sociais urba-
nas subalternizadas (GÓES, 1980). Sua especificidade é desvelar que a escola
não é apenas o prédio escolar e, assim, ensinou crianças, jovens e adultos em
acampamentos cobertos de palha de coqueiro e sobre chão de barro batido,
formas arquitetônicas idênticas às casas dos pescadores das praias. Com isso
barateou os custos e multiplicou as oportunidades de escolas. O Movimento
de Educação de Base optou pela educação das classes camponesas através de
uma rede de escolas radiofônicas e participação na sindicalização rural pro-
movida pelo clero e leigos católicos. O Centro Popular de Cultura abriu o ca-
minho da politização das questões sociais através, principalmente, do “teatro
de caixotinho”, da edição de livros, discos e filmes, mantendo a alfabetização
como política secundária até o momento do Plano Nacional de Alfabetização
do MEC com a aplicação do Método Paulo Freire, em 1963.
A conjuntura político-educacional brasileira do período desabrocha
com uma força tal que, em setembro de 1963, quando ocorre o I Encontro
Nacional de Alfabetização e Cultura Popular, no Recife, lá se reúnem 44 or-
ganizações que, espalhadas pelo Brasil, desenvolvem programas de alfabetiza-
ção e cultura popular. O pano de fundo conjuntural, a “leitura de mundo” do
período que agora é possível ler, é a mobilização política pelas Reformas de
Base do Governo João Goulart e já estão no palco os atores que interpretarão
o “teatro da crise” na percepção de Gramsci, isto é, os tempos em que o novo
tenta emergir, mas o arcaico teima em sobreviver e não lhe abrir espaço. O
desenlace é o Golpe de Estado de 1964, bem conhecido por todos, e que em
2014 completou cinquenta anos de sua tenebrosa e perversa memória.

54
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Esse breve inventário da EP no Brasil, após mais de cinquenta anos


do golpe militar, nos parece ser inspirador do tema do artigo em tela. Nesse
sentido, depois de contextualizar e datar a EP, é chegada a oportunidade de
refletir como esta pedagogia/epistemologia afetou e direcionou o trabalho
político-cultural do Centro Popular de Cultura (CPC) , em especial a rela-
ção com autores e pensadores/as do teatro brasileiro, especialmente Augusto
Boal, com a criação do seu Teatro do Oprimido, que sobreviveu ao Golpe de
Estado de 1964 e continuou sendo uma práxis teatral político-cultural-pe-
dagógica, uma prática teatral, cultural, educativa dos(as) oprimidos(as), dos
pobres, dos subalternizados(as).
É sempre necessário reiterar que o Golpe de 64 buscou destruir a con-
cepção de educação, cultura e organização popular para a reconstrução na-
cional e soberania popular que então era pensada e propagada no Brasil: por
exemplo, enquanto no Plano Nacional de Alfabetização – PNA o Estado
estimulava a participação de educadores e educandos no processo de constru-
ção teórica e metodológica em consonância com a filosofia de Paulo Freire, os
acordos MEC-USAID (1964-68), dentro do modelo da Guerra Fria, transfe-
riram para os Estados Unidos o pensar e as propostas de implementação e o
direcionamento da educação brasileira. A sociedade brasileira, apesar da forte
repressão do contexto do regime militar, não entendeu nem aceitou isso, sen-
do que estudantes e professores(as) reagiram na resistência, especialmente nas
Universidades públicas e movimentos sociais no campo e na cidade.
Lembramos, também, que naquele clima de repressão da ditadura
militar, as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs se converteram em nú-
cleos de resistência à ditadura civil militar. Ao aplicarem a metodologia
de trabalho do ver, julgar e agir elas estavam reproduzindo o velho instru-
mental da Juventude Universitária Católica – JUC, uma das vertentes de
ação da Educação Popular (GÓES, 1995). Este foi um outro caminho de
sobrevivência da EP no interior da Igreja Católica, que em diálogo com a
opção preferencial pelos pobres oportunizava ações de resistência através
de várias frentes de trabalho junto ao povo, inclusive no campo da alfa-
betização política. E, apesar das tensões entre as igrejas conservadoras e
progressistas no Brasil ainda se fazerem presente (no campo e na cidade), a
reprimida palavra da Teologia da Libertação ainda ecoa na denúncia e no
anúncio de pastorais de igrejas progressistas, tal qual as que se organizam
em torno da pastoral da terra (CPT).

55
O Teatro Revolucionário no Centro Popular de Cultura

Na segunda seção deste artigo, procuraremos apresentar e discutir o


Centro Popular de Cultura – o CPC – principalmente a partir do trabalho de
“guerrilha cultural” produzido por Augusto Boal no seu Teatro do Oprimido.

O Centro Popular de Cultura (CPC) afirmando o Teatro Popular


Revolucionário como uma Pedagogia do possível
Há muitas ações em teatro e em educação que marcam a história do nosso
país e inspiram outras na contemporaneidade. Algumas delas estão conecta-
das à busca por uma mudança social imediata, na qual as massas populares
estejam no foco. Como exemplo dessas ações temos as produções do Cen-
tro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, o CPC da UNE,
que procurou, por diversos meios, sobretudo através de uma proposta de
teatro que chamavam revolucionário ou político, chegar às classes popula-
res e provocar-lhe a buscar o rompimento da estrutura social na qual estava
inserida. Segundo a pesquisadora Maria Silvia Betti

O CPC – e dentro dele o seu departamento de


teatro – estruturou-se com a meta explícita de
construir um trabalho cultural orientado não para
as classes que possuíam os meios de produção,
mas, precisamente, para as que eram exploradas
e excluídas do acesso a eles e à cultura (BETTI,
2013, p. 190).

A pesquisadora aponta que para cumprir o que se destinava a fazer,


o CPC teve três grandes desafios. O primeiro era de caráter logístico, visto
que as atuações aconteciam em diversos espaços, como em fábricas e em
locais abertos. Ou seja, as ações não aconteciam em espaços convencionais
de teatro, como em edifícios teatrais tradicionais. Outro desafio era de ca-
ráter estético, visto que não havia espetáculos até aquele momento capazes
de suprirem a demanda que surgia com urgência nas ações do CPC em
diversos locais do país. Dessa forma, as dramaturgias eram elaboradas em
caráter de urgência e, muitas vezes, sem tempo viável para amadurecimen-
to. O último desafio era político, visto que o teatro proposto pelo CPC
devia registrar e discutir as circunstâncias e acontecimentos históricos, so-
ciais e econômicos com a pertinência que os artistas do grupo idealizavam
(BETTI, 2013).

56
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

É importante lembrar que o CPC, apesar de ter uma breve história


entre os anos 1961 e 1964, era constituído por diversos intelectuais e artistas
que já haviam se envolvido com outros grupos importantes na época, como
o Teatro de Arena e o Teatro Paulista do Estudante, o TPE. Na década de
1950, inclusive, alguns dos artistas amadores do último grupo haviam se
integrado ao Arena e, como consequência, o caráter político do Teatro de
Arena havia se radicalizado.
Betti (2013) inicia seu artigo “A Politização do Teatro: do Arena ao
CPC” apresentando o Teatro de Arena, fundado em 1953 pela iniciativa de
José Renato Pécora, e mostra que um dos objetivos do grupo era atingir pú-
blicos de outras classes sociais, principalmente pessoas de diferentes extratos
sociais, como trabalhadores e trabalhadoras e estudantes. O TPE, que surgiu
em 1955 em uma reunião presidida por Ruggero Jacobbi, estava inserido
dentro da militância do Partido Comunista Brasileiro e tinha como um dos
objetivos ser um braço estético de uma política estudantil. Como atores, o
TPE apresentava figuras que depois seriam representativas dentro do Centro
Popular de Cultura, como Oduvaldo Vianna Filho.

O Centro Popular de Cultura surgiu da aglutina-


ção de intelectuais, artistas, jornalistas e estudan-
tes em torno da montagem da peça que Viani-
nha havia escrito na fase de seu desligamento do
Teatro de Arena de São Paulo, A Mais-valia vai
acabar, Seu Edgar, em 1960. (...) As personagens
alegorizavam as classes sociais em luta e a narrati-
va punha em discussão o processo de acumulação
capitalista, a origem do lucro e os mecanismos de
exploração do trabalho e a concentração da rique-
za (BETTI, 2013, p. 185).

É importante ressaltar que não houve um rompimento alarmante


entre o Arena e o CPC, mas sim a busca por caminhos diferentes de ações
artísticas em diálogo com a população. Segundo Júlian Boal, “Vianinha
não critica a qualidade das peças, mas sim a maneira pela qual e onde
eram apresentadas, e critica também o público, composto em parte por
membros da mesma alta e média burguesia, o que era inevitável em tão
pequeno teatro” (BOAL, J. 2000, p. 19).

57
O Teatro Revolucionário no Centro Popular de Cultura

Ainda sobre o Arena, o dramaturgo Augusto Boal relata em seu livro


Hamlet e o Filho do Padeiro suas conclusões a respeito das ações do grupo, do
qual se tornou integrante:

Nossa urgência nos inquietava: qual o destinatário


do nosso teatro? Nosso público era classe média.
Operários e camponeses eram nossos personagens
(avanço!), mas não espectadores. Fazíamos teatro
de uma perspectiva que acreditávamos popular
– mas não representávamos para o povo! De que
servia interpretar classe operária e oferecê-la na
bandeja, antes do jantar, à classe média e aos ricos?
(BOAL, 2000, p. 167).

É possível entender que este conflito seguiu também no CPC, que


tentou radicalizar na busca do “povo” indo até os operários, camponeses
e demais grupos populares. A busca pelo “povo”, portanto, foi uma das
grandes questões que permearam o grupo, mas que não teve uma resolução
efetiva. Segundo o pesquisador Décio de Almeida Prado, que é referência
em estudos do teatro brasileiro, no CPC: “Obedecia-se, ou supunha-se
obedecer ao povo, mas também ordenava-se ao povo, em tom exortativo
ou imperativo” (PRADO, 2009, p. 100).
A ideia de passar uma mensagem para o povo, de mobilizá-lo e cons-
cientizá-lo era importante para os artistas da época e permitia que elaborassem
ações que, hoje, são referências de teatro em diversos espaços de militância,
como dentro das ações de Educação no Campo. No entanto, muitas críticas
dos próprios artistas vieram após a breve experiência no CPC.

Todos os seus participantes (...) rememoram com


saudade o ambiente de camaradagem então rei-
nantes, o prazer de trabalhar por uma causa que
julgavam justa e para uma vitória que parecia
iminente. Mas também assinalam, em seus depoi-
mentos, as barreiras que teriam de ser vencidas e
nunca o foram: a distância existente entre artista
e povo; os problemas econômicos surgidos desde
que se dispense a bilheteria e não se queira atrelar
a empresa teatral a partidos políticos ou a órgãos

58
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

do governo; censuras internas, exercidas por algu-


mas das muitas tendências em que a esquerda já
principiava a se ramificar; o choque, às vezes den-
tro do mesmo indivíduo, entre a vocação artística
e as exigências propagandísticas; as falhas devidas
à precipitação com que os espetáculos deviam ser
realizados (PRADO, 2009, p. 99).

O artista Augusto Boal, apesar de não ter se colocado como membro do


CPC da UNE, participou de algumas de suas ações, como o desenvolvimento
de Seminários de Dramaturgia – o que já fazia no grupo Teatro de Arena –,
em outros espaços. É importante lembrar que o autor é conhecido nacional e
internacionalmente por diversas de suas atividades artísticas e que o método
Teatro do Oprimido foi desenvolvido a partir de suas experiências teatrais,
inclusive com o seu grupo e com o próprio Centro Popular de Cultura.

Ensaios em cena – Augusto Boal e o Teatro do Oprimido


Em seus livros, Boal explicita algumas experiências que o fizeram elaborar
o seu método teatral: “o Nordeste me alertou; Santo André me mostrou o
problema; Chaclacayo a solução” (BOAL, 2000, p. 197). A primeira das ex-
periências que o autor relata nesta citação surge de um diálogo com Virgílio,
um camponês que após assistir um espetáculo produzido pelo Teatro de Arena
propôs aos artistas envolvidos na apresentação que pegassem em armas e fos-
sem invadir as terras dos fazendeiros, como era proposto no espetáculo. Após
essa proposta, Boal explicou ao camponês que as armas, a narrativa e os atores
“eram de mentira” e, então, Virgílio respondeu ao autor em tom de conclusão
que o sague que os artistas propunham derramar na cena eram o dos cam-
poneses e não o dos próprios artistas. Segundo Boal, “Depois desse primeiro
encontro – encontro com um camponês e não com um abstrato campesinato
– encontro traumático, mas iluminador, nunca mais fiz peças conselheiras,
nunca mais enviei ‘mensagens’... a não ser quando eu ia junto, correndo o
mesmo risco” (BOAL, 2000, p. 19).
A segunda experiência foi em Santo André com operários durante um
Seminário de Dramaturgia do CPC. O nome da peça apresentada era Greve,
escrita por um metalúrgico chamado Jurandir. Em cena, o conflito estava pos-
to e os operários, reconhecendo-o, provocaram o dramaturgo a pensar sobre o
real e o fictício em cena.

59
O Teatro Revolucionário no Centro Popular de Cultura

Na ocasião, o personagem da peça chamado “Gordo” era um fura-gre-


ves. Segundo Boal, Jurandir teria se inspirado no Magro, um operário que
estava na plateia e que, ao observar a cena, revoltou-se: “Esse foi o jeito que
vocês encontraram para falar de mim, sem falar de mim! Por isso é teatro...
Mas eu não caio nessa...” (BOAL, 2000, p. 194).

O Gordo, personagem fura-greves, era vaiado


a cada réplica, e o ator que o interpretava teve
medo. Pedi silêncio e respeito, jurei que o intér-
prete, em hipótese alguma, identificava-se politi-
camente com o personagem. Tome vaias: parecia
teatro infantil quando entra a bruxa má (BOAL,
2000, p. 193).

Augusto Boal (2009) lembra que, durante essa experiência, ficava fas-
cinado vendo personagens e pessoas debatendo sobre a cena, intervindo, ar-
gumentando. Explica que naquela ocasião ainda não existia o teatro-fórum,
método do Teatro do Oprimido que iria desenvolver depois, mas que foi um
fórum dentro do teatro.

Aí aprendi uma lição sobre viver, re-viver e viven-


ciar. E ficou-me na memória aquela imagem ex-
traordinária do ser humano lutando contra o per-
sonagem, o homem contra a sua imagem; imagem
que, dele, apresentava outro homem. Lutando
contra si mesmo, ou parte de si, no outro (BOAL,
2000, p. 195).

A última experiência que o autor relata aconteceu no Peru, em 1973.


Na época, ele já buscava outras formas de teatro, como a Dramaturgia Simul-
tânea. Boal (1996) explica que essa técnica consistia em apresentar um espetá-
culo com um conflito que buscavam solucionar. A peça era apresentada ao pú-
blico até o momento da decisão do protagonista. Então, interrompia-se a cena
e o público era convidado a propor sugestões de resolução. Nesse movimento,
o público não entrava em cena, mas suas ideias, sim: “Já era um avanço, já não
dávamos mais conselhos: aprendíamos juntos” (BOAL, 1996, p. 19).
O autor relata que propôs um espetáculo baseado na história de
uma senhora que pediu para encenar um conflito com o marido. Segun-

60
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

do ela, o marido lhe pedia dinheiro para ajudar a pagar uma casa que ele
estava comprando, mas que nunca a levava para conhecer a casa, apenas
lhe entregava papéis que seriam recibos. Certa vez, a senhora pediu para a
vizinha ler os recibos, visto que era analfabeta, e descobriu que eles eram
bilhetes de amor da amante para o marido. Ao levar à cena esta narrativa,
muitas pessoas da plateia deram diversas soluções. No entanto, chamou a
atenção de Boal uma senhora que dizia repetidamente que a protagonista
devia ter uma “conversa franca” com o marido. Os atores encenavam uma
“conversa franca”, conforme solicitação da mulher na plateia, mas ela se
revoltava e dizia que não era assim. Até que então ela decidiu mostrar no
palco “a conversa franca”:

Subiu no palco, agarrou o pobre ator-marido inde-


feso, que era apenas um verdadeiro ator e não um
verdadeiro marido e, além disso, magro e fraco,
agarrou um cabo de vassoura e começou a bater-
lhe com toda força enquanto lhe dizia tudo o que
pensava das relações entre marido e mulher. (...)
Finalmente, deu-se por satisfeita, colocou sua víti-
ma sentada à mesa e disse:
“– Agora que nós tivemos uma conversa muito cla-
ra, muito sincera, agora VOCÊ vai lá na cozinha e
pega a MINHA sopa!!!” (BOAL, 1996, p. 22).

Esta experiência, na qual a plateia se colocou em cena para mostrar


a solução do conflito, contribuiu também para construir as bases do Teatro
do Oprimido, sobretudo o Teatro-Fórum, que no livro Teatro do Oprimido e
Outras Poéticas Políticas é apresentado da seguinte forma:

os espectadores – aos quais chamamos de Spect-a-


tores – são convidados a entrar em cena e, atuan-
do teatralmente e não apenas usando a palavra,
revelar seus pensamentos, desejos e estratégias
que podem sugerir, ao grupo ao qual pertencem,
um leque de alternativas possíveis por eles pró-
prios inventadas: o teatro deve ser um ensaio para
a ação na vida real, e não um fim em si mesmo
(BOAL, 2010, p. 19).

61
O Teatro Revolucionário no Centro Popular de Cultura

Augusto Boal, portanto, narra passagens importantes para a história


do teatro, passando por grupos que até os dias atuais são referência de pes-
quisas, como o Teatro de Arena e o CPC da UNE. Podemos entender que
Boal foi elaborando outras formas de fazer e pensar teatro, encontrando
caminhos que incorporam o que já havia sido experimentado na década de
1950 e 1960 por ele.

Em toda minha atividade, em tantos e tão diferen-


tes países da América Latina, pude observar esta
verdade: os públicos populares estão sobretudo in-
teressados em experimentar, ensaiar, e se chateiam
com a apresentação de espetáculos fechados. Nes-
tes casos, tentam dialogar com os atores em ação,
interromper a história, pedir explicações sem espe-
rar “educadamente” que o espetáculo termine. Ao
contrário da educação burguesa, a educação popu-
lar ajuda e estimula o espectador a fazer perguntas,
a dialogar, a participar (BOAL, 2010, p. 216).

O que Augusto Boal busca, então, com o teatro que vai desenvolvendo
ao longo dos anos é a própria ação dessa plateia que era tão importante para os
grupos já citados. É através da ação do espectador, da provocação que coloca
o próprio público em cena, que a ideia da mudança social pode acontecer.
Consideramos fundamental a seguinte explicação do autor sobre seu teatro:

O que a Poética do Oprimido propõe é a própria


ação! O espectador não delega poderes ao perso-
nagem para que atue nem para que pense em seu
lugar: ao contrário, ele mesmo assume um papel
protagônico, transforma a ação dramática inicial-
mente proposta, ensaia soluções possíveis, debate
projetos modificadores: em resumo, o espectador
ensaia, preparando-se para ação real. Por isso, eu
creio que o teatro não é revolucionário em si mes-
mo, mas certamente pode ser um excelente “ensaio”
da revolução. O espectador liberado, um homem
integro, se lança a uma ação! Não importa que seja
fictícia: importa que é uma ação (BOAL, 2010, p.
182, grifos nossos).

62
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

É importante lembrar que o seu método é baseado em diversos jo-


gos e exercícios que levam à produção de um teatro-fórum ou outros tipos
de cena e propostas artísticas. Ou seja, tem, sobretudo, um caráter proces-
sual, sendo fundamental pensar não só o produto cênico. Nesse processo,
é possível perceber uma grande utilização do método Teatro do Oprimido
em espaços diversos de formação, como em ocupações, favelas, movimentos
estudantis etc. Abaixo, falaremos um pouco mais desses procedimentos do
teatro de Boal e de seus movimentos revolucionários.

Práticas teatrais em busca de mudanças sociais


Diversas são as ações que têm como inspirações e bases a arte que se promo-
veu no período anterior à ditadura militar em nosso país. Como um exem-
plo, temos a experimentação de práticas teatrais na Educação no Campo. A
esse respeito, as pesquisadoras Cássia Ferreira Miranda e Tereza Mara Franzoni
(2016), no artigo “Diálogo de Saberes: a linguagem teatral e a formação estéti-
ca e poética dos povos do campo”, lembram que Augusto Boal e o Centro do
Teatro do Oprimido, no início de 2000, promoveram um encontro com mem-
bros do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, o MST: estes seriam mul-
tiplicadores das ações promovidas neste encontro em outras regiões do país,
com o objetivo de compartilhar as experiências em Teatro do Oprimido. Sobre
a ampliação da relação com as artes no campo, as autoras argumentam que:

Assimilar a arte como meio de expressão política


é uma conquista valiosa para os povos do campo.
Do movimento teatral anterior ao golpe de 1964,
no qual se buscou o acesso a essa linguagem pe-
los povos dela alijados, ao movimento posterior à
redemocratização do Brasil, houve algumas mu-
danças na forma de conceber o fazer artístico. No
caso da linguagem teatral, essa alteração se deu,
inicialmente, através do já citado trabalho de mul-
tiplicadores, realizado por Augusto Boal e o CTO,
com alguns membros do MST (...) (MIRANDA;
FRANZONI, 2016, p. 208).

As autoras lembram que a relação com o teatro e a Educação no Cam-


po foi ganhando cada vez mais espaço por ter a potência de propagar e re-

63
O Teatro Revolucionário no Centro Popular de Cultura

forçar ideologias e, cada vez mais, foi se mostrando necessária a relação entre
as ações no campo e as práticas teatrais (MIRANDA; FRANZONI, 2016).
O encontro entre o teatro e a Educação no Campo também passa
a ser interessante pelo desejo de romper com as produções hegemônicas,
muito conectadas com a indústria cultural e pelo interesse em deter também
os meios artísticos de produção teatral. As pesquisadoras, no entanto, pon-
deram: “nosso esforço não deve ser apenas socializar os meios de produção e
o conhecimento reconhecido, mas também conseguir repensar e diversificar
esse conhecimento à luz da arte e da cultura produzida pelos povos do cam-
po” (MIRANDA; FRANZONI, 2016, p. 213).
Consideramos importante lembrar alguns pontos conflituosos em re-
lação às práticas teatrais desenvolvidas no campo, como traz a pesquisadora
Juliana Bonassa Faria (2016), no livro Arte no Campo: Perspectivas políticas e
desafios, organizado por Márcia Pompeo Nogueira e Tereza Mara Franzoni2.
Segundo a autora, existe um preconceito em relação à arte produzida nos
movimentos sociais, “pois dizem que eles não produzem arte e cultura, ou
que, quando o fazem, é de forma espontânea” (FARIA, 2016, p. 125). Ela
argumenta que, por um lado, é verdade que as artes produzidas nesses espa-
ços têm um caráter espontaneísta. No entanto, não se trata somente disso e é
preciso aprofundar essa questão para analisar a arte que se produz no Movi-
mento dos Trabalhadores Sem Terra, por exemplo. Mostra que a relação com
as artes dentro do MST desenvolve a mesma ligação que os trabalhadores
têm com a ocupação da terra, que é uma relação mediada pelo conflito. Essa
relação tem efeito na própria forma como o Movimento vai dialogar com as
modalidades artísticas.

Uma ideia interessante – não única, mas forte –


no fazer cultural do Movimento é que a cultura é
reprodução e produção da existência humana. E
a nossa produção e reprodução da existência hu-
mana estão mediadas pela luta. Portanto, arte no
MST, que não é um problema, é sim mediada pela
luta, e essa luta é sim uma luta conflituosa, forte,

2 No capítulo “Arte e MST: acúmulo, desafios e projetos”, Faria (2016) expõe algumas
questões relativas à sua prática no campo apresentadas durante uma Conferência no Semi-
nário Arte no Campo na Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC), em 2014.

64
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

de muita contradição. Desse modo, a nossa arte


também terá essas características. Mas se fecha só
nisso? Não! Ela vai estar permanentemente media-
da pela luta, e esse elemento é que a faz ser diferen-
te (FARIA, 2016, p. 126-127).

Sobre esse ponto, podemos trazer como referência o dramaturgo ale-


mão Bertolt Brecht. O autor fala da importância do teatro como espaço de
recreação e, mesmo nesse momento, ele tem caráter pedagógico, visto que o
teatro “ainda é livre para se recrear com ensino e investigação. Constrói suas
representações sociais de forma válida e é capaz de influenciar a sociedade,
com uma grande diversão” (BRECHT, 1967, p. 192).
Nesse sentido, acreditamos que as práticas teatrais mediadas pela luta
cotidiana de movimentos sociais encontram nas práticas de Educação Popular
um espaço fértil de produção de arte, e de partilha do sensível (RANCIÈRE,
2005). Essa produção, no entanto, não tem um caráter de culminância, ou fi-
nalização de um produto, mas sim um trabalho processual, como as propostas
de Augusto Boal e seu teatro. Elas trazem a ideia de domínio dos meios, de
elaboração coletiva, de um fazer artístico desenvolvido a partir de demandas
específicas de grupos. Trabalha, portanto, com a experiência de sujeitos inse-
ridos no campo e na cidade e, a partir dela, mobiliza ações artísticas que vão
produzir reflexões e novas ações a partir de conflitos comuns: à luz de Boal
“ensaiam para a vida”.

À guisa de (in)conclusões

Caminhos não há.


Mas as gramas
os inventarão
Aqui se inicia,
uma viagem clara
para a encantação.
Fonte, flor em fogo,
o que nos espera
por detrás da noite?
Nada vos sovino:
com a minha incerteza,
Vos ilumino.

65
O Teatro Revolucionário no Centro Popular de Cultura

Escolhemos o belo poema de Ferreira Gullar (1983, p. 18) para encerrar, mes-
mo que de modo provisório, este artigo, considerando que o mesmo, além
de ser um alerta aos impasses do presente, é um dispositivo que nos anima a
manter viva a chama da luta esperançosa enraizada nos processos coletivos que
historicamente fundamentam as práticas de Educação Popular no seu percur-
so. Manter viva e acesa a luta e afirmar a busca de caminhos que possam cons-
truir por detrás do momento presente “uma viagem clara de encantamento”,
como nos diz Ferreira Gullar, constituem a matéria-prima de nossa “vontade
de potência”, expressa na elaboração do artigo em tela.
No processo de elaboração deste artigo, em seu movimento de constru-
ção, buscamos aos poucos nesse tempo lento de nossas geografias existenciais,
reconstruir alguns movimentos da intensa, e ao nosso olhar, ainda pouco es-
tudada relação entre a Educação Popular e o Teatro do Oprimido, reiterar
a poesia de Ferreira Gullar quando este afirma: “Caminhos não há. Mas as
gramas os inventarão”. Esperamos que as nossas singelas contribuições pos-
sam contribuir para impulsionar o debate coletivo voltado à identificação de
estratégias de enfrentamento da perversa realidade social e educacional bra-
sileira, visando à superação das desigualdades sociais no campo e na cidade.
Desigualdades históricas que, em pleno século XXI, teimosamente se dilatam
e se complexificam, delegando, especialmente ao campo político-epistemoló-
gico da Educação e da Cultura brasileira, desafios novos, complexos, exigindo
não apenas outras estratégias de enfrentamento, mas, sobretudo, outras con-
figurações teóricas e políticas, outros sistemas de pensamento, mais transver-
sais, vigorosos e criativos. Acreditamos que o Teatro do Oprimido, pensado
e trabalhado por Augusto Boal como um dispositivo de afirmação cultural e
pedagogia política junto a homens e mulheres do povo, continua sendo um
inédito viável no sentido freiriano (1987).

66
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

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68
Entre Situações-Limite e Inéditos Viáveis:
Rotas Feitas de Luta e Esperança

Ricardo Bragança Pinheiro Tammela


Fabiana Eckhardt

O que vamos contar neste texto são reflexões tecidas em uma pesquisa de
mestrado em educação, em fase de conclusão, que dialoga com moradores de
um bairro das classes populares em Petrópolis, região serrana do Estado do
Rio de Janeiro. Tem como objeto de estudo um projeto de extensão universi-
tária de uma instituição privada. Neste texto, intencionamos apresentar his-
tórias entrelaçadas deste cotidiano e seus atravessamentos causados por uma
pandemia, que se apresentou para muitos como se fosse uma determinante
histórica, levando a tod@s a fatal e inevitável adaptação a um suposto “novo
normal”. Diferente disso, apoiad@s em Paulo Freire, tomamos para a reflexão
aqui apresentada a pandemia como uma “situação-limite”, que gerou dificul-
dades e aumentou a escassez, mas promoveu “inéditos-viáveis”, mudando o
rumo, criando rotas feitas de luta e esperança.

O Vale do Carangola, o Sertão e a Extensão Universitária


O Vale do Carangola, lócus do projeto de extensão, é um bairro de classes
populares do município de Petrópolis. De acordo com o cadastramento da
Unidade de Saúde da Família-USF, são 4.133 morador@s que compõem este
bairro, entretanto, as lideranças comunitárias de lá dizem que são bem mais
pessoas. Quando há dois anos, a USF dizia ser aproximadamente 2.500 pes-
soas, essas lideranças comunitárias diziam ter mais de 4.000. Caminhando
pelo bairro, encontramos famílias que nos dizem não estarem cadastradas na
USF, segundo elas: “não adianta nada, porque lá não tem médico.” Indepen-

69
Entre Situações-Limite e Inéditos Viáveis

dente do motivo sinalizado, para este texto nos importa a observação de que
a USF não possui o cadastro de tod@s @s morador@s do Vale do Carango-
la, deixando-@s, portanto, sem uma informação mais precisa em relação ao
quantitativo de pessoas que vivem neste bairro.
O Vale do Carangola “nasce” como bairro pelo encontro de pessoas
que migraram dentro da própria cidade. Petrópolis, que é afamada como
“Cidade Imperial”,1 título que parece ser motivo de orgulho de muit@s de
seus/uas morador@s, é também conhecida pelos recorrentes desastres so-
cioambientais. Recentemente, vivemos o que se mostrou o maior de todos
os tempos. No início do ano de 2022, Petrópolis foi atingida por dois de-
sastres sociais provocados por chuvas, um em 15 de fevereiro e outro em 20
de março. Ambos resultaram em quase 300 pessoas mortas e mais de 4.000
desalojadas ou desabrigadas. Ao final da década de 1980, o município foi
igualmente atingido pela chuva que também matou muita gente e produziu
milhares de desabrigad@s. Com o objetivo de solucionar uma parcela desse
problema emergencial, muit@s dest@s pessoas foram levad@s para “Sau-
dades do Sertão”, uma fazenda desapropriada pela Prefeitura, como parte
do pagamento de débitos de impostos e que teve uma fração loteada para
acolher @s desabrigad@s daquele momento.
Localizado no fundo de um vale, cercado por montanhas e mata na-
tiva, o local começou a ser ocupado nos anos 1950, com trabalhador@s que
vinham trabalhar na fazenda que tomava uma área muito maior do que o
que é hoje o Vale do Carangola. De Saudade do Sertão, nome herdado da
fazenda, tornou-se Sertão do Carangola, nome que ficou estigmatizado ao
longo do tempo, como lugar de pobreza e produção de violência, o que
segundo @s morador@s trazia dificuldades quando precisavam falar onde
moravam em uma entrevista de emprego, por exemplo. Assim, em 2010,
para tentar mudar a narrativa de pobreza e produção de violência como o
bairro era conhecido, algumas lideranças comunitárias promoveram um ple-
biscito propondo a alteração do nome de Sertão do Carangola, o conhecido
“Sertão”, para Vale do Carangola.

1 Apesar de assim ser conhecida, é muito questionado tal título, pois essa nomenclatura
era conferida a alguns centros urbanos durante o Império no Brasil, sendo eliminadas
com a Proclamação da República. No caso de Petrópolis, a história desse título é dife-
rente, pois a cidade o recebeu quando ele não mais existia. Em 27 de março de 1981, o
então presidente da República, João Batista de Oliveira Figueiredo, atribuiu à cidade,
pelo Decreto no 85.849, o título de Cidade Imperial.

70
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

O Vale do Carangola é um bairro que possui presença de equipamen-


tos públicos – tem uma Unidade de Saúde da Família (USF), um Centro de
Referência em Assistência Social (CRAS), uma Escola Municipal (educação
infantil e primeiro segmento do ensino fundamental) e duas Creches Munici-
pais. No entanto, existe uma grande ausência de políticas públicas.
No campo privado, o bairro abriga duas ONGs, uma com linha de
trabalho mais voltada ao assistencialismo e outra com linha de trabalho mais
progressista. O bairro tem um comércio bem desenvolvido – bares, mercados,
padarias, cabelereiros, barbearias, oficinas mecânicas, comércio de roupa, ma-
terial de construção, pet shops, confecção, entre outros. Dentro do bairro tem
um equipamento de uma multinacional concessionária das águas e esgoto.
Para cima do vale, o bairro faz divisa com o terreno de uma outra multinacio-
nal do setor de indústria e com um condomínio de classe média alta.
No campo das religiosidades, o bairro tem uma igreja católica com o
trabalho da pastoral da criança, templos evangélicos de diferentes denomina-
ções e um terreiro de Umbanda.
O Vale do Carangola fica a 20 minutos de carro (se o trânsito estiver
livre) do Centro da cidade. Se for de bicicleta, serão 40 minutos. Se for de
ônibus, bem... se tiver sorte do ônibus não quebrar ou estar regular em seus
horários (fatos do cotidiano), pode ser que leve uns 30 minutos. Segundo os
dados da USF, o bairro tem muitas crianças e jovens, quase um terço, e tem
pouc@s idos@s, em torno de 500. A maioria de sua população é composta
por mulheres. Muit@s morador@s vivem em alguma situação de vulnerabi-
lidade social – insegurança alimentar, violência doméstica, pobreza, assédio,
relações abusivas. Muit@s jovens se encontram em restrição de liberdade,
por envolvimento com o tráfico. Essa condição, de vulnerabilidade, ficou
muito agravada com a pandemia.
Neste texto, vamos destacar a presença de uma liderança comunitária,
uma mulher que carrega em si marcas do Sertão e uma compreensão de que é
e de que tod@s podemos Ser-mais. O nome dela é Ângela.
O encontro entre Ricardo2 e Ângela ocorreu antes da pandemia, um
encontro que foi acontecendo desde 2016, quando houve as primeiras ativi-
dades do projeto de extensão da UNIFASE3 no bairro. Paulo Freire (1983), ao

2 Ricardo é um dos autores deste texto.


3 UNIFASE – Centro Universitário Arthur Sá Earp Neto, uma Instituição de Ensino
Superior privada, sem fins lucrativos e que atua no município de Petrópolis há 55 anos,

71
Entre Situações-Limite e Inéditos Viáveis

discutir a extensão universitária chama a atenção para o perigo que “envolve,


qualquer que seja o setor em que se realize, a necessidade que sentem aqueles
que a fazem, de ir até a ‘outra parte do mundo’, considerada inferior, para,
a sua maneira, ‘normalizá-la’. Para fazê-la mais ou menos semelhante ao seu
mundo” (p. 13). Neste diálogo com Freire e com o Vale do Carangola surgem
então muitos desassossegos: como fazer uma ação extensionista que não fosse
uma intervenção para fazer o “bem”, a partir da crença de que o nosso co-
nhecimento e a nossa forma de ver o mundo são mais importantes e válidos?
Como fazer uma ação extensionista dialogada, pensada, elaborada e realizada
por tod@s @s envolvid@s – comunidade e extensionistas? Como fazer uma
ação extensionista que consiga ajudar a pensar sobre os problemas da vida?
Pois se a “ciência não puder contribuir para resolver os problemas da vida, há
de servir para muito pouco” (GARCIA, 2003, p. 10).
Antes de conhecer Ângela e as outras lideranças da comunidade, na
inserção do Projeto de Extensão, fomos @s extensionist@s conhecendo o Vale
do Carangola através dos olhares e das narrativas d@s profissionais que atua-
vam nos equipamentos públicos – USF, CRAS e escola municipal. Fomos
inventando caminhos que nos guiaram pelo cotidiano do bairro.
Se o cotidiano é

tempo/lugar do pequeno, do desprezível, do sem


-importância, do irrelevante, do episódico, do
fragmento, do repetitivo. E as classes populares
também congregam os sujeitos sem importância,
pequenos, desprezíveis. Fatos e pessoas que não
correspondem às grandes narrativas que constituí-
ram o discurso privilegiado das ciências, tornando-
se invisíveis a uma ciência que não incorpora em
suas análises o drama e a trama da sociabilidade dos
simples, aqueles a quem a vida social imprimiu a
aparência de insignificantes e que como insignifican-
tes são tratados (MARTINS, 2000, p.135 apud.
ESTEBAN, 2003, p. 200-201, grifo do original).

Os caminhos que fizemos nos levaram a encontrar Ângela e caminhar


com ela pelas ruas do Vale do Carangola, “sem um destino final”, criando as

com cursos de graduação e pós-graduação nas áreas de saúde e de gestão.

72
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

condições para “encontrar com os que estão fora… num tempo presente, de
presença…” (KOHAN, 2019, p. 143). Ao caminhar com ela pelas ruas e ser-
vidões do bairro, fomos em direção ao conhecimento e à ação comprometida
com uma causa, a causa da transformação social. Um compromisso-ação com
as pessoas que encontramos no caminho – as demitidas e demitidos da vida
que Paulo Freire nos fala. Um compromisso com o diálogo, um compromis-
so-ação com “los problemas que observa y el del conocimiento de la teoría y
los conceptos aplicables a esos problemas”4 (FALS BORDA, 2015, p. 244,).
Nesses primeiros encontros, ainda em 2016, começamos a aprender
com Paulo Freire o que o autor vai chamar de teoria da ação dialógica e traba-
lhar em co-laboração, foi nosso primeiro aprendizado.

Enquanto na teoria da ação antidialógica a con-


quista, como sua primeira característica, implica
um sujeito que, conquistando o outro, o transfor-
ma em quase “coisa”, na teoria dialógica da ação,
os sujeitos se encontram para a transformação do
mundo em co-laboração (FREIRE, p. 226, 2020).

Na tentativa de construir um trabalho co-laborativo, viemos estreitan-


do os laços entre a universidade e o bairro.

Uma pandemia como situação-limite, uma mulher, um cigarro e uma ideia


“Qualquer quarentena é sempre discriminatória, mais difícil para uns grupos
sociais que para outros” (SANTOS, p. 15, 2020), apesar de alguns discursos
de que a pandemia afetava por igual as pessoas, independentemente se nas fa-
velas ou em condomínio de elite. E a pandemia da Covid-19 representou mais
escassez e dificuldades nas vidas das pessoas das classes populares. Dificuldades
inclusive no autocuidado que cada uma e cada um deveria ter, para se proteger
e proteger as pessoas próximas. Para a grande maioria das pessoas das classes
populares, não há a possibilidade do trabalho em casa, o tal do home office.
Como famílias de mais de cinco pessoas fazem quarentena em moradias de
dois ou três cômodos, com ventilação e iluminação precária e com problemas
de saneamento básico?

4 “Os problemas que observa, e o conhecimento e as teorias e os conceitos aplicáveis a


esses problemas.” Tradução livre pelo narrador.

73
Entre Situações-Limite e Inéditos Viáveis

Segundo dados da ONU Habitat, 1,6 bilhão de


pessoas não têm habitação adequada, e 25% da
população mundial vive em bairros informais sem
infraestrutura nem saneamento básico, sem aces-
so a serviços públicos, com escassez de água e de
eletricidade. Vivem em espaços exíguos onde se
aglomeram famílias numerosas. Em resumo, habi-
tam a cidade sem direito à cidade, já que, vivendo
em espaços desurbanizados, não têm acesso às con-
dições urbanas pressupostas pelo direito à cidade.
Sendo que muitos habitantes são trabalhadores
informais, enfrentam a pandemia com as mesmas
dificuldades já referidas. Além disso, dadas as con-
dições de habitação, poderão cumprir as regras
de prevenção recomendadas pela OMS? Poderão
manter a distância interpessoal nos espaços exíguos
de habitação onde a privacidade é quase impossí-
vel? Poderão lavar as mãos com frequência quando
a pouca água disponível tem de ser poupada para
beber e cozinhar? O confinamento em alojamen-
tos tão exíguos não terá outros riscos para a saúde
tão ou mais dramáticos que os causados pelo vírus?
(SANTOS, p. 18, 2020).

No Vale do Carangola, as emergências sanitárias causadas pela pande-


mia se juntaram às emergências causadas pela fome, às emergências causadas
pela violência do Estado e do tráfico, às emergências causadas pela negligên-
cia no cuidado, dentre outras emergências que fazem parte do cotidiano d@s
morador@s do lugar. Quem conseguiu manter o emprego ou teve qualquer
atividade remunerada, teve que se deslocar para o trabalho nos transportes
coletivos lotados devido à diminuição da frota. O fechamento das escolas
aumentou a insegurança alimentar de crianças e jovens e tornou escancarada
a desigualdade, também, do acesso à internet e computador, o que impediu
que essas crianças e jovens pudessem acompanhar as atividades pedagógicas
que migraram para um ambiente remoto e a distância.
Além das escolas e creches terem fechado, a USF e o CRAS reduzi-
ram drasticamente suas atividades. Seus profissionais não circularam mais
pelo bairro e o acesso d@s morador@s aos equipamentos ficou restrito e

74
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

nos primeiros meses, enquanto não havia vacina, o primeiro atendimento


era realizado mantendo distância.

Quando entrou a pandemia, eu juntei umas 12 pes-


soa aqui do Vale para ajudar quem precisava, mas
nenhuma podia. Vim pra casa pensando... “ai meu
deus, como eu vou fazer?”. Sentei lá em cima na rua,
acendi um cigarro e fiquei pensando em quem pode-
ria me ajudar. Foi quando veio a ideia na cabeça do
Ricardo e da UNIFASE, então eu liguei pra ele e ele
veio e conversamos e ajudamos as pessoas aqui do Vale
(Relato de Ângela, liderança comunitária do Vale
do Carangola).

Ao ouvir Ângela, foi possível perceber que carregava tristeza no co-


ração, ao ver sua gente do Vale do Carangola passando fome por causa da
pandemia e dos equipamentos públicos que não tinham políticas públicas
para cuidar e proteger essas pessoas. Sem saber, Ângela repetia um ritual pra-
ticado pelos indígenas Guarani Mbya, quando precisam esperançar e buscar
caminhos para seguir… Ricardo aprendeu com eles, na Aldeia Araponga em
Patrimônio, Paraty- RJ, que quando tem tristeza no coração – teko axy, os
Mbyá pegam o petygua5 e esperam... esperam vir o sonho e no sonho chegar
o conselho. “Vai por aqui, por ali”, com o coração mais “leve”, guiados pelo
sonho, vão sabendo o caminho por onde têm que passar.
Ângela sempre ajudou sua gente do Vale do Carangola, conseguindo
algumas cestas básicas aqui, outras ali, às vezes tirando de seus próprios su-
primentos e às vezes ajudando com algum trocado para comprar um pão, um
arroz ou algo pouco assim. Ângela é dessas mulheres, guerreiras desde que
nasce. Mulher negra, de fala forte e direta. Não é de fala para “ninar os da casa
grande e sim para incomodá-los em seus sonos injustos” (EVARISTO, [20-]).
Ângela “veio da barreira”, como ela mesmo fala: “Eu posso falar porque eu já
perdi minha casa na barreira, é uma dor que nunca passa.” Ela chegou no Vale
do Carangola junto com outras tantas pessoas que migraram em 1988 porque
perderam suas casas e pertences com os deslizamentos daquele ano. Ângela
carrega uma amorosidade que tem “um componente político, militante, guer-

5 Cachimbo – objeto ritualístico dos indígenas da etnia Guarani Mbyá.

75
Entre Situações-Limite e Inéditos Viáveis

reiro. Ela exige luta, compromisso, ousadia” (KOHAN, 2019, p. 134), nas
palavras de Ângela, “a minha comunidade, eu vou sempre defender”.
A dimensão do problema a desafiava e as cestas que ela conseguia não
davam conta da quantidade de pessoas que, dessa vez, batiam em sua porta.
Ângela se encontrava em uma situação-limite e o desafio lhe exigia uma
resposta. Paulo Freire (2020) nos fala que as situações-limite não são em si
mesmas, “geradoras de desesperança” (p. 126). No movimento de pensar
sobre a situação-limite e de como superá-la, “se desenvolve um clima de es-
perança e confiança que leva os homens a se empenharem na superação das
‘situações-limites’” (FREIRE, 2020, p. 126).
Quando Ângela percebe o desafio de ajudar sua gente, como um pro-
blema, e traz para si a tarefa de inventar caminhos para enfrentá-lo, ela rompe
com a cultura imposta pela classe dominante de que as situações-limite são
determinantes históricos e que sempre foi assim e que “Deus assim quer”.
Nesse momento, Ângela compreende o problema, “não mais como uma
fronteira entre o ser e o nada, mas como uma fronteira entre o ser e o mais
ser” (FREIRE, 2020, p. 130). O problema que Ângela enfrenta, sua gente
passando fome, é um problema decorrente de uma política de escassez que faz
com que vivamos em uma sociedade injusta, desigual e controlada por uma
elite branca, machista, eurocentrada e cujo projeto civilizatório é “tacanho,
reducionista e celebrador da barbárie” (SIMAS; RUFINO, 2019, p. 25).
Ângela pode pouco, se for pensar globalmente, e ela sabe disso. Mas
como uma liderança comprometida com sua gente, vai buscar caminhos que
são suas possibilidades e que Paulo Freire vai chamar de inédito viável, como
“algo definido, a cuja concretização se dirigirá sua ação” (FREIRE, 2020, p.
130). Quando Ângela se senta na calçada carregando “inquietude sadia e bo-
niteza arraigada na condição de ser-se mulher” (FREIRE, 2010, p. 263) para
pensar sobre o problema de sua gente, está pensando nas possibilidades da
utopia, na transformação de si pela transformação do mundo. Nas palavras
de Nita Araújo Freire,

Os inéditos viáveis, além de serem sonhos coletivos,


deverão estar sempre a serviço da coletividade, não
têm um fim em si mesmos. São, portanto, sonhos
fundamentalmente democráticos a serviço do mais
humano que existe em nós seres humanos: assim,
nos induzem a criar um novo homem e uma nova

76
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

mulher para uma nova sociedade: mais justa, me-


nos feia, mais democrática, relembrando Paulo.
Portanto, na realidade são as barreiras, as “situa-
ções-limite” depois de “percebidas-destacadas”,
que permitem o sonho da realização da utopia da
humanização, a concretização do SER MAIS e da
autêntica Democracia (FREIRE, 2010, p. 265)

“Quem tem fome tem pressa!” Foi Betinho6 quem disse e foi essa a pa-
lavra surgida das conversas com Ângela. “Palavra verdadeira, que é trabalho,
que é práxis” (FREIRE, 2020, p. 109). Palavra que construía caminhos para
a superação da situação-limite esbarrada por Ângela, ao ver sua gente com
fome. Palavra que trazia uma exigência existencial. Palavra que pronunciava o
inédito viável, os sonhos possíveis de serem realizados.
Esse era o desafio que Ângela partilhava e que com ela nos compro-
metemos e com ela fomos para as ruas e servidões do Vale do Carangola
caminhar para encontrar e dialogar com @s morador@s que encontráva-
mos no percurso.

o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o en-


contro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus
sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e
humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar
ideias de um sujeito no outro, nem tão pouco tornar-se
simples troca de ideias a serem consumidas pelos per-
mutantes (FREIRE, 2020, p. 109).

A frase de Betinho – “quem tem fome tem pressa” – nos suleava, mas
tínhamos clareza dos limites da distribuição de cestas básicas. No primeiro
ano da pandemia, organizamos uma campanha de arrecadação de recursos
financeiros para compra e distribuição de cestas básicas e em paralelo, tra-
balhamos junto com lideranças comunitárias na organização de coletivos de
trabalho que pudessem gerar renda. Conseguimos distribuir junt@s quase
1.000 cestas básicas.

6 Herbert de Souza, o Betinho, sociólogo. Na década de 1990, tornou-se símbolo de


cidadania no Brasil ao liderar a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela
Vida, conhecida popularmente como a campanha contra a fome.

77
Entre Situações-Limite e Inéditos Viáveis

Trabalhamos com a perspectiva de dois coletivos de trabalho – um


de artesanato e outro de costureiras. Nas caminhadas pelo bairro, encon-
tramos uma mulher, costureira, que havia trabalhado para grandes marcas
e agora, aposentada, complementava sua renda com pequenas encomen-
das de costura. Sua filha era professora e trabalhava na escola municipal
do bairro e quando veio a pandemia, foi demitida, pois como milhares
de profissionais que atuam nos equipamentos públicos, seu vínculo de
contratação era por RPA.7 Agora, ela também fazia sua renda com as
encomendas que sua mãe conseguia. O Ambulatório Escola da UNIFASE
precisava produzir 80 capotes cirúrgicos, o que abriu uma oportunidade
para um coletivo de trabalho de costureiras. Através da costureira, identi-
ficamos outras mulheres que sabiam costurar e fechamos a encomenda dos
capotes cirúrgicos. O trabalho deu tão certo e animou tanto as mulheres
envolvidas, que foi criado o Linhas do Vale, um coletivo de mulheres que
costuram. Depois da encomenda do Ambulatório Escola, conseguimos
fazer a articulação com marcas de Petrópolis, do Rio de Janeiro e de São
Paulo. Algumas dessas marcas desenvolviam sua produção dentro de um
conceito de sustentabilidade em toda sua cadeia produtiva e ter suas peças
produzidas por um coletivo de mulheres de uma comunidade agregava
valor à marca. As encomendas cresceram e o Linhas do Vale agregou outras
mulheres e ainda hoje, quando escrevemos este texto, está ativo.
Não tivemos tanta sorte com o coletivo de artesanato. Apesar da ini-
ciativa ser de moradoras e de termos conseguido uma marca para comprar
a produção, o grupo não conseguiu se organizar para iniciar o trabalho.
Ao longo do ano, refletindo sobre as limitações da distribuição das
cestas básicas, pensamos na criação de uma moeda social, que seria dis-
tribuída para algumas famílias e elas poderiam, com essa moeda social,
comprar no comércio local os mantimentos que quisessem.

7 RPA – Recibo de pagamento autônomo. Nesse regime de contratação, não é as-


segurado ao trabalhador ou trabalhadora, nenhum direito trabalhista. E apesar de
ser previsto para trabalhos temporários, a maioria dess@s profissionais estão traba-
lhando no serviço público há muitos anos. Há muitos anos Petrópolis não realiza
concurso público. As áreas de educação, saúde e assistência social estão cheias de
profissionais contratados por RPA.

78
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

A moeda social #pratododia tinha um valor de R$ 120,00 e consegui-


mos acompanhar em torno de 76 famílias durante 8 meses – de maio a de-
zembro de 2021, distribuindo aproximadamente R$ 45.000,00 no comércio
local. Ao contrário da cesta básica, a moeda social #pratododia respeitava a
autonomia de cada família em definir os produtos de seu interesse e a quan-
tidade de sua necessidade. Criamos uma rede de acompanhamento dessas fa-
mílias e todos os meses @s extensionistas e lideranças comunitárias visitavam
essas famílias para conversar e identificar pistas que pudessem nos orientar em
outras atividades.
Ao caminharmos pelas ruas e servidões do Vale do Carangola du-
rante a pandemia, aconteciam os encontros e com os encontros, o diálogo.
Ginzburg nos fala que para aceder ao caminho, precisamos decifrar, ler as
pistas que vamos encontrando (1989, p. 152). A ausência de cuidados du-
rante a pandemia agravou as vulnerabilidades d@s morador@s e essas pistas
surgiam em todos os encontros, em todas as falas. Não era apenas a fome
e a falta de renda... era também a perda de seus jovens para o tráfico, eram
também as violências, eram também os problemas de saúde de suas crianças,
eram também as carências de acolhimento. Mas não “existe, tampouco, diá-
logo sem esperança. A esperança está na própria essência da imperfeição dos
homens [e mulheres], levando-os [e levando-as] a uma eterna busca. Uma
tal busca, como já vimos, não se faz no isolamento, mas na comunicação
entre os homens [e mulheres]” (FREIRE, 2020, p. 113). E esses encontros
aconteciam transbordando desse esperançar e de inventar caminhos. E assim

79
Entre Situações-Limite e Inéditos Viáveis

fomos acuculando uma ideia de fazer um mutirão de saúde da criança em


plena pandemia, porque não dava mais para esperar. Foi quando, junto com
as lideranças comunitárias, procuramos os equipamentos púbicos – escola,
USF e CRAS – e levamos a ideia e nos organizamos e em um sábado de
agosto, atendemos 59 crianças de 0 a 12 anos, com pediatras, dentistas,
nutricionistas, enfermeiras e enfermeiros e assistentes sociais. A experiência
deu tão certo que repetimos em outubro, com um mutirão em saúde para a
mulher, com vacinação de HPV para crianças e jovens.

Últimas palavras
Desde a ligação de Ângela, quando veio a pandemia e ela precisava superar a
situação-limite que a desafiava, foi um caminho longo e nessa açãoreflexãoa-
ção, fomos aprendendo sobre unir para a libertação, sobre organização e sobre
síntese cultural, outras características da teoria da ação dialógica, de Paulo Frei-
re, além da co-laboração, que já sabíamos um pouco dela.

Se, na teoria antidialógica da ação, se impõe aos


dominadores, necessariamente, a divisão dos
oprimidos com que, mais facilmente, se mantém
a opressão, na teoria dialógica, ao contrário, a li-
derança se obriga ao esforço incansável da união
dos oprimidos entre si, e deles com ela, para a
libertação.
(...)
Entre os elementos constitutivos do testemunho,
que não variam historicamente, estão a coerência
entre a palavra e o ato de quem testemunha, a ou-
sadia do que testemunha, que o leva a enfrentar
a existência como um risco permanente, a radica-
lização, nunca a sectarização, na opção feita, que
leva não só o que testemunha, mas aqueles a quem
dá o testemunho, cada vez mais à ação.
(...)
Como, na síntese cultural, não há invasores, não há
modelos impostos, os atores, fazendo da realidade
objeto de sua análise crítica, jamais dicotomizada
da ação, se vão inserindo no processo histórico,
como sujeitos (FREIRE, 2020, p. 234, 241, 249).

80
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Pela experiência do projeto de extensão no Vale do Carangola, percebe-


mos a potência do fluxo intermitente e permanente do cotidiano que definia
as direções por onde seguíamos. Os caminhos, nós inventávamos. A interação
recorrente dos encontros e dos diálogos amorosos que aconteciam foram cos-
turando o compromisso, com essa gente que mora no Vale do Carangola, pela
construção de um mundo mais bonito, democrático, livre e justo.
O cotidiano é o lugar do imprevisível e do fluxo... tudo segue e no dia
seguinte, as cores, os cheiros e os sons já são outros e assim vamos mudando,
sem deixarmos de ser os homens e mulheres que vão pronunciar esse mundo
mais bonito. O projeto de extensão segue junto, nesse fluxo, como um rio,
fazendo seus caminhos.
Hoje, quando a vida vai deixando de ser pautada pela emergência sani-
tária da pandemia e os equipamentos públicos e outros agentes vão novamente
operando no vale e se fazendo presentes no cotidiano d@s morador@s do Vale
do Carangola, seguimos caminhando e como caçador@s, coletando as pistas
miúdas e sem brilho, que só podem ser coletadas e decifradas se nos expomos
ao encontro com as pessoas na intenção de seguir, como nos diz o poeta.

Como um rio

Ser capaz, como um rio


que leva sozinho
a canoa que se cansa,
de servir de caminho
para a esperança.
E de levar do límpido
a mágoa da mancha,
como o rio que leva
e lava.
Crescer para entregar
na distância calada
um poder de canção,
como o rio decifra
o segredo do chão.
Se tempo é de descer,
reter o dom da força
sem deixar de seguir.

81
Entre Situações-Limite e Inéditos Viáveis

E até mesmo sumir


para, subterrâneo,
aprender a voltar
e cumprir, no seu curso,
o ofício de amar.
Como um rio, aceitar
essas súbitas ondas
feitas de águas impuras
que afloram a escondida
verdade das funduras.
Como um rio, que nasce
de outros, sabe seguir
junto com outros sendo
e noutros se prolongando
e construir o encontro
com as águas grandes
do oceano sem fim.
Mudar em movimento,
mas sem deixar de ser
o mesmo ser que muda.
Como um rio

Thiago de Mello

82
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Referências bibliográficas
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CIA, Regina Leite. Método: pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A,
2003.
EVARISTO, Conceição. Nossa escrevivência. Maricá, [20-]. Disponível em: http://
nossaescrevivencia.blogspot.com/. Acesso em: 23 abr. 2022.
FALS BORDA, Orlando. Una sociología sentipensante para América Latina. Buenos
Aires: Siglo XXI Editores, 2015.
FREIRE, Ana Maria Araújo (Nita). Inédito Viável. In: STRECK, Danilo R.; REDIN,
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83
Ideias-força do Pensamento de Paulo
Freire e da Educação Popular
na Práxis do Movimento Social
de Prostitutas no Brasil

Fabiana Rodrigues de Sousa


Fernanda Priscila Alves da Silva

A relação dialética entre o pensamento de Paulo Freire, a Educação Popu-


lar e os movimentos sociais remonta às décadas de 1950 e 1960 e se dá a
ver nas práticas educativas do Movimento de Educação de Base, nas expe-
riências de alfabetização de adultos, nas práticas formativas dos sindicatos
urbanos e das ligas camponesas, bem como nas ações do Movimento de
Cultura Popular. As contribuições do legado de Paulo Freire permanecem
e, nas décadas de 1970 e 1980, influenciam os movimentos de resistência
aos governos ditatoriais, os sindicatos e as ações das Comunidades Ecle-
siais de Base (FÁVERO, 2013). Nesse sentido, podemos afirmar o quão
grande tem sido as contribuições de Paulo Freire acerca do papel da Edu-
cação Popular na constituição e formação dos sujeitos desde a dimensão
sociopolítica.
Os reflexos dessa articulação entre cultura popular e educação cul-
minaram na organização de diferentes movimentos sociais brasileiros, tal
como o Movimento de Alfabetização (Mova), “que reuniu as atividades de
alfabetização realizadas pelo movimento social urbano, dando-lhes organi-
zação e novas perspectivas”. O Mova foi criado durante a gestão da prefeita
Luiza Erundina (1989-1991), na cidade de São Paulo, em que Paulo Freire
atuou como secretário de Educação.

84
A educação freiriana inspira, pois, a práxis de diferentes grupos e mo-
vimentos populares que, rebelando-se contra a desumanização e a opressão
impostas pelo sistema capitalista, deslocam-se em busca de ser mais.

O legado freiriano traz importantes elementos para


discutirmos a educação na perspectiva de um di-
reito inalienável, que se constitui como ferramenta
fundamental nas lutas pela humanização e pela re-
sistência contra toda e qualquer forma de desuma-
nização (MOURA, 2021, p. 109).

Destarte, o pensamento freiriano vem sendo ressignificado ao longo do


tempo e segue fortalecendo as lutas e resistências de grupos e sujeitos popula-
res. Neste texto, analisaremos as ressonâncias de três ideias-força advindas da
obra de Paulo Freire na organização e práxis do Movimento Social de Prosti-
tutas, a fim de evidenciar como mulheres trabalhadoras sexuais brasileiras vêm
aprendendo a tecer sua autonomia e a dizer a sua palavra coletivamente.

Organização do movimento social de prostitutas no Brasil


A organização de mulheres trabalhadoras sexuais começa a se articular no fi-
nal da década de 1970, em diversas regiões do Brasil, mulheres cis e travestis
que se ocupavam da prostituição passaram a se mobilizar e a implementar
ações para se protegerem e denunciarem a violência policial e as mortes a que
eram submetidas no período da ditadura militar. O caráter subterrâneo dessas
ações, cuja autoria é atribuída a sujeitos outsiders (BECKER, 2008) como
travestis e prostitutas, dificulta o mapeamento e análise dessas iniciativas, in-
visibilizando o protagonismo desses sujeitos nos movimentos de resistência
aos regimes autoritários e, posteriormente, no processo de redemocratização
brasileira (BONOMI, 2019).
Somente a partir da abertura, é que vai se consolidar a articulação do
Movimento Social de Prostitutas em associações e redes.

O movimento brasileiro de prostitutas nasceu de


uma parceria entre Gabriela Leite e Lourdes Barre-
to quando pautaram, numa reunião da Pastoral da
Mulher Marginalizada em 1984, que as prostitutas
precisavam falar por si e com base em uma atitu-

85
Ideias-força do Pensamento de Paulo Freire e da Educação Popular

de contra todas as formas possíveis de vitimização


(Leite 2009; Simões 2010a). Ambas contam a his-
tória desse encontro, atravessado por momentos de
embates e aproximações com algumas instituições
ali presentes com o fim de “salvar” as prostitutas.
Elas causaram uma pequena rebelião ao se posi-
cionarem contra o discurso recorrente da vitimi-
zação. De acordo com a Lourdes, o representante
do Ministério da Cultura “ficou louco por nós”, e
se ofereceu para apoiar um primeiro encontro na-
cional, que aconteceria três anos depois no Circo
Voador do Rio de Janeiro, um símbolo importante
da resistência e contra-cultura no momento histó-
rico de redemocratização (MURRAY, 2016, p. 3).

Em 1987, é organizado o I Encontro Nacional de Prostitutas na cidade


do Rio de Janeiro com a participação de diversas trabalhadoras sexuais, dentre
elas Lourdes Barreto (GEMPAC) e Gabriela Leite (DaVida/Daspu), que se tor-
naram lideranças do movimento. Nesse encontro foi fundada a Rede Brasileira
de Prostitutas (RBP), que engloba associações da categoria em diversas regiões
do Brasil. O II, III e IV Encontros Nacionais ocorreram, respectivamente, em
1989, 1994 e 2008, também no Rio de Janeiro. Nesse último, foi redigida a
Carta de Princípios da RBP. Em 2010, é realizado o V Encontro Nacional, em
Porto Alegre/RS e, em 2017, acontece o VI Encontro Nacional em São Luís/
MA. Para além da Rede Brasileira de Prostitutas, outras redes e articulações
foram se tecendo, tal como a Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores
do Sexo (CUTS), fundada em 2015, bem como a Articulação Nacional de
Profissionais do Sexo (ANPROSEX), fundada em 2016, todas elas ligadas à
Red de Mujeres Trabajadoras Sexuales de Latinoamerica y Caribe (RedTraSex).
E, assim, ao tecerem redes e partilharem seus saberes de experiências,
as trabalhadoras do sexo foram percebendo que não bastava pleitear somente
o direito a uma vida livre de violência, fazia-se necessária a criação de arti-
culações mais amplas com objetivo de avançar na direção da construção de
sua autonomia. Se, no primeiro momento, as experiências organizativas das
trabalhadoras do sexo eram, ainda, localizadas, pontuais e se davam em torno
de “necessidades sentidas”,1 sendo expressas em manifestações com intuito

1 As “necessidades sentidas” não se reduzem a reflexos mecânicos de carências materiais,

86
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

de denunciar a violência e afirmar o direito à vida da prostituta, com o


passar do tempo elas foram se tornando mais complexas, engendrando a
construção de “um horizonte histórico comum” (BARRAGÁN-CORDE-
RO; TORRES-CARRILLO, 2018) e uma identidade coletiva. Desse modo,
foram gestando novas imagens de si, novas percepções de sua prática e novas
formas de ser, de sentir e de estar no mundo. Nesse horizonte comum, as
prostitutas não figuram mais como “vetor de doença” ou “mulheres de vida
fácil”, nele, está expresso o desejo de serem reconhecidas como sujeitos e
não como vítimas, como trabalhadoras e como feministas (PRADA, 2018).

Ideias-força freirianas, educação popular e a práxis do movimento


de prostitutas
A relação entre prostitutas organizadas e o campo da Educação Popular ocor-
re desde o início da articulação do movimento social, tendo em vista que
o I Encontro Nacional de Prostitutas realizado em 1987 recebeu apoio do
Instituto Superior de Estudos da Religião (ISER).2 Nesse período, Gabriela
Leite atuava no ISER e foi dentro dessa instituição que se deu a elaboração e
desenvolvimento do jornal Beijo da Rua,3 em parceria com o Flávio Lenz –
editor do jornal (LENZ, 2011). Intelectuais do campo da Educação Popular
tiveram participação no ISER, como Vanilda Paiva – que atuou como vice
-presidente do instituto, no final da década de 1980 – e Carlos Rodrigues
Brandão, que publicou textos nos Cadernos do ISER, dentre outros.
A percepção dessa relação entre organização do movimento de pros-
titutas e a Educação Popular se ratifica com base em nossas experiências de
pesquisa em diálogo com mulheres trabalhadoras sexuais, nas regiões Nor-
deste, Norte e Sudeste do país, pois temos observado que a práxis dessas
mulheres apresenta ressonâncias de princípios da Educação Popular e de
ideias-força do pensamento de Paulo Freire, quais sejam: 1) leitura de mun-

mas expressam uma “leitura cultural do contexto, uma sensação de insatisfação entre o
percebido e o desejado” (BARRAGÁN-CORDERO; TORRES-CARRILLO, 2018).
2 Centro de assessoria a grupos e movimentos populares, desde a década de 1970,
com objetivo de promover participação social e garantia de direitos. Foi fundado na
cidade de Campinas/SP, em 1970, e posteriormente transferido para a cidade do Rio
de Janeiro/RJ, em 1979.
3 O primeiro exemplar do jornal Beijo da Rua foi lançado em 1988 e se consagrou du-
rante quase três décadas como importante “porta-voz” do movimento e associações de
prostitutas no Brasil (MORAES, 2020).

87
Ideias-força do Pensamento de Paulo Freire e da Educação Popular

do desde o interior da prática social vivida; 2) ampliação das fronteiras do ser


mais; 3) cidadania coletiva e participação popular.

Leitura de mundo desde o interior da prática da prostituição


Uma das marcas da concepção problematizadora de educação freiriana é a
recusa ao fatalismo. Freire (1987) nos alerta que “a realidade está sendo”, a
fim de evidenciar que, por mais opressoras e desumanizantes que sejam as
situações vividas por sujeitos de grupos populares e de movimentos sociais,
sempre existe a possibilidade de intervenção com vistas a transformá-las.
Ainda que, por vezes, seja necessário certo ajuste ou adequação às realida-
des vivenciadas como forma de proteção e defesa, há sempre um horizonte
possível de intervenção com vistas à transformação da situação opressora e
de engajamento em direção ao ser mais. Todavia, Freire (1987) nos orienta
de que a intervenção crítica na realidade, com intuito de transformá-la, não
pode prescindir da leitura de mundo e da condição existencial vivenciada
pelos sujeitos que “são proibidos de ser”. Pois nela se encontram seus temas
significativos e seu pensamento linguagem.
Temos observado, em nossas experiências de pesquisa, que a orga-
nização do movimento de prostitutas se ancora nas leituras de mundo que
são tecidas por essas mulheres no interior da prática social da prostituição.
As diversas ações culturais e educativas organizadas junto às associações de
trabalhadoras sexuais expressam a estética e as temáticas vivenciadas no coti-
diano da prostituição de cada local. São exemplos dessas ações: a Corrida da
Calcinha realizada pela Associação de Prostitutas da Paraíba (APROSPB), o
Puta Dei organizado pelo Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará
(GEMPAC), que é celebrado por diversas associações da categoria como a
Mulheres Guerreiras em Campinas/SP, o festival Miss Prostituta realizado
pela Associação de Prostitutas de Minas Gerais (APROSMIG), a exposição
fotográfica Mulher Dama realizada em parceria com a Associação de Pros-
titutas da Bahia (APROSBA), o jornal Beijo da Rua e a grife Daspu criados
pelo Coletivo Davida, dentre outras.
No período da pandemia, devido à Covid-19, pudemos verificar
uma série de ações e projetos sociais que tiveram como objetivo o fortale-
cimento das trabalhadoras sexuais em suas lutas e resistências. Destacamos
dois projetos especificamente: o primeiro, coordenado pela Articulação
Nacional de Profissionais do Sexo (ANPROSEX) em parceria com a ONU

88
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Mulheres cuja temática foi: “Fortalecer as trabalhadoras sexuais para ven-


cer o Covid-19” e o segundo, o projeto “Nós existimos: os direitos das
trabalhadoras sexuais” realizado pela ECOS Comunicação e Sexualidade
em parceria com a ANPROSEX, Central Única de Trabalhadoras Sexuais
(CUTS) e a Rede Brasileira de Prostitutas (RBP). Em ambos projetos, as
trabalhadoras sexuais protagonizaram movimentos de formação, leituras
de mundo e organização por meio de espaços de debates sobre os mais
diversos temas geradores de seu contexto. Estes espaços-diálogo ocorreram
com a utilização das plataformas digitais e favoreceu que internamente o
movimento se articulasse e promovesse debates atuais sobre as lutas das
prostitutas, tais como: os direitos sexuais das trabalhadoras sexuais, tra-
balho sexual e racismo, diálogos sobre o trabalho sexual e os desafios da
pandemia, trabalho, feminismos e violação de direitos, dentre outras te-
máticas apresentadas pelas trabalhadoras sexuais.
Por meio dessas ações, mulheres prostitutas se reafirmam como su-
jeitos de sua prática e constroem sua autodeterminação. Ao nos aproximar-
mos da práxis dessas mulheres, identificamos a indissociabilidade entre as
dimensões política e pedagógica (SOUSA, 2018), pois ao exigirem o direi-
to de falar por si e sobre sua prática, as prostitutas se educam e nos educam
para a construção de um novo olhar em que elas não figuram como vítimas
das vicissitudes da vida e destituídas de agência, pelo contrário, figuram
como sujeitas políticas de sua história e sua prática (BARRETO, 2015).
Negar às trabalhadoras sexuais o direito de falarem por si é uma
forma de negar a dialogicidade, um dos pilares da educação como prática
da liberdade (FREIRE, 1975). Para Freire (1987, p. 92), “existir, huma-
namente, é pronunciar o mundo”, é atribuir-lhe sentido e transformá-lo.
Por isso mesmo, dizer a palavra não pode ser privilégio de alguns seres
humanos seletos, mas sim direito de todas as pessoas. “Precisamente por
isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os
outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais”
(FREIRE, 1987, p. 92-93). Já que, conforme elucida Ernani Fiori (1987),
no prefácio da Pedagogia do Oprimido, é ao dizer a nossa palavra que pode-
mos assumir conscientemente a nossa condição humana para que, então,
sejamos capazes de nos engajarmos em processos de transformação da rea-
lidade vivida/percebida.

89
Ideias-força do Pensamento de Paulo Freire e da Educação Popular

Ampliando as fronteiras do Ser Mais: sujeitas políticas,


trabalhadoras e feministas
Em consonância com os princípios da Educação Popular e do legado frei-
riano, ao adotarmos uma postura dialógica, nosso papel como educadoras
populares não consiste em dizer a palavra no lugar do outro, mas em buscar
pronunciar o mundo coletivamente. Para tanto, faz-se necessário desenvol-
ver uma postura humilde pautada na dialogicidade e na escuta sensível a
fim de apreender o que os grupos populares têm a nos dizer e a nos ensinar.
Ao exercitar essa postura humilde, temos aprendido que prostitutas vêm
ampliando as fronteiras do ser mais ao se educarem coletivamente à medida
que vão tecendo seu protagonismo político e sua reivindicação pelo direito
de serem reconhecidas como trabalhadoras e como feministas.

A partir desta perspectiva, a participação, engaja-


mento e fundação do Movimento de Prostitutas
têm possibilitado esse “ser mais”, tão impulsionado
por Paulo Freire. A educação aqui sendo construída
entre os pares, entre as prostitutas, na solidariedade
e no enfrentamento de superação de preconceitos e
estigmas (SILVA; COSTA, 2019, p. 154).

Em suas andarilhagens históricas, prostitutas lutam contra o proces-


so de estigmatização e questionam discursos de feministas abolicionistas
que almejam proibir a prática da prostituição por considerá-la incompatí-
vel com a dignidade humana. Esses discursos desvelam que, não raro, seto-
res conservadores e antidialógicos apregoam que se pautam em “enfoques
freirianos para referendar suas próprias visões de mundo acerca da prática
da prostituição e não com intenção de dialogar com as mulheres que se
ocupam dessa atividade” (SOUSA, 2018, p. 331). Contrariando essa pers-
pectiva antidialógica, temos procurado suspender preconceitos e exercitar
uma escuta sensível, a fim de evitar a arrogância fundada na certeza de
quem se considera apto a prescrever o que é melhor para as prostitutas
sem considerar as leituras de mundo, experiências e sonhos dessas mulhe-
res. Ao procurar ouvi-las e com elas dialogar, temos compreendido que
as mulheres ligadas ao Movimento Social de Prostituta vêm lutando pelo
reconhecimento de seu fazer – a prestação voluntária de serviços sexuais –
como uma forma de trabalho.

90
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

A pauta trabalhista é um tema articulador do Movimento de Prosti-


tutas, não apenas no Brasil, mas no mundo. Na Argentina, desde 1995, a
Asociación de Mujeres Meretrices de Argentina (Ammar) está ligada à Central
de Trabajadores Argentinos (CTA). Na França, em 2009, foi criado o STRASS
– Syndicat du Travail Sexuel. No Brasil, em 2002, o descritor “profissional do
sexo” passou a fazer parte da Classificação Brasileira de Ocupações e a presta-
ção de serviços sexuais foi reconhecida como ocupação em nosso país. Mor-
gane Merteuil (2017), ativista do sindicato francês de trabalhadoras do sexo
(STRASS), lembra-nos que o reposicionamento das questões da “prostituição”
como questões trabalhistas não é algo novo na história e esclarece que o termo
“trabalho sexual” foi cunhado, em 1978, por Carole Leigh, trabalhadora se-
xual e ativista feminista, que passou a utilizar essa denominação ao participar
de uma oficina da frente feminista “Salários pelo Trabalho Doméstico” (Wages
for Housework), em São Francisco, cujo quadro teórico compreendia o sexo como
parte do trabalho de reprodução que necessitava ser remunerado.
Silvia Federici (2019) analisa como o advento do capitalismo forjou o
processo de divisão sexual do trabalho produzindo a cisão entre o trabalho pro-
dutivo e o reprodutivo, valorizando aquele em detrimento deste, com intenção
de favorecer a exploração da força de trabalho das mulheres. A autora reconhe-
ce a sexualidade como trabalho e destaca o caráter revolucionário das iniciativas
que reivindicam salários para o trabalho doméstico e para o trabalho sexual.
Entendemos, portanto, que há um elo entre as lutas das trabalhadoras
sexuais e das trabalhadoras domésticas e das demais mulheres que se ocu-
pam do trabalho de reprodução. Por meio de suas reivindicações – direito a
uma vida sem violência, reconhecimento de seu trabalho, acesso à saúde, à
educação e proteção social etc. –, mulheres trabalhadoras sexuais vêm tecen-
do sua autodeterminação e construindo o putafeminismo. Ao desvelar seus
conhecimentos e saberes de experiência, podem contribuir com a atualiza-
ção do Movimento Feminista, favorecendo o questionamento da categoria
“mulher universal” e a ampliação de leituras interseccionais que levam em
conta as diversas experiências existenciais de mulheres, tal como têm nos
ensinado o feminismo negro, o ecofeminismo, o transfeminismo e o puta-
feminismo (SOUSA, 2017). A respeito da construção do putafeminismo,
Monique Prada4 (2018) comenta:

4 Ativista do Movimento de Prostitutas, coeditora do Mundo Invisível, colunista do Mí-


dia Ninja, escritora e integrante do Grupo Assessor ONU Mulheres.

91
Ideias-força do Pensamento de Paulo Freire e da Educação Popular

Assim, vi o nosso putafeminismo se construir, aos


trancos, entre mulheres que, sem conhecer teoria
alguma – muitas mesmo sem jamais ter ouvido
falar de feminismo –, faziam já um feminismo
bruto, essencial, para se manterem vivas nos lu-
gares agrestes de onde vinham. Um feminismo
verdadeiramente radical, radicalmente libertário,
autônomo, estava se forjando e acontecendo ali,
entre mulheres pobres e de pouco estudo formal
(PRADA, 2018, p. 71).

Para Prada (2018), o putafeminismo é fruto de perspectivas que aliam


a possibilidade de ser mulher, trabalhadora e feminista sem ter que se higie-
nizar ou se despir da condição de puta. O putafeminismo nasce, portanto,
do encontro de mulheres putas e pobres, muitas delas pretas, que afirmam
a sua autonomia.

Cidadania coletiva e participação popular


A obra de Paulo Freire tem nos apresentado que a teoria se concretiza a partir
do olhar sobre a prática, ou seja, na medida em que os sujeitos narram as
situações vividas, as situações-limite, reconhecem os temas geradores de seu
contexto e ampliam os caminhos possíveis para o processo de conscientização.
Esta tem sido uma das temáticas centrais do legado freiriano e está vinculada
ao tema da liberdade e da libertação. Para Paulo Freire, a conscientização se
constitui no primeiro objetivo da educação, daí que a leitura de mundo pre-
cede a leitura da palavra, numa constante dialética de criação, (re)criação e
transformação.
O ponto de partida é, pois, o meio de vida concreto dos sujeitos his-
tóricos. Desse modo, o ser humano se constrói a si mesmo pela conscientiza-
ção acerca de seu papel no mundo. Ele é fazedor de história. Trata-se de um
processo de emancipação de si e emancipação cidadã. Por isso, a consciência
coletiva contribui de modo significativo neste processo de conscientização. Ela
nos permite a construção da cidadania e de modos de ações interventivas na
transformação social.

A cidadania, na perspectiva de Paulo Freire, é com-


preendida como apropriação da realidade para nela
atuar, participando ativamente e conscientemente

92
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

em favor da emancipação. Na obra de Freire, a ci-


dadania tem três características de coletividade: ela
se manifesta por meio das relações sociais, por meio
do exercício da coletividade e pela força dos rela-
cionamentos continuados em favor da vivência dos
direitos e deveres dos indivíduos nos grupos sociais.
Nos círculos de cultura, propostos por Paulo Frei-
re como espaço onde os participantes conheciam
seus direitos, a cidadania era construída de modo
que um processo de conscientização ia sendo des-
velado. No Movimento de Prostitutas, a cidadania
construída de modo coletivo e pautando os proces-
sos de violações de direitos aos quais são submeti-
das as trabalhadoras sexuais tem sido uma verten-
te fundamental (SILVA; COSTA, 2019, p. 154).

Os movimentos sociais têm sido, historicamente, um espaço le-


gítimo de construção de propostas e ações interventivas que buscam a
transformação social. É uma porta de diálogo que se abre para pensar a
educação para além dos muros da escola, trata-se, portanto, de pensar a
educação em diálogo com as lutas pelos direitos humanos. Estamos fa-
lando dos direitos das mulheres e homens das classes populares e de sua
participação na produção de conhecimento. Estamos falando dos direitos
de trabalhadoras sexuais e do reconhecimento de suas formas organizativas
como espaços coletivos construtores de cidadania e mudança social.
Os movimentos organizativos de trabalhadoras sexuais no mundo
e, notadamente no Brasil, têm articulado um processo de construção da
cidadania coletiva e de participação popular. A organização destas traba-
lhadoras sexuais em prol da garantia de direitos tem reafirmado o quanto
este coletivo tem sido historicamente estigmatizado e, sobretudo, apon-
tado temáticas insurgentes para se pensar e construir pautas de direitos
humanos, em particular considerando as lutas feministas. As trabalhadoras
sexuais têm trazido para o debate questões sobre corpo, sexualidade, di-
reitos nos mais diversos campos, diversidades, feminismos, e feito emergir
novos olhares e novas leituras de mundo sobre a prostituição e sobre o
trabalho sexual. Nesse sentido, Prada (2018, p. 37) aponta a contribuição
do putafeminismo neste debate. Este:

93
Ideias-força do Pensamento de Paulo Freire e da Educação Popular

pode ser descrito, basicamente, como um mo-


vimento que nasce a partir da ideia de que nós
mulheres trabalhadoras sexuais, podemos ser femi-
nistas, combatendo o estigma sobre nós e fortale-
cendo nossa luta por direitos, sem que para isso
precisemos abrir mão do nosso trabalho ou nos
envergonhar dele.

Diana Soares, uma importante liderança do Movimento de Trabalha-


doras Sexuais no Brasil, coordenadora da Associação de Prostitutas do Rio
Grande do Norte e ANPROSEX, tem afirmado que é no interior no movi-
mento de trabalhadoras sexuais que tem aprendido a reconhecer seus direitos
e seguir lutando por emancipação (SILVA, 2021). As trabalhadoras sexuais,
neste processo de emancipação cidadã, têm reivindicado o direito de “dizer
sua palavra” e ecoar suas vozes. Em entrevista à Elisiane Pasini, três lideranças
do Movimento de Trabalhadoras Sexuais, ao falar da importância do dia 02 de
junho, dia Internacional da Prostituta, reivindicam o direito de “dizer a pala-
vra” e expressar as vozes da prostituição. Pasini pergunta sobre a importância
deste dia e Vânia, com sua palavra, nos diz:

é a nossa resistência, a nossa força, a nossa luta.


A gente não pode deixar de comemorar. É come-
moração mesmo por dignidade. É comemoração
mesmo para a gente ter uma visibilidade. Todo
movimento tem seu dia (...). Por que a gente, que
é puta, não pode ter o nosso dia? A gente tem que
lutar para dar visibilidade. E vamos festejar. A gen-
te deve continuar lutando, independentemente
das nossas diferenças, sempre dando visibilidade
ao movimento e a esse dia. Eu sempre foco nes-
sa história. Tem o dia das prostitutas e não vamos
deixar morrer. Nós putas temos que lutar por nós
(PASINI, 2021, n.p.).

O processo de emancipação de si e emancipação como cidadã tem sido


um caminho percorrido pelas trabalhadoras sexuais no interior do movimento
e em articulação com outros coletivos. Estamos falando de uma pedagogia da
práxis, uma pedagogia engajada contra toda forma de preconceito. Trata-se de

94
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

um processo de ação-reflexão ativa numa defesa permanente de todas as pes-


soas proibidas de ser e a quem tem sido negado os direitos. O movimento de
trabalhadoras sexuais tem denunciado a negação de direitos a estes coletivos.
A Educação Popular é, pois, entendida como um ato político para o
qual os seres humanos são convocados a se deslocar constantemente. A expe-
riência coletiva e de participação popular é por si uma experiência de cons-
trução democrática. Nesse sentido, estar e participar do movimento de traba-
lhadoras sexuais elucida um processo de construção de saberes. Desse modo:

Não há nada que mais contradiga e comprome-


ta a emersão popular do que uma educação que
não jogue o educando às experiências do debate
e da análise dos problemas e que não lhe propicie
condições de verdadeira participação. Vale dizer,
uma educação que longe de se identificar com o
novo clima para ajudar o esforço de democratiza-
ção, intensifique a nossa experiência democrática,
alimentando-a (FREIRE, 1975, p. 93).

Pensar a educação a partir dos movimentos sociais, em particular do


movimento de trabalhadoras sexuais, impulsiona, para além do reconheci-
mento das vozes destas sujeitas, a garantia de que estas vozes e corpos se di-
gam e protagonizem suas lutas e resistências. A educação nesta perspectiva é
uma forma de intervenção no mundo. Ela implica, como aponta Paulo Freire,
desmascaramento da ideologia dominante. Nesse sentido, “educar é substan-
tivamente formar”, afirma Paulo Freire (2020, p. 35). E é neste processo que
sujeitos se tornam autônomos, no constante movimento de ir e vir, de toma-
das de decisões, de um caminho de descobertas, aprendizados e esperanças.

Considerações
As discussões aqui apresentadas buscaram fazer emergir quais têm sido as
ideias-força do pensamento de Paulo Freire e da Educação Popular a partir
da práxis do movimento social de prostitutas. Recordamos que o pensamento
de Paulo Freire e a Educação Popular foram elaborados e tecidos, ao longo da
história, através da relação dialógica entre ação-reflexão-ação. Desse modo,
trata-se de uma teoria que é construída a partir da prática. Os movimentos
de prostitutas, em particular no contexto brasileiro, emergem também neste

95
Ideias-força do Pensamento de Paulo Freire e da Educação Popular

cenário sociopolítico, no final da década de 1970 e início dos anos 1980, um


cenário de redemocratização do país, lutas e resistências populares.
A organização do movimento social de prostitutas no Brasil tem visibi-
lizado pautas importantes no campo dos direitos humanos e em especial nos
denominados movimentos feministas. As questões apresentadas pelas traba-
lhadoras sexuais têm problematizado aquilo que Freire denominou fatalismo
histórico e apontado saberes de experiência, ou seja, modos e formas de eman-
cipação de si e emancipação cidadã. No interior do movimento de prostitutas,
as diversas sujeitas que dele participam afirmam o direito à vida da prostitu-
ta, denunciam violações de direitos, “dizem sua palavra”, criam e (re)criam o
mundo cada vez menos preconceituoso e estigmatizante.
As ideias-força apresentadas no artigo, quais sejam: leitura de mundo
desde o interior da prática da prostituição, ampliação das fronteiras do ser mais
e a cidadania coletiva e participação popular, são, sobretudo, os inéditos viá-
veis apresentados pelo movimento de prostitutas ao cenário mais amplo dos
movimentos sociais e da construção da Educação Popular. Os inéditos viáveis
na obra de Paulo Freire estão relacionados à compreensão da história como
possibilidade da qual decorre uma posição utópica. Nesse sentido, os sonhos
a partir da coletividade expressam duas facetas importantes: a denúncia das si-
tuações-limite e o anúncio de possibilidades ineditamente viáveis (FREITAS,
2005; FREIRE, 1987).
Em nosso caso, leitura de mundo tem sido um marco nos estudos e
pesquisas em Educação, desvelando que o movimento de prostitutas tem
realizado leituras de mundo, de suas realidades e contextos, bem como pro-
blematizado questões emergentes no interior da prática social da prostitui-
ção. Evidencia-se, na aproximação deste cenário e sujeitos, que as prostitutas
se educam e nos educam no processo de construção de um novo olhar sobre
a prática social da prostituição. Por outro lado, a ampliação das fronteiras
do ser mais se alia à pronúncia do mundo a partir da coletividade. O puta-
feminismo emergente e insurgente vem atualizar as compreensões plurais do
ser/tornar-se mulher e propor novas construções no Movimento Feminista.
E por fim, a cidadania coletiva e a participação popular impulsionam movi-
mentos de emancipação de si e emancipação cidadã, ou seja, à medida que
cada trabalhadora sexual no interior do movimento se conscientiza de sua
realidade, ela (re)cria também as formas de ser e agir no mundo e de nele
intervir e transformá-lo.

96
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

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98
A Formação Continuada
com Professores/as Formadores/as
em Tempos de Pandemia

João Vitor Gomes Alves


Tiago Zanquêta de Souza
Gercina Santana Novais

Introdução
As adversidades decorrentes da necessidade de conter aglomerações fizeram
com que as escolas fechassem as portas e se inaugurasse repentinamente o
ensino remoto. Destarte, discentes e docentes se viram num ineditismo em
que não lhes restava outra maneira senão a adesão a uma ferramenta de comu-
nicação para exercerem a atividade escolar. Para tanto, conflitos e dilemas se
convergiram nesse espectro, o que desencadeou a necessidade de intervenção,
com o intuito de acolher e continuar a formação com esses docentes para que
a educação pudesse se sustentar e até mesmo se potencializar.
Este trabalho teve por contexto o curso de extensão1 com um grupo de
treze professores/as formadores/as que integram a Casa do Educador Professo-

1 Curso de extensão intitulado: Formação Continuada de Professores(as): itinerários


para a profissionalidade, que foi destinado à equipe de professores/as formadores/as
vinculados ao Departamento de Formação Continuada – Casa do Educador Professor
Dedê Prais, lotados na Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura de Uberaba.
Trata-se de um grupo de professores formadores que desempenham a formação con-
tinuada dos professores da rede municipal de ensino de Uberaba. É uma equipe que
contempla todas as áreas de conhecimento. O curso teve por objetivo oportunizar
aos profissionais da Educação Básica da Rede Municipal de Ensino de Uberaba, espe-
cialmente professores/as formadores/as, vivenciarem um processo de formação con-
tinuada, enquanto possibilidade de desenvolvimento profissional, considerando-se o

99
A Formação Continuada com Professores/as Formadores/as em Tempos de Pandemia

ra Dedê Prais, vinculada ao Departamento de Formação Profissional da rede


municipal de ensino do município de Uberaba/MG. Tal curso foi realizado
durante o período de isolamento social decorrente da pandemia global causa-
da pelo vírus da Covid-19 entre os anos de 2020 e 2021.
De modo a fortalecer a relação entre a Universidade e a Educação Bá-
sica, considerando-se especialmente o contexto pandêmico, a pesquisa de Ini-
ciação Científica que dá origem a este trabalho é vinculada ao projeto “Edu-
cação na diversidade para a cidadania: um estudo de processos educativos e
formativos escolares e não escolares2”.
Optamos pela modalidade de pesquisa com cunho qualitativo (FLICK,
2009), finalidade descritiva (VERGARA, 2009), utilizando-nos da pesquisa
de campo (VERGARA, 2009), por meio da observação participante em Roda
de Conversa, que tem sido um dos modos de consubstanciar dialogicamente
intentos educativos e sistematização de informações desde uma dinâmica que,
potencialmente, estabelece condições para a produção de saberes e reflexivida-
des em partilha (PINHEIROS, 2020), pois permite registrar os eventos assim
que ocorrem, além de permitir a comparação entre as informações recebidas
das pessoas e a própria realidade, conforme apontam Marina de Andrade Mar-
coni e Eva Maria Lakatos (2002).
O registro das observações foi feito em diário de campo que entende-
mos como o “relato escrito daquilo que o investigador ouve, vê, experencia e
pensa no decurso da recolha e refletindo sobre os dados de um estudo qualita-
tivo”, a partir do que colocam Roberto Bogdan e Sari Biklen (1994, p. 150).
Os registros foram posteriormente organizados e digitados, a fim de permitir
a leitura geral do material coletado.
A organização dos dados se deu da seguinte maneira: a) pela escuta
atenta da gravação do encontro final do grupo em sua íntegra, com o objetivo
de enriquecer e aprimorar ainda mais a análise; b) transcrição das gravações e
dos diálogos em sua integralidade; c) revisão do referencial bibliográfico para
substanciar o processo da pesquisa e, a partir disso, atrelá-los às gravações.
Cabe destacar que os nomes dos/as participantes citados no texto serão aqui
reproduzidos como cores, como forma de garantir o anonimato.

cenário pandêmico atualmente vivido. Está vinculado também à Rede Cooperativa de


Ensino, Pesquisa e Extensão em escolas de Educação Básica (RECEPE).
2 Este projeto conta com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
de Minas Gerais (Fapemig).

100
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

O objetivo é apresentar os processos educativos inerentes à forma-


ção continuada com professores/as formadores/as no contexto do isola-
mento social. O referencial teórico da pesquisa está atrelado ao campo
da Educação Popular, e mais especificamente da educação continuada e
formação permanente.
Para tanto, este texto foi organizado em dois momentos: no primeiro,
traz a fundamentação teórica em torno do que entendemos como educação
continuada e formação permanente, para, no segundo momento, direcionar
os olhares para a compreensão dos processos educativos de professores/as for-
madores/as participantes da roda de conversa que finalizou o curso de exten-
são em questão.

Educação continuada e formação permanente no contexto pandêmico:


apontamentos teóricos
A origem da palavra educação é oriunda do latim educare, educere, que signi-
fica “conduzir para fora” ou “direcionar para fora”. Trazendo para a reflexão
simbólica que esse termo nos traz, educação enquanto subjetivo emblema
no ato ou processo de educar, com aplicação de métodos próprios para asse-
gurar a formação e o desenvolvimento físico, intelectual e moral de um ser
humano (OXFORD, 2021).
Consoante a representação social através do Estado, o conceito legal
de educação é abarcado na Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que
estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional e reza que educação
abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na
convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos
movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações
culturais (BRASIL, 1996).
Os números evidenciam retrocessos na política educacional que se
agravou com a crise sanitária gerada pela pandemia. Em matéria jornalística
publicada no site UOL, em fevereiro de 2022, Renata Cafardo conta que

os recursos reservados para investimentos em edu-


cação e ciência pelo presidente Jair Bolsonaro em
2020, 2021 e 2022 foram os mais baixos no Brasil
desde os anos 2000. Mesmo com aumento nos va-
lores este ano, o orçamento para investir do Minis-
tério da Ciência (R$ 720 milhões) fica 78% abaixo

101
A Formação Continuada com Professores/as Formadores/as em Tempos de Pandemia

do registrado em 2010 (R$ 3,34 bilhões), que teve


pico dessa verba para pesquisa.

A jornalista ainda ouviu a diretora do centro de políticas educacionais


da FGV, Claudia Costin, sobre a educação básica, que disse: “já não tínhamos
dinheiro sobrando na educação. Numa emergência como a pandemia, um
país organizado deveria ter aproveitado o tempo de escolas fechadas para dei-
xá-las seguras para o retorno.” Só recentemente, praticamente dois anos após
o início da pandemia, o MEC anunciou projetos para escolas na pandemia,
mas não houve formação docente, conteúdos para aulas on-line e programas
de recuperação da aprendizagem. O governo ainda vetou projeto aprovado
no Congresso que daria internet a alunos pobres. E, ao sancionar a lei orça-
mentária, em janeiro, cortou R$ 800 milhões do MEC, o que atingiu mais
a educação básica. Costin analisa ainda que “não é possível você pensar num
Brasil mais competitivo e desenvolvimento inclusivo tirando dinheiro de edu-
cação e ciência”.
Esse nítido sucateamento da educação foi denunciado por um estudo
do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB), ligado à Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O grupo analisou os orçamentos dos Minis-
tério da Educação (MEC) e da Ciência e Tecnologia e Inovações (MCTI) en-
tre 2000 e 2022, com foco em investimentos, que são as verbas para reformas
em universidades e escolas, obras em laboratórios, compra de equipamentos,
livros e para novas políticas públicas.
A atribuição do Estado como provedor da educação tem uma prima-
zia de justiça social em seu bojo, haja vista que é explícito uma discrepância
entre as classes que necessitam do olhar estatal para que seu direito social seja
consubstanciado. O descaso com políticas públicas voltadas para educação
escancara que a prioridade do Estado nesse momento histórico não se baseia
na promoção da sociedade por meio do fomento e investimento na capacita-
ção de sua população. É importante salientar que a ausência de investimentos
ainda mais complexos em virtude das sequelas deixadas pela situação de ex-
cepcionalidade da pandemia global da Covid-19 foi e continua sendo decisiva
para gerar prejuízos na educação/aprendizagem de uma geração.
Os/As educadores/as, coautores/as de todo esse processo, são por ex-
celência os/as instigadores/as do processo educacional. Nas palavras de Freire
(1996, p. 55), “a educação não vira política por causa da decisão deste ou
daquele educador. Ela é política”. É política por compreender um processo

102
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

transformador que é biologicamente intrínseco à condição humana, qual seja,


de munir-se de artifícios capazes de potencializar o indivíduo à dignidade,
especificidade e vivacidade.
Paulo Freire argumentava que o homem [e a mulher] é um ser inacabado,
dizia que “o inacabamento do ser ou a sua inconclusão é própria da experiência
vital. Onde há vida, há inacabamento” (FREIRE, 1996, p. 26). Essa reflexão
em torno da incompletude do homem, da mulher e da vida pode ser carreada
para a noção de educação como política, uma vez que, enquanto ser bio-psi-
co-sócio-histórico, ao se relacionar uns com os/as outros/as, educa-se, o que é
perfeitamente rendível também à educação essa mesma incompletude e, conse-
quentemente, a constante necessidade de formação continuada e permanente.
Por isso, far-se-á necessária uma análise das narrativas dos/as partícipes
desse processo educacional: educador/a-educando/a e quem os orbita. Ao pen-
sar no/a educador/a contemporâneo, percebe-se o quanto houve uma mercan-
tilização do processo educacional concomitante à terceirização da preparação
moral e ética até então oriunda da família. No que tange aos/às educandos/as,
esses/essas estão cada vez mais expostos/as a uma infinidade de estímulos que
exercem uma influência expressiva em seus processos cognitivos, deixando a
sala de aula cada vez menos atraente. Denota-se, nesse contexto, no mínimo,
uma concorrência desleal.
Stecanela (2018) reflete de tal modo, ao prenunciar que as famílias
delegam à escola e aos/às professores/as a educação dos/as filhos/as, e os/as
professores/as se sentem pressionados em seguir orientações legais e pedagógi-
cas ao mesmo tempo que os/as alunos/as requerem uma escola que atenda suas
expectativas, tanto no desenvolvimento das competências cognitivas, como
nas competências sociais e de modo prazeroso.
Fica claro que há uma incongruência numa relação em que deveria
emergir o contraponto. A mesma autora explana sobre esse assunto afirmando
haver uma cultura de reclamação por ineficiência do diálogo ou até mesmo
pela ausência total da possibilidade desse. Se a cultura de reclamação, entre
tantos aspectos, pode ser conectada a um clamor pelo diálogo na relação peda-
gógica, então, caberia compreender como se configura a relação pedagógica na
escola contemporânea brasileira e quais são as dimensões de diálogo possíveis
no seu interior (STECANELA, 2018).
Quando se analisa essa relação coisificada, assim como Freire (1996)
também problematiza, depreende-se que a relação humana se torna objetal

103
A Formação Continuada com Professores/as Formadores/as em Tempos de Pandemia

em sentindo lato, indo ao desencontro da essencialidade da relação intrinsi-


camente humana que deveria ocorrer. Assim, há uma corrosão do pressupos-
to Eu-Tu para Eu-Isso. Ao tratar sob essa perspectiva, não há outra interven-
ção senão o diálogo embasado por uma observação criteriosa dos queixumes
de ambos os polos dessa relação. Aqui é visto que ambos se divergem sobre o
mesmo eixo e tem fins aproximados, transitando-os por rotas paralelas que
não encontram ponto de intersecção.
A ação efetiva para sanar ruídos dessa relação se torna possível através
do reconhecimento da necessidade de uma escuta e reflexão coletiva dos
educadores/as, seja na educação continuada ou na formação permanente
dos/as professores/as. Freire (1996) afirmava que na formação permanente
dos/as professores/as, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a
prática. É pensando criticamente a prática de ontem que se pode melhorar a
próxima prática. Ou seja, a supervisão dos/as educadores/as se torna possível
com seus pares numa reflexão contínua sobre sua prática diária de trabalho,
avaliando aquilo de comum que emerge.
A crítica à concepção bancária de educação teve sua deflagração a partir
de reflexões importantes sobre a prática docente a fim de traçar meios mais
assertivos para a educação, tirando o caráter de distribuidor de conteúdo para
formador crítico da necessidade individual do educando/a para com a sua
existência enquanto ser sócio-histórico e cultural. Araújo e Silva (2005) dis-
sertam que as ações para educação continuada de professores/as no Brasil se
intensificaram a partir da década de 1980. No entanto, só na década de 1990
passou a ser considerada como uma das estratégias fundamentais para o pro-
cesso de construção de um outro perfil do/a professor/a.
É preciso destacar que problematizar a educação continuada e a for-
mação permanente traz luz às incongruências que impossibilitam um pro-
cesso crítico sustentado no caráter reflexivo da prática docente. O processo
de reflexão desta prática é direcionado ao indivíduo num contexto social que
é, por conseguinte, mutável e transformador por excelência. Dessa forma,
a reflexão crítica permanente deve constituir-se como orientação prioritária
para a educação continuada dos professores/as que buscam a transformação
de sua prática educativa (ARAÚJO; SILVA, 2005).
Educação continuada e formação permanente podem de imediato
levar à consciência a ideia de se tratar de sinônimos, entretanto uma dis-
tinção dever ser feita a fim de que possa ser empregado o termo coerente
ao contexto. Formação permanente é aquela intrínseca ao ser humano que

104
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

se deriva da condição de fenômeno social e universal que a educação tem


como virtude de elevar a atividade humana em sociedade, ou seja, é o
aprendizado contínuo como condição necessária para o desenvolvimento
do sujeito e está intimamente relacionada com a ideia de incompletude do
indivíduo, como Freire (1996) também propõe. Já educação continuada
é uma derivação ou uma especificidade da primeira, baseando-se como
aquela ação desenvolvida após a profissionalização com propósito de atua-
lização de conhecimentos e aquisição de novas informações e atividades
(PASCHOAL; MANTOVANI; MÉIER, 2007).
Ainda que o advento da tecnologia possibilite o ensino a distância e re-
moto, não era de se esperar que a exceção se tornaria regra de maneira abrupta.
Em dezembro de 2019, foi noticiado que um vírus causador de uma infecção
respiratória aguda grave e com alto poder de transmissão havia sido identi-
ficado na China. Identificado como Sars-Cov-2, em março esse vírus fez a
primeira vítima fatal no Brasil e já havia se propagado por grande parte do
mundo, sendo declarado pela Organização Mundial de Saúde no mesmo mês
o surto da doença como pandemia de Covid-19. As medidas imediatas para
evitar a propagação e proliferação do vírus seriam as medidas de isolamento
social, haja vista que a contaminação ocorre pelas vias aéreas respiratórias por
meio de gotículas salivares e contato com superfícies contaminadas.
Frente ao ineditismo que a humanidade vivenciara, algumas atitudes
legais foram tomadas por todas as esferas de poder público com o intuito de
fomentar o isolamento social. Assim, todas as atividades antes realizadas de
maneira presencial foram evitadas a fim de impedir aglomerações e aquelas
que comportavam o ambiente remoto e/ou on-line foram abruptamente mi-
gradas. Com o aumento exponencial do número de contaminados e mortes
mesmo com o isolamento social, tais medidas foram prorrogadas levando vá-
rios setores da sociedade a se adaptar a uma realidade de distopia (SOUSA
FILHO; MENEZES, 2021).
Nesse cenário, a educação continuada de professores/as talvez nunca
tenha se valido tanto para, além de fomentar, ser um momento de acolhi-
da e escuta para os/as professores/as que vivenciaram todo aquele caos. No
município de Uberaba/MG, a Casa do Educador promoveu esses ambientes
facilitadores por meio da educação continuada para que os/as professores/as
da rede municipal de ensino pudessem se ver, conversarem e atuarem como
coautores/as da nova forma de atuarem em sala de aula num cenário com-
pletamente diferente daquele aprendido até então.

105
A Formação Continuada com Professores/as Formadores/as em Tempos de Pandemia

A demanda fez com que a busca pela informação e o aprimoramen-


to prevalecessem nas ações dos/as professores/as formadores/as para que
fosse possível um aporte aos/às docentes em campo na atuação com os/
as alunos/as. É importante salientar que a resiliência psicológica não é
inata, mas desenvolvida através de processos dinâmicos de aprendizagem e
vivências. Portanto, “é em situações de maior adversidade que, por norma,
se geram soluções inovadoras e se concretizam as transformações mais sig-
nificativas” (MORGADO; SOUSA; PACHECO, 2020).
Para tanto, no âmbito da pesquisa realizada, para além da educação
continuada, foi necessário pensar e aprofundar as reflexões sobre tal concepção
de educação e sua relação com a formação permanente. Aprender a lidar com
as tecnologias ocorria de maneira gradual e sobretudo de maneira pontual. O
insólito ocasionado pela pandemia fez com que tanto professores/as formado-
res/as, quanto professores in loco se atualizassem e se instrumentalizassem para
que pudessem ofertar um ensino e, consequentemente, uma aprendizagem
satisfatória em tempos tão atípicos.

Educação continuada e formação permanente: com a palavra, os/as


professores/as formadores/as
A educação continuada como mola propulsora da mínima disparidade entre
embasamento teórico e realidade em ambiente escolar foi capaz de minimizar
efeitos gerados pela pandemia da Covid-19. A partir das demandas percebi-
das, os professores formadores tiveram o desafio de acessar com os grupos de
professores assuntos tais quais tecnologia e ansiedade.
Quando indagados sobre como entendem a concepção de educação
continuada,3 Azul e Branco disseram, respectivamente:

Eu entendo e a vejo (a formação continuada) como


a possibilidade de trazer instrumentos ou desenvolver
com o grupo instrumentos que possam auxiliá-los no
seu trabalho, na sua atuação, nas suas necessidades,
porque se eu perco a necessidade do professor de vista,

3 No âmbito da rede municipal de ensino de Uberaba, utiliza-se o termo formação con-


tinuada para se referir à formação em serviço dos/as professores/as, que é ministrada
por professores/as formadores/as que integram a Casa do Educador Professora Dedê
Prais, instituição responsável pela proposição e oferta de cursos de formação.

106
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

não há sentido para a minha formação, para o meu


trabalho. Meu trabalho parte dessas necessidades. E a
necessidade de conhecimento, a necessidade de atuali-
zação, ela não vem sozinha nem descolada das outras
necessidades (Professor – Azul).
(...) a gente às vezes percebe em determinados mo-
vimentos como que a concepção de educação conti-
nuada ora ela vem revestida como se ela fosse uma
salvadora de todas as coisas, ora ela vem como uma
ideia, uma concepção de uma formação continuada
que os nossos professores formadores vão instrumen-
talizar os professores que estão nas unidades para po-
der dar conta dessa questão, dessa aprendizagem que
foi perdida (Professor – Branco).

Esse movimento em ascensão percebido pelos/as professores/as for-


madores/as como a formação continuada sendo a “salvadora de todas as coi-
sas” e capaz de resgatar uma aprendizagem “perdida” escancara aquilo que
Araújo e Silva (2005) compreendem como inerente à prática pedagógica
docente, ou seja,

não basta refletir sobre a prática pedagogia docen-


te, é preciso refletir criticamente e de modo perma-
nente. Este processo precisa estar apoiado em uma
análise emancipatório-política, para que os profes-
sores em formação possam visualizar as operações
de reflexão no seu contexto sociopolítico-cultural
mais amplo (ARAÚJO; SILVA, 2005, p. 58).

A educação continuada tem exercido, além de sua função precípua de


aperfeiçoamento constante para o trabalho prático, um espaço terapêutico
para a fala onde se anseia por uma escuta. Ainda que o ambiente não seja
específico para tal, percebe-se que os/as professores/as formadores/as tiveram
essa postura e a realizaram de imediato. Não obstante, a questão da imersão a
contragosto e a imposição das tecnologias deixaram a grande maioria atônita
e sem opção, além de terem que a utilizar a qualquer custo.
Lilás, Dourado e Esmeralda analisaram, respectivamente, esse ponto
e o primeiro trouxe a visão do quão desafiador tem sido vivenciar esse novo

107
A Formação Continuada com Professores/as Formadores/as em Tempos de Pandemia

momento em que as tecnologias têm ditado as regras, enquanto os dois


últimos demonstram preocupação e angústia com as demandas que surgem
em seus grupos:

Em relação à formação, a ideia do reaprender cons-


tante, né? E utilizar as ferramentas virtuais (...),
então esse mundo virtual que nunca vai substituir
o real, isso foi um aprendizado muito claro para
mim (Professor – Lilás).
E aí eu vejo uma demanda: como recuperar a apren-
dizagem na rede municipal de Uberaba? (...) a gen-
te percebe que são inúmeras as demandas porque os
nossos grupos de professores são heterogêneos, eu tenho
professores novatos, eu tenho professores com mais ex-
periência, tenho professor da educação infantil, dos
anos iniciais, enfim, que trabalha com a formação
que faz essa associação aí [formação integral de ser
humano] (Professor – Dourado).

E voltando para a formação de professores, alguns


professores, assim relatam, né? Nos cursos, assim, a
gente procura conversar muito, dialogar, e eles falam
a mesma coisa, a insegurança, a questão do como eles
voltaram e que tem que dialogar demais, alguns que-
rem contar esse período ausente de escola o que eles
passaram, os problemas, os desafios. Então, acho que
antes de tudo acho que é o diálogo mesmo, é a sen-
sibilidade que a gente tem que ter com esses alunos
(Professor – Esmeralda).

É depreendido pelos/as professores/as formadores/as que os/as alunos/


as também necessitam de uma escuta ativa e de acolhimento para suas insegu-
ranças, ansiedades e angústias, que estrearam ou afloraram consideravelmente,
e, nesse sentido, Freire (1996) já afirmava que o diálogo é o meio mais asserti-
vo possível. Atemporal, nas suas palavras,

a tarefa coerente do educador que pensa certo é,


exercendo como ser humano a irrecusável práti-
ca de inteligir, desafiar o educando com quem

108
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

se comunica e a quem comunica, produzir sua


compreensão do que vem sendo comunicado.
Não há inteligibilidade que não seja comunica-
ção e intercomunicação e que não se funde da
dialogicidade (FREIRE, 1996, p. 20).

Urge o entendimento de que ensinar não passa pela transmissão de


conhecimento e tampouco pela rigidez do/a professor/a que não se despe
diante das necessidades humanas que permeiam uma sala de aula, por isso,
assim como Freire (1996) também sugestiona, “ao entrar em uma sala de
aula, é importante que o professor esteja aberto a indagações, à curiosida-
de, às perguntas dos alunos, a suas inibições; um ser crítico e inquiridor,
inquieto em face da tarefa de ensinar e não a de transferir conhecimento”
(FREIRE, 1996, p. 25).
Revela-se que o enfrentamento dos problemas de aprendizagem no
contexto da pandemia se traduz, também, de maneira clara como uma reação
ao novo, ao inesperado, surpreso e impensável. Dessa forma, educadores/as e
educandos/as tiveram cada qual experiências carregadas de percalços e desafios
de magnitude ímpar nas relações pessoais e interpessoais. Todavia, o conceito
de coisificação de educação e o modelo bancário de educação tiveram suas
mais intrínsecas conceituações colocadas em prática num cenário de pande-
mia, fortalecendo interesses do mercado no campo da educação.
Para esse misto de sentimentos, emoções e interesses conflitantes, Ste-
canela (2018) reconhece “as potencialidades do diálogo no âmbito das rela-
ções humanas e das relações que acontecem no cotidiano escolar como um
modo de comunicação e como uma forma pedagógica de conhecer e de se
relacionar com o mundo”. Essa escuta que reverbera no grupo encontra resso-
nância e ecoa com seus pares trazendo um sentimento de pertencimento aos/
às envolvidos/as nesse processo.
Sobre a qualidade de aprendizagem e saúde mental, Lilás, Esmeralda e
Ferrugem, respectivamente, disseram:

(...) enfim, é muita dor (causada pela pandemia) e na


educação não foi diferente, né? Vai ficar essa fratura,
está falha geológica, algo assim e que pouco a pouco a
gente tem que sair de dentro dela para buscar perceber
o que nós vamos entender, talvez, como que vai ser
daqui para frente, né? (Professor – Lilás).

109
A Formação Continuada com Professores/as Formadores/as em Tempos de Pandemia

(...) o que eu percebo nessa questão da desigualdade


das relações, é que mais do que nunca, eles precisam
de acolhimento, sensibilidade, de um olhar assim
mais amoroso, ouvir mais o que eles têm pra falar,
porque às vezes a gente fica muito preocupado com o
currículo e às vezes usamos algumas palavras não tão
dóceis e eu acho que a gente está precisando é disso, de
ouvir, de diálogo, levar as coisas com mais leveza e de
não ser tão rígidos porque olha o tanto de tempo que
eles ficaram em casa somente manuseando o celular
(Professor – Esmeralda).

(...) em relação à questão das relações, à cooperação


em relação aos professores, estou falando da minha
realidade (...) Dou aula também no ensino funda-
mental e o que gerou de cooperação entre os profes-
sores… Eu estou encantada de ver professores, assim,
que têm dificuldades e pediram ajuda aos que estão
mais à frente na tecnologia e esses foram solidários,
parceiros, sabe? Isso me encantou muito, professores
que eram, assim, chatos, com certa arrogância, sabe?
Voltaram para baixo e se situaram junto com os ou-
tros, sabe? Em relação ao relacionamento, também,
eu percebo que eles estão muito carentes, extrema-
mente carentes, nós vamos passar por um processo de
adaptação de novo, de tudo, de um novo normal, não
é? Porque em relação à questão da construção do co-
nhecimento com os alunos, em relação aos relaciona-
mentos, a gente vai se reaprender de novo. Acredito,
não é? (Professor – Ferrugem).

(...) a escola tanto como a universidade fez um mo-


vimento de entregar aquilo que ela sempre entregou.
Então eu vou entregar pacotes de atividades para as
crianças e a cesta básica referente à alimentação. Não
foi isso que nós vivenciamos no contexto da educação
básica? Porque quando é cobrado de fato da institui-
ção educativa ou da prática educativa a formação
do sujeito, isso não acontece. Diante das dificulda-
des que nós encontramos enquanto professores e tudo
nesse contexto da pandemia, eu acho que algo que

110
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

foi muito positivo é de fato as pessoas perceberem que


na individualidade não existe superação. Então, nós
tivemos de alguma forma que nos agrupar, mas por
outro lado também, isso para mim ficou muito claro,
que os agrupamentos eles não são forçados, eles são
muito aproximações (Professor – Ferrugem).

Essas últimas falas guardam algo muito peculiar e que transversalmente


percorrem vários processos educativos, como empatia, cuidado, solidariedade
e a crítica à educação bancária. Paulo Freire já sugestionava que “somente
quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele” (FREIRE, 1996,
p. 58). E essa capacidade não se adquire nos bancos da academia, vinculada
à concepção de educação bancária, mas sim no encontro com o outro, na
sensibilidade, com o poder de emprestar meus olhos ao outro para que possa
ver como ele vê.
É possível perceber que a ética do cuidado se faz presente por entre os/
as professores/as formadores/as, no sentido pensado por Leonardo Boff (2004,
p. 6) quando afirma que esta ética é aquela em que, “cuidar do outro é zelar
para que esta dialogação, esta ação de diálogo eu-tu, seja libertadora, sinergé-
tica e construtora de aliança perene de paz e de amorização”. Ou seja, é fazer
conforme sugere a professora Esmeralda, em relação aos/às alunos/as: “ouvir
mais o que eles têm pra falar, porque às vezes a gente fica muito preocupado
com o currículo e às vezes usamos algumas palavras não tão dóceis e eu acho
que a gente está precisando é disso, de ouvir, de diálogo”. É se colocar, nesse
sentido, no movimento de transformação como vocação ontológica, assim
como propõe Freire (1996), na contramão de práticas coisificadoras e desu-
manizadoras como num contexto de educação bancária. Os/As professores/as
formadores/as se mostraram interpelados pela vulnerabilidade discente diante
do quadro pandêmico, o que suscita Dussel (1986), ao problematizar que
não se deixar interpelar e não agir diante da pessoa massacrada pela miséria é
desumanizar-se. É contra esta desumanização e em defesa do resgate do sen-
tido e do direito de ser do/a outro/a, que entendemos as narrativas desses/as
professores/as formadores.
Quanto às ações de intervenção, pensando o retorno às atividades pre-
senciais, foi espantoso e temeroso a percepção da educadora Ferrugem ao se
deparar com seus/suas alunos/as e perceber o retrocesso no desenvolvimento
escolar dos/as alunos/as de sua turma:

111
A Formação Continuada com Professores/as Formadores/as em Tempos de Pandemia

Em relação às crianças, por exemplo, eu estou assusta-


da porque eu tinha uma ideia de que vamos voltar ao
normal, mas o que eu estou vendo, o que eu estou en-
contrando nos meus alunos de sete e oito anos, é como
se estivesse pegando os meus meninos de quatro anos
da educação infantil. Isso está me assustando muito,
mas eu acredito sim que quando voltar mesmo todo
mundo, quem sabe a gente acelera um pouquinho e
a gente passa por cima de muitas coisas em relação a
essa defasagem (Professor – Ferrugem).

A ansiedade pela “volta ao normal” requer cuidado quando analisada


ao lado da defasagem educacional gerada pela pandemia. O prenúncio de
uma educação bancária a fim de cumprimento de currículo pode ser um
movimento gerador de práticas desumanizadoras, na contramão do movi-
mento empreendido. Nesse sentido, é forçoso tensionar o que Tiago Ribeiro
e Carlos Scliar (2020, p. 19) colocam:

A lógica do não perder o ano revela: parece pulsar,


nos discursos e argumentos educativos vigentes,
não razões pedagógicas, mas, antes, mercadoló-
gicas, embasadas no lucro, nos dividendos, na
fábrica. Educar parece, de novo, ter a ver com a
possibilidade de seguir um modelo, obedecer a
um dado sistema e responder de modo específico
a questões pré-fabricadas, independentemente do
quão diferente você seja, pense ou sinta. Escola
como homogeneidade, ratificação do mesmo,
como política de mesmidade, dispositivo de doci-
lização e colonização.

É na contramão deste contexto bancário e mercadológico que enten-


demos o potencial transformador presente nas mais diferentes práticas e re-
flexões, enquanto práxis, narradas pelos/as professores/as. Os prejuízos sen-
tidos são exponenciais quando avaliados pela ótica da desigualdade social,
por um lado, as classes privilegiadas tiveram condições ao menos estruturais
de manterem os estudos, por outro, assistimos a milhões de brasileiros/as
sem acesso à internet.

112
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Considerações possíveis
Vislumbra-se que assim como a formação permanente, a educação conti-
nuada tem alicerces para se tornar também inerente à especificidade humana
do/a educador/a. Esse/Essa profissional que aperfeiçoou em si a possibilida-
de da transformação constante de si e do/a outro/a passa, necessariamente,
pelo viés atualizador que a educação continuada carrega em seu bojo.
Para além do comprometimento teórico e prático, o que vimos foi
uma busca incessante pela humanização por meio de uma escuta ainda ini-
cial, mas uma escuta imediata; uma escuta interessada, genuína. A unicidade
do momento sócio-histórico colocou todos/as envolvidos/as em experiências
frente ao novo, o que possibilitou que a empatia se deflagrasse prontamente.
O modelo de educação e seus processos foram alvo de intensos de-
bates, sobressaindo, como resistência, sobretudo a importância da comuni-
cação, do diálogo, do compartilhamento de experiências. Desse modo, este
estudo revelou educadores/as em processo de humanização e comprometi-
dos/as com o ato de educar, do qual sabe ser tal processo o sustentáculo da
experiência humana em sociedade.

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113
A Formação Continuada com Professores/as Formadores/as em Tempos de Pandemia

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114
Caminhos de Esperança:
Paulo Freire em Espaços de Privação de Liberdade

Raylene Barbosa Moreira


Amanda Motta Castro

Para início de conversa...


Quem são as mulheres trabalhadoras que atuam em espaços de privação de
liberdade? Como realizar um trabalho educacional em um lugar cercado de
estigmas e pré-conceitos? Atentemos para o fato de serem perguntas feitas no
período inicial da pesquisa, perguntas que nos permitiram trilhar e pensar nos
caminhos percorridos para refletir sobre uma prática libertadora a partir da
educação presente no sistema prisional.
Pensando nisso, não há como realizar um trabalho no âmbito educa-
cional politicamente localizado sem mencionar Paulo Freire. Construímos o
trabalho com a Pedagogia do oprimido, que aqui chamaremos de oprimida,1
e com a Pedagogia da esperança.
Partimos das reflexões do encarceramento em massa para pensar em
como essas mulheres buscam fazer um movimento contrário a este, encon-
trando, na rede de esperança, motivos para seguir. Sendo assim, tivemos por
objetivo investigar o trabalho das educadoras e, a partir dele, compreender a
perspectiva freiriana nesse espaço majoritariamente masculino.

1 CASTRO, Amanda Motta; PAZ, Nívia. Ivette Nunes. O masculino não inclui o
feminino! Linguagem inclusiva em debate. In: MACHADO, Rita de Cassia; CAS-
TRO, Amanda Motta (org.). Educação Popular em Debate. São Paulo: PACO, 2017,
v. 1, p. 205-220.

115
Caminhos de Esperança: Paulo Freire em Espaços de Privação de Liberdade

Para que pudéssemos construir o caminho até nosso objetivo, ao pen-


sar a metodologia, buscamos pôr em prática a fala de Tânia Dauster (1997),
quando nos explica que “uma das vias para a construção deste conhecimento
é a etnografia concebida como descrição, observação, trabalho de campo a
partir de uma experiência pessoal” (DAUSTER, 1997, p. 2).
Que percurso ou que caminho é este? Quando falamos de método, nós
vamos buscar superar as nossas situações-limite ou situações-problema (FREI-
RE, 1998). É desse modo que podemos sonhar e criar utopias para um mundo
possível. O que fazemos ao longo desse percurso são caminhos para sair das
nossas aporias (dificuldade ou dúvida racional decorrente da impossibilidade
objetiva de obter resposta ou conclusão para uma determinada indagação).
Portanto, construímos este texto para refletir sobre a necessidade de
superarmos o encarceramento em massa, a partir das práticas educacionais de
educadoras populares de um presídio masculinamente misto, localizado no
extremo sul do Rio Grande do Sul. Para que possamos refletir, percorreremos
os escritos de Paulo Freire, juntamente com as práticas das educadoras.

Percorrendo caminhos: o encontro com a educação revolucionária


Localizada em Rio Grande, cidade do extremo sul do Rio Grande do Sul, a
Penitenciária Estadual de Rio Grande – PERG – é o espaço físico onde nos
encontramos para falar de pesquisa e do trabalho que vem sendo realizado.
Logo na entrada, que dá acesso às alas e celas, encontramos um espaço
para além das grades, que é onde encontramos a “triagem” (familiares ou visi-
tas que, muitas vezes, levam comidas, mantimentos, materiais de higiene etc.)
e as pessoas que compõem a equipe técnica do presídio. É possível encontrar
diversas notícias e vídeos na plataforma Youtube2 que falam e contam um
pouco da história do presídio de Rio Grande.
Um movimento a contrapelo do que foi preestabelecido vem sendo rea-
lizado na PERG, a fim de desconstruir a lógica do encarceramento em massa e
do alijamento de sujeitas e sujeitos da sociedade. Mulheres vêm realizando um
trabalho revolucionário e, entre os vários projetos, neste primeiro momento,
destacamos o mais recente, um movimento de remição de pena por meio da
leitura. Em uma das socializações das trabalhadoras sobre o trabalho realizado,
podemos ver alguns livros lidos principalmente pelas mulheres encarceradas.

2 https://www.youtube.com/channel/UCB0suyhEQ05fUkjy_lLteVg. Acesso em: 23


abr. 2022.

116
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

A primeira que destacamos é a de que, no mês de maio de 2019, foi


inaugurada a primeira cela para lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais,
pessoas trans e intersex (LGBTQI+) do presídio, a primeira da região sul.
Neste momento, cabe destacar a vitória de um povo que luta, a população
LGBTQI+, que sofre diversos abusos e preconceitos. O movimento das edu-
cadoras populares movimentou a PERG para que a solicitação fosse atendida.
Além disso, um sonho coletivo dessas mulheres, organizado com o afe-
to de muitos corações, durante muitos anos, finalmente saiu do papel: o proje-
to de leitura com remição de pena3 foi aprovado. A parceria entre o Conselho
da Comunidade e as Universidades Federais (FURG, UNIPAMPA, UFPEL),
bem como o trabalho incansável das/os servidoras/es e da atual direção da
PERG permitirão que um direito humano fundamental à dignidade possa se
realizar: a leitura!.
O projeto “Ler é Liberdade” contempla as áreas de letras, literatura
e direitos humanos, como movimento político para assegurar o movimento
educacional no interior da prisão. Destacamos, em um contexto geral, a Reco-
mendação nº 44, de 26 de novembro de 2013, que nos aponta:

V – estimular, no âmbito das unidades prisionais


estaduais e federais, como forma de atividade com-
plementar, a remição pela leitura, notadamente
para apenados aos quais não sejam assegurados os
direitos ao trabalho, educação e qualificação profis-
sional, nos termos da Lei n. 7.210/84 (LEP - arts.
17, 28, 31, 36 e 41, incisos II, VI e VII) (BRASIL,
2013, p. 3).

O projeto, realizado de forma revolucionária, pretende desenvolver:

Leitura de obras previamente escolhidas pelos or-


ganizadores do projeto; rodas de conversa sobre
as obras e seus autores; dissertações escritas cujo
conteúdo seja a reflexão crítica sobre a obra. Con-

3 O preso deve ter o prazo de 22 a 30 dias para a leitura de uma obra, apresentando
ao final do período uma resenha a respeito do assunto, que deverá ser avaliada pela
comissão organizadora do projeto. Cada obra lida possibilita a remição de quatro
dias de pena, com o limite de doze obras por ano, ou seja, no máximo, 48 dias de
remição por leitura a cada doze meses.

117
Caminhos de Esperança: Paulo Freire em Espaços de Privação de Liberdade

tudo a participação dos apenados e o material


escrito produzidos durante o implemento do pro-
jeto serão utilizados para fins de remição de pena,
avaliados pela comissão executora, os quais serão
validados pelos critérios dispostos em Portaria da
Vara Regional de Execuções Criminais de Pelotas/
RS (PROJETO LER É LIBERDADE, 2019).

Desenvolvido pelas mulheres, educadoras populares, consiste na orga-


nização de ciclos de leituras escolhidas de forma prévia pelas organizadoras do
projeto em conjunto com a coordenação penitenciária. As pessoas que estão
encarceradas devem produzir material escrito, como diversos poemas, diários,
dentre outros materiais elaborados em conjunto e de modo significativo, com
métodos que elas vão alinhando ao longo do tempo, tendo por base o pensa-
mento e a metodologia de Paulo Freire.

Figura 1 – Livros do projeto

Fonte: acervo da autora (2020)

118
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Paulo Freire no espaço de privação de liberdade


Após breve relato do início do trabalho dessas mulheres na PERG, pensemos
na importância da influência de Freire ao longo do percurso não somente das
educadoras, mas nas/os egressas/os desse espaço. Segundo Borges (2019, p.
19), “o Brasil tem uma população carcerária que não para de crescer. Atual-
mente, segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciá-
rias (Infopen), temos a terceira maior população prisional do mundo”.4
O que buscamos refletir, nesse espaço, é sobre essa cultura criminali-
zada das relações sociais, enfatizando e vivenciando que essa (in)justiça não
atinge a todas/os da mesma forma e que, sim, existem pessoas dentro de deter-
minados grupos sociais que carregam o alvo no peito. Nas palavras de Borges:

64% da população prisional é negra, enquanto que


esse grupo compõe 53% da população brasileira.
Em outras palavras, dois em cada três presos no
Brasil são negros. Se cruzarmos os dados geracio-
nais, essa distorção é ainda maior: 55% da popula-
ção prisional é composta por jovens, ao passo que
esta categoria representa 21,5% da população bra-
sileira (BORGES, 2019, p. 19).

Entendemos o sistema prisional como um sistema de readequação e


aprisionamento dos corpos, em seu aspecto físico, mas também consideramos
o aspecto interno de cada ser humano. Nesse espaço de penitência, lugar onde
se pagam os pecados vistos socialmente, dialogamos com Foucault no livro
Vigiar e Punir (1975), quando trata do aprisionamento dos corpos, permitin-
do-nos refletir acerca das relações de poder que estão diretamente ligadas a esse
aprisionamento. Somos marcadas/os por essas relações de poder, que irão nos
permear ao longo de toda nossa trajetória de vida.
Nesse aspecto, ainda enfatizando a LDB, cabe destacar o art. 5º, que
assegura que “o acesso ao ensino fundamental é direito público subjetivo,
podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária,
organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída”.
Nesse sentido, destacamos que falamos de pessoas que possuem direito à

4 Pontuamos que o Brasil está atrás dos Estados Unidos, que ocupa a primeira posição,
e da China, que ocupa a segunda.

119
Caminhos de Esperança: Paulo Freire em Espaços de Privação de Liberdade

educação e que, juntamente com as mulheres envolvidas no trabalho – que


serão apresentadas posteriormente – educacional, tecem caminhos possíveis
para que aconteça.
Freire destaca que a educação, para ser válida, deve levar em conside-
ração a vocação do indivíduo em “ser sujeito” e seu contexto. Assim sendo,

saliente-se a necessidade de uma permanente ati-


tude crítica, único modo pelo qual o homem
realizará sua vocação natural de integrar-se, supe-
rando a atitude do simples ajustamento ou acomo-
dação, apreendendo temas e tarefas de sua época
(FREIRE, 1983, p. 44).

Foucault (1975) nos permite refletir sobre esses espaços, atentando-


nos para o fato de que eles não foram elaborados para que as/os egressas/
os desse sistema pudessem (re)aprender, seja através de seu trabalho ou pela
educação. Para o autor, esses espaços foram pensados apenas para vigilância
e não para acolhimento.
A opção por ouvir mulheres está na compreensão de que vivemos em
um sistema hierárquico e patriarcal e que as situações de opressão advindas
das relações de gênero devem ser compreendidas partindo do ponto de vista
de quem luta, de quem vive essas relações e presencia o modelo educacional
do sistema. Quando tratamos das trabalhadoras, falamos não somente das
professoras, mas de um grupo que possibilita pensar e repensar a educação,
além de suas metodologias, para que, de fato sejam significativas.
É nesse sentido que utilizamos este espaço para dar visibilidade às
práticas das professoras e profissionais das prisões e a necessidade de cons-
tante (re)criação. Atuar em espaços de privação de liberdade requer um
olhar diferente daquele que se tem em sala de aula formal. Para além de suas
práticas, faz-se necessário pensar e repensar no espaço. Sabemos que apenas
os anos de magistério e a graduação para a formação de professoras/es não
dão conta de englobar a complexidade que é dar aulas e realizar um trabalho
revolucionário e quebra de pré-conceitos, vez que não existe uma “receita de
bolo” para fazer com que o trabalho dê certo.
Falamos com mulheres que constroem, dentro dos espaços de dor,
esperança. Desenvolvem projeto sem financiamento do governo, acreditam
em um trabalho que, para além do voluntário, seja revolucionário. Falamos

120
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

com mulheres que são mães, que são ativistas (ou não), falamos com mu-
lheres que lidam todos os dias com a dor do cárcere, que compreendem a
importância de seu trabalho.
As mulheres desta pesquisa são mulheres que falam do seu trabalho
com amor, que transmitem amor. São mulheres que permitem que repen-
semos esse espaço de aprisionamento de vidas, que constroem projetos, que
saem de casa todos os dias, deixam suas famílias e escolhem caminhar a con-
trapelo dos rótulos estabelecidos na sociedade para as pessoas encarceradas.
Elas são identificadas como Mônica, Francine, Beatriz, Marcela e Cláu-
dia. Sua escolha em manter seu próprio nome mostra coragem, força e per-
5

mite que suas próprias vozes ecoem não somente no nosso trabalho, mas no
trabalho revolucionário que elas realizam dentro das limitações e (im)possi-
bilidades. São elas: Mônica, psicóloga; Francine, advogada; Beatriz, assistente
social; Marcela, professora de literatura e Cláudia, advogada, presente nos pro-
jetos como representante do conselho da comunidade.
Essas mulheres têm muito para nos contar, temos muito que conversar
e muito a dizer para as pessoas que acreditam que precisamos construir mais
prisões em vez de escolas, que a prisão é um espaço que não faz parte da so-
ciedade, para todas/os que pensam no encarceramento como uma solução de
combate às drogas, de combate aos crimes. Nesse espaço há luta, há esperança,
há dedicação e há Paulo Freire.
Inicialmente, abordamos o aspecto “voluntário”, quando nos referimos
ao trabalho de algumas mulheres, mas construímos juntas e aprendemos com
elas, e, ao longo das falas de Paulo Freire (1983), reitera-se a perspectiva de
um trabalho revolucionário. Portanto, a partir deste momento é que falamos
de um trabalho revolucionário, compreendendo a complexidade da discussão
a respeito do voluntarismo e suas implicações na sociedade. Aproveitamos esse
espaço para substituir e construir com elas.
hooks (2013) nos alerta para o fato de que, para a construção de uma
pedagogia engajada, uma educação comprometida em lutar contra a injustiça
patriarcal, não existe a possibilidade de considerá-la como um campo neutro.
Não há neutralidade na educação. Acrescenta ainda que “a opção por nadar

5 Antes da entrevista, conversamos com as mulheres e juntas compreendemos que elas


precisam contar suas próprias histórias. Portanto, aqui, quem fala são elas que contam
suas experiências e relatos sem nomes fictícios, porque nós somos as protagonistas das
nossas histórias.

121
Caminhos de Esperança: Paulo Freire em Espaços de Privação de Liberdade

contra a corrente, por desafiar o status quo, muitas vezes tem consequências
negativas. E é por isso, entre outras coisas, que essa opção não é politicamen-
te neutra” (HOOKS, 2013, p. 267).
O trabalho realizado por essas mulheres é um trabalho comprometido
em lutar contra o encarceramento em massa, um trabalho comprometido
com o diálogo com os diferentes e que, mesmo que de forma inconscien-
te, enfrenta o sistema. Conforme Castro (2017) já salientou, o masculino
não inclui o feminino!6 Assumimos o compromisso de tratar em específico
das mulheres que trabalham nos espaços majoritariamente masculinos. Para
nós, mulheres compromissadas em lutar contra a injustiça patriarcal, falar
de trabalho nesses espaços é, acima de conceitos, falar da objetificação de
nossos corpos. Assim, aproveitamos para agradecer a todas as mulheres que
assumiram esse compromisso antes de nós e fizeram desses espaços, nossos
espaços da pedagogia engajada.
Todos os dias nos (re)construímos enquanto profissionais. Nesse sen-
tido, considerando a complexidade de atuação nos espaços de privação de
liberdade e com o olhar voltado para a Educação de Jovens e Adultos (EJA),
tecemos fios com as falas de Paulo Freire, quando nos mostra, dentro da
Pedagogia do oprimido, os processos para uma educação libertadora. Apro-
veitamos para jogar nessa mistura inconclusiva, e que, de fato, jamais terá
uma receita pronta, sua Pedagogia da esperança. Da opressão à esperança...

Como posso dialogar, se me sinto participante de


um gueto de homens puros, donos da verdade e do
saber, para quem todos os que estão fora são “essa
gente”, ou são “nativos inferiores”?
Como posso dialogar, se parto de que a pronúncia
do mundo é tarefa de homens seletos e que a pre-
sença das massas na história é sinal de sua deterio-
ração que devo evitar?
Como posso dialogar, se me fecho à contribuição
dos outros, que jamais reconheço, e até me sinto
ofendido com ela?
(...)

6 CASTRO, Amanda Motta; PAZ, Nivia Ivette Nunes. O masculino não inclui o
feminino! Linguagem inclusiva em debate. In: MACHADO, Rita de Cassia; CAS-
TRO, Amanda Motta (org.). Educação Popular em Debate. São Paulo: PACO, 2017,
v. 1, p. 205-220.

122
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

A auto-suficiência é incompatível com o diálogo


(FREIRE, 1998, p. 93).

Compreendemos que podemos sonhar e reviver a vida em profundida-


de crítica. Ou seja, a partir do que é vivido, construímos consciência e, assim,
também aprendemos a problematizar, podendo criar nossas próprias utopias
e pensar em meios para que possamos concretizá-las. Os livros trazidos pelas
educadoras partem da realidade da vida das/os egressas/os do sistema penal
daquela penitenciária.
Freire nos permite fazer reflexões acerca da desumanização e nos leva
direto para a contradição opressores-oprimidos e sua superação. Por quê? Por-
que a superação é, de fato, sair do lugar de oprimido e não se tornar o opressor
do opressor, mas, sim, restaurador do processo de humanização.

E esta luta somente tem sentido quando os oprimi-


dos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é
uma forma de criá-la, não se sentem idealistamente
opressores, nem se tornam, de fato, opressores dos
opressores, mas restauradores da humanidade em
ambos (FREIRE, 1998, p. 33).

Freire nos revela a verdadeira generosidade: a luta. Lutar para a restaura-


ção da sua humanidade é, segundo o autor, a generosidade. Para que lutemos,
é necessário que nos percebamos no mundo, que sejamos mais que objetos ou
peças de um tabuleiro que a elite movimenta. Além disso, vemos que

a liberdade, que é uma conquista, e não uma doa-


ção exige uma permanente busca. Busca perma-
nente que só existe no ato responsável de quem a
faz. Ninguém tem a liberdade para ser livre: pelo
contrário, luta por ela precisamente porque não a
tem. (...) Daí, a necessidade que se impõe de supe-
rar a situação opressora. Isto implica o reconheci-
mento crítico, a “razão” desta situação (FREIRE,
1998, p. 37).

Freire descreve a libertação como um parto doloroso, mas cuja supe-


ração dessa contradição traz um novo ser, fazendo-nos transcender. Porém, é

123
Caminhos de Esperança: Paulo Freire em Espaços de Privação de Liberdade

preciso que nos entreguemos à práxis libertadora. hooks enche nosso coração
de esperança quando nos aponta:

Nesse campo de possibilidades temos a oportuni-


dade de trabalhar pela liberdade, de exigir de nós
e dos nossos camaradas uma abertura da mente e
do coração que nos permita encarar a realidade ao
mesmo tempo que, coletivamente, imaginamos
fronteiras para cruzar esquemas, para transgre-
dir. Isso é a educação como prática da liberdade
(HOOKS, 2013, p. 273).

As palavras, sonhos, possibilidades de Freire não se desgastam com o


tempo. Assim, dentro do contexto educacional, não há possibilidade de pen-
sar em uma pedagogia engajada e em uma educação como prática de liberdade
sem que tenhamos por base os pensamentos de Freire. Não é possível pensar
em uma pedagogia libertadora se esta não se aproxima dos oprimidos. hooks
(2013) concorda com isso, quando nos afirma que “podemos ensinar de um
jeito que transforma a consciência, criando um clima de livre expressão que
é a essência de uma educação em artes liberais verdadeiramente libertadora”
(HOOKS, 2013, p. 63).
A respeito da práxis, para além do que nos dizem as leis educacionais,
reflitamos: “como poderiam os oprimidos dar início à violência, se eles são o
resultado de uma violência?” “Não haveria oprimidos, se não houvesse uma
relação de violência que os conforma como violentados, numa situação obje-
tiva de opressão” (FREIRE, 1998, p. 47).
Freire enfatiza o diálogo como prática libertadora. hooks nos exemplifi-
ca que, para Freire, “a educação só pode ser libertadora quando todos tomam
posse do conhecimento como se este fosse uma plantação em que todos temos
de trabalhar” (HOOKS, 2013, p. 26). A reflexão dos oprimidos pode levá-los
à liberdade. Nessa perspectiva, esse movimento de liberdade posto por Freire
e enfatizado por hooks vai muito além de uma liberdade de comer, mas liber-
dade para (re)criar a si mesmo e aventurar.
Além disso, Paulo Freire nos aponta que o ser humano educador não
é aquele que educa, mas aquele que, com a mediação do diálogo, também é
educado. “Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se
educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo

124
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

mundo” (FREIRE, 1998, p. 79). Corroborando sua fala, há a afirmação de


hooks (2013, p. 120): “As pedagogias críticas da libertação atendem a essas
preocupações e necessariamente te abraçam a experiência, as confissões e o
testemunho como modos de conhecimento válido, como dimensões impor-
tantes e vitais de qualquer processo de aprendizado.”
Podemos pensar no trabalho realizado na PERG como movimento de
educação libertadora, uma educação que (re)significa a vida das pessoas que
ocupam esse espaço. A partir de Freire e hooks (2013), torna-se inegável que
precisamos refletir sobre um educar para transgredir a partir da perspectiva
feminista. A investigação nos aponta que, em qualquer dos casos, é necessário
que nos sintamos sujeitas do nosso pensar, discutindo nossa própria visão do
mundo, manifestada, implícita ou explicitamente, nas nossas sugestões e nas
de nossos companheiros (FREIRE, 1998).
Freire nos explicita a importância de começar cedo a prática do diá-
logo e como devemos nos diferenciar dos opressores. É imperioso que faça-
mos uma revolução! “O que pretende a revolução autêntica é transformar
a realidade que propicia este estado de coisas, desumanizante dos homens”
(FREIRE, 1998, p. 147).
Fala-se, aqui, da simplicidade de palavras, mas da complexidade das
ações propostas por Freire. Que possamos fazer-nos semelhantes. Unamo-nos
na construção com a pedagogia da esperança que nos permite compreender o
compromisso de Freire no processo emancipatório e de inovação.
A alma deste escrito é a Pedagogia do oprimido. O encontro destes es-
critos com a prática das educadoras populares, relatada de forma rápida, mas
que envolve a complexidade de nadar contra a correnteza, é que nos permite
compreender, segundo as falas do autor, que, em nós, existem raízes dos opres-
sores. Assim, a Pedagogia da esperança nos permite perceber, com clareza, o
esforço de Freire de falar para todos e todas. Em suas palavras:

É por isso que, alcançar a compreensão mais


crítica da situação de opressão não liberta ainda
os oprimidos. Ao desvelá-la, contudo, dão um
passo para superá-la desde que se engajem na
luta política pela transformação das condições
concretas em que se dá a opressão (FREIRE,
1998, p. 16).

125
Caminhos de Esperança: Paulo Freire em Espaços de Privação de Liberdade

Ainda sobre a luta, reafirma a esperança que devemos ter nela, não
como seres passivos, mas como problematizadores e significadores do saber.
Ao construir seu legado com fatos, Freire valoriza os diferentes saberes. Sendo
assim, destacamos sobre a nossa esperança que “(...) é necessária, mas não é
suficiente. Ela, só, não ganha a luta, mas sem ela a luta fraqueja e titubeia.
Precisamos da herança crítica, como o peixe necessita da água despoluída”
(FREIRE, 1997, p. 5).
O autor ainda nos faz um alerta. Lembremos:

Educadoras e educadores progressistas têm de es-


tar alerta com relação a este dado, no seu trabalho
de educação popular, uma vez que, não apenas os
conteúdos, mas as formas como abordá-los estão
em relação direta com os níveis de luta acima re-
feridos. (...) Uma coisa é trabalhar com grupos
populares experimentando-se da maneira como
aqueles camponeses o faziam naquela noite, outra
é trabalhar com grupos populares que ainda não
conseguiram “ver” o opressor “fora” de si (FREI-
RE, 1997, p. 21).

Reafirmamos, aqui, a tarefa da escrita como ferramenta política. Não


estamos sós, não sejamos sós. “Da mesma forma como não escrevi o livro
que ora revivo, para ser simpático aos oprimidos como indivíduos e como
classe e simplesmente fustigar os opressores como indivíduos e como classe
também. Escrevi o livro como tarefa política, que entendi dever cumprir”
(FREIRE, 1997, p. 35).
A Pedagogia da esperança reafirma a necessidade de acreditar no
oprimido, para que possamos, coletivamente, lutar contra a opressão
A classe dominante precisa legitimar seu poder sobre a classe dominada.
A educação como prática de liberdade se torna fundamental para buscarmos a
recuperação da humanidade. Não se trata de tomarmos o lugar de opressores,
mas de nos libertarmos e libertá-los. Sabemos da facilidade de somente obede-
cer, mas somente a árdua e compensatória tarefa de nos libertarmos nos levará
ao verdadeiro livre arbítrio.
Como dito anteriormente, fazemos um movimento constante de (des)
construção. Somos responsáveis pelo engajamento social. Nossa tarefa, como
educadoras, é valorizar os diálogos e os desafios proporcionados pelo trabalho

126
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

em espaço escolar ou não escolar. E, especialmente na união e movimento de


mulheres, enfatizamos:
Para que o movimento feminista revitalizado te-
nha um impacto transformador sobre as mulheres,
a criação de um contexto em que possamos enta-
bular diálogos críticos e abertos umas com as ou-
tras, onde possamos debater e discutir sem medo
de entrar em colapso emocional, onde possamos
ouvir e reconhecer umas às outras nas diferenças e
complexidades das nossas experiências. (...) o mo-
vimento feminista não poderá avançar se esse passo
não for dado (HOOKS, 2013, p. 149).

Assim, ensejamos que o nosso cotidiano não nos impeça de sermos,


além de (trans)formadoras, mulheres que se transformam com as nossas práti-
cas. De que lado nós estamos?

Se é na sutileza,
Que reside a exuberância.
Busco ressonância,
...nos ideais do amor.
Liquidificaram,
As relações da lida.
Não há mais-valia
Há agonia, há temor.
Quem de pé ficará?
Se a luta acomodar
Diga quem nos dirá?
(...)

O Teatro Mágico

Para não concluir


O cárcere nos educa. Falamos da educação em dois aspectos: a educação dos
corpos para que possamos continuar seguindo o padrão social e que nossas/
os jovens, negras/os, periféricas/os ocupem o lugar que nos foi preestabelecido
ou, assim como acontece com o movimento das mulheres trabalhadoras da
PERG, educar em uma perspectiva esperançosa, segundo a qual possamos

127
Caminhos de Esperança: Paulo Freire em Espaços de Privação de Liberdade

sonhar e crer que podemos diminuir o abismo social e que podemos romper
as estruturas sociais.
Graças a essas mulheres e projetos que elas vêm realizando, as pessoas
que estão lá dentro podem sonhar, podem ter outras perspectivas, reconhe-
cendo-se enquanto sujeitos de direito. Libertar-se do que foi preestabelecido,
ir contra o que foi estabelecido é um trabalho árduo, é uma tarefa difícil, mas
as profissionais que estão nesse espaço caminham para que as pessoas encarce-
radas possam também pensar dessa forma. Enquanto houver injustiça social,
confiamos que essas mulheres estarão lá, impondo-se na busca da construção
da paz e respeito a todas as pessoas.
A Educação Popular não diz respeito somente às pessoas que estão em
zona periférica, diz respeito ao modelo educacional com que sonhamos, que
respeite a multiculturalidade da nossa sociedade, que respeite quem somos,
nossas histórias e a constante busca por uma vida melhor e mais justa.
O impasse, que, ao mesmo tempo, constitui o desejo de continuar pros-
seguindo com esta pesquisa, primordialmente, é saber que existem mulheres
dentro das grades e fora delas que precisam reconhecer-se como oprimidas
para que possamos nos unir.

128
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Referências bibliográficas
BORGES, Juliana. O que é encarceramento em massa? Belo Horizonte: Letramento,
2019.
BRASIL. Lei n. 9.394/1996, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, p. 27833, 23 dez.
1996. Seção 1.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação nº 44 de 26 de novembro
de 2013.
CASTRO, Amanda Motta; PAZ, Nivia Ivette Núnes. O masculino não inclui o fe-
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PACO, 2017, v. 1, p. 205-220.
DAUSTER, Tania. Um outro olhar: Entre a antropologia e a educação. Ca-
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MOREIRA, Raylene Barbosa. Redes de esperança das trabalhadoras que atuam no cárce-
re: educação, trabalho e desigualdade de gênero. 2020. Dissertação (Mestrado
em EDUCAÇÂO) – Universidade Federal do Rio Grande, 2020.

129
À Procura de um Caminho Libertador:
O Ensino de Literatura e a Prática da Biblioterapia
a Partir do Pensamento Freiriano

Beatris Barbosa Moreira


Camila Citadin Milaneze
Janine Moreira

Para início de conversa: o mito da busca pela perfeição docente

O Auto Retrato

No retrato que me faço


– traço a traço –
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...
às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...
e, desta lida, em que busco
– pouco a pouco –
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança...
Terminado por um louco!

Mario Quintana

130
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Por um longo tempo – ou o que se pode chamar de “longo” indepen-


dentemente do variado tempo cronológico de docência das autoras – nos
vimos bombardeadas por anúncios de cursos, novas teorias, manuais, ex-
periências de terceiros e soluções, um tanto fantasiosas e engessadas, de
como sermos boas professoras. Era como se, nesse período de bombardeio
e de instigação à procura, nós nos encontrássemos imersas no mito de
Pigmaleão e Galateia: em busca de uma perfeição doentia e, muito pro-
vavelmente, perigosa. No mito, conforme reconta Bulfinch (2019), o rei
Pigmaleão desejou com tanto fervor que sua estátua perfeita, em forma de
mulher, tornasse-se um ser humano que, talvez pela força moralizante da
insistência ou pelo poder mitológico de Afrodite, a fria estátua realmente
se tornou uma bela mulher. Eles se casaram, geraram sua prole e viveram
fantástica e mitologicamente felizes.
Ao voltar para a nossa realidade posta, quem sabe por nos encon-
trarmos presas no século XXI ou por não ter crescido alimentadas com
ambrosia e mel, não encontramos nossa Galateia nos materiais, lives, ar-
tigos e discussões sobre educação. Pelo contrário, vemo-nos tomadas por
um mar de desânimo e por um deserto interminável de questionamentos
e infindáveis autocríticas: qual caminho devemos seguir? Há um cami-
nho? Estamos reproduzindo um sistema opressor dentro da nossa aula?
Como contemplamos os saberes dos nossos alunos aliados às exigências
da educação privada? E os nossos medos e o esgotamento mental, onde
entram? Replicando o título do livro de Fanny Abramovich: Que raio de
professora sou eu?
Depois de muito “nadar”, metaforicamente, por um mar de dúvi-
das, começamos a interiorizar que a crítica e, mais enfaticamente, a auto-
crítica fazem parte do caminho docente, em especial, daquele que visa a
diminuição da automatização escolar e a criação de um espaço de diálogo e
troca sinceros entre docentes e discentes. Nisso, sustentamos outros ques-
tionamentos: temos, em nós, a suficiência para aprender e oportunizar no-
vos caminhos? Possibilitamos, em nossas relações, o espaço que as pessoas
necessitam para diálogos de libertação? Por certo, ao beber da bibliografia
de Paulo Freire, nossa sede de transformação social se viu banhada pela
luta contra a educação bancária. Há uma frase, em particular, que nos
provocou: “Não há docência sem discência” (FREIRE, 2016, p. 25). Com
efeito, compreendemos, ainda mais, que o ensino atravessa o aprendiza-

131
À Procura de um Caminho Libertador: O Ensino de Literatura e a Prática da Biblioterapia

do assim como a pesquisa é uma integrante fundamental da sala de aula.


Como, então, poderíamos nós – professoras – desviar do bombardeio de
manuais vazios, soluções milagrosas, intermináveis lives/webconferências e
ligações de empresas privadas, vendendo soluções didáticas, sem, em meio
ao caos pandêmico, não nos frustrarmos, questionarmos e nos apagarmos
pelo caminho?
Nesse momento, uma de nós lembra da célebre frase de Walter Ben-
jamin, lida na obra de Michael Lowy (2005, p. 24): “é preciso organizar
o pessimismo.” Alinhamos este pensamento ao de Freire, que nos diz que
é preciso organizar, também, a esperança, de modo a não esbarrarmos em
uma ideia de utopia paralisante e nem no buraco da desesperança. Com-
preendemos, cada vez com mais profundidade, que a educação não tem
manual: ela nos escapa; dança por entre o quadro de giz e a lousa digital;
flutua entre a permanência e a reminiscência do tradicional.
Ainda que não haja uma “receita de bolo” de como dar aulas, já que
a pedagogia engajada nos lembra que cada turma é única e possui suas
próprias particularidades, por certo há caminhos interessantes a serem
pensados. Dentre eles, encontramo-nos ancoradas em um que, atrelado
à teoria de Freire, mostrou-se um trajeto sinuoso, por vezes árido, mas
muito avivador: o ensino de Literatura e o estudo e prática da bibliotera-
pia como uma forma de espaço para emancipação do sujeito com vistas à
contraposição de uma educação bancária, não emancipatória.
Ouaknin (1996, p. 200), ao pensar a biblioterapia, a terapia a
partir de obras literárias, nos diz que “A literatura oferece novas pos-
sibilidades de ser ao mundo na realidade cotidiana”. Sendo assim, de-
senvolver essas narrativas com a comunidade, em se tratando de uma
atividade biblioterapêutica, pode operar no sentido que Freire (2011, p.
42) defende sobre transformar o cotidiano: “transformação social é en-
tendida como processo histórico em que subjetividade e objetividade se
prendem dialeticamente, não há como absolutizar nenhuma delas.” As
subjetividades modificadas a partir das leituras individuais e coletivas vão
construindo contextos objetivos diferenciados, e estes, por sua vez, vão
reincidindo nas subjetividades. É a transformação do mundo pela janela
literária-comunitária.

132
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

A Literatura como caminho e não como fórmula


Para ter um panorama de como a Literatura pode ser um convite à auto-
nomia emancipatória, à consciência crítica e de resistência à opressão, é
interessante traçar o que se compreende, em linhas gerais, por Literatura.

Tal compreensão é terreno para valiosas discussões, em termos aca-


dêmicos, do que é, não é e pode vir a ser Literatura. A professora e críti-
ca literária Marisa Lajolo, em seu livro Literatura: ontem, hoje e amanhã
(2018), nos traz que a palavra Literatura vem por muito tempo intrigan-
do diversos pensadores, que tentam encontrar um conceito que a defina.
Contudo, sua concepção é tão ampla, que o próprio ato de questionar e
pensar sobre a sua definição é mais válido do que a resumir em um con-
ceito fechado.
Conforme a autora, as histórias, os livros e poemas são criações lite-
rárias vivas, que passam por tendências, definições passageiras, por elitis-
mos e atravessamentos seculares. Ao pensar por este viés, o poema guarda-
do na gaveta, A divina comédia de Dante Alighieri, um livro impresso por
um autor não reconhecido, Dom Casmurro de Machado de Assis, o conto
produzido pelos alunos em sala de aula são, não são e pode ser que sejam Li-
teratura.1 Nesse sentido, é importante pensar que o conceito de Literatura
“depende do ponto de vista, do significado que a palavra tem para cada
um, da situação na qual se discute o que é Literatura” (LAJOLO, 2018,
p. 23). Nota-se, com o que foi exposto, que a definição de Literatura não
é fechada. Entretanto, a trataremos aqui alinhada com a visão do crítico
literário Antônio Cândido, em seu ensaio Direito à Literatura, como

todas as criações de toque poético, ficcional


ou dramático em todos os níveis de uma so-
ciedade, em todos os tipos de cultura, desde
o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as
formas mais complexas e difíceis da produção
escrita das grandes civilizações (CÂNDIDO,
2002, p. 174).

1 Para conhecer mais sobre o conceito de Literatura, indicamos ler as obras: Literatura,
ontem, hoje e amanhã (2018) de Marisa Lajolo e Letramento Literário (2018) de Rildo
Cosson.

133
À Procura de um Caminho Libertador: O Ensino de Literatura e a Prática da Biblioterapia

Dito isso, sigamos para a questão da Literatura como um potente ca-


minho para a libertação do indivíduo – ou pelo menos como um passo para a
consciência da necessidade dela – dentro de uma estrutura opressora.
Ao ler Freire, em Pedagogia do oprimido (2020), percebemos como a
educação tem um papel libertador quando se compreende que a realidade
é passível de mudanças. Nesse sentido, o próprio ser humano é assimila-
do como historicidade, como um ser inacabado e, por isso, apto a novas
aprendizagens e percepções. Nisso, alinhamos nosso pensamento ao de
Freire (2020), ao lembrar que a vocação do ser humano é ser mais, é trans-
cender-se, expandir-se, de modo a transformar a consciência ingênua (com
muito cuidado ao usar este adjetivo) em consciência crítica.
Em um contexto educacional, seja na sala de aula da educação bá-
sica ou da educação superior, assimilamos que esta transformação vem
acompanhada da jornada uníssona que trilham professor e aluno. Esta jor-
nada, metaforicamente, assemelha-se a uma dança entre dois, que alinha,
por certo, as determinações de papéis sociais – ele enquanto estudante e
nós enquanto professoras –, mas que busca performar a sala de aula em
um espaço de questionamento e compartilhamento amoroso e verdadeiro
de saberes. Essa dança, assim bela, assim compassada, nem sempre calma,
só é possível quando os dois pares se sentem contemplados nela, como
reais agentes da mudança. Ali, há espaço para o crescimento de ambos e
para troca de saberes que Freire (2020) incompatibiliza com uma prática
de dominação. Repensando, talvez a dança seja entre três: o aluno, o pro-
fessor e o mundo. Ou, melhor dizendo, alunos, pois a sala de aula é um
universo coletivo.
Apesar de, à primeira vista, parecer incompreensível atrelar o mun-
do como um objeto educacional, compreendemos, cada vez mais, que a
mediação de sala de aula se dá pelo diálogo com ele – o mundo – e com os
agentes que existem nele. Há uma citação de Freire (2020) que nos provo-
cou – mais – reflexões sobre nossas práticas enquanto professora de Língua
Portuguesa e, em especial, de Literatura, Biblioterapeuta e professora de
Psicologia e Educação:

A educação autêntica, repitamos, não se faz de


A para B ou de A sobre B, mas de A com B, me-
diatizados pelo mundo. Mundo que impressiona
e desafia a uns e a outros, originando visões ou

134
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

pontos de vista sobre ele. Visões impregnadas


de anseios, de dúvidas, de esperanças ou deses-
peranças que implicitam temas significativos, à
base dos quais se constituirá o conteúdo progra-
mático da educação (FREIRE, 2020, p. 116).

É ingênuo e levemente narcisista pensar que a sala de aula funcio-


na única e exclusivamente a partir das nossas escolhas enquanto docen-
tes. Por diversas vezes, ao trazer um poema para as aulas, a interpretação
dele rememorou histórias, acontecimentos e sentimentos que partiram
dos alunos sem que a professora controlasse. É nesta troca que nos faze-
mos – traço a traço, como diria Quintana – ouvintes e aprendizes; que
nos constituímos professoras.
Por certo, dentro desta troca, permeada pela intervenção literária, é
visível que ela se faz ainda mais fortalecida quando há relevância social e
contextual no que se estuda, quando há uma “urgência” do objeto de estu-
dos escolhido. Estudamos na universidade, lemos em Freire e em bell hoocks
(2017) – esta que, embalada naquele, compartilha conosco suas experiências
de uma educação transgressora no contexto de denúncia dos preconceitos
raciais e de gênero –, e agora, frente à docência, observamos com mais niti-
dez que a escolha de temáticas para a sala de aula é cuidadosa, potente. Essa
potência se mostra, pois esta escolha – que às vezes não é escolha, é iminên-
cia – se desdobrará em criticidade, em saberes novos ou remodelados na me-
dida em que este estudo está entrelaçado com as urgências de nossa época.

Mas… onde entra a biblioterapia?


Para localizar a biblioterapia neste emaranhado de possíveis caminhos, tra-
zemos uma definição de Ouaknin (1996, p. 11), que nos diz que “A palavra
‘biblioterapia’ é composta de dois termos de origem grega, ‘livro’ e ‘terapia’.
Desse modo, a ‘biblioterapia’ é a ‘terapia por meio de livros’.”
Aqui, vale colocar a ideia de terapia como a permissão de uma co-
municação libertadora, uma passagem dialética possibilitada em um espaço
de mediação, que se faz de diálogo e de silêncio (OUAKNIN, 1996). Pois,
como nos apresenta Freire (2016, p. 114), “A importância do silêncio no
espaço da comunicação é fundamental”. Dito isso, vale relatarmos a expe-
riência de uma das autoras com a biblioterapia em prática.

135
À Procura de um Caminho Libertador: O Ensino de Literatura e a Prática da Biblioterapia

O encontro de almas e livros aconteceu no dia 1 de julho de 2019.


Alguns dias antes, a diretora da escola de Educação de Jovens e Adultos
(PROEJA), da cidade de Criciúma/SC, estava em busca de algo diferente
para divulgar a semana da literatura na escola. Nessa busca de ideias, a
professora de Língua Portuguesa, que nos conhecia e apoiava nosso sonho
de levar a leitura como ferramenta de transformação social, sugeriu uma
vivência de biblioterapia.
Assim, chegou o convite, inesperado, de mediar um evento para
todas as turmas de Ensino Fundamental I e II do PROEJA. Entre ideias e
mais ideias, concordamos que cada turma se dirigisse à biblioteca e lá fa-
ríamos a apresentação da biblioterapia, ou seja, a apresentação da semana
de literatura do PROEJA 2019.
O desafio de preparar um encontro com vivências para tantas pes-
soas nos demandou uma forte conexão com a nossa genuinidade e nossa
confiança na escolha do acervo a ser compartilhado para aquele momento
único. Afinal, tínhamos uma missão: iniciar a semana de literatura na es-
cola a fim de estimular e motivar adultos na beleza do ato de ler.
Para a ocasião, preparamos o centro da roda com diversas obras
literárias: clássicas, infantis e contemporâneas. A apresentação sobre nós
e sobre a prática da biblioterapia foi sucinta, pois queríamos dedicar o
tempo para que os participantes se permitissem relaxar naquele encontro,
por meio de respirações profundas, e de uma breve meditação. Assim, após
esse momento de autoconexão, foi feito nosso convite para o grupo, em
forma de questionamento: qual livro te escolhe hoje?
Nisso, naquela roda, qualquer participante poderia escolher um li-
vro do centro e ler um trecho, uma poesia, uma frase… sem regras. Quan-
do, em uma das turmas, foi colocado o convite para alguém escolher um
livro… O silêncio aconteceu… Minutos se passaram e ninguém, até en-
tão, havia tomado coragem de abrir uma história. Até que, de modo si-
lencioso e calmo, uma senhora se levanta e fala “posso escolher”. Certos
de que então íamos ter uma vivência, sentamo-nos para esperar a escolha
e ouvi-la. O livro que a escolheu foi de Manoel de Barros, O Fazedor de
Amanhecer, com ilustrações de Ziraldo.
Com certa dificuldade, iniciou a leitura de um poema do livro e com
muita força de vontade, fez a leitura completa. Ao final, com muito orgulho,
todos os colegas celebraram a leitura em voz alta daquela senhora que apenas

136
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

havia se alfabetizado e, com muito empenho, leu para todos. A professora


que estava presente, observando o encontro acontecer, tomou-se de emoção
e saudou com muita alegria sua aluna. Essa aluna havia se ouvido ler!
Um ponto de vista que temos em relação à biblioterapia e sua apli-
cação em sala de aula é o preparo sutil do professor, as nuances que ocor-
rem da fruição poética do “o que o autor me fez pensar”, como diz Rubem
Alves (2004, p. 5). E assim, este educador também precisa (re)pensar em
suas crenças, limitações, opiniões, e isso pode gerar desconforto, dificulda-
de, precisa abrir-se para a situação concreta de seus alunos, do significado
que esta experiência possa ter para eles. É um movimento de vida, é um
desconstruir-se para construir com.
Em todos os lugares, o cuidado ao levar a biblioterapia é o mesmo.
Não há pessoas ou situações mais difíceis. Todos merecem igual atenção:
por meio da escolha de acervo de forma autêntica e amorosa, com escuta
atenciosa, com espaço de fala e acolhimento de coração. O mediador da
biblioterapia é quem permite o outro a se permitir, é quem proporciona
tempo de fala, escuta e silêncio a todos os participantes.
Sob esta ótica, a prática docente enviesada pela Literatura e as rodas
de biblioterapia reforçam a capacidade crítica e a curiosidade dos sujei-
tos presentes, pois eles “(...) vão se transformando em reais sujeitos da
construção e da reconstrução do saber ensinado, ao lado do educador,
igualmente sujeito do processo” (FREIRE, 2019, p. 28). Acreditamos que
o espaço escolar, assim como qualquer espaço educativo, atrelado a uma
utopia corajosa, pode ser um local que respira mudança, oportuniza a
leitura de nossa própria gente-realidade, identificando, dessa forma, os
problemas e desafios do nosso tempo.
É bonito de se pensar – e de se viver – em uma sala de aula que,
mesmo com todas as questões de urgência pós os anos 2000, que, por ve-
zes, ultrapassam a escrita de Freire, continua a ser um espaço de diálogo e
construção contínua de saberes fundamentais para a validação do ser-mais.
Essas questões que escapam à teoria freiriana, por exemplo, estão ligadas
ao acesso mais facilitado à informação – lê-se facilitado e não qualifica-
do – e à robotização dos adolescentes (e adultos!) com o uso desenfreado
dos aparelhos celulares. Um dos compromissos da educação libertadora
– arriscamos a dizer – sempre será com o ser humano e com o mundo,
independente do espaço cronológico em que eles habitam. É preciso, no

137
À Procura de um Caminho Libertador: O Ensino de Literatura e a Prática da Biblioterapia

caso de o tempo avançar depressa e a teoria não, ler o mundo; buscar nas
suas entrelinhas e no que está escrachado em nossa frente o que precisa ser
mexido, modificado, transformado.
Por isso, é importante – para não se dizer pulsante! – fazer uma
leitura de mundo a partir do lugar em que estamos, mas sem esquecer do
compromisso com o ser, na sua integralidade. Aqui, cabe a inserção da
célebre frase de Freire (2011), que nos diz que a leitura do mundo sempre
vai preceder a leitura da palavra.

Mas... onde entra a Literatura nisso tudo, prô?


Já dizia Mario Quintana (2001, p. 117), em seu poema “Emergência”:

Quem faz um poema abre uma janela.


Respira, tu que estás numa cela abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
– para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.

Estabelecemos uma comparação perigosa, mas necessária: em uma so-


ciedade que tem como fundo basilar uma relação entre oprimido e opressor,
quem é, de fato, o afogado? Para instigar a reflexão sobre essa questão, é in-
teressante pensar que a base de nossa literatura nacional, ou seja, seu início,
tem um cerne exploratório e escravocrata. O que chamamos comumente de
“complexo de vira-lata”, ou a vangloriação que temos do que vem de “fora”, es-
pecialmente da Europa, a Literatura, por meio de poemas, ensaios, crônicas e
contos, desnuda, critica, remonta: faz o leitor-estudante-professor (re)pensar.
Para compreender com mais concisão como as bases literárias são
importantes objetos de estudo, amparamo-nos na obra História concisa da
Literatura Brasileira, do estudioso Alfredo Bosi (2017). O autor nos traz que
as primeiras manifestações literárias em nosso país, de que se tem registro,
surgiram dentro do período colonial, ou o que se denomina, questionavel-
mente, de “descobrimento do Brasil”. Os textos fundamentais desse período
eram permeados por informações escritas por viajantes e missionários por-
tugueses, que narravam as experiências nas terras, que ainda eram chamadas
de Ilha de Vera Cruz.

138
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Observando essa informação, permitimo-nos demonstrar que Litera-


tura aparece como um caminho para a libertação quando, ao trabalhar estes
textos em sala, especialmente a Carta do achamento do Brasil, de Pero Vaz de
Caminha, constrói-se um diálogo reflexivo com a turma, a partir de alguns
questionamentos-chave: nós fomos, de fato, descobertos? Onde estão nos-
sas raízes? Quem estava aqui antes de os exploradores chegarem? Quem é ou
quem criou o bom índio?
A questão do apagamento da cultura indígena e da nossa própria raiz
nacional é um mar profundo para discussões literárias. Em importantes obras
da Literatura nacional, como Iracema, de José de Alencar, são apresentados
personagens que possuem uma caracterização questionável, que enfeitam o
“bom índio” e maquiam o “bom explorador”. No clássico da literatura na-
cional Macunaíma, de Mário de Andrade, temos um não herói, ou melhor,
um anti-herói, que é apresentado pela famosa frase “Ai, que preguiça!”. Ele é
descrito como um herói sem caráter. Em sala de aula, formamos boas rodas de
conversa ao dialogarmos sobre este “caráter”: de primeira, os alunos associa-
vam esta palavra à índole do personagem, que poderia ser um malfeitor. Mas,
após algumas observações sobre o período modernista em que a obra foi escri-
ta e a luta dos escritores pela criação de uma identificação nacional, bem como
a busca de desvencilhar-nos das influências esmagadoramente europeias, per-
cebemos, juntos, que este carácter era mais profundo: era a nossa identidade
em falta. O que éramos, nós, antes do fatídico descobrimento?
Trabalhar em sala de aula com Literatura e, na oportunidade relata-
da anteriormente, com Biblioterapia, é navegar pela possibilidade da criação,
pelo afloramento da autonomia, da consciência crítica e da resistência à opres-
são; enfim, é promover a emancipação. Nisso, interligamos as nossas palavras
às do crítico literário Antônio Cândido (2002, p. 113):

a literatura tem sido um instrumento poderoso


de instrução e educação, entrando nos currículos,
sendo proposta a cada um como equipamento
intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade
preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão
presentes nas diversas manifestações da ficção, da
poesia e da ação dramática. A literatura confirma e
nega, propõe e denuncia, apoia e combate, forne-
cendo a possibilidade de vivermos dialeticamente
os problemas.

139
À Procura de um Caminho Libertador: O Ensino de Literatura e a Prática da Biblioterapia

De fato, o ensino de Literatura e a prática da biblioterapia não são


apenas ferramentas, mas um caminho interessante para a construção de uma
educação reflexiva, emancipatória e crítica. Trabalhar com textos de cunho
subjetivo, objetivo, fantástico ou científico permite, ao leitor aluno e também
ao leitor professor, experienciar situações, mas, principalmente, posicionar-se
diante delas. A emancipação ocorre quando há a superação das barreiras que
prendem os indivíduos a condições estagnantes, que podam seu pensar e limi-
tam a sua expansão como ser. O ensino e a prática de ambas aparecem como
um caminho, ainda que não milagroso e fácil de ser digerido, mas, de traço em
traço, ou melhor, de leitura em leitura, libertador.

Bem... e o resto?
Assim como não saberemos se Capitu traiu ou não traiu Bentinho, também
aqui não encontraremos uma resposta para as angústias da sala de aula. É
curioso pensar que, para além das inúmeras reflexões que a teoria freiriana nos
trouxe, fazendo-nos questionar interminavelmente a nossa prática, ela tam-
bém nos trouxe uma visão: interligamos o que fazemos ao que estudamos,
tratando com respeito o nosso conhecimento e a nossa prática. A Literatura,
que aparece aqui às vezes tímida e às vezes dominante, é um terreno fértil para
ampliar a luta pela apropriação de nossa identidade e da libertação dos nossos
seres. A biblioterapia, ainda jovem e de terreno fértil, entra como um convi-
te para desbravarmos suas potentes práticas, que cunham reflexão, liberdade
criativa e autonomia para quem se permite conhecê-la.
Neste emaranhado de ideias, confissões e angústias, acabaremos por
repetir o que tanto nos assombra: neste artigo, escrito cientemente por estas
autoras, de forma pessoal-coletiva e quase confessional, com um risco de ser
pego na peneira do academicismo (com respeito e com razão), não apontamos
soluções, mas sim provocações e inquietações; inquietações que avistamos re-
verberarem pelos corredores da universidade e, agora, pelos espaços das salas
dos professores e das rodas biblioterapêuticas. Dito isto, presumimos com-
preender, com algum custo, que não há fórmula mágica para as vivências em
sala de aula e de qualquer espaço formativo: há caminhos mais sinceros, críti-
cos, acolhedores e libertadores para um fazer pedagógico que, de mãos dadas
com a Literatura e a libertação, podem salvar um afogado.

140
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Referências bibliográficas
ALVES, Rubem. Os três reis. Ilustrações: Bordados de Antônia Zulma Diniz Dumont,
Ângela, Marilu, Martha e Sávia Dumont, sobre desenhos de Demóstenes. São
Paulo: Loyola, 2004.
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 52. ed. São Paulo: Cultrix,
2017.
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: história de deuses e heróis. Rio de
Janeiro: Harper Collins, 2018.
CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. In: Textos de intervenção.
São Paulo: Duas Cidades: Editora 34, 2002.
COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2018.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 51. ed.
São Paulo: Cortez, 2011.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática docente. 54.
ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.
FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. 29. ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2019.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 75. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2020.
HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2. ed.
São Paulo: Editora Wmf Martins Fontes, 2017.
LAJOLO, Marisa. Literatura: ontem, hoje, amanhã. São Paulo: Editora Unesp, 2018.
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses ‘Sobre o
conceito de História’. São Paulo: Boitempo, 2005.
QUINTANA, Mário. “Emergência”. In: MORICONI, Ítalo (Org.). Os cem melhores
poemas brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 177.
OUAKNIN, Marc-Alain. Biblioterapia. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

141
O Legado de Paulo Freire como Inspiração
às Ações Educativas Escolares
e não Escolares

Orlandil de Lima Moreira


Ana Célia Silva Menezes
Maria Margareth de Lima

Introdução
O pensamento de Paulo Freire tem se estabelecido como um legado importan-
te para a Educação no Brasil, resultado do seu reconhecimento como um dos
pensadores do século XX, homenageado com o título de patrono da Educação.
Seu pensamento ganhou expressão acadêmica em vários países do mundo, ul-
trapassou as fronteiras das disciplinas e das artes para além da América Latina,
sendo referência para estudos em diversas áreas do conhecimento, em parti-
cular no campo da Educação. Assim, constitui-se em orientação para ações
educativas escolares e não escolares referenciadas por uma pedagogia emanci-
patória, que tem como horizonte uma leitura do mundo, crítica e engajada.
Por ocasião do centenário de seu nascimento, em setembro de 2021,
em diversos países do mundo, com destaque para o Brasil, realizaram-se
diversas atividades comemorativas que reavivaram o pensamento freiriano.
No Brasil, ocorreu em um momento em que, por ter um pensamento pe-
dagógico de caráter emancipatório, Paulo Freire sofria ataques por parte de
setores ultraconservadores da sociedade que ganharam visibilidade a partir
do movimento político que eclodiu no Brasil em 2016 e resultou no impea-
chment da presidenta Dilma Rousseff, tendo continuidade com a eleição do
presidente Jair Bolsonaro.

142
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Nesse contexto comemorativo, fez-se necessária a reafirmação do lega-


do de Paulo Freire para o campo do conhecimento acadêmico e dos movimen-
tos e organizações sociais populares. Igualmente necessário foi dar visibilidade
a uma narrativa que se contrapunha ao recrudescimento da violência, dos pre-
conceitos, do racismo, das desigualdades sociais e aos ataques ao pensamento
antidemocrático. A Universidade Federal da Paraíba (UFPB) não poderia ficar
de fora desse momento político. A iniciativa de criação do Coletivo Práxis
freiriana na Paraíba faz parte desse movimento internacional, que foi se for-
mando ao longo do ano de 2021, e se constitui de grupos de pesquisa, exten-
são e projetos educativos populares da sociedade civil. Essa iniciativa resultou
na realização de 11 lives, que objetivaram visibilizar o pensamento freiriano
e demonstrar a atualidade de sua pedagogia para guiar ações sociopolíticas e
de pesquisa no século XXI, trazendo sempre, em cada ciclo, discussão de uma
temática e apresentação de experiências educativas inspiradas no pensamento
de Paulo Freire.
Este artigo foi motivado pela seguinte questão: o pensamento de Paulo
Freire pode contribuir para ações educativas escolares e não escolares no con-
texto contemporâneo? A partir dessa indagação, buscamos desenvolver uma
reflexão acerca da atualidade e da contribuição do pensamento de Paulo Freire
para o campo da Educação Popular em espaços acadêmicos e dos movimentos
sociais populares de modo a demonstrar a vitalidade do seu legado na contem-
poraneidade. Com isso, buscamos poder afirmar que o seu pensamento não é
datado: ele ultrapassa o seu tempo histórico e se configura em um pensamento
clássico para o campo da educação.
Metodologicamente, este estudo resulta de uma análise das experiências
apresentadas pelos diversos grupos que compõem o Coletivo Práxis Freiriana,
por meio de 11 lives realizadas de setembro de 2020 a agosto de 2021, que
trouxeram registros das ações no campo da pesquisa, extensão e ações educa-
tivas desenvolvidas por movimentos sociais e ONGs. O estudo se caracteriza
por uma análise qualitativa, a partir das imagens e áudios veiculados durante a
realização de ciclos de diálogos, o que possibilitou identificar os grupos parti-
cipantes e os temas apresentados e discutidos. Em seguida, passamos a analisar
as experiências relatadas pelos grupos de movimentos sociais.
O artigo está organizado em quatro partes. A primeira se refere a
esta introdução, destacando sua temática, questão de pesquisa e objetivos. A
segunda parte, denominada “Paulo Freire, um educador, andarilho no Mun-

143
O Legado de Paulo Freire como Inspiração às Ações Educativas Escolares e não Escolares

do”, traz a reflexão sobre o seu legado como fonte inspiradora para ações
educativas escolares e não escolares. A terceira apresenta o Coletivo da Práxis
Freiriana, descrevendo o contexto, o processo de criação; os atores coletivos
e suas experiências educativas. A quarta parte, intitulada “A atualidade da
pedagogia de Paulo Freire”, expressa uma reflexão sobre os campos de in-
fluência do pensamento de Freire como indicativo de suas vitalidade e atua-
lidade a partir das experiências analisadas. Por fim, as considerações finais,
com síntese e destaques das contribuições (e atualidade) do pensamento de
Paulo Freire para o campo da Educação Popular em espaços acadêmicos e
dos movimentos sociais populares.

Paulo Freire, um educador, andarilho no mundo


A presença de Paulo Freire no mundo deixou um legado importante para a
ciência, e a Educação foi preocupação central de suas reflexões e ação polí-
tica. Ação que teve início no final dos anos de 1950, quando participou do
Movimento de Cultura Popular na cidade do Recife, em Pernambuco, tendo
como principal inquietação a realidade da educação brasileira, em particu-
lar, a situação de analfabetismo entre a população adulta. Sua participação
no Congresso de alfabetização de adultos, realizado em 1958, representa um
marco nesse momento, expressando sua presença ativa na vida educacional,
política e cultural, sempre preocupado com a realidade de analfabetismo.
Nesse momento, o educador apresentou propostas que apontavam críticas
às perspectivas metodológica e política das campanhas de alfabetização, con-
forme a afirmação a seguir:

A alfabetização não pode se fazer de cima para bai-


xo, nem de fora para dentro, como uma doação ou
uma exposição, mas de dentro para fora pelo pró-
prio analfabeto, somente ajustado pelo educador.
Esta é a razão pela qual procuramos um método
que fosse capaz de fazer instrumento também do
educando e não só do educador (FREIRE, 1979,
p. 72).

É nesse contexto de sensibilidade e proposição para a mudança da rea-


lidade de analfabetismo que Paulo Freire cria o Método de Alfabetização, que
logo vai ganhar expressivo reconhecimento. A sua participação no Serviço de

144
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Extensão e Cultura da Universidade de Recife – espaço onde desenvolveu ex-


periências educativas de alfabetização, sempre com a preocupação de explorar
conteúdo que fosse parte da vida do povo – fez parte de tal presença ativa no
âmbito da educação. Nessa mesma direção, soma-se o convite que recebeu em
1963, pelo Ministério da Educação, para elaborar um Programa Nacional de
Alfabetização, pondo fim às Campanhas Nacionais de Educação de Adultos
iniciadas em 1947. Esse conjunto de atividades ampliou o seu reconhecimen-
to em âmbito nacional, depois de suas várias inserções em Pernambuco par-
ticipando do Movimento de Cultura Popular (MCP), culminando quando
assumiu a coordenação do Programa Nacional de Alfabetização.
A interrupção de sua atividade política e educativa no Brasil pela ação
do regime militar, que o prendeu duas vezes e, depois, o forçou a ir para o
exílio, não o impediu de continuar pensando a pedagogia voltada para os
oprimidos, para ajudá-los a fazer uma leitura crítica do mundo e buscar trans-
formá-lo. Nesse período, deu continuidade à construção de sua pedagogia,
produzindo duas obras fundamentais para a compreensão de sua proposição
pedagógica: Educação como prática da liberdade e Pedagogia do Oprimido. Este
último, publicado primeiro em inglês e em espanhol, e depois em português
(1970), quando o regime militar entra em um período de distensão com o
general Ernesto Geisel, é uma de suas obras mais conhecidas no mundo, já
traduzida em mais de 30 idiomas.
O diálogo com os oprimidos, iniciado enquanto ação pedagógica nos
mocambos e cortiços da região metropolitana de Recife e no interior do Rio
Grande do Norte, na cidade de Angicos, alfabetizando camponeses em 40
dias, possibilitou-lhe a elaboração da Pedagogia do Oprimido quando já se en-
contrava no exílio. Essa obra, que lhe rendeu o reconhecimento e ampliou
sua ação política e educativa em diversos países do mundo, contribuiu para
fomentar uma ação pedagógica que fornecesse condições para o processo de li-
bertação dos povos, em contraposição ao pensamento da dominação colonial,
a exemplos de países do continente africano.
Como afirma Frigotto,

Na minha leitura da obra de Paulo Freire, o livro


Pedagogia do Oprimido é a que expressa a síntese de
um tempo histórico e, como tal, ao longo de sua
vida, atualiza-o em desdobramento em diversos te-
mas escritos durante o exílio e depois, quando de
sua volta ao Brasil (FRIGOTTO, 2022, p. 208).

145
O Legado de Paulo Freire como Inspiração às Ações Educativas Escolares e não Escolares

Com a Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire busca construir uma


perspectiva pedagógica que coloque os oprimidos no centro do processo de
transformação de sua realidade e da realidade coletiva, sempre reafirmando
seu compromisso ético-político. Ou seja, “caminho para que os oprimidos e
excluídos, pela educação, tomem consciência de sua situação para que pos-
sam aprender a resistir e lutar para um novo projeto social” (FRIGOTTO,
2022, p. 210),
Forçado pelo exílio, iniciou sua andarilhagem pela Bolívia, país que o
recebeu quando de sua saída do Brasil em busca de exílio. Posteriormente,
seguiu para o Chile, onde exerceu diversas atividades políticas e educativas,
com destaque para seu trabalho na Organização das Nações Unidas para a
Agricultura e Alimentação, desenvolvendo ações junto aos camponeses chi-
lenos no âmbito da reforma agrária. Sua presença não ficou apenas na Amé-
rica Latina, estendeu-se também para outros países. Nos Estados Unidos,
por exemplo, lecionou como professor visitante na universidade de Harvard,
expressando o seu pensamento pedagógico como ato político, visto que per-
passa diversas áreas do conhecimento, contribuindo para distintas formas de
atuação político-educativa.
Nas suas andanças, passou também pelo continente europeu, com uma
temporada na Suíça, nos anos 1970, onde desenvolveu atividades junto ao
Conselho Mundial de Igrejas. Nesse tempo, deslocou-se também para o con-
tinente africano, para realização de atividade como consultor educacional na
Guiné-Bissau e em Moçambique. Teve sua presença também na África do Sul,
deixando sua contribuição para a formação de um pensamento crítico junto
ao movimento da consciência negra. Tal trajetória lhe possibilitou desenvolver
um diálogo intercultural por meio de uma ação pedagógica emancipatória,
sendo, mundialmente, reconhecido o seu pensamento pedagógico.
Após 16 anos de exílio, período importante para produção de sua obra
e contribuição ao pensamento pedagógico crítico, Freire volta ao Brasil no
contexto de abertura política, com as mesmas força e vontade de contribuir
com a educação e com mudanças políticas. Logo se integrou aos movimentos
sociais que estavam em curso, participando ativamente da fundação do Par-
tido dos Trabalhadores (PT), demonstrando a sua disposição de cooperar no
âmbito da política.
No campo da ciência e da educação, além de desenvolver a ativida-
de docente em importantes universidades brasileiras, a exemplo da Pontifícia

146
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), lecionou também na Univer-


sidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e foi convidado por diversas ou-
tras instituições para palestras e cursos, difundindo o seu pensamento crítico
e sua concepção emancipatória de educação.
Pelo seu compromisso com a sociedade brasileira e com a educação,
Paulo Freire participou como Secretário de Educação no município de São
Paulo, no governo da prefeita Luiza Erundina, no início dos anos de 1990,
quando trouxe uma proposta de projeto político-pedagógico para construção
de uma escola pública democrática e popular (SAUL, 2012).
A partir dessa sua andarilhagem em diferentes continentes e países,
exercitou o diálogo intercultural, realidade que expressa a potência do seu
pensamento e a sua presença ativa no mundo, buscando colaborar com a
construção de um outro mundo possível, seja junto aos sistemas de educação
escolar, seja na educação não escolar, em parceria com diversos espaços que
desenvolvem a dimensão educativa, a exemplo dos movimentos sociais.

O coletivo da práxis freiriana na Paraíba


O ano de 2021 tem um significado ímpar para a educação no Brasil, momen-
to em que se teve a oportunidade de homenagear Paulo Freire e reavivar a sua
contribuição na construção do pensamento pedagógico brasileiro
Em 2020, um ano antes da data do centenário do patrono da Educa-
ção do Brasil, nasce o “Coletivo da Práxis Freiriana na Paraíba”. Esse grupo
de professores(as) da UFPB teve a iniciativa de mobilizar grupos de pesqui-
sa, extensão, movimentos sociais e organizações da sociedade civil da Paraíba
que desenvolviam ações referenciadas no pensamento de Paulo Freire, com
o objetivo de planejar atividades que pudessem contribuir para visibilizar e
reavivar o seu pensamento. Como expressa o seu convite feito aos grupos,
“nossa proposta deseja ser simples e envolve o sentimento de partilhar sabe-
res e ensaiar alternativas rumo ao centenário Paulo Freire em 19 de setembro
de 2021 (...)”.
Esse Coletivo, composto por 18 grupos com um perfil bem diversifi-
cado, conforme o Quadro 01, tem como elo aglutinador a aproximação com
o pensamento freiriano como perspectiva teórica, política e metodológica
para suas atividades.

147
O Legado de Paulo Freire como Inspiração às Ações Educativas Escolares e não Escolares

Quadro 01: Grupos participantes do coletivo Práxis freiriana da Paraíba

N. Nome do grupo Tipo do grupo


01 Rede de Educação do Semiárido Brasileiro (RESAB) Movimento social
Grupo de Pesquisa em Extensão Popular – EXTE-
02 Pesquisa e extensão
LAR/UFPB
POLITEKNIK-Brasil – Ampliação do Direito
03 Acadêmico
Humano à Educação
Grupo de Estudo Serviço Social e Movimentos
04 Pesquisa
Sociais – GEPEDUPSS/UFPB
Grupo de Estudos e Pesquisas Discurso e Imagem
05 Pesquisa
Visual em Educação – GEPEDIVE/UFPB
Grupo de Estudo Paulo Freire de Campina Gran-
06 Pesquisa e extensão
de – GESPAUF
07 Observatório da Educação Popular/UFPB Pesquisa e extensão
Organização da
08 Serviço de Educação Popular – SEDUP sociedade civil
(ONG)
Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação, Etnia
09 Pesquisa e extensão
e Economia Solidária – GEPeeS/ UFPB
Educação de Jovens e Adultos e Educação Popu-
10 lar: A Pesquisa a Serviço da Prática Educativa – Pesquisa e extensão
EJA em Ação
11 Cátedra Paulo Freire (UFPB) Acadêmico
Grupo de Estudos e Pesquisas da Pedagogia Paulo
12 Pesquisa
Freire – GEPPF
Sindicato dos Professoras da Universidade Federal
13 Movimento social
– ADUFPB
14 Rede Freiriana de Pesquisadores Pesquisa
Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos – Ensino, pesquisa e
15
NCDH/ CCHLA – UFPB extensão
16 PET/Conexões de saberes Extensão
OPAÍ – Oficina Paulo Freire em pedagogia social
17 Sociedade Civil
e em direitos humanos
Grupo de pesquisa RESISTA – Educação em Di-
18 Pesquisa
reitos Humanos no Sul Global/UEPB
Fonte: Relatórios e lives do Coletivo (Elaboração dos autores, 2022).

148
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

A partir desse quadro, observa-se o perfil do coletivo: grupos de caracte-


rística plural, objetivos diferenciados, com ênfase em um determinado campo
de atuação e, em sua maioria, vinculados a universidades.
Formado o Coletivo, seguiu-se com a definição dos objetivos, aqui sin-
tetizados:

Visibilizar a memória da trajetória política e a produção intelectual de Paulo


Freire;
Difundir o pensamento pedagógico de Paulo Freire e sua proposta de educa-
ção libertadora;
Apresentar o pensamento vivo de Paulo Freire por meio de práticas sociais e
políticas e dos estudos que dão continuidade ao seu pensamento político e
pedagógico;
Homenagear uma expressão viva do pensamento de Paulo Freire (RELATÓ-
RIO DO COLETIVO, 2020).

Considerando o tempo pandêmico da Covid-19, que impossibilitava a


realização de atividades presenciais, a programação planejada pelo Coletivo da
Práxis Freiriana foi realizada de forma remota por meio da plataforma Zoom
e com transmissão pelo YouTube. Foi organizada no formato de lives, mas,
em conformidade com a perspectiva freiriana, buscou-se conferir o sentido de
ciclo de diálogo.
Os ciclos de diálogo tiveram início no dia 19 de setembro de 2020,
estendendo-se até setembro de 2021, sempre com a participação de dois gru-
pos, os quais traziam suas experiências e reflexões destacando a contribuição
do pensamento de Freire para suas ações. Nesse período, foi possível trazer
ao público experiências acadêmicas no campo da produção de conhecimento
por meio da pesquisa e da extensão, assim como práticas educativas populares
desenvolvidas por organizações da sociedade civil e movimentos sociais.
Na realização dos ciclos dialógicos, um conjunto de temáticas foram
apresentadas, tendo como ponto de partida a experiência de cada grupo no
seu campo específico, o que possibilitou um diálogo fecundo, buscando des-
tacar as aproximações das suas práticas e orientações teóricas e metodológicas
ao pensamento de Paulo Freire. Como revela o Quadro 02, tivemos um amplo
leque de experiências que foram construindo a marcha rumo ao centenário do
patrono da Educação.

149
O Legado de Paulo Freire como Inspiração às Ações Educativas Escolares e não Escolares

Quadro 02: Grupos e Temáticas dos ciclos de diálogo

N. Grupo mediador Temática


Paulo Freire vive! Trilhando na
01 Todos os grupos construção do centenário Paulo
Freire
Grupo PET Conexões – Educação de Jo-
vens e Adultos e Educação Popular: A Pes- Paulo Freire e a educação de jo-
02 quisa a Serviço da Prática Educativa – EJA vens e adultos e direitos huma-
em ação. Núcleo de Cidadania e Direitos nos
Humanos (NCDH/UFPB)
O legado freiriano e suas con-
GEPEDIVE/UFPB tribuições para a pesquisa e a
03
GEPEDUPSS/UFPB formação do educador e do as-
sistente social
Gravado – Daniel Araújo (Advogado e Paulo Freire: revisitando suas
mestrando em Direito humanos) – Daí- obras Pedagogia do oprimido e Pe-
04
ze F. N. da Silva (Pedagoga e mestre em dagogia da autonomia.
Educação)
Gravado – Entrevista com o professor A contribuição de Paulo Freire
05
José de Melo Neto e Rita Porto no ensino superior
SEDUP A pedagogia freiriana nas práti-
06
RESAB cas educativas populares
Observatório da Educação Popular A pedagogia freiriana e a Educa-
07
GESPASF/UEPB ção Popular
POLITEKNIK-Brasil
OPAI – Oficina Paulo Freire em peda- Paulo Freire e a Educação em
08
gogia social e em direitos humanos Direitos Humanos
RESISTA/UEPB
Cátedra Paulo Freire da PUC-SP
Paulo Freire e o seu legado teóri-
Cátedra Paulo Freire da UFPE
09 co e metodológico para pesqui-
Cátedra Paulo Freire da UFPB
sas acadêmicas
GEPPF/UFBP
Extensão e Comunicação Po-
EXTELAR/UFPB
10 pular: dialogando com a práxis
GEPeeS/ UFPB
freiriana

150
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

ADUF/PB
Confederação Nacional de Educação –
CNTE
Sindicato dos Trabalhadores e Trabalha- Contribuições do Legado Paulo
11
doras em Educação do Estado da Paraí- Freire para as Ações Sindicais
ba – SINTEPB
Sindicato dos Trabalhadores em Educa-
ção do Município-SINTEM

Fonte: Relatórios e lives do Coletivo (Elaboração dos autores, 2022).

O primeiro ciclo de abertura da marcha virtual rumo ao centenário


do patrono da Educação teve como tema “Paulo Freire Vive!”. Este foi um
momento para marcar a presença viva do seu pensamento, visibilizando o seu
legado e reafirmando a sua memória como um pensador e educador nordesti-
no e brasileiro que expressa, em sua obra, a intencionalidade política da ação
pedagógica que articula os interesses dos oprimidos como fundamentais para
construção de um outro mundo possível.
Uma diversidade de temas foi sendo refletida à luz do pensamento frei-
riano, como revela o Quadro 02, expressando, assim, a vitalidade de suas obras
para orientar pesquisa, práticas extensionistas, ações educativas escolares e não
escolares em diferentes territórios e com diferentes sujeitos. São temas que
expressam uma atualidade com a realidade contemporânea, trazendo proble-
máticas como os direitos humanos, pensados numa perspectiva da educação
em e para os direitos humanos, a extensão popular, a Educação Popular, como
abordagem epistemológica e como prática educativa, entre outras. Buscou-se
sempre destacar a contribuição e a atualidade do pensamento de Freire para
analisar problemas contemporâneos, procurando desenvolver ações educativas
cuja perspectiva fosse a defesa de uma política que valoriza a vida, as relações
éticas, a democracia, o combate às injustiças, ao racismo e à desigualdade.

A atualidade da pedagogia de Paulo Freire


O primeiro ciclo de diálogo do coletivo paraibano da práxis freiriana teve
como temática “Paulo Freire Vive!”. Esse tema expressa não apenas uma ho-
menagem, mas vislumbra um convite para um compromisso com uma causa,
com uma concepção de educação crítica que busca pensar a ação educativa

151
O Legado de Paulo Freire como Inspiração às Ações Educativas Escolares e não Escolares

dentro do contexto contemporâneo para o enfrentamento dos desafios atuais


da escola e da sociedade.
A marcha rumo ao centenário pode ser referenciada por uma fala de
Freire: “sinto-me presenteado por estar vivo e ter acompanhado esta marcha
que como tantas outras marchas históricas revelam o ímpeto da vontade amo-
rosa de mudar o mundo.” Tal fala nos mobiliza pensar sobre democracia, ci-
dadania e justiça social, elementos que se apresentam como um desafio para a
sociedade e para a educação contemporânea.
A contextualização e a atualização do pensamento de Freire podem ser
identificadas nas experiências apresentadas ao longo da marcha, visto que estas
demonstram algumas ideias e reflexões que possibilitam atualizar sua obra por
meio de práticas sociais e educativas que expressam esse movimento.
Um primeiro aspecto a destacar nesse movimento reflexivo, tendo o
pensamento de Freire como referência, foi que a Educação Popular não se
configura apenas por uma referência história e datada, que aconteceu nos anos
1960, com o movimento de Educação e Cultura Popular, como sugerido por
alguns educadores e refutado por Brandão (2002). Concordando com a po-
sição de Brandão, podemos dizer que a Educação Popular é um movimento
educativo, uma concepção de educação e um referencial epistemológico que
tem servido à produção de conhecimento e práticas sociais e educativas no
âmbito escolar e não escolar, como revela a experiência de grupos presentes
nos ciclos de diálogo.
Identificamos como representativos desse movimento de reflexão e ação
acerca do pensamento de Freire coletivos de pesquisa que lançam mão de in-
dicativos teóricos e metodológicos presentes em sua obra para pensar questões
e problemáticas contemporâneas no âmbito da educação escolar e não escolar
e dos movimentos sociais. Aqui, podemos destacar algumas reflexões de temá-
ticas já tradicionais no campo da educação, tais como a formação de profes-
sores e professoras na perspectiva da pedagogia freiriana (Grupo de Estudos e
Pesquisas da Pedagogia Paulo Freire – GEPPF), que buscam compreender os
desafios da docência e sua formação em um contexto neoliberal de desvalori-
zação do papel do/a professora/a e de desvinculação da ação educativa de uma
intencionalidade política, numa perspectiva da pedagogia da competência e
da negação da educação como um direito.
Nessa direção, destacaram-se também os estudos sobre o papel das
imagens visuais e o discurso na ação educativa (Grupo de Estudos e Pes-
quisas Discurso e Imagem Visual em Educação GEPEDIVE/UFPB), tendo

152
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

como objetivo pensar a problemática da visualidade, com foco na educação


popular. Nesse percurso investigativo, evidenciam, a partir do pensamento
de Freire, o uso da imagem como linguagem metodológica para a formação
de uma consciência crítica.
Ampliando ainda mais os campos de investigação e ação a partir da
pedagogia freiriana, destacamos a experiência de pesquisa e extensão apre-
sentada pelo GEPeeS (Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação, Etnia
e Economia Solidária), com contribuições acerca de educação indígena e
economia solidária, as quais evidenciam novas problemáticas, territórios e
sujeitos, antes colocados à margem do debate da educação, e trazem para o
debate problemáticas contemporâneas.
Nessa direção, evidenciamos também a temática dos direitos humanos
com ênfase na dimensão educativa em e para os direitos humanos, que teve
um lugar importante no âmbito das diversas reflexões apresentadas e trouxe a
contribuição da Educação Popular freiriana como concepção que orienta essa
prática social e educativa.
Nessa dimensão dos direitos humanos, um aspecto destacado nos ciclos
de diálogos diz respeito ao direito humano à educação, e, portanto, uma ga-
rantia que só poderá ocorrer por meio de um sistema público e gratuito. Ou
seja, uma educação pública, popular e democrática, perspectiva presente no
pensamento freiriano.

a educação popular posta em prática, em termos


amplos, profundos e radicais numa sociedade de
classe, se constitui como um nadar contra a cor-
renteza é exatamente a que, substantivamente de-
mocrática, jamais separa do ensino dos conteúdos
o desvelamento da realidade. É a que estimula a
presença organizada das classes sociais populares
na luta em favor da transformação democrática da
sociedade, no sentido da superação das injustiças
sociais (FREIRE, 1995, p. 101).

Junta-se à temática dos direitos humanos a necessidade de pensá-los


também do ponto de vista crítico, trazendo a perspectiva da epistemológica
do Sul global e da descolonização. Isso pôde-se ver na experiência e na reflexão
trazidas pelo grupo RESISTA (Grupo de pesquisa Educação em Direitos Hu-
manos no Sul Global/UEPB), que apresenta a contribuição do pensamento

153
O Legado de Paulo Freire como Inspiração às Ações Educativas Escolares e não Escolares

de Freire em suas pesquisas e extensão: uma visão crítica que pensa os direitos
humanos num diálogo entre teoria e prática e a recusa da invisibilidade de
determinados sujeitos e sua não vivência enquanto sujeitos de direitos na vida
social cotidiana.
Em consonância com a pesquisa, é importante indicar também a ação
extensionista de caráter popular como um campo importante para reflexão e
apropriação do pensamento freiriano, como orientador para a ação educativa e
suas implicações para a produção do conhecimento que venha contribuir para
ampliação do alcance de sua obra em diferentes campos. Nesse sentido, des-
tacamos a ação do EXTELAR/UFPB (Grupo de Pesquisa em Extensão Popu-
lar), do OBS/UFBP (Observatório da Educação Popular), do GEPeeS/UFPB
(Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação, Etnia e Economia Solidária) e
do GESPAUF/UEPB (Grupo de Estudo Paulo Freire de Campina Grande).
Esses grupos de pesquisa também têm a extensão como um campo de ação
e reflexão, ou seja, a práxis na perspectiva freiriana, que os coloca no desafio
de ter como referência as categorias do pensamento de Freire em diferentes
territórios, sujeitos e temáticas.
No campo dos movimentos sociais, destacamos as experiências da RE-
SAB, uma rede de organizações da sociedade civil que desenvolve ações de
incidência política junto aos sistemas municipais de educação no sentido de
aliar sua proposta de educação ao projeto de Convivência com o semiárido,
proporcionando uma valorização das potencialidades existentes e a convivên-
cia com as características climáticas da região. Trata-se de uma proposta de
Educação Contextualizada que se apropria do pensamento freiriano como
matriz teórica da sua ação.
Nessa mesma perspectiva de atuação, no campo da educação não esco-
lar, destacamos também a ação educativa apresentada pelo SEDUP – Serviço
de Educação Popular, o qual apresentou atividades que se configuram, do
ponto de vista de suas referências, no campo da Educação Popular alinhada
ao pensamento de Freire. É uma experiência educativa que se realiza junto a
organizações populares e movimentos sociais, numa perspectiva de contribuir
para o fortalecimento dos sujeitos coletivos populares no âmbito do processo
de incidência política nas políticas públicas, com destaque para juventudes,
mulheres e agricultores e agricultoras.
Trata-se, portanto, de um conjunto de experiências nos campos de pes-
quisa, extensão e práticas educativas populares que carregam um potencial re-
flexivo e prático. Ou seja, expressa uma práxis que vislumbra a defesa e a reno-

154
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

vação do legado do pensamento freiriano como um referencial epistemológico


e político para pensar o papel da educação e um projeto viável de sociedade.

Considerações finais
As ideias de Paulo Freire continuam vivas. E precisam, visto que a sociedade
ainda carece de fundamentos e referências para a construção de um outro
mundo possível, com destaque para a dimensão democrática, com a qual pre-
cisamos cada vez mais nos preocupar, tendo em vista as tentativas de destruí-la
no contexto contemporâneo.
Nesse movimento de destruição da democracia e de possibilidade de
utopia, o pensamento de Paulo Freire tem se constituído um dos alvos por
representar um conjunto potente de ideais que dão sustentação a uma concep-
ção pedagógica que problematiza a realidade, favorecendo uma leitura crítica
do mundo. E é, a partir desse movimento de desvelamento da realidade, que
se podem vislumbrar processos sociais e políticos que possibilitem uma mu-
dança do modelo vigente de sociedade, que cada vez mais destrói a democracia
e a cidadania.
Portanto, celebrar o centenário de Paulo Freire não tem apenas o signi-
ficado da comemoração. Representa a construção de um movimento político,
educativo e de produção do conhecimento que lança mão de seu pensamento
para servir de referência e reinventá-lo em consonância com sua perspectiva
política e pedagógica, considerando a necessidade de resistência e (re)existên-
cia que emergem da realidade contemporânea.
A relevância e a atualidade do pensamento de Freire servem de ins-
piração para uma diversidade de experiências educativas, podendo ser evi-
denciado pelas reedições de suas obras e pelas práticas educativas em mo-
vimentos sociais, pesquisas e extensão. A realização da marcha do coletivo
paraibano da práxis freiriana se coloca nesse lugar com o objetivo de visibi-
lizar o seu pensamento e, ao mesmo tempo, contribuir para sua atualidade
e reinvenção, no sentido de fomentar práticas educativas emancipatórias e
fecundar novos pensamentos e projeto de sociedade.

155
O Legado de Paulo Freire como Inspiração às Ações Educativas Escolares e não Escolares

Referências bibliográficas
As Marchas – Paulo Freire – Trecho de sua última entrevista. [Entrevista concedida
à TV PUC – São Paulo]. Luciana Burlamaqui, entrevistadora. 1997. Dispo-
nível em: https://www.youtube.com/watch?v=MZQtP-7Ezbw. Acesso em: 17
de abril de 2022.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Educação Popular na escola cidadã. Petrópolis: Vozes,
2002.
FRIGOTTO Gaudêncio. Pedagogia do oprimido: o exílio de Paulo Freire em vida
e a busca de silenciar suas ideias após a sua morte. In: GOLDSCHMIDT;
BORGES (org.). Diálogo com Paulo Freire: para entender e mudar o mundo:
10 anos de um educador. Veranópolis: Diálogo Freiriano, 2022.
FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1979.
FREIRE, Paulo. Política e Educação. São Paulo: Cortez, 1995. (Coleção Questões da
Época, v. 23.)
SAUL, Ana Maria. A construção da escola pública, popular e democrática, na ges-
tão Paulo freire, no município de São Paulo. In: XVI ENDIPE – ENCON-
TRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICAS DE ENSINO. Campinas:
UNICAMP, 2012.

156
O Papel de Paulo Freire na Luta
Por uma Educação Libertadora:
uma Contribuição para a Emancipação dos Povos

Florentino Maria Lourenço


Adrielle Karolyne da Silva Lisboa

A educação problematizadora,
que não é fixismo reacionário,
é futuridade revolucionária.
Daí que seja profética e,
como tal, esperançosa.

Paulo Freire, 2014

Introdução
Este texto resulta de experiências vivenciadas e reflexões construídas a partir
de duas pesquisas que são atravessadas pelo pensamento de Paulo Freire e suas
implicações na educação, no Brasil e na África. Considerando a importância
do engajamento político-educacional de Paulo Freire na consolidação das in-
dependências dos países africanos e enquanto instrumento de sua emancipa-
ção, bem como a reverberação desta cultura no Brasil.
Desse modo, como um andarilho da esperança em busca de mudan-
ças na perspectiva educacional, Paulo Freire afeta e é afetado durante a sua
passagem pelos países africanos, esse encontro se dá justamente no período
pós-colonial, um período em que a educação e sobretudo a alfabetização eram
compreendidas como uma segunda libertação dos povos que foram negados

157
O papel de Paulo Freire na luta por uma educação libertadora

pela dominação colonial. Tratava-se de um momento em que à escola se exigia


uma pedagogia nova, opositora ao sistema educativo segregacionista colonial,
pois no contexto revolucionário se forjava uma pedagogia histórica-crítica que
se fundasse na educação pública de cariz interventiva e emancipadora.
Do ponto de vista das concepções filosóficas e pedagógicas, as pesquisas
em tela se fundamentam nos pressupostos da Educação Popular, aproximan-
do-se de uma concepção decolonial e antirracista (FREIRE, 2014), afirmando
a educação como um dispositivo de luta fundamental nas transformações das
desigualdades educacionais, principalmente quando pensada como prática de
liberdade (FREIRE, 2014). Em definitivo, assim como Paulo Freire, não des-
consideramos o poder transformador de uma educação dialógica como cami-
nho possível para a superação das situações limites, seja em países do continente
africano, seja no Brasil.

Uma proposta de descolonização: a pedagogia de Paulo Freire diante dos


desafios educacionais no continente africano
O primeiro contato de Paulo Freire com o povo africano não se deu em um
país que falasse a língua portuguesa como oficial, mas sim com a Zâmbia
e Tanzânia, países que o deixaram impressionado e o permitiram se (re)en-
contrar com a beleza natural que escrevia nos seus textos. Moçambique faz
fronteira a norte com Tanzânia e a noroeste com a Zâmbia, os seus povos
e governos carregam uma história de superação ao colonialismo, diversida-
de cultural e de uma cultura de irmandade. Freire, em função de suas ideias
emancipatórias, teve vários contatos com figuras políticas e estadistas da Ni-
géria, São Tomé e Príncipe, Tanzânia, Zâmbia, Guiné-Bissau, sobretudo com
Cabo Verde e Guiné-Bissau.
A professora moçambicana da Universidade Licungo, Brígida Singo
numa apresentação dirigida ao grupo de pesquisa Políticas Educacionais e Edu-
cação de Jovens e Adultos Trabalhadores (PPEJAT), em 2021, faz referência ao
fato de que Paulo Freire manteve um encontro fechado com Samora Machel
e visitou as experiências da educação de jovens e adultos nas zonas liberta-
das da FRELIMO na Tanzânia. Apesar de não se saber ao certo a temática
do encontro, vislumbra-se a influência da pedagogia libertadora, do oprimido
e do seu método espiral nas futuras políticas educativas de Samora Machel.
Freire sinaliza que no encontro com a guerrilha da FRELIMO na Tan-
zânia conversou sobre a necessidade de conduzir uma educação ao serviço da
libertação (FREIRE, 2014). Porém, foi na Guiné-Bissau onde Paulo Freire

158
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

desenvolveu o seu projeto de educação popular do povo que acabava de sair


da luta de libertação nacional desencadeada pelo Partido Africano para Inde-
pendência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), nessa época sob a liderança de
Amílcar Cabral.1 O pensamento de Paulo Freire sobre educação é expandido
em África majoritariamente pelos Partidos Africanos de orientação comunista
marxista-leninista que tinham como tarefa principal a associação do trabalho
operário, a educação e a equidade na distribuição dos ganhos nacionais.
A educação pensada por Freire em diálogo com os/as pensadores/as de
países africanos consistia na valorização das experiências e na necessidade de
aprendizagem mútua como sinaliza em carta enviada a Amílcar Cabral:

nada teremos a ensinar aí se não formos capazes


de aprender de e com vocês. Por isso mesmo é que
iremos à Guiné-Bissau como camaradas, como
militantes, curiosa e humildemente, e não como
uma missão de técnicos estrangeiros que se julgasse
possuidora da verdade e que levasse consigo um
relatório de sua visita (FREIRE, 2014 p. 86).

O projeto de educação freiriano alimenta o sentido de amizade, pro-


ximidade, valorização dos contextos locais, recusando a educação herdada do
regime separatista e segregacionista racial implantado pelo regime fascista co-
lonial português. Assim, aponta-se para a necessidade de construção de uma
nova sociedade capaz de partir da sua herança histórica para a adoção de um
modelo educacional não reprodutor.
A mesma concepção sobre educação é visível em Samora Machel2 ao de-
safiar todos os soldados, e o povo moçambicano precisava compreender que:

1 Amílcar Lopes Cabral nasceu em Bafatá, na Guiné-Bissau em 12 de setembro


de 1924, filho de uma família média, formou-se em agronomia. Depois do seu
retorno ao país na década 1950, participa da criação do Partido Africano para
Independência da Guiné e Cabo verde (PAIGC), que em 1963 inicia a luta de
libertação na Guiné-Bissau. Poeta, diplomata, revolucionário, teve contatos com
as Nações Unidas e revolucionários como Agostinho Neto, de Angola, Eduardo
Mondlane, Marcelino dos Santos, de Moçambique. Morreu assassinado a 20 de
janeiro de 1973 na Guiné-Conacri. Alguns investigadores indicam que a sua mor-
te é orquestrada por um grupo de guerrilheiros do seu partido que instaurava a
divisão dos dois povos Guiné e Cabo Verde.
2 Samora Machel nasceu em Chilembene, província localizada na região sul de Mo-
çambique, a 29 de setembro de 1933. Em 1963, movido pelo espírito patriótico,

159
O papel de Paulo Freire na luta por uma educação libertadora

a educação no contexto da luta em Moçambi-


que. Ela é uma das actividades mais fundamentais
(juntamente com a produção e o Combate) sem
a qual a nossa Revolução não pode avançar (...) a
educação na FRELIMO (...) tem uma natureza
completamente diversa da educação nos sistemas
tradicionais e colonial, visa objectivos e usa méto-
dos diferentes, é orientada pelos princípios revolu-
cionários que inspiram e fundamentam a criação
da Sociedade Nova (MACHEL, 1973).

Samora Machel apresentou a ideologia do Estado influenciada pelas


concepções revolucionárias de Karl Marx e Friedrich Engels, do socialismo
soviético, por isso propõe uma educação que se funda na luta de classes, na
promoção dos operários e que visa a criação do “homem novo”, aquele que
seria livre do analfabetismo e superstição, que vence a consciência de tribo
para formar a nação livre e soberana. Para tal, a educação precisa gerar mu-
danças através da prática educativa que se materializa por métodos modernos
que buscam romper com perspectivas cegas, vazias, neutras da cultura. Como
afirmava Samora Machel, precisamos apostar numa educação que interpreta,
lê e reconhece a nossa realidade e a missão revolucionária.
Todavia, não se trata de uma negação total das experiências do passa-
do colonial, nem de aceitação total do folclore, mas sim de um projeto polí-
tico educativo que procurasse encontrar um equilíbrio entre as formulações
políticas vigentes e aquela que seria a ideologia do Estado. Assim, a educação
popular forjada por Freire se consubstancia na valorização das experiências
históricas do povo, associadas às suas atividades produtivas que ajudassem

inspirado nas ideias da formação da República da China de 1949 e as independên-


cias na década de 1960, decide largar o exercício da enfermagem para se juntar a
FRELIMO em Tanzânia. Depois de ingressar na Frente de Libertação Nacional,
destaca-se pela sua forma de pensar e agir sobre a luta e formação do povo mo-
çambicano. Assume a liderança da FRELIMO em 1970, após a morte de Eduardo
Mondlane, em 1969, e expulsão de Uria Simango, em 1970, quando conduz a
guerra até a conquista e proclamação da independência nacional em 1975, tor-
nando-se o primeiro presidente de Moçambique independente, um líder de perso-
nalidade íntegra, inspirado no comunismo e socialismo, um homem que dedicou
a vida à causa do povo. Morre num acidente aéreo fatídico em Mbuzini, território
sul-africano, a 19 de outubro de 1986, quando voltava de mais uma missão de
pacificação dos países vizinhos.

160
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

a (re)transformar e construir um novo sistema de educação culturalmen-


te diversificado, por isso adverte que “o novo sistema educacional a surgir
não possa ser uma síntese feliz entre a herança da guerra de libertação e o
legado colonial, mas o aprofundamento melhorado e enriquecido daquela”
(FREIRE, 2014, p. 87)
Paulo Freire, assim como muitos líderes africanos, Amílcar Cabral,
Eduardo Mondlane, Samora Machel, percebia que a luta dos povos não
era contra o povo português, mas sim contra o colonialismo implementado
pelo regime fascista português, que se materializou pela separação de classes
e consequente submissão e escravização dos povos africanos e brasileiros. Es-
tes revolucionários não eram intelectuais “do gabinete ou escritório”, eram
seres que viviam as ideias teóricas e práticas, verdadeiros militantes e mo-
bilizadores de movimentos populares, desenhadores de políticas que visam
emancipar os povos.
Corroborando a afirmativa acima, Cabral assinala que:

A destruição do fascismo em Portugal deverá ser a


obra do povo português; a destruição do colonia-
lismo português deve ser a obra de nossos próprios
povos. Estamos conscientes das relações íntimas
entre o colonialismo e o fascismo português. Os
colonialistas e a exploração colonial estão, certa-
mente, na base do fascismo português e de seu for-
talecimento (1975, p. 96-97).

Neles, a educação não se esgota na transmissão de conhecimentos den-


tro do contexto de ensino nem na preparação técnica para a futura integração
no mercado de trabalho, ela transpõe a barreira e envolve a formação do ho-
mem, consciente das suas circunstâncias, do seu ser inacabado que está num
exercício constante de sua (auto)realização e formação. Ancoramos aos seus
pensamentos a aposta da cultura enquanto conjunto de valores, costumes que
caracterizam os modos de concepção e representação do mundo que precisam
ser reconhecidos e integrados no sistema de construção das novas nações.
A ideologia de pensar coletivo, planificar junto com as camadas ‘in-
feriores’ e derrubar os muros da opressão, recorrendo ao recorte histórico,
certamente aproxima Freire aos nacionalistas africanos. Outrossim, o acreditar
na educação popular como instrumento de (re)transformação social através de
uma pedagogia socialmente relevante.

161
O papel de Paulo Freire na luta por uma educação libertadora

Freire (1981, n.p.) refere que “estudar é também e sobretudo pensar a


prática e pensar a prática é a melhor maneira de pensar certo (...) quem estuda
não deve perder nenhuma oportunidade, em suas relações com os outros, com
a realidade, para assumir uma postura curiosa”.
A preocupação de Paulo Freire se centra na valorização, resgate, escuta
sensível, tolerância para com o outro. A tolerância no pensamento do edu-
cador brasileiro é assumida como exercício mútuo que permite a aceitação,
reconhecimento do outro enquanto ser diferente, mas não desigual. Pensa a
tolerância como um ato que se manifesta como “virtude da convivência hu-
mana (...), qualidade básica a ser forjada por nós e aprendida pela assunção
de sua significação ética – qualidade de conviver com o diferente, não como o
inferior” (FREIRE, 2005, p. 24).
Será este o contributo deste pensador junto das nações africanas: a im-
plantação de uma educação que emerge e aflora a diversidade como caminho
de construção das futuras nações que viviam a epopeia das suas independên-
cias. Os seus trabalhos na Guiné, Cabo Verde e em outras nações com que (in)
diretamente trabalhou exercem uma influência na política educacional popu-
lar, sobretudo visando a inclusão do negro na esfera global do mundo.
A sua concepção da educação como um processo constante cuja tarefa
é a realização individual e coletiva dos homens propõe um sistema escolar
mais diversificado e tolerante à diversidade cultural. Freire aponta que Angola
e Moçambique têm uma situação dramática, porque não criaram, não houve
condições históricas e sociais para criar uma língua como o crioulo, “(...) o
que temos em Angola e Moçambique são as línguas nacionais etnos culturais,
dos diferentes grupos (...)”. Politicamente não pode o MPLA3 nem a FRELI-
MO4, por exemplo, chegarem ao povo de Angola e Moçambique e decretarem
que uma daquelas línguas seria a língua nacional. Fazer isso seria um desastre
(FREIRE, 1985, p. 18)
Este cenário conduziu o país a adotar a língua do colonizador como
oficial e, consequentemente, nacional, cuja tarefa se mostrava complexa e im-
possível: formar novos cidadãos com domínio da língua portuguesa. Apesar
de Moçambique ter conquistado a independência na revolução de 1975, a

3 Movimento Popular de Libertação de Angola dirigido por António Agostinho Neto,


escritor, poeta, médico e político renomado em Angola. A história sinaliza que o MPLA
tem um processo longo de formação que parte de 1956 e se conclui em 1960.
4 Frente de Libertação de Moçambique, fundado e dirigido por Eduardo Mondlane,
diplomata e funcionário das Nações Unidas em 1962.

162
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

questão da língua portuguesa e unidade nacional parecia ser de difícil decisão


entre os jovens revolucionários moçambicanos porque não se tinha/tem de-
senvolvido uma língua crioula que fosse falada em todo país e por todos.
A questão da diversidade e língua sempre ganhou um espaço de desta-
que nos debates de Freire. A título exemplificativo, a abordagem sobre a Tan-
zânia, outro país africano, para sinalizar o sentido cultural de Nyerere,5que
decidiu escalonar o ensino da língua inglesa com o suaíle (língua também ofi-
cial da Tanzânia). Era considerado como um dos grandes pedagogos do século
XX do mundo, pois entendia a língua como elemento central para a afirmação
da liberdade, educação e cultura.

A luta dos movimentos sociais pelo direito à educação no Brasil e os


ensinamentos de Paulo Freire
As últimas décadas do século XXI nos trazem perspectivas que fortalecem a
necessidade de tornar viva a reflexão e crítica da educação, mais do que isso,
o tempo com que nos deparamos é revestido de transformações que exigem
novos caminhos e descaminhos da Educação Popular e dos movimentos so-
ciais no Brasil e África. Assim, torna-se pertinente reconstruir o pensamento
freiriano não na perspectiva de assumirmos de maneira passiva os posiciona-
mentos binários e contrários no campo da educação, mas como tentativa de
traçar reflexões que possam possibilitar a compreensão da situação dramática
em que se encontra a educação do povo no Brasil e Moçambique.
Em suas obras, Paulo Freire denuncia explicitamente a desumanização
dos “esfarrapados do mundo”, ao mesmo tempo que nos aquece de esperan-
ça, trazendo propostas para uma educação com base na conscientização dos
oprimidos e, posteriormente, a sua liberdade, compreendendo o/a educador/a
e educando/a em sua incompletude, como sujeitos que se encontram em per-
manente processo de serem mais. Com o avanço do conservadorismo, as obras
do patrono da Educação brasileira são atualizadas, trazendo-nos perspectivas
outras para pensarmos uma educação possível para as classes populares.

5 Julius Kambarage Nyerere nasceu em Tanganyika, a 13 de abril de 1922 É o primeiro


tanzaniano a concluir uma universidade britânica e um dos primeiros a ter um grau
universitário fora do continente africano. A sua vida política inicia em 1954 ao parti-
cipar na fundação do partido Tanganyika African National Union (TANU), principal
movimento político que conduz o país à independência nacional, em 1962. Torna-se
presidente da República Unida da Tanzânia de 1964 a 1985. Professor, escritor e polí-
tico, morreu em Londres, 14 de outubro de 1999.

163
O papel de Paulo Freire na luta por uma educação libertadora

Entretanto, historicamente, a sociedade brasileira refuta em admitir e


reconhecer os esfarrapados, que neste caso são os indígenas, a população negra,
camponeses, pobres, favelados, como sujeitos de direito. Através das práticas
desenvolvidas na educação que Freire nos ensina, o sujeito reconhece seu lugar
social como oprimido e passa a perceber a necessidade do seu engajamento nas
lutas junto aos movimentos sociais, para tomar posse da sua condição negada
de sujeito histórico de direito. Afinal, uma educação libertadora produz uma
sociedade em processo de libertação (ARROYO, 2012).
Enfatizamos a Educação Popular compreendida como uma concepção
de educação que busca articular os diferentes saberes e práticas das classes
populares em diálogo com as próprias classes populares, partindo da vivência
dos estudantes em suas trajetórias de vida. Com a intenção de romper com
círculos hierarquizados da ordem social, propõe uma educação dialógica na
qual os indivíduos possam se reconhecer como sujeitos, que além de deveres,
têm direitos e que, infelizmente, precisam lutar diariamente por eles, cientes
da sua posição histórica e social de oprimido (LISBOA, 2017). Esses sujeitos
constantemente em luta buscam ser autores da sua própria história, para assim
modificá-la e reconstruí-la.
No Brasil, os movimentos de educação popular nascem no final dos
anos 1950, articulados aos movimentos sociais da época. Considerados como
coletivos formados por diferentes grupos sociais, e tendo como pano de fundo
a concepção da solidariedade como um fundamento político e pedagógico
entre iguais, marcam a sua posição contrária à caridade, que são ações para os
outros, numa concepção assistencial, inúmeras vezes despolitizada. A partir
de lutas pelos seus direitos fundamentais, os grupo se articulam de acordo
com as demandas e necessidades sociais, em escala local ou mais ampla. Mui-
tos desses movimentos surgiram em bairros das periferias urbanas e em áreas
rurais, difundindo-se por todo o país, fortalecendo-se na junção com outros
movimentos sociais mais organizados.
Cada movimento tem seus objetivos específicos e seus “repertórios de
ação”, que são as formas que esses movimentos se organizam para reivindicar
e exigir suas demandas. Eles ocorrem através de protestos, greves, ocupações,
passeatas, que são os repertórios de ação mais comuns, embora os movimentos
sociais procurem sempre explorar a criatividade de seus militantes no desen-
volvimento de suas lutas (LISBOA, 2017).
É importante salientar que a ditadura militar brasileira arruinou o
modelo de educação que estava sendo pensado e executado por pensado-

164
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

res libertários, entre os quais Paulo Freire (1999), que visava uma educa-
ção como prática de liberdade e tinha como objetivo a erradicação do anal-
fabetismo, a democratização da escola e a conscientização política do povo
brasileiro (TAVARES, 2017).
O ressurgimento dos movimentos sociais se deu no Brasil logo após a
ditadura militar, período em que ocorreu censura de imprensa, exílio, baixa re-
presentação política e sindical, ausência e retração dos direitos sociais. Diante
desse contexto histórico, houve inúmeras reivindicações por direitos sociais e
liberdade de expressão. A partir desse marco, os movimentos sociais passaram
a se organizar com lutas específicas, como o movimento negro, movimento
feminista, movimentos de mulheres negras, de estudantes e professores(a) pelo
direito à educação de qualidade, de creches, movimentos de jovens e cultura
hip hop, entre outros (LISBOA, 2017).
Portanto, há muito tempo, décadas, a população marginalizada luta co-
letivamente por seus direitos, a fim de ter sua humanidade reconhecida. Toda-
via, a história dos indígenas e dos povos sequestrados no continente africano
e escravizados no Brasil fornece pistas que nos levam a compreender que esses
povos sempre criaram suas táticas de sobrevivência em meio à desumanização.
Entretanto, em uma perspectiva esperançosa, Arroyo (2012) aponta
para transformações relativas à concepção de direitos à educação, além de
enfatizar uma reviravolta no perfil dos coletivos que ingressam nas escolas,
universidades e recusam a posição de destinatários agradecidos, afirmando-
se como sujeitos de direito, compreendendo política e pedagogicamente o
seu direito à educação. O autor acredita que essa consciência de direito seja
um avanço político trazido pelos movimentos sociais, obrigando as políticas
educativas a saírem da lógica verticalizada, movendo-nos a repensar nossas
identidades docentes e discentes, bem como os currículos de educação bási-
ca e de formação (ARROYO, 2012).
A sistematização que fizemos sobre os contributos de Freire, ainda que
repletos de pensamentos inacabados, e de aspectos ainda por serem pesqui-
sados, pode potencializar espaços para o aprofundamento de uma reflexão
crítica e reelaboração de pedagogias descolonizadoras baseadas na diversidade
cultural dos povos brasileiros e africanos. Reiteramos a importância de revisi-
tarmos as experiências de Paulo Freire nas lutas decoloniais africanas, enten-
dendo que a luta contra a subalternização e opressão deve ser atualizada à luz
de seu tempo histórico, mas que a história e a memória das lutas do passado
podem nos fortalecer contra o perigo de adotarmos uma história única, ou

165
O papel de Paulo Freire na luta por uma educação libertadora

o fim da história, assumindo a ideologia da classe dominante como a nossa


concepção de mundo e concepção bancária de educação como fundamento de
organização de uma escola para o povo (FREIRE, 2005).
Em contrapartida, defendemos, ainda que de forma tímida, o papel
fundamental dos escritos de Paulo Freire nos movimentos de libertação africa-
na, bem como a importância de uma pedagogia da esperança (FREIRE, 2002)
nas lutas dos movimentos sociais brasileiros pela afirmação de seu direito à
vida, à justiça social e à educação no país.

Considerações finais, ainda que provisórias


Na última década, Moçambique tem registado fenômenos que transformam
a sua configuração política e social. A morte do maior líder da oposição em
2015, que pelo seu carisma promovia espaços para diálogo aberto, os ata-
ques na região central do país, protagonizados pela junta militar em 2019,
trata-se de uma guerrilha dos antigos guerrilheiros da Renamo que contes-
tavam a nova liderança e o processo de desmilitarização, desmobilização e
reintegração em vigor no país.
Do ponto de vista da segurança interna e externa do país, chamam a
atenção os ataques terroristas na região norte do país desde 2017, caracteri-
zando ataques de grupos armados com características terroristas, alguns deles
reclamados pelo Estado Islâmico. Do ponto de vista econômico-político, a
descoberta e consequente julgamento do maior escândalo financeiro do país,
conhecido como dívidas ocultas ou não declaradas, a decomposição ou des-
truição dos partidos da oposição têm diminuído as possibilidades de Moçam-
bique ampliar a sua cultura democrática, promovendo a participação popular
na vida societária de forma mais abrangente e ampla, uma vez que reina um
espaço de medo instalado e policiamento dos campos de debate.
Assim, contemporaneamente, na conjuntura brevemente acima descri-
ta, a educação em Moçambique é desafiada a responder às exigências sociais, a
romper com as estruturas da ideologia colonial por via de práticas pedagógicas
libertadoras, por isso o pensamento de Paulo Freire se mostra atual quando
nos ensina que para a transformação não bastará uma mera substituição das
práticas velhas pelos programas novos, mas pela ligação coerente entre a socie-
dade em construção e a revolução. Devendo os Estados recorrem ao método
espiral enquanto ferramenta de resgate da valorização das experiências e da
cultura dos alunos para que a educação seja focada no pensar do coletivo.

166
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Num contexto em que a escola se encontra indignada, precarizada e


manipulada pelo capitalismo selvagem crescente (re)ler Freire e os naciona-
listas africanos Amilcar Cabral e Samora Machel configura-se como o com-
promisso oportuno e, sobretudo, um exercício intelectual valioso para nós
enquanto professores/as negros/as e pesquisadores militantes. Retomar a espe-
rança e a tolerância enquanto ferramentas de luta implica, para professores e
professoras que acreditam no triunfo da educação popular e pública, praticar
uma pedagogia da esperança (FREIRE, 2002), resistir à barbárie, mergulha-
dos no ‘chão da escola’, criando inéditos viáveis que fortaleçam uma educação
como prática de liberdade, dialógica e preocupada com o fortalecimento da
democracia entre os diferentes sujeitos da escola.
Reler estes pensadores envolve um (re)pensar e olhar crítico sobre
a escola, não só bancária, mas também aquela que exclui a maior parte da
camada social. Este exercício significa reinventar as experiências de Paulo
Freire na alfabetização e educação de adultos a partir do Brasil, depois Chile
e Guiné Bissau.
Assim como no Brasil, a influência do Paulo Freire na educação e cons-
trução de políticas educativas direcionadas às massas populares em África é
inquestionável. Em Moçambique suas reflexões sobre a constituição multi(in-
ter)cultural sobre o país e a diversidade linguística ajudam a compreender a
relação intrínseca entre a educação e a liberdade. Teria, assim, a obra de Freire
contribuído para o surgimento dos movimentos que lutavam pela educação
popular focada na emancipação cultural e transformação da realidade.
Para finalizar o artigo, afirmamos que o sentido de educação em Paulo
Freire, Amilcar Cabral e Samora Machel gerado nos tempos de guerra e dra-
mas ainda nos é desafiador e revolucionário, carregado de certa utopia que
influencia as políticas de educação nos países africanos de língua portuguesa.
E por isso estes pensadores ainda se mostram tão atuais e pertinentes na teori-
zação educacional e política. Entendemos que a contemporaneidade das obras
e dos legados ideológicos, políticos e epistêmicos de Freire, Cabral e Machel,
por se basearem no diálogo constante e na interculturalidade, além do respeito
político e cultural aos povos locais, torna-se ferramenta de luta e compreensão
do lugar geopolítico e cultural de países que a partir de processos revolucioná-
rios, ousaram construir uma concepção de sociedade livre, tendo a democracia
e a cultura como palco, no qual se celebra o eu, tu e nós.

167
O papel de Paulo Freire na luta por uma educação libertadora

Referências bibliográficas
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S. (org.). Educação Popular, movimentos sociais e formação de professores: outras
questões, outros diálogos. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012. Cap. Parte 1, p.
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Amilcar Cabral. Lisboa: Distribuidora Livraria Ler, 1975.
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FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
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LISBOA, A. K. D. S. O Pré-vestibular popular Pedro Pomar: uma trajetória de lu-
tas pelo direito à educação de jovens das classes populares. 2017. Monografia
(Graduação em Pedagogia) – Faculdade de Formação de Professores, Univer-
sidade do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo, 2017.
MACHEL, Samora. Educar o homem para vencer a guerra, criar uma sociedade nova e
desenvolver a pátria. Maputo: Centro dos Estudos Africanos, 1973.
TAVARES, M. T. G. Movimentos sociais e a formação política de mulheres na luta
por creches: a experiência do “Artcreche” em São Gonçalo. Revista Zero-a-seis,
Florianópolis, v. 19, p. 272-282, jul./dez. 2017.
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Amilcar Cabral: O pedagogo da Revolução e
Paulo Freire. Universidade de Brasília, 2008. Palestra organizada no curso de
Mestrado da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília em 1985.

168
Jovens em Situação de
Acolhimento Institucional:
Tematizando com Paulo Freire

Vanessa Aguiar Cruz


Valéria Oliveira de Vasconcelos

Introdução
Na história da humanidade, entre suspeitas e animosidades a grupos, tribos,
raças e religiões, a contraposição entre bem e mal, certo e errado, justo e injus-
to, entre outras, usualmente serviu para que ideologias hegemônicas exerces-
sem sua dominação sobre aqueles a quem queriam explorar e dominar. Essa
dicotomia impediu e impede que a realidade seja vista em sua totalidade e
seja compreendida de maneira sectária, numa lógica em que são os criminosos
que deixam as pessoas inseguras, os forasteiros que trazem o crime, os filhos
do presídio e de lares desestruturados que destroem a paz e a ordem. E baseado
neste discurso surgem os/as que farão com que a lei se cumpra, tanto no morro
como no asfalto.
Entretanto, em geral são os/as forasteiros/as que fazem o trabalho duro
das grandes cidades. Na Europa, a política de controle da migração vem cul-
pabilizando os imigrantes por sua condição, principalmente os africanos e do
Leste Europeu. Nos Estados Unidos, qualquer semelhança ao nariz adunco, à
pele pouco clara, aos latinos, aos muçulmanos, entre outros, leva o indivíduo
ao mundo despótico da intolerância. E tanto lá como aqui são as elites domi-
nantes que representam o “bem”, o “certo”, o “justo”.
Dentre os/as outsiders (BAUMAN, 2011), os/as marginais, os/as excluí-
dos/as, estão jovens em conflitos com a lei e institucionalizados/as, que são re-
classificados/as diante da pobreza. A eles/as se aplica a lei de forma austera e bru-

169
Jovens em Situação de Acolhimento Institucional

ta, pois a eles/as são imputados atos criminais e a delinquência. A pobreza passa
a ser criminalizada e, portanto, não existem direitos aos que façam parte dela.
Os/as jovens e crianças que andam pelas ruas já não são invisíveis – ou
seres que caminham sem rumo, noite e dia, em busca de mais uma pedra de
crack –, mas sujeitos sob suspeição que enfeiam as cidades. A eles/as os direitos
não são assegurados e se criam políticas públicas eleitoreiras e passageiras de
forma a retirar a cor cinza dos espaços e territórios.
Mannheim e Stewart (1977) afirmam que as gerações novas ou a ju-
ventude são agentes sociais revitalizadores, pois não estão ainda envolvidos no
status quo da ordem civilizatória e refletem o caos dominante na sociedade. A
juventude faz parte de um recurso latente em qualquer tipo de sociedade cuja
dinâmica depende de sua vitalidade, ou seja, poderá tornar reais os desejos
que os/as idosos/as professam em teoria. Para os autores, “ser jovem”, dentro
do olhar sociológico, é ser marginal e, em muitos aspectos, um/a estranho/a.
Neste trabalho utilizamos o conceito de juventude não só como a tran-
sição entre a infância e a vida adulta, pois no Brasil muitos entram na juven-
tude precocemente por não terem vivido a infância. Não pretendemos homo-
geneizar a categoria juventude, pois ela está atrelada às classes sociais e à forma
como a sociedade enfrenta seus problemas e culpabiliza os que ameaçam a
ordem social (KUSTRIN, 2007).
Consideramos que para entender a juventude e conceituá-la temos que,
necessariamente, passar pelo contexto social em que esse grupo se insere. De-
vemos ter clareza de que um/a jovem urbano/a de classe média ou média alta
difere totalmente do/a jovem da periferia (urbana e social). Que um/a jovem
negro/a sofre diferentes preconceitos, pois é a condição de como vive que defi-
nirá as características da sua juventude, daí a necessidade de focar no referente
demográfico e social. E, consequentemente, uma criança que é encaminhada a
um serviço de acolhimento institucional e passa boa parte da vida neste lugar é
totalmente diferente de uma criança que cresce junto à sua família.
O conceito de juventude envolve não só o local em que o indivíduo
mora, seu espaço demográfico, mas também seu capital cultural e econômico,
o que leva muitos/as a formarem subculturas à medida que são marginaliza-
dos/as. A questão da marginalidade, da exclusão, acaba por definir os gru-
pos pela condição social, ou seja, por políticas públicas que não sabem como
enfrentar as diversas consequências que a própria sociedade desigual produz
(ABRAMOVAY; CASTRO, 2006). Ainda que esta mesma sociedade queira
homogeneizá-los/as, o que podemos observar são as diversas realidades hetero-

170
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

gêneas nas quais se encontra a juventude. O que resulta em políticas públicas


já obsoletas mesmo antes de serem postas em prática.
Os/a participantes da investigação da qual resulta este artigo foram jo-
vens em situação de acolhimento institucional, o que significa que são con-
siderados/a “em condições de vulnerabilidade social”. No Brasil, segundo a
Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais (BRASIL, 2006, p. 7),
as noções de risco estão correlacionadas e são: “decorrentes da pobreza, do
precário ou nulo acesso aos serviços públicos, da fragilização de vínculos de
pertencimento e sociabilidade”. Os sujeitos participantes de nossa pesquisa
pertencem (ou são rotulados como tal) a uma população de baixa renda, me-
nos favorecida, transgressora da lei, marginalizada, excluída, em sua maioria
negra e moradora das periferias.
O estado de vulnerabilidade social correlacionado à infância e à velhice
(HAGGERTY et al., 2000), ou ao estado de pobreza extrema, tem implícita,
em algumas abordagens, a ideia de vulnerabilidade e risco como determinante
para descrição humana da população pobre: incapaz, frágil e sem perspectiva.
Dentre os estudiosos que discutem estes conceitos, defendendo a dife-
rença entre vulnerabilidade e risco, Yunes e Szymanski (2001, p. 28) abrem
a perspectiva de que, embora existam diferenças, há relação entre ambos: “a
vulnerabilidade opera apenas quando o risco está presente, sem risco, a vulne-
rabilidade não tem efeitos.”
Pensar a educação do sujeito exposto a situações de vulnerabilidade
e risco seria favorecer e disponibilizar vias possíveis de acesso à própria au-
tonomia, característica intrínseca da educação, escolar ou não, que embora
envolvida em muitos embates conceituais, parece ser uma forma potente de
permitir que crianças e jovens possam tecer seu cotidiano, apoiados/as por
todas as estruturas sociais que estimulem seu desenvolvimento.
O estado de vulnerabilidade social não se desenvolve de modo isolado,
mas como consequência de uma realidade social que desintegra e nega com
meios concretos a possibilidade de “Ser Mais” (FREIRE, 1983) desses sujei-
tos, crianças/jovens, e isso se concretiza a partir do risco a que estão expostos.
Como veremos mais adiante, no Brasil é muito difícil romper com
a estrutura político/social, que se organiza de forma ideológica, que cria
nichos excludentes da infância e juventude nas escolas, nas ruas, nos es-
paços públicos de acordo com um determinado “padrão social”. Esse fato
contribui para um determinismo de relações que desintegram o convívio
social e comunitário.

171
Jovens em Situação de Acolhimento Institucional

Ainda que a política brasileira de garantia de direitos tenha como ob-


jetivo a proteção integral da infância e juventude, muitas vezes esses direitos
são desrespeitados, principalmente quando atrelados a condições econômicas
e sociais desiguais. As crianças e os/as jovens submetidos/as ao trabalho infan-
til, expostos/as ao uso de substâncias psicoativas, explorados/as sexualmente,
envolvidos/as com algum tipo de delito são, em geral, penalizados/as por sua
situação de vulnerabilidade e a maneira de intervenção e encaminhamento do
Estado brasileiro se concretiza nos espaços de controle, como forma de “prote-
ção”. Perguntamo-nos: proteção de quem, de quê, contra quem, contra o quê?
Os espaços de acolhimento são controlados a todo instante e esse con-
trole funciona segundo as Instituições Totais bem descritas por Goffman
(1961), ou seja, todos/as que ali estão presentes são vistos/as o tempo todo.
Essas instituições têm ocupado, no Brasil, lacunas sociais que se iniciam pela
alienação parental, passam pelo rompimento e apagamento da própria história
das crianças e jovens e por um domínio das informações sobre o projeto de
trabalho a ser dirigido ao/à jovem interno/a sem sua participação ou consen-
timento. Consideramos que escutar as vozes de jovens institucionalizados/as,
desde uma perspectiva freiriana, pode contribuir para transformar a realidade
opressora em que se encontram.

Tematizando a realidade
Para atender aos objetivos propostos pela pesquisa de que emerge este texto,
optamos, em coerência com o pensamento de Paulo Freire em ação, por or-
ganizar as falas dos participantes a partir de Temas Geradores. Como afirma
Freire (1983, p. 50), o que nos interessava investigar não eram os/as jovens
em si, como se fossem “peças anatômicas, mas o seu pensamento-linguagem
referido à realidade, os níveis de sua percepção desta realidade, a sua visão do
mundo, em que se encontram envolvidos seus ‘temas geradores’”.
Os temas geradores que levantamos representaram uma escolha teóri-
ca, um recorte, não significando que eles se encerrem em si. Buscamos nesse
caminho realizar uma reflexão crítica sobre as relações desses/as jovens com o
mundo e entre eles/as mesmos/as.
De acordo com Freire (1983, p. 53), “os temas se encontram, em últi-
ma análise, de um lado, envolvidos, de outro, envolvendo as ‘situações-limite’
(...) que se apresentam aos homens e mulheres como se fossem determinantes
históricas, esmagadoras, em face das quais não lhes cabe outra alternativa,
senão adaptar-se”. Comecemos a discussão de cada um deles.

172
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Eu era muito danado


O motivo do encaminhamento para o acolhimento institucional é,
muitas vezes, algo obscuro para crianças e jovens nessa situação, um tema não
resolvido, levando-os/as, comumente, a se culpar e a assumir a responsabili-
dade por tal medida.
A política de proteção integral do serviço de Acolhimento Institucio-
nal, contida no Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990), busca
diferenciar-se daquela existente em outros momentos da história do país,
em que crianças e jovens viviam grande parte de suas vidas em instituições,
que eram nomeadas, segundo Goffman (1961, p. 11), de instituições totais,
que o autor define “como um local de residência e trabalho onde um gran-
de número de indivíduos em situação semelhante, separados da sociedade
mais ampla por considerável período de tempo; levam uma vida fechada e
formalmente administrada”.
Em teoria, o formato de instituição total deveria ter sido substituído,
uma vez que na transição histórica da legislação anterior já estava posta uma
mudança conceitual que deveria: “assegurar os direitos básicos à vida, à saúde,
à educação e à convivência familiar e comunitária, buscando propiciar à in-
fância e juventude o acesso a direitos que favoreçam o desenvolvimento físico,
mental, moral, espiritual e social” (BRASIL, 1990).
O termo acolhimento institucional foi adotado com vistas a oferecer
programas de abrigo e atender a crianças e jovens que tiveram seus direitos
violados ou vínculos familiares rompidos e que, em razão disso, necessita-
vam ser temporariamente afastados da convivência familiar. Representaria,
portanto, um espaço de proteção integral, uma residência provisória, na qual
as crianças permaneceriam até o retorno ao seu lar de origem ou, em caso de
impossibilidade, até serem colocadas em família substituta.
Nesse sentido, as ações envolvidas no acolhimento institucional teriam
como meta manter “os elos essenciais para o pleno desenvolvimento da crian-
ça, por meio da convivência familiar e comunitária, bem como a responsabi-
lidade primordial dos pais no cuidado dos filhos, cabendo ao Estado prover
apoio quando necessário” (RIZZINI; RIZZINI, 2004, p. 14).
A controvérsia se mostra na fala de um dos jovens participantes da
pesquisa, quando perguntado sobre qual sua idade ao ser institucionalizado e
os motivos para isso:

173
Jovens em Situação de Acolhimento Institucional

Nossa tia, 07 anos! Morava com a minha avó, minha


mãe se perdeu nas drogas e matou meu pai, eu era
muito danado, faltava da escola, escondia os remédios
da minha avó, ela não me aguentava. Me levou no
conselho tutelar e eles me levaram para o abrigo. Eu
fiquei triste, mas pensei: agora já foi. D2.

Quando D2 afirma que era muito danado, em parte assume a responsa-


bilidade por sua condição atual: “agora já foi!”. O abrigo, em vez de ser espaço
de proteção, significa para o jovem lugar de punição!
A infância e a juventude brasileira – pobre, negra, moradora das peri-
ferias – estão cercadas pela violência estrutural, entendida como a violência
do comportamento, e se aplica tanto às estruturas organizadas e instituciona-
lizadas pela família, quanto aos sistemas econômicos, culturais e políticos que
conduzem à opressão de determinadas pessoas, às quais se nega o direito hu-
mano de serem sujeitos, tornando-as, por isso, mais vulneráveis ao sofrimento
e à morte. Tal violência vem se perpetuando ao longo das décadas e não se tem
perspectivas de mudança, dada a ineficiência das políticas públicas existentes
no país (MACHADO, 2011).
Para Gontijo e Medeiros (2004), no Brasil, há de se enfatizar um nú-
mero grande de crianças e jovens em diferentes situações de risco, uma vez que
a desigualdade social, política e econômica tem intervenção direta na dinâmi-
ca pessoal e familiar.
Como ilustra a fala de M.:

Eu precisava parar de usar droga. Até que foi bom


pra mim, por uma parte, ter ido para o abrigo, in-
teragir com as pessoas, por mais que elas também
usassem droga, consegui me libertar, faz dois anos
que eu não fumo, que não uso droga nenhuma e me
sinto bem. Depois eu engravidei do meu filho, logo
depois que eu tinha parado com tudo. Esse primeiro
abrigo foi legal também, uma passagem rápida que
me ajudou bastante. Quando engravidei fui para
outro abrigo de jovens grávidas e por uma parte foi
bom, depois que ganhei meu filho me ajudaram a
pagar minha casa.

174
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Novamente o motivo para a institucionalização é singularizado. Ela


usava drogas e precisava parar! Por conta disso, é separada da família... E isso,
em sua fala “até que foi bom”! A jovem não consegue identificar o processo de
institucionalização pautado na vulnerabilidade como fruto da exclusão social.
Como afirmam Rizzini e Rizzini (2004, p. 78): “(...) a situação de pobreza
continua levando às instituições crianças que não precisariam ser afastadas de
suas famílias e comunidades”, uma realidade condicionante para as famílias
que não se encaixam nos valores hegemônicos que valorizam as pessoas con-
forme seu status social e econômico.
O motivo do acolhimento, segundo essas falas e o que nos mostram
nossas experiências empíricas, está centrado nas próprias crianças e adoles-
centes, ou em sua condição de pobreza e miséria. E esses/as jovens assumem
como sua a “culpa” pela situação que vivem, acabando por “hospedar” em si a
ideologia do opressor, o que, de certa forma, os/as mantêm em sua condição:

Sem crerem em si mesmos, destruídas, desespe-


rançadas [os/as jovens] dificilmente, buscam a sua
libertação, em cujo ato de rebeldia podem ver, in-
clusive, uma ruptura desobediente com a vontade
de Deus – uma espécie de enfrentamento indevido
com o destino. Daí, a necessidade, que tanto enfa-
tizamos, de problematizá-las em torno dos mitos
de que a opressão as nutre (FREIRE, 1983, p. 93).

Nessa perspectiva reside a importância do pensamento de Freire no


sentido de contribuir para problematizar a opressão de que esses/as jovens são
vítimas, auxiliando-os/as e aos/às gestores/as responsáveis pelas instituições
em que se encontram a localizar o opressor fora delas, aceitando a luta para
superar a contradição em que estão inseridos/as (FREIRE, 1983).

Você não é ninguém


O estigma que a infância e a juventude institucionalizada carregam os/
as revitimiza frente à sociedade. Sua dor, seus desejos, seus sonhos de modo
geral não são reconhecidos. São marcados/as pela condição social e, sobretu-
do, pela condição de abandono que os/as leva ao acolhimento institucional.
Para Goffman (1988), a pessoa que tem características que fujam ao
modelo tido como padrão de normalidade carrega essa marca consigo, sen-

175
Jovens em Situação de Acolhimento Institucional

do geralmente considerada inferior e sofrendo formas de estigmatização.


Segundo o autor, o estigma é motivo de exclusão social, ou seja, pessoas
estigmatizadas sofrem preconceitos por parte da sociedade que vivem. No
presente caso, o fato de serem institucionalizadas as marca definitivamente
como “aquelas do abrigo”.
Nesse sentido, Arpini e Quintana (2003) propõem repensar na dire-
ção de superação dos estigmas que acompanham a percepção das institui-
ções como lugar do “fracasso”, permitindo que as mesmas sejam vistas – e
concretamente funcionem – como um espaço de possibilidades, de acolhi-
mento, de afeto e proteção.
Essa superação, tanto da concepção que se tem das instituições, como
das práticas que as conformam atualmente, contribui para suplantar uma
“ordem” injusta que historicamente sustenta a postura de desumanização do
sujeito, que rouba sua vocação de “Ser Mais” (FREIRE, 1983). Como alerta
um dos participantes:

Eu entendo porque estou aqui, mas não estou feliz,


sabe tia, eu era bem pobre, ia para a escola todos os
dias, chegava e ia ajudar minha mãe a recolher pape-
lão. Uma vez um velho passou e disse: “vou denunciar
a senhora que está colocando o filho para trabalhar”,
mas eu não fazia porque ela mandava, eu gostava de
ajudar mesmo. Eu respondi para o homem, perguntei
porque ele estava incomodado e que eu achava melhor
estar lá do que roubando. W.

A problemática do trabalho infantil deve ser estudada com mais pro-


fundidade, uma vez que as condições desse trabalho devem ser analisadas a
partir do risco que representam. Muitas vezes as crianças são destituídas do
poder familiar pelo fato de auxiliarem em casa e, em consequência, são institu-
cionalizadas, segregadas e penalizadas por sua condição de pobreza. Para Ber-
nstein (1997, p. 3), a teoria da probabilidade é “núcleo matemático do con-
ceito de risco”. E o estigma está relacionado a essa noção do risco que perpassa
na forma de relacionar-se com o tempo e com o espaço, num determinismo
do futuro, encarcerando-o na privação. Uma realidade social que vulnerabili-
za, cerceia e investe numa perspectiva de responsabilização do sujeito sobre a
própria realidade. Como demonstra a fala abaixo:

176
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Tia eu tinha prometido para mim mesmo que meu


filho não iria viver dentro de abrigo, ele está acolhido
há um ano e nove meses. Pensa, eu estou descumprin-
do minha própria palavra! D2.

Como D2, seu filho também paga a pena de ser pobre, marginalizado,
excluído, destituído da família. E D2 se sente responsável por “descumprir
sua palavra”. O que opera aqui é a marca de uma lógica probabilística: quan-
to maiores forem os fatores de risco, maior a vulnerabilidade da população,
fazendo-se necessária a intervenção sobre o perigo, tornando-a passível de pre-
visão e controle.
A marca do estigma leva os/as jovens a um fatalismo em sua vida, como
poder do destino, segundo Freire (1983), fruto de uma situação histórica e
sociológica. Essa situação não é resultado de escolhas feitas pelos sujeitos, de
caminhos trilhados de forma equivocada, mas sim está impregnada de uma
ideologia em que a pobreza é marginalizada, colonizada e estigmatizada, numa
equação exata:

Uma vez ouvi no segundo acolhimento: “você não é


ninguém, não vai chegar a lugar algum”, eu perdi
meu chão na hora. Depois vieram me pedir desculpas,
mas não adianta né, já machucou. [Olhou para o fi-
lho que estava junto e disse]: Razão do meu viver. M.

“Você não é ninguém”! De tanto ouvir isso, terminam por se convencer


de sua incapacidade, como uma profecia autorrealizadora. Falam de si como
os/as que não sabem, os/as que não podem, os/as que não devem, implícita
e explicitamente ligados/as aos critérios de saber impostos pela ideologia do-
minante.
Pensar no tempo que vem não como futuro, mas como porvir, pode
romper com essa lógica do risco, em uma sociedade de controle. O necessário
“talvez” dialoga com a vida na dinâmica humana de relacionar-se, de partici-
par, interferindo no presente:

O talvez nos leva, assim, a pensar a interferência


entre o futuro e o porvir, numa experiência do
tempo que permite a irrupção do acontecimen-
to. O talvez surge quando o porvir interrompe a

177
Jovens em Situação de Acolhimento Institucional

concepção futurocêntrica do tempo, a orientação


do tempo para o futuro entendido como meta ou
finalidade (LARROSA, 2001, p. 288).

Entendemos que esse pensamento do “talvez” pode, de certa forma,


favorecer na busca de superar os estigmas e os fatalismos relacionados a essa
população. “Talvez” sua vida possa ser diferente, “talvez” eles/as consigam al-
cançar um tempo que não é futuro, mas porvir. “Talvez” eles/as consigam
transformar a profecia num tempo que não é linear, que não se orienta crono-
logicamente, tampouco é delimitado pela classe social.
E essa possibilidade se amplia na utopia proposta por Freire, numa
dimensão humanizadora para pensar as pessoas em suas comunidades numa
trajetória de partilha e de sujeitos que sonham, desejam, almejam e constroem
sua própria dinâmica emancipatória.

Você não quer mais eu né mãe?


O processo de separação que aliena as relações familiares é uma lem-
brança que vai se transformando ao longo da trajetória da infância e juventude
institucionalizada. Um dos participantes da pesquisa diz: “Só queria saber de
rua”, assumindo a responsabilidade pelo processo vivenciado.
Numa passagem do filme O Contador de Histórias (VILLAÇA, 2009),
há uma cena da comunidade assistindo a uma propaganda do Estado a res-
peito da Fundação Estadual do Bem-estar do Menor (FEBEM), cuja imagem
mostra: “F da fé; E de educação; B dos bons modos; E de esperança; M da
moral. Aqui as crianças carentes terão a chance de ser tornar homens do bem,
terão a chance de se tornar médicos, engenheiros e advogados.” No contexto
em questão, uma mãe em situação de pobreza extrema, com seus nove filhos/
as, convence-se a apostar na inclusão social de seu filho mais novo, afinal,
lá ele poderia virar doutor. Ocorre, entretanto, que na intenção de integrar,
por meio do serviço de acolhimento, a exclusão se transforma em segregação.
Quando a mãe faz sua primeira visita para o filho, este lhe diz que quer ir para
casa. A mãe retruca dizendo que o lugar é bom, que ele iria se acostumar, que
tinha cama, comida etc. Então, ele diz: “você não quer mais eu, né mãe?”.
A convivência social e comunitária é um direito da infância e juven-
tude, entretanto, o que se nota no cotidiano dos/as jovens em situação de
acolhimento institucional não condiz com o que preconizam as leis. Como
afirmam Rizzini e Rizzini (2004, p. 60): “É preciso rever radicalmente esta

178
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

prática, estimulando-se a elaboração e implementação de políticas públicas


que deem conta de apoiar a família e a comunidade na manutenção e cui-
dado de seus filhos.”
Faz-se necessário romper com os traços autoritários da política em
suas ações de intervenção com vistas a respeitar os vínculos e (re)construir
relações no seio familiar. Uma política que tem por fim garantir direitos
humanos, em muitos momentos exclui, controla e rompe vínculos paren-
tais. Como ilustra a fala:

Minha mãe andando pelo mundo, não lembro dela


e meu pai morreu, minha mãe mandou matar. Eu
aprontava demais, eu escondia os remédios da minha
vó, eu ia para escola de manhã e só voltava meia noite
e já fumava um baseadinho. Minha vó foi no conse-
lho tutelar então levaram para o abrigo, não lembro
de muita coisa, só lembro que eu chorei, fazer o que?
Já tinha feito. D2.

Quando se considera que a família não se constitui um espaço de segu-


rança, a Instituição toma esse lugar como “Estado protetor e zelador da infân-
cia e juventude”, o que se configura como uma política que aliena e rompe os
vínculos parentais.
A interiorização do mito da desorganização familiar frente à rea-
lidade também é uma construção ideológica institucionalizada. Ela teve
início quando o Estado passou a fazer suas intervenções sobre as famílias
pobres, desautorizando os familiares em seu papel parental, acusando-os
de incapazes, justificando e tomando a institucionalização como a melhor
opção. “As representações negativas sobre as famílias cujos filhos forma-
vam a clientela da assistência social nasceram junto com a construção da
assistência à infância no Brasil. A ideia de proteção à infância era antes
de tudo proteção contra a família” (RIZZINI; RIZZINI, 2004, p. 39,
grifo nosso).
Encontramo-nos perante um sistema que rompe vínculos da história
social do sujeito, que destitui essas crianças e jovens num processo de negação
do pertencimento e dos vínculos familiares. Isso acarreta uma trajetória que
aparta socialmente, que deforma a identidade e a dignidade humanas (FER-
NANDES, 2008). Outra fala nos reporta a essa realidade:

179
Jovens em Situação de Acolhimento Institucional

Morava com a minha irmã. Minha mãe começou a


usar drogas e foi embora quando eu tinha oito anos.
Eu com quatorze anos não queria saber de estudar, só
queria saber de rua e minha irmã foi ficando cansa-
da, ela sempre falava, Você não quer ajuda? Sempre
tentando me ajudar, falava para mim do acolhimen-
to, de tratamento e eu sempre negava. Teve um dia
que caí na real e pedi ajuda para ela, não queria mais
aquela vida. No mesmo dia fomos ao conselho tutelar
e me indicaram um abrigo e então eu fui para lá.
Com três meses que eu entrei na casa me misturei com
o povo e fumava maconha junto com eles. Tomei uma
suspensão, fui para casa da minha irmã e fiquei uns
dias. Me chamaram de novo eu voltei para o abrigo e
não usei mais, esses dias tive uma recaída e fumei um
cigarro, foi por impulso. M.

Esses/as jovens vivem num cotidiano marcado pelo respeito aos/às edu-
cadores/as e não aos familiares, como uma das características da infância e
juventude em situação de acolhimento. Seu modo de vida se configura sob
o controle das necessidades humanas no coletivo, invisível para as políticas
públicas e para parcela significativa da sociedade.

Eu dei minhas roupas para ele


Em meio ao caos, frutos das injustiças sociais, estão os/as jovens, movi-
dos/as pela solidariedade e pela empatia. Eles/as seguem suas vidas em busca
da realização dos sonhos, tão significativos para eles/as. Como ilustra essa si-
tuação do jovem que tentou assistir a uma apresentação musical:

Quando eu cheguei vi que o ingresso de entrada era


dez reais, e agora? Pensei, vou na pista e pedir, vou ver
se eu consigo algum dinheiro, mas olha como a histó-
ria foi tão boa, encontrei um colega, ele me chamou
para entrar, mas eu falei que não tinha dinheiro, ele
falou para eu entrar que ele tinha vinte reais para nós
dois. Pensei, já era, ganhei minha noite! Colocaram
aquela pulseirinha que pode entrar e sair a hora que
quiser. Aquele show, eu pensei eu estou forte mesmo,
passeando aqui. D2.

180
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

No já mencionado filme O Contador de Histórias (VILLAÇA, 2009), o


protagonista (Roberto Carlos) recebe o apoio de uma pesquisadora francesa,
que ilustra a “solidariedade”, o “estrangeiro”, “o que está do lado de fora e
é sensível”; não se reconhece a solidariedade existente nas relações entre as
crianças e jovens institucionalizados/as. Mais uma vez são invisibilizados/as!
O sistema capitalista mostra suas amarras constantemente, e os/as jo-
vens querem o que o sistema promete: bens, serviços, produtos. Mas o sistema
promete e nega, ao mesmo tempo, como afirma Galeano (1999, p. 55):

A publicidade manda consumir e a economia o


proíbe. As ordens de consumo, obrigatórias para
todos, mas impossíveis para a maioria, são convites
ao delito. Sobre as contradições de nosso tempo,
as páginas policiais dos jornais ensinam mais do
que as páginas de informação política e econômi-
ca. Este mundo, que oferece o banquete a todos e
fecha a porta no nariz de tantos, é ao mesmo tem-
po igualador e desigual: igualador nas ideias e nos
costumes que impõe, desigual nas oportunidades
que proporciona.

Mesmo nas situações mais adversas, as falas dos jovens mostram que
eles encontram solidariedade no cotidiano:

Andando pela rua não tinha mesmo para onde ir,


tinha um mendigo eu dei minhas roupas para ele,
minha mochila inteira até com trinta reais, ele re-
cusou o dinheiro porque disse que estava tentan-
do sair das drogas, então eu respeitei, deixei só as
roupas. D2.

Vemos em seus relatos muito do que aponta Freire em seus escritos: o


encontro dos seres humanos, o encontro com a possibilidade de pronunciar
o mundo no modo de relacionar-se, de ter fé na vida, na força da esperança
que os move. “Cada vez nos convencemos mais da necessidade de que os ver-
dadeiros revolucionários reconheçam na revolução, porque um ato criador e
libertador, um ato de amor” (FREIRE, 1983, p. 94).

181
Jovens em Situação de Acolhimento Institucional

Tenho que respeitar as regras da casa


A institucionalização é uma prática ainda marcada fortemente pelo
controle. Novamente no filme O Contador de Histórias (VILLAÇA, 2009), há
uma cena em que o menino Roberto Carlos, ironicamente, falava que “nem
sabia por que fugia tanto”: porque tinha comida de primeira (e o quadro mos-
tra uma comida com péssima aparência); orientação pedagógica (e no quadro
leva um tapa na cara); quarto privativo (e o quadro mostra a “solitária”, quarto
escuro reservado para castigos). O espaço institucional representa um terri-
tório estranho que, via de regra, não proporciona conforto algum e viola a
possibilidade de construção de uma convivência saudável.
Um dos temas geradores mais presentes no cotidiano dos/as jovens e
das pessoas que os cercam é o “controle”. E esse controle tem como suporte a
institucionalização. Por institucionalização se entende o processo de confina-
mento de pessoas, em estabelecimentos públicos ou privados, com caracterís-
ticas de instituição total (GOFFMAN, 1961).
O controle se apresenta até quando pontos positivos são levantados. A
ideologia da responsabilização individual sobre seu sucesso ou fracasso perma-
nece, assim como o controle.

Na maioria das partes me ajudaram, consegui me


estabilizar, mas não consegui me estabilizar do jeito
que era previsto na vista deles, era para eu arrumar
um emprego, era pra eu arrumar uma creche para
meu filho e tudo isso não consegui fazer sozinha en-
tendeu, para mim foi difícil, então tive que vir para
cá, esse abrigo que estou hoje, para ver se eu me firmo,
conseguir ser mais responsável, ser mais adulta. M.

Outra marca do acolhimento institucional é a rigidez dos programas


homogeneizadores, cuja proposta se pauta em atividades realizadas de ma-
neira autoritária, uniforme, nas quais todos/as devem fazer as mesmas coisas
e, consequentemente, serem tratados/as da mesma forma. Há uma sequência
imposta, horários preestabelecidos e que devem ser rigidamente cumpridos,
determinados verticalmente.

Eu não fui criada em abrigo, mas o tempo que estou vi-


vendo, parece uma eternidade, é difícil as relações, mas
estou aqui e tenho que respeitar as regras da casa. M.

182
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Entendemos que é urgente a reflexão sobre outras maneiras de for-


mação de indivíduos. Propomos ações dialógicas que partam do respeito ao
desejo, ao sonho, àquilo que amam, entendendo esses/as jovens como sujeitos
capazes de estabelecer com o mundo uma relação livre e independente de uma
instituição de tutela. Essa rigidez tem suas razões, novamente, no controle,
como aponta Goffman (1961, p. 18):

a) Quando as pessoas se movimentam em conjun-


tos, facilita o controle, a supervisão, ou mais que
isto: a vigilância;
b) Divisão entre os que são controlados e aqueles
que controlam, ou seja, os supervisores;
c) Os internados não têm contato com o mundo
externo, ou têm com muita restrição, enquanto os
que controlam continuam integrados porque per-
manecem no máximo oito horas, dentro da insti-
tuição;
d) Cada grupo pode ver o outro como estereóti-
pos: enquanto a equipe dirigente vê os internos
como amargos, reservados, rebeldes, os internos os
veem como arbitrários, mesquinhos, autoritários;
os dirigentes se consideram superiores, corretos,
enquanto os internos tendem a se sentir fracos,
culpados, inferiores, etc.;
e) O processo de comunicação se realiza de forma
limitada, truncada, restrita. Presumivelmente, to-
das essas restrições de contato ajudam a conservar
os estereótipos antagônicos. Assim, a divisão equi-
pe dirigente e internado é uma consequência bási-
ca da direção burocrática.

O controle se demonstra até mesmo na expectativa que os/as jovens


têm sobre aqueles/as com quem estabeleceram algum vínculo afetivo, cujo
rompimento de laços, de vínculos, enfim, de sua própria história, têm marca-
do o processo de institucionalização. Segundo Goffman (1961, p. 24), para
manter o controle, “A ruptura nítida com o passado precisa ser efetivada em
tempo relativamente curto”.

183
Jovens em Situação de Acolhimento Institucional

Me apanharam e eu fugi de novo e de novo e de novo...


Como resistir a tanta violação? A fuga parece ser uma alternativa, que é
marcada pela vontade de passear, de ver as ruas, de ser livre. No cotidiano des-
sas instituições, jovens fogem constantemente e mesmo quando encontrados/
as, isso não os/as impede de arriscar a próxima tentativa. Entretanto, onde há
opressão, há resistência. Isso se demonstra nas constantes fugas, “rebeldias”,
“indisciplinas”:

Estou no quarto abrigo, no segundo fui quando eu


tinha 11 anos, lá eu saía sempre, pulava o muro, a
janela e saía, passeava e voltava cinco horas da ma-
nhã. Voltava pulava o muro tranquilamente e fingia
que estava dormindo, os monitores abriam a casa oito
horas da manhã e eu pedia para dormir um pouco
mais, eles deixavam. D2.

Ao mesmo tempo que resistem, conformam-se com a realidade, numa


relação contraditória:

Sabe tia, essa vida de abrigo só Deus sabe o que eu


passo, eu quero ter meu canto, minha casa, meu di-
nheiro, minhas coisas, essa situação é difícil, correr
atrás e não dar certo. Aí fica nisso tudo que eu tento
fazer às vezes não dá certo, eu desanimo, às vezes dá
vontade de desistir, mas não desisto não [com o filho
nos braços] esse pretinho que me dá força para não
desistir. M.

Freire (1983) nos diz sobre o limite, o viável, o possível, a esperança, a


utopia, como germes da transformação voltada para um futuro mais humano
e ético.

Coisas que penso, pensei e pensarei


A esperança marca a possibilidade de sonhar com o futuro, carregado
de desejos próprios, sem a interferência do outro. A vida retratada no filme
O Contador de Histórias (VILLAÇA, 2009) traz importantes reflexões nessa
temática, uma vez que narra a vida de um menino que vislumbrou um porvir,
junto de uma pesquisadora estrangeira, que proporciona uma alternativa fora

184
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

dos muros da instituição. Com isso, ele conseguiu se construir, formar-se e


hoje trabalha com crianças e jovens que estão nas mesmas condições em que
ele se encontrava, anos atrás.
Quando somos tratados com respeito, com ética, com compromisso,
como sujeitos de nossa história, temos uma possibilidade de vislumbrar a es-
perança que transforma o mundo. O protagonismo dos/as jovens é funda-
mental para que suas escolhas sejam respeitadas. Quando convidado a partici-
par da pesquisa, D2 afirmou:

Eu aceito participar desse livro, meu sonho mesmo


tia, sempre foi escrever um livro, um livro da minha
vida, com nome assim: Coisas que penso, que pensei
e pensarei. D2.

Considerações finais
A problematização dos temas geradores nos levaram a reflexões acerca desses/
as jovens em situação de acolhimento institucional, revelando vidas em busca
de sonhos, desejos, aspirações dificilmente alcançadas numa realidade em que
seus sentimentos mais íntimos não são levados em consideração para as toma-
das de decisão necessárias.
A política de acolhimento institucional não pode se reduzir a uma op-
ção “atraente” das famílias pobres para criar seus filhos/as. É urgente ampliar
a reflexão sobre essa falsa ideia, que imprime na sociedade o olhar para as
instituições como aquelas que resolvem os problemas das crianças e jovens
de famílias pobres. Além disso: “(...) é fato, constatado mundialmente que o
atendimento institucional é, em geral, ineficaz e caro, custando até seis vezes
mais do que iniciativas que apoiem a família no cuidado dos seus filhos” (RI-
ZZINI; RIZZINI, 2004, p. 78).
Perguntamo-nos: Será que a provisoriedade do serviço está em sintonia
com a construção da autonomia? Uma das prerrogativas da Lei é essa proviso-
riedade. No entanto, o percurso dos/as jovens participantes da pesquisa (entre
tantos/as outros/as) perpassa um caminho trilhado na vida inteira: inicialmen-
te no Abrigo, depois na Casa Lar, em seguida na República e/ou Abrigo de
Adultos, mostrando o oposto do previsto por lei. Nestes últimos, conforme
consta na Tipificação, espera-se que haja organização de vida suficiente para
se manterem independentes, após sua saída do serviço. Para as modalidades
República e Abrigo de Adultos: o objetivo é proporcionar um espaço que pos-

185
Jovens em Situação de Acolhimento Institucional

sibilite a construção de autonomia pessoal e favorecer o desenvolvimento de


autogestão, autossustentação e independência.
Ocorre que a provisoriedade se transforma em “perenidade”, o tempo
se torna passivo, e o silêncio sobre sua origem se estabelece. O que se vê entre
esses sujeitos é sua infância e juventude num processo de desvinculação com
a família, submetidos a uma política lenta, estagnada. Esses/as jovens, próxi-
mos/as de atingir a maioridade legal, muitas vezes escondendo de si mesmos/
as a situação de abandono, fragilizados/as, continuam dependendo do serviço
para moradia e para quase todas as suas referências.
No decorrer de suas vidas, na situação de acolhimento institucional,
crianças e jovens vivem numa situação concreta de ruptura de vínculos com a
família de origem, e sua educação não é promovida como “prática da liberda-
de”, pelo contrário.
Há uma realidade injusta, em alguns momentos vista como fatalismo,
sob um olhar que revitimiza a população excluída socialmente e nega sua con-
dição de sujeitos da própria história. Freire (1983, p. 52) nos auxilia dizendo
que “quase sempre esse fatalismo está referido ao poder do destino ou da sina
ou do fado”, como se seu destino estivesse traçado por alguma força maior,
como se o sofrimento se vinculasse “à vontade de Deus, como se Ele fosse o
fazedor desta desordem organizada”.
Certa vez, durante o trabalho na Casa Lar, uma jovem acolhida, con-
versando com uma das pesquisadoras, trouxe à tona sua indignação pessoal
com tomadas de decisão sobre sua própria vida.

Tia você não sabe o quanto está doendo tudo em


mim, esse Juiz achou que fez o melhor me separando
da minha mãe, fazem nove anos que não estou com
ela...e ela não pode olhar pra mim e sentir o quanto
eu gosto dela e nem eu posso olhar para ela e ver o
quanto ela gosta de mim, você sabe tia o que são nove
anos sem sentir o cheiro da sua mãe? Não sabe!

E essas vozes raramente são ouvidas e respeitadas. Há uma concepção


ideológica da política de proteção de crianças e jovens que prega o silêncio.
Dialogar com quem vive, chora na solidão, perde seus vínculos de forma de-
sumana e vive em clausura e sem direito à convivência comunitária, nesta

186
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

concepção de viver em silêncios, em segredos, exclusões, parece significar uma


ameaça à estrutura de controle.
A postura de poder perpassa por todas as relações em nome da ordem.
O poder Judiciário, a gestão do município, a direção institucional, os/as técni-
cos/as, educadores/as. Sob este jugo a infância e juventude, protegidas perante
a Lei, são submetidas diariamente a essa estratégia cotidiana: o controle.
Estamos falando de proteção a nossa infância e juventude institucio-
nalizada. Na prática, essa população não tem direito à saudade, ao afeto, pois
há sempre uma figura de poder, o/a Juiz/a no caso, que parece separar um
instante insignificante para muitos e precioso para quem sente.
O silêncio está decretado entre esses/as jovens. A ideologia de silenciar
é parte do processo de construção da sociedade pobre e marginalizada que está
segregada em nichos nos territórios afastados. “Violência real, não importa
que, muitas vezes, adocicada pela falsa generosidade a que nos referimos, por-
que fere a ontológica e histórica vocação dos homens e mulheres – a do SER
MAIS” (FREIRE, 1983, p. 45).
A construção de uma política de proteção humanizadora deve atentar
para a percepção de que os sujeitos são pessoas que carregam em si senti-
mentos: alegria, tristeza, medo, solidão, desespero, desânimo, esperança, de-
sesperança, fé, amor, ódio, entre muitos outros. A decisão pelo afastamento
do convívio familiar é extremamente séria e provoca profundas implicações,
tanto para a criança/jovem, quanto para a família. A institucionalização deve
ser uma medida excepcional e provisória com o intuito de proteção, quando
houver risco, de forma a não revitimizar as pessoas envolvidas.
Acreditamos que precisamos investir na esperança, e o pensamento de
Freire em ação pode contribuir para esse caminho.

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188
Educação Popular na Perspectiva
do Bem Viver

Reinaldo Matias Fleuri

He yama yo 1
Estamos aquí, en el ahora,
Estamos aquí, en el eterno presente;
Y en todos lados
Somos Uno y somos Todo.

Introdução
Na década de 1990, o Grupo de Trabalho de Educação Popular (GT06) da
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPEd)
discutiu amplamente a “crise dos movimentos sociais” e o papel da educa-
ção popular no contexto da redemocratização política do Brasil. Mobilizado
particularmente por Victor Valla (1994), que apontava “a dificuldade que os
profissionais e intelectuais têm de compreender o que as classes populares

1 “He yama yo” – Canto Lakota (significado adaptado por despojosdeoccidente.org)


He yama yo wanna henne yo
He yama yo wanna henne yo
Wahi hi yayhana he he he ho
Wahi he he he ho wahi
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=E3q0uKKZCVM. Mario Gosál-
vez-Blanco. Acesso em: 23 abr. 2022. Música extraída do CD Áudio Nanas para Des-
pertar. Canta: Paky Gomez Coros: (El Coro/Vocerío mas alegre, amoroso y jovial que
nadie pueda tener): Antonella Soundshui, Águeda Benavent, Carmen García, David
Smy, Francisco Urbina, Laura Palma y Sara Vazquez. Arreglos música: Mario Gosálvez
Blanco. Video creación: Eugenio López.

189
Educação Popular na Perspectiva do Bem Viver

estão querendo lhes dizer”, o GT06 estudou os modelos teóricos que foram
utilizados para analisar os problemas e as práticas dos movimentos popula-
res. Constatou a “crise de interpretação e condução da educação popular” das
lideranças e intelectuais emergentes no contexto das mobilizações sociais e
culturais dos anos 1960, ou no contexto da ditadura dos anos 1970, ou então
nos processos massivos de luta pela redemocratização política dos anos 1980.
O que aparecia como crise dos movimentos sociais passou a ser entendido como
crise dos modelos de conhecimento a partir dos quais os intelectuais, profissionais
e militantes têm buscado entender os movimentos sociais.
No doloroso contexto político brasileiro que vivemos hoje – após o gol-
pe jurídico-parlamentar de 2016, ativado por processos de guerra híbrida, que
abriram os caminhos para instaurar uma profunda crise política, econômica,
social que acirra a erosão das instituições democráticas, acelerando a corrida ar-
mamentista e o colapso ambiental em âmbito global – os movimentos popula-
res, particularmente os enraizados nas culturas e histórias ancestrais, vêm resis-
tindo aos genocidas processos de colonização e, principalmente, protagonizam
processos de reexistência decolonial, empoderando a cultura do Bem Viver.
Nesta perspectiva, no campo da educação popular, somos interpelados
– tal como nos convidava Victor Valla – a reformular nossas categorias teóri-
cas para conseguirmos auscultar em profundidade o que “as classes populares
estão querendo nos dizer”.
É essencialmente esta busca que tem motivado e mobilizado nosso pro-
cesso de pesquisa iniciado há cinquenta anos2 e consolidado nos trabalhos da
Rede de Pesquisas “Mover”, particularmente no projeto integrado de pesquisa
que estamos desenvolvendo neste próximo quinquênio (FLEURI, 2022b).

2 Em fevereiro de 2022, completei 50 anos de atividades de pesquisa e ensino em insti-


tuições de ensino superior. Iniciei minha carreira de pesquisador ao ingressar em 1972
no Programa de Pós-Graduação em Educação, começando a estudar os processos de
formação da consciência crítica pela articulação da prática educacional escolar com a
práxis de educação popular. A partir da pesquisa de pós-doutorado realizada em 1995-
1996, junto à Universidade de Perugia (Itália), passamos a direcionar nossa trajetória
de pesquisa para o estudo da relação entre Educação Intercultural e Movimentos So-
ciais. Recentemente, aprendemos com os povos originários de Abya Yala a considerar o
Bem Viver, ou o Viver em Plenitude, como horizonte decolonial da educação intercul-
tural crítica. Nesta trajetória profissional, minha contribuição científica e pedagógica
está enraizada nas áreas de educação intercultural, educação ambiental, formação de
educadores e pesquisadores.

190
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

A trajetória de pesquisa da Rede Mover


As pesquisas, que estamos desenvolvendo em conjunto com o Grupo de
Pesquisa Viver em Plenitude: Educação Intercultural e Movimentos Sociais
(UFSC/CNPq), conhecido como Rede “Mover”, são pioneiras no campo da
educação intercultural e têm enfocado temas de ponta e do debate científico
em nível nacional e internacional, trazendo perspectivas e propostas originais
enraizadas no contexto sociocultural contemporâneo (FLEURI, 2017a).
A trajetória desenvolvida pelo “Mover” teve como referência inicial in-
dagações formuladas em um percurso pessoal de formação e de pesquisas. Já
nos estudos realizados durante o estágio de pós-doutorado, focalizei a educa-
ção intercultural, entendendo-a como uma linha de fuga que delineia a pers-
pectiva de superação das relações autoritárias e disciplinares na escola. Nessa
perspectiva, tenho estudado as articulações criativas entre práticas de educação
escolar e experiências de educação popular, bem como suas implicações para
a formação de professores e de educadores populares. Nesse campo, venho in-
dagando teorias críticas e propostas educacionais fronteiriças, como dialogici-
dade, complexidade e decolonialidade. Na última década, tenho aprofundado
o estudo das contribuições críticas e paradigmáticas das culturas ancestrais dos
povos originários para o desenvolvimento científico e social.
Esse processo de construção teórico-metodológica tem instigado prá-
xis pedagógicas inovadoras, tais como os estudos que o Grupo de Pesqui-
sas “Mover” realizou de modo interativo com experiências de formação de
educadores populares de capoeira, bem como com projetos de formação de
educadores, especialmente para a inclusão e para a diversidade cultural. Du-
rante a última década, nossa pesquisa avançou significativamente no campo
da interculturalidade crítica e da práxis dialógica de formação de pesquisa-
dores e educadores em nível de pós-graduação, o que resultou em trabalhos
emblemáticos recentemente produzidos em coautoria com pesquisadoras
e pesquisadores em formação (FLEURI; OLMO-EXTREMERA, 2019 e
FLEURI; OKAWATI, 2021).
Neste projeto de pesquisa (FLEURI, 2022b) propomos focalizar o
tema da educação intercultural, recorrente em todos os projetos de pesquisa
realizados nas últimas três décadas, agora focalizando as cosmovisões ances-
trais dos povos originários de Abya Yala, voltadas para a perspectiva de “viver,
conviver e gerar vida em plenitude”.

191
Educação Popular na Perspectiva do Bem Viver

O processo estocástico de pesquisa, que temos desenvolvido até agora


nos possibilitou começar a aprender com os povos originários de Abya Yala a
decolonizar a educação. De modo particular, como Rede Mover, somos ins-
tigados a aprofundar o diálogo intercultural crítico, “conversitário” (FLEU-
RI, 2019), com lideranças de movimentos populares de origens ancestrais
de Abya Yala, particularmente de povos amazônidas. Buscamos compreen-
der criticamente as contradições/conexões entre os processos socioculturais
instaurados pela modernidade/colonialidade e os processos decoloniais de
reexistência, protagonizados pelos povos originários a partir de suas raízes
culturais ancestrais.

Contextualização da temática atual de pesquisa


O projeto de pesquisa que desenvolvemos no último quadriênio, intitulado
“Educação intercultural: aprender com os povos originários do Sul a deco-
lonizar a educação” (FLEURI, 2022a), priorizou o estudo de cosmovisões
de povos originários relacionadas com a concepção de Bem Viver, em suas
implicações decoloniais e não coloniais para a formação de educadores e pes-
quisadores. Alavancado pela rede de cooperação científica intercultural e in-
ternacional construída ao longo das últimas duas décadas, nosso processo de
pesquisa se voltou para o estudo dos e com os povos originários amazônidas
e de Abya Yala, focalizando as implicações pedagógicas interculturais e deco-
loniais das cosmovisões e dos movimentos populares relacionadas com o Bem
Viver. Defrontamo-nos com o protagonismo dos povos, das associações e dos
movimentos populares de raízes ancestrais, liderados pelas mulheres, jovens e
anciões, na defesa e gestão de seus territórios, no desenvolvimento de suas es-
tratégias e práticas educacionais, científicas, políticas, econômicas e sanitárias.
Movimentos organizados e articulações comunitárias populares de po-
vos indígenas, quilombolas e tradicionais, mesmo em contextos adversos, vêm
construindo seus processos de reexistência, que empoderam sua capacidade
de resistência e resiliência frente ao avanço do neocolonialismo e à persistên-
cia da colonialidade. O protagonismo dos movimentos populares de raízes
ancestrais nos interpelou a assumi-los como parceiros de diálogo e de lutas
decoloniais. Passamos a interagir com os agentes populares orgânicos a povos
originários, não como objetos ou informantes de nossa pesquisa, mas como
autores e coautores de pesquisas científicas contextualizadas e mobilizadas na
perspectiva de viver, conviver e gerar vida em plenitude.

192
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

O processo integrado de pesquisa desenvolvido no quadriênio 2018-


2022 realizou duas inflexões importantes em relação aos seus objetivos
preliminares: o voltar-se para o contexto dos povos amazônidas de Abya
Yala, para estudar os limiares interculturais decoloniais de seus processos
de reexistência – radicalizando o interesse de estudar as configurações de
práxis decolonial emergentes em diferentes contextos nacionais – e assumir
o protagonismo das lideranças e conhecedores originários como parceiros
autônomos na construção dialógica e intercultural de processos de pesquisa
e de educação no contexto de suas cosmologias ancestrais. Estes resultados
de pesquisa – além de se expressarem nas diferentes publicações, atividades
educacionais e de cooperação científica – impulsionaram a configuração do
problema, dos objetivos e da metodologia enunciados no projeto de pesqui-
sa proposto para o próximo quinquênio.
O projeto de pesquisa – proposto e aprovado, no âmbito da chama-
da CNPq PQ/Sr para o período 2022-2027 – visa a estudar cosmovisões de
povos originários de Abya Yala, relacionadas com a concepção de “Viver em
Plenitude” (Bem Viver), em suas implicações decoloniais e não coloniais para
a educação intercultural crítica e a construção de políticas de sustentabilidade.
A presente proposta consolida o processo sociopoético de pesquisa
que a Rede Mover vem desenvolvendo, ao potencializar as “posições”3 dos
conhecedores sujeitos de culturas originárias, na busca de se compreender e
enfrentar problemas emergentes da relação complexa entre modernidade/co-
lonialidade e ancestralidade/Bem Viver.
Nesta direção, buscamos manter e promover o diálogo crítico “conver-
sitário” entre pesquisadores situados em contextos institucionais acadêmicos
e pesquisadores orgânicos a movimentos populares indígenas, quilombolas e
tradicionais, reconhecendo o protagonismo, a complexidade e as singularida-
des das “posições” dos parceiros e interlocutores. Tal interação vem promoven-
do a problematização e a reinvenção de propostas e práticas de formação de
professores em reciprocidade cooperativa e crítica com práticas e propostas de
formação de educadores populares enraizados em movimentos de reexistência
ancestrais.

3 O pesquisador aborígene australiano Martin Nakata assume a teoria da “posição”


(POHLHAUS, 2002) como um método de pesquisa pertinente para formular critica-
mente os conhecimentos indígenas. “La posición o standpoint no se refiere entonces
a una determinada posición social, sino mas bien es un compromiso con el tipo de
preguntas encontradas allí” (POHLHAUS, 2002, p. 287 apud NAKATA, 2010, p. 19).

193
Educação Popular na Perspectiva do Bem Viver

Potencial crítico da presente pesquisa


Tematizamos hoje o problema de pesquisa, focalizando a complexa e tensa re-
lação entre a colonialidade, inerente à modernidade, e o Bem Viver, enraizado
em culturas e histórias ancestrais de povos originários. Cada termo desta formu-
lação incorpora diferentes dimensões da compreensão do problema estudado.
Entendemos “problema” como “estrutura de conexões” (BATESON,
1986) entre elementos ou contextos interagentes. Ao longo de nossa trajetória
de pesquisa, fomos estocasticamente compreendendo a problematicidade das
relações educativas como contrariedade (lógica formal), contradição (lógica
dialética) e complexidade (dialógica). Nossa atual concepção de “problema-
ticidade” advém da incorporação da dimensão “cosmológica” do Bem Viver,
que redimensiona os princípios lógicos da relacionalidade (já enfatizada na
lógica dialética) por sua articulação com os princípios de complementaridade,
reciprocidade e integralidade.
Aprendemos com os povos originários ancestrais que o desenvolvimen-
to da vida de cada ser só se configura na relação com todos os outros seres
que constituem o cosmos. A grande Mãe Terra (Gaia, Pachamama) é cons-
tituída pela convivência harmoniosa entre todos os seres vivos, dotados de
autonomia, desde as diferentes “espécies” de seres animais e vegetais, os seres
humanos, as sociedades e culturas, até os sistemas galácticos ou infraatômicos.
Também as forças da natureza, que as culturas ancestrais simbolizam com
as forças do fogo, da terra, do ar e da água. Cada elemento, com diferentes
potenciais e lógicas de criação e geração de vida. E é pela relação de oposi-
ção-complementaridade dessas forças que se produz a dinâmica evolutiva de
geração de equilíbrio, reequilíbrio de vida, de circulação fluente de energias
entre todos os seres.
A evolução dos processos vitais é impulsionada autonomamente, de
dentro para fora, mas se constitui na conexão estrutural, radical, com todos os
seres vivos. Essas relações são mesmo de oposição, mas também de composi-
ção, de transposição, de reposição, de imposição, de suposição... Enfim, viver
em plenitude envolve relações complexas de contraditoriedade e complemen-
taridade entre todos os seres. Complementaridade que se ativa e se alimen-
ta pela reciprocidade, sustentando as fluidas conexões de integralidade entre
cada ser singular com o conjunto do cosmos. Gerar vida em plenitude implica
ativar diferenças, ou seja, relações de reciprocidade e de complementaridade
entre opostos, e de integralidade entre cada ser singular com os contextos sis-
têmicos em que se constituem.

194
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Tal cosmovisão possibilita entender as relações entre sujeitos humanos


e entre contextos socioculturais para além da situação econômico-política de
opressão e de suas dimensões ético-epistêmicas antropocêntricas constitutivas
da modernidade/colonialidade. A cosmologia do Bem Viver redimensiona o
entendimento da problemática das relações educacionais e interculturais na
perspectiva ético-epistêmica “ecológica” e “cosmológica” da relação de integra-
lidade, complementaridade e reciprocidade entre todos os seres da Natureza
(para além do antropocentrismo e de seu viés econômico-político). Tal radi-
calidade lógico-epistemo-eco-cosmológica permite reinterpretar os processos
de resistência e resiliência das classes e dos grupos “oprimidos”, a partir e para
além do contexto do sistema-mundo moderno colonial capitalista, como tra-
mas rizomáticas complexas de reexistências socioculturais, ancoradas em suas
conexões ancestrais com o “sistema-vida” ecológico e cosmológico.
Do ponto de vista da práxis intercultural crítica, nosso propósito de
pesquisa consiste em buscar reconhecer, nos entrelugares interculturais, o pro-
tagonismo e a autonomia dos povos e das culturas ancestrais na reconstituição
decolonial crítica de seus modos ancestrais de saber e de poder, de ser e de
viver. Tal perspectiva se configura e se empodera a partir das lutas de organiza-
ções indígenas, quilombolas, tradicionais, bem como através de movimentos
populares enraizados ancestralmente, que atravessam de modo complexo e
rizomático as histórias das diferentes sociedades.
Esta perspectiva teórico-metodológica traz implicações para a própria
concepção de ciência e para a reinterpretação do atual contexto socioambiental.
Ao se incorporar os princípios epistêmicos da relacionalidade, comple-
mentaridade, reciprocidade e integralidade como critérios de “cientificidade”
da produção dos saberes, reconhece-se a contribuição das culturas ancestrais
para o entendimento e enfrentamento radical dos impasses globais que esta-
mos vivendo neste limiar de milênio. Assim, poderemos entender “cientifica-
mente”, em sua complexidade cosmológica, as causas do colapso ambiental, da
militarização e da erosão dos regimes democráticos, reconfigurando políticas e
práticas socioculturais de viver, conviver e manter a vida em plenitude. Tal en-
tendimento, ao se configurar na perspectiva complexa de ciência, poderá ani-
mar o protagonismo dos movimentos decoloniais de reexistências ancestrais,
no sentido de conter o avanço acelerado das estratégias econômico-políticas
neocoloniais, promotoras das tiranias, do avanço da corrida armamentista e da
devastação dos “recursos” naturais.

195
Educação Popular na Perspectiva do Bem Viver

A Educação Popular e o Bem Viver


O processo de pesquisa em desenvolvimento coloca em luz as raízes ancestrais
dos povos originários emergentes nos movimentos de educação popular na
América Latina.
Não obstante os violentos processos de colonização e escravização im-
postos, ao longo da história, aos povos originários do continente de Abya Yala,
suas culturas e cosmovisões resistem e reexistem de múltiplas formas. Median-
te escuta intensa e sensível, podemos aprender com estes povos a restabelecer
nossos modos de vida e de produção segundo os princípios ancestrais, que
aqui indicamos com o conceito de Bem Viver.
As cosmovisões de povos originários ancestrais nos ensinam a Bem Vi-
ver, ou seja, a viver e conviver em plenitude, de forma a promover relações e
contextos de harmonia, potencializando relações integrais, correspondentes
aos princípios cosmológicos, mediante a ativação das conexões de comple-
mentariedade, reciprocidade e integralidade entre todos os seres vivos – sejam
humanos, naturais e espirituais (FLEURI, 2017b).
Levantamos a hipótese de que a concepção pedagógica de Paulo Freire
– ícone internacional da Educação Popular – transparece uma íntima rela-
ção com os princípios inerentes às culturas dos povos originários, como os
do Bem Viver. Muito provavelmente o engajamento de Paulo Freire com os
movimentos sociais populares lhe possibilitou compreender e assumir os prin-
cípios epistemológicos e éticos das culturas dos povos ancestrais, revividos por
comunidades e movimentos populares da América Latina.
Assim, pode-se reconhecer em sua concepção educacional dialógica frei-
riana os princípios de relacionalidade, complementaridade e reciprocidade do
Bem Viver. Com efeito, a pedagogia freiriana se caracteriza pela cooperação e
reciprocidade nas relações entre educadore/as e educando/as, o que favorece
uma atmosfera de aceitação mútua, de respeito, compreensão e comunica-
ção entre diferentes sujeitos, na busca de compreensão crítica e transformação
dos contextos socioculturais e ambientais em que se constituem. Paulo Freire,
nesse sentido, muito se aproxima da perspectiva decolonial do Bem Viver ao
indicar que as pessoas “se educam em comunhão, mediatizadas pelo mundo”
(FREIRE, 1975, p. 79).
Em contraponto, desde a perspectiva não colonial das culturas ances-
trais, a própria pedagogia crítica é convidada a ultrapassar a concepção antro-
pocêntrica e racionalista de teóricos existencialistas e materialistas a que Pau-

196
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

lo Freire faz referência em sua obra. Na cosmovisão dos povos ancestrais, o


“mundo”, que sustenta as próprias relações entre os seres que o constituem,
não se reduz à dimensão humana, antropocêntrica, mas incorpora as dimen-
sões cosmológica e espiritual.
A “Mãe Terra” é constituída pela relação harmoniosa integral entre to-
dos os seres do universo, que busca o equilíbrio entre opostos, mediante o
exercício da complementaridade, da reciprocidade e da integralidade. Nes-
se sentido, a espiritualidade vem também sendo ressignificada, para além da
visão dualista predominante nas culturas ocidentais, que opõe a matéria ao
espírito. Já na perspectiva da complexidade, “Espírito” (ou “mente”) pode ser
entendido como “estrutura que coliga”, “padrão que conecta” diferentes seres
e processos vitais (BATESON, 1986). A vida de cada ser é gerada e sustentada
pelas complexas conexões com todos os seres constitutivos do cosmos que, por
sua vez, contém as conexões com todos os seus ancestrais (seres pelos quais
foram gerados) e com todos os seus descendentes (os seres que serão gerados
pelas relações entre os seres vivos no presente).
Aliás, a concepção andina do Bem Viver sintoniza com a concepção
de Ubuntu legada pelas culturas ancestrais de origem africana. “Ubuntu” é
um termo Zulu que indica o próprio conceito de Humanidade, entendendo
que o ser de cada pessoa está intimamente conectado ao ser dos outros e da
comunidade: “Sou, porque somos” (definição realizada por Leymah Gbowee,
ativista pacifista da Libéria).
Nesta direção, a pedagogia do “oprimido” não se reduz apenas às lutas
por confrontar e desconstruir as instituições socioculturais opressoras, mas se
constitui principalmente pelas lutas por empoderar a reexistência das cone-
xões relacionais de complementariedade, reciprocidade e integralidade entre
todos os seres que vivem e geram vida em plenitude.
Do ponto de vista educacional, a concepção pedagógica freiriana, que
propõe o diálogo problematizador das relações socioculturais desiguais e injus-
tas, configura-se como um instrumento de luta política dos grupos sociais e
étnicos oprimidos, subalternizados ou excluídos nas histórias de colonização.
Mas, para além dos limites do Estado-Nação e do antropocentrismo, as lutas
sociopolíticas conduzidas pelos povos ancestrais nos ensinam a radicalizar os
projetos de transformação social, na busca de construir formas de organização
política que sustentem as diferenças culturais e socioambientais, ao mesmo
tempo que reconhece e respeita os direitos pluriversais da Natureza. Esta pers-

197
Educação Popular na Perspectiva do Bem Viver

pectiva traduz radicalmente a perspectiva de sustentabilidade, por nos compro-


meter com os direitos de todas as gerações futuras dos seres vivos, a partir de
nossa gratidão pelas vidas que as gerações precedentes pariram.
Culturas ancestrais originárias do continente africano, tal como de
povos originários de Abya Yala, também nos ensinam que a educação in-
fantil consiste em sustentar relações e contextos de cuidado das crianças,
no sentido de ajudá-las a expressar e a dar continuidade às ancestralidades
de que são portadoras ao nascer.4 Tal aprendizado ao longo da vida de cada
integrante da comunidade se faz na relação de escuta intensa e sensível aos
anciões e anciãs, que se constituíram, ao longo de suas vidas, como ances-
trais, ou seja, como pessoas que sustentam as conexões existenciais com as
gerações a que estamos dando vida.
A epistemologia holística de culturas originárias também nos instiga
a reconfigurar as metodologias de educação popular. Os círculos de cultura,
por exemplo, propostos por Paulo Freire como estratégia educacional para
favorecer o diálogo e o enfrentamento sobre as contradições emergentes em
cada contexto social, são ressignificados na perspectiva educacional de cultu-
ras originárias. Com as culturas indígenas, aprendemos que as lutas sociais e
políticas ultrapassam o âmbito de mera crítica e resistência ao sistema mun-
do moderno-colonial, mas se tecem cotidiana e comunitariamente como
processos de reexistência ancestral de vida em plenitude. Assim, as relações
e as estratégias educacionais – mais do que o mero exercício de análise ra-
cional e definição de estratégias de enfrentamento coletivo dos problemas

4 “Quando percebemos a memória como uma instância do coletivo que as pessoas par-
ticulares participam e agenciam, podemos ter elementos para perceber que a ances-
tralidade não é apenas a descendência biológica que uma pessoa tem de uma família
consanguínea, mas, sobretudo, o atravessamento de toda a história na formação dos
sujeitos. Assim, podemos entender a ancestralidade como a história da comunidade,
que nos conforma não apenas através da doação do material biológico, mas também
de seus projetos, seus erros, acertos, expectativas.
As crianças são uma espécie de elo entre essa dimensão histórica do passado e o presen-
te das comunidades. São não o símbolo de seu futuro, mas a expressão de sua continui-
dade no presente. Desse modo, (...) a criança para o pensamento tradicional africano
é a marca da continuidade, uma expressão da ancestralidade. Ela nem é nova e nem
começa. Ela segue. Mas não segue monotonamente. Ela segue em inversões, desloca-
mentos, fissuras. Inclusive da própria temporalidade. (...) A relação, portanto, entre as
crianças e a ancestralidade é de mútua alimentação e mútuo respeito. Muitas vezes, as
crianças são entendidas como a expressão mais plena da ancestralidade” (FLOR DO
NASCIMENTO, 2018, p. 591-592).

198
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

emergentes na conjuntura social – se configuram como processos comunitá-


rios de formação inter e transcultural, em que se desenvolve “uma disciplina
corporal, mental e espiritual centrada na observação, energização e intuição”
(GAUTHIER, 2011, p. 55).
Por conseguinte, o diálogo problematizador a partir dos temas geradores
é orientado a ultrapassar o enfoque meramente econômico-político dos pro-
cessos de opressão e dominação, para problematizar e transformar radicalmen-
te seus fundamentos moderno-coloniais. O diálogo crítico entre as culturas,
ao explicitar suas raízes e conexões ancestrais, pode permitir processos trans-
culturais e transmodernos de empoderamento epistêmico-ético-estético dos
diferentes povos e gerações, no sentido de “(...) desarollar las potencialidades,
las possibilidades de essas culturas y filosofias ignoradas; acciones llevadas a
cabo desde sus propios recursos (...)” (DUSSEL, 2017, p. 29).
Em suma, a formulação ético-epistêmica de princípios do Bem Viver,
que intelectuais orgânicos de povos originários andinos vêm construindo, ins-
tiga o campo da educação popular à escuta intensa e ao diálogo intercultural
crítico com os povos originários ancestrais, cuja vida e convivência atravessam
o território e o povo brasileiro e latino-americano. Ao traçar dialógica e coope-
rativamente estes percursos de buscas, estaremos nos educando como “pessoas
em relação, mediatizadas pelo mundo”, ao mesmo tempo que, enraizando
nossas reflexões, ações, relações dialógicas nas culturas originárias ancestrais,
contribuiremos para “educar” ético-epistemicamente nossos próprios “mun-
dos” a viver, a conviver e a gerar vida em plenitude.

Agradecimentos e considerações finais


Manifestamos nossa gratidão imensa a todos pesquisadores e pesquisadoras
que vêm contribuindo para a mobilização da ampla e fractal rede colaborativa
junto com o Grupo de Pesquisa Viver em Plenitude: Educação Intercultural e
Movimentos Sociais (CNPq/UFSC).
O desenvolvimento deste processo de pesquisa vem se construindo me-
diante articulação entre diferentes ações (seminários e conversações presen-
ciais e virtuais, oficinas de criatividade artística e textual, desenvolvimento de
pesquisas temáticas individuais e integradas, bem como de diferentes formas
acadêmicas e populares de produção científica) e se expandindo através de
variados meios (desde a elaboração de teses, dissertações, monografias, artigos
e livros, até a produção de obras artísticas e socioculturais em linguagens e

199
Educação Popular na Perspectiva do Bem Viver

mídias audiovisuais, corporais, ambientais, impressas), sendo veiculados me-


diante publicações acadêmicas e produtos de divulgação em rede virtual).
Este trabalho implementa as relações de cooperação com pesquisadoras
e pesquisadores que atuam em vários contextos no Brasil, na América Latina,
na Austrália e na África, promovendo a construção de mediações de diálogo
crítico e cooperação decolonial com lideranças, comunidades e movimentos
socioculturais de povos originários, no sentido de contribuir para seu empode-
ramento e protagonismo político-sociocultural. Do ponto de vista acadêmico
e cultural, esta proposta promove a articulação de um processo de coopera-
ção cientifica intercultural, interinstitucional e internacional que vem pro-
blematizando a colonialidade inerente aos processos interculturais no mundo
contemporâneo, ao mesmo tempo que empoderando iniciativas, estratégias e
perspectivas de cooperação intercultural crítica decoloniais na perspectiva do
Bem Viver, emergentes em processos socioculturais de reexistências ancestrais
agenciados pelos povos originários.
Tal movimento avança numa perspectiva crítica e decolonial e pode ter
efeitos sociopolíticos e ecológicos importantes. Pois ao mobilizar formas deco-
loniais de poder e de saber, de ser e de viver, promove a construção de estra-
tégias socioculturais necessárias para garantir a convivência de todos os seres
humanos com a natureza e entre si, para além de dispositivos e de estruturas
de dominação sociocultural e de destruição sistemática da natureza vigentes
no atual contexto mundial.
Reconhecer criticamente e potencializar dialogicamente a densidade e
a originalidade das contribuições dos diferentes povos e grupos socioculturais
de origens ancestrais é condição de sobrevivência e de crescimento de todos.
E isto pressupõe o desenvolvimento de processos interculturais decoloniais.
A contribuição deste trabalho coletivo, assim, está não só nos processos de
estudo da produção científica atual, promovida sinergicamente por grupos
de pesquisas avançadas, mas sobretudo pelas possibilidades de transformação
epistemológica, ética e social a serem mobilizadas pela interação e pelo debate
crítico entre pesquisadores e pesquisadoras vinculados a instituições acadêmi-
cas e a movimentos populares.

200
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

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202
Educação Popular e Agroecologia:
Diálogos À Sombra de Copaíbas, Jatobás,
Ipês e Manacás “Y Otras Más”

Valéria Oliveira de Vasconcelos


Renata Evangelista de Oliveira

Introdução
Sombra e luz, céu zul,
horizonte fundo e amplo
dizem de mim. Sem eles
apenas sobrevivo,
menosque existo

Freire (2001, p. 16)

Este capítulo emerge de reflexões há bastante tempo semeadas, em estudos,


pesquisas e práticas entre as autoras, tendo como cenários distintos biomas
brasileiros e latino-americanos.
Partimos da compreensão de que existe um vínculo orgânico entre a
Educação Popular (EP) e a Agroecologia (AGEA) – tomadas como Ciência,
Prática e Movimento Social – gestado na interação entre sujeitos sociais ‘em
movimento’ (FARIA, 2017). Essas áreas do conhecimento estão encadeadas
física e simbolicamente, pois muito do simbolismo que enxergamos em uma
está presente na outra.
Ambas se fundem na construção de uma capacidade de análise crítica
da realidade, que as permite atuar para o desenvolvimento local e o empodera-
mento de pessoas em seus muitos lugares (ALTIERI, 2010). Tanto A EP como

203
Educação Popular e Agroecologia

a AGEA se fundam em uma perspectiva radical, o que significa sua opção pela
criação, pela crítica e pela liberdade. E essa escolha pela libertação implica o
enraizamento das pessoas envolvidas, que as engaja cada vez mais no esforço
de transformação da realidade concreta, objetiva (FREIRE, 1987).
No nosso olhar para a realidade, Agroecologia e Educação Popular
verdejam na luta pela liberdade, dignidade e emancipação populares, pela
segurança alimentar, pela garantia de preservação de áreas naturais, pela re-
introdução das espécies arbóreas nas paisagens e na vida das pessoas, por um
olhar mais amoroso para com a Natureza, e pela potencialização de valores
tradicionais, sociais e culturais.
Partindo dessa perspectiva, e tomando como eixo suleador o pensa-
mento de Paulo Freire em ação, este capítulo foi elaborado, metafórica e con-
cretamente, à sombra não somente de uma mangueira, mas de várias outras
árvores que povoam nossas vidas e memórias: jacarandás, copaíbas, jatobás,
ipês, paineiras e manacás.
Organizamos o texto em cinco partes. Depois dessa breve introdução,
preparamos o solo tomando a luta pela Terra no Brasil como substrato para
o enraizamento da Educação Popular e da Agroecologia. Na terceira e quarta
partes realizamos uma “leitura de mundo” em que abordamos, sucintamente,
alguns elementos constitutivos da EP e da AGEA. Na quinta parte, procura-
mos tematizar algumas de suas bases epistemológicas, à guisa de considerações
provisórias, propondo que suas práxis podem caminhar juntas.

A luta pela Terra como substrato


A luta pela terra no Brasil data desde a época dos primeiros passos dos ho-
mens europeus e brancos em nosso solo, quando se deu início ao processo de
“descobrimento”: paulatinamente passaram a “descobrir” as terras tropicais
do manto verde que vicejava nessa região; “descobriram” também o solo de
grande parte de seus e de suas moradoras originárias; passaram a “descobrir”
terras africanas de seus povos e suas gentes, de sua dignidade e humanidade,
para auxiliar na tarefa de “descobrir” outros territórios.
Esse “descobrimento”, no Brasil, teve início há mais de 520 anos e
persiste em todas as regiões em que ainda restam pequenos nichos de Mata
Atlântica, resquícios de Cerrado, reservas de Araucárias, de florestas tropicais,
de pampas e savanas.
Paulo Freire fala, em seu livro Pedagogia da Indignação, sobre a “desco-
berta” da América, e afirma:

204
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Não penso nada sobre o “descobrimento” porque


o que houve foi conquista. E sobre a conquista,
meu pensamento definitivo é a recusa. A presen-
ça predatória do colonizador, seu incontido gosto
de sobrepor-se, não apenas ao espaço físico, mas
ao histórico e cultural dos invadidos, seu mando-
nismo, seu poder avassalador sobre as terras e as
gentes, sua incontida ambição de destruir a identi-
dade cultural dos nacionais, considerados inferio-
res, quase bichos, nada disto pode ser esquecido
quando, distanciados no tempo, corremos o risco
de ‘amaciar’ a invasão e vê-la como uma espécie de
presente ‘civilizatório’ do chamado Velho Mundo
(...) Não serão 500 anos que nos separam da che-
gada invasora que me farão bendizer a mutilação
dos corpos e da alma da América e cujas mazelas
carregamos hoje ainda (FREIRE, 2000, p. 73).

Essas mazelas se demonstram quando, depois de defraudada a primeira


coberta do “descobrimento”, outras permanecem sendo “descobertas” – ouro,
prata, minérios –, aprofundando o terror e a destruição à medida que crescem
as ambições e vaidades, avançando em todo e qualquer fragmento de Nature-
za, de maneira perversa, poluindo ares, águas e rios, ocupando, principalmen-
te com pastagens, soja e cana, extensas áreas onde os componentes arbóreos
outrora vicejavam.
O recrudescimento do manejo da Natureza como “commodities” (ou
recurso) traz consigo uma perversa marca – a da escassez. Como afirma Freire
(2001, p. 71), o capitalismo “Produziu a escassez na abundância, a carência
na fartura. Daí a necessidade de que têm os neoliberais de impregnar seus dis-
cursos de fatalismo, para eles irrecusável, segundo o qual ‘as coisas são assim
porque não há outra maneira’”. O autor complementa que o cinismo desse
tipo de discurso ideológico escamoteia a urgência de uma crítica contundente
a “um sistema que, embora sem escassez, condena grande parte da humani-
dade à fome e à morte. As sucessivas revoluções tecnológicas desnudaram o
capitalismo. Forçaram-no a expor sua maldade – milhões de gentes morrendo
de fome, cara a cara com a riqueza” (idem).
Dados atuais corroboram a contemporaneidade do pensamento frei-
riano. Um dos exemplos disso é que a Insegurança Alimentar (IA) vem au-

205
Educação Popular e Agroecologia

mentando assustadoramente nos últimos anos, principalmente com a pan-


demia da Covid-19.
Os números não nos deixam mentir. O relatório da ONU sobre o Es-
tado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo, divulgado em julho de
2022, apontou que 9,8% da população global passa fome, atingindo 828 mi-
lhões de pessoas.
Segundo inquéritos realizados pela Rede Brasileira de Pesquisa em So-
berania e Segurança Alimentar (PENSSAN) e parceiros, as restrições de acesso
à alimentação no Brasil desde 2020 expõem um contexto de grave deterio-
ração social e econômica além de ampliar as já profundas desigualdades em
nosso país. E essa situação persiste:

com desemprego elevado, precarização do traba-


lho, perda de direitos sociais e queda do poder
aquisitivo – enquanto a Covid-19 seguia ceifando
vidas às centenas de milhares, num ritmo aterro-
rizante, chegando a mais de 660 mil mortes em
abril de 2022 – fatos que revelaram para a socie-
dade brasileira uma autoimagem desconcertante,
expressa em mazelas que se agravam e se renovam.
Nesse sentido, níveis alarmantes de IA [Inseguran-
ça Alimentar] e de fome integram o contexto de
crises que seguem vulnerabilizando um crescente
contingente populacional, agora incorporando
segmentos das camadas médias antes socialmente
mais protegidas. Por outro lado, ao avanço desse
ambiente de degradação social se juntaram os pro-
gressivos processos de desmonte de políticas pú-
blicas e a fragilização das instituições que formam
a rede de proteção social, tanto no campo da ali-
mentação, como no de outras condições exigidas
para que se tenha uma vida digna e saudável (II
VIGISAN, 2022, p. 20).

Os resultados desses inquéritos desvelam outros dados alarmantes:


atualmente, temos no Brasil cerca de 125,2 milhões de pessoas padecendo
com a IA e mais de 33 milhões em situação de fome, expressa pela IA grave.

206
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Cabe olharmos ainda para o contexto da produção dos alimentos no


Brasil. Nossas políticas de Estado têm historicamente privilegiado o tão pro-
palado Agro-negócio, em detrimento da Agri-cultura, praticada historicamente
por agricultores e agricultoras familiares, populações e comunidades tradicio-
nais, o que têm só aumentado a desigualdade e dificultado o acesso a uma ali-
mentação e vida dignas por boa parte da população. Citando Marco Antonio
Mitidiero Jr. e Yamila Goldfarb (2021, p. 32):

O ano de 2020 possibilitou o aparecimento de


um enigma na sociedade brasileira. Não que esse
enigma não existisse na história nacional, mas ele
ficou mais evidente: o país bateu recordes de pro-
dução agrícola e pecuária, ao passo que os preços
dos alimentos subiram de forma avassaladora e a
fome voltou a ser uma realidade cotidiana (...). A
produção agropecuária, como atividade natural-
mente essencial, não parou durante a pandemia
(...) A inserção subalterna do Brasil no mercado
internacional, a falta de posição do governo federal
em assegurar a soberania alimentar e a deterioração
do real frente ao dólar fizeram com que comprado-
res estrangeiros, munidos de dólares, comprassem
parte importante dos alimentos, que escassearam
no mercado interno.

Esse maquiavélico cenário se desenha no mundo todo com o aumento


da desigualdade de maneira perversa: o Relatório da Oxfam (denominado
“Lucrando com a dor”) aponta que a fortuna dos bilionários dos setores de
alimento, agronegócio, petróleo, gás e carvão cresceu em mais de um bilhão
de dólares a cada dois dias. Por outro lado, o mesmo texto afirma – com base
em dados do Banco Mundial – que cerca de 263 milhões de pessoas poderão
ser levadas à pobreza extrema em 2022.
Tal contexto não pode ser naturalizado. As populações do campo, em
suas lutas pela Terra, são vítimas desse processo de “descobrimento” e também
do propalado “desenvolvimento econômico”, com suas tecnologias, todos eles
tentáculos de um sistema necrófilo e predador que ameaça a identidade e dig-
nidade dessas pessoas.

207
Educação Popular e Agroecologia

No prefácio de À sombra desta mangueira” (FREIRE, 2001), Ladislaw


Dowbor já denunciava algumas das perversidades que parecem estar por trás
desses números:

Hipnotizados pelos espelhinhos, percebemos cres-


centemente o capitalismo como gerador de escas-
sez: enquanto aumenta o volume de brinquedos
tecnológicos nas lojas, escasseiam o rio limpo para
nadar ou pescar, o quintal com suas árvores, o ar
limpo, água limpa, a rua para brincar ou passear;
a fruta comida sem medo de química, o tempo
disponível, os espaços de socialização informal. O
capitalismo tem necessidade de substituir felicida-
des gratuitas por felicidades vendidas e compradas
(DOWBOR, 2001, p. 12).

Como enfrentamento a este contexto perverso e opressor, vemos recru-


descer movimentos de EP e de AGEA em diferentes territórios, representan-
do formas avançadas de organização social, capazes de promover estratégias
de enfrentamento a “esse caos articulado de interesses corporativos que nos
acostumamos a chamar de neoliberalismo, e que maneja técnicas de impacto
universal e irreversível” (DOWBOR, 2001, p. 8).

Leitura de Mundo: Educação Popular como Ciência,


prática e movimento

Como Ciência, podemos afirmar que a EP produz conhecimentos a partir da


associação explícita de uma proposta pedagógica a um projeto ético-político
de transformação social com vistas à autonomia e emancipação populares.
Assim, a Educação Popular é entendida como uma maneira de perce-
ber, de ver e viver o mundo, partilhada com aqueles/as que se propuseram a
trilhar caminhos comuns (VASCONCELOS, 2014). Sua prática se dá quan-
do, como teoria do conhecimento, coloca-se em movimento e se expressa na
ação. Para Brandão (1984), a EP pode ser considerada um movimento de
educação ou, melhor ainda, a educação em estado de movimento, um serviço
pedagógico em favor das pessoas oprimidas.
Representa, assim, um contraponto latino-americano ao pensamento
hegemônico instaurado pelos colonizadores e emerge de diferentes origens,

208
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

“protagonizadas por pessoas que ousaram contestar a absolutização do para-


digma europeu como verdade única” (VASCONCELOS, 2020, p. 498).
De acordo com Brandão (20211), é importante ter em mente que, as-
sim como a pessoa que ensina-e-aprende, a Educação Popular não “é”, mas
“está sendo” e possui como caminho sempre um “mover-se em direção a” que
contribui para “ir além de”. Nessa perspectiva, é imprescindível compreendê
-la como uma práxis que vai se reconceptualizar à medida que surgem novos
dilemas, novos desafios e, sobretudo, novos sujeitos atores de ações emancipa-
tórias em diferentes vocações, dimensões e direções.
Dessa forma, ainda segundo o autor, pressupõe uma pluri-adesão a ser-
viço de diferentes atores sociais do passado (camponeses/as e operários como
classe social) e do presente (eles/as e mais indígenas, negros, quilombolas,
minorias e maiorias expropriadas e oprimidas).
A EP e a política são inextricáveis, uma vez que exige um posiciona-
mento claro a favor de que e de quem estamos, uma tomada de consciência
de nós mesmos, de nosso lugar no mundo e um franco posicionamento sobre
qual é o projeto que nos move.
É a partir de nós que conseguimos enxergar o Outro. Para Brandão
(2021), “o meu melhor e mais fiel espelho de mim-mesmo é o rosto do meu
Outro. E o reconhecimento do Outro deriva em reconhecimento de ações po-
líticas de realização de um Entre-Nós”. Assim, a dimensão “política” é aquela
que em seu primeiro momento volta este “Si-mesmo” ao Outro. Complemen-
tarmente, Jara (2020, p. 40) assevera que “a busca ética implica por transfor-
mar a realidade e transformarmos a nós mesmos como parte essencial dela.
Implica por uma opção por nos construirmos como sujeitos transformadores
e criadores”.
Quando vemos pessoas passando fome, esse Outro nos diz muito, nos
diz que é urgente que pensemos em alternativas e ações concretas na luta con-
tra a fome e contra toda forma de opressão. E a fome é a pior delas, porque ela
mitiga a nossa força vital.
Nessa perspectiva, a EP como movimento se liga à AGEA nessa potên-
cia, que nos convoca a outras relações com o Outro que não nós, com a Terra,
com a economia, com a Natureza. E só nos dando conta de que o que o capi-
talismo vem fazendo é predatório, é desumano, é injusto, é que conseguimos
nos mobilizar nestes territórios e com estes movimentos.

1 Trabalho encomendado GT06/EP/ANPEd, 2021.

209
Educação Popular e Agroecologia

Leitura de mundo: Agroecologia como Ciência, Prática e Movimento

A agroecologia cor-
responde à práxis
multidimensional;
portanto, abarca o ser
humano em sua práxis
total, daí que, em sín-
tese, sua concepção é
expressa como prática
social, luta e ciência

(TARDIN; TRAVASSOS, 2021, p. 378)

A Agroecologia busca construir uma nova abordagem para a Agri-


cultura, assumindo que esta não tem apenas um papel econômico e pro-
dutor de alimentos, mas funções ambientais, culturais e sociais (MELLO;
OLIVEIRA, 2020).
Enquanto Ciência, busca estudar os sistemas de produção de alimen-
tos, compreendidos como ecossistemas, a partir de uma visão sistêmica so-
bre a complexidade dessas áreas, chamadas “agroecossistemas”. A Agroecolo-
gia apresenta ferramentas para se estudar, compreender, desenhar e manejar
agroecossistemas complexos, produtivos e voltados à conservação e ampliação
da biodiversidade (ALTIERI, 2004).
A prática da Agroecologia assume pressupostos que vão totalmente
contra o modelo hegemônico e convencional de produção de alimentos, vol-
tado à simplificação. A AGEA se pauta na agro, sócio e biodiversidade. A
FAO, descrevendo os dez elementos fundantes da Agroecologia (FAO, 2018),
afirma que a abordagem da AGEA é diferente das demais, por ser uma área de
conhecimento voltada para a sustentabilidade de “baixo para cima”, ou seja,
parte da realidade local para buscar a transformação em outras escalas, pensan-
do em um novo sistema alimentar. Entre seus elementos estão: a diversidade;
as sinergias; a resiliência; a cocriação de conhecimento; a partilha de saberes;
a Economia solidária; a Economia circular; a valorização de valores humanos,
sociais e das tradições culturais e alimentares.
Essa abordagem enfoca diferentes escalas, desde a parcela produtiva,
área de plantio de alimentos, até o sistema de produção de alimentos, no qual

210
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

os pressupostos da diversificação e da complexidade devem estar presentes.


Sistemas de produção de base agroecológica pressupõem produção pautada na
diversidade; equilíbrio ecológico; geração digna de renda e forte justiça social.
Nesses termos, conforme colocado anteriormente, é fundamental res-
saltar o grave momento histórico pelo qual estamos passando, em que além
de milhões de pessoas em situação de Insegurança Alimentar e em situação de
fome, a desigualdade de acesso aos alimentos se manifesta com maior força
em domicílios rurais, 18,6% dos quais enfrentando a fome em seu cotidiano.
Esses dados nos mobilizam a repensar esse modelo hegemônico de agri-
cultura que nos tem sido imposto. A falácia do “Agro é pop, agro é tech, agro
é tudo” representa uma falsa narrativa a partir de uma visão muito mais de
Agro-negócio do que de Agri-cultura. O agronegócio trata a Agricultura como
negócio, como lucro. Já a Agricultura é a cultura alimentar, a cultura de pro-
dução de alimentos.
Tudo isso traz um cunho político muito forte na própria definição
de AGEA.
Nesse (terrível) atual momento político, existe uma nítida e clara tenta-
tiva de enfraquecimento de políticas voltadas a garantir o acesso à alimentação
de qualidade, e o fortalecimento da agricultura de base familiar. É nítido e
claro o desmantelamento de instituições, políticas e normativas pautadas em
processos dialógicos e democráticos de tomada de decisão, e voltadas a prá-
ticas não hegemônicas, contra a desigualdade, de valorização das minorias e
de justiça social. Tanto para a Educação quanto para uma agricultura de base
sustentável, os retrocessos são gritantes.
Importante salientar aqui as leis existentes que têm a AGEA como mote,
e a necessidade de ampliação e fortalecimento de políticas públicas voltadas à
agricultura familiar já existentes – alguns exemplos são a Política Nacional de
Agroecologia e Produção Orgânica, o Programa Nacional de Fortalecimento
da Agricultura Familiar, o Programa de Aquisição de Alimentos e o Programa
Nacional de Educação Escolar – e da criação de novas políticas, bem como de
uma análise crítica de sua implementação e abrangência.
No conteúdo do glossário da Política Nacional de Agroecologia e Pro-
dução Orgânica (PNAPO, 2012), a primeira definição são os “produtos da
sociobiodiversidade”, o que demonstra que a diversidade de alimentos, a di-
versidade produtiva relacionada com a agricultura e com o agroextrativismo,
também está relacionada com o saber tradicional das populações que mane-
jam espécies nativas nos nossos ecossistemas naturais.

211
Educação Popular e Agroecologia

É preciso pensar em formas de garantia de Direitos, da segurança e


soberania alimentar de todas as pessoas, principalmente as mais frágeis, que
são os povos tradicionais, as populações negras, indígenas e as mulheres.
Como afirma Brandão (2021), não existe horizonte viável no domí-
nio do capitalismo neoliberal. Pressupõe ações de “emancipação do sistema
capitalista” e não apenas de “regulação do sistema”. É ele, em sua opressora
inteireza, que deve ser inteiramente revolucionado, transformado. E as prá-
ticas agroecológicas, a partir de suas resistências, buscam garantir autonomia
e protagonismo às pessoas que trabalham com a agricultura camponesa e
com a agricultura tradicional.
Quando discutimos a interação entre AGEA e EP, exatamente estes
dois alicerces nos parecem fundamentais – a autonomia e o protagonismo
–, o que procura promover dignidade e liberdade para produzir alimentos
da forma mais agroecológica e de base orgânica possível, além do acesso a
esses alimentos.

Refletindo sobre a Agroecologia e a Educação Popular

É preciso, porém, que tenhamos na resistência que nos


preserva vivos, na compreensão do futuro como problema
e na vocação para o ser mais como expressão da natureza
humana em processo de estar sendo, fundamentos para a
nossa rebeldia e não para a nossa resignação em face das
ofensas que nos destroem o ser. Não é na resignação, mas na
rebeldia em face das injustiças que nos afirmamos.

(FREIRE, 1996, p. 87, grifos nossos)

Partindo da política como intencionalidade, um dos temas que emerge


com força na articulação entre EP e AGEA é a resistência. De acordo com Tar-
din e Travassos (2021, p. 375), “A educação popular em agroecologia se insere
no contexto de reação ao avanço vertiginoso do agronegócio e de sua ideologia
nas últimas décadas”. Isso se expressa dentro de uma perspectiva crítica cuja
epistemologia se assenta na ação política de enfrentamento aos persistentes
problemas sociais relacionados ao campo, desde a questão agrária, passando
pela problemática ambiental e pelo acirramento da luta de classes. Para nes-
sa perspectiva “é possível identificar um conjunto de propostas e de práticas

212
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

agroecológicas presentes nos movimentos sociais do campo, considerando-a


como um caminho importante na geração de um projeto de sociedade e de
atuação político-pedagógica” (TARDIN; TRAVASSOS, 2021, p. 375).
Assim, é imprescindível refletir sobre como educar e nos educarmos em
um sistema diferente, que promova a humanização e que confira autonomia
e emancipação. A formação, na perspectiva da Agroecologia, é fundamental-
mente interdisciplinar com vistas a desenvolver uma visão crítica e à transfor-
mação da realidade.
A Unidade na diversidade de que fala Freire cabe também para os siste-
mas alimentares e produtivos, porque podemos ter vários modelos possíveis,
os produtos, os alimentos, as espécies manejadas. Na AGEA existem a diver-
sidade planejada e a diversidade associada. A pauta ecológica das interações e
efeitos a partir do manejo – dentro da pequena escala até a paisagem – está in-
terligada. Os múltiplos sistemas produtivos formam uma unidade em termos
de reduzir venenos, conservar água, florestas, pessoas, populações ribeirinhas,
jangadeiros, extrativistas, pescadores, quilombolas. Isso tudo é diversidade na
paisagem agrícola.
Os princípios e diretrizes da educação em AGEA foram publicados
pela Associação Brasileira em AGEA em 2013, buscando a ressignificação
de alguns eixos integradores, que são eles: Vida, diversidade, complexidade
e transformação.
Para Altieri (2010), a Educação em Agroecologia deve possibilitar a
integração das dimensões socioculturais, o engajamento em processos parti-
cipativos e a valorização de toda e qualquer forma tradicional de agricultura.
Deve ser pautada na análise crítica da realidade, no desenvolvimento local e
no empoderamento social, atuando em processos econômicos, sociais, cultu-
rais e políticos.
Nesse âmbito vemos mais uma forte articulação entre a EP e a AGEA,
como Brandão (2021) afirma: “a Educação Popular promove cenários e fren-
tes de reconhecimento pessoal e interativamente solidário de resistência e
de luta em nome de um horizonte de libertação de todos e de tudo, entre
pessoas, sociedades, o Mundo e a Vida”. Para o autor, a Educação Popular
tende a realizar-se como uma pedagogia de transformações. Nesse sentido,
política e educação se mesclam num processo contínuo de aprendizado e
transformação social.
Já para Tardin e Travassos (2021), uma:

213
Educação Popular e Agroecologia

Educação Popular em Agroecologia se constitui


pelos saberes oriundos das práticas dos trabalha-
dores e trabalhadoras para manter uma forma de
vida humanamente viável, com a preservação de
técnicas ancestrais, articuladas aos conhecimentos
científicos e novos saberes construídos pelas expe-
riências atuais que orientam formas originais de
sociabilidade em relações sustentáveis na e com a
Natureza (TARDIN; TRAVASSOS, 2021, p. 382).

Quando refletimos sobre a Unidade na diversidade e na formação em


EP e AGEA, é fundamental compreender os processos de invisibilização e
criminalização dos movimentos e pessoas do campo. E a realidade em que as
pessoas estão é ponto de partida e ponto de chegada para a EP. Portanto, é
mister perguntar: quem são as pessoas com quem atuamos?
Partimos de um tripé: as pessoas são, como todos e todas nós, sujeitos
sociais – que se relacionam, que sentem, pensam, sonham, desejam; são sujei-
tos históricos – que possuem ancestralidade, que viveram, vivem, instauram,
intervêm, constroem; são sujeitos políticos – que decidem, comprometem,
implicam, negociam, desafiam, denunciam, anunciam. Complementarmente,
é preciso também que nos entendamos como seres sentipensantes que somos
(FALS BORDA, 2015).
Tanto a EP quanto a AGEA possuem um compromisso ético de de-
nunciar realidades opressoras e de anunciar possibilidades de superação. Esse
apagamento produzido pela ideologia é temerário, perverso, porque obscurece
a compreensão que a maior parte das pessoas têm sobre seu próprio entorno.
Em toda e qualquer formação em EP e AGEA, por conseguinte, é premissa
fundante contribuir para que os sujeitos tomem a história nas mãos e se tor-
nem sujeitos capazes de transformar a realidade em que vivem.
Além disso, como educadoras e educadores, pensamos ser urgente des-
velar o “opressor que nos habita”. Quantos dos valores hegemônicos não re-
produzimos? O quanto desses valores não estão introjetados em nós? Uma
das maiores denúncias da Pedagogia do Oprimido de Freire é que o oprimido
introjeta os valores do opressor em si, mas parece que, em muitos casos, esse
oprimido é o Outro. É necessário olhar para nós mesmas/os e perceber o
quanto de concepções racistas, sexistas, patriarcais, capitalistas ainda resiste
em nós para que possamos nos engajar em uma educação verdadeiramente

214
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

como prática da liberdade. Para que consigamos desenvolver práticas pautadas


na racionalidade, espiritualidade e ética na busca por um redesenho da vida
como cuidado, afetividade e amorosidade.

Sobretudo nas últimas décadas, a Educação Popu-


lar diferencia-se, sem perder o seu foco transforma-
dor e revolucionário mesmo, a Educação Popular
interage com outras vocações da educação, desde
quando também elas pensem e trabalhem em di-
reção a um horizonte de luta em favor dos oprimi-
dos (os “esfarrapados” da Terra) em Pedagogia do
Oprimido. Em favor da emancipação social frente
ao sistema capitalista. Em nome do fortalecimento
de uma democracia ativa e participativa. Em nome
também do ambiente e da Vida, das minorias e das
maiores marginalizadas e subalternizadas, dos di-
reitos humanos e dos direitos da Vida. Enfim, da
paz e da felicidade entre todas as pessoas, todos os
povos e todas as nações (BRANDÃO, 2021).

De acordo com Brandão (2021), faz-se urgente construir uma Educa-


ção Popular plural, de progressiva humanização por meio de transformações
pessoais-coletiva-e-sociais realizadas em e entre culturas, numa “pedagogia do
oprimido”. Isso pressupõe uma pluriadesão a serviço de diferentes atores so-
ciais, tais como camponeses, operários, indígenas, negros, quilombolas e todas
as minorias e maiorias expropriadas e oprimidas.

Breves considerações
A partir dessas reflexões, gostaríamos de resgatar um trecho de nossos escritos,
no qual, buscando refletir sobre os princípios fundantes da Educação Popular
e da Agroecologia, afirmamos que:

Ambas trazem em suas bases fundamentais a opo-


sição à alienação e à domesticação, a valorização
de saberes populares e tradicionais, a busca pela
emancipação e construção de autonomia para
transformação da realidade. Pautam-se e dialogam
com movimentos sociais e populares, propõem

215
Educação Popular e Agroecologia

práticas mais humanizadoras baseadas em relações


dialógicas e horizontais entre seus atores (OLIVEI-
RA; VASCONCELOS, 2016, p. 36).

Todas e todos nós somos educadoras e educadores nessas práxis dialó-


gicas e complementares de resistência e luta por soberania alimentar, eman-
cipação e justiça social. Nessa perspectiva, finalizamos este texto trazendo a
poesia de Carlos Rodrigues Brandão, prenhe de amorosidade e esperança, a
qual entendemos como uma luz a orientar os caminhos convergentes entre as
práxis que professamos e praticamos.

Nós, as pessoas que educam

Nós, educadoras e educadores


de pessoas, da vida, da cultura e da sociedade,
aprendemos e ensinamos porque cremos
que somos também, como a própria vida,
feitos de água, de barro e de fogo
e por isso somos o desejo e o amor.
Somos feitos de terra e de vento
e, assim, somos eternos como a vida
e somos passageiros como a flor.
(...)
Somos o perene, o fluir e o momento,
a árvore, a pedra, o vento e a flor.
Somos a energia, a luta e a paz.
Somos a vida criada e o criador.
Somos o mundo que sente,
e irmãos da vida saberemos ser.
(...)
Somos a aventura de lembrar o que se esquece
E somos quem acende de novo a fogueira
de toda a sabedoria adormecida.
Somos quem acorda a consciência,
Desvela o afeto, e se arma de ternura
Para semear o saber e a rebeldia.
Assim, em cada ser que nasce, há a nossa alma
Em cada ser que aprende a nossa aura
E em cada gesto do saber que liberta, a nossa vida.

216
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Referências bibliográficas
II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da CO-
VID-19 no Brasil [livro eletrônico]: II VIGISAN: relatório final/Rede Brasilei-
ra de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar – PENSSAN. São Paulo,
SP: Fundação Friedrich Ebert: Rede PENSSAN, 2022.
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Porto Alegre RS: Editora UFRGS, 2004.
ALTIERI, Miguel. How to teach Agroecology. University of Berkeley, California: Te-
chnical Report, 2010. Disponível em: https://www.researchgate.net/publi-
cation/303447507_How_to_teach_agroecology. BRANDÃO, Carlos Ro-
drigues. Pensar a Prática: escritos de viagem e estudos sobre a educação. São
Paulo: Edições Loyola, 1984.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Uma estranha vocação da Educação: ser Popular. Tra-
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FALS BORDA, Orlando. Una sociología sentipensante para América Latina. CLAC-
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FAO Food and Agriculture Organization of the United Nations. The ten elements
of Agroecology. 2018. Disponível em: https://www.fao.org/agroecology/over-
view/overview10elements.
FARIA, Andréa Alice da Cunha. Agroecologia: métodos e técnicas para uma agricultu-
ra sustentável. UFPB, 2017.v. 4.
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São
Paulo: Editora UNESP, 2000.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
JARA, Oscar. A educação popular latino-americana: História e fundamentos éticos,
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MELLO, Ana Paula de Oliveira Amaral; OLIVEIRA, Renata Evangelista de. Exten-
são Rural Agroecológica: experiências para (trans)formação no Ensino Supe-
rior em Agroecologia. Revista Elo – diálogos em Extensão, v. 9, p. 1-7, 2020.
MITIDIERO JR., Marco Antonio; GOLDFARB, Yamila. O agro não é tech, o agro
não é pop e muito menos tudo. ABRA, Frederich Ebert Stiftung, 2021, 40p.
OLIVEIRA, Renata E. de; VASCONCELOS, Valéria O. de. Diálogos entre agroe-
cologia e educação popular: práxis e extensão. Revista ELO – Diálogos em Ex-
tensão, [S. l.], v. 5, n. 1, 2016. DOI: 10.21284/elo.v5i1.175. Disponível em:
https://periodicos.ufv.br/elo/article/view/1129. Acesso em: 31 maio 2022.
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In: DIAS, Alexandre Pessoa; STAUFFER, Anakeila de Barros; MOURA, Luiz
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logia e Educação. São Paulo: Editora Expressão Popular; Rio de Janeiro: Escola
Politécnica Joaquim Venâncio, 2021, p. 375-383.

217
Educação Popular e Agroecologia

VASCONCELOS, Valéria Oliveira de. Diálogos às margens: reinventando a Educa-


ção Popular em contextos de trabalho comunitário e pesquisa. In: OLIVEI-
RA, Maria Waldenez; SOUSA, Fabiana Rodrigues (org.). Processos educativos
em práticas sociais: pesquisas em educação. São Carlos, SP: Edufscar, 2014. p.
195- 212.
VASCONCELOS, Valéria Oliveira de. Entre a utopia e a concretude da Educação Po-
pular: proposições para uma formação crítica. In: VILLAGÓMEZ, M. S. R.;
SOFFNER, R; ROCCHI A; MARQUES, L. (coord.). Desafíos de la educación
salesiana: experiencias y reflexiones desde las IUS. Quito/Ecuador: Editorial
Universitaria Abya-Yala, 2020.

218
Sobre As/Os AutorAs/Es

Adrielle Karolyne Lisboa – Professora e Orientadora Pedagógica da Rede Pú-


blica Municipal de Educação de Nilópolis/RJ. Doutoranda em Educação
no Programa de Pós-Graduação Processos Formativos e Desigualdades
Sociais (PPGedu-UERJ/FFP). Faz parte do Grupo Infâncias, Formação
de Professores(as) e Diversidade Cultural (GIFORDIC). Email: drielle-
lisboa@gmail.com

Amanda Motta Castro – Professora do Programa de Pós-Graduação em Edu-


cação da Universidade Federal do Rio Grande/FURG e docente do De-
partamento de Educação da mesma instituição. Doutora pelo Programa
de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Si-
nos/UNISINOS; foi bolsista CAPES durante (2009-2015). É mestra em
Educação (2011) e Graduada em História e Pedagogia (2000). Realizou
Estágio de doutoramento na Universidad Autonoma Metropolitana del
México (UAM/CDMX), no departamento de Antropologia. Trabalhou
no Ministério da Educação (MEC) e na Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura (ONU/UNESCO), desenvol-
vendo trabalhos no campo da Educação, através de projetos sociais e
formação docente. Compõe la Comunidad de Pensamiento Feminista
Latinoamericano El Telar e o Grupo de pesquisa interdisciplinar Lélia
Gonzalez. É associada à ANPUH (Associação Nacional de História) e à
ANPEd (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educa-
ção). Atualmente realiza estágio de Pós-doutoramento en Estudios Fe-
ministas en la Universidad Autónoma Metropolitana (UAM/CDMX).
Atua no campo das ciências humanas e sociais pesquisando sobre os se-
guintes temas: Estudos Feministas, Redes feministas na América Latina,
Direitos humanos, Educação Popular, desigualdades sociais e políticas
públicas. Contato: motta.amanda@gmail.com

219
Sobre As/Os AutorAs/Es

Ana Célia Silva Menezes – Pedagoga, doutora em Educação, é Professora


da UFPB. Membro-pesquisadora do Observatório da Educação Popu-
lar e do Grupo de pesquisa em currículo, formação de professores/as e
pesquisa (auto)biográfica. Membro do grupo de formadores da Rede de
Educação do Semiárido Brasileiro (RESAB). Pesquisa: Currículo; Edu-
cação Popular; Educação do Campo e Educação para Convivência com
o Semiárido Brasileiro.

Ana Claudia Cavalcanti Peixoto de Vasconcelos – Professora Associada I,


aposentada da Universidade Federal da Paraíba, com experiência na área
de Saúde Coletiva, onde atuou principalmente nas áreas de saúde públi-
ca, promoção da saúde, segurança alimentar e nutricional, formação em
saúde, educação popular em saúde e educação alimentar e nutricional.

Beatris Barbosa Moreira – Graduada em Letras licenciatura (Língua Portu-


guesa) pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Reali-
zou, em um período de seis meses, mobilidade acadêmica na Faculdade
de Letras da Universidade do Porto (FLUP), em Portugal. Atualmente, é
professora de Língua Portuguesa e Literatura, atuando no Ensino Funda-
mental Anos Finais e no Ensino Médio.

Camila Citadin Milaneze – Possui graduação em Engenharia Mecânica pela


Faculdade SATC (2012) e Pós-Graduação em Engenharia de Segurança
do Trabalho pela UNISOCIESC (2017).

Caroline da Silva Barbosa – Professora de Artes Cênicas da Secretaria Muni-


cipal de Educação do Rio de Janeiro. Licenciada e Mestre e Artes Cênicas
pela UNIRIO. Doutoranda em Educação no Programa de Pós-Gradua-
ção Processos Formativos e Desigualdades Sociais (PPGedu - UERJ/FFP).
Faz parte do Grupo Infâncias, Formação de Professores(as) e Diversidade
Cultural (GIFORDIC). Email: carolbarbosa.80803@gmail.com

Carlos Rodrigues Brandão – Licenciado em psicologia e Psicólogo pela


Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1965); mestre em
antropologia pela Universidade de Brasília (1974). Doutor em Ciências
Sociais pela Universidade de São Paulo (1980); Livre docente em Antro-
pologia do simbolismo pela Universidade Estadual de Campinas. Rea-
lizou pós-doutorado na Universidade de Perugia e na Universidade de

220
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Santiago de Compostela. É “fellow” do St. Edmund’s College da Univer-


sidade de Cambridge. Atualmente é professor colaborador do Programa
de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Estadual de Cam-
pinas (UNICAMP), professor colaborador do POSGEO da Universida-
de Federal de Uberlândia (UFU) e professor visitante da Universidade
Estadual de Goiás. Possui experiência na área de antropologia, com ênfa-
se em antropologia camponesa, antropologia da religião, cultura popular,
etnia e educação, com foco na educação popular. É Comendador do
Mérito Científico pelo Ministério de Ciência e Tecnologia, Doutor Ho-
noris Causa pela Universidade Federal de Goiás, Doutor Honoris Causa
pela Universidad Nacional de Lujan (Argentina), professor emérito da
Universidade Federal de Uberlândia e professor emérito da Universidade
Estadual de Campinas. Escreveu artigos e livros nas áreas de antropolo-
gia, educação e literatura.

Dulce Consuelo Andreatta Whitaker – Possui graduação em Ciências So-


ciais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1967),
Mestrado em Sociologia pela Universidade de São Paulo (1979), Douto-
rado em Sociologia da Educação pela Universidade de São Paulo (1984)
e Pós-doutorado em Sociologia pela Universidade de Oxford (1986).
Atualmente é professora voluntária e colaboradora, atuando na Pós-Gra-
duação em Educação Escolar do Campus de Araraquara, da Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, e Professora da Pós-Graduação
em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente do Centro Universitá-
rio de Araraquara (UNIARA). É co-editora da revista Retratos de Assen-
tamentos, do Núcleo de Pesquisa e Documentação Rural (NUPEDOR/
UNIARA). Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em So-
ciologia Rural, atuando principalmente nos seguintes temas: educação,
cultura, metodologia, assentamento rural e sociologia rural.

Fabiana Eckhardt – Professora no Programa de Pós-Graduação em Educação


(PPGE/UCP). Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Infân-
cias, Docências e Alteridade (IDA/UCP) e é vice-coordenadora do Gru-
po de Estudos e Pesquisas sobre Avaliação, Educação Popular e Escola
Pública (GEPAEP/UFF). Email: fa.eckhardt@gmail.com

Fabiana Rodrigues de Sousa – Doutora em Educação pelo Programa de


Pós-Graduação em Educação, UFSCar, Campus São Carlos. Docente da

221
Sobre As/Os AutorAs/Es

Universidade São Francisco (USF), membro do Comitê Científico e do


GT6 Educação Popular (ANPEd).

Felipe Marques da Silva – Técnico em contabilidade pelo IFPB, graduando


em Fisioterapia pela UFPB, onde atua como extensionista pelo Programa
de Pesquisa e Extensão “Práticas Integrais em Promoção da Saúde e Nu-
trição na Atenção Básica” (PINAB), e pelo projeto “Práticas de Educação
Popular integradas à pesquisa e à construção de territórios saudáveis e
sustentáveis”, vinculado ao Grupo de Pesquisa em Extensão Popular EX-
TELAR/NUPLAR/UFPB.

Fernanda Priscila Alves da Silva – Doutora em Educação e Contemporanei-


dade pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporanei-
dade, UNEB, Campus I. Docente da Universidade Federal do Amazonas
(UFAM).

Florentino Maria Lourenço – Professor do ensino secundário e superior em


Moçambique e militante dos movimentos sociais. Licenciado em ensino
de português, mestre em Pedagogia e Didática, doutorando em Educa-
ção no Programa de Pós-Graduação Processos Formativos e Desigualda-
des Sociais (PPGedu-UERJ/FFP). Faz parte do Grupo Infâncias, For-
mação de Professores(as) e Diversidade Cultural (GIFORDIC). E-mail:
florentinomarialourenco@gmail.com

Gercina Santana Novais – Professora do Programa de Mestrado Profissional


em Educação: formação docente para a Educação Básica da Universidade
de Uberaba (Uniube). Líder do Grupo de Pesquisa Formação Docen-
te, Direito de Aprender e Práticas Pedagógicas (FORDAPP). Membro
da REDECENTRO – Rede de pesquisadores sobre professores(as) do
Centro-Oeste/Brasil. Membro da coordenação da Rede Cooperativa de
Ensino, Pesquisa e Extensão em escolas de Educação Básica (RECEPE).
E-mail: gercinanovais@yahoo.com.br ; ORCID: https://orcid.org/0000-
0002-7327-8375

Ingrid Gabriele de Souza – Tecnóloga em controle ambiental pelo IFRN.


Atualmente estudante de medicina da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB), onde atuou como extensionista na aérea da educação popular
em saúde pelo Programa de Pesquisa e Extensão “Práticas Integrais em

222
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

Promoção da Saúde e Nutrição na Atenção Básica” (PINAB). Fez parte


do projeto “Práticas de apoio às ações de educação popular nos espaços
do sistema único de saúde (SUS): aprimorando a formação de atores e
sistematização de experiências”.

Janine Moreira – Mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal de


Santa Catarina (UFSC). Doutora em Psicopedagogia pela Universidade
de Córdoba /Espanha (convalidado pela UFSC como Doutorado em
Educação). Professora do Programa de Pós-Graduação da UNESC. Líder
do Grupo de Pesquisa Descolonização, Educação e Processos Subjetivos.
Email: jmo@unesc.net

João Vitor Gomes Alves – Bacharel em Direito pela Universidade de Uberaba


(Uniube, 2014), graduando em Psicologia também pela Uniube; aluno
de Iniciação Científica com bolsa CNPq e pós-graduando em Teorias
Psicanalíticas pela mesma universidade. Membro do Grupo de Pesqui-
sa em Formação Docente, Direito de Aprender e Práticas Pedagógicas
(FORDAPP-PPGEB/Uberlândia). E-mail: jvitorgomes@icloud.com;
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9582-9855
Laís Maria Silva de Carvalho – Estudante de medicina da UFPB, onde atuou
como extensionista pelo Programa de Pesquisa e Extensão “Práticas In-
tegrais em Promoção da Saúde e Nutrição na Atenção Básica” (PINAB).

Maria Margareth de Lima – Doutora em Educação, Professora Adjunta do


Departamento de Metodologia da Educação (DME) do Centro de Edu-
cação (CE), da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Membro do
Grupo de Estudo, Pesquisa e Extensão Observatório da Educação Popu-
lar. Coordenadora do Projeto de Extensão/PROBEX: Patrimônio Cul-
tural e Educação Popular, caminhos para a educação Patrimonial com a
Comunidade Santa Clara. Pesquisa e atua em Arte/Educação, Educação
Popular, Educação Integral e Educação Patrimonial.

Maria Tereza Goudard Tavares – Professora Associada da Faculdade de For-


mação de Professores da UERJ/Departamento de Educação. Procientista
da UERJ/FAPERJ e Professora do Programa de Pós-Graduação – PPGe-
du. Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisa da(s) Infância(s), Forma-
ção de Professores(as) e Diversidade Cultural (GIFORDIC). Participa do
GT de Educação Popular da ANPEd. E-mail: mtgtavares@yahoo.com.br

223
Sobre As/Os AutorAs/Es

Orlandil de Lima Moreira – Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais e Pós-


Doutor em Educação. Professor Titular do Departamento de Metodo-
logia da Educação na Universidade Federal da Paraíba, credenciado no
Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políti-
cas Públicas (PPGDH/UFPB). Coordenador do Observatório da Educa-
ção Popular. Realiza pesquisas nas seguintes temáticas: Educação Popu-
lar, Movimentos Sociais e Direitos Humanos.

Pedro José Santos Carneiro Cruz – Professor Adjunto do Departamento


de Promoção da Saúde do Centro de Ciências Médicas da Universidade
Federal da Paraíba, onde é um dos coordenadores do Programa de Pes-
quisa e Extensão “Práticas Integrais em Promoção da Saúde e Nutrição
na Atenção Básica” (PINAB) e onde lidera o Grupo de Pesquisa em Ex-
tensão Popular (EXTELAR)/NUPLAR.

Pedro Nascimento Araújo Brito – Estudante de medicina da UFPB e ex-


tensionista do Programa de Pesquisa e Extensão “Práticas Integrais em
Promoção da Saúde e Nutrição na Atenção Básica” (PINAB). Atualmen-
te é bolsista em iniciação científica (2022-2023), projeto: Memórias e
histórias da Educação Popular em Saúde no Brasil: estudo com base em
experiências e narrativas de seus protagonistas.

Raylene Barbosa Moreira – Pedagoga pela Universidade Federal Fluminense,


Mestra em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG)
(Bolsista CAPES), na linha Culturas, Identidades e Diferenças; membra
do Grupo de pesquisa Nós do Sul: Laboratório de Estudos e Pesquisas
sobre identidades, currículos e culturas e do Grupo de Estudos e Pesquisa
Interdisciplinar Lélia Gonzalez. Pesquisa Educação em espaços de priva-
ção de liberdade, Educação Popular e Direitos Humanos em Educação a
partir da perspectiva feminista. Atualmente é educadora infantil na rede
privada de ensino.

Renata Evangelista de Oliveira – Professora Associada do Departamen-


to de Desenvolvimento Rural na Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar), Centro de Ciências Agrárias, atua nos cursos de Graduação
em Agroecologia e de Pós-Graduação em Agroecologia e Desenvolvi-
mento Rural. Graduada em Engenharia Florestal (UNESP, 1993), Mes-
tre (ESALQ/USP, 1997) e Doutora (UNESP, 2011) em Ciência Flores-

224
O Pensamento de Paulo Freire em Ação

tal. Pesquisadora visitante no exterior no Center of Excelence “Designing


Future Productive Landscapes” (Lincoln University, 2020). É membro
fundador da REBRE - Rede Brasileira de Restauração Ecológica. Integra
os Grupos de Pesquisa (i) Resiliência e agricultura familiar na Amazô-
nia e (ii) Agroecologia: Ciência, Prática e Movimento, cadastrados no
CNPq. Atuou em Conselhos Científicos no IPEF (Instituto de Pesquisas
e Estudos Florestais), no Programa Cooperativo em Silvicultura de Na-
tivas (até 2013) e no Grupo de Trabalho em Legislação e Políticas Públi-
cas (até 2018). Sua atuação acadêmica está relacionada principalmente
à Agroecologia e Florestas, em atividades de pesquisa e extensão sobre o
componente arbóreo e florestal em paisagens rurais e urbanas, e sobre a
relação de pessoas e comunidades com esses componentes, em múltiplas
escalas. Revisora científica de periódicos nacionais e internacionais. OR-
CID: 0000-0002-4410-7809.

Ricardo Pinheiro Tammela – Professor, arte-educador, extensionista senti-


pensante, caminhante e pesquisador. Mestre em Educação. Pesquisa ou-
tros jeitos de fazer extensão, uma extensão sentipensante. Membro do
grupo de pesquisa IDA - Infâncias, Docência e Alteridade, coordenado
pela Professora Fabiana Eckhardt. Coordenador de extensão na UNI-
FASE – Centro Universitário Arthur de Sá Earp Neto – Petrópolis, RJ.
Email: ricardo.tammela@gmail.com

Sandro de Castro Pitano – Possui doutorado em Educação (2008) pela Uni-


versidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), realizou estágio de
Pós-doutorado PNPD/CAPES (2013-2014) e pós-doutorado sênior/
CNPq (2016-2017) pelo Programa de Pós-Graduação em Educação
(ME/DO) da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).
Professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) entre 2006 e 2019,
atualmente é bolsista de produtividade N2 do CNPq/Educação, pro-
fessor pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Educação (ME/
DO) da Universidade de Caxias do Sul (UCS); vice-coordenador do
GT6 Educação Popular da ANPEd (2021-2023); coordenador do Cen-
tro Latino-Americano de Estudos e Pesquisa em Educação (CELAPED)
e membro da Action Research Network of the Americas (ARNA). Lide-
ra o grupo de pesquisa/CNPq Educação e Pesquisa na América Latina:
convergências teóricas e metodológicas. É autor, coautor e organizador
de obras como: Paulo Freire: uma arqueologia bibliográfica (Appris); Paulo

225
Sobre As/Os AutorAs/Es

Freire, Jürgen Habermas e o ideal formativo da educação popular: cidadão


ou sujeito social? (CRV); Educação popular e docência (Cortez). Tem ex-
periência na área de Educação, com ênfase em Filosofia da Educação,
Educação Popular e pesquisa participante.

Tiago Zanquêta de Souza – Professor do Programa de Mestrado Profissional


em Educação: formação docente para a Educação Básica; coordenador
e professor do Programa de Pós-Graduação em Educação, ambos da
Universidade de Uberaba. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisa Edu-
cação na Diversidade para a Cidadania (GEPEDiCi-PPGE/Uberaba).
Líder do Grupo de Pesquisa Formação Docente, Direito de Aprender
e Práticas Pedagógicas (FORDAPP-PPGEB/Uberlândia). Coordenador
da REDECENTRO – Rede de pesquisadores sobre professores(as) do
Centro-Oeste/Brasil. Membro da coordenação da Rede Cooperativa de
Ensino, Pesquisa e Extensão em escolas de Educação Básica – RECEPE.
E-mail: tiago.zanqueta@uniube.br ; ORCID: https://orcid.org/0000-
0002-2690-4177

Valéria Oliveira de Vasconcelos – Doutorado pela Universidade Federal de


São Carlos (UFSCar) em cotutela com a Universidade de Salamanca,
Pós-doutorado na Universidade Estadual Paulista (UNESP/2011) e na
UFSCar (2016). Atualmente é Coordenadora do GT06 (biênio 2022-
2023). Membro do Grupo de Trabalho “Educación Popular y pedagogías
críticas” (CLACSO). Desenvolve pesquisa, projetos de ação comunitária
e de formação de educadores/as relacionados principalmente à Educação
Popular nos mais diversos âmbitos, tais como: cultura e diversidade, po-
pulações tradicionais, educação ambiental, educação do campo, agroeco-
logia, práticas sociais e processos educativos.

Vanessa Aguiar Cruz – Possui graduação em Pedagogia pela Pontifícia Uni-


versidade Católica de Campinas (2008). Atualmente é Diretora Educa-
cional do Associação dos Amigos da Criança.

226

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