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Ana Lúcia Goulart de Faria & Suely Amaral Mello

organizadoras

TERRITÓRIOS
DA
INFÂNCIA
linguagens, tempos
e relações para uma
pedagogia para as
crianças pequenas
2ª edição

junqueira&marin
editores
..................................................................................................................................

Coordenação: Dinael Marin


Capa, Projeto Gráfico e Diagramação: ZEROCRIATIVA - a partir de obra (sem título)
da artista plástica Euzânia B. F. Andrade
Revisão Gramatical: Maria Aparecida Boschi Ribeiro
Produção: Danilo Henrique Divardin
Impressão: Gráfica Viena
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Conselho Editorial da Junqueira&Marin:

Profa. Dra. Alda Junqueira Marin


Prof. Dr. Antonio Flavio Barbosa Moreira
Profa. Dra. Dirce Charara Monteiro
Prof. Dr. José Geraldo Silveira Bueno
Profa. Dra. Luciana Maria Giovanni
Profa. Dra. Maria das Mercês Ferreira Sampaio
Profa. Dra. Maria Isabel da Cunha
Prof. Dr. Odair Sass
Profa. Dra. Paula Perin Vicentini
Profa. Dra. Suely Amaral Mello
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

T317
2.ed.

Territórios da infância : linguagens, tempos e relações para uma pedagogia para as


crianças pequenas / Ana Lúcia Goulart de Faria & Suely Amaral Mello,
organizadoras. - 2.ed. - Araraquara, SP : Junqueira&Marin, 2009.
il.

Trabalhos apresentados no IV Seminário Linguagens na Educação Infantil,


realizado no XV COLE - Congresso de Leitura na Unicamp em 2005
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-86305-71-9

1. Educação pré-escolar - Congressos. 2. Educação de crianças - Congressos. 3.


Crianças - Escrita - Congressos. 4. Crianças - Linguagem - Congressos. I. Faria,
Ana Lúcia G. de (Ana Lúcia Goulart de). II. Mello, Suely Amaral.

09-3382. CDD: 372.21


CDU: 373.2

09.07.09 16.07.09 013780


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DIREITOS RESERVADOS:

Junqueira&Marin Editores
J.M. Editora e Comercial Ltda.
Rua Voluntários da Pátria, 3238
Fone/Fax: 16 - 3336-3671
CEP 14802-205
Araraquara - SP
www.junqueiraemarin.com.br

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Proibida a reprodução total ou parcial desta edição, por qualquer meio ou forma, em
língua portuguesa ou qualquer outro idioma, sem a prévia e expressa autorização
da editora.

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Impresso no Brasil
Printed in Brazil
1 Reimpressão - 2012
a.

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SUMÁRIO

PREFÁCIO
Maria Carmem Barbosa 5
APRESENTAÇÃO
Ana Lúcia Goulart de Faria 11
ABERTURA
COMENIUS E O SILÊNCIO DA
IMAGINAÇÃO 17
Carlos Eduardo Albuquerque Miranda

DEBATE 1
AS MÚLTIPLAS LINGUAGENS:
ENCORAJAR A LER 31
Sonia Larrubia Valverde

DEBATE 2
O PRIMEIRO LEITOR E
A FORMAÇÃO DAS
PROFISSIONAIS DA 45
EDUCAÇÃO INFANTIL
Eliana Aparecida Pires da Costa

DEBATE 3
DE COMO SER PROFESSOR
SEM DAR AULAS NA
ESCOLA DA INFÂNCIA
57
Danilo Russo
DEBATE 4
PRECONCEITOS A SEREM DEMOLIDOS
SUPERANDO A PATOLOGIZAÇÃO DAS
DIFERENÇAS: OS COMPROMETIMENTOS
FISIOLÓGICOS IMPEDEM A PRODUÇÃO
85
DAS CULTURAS INFANTIS?
Beatriz Angélica Alcântara Cardoso
Eliana Briense Jorge Cunha

DEBATE 5
PEDAGOGIA DO LUGAR: PEQUENA
COLEÇÃO PARA COLABORAR NA
CONSTRUÇÃO E OCUPAÇÃO DOS 97
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA
Ana Beatriz Goulart de Faria

DEBATE 6
O FASCÍNIO INDISCRETO: CRIANÇAS
PEQUENININHAS E A CRIAÇÃO DE
DESENHOS
119
Márcia Aparecida Gobbi

DEBATE 7
ESCHER, ESPAÇOS CURVOS E CORVOS:
SOBREPONDO JOGOS DE LINGUAGEM 137
VISUAL E VERBAL
Antonio Miguel

CONSIDERAÇÕES FINAIS
NÃO FAZER DAS PALAVRAS UM
ATALHO AO CONHECIMENTO 163
163
Suely Amaral Mello

ORGANIZADORAS E
AUTORES 173
PREFACIAR UMA
OBRA ...

Maria Carmem Barbosa

Apresentar o prefácio do terceiro volume desta


coleção 1 é uma honra e uma responsabilidade. Mas é
especialmente um prazer, pois a leitura dos volumes anteriores
contribuiu, e muito, para reafirmar ideias e ampliar algumas
compreensões, especialmente, no que diz respeito à
problematização da questão das linguagens na educação da
infância, tema tão pouco desenvolvido neste “lado de baixo do
equador”. Nem parece que vivemos numa cultura tão linguageira,
expressiva e rica, pois, muitas vezes, como acadêmicos, ao
estudarmos o mundo o empobrecemos, e, como professores,
ao selecionarmos prioridades da educação formal para as novas
gerações, oferecemos para elas o mínimo, ao contrário do que
Malaguzzi defendia: para as crianças o melhor.
A riqueza desta coleção, e em especial deste
número, é justamente confrontar algumas ideias dominantes
tanto no campo da leitura e da escrita como no das políticas e
práticas da educação das crianças. Assim vou deter-me em três
pontos: o primeiro é o da desmistificação da leitura e da escrita
como o objetivo central da escolarização; o segundo é o do
tempo necessário aos seres humanos para as suas

5
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

aprendizagens e o terceiro é o da alienação dos políticos e


dos pedagogos às mudanças sociais, tecnológicas e culturais
das sociedades contemporâneas.
O primeiro ponto é repensar a função social da
escola frente a este produto cultural - leitura e escrita – no
mundo atual. Se a escola surgiu em um momento histórico em
que o desenvolvimento tecnológico, em especial a criação da
imprensa, definiu a necessidade de alfabetização das massas,
hoje é preciso repensar a primazia da leitura e da escrita como
a manifestação privilegiada e, diria, quase única da cultura e da
inteligência humana. A importância dada a esse conhecimento
chega a ser nefasta, em relação aos demais. É claro que não
somos rousseaunianos a ponto de impedir a leitura e o acesso
aos livros. Mas é preciso afirmar que somos seres simbólicos,
criamos muitos códigos para pensar e registrar o pensamento,
nós temos várias linguagens, várias estratégias de realizar
notações simbólicas, isto é, vários modos de interpretar e
expressar nossas ideias, pensamentos, compreensões. Por que
privilegiar apenas uma delas? Se a escola foi construída para
propagar a alfabetização, hoje as linguagens e as tecnologias
de comunicação são inúmeras e a escola deve preocupar-se
com todas as formas de leituras e de escritas. As crianças
pequenas leem e escrevem cotidianamente sem estarem
alfabetizadas; e, os denominados adultos iletrados, também.
O segundo aspecto a ser confrontado é o do tempo
social e biológico. A leitura tem sentido diferente de acordo
com as capacidades e culturas onde vivem os seres humanos.
Para um bebê, um livro é um convite para o mundo da leitura,
mas é, também, livro transformado em brinquedo para: olhar,
sacudir, girar, nomear, morder, rasgar.
Para uma criança maiorzinha, o livro é algo para tocar,
pegar, acariciar, abrir e fechar, olhar as figuras, nomear. É um
objeto que funciona como uma porta por onde entram histórias
e personagens, e que propõe imaginar cenas e cenários. O livro
contém histórias que precisam ser lidas para ela, histórias
grandes, encantadas, que dão vontade de ler, de se maravilhar,
de conhecer o mundo arregalando os olhos e aprendendo a
escutar e a imaginar.
Pode ser, também, algo para se fazer sozinha: olhar,
virar as páginas, ou para compartilhar, ver e ouvir sentada em

6
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

roda, com outras pessoas - crianças e adultos -, um lugar de


interlocução e interação social, onde se ouve a melodia da
leitura que liga o mundo da escrita com a oralidade, que
aconchega, que nina.
Para uma criança já um pouco maior, o desafio do
livro é, além de tudo o que foi dito antes, o poder de aprender
a ler a história do livro, preferencialmente sem a presença do
adulto. É um grito de “Hei, eu cresci!”, um brado comemorando
o desafio vencido. Mas o herói-leitor, como o herói das histórias
para derrotar os inimigos imaginários, precisa vencer muitas
barreiras, ter desejo, construir sentido e encontrar
companheiros - grandes e pequenos - que o auxiliem a enfrentar
os obstáculos e vencer. Mas, ao contrário das histórias
complexas, desafiadoras, que exigem pensar, fabular, narrar, os
processos de ensino de leitura e de escrita têm primado, em
nosso país, por ser um pragmático “vamos direto ao assunto”.
Ao invés de favorecer a aprendizagem, opta por tornar
simplificada e sem sentido a alfabetização ao dar prontos
pedaços da língua, pedaços de sons, pedaços do mundo... não
deixando criar, imaginar, desejar, suspeitar, duvidar enfim, agir
sobre a linguagem
No ano passado, enquanto perambulava pelo Brasil
discutindo a questão do ingresso obrigatório das crianças de 6
anos no ensino fundamental de nove anos, li uma carta ao leitor
publicada no jornal londrino Daily Telegraph (12/09/2006) e
assinada por um grupo de profissionais ingleses que trabalham
com crianças. Essa carta me fez ter aquela sensação da
propaganda da Vodka Smirnoff: “eu sou você amanhã!”.
Os autores iniciam seu manifesto dizendo que estão
profundamente preocupados com o aumento dos diagnósticos
de depressão e problemas comportamentais entre as crianças
- voltamos à antiga polêmica dos diagnósticos que patologizam
as crianças -, pois elas não parecem estar correspondendo às
demandas formuladas pelos adultos. Os autores lembram que
o crescimento físico e psicológico de uma criança não pode
ser acelerado, pois esse crescimento muda no tempo biológico
e social, e não a uma velocidade elétrica. A infância, portanto,
não pode ser concebida como uma corrida para ver quem
termina primeiro: as crianças precisam de tempo para vivê-la,
para usufruí-la, para construir-se como humano. Segundo os

7
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

mesmos autores afirmam nesta carta publicada em um jornal,


“na verdade elas precisam daquilo que todos sempre precisaram:
comida de verdade (e não lixo industrializado), brincadeiras de
verdade (e não entretenimento sedentário, com base numa tela),
experiências diretas com o mundo em que vivem e interação
regular com adultos da vida real que sejam importantes em suas
vidas”.
Estes pedagogos, psiquiatras, assistentes sociais,
escritores comentam que o sistema escolar inglês está cada
vez mais direcionado a alvos específicos, a uma cultura hiper-
competitiva, a começar cada vez mais cedo na escola formal.
Lembrem-se, prezados leitores, que a Inglaterra é um dos países
que se orgulha tanto de iniciar a alfabetização das crianças com
5 anos como de manter seus programas de estimulação
precoce. Michael Morpurgo, escritor de literatura infantil, e um
dos signatários desta publicação disse em uma entrevista: “A
pressão acadêmica está se infiltrando gradativamente como um
veneno na cultura. Há menos espaço para a leitura, para o sonho,
para a música, para o teatro, para a arte e para, simplesmente,
brincar”.
Exige-se que as crianças vençam seus limites cada
vez mais cedo. É preciso insubordinar-se ao tempo e à velocidade
do capital. Sabemos que a junk culture significa também a “morte
anunciada” da infância brasileira. Não dá para imaginar, prever e
antecipar os resultados? Não dá para aprender com a experiência
dos outros países e tentar traçar outros caminhos? É possível
produzir na ação pedagógica uma outra temporalidade e
espacialidade com as crianças considerando a imaginação, a vida
do grupo, a sensibilidade junto à razão, à ciência e à tecnologia,
mas com ênfase no humano?
E aí, chegamos ao terceiro ponto de confronto
anunciado neste livro e que passo a denominar “sobre a
indigência das políticas e das práticas pedagógicas, e as
tentativas de superá-las”. O movimento dos políticos e
legisladores brasileiros lembra os quadros de Escher. Cheios
de escadas e de pessoas que vão e vem e não se sabe de qual
ponto partem e onde mesmo pretendiam chegar, como, por
exemplo, na obra realizada em 1953 denominada “Relativity”.
Nada contra a relatividade, mas estatísticas de 2000
indicam que grande parte (quase 40%) das crianças brasileiras

8
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

matriculadas na primeira série não estava se alfabetizando.


Temos conhecimento, pelos resultados de pesquisas
internacionais, que crianças com um ano de frequência à
educação infantil têm melhores resultados no ensino
fundamental. Sabemos que, apesar das ideias acerca da
alfabetização e do letramento terem invadido as academias
desde o início da década de 80, ainda estamos discutindo, no
Congresso Nacional e no MEC, se alfabetizaremos com o método
fonético ou não. E, enquanto isso, as cartilhas continuam sendo
distribuídas nas salas de aula e, muitas vezes são o único
material de leitura e escrita acessível para todas as crianças
brasileiras.
Acreditar que haveria um debate nacional sobre o
tema do ingresso das crianças aos seis anos no ensino
fundamental, como afirmou o Conselho Nacional de Educação,
e que não seria apenas uma decisão eleitoreira e burocrática
dos secretários de educação, pensar que os professores
alfabetizadores mudariam rapidamente suas concepções
passando a formular propostas lúdicas para a entrada da criança
na escola, que as famílias compreenderiam que o primeiro ano
do ensino fundamental não envolve apenas ensinar a ler e a
escrever, que a professora do segundo ano aceitaria alunos
que estivessem em processo de alfabetização, é desprezar tudo
o que já sabemos sobre a cultura escolar, sobre a lentidão dos
processos de inovação educacional, sobre o tempo para a
formação de professores.
Poderíamos, e há muito tempo já deveríamos, ter
ampliado o ensino fundamental para nove anos, garantindo um
ano de acesso à educação infantil. Assim daríamos mais tempo
para as crianças usufruírem a educação infantil, mais tempo para
construírem o significado da leitura e da escrita, maior inserção
no mundo da escola, da cultura letrada. Com isso, evitaríamos
as cobranças dos pais, que as crianças sofressem com
demandas inadequadas às suas condições reais e teríamos uma
definição mais objetiva do trabalho pedagógico a ser realizado
nesse primeiro ano do ensino fundamental de nove anos. É
claro que é preciso fazer intervenções profundas no sistema
educacional brasileiro, mas, agir com responsabilidade,
racionalidade e sensibilidade é pedir muito?

9
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Notas

1
Apesar de não formarem oficialmente uma coleção, os livros
organizados por Ana Lúcia Faria e Suely Mello constituem um
repertório.

10
APRESENTAÇÃO

É preciso ser muito grande para levar a sério as coisas


dos/das pequenos/as.

Ana Lúcia Goulart de Faria

A rosa de Hiroshima

Pensem nas crianças


Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
[...]

(Vinicius de Moraes. In: Antologia Poética. São Paulo:


Companhia das Letras, 1992)

11
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Este livro é o produto escrito do IV Seminário


“Linguagens na Educação Infantil” realizado no XV COLE-
Congresso de Leitura na Unicamp em 2005, cuja temática esteve
pautada na poesia de Vinicius de Moraes, Rosa de Hiroshima.
Além das tantas sessões de comunicação, o
seminário constou de três mesas-redondas, uma conferência
de abertura pelo Professor Carlos Miranda que mostrou sua
pesquisa sobre “Comenius e o silêncio da imaginação” e o
encerramento com as palavras poéticas de nossa ouvidora,
Professora Suely Amaral Mello. Tudo ora publicado, menos a
apresentação de Rita Coelho e de Teca Mayer (esta, no entanto,
publicou sua apresentação realizada no nosso seminário do
Cole de 2003 no livro organizado também por mim e por Suely
Mello “O mundo da escrita no universo da pequena infância”
publicado pela Editora Autores Associados). Mostro aqui a
composição das mesas:
Mesa-redonda: O tempo e o espaço da produção
da diferença vs. a inclusão que exclui. Quem lê, o quê, onde?
Eliana Briense Jorge Cunha: Preconceitos a serem
demolidos superando a patologização das diferenças: os
comprometimentos fisiológicos impedem a produção das
culturas infantis?
Beatriz Angélica Alcântara Cardoso: A produção da
“deficiência” do ponto de vista das crianças
Ana Beatriz Goulart de Faria :A descoberta do
mundo: a experiência de lugar, do berço à cidade
Mesa-redonda: Infância e cultura escrita
Sonia Larrubia Valverde: As múltiplas linguagens:
encorajar a ler
Rita de Cássia F. Coelho (Movimento Inter-Fóruns
de Educação Infantil do Brasil-MIEIB):
Múltiplas políticas: por uma política integrada para a
infância
Eliana Pires: A primeira formação do leitor e a
formação das profissionais de educação infantil
Mesa-redonda: O fascínio indiscreto das palavras
(os números, os desenhos, as tatuagens, os movimentos, a
dança, a música).
Antonio Miguel: A cultura matemática, a beleza e a
cultura escolar. (Para entender o mundo temos que reconhecer

12
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

que a matemática e a poesia têm a mesma origem. Escher)


Marcia Aparecida Gobbi: Criança pequena e
desenho: quando o oral e o escrito se encontram.
Tereza Maher (IEL- UNICAMP): Leitura e cultura: o
que os índios têm a nos ensinar.
Vale esclarecer que, no folder, consta a professora
Helena Freitas que, não podendo estar presente, indicou Eliana
Pires que produziu o texto e Beatriz Angélica que, não podendo
estar presente, pediu que sua companheira de mesa Eliana
Cunha lesse sua contribuição e ambas elaboraram o texto que
ora publicamos. A originalidade da apresentação da arquiteta
Bia Goulart nos obrigou a solicitar que, ao invés de elaborar um
texto como todos/as, fizesse para o presente livro uma
bibliografia comentada sobre arquitetura, infância e cidade.
Destaco o texto do Professor Antonio Miguel que articula
linguagens verbais e não-verbais (a poesia, a matemática e a
música) de forma poética e brilhante convidando as professoras
e educadoras da educação infantil a fazer a pergunta: porque
não me ensinaram assim? quem é que fez ficar como está a
matemática na escola?
Estava prevista a participação do professor Enzo
Catarsi da Universidade de Firenze que, impedido de comparecer,
deu uma entrevista para a revista Pátio-educação infantil
publicada no n.8 de 2005 sobre a leitura entre as crianças
pequenininhas dando continuidade ao Cole de 2003 quando a
pedagogista italiana de Bologna, Cristina Rizzoli, desenvolveu
também este tema, publicado no nosso livro “Linguagens
infantis - outras formas de leitura” que faz par com o citado
anteriormente. A chamada da entrevista do professor Catarsi
na Pátio é “a interação precoce com os livros é a base de um
desenvolvimento linguístico rico e articulado da criança” e
“quando as crianças vivem uma experiência diária com os livros,
melhoram sua produção linguística”. Para não ficarmos sem uma
contribuição das teorias e práticas italianas na educação infantil,
pelo menos no livro, estamos publicando a proposta de trabalho
do professor (maestro) da rede pública de Roma, Danilo Russo,
para as crianças de sua turma mista (3, 4 e 5 anos de idade), em
período parcial, para o ano letivo 2003-2004. Sua contribuição
está principalmente em mostrar como trabalha um “maestro” -
que em italiano não é professor, mas alguém que não dá aula e

13
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

é um docente da escola da infância responsável pela educação


de um coletivo infantil com idades diversas. É uma opção da
escola juntamente com a escolha das famílias oferecer turmas
homogêneas e turmas mistas de idade. Assim como o período
parcial e o período integral. Curtam! Lembrem que a pré-escola
italiana é de 1825, tornou-se pública, gratuita e laica em 1968 e
para isso caiu um governo. E, hoje, 96% das crianças de 3 a 6
anos a frequentam mesmo sem ser obrigatória (a escola
elementar italiana - desde 1911 obrigatória, pública, gratuita e
laica - recebe crianças a partir dos 6 anos de idade).
Comecei este meu texto com parte da poesia do
Vinicius de Moraes para pensarmos nas crianças mudas
telepáticas e termino com parte da música “Saiba” de Arnaldo
Antunes cantada durante a segunda mesa-redonda na
apresentação de Rita Coelho quando discutia o financiamento
da política educacional e a luta pela verba própria para a
educação infantil. Ela estava on-line com Helena Freitas (então
secretária da educação do município de Campinas) que estava
em Brasília no momento em que o movimento das ‘fraldas
pintadas’ reivindicava a inclusão das creches no Fundeb.
O XV Cole e o nosso seminário foram muito
proveitosos, instigando a escolha da próxima temática a ser
discutida na edição de 2007. Em 2003 terminamos com a
pergunta: o que aprendemos com as crianças hoje? Agora em
2005 terminamos com: o que e como as crianças mais se
divertem? E agora vamos para a pergunta: O que as crianças
perdem quando pronunciam as primeiras palavras? Esperamos
que este livro também instigue o/a leitor/a a responder essas
e a formular outras questões e para isso convidamos a
professora Maria Carmem Barbosa da UFRGS para fazer o
prefácio deste livro convictas de que seu pensamento, sua
militância na educação infantil e suas palavras problematizadoras
nos levem a quebrar as armadilhas rumo ao próximo COLE:
cultura lúdica e culturas (no plural) da escrita sem antagonismo
na formação docente para a infância de 0-10 anos.

Saiba

Saiba: todo mundo foi neném


Einstein, Freud e Platão também

14
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Hitler, Bush e Sadam Hussein


Quem tem grana e quem não tem
Saiba: todo mundo teve infância
Maomé já foi criança
Arquimedes, Buda,Galileu
E também você e eu
[...]
Saiba: todo mundo teve pai
Quem já foi e quem ainda vai
Lao Tsé, Moisés, Ramsés, Pelé
Ghandi, Mike Tyson, Salomé
Saiba: todo mundo teve mãe
Índios, africanos e alemães
Nero, Che Guevara, Pinochet
E também eu e você.

15
COMENIUS E O
SILÊNCIO DA
IMAGINAÇÃO

Carlos Eduardo Albuquerque Miranda

Gostaria inicialmente de fazer algumas


considerações sobre o título deste texto. Não estarei atribuindo
propriamente a Comenius a proposição “silêncio da imaginação”.
Não é o nosso objetivo julgar as intenções de um autor que
escreveu e atuou na educação há mais de 300 anos. O que
queremos demonstrar é como Comenius pode ser interpretado
hoje, no presente, dados os três séculos que o separam de
nós. Não queremos dizer que Comenius propôs o silêncio da
imaginação na escola, mas que sua proposição de educação e
ensino, presente principalmente em “Didática Magna” e “Orbis
Sensualium Pictus”, o levou a caminhos que silenciam a
imaginação, por vincularem-se a uma específica concepção de
escola que ele mesmo estava re-inventando e que em linhas
gerais é a concepção da nossa escola contemporânea.
Importante lembrar que há 4 tradições de estudo
sobre a obra de Comenius:
A História da Educação o considera um marco da
concepção de educação escolar e um marco da constituição
de um conjunto de elementos sobre o qual se organiza o
conceito de didática moderna. Na História da Educação

17
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

encontramos autores que o consideram um homem de transição,


justamente por ter vivido no período de constituição da
sociedade urbana e de mercado (sociedade burguesa), no qual
se dá também a organização das formas de se fazer educação
em torno da instituição escolar.
Na Filosofia da Educação, Comenius é visto como
alguém que aponta tendências para a educação e para a
instituição escolar que vão além da escolástica.
Os estudos de Metodologia de Ensino e Didática –
seja Geral ou Específica (tendo sido Comenius um dos primeiros
a propor essa denominação) – sobre Comenius apontam
caminhos diferentes a partir dele, preocupados na construção
de um conteúdo específico de como ensinar – preocupação de
Comenius.
E os estudos mais recentes vinculados às Novas
Tecnologias de Ensino, principalmente os estudos sobre a obra
de Comenius “Orbis Sensualium Pictos” (ou “Mundo Sensório
Visível” ou “O Mundo em Imagens1”), que procuram inspiração
neste livro de textos, imagens e nomes para propor Ambientes
Educacionais no Ciberespaço.
Nossa abordagem não está filiada a nenhuma delas,
mas está ancorada nessas tradições. Vamos apresentar um
pouco da ideia de escola de Comenius e como ele propõe a
utilização da imagem na educação escolar. Antes disso, porém,
vamos apresentar um pouco do peso da palavra escola hoje e
porque Comenius nos ajuda a pensar nesta escola.

O peso da ppaala
peso vr
vraa eesc
lavr sc
scoola

O significado da palavra escola serve de ferramenta


para pensar as práticas educacionais em nossa sociedade e
para pensar nas proposições que hoje se fazem para a
educação. Comenius nos ajuda a pensar a nossa escola
contemporânea. Mais precisamente, poderíamos dizer que
Comenius nos ajuda a pensar o ideário de escolarização, uma
vez que ele apresenta, ao longo de suas publicações, uma
progressiva concepção de educação vinculada à escola, ao
mesmo tempo em que estende a educação escolar a todas as
idades, e chega a propor, por exemplo, escola para mães e
escola para idosos.

18
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Sabemos que a educação ocorre ou pode ocorrer


em todos os momentos e em todos os espaço sociais, ou seja,
em todas as práticas humanas, sejam elas classificadas de
produtivas, culturais ou de qualquer outra natureza. No entanto,
não é a ideia genérica de educação que queremos abordar,
mas sim a subjugação das noções de educação aos significados
da palavra escola. Podemos considerar essa subjugação como
um processo histórico do qual Comenius faz parte. Pensar esse
processo é relevante em nossa sociedade contemporânea, pois
vivemos, por um lado, uma confusão da identidade social da
instituição escola e, por outro, uma busca pela compreensão e
pela proposição de formas e espaços educacionais que
procuram a educação sem escolarização.
O termo escola data do século XIII e, em geral,
refere-se à nominação de práticas vinculadas ao ensino, mesmo
quando é usado em sistemas de pensamento de pessoas ou
grupo de pessoas, tanto no campo do saber quanto no campo
da arte. Podemos ver isso quando nos deparamos com
expressões como “Escola de Freud”, “Escola de Foucault”, etc,
ou “Escola Impressionista”, “Escola Clássica”, etc. Sabemos que
esses sistemas agregam pessoas que educam e são educadas
em formas de pensar específicas e voltadas aos seus mentores.
Para a pedagogia é comum – não que isso seja
desejável – trabalhar com três significados deste substantivo
feminino. Escola significa, no sentido mais abstrato, o
estabelecimento público ou privado onde se ministra ensino
coletivo. No plano material, ou visível, escola é um prédio onde
se ministra o ensino coletivo, ou o conjunto de professores
(ou educadores), alunos (ou estudantes) e funcionários, ou seja,
um conjunto de pessoas que participam do processo educativo
e das quais se espera um desempenho muito bem estabelecido,
embora o que se deseje delas e suas práticas seja objeto de
constantes investigações e prescrições.
A título de curiosidade e para demonstrar a força
do processo de subjugação a que nos referimos acima, usa-se
o termo escola para aquilo que é adequado para transmitir
conhecimento, experiência, instrução, mesmo que não haja
referência a um processo formal de educação, por exemplo, ‘o
jornalismo pode ser boa escola para futuros escritores’. Usa-
se também o termo para avaliar comportamentos, por exemplo,

19
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

‘sua maneira de agir revela que teve boa escola’. Mesmo na


cultura industrial da sociedade de massas vemos o uso do termo
escola para referir-se a estilos de ídolos que se reproduzem na
profissão, tais como jogadores e técnicos de futebol,
apresentadores de programas de auditório, etc – por exemplo:
‘tal jogador é da escola do Garrincha” ou, “tal apresentadora é
da escola da Hebe Camargo”.
Mas é a etimologia da palavra que mais nos chama
atenção. Segundo o Dicionário Houaiss2 o termo escola vem
do latim schola,ae, que quer dizer: ‘lugar nos banhos onde cada
um espera sua vez’. Percebam que o significado em latim remete-
nos a uma noção de ordem, principalmente de organização
espacial. Dado o caráter espacial dos sentidos atribuídos em
português para o termo em latim é possível dizer que o termo
possui uma força de visualização, que significa justamente
transformar conceitos abstratos em imagens reais ou
mentalmente visíveis. A ideia de lugar confirma o caráter visual
da palavra escola, e a função desse lugar – ‘onde cada um espera
sua vez’ – remete-nos à sua organização temporal de forma
linear.
O termo latim schola,ae vem do grego skholÝ,ês, que
quer dizer: ‘descanso, repouso, lazer, tempo livre; estudo;
ocupação de um homem com ócio, livre do trabalho servil, que
exerce profissão liberal, ocupação voluntária de quem, por ser
livre, não é obrigado a”. Os significados aqui apresentados
remetem-nos à sociedade grega, em que o conhecimento é
facultativo para os homem livres. Lembremos que a sociedade
grega era escravocrata. Sem entrar em detalhes sobre a
estrutura social da Antiga Grécia, podemos afirmar que o termo
grego carrega consigo, historicamente, outro significado, mais
filosófico e histórico, poderíamos dizer, até, mais concreto, pois
remete-nos, não ao lugar, nem ao tempo, mas aos sujeitos e
seus atributos sociais.
Voltemos a Comenius.
Comenius usa o termo escola para referir-se
principalmente à instituição destinada à educação. Importante
lembrar que para ele essa instituição deveria ser democrática,
ou seja, para todos. Esse é um mérito de Comenius para aqueles
que defendem a democratização da educação. Por isso nosso
objetivo não é criticar Comenius, mas entender sua luta social

20
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

e aprender com seus erros, que deixaram brechas para que


seu próprio objetivo não fosse atingido, não pudesse ser
plenamente atingido

Comenius – a escolarização do mundo e a escola a serviço da


socieda
dadd e ddee mer
socieda merccado
A principal obra de Comenius, pela qual ele se
tornaria conhecido, é as Opera Didactica Omnia (Didática Magna
– Tratado da Arte Universal de Ensinar Tudo a Todos) que foi editada
pela primeira vez em 1657 em Amsterdã, recomendada pelo
senado da cidade e subsidiada por Lourenço De Geer,
embaixador da Suécia em Amsterdã.
As Opera Didactica Omnia são, na verdade,
constituídas por quatro livros; a primeira parte, que abre com a
Didactica Magna, contém as obras começadas na Boêmia a partir
de 1627 e terminadas na primeira estadia em Leszno (1642); a
segunda compreende as obras escritas de 1642 a 1650, para a
Suécia; a terceira as obras compostas em Sárospatak, de 1650
a 1654; a quarta, finalmente, é uma compilação de oito tratados
compostos em Amsterdã.
Antes de fazer a saudação aos leitores, Comenius
escreve, segundo a edição portuguesa: Processo seguro e
excelente de instituir, em todas as comunidades de qualquer Reino
cristão, cidades e aldeias, escolas tais que toda a juventude de um
e de outro sexo, sem excetuar ninguém em parte alguma, possa
ser formada nos estudos, educada nos bons costumes, impregnada
de piedade, e, desta maneira, possa ser, nos anos da puberdade,
instruída em tudo o que diz respeito à vida presente e à futura, com
economia de tempo e de fadiga, com agrado e com solidez.
Onde os fundamentos de todas as coisas que se
aconselham são tirados da própria natureza das coisas; a sua
verdade é demonstrada com exemplos paralelos das artes
mecânicas; o curso dos estudos é distribuído por anos, meses,
dias e horas; e, enfim é indicado um caminho fácil e seguro de pôr
estas coisas em prática com bom resultado.
A proa e a popa da nossa Didáctica será investigar e
descobrir o método segundo o qual os professores ensinam menos
e os estudantes aprendem mais; nas escolas, haja menos barulho,
menos enfado, menos trabalho inútil, e, ao contrário haja mais

21
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

recolhimento, mais atrativo e mais sólido progresso; na Cristandade,


haja menos trevas, menos confusão, menos dissídios, e mais luz,
mais ordem, mais paz e tranqüilidade.
Que Deus tenha piedade de nós e nos abençoe! Faça
brilhar sobre nós a luz da sua face e tenha piedade de nós! Para que
sobre esta terra possamos conhecer teu caminho, ó Senhor, e a tua
ajuda salutar a todas as gentes (Salmo 66, 1-2)3
Esta universalização da educação está acompanhada
em Comenius, por um lado, de uma progressiva ampliação do
conceito de escolarização em suas obras e, por outro, de uma
contínua analogia da escola com as oficinas de artesãos.
Para fazer suas proposições Comenius parte de
críticas à situação caótica em que a escola se encontrava no
século XVII. Críticas tanto em relação a sua iniquidade, quanto
em relação a sua baixa produtividade, ou seja, a escola não
tinha função para a nova sociedade de mercado e não poderia
ser ampliada sem otimização do trabalho, otimização da relação
ensino-aprendizagem.
A universalização da educação, na proposição de
Comenius se daria através da escola. Por isso, Comenius
expressa na “Didática Magna” que o mundo todo é uma escola.
Porém, em uma obra posterior, “Pampaedia”, ele afirmará que
toda a vida humana é uma escola, propondo uma educação
universal de todos os homens, do nascimento à morte.
Devemos levar em consideração o aspecto religioso-
espiritualista de Comenius. O desígnio do homem na carne é
sua salvação e, para isso, o trabalho e o conhecimento são
ferramentas do cristão. Porém, subjugar a aprendizagem, e
mesmo a educação à escolarização talvez tenha sido um
excessivo entusiasmo do autor europeu, pois aprisionou a vida
a uma instituição histórica e que tinha funções não
transcendentes, muito pelo contrário.
Em relação à otimização do trabalho escolar ou da
relação ensino-aprendizagem, a melhor forma de demonstrar
esta constante otimização é a analogia que ele faz entre escola
e oficina dos artesãos. Comenius chega a chamar a escola de
oficina de homens:
As oficinas dos artesãos são o modelo de estrutura, de
organização das escolas. O que se faz lá deve ser reproduzido aqui:
divisão do tempo, gradação dos estudos, no ensino, na

22
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

aprendizagem. Na oficina se formam aprendizes, oficiais e


mestres,nas escolas se formam homens instruídos, de bons
costumes e piedosos. [...] A escola é uma imitação da oficina, o
professor reproduz o artesão. Os modelos são a oficina e o artesão.
Eles é que conformam a escola e o professor.4
Apesar de considerarmos que o modelo dos
artesãos, em desenvolvimento na época, deva ter encantado
Comenius e, que seria este um modelo que revolucionaria a
escola, como revolucionava a sociedade, sua analogia acabou
construindo, ao longo do desenvolvimento da sociedade urbana
e de mercado um modelo utilitarista da educação e,
principalmente, da escola. Por tomar como modelo as bases da
sociedade burguesa é que a universalização da educação
escolar é um paradoxo com relação ao modelo de organização
da escola. Talvez somente na sociedade industrial é que isso
possa ter ficado mais claro, por isso não estamos julgando
Comenius, mas não podemos deixar de apontar erros em seu
excesso de entusiasmo.
Dentro desse processo de escolarização é que
podemos nos deparar com o que estamos chamando de silêncio
da imaginação. Para isso vamos apresentar alguns aspectos do
livro “Orbis Sensualium Pictus” ou “O mundo das imagens”.

Orbis Sensualium Pictus

Hoje “Orbis Pictus” é visto como um livro didático.


Na verdade, a estrutura básica do livro constitui-se de 150
argumentos ou unidades didáticas havendo, para cada um deles
uma imagem, uma nominação, uma coluna de texto escrita em
latim e uma coluna de texto escrita em língua pátria. Não é difícil
perceber que a inspiração do livro está em duas formas de
literatura que proliferaram a partir da renascença – os manuais
mnemônicos e as emblematas. Formas de literatura que graças
ao desenvolvimento tecnológico da imprensa combinavam
imagens e textos. É possível afirmar que as próprias emblematas
tinham inspiração nos manuais mnemônicos. Estes, por sua vez,
se diferenciavam entre obras que simplesmente apresentavam
técnicas de exercício da memória e obras que apresentavam
sistemas mnemônicos que se constituíam na combinação de
verdadeiros sistemas filosóficos e científicos e que, portanto,

23
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

visavam muito mais educar do que a simplesmente exercitar a


memória. Estes últimos é que podemos chamar de Arte da
Memória.
O termo arte, que também é usado nas obras de
Comenius não significa o que entendemos hoje por
manifestações estéticas, significa artificial em oposição ao que
é natural, ou seja, uma coisa constituída ou aperfeiçoada pelo
homem e, por isso, educável.
Se hoje podemos ver “Orbis Pictus” como um livro
didático, deve-se justamente ao trabalho de educadores como
Comenius que, no movimento de escolarização da educação,
se inspiraram na literatura das artes mnemônicas, dentre outras,
para a confecção de livros para a escola.
Pikkarainen5, em uma conferência na Finlândia, fala
sobre a origem do livro “Orbis Sensualium Pictus”, afirma:
Talvez, o mais conhecido e importante livro de Comenius
é o Orbis Pictus. A sua história foi que Comenius primeiramente
escreveu um livro de língua latina chamado Janua6 e teve a
possibilidade de tentar sua ‘pampédia’ em algumas escolas, mas
os alunos eram surpreendentemente iletrados e não podiam usar a
Janua. Então, ele começou a escrever um livro que pudesse ser útil
para crianças desde totalmente iletradas até iniciantes em latim,
como segunda língua. Ao mesmo tempo seu livro era uma introdução
ao mundo como um todo. Este foi um dos muitos inventos de
Comenius: que a linguagem não era pensada separadamente, porém
ela seria aprendida ao mesmo tempo em que as coisas
características importantes do mundo. Este livro contém 150 figuras
nas quais muitos detalhes são indexados numericamente. Toda
imagem tem um pequeno trecho com a descrição geral e um pequeno
trecho específico dos índices numéricos. O texto era bilíngüe, a
língua-mãe e o latim.
Para Farné 7 , “Orbis Pictus” é uma pequena
enciclopédia que apresenta o saber elementar, didaticamente
organizado a sobre a base de imagens e palavras. Na introdução
Comenius explica o significado geral da obra, composta de três
elementos: as figuras, as nomenclaturas, as descrições: as figuras
são representações de tudo o que nos é visível no mundo; as
nomenclaturas são inscrições ou títulos postos sobre cada uma
das figuras, que exprimem com uma só palavra geral o significado
conhecido; as descrições são explicações das partes singulares

24
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

da figura.
Farné nos diz que Orbis Pictus apresenta 150
argumentos8, 150 unidades didáticas;
As primeiras 17 unidades, que iniciam com Deus e O
Mundo, se referem aos elementos naturais (fogo, ar, água, terra) e
tratam dos diversos aspectos do mundo vegetal (frutas, flores,
ervas, etc.). [...] As 17 unidades seguintes se referem ao mundo
animal e iniciam com os diversos tipos de pássaros (domésticos,
canoros, selvagens, etc.). [...] Ao homem só é dedicado o outro
capítulo (do XXXV ao XLIII). Esses se referem ao conhecimento do
corpo, iniciando das partes externas (membros, cabeça, mãos) para
depois passar para as internas (intestino, ossos) e a alma. [...] Se
passa depois a analisar as diversas atividades do homem: as
primeiras 14 se referem a atividades diretamente dirigidas à produção
do alimento (agricultura, criação, caça, pesca, padeiro, etc.)
terminam com A refeição. A esta seguem 13 que tratam das
profissões ligadas ao vestuário (a tecelagem, o alfaiataria, a
sapataria, etc.) a construção (o pedreiro, o engenheiro, o carpinteiro,
o ferreiro, etc.). [...] Os sete argumentos que vão do LXXI até o
LXXVI referem-se às partes da casa e se completam com os lugares
destinados à limpeza e à higiene.; o banho, a barbearia (que é
também o lugar onde se praticam sangrias e pequenas cirurgias), o
estábulo dos cavalos. [...] Encontramos depois três temas que se
referem às técnicas e aos instrumentos de representação do tempo
e do espaço; os relógios, a pintura, espelhos e ótica. Seguindo nove
unidades relativas ao movimento e aos transportes do homem e das
mercadorias, que vão de “O Viajante a pé” a “O Nadador” de “Os
carros” a “A nau” e a representação do “Naufrágio” que encerram
esta seção com um tom espetacular e dramático. [...] A leitura e a
escrita são os temas que unem os nove capítulos de XCI a XCVIII9
e compreendem, em meio a outros, a carta, a tipografia, o livro, a
escola. Estas constituem um tipo de premissa às diversas artes
que vêem ilustradas em seguida [...] Nove argumentos tratam das
virtudes humanas (prudência, fortaleza, generosidade, etc.) o qual
segue o tema da família subdividido em quatro argumentos
(matrimônio, graus de parentesco, condição do pai e da mãe,
jurisdição parental). A atenção se alarga da família à cidade,
analisada através de 15 argumentos. [...] É interessante notar que
metade deste guardam aspectos muito propriamente cívicos (o
comércio, a justiça, a medicina, etc.) enquanto que a outra metade

25
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

os argumentos são dedicados a ilustrar as diversas formas de


espetáculos e de jogos e brincadeira que acontecem na cidade. [...]
Da cidade o olhar estende-se ao Reino e ao País como entidade
nacional. É este o pretexto para dedicar cinco unidades a mesma
temática do tipo militar (o soldado, o acampamento militar, o exército
em ordem de batalha, a batalha naval, o cerco da cidade). [...] Os
últimos sete argumentos são dedicados à religião segundo uma ótica
pedagógica que, ainda que tendo o cristianismo como próprio
fundamento, se abre também o conhecimento das outras religiões”.10
(p. 27-28)
As imagens do livro só têm como base a
essencialidade do traço da xilogravura que, no caso, limita-se a
sugerir mais do que representar. Cada imagem é concebida
como um microcosmo no qual se passa do geral para o particular.
No livro, as imagens colocam em evidência um dos traços da
pedagogia moderna, ou seja, uma síntese rigorosa entre
instrução e educação, em que a transmissão e aprendizagem
do conhecimento constroem progressivamente uma visão de
mundo, sendo que as imagens servem de elemento completo
para acelerar a compreensão.
Queremos destacar o argumento “Escola” que
aparece numa série de oito argumentos. Pela ordem, esta série
começa com a arte da escrita e, na sequência vemos: o papel, a
tipografia, o livreiro, o encadernador, o livro, a escola, o museu11.
Observa-se que, apesar de toda valorização que
Comenius dá à experiência e à observação para aprendizagem,
o argumento da escola aparece em meio aos argumentos
exclusivamente vinculados ao livro. A ideia de vincular a escola
à escrita, que hoje parece natural, é uma formulação própria de
Comenius e de alguns educadores contemporâneos a ele.
Lembremos que aprender a ler e escrever em sociedades não
escolarizadas era uma prerrogativa das famílias, através dos seus
preceptores. A generalização da ideia de que a escola é o lugar
para se aprende a ler e escrever é particularmente uma
formulação do século XVII, movimento que faz parte do próprio
processo de escolarização da educação.
Olhando para a imagem do argumento Escola,
vemos reproduzida a forma de organização proposta por
Comenius, ou seja, baseada na ordenação das oficinas dos
artesãos. Comenius dá uma configuração visual da organização

26
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

da escola, mais particularmente da sala de aula, que se


fundamenta na organização disciplinar do trabalho útil e na
otimização do tempo. O professor aparece trabalhando com
um aluno. Dois outros alunos estão sentados sobre a mesa
escrevendo e, o resto da classe está sentado em fila lendo.
Esta configuração visual de uma sala de aula não nos é estranha.
Podemos encontrar outras gravuras da escola
anteriores a Comenius ou da mesma época. Estas apresentam
outra configuração visual da instituição escolar. Um século antes
de “Orbis Pictus” era mais comum encontrar gravuras nomeadas
“escola” em que os alunos sentam em torno do professor para
escutar sua preleção.

Imagem 112

O silêncio da imaginação

Para demonstrar o silêncio da imaginação, vamos


tomar a primeira imagem do livro “Orbis Pictus” chamada convite
(invitation). Em um cenário aberto tendo as coisas da natureza
e as coisas feitas pelo homem ao fundo, o mestre conversa
com o puer:

27
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Imagem 213

M: Venha garoto, aprenda a ser sábio.


P: O que significa ser sábio?
M: Tudo o que é necessário, o conhecimento correto, o agir correto
e correta eloqüência
P: Quem me ensinará isto?
M: Eu, com Deus
P: Como?
M: Olhe para si mesmo e para tudo, revele a si mesmo e a tudo,
nomeie a si mesmo a tudo.
P: Olhe, aqui estou, ensine-me em nome de Deus.
M: Antes de tudo, deves aprender sons simples, nos quais baseia-
se a palavra humana, com as quais o Criador sabe como fazer, sua
língua é capaz de imitar e, suas mãos capazes de pintar.
Posteriormente, ande pelo mundo e olhe tudo.
Aqui temos um alfabeto vívido e vocal.

A abertura do livro é um convite ao conhecimento.


Dá-se a céu aberto. Vê-se o sol do lado direito do quadro. O
conhecimento vincula-se a um caminho a ser percorrido. Uma

28
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

caminhada visual através das páginas do livro. Em cada seção o


puer irá encontrar as figuras que representam as coisas do
mundo, a nome de cada coisa e a descrição de suas
particularidades.
Que puer é este que folheia lentamente o volume
deparando-se com as coisas e as palavras? É o estudante das
primeiras letras.
Para o estudante das primeiras letras de Comenius
os locais a serem percorridos já estão dados, a imagem das
coisas já está determinada e o nome das coisas já foi revelado,
em latim e na língua pátria. Até mesmo a particularidade de cada
coisa já está estabelecida através da descrição que acompanha
a figura de cada coisa do mundo.
O mestre propõe ao puer que aprenda pelo que foi
revelado por Comenius e depois ande pelo mundo e olhe tudo.
O puer deve primeiro “andar” pelo mundo que já foi imaginado
em Orbis Sensualium Pictus. O mundo em imagens14 é o pré-
requisito para conhecer o mundo das coisas e das palavras.
A Arte de ensinar de Comenius imagina antes do
estudante das primeiras letras as coisas do mundo e suas
palavras. Didatizar, neste sentido, é imaginar pelo outro. Neste
sentido, Comenius se afasta da Arte da memória. Sua obra filia-
se às técnicas mnemônicas. Enquanto os trabalhos mais
complexos da arte da memória propunham que a tarefa do
mestre era excitar o estudante a formar suas próprias imagens,
Comenius silencia a imaginação ao apresentar de antemão as
imagens do mundo.

Notas

1
Título da edição espanhola.

2
Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 1.0.5a.

3
COMÉNIO, João Amós. Didáctica Magna – Tratado da arte universal
de ensinar tudo a todos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1985, p. 43.

4
COMÉNIO, obra citada, p.155.

29
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

5
Fonte: http://www.edu.oulu.fi/~/epikkara/comenius/fatecom.htm
(site em inglês) PIKKANAINEN, Esa. J. A. Comenius. Education and
different kind of technologies: a conceptual study. Finlândia:
Universidade de Oulu. Acesso em: 22 maio 2002.

6
Porta ou entrada em latim.

7
FARNÉ, Roberto. Iconologia Didattica. Bologna : Zanichelli Editore,
2005, p. 24.

8
Em italiano: argumenti – Ciò che serve a dimostrare l’esistenza di
una cosa, prova.

9
Aqui há um engano do autor, pois são oito capítulos e não nove.

10
FARNÉ, obra citada, p. 27-28.

11
Museu, aqui, significa lugar de estudo.

12
A imagem 1 é de domínio público e está disponível no site: http:/
/www.uned.es/manesvirtual/Historia/Comenius/OPictus/
OPictusAA.htm.

13
A imagem 2 é de domínio público e está disponível no site: http:/
/www.uned.es/manesvirtual/Historia/Comenius/OPictus/
OPictusAA.htm.

14
Título do livro em espanhol atribuído por Esther.

30
AS MÚLTIPLAS
LINGUAGENS:
ENCORAJAR A LER

Sonia Larrubia Valverde

A partir da experiência por mim vivida, à frente da


Diretoria de Orientação Técnica na Divisão de Educação Infantil
(DOT Educação Infantil), na Secretaria Municipal de Educação de
São Paulo, no período de julho de 2003 a dezembro de 2004,
apresento como implementamos uma Política de Educação
Infantil comprometida com práticas educativas que visam
aproximar e encorajar as crianças, desde as mais pequeninas, a
lerem as múltiplas linguagens que compõem a nossa cultura.

Cont
Conteextualização
xtualização

A Educação Infantil, nas três últimas décadas, passou


a fazer parte do cenário das preocupações tanto dos
governantes como dos pais, dos pesquisadores e das
organizações não governamentais. Essas preocupações oscilam
entre os serviços de cuidado e educação, uma vez que, cada
vez mais cedo, as crianças passam a fazer parte de outras
instituições que não a sua família.
É importante situarmos que o Brasil, através da Lei
de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional (LDBEN),

31
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

promulgada em dezembro de 1996, determina a Educação Infantil


como a primeira etapa da Educação Básica, regulamentando o
direito apontado na Constituição Brasileira de 1988 que
considera a criança enquanto sujeito de direito. Isto implica
seu direito de frequentar as instituições de Educação Infantil
desde os primeiros meses de vida. Salientamos que isso não
significa escolarizar a Educação Infantil ou tomar como modelo
a Escola de Ensino Fundamental e nem tampouco considerá-la
como oportunidade para compensação de carências das
crianças pobres.
Com a LDBEN, várias mudanças e investimentos se
fizeram necessários para sua implementação, como o
redimensionamento do caráter de amparo e assistência para o
de desenvolvimento integral da criança em complementação à
ação da família e da comunidade que busca a integração entre
as dimensões do cuidar e educar através de políticas públicas
que contemplem a educação, a saúde e a assistência.
Tendo como pano de fundo esse panorama, nos
anos de 2001 a 2004 viveu-se um marco histórico na Educação
Infantil no Município de São Paulo com a integração das Creches
ao Sistema Municipal de Ensino.
O Município de São Paulo já possuía uma tradição
no atendimento à faixa etária de 0 a 6 anos, porém em redes
(secretarias) distintas: as Creches, que em sua maioria atendem
crianças de 0 a 3 anos, subordinadas à Secretaria da Assistência
Social e as Escolas Municipais de Educação Infantil (EMEIs),
frequentadas pelas crianças de 4 a 6 anos, vinculadas à
Secretaria Municipal de Educação.
No ano de 2001, a rede municipal de ensino de São
Paulo, segundo dados da SME/ATP - Centro de Informática,
possuía 423 EMEIs, e a rede de creches ainda vinculada à
Secretaria de Assistência Social “725 creches, divididas em três
categorias: rede direta, com 270 equipamentos; rede indireta,
com 148 equipamentos; e rede particular conveniada, com 307
equipamentos” (CREPALDI, 2002, p. 83).1
Muito embora a LDBEN seja de 1996, reconheça a
Educação Infantil como a primeira etapa da Educação Básica e
exija sua inserção ao sistema formal de educação colocando
sob a esfera do poder público municipal a responsabilidade
desse nível educacional, esse processo se inicia na rede

32
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

municipal de São Paulo em 1999, como aponta CREPALDI, porém,


somente em janeiro de 2002 essa inserção se dá efetivamente
no Município de São Paulo com a integração das creches diretas,
que passam a ser denominadas de Centros de Educação Infantil
(CEIs)2, ao Sistema Municipal de Ensino, ficando a integração
das creches indireta e particular conveniada para abril de 2003.
Como aponta o Plano de Integração das Creches
ao Sistema Municipal de Ensino, publicado no Diário Oficial do
Município - DOM do dia 29/12/2001, o processo de integração
dos CEIs ao sistema de ensino deveria ir além do cumprimento
da exigência legal e buscar a melhoria da qualidade do
atendimento prestado às crianças de 0 a 6 anos. Ou seja,
buscava-se a implementação de uma política de Educação Infantil
englobando os CEIs e as EMEIs.
Coube à Secretaria da Educação cumprir as
exigências apontadas pela LDBEN no que diz respeito à
formação mínima exigida dos/das profissionais e sua
incorporação à carreira do magistério, adequação dos prédios,
supervisão e orientação para que os/as CEIs/Creches
elaborassem seu Projeto Político Pedagógico e Regimento, bem
como ampliação do número de vagas oferecidas, dada a enorme
demanda existente na cidade.
Nesse sentido, várias ações foram desencadeadas
no cumprimento dessas exigências legais, bem como na
implementação de uma Pedagogia da Infância a qual “implica
considerar a criança, desde o nascimento, como produtora de
conhecimento e cultura, a partir das múltiplas interações sociais
e das relações que estabelece com o mundo, influenciando e
sendo influenciada por ele, construindo significados a partir
dele” (SME/DOT, 2004, p. 6).

Os ddeesafio
ioss apr
safio apreesent
sentaado
doss

Para que a verdadeira integração acontecesse foi


necessário reconhecer, reconstruir e rever a história das
instituições de Educação Infantil desde 1935, com a criação dos
Parques Infantis, pelo então Departamento de Cultura da
Prefeitura Municipal de São Paulo, que tinha na sua gestão o
poeta Mário de Andrade, bem como entender a importância do
movimento de mulheres que reivindicavam direito de creche

33
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

para os seus filhos na década de setenta, o que suscitou a


expansão da rede de creches no município.
Desse resgate histórico pode-se perceber quais
concepções de criança/infância, educação/educador foram
sendo construídas quotidianamente, ao longo dos anos,
analisando-as com os seus atores e protagonistas (crianças/
educadores/pais) para a (re)construção de uma Política de
Educação Infantil que considerasse a criança de 0 a 6 anos como
cidadã e sujeito histórico criador de cultura, tendo como
finalidade o respeito à criança e a seu crescimento integral em
todas as dimensões humanas, superando a divisão que
acontecia no início da segunda metade do século XX por força
das instituições estarem vinculadas a secretarias diferentes:
crianças de 0 a 3 anos separadas de crianças de 4 a 6 anos
como se fossem situações distintas.
Toda a ação de formação desenvolvida pela DOT-
Educação Infantil procurou transformar o olhar e a escuta dos/
das profissionais da rede municipal de São Paulo na perspectiva
da compreensão da infância como possibilidade de apropriação,
transformação e produção das culturas infantis.
Outro marco nessa formação foi incentivar o
desenvolvimento de projetos que visassem à reorganização
dos tempos e espaços nas unidades educacionais, tendo como
mote a criança de 0 a 6 anos enquanto protagonista,
incentivando-a a fazer uso de sua voz através das leituras e
releituras que realiza do mundo.
Partindo desses pressupostos, elegemos quatro
aspectos fundamentais que foram desenvolvidos nas ações de
formação junto aos educadores da rede municipal de educação
infantil:
1- A cultura da infância e as culturas infantis. Ao
trazermos esse aspecto, procuramos ampliar a discussão da
infância utilizando-nos dos saberes das várias abordagens
(sociologia, antropologia, arte, filosofia, arquitetura, história) que
permitem-nos compreender como a criança é vista e tratada na
sociedade contemporânea, a fim de conhecer melhor quem são
as crianças com as quais trabalhamos e principalmente refletir e
perceber se as práticas educativas desenvolvidas nos CEIs e
EMEIs têm permitido que as crianças sejam olhadas e escutadas
considerando-as como produtoras de culturas infantis;

34
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

2- A especificidade da educação de crianças de


zero a seis anos, reconhecendo “a especificidade da infância,
vendo a criança como sujeito de direitos, ativa e competente,
com poder de criação, imaginação e fantasia”, que “deve ser
levada a sério, tendo suas ideias e teorias ouvidas, questionadas
e desafiadas” (SME/DOT, 2004, p. 5), lembrando que defendemos
a Educação Infantil sem antecipação do ensino fundamental e
sem intenção preparatória;
3- O perfil do(a) educador(a) da criança de zero
a seis anos, pois consideramos que seu papel fundamental é
ser um “observador participativo” [...] “que constantemente
intervém para oferecer, em cada circunstância, os recursos
necessários à atividade infantil, de forma a desafiar
adequadamente, promover interações, despertar a curiosidade,
problematizar, mediar conflitos, garantir realizações significativas
e promover acesso à cultura, possibilitando que as crianças
expressem a cultura infantil” (SME/DOT, 2004, p. 8), utilizando-
se das múltiplas linguagens. Investimos, então, nas reflexões
destes educadores enquanto sujeitos na construção de sua
competência, destacando e respeitando os seus “saberes da
experiência”, os seus “saberes pedagógicos” e seus “saberes
das áreas do conhecimento”. Esses “saberes” contribuem para
a formação da identidade de um novo profissional capaz de
lidar com a especificidade exigida para o atendimento de crianças
de 0 a 6 anos.
4- A Pedagogia da Infância que queríamos
implementar no município, buscava “garantir o direito de cada
criança paulistana, que frequenta os CEIs e EMEIs, de expressar-
se e de viver plenamente sua infância, considerando suas
características, diversidade cultural, etnia, gênero e sexualidade”
(SME/DOT, 2004, p. 7). Para isso, fez-se necessário como
recomendava a Profa. Dra. Ana Lúcia Goulart de Faria, consultora
da DOT - Educação Infantil, de agosto de 2003 a dezembro de
2004, “familiarizar-se com o estranho e estranhar-se com o
familiar”, o que se efetivou através da análise e auto reflexão da
prática cotidiana realizadas por educadores/educadoras, nas
várias possibilidades de formação oferecidas.

35
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Os ddeesaf io
ioss tr
safio ansf
transformam-
ansformam-se eem
ormam-se m prátic
áticaa
prátic
Várias foram as ações de formação promovidas pela
Secretaria Municipal de Educação-SME sob a coordenação da
DOT - Educação Infantil, no período de 2001 a 2004, porém
destacarei quatro que, considero, foram as mais abrangentes e
impulsionaram o “movimento” que intitulamos de Construção
da Pedagogia da Infância.
A apresentação das ações não segue uma ordem
de importância, pois considero que todas contribuíram para a
implementação de uma Política de Educação Infantil que garanta
o direito de todas as crianças (meninos e meninas) a serem
respeitadas, ouvidas e incentivadas à livre expressão,
manifestando-se da forma como preferirem.
O Programa Especial de Formação Inicial em Serviço
Nível Médio para Auxiliares de Desenvolvimento Infantil-
Programa ADI - Magistério, curso realizado em parceria com
a Fundação Carlos Alberto Vanzolini, foi oferecido aos Auxiliares
de Desenvolvimento Infantil (ADIs) que trabalhavam nos CEIs
da rede direta do município, habilitando-os/as como
professores/professoras.
O Programa foi planejado e executado com o
objetivo de atender à exigência da LDBEN 9394/96 quanto à
necessidade dos/das profissionais que atuam na educação
infantil de 0 a 6 anos de idade possuírem, como formação
mínima, o nível médio na modalidade normal. Foi organizado
com duas turmas presenciais, sendo que a turma I, iniciada em
setembro de 2002, teve como público alvo 850 ADIs que
possuíam o ensino fundamental. A carga horária do curso, nessa
turma, foi de 2.800 horas que foram cumpridas em dois anos,
no período noturno das 19h30 às 22h, de segunda a sexta-
feira e, em alguns sábados, das 9h às 13h. A turma II, iniciada em
fevereiro de 2004, contou com a participação de 2.800 ADIs
que possuíam ensino médio - porém não na modalidade normal
- com uma carga horária de 1.600 horas que foram cumpridas
em um ano, também no período noturno das 19h30 às 22h, de
segunda a sexta-feira e, aos sábados, das 9h às 13h.
O conteúdo do Programa – Turma I, foi organizado
por módulos e subdivididos nas seguintes áreas relativas à
formação geral em nível médio:

36
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

z Linguagens, códigos e suas tecnologias;


z Ciências da natureza, matemática e suas tecnologias;
z Ciências Humanas e suas tecnologias.

Os módulos relativos à formação pedagógica foram


organizados nas seguintes áreas:

z Políticas Públicas de Educação Infantil;


z Fundamentos da Educação;
z Organização do Trabalho Pedagógico;
z Práticas Educativas.

As áreas se relacionavam por meio de Projetos


Interdisciplinares e, principalmente, por meio de eixos temáticos
comuns:

z 1º Semestre - Identidade;
z 2º Semestre – Infância e Cultura;
z 3º Semestre - Educar e Cuidar;
z 4º Semestre - Ambientes de Aprendizagem.

A metodologia adotada no Programa desenvolveu-


se através das seguintes atividades:

z Aulas coletivas - atividades de análise de textos, pesquisa,


realização de projetos em grupo e seminários;
z Trabalhos pessoais - projetos individuais de estudo e
pesquisa;
z Vivências culturais - dança, música, artes plásticas; teatro e
literatura;
z Oficinas didáticas sobre educação infantil - histórias infantis,
ludoteca e outras;
z Sessões de orientação da prática educativa - supervisão da
prática pedagógica com elaboração de relatórios, dentro do
processo de aprendizagem profissional significativo. As
práticas educativas (estágio) ocorreram ao longo dos quatro
semestres, sendo 10 horas semanais com atividades
realizadas no período de trabalho da ADI, no próprio CEI,
totalizando 800 horas até o final do curso.

37
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Na Turma II, o Programa foi divido em dois módulos


semestrais, organizados de modo a contemplar a formação
pedagógica, utilizando o mesmo conteúdo e metodologia já
descritos na Turma I.
O Programa ADI - Magistério possibilitou às/aos
educadoras/educadores que atuavam nos CEIs refletirem sobre
suas práticas dialogando com as teorias, considerando suas
experiências anteriores, contribuindo para uma transformação
no trabalho com as crianças. Ao mesmo tempo, estimulou
nesses profissionais a busca de novos conhecimentos e a
vontade de aprender mais.
Outra ação de formação que destacamos foram os
encontros de formação de formadores por modalidade,
realizados de agosto de 2003 a dezembro de 2004, com a
participação das Equipes Pedagógicas de Educação Infantil das
Coordenadorias de Educação3, num total de 120 representantes,
que eram responsáveis por organizarem e implementarem ações
de formação aos profissionais que atuam nos CEIs e EMEIs de
cada Coordenadoria. Nesses encontros, contamos com a
participação da Profa. Dra. Ana Lúcia Goulart de Faria, professora
da Faculdade de Educação da UNICAMP.
Os encontros, num total de vinte, com periodicidade
quinzenal no ano de 2003, e mensal em 2004, tiveram como
tema Simplesmente Complexa: A Pedagogia na Primeira Etapa da
Educação Básica e tinham como objetivo buscar, junto às equipes
pedagógicas das Coordenadorias de Educação das
Subprefeituras, a construção de um olhar comprometido com a
infância e com a criança concebidas como produtoras das
culturas infantis.
Através da contribuição da pesquisa acadêmica
sobre a produção da cultura infantil na esfera pública, fora da
família, discutiu-se sobre os CEIs e EMEIs como espaços de
construção de cultura pelas crianças, dos adultos (famílias,
professoras/professores e outros profissionais) e de ambos
construindo a pedagogia da educação infantil, garantindo o
direito à infância e a melhores condições de vida para todas as
crianças, independente de sexo, gênero, etnia, credo e classe
social.
Os encontros tiveram como eixos de discussão
quatro temas que foram aprofundados ao longo do trabalho:

38
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

z Pedagogia da Diferença - relações de gênero nas histórias


infantis, critérios de escolha de livros;
z Pedagogia da Escuta – ouvindo e conhecendo as culturas
infantis, práticas dos adultos e entendimento sobre as
múltiplas linguagens da criança de 0 a 6 anos e a singularidade
das suas famílias;
z Pedagogia das Relações – relação criança-criança, adulto-
criança, adulto-adulto no interior da Unidade Educacional;
z Pedagogia Macunaímica – o espaço e o tempo na organização
do trabalho pedagógico nos CEIs e EMEIs.

Cada encontro teve um caderno de formação


contendo textos que subsidiaram os trabalhos, além de relatos
das experiências desenvolvidas nas Coordenadorias e sínteses
dos encontros anteriores.
A metodologia adotada nos encontros teve as
seguintes dinâmicas:

z Leitura da síntese do encontro anterior;


z Exposição e debate com a Profa. Dra. Ana Lúcia Goulart de
Faria;
z Trabalhos em grupos;
z Discussão de textos que subsidiaram as equipes das
Coordenadorias de Educação das Subprefeituras na sua
atuação junto às Unidades Educacionais;
z Apresentação oral da síntese dos trabalhos desenvolvidos
em cada Coordenadoria, alternando as apresentações para
que todas pudessem ser ouvidas;
z Apresentação de projetos realizados nas Coordenadorias,
por inscrição e com roteiro prévio.

Em complementação aos encontros de formação


de formadores por modalidade, foi realizado o II Concentrado de
Educação Infantil: Construindo a Pedagogia da Infância em outubro
de 2003, com o objetivo de refletir sobre as práticas educativas
que valorizem a construção das dimensões humanas e a não
antecipação do ensino fundamental, aprofundando os conceitos
referentes à Pedagogia da Infância no sentido de ressignificar
os espaços e tempos nos CEIs e EMEIs. Esse evento deu origem
à publicação do Caderno Temático de Formação II: “Construindo

39
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

a Pedagogia da Infância no Município de São Paulo”, com o


objetivo de levar as reflexões dos palestrantes para as unidades
educacionais, e, assim, subsidiar as equipes das Coordenadorias
no “movimento” da construção dessa pedagogia.
Dentre os temas e textos trabalhados destaco dois
que contribuíram, para enriquecer nossa discussão no sentido
de pensarmos nas múltiplas linguagens e no encorajar a ler. O
primeiro foi “A arte como base epistemológica para uma
Pedagogia da Infância”, através do qual a professora Ana Angélica
Albano demonstra o quanto a arte é essencial não só na
educação infantil, mas na vida. Ela nos faz pensar como estamos
vivendo e sentido a arte em nossas vidas, que importância
damos a ela. Nos mostra ainda, o quanto a arte pode trabalhar
e aceitar as diferenças, além de desenvolver a sensibilidade e a
estética.
Segundo Ana Angélica Albano “a arte é a forma de
dizer coisas que a palavra não pode dizer. A arte reclama o
homem por inteiro”. A partir de sua fala, podemos concluir que
temos várias dimensões humanas e que as unidades
educacionais de educação infantil são espaços privilegiados de
convivência nos quais as crianças, desde as mais pequeninas,
teriam a oportunidade de vivenciar experiências que as fizessem
sentir-se por inteiro, onde houvesse a valorização da ludicidade,
do imaginário, do jogo, das relações interpessoais, do convívio
com a natureza, da dança, da música, do desenho, do teatro e
das histórias. Todas essas formas de linguagens, se incentivadas
no dia a dia vivido pela criança na unidade educacional, a ajudarão
a conhecer a si mesma e ao mundo que a cerca.
O outro destaque refere-se ao texto “Um mergulho
no letramento a partir da Educação Infantil”, da professora Suely
Amaral Mello, no qual ela enfatiza que o papel da educação
infantil é, em particular, o da possibilidade do mergulho no mundo
da cultura e dos fazeres humanos. O mergulho no mundo da
natureza e da cultura faz com que a criança aprenda a ser e a
estar no mundo. Isso traz implicações muito mais culturais que
biológicas. Assim, defende a recuperação de uma educação
infantil em que o letramento seja um dos elementos que a
constitua, mas não o elemento essencial.
Dessa forma, entendemos que os CEIs e as EMEIs
precisam possibilitar às crianças o acesso aos mais variados

40
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

gêneros textuais, sem contudo preocupar-se com a


sistematização da alfabetização, mas encorajando-as a ler e a
produzir as múltiplas linguagens que compõem a nossa cultura:
o desenho, a pintura, a música, a poesia, as histórias, a dança, o
jogo e tantas outras.
Outra ação que também contribuiu para as/os
educadoras/educadores da rede municipal de São Paulo
fortalecerem o seu trabalho no sentido de permitir às crianças
a produção das múltiplas linguagens foi o curso Leitura de Mundo,
Letramento e Alfabetização: os Espaços e Tempos das Linguagens
e do Brincar desenvolvido de maio a setembro de 2004, em
parceria com a Fundação de Apoio à Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo - FAFE/USP, financiado com verba do
FNDE.
O curso, sob a coordenação da Profa. Dra. Marina
Célia de Morais Dias, teve a participação de cerca de 2100
educadoras/educadores, com a carga horária de 80 horas,
sendo que 60 horas foram presenciais e 20 horas não
presenciais, destinadas à execução de um projeto na unidade
de atuação docente.
Ao conceber a criança como sujeito histórico que
se constitui nas inter-relações intermediadas pelas diferentes
formas de linguagem e entender que através dessas inter-
relações com o outro e com o mundo, o lúdico é a forma
privilegiada de compreensão e transformação da realidade, o
curso enfatizou as experiências criativas na formação artística
e estética das/dos educadoras/educadores e de crianças de 0
a 6 anos.
No decorrer do curso ofereceu-se às/aos
educadoras/educadores um conjunto de vivências, repertórios
e conhecimentos teórico-práticos que instrumentalizaram os
participantes na elaboração de suas propostas pedagógicas,
tendo o lúdico e a arte como elementos essenciais do trabalho
desenvolvido com as crianças.
Para finalizar, apresento a seguir, alguns princípios
referentes à Pedagogia da Infância4 que foram construídos
coletivamente, com as equipes das Coordenadorias de Educação
ao longo das ações de formação e que consideramos
fundamentais para a concretização de uma Política de Educação
Infantil que garanta às crianças vivenciarem as múltiplas

41
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

linguagens que compõem a nossa cultura:

z Considerar a criança como principal protagonista da ação


educativa;
z A indissociabilidade do cuidar e educar no fazer pedagógico;
z O destaque ao brincar, à ludicidade e às expressões das
crianças na prática pedagógica de construção de todas as
dimensões humanas;
z Ter a arte como fundamento na formação dos/das
profissionais da primeira etapa da educação básica;
z Possibilitar à criança o acesso aos bens culturais, construídos
pela humanidade, considerando-a: sujeito de direitos,
portadora de história e construtora das culturas infantis;
z Considerar a criança como centro da atenção do Projeto
Político Pedagógico;
z Efetivar propostas que promovam a autonomia e a
multiplicidade de experiências;
z Possibilitar a integração de diferentes idades entre os
agrupamentos ou turmas;
z Considerar a organização do espaço físico e tempo como
um dos elementos fundamentais na construção dessa
pedagogia;
z Estabelecer parcerias de participação com as famílias;
z Estender o “espaço educativo” para a rua, o bairro e a cidade;
z Buscar a continuidade educativa da Educação Infantil na
direção do ensino fundamental.

A DOT - Educação Infantil teve como mote nos seus


movimentos de formação, resgatar a criança como produtora
de cultura, entendê-la como nascida em um ambiente letrado
que interage com o mundo, decodificando-o, transformando-o
por intermédio das múltiplas linguagens. Com o trabalho descrito
acima, acreditamos ter trabalhado nessa direção.

Notas
1
Conforme dados da SME/ATP – Centro de Informática, em
dezembro de 2004, a rede municipal possuía 464 EMEIs, 334
CEIs diretos, 223 CEIs indiretos, 347 CEIs conveniados.

42
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

2
O nome Centro de Educação Infantil pressupõe um conceito
pedagógico novo de atendimento às crianças de zero a seis anos
de idade, conforme relata o Secretário da Educação da época
Prof. Fernando de Almeida: “Vamos tratar a Educação Infantil
dentro de um espírito novo que inclui a discussão com a
comunidade para a construção tanto de um projeto pedagógico
quanto arquitetônico que dê conta da educação das nossas
crianças”. (Informativo para Profissionais da Educação, n. 05 - junho
de 2001, publicado pela Secretaria Municipal de Educação de
São Paulo, p. 1).

3
Cabe ressaltar que, no ano de 2001 a Secretaria Municipal de
Educação era subdividida em 13 Núcleos de Ação Educativa -
NAEs que agrupavam as unidades educacionais de forma
regionalizada. Em 2003, o Poder Público Municipal de São Paulo
teve um novo desenho: organizado por 31 subprefeituras e,
dentro de cada uma delas, temos Coordenadorias, principalmente
das áreas sociais: Educação, Saúde, Ação Social e
Desenvolvimento apoiadas pelo Planejamento e Desenvolvimento
Urbano, Administração e Finanças, Manutenção da Infra Estrutura
Urbana, Projetos e Obras, exigindo um olhar público mais
integrado. As 31 Coordenadorias de Educação desenvolveram
um extenso programa de formação para todos os educadores
da educação infantil, num trabalho intenso e continuado, valendo-
se de diferentes estratégias, respeitando as características de
cada região e número de unidades envolvidas e parcerias com as
demais Coordenadorias que compunham as Subprefeituras.

4
Podemos falar de uma infância que não se encerra aos seis anos,
mas prossegue, pelo menos, até os dez anos de idade.

Refer
eferência
ênciass
erência

BRASIL. MEC/SEF/COEDI. Subsídios para Credenciamento e


Funcionamento de instituições de educação infantil. Brasília, 1998. v.
I e II.

BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO / CÂMARA DE


EDUCAÇÃO BÁSICA. Parecer 022/98. Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil. 1998.

43
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

CREPALDI, R. O cotidiano da integração da rede de creches da


Secretaria Municipal de Assistência Social ao sistema de ensino.
In: MACHADO, M. L. de A. (Org.). São Paulo: Cortez, 2002.

FARIA, A. L. G. de. Educação Pré-Escolar e Cultura: para uma


pedagogia da educação infantil. Campinas: Editora da UNICAMP;
São Paulo: Cortez, 1999.

SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO/DIRETORIA DE


ORIENTAÇÃO TÉCNICA. Caderno Temático de Formação II- Educação
Infantil: Construindo a Pedagogia da Infância no Município de São
Paulo. São Paulo: SME/ATP/DOT,2004.

.Orientação Normativa nº 01/2004: Construindo um


Regimento da Infância. São Paulo: SME/ATP/DOT, 2004.

SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO/DIRETORIA DE


ORIENTAÇÃO TÉCNICA. Revista Educ Ação – 01. São Paulo: SME/
ATP/DOT, 2001.

.Revista Educ Ação – 02. São Paulo: SME/ATP/DOT, 2001.

.Revista Educ Ação – 03. São Paulo: SME/ATP/DOT, 2002.

.Revista Educ Ação – 04. São Paulo: SME/ATP/DOT, 2003.

. Revista Educ Ação – 05. São Paulo: SME/ATP/DOT, 2004.

44
O PRIMEIRO LEITOR
E A FORMAÇÃO
DAS PROFISSIONAIS
DA EDUCAÇÃO INFANTIL

Eliana Aparecida Pires da Costa

É dever da família, da sociedade e do Estado


assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura,
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de
toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL,
1988)

Inicio as considerações acerca da formação dos


profissionais que trabalham com crianças que estão se
constituindo “primeiros leitores”, partindo do artigo 227 da
Constituição Brasileira de 1988, por entender primordial diante
do que vem me preocupando. Urge garantirmos a todas as
crianças o que está posto neste artigo, para fazer valer o que
foi conquistado, num movimento democrático - consta da letra
da Lei, mas como bem sabemos, é ainda um direito a ser
conquistado para todas as crianças. Embora tenham ocorrido
avanços, muito ainda há por fazer com relação a políticas

45
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

públicas de democratização e qualidade, e ainda, por uma


pedagogia da infância, que permita a todas as crianças o direito
de viver a sua infância.
Recupero também, como início desta reflexão, a fala
de Bartolomeu Campos Queirós na Conferência de abertura do
15° COLE, na qual, expondo sobre a leitura com todos os
sentidos, de forma sábia e simples, nos remete a pensar nos
desafios dos profissionais que diretamente vão tratar com a
fantasia, com a construção das identidades e apreensão do
mundo pelas crianças.
Trago uma imagem do quadro “Criação da Vovó” de
Oscar Pereira da Silva (1895)1 no qual o artista, em uma minuciosa
cena de cotidiano, também contribui para a reflexão da formação
profissional dos que atuam com crianças pequenas. Nesta obra,
pode ser vista uma pessoa adulta – a Vovó, mostrando para a
criança o coelhinho na gaiola. A vovó pega a criança no colo,
traz para sua altura e permite que a criança veja o objeto. A
avó ergue a criança até o coelho dentro da gaiola, mostrando
o que do mundo selecionou a ser mostrado naquele momento,
porém a criança realiza o seu movimento. A criança aponta,
toca a cena, quer pegar inquietantemente aquilo que está sendo
mostrado. A concepção adultocêntrica de eleger o que dever
ser mostrado é contraposta pela intenção da criança de pegar,
de tocar, de mexer, de transgredir.

46
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Há um mundo da cultura humana elaborado, o qual


a criança encontra ao nascer e vai se apropriando dele,
transformando-o, produzindo suas marcas, à medida que
interage com este mundo e com outras crianças e adultos nele
inseridos. Nas escolas de educação infantil – creches e pré-
escolas – há intencionalidade neste processo, possibilitado
pelas políticas públicas, e implica formação profissional específica.
Assim, que formação profissional é essa que deva
ser exigida e oferecida aos profissionais da Educação Infantil,
que dê conta de formar o leitor – a criança no caso, que
compreenda criticamente o mundo, para além do que está dado,
de forma a possibilitar inovações, aos sujeitos de direitos – às
crianças?
A formação inicial e continuada dos profissionais
da Educação Infantil que trabalham na educação das crianças
de zero a seis anos de idade, compreendida como Educação
Infantil, realizada institucionalmente nas creches e pré-escolas,
as quais se constituem espaços de criação e divulgação de
cultura, exige um profissional que respeite a criança. Trato
especificamente da Educação Infantil, embora reconheça que o
direito à infância deva ser considerado no Ensino Fundamental.
Busca-se que as instituições que educam crianças sejam espaços
de abertura para os pais e a comunidade com círculos de cultura
e leitura da/para a infância e ainda com possibilidades de
inovações criadoras e criativas nas relações adulto-criança,
criança-criança, comunidade-criança.
Não se trata de prescrever que formação deve ser
dada aos profissionais que atuam nessas escolas, porém de
apontar considerações importantes que revelam os vínculos
com a cultura, ou seja, com uma sólida formação cultural e
científica. Um pedagogo da infância é um estudioso da cultura
da infância e da cultura infantil, de suas manifestações, da música,
das letras, da poesia, das imagens, da pintura, enfim das múltiplas
linguagens. Exige-se um profissional comprometido com os
desafios de seu tempo: a superação da discriminação, da
exclusão e da exploração; comprometido com a emancipação
de seu povo e a construção de sua humanidade. É fundamental
um profissional aberto às manifestações culturais dos
movimentos sociais, da comunidade onde a unidade educacional
está inserida e ousar para novas formas e novas relações com

47
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

os pais, as comunidades, outras crianças, de outras idades.


Espera-se que este profissional esteja vinculado às lutas de
sua categoria, dos educadores da infância e dos movimentos
teóricos da área.
Exatamente nesta discussão particular de pensar no
Educador de crianças pequenas e na formação necessária para
este profissional, fui buscar nos materiais produzidos pela
ANFOPE2, que documentam toda uma história de lutas em prol
da formação dos educadores, a partir do que fui elencando
aspectos que considero importantes para a Educação Infantil,
reportando à sua história, com desafios e perspectivas.
Assim é necessário esclarecer a que formação inicial
e continuada me refiro. Que relação estabelece essa formação
inicial e continuada com o projeto histórico de nosso povo? A
resposta a essa indagação pode nos levar necessariamente a
explicitar a concepção de educador e de educação que há em
nossas propostas de formação e de organização do trabalho
pedagógico: de que profissional da educação trato?
Nesse sentido, então, algumas das questões
históricas apontadas pela ANFOPE merecem importante
consideração no nosso movimento:
a) A questão da formação do educador deve ser examinada de
forma contextualizada. Insere-se na crise educacional
brasileira, a qual constitui uma das facetas de uma
problemática mais ampla, expressão das condições
econômicas, políticas e sociais que configuram uma
sociedade profundamente desigual e injusta que vem
esmagando a maioria da população e relegando-a a uma
situação de exploração e miséria. Quando olhamos para a
Educação Infantil especificamente, não podemos deixar de
ver a precariedade principalmente para se atender à demanda.
As famílias das camadas populares têm encontrado muita
dificuldade de conseguir as vagas na Educação Infantil e
também vemos proliferar atendimentos precários de
educação infantil, embora não caiba aqui uma análise dessa
realidade. Porém é bom ilustrar que a educação infantil é
também dualista e a crise educacional brasileira é em todos
os níveis – envolve, pois, a Educação Infantil.
b) A transformação do sistema educacional exige e supõe sua
articulação com a própria mudança estrutural da sociedade

48
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

em busca de condições de vida justa, democrática e igualitária


para as classes populares. Ter presentes essas amarras mais
amplas é fundamental para evitar que o debate da formação
do educador, inicial e continuada, concentre-se apenas em
questões técnicas. Essa etapa já foi vencida há muito tempo
pelo movimento dos educadores. É explícito que as
discussões acerca da formação dos Profissionais da Educação
Infantil devem se voltar para a compreensão dos seus
fundamentos históricos sociais.
c) No movimento de luta pela democratização da sociedade
brasileira está inserida a necessidade da gestão democrática
da escola e da educação, em todos os níveis. As unidades
educacionais da Educação Infantil são locais prioritários de
participação das famílias, tendo em vistas possibilitar o
exercício de experiências na gestão educacional das creches
e pré-escolas pelos profissionais que nela atuam, num
movimento envolvendo toda a comunidade.
Historicamente, o movimento dos educadores no
Brasil tem indicado as necessidades de formação do educador,
defendendo a formação de um profissional de caráter amplo,
com pleno domínio e compreensão da realidade do seu tempo,
com a consciência crítica que lhe permita interferir e transformar
as condições da escola, da educação e da sociedade, um
educador que, enquanto profissional do ensino [...]
tem a docência como base da sua identidade
profissional, domina o conhecimento específico de
sua área, articulado ao conhecimento pedagógico,
em uma perspectiva de totalidade do conhecimento
socialmente produzido que lhe permita perceber as
relações existentes entre as atividades educacionais
e a totalidade das relações sociais, econômicas,
políticas e culturais em que o processo educacional
ocorre, sendo capaz de atuar como agente de
transformação da realidade em que se insere
(CONARCFE, 1989).

Assim, compreender o educador como um sujeito


histórico implica, também, questionar a respeito do futuro e
das perspectivas que se abrem para a construção de um novo
tempo, uma nova sociedade, uma nova escola.
Implica, portanto, entender o professor3 como um

49
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

sujeito que se constrói na prática social e, nesse sentido, nos


aproximamos também da compreensão de que os professores
e educadores das creches e pré-escolas são categoria prática e
organizativa em plena construção pelos próprios profissionais. Na
Educação Infantil temos assistido com muita crítica à duplicidade
de formação, de condições de trabalho para o exercício
profissional das professoras e monitoras. Os profissionais vêm
se mobilizando para superar essa dicotomia e consolidar o que
está posto na LDB 9394/96, em seu Artigo 62 e 64,
respectivamente que falam da formação específica em nível
superior e também em formação continuada para os
profissionais da Educação Básica.
As habilidades e competências a serem
desenvolvidas por um currículo que responda aos desafios
colocados pela realidade atual devem considerar os princípios
da base comum nacional - uma construção da ANFOPE e do
movimento dos educadores a nível nacional, e a produção no
campo educacional. Em linhas gerais, poderiam ser definidas
como capacidades/habilidades/condições de formação (inicial
e continuada) importantes do profissional da educação:
a) A criação de possibilidades para que os professores possam
entender a pluralidade cultural como fruto da atividade
humana nos diferentes tempos históricos do nosso país, do
nosso povo e dos demais povos da América, como prática
de produção e de criação dos sujeitos, artífices e autores
do seu mundo e de sua história; podemos falar da origem
das brincadeiras, dos jogos, das danças, das fantasias e
expressões corporais e sensitivas e dos costumes e
tradições que circulam nos vários territórios e cantos de
nosso país pelas mãos das crianças e de suas famílias, que
constituem o povo brasileiro;
b) Desenvolver a capacidade de conhecer as características,
necessidades e aspirações de seu povo, e da sociedade a
que pertence, identificando as diferentes forças e seus
interesses de classe, captando contradições e perspectivas
de superação; podemos considerar todas as relações que
cotidianamente acontecem nas escolas de educação infantil
permeando o dia-a-dia de questões sociais de toda ordem
que são constitutivas de um emaranhado a ser compreendido
e superado de forma propositiva;

50
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

c) Compreender o caráter histórico das relações de dominação


existentes na sociedade, contribuindo para a formação crítica
das novas gerações; se hoje temos um número cada vez
maior de crianças dentro das escolas de Educação Infantil
sabemos que ainda falta muito a investigar, produzir e intervir
nos rumos desta etapa inicial da Educação Básica;
d) Compreender as particularidades do processo de trabalho
pedagógico que ocorre nas condições concretas da escola,
da educação formal e não formal, bem como as condições
de desenvolvimento das crianças, jovens e adultos, enfim
um estudioso da educação; há que se buscar principalmente
a formação continuada de tantos profissionais que atuam
sem formação específica na Educação Infantil e ainda de
profissionais que embora tenham formação em Educação,
não têm formação específica para o trabalho profissional com
crianças pequenas;
e) Compreender a dinâmica da realidade atual, identificando os
processos pedagógicos que se desenvolvem na prática social
e cultural concreta da comunidade em que a escola está
inserida, utilizando-se dos conhecimentos próprios da sua
cultura, e das diferentes áreas do conhecimento para
trabalhar na escola; a escola de Educação Infantil – emeis,
creches –, de forma contundente e coletivamente, tem sido
um espaço de formação dos adultos que nelas atuam.
Reconhecidamente há um movimento de escolarizar
precocemente as crianças pequenas a ser combatido
cotidianamente;
f) Desenvolver sua autonomia e independência intelectual pelo
estudo científico da educação, da escola e do trabalho
pedagógico, construindo a crítica das propostas pedagógicas
atuais e apropriando-se de práticas pedagógicas que
respondam aos interesses da educação e da escola pública.
Há muito a ser produzido com relação à pedagogia da infância;
g) Buscar articuladores que garantam a unidade teoria/prática
no trabalho pedagógico, buscando a construção de
parâmetros que orientem a tomada de decisão em relação a
um currículo com uma concepção emancipadora e libertadora
de educação: cuidar da seleção, organização do trabalho
pedagógico que respeitem e considerem a sua cultura como
educação;

51
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

h) Vivenciar o trabalho coletivo e interdisciplinar no trabalho


pedagógico, de forma interrogativa e investigativa,
contribuindo para a construção/socialização dos saberes e
conhecimentos;
i) Implementar formas de gestão democrática da escola, a partir
da apreensão dos sentidos das práticas solidárias e
cooperativas, organizando e gerindo, como profissional, a
articulação dos sujeitos escolares entre si e destes com a
própria comunidade, buscando caminhos para equacionar os
graves problemas do processo de escolarização, tais como
o desinteresse, a desistência, o abandono da escola, a
retenção;
j) Assumir o compromisso de transformar as condições atuais
da educação, bem como as condições sociais sobre as quais
ela se dá, tendo como norte a participação no processo de
transformação da sociedade atual e da construção de uma
sociedade justa, igualitária.
Pensar uma política global de formação de
professores implica tratar simultaneamente e com a mesma
seriedade, a formação inicial, as condições de trabalho,
salário e carreira e a formação continuada, na busca por uma
educação pública e gratuita de qualidade, que garanta a inclusão
das classes populares na escola pública e elimine a exclusão e
a discriminação social. A definição dessa política está vinculada
também à nossa luta histórica por uma sociedade mais justa e
igualitária.
É indispensável reforçar o reconhecimento de que
a Universidade, pela sua universalidade e lócus da investigação
e pesquisa, é o espaço privilegiado, de formação dos
profissionais da educação e, em seu interior, o papel central
que as Faculdades/Centros de Educação têm na organização e
produção de conhecimento na área educacional, base científica
e teórica que garante potencialmente o oferecimento e
organização de cursos de formação de qualidade.
Ainda é importante destacar as discussões sobre
base comum nacional, que, no interior do movimento de
reformulação dos cursos de formação, tentaram sempre
responder a essa indagação principal: “Por que uma base
comum nacional?”.
Novamente a ANFOPE, ao analisar a relação estreita

52
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

entre a forma como se produz o conhecimento e a forma de


produção da vida material, o trabalho e sua degradação na
sociedade capitalista, o movimento chama a atenção para “a
importante função a ser exercida pela base comum nacional no
conjunto do movimento nacional dos educadores: “deve-se
entendê-la como um instrumento de luta contra a degradação da
formação do profissional da educação” (CONARCFE, 1990, p. 8).
Esta concepção avança na definição de base
comum nacional fundada na concepção sócio-histórica do
educador, traduzida pela formação do profissional crítico capaz
de articular o conhecimento teórico com a prática educativa,
colocando-se a serviço da transformação da sociedade
brasileira. Amplia o campo epistemológico do profissional da
educação em uma perspectiva de “compreensão da totalidade
do processo educativo e seu significado na formação social
brasileira”, articulando vários princípios nessa compreensão:

[...] a formação do profissional da educação procura


superar a dicotomia teoria/prática, construindo
a identidade desse profissional através de um
trabalho coletivo interdisciplinar, articulado com
o princípio da gestão democrática (CONARCFE,
1990, p. 16).

A luta pela formação teórica de qualidade, um dos


pilares fundamentais da base comum nacional, implica recuperar,
nas estruturas curriculares, a importância do espaço para análise
da educação enquanto disciplina, seus campos de estudo,
métodos de estudo e status epistemológico; busca ainda a
compreensão da totalidade do processo de trabalho docente
e nos unifica na luta contra as tentativas de aligeiramento da
formação do profissional da educação, via propostas neo-
tecnicistas que pretendem transformá-lo em um “prático”
formado apenas nas disciplinas específicas.
Portanto, pretende-se sólida formação teórica e
interdisciplinar sobre o fenômeno educacional e seus
fundamentos históricos, políticos e sociais, englobando a
compreensão das questões relacionadas ao trabalho
pedagógico, criando condições para o exercício da análise crítica
de suas próprias práticas, da sociedade e da realidade

53
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

educacional de nosso país, num movimento de produção


coletiva de conhecimento, consolidando para isso novas
formas de organização curricular nas instâncias de
formação desses profissionais.
É fundamental a unidade entre teoria/prática que
implica assumir uma postura em relação à produção de
conhecimento que impregna a organização curricular dos
cursos, e não se reduz à mera justaposição da teoria e prática
em uma grade curricular; teoria e prática que perpassam todo o
curso de formação e não apenas o momento da reflexão sobre
a prática de ensino do professor, o que implica tomar o trabalho
como princípio educativo, principalmente nas escolas públicas,
estabelecendo novas relações com a pesquisa de intervenção
na prática social.
A produção coletiva de conhecimento aliada à sólida
formação teórica deve ser entendida como um “movimento
instigador da mobilidade intelectual e da organização do
pensamento dos alunos e da prática política que ultrapassa os
limites da sala de aula e que são determinantes tanto para a
produção de conhecimento e do saber, como para a formação
da práxis dos educandos” (ANFOPE, 1994, p. 22).
Concluindo sintetizo que a luta pela educação
infantil de qualidade e pela formação inicial e continuada de seus
profissionais é, enfim, uma luta do nosso povo. O momento
atual caracteriza-se como de luta e resistência contra as políticas
predatórias em todos os campos da vida social. Por oposição,
ao fazermos a crítica de nossa escola e de nosso processo
atual de formação, identificamos nas propostas em discussão
pelos educadores infantis e estudiosos da temática, elementos
de aproximação com a escola e a sociedade que queremos.
Temos ainda muitas perguntas, muitos desafios, para a formação
dos educadores de crianças que sejam leitoras com todos os
sentidos, em múltiplas linguagens, então trago uma
consideração de DAHLERG, MOSS e PENCE que retrata o
inacabamento instigante deste processo, no qual “estamos
rumo a um horizonte que sempre recua diante de nós, mas, à
medida que caminhamos, vemos novas paisagens se abrindo,
enquanto que as paisagens pelas quais já passamos parecem
diferentes quando olhamos para trás” (DAHLERG; MOSS; PENCE,
2003, p. 11).

54
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Notas

1
Pintor brasileiro que nasceu em 1867, São Fidelis (RJ) e faleceu em
São Paulo (SP), 1939. Foi aluno de Victor Meirelles e também
estudou em Paris.

2
ANFOPE – Associação Nacional pela Formação dos Profissionais
da Educação, associação político-acadêmica, criada a partir do
movimento dos profissionais de educação da Comissão Nacional
dos Cursos de Formação do Educador, no V Encontro Nacional
(Belo Horizonte, julho de 1990). Em sucessivos encontros, foi
forjando um movimento social, formulando conceitos,
configurando-se na luta pela formação de educadores na
sociedade brasileira. Foram consultados os seguintes
documentos: ANFOPE - Documentos Finais dos V, VI, VII, IX, X e
XI Encontros Nacionais da Associação Nacional pela Formação
dos Profissionais da Educação, Brasília, de 1990 a 2000; CONARFE.
Documentos Finais do II, IV e V Encontros Nacionais de
Reformulação dos Cursos de Formação dos Educadores. 1986,
1989, 1990. (mimeo).

3
Trato genericamente a formação de professoras, entendendo
também o que aspiramos para as monitoras. Conforme o que
existe na Rede Municipal de Ensino de Campinas-SP, a Educação
Infantil se constituiu historicamente com duas categorias de
profissionais: as monitoras e as professoras, com formação e
condições de trabalho diferenciadas atuando com as mesmas
crianças. Ainda, embora trate de professora, ensino e escola na
Educação Infantil, estes termos não evocam escolarização precoce,
a qual incessantemente temos combatido. Também, embora haja
entre profissionais homens professores e monitores, a maioria
ainda é mulher. Mesmo sem abordar a questão de gênero, ela
está presente nas discussões acerca da formação profissional.

Refer
eferência
ênciass
erência

ANFOPE. Documentos Finais do V, VI, VII, IX, X e XI Encontros


Nacionais da Associação Nacional pela Formação dos Profissionais
da Educação, Brasília, de 1990 a 2002.

55
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa


do Brasil: promulgada em 05 de outubro de 1988. São Paulo:
IMESP, 1993.

BRASIL. Lei 9.394/96, de 20 de dezembro de 1996. Lei de


Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Da Educação Infantil.
Brasília, 1996.

CONARCFE. Documento Final do III Encontro Nacional da


Comissão Nacional de Reformulação dos Cursos de Formação
dos Educadores. In: Coletânea de documentos. Brasília, 1988.

. Documento Final, IV Encontro Nacional, Comissão Nacional de


Reformulação dos Cursos de Formação do Educador. Belo Horizonte,
1989.

. Documento Final, V Encontro Nacional, Comissão Nacional de


Reformulação dos Cursos de Formação do Educador. Belo Horizonte,
1990.

DAHLERG, G.; MOSS, P.; PENCE, A. Qualidade na educação da primeira


infância: perspectivas pós-modernas. Porto Alegre: Artmed, 2003.

56
DE COMO SER PROFESSOR
SEM DAR AULAS NA
ESCOLA DA INFÂNCIA1

Danilo Russo

A quem me traz os filhos e as filhas,


A quem trabalha nesta Escola da Infância,
Aos autos,
A quem interessar, para que tome ciência.

Cumpro todos os anos um dever agradável ao


escrever este texto. É um dever, na medida em que é uma das
formas de prestar contas a vocês de como ensino no corrente
ano, dado o grupo concreto de meninos e meninas cujos pais
depositaram confiança em mim. Tem sido interessante e
agradável escrevê-lo desde quando decidi aprender a fazer
coincidir primeiramente os destinatários e as destinatárias
do discurso e, depois, a linguagem que uso para dizer as
coisas de modo a parecerem claras, e de modo a fazer com
que elas possam ser reconhecidas – espero – na prática.
O que digo a vocês fica para mim como o único
testemunho de reflexão, através dos anos, sobre esse trabalho
e os seus problemas (sempre a partir daqueles que me são
propostos): aqui é o único lugar onde deixo essa reflexão e
não a escrevo para outras pessoas.

57
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Tenho, enfim, uma “malícia” nisso: tenho consciência


de que muitos dos objetos deste discurso se repetem a cada
ano sem mudar muito. Por exemplo, quando se está há muito
tempo numa mesma escola da infância, os espaços e os objetos
(a matéria prima do trabalho) são os mesmos ao longo dos
anos: aumentam pouco, se deterioram pouco. Eu também
pareço comigo mesmo com o passar dos anos: no procurar
(não um “método”, mas) uma prática de educação e no buscar
sensibilidade e critérios que possam me ajudar a encontrar tal
prática no quotidiano, em cada pequena opção.
Sobre meninos e meninas é mais difícil dizer isso.
Esta turma, por exemplo, mudou quase completamente em
relação ao número, à idade (média) e ao sexo dominante. Não
é pouca coisa, e o que direi leva em conta essas mudanças.
Além disso, cada menino novo, cada menina nova, não é só
estatística junto com os demais, mas é uma parte única. E é
parte do meu trabalho, de como conseguir que vinte pessoas
se reconheçam como tais no ato de compartilhar entre elas
e, comigo, um espaço e um tempo durante 190 dias no ano.
Ocorre, porém, que meninos e meninas são também típicos. Ou
serão os olhos de quem já conheceu centenas deles e não
resistem à comodidade de tipificá-los vendo neles também
invariâncias, além da unicidade das histórias. É um fato que
ocorre - quando ocorre - em relação ao modo deles se
comportarem. E quem ensina – dependendo de como ensina e
da consciência que tem disso – aprende a esperar e a constatar.
Não sou exceção.
Também não muda, mas se repete, através dos anos
e dos governos, a orientação escolar a que devo me referir.
Não muda o fato de que esta escola seja facultativa, de que
meninos e meninas poderiam não frequentá-la e não seriam
obrigados a isso. É importante destacar que o Estado não
pretende decidir sobre a educação-instrução de meninos e
meninas desta idade, como faz no caso da idade escolar
obrigatória. Não muda o fato de que não é ainda para nós que
se designa o dever da alfabetização. Formalmente ele ainda
está colocado nas séries iniciais do ensino fundamental. Não
muda o fato de que não nos é dado o poder de “reprovar”:
ele tem início, justamente, com a alfabetização. Somos uma escola
frágil e isso em nada me desagrada.

58
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Perdoem-me por esta recapitulação de temas talvez


previsíveis, ou importantes somente para mim. Mas é que, este
ano, há um grande número de interlocutores novos e
interlocutoras novas entre aqueles a quem este texto é dirigido.
Fazem parte da minha turma 14 crianças que não a
frequentavam antes2. Outras 3 frequentam desde janeiro3.
Somente 5, todos meninos, são veteranos. Esta turma tem uma
característica peculiar em razão do número de meninos novos
e de meninas novas que a frequentam. Quando tenho, como
este ano, uma turma substancialmente renovada e, além disso,
“jovem” (mais da metade tem 3 anos) e masculina, o desafio de
encontrar uma postura comum me aparece de forma mais
evidente.
Assumo que, principalmente para as crianças
recém chegadas, pode valer desde logo um primeiro critério
que procuro seguir. Digo assim: um menino ou uma menina
que entra na turma deve aprender comigo a ser o responsável
pelo seu tempo, porque eu, de um modo geral, não decido o
uso que cada criança fará dele. Com duas exceções
significativas: a primeira é organizar, no final do dia, o material
que foi usado. É a única atividade que junto a eles chamo
de trabalho. A segunda é estar (mesmo que só escutando) na
única situação de grupo que eu dirijo - e que no momento uso
para uma história. A ideia que cultivo é a de não usar o dever
como terreno de confronto que tenho com a criançada. De
modo mais realista, a ideia é concentrar o dever-fazer-alguma-
coisa a uma parte limitada da jornada das crianças e da
relação delas comigo, o que é esperado também pelas menores.
Ao mesmo tempo, procuro minimizar os cuidados
com as necessidades fisiológicas. Continuarei, todos os dias, a
amarrar sapatos e a limpar nariz. Mas, já desde o primeiro dia,
não fico andando com a jarra de água na mão: quem tem sede
não precisa me pedir água, tem como pegá-la e eu lhe ensino
como. Não coloco a merenda como um ritual coletivo tendo eu
como celebrante, dando a permissão para começar a “fome”
nestas poucas horas, não além das 11 – e explico a elas o porquê
– as crianças escolhem se e quando saciá-la e junto com quem.
Ao banheiro não vão em horários fixos porque, para a maior
parte das coisas, é necessário somente saber o caminho e eu
somente preciso saber quando tenho de providenciar-lhes

59
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

ajuda.
Agindo assim acredito liberar não somente tempo.
Penso que pode haver um ganho de qualidade cada vez que
os meninos e as meninas experimentam, pela ausência de uma
atividade obrigatória indicada por mim, a escolha entre as
coisas possíveis de serem feitas. Penso que essa escolha (e
todas as outras que ela inclui), que todos os dias preenche 3
a 4 horas da vida escolar de cada uma das crianças é, a longo
prazo, “formativa” - especialmente no início, quando cada
interesse delas, cada “ação”, cada pausa dura pouco, ou
pouquíssimo. E, certamente, pode-se trabalhar (minha atitude
obviamente é trabalho) para torná-la como tal, dando-lhe limites,
mas, sem negar a sua essência, respeitando-a por tal.
Tenho dois problemas quando renuncio a definir
para muitos meninos novos e meninas novas como seu tempo
deve ser usado. Há um problema com quem, entre eles, acha
difícil escolher e hesita em fazê-lo porque preferiria uma ajuda
adulta, instruções precisas, uma ordem simples das coisas e
das relações; ou porque vê muitos e muitas concorrentes; ou
porque tem na relação com os adultos - no roubar-lhes a atenção,
no negociar com eles, às vezes na birra - os terrenos preferidos
de conduta social.
Há o problema oposto com aquele que não tem
nenhuma hesitação em utilizar a liberdade, o faz com prazer,
mas está longe de compreender como pode exercitá-la num
ambiente cheio de crianças da mesma idade, cheio de materiais
para os quais lhes proponho alguns modos de utilizá-los e
porque lhes proíbo outros.
Diante das crianças novas, simultaneamente, estão
- como modelo - os seus pares que já são de casa nessa turma,
estão familiarizados comigo, com as regras já conhecidas, com
as atividades habituais que eles já dominam. Aos veteranos,
como todo primogênito sabe, peço paciência infinita para com
os 14 novos irmãos e irmãs. Mas não atribuo a essas crianças
nenhum papel em relação às recém chegadas. Sei que, aos seus
olhos, elas têm esse papel e, também eu, lhes reconheço isso
tão logo percebo essa relação aos olhos das menores: porque
são – também estes – hábitos de nosso discurso.
Diante de todas, simultaneamente, tem este cara
que sou eu, que gostaria de empurrar quem é tímido e quem é

60
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

tímida ou quem está intimidado e intimidada, mas gostaria


também de segurar quem absolutamente não o é. E, na diferença
dos tons que eu tenho de utilizar com cada uma delas, devo
salvar uma coerência de mensagens e de regras, que deve
poder ser compreendida tanto por aquelas crianças como por
essas.
As mensagens e regras que coloco como prova de
coerência e compreensão são fundamentalmente:
z Que as coisas com que brincamos não pertencem a
ninguém, são “de quem as usa”: quem vai buscá-las ou
começa a usá-las, quando já estão circulando, decide se e
com quem dividi-las. Essa regra tem as suas vantagens:
reconhece a importância de uma escolha feita, “premia” –
num certo sentido – a iniciativa; não impõe os companheiros
e as companheiras da brincadeira (senão que brincadeira é?),
nem as amizades. Vejo o limite dessa regra quando ela se
presta a atitudes de exclusão (um pouco “individualistas”),
principalmente por parte de criança que têm necessidade de
“afirmar-se”. A regra é “visível”, isto é, podemos dizê-la
indicando as coisas. Ela pode ser auto-gerida, evitando que
eu tome decisões antipáticas. Ela é praticável e eu a mantenho
desde que consiga garantir no espaço da sala muitas
alternativas para quem chegou depois e foi excluído, naquele
momento, daquela situação.
z Que as coisas têm regras de uso. Digo quais são essas
regras e as explico. Querendo, pode-se fazer outras
coisas, caso contrário as regras devem ser respeitadas.
Novamente é uma regra concreta e é uma regra negativa do
tipo “tudo aquilo que não é proibido é permitido”. “Pegue e
leia quantos livros quiser - e quanto mais, melhor - mas se
você os pegar não os recorte, não os rasgue, não desenhe
neles. Se não quiser pegar os livros para ler você poderá
fazer alguma outra coisa”. Qualquer coisa desse tipo pode
ser dita para cada situação e pode ser explicado o porquê.
Digo aos meninos e às meninas que, se eles não querem se
envolver com as regras, então devem desistir da escolha e
do prazer de fazer aquela brincadeira. Isso é
condicionamento, não deixa de ser. Mas ao menos me privo
de impor brincadeira e regra juntas. Peço-lhes para escolher:
ou esta brincadeira com esta regra ou “uma outra coisa”.

61
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Essa regra funciona – tem um equilíbrio concreto de


funcionamento – no momento em que me mostra não estar
desencorajando as iniciativas, as escolhas: quando os
meninos e as meninas arriscam, usam com prazer as coisas
de cujas regras de uso eles não têm certeza.
z Que não há inimigos entre nós, nem mesmo no faz-de-
conta. Não imponho a amizade. Mas a não-inimizade sim.
Todos têm o direito de ignorar-se entre si, mas lhes peço
“nada de luta, armas, brincadeiras de guerra, demonstrações
de força”. De um lado, isso é uma opinião arbitrária e minha,
sobre o ridículo das ‘micagens’ e dos estereótipos que os
meninos e as meninas copiam quando “combatem” ou se
fazem de modelos da TV: que cultivem esse imaginário em
outro lugar, não serei eu a tirar-lhes da cabeça. Aqui lhes
peço para deixá-lo de lado e mesmo assim não lhes faltará o
que fazer. De outro lado, essa regra contém o máximo
possível de uma ética completa que se possa dar a eles.
Uma extensa “escola de vida” de três anos, onde grandes,
pequenos e pequenas fazem as suas escolhas - com todas
as diferenças do mundo, mas, com as mesmas regras e com
a proibição para os grandes de fazer valer a prepotência –,
nos dá todo tipo de deixa que se queira para poder se referir
– quando se fala disso - a como poderiam funcionar as coisas
dos grandes. E o fato, em geral, de as crianças se descobrirem
grandes no grupo, depois de um ano ou dois de terem sido
tuteladas por essa regra, é importante e de enorme proveito.
Dou as regras na primeira pessoa do singular porque
não me parece correto dizer “na escola da infância se faz (ou
não se faz)....assim e assim”. Sou eu quem pede; os motivos
pelos quais posso responder são meus: parece-me mais
verdadeiro na relação de educação. Por exemplo, não digo
que a farinha não se joga no chão; digo “não quero lhe dar a farinha
hoje” e o porquê (se isso aconteceu da última vez e, se você
que está me pedindo sabe disso muito bem). Essas regras
proíbem muitas coisas concretas, muitos comportamentos
possíveis. Porém permitem muitos outros.
Prescrevo pouquíssimas coisas às crianças. Sinto-
me já embaraçado quando convoco a criançada no fim do dia –
mesmo para não fazer nada, se assim quiserem – para que
escutem aquilo que eu quis que escutassem, porque essa é

62
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

uma imposição que não é palpável, cujos motivos estão somente


na minha cabeça de professor: posso dizer a eles, mas não lhes
posso demonstrar.
Essa é a razão pela qual, com o passar do tempo,
deixei de programar atividades para as crianças, de colocá-las
na minha agenda. Naturalmente não deixo de pensar nas
atividades para os meninos e as meninas. Tudo aquilo que há
na sala está lá porque eu escolhi, dentre aquilo que a escola da
infância nos oferece, com uma ideia de como podemos fazer
uso delas: eu estou aqui para ensinar alguma coisa e as crianças
para que a livre atividade lhes ensine alguma coisa.
É a razão pela qual não multiplico as oportunidades
nas quais apareço na frente deles como aquele que lhes manda
fazer as coisas, individualmente ou em grupo (procuro
justamente não criá-las), para obter daí elementos de avaliação
para si mesmo, para as próprias “programações”. Porque, para
cada uma das minhas posições, se produz uma deles: de quem
se dispõe a receber e executar instruções para ser julgado.
Antigamente eu dizia que isso “rebaixa” as crianças na sua
relação com o adulto que ensina: coloca um teto em cima da
cabeça delas. Podemos ser mais precisos e dizer que à medida
que se faz acontecer estas coisas, se ensina a elas uma posição
de objetiva passividade, de espera que o professor decida aquilo
para o qual chegou o momento de aprender. Desse modo vai-
se contra a autonomia, que às vezes afirmamos “ensinar”, como
se fosse um conteúdo entre os outros. Cada vez que se age
assim, sem ser necessário (ou quando não se pode confessar
a sua necessidade), se dá espaço a uma dignidade estranha,
em meninos e meninas, que se conformam em obedecer a
instruções, até mesmo íntimas (do tipo “me fala de você”), cuja
lógica eles e elas não têm que entender. Não posso falar de
outros níveis de ensino, não posso nem mesmo falar sobre
outras turmas. Sobre mim, posso dizer que - por exemplo - não
seria capaz de explicar a um menino e a uma menina por que,
se lhes conto uma história, além de chamá-los e chamá-las a
ouvir, quero também que me façam um desenho... Dar-me-ia
uma impressão de artificialidade o modo como lhes contei a
história, a tentativa de fazê-los enxergá-la, o prazer que procurei
provocar. Teria a impressão de trair quando colocam a mãozinha
na boca nos momentos cruciais da história, de trair as perguntas

63
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

que provoquei e que me fizeram. Posso me explicar com elas


sobre por que achei importante contar-lhes tal história. Não
saberia realmente como exemplificar se tivesse que lhes
manifestar a minha necessidade de uma perfomance delas.
Ou seja, que elas atuaram para que eu pudesse demonstrar
que contei uma história tão bem. Não “ensino” as histórias que
conto, mesmo se quando as conto tenho a intenção de falar
também ao intelecto e à razão de quem escuta. E sempre revelo
o fato de que tem alguém que inventou as histórias e o legal
não é acreditar que sejam verdadeiras, mas imaginar que
o sejam. Não ensino as histórias que conto como tais; ensino
através daquilo que digo durante a situação contar/escutar.
Sinceramente não desejo conseguir outra coisa senão que
escutem, que desejem outros momentos para escutar: livres,
porém, sem convocação. Conto para obter essas coisas, para
torná-las prováveis; se contasse uma história para obter um
desenho, deveria contar de outro modo. No primeiro caso, sou
um adulto que conta, se empenha e não pede nada. No outro,
eu me sentiria um adulto que cumpre uma obrigação para a
qual se programou e, no final, cobra por ter sido escutado: o
que é incompreensível e/ou feio.
Raciocino assim com tudo: assim como vale para as
histórias (que são palavras e voz e - quando há - imagens),
também vale para cada objeto que escolhi aqui na sala para que
os meninos e as meninas, mais cedo ou mais tarde, tenham à
disposição.
“Sei” que é tal e tanta a variedade de objetos,
concretos ou imateriais, com que as crianças aqui se deparam
em um ano ou três – simplesmente colocando-se pessoalmente
o problema do seu “o que fazer” – que não vejo necessidade
de eu definir o perfil concreto daquele “o que fazer”. Ponho-
lhes limites, mas me privo de determiná-lo.
Na prática, faço um dos três tipos de coisas.
Primeiro tipo. Procuro “tornar complexas” as
ações espontâneas que os meninos e as meninas realizam
com objetos materiais, com os materiais das brincadeiras.
Procuro introduzir alguma forma nova, ou uma dificuldade,
ou uma regra. Procuro colocá-los diante de um exemplo (eu,
que faço aquilo que eles fazem, mas do meu modo), ou de uma
ideia geradora (“experimenta fazer deste jeito”), ou de uma

64
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

regra (uma dificuldade): para deslocar para adiante seja o prazer


pela brincadeira que escolheram, seja o sua fruição pela mente.
As crianças grandes fazem o resto, simplesmente interpretando
a si próprias. Por exemplo, do uso banal de uma balança, em
que primeiramente elas batem, alternadamente, as cuias sobre
a mesa, somente para se divertirem com o barulho, até um
procedimento mais (ou até muito mais) refinado em que a balança
é usada para pesar a água, procurando mantê-la em equilíbrio:
não há, necessariamente um plano de ensino com etapas pré-
determinadas e esquemas incluídos para a sua confirmação.
Pode ser razoavelmente suficiente em três anos de tempo
escolar, a oferta, o exemplo, o exemplo dos pares:
logicamente ninguém ficará imune, ninguém vai querer ficar
imune. A minha função será integrar com palavras precisas –
visto que, com relação a uma balança, não se tem muito o que
dizer à fantasia... – aquilo que já fizeram/fizemos. Muito do
trabalho, realmente de ensino, que se deve fazer na Escola da
Infância está nesta prática de nominação contínua, daquilo que
já é evidente às mãos e aos olhos: não tem como explicar o
conceito de “mais” ou aquele de “liso” ou o que é falar “usando
o subjuntivo”, mas é possível procurar atividades tais que tornem,
depois de algum tempo, indispensáveis aquelas palavras.
Segundo tipo. Existem coisas com as quais não
podemos brincar, coisas com as quais não existe atividade
possível de “ser feita”, ou porque não as temos, ou porque não
são “coisas”, mas objetos abstratos ou vivos. Todavia, aparecem
como importantes tais como objetos do discurso entre um
adulto que ensina e as crianças pequenas. Os animais, por
exemplo. Ou – sei lá – “o passado”, a família, o nascimento ou,
por definição, todos os lugares imaginários, das “fábulas” ou
não. Como objetos do discurso, devem ser, de outra forma,
“convocados”. O que eu faço é fazer um acervo de imagens
(livros, revistas, principalmente, ou alguma coisa de mais
moderno); para que deem todo tipo de dica possível e para que
sejam a nossa pequena “enciclopédia”, à disposição de quem
não lê as palavras, para que se possa encontrar referência a
qualquer objeto de curiosidade que apareça. Além disso, não
deixo perder nenhuma ocasião, entre aquelas que meninos
e meninas nos dão, para alinhavar discursos entre eles: tenho
presente, me recordo sempre, que onde mora um menino, tem

65
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

um cavalo e ele comenta; que uma menina passeou num dirigível;


que uma outra tem mania por animais; que um deles tem
imaginação para o terror, sonha com isso até, sem inquietação
aparente; que um outro tem uma tia de pele escura; que um
outro tem ideia fixa com eletricidade...Oportunidades vindas
da experiência infantil vivida em outro lugar (mas falada aqui ao
menos uma vez), que me dizem acerca de uma pergunta do
discurso, acerca de um/a interlocutor/a privilegiado/a (e
certamente interessado/a), acerca da oportunidade ou não de
voltar a um assunto, a partir de alguma coisa que se disse ou
que se fez entre nós.
Depois disso, como falo em voz alta e, aquela criança
me responde em voz alta (todas aqui falamos um pouco em
voz alta...), talvez esse discurso ganhe alguém: o seu conteúdo
e a maneira de falá-lo, ou mostrar a sua imagem, se tornam
interessantes num círculo maior. Reivindico a casualidade desse
acontecimento, cada vez que ele ocorre. Deve ser casual para
não ser fingido. Deve ser casual e visto como casual, sem truques
e fundo falso, se quisermos que ele se torne a modalidade com
que os meninos e as meninas aprendem a discorrer sobre a
experiência com um adulto e com seus pares. Eu o desejo
fortemente porque, aqui também está um ganho de qualidade.
Por exemplo, ninguém se habitua a falar da sua família nas rodas
de conversa somente porque o professor decidiu que aquele
é o momento de obter o famoso desenho; habitua-se a falar
dela se e porque lhe sai da boca; e também se habitua a se
fazer compreender melhor, se e na medida em que o
interlocutor que escolheu (eu, ou um outro, uma outra) confessa
não o ter compreendido. A criança, neste momento (e, quem
sabe, em um outro momento, não), tem um motivo: assim,
naturalmente, como simples continuação daquilo que está
fazendo, lhe interessa ver um livro que até então não lhe havia
chamado a atenção e eu corro a buscá-lo; por isso me escuta
contar sobre quando eu era pequeno, o que eu fazia e que
mundo havia; por isso – enfim – compreende, “conecta” – melhor
do que teria feito se fosse sob comando – aquilo que lhe dizem,
lhe contam e lhe explicam. Procuro encontrar como
interlocutoras crianças espertas e curiosas pelas coisas e por
si próprios. Como o professor não escolhe os meninos e as
meninas a quem ensina e nem mesmo deve escolher entre elas,

66
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

procuro “dar corda” àquela parte de cada uma das crianças que
se demonstra curiosa e esperta. Procuro torná-la provável –
como eu gosto de dizer – em cada uma delas. As crianças devem
ver suas iniciativas encorajadas, utilizadas e valorizadas,
iniciativas essas que elas tomaram de modo autônomo, que
não foram requisitadas senão por motivos pessoais. Devem
poder enxergar não um pau pra toda obra neste fulano/
professor: que de um lado diz claramente que “está cheio”
quando alguém lhe faz pela enésima vez a mesma pergunta, e
de outro, porém, mostra lembrar-se daquela mínima coisa que
lhe foi contada, até mesmo no ano anterior, e que, quando pode,
encontra uma ligação de significado com as outras coisas, a
alinhava numa rede de conhecimento com as demais coisas e
mostra como se faz.
Terceiro tipo. Há, em uma relação de educação,
alguma coisa que diga respeito à educação como tal. Não
me refiro às atividades concretas com as quais se preenche o
tempo, nem aos discursos. O perfil que assume a relação entre
adultos e crianças é, pelo menos, tão importante quanto os
conteúdos concretos e não concretos. Na relação comigo, os
meninos e as meninas podem aprender a usar um dado material,
aprender o uso correto de certas palavras, a conectar
lembranças e a contá-las, a ter contato com os livros, etc. Mas
a relação que têm comigo – como elas a vêem – é, ela própria,
alguma coisa que eles aprendem: o conteúdo desta
aprendizagem particular é...uma forma (sobre isso vou
comentar mais adiante). Em outras palavras, eu digo: quando
um menino ou uma menina chega aqui, deve constatar de
imediato que algumas relações com os adultos conhecidos (em
família ou em outros lugares) não valem, porque eu não sou o
papai, e também, em nenhuma família existem 22 irmãos e irmãs.
Qualquer coisa que lhe ocorra fazer, ele deverá aprender um
outro modo para lidar comigo: agora somente na tentativa de
obter, de forma oportunista, aquilo que deseja e depois dentro
de um sistema de relações humanas, que faz com que os
pequenos e as pequenas não aprendam somente
comportamentos de um adulto/a, mas queiram ser como ele/
ela, isto é, queiram entender como funciona. Vi muitas vezes,
durante o meu trabalho, em crianças de quem eu era professor,
a imitação e a identificação – que são diferentes entre elas – e

67
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

que respeito: destino uma parte do meu trabalho para identificá-


las quando ocorrem, para ajudá-las.
Procuro ser transparente o máximo possível e não
agir segundo critérios incompreensíveis: é a questão da
coerência das mensagens e das regras a que me referi no início.
Mas quando as regras já foram bem compreendidas, quando os
deveres não são tantos e tais que ditam a forma da nossa
relação de cada dia, essa relação vai em frente, muda, tem crises
que são superadas, tem impulsos, desenha a própria forma.
Tudo isso pode ser dito, trocado reciprocamente, não somente
entre adultos/as em ocasiões como essa, mas com as próprias
crianças. Porque elas têm o direito de ver restituída a
vantagem de saber, de compreensão das coisas e delas
próprias, que eu continuo a acumular sobre elas à medida
que nos conhecemos. E porque esta devolução (de ver o adulto
que a faz, que fala pra elas sobre as próprias percepções que
acaba de ter sobre elas, de compreender as suas palavras ao
fazê-lo) modifica a forma da relação, modifica a expectativa
em meninos e meninas, mas também a experiência e a
compreensão da própria relação e do seu polo adulto. Eu não
emprego palavras demais – e como professor não posso me
permitir – para convencer cada menino e menina, a cada vez, de
fazer aquilo que deve. Se for um dever, é importante dizer-lhes
o porquê, de tal forma que eles possam entender. Totalmente
diferente é quando um menino que chora porque não quer ficar
na escola, deixa de fazê-lo; quando um outro que vomita como
forma de protesto em relação ao mundo, deixa de fazê-lo aqui;
quando uma menina que durante um mês não se dirige a você,
o faz pela primeira vez; quando você percebe, pela primeira
vez em um ano, não ser mais necessário correr para tapar
buracos nem consertar danos pela sala; quando, pela primeira
vez, o barulho que fazem é um sussurro; quando uma menina
que você nunca viu sorrir, o faz pela primeira vez; quando, depois
das férias, volta para a escola da infância um menino diferente
daquele que você tinha antes; quando lhe perguntam por que
você está bravo com o seu amiguinho; quando você errou em
resolver uma briga; quando um menino grande “adota” um
pequeno; quando um menino e uma menina se enamoram... Estes
são episódios, não importa se pequenos ou grandes, e como
episódios devem ser tratados. Em cada um destes casos e, em

68
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

muitos outros, não economizo palavras: penso em voz alta,


comento as novidades. Tenho a pretensão de assim estar
“ensinando” meninos e meninas a brincarem com um objeto
muito imaterial, a raciocinarem e a falarem sobre nada além do
que... a relação deles comigo. Digo desse modo, “brincar”, não
por retórica: em boa companhia, chamo brincadeira toda a
atividade que pode não ser feita e que pode ser interrompida,
que modifica as coisas e não resulta em um produto. Caso
contrário falo de trabalho, de um dever. E para mim é evidente
que só podem ser brincadeira, e não dever, as atividades
do discurso que se pede somente dando exemplo delas, em
relação à maneira como nos referimos eu, os meninos e as
meninas, e em relação às modificações que nós mesmos damos
a essa maneira. “Digo aquilo que vejo de você”, porque acho
que lhe possa ser útil, e para que você sinta, ao longo do
tempo, o que os meus olhos podem ver. Quando aquilo que
digo a eles, falando deles, não envolve regras, broncas, opinião
e julgamento, então isso deve assumir formas diferentes.
Em relação a regras, broncas, opiniões e julgamentos dos
adultos, as crianças não determinam grande coisa e o
compreendem logo. Em relação a se fazer uma piadinha, ao
uso da ironia, à lembrança de fatos, a contar fatos pessoais,
então o jogo da linguagem, da circulação do saber e da
própria relação da educação é mais aberto.
Este ano, como nos demais, os meninos e as
meninas permanecem na escola da infância por quase mil horas,
se não houver problemas de doenças e de horários de entrada-
saída. Um quarto desse tempo já se passou. Agora vou expor
como eu pensei a turma, os materiais, a sala, as atividades, eu
com esse todo de acordo com as considerações anteriores.
Como sempre, não pensei em dar um título (seja ele
“o outono” ou “a água” ou “a história” ou “a comida”) às minhas
atividades nem às deles, num dado período. O único título somos
nós. Pensei em relação aos materiais, aos objetos disponíveis,
em relação às mãos ou à palavra e em relação à mente. Procuro,
também neste ano, garantir que com objetos, imagens e
palavras, os meninos e as meninas tenham diante de si a
possibilidade de fazerem experiências com o fácil, o difícil e o
surpreendente.
Não mais acredito ser útil escrever sobre essa

69
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

subdivisão – de que eu gosto já há muito tempo – em termos


de separações claras entre “tipos” de objetos, imagens ou
linguagem. Percebo bem como muda no decorrer do ano (e
ainda mais nos três anos de história escolar “normal”) a relação
de cada menino e menina com os mesmos incentivos igualmente
presentes e igualmente disponíveis.
O que pretendo dizer é que escolhi e pretendo
cultivar o ambiente material da sala como um ambiente no qual
a cada dia e independentemente da idade e das propensões,
uma criança possa encontrar lugar e tempo:
- para descansar, fazendo ou vendo ou escutando, alguma
coisa que seja simplesmente agradável e que não apresente
problema de interpretação ou de capacidades aplicadas.
- para se empenhar, sozinha ou com outras, fazendo ou vendo
ou escutando, alguma coisa que seja agradável somente
quando se domina tal coisa.
- para se admirar, fazendo ou vendo ou escutando, alguma
coisa que seja agradável porque é estranha, fora dos
esquemas disponíveis a ela.
Assim temos (e os deixo visíveis) materiais que se
prestam a vários tipos de uso livre, dependendo se são
usados para:
- muitos usos “certinhos”
- um só uso “certinho”
- um ou mais usos especiais
Temos imagens correspondentes e eu alterno
linguagens correspondentes. Refiro-me, grosso modo, a
objetos e materiais “do primeiro tipo” como sendo farinha e
areia, botões, fitas, gesso, massa para modelar, muitas peças
para construções, uma barraca do tipo iglu, objetos (também
tecnológicos) que fazem barulho ou emitem som, objetos para
desenhar e apagar, objetos para colorir, bonecas e bonecos
de todo tipo, bolinhas, recipientes e objetos para serem cheios
e esvaziados, acessórios para se fantasiar, canudos, bastões,
etc. Grosso modo me refiro a objetos “do segundo tipo” como
sendo as cartas de jogo e os jogos com cartas (ou “cartelas”),
os tabuleiros de jogo, os quebra-cabeças, as tômbolas, o
dominó, o tangram, em geral qualquer material com peças de
formas claras, uma balança, um relógio, mesmo quebrado, dados,
todas as coisas que possam ser contadas ou colocadas em

70
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

alguma ordem ou divididas por grupos, computador - se o


tivéssemos. E me refiro, grosso modo, a objetos do “terceiro
tipo” como aqueles que emitem luz, aqueles que se movem,
ímãs, motores, objetos para se ver ou se escutar, um gravador,
um cadeado, um espelho ou, melhor ainda, mais de um,
acendedores, uma bateria, água, nós, etc. Digo “grosso modo”
porque deixei de considerar alguns como antecedentes
necessários a outros, deixei de acreditar que os meninos e as
meninas devam brincar com a farinha antes de conhecer o ímã:
usá-los juntos, de imediato, é mais divertido e interessante.
Além disso, as crianças não sabem como fazer funcionar um
gravador (e, de fato, anteciparam o fim do nosso que estava em
ruína...). A experiência importante não é conseguir apertar as
teclas e sim a primeira vez que eles “se escutam”. E será
explicado a todas elas daqui a muitos anos - talvez no ensino
médio (ou, seja lá como será chamado) - por que elas
conseguiram derreter um lápis de cera com uma lente de
aumento, por que um prego dança em suas mãos se sob elas
se tem um ímã, por que as ventosas se comportam como
ventosas, o que é a onda que elas fazem com uma corda ou
com um lençol. Enquanto isso, se lembrarão, talvez, de uma
explicação intuitiva minha e que certamente viram ou fizeram
acontecer muito cedo. Eu creio ainda me lembrar como nos
sentimos, no início, quando nos colocamos entre dois espelhos
e nos vemos multiplicados...
Principalmente entre os materiais do tipo fácil e do
tipo estranho (aqueles do primeiro e terceiro tipos, segundo a
divisão que propus), ocorrem pontos de encontro que são muito
interessantes: não é necessário muita coisa, basta um pouco
de invenção, ou a ruptura de uma ordem repetitiva ou de um
hábito. Com a tradicional farinha se faz uma experiência simples
de se traçar linhas através de um motorzinho movido
artesanalmente a bateria. Basta um buraco num recipiente com
areia para fazermos afundar (uh, a areia movediça!) aquele
boneco a quem damos o nome de um ou uma de nós. E pode-
se construir um carrossel, mecânico ou elétrico (com a bateria
de sempre), em que os bonecos são movidos por nós. E assim
por diante. Em relação a mim serve para afastar a chatice de
fazer por dezenas de anos as mesmas coisas e, em relação a
eles/as, talvez lhes transmita o prazer de dizer “tenho uma ideia”,

71
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

o prazer que encontram em não ficar se repetindo sempre.


Os objetos que, no jargão do professor, se chamam
“material estruturado”, servem menos para isso: um quebra
cabeças é um quebra cabeças e morre como tal. É difícil alterar
o seu uso. Porém eu refleti muito observando como as crianças
se comportam diante daqueles de muitas peças (quando já têm
prática) e que consideravam fora de seu alcance: não vejo mais
somente o desafio “cognitivo”. Parece-me que até mesmo ali,
no início, haja uma sensação, uma experiência. Também com
os dadinhos, quando elas brincam com destreza na única forma
que elas sugerem, pode-se muito bem acrescentar alguma
palavra para dar-lhes uma ideia precisa, muito concreta, do que
significa o acaso (“não saber aquilo que vai acontecer”).
Tudo isso é para reforçar o fato de que vejo as
atividades com os objetos como pretextos, como uma deixa
para alguma outra coisa e, de qualquer forma, como modo
de passar o tempo, o quotidiano. Exatamente por isso escolho
esses objetos com precisão contínua e a cada dia e, durante o
ano, procuro garantir um certo equilíbrio entre tipos diferentes
deles.
Faço dos objetos materiais para brincadeiras um
investimento “educativo-didático”, obviamente. Porém não
meço esse investimento em relação às etapas de progresso: para
mim, os objetos que recolho, as atividades que proponho não
são “ferramentas” para se obter a aprendizagem de
meninos e meninas. Isso vai ocorrer de qualquer forma, porque
as atividades que proponho para crianças escolherem não são
estúpidas.
Mais do que isso, me interessa que passe (que
crianças “aprendam”) outra coisa: uma ideia. Quero dizer que
toda criança adora brincar. A ideia que ela tem do jogo ou da
brincadeira depende do tipo de brincadeira que ela conhece e,
concretamente, do que ela brincou e brinca. A ideia que os
meninos e as meninas têm da brincadeira é também a ideia
que eles têm de si próprios, enquanto fazem livremente alguma
coisa. Gostaria de provocar neles uma ideia empírica, mas
ampla e complexa, de quantas coisas diferentes entre si
estão à disposição da atividade que a gente se propõe a
fazer. Inventar brincadeiras, transformar coisas em objetos de
atividade inteligente e livre, transformar a modalidade de uma

72
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

brincadeira, mudar ou colocar (ou retirar, porque não) regras


de uma brincadeira, são, para mim, exemplos importantes dessa
ideia. Ao menos quanto à “capacidade de concluir uma atividade”
ou à “capacidade de compreender regras simples”, ou à
“capacidade de seguir instruções”, ou coisas simples que listaria
aqui como objetivos verificáveis se este texto fosse um
planejamento ao pé da letra. Se isso é verdade, ou, na medida
em que é verdade, a aposta está no mostrar que insistir nas
transformações, nas transformações conscientes das coisas e
das próprias ações “ensina” mais do que insistir na sua
inalterabilidade. É mais provável que os meninos e as meninas
sintetizem o conceito de “vermelho” enquanto o transformam
no laranja, do que depois de dez exemplos de coisas
supostamente vermelhas. É mais provável que façam uma ideia
de ter uma certa tonalidade de voz se a registram e, depois a
escutam de forma lenta, ou se falam em um estetoscópio, ou
se eu lhes imito a voz, do que se eu lhes “corrigisse” essa
tonalidade. É mais provável que compreendam como somos
feitos, ou como é o nosso rosto enquanto se maquiam, ou se
veem num espelho curvo, ou “criticando” Picasso ou, colocando
os meus sapatos, do que em livrinhos, em esqueminhas, em
fichas didáticas super simplificadas, etc. Insisto nisso todos os
anos quando escrevo este texto. É até mesmo uma questão
“estética” qual ideia deixamos que meninos e meninas tenham
daquilo que é belo. Essa ideia de belo pode ser baseada naquilo
que é inalterável e simples e, portanto, naquilo que é
reconhecível, reproduzível, fácil de ser dado como uma prova
e, por isso mesmo, mais útil a quem quis mostrar as
aprendizagens que soube produzir em outras pessoas com o
seu trabalho de professor. Ou, ao contrário, pode ser uma ideia
mista, através da qual as crianças adquirem uma síntese daquilo
que é belo, que faz lembrar e manter juntas experiências
agradáveis, vividas diante daquilo que era fácil, difícil e
estranho. Também isso eu pretendia dizer quando falei sobre
considerar as atividades com objetos como pretextos, como
uma deixa para outra coisa. Ao nosso redor, enquanto fazemos
as coisas, temos, por exemplo, imagens: estão nas paredes e
nos livros. Na medida em que sou eu quem as escolhe, uso a
mesma tentativa de divisão. Existem imagens fáceis, difíceis e
estranhas. Talvez, principalmente, estas últimas. Coloco o

73
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

costumeiro “grosso modo”:


z Chamo imagens fáceis àquelas bem definidas, coloridíssimas,
que ilustram os livros de historia à moda antiga; aquelas das
cartelas didáticas; aquelas de muitos livros para meninos e
meninas da idade deles/as, instrutivas, classificatórias, sem
ambiguidade e sem ironia... Fáceis porque são aproveitáveis
sem nenhum esforço.
z Chamo imagens difíceis àquelas complexas ou somente
confusas, ou ricas de detalhes mesmo pequenos; aquelas
muito estruturadas como um mapa ou como a ilustração
anatômica ou de bandeiras dos dicionários ilustrados, tabelas
de sinais de trânsito; aquelas de que não se conhece o
objeto representado; muitas fotografias; as ilustrações do
jogo de labirinto; as ilustrações em branco e preto...Difíceis
porque primeiro se deve entender alguma coisa para achá-
las interessantes.
z Chamo imagens estranhas às fotomontagens, às vinhetas,
ao imaginário infantil do modo como vem sendo
representado por alguns autores, às imagens de arte, às
fotografias de animais estranhos, às imagens alteradas por
computador como em muitas propagandas...Estranhas
porque propõem um ponto de vista não usual.
Conheço o fascínio que as imagens têm para
quem tem poucos anos de recordação. Existe vasta literatura
– pedagógica e autobiográfica – a respeito. Eu também tenho a
minha recordação de infância ainda viva. E não deixo de registrar,
cada vez que conto alguma coisa, a tensão de meninos e
meninas em querer “ver” aquele único e mísero desenhinho
que talvez eu possa lhes mostrar para confirmar a fantasia que
estão tendo. É justamente em cima deste fascínio, levado para
o lado da confirmação do deja vu, que sobrevive uma indústria
cultural enorme e sincronizada, que produz grande quantidade
de filmes (desenhos animados, principalmente) e bugigangas
de todo o tipo. Que faz e preenche o imaginário de crianças
“globalizadas”, e que faz com que para meninos “da cidade”,
todo cavalo seja um Spirit, todo tigre seja um Shere Khan, e
assim por diante.
O acervo de imagens que elas podem produzir aqui
é, de um lado, pobrezinho em relação aos efeitos especiais da
Disney ou de uma play-station. Porém, de outro lado, em três

74
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

longos anos de vida escolar, o nosso pequeno capital de livros


(temos dezenas deles e nenhum banal), as revistas, as figuras
estranhas nas paredes, um álbum com centenas de vinhetas
recortadas, os atlas, os números da revista Airone, nossa
pequena coleção de arte, além de ser “enciclopédia” (como eu
dizia antes), talvez produza um prazer diverso: uma disposição
para a surpresa – diante das figuras – além do reconhecimento.
Uma síntese entre as duas propensões; entre a parte de si
que pede que as imagens sejam previsíveis como nos
fotogramas de um desenho animado e a parte de si que assume,
num dado momento, achar interessante Escher ou Magritte ou
olhar sem estranheza o primeiro plano de uma foto em que um
pelicano está comendo o seu irmãozinho pelicano, ou de tentar
entender as vinhetas sem frases das revistinhas de palavras
cruzadas que Giovanni – o porteiro da escola – nos dá enquanto
não se aposenta.
Procuro alguma coisa similar com relação àquele
estranho objeto que é a palavra. Já falei sobre isso superficialmente
mais acima, a propósito de dar forma à relação da educação.
Agora volto ao tema mais especificamente.
Quem leu até aqui, intuiu por conta própria o quanto
levo em consideração a palavra. Acredito não roubar nada e
não distorcer nada se “aplico” modos e gostos meus para as
palavras neste estágio característico do ensinar/aprender, com
o qual ganho a vida. Porque é difícil superestimar linguisticamente
esta longa experiência de palavra-falada entre 20 pares e
diferentes professores/as que formam a Escola da Infância. Existe
um debate (de filósofos, psicólogos e outros) sobre os favores
que a linguagem e o pensamento prestam entre si e qual dos
dois fica devendo ao outro. O século passado não foi suficiente
para esclarecê-lo. Como pessoa que ensina e tem como
problema o de escolher instantaneamente, cada vez que fala, as
palavras a serem usadas, o tom de voz para pronunciá-las, a
língua (algumas vezes) na qual pronunciá-las e a forma do
discurso, eu não sei quem nasceu primeiro: se o ovo das
palavras ou a galinha dos pensamentos. Porém – se escuto a
turma do ponto de vista das palavras – não posso senão notar
quantas coisas evidentes elas fazem acontecer, em quem as
fala e em quem as escuta e não posso senão imaginar (ou
lembrar, porque todos já fomos crianças) quantas coisas não

75
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

evidentes elas também fazem acontecer.


Do mesmo modo que com os objetos ou as
imagens, também com as palavras podemos trabalhar ou
brincar; usá-las como língua de um dever ou de um momento
de liberdade. Existem palavras mais adequadas a cada um desses
usos. E, assim também, para o tom e para a forma do discurso.
Entre nós, adultos, as palavras técnicas (da ciência e do direito)
devem ser precisas, devem querer dizer uma coisa só, não
podem deixar dúvidas, todas as pessoas devem compreendê-
las do mesmo modo. Se não têm um tom, melhor. Se são
escritas (sem corpos nem vozes), são perfeitas.
Entre nós, adultos, as palavras que são ditas entre
amigos, ou as palavras da poesia e do teatro não devem
obedecer à precisão: elas dizem, significam, sempre muito
pouco, ou significam muito com relação ao correto. Resta-nos
sempre interpretá-las. Elas nos fazem associar ideias, têm
sempre um tom e uma cor próprios. Dizem menos, mas também
mais, do que aquelas palavras precisas. Ocorre sempre, na Escola
da Infância, que as crianças falem principalmente palavras
imprecisas e não relacionadas à atividade. Em cada caso, a nós
resta levá-las ao ponto em que estejam habituadas às palavras
precisas com as quais lhes ensinamos a ler, a escrever e a fazer
contas. Na Escola da Infância, quem ensina faz muito uso de
palavras precisas. Eu também. Não há critério mais útil para se
dar uma explicação, uma regra e, também, para se dar uma
bronca, que aquele de sermos precisos. Porém, não é sempre
que estou a fim disso: não quero, com o passar dos anos,
adquirir aquela linguagem e aquele estilo típicos de nós que
ensinamos, e que nos fazem reconhecíveis mesmo quando
estamos à paisana. Nem mesmo acho que ela seja sempre útil
porque, para se falar daquilo que não existe, ou que existiu
uma vez, ou que poderia ser de outra forma, as palavras que
queremos inteligentes devem incitar toda imaginação disponível,
sem determiná-la.
As crianças estão notoriamente em vantagem com
relação a nós adultos neste ponto. Exatamente porque
conhecem poucas palavras, descobrem muitas desconhecidas,
o som de muitas delas lhes chega antes do significado, não
leem e não escrevem. Aquilo que é falta – e o é – tem, porém,
um prêmio: elas não estão acostumadas com as palavras como

76
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

nós estamos. Elas lhes chegam mais forte do que para nós,
mais profundamente. Se conto alguma coisa e não possuo
imagem para mostrar, tenho certeza, da mesma forma, que eles
estão imaginando. O que, exatamente, não sei. Mas sei que a
imaginação é sensível às mudanças da minha voz, ao suspense,
à piada que minimiza o caráter dramático, a uma atmosfera ou
um personagem bem “evocado”. Se um menino tem medo de
máscaras e eu quero fazer com que ele reflita sobre o seu medo,
devo pensar como ele para lhe dizer o que – na minha opinião
– ele está imaginando e como pode procurar um outro modo
de expressá-lo. Quando dois deles dizem entre si – como
milhões deles – “vamos fazer de conta que você é....e eu
sou....4”, não é somente em nome de um princípio organizativo
aprendido. Eles realmente se transformam naquilo que dizem.
Por isso as meninas tendem a não ver a ironia, a ficção, se as
chamamos de “bruxa”. Por isso as chamo assim e lhes digo o
porquê. Ou faço um elogio ao contrário (“muuito bem!!”, quando
deveria dizer o oposto), ou volto com uma piadinha sobre um
ponto em que antes fui um pouco seco, ou a uma pergunta
respondo cantando, ou como respondeu Pinóquio certa vez...
Sei, nesses casos, que estou sendo imprevisível, que lhes coloco
dificuldades, que as coloco em alerta. Percebo isso nas suas
reações. Mas sei, também, que é provável que eu tenha sugerido
alguma associação não lógica (que não converge para um
ponto previsível), mas que é do mesmo modo adequada à
comunicação inteligente entre as pessoas.
Não escrevo essas coisas como sendo um
“objetivo”, mas com as crianças que eu já tinha e, agora, diante
daqueles que estão conosco há pouco tempo, a brincadeira
no falar, o uso da ironia, a citação sagaz, os jogos de palavras,
são todas maneiras habituais de se comunicar, de modo igual
às explicações exatas. Não escrevo isso como um objetivo,
mas se no final, ou mesmo antes, todos/as nesta turma nos
falarmos de modo astuto, formos rápidos/as, sem ranços,
mudando comportamento e rindo disso, seria suficiente para
eu dizer que este ano (também) não passou em vão.
Com relação à música, sobre aquilo que se pode
chamar de música na Escola da Infância, procuro atuar do mesmo
modo. É claro que, se para mim que ensino o problema fosse
que as crianças cantassem, o nível delas seria aquele das

77
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

musiquinhas. E basta. Este tipo de música elas certamente


compreendem, delas têm um gosto já definido. Pode-se fazê-
las cantar numa festa ou em algum evento. Eu não penso assim.
Não me interessa, absolutamente, prepará-las para um
repertório, com textos banais e música do mesmo nível. Canções
e músicas para meninos e meninas têm trânsito livre em sala.
Quem quiser pode trazê-las, escutá-las e cantá-las. Mas não
contêm, como sempre, nada que eu reconheça como “didático”
ou “educativo”, no qual valha a pena que eu invista. Da música
eu proponho a escuta e, neste caso, se trata de música adulta,
até mesmo refinada, clássica. Eu gosto que haja música de
fundo para sugerir ritmo àquilo que fazemos. Escolho músicas
normalmente sem letras, em geral com muito movimento ou
solos de instrumentos que sejam reconhecíveis. Pode acontecer
de eu comentá-la em voz alta ou que alguém deles/as o faça.
Dificilmente alongamos estes comentários, mas, facilmente, eles
acabam ligados aos anteriores. Como em outros campos,
constrói-se – tendo como objeto uma música decente – uma
conversa longa, que aprende a lembrar de si própria, e a “citar-
se”. Para “fazer” música, os meninos e as meninas encontram
aqui um teclado, e diferentes tambores. Se lhes interessa,
mostro como escrevê-las, em cores. Também se lhes interessa,
tentaremos, mais cedo ou mais tarde, tocar ou ritmar juntos
uma mesma coisa. No mais são algumas ideias que procuro
passar a eles/as: a dança, o corpo que se move no ritmo da música;
a tristeza, a alegria, a força de uma música. Vejo a música como
uma coisa com a qual se convive, que não se ensina. Será ensinada
se e quando um/a deles/as quiser estudar uma técnica. Outros
campos são o desenho, a pintura e similares. Novamente
começo com alguns “não”. Considero o desenho e a pintura
um dos modos através do qual as crianças “se expressam”. Não
é, a meu ver, o mais importante, não necessariamente, não para
cada uma delas, na medida em que não vejo no desenho e na
pintura o lugar adequado (uma espécie de “caderno”) para
documentar aprendizagens. Além disso, conservo o escrúpulo
de sempre: não exijo que ninguém “se expresse”, se isso me
deve servir para avaliá-las. Não trato desenhos e pinturas como
produtos, se é isto que deve modificar o modo como são feitos.
Os meninos e as meninas sabem que se desenham, pintam,
deixam marcas, aquilo que resulta dessas atividades eles/as

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TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

podem jogar fora, levar para casa ou deixar na escola. Daquilo


que fica na escola em uma caixa onde eu também coloco as
minhas coisas, eu proponho, de tempos em tempos, que se
atribua a cada um/a aquilo que se reconhece como seu. A
“discussão” sobre o reconhecimento ou não de muitos
desenhos em sequência, por parte do autor, da autora ou por
parte de qualquer um/a que tenha entendido o estilo dos
desenhos, já contém tudo aquilo que se tem para ensinar. Contém
opiniões, comparações, lembranças...o gosto de nos chamarmos
pelo sobrenome como se fôssemos artistas de verdade.
Contém o reconhecimento de formas, mas também o
reconhecimento da forma dos seus desenhos e dos
desenhos de outros. Não é pouca coisa. E, principalmente, tem-
se uma forma de discussão e não de avaliação, a qual tem
muitas opiniões, muitos critérios e pode ser evitada, deixada
de lado.
Não pergunto às crianças o que desenharam ou o
que estão desenhando ao meu lado. Digo a elas o que me parece
o desenho ou que não o entendo. O que eu desenho está à
disposição para o mesmo jogo. “Me parece”, torna-se
rapidamente – este ano já é assim – a língua de qualquer
observação que se faça sobre um desenho ou uma pintura.
Não é a mesma coisa dizer “me parece” e dizer “é”, para qualquer
um/a que o diga e para qualquer um/a que o escute. E não é a
mesma coisa ensinar através de muitos “me parece” e ensinar
com base naquilo que um desenho “é”. Meninos e meninas a
quem se fale em termos de “me parece”, não ficam órfãos de
uma opinião, pois posso muito bem dizer em que limites me é
difícil reconhecer alguma coisa no desenho. Mas, dizendo “me
parece”, a própria opinião está dividida em duas. A outra metade
seria “mas que diabo que não consegui/conseguiu ver isso!”. E
quem vem me pedir uma opinião, vem para fazer esse jogo
com esta, e não outra, regra. Depois de muito tempo se
aprende, talvez, a conceber desenhos e pinturas menos como
produto do que como linguagem (que, literalmente, coloca
o problema do que parece a outros olhos). De qualquer
forma, desenhos e pinturas amadurecem e, se faço notar a um
menino que o homenzinho que ele acabou de desenhar me
parece que tem braços saindo das orelhas e lhe dou alguns
conselhos precisos e fáceis de serem seguidos, terei grande

79
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

probabilidade de vê-los colocados em prática, depois de algumas


folhas.
O que me interessa é a variação. A partir do
momento em que crianças definem as formas, elas tendem a
desenhar aquilo que já sabem, ou seja, desenham aquilo em
que o seu desenho-linguagem é comprovadamente eficaz e o
produto comprovadamente apreciado por adultos/as. Por isso
tendem a ser repetitivas. Eu posso:

- fazer-lhes notar a sua repetição: “estamos na


época dos castelos, heim?”. (“eu desenho igrejas” me
deu de presente um menino, dois anos atrás).
- ampliar-lhes o horizonte. Indicar-lhes truques para
reproduzir casas, homens, animais, com poucos e
simples traços, de modo que possam escolher entre
mais coisas o que desenhar. Mais para frente, e de
modo mais sutil, indicar-lhes os truques para dar a
impressão, a quem observa, de que um determinado
objeto está longe ou atrás de um outro desenhado,
a ideia de fundo, do fato que os olhos não veem
nunca o vazio atrás dos objetos reais.
- dar-lhes exemplo de que não há modelos rígidos.
Fazer com que vejam que há dez maneiras de se
“fazer parecer” uma casa e todas fáceis. Fazer-lhes
desenhar na lousa de modo que possam apagar e
ver como muda um rosto à medida que mudamos
os seus traços. Fazer-lhes ver os homens de Keith
Haring, os rostos de Picasso, o violinista de Chagall:
não para que os reproduzam, mas para que não se
intimidem se amanhã me mostrarem um rosto com
três olhos e eu fizer uma brincadeira. Porque três
olhos não são inaceitáveis: são melhores que dois se
quem desenhou três está disposto/a a reafirmá-lo.

Faço todas as três operações, não nesta ordem e


não dando a eles o espaço que usei para dizê-las. Quase sempre
– dependendo da quantidade de atividades embaralhadas5 – tem
material de pintura para quem quiser. Não coloco questões
formais: os guaches são cores para cheirar, esmagar, misturar,
misturar com cola, sabão, para pingar, colar, esborrifar, etc. E
chega. Também me interessa, mais cedo ou mais tarde, ao

80
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

menos uma vez, propor-lhes desenhar com a mão que eles


gostam menos, ou com as duas juntas, ou com os dedos
grudados ou sem levantar a ponta do dedo da folha de papel,
ou com um giz preso a uma das extremidades de um barbante.
Ou sem olhar, ou olhando somente no espelho essa mão
estranha que não vai para onde nós a mandamos, ou olhando-
a na TV, em circuito fechado, que vai também por conta própria.
A propósito de TV, um carrinho bobo que perdeu
uma das rodas nos impede de levá-la em sala para assistirmos a
filmes. Se o problema for resolvido, farei às crianças um certo
número de propostas escolhendo até mesmo entre filmes que
não têm a pretensão de manter a atenção de todas, caso
contrário, irei mais para o lado da certeza e do “fácil”. Assistir a
filmes em sala significa justamente isso: quem quer, vê; quem
não quer, tem outra coisa para fazer. Deste modo é possível
oferecer filmes em branco e preto ou longas metragens que
não sejam desenhos animados ou documentários. Se não fosse
esta opção pelas crianças, esses tipos de projeção seriam
impossíveis. Uma colega pode obter para nós “A árvore da vida”,
que é um incrível desenho “didático” em capítulos em que uma
avó explica aos netos como nascem os meninos e as meninas.
Algum problema?
Quando chegar a primavera, será colocada a questão
de sair, de ir a algum lugar. Costumo fazê-lo em transporte
público (e com a ajuda de alguém). Vou verificar a biblioteca
para crianças que é atrás da rua Arenula, o museu do brinquedo
no bairro de Pigneto, o MACRO (Museu de Arte Contemporânea
na rua R. Emilia (onde têm ateliês para crianças, porém, maiores)
ou os esquilos da Villa Ada. Nos restará escolher em alguma
assembleia da turma.
“Me parece” que devo terminar. Resta-me dizer
poucas coisas breves.
Prolonguei-me, este ano, mais do que o normal.
Pode ocorrer, quando se fala a muitas pessoas ao mesmo tempo,
que algumas tenham que aguentar partes do discurso que foram
pensadas para outras pessoas. Este texto foi fundamentalmente
escrito para as pessoas que me trazem filhos e filhas. Mas
deve ser compatível com a entrega aos Autos e, além disso,
saber falar àqueles com quem aqui divido o trabalho. Pode
ocorrer que eu tenha até que defender a escolha de usar o

81
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

toca discos tido como “estridente” e fora de moda. Nestes casos


contorno o discurso. Peço desculpas a quem não tem nada a
ver com isso. Uma desculpa em especial vai pelo uso da dupla
terminação (meninos/as etc.) que – segundo me dizem –
complica a leitura. A escrita, também, nesse caso. É que, uma
vez adquirido este correto hábito linguístico, é necessário um
motivo para abandoná-lo. E o desconforto não é motivo
suficiente para mim. No Ministério, nos textos que nos enviam,
o problema é resolvido usando a dupla terminação uma única
vez na primeira página (como se faz com as siglas...),
esclarecendo em nota que dali em diante será usada somente a
forma masculina. Na mesma nota, está escrito que nós que
ensinamos, devemos ter, ao invés, a “devida atenção” e a tal
coerência me adapto com prazer.
Tenho por hábito concluir este texto convidando
os pais e mães das crianças a virem até a sala quando puderem
e quiserem, para ver aquilo que fazemos, passar o tempo
conosco, sem se colocar apenas o problema de ter aqui um/a
filho/a para acudir. É um convite que em geral cai no vazio, mas
que acho importante me colocar na condição de fazê-lo – do
meu ponto de vista. O que ocorre é que, até bem pouco tempo
atrás, era suficiente que eu estivesse de acordo com as visitas.
Agora, porém, elas são vistas sob a ótica dos motivos justificados.
O que posso dizer aos pais é que, neste caso, procuraremos
entender juntos quais são os motivos considerados como tais
e a quem devemos submetê-los. Com esta ressalva, de minha
parte o convite é sempre válido.

Notas

1
A escola da infância, chamada até recentemente de escola
materna, equivale à pré-escola brasileira (N.T.). Texto traduzido
do italiano por Maria de Lourdes T. Menon com revisão
técnica de Ana Lúcia Goulart de Faria e Danilo Russo.

2
Em muitas escolas da infância italianas, as turmas são mistas de
idade e, a cada ano, o professor ou a professora perde as crianças
de 5 anos que vão fazer ¨6 anos já no início da 1ª série e recebe
novas crianças de 3 anos e também crianças de 4 ou 5 anos,

82
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

iniciantes, ou que se matricularam por conta de mudança ou


transferência. No caso específico em discussão, o autor perdeu
crianças que começaram aquele ano com 5 anos e o terminaram
com mais ou menos 6 anos. No ano a que se refere o relato -
(2003/04) -, as proporções da turma do ano anterior não se
mantiveram: poucas crianças ficaram e muitas entraram.

3
O ano letivo na Itália tem início em setembro. Na Escola da Infância
as crianças que cumprirem 3 anos em janeiro podem iniciar em
janeiro (N.T.).

4
“Agora eu era o herói e o meu cavalo só falava inglês...” como
diria Chico Buarque (N.T.).

5
O autor usa aqui a palavra incasinate, uma gíria italiana que teria
o sentido de “bagunçadas”. Na continuidade do texto fica claro
o sentido do termo referindo-se a atividades em que há uma
forma única de uso dos objetos e materiais.

83
PRECONCEITOS A
SEREM DEMOLIDOS
SUPERANDO A
PATOLOGIZAÇÃO DAS
DIFERENÇAS: OS
COMPROMETIMENTOS
FISIOLÓGICOS IMPEDEM
A PRODUÇÃO DAS
CULTURAS INFANTIS?
Beatriz Angélica Alcântara Cardoso
Eliana Briense Jorge Cunha

Este texto trata de uma questão tão presente


atualmente nos discursos pedagógicos: a inclusão. Embora a
Educação Especial, como modalidade de ensino, seja o pano
de fundo de nossa argumentação, o foco não é ela. Não vamos
citar leis, decretos, normatizações. Vamos tratar das diferenças,
mas não de síndromes, de diagnósticos, de prognósticos.
Queremos falar de crianças. Crianças que se encontram com
outras crianças e com outros adultos todos os dias em nossas

85
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

instituições de Educação Infantil, em uma presença que não é


retórica, basta vermos como as estatísticas de atendimento da
Educação Especial vêm aumentando e como as falas dos
professores em diversas ocasiões giram em torno de suas
crianças tão diferentes, ora dizendo das dificuldades para
trabalhar com elas, ora contando sobre as agradáveis surpresas
que têm ao serem surpreendidos por essas crianças.
Mas nosso olhar e nossa reflexão têm que estar
para além das estatísticas, para além dos enunciados que
reduzem as crianças a “alunado da educação especial”,
“deficiente”, “paralítico cerebral”, “síndrome de down”.
Ao longo de nossa experiência como professoras
na rede de Campinas e como professoras de professoras no
curso do Proesf (curso de Pedagogia que a Faculdade de
Educação da UNICAMP oferece em parceria com as prefeituras
da região metropolitana de Campinas), vimos pensando sobre
essa questão, colecionando falas, ouvindo o que as professoras
e professores, monitores e monitoras, gestores e gestoras e
pessoal de apoio das creches e pré-escolas têm a dizer acerca
dessas crianças. E, principalmente, temos olhado para as
crianças. O que aprendemos com tudo isso?
O fato é que alguns bons quinze anos já se
passaram, desde as primeiras campanhas para a integração e
depois inclusão dos deficientes no ensino regular, e as questões
dos professores e das famílias continuam muito parecidas: a
quem cabe dizer se a criança é deficiente? A quem se destinam
os serviços de apoio especializado (sala de recursos,
professores itinerantes e outros)? O que eu faço com ele, se
ele não fala, não ouve, não aprende? Ter uma criança tão
diferente das outras, com tantas dificuldades, não vai atrapalhar
as outras crianças? Quem vai trocar, quando ela fizer cocô na
calça?
Os discursos dos profissionais ainda apontam para
as dificuldades em se ter essas crianças matriculadas em suas
turmas. A legislação fala em deficientes, em necessidades
especiais, em diferente. E a questão principal se coloca:
Mas, afinal, diferença ou deficiência? Diferença e
deficiência? A resposta faz mesmo “diferença”?
Diferente ou deficiente, é sempre a criança que está
em foco, marcada por características que chamam a atenção,

86
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

principalmente no ambiente coletivo.


Essas características são concebidas, histórica e
socialmente, como “não universais”. Esta concepção categoriza
as condições de vida das pessoas deficientes como um “estado
anormal” e, na nossa tradição, o paradigma da doença é
comumente utilizado para explicar esse “estado patológico”.
Essas pessoas são vistas como um problema social que
necessita de uma solução, ou seja, de uma cura terapêutica.
O modelo médico ou biológico deixou marcas
profundas no contexto educativo. Podemos perceber isso na
força que tem o diagnóstico médico nas categorizações da
criança deficiente (como é, o que faz, seus limites, suas
características físicas, etc).
Esse modelo é facilmente identificado. Existe uma
cultura do diagnóstico: só podemos considerar alunado da
educação especial e, portanto, garantir apoio, àqueles realmente
diagnosticados. Os discursos e ações se organizam, cuidados
são tomados ao se considerar uma criança deficiente, pois “não
podemos discriminar”; as crianças são encaminhadas a
especialistas, que tratam de diagnosticar, por escrito
(“precisamos fazer constar do prontuário de cada criança”); os
professores se encarregam de fazer longas entrevistas com
os pais (chamadas de anamnese), para obter várias informações:
peso da criança ao nascer, idade com que andou, falou, nota
que recebeu ao nascer. De algumas crianças, não temos dúvidas:
falta-lhe uma perna, é cega, paralisada, tem a síndrome estampada
no rosto. Os termos médicos se tornam a referência nesses
momentos, onde se buscam as respostas.
A relação do professor com a criança deficiente se
torna distinta da relação com as outras crianças, pois permanece
a ideia de que é preciso se especializar para dar conta do
trabalho com o deficiente, além de se instrumentalizar para
compreender todo o arsenal de termos médicos trazidos pelos
serviços especializados aos quais o deficiente é encaminhado
ou dos quais veio encaminhado para o ensino regular.
É próprio de nosso tempo patologizar a vida, esse
não é um fenômeno que tem sua origem e está restrito à
educação. Comportamentos antes explicados por questões da
personalidade e “jeito de ser”, se tornaram doenças ou
disfunções a serem tratadas. E, se tudo virou doença, para tudo

87
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

se tem remédio. Não se trata de negar as diferenças fisiológicas,


psicológicas e emocionais de cada um de nós, mas de nos
perguntarmos quais as consequências que o modo de se
entender as deficiências/diferenças tem para o nosso trabalho
em primeiro plano, e para o mundo em que vivemos, como
perspectiva de futuro.
Segundo Padilha (2001) as categorizações,
conceituações e caracterizações das deficiências, bem como
as recomendações médicas, não garantem o acesso dos
deficientes à educação e a seus direitos enquanto cidadãos.
Afinal, a vida da pessoa deficiente “é mais do que a deficiência”.
Propomos, então, que façamos a discussão sobre
as crianças deficientes que estão matriculadas na Educação
Infantil a partir de dois grandes aspectos, dando enfoque ao
segundo: o papel da Educação Infantil e a produção das culturas
infantis.
A Educação Infantil é fruto de ideias postas em
prática por atores diversos: políticos, gestores, educadores,
movimentos sociais, pais, professores. É um campo de conflito,
contradições, lutas, resistências e conquistas, onde a criança,
nossa protagonista, está sempre “em relação a”. E que tipo de
relações a educação infantil está propondo a todas as crianças?
Estar na Educação Infantil faz diferença na vida de cada uma
delas? Como nós, professores, “lemos” a inclusão?
A educação fala “no diferente”. Os projetos
pedagógicos e os planos de trabalho dos professores trazem
escrito: cada criança é única, tem seu próprio ritmo de
desenvolvimento e este deve ser respeitado. A inclusão está
presente nos discursos, mas parece que não se deixa ver nas
ações.
As possibilidades de produção de cultura entre as
crianças ficam restritas à medida que o trabalho pedagógico se
organiza em espaços e tempos segregadores, tempos do
mundo adulto, capitalista. Crianças produzem cultura a partir
desse mundo. Se este é segregador, discriminatório e
preconceituoso, o que podemos esperar? É preciso ir além da
busca pelos culpados – quase sempre o professor – ou das
vítimas – também os professores e as crianças - tão a gosto
desses tempos neoliberais. A explicitação das contradições,
da complexidade desse cotidiano é que nos dará pistas para a

88
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

construção de um trabalho inclusivo.


Daí a importância da experiência. Experiência do
convívio nosso, de adultos, com essas crianças. Experiência de
observar e participar do convívio entre as crianças deficientes
e não deficientes na sua construção cotidiana de cultura, ao
produzirem, inclusive, diferenças, vivendo outras relações com
o diferente.

A PPrrod ução da “Deficiência” do pont


“Deficiência” pontoo ddee vist
vistaa da
dass criança
criançass
Historicamente, tanto a criança como o deficiente,
são cidadãos excluídos em nossa sociedade e, quando a criança
deficiente está em foco, temos a dupla exclusão. Como adultos
pouco sabemos sobre a produção de cultura entre as crianças,
em suas brincadeiras, em suas transgressões e desde a nossa
infância, em nossos grupos de convivência pública, nos foi
negado o direito de conviver com os deficientes, o que nos
causa estranheza ao lidar com as diferenças.
Não é possível falarmos de crianças e de deficiência
no contexto educativo sem falarmos dos atores que o
compõem - pais, professores e crianças. Analisaremos algumas
possibilidades da produção da “Deficiência e da Não-deficiência”,
do ponto de vista das crianças no contexto da instituição de
educação infantil, onde há um encontro entre elas e a
intencionalidade educativa dos adultos; onde o tempo e o
espaço são considerados categorias pedagógicas.
Através da escuta dos professores para o que as
crianças produzem quando estão juntas nos espaços da
educação infantil – produção da cultura infantil – acenamos para
a possibilidade de outras linguagens de que as crianças lançam
mão ao conviverem com outras crianças que trazem
características muito diferentes da maioria das pessoas. Como
adultas, vimos descobrindo estas linguagens que na infância
nos foram roubadas. Frente a essa escuta, nos perguntamos:
como tais linguagens constituem os movimentos de inclusão e
exclusão?
A professora Luciane Martins Salado1 tem o hábito
de usar a fotografia como ferramenta de observação da turma
de crianças de quatro a seis anos, com as quais trabalha. As
fotos produzidas pela professora compõem a documentação

89
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

que nos ajuda nas reflexões e descobertas que fazemos com


as crianças, na tentativa de entendermos o exercício de leitura
das crianças entre si - as diferenças, as transgressões, as
diferentes linguagens, os instrumentos usados - e como essa
leitura, esses novos significados, esses novos sentidos, passam
a constituir essas crianças e aparecem nas expressões
(representações) muitas vezes de forma transgressora.
O conceito de produção da cultura infantil e o
conceito da produção da deficiência ajudarão a pensar a
documentação produzida.
A deficiência e a não-deficiência, para Omote (1994,
p. 69), são construídas no âmbito social - “uma teoria da
deficiência não deve apenas explicar como as deficiências
operam e como as pessoas deficientes funcionam, mas, ao
mesmo tempo, deve ser capaz de explicar como tais pessoas
lidam com as diferenças, principalmente aquelas às quais o grupo
social atribui algum significado de desvantagem e descrédito
social”.
Desse modo, no convívio entre elas, as crianças dão
a ver como a deficiência e a não-deficiência são produzidas e
estas fazem parte de um mesmo quadro, isto é, são construídas
nas relações a partir do olhar, da reação do outro no grupo
social.
É bem interessante observarmos como as crianças
constroem o conceito de normalidade quando convivem com
a possibilidade de produzir o que, para nós adultos, seria
diferente ou deficiente.

90
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

A imagem dessa boneca, por exemplo, choca o


nosso olhar, pois esperamos que os brinquedos que
oferecemos às crianças sejam representações do que
consideramos “não-deficiente”, ou seja, o estereótipo da
normalidade (bonecas com dois olhos – de preferência azuis,
nariz, boca, orelhas, com dois braços, duas pernas, como se
configuram as pessoas “normais”). Transgredindo essa prática,
uma criança, cuja mãe é cega, trouxe para a brincadeira essa
boneca “cega”. Para quê? Nos perguntamos. Para brincar com a
não-deficiência ou com a deficiência? Como as crianças
representam, em suas brincadeiras, as deficiências? Qual a
importância de brincar com outras crianças trazendo a
deficiência através do brinquedo? Trazer para a brincadeira uma
boneca cega significa criar estratégias para brincar com essa
boneca, falar sobre a cegueira e suas especificidades com as
outras crianças.
Nas brincadeiras as crianças transgridem, inventam,
criam através das múltiplas linguagens, como nos diz Prado
(2002, p. 101). É na produção de cultura infantil que as crianças
se manifestam através da expressão

[...] por pensamento e sentimento que chega até nós,


não só pelo verbalmente, mas por meio de imagens
e impressões que emergem do conjunto da dinâmica
social, reconhecida nos espaços das brincadeiras e
permeada pela cultura do adulto, não se constitui
somente em obras materiais, mas na capacidade das
crianças de transformar a natureza e, no interior das
relações sociais, de estabelecer múltiplas relações
com seus pares, com crianças de outras idades e
com os adultos, criando e inventando novas
brincadeiras e novos significados.

Nesse movimento podemos perceber como as


crianças constroem o conceito de normalidade.
A sequência de fotos a seguir mostra um momento
do cotidiano da educação infantil, em que as crianças estão
dançando; podemos observar as relações entre elas e a cadeira
de rodas – instrumento utilizado para a “não-eficiência” do andar.
Como as crianças transgridem as noções do ver e do não ver,
do andar e do não andar, do falar e do não falar apontando

91
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

outras possibilidades de se relacionar com o diferente?

Ao dançar, Júlia pede para ver a trança da amiga.


Assim começa a parceria para a dança...

A dança em dupla.

92
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

A Júlia vai dançar no chão... Outra criança logo ocupa


a cadeira para dançar.

O conceito de anormalidade enquanto abstração


concreta, segundo Bueno (1999, p. 159), deve ser entendido
“enquanto fenômeno que se apresenta nas relações que o homem
estabelece com o meio e com seus semelhantes e que diferem no
tempo e no espaço”.
Aqui, as categorias tempo e espaço, em consonância
com as relações entre sujeitos, vão nos ajudar nas questões
sobre como as crianças constroem o conceito de deficiência e
o de não deficiência. Essas categorias devem ser de grande
preocupação quando trabalhamos com a pedagogia da infância.
A organização do espaço físico nas creches e pré-escolas
comporta as diferenças, permite as diferentes formas de
expressão e possibilita a produção de diferenças? Como os
adultos organizam os espaços e tempos no contexto educativo

93
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

para possibilitar a eficiência das crianças na produção das


diferenças e não de desigualdades?
Segundo, Bueno (1999, p. 159), a identidade social
do anormal não se caracteriza “pela simples presença de uma
diferença, mas pelas consequências que tais diferenças acarretam
na participação desse sujeito na construção coletiva de
sobrevivência e reprodução de diferentes agrupamentos sociais,
em diferentes momentos históricos.”

“Tira uma foto minha na cadeira da Júlia?”


A criança orgulhosamente utiliza os instrumentos
que caracterizam a deficiência, mesmo que, do ponto de vista
do adulto, não haja a real necessidade de utilizá-los. É nesse
movimento de produção de culturas infantis que podemos
perceber como as crianças constroem o conceito de
normalidade, trazendo para a discussão as possibilidades de
olharmos mais atentamente para as relações que estabelecem
com as crianças ditas “deficientes” e com os recursos que estas
utilizam: cadeiras de rodas, bengalas, próteses, dentre outros.

Mariane brincando de subir como a Júlia na balança.

94
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Quando as crianças utilizam não só os instrumentos


que caracterizam a deficiência, mas também vivenciam a
linguagem corporal do deficiente nas suas brincadeiras estão
construindo a noção de normalidade? Da deficiência e da não
deficiência?
Pensar no processo de inclusão, na perspectiva de
superar a exclusão dos incluídos significa, de algum modo,
explicitar os espaços, os tempos e as relações que estabelecem
a distinção entre a deficiência e a não deficiência. No campo
das especificidades da infância de zero a seis anos e das
especificidades do deficiente no contexto educativo
defendemos, para além do convívio com todos os tipos de
diferença, a condição de produção de mais diferenças como
possibilidade de superação da hierarquização perversa que
constrói a desigualdade.

Notas

1
Professora de Educação Infantil na SME de Campinas, no CEMEI
Adão Emiliano, de uma turma de crianças da qual faz parte uma
criança que usa cadeira de rodas.

Refer
eferência
ênciass
erência

BUENO, J. G. S. A produção social da identidade do anormal. In:


FREITAS, M. Cezar (Org.). História Social da infância no Brasil. São
Paulo: Cortez, 1999.

OMOTE, S. Deficiência e não deficiência: recortes do mesmo


tecido. Revista Brasileira de Educação Especial. v. I, n. 2, 1994.

PADILHA, A. M. L. Práticas pedagógicas na Educação Especial. A


capacidade de significar o mundo e a inserção cultural do
deficiente mental. Campinas: Autores Associados, 2001.

PRADO, P. D. Quer Brincar comigo? In: FARIA, Ana Lúcia Goulart;


DEMARTINI, Zeila de Brito Fabri; PRADO, Patrícia Dias (Org.). Por
Uma Cultura da Infância: metodologias de pesquisa com crianças.
Campinas: Autores Associados, 2002.

95
PEDAGOGIA DO LUGAR:
PEQUENA COLEÇÃO
PARA COLABORAR NA
CONSTRUÇÃO E
OCUPAÇÃO DOS
TERRITÓRIOS DA
INFÂNCIA

Ana Beatriz Goulart de Faria

A importância das coisas há que ser medida pelo


encantamento que a coisa produza em nós, diz o
poeta Manoel de Barros 1 . Se considerarmos os
lugares como coisas, poderíamos ser encantadores
de lugares, que, por sua vez, encantariam a todo
mundo.

PRELIMINARES

Apresentarei aqui indicações de publicações que

97
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

contribuem diretamente para a aproximação entre as Ciências


da Educação e a Arquitetura e o Urbanismo.
É uma coleção em permanente expansão e bastante
particular, no sentido dos motivos que orientaram a procura e
que geraram as escolhas. Sua lógica não é nada acadêmica. A
menos que seja considerada acadêmica a lógica de uma
pesquisadora errante, sempre à deriva e flanando pelos sebos
e livrarias, a procura de pistas que levem à compreensão do
significado dos lugares, da sua criação e uso, sob a ótica da
produção e troca de conhecimento. Apesar de minha pesquisa
não se restringir a uma determinada faixa etária, neste momento
apresentarei apenas aqueles títulos que colaboram
particularmente com Pedagogia da Infância.
A temática da Arquitetura e do Urbanismo para a
Infância, enquanto campo de pesquisa e prática profissional
avança lenta, frágil e dissociadamente no Brasil. A pesquisa
acadêmica pouco tem alimentado a produção material dos
espaços para a infância e as políticas públicas para a infância,
escolares ou não escolares. Entre as prateleiras das
Universidades e as pranchetas dos escritórios de Arquitetura e
Urbanismo,existe um grande desvão, onde nem polêmica há,
mas sim ausências, interrupções, isolamentos. O diálogo,
quando, raramente, se dá, tem sido na velha base da pergunta-
resposta, da forma-função. A resposta-forma arquitetônica à
pergunta-função pedagógica. Seguindo códigos e legislações
seculares, esses projetos resultam em espaços cuja pedagogia
silenciosa, inscrita em suas paredes nos ensina a disciplina, a
segregação, o controle, a punição. E por isso não acolhem nem
promovem a autonomia e criatividade, as múltiplas linguagens,
a curiosidade, o imprevisto e a liberdade das crianças e dos
adultos. Além disso,não consideram, em seu programa, a
presença da comunidade. Essas situações são a essência do
que propõe a Pedagogia da Infância à qual nos referimos.
A contribuição que quero trazer, a partir destas
indicações bibliográficas, é na perspectiva de oferecer outras
referências para reformularmos novas perguntas, sob outras
bases, para além do automatismo da resposta-atividade,
superando a base metodológica do espaço funcional.
Não se trata, pois, do que os arquitetos podem ou
não “fazer” pela Pedagogia da Infância (belas escolas, espaços

98
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

lúdicos, criativos, etc.). O que proponho é que, a partir do pensar-


fazer arquitetura e do pensar-fazer pedagogia, olhemos para a
questão do projeto e implantação do lugar pedagógico da
infância, em todas as dimensões possíveis, para todas as
infâncias2. É um caminho de mão dupla onde arquiteturas se
educam nas pedagogias e as pedagogias se espacializam no
projeto e nas suas arquiteturas.
Acredito que a Arquitetura e o Urbanismo só
reencontrarão seu sentido, significado e papel social, tanto no
contexto do debate sobre a Educação Infantil, quanto em outro
mais amplo, o da Cultura e Educação brasileiras, caso nos
disponhamos a superar o monólogo dominante nesta prática
(do qual os não-lugares3 são oriundos) e passemos a dialogar
com outras áreas do conhecimento e, a partir disso, rever
nossos princípios e padrões de produção de conhecimento e
de lugares, na dimensão dos objetos arquitetônicos e urbanos.
E na perspectiva da produção dos territórios da infância, o
desafio da mudança do panorama atual é maior ainda.
Deveremos descobrir e construir métodos que considerem a
participação dos “infantes” neste processo. Pois só quando
permitirmos e oferecermos às crianças condições de
experimentarem autonomamente a exploração, a ocupação e
a transformação dos lugares, é que eles terão sentido nos
processos pedagógicos.
É nesta direção que esta Pequena Coleção vem se
compondo.
Quando iniciei minhas pesquisas neste campo
(1981), a bibliografia brasileira se restringia à obra pioneira da
arquiteta Mayumi Souza Lima, A Criança e a Cidade4. Detalhe: a
única autora brasileira citada na sua bibliografia foi Áurea Maria
Guimarães5.
Muito lentamente temos avançado no caminho
aberto por esses trabalhos, apesar da importância e urgência
da questão. As poucas reflexões localizam-se principalmente
nas áreas da Educação, Psicologia, Arquitetura e Urbanismo, e,
em sua maioria, orbitam em torno de um centro comum: a
Pedagogia da Infância. Esta recém-criada área do conhecimento
vem dinamizando este debate e, consequentemente,
fomentando as mais recentes produções, através de seus
núcleos e centros de estudo localizados nas Faculdades de

99
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Educação das mais importantes universidades públicas


brasileiras (UFRGS, UFSC, Unicamp, USP, para citar algumas).
Assim, podemos dizer que, hoje, a problemática do
espaço na educação infantil efetivamente se tornou elemento
presente nas pesquisas acadêmicas. Ocorre que, apesar dessa
produção vir aumentando consideravelmente, consultando a
bibliografia pesquisada e indicada por esses trabalhos,
verificamos que os autores e referências se repetem
exaustivamente. Mesmo em se tratando de autores não
brasileiros, as novidades são ainda bastante raras.
Diante disso, tenho buscado também em territórios
vizinhos inspirações e fundamentações que me ajudem a
aprofundar na pesquisa e proposição dos “lugares para a
infância”. Vizinhos em área de conhecimento, para além da
arquitetura e do urbanismo, assim como em obras elaboradas
em outros países que não o Brasil.
Neste texto apresentarei apenas títulos produzidos
originalmente na Espanha, França e Itália. Tive o privilégio de
visitar esses países e encontrar em algumas de suas
universidades, bibliotecas, centros de pesquisa, sebos e livrarias,
peças raras que aqui quero compartilhar.
Apesar de ter a pretensão de apresentar surpresas
e novidades, para sintetizar de onde parto e para onde quero ir
com esta Pequena Coleção, citarei duas pequenas passagens
de uma das publicações que tem sido muito utilizada nas
dissertações e teses. Obra que, escrita originalmente em forma
de artigo, segue sendo uma das poucas produções que
relacionam o espaço escolar, a arquitetura e o currículo de forma
direta e correspondente. E que, por isso, tem sido essencial
para justificar e iluminar minha pesquisa e prática acadêmica e
profissional6.
Ao comentar a escassez das reflexões relacionando
espaço e educação diz:
“Apesar da importância da dimensão espacial da
atividade humana em geral, e da educativa em particular, essa última
é uma questão não estudada nem a fundo nem de modo sistemático”...
E para que essa questão seja considerada, propõe:
“fazer do mestre ou professor um arquiteto e da
educação, um processo de configuração de espaços” 7.
Para finalizar esta introdução, desejo que a

100
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

apresentação desta Pequena Coleção seja acima de tudo um


convite. Convite para esta aventura no desconhecido onde
possamos compreender, imaginar, construir e ocupar os
TERRITÓRIOS PARA A INFÂNCIA, dentro e fora da escola, nos
lugares brasileiros.
Pequena Coleção que organizei em grupos
temáticos8 que apresento a seguir9.
Farei destaque para algumas publicações devido à
sua originalidade e importância para este campo de pesquisa.

1. A PEDAGOGIA DOS L
PED UG
LUGARES
UGARES
LUGAR - ESCOLA10, LUGAR - CIDADE: CONCEITOS, REFLEXÕES
Todo lugar tem um potencial pedagógico, explícito
ou implícito. As paredes falam, têm ouvidos, guardam segredos,
dão arrepios, emocionam, fazem-nos lembrar, sonhar, pensar.
Em toda organização espacial, seja berço ou cidade, há uma
forma silenciosa de ensino.
Mario Gennari é professor no curso de pedagogia
nas universidades de Genova.
É neste autor que encontrei de maneira
contundente a consideração do problema pedagógico do
espaço na educação, onde o espaço é tratado como sujeito e
objeto pedagógico. Gennari nos oferece elementos riquíssimos
para a construção de teorias pedagógicas do espaço,
fundamentais para o campo de pesquisa do qual estamos
tratando.
Suas publicações relacionam Pedagogia,
Hermenêutica e Semiótica, Educação Estética, Arte e Literatura11.
Mas aqui o destaque vai para os títulos que abordam diretamente
as questões relacionando a semântica da cidade e a Educação,
a Pedagogia da Cidade e dos ambientes educativos12.
Em (1)Pedagogia degli Ambienti Educativi o autor
parte da análise da noção de “espaço” nas ciências humanas,
vai construindo uma perspectiva de conceituação do “espaço
pedagógico”, nas ciências da educação e na história da
pedagogia. Aborda várias escalas do espaço educativo: a casa,
a escola e a cidade. Colabora intensamente para outras
possibilidades teóricas e práticas de interpretação e construção
do espaço no âmbito educativo.

101
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Já em (2)Semântica de la Ciudad y Educación


defende que a cidade é o referente da implicação da cidadania
no sistema educativo, levantando o que chama de
“possibilidades pedagógicas” da cidade. A ecologia e a
urbanística humanista se mesclam com uma didática do ambiente
natural e construído. Fala da amizade e da solidariedade como
elementos fundamentais para a existência de uma cidade menos
desigual, mais bela e harmônica.
Na última parte, aborda a questão da animação
pedagógica e de outras práticas as quais ele chama de
“profissões pedagógicas” como perspectiva de encontro entre
as áreas de atuação do arquiteto e do pedagogo, entre outros,
no desafio da construção dos territórios pedagógicos.

(3)La Mente Locale. Per un´antropologia dell´abitare


Franco La Cecla
Eleuthera, Milano, 2005.

(4)Lo spazio Vissuto


Luogh educativi e soggettività
Vanna Iori (professora de Pedagogia na universidade Católica
de Piacenza)
La Nuova Itália Editrice, Firenze, 2003.

(5)La arquitectura como lugar


Joseph Muntañola
Quaderns d´arquitectes
Editions Universitat Politécnica de Catalunya
Barcelona,1976.

(6)Territoires à vivre. Quels aménagements pour les enfants


et les jeunes?
Sophie Genelot
Éditions Milan, 1998.

2. INFÂNCIA E ARQUITETURAS
INFÂNCIA NA ESCOLA
ARQUITETURA ESCOLAR
“o arquiteto é um educador. Seu ensinamento transmite-

102
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

se através de formas que ele concebeu e que constituem o entorno


da criança desde a sua mais tenra idade.” 13
[...]
“a arquitetura é uma espécie de discurso que institui
na sua materialidade um sistema de valores, ordem disciplina e
vigilância, marcos da aprendizagem sensorial e motora e toda uma
semiologia que cobre diferentes símbolos estéticos, culturais e
também ideológicos.” 14

(7)Territórios de la infância - Diálogos entre arquitectura y


pedagogia
Isabel Cabanellas e Clara Eslava (coords.)
Colección biblioteca de infantil n.9
Editorial Grao, Barcelona, 2005.

Esse belíssimo trabalho chegou às minhas mãos


quando eu já havia finalizado esta Pequena Coleção, cujo nome
de batismo já havia sido dado.
Uma coincidência de nomes que arrisco manter, em
homenagem ao que considero a maior contribuição feita nos
últimos tempos para este diálogo. Dia - logos : através de –
conhecimento. Troca de conhecimento. E, efetivamente, é o
que esta obra, de rara originalidade, realiza. Foi feita a muitas
mãos, tal como acreditamos deva ser tratada esta questão.
Arquitetos, pedagogos, artistas plásticos, sociólogos tratam
inter e trans-disciplinarmente da infância e de seus processos
de conhecimento com relação ao espaço. Espaços urbanos e
escolares assim como o desenho de objetos são analisados
num profundo e rico diálogo entre arquitetura e pedagogia.
Como destaque, o provocante prefácio do
antropólogo Manuel Delgado (“Em busca Del espacio perdido”)
que, ao se referir a esta esfera da vida catalogada temáticamente
como “infância”, nos desafia com a seguinte pergunta :
“ No será más bien que nos remite a un conjunto de
virtudes perceptuales y performativas que no son exclusivas de
la niñez sino que se encuentram en qualquer persona, por adulta
que se pretenda, como potencialidades implícitas predispuestas
para ser activadas en cualquier momento y que cualquier momento
aprovecha para activar?” (grifos meus).
E que, mais adiante, propõe a reinfantilização dos

103
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

espaços urbanos - no sentido de restaurar a experiência infantil


do urbano - o amor pelas esquinas, os esconderijos, os
encontros fortuitos, o deslocamento das funções, o jogo. E
nos lembra que os espaços feitos por nós, adultos, são a raiz
semântica dos “espaços adulterados”. Imperdível e fundamental.
A grande estreia dos últimos tempos!

(8) L’enfant, l’architecture et l’espace


De l´architecture du mépris à l´espace du bonheur
Georges Mesmin
Casterman, Paris, 1971.

(9)Currículo, Espaço e Subjetividade- a arquitetura como


programa
Viñao Frago e Escolano
DP&A Editora, Rio de Janeiro, 2001.
Tradução dos artigos “Del espacio escolar y la escuela como
lugar: propuestas y cuestiones” e “ La arquitectura como
programa. Espacio-escuela y curriculum”, publicados na revista
Historia de la Educación da Universidade de Salamanca, 1995.

(10)Habiter: le bricolage imaginaire de l´espace


Michel Bonetti
Hommes et Perspectives, Marseille,1994.

(11)Il bambino construttore: lo spazio e la relazione educativa


Del Nido
Ivana Padoan e Tiziano Paperini
Edizioni Del Cerro, Tirrenia, 1997.

(12)Le jeune enfant et l´architecture: les lieux de la petite


enfance
Actes du colloque “le jeune enfant et l árchitecture” ou “l éspace
d´une adresse”
Montpellier, 1990. Syros, Paris, 1991.

(13)Espaces d´enfants
Org. Marie-José Chombart de Lauwe
Éditions Del Val, Suisse, 1997.

104
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

(14)L´enfant, l´ espace, les apprentissages à l école maternelle


Gilbert Lentschat e Evelyne Drocourt
CNRP d´Alsace, Strasbourg, 1996.

(15)Les murs de l´école: élements de réflexion sur l´espace


scolaire
Marie-Claude Derouet-Besson
Éditions Métalié, Paris, 1998.

(16)Pour une écologie de la classe


Pierre Vayer e Johanne April
Buchet/Chastel, Paris, 1997.

(17)Une écologie de l école: la dynamique des structures


matérielles
P. Vayer, A. Duval e C. Roncin
Paris, PUF, 1991.

3. INFÂNCIA NA CIDADE
CIDADE
“A crise do modelo urbano contemporâneo pode ser
enfrentada com um projeto educativo que ative e valorize não só a
capacidade crítica, comunicativa e relacional das crianças mas sua
capacidade projetual e criativa, a partir da sua vontade de fazer
coisas”. (Françoise Dolto)15

(18)L´image de la ville chez l´enfant


Kyryaki Tsoukala
Anthropos, Paris, 2001.
Centrada na relação criança-espaço urbano, essa obra trata dos
processos da percepção ambiental da criança, com uma atenção
particular dada a algumas variáveis (gênero, idade,particularidades
sociais e culturais). Na trilha traçada por Kevin Lynch16 e Raymond
Ledrut17, o autor propõe uma renovação nas abordagens sobre o
ambiente construído, através da análise das representações das
formas espaciais feitas pelas crianças e da formulação de
recomendações a respeito do planejamento do espaço urbano para
a reintegração da criança na cidade. Do ponto de vista teórico se
coloca no encontro da abordagem sócio-interacionista e sócio-
sistêmica. No seu estudo de caso, na Grécia, trabalha com mapas

105
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

mentais como base de sua metodologia. Entrelaça as noções de


espaço pessoal, espaço imaginário e espaço social, numa
perspectiva interdisciplinar.

(19)La cittá di Batman - Bambini, confliti, sicurezza urbana


Elisabetta Forni
Torino, Bollati Boringhieri Editori, 2002.

(20)Il bambino è um cittadino


Alfredo Carlo Moro
Ugo Mursia Editori, Torino, 1991.

(21)Il bambino e la cittá


Cláudio Stroppa
Franco Angeli, Milão, 1996.

(22)Il bambino e la cittá: proposte per una migliore qualitá di


vita urbana
Org. M. Cristina Capriotti
Società Editrice Il Ponte Vecchio, Cesena, 2001.

(23)La ville dont le maire est un enfant ou Quand l école devient


citoyenne
Éditions d´ArmançonPrécy-sous-Thil, 1998.

(24) Petite enfance et politique de la ville


Actes du Colloque “Petite Enfance et développement des
quartiers” - 1993.
Dir. Anne Chapoutout
Paris, Syros, 1993.

(25)L´enfant et son intégration dans la cité. Éxperiences et


propositions
Dir. Stéphane Téssier.
Syros, Paris,1994.

(26)L´enfant et la ville. Urbanisme, Santé et Socialisation


Dir. Eric Chevallier
Syros, Paris, 1993.

106
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

(27)Reggio tutta: una guida dei bambini allá città


Ferri G. - Davoli M.
Reggio Children, Reggio Emilia, 2000.

(28)L´enfant dans la ville


Françoise Dolto
Éditions Gallimard, Paris, 1998.

(29)Bambini di cittá
Carlo Pagliarini
Edizioni Era Nuova
Peruggia, 2000.

(30)Descobrir el medi urbà


Barcelona: l ´arquitectura d´una ciutat i l ´opinió dels infants
Muntañola e Dominguez;
Institut d´ecologia urbana de Barcelona, Barcelona, 1992.

4. A CIDADE NA ESC
CIDADE OLA
ESCOLA
A ARQUITETURA NA ESCOLA

Ensinar a cidade e a arquitetura. Uma série de


publicações elaboradas por Centros de Pesquisa, Formação e
Documentação Pedagógica, com a colaboração de Associações
de Arquitetos, Urbanistas e Professores e dos Governos
Federais, Regionais e Municipais.
Explorar pedagogicamente o tema da cidade e da
arquitetura, inter e transdisciplinarmente.
São livros didáticos e manuais pedagógicos, na
maioria dos casos destinados a uma faixa etária ou série
escolar específica e à formação dos professores ou da
comunidade. Na sua maioria trazem sempre indicações
bibliográficas riquíssimas.

(31)Il était une fois l´architecture - Guide à l´usage des jeunes


citoyens
Conseil d´Architecture, d´Urbanisme et de l´Environnement des
Bouches-du-Rhône

107
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Marseille, 1997.

Esse belo volume de 350 páginas, todo ilustrado,


foi feito por iniciativa do Conselho de Arquitetura e Urbanismo
e do Meio Ambiente da região de Bouches-du-Rhône, em 1997.
É um belíssimo roteiro apresentando uma “biblioteca
ideal” para divulgar e ensinar arquitetura e urbanismo nas escolas
e na comunidade. Organizado por arquitetos, urbanistas e
Educadores, que compartilham de uma concepção de Educação,
Arquitetura e de Urbanismo baseadas na conviviabilidade,no
conforto, na arte e na literatura.
É dirigido aos professores, “como um instrumento”,
aos pais, “como uma esperança” e às crianças e jovens, “como
uma promessa”, para contribuir na reflexão e elaboração de
Projetos Educativos e de Projetos de Arquitetura e Urbanismo,
no contexto escolar e extra-escolar.
A primeira parte apresenta a resenha ilustrada de
138 clássicos da literatura francesa e universal, que, de alguma
forma, direta ou indiretamente, falam de arquitetura e de cidades,
divididos em indicações para Maternal, Primário, Ginásio e Liceu.
A segunda parte apresenta os “Grande Autores” (Paul Auster,
Roland Barthes,Umberto Eco, entre outros) em obras que
refletiram sobre esses temas. E na última e terceira parte
apresenta textos escolhidos de grandes arquitetos.Trata-se de
uma obra ímpar que deveria estar traduzida nas prateleiras de
nossas bibliotecas,escolares ou não.
Traz impresso na capa o que poderia ser a epígrafe
desta Pequena Coleção :
“A escolha de um livro é frequentemente um acaso. Esse
acaso pode transformar o leitor em amador, o amador em conhecedor
e o conhecedor em esteta. A única ambição de nossa biblioteca foi
de demonstrar que a cidade não será uma fatalidade se as pessoas
nela e com ela se misturarem.Aí está um jeito de os tornar mais
curiosos!”

(32)Copains des Villes - Explorer sa ville, son quartier, sa rue


Bernard Kayser et Pierre Ballouhey
Édition Milan, Toulouse, 1994.

(33)Classes de Ville - Mode d´Emploi

108
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Centre Régional de Documentation Pédagogique de l´academie


de Créteil e Delegation Interministerielle à la Ville, Créteil, 1999.

(34)Architecture, Patrimoine et création – une démarche


d´éducation
Conseil d´Architecture d´Urbanisme et de l´Environnement du
Nort (CAUE). Lille, 1998.

(35)Le Corbusier – Pour une Pédagogie de l´Éspace. Éducation


à l´architecture.
Conseil d´Architecture d´Urbanisme et de l´ Environnement
de la Somme e Centre Régional de Documentation Pédagogique
de l´academie d´Amiens, Amiens, 1998.

(36)Connaître son quartier, son village.


Collection Education à l´environnement
Atelier Permanent d´Initiation à l´Environnement urbain (APIEU)
Montpelier-Méze e Groupe Régional Animation Initiation Nature-
Environnement (GRAINE) Languedoc Roussillon, Montpellier,
1997.

(37)Comprendre l´architecture
Sicard, Mireille.
Centre Régional de Documentation Pédagogique de l´Academie
de Grenoble. Grenoble, 2001.

(38)La classe paysage: découverte de l’environnement proche


en milieux urbain et rural
Armand Colin, Paris, 2002.

(39)Lire sa Ville – des activités pour la classe


Centre Régional de Documentation Pédagogique de l´academie
de Créteil e Delegation Interministerielle à la Ville, Créteil, 1999.

(40)Ma ville? Qu´est-ce qu´elle est a ma ville? Pédagogie de


projet
Centre Départemental de Documentation Pédagogique de la
Seine Saint-Denis
Conseil d´Architecture d´Urbanisme et de l´Environnement de
la Seine Saint-Denis (CAUE), 1999.

109
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

(41)Lire sa ville: des activités pour la classe


Angot Marie-Claude, Letz France, Mahieux Jacques, Quéméner
Alain, Savage Sophie
CRDP de Créteil, 1999.

(42)Jeunes, artisans de la ville et de l’architecture


SCEREN/CRDP, Lyon, 2002.

(43)À l’école de la ville


Périodique: revue Urbanisme novembre-décembre 2002.
Les éditions de l’imprimeur, 2002.

(44)Lire la ville
Raynal, Marie
Livre. - GALLIMARD JEUNESSE, 1996.
N° spécial H.S. de «Lire et Savoir».

(45)Comprendre l’architecture
Mireille Sicard
Multisupport. – CRDP, Grenoble, 2001.

(46)Les enfants dans la ville


Périodique: Ville école intégration n° 141 – juin 2005.
SCEREN,CNDP, 06/2005.

(47)Jouer le jeu: pour une nouvelle dimension éducative et


sociale
Bernhard, Jean-Jacques
Nathan Pédagogie, 1994.

(48)La ville et l’école - Les nouvelles formes de ségrégation


Périodique: Ville école intégration n° 139 décembre 2004.
SCEREN, CNDP, 12/2004.

(49)La classe paysage: découverte de l’environnement proche


en milieux urbain et rural
Considère, Sylvie/Griselin, Madeleine/Savoye, Françoise
Armand Colin, Paris, 1996.

(50)Les enfants dans la ville

110
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

VEI Diversité, n° 141, juin 2005.


Revue: Ville-École-Intégration Diversité

(51)La ciudad: didáctica del medio urbano


IBER, Barcelona,1995.

5. LUG
LUGARES PE
UGARES DAGÓGI
PED COS
AGÓGIC

LUGAR - ESCOLA, LUGAR - CIDADE : PROPOSTAS, PROJETOS

“Ao contrário do que deseja acreditar a teoria atualmente


hegemônica, quanto menos inserido o indivíduo (pobre, minoritário,
migrante, etc.), mais facilmente o choque da novidade o atinge e a
descoberta de um novo saber lhe é mais fácil. O homem de fora é
portador de uma memória, espécie de consciência congelada,
provinda com ele de um outro lugar. O lugar novo o obriga a um novo
aprendizado e a uma nova formulação. A memória olha para o
passado. A nova consciência olha para o futuro. O espaço é um
dado fundamental nessa descoberta. Ele é o teatro dessa novação
por ser, ao mesmo tempo, futuro imediato e passado imediato, um
presente ao mesmo tempo concluído e incluso, num processo sempre
renovado.
Quanto mais instável e surpreendedor for o espaço,
tanto mais surpreendido será o indivíduo, e tanto mais eficaz a
operação de descoberta. A consciência pelo “lugar” se superpõe à
consciência no “lugar”. A noção de espaço desconhecido perde a
conotação negativa e ganha um acento positivo, que vem de seu
papel na produção da nova história”.18

(52)Les temps de l´enfance et leurs espaces


Les nouveux liex d´accueil de la petite enfance - Exemples
et pratiques
Didier Heintz e Josiane Chabel
Navir, Paris, 1994.

Essa publicação é fruto das realizações da


associação NAVIR em Paris. Coordenado pelo arquiteto Didier
Heintz e pela psicóloga Josiane Chabel, essa associação,
composta por profissionais das mais variadas áreas, vem

111
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

realizando projetos e formações dirigidas a professores,


comunidade, associações e às equipes da administração pública.
As formações quase sempre culminam no projeto e na
implantação de espaços de acolhimento da infância. Na base
de sua metodologia está o protagonismo infantil e comunitário.
A riqueza dessa prática vem sustentada por
reflexões teóricas multi e interdisciplinares, expostas na primeira
parte do livro, mas, que também atravessam as apresentações
caso a caso.
Uma rica variedade de exemplos de espaços para a
infância se sucede. Os detalhes são preciosos. Sejam os que
se referem à metodologia de projeto, ou os que se referem à
qualidade das imagens (fotos e desenhos) apresentando os
projetos, as maquetes e os espaços construídos e em
funcionamento. Essa publicação supera em muito aquelas que
tratam da arquitetura de creches e de escolas de educação
infantil, por apresentarem a arquitetura como espaço de
demarcação, em íntima relação com as pessoas, pessoa-criança,
pessoa-adulta. O resultado plástico é belíssimo e, o melhor,
com um potencial pedagógico enorme, no sentido de ser
inusitado, curioso, imprevisto, singular.
As intervenções não se restringem a “metros
quadrados”, como nossa secular e limitante legislação, mas sim,
ocupam todo o volume dos ambientes (metros cúbicos!) onde
é possível, apenas para dar um pequeno mas impactante
exemplo, o projeto de um berço, ou melhor, de um conjunto
de berços em forma de beliches.
Esta equipe, que trabalha sempre com outras
equipes, nos mostra a possibilidade da teoria e da prática se
darem integrada e complementarmente.
É um caminho exemplar que nos ensina e provoca
a construirmos territórios-de-infância específicos e próprios para
cada local, para cada projeto político-pedagógico, para cada
comunidade.

(53)Bambini, Spazi, Relazione - metaprogetto di ambiente per


l’infanzia
Giulio Ceppi e Michele Zini
Reggio Children, Reggio Emilia, 1998.

112
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

(54)Imaginaires de jeux: L´enfant, le jeu, la ville


Org. Liliane Messika
Éditions Autrement, Paris, 2000.

(55)Les normes en questions: l´espace des lieux d´accueil de


la petite enfance
Didier Heintz e Josiane Chabel
Navir, Paris, 2002.

(56)L’espace d’accueil de la petite enfance: guide pratique


l’Inédite, Collection FNCAUE.
Paris,1995.

(57)Guide pour la création des lieux d’accueil des jeunes


enfants
CNAF
Ministère de l´Emploie et de la Solidarité
Ministère Deleguè de la Famille et de l´Enfance

(58)Revista Bambini - Suplemento da revista Bambini de


dezembro de 2005
Spazi: luoghi di vita per l´infanzia19
Org. Ferrucio Cremaschi
Azzano S. Paolo. Itália.

(59)Revista Bambini in Europa


Creare gli spazi: architettura e design per la prima infanzia
Junho, 2005.

(60)Una cittá con i bambini


Progetti ed esperienze del laboratorio di Fano
Coord. Claudio Baraldi e Guido Maggioni
Laboratório Infanzia e Adolescenza Urbino
Donzelli Editore, Roma, 2000.

(61)La città dei bambini


Tonucci Francesco
Editore Laterza, 2005.

(62)La città sostenibile e i diritti delle bambine e dei bambini

113
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Sossi Livio, Tonucci Francesco, Zappella Denise


Lubrina, 2004.

(63)Se i bambini dicono: adesso basta!


Tonucci Francesco
Edizione 2, Laterza, 2003.

(64)La cittá educativa - Progetti al altezza di bambine e


bambini
Edizione Junior, Ravenna, 2000.

(65)La guida alle cittá sostenibili delle bambine e dei bambini


Ministerio dell´Ambiente, Italia, 1998.

(66)Côté Cour - Aménagements de cours d´école


Sylvie Guichard
Éditions Nathan, Paris, 1990.

(67)Il giardino dei segreti


Organizare e vivere gli spazi esterni nei servizi per l´infanzia
Penni Ritscher
Edizioni Junior, Azzano San Paolo, 2002.

(68)Gli spazi verdi per il gioco dei bambini


Org. Inês Romitti e Florinda Petrella
Alínea Editrice, Firenze, 1998.

(69)Espaces de jeux - De la boîte a sable au terrain d´aventure


Marguerite Rouard/Jacques Simon
Éditions D. Vincent, Paris, 1976

(70)Espaces de jeux à l´exterieur


La participation des enfants des parents, des profissionnels
Coord. Didier Heintz
Navir, Paris,1990.

6. PROGRAMAS E POLÍTI
PROGRAMAS CAS PÚBLI
POLÍTICAS CAS
PÚBLICAS

A França, a Itália e a Espanha têm dentro de suas


políticas públicas nacionais, regionais e municipais, programas

114
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

que têm como eixo central propostas que relacionam a criança,


a escola e a cidade. São ações específicas (dentro e fora da
escola) de formação e gestão, direcionadas para crianças e
jovens, professores e para todo corpo de profissionais que
trabalha na escola e na administração pública e comunidade em
geral. Esses programas, além do caráter formativo, revelam-se
como fonte fortíssima de produção de material didático e
pedagógico. Darei alguns exemplos. Nos sites indicados,
encontra-se uma enorme quantidade de textos e as indicações
bibliográficas são riquíssimas.

Città Sostenibili delle Bambine e dei Bambini


http://www.cittasostenibili.minori.it/indice.html

Associação internacional de cidades educadoras


http://bcnweb13.bcn.es:81/NASApp/eduportal/
pubPortadaAc.do

La città come scuola


https://www.comune.roma.it/

Cabanes: construit ton aventure!


http://www.artsculture.education.fr/architecture/action/
cabanes.asp

Barcelona a l´escola
http://www.bcn.es/IMEB
http://bcnweb13.bcn.es:8886/program.htm

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muito provavelmente nenhuma criança lerá ou terá


acesso a esta bibliografia. Mas, nesta mesma listagem,
poderemos encontrar reflexões e propostas que podem nos
provocar e orientar a incluirmos as crianças em nossas reflexões
e propostas destes TERRITÓRIOS PARA A INFÂNCIA. Porque, se
elas não pensarem conosco, estes lugares continuarão a ter
pouco significado e importância. Para elas e para nós, pois,
parafraseando Pablo Neruda, pergunto:

115
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

“Onde está o criança que fomos,


Segue dentro de nós ou se foi?
Por que andamos tanto tempo crescendo,
Para separar-nos depois?”

Notas
1
In: BARROS, Manoel. Memórias Inventadas: A Segunda Infância.
IX Sobre Importâncias.

2
Como Agamben propõe, não entendo a infância apenas como
etapa cronológica da existência humana.“A infância que aqui está
em questão, não pode ser simplesmente algo que precede
cronologicamente a linguagem e que, a uma certa altura, cessa
de existir para versar-se na palavra, não é um paraíso que, em um
determinado momento, abandonamos para sempre a fim de falar,
mas coexiste originalmente com a linguagem, constitui-se aliás
ela mesma na expropriação que dela efetua, produzindo a cada
vez o homem como sujeito”. (Infância e história: destruição da
experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
p. 59. Infanzia e storia. Distruzione dell’esperienza e origine della
storia. Roma: Einaudi, 2001).

3
Lugares que não têm nenhum significado, segundo Marc Augé.

4
LIMA, Mayumi Souza. A criança e a cidade. São Paulo: Studio
Nobel, 1989.

5
A Dinâmica da Violência Escolar. Campinas: Autores Associados,
2005. Vigilância, Punição e Depredação Escolar. Campinas: Papirus,
2003. Na mira da violência: a escola e seus agentes. Campinas:
Cadernos Cedes,1999. OBS: Por uma feliz coincidência, fui
estagiária da Áurea na sua pesquisa de mestrado em 1981, e
trabalhei com Mayumi pouco antes do seu falecimento em 1994.

6
Venho trabalhando desde o início da década de 90 no que chamo
de “A Pedagogia do Lugar”, enquanto construção teórica e
concreta, através da proposição de práticas pedagógicas e de
projetos de arquitetura e de urbanismo intensamente relacionados
com os projetos político-pedagógicos das escolas assim como
de espaços extra-escolares.

7
FRAGO, Viñao; ESCOLANO, A. Currículo, espaço e subjetividade:

116
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

a arquitetura como programa. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001,


p. 11 e p. 139. (Referência (9) da listagem realizada no texto).

8
A separação por grupos aqui proposta é apenas uma das maneiras
de organizar o material apresentado, pois, certamente,cada uma
das indicações abarca um ou mais eixos ou temas.

9
Farei destaques para alguns autores no início dos eixos, devido à
relevância da contribuição de suas pesquisas e publicações para
este campo.

10
Escola como lugar pedagógico, incluindo a creche, a pré-escola
e a escola de ensino fundamental.

11
La Educación Estética: Arte y Literatura. Barcelona: Paidós,
1997.Interpretare L ´Educazione: Pedagogia, Semiotica,
Ermeneutica. Brescia: Editrice La Scuola, 1992.

12
Pedagogia e Semiotica. Brescia: Editrice La Scuola, 1984.
Semântica de la Ciudad y Educación: Pedagogia de la Ciudad.
Barcelona: Herder, 1998. Original em italiano: Semantica della
Cittá e Educazione. Veneza: Marsilio Editori,1995.

13
MESMIN, Georges. L’enfant, l’architecture et l’espace. De
l´architecture du mépris à l´espace du bonheur. Paris: Casterman,
1971. Referência (8).

14
FRAGO, Viñao; ESCOLANO, A. Currículo, espaço e subjetividade:
a arquitetura como programa. Rio de Janeiro: DP&A,1998. p. 26.
Referência (9).

15
Referência (28).

16
LYNCH, K. L’image de la cité. Paris: Dunod,1960.

17
LEDRUT, R. Les images de la ville. Paris: Anthropos,1973.

18
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e
Emoção. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 264.

19
Nesta edição está publicado um projeto de arquitetura de minha
autoria do Centro de Educação e Cultura da Infância da Caixa de
Assistência aos Advogados de São Paulo (CECEI-CAASP) sob o

117
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

título “un nido al 14º piano” – com a colaboração de Ana Lúcia


Goulart de Faria. O projeto é apresentado através de uma
entrevista comigo feita por Nice Terzi no espaço do CECEI.

118
O FASCÍNIO
INDISCRETO: CRIANÇAS
PEQUENININHAS E A
CRIAÇÃO DE DESENHOS

Márcia Aparecida Gobbi

A linha tem necessidade de brincar


porque está comovida.
(KLEE, 2001)

Este texto aborda a criação de desenhos por


meninos e meninas pequenos1, destaco nesta abordagem
aqueles criados pelos pequenininhos2, ou seja, com bem pouca
idade, cujos traçados tantas vezes encontram-se entre o
empoeirado das gavetas e armários em creches e pré-escolas,
abafados em saquinhos plásticos à espera de quem os olhe, os
interrogue colocando-se no plano das crianças, procurando ver
também com seus olhos e provocando uma aproximação com
parte de seus diferentes modos de percepção do mundo.
Ao participar do seminário, procurei compor um
conjunto de debates realizados neste 15º COLE (Congresso
de Leitura do Brasil) cuja proposta é discutir diferentes formas
de leitura e de linguagens na educação infantil, num modelo
social e cultural, cuja marca primordial reside na consideração

119
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

da escrita como a linguagem por excelência. Ao considerar isso


de forma única e indiscutível, permite que os meninos e meninas
que ainda não leem sejam colocados por alguns adultos num
patamar que expressa inferioridade diante das crianças mais
velhas, aquelas que dominam essa linguagem, desse modo, seus
gestos, seus choros, seu silêncio, passam a ser
desconsiderados como algo que também revela o que são, bem
como os lugares que ocupam na sociedade, como construtoras
de culturas.
Embora considere o acesso à linguagem escrita um
direito dos cidadãos e cidadãs, o privilégio a apenas uma forma
expressiva, tende a tornar opacos nossos olhos e corpos de
forma a diminuir nossa capacidade de percepção sobre o direito
a construção de tantas outras dimensões humanas. Neste
momento, em que se discute – e ainda há tanto a discutir –
sobre a antecipação da entrada das crianças pequenas no
ensino fundamental, é essencial conversarmos sobre o “fascínio
indiscreto” das linguagens dos meninos e meninas pequenos e
pequenininhas que não escrevem, mas que dançam, cantam,
choram, gesticulam, circulam pela cidade, desenham – quando
estes direitos lhes são garantidos.
A proposta apresentada aqui é de um estudo
minucioso dos desenhos deixando de lado tantas expectativas
que ofuscam nossos modos de ver e escutar aquilo que meninos
e meninas nos apresentam com suas diferentes formas de
expressão, ora conjugando-as a outras linguagens, ora
observando-as atentamente como algo que não
necessariamente ocorre de forma concomitante. Temos aí
universos que, por diferentes aspectos ainda nos são tão
estranhos, porém, que podem fascinar-nos discreta ou
indiscretamente provocando-nos o maravilhamento do olhar,
instigando a curiosidade.

COMECEMOS A OBSERVAR: os inúmeros encontros


entre tantas linhas

A linha desprega-se livremente, sem freios: trata-se


por assim dizer de um passeio com um fim em si
mesmo, sem metas. (KLEE apud MUNARI, 2002)

120
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Eis que as superfícies – areia, papel, terra, chão, azuis,


amarelos, cinzas do céu – esperam silenciosamente que meninos
e meninas decidam que rumos tomarão, que traços, que marcas
deixarão sobre essas áreas limitadas de diferentes texturas e
tamanhos que ao serem perscrutadas pelas crianças tornam-se
ilimitadas. Trata-se de infinitas possibilidades que serão buscadas
entre danças, assobios, conversas, pensamentos quietos e
inquietos, individuais e coletivos, traduzidos em manchas, riscos
e rabiscos adquirindo inúmeras formas que podem ou não
encantar-nos devido às suas composições.
Opto, nesta discussão sobre a construção de
modos de ver a criação de desenhos das crianças pequenas
por um referencial bibliográfico que encontra entre os artistas,
arquitetos, antropólogos, contribuições que nos permitem
escapar de princípios etapistas que ainda vigoram entre nossas
experiências, sobretudo as escolares, que tanto ferem nossos
olhares e práticas junto aos meninos e meninas. É bom sublinhar
que não estabeleço uma comparação entre a arte da criança e
aquela realizada pelos artistas adultos, contudo, os mesmos
artistas, suas considerações e obras se oferecem como boas
para pensar sobre a criação infantil, sua originalidade, sua beleza.
Aponto entre eles, Bruno Munari (2002) que, ao
interrogar-se incessantemente sobre estes traços infantis,
desdobra seu questionamento de forma a também conduzir
nossos olhares sobre os registros gráfico-pictóricos deixados
pelos meninos e meninas:
z Que coisa acontece quando um ponto começa a mover-se sobre
as folhas?
z Como será uma linha calma ou agitada?
z E quando duas linhas encontram-se, o que ocorre?
Perguntas curiosas e que expressam o desejo desse
arquiteto, sensível também às criações infantis, de saber mais
sobre elas e seus criadores, numa perspectiva inspirada em Paul
Klee, que procura descobrir e brincar com os sentimentos das
linhas, como se referia o artista moderno. Munari (op.cit) dirá
que cada um, que cada criança se exprime de modo original,
envolvidas em propostas criadas por elas mesmas seguindo os
ritmos de suas próprias indagações, prazeres e desprazeres,
numa brincadeira e num jogo constante e rico no qual o papel
torna-se pequeno, a mesa ganha a qualidade de mais um

121
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

suporte, bem como o chão, a terra, e tantos outros que vão


sendo criados, e as crianças tornam a inventar outras linhas:
enraivecidas, brutas, calmas, elétricas, alegres ou tristes.
Por muito tempo esteve, e ouso dizer, ainda se faz
presente entre nós adultos e adultas, uma compreensão dos
desenhos das crianças cuja busca voltava-se para o encontro
com as faixas etárias daqueles que os criaram. O enfoque, dentro
dessa compreensão, encontra-se na criança como ser
individualizado cujos processos de crescimento são
descontextualizados e com isso todas as suas criações. Estas
últimas passam a ser vistas a partir de padrões universais,
gerando expectativas equivocadas sobre as criações infantis
na busca por um desenvolvimento linear e padronizado de suas
produções. Com isso, fico me perguntando: quantas chances,
nós adultos e adultas não perdemos, de observar e aprender
com as crianças e suas criações, procurando, ao contrário,
encaixá-las – antes de encaixotá-las – em períodos de sua vida,
numa busca por encontrar com padrões do desenvolvimento
infantil. De certa forma, nos resignamos e ficamos acomodados
à espera de figurações futuras mais compreensíveis aos nossos
olhos revelando uma concepção que valoriza o vir-a-ser adulto
no que se refere à criação de desenhos. Vale sublinhar que
não apenas no que tange a esta forma de expressão como a
tantas outras: a música, a dança, ao seu jeito de brincar e
construir suas culturas...
Retomo o pensamento de Klee (op.cit) citado acima,
para afirmar que o ato de desenhar, passeio com um fim em si
mesmo, sem metas, apresenta-se como jogo desinteressado –
porém não desprovido de um processo de pesquisa efetivado
pela própria criança – tanto quanto brincar com amigos, com as
professoras, com membros da família ou sozinho. Ao ser
considerado sem metas, inibe a colocação do mesmo com fins
de avaliação do processo de desenvolvimento psíquico da
criança, o que engessa a prática do desenho, tanto pela criança,
quanto pelo adulto naquilo que ele passa a impor como molde
a ser seguido e com isso enquadrando sua criação. Vale lembrar
que as crianças, inventivas que são, encontram escapatórias a
tais imposições transgredindo-as criando e recriando a partir
de modelos, deixando marcas em suas criações ainda que
tornadas invisíveis em certos momentos nos espaços escolares

122
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

o que tem ocorrido em todos os níveis de ensino, valendo


lembrar que quanto maior é a criança, menor é a possibilidade
de expressar-se utilizando diferentes linguagens.
Embora tenha enfatizado uma preocupação com a
ausência dos pequenos e pequenininhos e suas criações
tomando as paredes e demais espaços públicos por eles
frequentados, não é possível fazer vistas grossas quanto à
carência pela qual passa o ensino fundamental de exibir as
criações de seus meninos e meninas que, maiores em idade,
não deixaram de ser crianças e inventivas, portadoras de direitos
de construir suas diversas dimensões criativas.
Torna-se interessante observar, quanto aos
desenhos das crianças pequenininhas e pequenas que os
mesmos entram em diálogo com o corpo todo, relembrando o
que dizia Mário de Andrade, no início do século XX, afirmando
que a criança desenha com o corpo todo, emprega a palavra, as
batidas do ritmo, cantarola, desenha (1976). Ao fazer isso, a
própria criança propõe pensar sobre dinâmicas únicas à sua
criação que, volto a mencionar, tantas vezes nos escapa,
sobretudo quando a silenciamos. Trata-se de considerar a
presença da plurisensorialidade das crianças, traduzida e
materializada em suas criações. É procurar garantir suas
descobertas e percepções como pesquisadoras, sem
evidentemente, impor-lhes o formato acadêmico, técnico e/ou
didático que pressupõe a pesquisa, didatizando extremamente
suas descobertas e transformando-as em aulas teóricas para
crianças muito pequenas. Apresenta-se uma oposição marcada
em relação a métodos de ensino da arte que caracterizaram o
Brasil no século XIX3, e propõe a descoberta de traços perdidos
ou ao menos que os já existentes não sejam dissipados, mas
ao contrário nutridos.
Permito-me lembrar e citar uma rica experiência,
vivida por mim no ano de 2005, como professora de escola
municipal de educação infantil da cidade de São Paulo, na qual
Matheus4, então com quatro anos de idade, ao desenhar criava
sons para cada traço deixado no papel, e num ziguezaguear de
linhas cada qual se tornava simultaneamente traço e música em
seus gestos, um papel sonoro ou um som desenho, lamentava-
me, no instante mesmo em que assistia àquilo: que pena que o
papel ainda não possa ter esse registro que conjuga o som e o

123
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

desenho, fora dos desenhos realizados no computador, numa


ansiedade por registrar tal experiência. Corpo-papel-som de
forma aparentemente involuntária, coadunavam-se instigando
a criação de desenhos sobre uma folha branca.
O prazer expresso pelo menino Matheus irradiava
a seu redor e provocava o deleite de vê-lo criar e sacolejar
rabiscos deixando suas marcas sobre o papel. Eu, com toda
atenção voltada para o menino diante de certo langor e delírio,
deliciava-me ao ver este abandono, hipnotizado e vivo integrado
e distante de todos: menino e folha, fora e longe e tão dentro
daquilo que criava. Bonito de ver e eu envolta nesta situação
da qual participava observando num breve recorte de tempo.
Posso afirmar que Matheus estava dentro do desenho,
arrebatado pelo ato criador e criava.
Paul Valery (2003), ao escrever sobre o desenho, e
em especial, observando a obra de Degas, afirmará que somente
nossos olhos e nossos olhares não são suficientes no
comando da mão para que a mesma desenhe. Dirá ainda que
muitas etapas intervêm e o traçado visual transforma-se em
traçado manual. Afirmará Valery:

O artista avança, recua, debruça-se, franze os olhos,


comporta-se com todo o corpo como um acessório
de seu olho, torna-se por inteiro órgão de mira, de
pontaria, de regulagem, de focalização. (p. 71)

É possível considerar essa afirmação de Valery


naquilo que toca as crianças pequenas, sobretudo as
pequenininhas quando em seu processo de criação: o corpo
não se reduz apenas ao olho e à mão que desenham ou copiam:
eles tornam-se unos. Relembrando ainda mais uma vez do
Matheus que desenhava ritmando seus traços, o que ele fazia
sem a intencionalidade de um artista, era também esquecer o
nome das coisas que via entregando-se a vê-las com uma
inteireza impar, de forma ainda misteriosa para mim, embora
venha pesquisando essa temática há alguns anos. Trazendo
novamente à tona Valery escrevendo sobre Degas (2003), este
último dirá que não há arte que abranja mais a inteligência do
que o desenho, dado a complexidade que envolve seu fazer, é
um processo que encerra muitos elementos originando

124
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

maneiras de operar que incluam o ler e o pronunciar dentro de si


uma forma antes de escrevê-la. (p.114). Acrescento que sua
afirmação não deixa de ser provocante, pois renunciamos à
capacidade de observar sob diferentes pontos de vista, ou
mesmo à complexidade presente no ato de desenhar das
crianças. A ideia se faz obedecer, se enriquece e transforma-se
ao ser colocada sobre o papel ou demais suportes.
Esses rabiscos consistem em marcas, realizadas
como num jogo em que há narrativas, imaginações, inventividade,
mobilizadas a partir do convite feito pelos diferentes suportes
que serão desenhados e dos próprios adultos e adultas que
se relacionarão com essa criação e com as suas criadoras.
Através de tais marcas busca-se conhecer, reconhecer-se e ser
reconhecido.
Segundo Mele (2003), tais rabiscos são propulsores
de elaboração criativa constituindo assim uma pesquisa pessoal
da criança que é elaborada por ela mesma. Trata-se de um
diálogo entre gesto, papel, meninos e meninas e isto resulta
em fontes documentais (GOBBI 1997/2004) das marcas de si
deixadas para a História tanto pessoal, quanto coletiva dessas
crianças. Nesse sentido, afirmo a importância de considerarmos
tais criações não como estágio zero de uma futura figuração.
Tal afirmação é partilhada por Fábio Guindari, na revista italiana
Cooperazione Educativa (fevereiro de 1982), que afirmará que mais
do que um estágio, o rabisco é uma pesquisa pessoal da criança,
um levantamento de hipóteses, seu estilo. Ao afirmar que a
criança pequena tem seu estilo próprio Guindari (op.cit.), traz
para a discussão algo já bastante claro no mundo de artistas
adultos, no qual o estilo é visto como expressão que se refere
exclusivamente a este universo sendo um fator de ordem
cultural exprimindo determinados contextos históricos,
concepções de vida do homem, mentalidade5.
A partir dessa ideia, podemos nos persuadir, como
tenho insistido, de uma visão que não concebe a produção das
crianças como reveladora de sua incapacidade. Não se trata de
incapacidade técnica; essas crianças pequenininhas têm em
seus desenhos uma relação de prazer que reside, antes, em
suas descobertas. Poderíamos afirmar que se trata de um
projeto de pesquisa que elas têm em mãos que é executado
com todos os sentidos, num conjunto de linhas e cores

125
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

dispostas em ordens diversas antes de ser uma representação


de algo.
Mele (2003) afirmará que a ordem e o caos convivem
nas criações, porém os rabiscos das crianças ficam no imaginário
dos adultos como sinônimo de algo que fere aos padrões
estéticos vigentes, apresentando-se então como feios, ou
percebidos como caóticos. A partir desta convicção tomam para
si a tarefa de fazer com que as crianças superem tais traçados
incompreensíveis, um desejo que demonstra, ainda que
sutilmente, um modo de controlar e dominar não apenas os
traços, mas aqueles (as) que os criam, reafirmando a
superioridade do saber lógico, racional, das ideias claras e
distintas pertinentes à compreensão e ao modo de ver e ser
adulto.
Se, como afirmava Degas (apud Valery), o desenho
não é a forma, é a maneira de ver a forma (p.159), segundo o
modo de ver de muitos de nós adultos, tais rabiscados carecem
de uma maneira de olhá-los mais profundamente sem procurar
ordenar o caos, ou seja, numa procura pela representação fiel
da realidade.
É importante que nós também possamos nos
maravilhar. É encontrar e criar. É encontrar e criar momentos, é
“dar-se mais tempo o tempo da infância que ainda é diferente
do tempo da indústria, no qual os trabalhadores não mais se
reconhecem naquilo que produzem tal o ritmo frenético que é
imposto à produção, e a todos os operários envolvidos com a
mesma, para deixar-se encantar, ousaria afirmar que chegando
a contrariar de forma até mesmo revolucionária, modelos rígidos
de utilização do tempo impostos pelo capital6. Quanto tempo
deveria ser dedicado à observação das criações infantis?
Quando afirmo a importância do tempo do lúdico e que
deixemos o tempo do capital, remando, sobretudo, contra a
maré da globalização e do neoliberalismo, associo isto a formas
de ver e de favorecer o desenho que incorporem um tempo
mais lento, que aprecie o que se vê e o que se faz. Trata-se de
imprimir a isto também um caráter político.
A polissensorialidade – que vai além do encontro
entre o oral e o escrito – é evocada provocando mergulhos a
partir de experiências que materializam as ideias, as procuras,
as hipóteses elaboradas discutidas ou não numa fusão que

126
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

expressa o processo criador muito mais do que a necessidade


de um produto final, investigando o desconhecido ou, num
exercício brilhante e não menos difícil, estranhando aquilo com
que há tempos já têm contato e com isso propõe uma nova
síntese das experiências visuais do homem numa alquimia
traduzida em desenhos: linhas, cores, manchas, traçados, tantas
formas que vão se revelando.
Eu diria, sem receio de ser prescritiva, que é
necessário transformarmos a curiosidade num verbo e conjugá-
lo diariamente, sem deixar que as incertezas interrompam esse
caminho. Ao contrário, que a curiosidade provoque
deslocamentos e se espalhe em nosso cotidiano. Tais
possibilidades de questionarmos sobre nossas concepções
sobre o belo, sobre lugares já cristalizados e mudá-los para
outros, invoca também a oscilação dos estados de ânimo, a
exaltação, a alteração do que outrora estava em aparente
equilíbrio; é dispor-se ao encontro numa experiência estética.
Em certa medida trata-se de estranhar essas criações
aparentemente comuns aos nossos olhos. É o estrangeiro que
emerge, como se chegássemos a uma cidade estranha sem
conhecer os costumes da população local, sua língua, suas
formas de estabelecerem relações sociais, despindo-se de ideias
prévias sobre o objeto de observação. Naquilo a que estou
chamando de ideias prévias creio que seja possível
encontrarmos algumas matrizes teóricas que têm estabelecido
nosso pensamento sobre os desenhos das crianças. Uma
destas origens encontra-se presente no debate renascentista
entre os artistas do período que versava sobre o desenho e a
cor. Rivalidades de opiniões foram geradas voltando-se para o
apontamento do desenho como expressão que deveria
prevalecer pela técnica e beleza em relação à cor e sua
autonomia tal como faziam acreditar Kandinsky e Matisse no
início do século XX.
É interessante trazer à tona a formação do
pensamento e práticas na arte, pois ficamos prenhes das
mesmas e passamos, talvez sem perceber, a olhar segundo o
que tais concepções apontam. Quando a defesa em torno da
utilização da cor como algo que tornará os objetos dotados
de alma e vida e de beleza que supera aquela apresentada pelo
desenho, isso declinará o traçado sem cor de um desenho a

127
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

lápis, sem colorido mais intenso. O desenho como algo que


pode prescindir de um aprendizado escolar, pode levar o adulto
a esperar a oportunidade de ensino e o enquadramento do
mesmo procurando atingir sua excelência. Isto, quando presente
no imaginário escolar do adulto, pode resultar na antítese
desenho de imaginação e desenho observação quando uma
maior proximidade com o real era esperada.

Os ddeesenho
senhoss ccomo
omo metáf
metáfor
oraas visuais
áfor

[...] Devemos nos preocupar menos com que coisas


ensinar às crianças e mais com seu processo de
criação. É a criança inventiva que emerge. (Gianfranco
Staccioli)

Até o momento o que fora abordado voltou-se para


ressaltar a importância de construirmos olhares para os traçados
coloridos ou não, criados pelos meninos e meninas
pequeninhos, valorizando-os. Vale ressaltar que são seus
registros visuais que nos permitem descobrir não só curiosas
representações, mas que os mesmos não são fotográficos, são
momentos e formas nos quais as crianças conseguem mostrar
suas pesquisas, explicá-las, torná-las públicas, de forma flexível.
Os traços não são apenas produtos motores, considerando as
diferentes possibilidades de representações por imagens, e que
envolvem mais do que habilidades físicas e corporais.
Staccioli (2002) afirmará que esses traços poderão
ser casuais como produtos, mas não como intencionalidade,
são também as expressões dos desejos de compor misturas
de cores e formas. O olhar que indaga torna-se fundamental,
não se apresentando apenas como atônito, boquiaberto, mas
sim investigando, é procurar com as crianças a pesquisa, o
levantamento de hipóteses feito por ela própria, são os
registros de pensamentos fluentes num tempo. Às vezes, esse
tempo, quando se apresenta de modo escolarizante, mostra-
se em períodos curtos e ainda muito inflexíveis, nos quais priva-
se o processo criador voltado para os desenhos ou mesmo as
esculturas, danças, cantorias, limitando-o e privilegiando algumas

128
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

outras áreas de conhecimento e a construção de outras


dimensões humanas.
Se procurarmos garantir um cotidiano em festa, em
contentamento engajado, nos comprometemos em ampliar a
dimensão criativa, criadora e estética do dia-a-dia de meninos e
meninas, bem como, daqueles que com eles e elas trabalham.
Staccioli (op.cit) chama nossa atenção para que
consideremos os desenhos das crianças como metáforas
visuais que revelam a capacidade de projetar, coligar dispositivos
entre categorias diversas. Cita como exemplos como as crianças
poderão usar os desenhos para explicar abstrações como o
amor, a alegria, o futuro. Trata-os como “repensamentos”, como
devaneios, originados da imaginação, daquilo que veem e que
conhecem, o que deveria ser alimentado constantemente.
Quanto às metáforas trata-se de vê-las de forma a declinar a
realidade vista de forma banalizada. É reescrever a realidade,
romper categorias anteriores, estabelecer diferentes vínculos
com o que já fora visto. O mesmo autor alega que vivemos em
uma realidade que é metafórica, a vivemos metaforicamente.
Há um comércio de pensamentos, uma transação entre
contextos. A metáfora vem representada como um grande
espaço no qual se encontram o concebível e o inconcebível,
criança e o adulto, espaço no qual se provocam as reflexões e
pensamentos. São imagens vivas, fascinantes que dão conta
da riqueza do mundo infantil.
Desenho, brincadeira, todas as formas de expressão
das crianças tornam-se grandes, e agigantam-se,
proporcionando que o prazer das descobertas, das elaborações,
torne-se alegria e se constitua como um currículo que não
engesse a todos, adultos e crianças, ao transformar seu
cotidiano em antecipação da escolarização, gradeado por
muros invisíveis que se tornam tão claros quando percebemos
o conhecimento fragmentar-se em áreas que pouco ou nada
dialogam entre si. As marcas da ansiedade pelo amanhã
encontram-se presentes quando, no dia-a-dia das crianças
pequenas somente há espaço para o desenvolvimento de
atividades já preparadas – ou pré paradas? – que consistem em,
ano após ano, desenvolver-se do simples ao mais complexo,
do pequeno ao grande, do concreto ao abstrato, revelando
que cada fase da vida da criança na escola está em função dos

129
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

momentos sucessivos e da superação das passagens previstas,


atingindo graus mais elevados, e afirmo, tornando a criança
pequena, cada vez mais, um aluno com as características –
negativas - daqueles frequentadores do ensino fundamental7.
Como afirmará Staccioli (2000, p. 5),

Deve-se substituir a ânsia pelo amanhã pela riqueza


do hoje, acolhendo o presente (com todas as
surpresas, contradições que ele comporta) sem
deixar de traçar o futuro; olhar para a infância agora
e não como algo que dará frutos amanhã; observar
suas capacidades de inovar que enriquecem também
aos adultos.

Esta proposta, contudo, não significa tornar a


criança, concebida neste texto como não aluno no que pode
ser tomado como laissez-faire revisitado e presente nas escolas.
Não se trata de deixar de lado aspectos relacionados com as
áreas de conhecimento que serão trabalhadas no interior das
escolas de educação infantil. Uma preocupação tão presente
entre as professoras, que elas chegam a transformar algo que
demonstra questionamento sobre a profissão, e até mesmo
sua formação, em didatização completa dos conteúdos e, com
isso, antecipar o ensino fundamental em seus piores modelos.
Os olhares das profissionais que estejam com essas crianças
devem de fato estar junto delas, (sem esquecer que as crianças
devem ter um tempo para ficar somente com seus pares de
idades iguais ou diferentes, brincando, trocando ideias),
transformando em tempo do lúdico o tempo do capital, do qual
já estão impregnadas, o que significa também um processo
revolucionário na educação infantil. Esses olhares devem estar
atentos, problematizadores, capazes para colher no que está
explícito, e também implícito nas crianças, informações para
construir uma jornada de trabalho coerente, para organizar
melhor o espaço e o tempo, dando forma às criações, à
exuberância das crianças, seus projetos, considerando sua
diversidade.
Tudo parece bem simples. Contudo, para que isso
ocorra, há a necessidade de uma formação que contemple a
construção de práticas pedagógicas, nas quais a própria
professora comece a desenhar, pintar, dançar, fazer esculturas,

130
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

brincando com argila e outros materiais. Aposto em um mundo


de artistas? Não, nem eu mesma sou. Trata-se de uma
preocupação como professora de crianças pequenas e
interessada em saber como elas são, e não apenas em dizer
como devem ser e que procura apresentar a redescoberta do
traço perdido da infância que ainda resta em nós mesmos. Daí,
o fato de estar com as crianças e aprender com elas a partir
delas mesmas torna-se muito mais tranquilo.
A especificidade dessa profissão reside nisto
também. Para eu ter as manifestações humanas e suas formas
de expressão diluídas nestes territórios da infância, é necessário
tê-los em minha vida, o que passa pela formação que recebo.
Para tanto, aliar os campos teóricos – quais os conhecimentos
que foram e que estão sendo produzidos sobre a criança e as
áreas que a estudam – aos campos da prática com ela é
fundamental. Em nosso percurso acadêmico de formação de
professoras somos distanciadas desta forma de conceber as
crianças e suas criações, e também nos reduzimos a
receptáculos de informações, tantas vezes. Perdemos, assim, a
oportunidade de aprender com elas, para daí termos novos
elementos para o debate sobre as orientações curriculares para
a educação infantil, uma porta aberta para outras discussões.
Assim, trata-se de pensar nas creches e pré-escolas não como
instituições escolares, tal como no ensino fundamental, mas
sim como territórios nos quais a criança possa ser criança, e
que nós, adultas, possamos perceber que sua vida é algo que
pode e deve ser vivido por inteiro.
No que se refere ao desenho é ainda comum vê-lo
presente em alguns momentos para a criança “descansar”, ficar
um tempo mais “quietinha” desenhando. Nesse sentido esta
expressão plástica adquire uma conotação nefasta: ele é útil
como elemento disciplinador, ao contrário de libertador da
expressão. Enquanto a criança desenha, ou pinta algo que foi
copiado para ela, na pior das hipóteses, ela não fala, não ri, não
pergunta, deixa seu ser criança de lado, dedicando-se a uma
atividade que, com isso, torna-se mais mecânica, destituindo a
imaginação e a fantasia do lugar em que deveriam estar junto
aos meninos e meninas.
Na construção de olhares que resultarão em
diferentes leituras das produções das crianças, há a necessidade

131
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

de um percurso metodológico. Segundo Staccioli (2002) um


primeiro momento desta trajetória encontra-se na capacidade
de maravilhar-se. Trata-se da maravilha e o acordar das
percepções. Condição indispensável. A maravilha não se
encontra só na capacidade de ser “maravilhado” de qualquer
coisa. A maravilha é a capacidade que algumas pessoas têm de
maravilhar-se. É valorizar o universo infantil que é inevitável e
ricamente diverso dos mundos do adulto. No deslumbramento
proposto, trata-se de reconhecer nestas formas de viver das
crianças, as regras e as normas próprias para suas relações,
suas criações, que, ao serem reconhecidas podem colaborar
para o desenvolvimento de uma interculturalidade entre adultos
e crianças.
Staccioli (2002) toca em um ponto importante a ser
considerado. A perda de nossa capacidade de olhar e estranhar
o objeto olhado. As coisas cotidianas estão diante de nossos
olhos e não mais as vemos. Do mesmo modo, os desenhos
das crianças pequenas se encontram a nossa frente e não mais
os enxergamos. Reduzimo-nos à espera de algo que nos
suscite o estranhamento. Elas já estão tão presentes em nosso
dia-a-dia que não mais as estranhamos a ponto de nos
maravilharmos. Como diz Staccioli, perdemos a capacidade de
ler e dar sentido às formas deixadas pelas sombras e tantas
outras coisas simples que estão entrelaçadas em nosso
cotidiano.
Staccioli (2002) apresenta uma preocupação de
caráter didático: como exercitar o “amaravilhamento”; a
capacidade de observar e o desejo de tornar a observar,
descobrindo ainda as coisas que não tinham sido vistas? O olho
que se torna capaz de descobrir a riqueza do simples e do
habitual.
Suas preocupações nos instigam a refletir sobre a
formação dos (as) adultos (as) que lidam com a produção das
crianças, que podem olhá-las e recebê-las também procurando
seus próprios olhos de criança para vê-los sob outros aspectos
até então não apreciados ou mesmo, não conhecidos.
A construção de uma pedagogia voltada
especialmente para a primeira etapa da educação básica, aponta
para alguns momentos nos quais muitas lacunas são percebidas
entre o velho e o novo, o que sempre fizemos e o que estamos

132
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

aprendendo ou temos que aprender a fazer para produzir


diferente. Dessa forma, estar com as crianças, observar, preparar
junto com elas espaços privilegiados para se expressarem é
algo que estamos aprendendo e temos que aprender. Olhar,
ler seus desenhos, também é algo novo, já que desestabiliza
práticas profissionais que, têm se limitado a recolher as criações
apenas para pendurá-las, sem dialogar, e pior ainda, para colocá-
las em pastas ou saquinhos, dentro dos quais as vozes de seus
criadores ficam mais caladas ainda. Suas expressões apagadas.
Sua linguagem reduzida. E novamente, como afirmava Malaguzzi
(1999), no livro As cem linguagens da criança, das cem linguagens
resta apenas uma, já que roubaram noventa e nove. O que temos
que aprender é que ao contrário, as cem existem e devem rechear
nossos olhares e o espaço e o tempo vividos e construídos
pelas crianças.

Um ponto e nasce o mundo!


(MUNARI, 2005)

Notas
1
Utilizarei neste texto a expressão meninos e meninas por opção
de mencionar o gênero ao qual pertencem as crianças acreditando
que o mesmo possa marcar suas criações. Trata-se de considerar
no processo criativo a interligação do individual ao cultural
daqueles envolvidos com a criação e isto não é universal,
apresentando um modelo único.

2
A expressão crianças pequenas e pequenininhas refere-se a duas
faixas etárias: pequenininhas para aquelas com até três anos de
idade e pequenas de quatro a seis anos. Trata-se de uma tradução
do italiano da palavra picollissimi, já utilizado por mim em textos
anteriores e divulgada sobretudo, por Patrícia Dias Prado em seu
mestrado.

3
Ressalto que neste período a arte era vista como reprodução de
formas, enfatizando a cópia, a imitação, o desenho de observação.

4
Obtive a autorização dos pais deste menino para citar seu nome,
vale ressaltar que neste período eu atuava como sua professora
na escola municipal de educação infantil por ele frequentada.

133
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

5
Esta afirmativa é feita de forma categórica pela artista e
pesquisadora Fayga Ostrower (1977) que, embora considere o
processo de criação infantil o apresenta de forma linear e as formas
como se manifestam é simplesmente “infantil”, desta maneira
igualando a todas.

6
Vale lembrar que atualmente vivemos um período histórico no
qual muitas crianças veem-se privadas de usufruir seu tempo de
maneira mais flexível ou livre, as ruas, os quintais tornaram-se
espaços ora privados, ora restritivos quanto à possibilidade da
brincadeira. Outro fato refere-se à inserção precoce da criança
em diferentes tipos de trabalho ou mesmo à necessidade de
desempenhar muitas atividades escolares e extra-escolares,
dependendo da classe social à qual pertence.

7
Vale ressaltar que refiro-me à forma de tratamento castradora
que é utilizada tantas vezes em determinadas escolas de ensino
fundamental, que atarraxam as crianças em suas cadeiras e mesas
impedindo-as de viverem mais livremente sua infância inventando,
experimentando o mundo.

Refer
eferência
ênciass
erência

ANDRADE, Mário de. Aspectos das artes plásticas no Brasil. São


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136
ESCHER, ESPAÇOS
CURVOS E CORVOS:
SOBREPONDO JOGOS DE
LINGUAGEM VISUAL E
VERBAL1

Antonio Miguel

“Para entender o mundo temos que reconhecer que a


matemática e a poesia têm a mesma origem”. Foi nessa frase do
genial artista gráfico holandês Maurits Cornelius Escher (1898-
1972) que a professora Ana Lúcia Goulart me propôs buscar
inspiração para a minha fala nesta mesa2. E devido à natureza
dessa sugestiva e desafiadora proposta da Ana, eu decidi
explorar livremente esse problema proposto por Escher,
tentando conectá-lo ao tema das diferentes linguagens que está
posto, aqui, à nossa reflexão.
Há cerca de um mês, eu estava passeando em uma
livraria quando me deparei com um livro de capa bonita. O livro
era o História da Beleza, organizado por Umberto Eco (ECO, 2004).
Imediatamente, estabeleci uma conexão entre o tema do livro
e a fala que eu teria que fazer aqui, e resolvi folheá-lo na
expectativa de verificar de que modo Escher e a matemática

137
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

estariam, eventualmente, participando daquela história da beleza


organizada por Eco.
Para minha surpresa, em suas 430 páginas, a
matemática aparecia sim, mas nenhuma palavra sequer sobre
Escher ou sobre a sua obra. Sendo Escher um artista atípico, a
sua ausência me surpreendeu, sobretudo ao observar que, em
alguns dos capítulos de Eco, eram considerados temas nada
convencionais em reflexões de natureza estética, tais como A
Beleza das máquinas, A Beleza da mídia e A Beleza dos monstros.
Embora Escher estivesse ausente, é preciso
destacar o fato de que, dentre as diferentes concepções de
beleza que a obra considera – tais como, a beleza da natureza,
a beleza dos corpos humanos, das pedras preciosas, das roupas,
a beleza de Deus e a beleza do diabo –, uma delas diz respeito
à beleza das relações matemáticas, a qual é tratada, como eu
previa, em um capítulo denominado A Beleza como proporção e
harmonia. Fiquei, então, com a sensação de que o modo como a
matemática aparecia e o modo como ela não aparecia, nessa
obra organizada por Eco, acabava reforçando aquela maneira
típica - e bastante limitada - de se enxergar a matemática, como
algo que só teria a ver com números, com coisas bem
proporcionadas, com exatidão e com harmonia.
Mas, para mim, a obra de Escher não remete,
prioritariamente, a coisas desse tipo. E daí, para podermos
participar do jogo de linguagem visual3 subjacente ao mundo de
Escher, para podermos perceber como esse jogo dissonante
se aproxima tanto da linguagem matemática quanto da
linguagem poética, eu decidi compará-lo com o jogo estético
baseado na proporção e na harmonia. Falo, então, primeiro em
harmonia, e depois em dissonância.
Falar sobre proporção e harmonia nos remete ao
que vou denominar aqui concepção euclidiana da estética, que
tanto pode estar associada a linguagens verbais quanto não
verbais. O termo euclidiano diz respeito a Euclides, matemático
grego que trabalhou no museu de Alexandria e que, no século
III antes de Cristo, escreveu a influente obra denominada Os
Elementos, na qual todo o conhecimento matemático produzido
até então, sob diferentes formas, por diferentes povos e em
diferentes contextos geopolíticos, foi concebido e posto sob
a forma de um jogo linguístico axiomático-dedutivo. O objetivo

138
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

desse jogo euclidiano parece ter sido a tentativa de demonstrar


a verdade de determinadas proposições – os denominados
teoremas – fazendo apelo exclusivo a algumas definições
prévias, a alguns enunciados considerados evidentes (os
postulados e os axiomas) e às regras de inferência propostas
pela lógica aristotélica. Tal lógica, como sabemos, está
assentada em três princípios fundamentais: o princípio da
identidade, que nos diz que todo A é A; o princípio da não
contradição, que nos diz que A e não-A não podem coexistir
simultaneamente; e o princípio do terceiro excluído, que nos
diz que diante de duas alternativas contraditórias, somos
obrigados a optar por uma e apenas uma delas, isto é, que não
podemos nem apelar para uma terceira alternativa e nem ficar
em cima do muro.
Mas, a rigor, quando falo em concepção euclidiana da
beleza, estou, na verdade, querendo significar concepção
pitagórico-platônico-aristotélico-euclidiana de beleza. Isso porque
proponho que essa concepção seja entendida em seu
processo histórico de construção, processo este iniciado pela
escola pitagórica, por volta do VI século antes de Cristo,
continuado, no século seguinte, por Platão e Aristóteles e
completado pela obra de Euclides no século III antes de Cristo.
Essa estética euclidiana que foi, então, em sua origem,
uma estética pitagórica baseada na elevação mística e apologética
das noções de número e de proporção, foi materializada na
arquitetura grega antiga. Este fato poderia ser constatado
através de uma análise geométrica dos próprios templos
gregos, no que se refere às relações proporcionais de distâncias
mantidas entre as diferentes partes de suas fachadas e
compartimentos.
A imagem do templo de Hefaístos4, por exemplo,
construído no 5º século a. C., ilustra visualmente o que estamos
aqui denominando concepção estética euclidiana. E, nesse sentido,
só uma análise da geometria do próprio templo, e não de sua
fotografia, poderia nos revelar o jogo linguístico pitagórico do
número e da proporção subjacente à linguagem visual
arquitetônica do templo de Hefaístos.
Mas esse jogo linguístico pitagórico do número e
da proporção, constitutivo da estética euclidiana, só pôde ter
sido utilizado na constituição arquitetônica de templos - isto é,

139
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

de casas de deuses - por ter sido, antes, considerado, pelos


pitagóricos, como inerente à constituição do próprio cosmos.
De fato, para os pitagóricos, o universo, isto é, o
mundo material, só existe porque é racionalmente ordenado, e
é racionalmente ordenado porque, nele, as coisas estão
espacialmente organizadas e bem dispostas segundo certas leis
que regem os números.
Parece ter sido através de uma experiência acústica
que Pitágoras teria chegado a estabelecer uma íntima conexão
entre proporção e harmonia.
De acordo com o filósofo, teólogo e estadista
romano Boécio (480-524), que viveu no sexto século depois
de Cristo, Pitágoras, ao passar por uma ferraria e ouvir os
distintos sons produzidos pelo bater de martelos na bigorna,
teria sido levado a levantar a hipótese de que a diferença entre
as alturas dos sons ouvidos poderia ser explicada, não pelas
diferentes forças com que os diferentes trabalhadores
golpeavam a bigorna, mas pelas diferentes massas dos martelos
que golpeavam a bigorna. Resolveu, então, testar essa hipótese
pesando quatro martelos cujos sons emitidos, quando ouvidos
simultaneamente dois a dois, produziam combinações
consideradas harmônicas por Pitágoras. Com base nessa
experiência acústica, constatou que as relações entre as alturas
dos sons simultâneos de cada uma das três duplas sonoras
tidas como harmônicas eram produzidas por martelos cujas
massas estavam na razão de 2:1; 3:2 e 4:3 respectivamente.
Em linguagem atual, as três relações sonoras que teriam sido
julgadas harmônicas por Pitágoras corresponderiam aos
intervalos musicais de oitava, quarta e terça. Esse experimento
de Pitágoras o teria levado ainda a perceber a existência de
uma proporção que poderia correlacionar essas três razões
consideradas harmônicas, qual seja, a proporção 12 : 9 = 8 : 6.
De fato, nessa proporção, os dois extremos, isto é, 12 e 6,
produzem a razão 2:1; o segundo e o quarto termos produzem
a razão 9:6 ou 3:2; e o terceiro e quarto termos produzem a
razão 8:6 ou 4:3. (BUNT; JONES; BEDIENT, 1988, p. 72-73).
Esse fato parece ter sido suficiente para que
Pitágoras concluísse que a harmonia musical poderia ser
expressa por números, ou, em outras palavras, que música e
matemática pareciam falar a mesma linguagem. Entretanto, uma

140
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

outra conexão ainda mais surpreendente foi estabelecida na


astronomia especulativa e mística dos pitagóricos, qual seja, a
de que dentre as relações numéricas que regulavam as
distâncias relativas entre os 10 planetas conhecidos até então
(neles incluídos o Sol, a Lua e a esfera das estrelas fixas),
novamente aparecia a proporção 12:9 = 8:6, que correlacionava
as relações sonoras dos intervalos musicais considerados
harmônicos no experimento acústico a que fizemos referência.
Os pitagóricos concluíram, então, não apenas que o universo
era harmônico, mas também que essa harmonia inaudível das
esferas celestes era causada por uma proporção formada por
números harmônicos (BUNT; JONES; BEDIENT, 1988, p. 83-84).
Desse modo, as relações numéricas, e mais
particularmente, aquelas relações que estabelecem proporções,
se revelam não só como condição de existência do mundo
material, mas também como critério de julgamento estético da
disposição espacial harmônica dos objetos e de suas partes.
Em outras palavras, a proporção numérica cria, explica e dispõe
harmoniosamente os objetos no espaço. A harmonia do
universo é produzida pela proporção numérica.
Essa concepção estético-aritmética do espaço físico
estabelece, assim, uma conexão inalienável entre proporção,
geometria, harmonia e beleza. E dado que, segundo essa
concepção, essa harmonia produzida pela proporção teria feito
parte do projeto arquitetônico dos deuses para a criação do
espaço físico em que vivemos, então, essa proporção
matemática deveria ser mais do que uma proporção dos
matemáticos; deveria ser também uma proporção divina, isto é,
uma divina proporção.
De fato, o projeto da ciência ocidental, a partir do
Renascimento, foi amplamente motivado pela tentativa de se
produzir uma linguagem matemática específica, isto é, uma outra
linguagem humana que pudesse traduzir fielmente a linguagem
divina ideal através da qual Deus teria escrito o Livro da Natureza.
Esse projeto foi claramente explicitado por Galileu quando disse
que Deus havia escrito o Livro da Natureza em linguagem
matemática, e que quem não entendesse essa linguagem não
poderia compreender sequer uma única palavra desse livro.
A linguagem matemática da divina proporção constitui
também a senha de entrada para a interpretação da linguagem

141
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

arquitetônica da Itália renascentista, e, mais amplamente, de toda


a cultura estética produzida nesse contexto. Particularmente,
na constituição dessa cultura estética visual aparecem nomes
de pintores, arquitetos e escultores ilustres, todos eles, também
teóricos da arte e, de algum modo, versados em cultura
matemática, tais como: Andréa Palladio (1508-1580), Leonardo
da Vinci (1452-1519), Filippo Brunelleschi (1377-1446), Leon
Batista Alberti (1404-1472), Piero della Francesca (c.1420 a 1492),
Michelangelo (1475-1564) e Luca Pacioli (c.1445-1517). Este
último foi o autor da obra sugestivamente denominada A divina
proporção, mas cujo nome integral é Suma de Aritmética,
Geometria, Proporção e Proporcionalidade, publicada na cidade de
Veneza, em 1494.
Um exemplo de aplicação da linguagem matemática
da divina proporção na época do Renascimento italiano é a
proposta arquitetônica do Palácio Chiericati5, construído entre
os anos de 1530 e 1580, na cidade de Vicenza, Itália, na qual se
percebe a preocupação do arquiteto que o projetou - Andréa
Palladio (1508-1580) - em recuperar perfeitamente o emprego
das formas clássicas e a harmonia que governa a relação entre
as suas diferentes partes, harmonia esta gerada pelo amplo
emprego das proporções áureas em colunas, portas e janelas.
O projeto arquitetônico do Renascimento italiano
foi amplamente motivado pela tentativa de se aproximar do
projeto arquitetônico ideal de Deus. Podemos verificar essa
motivação no óleo sobre tábua, de 1475, denominado Vista de
uma cidade ideal6, produzido pelo pintor italiano Piero della
Francesca (1410/20-1492), o qual não hesitou, mesmo, em
tornar visível aos olhos humanos, através da linguagem não verbal
da pintura, a cidade divina ideal, matematicamente fundada na
divina proporção. Mas que tipo de homem seria digno de habitar
esta réplica neoplatônica real da República platônica ideal?
Depois de Leonardo ter recorrido à linguagem
pitagórico-euclidiana ideal da divina proporção para se proceder
à leitura do corpo humano ideal - como se pode observar no
conhecido desenho do homem vitruviano7 de Leonardo -, e de,
em seguida, realizar uma autópsia literalmente anatômica desse
novo corpo humano simbolicamente humanizado, uma autópsia
da alma de seres humanos de carne e osso, dignos ou não de
habitarem a cidade ideal, deverá ser realizada por Sheakespeare.

142
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

De fato, a profundidade da perplexidade


shekeaspereana presente no “To be or not to be: that is the
question!”, em que Hamlet se vê envolvido na tentativa de provar
matematicamente - isto é, com a persuasão de uma
demonstração matemática - que o usurpador moralmente
imperfeito do trono da Dinamarca é o assassino de seu pai,
tem a medida da profundidade do binário princípio do terceiro
excluído em que se assenta a lógica aristotélica, e que afirma
que entre ser e não ser não se poderia nem ao menos se abster.
É por isso que a execução de seu plano de denúncia e punição
do assassino moralmente imperfeito de seu pai leva o
inicialmente virtuoso Hamlet a tornar-se tão assassino, perverso
e moralmente imperfeito quanto aquele que pretende punir. É
este o resultado plástico da tragédia sheakespereana, impossível
de se resolver no cenário lógico-geométrico binário da estética
euclidiana humanista.
Mas, o que acontece se tentarmos desafiar essa
concepção euclidiana de espaço e a concepção estética da
divina proporção a ela associada?
Penso que um passo nesse sentido se manifestou
na obra de alguns matemáticos do final do século 19, bem como
na obra de Escher, criadora de uma estética baseada, ainda que
não intencionalmente, em algumas características dessa nova
matemática. O que se segue, então, é uma tentativa de destacar
quatro características da linguagem visual escheriana que
poderiam ilustrar uma ruptura com o que estou aqui
denominando estética euclidiana. Com isso, estou querendo
significar que essas características da linguagem visual de Escher,
global ou parcialmente, poderiam atestar o estabelecimento de
um novo diálogo entre a linguagem das artes visuais e a
linguagem matemática.
Uma primeira característica que penso poder ser
atribuída à linguagem visual escheriana é a presença, em muitos
de seus desenhos gráficos, de mundos ou de projetos
arquitetônicos impossíveis de serem viabilizados no espaço
físico em que vivemos. Isso faz com que essa linguagem se
deixe orientar, ainda que não intencionalmente, por uma nova
concepção de espaço que está subjacente às chamadas
geometrias não euclidianas, as primeiras das quais foram
propostas, no final do século 19, pelo matemático russo Nicolai

143
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Ivanovich Lobachevski (1793-1856), pelo matemático húngaro


János Bolyai (1802-1860) e pelo matemático alemão Bernhard
Riemann (1826-1866). Após as exaustivas e infrutíferas
tentativas de demonstração do quinto postulado da geometria
euclidiana ao longo da história e o reconhecimento de que esse
quinto postulado era, de fato, um postulado, e não um teorema,
os criadores dessas novas geometrias tiveram a genial ideia de
substituir esse postulado euclidiano por outro, sem dar
importância ao fato de se o novo postulado se adequava ou
não àquilo que os nossos olhos pareciam nos informar e atestar
como verdadeiro acerca do espaço físico real. Acabaram, desse
modo, construindo outras geometrias tão internamente
consistentes quanto a euclidiana, e levantaram,
consequentemente, a surpreendente e inusitada questão acerca
da natureza do espaço físico em que vivemos. Seria ele, de
fato, euclidiano e homogêneo como inquestionavelmente se
supunha até então? Dada a diversidade de geometrias possíveis
e internamente consistentes, não seria, então, legítimo falar-se
também em uma multiplicidade de espaços possíveis e mesmo
de espaços dentro de espaços e mundos dentro de mundos?
Para ilustrar essa primeira característica da linguagem
visual de Escher, escolhemos a sua litografia, de 1960,
denominada Escada acima e escada abaixo8.
Ao observarmos essa obra, à primeira vista
totalmente plausível, o que nos chama imediatamente a atenção
é a originalidade do ângulo sob o qual se coloca o artista-
observador para a realização do desenho do castelo em
perspectiva. Entretanto, o desenho nos causa um leve
estranhamento quando nos damos conta de que o castelo está
praticamente suspenso no ar. Nada de cenários de fundo. Nada
de paisagem. A construção parece sustentar-se a si própria.
Parece constituir um espaço em si mesma, e não um objeto
contido no espaço. Mas um estranhamento mais forte se
manifesta – conduzindo-nos mesmo a um paradoxo
intencionalmente provocado por Escher – quando observamos
os pequenos monges, na parte superior do castelo, subindo
ou descendo a escada. Se acompanharmos o movimento
daqueles que estão subindo a escada, observaremos que, apesar
de estarem sempre subindo, eles acabam sempre retornando
ao mesmo ponto de partida. O mesmo ocorre com os monges

144
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

que estão descendo a escada. O estranhamento ou paradoxo


fica, então, por conta do fato de que sempre subir ou descer e
voltar ao ponto de partida é algo impossível de ocorrer no
espaço físico em que vivemos.
Mais do que aceitarmos esse fato como algo
possível de ocorrer em um outro espaço, como, por exemplo,
o mundo desse imaginário castelo escheriano, tendemos a ver
nele uma impossibilidade. E o passo seguinte, é tentarmos
explicar o que teria provocado essa ilusão no nosso modo de
olhar o castelo. Seria apenas através de um estudo
matematicamente detalhado do castelo de Escher que
poderíamos demonstrar ser esta construção arquitetônica
completamente inviável no espaço físico em que vivemos. Se
Escher tivesse, por exemplo, nos permitido olhar o seu castelo
por trás, perceberíamos imediatamente que toda a construção
se desmoronaria. Então, se aguçarmos ainda mais o nosso olhar
sobre esse castelo esquisito, onde ocorrem coisas esquisitas,
podemos perceber que o artista tentou iludir o nosso olho
com certos recursos visuais. Por exemplo, a escada por onde
circulam os monges, apesar dos degraus, está toda contida em
um mesmo plano paralelo ao plano da base do castelo. O que
cria, porém, a ilusão de que isso não ocorre no desenho é o
fato de que os caixilhos das janelas, internas ou externas, que
se encontram logo abaixo da escada, e que deveriam estar em
um mesmo plano paralelo ao da escada, movem-se para cima,
ou para baixo, estando, portanto, em planos diferentes, o
mesmo ocorrendo com as bases das colunas que sustentam a
parte superior do castelo (ERNST, 1991, p. 90).
Poderíamos, entretanto, olhar com outros olhos para
esse castelo esquisito e supostamente impossível de Escher,
de modo a torná-lo não tão esquisito e mesmo possível. Essa
possibilidade, como vimos, nos foi aberta pelo surgimento das
chamadas geometrias não euclidianas, as quais, não sem
discussões e conflitos no terreno da matemática, da filosofia e
da religião, acabaram gerando uma reavaliação da concepção
grega clássica de verdade e das concepções clássicas e
unitárias de espaço e de geometria.
A tela denominada The ancient of days9 (1827) do
poeta e pintor inglês William Blake (1757-1827), nos mostra que,
até mesmo na segunda década do século 19, ainda persistia

145
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

uma concepção divina da natureza, sendo a geometria euclidiana


a sua mais fiel expressão. De fato, essa obra nos sugere que
Deus, com um compasso na mão, estaria impondo à natureza,
no ato de sua criação, uma estrutura geométrica nos moldes
euclidianos.
O que os trabalhos desses novos geômetras e,
posteriormente, também os de Escher, acabaram por nos sugerir
é que o espaço físico não é um produto divino que uma única
geometria deveria fielmente retratar e a arte dar visibilidade. É
o cosmos que deveria se submeter a múltiplas interpretações
de diferentes linguagens humanas e não mais as linguagens
humanas submeterem-se a uma suposta interpretação única e
previamente divina do cosmos. E por não ser o espaço físico
em que vivemos um produto exclusivo da natureza, mas também
- e sempre - um espaço simbólico, isto é, um texto a ser lido e
interpretado e, portanto, passível de infinitas releituras humanas,
então, o espaço em que vivemos passa a ser concebido, não
mais como um mundo unitário, homogêneo e indutor de uma
única linguagem, mas como uma texto indutor de infinitos mundos
e jogos linguísticos. Devemos, portanto, falar, não mais em espaço
no singular, mas em espaços no plural.
Penso que essa primeira característica da linguagem
gráfico-visual escheriana também está presente na linguagem
estética da criação verbal da literatura. Acho que o livro As
Cosmicômicas, de Ítalo Calvino ilustra bem essa conversão. Como
o próprio nome sugere, As Cosmicômicas (CALVINO, 1992)
tematizam, de forma cômica - e num jogo de linguagem que
explora a dualidade entre lógica e absurdo - as fictícias
aventuras cosmológicas de um igualmente fictício herói, que
teria sido testemunha ocular da história do universo, desde
antes do big bang inicial. Escolhi uma passagem do capítulo
denominado A forma do Espaço, pois penso que ela traduz
bastante bem, em uma linguagem poético-alegórica, o jogo não
euclidiano de linguagem visual sugerido pela gravura Escada
acima e escada abaixo de Escher, a que acabamos de nos referir.
Sugiro, então, que vocês fiquem olhando para a gravura de Escher,
enquanto ouvem Calvino:

Cair no vácuo como eu caía, nenhum de vocês sabe


o que isso quer dizer. Para vocês, cair significa, por

146
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

exemplo, cair de um avião, ou tombar do vigésimo


andar de um arranha-céu; precipitar-se de cabeça
para baixo, bracejar um pouco no ar, e logo a terra
vem se aproximando e levamos um grande tombo.
Pois lhes falo, ao contrário, de um tempo em que
não havia embaixo nenhuma terra nem coisa alguma
de sólido, nem mesmo um corpo celeste na distância
que pudesse nos atrair para a sua órbita. Assim, eu
caía indefinidamente e por um tempo indefinido.
Afundava no vazio até o limite extremo em cujo
fundo é imaginável que se possa afundar, e lá
chegando via que esse limite extremo devia ser
muito, mas muito mesmo mais abaixo,
extremamente longe dali, e continuava a cair para
alcançá-lo. Não havendo pontos de referência, não
tinha idéia se a minha queda era precipitada ou lenta.
Pensando bem, não havia provas sequer de que eu
estivesse de fato caindo. Talvez, eu estivesse
permanentemente imóvel no mesmo lugar, ou me
movesse no sentido ascendente. E visto que não
havia nem em cima nem embaixo, tudo não passava
de questões nominais e dava no mesmo continuar
pensando que caía, como era natural que pensasse.
(CALVINO, 1992, p.115-116)

Uma segunda característica da linguagem escheriana


diz respeito ao amplo emprego de uma concepção dinâmica e
transformacional do espaço. Embora não intencionalmente
conectadas, uma proposta dessa mesma natureza, surgida,
porém, no terreno da geometria, foi apresentada e defendida,
no final do século 19, pelo matemático alemão Christian Felix
Klein (1849-1925). A importância dessa proposta de Klein - que
é hoje conhecida nos meios matemáticos como Programa de
Erlangen, pelo fato dele ter apresentado, pela primeira vez, essa
proposta de pesquisa em sua aula inaugural na Universidade de
Erlangen, na Alemanha, como exigência para a assumir o cargo
de professor titular nessa universidade - se deve ao fato de
Klein ter nela apresentado um projeto concreto de
relacionamento entre os diversos tipos de geometria
produzidos, desde a época de Euclides até o final do século
19, quais sejam, a própria geometria euclidiana, a geometria das
semelhanças, a geometria projetiva, a topologia e as geometrias

147
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

não-euclidianas (ASHURST, 1985, p. 124).


Mas o aspecto verdadeiramente revolucionário da
proposta de Klein foi a sua defesa de uma nova forma de se
conceber o objeto de estudo da geometria, concepção esta
baseada nas noções de movimento e de transformação. O que
Klein estava querendo dizer com isso era que o geômetra não
deveria mais se ocupar com o estudo estático das figuras e de
suas propriedades consideradas em si e por si mesmas, mas
sim com o estudo dinâmico das propriedades de uma figura
que se revelassem invariantes após ser submetida a vários tipos
de transformações (CAMPEDELLI, 1970, p. 27-41). Por exemplo,
todos nós, certamente, já observamos o nosso rosto em um
daqueles tipos curvos de espelho, denominados côncavos ou
convexos, e demos muitas risadas com a nova forma que o
nosso rosto assume nesses espelhos. Com base nos trabalhos
de Klein, os matemáticos diriam que, quando nos observamos
num desses espelhos, o nosso rosto passa por uma
transformação topológica, sendo que algumas das propriedades
geométricas de nosso rosto original são modificadas mediante
esse tipo de transformação, ao passo que outras são
conservadas. Por exemplo, a distância entre os nossos olhos
se modifica, mas a localização original de nosso nariz, entre os
nossos dois olhos, permanece invariante.
Muitas gravuras de Escher exploram o movimento
e a transformação. Uma delas, por exemplo, é a litografia
denominada Varanda10, de 1945. Nela, é como se Escher tivesse
feito o desenho, não de uma varanda tal como a veríamos em
um edifício estruturalmente viável no espaço físico em que
vivemos, mas de uma varanda topologicamente transfigurada,
tal como poderia ser vista em um espelho convexo.
Uma outra xilogravura de Escher que explora o
movimento e a transformação é a denominada Céu e Água 111,
de 1938. Nela, o tema da transformação é explorado de forma
mais sutil e menos evidente. Deve-se atentar, antes de mais
nada, para o jogo entre o preto e o branco e para a
transformação do preto em branco quando o nosso olhar se
movimenta da água para o céu. Mas deve-se observar também
que os peixes brancos na água negra se transformam, sutilmente,
em aves negras no céu branco. E mais ainda, que o espaço
delimitado, na água negra, por três peixes brancos vizinhos

148
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

que formam um triângulo é sempre uma ave negra, e que o


espaço delimitado, no céu branco, por três aves negras vizinhas
que formam um triângulo, é sempre um peixe branco.
Já em uma xilogravura de 1939, denominada Dia e
noite12, esse mesmo jogo transformacional entre o negro e o
branco é acionado. Só que, agora, ele opera sobre aves e
terrenos cultivados. Quando elevamos o nosso olhar de baixo
para cima no desenho, os terrenos brancos cultivados vão,
sutilmente, se transformando em aves brancas que voam para
a direita, e os terrenos pretos, por sua vez, vão se
transformando em aves negras que voam para a esquerda. Mas
essas transformações sutis não se operam unicamente de baixo
para cima, ou de cima para baixo, mas também, da direita para a
esquerda e da esquerda para a direita. Desviando, agora,
lentamente, o nosso olhar da direita para a esquerda,
percebemos que a paisagem noturna da direita, para onde se
encaminham as aves brancas, vai lentamente se transformando
na paisagem diurna do lado esquerdo, paisagem esta que, é o
reflexo, em um espelho plano, da mesma paisagem noturna.
Um exemplo mais de movimento e transformação é
o da xilogravura de 1937 denominada Metamorfose I13. Nela, se
movimentarmos o nosso olhar da esquerda para a direita,
seremos surpreendidos pela sutil e refinada transformação de
uma pequena cidade à beira mar em uma série de cubos, os
quais, por sua vez, se transformam gradualmente em bonecas
chinesas que só ficam perfeitamente caracterizadas pela figura
da última boneca situada na extrema direita do desenho.
Bem, após ter sugerido que essa segunda
característica da obra de Escher poderia ser lida através da
linguagem da geometria transformacional de Félix Klein, quero
também sugerir que ela poderia ser lida através da linguagem
poética. Para ilustrar isso, o autor que imediatamente me veio à
mente foi o poeta romano Ovídio (43 a.C – 17 d.C). E dentre as
obras que ele escreveu, a que melhor se adapta à nossa intenção
é, sem dúvida, um livro de poemas denominado Metamorfoses
(OVÍDIO, 2003). Primeiro, porque o Metamorfoses de Ovídio traz,
ao mesmo tempo, poemas de amor e de ódio, o que nos remete
imediatamente ao jogo escheriano da dualidade
transformacional entre o branco e o preto, o dia e a noite.
Segundo, porque o Metamorfoses de Ovídio, tal qual a obra de

149
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Escher, explora o tema da ambiguidade, isto é, ao mesmo tempo


em que se afirma como uma obra de ficção, de acontecimentos
impossíveis, tais acontecimentos nos conduzem também a uma
forte aproximação com a realidade. Dessa obra, eu selecionei
uma passagem do poema de amor intitulado Apolo e Dafne
(OVÍDIO, 2003, p. 22-23). Tal poema envolve também os
personagens mitológicos Cupido, o anjinho da flecha fatal que
todos nós conhecemos bem, e Peneo, pai de Dafne, deus dos
rios na mitologia grega. Eu gostaria que vocês intermeassem a
leitura desta passagem do poema de Ovídio com visadas da
xilogravura Metamorfose I de Escher, a fim de sentirem o efeito
estético da tentativa de sobreposição de jogos de linguagem
verbal e visual:
A primeira moça que Apolo amou foi Dafne,
Cujo pai era o deus dos rios, Peneo,
E não foi por obra do destino, mas pelo capricho
de Cupido
Que bateu asas, pairou nos ares, e desceu até as
sombras de Parnasso.
De lá trouxe vários tipos diferentes de flechas,
Uma para despertar o amor, dourada, afiada,
cintilante,
A outra, rombuda, e com ponta de chumbo, para
levar embora todo o amor,
E essa flecha grossa ele usou em Dafne, mas
apontou a outra, a afiada,
de ponta dourada, para Apolo, perfurando-o até
os ossos, através da medula,
E no mesmo instante Dafne fugiu do apaixonado,
Refugiando-se nos lugares mais secretos da
floresta.
Assim corriam o deus e a garota, um veloz,
esperançoso,
A outra aterrorizada, mas ele é mais rápido,
Levado pelas asas do amor, não dá descanso a
ela,
Sua sombra encobrindo seus ombros, respirando
nos seus cabelos revoltos.
As forças dela desaparecem, esgotadas pelo
longo esforço do longo vôo;
Mortalmente pálida, olha para o rio de seu pai, e
grita:

150
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

“Ajuda-me! Se existe algum poder nos rios,


que ele transmute e destrua o corpo que
despertou tanta adoração!”
E mal ela havia terminado a frase,
Seus braços ficaram entorpecidos e pesados;
Seus seios macios fecharam-se num delicado
tronco, seus cabelos viraram folhas,
Seus braços, ramos, e seus pés velozes criaram
raízes,
E sua cabeça transformou-se na copa de uma
árvore.
Tudo se transfigurou, exceto sua graça, seu brilho.
Apolo a amou mesmo assim.
Colocou as mãos onde desejou tocá-la,
E sentiu o coração ainda pulsando sob o tronco;
E abraçou os ramos como se ainda fossem braços,
e beijou a madeira,
E ela vibrou com seus beijos,
E o deus exclamou: “Já que você nunca poderá ser
minha noiva,
Minha árvore pelo menos você será!”

Essa passagem do Metamorfoses de Ovídio me fez


lembrar das palavras do matemático e lógico alemão Friedrich
Ludwig Gottlob Frege, que se notabilizou pelo trabalho que
realizou no campo dos fundamentos da matemática.
Depois de ter se maravilhado com a mudança
qualitativa experimentada pela matemática a partir de meados
do século 19, e sobretudo com o surgimento das novas
geometrias, Frege expressou do seguinte modo a sua forma
de conceber o objeto da geometria:

[...] As verdades da Geometria governam todas as


coisas que for possível intuir espacialmente, sejam
reais ou produtos da nossa imaginação. As
fantásticas visões do delírio, as magníficas invenções
da lenda e da poesia, onde os animais falam e as
estrelas se imobilizam, onde os homens se
transmutam em pedras e as árvores se tornam
homens, onde as pessoas se salvam do afogamento
puxando-se a si próprias pelos cabelos – tudo fica,
na medida em que for objeto de intuição, submisso

151
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

aos axiomas da Geometria. (FREGE apud BARKER,


1976, p. 72)

Uma terceira característica da obra de Escher diz


respeito ao amplo emprego intuitivo da concepção de infinito
atual presente na teoria dos números transfinitos proposta, no
final do século 19, pelo matemático russo Georg Ferdinand
Ludwig Philipp Cantor (1845-1918).
Até a primeira metade do século 19, a noção de
infinito com que operavam os matemáticos era a de infinito
potencial. Tanto Aristóteles, no século quarto antes de Cristo,
quanto o filósofo Immanuel Kant, no século 18, já haviam
chamado a atenção sobre a impropriedade do uso da noção de
infinito atual, devido ao fato dela levar a contradições, paradoxos
ou antinomias em nosso raciocínio. Defenderam, então, o uso
exclusivo da noção de infinito potencial, que está ligada à ideia
de não exauribilidade de uma grandeza, quer quando a ela vamos
acrescentando partes indefinidamente, tornando-a sempre
maior, quer quando a submetemos a divisões sucessivas
indefinidamente, tornando-a cada vez menor.
O que Cantor acabou fazendo foi mostrar a
necessidade e importância do uso da noção de infinito atual no
terreno da matemática, a qual está baseada na ideia de
autorreflexividade ou autorrepresentatividade. Essa ideia tornou
possível a Cantor comparar conjuntos infinitos em matemática,
chegando a conclusões assombrosas, à época, tais como, por
exemplo, à ideia de que a quantidade de pontos de um pedaço
qualquer de uma reta é igual à quantidade de pontos da reta
toda, fato este que, flagrantemente, feria o postulado euclidiano
de que o todo é sempre maior do que quaisquer de suas partes.
A noção de infinito atual pode ser ilustrada pelo
exemplo do mapa idealmente perfeito. Estamos todos nós aqui
no interior desta sala. Suponhamos que eu decida fazer um
mapa idealmente perfeito desta sala, com tudo o que ela contém.
Então, vou ser obrigado não apenas a desenhar no papel todos
os objetos e todas as pessoas que se encontram aqui na sala,
como também vou ser obrigado a me desenhar fazendo o mapa
no papel. Como se pode perceber, o primeiro mapa que decidi
fazer deverá conter a si próprio, e eu, que estou realizando o
mapa, deverei representar-me a mim mesmo, como a mão que se

152
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

desenha a si própria, na provocadora litografia de Escher, de


1948, denominada Desenhar14.
Penso que ninguém melhor do que Escher explorou
essa ideia de infinito atual em suas obras, tornando acessível
aos olhos uma noção que, até então, só fazia parte da linguagem
matemática abstrata e formal.
Vamos considerar agora uma litografia feita por
Escher em 1935, denominada Mão com esfera refletora15. Em
termos geométricos, poderíamos dizer que estamos diante de
uma transformação topológica do espaço de uma sala e de
todos os objetos nela contidos em um outro espaço: o da
superfície de uma esfera. Mas seria pobre demais parar a nossa
observação por aí. A genial ideia de Escher de suspender uma
esfera espelhada em uma de suas próprias mãos e desenhar
aquilo que seus próprios olhos viram na superfície dessa esfera
materializa visualmente a fantástica e aparentemente paradoxal
ideia de que para observamos o mundo em que vivemos em
sua totalidade, seria preciso observar esse mundo de fora dele
mesmo. Mas como observá-lo de fora se estamos dentro dele?
Como é possível uma parte de um todo, isto é, a esfera que
está dentro de uma sala, conter o próprio todo, isto é, a sala
toda e a si própria?
Esse sutil paradoxo visual está, sem dúvida,
associado à ideia de infinito atual. É o olho esférico do artista
que, embora situado em um mundo, fora da esfera espelhada,
ocupa, ao mesmo tempo, o centro da esfera espelhada, de
modo que, agora, o olho que observa, observa o próprio olho
que observa.
Esta mesma ideia está também presente na litografia
de Escher de 1956, denominada Galeria de Arte16. À primeira
vista, nada de anormal, apenas um certa surpresa diante da
curvatura do desenho. Vamos acompanhar um visitante dessa
galeria, cuja porta de entrada está situada no canto inferior
direito da figura. No canto inferior esquerdo vemos um garoto
observando um quadro que contém um navio, a orla marítima e
as edificações ao longo da orla. Atrás do navio maior, vemos
um pequeno barco ancorado e, logo acima, duas pessoas
observando. Uma surpresa maior se manifesta quando nos
damos conta de que, bem ali à direita de onde se encontram
essas duas pessoas, existe uma outra entrada para a mesma

153
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

galeria de arte, e se por ali entrarmos e seguirmos pelo corredor


curvo, cujo telhado pode ser observado pela mulher que se
encontra na janela, à direita do desenho, vamos nos encontrar,
novamente, com o garoto que está observando o quadro. Em
outras palavras, e agora o estranhamento máximo, a galeria real
constitui o prolongamento da paisagem estampada no quadro.
E daí, a galeria se torna menos real, e a paisagem do quadro
mais real, do que nos apareciam à primeira vista. Além disso, o
garoto que observa o quadro estaria observando a si próprio
ao observar o quadro. Observador e objeto observado acabam
constituindo uma única e mesma realidade, ou uma única e
mesma fantasia.
Essa terceira característica da obra de Escher está
intimamente conectada a uma quarta, qual seja, a de que cada
uma de suas gravuras, sendo algo mais do que algo a ser visto,
é, antes de mais nada, um problema a resolver, um convite ao
exercício do raciocínio, da inteligência e, nesse sentido, a beleza
do desenho só se manifesta após o enfrentamento raciocinado
de algo que provoca no observador um estranhamento inicial.
A beleza não flui imediatamente de um simples ato de
contemplação passiva, mas é construída ativamente através do
esforço de uma participação analítica do observador.
Nesse sentido, cada gravura se sustenta na tensão
jamais resolvida entre razão e emoção. Razão e emoção não
se excluem mutuamente, nem na produção da obra por parte
do artista e nem na sua recepção por parte do observador.
Isso significa que, no caso de Escher, cada gravura é
minuciosamente planejada, matematicamente estudada e refeita
até atingir o efeito visual desejado. Nenhum elemento nela
contido é fruto do acaso.
Essa quarta característica da obra de Escher também
encontra um paralelo no domínio da linguagem poética. Penso
que ninguém melhor do que o escritor e poeta norte-americano
Edgar Alan Poe defendeu uma concepção de estética da criação
verbal bastante próxima à estética escheriana da criação não-verbal
no domínio das artes gráfico-visuais. No capítulo denominado
A filosofia da composição, de sua obra Poemas e Ensaios, Poe,
tomando como referência o seu famoso poema O corvo, explica
do seguinte modo o processo de produção desse poema:

154
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

É meu desígnio tornar manifesto que nenhum ponto


de sua composição se refere ao acaso, ou à intuição,
que o trabalho caminhou, passo a passo, até
completar-se, com a precisão e a seqüência rígida
de um problema matemático. [...] É desnecessário
demonstrar que um poema só o é quando emociona,
intensamente, elevando a alma; e todas as emoções
intensas, por uma necessidade psíquica, são breves.
[...] Parece evidente, pois, que há um limite distinto,
no que se refere à extensão, para todas as obras de
arte literária, o limite de uma só assentada [...]. Dentro
desse limite, a extensão de um poema deve ser
calculada, para conservar a relação matemática com
seu mérito, (isto é), com a emoção ou elevação, com
o grau de verdadeiro efeito poético que ele é capaz
de produzir. [...] Beleza é a única província legítima
do poema. [...] O prazer que seja ao mesmo tempo
o mais intenso, o mais enlevante e o mais puro é,
creio eu, encontrado na contemplação do belo.
Quando, de fato, os homens falam de Beleza, querem
exprimir, precisamente, não uma qualidade, como
se supõe, mas um efeito. (POE, 1999, p. 103-104)

Mas há uma outra e mais sutil analogia que penso


poder ser estabelecida entre os jogos de linguagem visual e
verbal de Escher e de Poe. Trata-se do modo como, em ambos,
essa proposta estética de produção do estranhamento com
base na dualidade tensional, intencionalmente produzida, entre
razão e emoção se sustenta em uma outra dualidade tensional,
também intencionalmente produzida, entre realidade e fantasia.
Em Escher, esse real é visualmente traduzido e
sustentado pelo modo como os nossos olhos se habituaram
culturalmente a ver ou ler o espaço físico vivido e as situações
que nele ocorrem, e o fantástico é todo elemento ou efeito
visual desestabilizador desse hábito. Desse modo, o
estranhamento cognitivo é produzido com base no
estabelecimento planejado de uma continuidade visual entre
as certezas e possibilidades intuitivamente atestadas pelas
situações vividas em um espaço perceptivamente experienciado
e as desconfianças perceptivas advindas de novas e
aparentemente contraditórias propostas culturais de releituras
desse espaço vivido. Portanto, em Escher, o olho não é apenas

155
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

um olho que percebe; é um olho que só percebe pensando, e que,


por essa razão, é também um olho que se percebe pensando; o
olho que observa é também o olho que se observa e que
observa quem observa. Não há mais uma linha nítida de
demarcação entre o observador e o observado, entre o eu e o
outro, na medida em que o outro observado é também o eu
que o observa. Rompe-se, assim, com o princípio da identidade
da lógica aristotélica que afirma que todo A é A. Rompe-se
também com o princípio da não contradição, que afirma que A
não poderia, ao mesmo tempo, ser A e não-A, na medida em
que o eu pode ser também o outro, e o outro que se observa
pode ser também o eu que observa esse outro.
Em última instância, o estranhamento advém do fato
de a estética visual escheriana propor uma nova forma do olho se
relacionar com aquilo que olha. Aquilo que o olho olha deve ser
comandado por aquilo que o cérebro pensa. Embora o nosso
cérebro tenha sido habituado a pensar euclidianamente, esse
não é o único modo do cérebro pensar. É preciso desafiar essa
forma habitual, hegemônica e culturalmente instituída do olho
olhar. Porque, nem o olho que olha e nem aquilo que o olho
olha estão, necessariamente, constituídos euclidianamente. É
o olho, comandado pelo cérebro, que impõe ao espaço o modo
como, em cada momento, desejaríamos olhá-lo.
“Se soubessem só o que eu vi na escuridão da noite [...]
fiquei por vezes louco de mágoa por não o poder representar. Em
comparação com isso, é cada estampa um malogro que nem sequer
reproduz uma fração daquilo que deveria ser” (ESCHER apud ERNST,
1991, p. 16). Foi desse modo que Escher traduziu, em palavras,
a relação entre as possibilidades ilimitadas do olho face aos
precários recursos das formas de representação visual daquilo
que o olho pode ver. Infelizmente, jamais saberemos tudo o
que Escher teria visto na escuridão da noite.
E para finalizar, retorno à frase inicial de Escher: “Para
entender o mundo temos que reconhecer que a matemática e a poesia
têm a mesma origem”. Tentei olhar para ela, tal como eu imagino
que Escher gostaria que eu a tivesse olhado: não como um
axioma, mas como um problema a ser investigado. E a conclusão
a que cheguei, e que imagino ser a conclusão a que ele gostaria
que eu tivesse chegado, é que Escher tem e não tem razão. Pois
há momentos em que o olho que olha, olha o espaço como o

156
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

olho da gravura de Escher, de 1946, denominada “Olho, gravura


à maneira negra”17.
E para que tentemos aguçar a capacidade que todos
temos de coordenar os jogos de linguagem do olho que olha,
do matemático que pensa e do poeta que delira, proponho a
vocês que fiquem se olhando fixamente através do olho de Escher
se olhando em sua gravura à maneira negra, ao mesmo tempo
em que se deixem ser olhados pelo olhar impregnante e
persistente de “meu” corvo18, roubado da literatura sombria e
fantástica de Edgar Allan Poe:

Em certo dia, à hora da meia-noite que apavora,


Uma visita de outrora, eu me disse, emergiu de
meus anais. Era só isto, e nada mais! Ah, distinctly I
remember, it was in the bleak December.
Desolador dezembro de horror. Only this ... nothing
more!
E o fogo morrendo, remoendo o remendo da noite
vazia, urdia sombras desiguais. Tombas de
sombras desiguais o fogo urdia. E cada brasa
refletia a sua última agonia.
Urdia estranhos terrores nunca antes tais! É visita
que solicita entrada na minha morada. Nada mais!
Sir, said I, or Madam, truly your forgiveness I
implore. Darkness there ... nothing more! Estava eu
adormecendo, quando viestes batendo Tão
levemente batendo, batendo por meus umbrais. É
só isto, e nada mais!
Alguma coisa sussurra. E o eco, que te ouviu,
murmurou-te no espaço. Back into the chamber
turning, all my soul within me burning. Com longo
olhar exploro a sombra que me assombra. Mas a
noite era infinita, a paz profunda e maldita.
Seguramente, algo há na janela. Vamos ver o que
está nela e o que são estes sinais. Obra do vento,
e nada mais! Let my heart this mystery explore. It
is the wind and nothing more!
Um corvo envolveu de repente com negras asas
moventes os brancos de minha mente
Não fez nenhum cumprimento.

157
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Com ar solene e lento,


Apenas tomou assento num alvo busto de Atena.
Como te chamas, na grande noite plúmbica, Ó
velho corvo emigrado das trevas satúrnicas! Tell
me what thy lordly name is on the Night’s
Plutonian shore! Quoth the Raven, “Nevermore”!
O ar mais denso saturou-se do incenso agourento
daquele “Nunca mais”. On this home by horror
haunted - tell me truly, I implore -
Is there balm in Gilead? Profeta, demônio ou ave
preta! Há no Éden de outra vida Bálsamo a almas
aturdidas por tamanho horror profundo? Existe
acaso um bálsamo no mundo? E o Corvo, na noite
infinda, está ainda, está ainda! And his eyes have
all the seeming of a demon’s that is dreaming.
E a luz do lampião despertando o demônio
sonhador Do profundo dos olhos daquela ave
medonha Lança-lhe no chão a sombra tristonha
mais e mais. Cada vez mais presa a suas linhas
funerais Minha alma não se libertará nunca mais!
And my soul from out that shadow that lies
floating on the floor
Shall be lifted - nevermore!

Notas
1
Dedico este texto ao amigo Carlos Roberto Vianna, professor do
Departamento de Matemática da Universidade Federal do Paraná,
e convido o leitor a ler a sua tese de doutorado (VIANNA, 2000),
que me serviu de inspiração nesta minha segunda tentativa de
sobreposição de jogos de linguagem visual e verbal. A primeira
constitui a referência (MIGUEL, 2004).

2
Mesa-redonda: O fascínio indiscreto das palavras (os números, os
desenhos, as tatuagens, os movimentos, a dança, a música), realizada
como uma das atividades do IV Seminário Linguagens na Educação
Infantil que integrou o 15º Congresso de Leitura do Brasil (15º
COLE), ocorrido de 05 a 08 de julho de 2005, na UNICAMP –
Campinas (SP), e promovido pela Associação de Leitura do Brasil
(ALB).

158
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

3
A expressão jogos de linguagem foi primeiramente proposta pelo
filósofo, lógico e matemático austríaco Ludwig J. J. Wittgenstein
(1889-1951) em seu O Livro Castanho (WITTGENSTEIN, 1992),
escrito em meados da década de 1930. Segundo Monk (1995, p.
310-311), “o intuito implícito [de Wittgenstein] é abalar o domínio
da ideia de que imagens mentais precisam necessariamente
acompanhar qualquer uso significativo da linguagem”. O acréscimo
do adjetivo visual à expressão jogo de linguagem é de minha
responsabilidade, uma vez que as reflexões de Wittgenstein se
limitaram ao terreno das linguagens verbais propriamente ditas,
nelas incluídas as linguagens da Lógica e da Matemática. Jogos
de linguagem visual seriam, portanto, no meu modo de entender,
uma das muitas modalidades de jogos semióticos e, nesse sentido,
também os jogos de linguagem verbal de Wittgenstein
constituiriam uma das modalidades de jogos semióticos.

4
O leitor pode ter acesso a uma foto do templo de Hefaístos no
site: http://www.artehistoria.jcyl.es/historia/obras/7952.htm

5
O leitor pode ter acesso a fotos do Palácio Chiericati nos sites:
http://www.imageandart.com/tutoriales/historia_arte/
renacimiento/palacio_chieratti.htmhttp://www.artehistoria.jcyl.
es/arte/obras/15915.htm

6
O leitor pode ter acesso a uma foto da obra Vista de uma cidade
ideal, de Piero della Francesca no site: http://www.humanitiesweb.
org/human.php?s=g&p=c&a=p&ID=882

7
O leitor pode ter acesso a esse desenho de Leonardo no site:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Homem_Vitruviano_
(desenho_de_Leonardo_da_Vinci)

8
O leitor pode ter acesso a essa litografia consultando a referência
(ERNST, 1991, p. 91), ou através de sites da internet. Um deles é:
http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/escher/
ecimabaixo.html

9
Essa conhecida obra de Blake pode ser acessada através de muitos
sites da internet, dentre eles, o seguinte: http://www.ibiblio.org/
wm/paint/auth/blake/ancient.jpg

10
O leitor pode ter acesso a essa obra consultando a referência
(ERNST, 1991, p. 31) ou através de vários sites da internet como,

159
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

por exemplo, o seguinte: http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/


opombo/seminario/escher/varanda.html

11
O leitor pode ter acesso a essa obra consultando a referência
(ERNST, 1991, p. 24) ou através de sites da internet.

12
O leitor pode ter acesso a essa obra consultando a referência
(ERNST, 1991, p. 38) ou através de sites da internet.

13
O leitor pode ter acesso a essa obra consultando a referência
(ERNST, 1991, p. 22) ou através de sites da internet.

14
O leitor pode ter acesso a essa obra consultando a referência
(ERNST, 1991, p. 26) ou recorrendo a sites da internet.

15
O leitor pode ter acesso a essa obra recorrendo a sites da internet
como, por exemplo, o seguinte: http://www.educ.fc.ul.pt/
docentes/opombo/seminario/escher/esfera.html

16
O leitor pode ter acesso a essa obra recorrendo a sites da internet
como, por exemplo, o seguinte: http://www.educ.fc.ul.pt/
docentes/opombo/seminario/escher/galeria.html

17
O leitor pode ter acesso a essa obra recorrendo a sites da internet
como, por exemplo, o seguinte: http://www.educ.fc.ul.pt/
docentes/opombo/seminario/escher/olho.html.

18
Na verdade, esta minha “tradução condensada“ de O corvo de
Edgar Alan Poe (1809-1849) foi feita mediante a técnica de recorte,
colagem, composição e transcriação livres de versos da versão
original em inglês deste poema, publicada em 1845, e de versos
das traduções do mesmo poema feitas por Machado de Assis e
Fernando Pessoa (1888-1935), respectivamente publicados na
segunda metade do século XIX e em 1924. A tradução de Pessoa
pode ser acessada, na íntegra, no site: http://www.geocities.com/
CapeCanaveral/Hangar/7765/raven.htm. Por sua vez, pode-se ter
acesso à tradução de Machado de Assis no site:
http://pt.wikisource.org/wiki/O_Corvo_-_Tradu%C3%A7%C3%
A3o_de_Machado_de_Assis.

160
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Refer
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ARGULLOL, Rafael et al. História Geral da Arte – A arte: a beleza e


as suas formas. Espanha/Brasil: Ediciones Del Prado, 1996.

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Madrid: Alianza Editorial, 1985.

BARKER, Stephen. Filosofia da Matemática, Rio de Janeiro: Zahar


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BUNT, Lucas, N. H.; JONES, Philips S.; BEDIENT, Jack D. The historical
roots of elementary mathematics. New York: Dover Publications,
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Letras, 1992.

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ECO, Umberto (Org.). História da beleza. São Paulo: Record, 2004.

ERNST, Bruno. O espelho mágico de M. C. Escher. Köln: Benedikt


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MIGUEL, Antonio. Sobre mulheres-bomba, cabeças que rolam e


objetividade de textos historiográficos. In: I Jornada de Pesquisa
Qualitativa, História Oral e Formação de Professores. Bauru, out.
2004.

MONK, Ray. Wittgenstein: o dever do gênio. São Paulo: Companhia


das Letras, 1995.

OVÍDIO. Metamorfoses. São Paulo: Madras, 2003.

POE, Edgar Allan. Ficção Completa, Poesia & Ensaios. Rio de Janeiro:
Aguilar, 1965.

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TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

POE, Edgar Allan. Poemas e Ensaios. São Paulo: Editora Globo,


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VIANNA, Carlos Roberto. Vidas e circunstâncias na educação


matemática. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.

WITTGENSTEIN, L. O livro castanho. Lisboa: Edições 70, 1992.

162
NÃO FAZER DAS
PALAVRAS UM ATALHO
AO CONHECIMENTO

Suely Amaral Mello

Com essas palavras do educador italiano Loris


Malaguzzi (apud RABITTI, 1999) que dão titulo a esta reflexão, a
coordenação do Seminário Linguagens na Educação Infantil no
XV Congresso de Leitura da Associação de Leitura do Brasil
desafiou-me a acompanhar o Seminário na condição de ouvidora.
É desse ponto de vista que falo.
Vejo a oportunidade de refletir sobre as linguagens
na educação infantil como essencial dentro da perspectiva de
construção de uma pedagogia para a infância para a qual nos
desafiamos. Vale lembrar que o processo de humanização
acontece como produto da dinâmica apropriação-objetivação,
que podemos traduzir aqui como apropriação-expressão. Não
há desenvolvimento cultural sem que esses dois elementos
dialeticamente articulados aconteçam. Por isso, um seminário
para discutir as linguagens na educação infantil permite refletir
sobre como a criança se apropria da cultura humana e como
expressa essa apropriação que realiza. Ao mesmo tempo, como
as crianças produzem e expressam entre elas a cultura infantil
(cf. PODDIAKOV, 1987).
Em segundo lugar, gostaria de destacar que vejo a

163
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

inserção de um seminário sobre linguagens na educação infantil


dentro deste Congresso de Leitura como um sinal do avanço
dos direitos das crianças brasileiras ao longo do século passado.
O século XX, apesar das duas guerras mundiais e muitas outras
guerras sangrentas que testemunhamos, envolveu um conjunto
de iniciativas que deram visibilidade a alguns grupos sociais,
entre eles as crianças. Essa visibilidade nos desafia, hoje, à
consolidação de seus direitos sociais. Não nos iludimos
acreditando que os direitos anunciados se consolidem para
todas as crianças brasileiras enquanto perdurar essa perversa
distribuição da riqueza, do poder e do saber que tem marcado
e manchado nosso país. Mas tampouco negamos nossos
avanços rumo a uma pedagogia para as crianças pequenas:
valorizamos as conquistas, as transformações em processo, o
desejo de mudança expresso nas práticas dos educadores que
se esforçam todos os dias por construir novas relações na
escola da infância, por democratizar as relações com as crianças
pequenas e por enriquecer as experiências vividas pelas
crianças. Esses desafios nos manterão sempre vivos, pois, como
na lenda do pote de ouro sob o arco-íris, o ponto de chegada
está sempre mais além. Não nos iludimos e tampouco nos
negamos. Ao contrário, os relatos de experiências, as
discussões e reflexões que fizemos ao longo desses quatro
dias mostram que estamos fazendo do longo caminho que
temos até a consolidação dos direitos de todas as crianças
brasileiras um desafio ao nosso tempo e à nossa imaginação. A
demonstração disso está presente em muitas das
comunicações, nas reflexões e nas preocupações expressas
nos debates. Em muitas das 72 comunicações inscritas neste
seminário, transparece a preocupação em conhecer melhor a
criança que cuidamos e educamos, em buscar formas de ampliar
suas vivências e experiências na escola da infância, em
encontrar as formas adequadas para possibilitar que as crianças
pequenas se iniciem na apropriação do conjunto do
conhecimento e da cultura humana histórica e socialmente
acumulada e em refletir a partir daí sobre a formação de
professoras e professores que possam responder ao desafio
de conhecer a criança, de articular e dirigir um projeto
pedagógico que considere essa nova criança que começamos
a conhecer e a ver como capaz - desde que nasce - de aprender

164
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

de um jeito próprio, diferente do adulto e que se torna ávida


por atividades e exigente em relação à sua participação no
projeto pedagógico.
Meu olhar esteve orientado por uma preocupação
que tem marcado meus estudos e reflexões mais recentes e
que diz respeito ao esclarecimento do perfil do professor da
escola da infância e que se expressa, para mim, na seguinte
questão: partindo do pressuposto de que as crianças pequenas
aprendem a ser o que são e o que serão quando adultas, e que
aprendem por meio da atividade que realizam nas condições
concretas em que vivem, como devem atuar a professora e o
professor para possibilitar que essas crianças pequenas se
formem para ser homens e mulheres ricos de necessidades
humanizadoras e prazeres, como afirmava Marx falando do ideal
do ser humano? Como formar essas crianças, lembrando
Maiacovski, para ser gente para brilhar e não para se acostumar
a morrer de fome?
De um modo geral, percebo que o desejo de
conhecer a criança expresso nos relatos e nas reflexões nos
desafia – tanto no nível das práticas quanto no nível da
compreensão das teorias – a transformar as práticas que temos
importado do ensino fundamental sem muitas vezes ter
consciência de que com elas importamos práticas de
disciplinamento do corpo e do olhar, explícitas no
disciplinamento do olhar ensinado por Comenius e trazido aqui
na conferência de abertura do Seminário, “aprenda primeiro a
olhar o mundo pelos livros e depois saia para ver o mundo”.
Tais práticas são realizadas repetidamente na escola e trazidas
para a educação infantil quando confundimos educar com
didatizar a cultura, educar com imaginar pelas crianças. Espero
que perceber a prática longínqua anunciada por Comenius no
século XVII nos ajude a sacudir a mesma poeira ainda presente
nas práticas da escola do século XXI.
O filósofo e revolucionário italiano Antonio Gramsci
afirmava que conhecer a história é revolucionário. Creio que a
conferência de abertura mostrou a todos que a escola e a
organização de seus espaços e tempos, assim como as formas
de relacionamentos que aí estabelecemos e as formas como
pensamos o conhecimento são frutos da construção social, da
forma de organização da sociedade. Em outras palavras, foram

165
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

criadas por homens e mulheres que nos antecederam, e,


portanto, nos desafiam a recriá-las. Se desconfiarmos do que
parece natural, como ensinava Bertolt Brecht, teatrólogo e
revolucionário alemão, talvez saiamos daqui prontos para um
salto do século XVII para o século XXI.
As reflexões trazidas por Ana Beatriz Goulart e
Eliana Cunha nos desafiaram a aprofundar essa reflexão iniciada
na conferência de abertura do Seminário: superar os rótulos,
uma vez que diferentes somos todos e cada um de nós. A
discussão nos mostrou que a escola é restritiva, assim como o
uso do tempo e do espaço escolares; que as restrições são
produzidas em parte pela atitude dos adultos na escola, pela
forma como temos organizado a escola e que não pensamos
em mudar quando recebemos novas turmas de crianças, sempre
diferentes.
Em outras palavras, vamos percebendo que as
crianças não são “mudas, telepáticas”. Elas se tornam ... são
forçadas a sê-lo pelas relações, pelos espaços padronizados
da escola que produzem pessoas padronizadas, uma vez que
a escola, de um modo geral, só procura e respeita o igual e
disciplina ou expulsa todas as características humanas que não
sejam as ditas produtivas. O arteiro, o vagaroso, o levado, o
tagarela, o curioso – é um longo conjunto de características
como apresentou Ana Beatriz Goulart, nas quais todos nos
vimos e pelas quais fomos reprimidos – todos devem ser
disciplinados na escola. Por essa reflexão fomos desafiados a
um conhece-te e ti mesmo, como afirmava Gramsci ser
necessário aos educadores, para fazer um inventário daquilo
que nos deixaram de herança sem aviso prévio de que com
isso herdávamos também um modo de pensar e agir. Também a
conferência de abertura nos alertava para essa necessidade.
Valentin Andréa, revolucionário contemporâneo de Comenius,
falava de um “conhece-te a ti mesmo pelo outro”. Eu diria que,
de alguma forma, foi o que fizemos nesses dias de Seminário:
nos conhecemos um pouco mais na fala dos outros, nas
denúncias dos outros e nas experiências dos outros.
Muitas comunicações falaram da busca de reflexão
sobre as práticas, da interlocução com as teorias, da busca de
orientações para enfrentar o desafio apontado por Gramsci para
nós, educadores: formar cada criança para ser um dirigente.

166
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Nessa perspectiva, muitas das comunicações apontam para uma


nova criança que começamos a conhecer: falam de atitudes
tomadas para conhecer a criança concreta com quem
convivemos, da luta que travamos para superar os preconceitos
que nos ensinam a ver as crianças pequenas como seres sem
voz, sem vontade, sem capacidades e, por isso, objetos da
nossa proteção, do nosso cuidado, da nossa direção e da nossa
vontade. Os debates desses dias falam da luta de muitos
educadores para que as crianças ocupem um lugar relevante
nas relações estabelecidas na escola da infância e na vida fora
dela, falam da educação do nosso olhar para ver o outro inteiro
e não seu estereótipo, ver o outro diferente.
Creio que essas discussões refletem o esforço que
todos temos feito nos últimos anos por compreender a
complexidade da educação das crianças pequenas.
Nesse processo, temos aprendido muito e temos,
certamente, muito a aprender. Mas já aprendemos que
precisamos de uma teoria que dê suporte à prática, uma teoria
que supere a condição de anúncio, de discurso e se concretize
como prática, uma prática de nova qualidade que seja
intencionalmente organizada para promover os direitos das
crianças pequenas, uma prática que é necessariamente
registrada e documentada, o que significa que será igualmente
objeto da nossa reflexão sempre considerando o para quê da
educação dos pequenos e das pequenas. Em tempos de
neoliberalismo e de pragmatismo exacerbados, nos ensinam
que refletir sobre o para quê das nossas ações é coisa
ultrapassada... mas só quando nos detemos no significado da
educação podemos tomar uma atitude que supere os modismos
e verdadeiramente se comprometa com o direito das crianças
à infância e à formação das máximas possibilidades humanas,
das várias dimensões humanas, como afirmou Sonia Larrubia
em sua conferência.
Entendo que o tom da reflexão que desenvolvemos
nos ensina a perguntar para quê. Essa reflexão certamente
desencadeará mudanças, e as mudanças, vale sempre lembrar,
são processos que envolvem o estudo, a observação das
crianças, a reflexão e o registro das práticas, mudanças de
atitude nas relações com as crianças rumo à autonomia, à
valorização das diferenças, ao pensamento divergente - de que

167
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

nos falou Antonio Miguel ao falar das relações entre a


matemática e a poesia -, enfim, rumo à superação dos
disciplinamentos que temos reproduzido historicamente na
escola.
Como lembra Denise Stocklos (1995) em Desmedéia,
“utopia rima com mudança agora, já e todo dia”!
Por isso, enquanto não estruturamos a escola da
infância para ser um cenário provisório como propõe Ana Beatriz,
começamos a mudar o uso dos espaços, as nossas relações
com as crianças, nosso olhar e nossas concepções, desafiados
a isso também pela conferência de Márcia Gobbi. Da mesma
forma, diante das produções infantis, e frente à nossa
curiosidade interpretativa, melhor fazemos ao perguntar às
próprias crianças o significado de suas produções que
interpretá-las silenciosamente à luz de uma pseudo-psicologia.
Nessa perspectiva, muitas comunicações denunciam
o longo caminho que temos a percorrer nesse processo de
mudança em direção a uma pedagogia que considere a criança
como um sujeito a ser conhecido e respeitado em suas
capacidades. Conforme denunciam alguns relatos, em muitas
escolas infantis, as crianças pequenas apenas executam ordens
em atividades pensadas exclusivamente pelos adultos,
situações em que o brincar é considerado atividade de segunda
categoria, onde as festas são estratégias de disciplinamento.
Muitos discursos denunciam atitudes escolarizantes: muito se
falou em alunos como referência às crianças pequenas, muito
se falou em dar aulas, em salas de aulas. Certamente que não
basta mudar o discurso, mas mudar o discurso no processo de
criar novas formas de viver juntos o encontro das crianças com
a cultura historicamente acumulada – assim como a cultura que
as crianças produzem entre si – é um desafio.
Ao mesmo tempo, falou-se de experiências que
trazem em gérmen a estruturação da escola da infância como
um fórum da sociedade civil (cf. DAHLBERG e outros, 2003) onde
educadores, educadoras, pais, mães e crianças discutem
questões relativas a problemas do meio ambiente e resolvem
problemas relacionados à vida do lugar. Ouvimos relatos sobre
ações concretas em grandes redes municipais, como as de São
Paulo e Campinas, que buscam a construção de uma pedagogia
para as crianças pequenas e se colocam contrárias à antecipação

168
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

da escolaridade e à intenção preparatória, procurando enfatizar


o brincar e as múltiplas linguagens das crianças no processo
de apropriação das qualidades humanas.
Aprendemos também que tampouco basta o olhar
atento às teorias e às práticas. É preciso manter o olhar atento
às políticas que, sustentadas na fragilidade de concepções de
atendimento educacional, podem esvaziar conquistas
importantes para a educação infantil, conforme alertou Rita
Coelho em sua conferência neste Seminário.
No conjunto, creio que tivemos boas oportunidades
para discutir sobre o papel do professor e da professora das
crianças pequenas. Creio que avançamos na compreensão de
que a atividade pela qual a criança se apropria dos significados
da cultura e lhes atribui um sentido pessoal é essencialmente a
atividade lúdica que não é imediatamente dirigida pela
professora, mas é provocada e enriquecida por ela, por meio
da organização de um espaço e de um tempo vivido na escola
que é rico e diversificado e que propõe vivências com as quais
intencionalmente amplia, qualifica e enriquece a experiência das
crianças, cria novas necessidades humanizadoras nas crianças,
responde às suas curiosidades passageiras transformando-as
em motivos estáveis de conhecimento que ampliam seu
processo de humanização.
Creio, por isso, que assim avançamos na discussão
de uma pedagogia específica para a infância como processo de
construção de uma relação em que o professor não dá aulas,
não faz da palavra um atalho para o conhecimento, como adverte
Malaguzzi, mas provoca nas crianças a atividade, a curiosidade
e o desejo de conhecer.
Não desqualificamos o trabalho do professor e da
professora ao dizer que a tarefa essencial do professor das
crianças pequenas não é dirigir diretamente a atividade das
crianças num processo em que os adultos pensam e as crianças
executam o planejado por eles, ao dizer que precisamos
aprender a ser este novo professor ou esta nova professora e
que, para tanto, além de estabelecer uma interlocução com uma
teoria que dê conta de explicar o desenvolvimento cultural dos
seres humanos, precisamos estabelecer uma atitude de escuta,
de observação, documentação e registro da prática refletida
com o suporte dessa teoria. Ao contrário, essa concepção do

169
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

trabalho educativo apresenta para o professor e para a


professora um desafio que só pode ser enfrentado com a
intencionalidade do intelectual interessado em aprender a
orientar o encontro da criança com a cultura, com o mundo
dos objetos, das relações, do conhecimento, da ética, da história,
da filosofia, possibilitando sempre que a criança seja um sujeito
ativo nesse processo de conhecer e passe a fazer parte desse
mundo da cultura. É um desafio para um intelectual que deve
aprender como educar e ensinar num processo colaborativo
que possibilite à criança ampliar sempre o que conhece e seu
desejo de conhecer. No entanto, estamos seguros de que os
métodos precisam ser construídos e não aproveitados da
escola fundamental. Ao contrário, em muitas sessões de
comunicação discutimos sobre a necessidade de se estender
da educação infantil para ao ensino fundamental algumas das
formas de trabalho e relacionamento adulto-criança.
A partir de relatos de experiências e de reflexões
aqui desenvolvidas, podemos afirmar que avançamos na
compreensão de que entre 0 e 6 anos as crianças desenvolvem
intensamente diferentes atividades práticas, intelectuais e
artísticas, iniciam a formação de ideias, sentimentos e hábitos
morais e traços de personalidade que até recentemente eram
admitidos como impossíveis para as crianças. No entanto, e
este também foi tema de discussão nesse Seminário,
percebemos que isso não deve levar, ao equívoco de acreditar
que o abreviamento da infância e a antecipação da escolarização
possam apressar o desenvolvimento cultural da criança ou o
progresso tecnológico do planeta.
Justamente ao contrário, concordamos com
Zaporózhets (1987) que as condições adequadas ao
desenvolvimento harmônico da criança, “não se criam por meio
do ensino forçado, antecipado, dirigido a diminuir a infância, a
converter antes do tempo a criança pequena em pré-escolar, e
o pré-escolar em escolar. É indispensável, ao contrário, o
enriquecimento máximo do conteúdo das formas
especificamente infantis da atividade lúdica, prática e plástica e
também da comunicação das crianças entre si e com os adultos.”
Desse ponto de vista, vale enfatizar, nos
posicionamos contra a ortodoxia de algumas leituras de
Vygotsky que não percebem a especificidade do aprender das

170
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

crianças pequenas.
Entendo que, de um modo geral, a tônica dos relatos
e das reflexões trazidas a este seminário apontam que podemos
formar homens e mulheres solidárias e inteligentes sem fazer
das palavras a única alternativa para o conhecimento... para isso
estejamos atentos, pois é possível que, nós, educadores e
educadoras tenhamos que aprender com as crianças a escutar
a cor dos passarinhos, como diz o poeta Manuel de Barros.
Ao encerrar, reafirmo as ideias expressas no
documento de convocação desse XV Congresso de Leitura:
Nossa luta por uma educação infantil que respeita o direito à
infância, que acolhe as diferenças sem pasteurizá-las e que não
abre mão de possibilitar a cada criança a máxima apropriação e
fruição da cultura criada ao longo da história de luta e trabalho
de homens e mulheres que construíram e constroem essa
cultura não é vã. Ela é a expressão do desejo de instituir uma
nova ordem social em que poder não seja sinônimo de
opressão, miséria e terror, em que a possibilidade de ser não
se resuma à competitividade empresarial e territorial. Por isso
seguimos. Porque temos demonstrado com as nossas práticas
militantes que uma outra relação com as crianças na escola da
infância é possível. É possível uma relação entre professora ou
professor e crianças que permita a participação e o
protagonismo do adulto e das crianças sem perder de vista, ao
contrário, potencializando o processo de humanização de quem
ensina e de quem aprende. E como dizia Gramsci, “a possibilidade
não é a realidade, mas é, também ela, uma realidade.”
Maiacovski, poeta russo da primeira metade do
século XX nos desafia ao trabalho transformador no poema
Desatai o futuro, onde lembra que “o futuro não virá por si só se
não tomarmos medidas” e que “as vestes poeirentas de nossos
dias, cabe a nós sacudi-las!”

Refer
eferência
ênciass
erência

BARROS, M. de. O Livro das Ignorãças. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1993.

171
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

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GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio,


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MAIACOVSKI, V. V. Antologia Poética. São Paulo: Max Limonad


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Evolutiva e Pedagogica en la URSS. Moscou: Editorial Progresso,
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pré-escolar. In: DAVIDOV, V.; SHUARE, M. La Psicologia Evolutiva
e Pedagogica en la URSS. Moscou: Editorial Progresso, 1987.

172
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Organizadoras e Autores

Ana Lúcia Goulart de Faria (Organizadora) é Doutora em


Educação pela USP, Professora da Faculdade de Educação da
Unicamp e Membro suplente da Anped no Conpeb (Conselho
Nacional de Políticas da Educação Básica).

Suely Amaral Mello (Organizadora) é Doutora em Educação


pela UFSCar, professora do Curso de Pós-Graduação em
Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, vice-
líder do Grupo de Pesquisa “Implicações Pedagógicas da Teoria
Histórico-Cultural” e coordenadora do Grupo de Estudos em
Educação Infantil da Unesp-Marília. É membro do grupo gestor
do Fórum Paulista de Educação Infantil.

Ana Beatriz Goulart de Faria é arquiteta formada pela


Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e atua como
pesquisadora e consultora integrando as áreas de Arquitetura,
Urbanismo e Educação com Políticas Públicas. Assessorou as
prefeituras de São Paulo (SP), Santo André (SP), Peruíbe (SP),
Hortolândia (SP), São José do Rio Preto (SP) e Ariquemes (RO).
Foi Secretária Adjunta de Educação em Nova Iguaçu (RJ) onde
participou da implantação do programa bairro-escola de
educação integral. Atualmente desenvolve projetos de espaços
educativos para a Prefeitura de São Bernardo do Campo.

Antonio Miguel é licenciado em Matemática pela PUC de


Campinas e Mestre e Doutor em Educação pela Unicamp. É
professor do Departamento de Ensino e Práticas Culturais
(DEPRAC) da Faculdade de Educação da Unicamp onde
desenvolve pesquisas na área de Educação Matemática. É
coordenador do Grupo de Pesquisa “História, Filosofia e
Educação Matemática” (HIFEM), filiado ao “Círculo de Estudos,
Memória e Pesquisa em Educação Matemática” (CEMPEM) da FE-
Unicamp.

173
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Beatriz Angélica Alcântara Cardoso é Pedagoga com


habilitação em Educação Especial e pós-graduada em
Fundamentos Científicos e Didáticas da Formação de
Professoras: Pedagogia Inclusiva e Política de Educação. É
orientadora pedagógica da Rede Municipal de Educação de
Campinas e assistente pedagógica no Programa Especial de
Formação de Professores da Região Metropolitana de Campinas
– PROESF/Unicamp – desde 2003, nas disciplinas Pesquisa
Educacional, Pedagogia da Educação Infantil e Educação Especial.

Carlos Eduardo Albuquerque Miranda é Pedagogo, Mestre e


Doutor em Educação. É professor do Departamento de
Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte da Faculdade de
Educação da Unicamp e pesquisador do Laboratório de Estudos
Audiovisuais Olho. Atua na linha de pesquisa Educação,
Sociedade e Cultura trabalhando com a relação entre educação,
cultura e novas tecnologias. Pesquisa de base: Comenius e Arte
da Memória.

Danilo Russo é professor de escola da infância desde os anos


80. Durante esse período, trabalhou no norte e no sul da Itália.
Foi professor de uma escola italiana privada em São Paulo. Hoje
trabalha em Roma e se dedica a refletir sobre a vida na escola.

Eliana Aparecida Pires da Costa é professora da Faculdade


de Educação da PUC Campinas há dezoito anos, atualmente
atuando na Pró-Reitoria de Extensão. É conselheira municipal
de educação de Campinas, coordenadora pedagógica da
Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura Municipal de
Campinas e doutoranda na Faculdade de Educação da Unicamp.

Eliana Briense Jorge Cunha é Pedagoga com habilitação em


Educação Especial e pós-graduada em Fundamentos Científicos
e Didáticas da Formação de Professoras: Pedagogia Inclusiva e
Política de Educação. É coordenadora pedagógica da Rede
Municipal de Educação de Campinas e assistente pedagógica
no Programa Especial de Formação de Professores da Região
Metropolitana de Campinas – PROESF/Unicamp – desde 2003,
nas disciplinas Pesquisa Educacional, Pedagogia da Educação
Infantil e Educação Especial.

174
TERRITÓRIOS DA INFÂNCIA

Márcia Aparecida Gobbi é graduada em Ciências Sociais pela


USP, com Mestrado e Doutorado em Educação pela Unicamp. É
professora da Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo no Departamento de metodologia de Ensino e Educação
Comparada, coordena o grupo de estudos Artes, Ciências
Sociais e Infâncias na mesma Universidade.

Sonia Larrubia Valverde é Pedagoga, Mestre em Psicologia da


Educação pela PUC-SP e atua na rede municipal de ensino de
São Paulo há 25 anos, onde já passou por vários cargos:
professora de educação infantil, coordenadora pedagógica de
educação infantil, supervisora escolar e Diretora da Divisão de
Educação Infantil da Diretoria de Orientação Técnica da SME/SP
de junho de 2003 a dezembro de 2004. É membro do Grupo
Gestor do Fórum Paulista de Educação Infantil desde 2003.

Maria Carmem Barbosa é Doutora em Educação pela Unicamp,


professora da Faculdade de Educação da UFRGS e membro do
Fórum Gaúcho de Educação Infantil.

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