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Aprendizagem e Desenvolvimento: A

Concepção Genético cognitiva da


Aprendizagem

CÉSAR COLL E EDUARD MARTÍ

1. Marco teórico e epistemológico


A teoria genética aborda o estudo da aprendizagem de maneira extremamente peculiar.
Como veremos em seguida, os problemas que se apresentam, a metodolo gia das pesquisas,
os conteúdos de aprendizagem propostos aos sujeitos, a própria medida da aprendizagem e,
sobretudo, a proposta teórica são diferentes da proble mática metodológica e do enfoque dos
estudos clássicos da aprendizagem. Estas características só são compreensíveis se
situarmos estes estudos da aprendizagem no contexto da Psicologia Genética e esta, por
sua vez, no contexto mais amplo da epistemologia genética. Evocaremos brevemente os
aspectos da teoria genética que nos parecem imprescindíveis para compreender a proposta das
pesquisas sobre a aprendizagem, antes de tratar das principais teses e resultados destes
estudos.
É bem sabido que Piaget, biólogo por formação, torna-se psicólogo com o propósito de
estudar questões epistemológicas (Piaget, 1970, p. 25). Para responder a essas questões
epistemológicas — o que é o conhecimento, o que conhecemos?, como conseguimos
conhecer o que conhecemos?, como alcançamos o conhecimento válido?, que contribuições
trarão o sujeito e o objeto para o ato de conhecer?, etc.-; Piaget recorre à psicologia, em vez de
limitar-se à utilização dos métodos históricos, analíticos, especulativos e formalizantes, como
faz a maioria dos epistemólogos. Entretanto, quando inicia sua tarefa, na década de vinte,
depara-se com fato de que

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a psicologia da época não traz elementos teóricos e empíricos
suficientes para fundamentar uma epistemologia, o que o leva a elaborar
uma teoria psicológica que possa cumprir essa função, a teoria
psicogenética. Porém, por que "genética"?
Para Piaget, o conhecimento é um processo e, como tal, deve ser estudado
em seu devir de maneira histórica. Por isto, sua epistemologia não se
contenta com a resposta à pergunta "como é possível o conhecimento?"; tenta,
além disso e sobre tudo, estudar como muda e evolui o conhecimento. Piaget
define a epistemologia genética como a disciplina que estuda os
mecanismos e processos mediante os quais se passa "dos estados de
menor conhecimento aos estados de conhecimento mais avançado"
(Piaget, 1979, p. 16), sendo o critério para julgar se um estado de
conhecimento é mais ou menos avançado o de sua maior ou menor
proximidade ao conhecimento científico. A psicologia genética, junto com a
análise formalizante-que se ocupa do estudo do conhecimento do ponto de
vista de sua validade formal-e à análise histórico-crítica que estuda a
evolução do conhecimento científico, em seus aspectos históricos e
culturais, converte-se em um dos métodos, talvez o mais característico, da
epistemologia genética. O método psicogenético complementa os outros dois,
no plano do desenvolvimento individual: estuda como os seres huma nos
passam de um estado de menor conhecimento a um estado de maior
conheci mento no transcurso de seu desenvolvimento. Qualquer
questão epistemológica e, em conseqüência, qualquer questão
psicológica, deverá, pois, ser proposta em uma perspectiva genética.
O tema da aprendizagem não escapa a esta exigência. Piaget e seus
colabora dores o abordam em íntima conexão com o
desenvolvimento cognitivo. O nível de competência intelectual de uma
pessoa em um determinado momento de sua evolução depende da natureza
de seus esquemas, do número dos mesmos e da maneira como se
combinam e coordenam entre si (Coll, 1985, p. 35). Tendo em mente estes
critérios, Piaget concebe o desenvolvimento cognitivo como uma
sucessão de estágios e subestágios caracterizados pela forma
especial em que os esquemas - de ação ou conceptuais - se
organizam e se combinam entre si, formando estruturas. Deste modo, a
descrição que nos é oferecida do desenvolvimento cognitivo em termos de
estágios é uma visão estrutural, inseparável da análise formalizante.
Como se sabe, a psicologia genética identificou três grandes estágios ou períodos
evolutivos no desenvolvimento cognitivo: um estágio sensório-motor, que
vai do nascimento até os dezoito/vinte e quatro meses,
aproximadamente, e que culmina com a construção da primeira
estrutura intelectual: o grupo dos desloca mentos; um estágio de inteligência
representativa ou conceptual, que vai dos dois anos até os dez/onze anos,
aproximadamente, e que culmina com a construção das estruturas
operatórias concretas; finalmente, um estágio de operações formais, que
desemboca na construção das estruturas intelectuais próprias do
raciocínio hipoté tico-dedutivo, até os quinze/dezesseis anos?.
Cada estágio marca o advento de uma etapa de equilíbrio, uma etapa de
organizações das ações e operações do sujeito, descrita mediante uma
estrutura lógico-matemática. O equilíbrio peculiar a cada uma dessas etapas
não é alcançado, obviamente, de uma vez só, senão que vem
precedido por uma etapa de preparação. Contudo, para que possamos
falar de "estágios", é preciso, segundo Piaget, que sejam cumpridas três
condições: a ordem de sucessão dos estágios deve ser constan te para
todos os sujeitos, ainda que as idades médias correspondentes a cada etapa
possam variar de uma população para outra; um estágio deve poder ser
caracteri zado por uma forma de organização (estrutura de conjunto);
e as estruturas que correspondem a um estágio integram-se no
estágio seguinte, como caso particular (Piaget, 1956). Mesmo que a
ordem de sucessão dos estágios seja sempre a mesma,
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pode ocorrer que noções que se baseiam em estruturas operatórias idênticas, mas
que versam sobre conteúdos diferentes, não sejam adquiridas de maneira simultâ nea. Sabe-se,
por exemplo, que os indivíduos adquirem a conservação de coleções discretas dois anos antes,
em média, que a conservação da longitude. Estes fenôme nos, que Piaget qualifica como
"defasagens horizontais", indicam que as transições de um estágio a outro são mais
complexas do que se poderia pensar, em uma primeira aproximação. .
A visão do desenvolvimento organizado em estágios sucessivos, cujos níveis de
equilíbrio podem ser descritos mediante estruturas lógicas, determina também, em grande
parte, a problemática das pesquisas sobre a aprendizagem. Qualquer aprendizagem deverá
ser medida em relação às competências cognitivas que oferece cada estágio; este último
indicará, pois, de acordo com Piaget, as possibili dades de aprender que tem o sujeito. Por
isto, será necessário definir o nível cognitivo dos sujeitos antes das sessões de
aprendizagem. Deverá ser visto, também, em que condições é possível que esses sujeitos
adquiram, depois de um treinamento adequado, um nível cognitivo superior ao que possuíam
antes das referidas sessões de aprendizagem. Também deverá ser observado em que
condições é possível que os sujeitos adquiram, depois de um treino adequado, um nível cognitivo
superior ao que possuíam antes das sessões de aprendizagem. De todas as
aprendizagens, será essencial estudar as que se aplicam a estruturas
lógico-matemáticas (seriação, inclusão de classes, correspondência numérica,
conservação, etc.), chamadas tam bém de aprendizagens operatórias". Poder-se-á, então,
analisar se a lógica que rege tais aprendizagens é a mesma que rege as outras (de fatos,
de ações, de leis físicas, de procedimentos práticos, etc.).
Dizer que toda questão epistemológica deverá ser abordada geneticamente não basta,
para saber que papéis desempenham o sujeito e o objeto no processo de conhecimento,
respectivamente. Para Piaget, este processo é fundamentalmente interativo. O objeto existe,
contrariamente ao que postulam as teses idealistas extremas, porém somente pode ser
conhecido através de aproximações sucessivas - que dependem dos esquemas mentais
do sujeito, em oposição ao que se defende ria a partir uma postura realista, também
extrema que mudam, como vimos, ao longo do desenvolvimento. A objetividade não é,
pois, para Piaget, um dado imediato, mas exige um trabalho de elaboração por
parte do sujeito. A experiência não é suficiente para explicar o conhecimento e seu
desenvolvimento. A herança e a maturação, tampouco o são: determinam zonas de
possibilidades e impossibilida des, porém requerem a contribuição da experiência. O
interacionismo de Piaget é uma alternativa, tanto para as teses empiristas como para as
inatistas.
Além disso, se o conhecimento é fruto de uma interação entre sujeito e objeto, 'será
essencialmente uma construção. É certo que a criança se encontra com objetos
em
seu ambiente físico e com noções transmitidas por seu meio social. Porém,
segundo Piaget, não os adota tal e qual, mas os transforma e os assimila a suas estruturas
mentais (Piaget, 1978a, p. 35). Estes fatos permitem-nos compreender outra
das características dos estudos de Piaget e de seus colaboradores sobre a
aprendizagem: a importância dada, tanto nas seções de aprendizagem como em
sua medida, à atividade estruturante do sujeito que aprende e à lógica que rege
suas aquisições. A ênfase é posta no estudo da forma da aprendizagem, mais
que em seu conteúdo; no processo que o preside, mais que em seu resultado.
Acabamos de ver que Piaget concebe o desenvolvimento como uma sucessão de três
grandes períodos, caracterizados por suas respectivas estruturas, sendo que cada
uma das quais resulta da precedente, a integra e prepara a seguinte. Entretanto, que
mecanismos explicam essa evolução tão peculiar? (Piaget e Inhelder, 1969, p.
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152). Os três fatores invocados classicamente para explicar o desenvolvimento - a


maturação, a experiência com os objetos e a experiência com as pessoas - são, para
Piaget, fatores imprescindíveis para explicar o desenvolvimento. Desta forma, Piaget descarta tanto
as posições "inatistas" como as "maturacionistas", que conce bem
o desenvolvimento
como uma sucessão de atualizações de estruturas preexis tentes, sem que a
experiência desempenhe papel algum, como as posições empiris tas, que explicam o
desenvolvimento evocando a experiência e a aprendizagem como se o desenvolvimento
fosse um registro cumulativo de dados. Porém, os três fatores não são suficientes, segundo
Piaget, para explicar a direcionalidade e o caráter integrador do desenvolvimento mental. Piaget
evoca um quarto fator, endógeno, o equilíbrio. Este fator não é acrescentado
aditivamente aos outros três. Atua a título de coordenação: dá conta de uma
tendência apresentada em qualquer desenvolvimento, na medida em que todo
comportamento tende a assegurar um equilíbrio dos intercâmbios entre sujeito e
ambiente.
O equilíbrio é um fator interno, porém não geneticamente programado. É, segundo Piaget,
um processo de auto-regulação, ou seja, uma série de compensações ativas do sujeito
como reação a perturbações exteriores. O processo de equilíbrio é, na realidade, uma
propriedade intrínseca e constitutiva da vida orgânica e mental: todos os organismos vivos
mantêm um certo estado de equilíbrio nos intercâmbios com o meio, com o fim de
conservar sua organização interna dentro de alguns limites que marcam a fronteira
entre a vida e a morte. Para manter o equilíbrio, melhor dizendo, para compensar as
perturbações exteriores que rompem momentanea mente o equilíbrio, o organismo
possui um mecanismo regulador. As formas de pensamentos construídas no transcurso
do desenvolvimento, as estruturas cogniti vas que caracterizam cada um dos três estágios
mencionados, são, para Piaget, verdadeiros mecanismos de regulação, encarregados de manter
um certo estado de equilíbrio nos intercâmbios funcionais ou comportamentais
produzidos entre a pessoa e seu meio físico e social. Por isso, o equilíbrio não é
simplesmente um fator a mais do desenvolvimento, mas o fator que coordena e torna
possível a influência dos outros três: a maturação, a experiência com os objetos e a
experiência com as pessoas.
Os mecanismos reguladores, encarregados de manter e restabelecer o equilí brio nos
intercâmbios funcionais entre o ser humano e seu meio, variam no transcurso do
desenvolvimento. Nos níveis inferiores do desenvolvimento do intelecto,
somente são permitidas compensações pontuais, frente às perturbações externas;
têm, portanto, uma capacidade muito limitada, que se traduz em equilíbri os pouco
estáveis, de tal maneira que é muito fácil que qualquer nova perturbação produza um novo
estado de desequilíbrio. O desenvolvimento intelectual consistirá Precisamente na
construção de mecanismos reguladores que assegurem formas de equilíbrio cada vez mais
móveis, estáveis e capazes de compensar um número crescente de perturbações (Piaget,
1983, p. 61). Nos níveis superiores do desenvol vimento intelectual, no estágio das
operações formais, os mecanismos reguladores são de tal natureza, que permitem não apenas
compensar as perturbações reais, mas, inclusive, antecipare compensar perturbações
possíveis, o que se traduz, obviamen te, em equilíbrios muito mais estáveis.
O equilíbrio atua, assim, conforme Piaget, como um verdadeiro motor do desenvolvimento. O
sistema cognitivo dos seres humanos participa da tendência de todos os organismos vivos a
restabelecer o equilíbrio perdido, equilíbrio simples. Mas, além disso, e daí seu papel crucial na
proporciona para a psicologia genética, o sistema
explicação do desenvolvimento que
cognitivo humano mostra uma tendência a reagir diante das perturbações
externas, introduzindo algumas modifi
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cações em sua organização, que assegurem um equilíbrio melhor, ou seja, que


lhe permitam antecipar e compensar um número cada vez maior de perturbações
possíveis-equilibração progressiva. Este equilíbrio progressivo explica a constru
ção das estruturas cognitivas que caracterizam os sucessivos estágios do desenvol
vimento intelectual, já que "o equilíbrio, cedo ou tarde, é necessariamente progres sivo e constitui
um processo de superação tanto como de estabilização, reunindo de forma indissociável as
construções e as compensações" (Piaget, 1978b, p. 46).
Esta explicação da evolução mental por necessidades internas de equilíbrio determina,
fundamentalmente, a proposta dos estudos da aprendizagem: se o conhecimento e sua
evolução repousam, em última instância, sobre o processo de equilíbrio, não será
necessário explicar também as aprendizagens, aprendizagens de qualquer tipo, porém,
sobretudo as das estruturas lógicas, pela intervenção do processo de equilíbrio?

2. Equilibração, desenvolvimento e aprendizagem


No final dos anos cinqüenta, Piaget e seus colaboradores do Centro Internaci onal
de Epistemologia Genética abordam a aprendizagem em uma perspectiva epistemológica.
Dez anos mais tarde, Inhelder, Sinclair e Bovet voltam a estudar a aprendizagem em uma
perspectiva mais psicológica. Ainda que as propostas sejam diferentes, os resultados de
Inhelder, Sinclair e Bovet prolongam e precisam os de Piaget. Apresentaremos a
problemática e a metodologia de ambos os estudos e exporemos, a seguir, de
maneira uniforme, os principais resultados.

Problemática e metodologia
Em um momento em que predominam os enfoques empiristas, que tendem a
identificar o desenvolvimento com um acúmulo de aprendizagens sucessivas,
Piaget e seus colaboradores tentam demonstrar que, sem a intervenção de mecanis mos
reguladores endógenos — a equilibração -, é impossível explicar satisfatori amente as
aquisições novas e o desenvolvimento do pensamento racional. Daí as duas
questões de natureza essencialmente epistemológica, que presidem estes primeiros
estudos sobre a aprendizagem:
No caso de que seja possível uma aprendizagem das estruturas lógicas, serão
redutíveis os mecanismos que intervém na mesma aos mecanismos
subjacentes à aprendizagem de fatos, de ações, de procedimentos práticos ou de
leis físicas, ou melhor, faz falta postular que, para aprender uma estrutura lógica,
deve-se partir de outra estrutura lógica (e, de maneira geral, de aquisições
não aprendidas em sua totalidade)? Uma aprendizagem qualquer consiste
simplesmente em acumular novas aquisições, que provêm da experiência, ou
então necessita a intervenção de instrumentos lógicos para ser concretizada?
(Goustard, Gréco, Matalon e Piaget, 1959, p. 15).
Se é possível demonstrar que as estruturas lógicas podem ser aprendidas, a
tese "apriorista", que defende que o advento das estruturas lógicas é o resultado de uma
atualização de estruturas hereditárias, sem a contribuição da experiência, terá que ser
descartada. Se os resultados mostram, além disso, que a aprendizagem das
estruturas lógicas necessita basear-se em estruturas lógicas anteriores e que,
portan
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T

to, os mecanismos responsáveis por estas aprendizagens são diferentes dos de


outros conteúdos, então a tese empirista poderá também ser
descartada. Por último, se os resultados mostram que qualquer
aprendizagem não consiste somente em aquisições tiradas da experiência
física, mas que supõe a intervenção de instrumen tos lógicos, existirá um
segundo argumento contrário à tese empirista. Poderá ser aceita, então, a
posição interacionista, defendida por Piaget, segundo a qual a intervenção
necessária do indivíduo e dos objetos, em qualquer aprendizagem, vem
modulada por fatores internos de equilibração.
As experiências sobre a aprendizagem de estruturas lógicas adotam,
em linhas gerais, o mesmo paradigma experimental. Em todos os
estudos, a variedade de tarefas e de questões propostas aos sujeitos
(seguindo o método clínico de explora ção crítica), servem para
seguir o próprio processo de aprendizagem e não somente seu
resultado, em termos de rendimento, rapidez ou eficácia, como nas pesquisas
clássicas sobre a aprendizagem (Morf, Smedslund, Vinh-Bang e Wohlwill, 1959,
p. 17; Vonèche e Bovet, 1982, pp. 89-90).
A proposta teórica de Inhelder, Sinclair e Bovet é diferente daquela apresen tada
nesses primeiros estudos: o objetivo é observar o funcionamento da
estrutura ção do conhecimento através de sessões de aprendizagem. A
aprendizagem é, neste caso, um método para o estudo dos mecanismos
de construção cognitiva, em especial nos momentos cruciais de transição
entre um estágio e o seguinte (Inhelder, 1987, p. 667; Vinh-Bang, 1987, p. 30).
Dois aspectos destes mecanismos são objeto de particular atenção.
O primeiro refere-se às filiações entre estágios e as conexões entre
diferentes tipos de estruturação. Esta proposta vai além da descrição do
desenvolvimento proposta por Piaget, em termos de estágios, pois
interessa-se no porquê e no como das transições entre estágios. Uma
primeira maneira de estudar essas transições consiste em analisar
pormenorizadamente as defasagens horizontais: ver, por exemplo, se a
aprendizagem da conservação de coleções discretas favorece a
conservação da longitude, adquirida, de modo geral, mais tarde. Desta
maneira, é possível mostrar, conforme as autoras, quais são as
relações de filiação entre conteúdos cujas estruturas não são
simultâneas (o que denominam conexões "oblí quas"). Outra maneira de
abordá-las é analisando as ligações "laterais" entre diferentes tipos de
estrutura para o interior de um mesmo estágio. Por exemplo, estuda-se
se a aprendizagem da conservação física tem repercussões sobre a apren
dizagem da conservação geométrica ou aritmética, para compreender,
assim, o papel desempenhado por este tipo de transferências no
desenvolvimento cognitivo (Inhelder, Sinclair e Bovet, 1975, p. 35). Esta
proposição precisa a dos primeiros estudos, que haviam mostrado o
papel exercido por estruturas prévias na aprendi zagem de novas
estruturas, sem estudar com detalhes as relações entre ambas.
O segundo aspecto está relacionado ao estudo dos processos
dinâmicos responsáveis pela aprendizagem e, assim, pelo
desenvolvimento. De modo global, estes processos dinâmicos podem
ser estudados, analisando-se as condições nas quais o exercício e a
experiência permitem acelerar a aquisição de noções operató rias: um
exercício operatório tem as mesmas repercussões, se é apresentado em
sujeitos de níveis cognitivos diferentes? De modo mais específico, a análise dos
erros, dos conflitos e de sua resolução pelos indivíduos nas diferentes
tarefas de aprendizagem poderão ser indicadores importantes dos
aspectos dinâmicos que fazem progredir esses sujeitos. Este segundo
aspecto da problemática proposta por Inhelder, Sinclair e Bovet permite
abordar de maneira mais precisa o papel dinâmico desempenhado pelo
fator de equilibração no desenvolvimento e na aprendizagem.
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A metodologia seguida por essas experiências é parecida com a dos estudos


precedentes. As questões mais precisas, ligadas às defasagens, conexões e
conflitos exigem, entretanto, uma proposta experimental mais matizada (por exemplo, na
identificação de um nível operatório inicial dos sujeitos), uma escolha de tarefas de
aprendizagem que oportunizem a intervenção de esquemas determinados (por
exemplo, confrontar exercícios de conservação de coleções discretas com exercícios
de conservação da longitude, para estudar a relação entre esses dois tipos de
esquemas) e, sobretudo, uma análise mais específica dos procedimentos efetivos dos
sujeitos, com seus erros, conflitos e flutuações. Inclui-se, além disso, um segundo pós-teste,
que permite apreciar a maior ou menor estabilidade das aquisições avaliadas no
primeiro pós-teste.

Principais resultados
1. É possível conseguir uma aprendizagem operatória. Tanto as pesquisas de Piaget
e de seus colaboradores, como as de Inhelder, Sinclair e Bovet, mostram que se pode facilitar
a aquisição de noções ou operações, mediante as sessões de aprendizagem. Estes
progressos indicam que é possível conseguir acelerações da construção operatória:
alguns sujeitos, com certo nível cognitivo, adquirem, após as sessões de aprendizagem,
as competências do nível superior. Este resultado global, que precisaremos na
seqüência, contradiz as teses "hereditárias" e "maturacionis tas”, que
postulam que o conhecimento e seu desenvolvimento são devidos, exclu
sivamente, a mecanismos internos. A possibilidade de modificar a rapidez na aquisição de
certas noções operatórias, com a ajuda da experiência, demonstra que o
conhecimento e seu desenvolvimento não são redutíveis a fatores hereditários, ou à
maturação (Inhelder, Sinclair e Bovet, 1975, p. 295).
2. A aprendizagem operatória depende do tipo de atividades realizadas pelo sujeito.
Quando se compara a eficácia das aprendizagens baseadas em constatações empí
ricas (experiência física) com aquelas que se alicerçam em atividades que supõem
uma coordenação de ações (experiência lógico-matemática), nas quais o sujeito exerce uma
tarefa relacionada logicamente com a noção que deve aprender, os resultados
indicam que a experiência física é ineficaz para a aprendizagem das estruturas lógicas.
Por exemplo, Smedslund não constata progressos na aquisição da transitividade de pesos
(prever que, se o peso de um primeiro objeto é igual ao de um segundo, e este, igual ao de
um terceiro, o do primeiro é necessariamente igual ao do terceiro), quando os sujeitos
participam em sessões de treinamento, que consistem em repetidas verificações de
igualdade ou desigualdade de pesos em uma balança. Morf não consegue, tampouco, acelerar
a aquisição da inclusão de classes (prever que uma subclasse é, necessariamente, menos
extensa que uma classe), quando propõe aos sujeitos repetidas constatações de desigualdades
entre uma subclasse e uma classe (comparações, por exemplo, da quantidade de líquido vertida
em copos amarelos, comparada com a mesma quantidade de líquido vertida em copos
amarelos e azuis). Em compensação, obtém melhores resultados, quando deixa que os
sujeitos manipulem o material e, em especial, quando submete esses sujeitos a um
exercício operatório relativo à interseção. Do mesmo modo, Wohlwill consegue acelerar
a aquisição da conservação de coleções discretas (aceitar que o número de elementos de
duas coleções continua sendo o mesmo, ainda que sejam modificadas suas
disposições), mediante exercícios relativos à soma e subtração de
elementos.
Estes resultados parecem, pois, dar resposta a uma das questões formuladas
por Piaget: para aprender uma estrutura lógica é necessário ativar outras
estruturas
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lógicas, ou seja, utilizar estruturas que não foram internalizadas no transcurso das
sessões experimentais (Goustard, Gréco, Matalon e Piaget, 1959, pp. 181-182). Isto
não quer dizer que os exercícios baseados na experiência física não desempenhem
papel algum na aquisição de novos conhecimentos, uma vez que os resultados
das pesquisas de Smedslund e Morf mostram que podem favorecer a aprendizagem de
conteúdos físicos (fatos, ações, regularidades, etc.). Essas aprendizagens são obtidas
mediante a abstração simples, que permite extrair as propriedades pertinentes aos
objetos. A experiência física, entretanto, é insuficiente para a aquisição de estruturas
operatórias, que precisa da intervenção de uma atividade lógico-matemática, com base
na coordenação de esquemas e ações, e não só na leitura das propriedades físicas
dos objetos. Somente deste modo, por meio de uma abstração reflexiva, que
possibilita extrair dados das coordenações das ações e não só dos objetos, o sujeito
pode ascender à construção das estruturas lógicas (ibidem, pp. 179-183).
3. Qualquer aprendizagem depende do nível cognitivo inicial do sujeito. As apren
dizagens necessitam, pois, recorrer a coordenações de ações não aprendidas
direta mente nas sessões experimentais. Como as possibilidades de coordenação
mudam ao longo do desenvolvimento, a aprendizagem será feita em função do nível de
desenvolvimento cognitivo do sujeito. Todos os resultados das pesquisas confir mam este fato.
De maneira geral, somente progridem os sujeitos que se encontram em um nível
operatorio próximo ao da aquisição da noção que será aprendida (nível chamado de
"intermediário", pois está a meio caminho entre a ausência da noção e sua aquisição
completa). Por exemplo, na aprendizagem da noção de conservação de quantidades
contínuas (afirmar que a quantidade de líquido permanece a mesma, ainda que se altere a
forma do recipiente), dos quinze sujeitos que se situam
em um nível de não-conservação, somente dois progridem a um nível intermediário, e nenhum
a um nível de conservação; em troca, dos dezenove sujeitos cujo nível é
intermediário, antes das sessões de aprendizagem, dezesseis progridem e
alcançam a noção de conservação (ibidem, p. 74).
A ordem hierárquica das condutas que aparecem nos pré-testes volta a ser encontrada
depois das sessões de aprendizagem: se um sujeito localiza-se em um nível superior a outro,
no pré-teste, tenderá, também, a situar-se em um estágio superior nos pós-testes, ainda
que ambos progridam. Assim, na experiência que comentávamos, sobre a aprendizagem da
conservação do líquido, somente cinco sujeitos, de trinta e quatro, mudam de categoria,
quando se compara o pré-teste com os pós-testes (ibidem, p. 76).
Ao final das sessões de aprendizagens, a distância que separa os níveis dos sujeitos
é maior que nos pré-testes, fenômeno que mostra que as situações experi mentais atuam de
maneira diferente, segundo os níveis cognitivos dos sujeitos (ibidem pp.
295-296).
Os sujeitos que, graças à aprendizagem, alcançam o nível operatório, mostram
uma maior estabilidade em sua aquisição, do que os sujeitos que só conseguem
atingir o nível intermediário. Estes últimos manifestam uma certa flutuação entre o
primeiro e o segundo pós-testes: alguns decaem para o seu nível anterior, outros
evoluem espontaneamente (ibidem, pp. 296-297).
Os estudos de Piaget e de seus colaboradores mostram que, tal como nas aprendizagens
operatórias que acabamos de descrever, as aprendizagens de fatos, de ações, de
procedimentos práticos ou de leis físicas dependem também do nível cognitivo dos
sujeitos. Por exemplo, quando se trata de aprender como recolher ordenadamente uma série
de pérolas, percorrendo um labirinto com várias ramifi cações, os sujeitos de cinco
anos, apesar de seus múltiplos ensaios, não conseguem aprender; os de seis
anos conseguem o objetivo progressivamente; os de onze,
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rapidamente, e, naqueles com mais de doze anos, a compreensão é imediata


(Goustard, Gréco, Matalon e Piaget, 1959, p. 161).
Todos os resultados, na medida em que mostram que a aprendizagem
depen de do nível cognitivo dos sujeitos, apóiam a tese fundamental de Piaget,
segundo a qual qualquer aprendizagem faz intervir elementos lógicos que provém
dos meca nismos gerais do desenvolvimento e que não foram aprendidos somente em função
da experiência.
4. Os conflitos desempenham um papel importante na aprendizagem. Ao analisar
minuciosamente quais são as relações entre esquemas que se estruturam em
momentos diferentes - conexões obliquas — (pensemos nos esquemas relativos à
conservação de coleções discretas, comparados com os esquemas da
conservação da longitude) e entre esquemas diferentes, porém
contemporâneos-conexões laterais - (por exemplo, os da inclusão de classes com os
da conservação de quantidades contínuas), Inhelder, Sinclair e Bovet manifestam o
papel dinâmico que desempe nham as coordenações progressivas entre subsistemas
operatórios. Aquilo que é aprendido pelo sujeito em um desses subsistemas lhe serve
para fazer progressosem outro subsistema (por exemplo, o da conservação da
matéria), mas esses progressos não consistem em simples generalizações.
Produz-se uma verdadeira reconstrução dos conhecimentos adquiridos em um
domínio, no novo domínio, reconstrução que necessita novas coordenações entre
esquemas.
Muitas vezes, essas novas coordenações provocam desequilíbrios momentá
neos na conduta dos sujeitos. Esses desequilíbrios são percebidos pelos sujeitos como
conflitos e, inclusive, como contradições. Os resultados mostram que, em geral,
esses conflitos desempenham um papel positivo na aquisição de novos
conhecimentos (Inhelder, Sinclair e Bovet, 1975, p. 312). Por exemplo, em uma das pesquisas,
os sujeitos devem construir um caminho reto, de igual longitude à de um caminho
composto por cinco segmentos (o modelo pode ser um caminho retilíneo ou um
caminho em ziguezague). Contudo, os sujeitos só dispõem de segmentos mais curtos
do que os do modelo: se escolhem sete segmentos, conse guem a mesma
longitude que o modelo, porém não respeitam, então, a correspon dência numérica
termo a termo, e, se escolhem cinco elementos, a longitude é mais curta. Esta
incompatibilidade entre os esquemas de correspondência ordinal (construir um caminho
que não ultrapasse os limites do caminho no modelo) e os de correspondência
numérica (construir um caminho com o mesmo número de elementos) não
perturba alguns sujeitos que, de acordo com as situações, oscilam entre ambas as
soluções, sem notar a contradição. Outros sentem esta incompati bilidade como um
conflito e tentam, então, ultrapassá-lo, propondo soluções de compromisso que mostram
as tentativas de coordenar os dois tipos de esquemas, em princípio, inconciliáveis. Por
exemplo, alguns sujeitos rompem um dos seg mentos, para obter uma unidade
suplementar e, deste modo, não ultrapassar o limite do modelo. Estes conflitos aparecem
antes de que os sujeitos descubram a compensação operatória ("deve-se escolher mais
elementos, porque são meno res") e atuam de modo importante na aprendizagem:
os sujeitos que não mostram conflito algum progridem menos do que os que tomam
consciência das contradi ções entre ambos os esquemas e buscam soluções de
compromisso para superá-los (ibidem, pp. 163-204).
A importância dos erros, dos conflitos e de sua resolução na aprendizagem
mostra, uma vez mais, a existência de um processo de equilibração, processo esse que
consiste em trazer uma série de compensações frente a desequilíbrios momen tâneos,
até conseguir uma nova estabilidade, graças a uma coordenação e integração
mais completa entre esquemas.
LEER

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CÉSAR COLL, JESÚS PALACIOS & ALVARO
MARCHESI

A importância dada por Piaget ao processo de equilibração na


aprendizagem operatória é bem patente, quando esse autor comenta,
no prefácio do livro, os resultados dos estudos de Inhelder, Sinclair e
Bovet. Evoca três problemas ainda não resolvidos completamente: são
estáveis as aquisições obtidas graças à aprendiza gem ou desaparecem
depois de algum tempo?; as acelerações obtidas mediante a
aprendizagem, ainda que sejam estáveis, são acompanhadas de desvios, se
compa radas às aquisições espontâneas?; as aquisições obtidas pela
aprendizagem podem servir de ponto de partida para novas aquisições
espontâneas? (ibidem, p.15). Adivinha-se facilmente, nestas perguntas, a
desconfiança de Piaget diante das aquisições operatórias "artificiais" e seu
ceticismo com relação ao que se chamou de "questão americana": por que
não se faz todo o possível para acelerar o advento das aquisições
operatórias, oferecendo à criança experiências e estímulos adequados?

"Para cada sujeito, a velocidade de transição de um estágio a outro corresponde,


sem dúvida, a uma "efetivação", nem muito lenta, nem muito rápida;
a solidez e até a fecundidade de uma organização (ou de uma
estruturação)nova depende de conexões que não podem ser nem
instantâneas, nem indefinidamente atrasadas, pois perderiam, então, seu
poder de combinação" (Piaget, 1968, p. 290).

A riqueza e variedade destes resultados experimentais e teóricos sobre a


aprendizagem não devem nos fazer esquecer de suas limitações. Muitos
dos resultados de Piaget e de seus colaboradores, devido à natureza
epistemológica de sua proposta, são respostas globais que mostram,
certamente, a impossibilidade de explicar as aprendizagens por fatores
exclusivamente exteriores e endógenos, mas que não trazem uma visão
precisa do processo de aprendizagem, entendido como interação entre o
sujeito, o conteúdo dessa aprendizagem, seus esquemas cognitivos e o
método nela empregado, mediado, muitas vezes, por outras pessoas. As
pesquisas de Inhelder, Sinclair e Bovet especificam alguns desses
pontos, ao centra rem-se na dinâmica da mudança (conflitos, erros e
contradições) e ao mostrarem a relevância dos conteúdos de estruturação em
qualquer aprendizagem. Porém, estamos ainda longe das situações
didáticas concretas, nas quais a aprendizagem não depende apenas da
competência do sujeito, da maneira como este atualiza sua competência de
modo efetivo e também do papel desempenhado, em todo o
processo, pelo professor, que tenta exercer uma influência educativa.
WINNER

3.
A perspectiva
pedagógica
Recordávamos, no princípio deste capítulo, que Piaget é um biólogo por
formação, que se torna psicólogo com o fim de estudar questões
epistemológicas. Convém agora acrescentar que seu interesse pelos
problemas educativos ou pelas aplicações da teoria genética no
âmbito da educação foi muito mais secundário, como se pode atestar pelo
fato de que, em sua imensa obra - centenas de livros e artigos de natureza
teórica e experimental — tão somente dois livros (Piaget, 1969;
· 1972) e alguns artigos versam sobre temas educativos. Este fato é
surpreendente porque Piaget é, sem dúvida, um dos pensadores deste
século que mais contribuiu com sua obra intelectual para enriquecer e
renovar o pensamento pedagógico contemporâneo. Para entender esta
aparente contradição, é necessário considerar dois tipos de fatores. Em
primeiro lugar, a coincidência histórica entre, por um lado, a ampla difusão das
obras de Piaget nos anos cinqüenta e sessenta e, por outro, a preocupação
dominante em conseguir uma melhora dos sistemas educativos,
preocupação auspiciada pelo desafio científico e tecnológico e
favorecida por um
DESENVOLVIMENTO PSICOLÓGICO E EDUCAÇÃO,
II
115

período de prosperidade econômica. Em segundo lugar, a própria natureza da psicologia


genética, que lhe confere um atrativo considerável, como ponto de referência
para provocar uma reforma do sistema educativo sobre bases científicas.
Com efeito, como vimos, a obra de Piaget proporciona uma ampla e
elaborada resposta, respaldada, além disso, por um considerável suporte empírico,
ao proble ma de como se constitui o conhecimento científico; ao estar
formulada em termos de como se passa de um estado de menor
conhecimento a um estado de maior conhecimento, parece diretamente pertinente
para a compreensão da aprendizagem escolar; descreve a evolução das
competências intelectuais, desde o nascimento até a adolescência, analisando a
gênese de noções e conceitos — espaço, tempo, causalidade, movimento, acaso, lógica
das classes, lógica das relações, etc. — que têm um parentesco evidente com alguns
conteúdos escolares, em especial de matemática e de ciências; e, sobretudo, proporciona
uma explicação dos processos e mecanismos que intervêm na aquisição de
conhecimentos novos. Se a tudo isso acrescentamos os estudos sobre a
aprendizagem, cujos resultados resumimos anteriormente, poderemos entender sem
dificuldade o enorme interesse que des perta a psicologia genética no marco destas
tentativas de reforma da educação escolar. Desta maneira, e de forma um tanto
afastada dos interesses mais diretos de Piaget - epistemológicos, em primeiro plano e
psicológicos, de forma subsidiária
- produz-se amiúde uma aproximação à psicologia genética, motivada essencial mente por
problemas educativos.
As aplicações educativas da psicologia genética caracterizam-se por seu
volume e também por sua diversidade: diversidade de contextos educativos (edu
cação familiar, educação escolar, educação extra-escolar, etc.); diversidade de níveis de ensino
(pré-escolar, primário, secundário, ensino superior, etc.); diversidade de conteúdos
(matemática, ciências naturais, ciências sociais, linguagem oral, leitura, escrita, etc.);
diversidade de problemáticas (diferenças individuais, educação espe cial, elaboração
de materiais didáticos, formação do professorado, etc.) e diversida de dos aspectos do processo
educativo referidos (objetivos, conteúdos, avaliação, método de ensino, etc.). Na seqüência,
descreveremos brevemente os três tipos de aplicações diretas da psicologia genética
que, em nosso entendimento, tiveram um maior impacto na teoria e na prática
educativas, o que nos permitirá identificar, junto às repercussões altamente
positivas de todas elas, os problemas mais freqüentes com os quais se deparam
as tentativas de utilizar a psicologia genética no âmbito educacionals
1. O desenvolvimento cognitivo e os objetivos da educação escolar. Como
assinala mos, para a psicologia genética o desenvolvimento consiste na construção de uma
série ordenada de estruturas intelectuais, que regulam os intercâmbios funcionais ou
comportamentais da pessoa com seu meio. Deste modo, a ordem de construção dessas
estruturas tem um certo caráter universal — repete-se em todos os membros da espécie
humana, ainda que apresente certas defasagens temporais entre um indivíduo e outro —
responde ao princípio de equilibração progressiva: cada estrutura assegura um
equilíbrio com mais mobilidade, mais estável, e capaz de compensar um número considerável
de perturbações que a anterior. Cada estrutura oportuniza, pois, uma riqueza maior de
intercâmbios e, portanto, uma maior capacidade de aprendizagem que a anterior. Se isto é
assim, ou seja, se o desenvol vimento consiste na construção de uma série de estruturas que
determinam a natureza e a amplitude dos intercâmbios da pessoa com seu meio e que,
além disso, sucedem-se invariavelmente, respeitando a tendência à um melhor equilíbrio,
podemos, então, concluir que o objetivo último da educação deve ser
potencializar e favorecer a construção de tais estruturas.
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MARCHESI

No caso da educação pré-escolar, por exemplo, a ação pedagógica estará


dirigida fundamentalmente para potencializar e favorecer a construção das
estrutu ras operatórias concretas e as competências que as caracterizam:
reversibilidade, juízo moral autônomo, reciprocidade nas relações, coordenação dos
pontos de vista, etc. (Kamili, 1972). Do mesmo modo, na educação primária, o
objetivo último consistirá em potencializar e favorecer a construção progressiva das
estruturas operatórias formais e das competências cognitivas, afetivas e relacionais
que as caracterizam (Lawson, 1975). Em geral, qualquer que seja o nível de
ensino em que nos situemos, a educação escolar terá como meta contribuir para que
os alunos progridam através dos sucessivos estágios ou níveis que configuram
o desenvolvi mento. Deste modo, todas as decisões didáticas — desde a seleção de
conteúdos e a organização de atividades de aprendizagem, até as intervenções do
professor, ou os procedimentos de avaliação — ficam sujeitas ao alcance deste
objetivo último.
O fato de ressituar as aprendizagens escolares no marco mais amplo dos
processos de desenvolvimento e de conceber a educação como uma contribuição para
esses processos constituiu, sem dúvida, um dos subsídios mais importantes da
psicologia genética para a teoria e para a prática educativas contemporâneas. Todavia,
a proposta de erigir o desenvolvimento e, mais concretamente, o desenvol
vimento entendido como um processo de construção de estruturas
progressivamen te mais móveis, mais estáveis e mais capazes de compensar
possíveis perturbações, como objetivo último da educação escolar encerra
alguns perigos óbvios e pode conduzir facilmente a propostas erróneas.
Assim, por exemplo, pode-se chegar a esquecer que a educação escolar, como todo tipo
de educação, é essencialmente uma prática social, entre cujas funções ocupa um
lugar destacado a transmissão dos saberes historicamente construídos e
culturalmente organizados. Ou que é totalmente incorreto extrapolar a
tendência natural à equilibração progressiva, que caracteriza a construção das
estruturas cognitivas, à construção dos saberes culturais; determinadas
aprendizagens especí ficas, por exemplo, o conhecimento de valores e normas
que regem o grupo social, o conhecimento do ambiente físico ou o domínio da língua
escrita — podem ser, neste caso, tão determinantes para a natureza e a
amplitude dos intercâmbios reals que a criança pode ter com seu meio, como as
competências cognitivas que lhe são conferidas pelo fato de haver alcançado um
certo nível de desenvolvimento.
2. O nível de desenvolvimento e a capacidade de aprendizagem. Um dos resultados mais
contundentes das pesquisas de Piaget e de seus colaboradores é, como vimos, que a
capacidade de aprendizagem depende do nível de desenvolvimento cognitivo do sujeito.
A possibilidade de que um aluno possa realizar uma determinada aprendizagem
está obviamente limitada por seu nível de competência cognitiva. Assim, por
exemplo, sabemos que as crianças de nível pré-operatório não podem aprender as
operações aritméticas elementares, porque não possuem ainda os instrumentos
intelectuais que requer este tipo de aprendizagem; ou que crianças que se
situam em um nível de desenvolvimento operatório concreto são incapazes de
raciocinar sobre o possível e que, em conseqüência, dificilmente poderão efetivar
aprendizagens específicas que impliquem, suponhamos, os conceitos de probabili
idade ou de acaso.
É, pois, aconselhável analisar os conteúdos da aprendizagem escolar, com o
fim de se determinarem as competências cognitivas necessárias para se possa
assimilá-los corretamente. Se forçamos um aluno a aprender um conteúdo que
ultrapassa suas capacidades, muito provavelmente o resultado, se é que se obtém um
resultado, será a pura memorização mecânica ou a compreensão incorreta. Os
VONNAIRE

DESENVOLVIMENTO PSICOLÓGICO E EDUCAÇÃO, II


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níveis de desenvolvimento identificados pela psicologia genética, na medida em que


definem níveis de competência cognitiva que determinam o que o sujeito pode
compreender, fazer ou aprender, em um momento determinado, são úteis como ponto de
referência para selecionar os conteúdos do ensino. Mesmo assim, propor cionam critérios
sobre a ordem ou seqüência a seguir na apresentação dos conteú dos, em função da
hierarquia de competências cognitivas que pressupõe sua aprendizagem. Um exemplo
típico disto é a hierarquia de competências cognitivas que aparece na construção do espaço
representativo. As pesquisas psicogenéticas mostram que a criança compreende e utiliza,
em primeiro lugar, as propriedades topológicas e somente depois é capaz de dominar as
propriedades projetivas e euclidianas. Esta descoberta pode servir, então, como ponto de partida
para uma seqüenciação dos conteúdos do ensino da geometria, que considere tanto
as idades médias de compreensão dos diferentes tipos de relações espaciais, como a ordem
psicogenética observada.
Durante as últimas décadas, os programas escolares foram adaptando pro
gressivamente a complexidade conceptual dos conteúdos propostos, e sua ordem
de apresentação, ao nível de desenvolvimento médio dos alunos e, portanto, à sua capacidade de
aprendizagem. Ainda que uma análise minuciosa dos programas atuais permitisse detectar,
provavelmente, a persistência de alguns desajustes, em termos gerais, o grau de adequação
que se conseguiu é bastante alto. O papel desempenhado pela psicologia genética no
alcance desta conquista foi, sem qual
quer sombra de dúvida, de primeira importância.
Contudo, a adequação dos conteúdos às competências cognitivas dos alunos é um
recurso didático que apresenta algumas limitações claras. A primeira limitação tem
sua origem no fato de que as idades médias em que se alcançam os níveis
sucessivos de competência cognitiva apresentam somente um indicativo. Ainda
que a ordem seja constante para qualquer sujeito, não é estranho encontrar variações —
atrasos ou avanços relativamente à idade média - de até três ou quatro anos, segundo o meio
sócio-cultural e a história pessoal dos sujeitos. Deste modo, a seqüenciação dos
conteúdos sobre a base da média das idades em que os alunos alcançam as competências
cognitivas necessárias para a aprendizagem, pode dar lugar a desajustes importantes,
quando se aplica a casos particulares. Uma alterna tiva para esta dificuldade
consiste em avaliar, antes que comece o ensino, as competências cognitivas dos
alunos, de tal maneira que seja possível, então, deter minar com precisão os
conteúdos que podem assimilar e os que escapam a suas possibilidades reais de
compreensão. Esta avaliação é feita fazendo com que os alunos resolvam um conjunto
de tarefas ou provas operatórias, que não são mais que uma versão semi-padronizada das
tarefas experimentais utilizadas originalmente por Piaget e por seus colaboradores, para estudar
a gênese da competência intelec tual. Entretanto, o diagnóstico operatório, como se denomina
habitualmente este tipo de avaliação, apresenta alguns inconvenientes teóricos, metodológicos
e práti cos, que dificultam enormemente seu emprego generalizado.
Uma segunda limitação, mais importante que a anterior, é que freqüentemente não
se torna fácil determinar com exatidão as competências cognitivas que atuam como
requisitos na aprendizagem de conteúdos escolares concretos. Em geral, pode se dizer que
o nível de desenvolvimento cognitivo age como uma condição necessá ria, porém não
suficiente, para a aprendizagem dos conteúdos escolares. Deste modo, por exemplo,
a aprendizagem que o aluno pode realizar sobre o funciona mento do sistema respiratório ou
sobre o funcionamento das instituições que regulam a vida municipal está, obviamente,
condicionada por sua capacidade cognitiva; se se encontra em um nível de desenvolvimento
preparatório, sua

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