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CÉSAR COLL, JESÚS PALACIOS & ALVARO
MARCHESI
a psicologia da época não traz elementos teóricos e empíricos
suficientes para fundamentar uma epistemologia, o que o leva a elaborar
uma teoria psicológica que possa cumprir essa função, a teoria
psicogenética. Porém, por que "genética"?
Para Piaget, o conhecimento é um processo e, como tal, deve ser estudado
em seu devir de maneira histórica. Por isto, sua epistemologia não se
contenta com a resposta à pergunta "como é possível o conhecimento?"; tenta,
além disso e sobre tudo, estudar como muda e evolui o conhecimento. Piaget
define a epistemologia genética como a disciplina que estuda os
mecanismos e processos mediante os quais se passa "dos estados de
menor conhecimento aos estados de conhecimento mais avançado"
(Piaget, 1979, p. 16), sendo o critério para julgar se um estado de
conhecimento é mais ou menos avançado o de sua maior ou menor
proximidade ao conhecimento científico. A psicologia genética, junto com a
análise formalizante-que se ocupa do estudo do conhecimento do ponto de
vista de sua validade formal-e à análise histórico-crítica que estuda a
evolução do conhecimento científico, em seus aspectos históricos e
culturais, converte-se em um dos métodos, talvez o mais característico, da
epistemologia genética. O método psicogenético complementa os outros dois,
no plano do desenvolvimento individual: estuda como os seres huma nos
passam de um estado de menor conhecimento a um estado de maior
conheci mento no transcurso de seu desenvolvimento. Qualquer
questão epistemológica e, em conseqüência, qualquer questão
psicológica, deverá, pois, ser proposta em uma perspectiva genética.
O tema da aprendizagem não escapa a esta exigência. Piaget e seus
colabora dores o abordam em íntima conexão com o
desenvolvimento cognitivo. O nível de competência intelectual de uma
pessoa em um determinado momento de sua evolução depende da natureza
de seus esquemas, do número dos mesmos e da maneira como se
combinam e coordenam entre si (Coll, 1985, p. 35). Tendo em mente estes
critérios, Piaget concebe o desenvolvimento cognitivo como uma
sucessão de estágios e subestágios caracterizados pela forma
especial em que os esquemas - de ação ou conceptuais - se
organizam e se combinam entre si, formando estruturas. Deste modo, a
descrição que nos é oferecida do desenvolvimento cognitivo em termos de
estágios é uma visão estrutural, inseparável da análise formalizante.
Como se sabe, a psicologia genética identificou três grandes estágios ou períodos
evolutivos no desenvolvimento cognitivo: um estágio sensório-motor, que
vai do nascimento até os dezoito/vinte e quatro meses,
aproximadamente, e que culmina com a construção da primeira
estrutura intelectual: o grupo dos desloca mentos; um estágio de inteligência
representativa ou conceptual, que vai dos dois anos até os dez/onze anos,
aproximadamente, e que culmina com a construção das estruturas
operatórias concretas; finalmente, um estágio de operações formais, que
desemboca na construção das estruturas intelectuais próprias do
raciocínio hipoté tico-dedutivo, até os quinze/dezesseis anos?.
Cada estágio marca o advento de uma etapa de equilíbrio, uma etapa de
organizações das ações e operações do sujeito, descrita mediante uma
estrutura lógico-matemática. O equilíbrio peculiar a cada uma dessas etapas
não é alcançado, obviamente, de uma vez só, senão que vem
precedido por uma etapa de preparação. Contudo, para que possamos
falar de "estágios", é preciso, segundo Piaget, que sejam cumpridas três
condições: a ordem de sucessão dos estágios deve ser constan te para
todos os sujeitos, ainda que as idades médias correspondentes a cada etapa
possam variar de uma população para outra; um estágio deve poder ser
caracteri zado por uma forma de organização (estrutura de conjunto);
e as estruturas que correspondem a um estágio integram-se no
estágio seguinte, como caso particular (Piaget, 1956). Mesmo que a
ordem de sucessão dos estágios seja sempre a mesma,
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pode ocorrer que noções que se baseiam em estruturas operatórias idênticas, mas
que versam sobre conteúdos diferentes, não sejam adquiridas de maneira simultâ nea. Sabe-se,
por exemplo, que os indivíduos adquirem a conservação de coleções discretas dois anos antes,
em média, que a conservação da longitude. Estes fenôme nos, que Piaget qualifica como
"defasagens horizontais", indicam que as transições de um estágio a outro são mais
complexas do que se poderia pensar, em uma primeira aproximação. .
A visão do desenvolvimento organizado em estágios sucessivos, cujos níveis de
equilíbrio podem ser descritos mediante estruturas lógicas, determina também, em grande
parte, a problemática das pesquisas sobre a aprendizagem. Qualquer aprendizagem deverá
ser medida em relação às competências cognitivas que oferece cada estágio; este último
indicará, pois, de acordo com Piaget, as possibili dades de aprender que tem o sujeito. Por
isto, será necessário definir o nível cognitivo dos sujeitos antes das sessões de
aprendizagem. Deverá ser visto, também, em que condições é possível que esses sujeitos
adquiram, depois de um treinamento adequado, um nível cognitivo superior ao que possuíam
antes das referidas sessões de aprendizagem. Também deverá ser observado em que
condições é possível que os sujeitos adquiram, depois de um treino adequado, um nível cognitivo
superior ao que possuíam antes das sessões de aprendizagem. De todas as
aprendizagens, será essencial estudar as que se aplicam a estruturas
lógico-matemáticas (seriação, inclusão de classes, correspondência numérica,
conservação, etc.), chamadas tam bém de aprendizagens operatórias". Poder-se-á, então,
analisar se a lógica que rege tais aprendizagens é a mesma que rege as outras (de fatos,
de ações, de leis físicas, de procedimentos práticos, etc.).
Dizer que toda questão epistemológica deverá ser abordada geneticamente não basta,
para saber que papéis desempenham o sujeito e o objeto no processo de conhecimento,
respectivamente. Para Piaget, este processo é fundamentalmente interativo. O objeto existe,
contrariamente ao que postulam as teses idealistas extremas, porém somente pode ser
conhecido através de aproximações sucessivas - que dependem dos esquemas mentais
do sujeito, em oposição ao que se defende ria a partir uma postura realista, também
extrema que mudam, como vimos, ao longo do desenvolvimento. A objetividade não é,
pois, para Piaget, um dado imediato, mas exige um trabalho de elaboração por
parte do sujeito. A experiência não é suficiente para explicar o conhecimento e seu
desenvolvimento. A herança e a maturação, tampouco o são: determinam zonas de
possibilidades e impossibilida des, porém requerem a contribuição da experiência. O
interacionismo de Piaget é uma alternativa, tanto para as teses empiristas como para as
inatistas.
Além disso, se o conhecimento é fruto de uma interação entre sujeito e objeto, 'será
essencialmente uma construção. É certo que a criança se encontra com objetos
em
seu ambiente físico e com noções transmitidas por seu meio social. Porém,
segundo Piaget, não os adota tal e qual, mas os transforma e os assimila a suas estruturas
mentais (Piaget, 1978a, p. 35). Estes fatos permitem-nos compreender outra
das características dos estudos de Piaget e de seus colaboradores sobre a
aprendizagem: a importância dada, tanto nas seções de aprendizagem como em
sua medida, à atividade estruturante do sujeito que aprende e à lógica que rege
suas aquisições. A ênfase é posta no estudo da forma da aprendizagem, mais
que em seu conteúdo; no processo que o preside, mais que em seu resultado.
Acabamos de ver que Piaget concebe o desenvolvimento como uma sucessão de três
grandes períodos, caracterizados por suas respectivas estruturas, sendo que cada
uma das quais resulta da precedente, a integra e prepara a seguinte. Entretanto, que
mecanismos explicam essa evolução tão peculiar? (Piaget e Inhelder, 1969, p.
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Problemática e metodologia
Em um momento em que predominam os enfoques empiristas, que tendem a
identificar o desenvolvimento com um acúmulo de aprendizagens sucessivas,
Piaget e seus colaboradores tentam demonstrar que, sem a intervenção de mecanis mos
reguladores endógenos — a equilibração -, é impossível explicar satisfatori amente as
aquisições novas e o desenvolvimento do pensamento racional. Daí as duas
questões de natureza essencialmente epistemológica, que presidem estes primeiros
estudos sobre a aprendizagem:
No caso de que seja possível uma aprendizagem das estruturas lógicas, serão
redutíveis os mecanismos que intervém na mesma aos mecanismos
subjacentes à aprendizagem de fatos, de ações, de procedimentos práticos ou de
leis físicas, ou melhor, faz falta postular que, para aprender uma estrutura lógica,
deve-se partir de outra estrutura lógica (e, de maneira geral, de aquisições
não aprendidas em sua totalidade)? Uma aprendizagem qualquer consiste
simplesmente em acumular novas aquisições, que provêm da experiência, ou
então necessita a intervenção de instrumentos lógicos para ser concretizada?
(Goustard, Gréco, Matalon e Piaget, 1959, p. 15).
Se é possível demonstrar que as estruturas lógicas podem ser aprendidas, a
tese "apriorista", que defende que o advento das estruturas lógicas é o resultado de uma
atualização de estruturas hereditárias, sem a contribuição da experiência, terá que ser
descartada. Se os resultados mostram, além disso, que a aprendizagem das
estruturas lógicas necessita basear-se em estruturas lógicas anteriores e que,
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Principais resultados
1. É possível conseguir uma aprendizagem operatória. Tanto as pesquisas de Piaget
e de seus colaboradores, como as de Inhelder, Sinclair e Bovet, mostram que se pode facilitar
a aquisição de noções ou operações, mediante as sessões de aprendizagem. Estes
progressos indicam que é possível conseguir acelerações da construção operatória:
alguns sujeitos, com certo nível cognitivo, adquirem, após as sessões de aprendizagem,
as competências do nível superior. Este resultado global, que precisaremos na
seqüência, contradiz as teses "hereditárias" e "maturacionis tas”, que
postulam que o conhecimento e seu desenvolvimento são devidos, exclu
sivamente, a mecanismos internos. A possibilidade de modificar a rapidez na aquisição de
certas noções operatórias, com a ajuda da experiência, demonstra que o
conhecimento e seu desenvolvimento não são redutíveis a fatores hereditários, ou à
maturação (Inhelder, Sinclair e Bovet, 1975, p. 295).
2. A aprendizagem operatória depende do tipo de atividades realizadas pelo sujeito.
Quando se compara a eficácia das aprendizagens baseadas em constatações empí
ricas (experiência física) com aquelas que se alicerçam em atividades que supõem
uma coordenação de ações (experiência lógico-matemática), nas quais o sujeito exerce uma
tarefa relacionada logicamente com a noção que deve aprender, os resultados
indicam que a experiência física é ineficaz para a aprendizagem das estruturas lógicas.
Por exemplo, Smedslund não constata progressos na aquisição da transitividade de pesos
(prever que, se o peso de um primeiro objeto é igual ao de um segundo, e este, igual ao de
um terceiro, o do primeiro é necessariamente igual ao do terceiro), quando os sujeitos
participam em sessões de treinamento, que consistem em repetidas verificações de
igualdade ou desigualdade de pesos em uma balança. Morf não consegue, tampouco, acelerar
a aquisição da inclusão de classes (prever que uma subclasse é, necessariamente, menos
extensa que uma classe), quando propõe aos sujeitos repetidas constatações de desigualdades
entre uma subclasse e uma classe (comparações, por exemplo, da quantidade de líquido vertida
em copos amarelos, comparada com a mesma quantidade de líquido vertida em copos
amarelos e azuis). Em compensação, obtém melhores resultados, quando deixa que os
sujeitos manipulem o material e, em especial, quando submete esses sujeitos a um
exercício operatório relativo à interseção. Do mesmo modo, Wohlwill consegue acelerar
a aquisição da conservação de coleções discretas (aceitar que o número de elementos de
duas coleções continua sendo o mesmo, ainda que sejam modificadas suas
disposições), mediante exercícios relativos à soma e subtração de
elementos.
Estes resultados parecem, pois, dar resposta a uma das questões formuladas
por Piaget: para aprender uma estrutura lógica é necessário ativar outras
estruturas
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lógicas, ou seja, utilizar estruturas que não foram internalizadas no transcurso das
sessões experimentais (Goustard, Gréco, Matalon e Piaget, 1959, pp. 181-182). Isto
não quer dizer que os exercícios baseados na experiência física não desempenhem
papel algum na aquisição de novos conhecimentos, uma vez que os resultados
das pesquisas de Smedslund e Morf mostram que podem favorecer a aprendizagem de
conteúdos físicos (fatos, ações, regularidades, etc.). Essas aprendizagens são obtidas
mediante a abstração simples, que permite extrair as propriedades pertinentes aos
objetos. A experiência física, entretanto, é insuficiente para a aquisição de estruturas
operatórias, que precisa da intervenção de uma atividade lógico-matemática, com base
na coordenação de esquemas e ações, e não só na leitura das propriedades físicas
dos objetos. Somente deste modo, por meio de uma abstração reflexiva, que
possibilita extrair dados das coordenações das ações e não só dos objetos, o sujeito
pode ascender à construção das estruturas lógicas (ibidem, pp. 179-183).
3. Qualquer aprendizagem depende do nível cognitivo inicial do sujeito. As apren
dizagens necessitam, pois, recorrer a coordenações de ações não aprendidas
direta mente nas sessões experimentais. Como as possibilidades de coordenação
mudam ao longo do desenvolvimento, a aprendizagem será feita em função do nível de
desenvolvimento cognitivo do sujeito. Todos os resultados das pesquisas confir mam este fato.
De maneira geral, somente progridem os sujeitos que se encontram em um nível
operatorio próximo ao da aquisição da noção que será aprendida (nível chamado de
"intermediário", pois está a meio caminho entre a ausência da noção e sua aquisição
completa). Por exemplo, na aprendizagem da noção de conservação de quantidades
contínuas (afirmar que a quantidade de líquido permanece a mesma, ainda que se altere a
forma do recipiente), dos quinze sujeitos que se situam
em um nível de não-conservação, somente dois progridem a um nível intermediário, e nenhum
a um nível de conservação; em troca, dos dezenove sujeitos cujo nível é
intermediário, antes das sessões de aprendizagem, dezesseis progridem e
alcançam a noção de conservação (ibidem, p. 74).
A ordem hierárquica das condutas que aparecem nos pré-testes volta a ser encontrada
depois das sessões de aprendizagem: se um sujeito localiza-se em um nível superior a outro,
no pré-teste, tenderá, também, a situar-se em um estágio superior nos pós-testes, ainda
que ambos progridam. Assim, na experiência que comentávamos, sobre a aprendizagem da
conservação do líquido, somente cinco sujeitos, de trinta e quatro, mudam de categoria,
quando se compara o pré-teste com os pós-testes (ibidem, p. 76).
Ao final das sessões de aprendizagens, a distância que separa os níveis dos sujeitos
é maior que nos pré-testes, fenômeno que mostra que as situações experi mentais atuam de
maneira diferente, segundo os níveis cognitivos dos sujeitos (ibidem pp.
295-296).
Os sujeitos que, graças à aprendizagem, alcançam o nível operatório, mostram
uma maior estabilidade em sua aquisição, do que os sujeitos que só conseguem
atingir o nível intermediário. Estes últimos manifestam uma certa flutuação entre o
primeiro e o segundo pós-testes: alguns decaem para o seu nível anterior, outros
evoluem espontaneamente (ibidem, pp. 296-297).
Os estudos de Piaget e de seus colaboradores mostram que, tal como nas aprendizagens
operatórias que acabamos de descrever, as aprendizagens de fatos, de ações, de
procedimentos práticos ou de leis físicas dependem também do nível cognitivo dos
sujeitos. Por exemplo, quando se trata de aprender como recolher ordenadamente uma série
de pérolas, percorrendo um labirinto com várias ramifi cações, os sujeitos de cinco
anos, apesar de seus múltiplos ensaios, não conseguem aprender; os de seis
anos conseguem o objetivo progressivamente; os de onze,
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3.
A perspectiva
pedagógica
Recordávamos, no princípio deste capítulo, que Piaget é um biólogo por
formação, que se torna psicólogo com o fim de estudar questões
epistemológicas. Convém agora acrescentar que seu interesse pelos
problemas educativos ou pelas aplicações da teoria genética no
âmbito da educação foi muito mais secundário, como se pode atestar pelo
fato de que, em sua imensa obra - centenas de livros e artigos de natureza
teórica e experimental — tão somente dois livros (Piaget, 1969;
· 1972) e alguns artigos versam sobre temas educativos. Este fato é
surpreendente porque Piaget é, sem dúvida, um dos pensadores deste
século que mais contribuiu com sua obra intelectual para enriquecer e
renovar o pensamento pedagógico contemporâneo. Para entender esta
aparente contradição, é necessário considerar dois tipos de fatores. Em
primeiro lugar, a coincidência histórica entre, por um lado, a ampla difusão das
obras de Piaget nos anos cinqüenta e sessenta e, por outro, a preocupação
dominante em conseguir uma melhora dos sistemas educativos,
preocupação auspiciada pelo desafio científico e tecnológico e
favorecida por um
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