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ORGANIZADORES:
MARIELE TROIANO E
RICARDO BRUNO DA SILVA FERREIRA
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© Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira (organizadores)
Editora Telha
Todos os direitos reservados.
A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui
violação de direitos autorais. (Lei nº 9.610/1998)
Produção Editorial
Publisher: Douglas Evangelista
Gerente editorial: Mariana Teixeira
Coordenação Editorial: Lucas Riehl
Revisão do texto: Anna Guimarães
Capa: Fernando Campos
Diagramação: Rebeca S. Sales
Catalogação na publicação
Elaborada por Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166
D536
Livro em PDF
ISBN 978-65-5412-241-2
CDD 320
Editora Telha
Rua Uruguai, 380, Bloco E, 304
Tijuca — Rio de Janeiro/RJ — CEP 20.510-052
Telefone: (21) 2143-4358
E-mail: contato@editoratelha.com.br
Site: www.editoratelha.com.br
Sumário
Apresentação................................................................................................. 5
(*) Foi mantido neste texto o caráter oral — e por vezes informal — da minha
apresentação para os estudantes de graduação de Ciências Sociais da UFF/
Campos. Agradeço a gentileza do convite do professor Ricardo Bruno e da
professora Mariele Troiano para participar do Projeto Diálogos do Fim do Mundo.
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 10
Para aqueles estudantes que não sabem o que significa esta pala-
vra, ela designa aquela postura que reduz de maneira drástica e
imediata a complexidade da vida em sociedade à sua dimensão
econômica. Quando se faz isso, perde-se de vista a importância
das ideias numa dada sociedade, a dialética que existe entre a vida
real e o conjunto da ideologia. Por exemplo, nós que moramos no
Brasil sabemos da força que as ideias de direita exercem sobre uma
parcela considerável da população, gerando efeitos na realidade.
Pois bem, Engels combateu a visão economicista do marxis-
mo, simplificadora da complexidade da realidade histórica. As
coisas se reduziriam — na expressão de Engels, contrapondo-se a
essa perspectiva economicista — a resolver uma espécie de equação
de primeiro grau, onde você tem um “x” a ser determinado e este
“x” é função da atividade econômica. Eis aqui uma contribuição
fecunda de Engels, esclarecendo um erro de interpretação muito
frequente, que consiste em supor que o marxismo é um economi-
cismo. Engels enfatiza a importância das superestruturas, que são
aquelas dimensões relacionadas à política, ao direito, às ideolo-
gias, na organização da sociedade. Ele menciona em seus textos,
por exemplo, o direito de herança, que é uma instituição básica
para reprodução do status quo. O capital é transmitido de geração
para geração e isso para ser viabilizado demanda a existência de
um arcabouço jurídico. É certo que se fizermos uma pesquisa das
causas últimas, digamos assim, desse arcabouço jurídico, nós pro-
vavelmente encontraremos determinações econômicas. Engels não
nega a determinação das condições objetivas, mas ele a qualifica
como uma determinação em última instância, estrutural. Neste
sentido, seria errôneo procurar em cada notícia que leio no jornal
uma causa econômica. Fazer isso seria praticar um péssimo mar-
xismo e uma péssima teoria social. Tendo clareza sobre o tema,
nós podemos acrescentar que quando se elege um período mais
amplo, que ultrapasse a conjuntura imediata, aí as determinações
estruturais vão ficar mais visíveis.
Só para concluir esta questão, eu lembro que caso pensás-
semos na política como apenas um epifenômeno (um fenômeno
secundário) das relações sociais, poderíamos questionar se Marx
e Engels foram também ativistas políticos? Eles foram dois dos
fundadores da Primeira Associação Internacional dos Traba-
lhadores. Fizeram isso por saber que cruzar os braços e esperar
que as contradições econômicas sejam suficientes para nos levar
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 22
que nós temos hoje no Brasil de que o Engels foi muito secundari-
zado e esquecido. Esta é uma percepção que tem um local e uma
data definidos, pois nem sempre foi assim.
A partir da década de 1970, surge um movimento de inte-
lectuais com base na Alemanha, que recebeu o nome de “A Nova
Leitura de Marx”, alguns de seus representantes são Helmut
Reichelt, Michael Heinrich e Hans-Georg Backhaus. Esse movi-
mento consistiu em propor um retorno a Marx e, basicamente,
um retorno à teoria do valor elaborada em O capital. Vale lembrar
que existem ainda hoje no Brasil pesquisadores importantes que
estudam o pensamento de Marx e de Engels, mas que curiosamente
conhecem muito pouco sobre a teoria do valor. E ela é a pièce de
rèsistance, ou seja, é o “prato principal” de uma vida inteira de es-
tudos realizados por Marx. Isso mostra que a teoria do valor ainda
é pouco conhecida fora dos círculos marxistas mais especializa-
dos, pois ela demanda um trabalho específico e um investimento
de tempo. Assim, a ideia desse grupo alemão que propôs a nova
leitura de Marx era retornar aos textos sobre a teoria do valor e,
ao mesmo tempo, superar eventuais traços de evolucionismo que
estariam presentes no debate, bem como algumas simplificações
que foram feitas por Engels. Este grupo é particularmente crítico
com relação a Engels, que é apresentado como um vulgarizador
do pensamento de Marx.
Hoje em dia, eu acredito que podemos usar aquela expressão
popular que nos ensina que “não devemos matar a criança na água
do banho”, ou seja, talvez estes teóricos da nova leitura de Marx
tenham sido severos demais na sua relação com Engels, fazendo
pesadas críticas a ele. Em particular, foram objeto de crítica algu-
mas passagens de Engels que indicam uma incompreensão dele
sobre alguns tópicos da teoria do valor.
Vamos agora examinar um exemplo de contraste. O Professor
John Bellamy Foster é um marxista muito respeitado, autor de
vários livros, dentre eles A ecologia de Marx: materialismo e natureza.
Pois bem, ele recentemente escreveu algo como “criticar Engels em
um certo momento se tornou o passatempo preferido da esquerda
acadêmica”. Foster tem uma outra posição: é um autor simpático
ao pensamento de Engels, afirma que ele pode ter errado, mas que
precisamos reconhecer sua grandeza. Com este objetivo, Foster
cita passagens da Dialética da Natureza, que é o título de um livro
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 24
Referências Bibliográficas
ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. São Paulo: Paz e Terra, 1976.
______. Do socialismo utópico ao socialismo científico. In: ______.
Textos. Vol. 1. São Paulo: Edições Sociais, 1977.
______. Ludwig Feuerbach e fim da filosofia clássica alemã. São Paulo:
Edições Sociais, 1977.
______. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 9.
ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.
______. As Guerras camponesas na Alemanha. A revolução antes da
revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2010 [1850].
______. Prefácio. In: MARX, K. As Lutas de Classes na França de 1848
a 1850. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2012.
______. Escritos Militares. São Paulo: Baioneta, 2020.
ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo:
Boitempo, 2007.
FEUERBACH, Ludwig. A Essência do Cristianismo. Trad. bras. José
da Silva Brandão. Petrópolis: Vozes, 2012.
FOSTER, John Bellamy. A ecologia de Marx: materialismo e natureza.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005 (2000).
LÊNIN, Vladimir. O Estado e a revolução. Disponível em: <https://
www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/
prefacios.htm>. Acesso em: 05 dez. 2021.
______. Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo. São Paulo:
Expressão Popular, 2014.
MARX, Karl. O capital. 10. ed. São Paulo: Difel, 1985. Livro 1. V.I, II.
Referência Bibliográfica
NORRIS, Pippa; INGLEHART, Ronald. Cultural Backlash: Trump,
Brexit, and authoritarian populism. Cambridge/UK: Cambridge
University Press, 2019.
Capítulo 3: Feliz dia das
mulheres para quem?
Reflexões sobre política,
patriarcado e subjetividade
instituição que não foi pensada para nós e fomos tomando o espaço
e peitando muita coisa ali dentro. Então, as diversas diferenças que
acontecem são no dia a dia e que agora na pandemia — aprovei-
tando o gancho do que você estava falando — ficou pior. Por quê?
Primeiro, porque a pandemia é desigual. A pandemia é desigual e
escancarou toda a desigualdade da nossa sociedade, que quem não
tinha percebido ainda, não teve mais como negar, não teve como
esconder porque ela não afetou todo mundo da mesma maneira.
Então, teve o trabalhador que não pode em nenhum momento,
por exemplo, fazer homeoffice, porque é necessário que ele esteja na
rua. A partir dessa desigualdade, pensar como a pandemia afeta
as mulheres, as mulheres mais pobres, as mulheres negras, a as
mulheres moradoras da periferia.
A área da educação reflete alguns desses problemas. Por
exemplo, é uma área muito feminina e, por isso, é muito desva-
lorizada. Ser professora é tido como um trabalho de mulher, que
muito se confunde com um trabalho também cuidar e de educar
a criança. Vamos pensar como a pandemia afetou a mãe de uma
criança que não está indo à escola devido às medidas de preven-
ção à covid-19. A mãe que tem que trabalhar e está com a criança
ou a mulher que nesse momento ficou sem trabalho e é a chefe
de família. Tem ainda a mulher que não tem a possibilidade de
adotar o distanciamento social e a que sofre violência doméstica.
Conforme uns dados coletados de onze estados, só no
primeiro semestre do ano passado tivemos o aumento de 80%
da violência da mulher. Só no primeiro semestre de 2020! Se
pensarmos as desigualdades entre todos os estados brasileiros,
concluímos que as regiões não sofrem da mesma maneira. Os da-
dos destacam as regiões Norte e Nordeste com índices muito mais
altos, com estados com mais de 200% de aumento de violência. Isso
sem falar nos índices subnotificados, como, por exemplo, sobre
casos de estupros. Em um primeiro momento parece que diminuiu,
mas na verdade está subnotificado, pois muitas mulheres estão em
casa com aquele que a violenta, sem a rede de apoio dela — seja do
trabalho, da faculdade, da escola ou de algum lugar que a mulher
circula e troca informações.
Estamos vivendo uma crise sanitária, humanitária e econô-
mica. Uma crise econômica que já vinha acontecendo e que afeta
muito mais as mulheres, e ainda mais as mulheres negras, as
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 48
(1929). Esse tempo só seu, não existe, pois sou mãe 24 horas. Então,
são as duas coisas que eu faço ao mesmo tempo. Hoje, por acaso,
minha filha não está comigo porque está com outra mulher, minha
mãe, que forma minha rede de apoio, para que eu possa estar aqui
inteira, porque geralmente eu estou lá (cuidando da minha filha)
ao mesmo tempo que eu estou cá (em uma atividade acadêmica).
Estou dando aula, mas estou dando café da manhã. Interessante que
nestes tempos, isso vaza na tela das plataformas de aula. Escrevi
a fala de hoje com diversas interrupções, tenho uma menina de 7
anos, que demanda atenção e auxílio para as atividades básicas. Ela
quer saber o que é, o que eu faço...enfim! Bom que ela já está lendo
feminismo (o que é uma beleza!), mas há uma condição de trabalho
que é muito desigual que a gente precisa pautar isso.
Então, nesse sentido, já que eu não posso fazer sozinha, como
eu vou fazer? Eu vou fazer com! Isso é de uma potência incrível!
Esses dias eu vi um post no Instagram de Flávia e falei: “Flávia, isso
é artigo, vamos escrever isso! Vai pela via dos estudos de gênero
e vou pela psicanálise; e a gente vai construir esse artigo!” É essa
associação que a gente precisa fazer em todas as esferas, inclusive
na produção intelectual. Então, já citei aqui dois ou três artigos que
eu fiz, mas eu fiz porque eu fiz com essas mulheres. E na medida
que a gente faz junto, a gente se fortalece enquanto intelectuais. Eu
as reconheço enquanto intelectuais, elas me reconhecem enquanto
intelectual e a gente produz juntas. Fizemos agora juntas um dossiê
para sair esse ano sobre a condição de trabalho das mulheres nas
diferentes frentes e campos de saber da academia.
Então, esse grupo é muito importante. A própria coordena-
ção é coletiva, a divido com a Tábata Berg, doutora e professora
na Universidade Federal de Viçosa, Olívia Mello Fonseca e Alice
Pereira, professoras doutoras do Instituto Federal Fluminense de
Macaé. Um espaço incrível de construção de atividades, debate
e produção. Além de ser um espaço de troca de experiências que
nos permitem refletir sobre as condições de trabalho e de gênero
que nos aprisionam. Por exemplo, esses dias estávamos pensando
a tal da “Síndrome da Impostora”, e o porquê é comum a insistência
da pergunta para si mesmo questionando se devemos ou não estar
nesse espaço, se a gente é boa ou não para ser professora universitá-
ria. Percebemos ali, informalmente, que é uma experiência comum.
Justo porque cotidianamente nos querem fora da universidade. E
precisamos nomear isso, dizê-lo para poder enfrentar. Pois, se a
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 58
gente ocupa esse espaço hoje não é sem resistência, existir na uni-
versidade é ato de resistência. Todo momento, a gente sente esse
movimento centrífugo que nos impele para fora a todo momento.
Em resposta, nós reafirmamos cotidianamente que esse é nosso lu-
gar! Não sem custo psíquico, não sem adoecimento, não sem rede.
Então, eu acho que o Poiesis & Alquimia Feministas vem com
essa potência maravilhosa de transformar isto que é bruto em
produção acadêmica e laço, objetos raros e de muito valor.
E, para tentar concluir, se a opressão que permeia o bojo
social também se presentifica na academia, é preciso tomar o
lugar de enfrentamento institucional desta questão e construir
conhecimento a partir da perspectiva feminista. A produção de
conhecimento e o discurso — como afirma Foucault — opera a
prática. Desta forma, a maneira que temos, via universidade de
transformar a realidade que está posta, é, também, produzindo
conhecimento e operando práticas.
Nessa perspectiva, para que a possibilidade de habitar a uni-
versidade seja possível, para todas e cada uma é necessário que o
campo acadêmico se transforme, por meio do enfrentamento dos
vetores de opressão que aí também fazem sua morada. Neste sen-
tido, queremos caber na universidade do tamanho que a gente tem
e na pluralidade que existimos. Por isso, nos recusamos encolher
para caber, como temos feito sistematicamente. É a universidade
que tem que se transformar para caber a nossa potência e a nossa
multiplicidade. Então é um efeito que produzido desde a uni-
versidade para fora dela, justo para que seja possível a entrada e
permanência de cada vez mais alunas. Associem-se, precisamos
estar organizadas!
Mariele: Quanta força tem a sua fala! Estamos tão distantes fisi-
camente, mas ao mesmo tempo sinto muita força na sua fala. Eu
entrei no grupo há dois dias e diante de um grupo tão consolida-
do e engajado, imaginava anos de existência. Me espantei que é
formação recente, nasceu agora, justamente como uma resposta
para essa condição das mulheres e pesquisadoras. Que incrível!
Eu vou encaminhar para o final, vou trazer um ponto que foi
comum até agora, do início ao fim, de que quando a gente fala de
gênero necessariamente é preciso colocar outras questões como
raça e classe social. A Bárbara trouxe na primeira fala dela que
para pensar um projeto político democrático é necessário pensar
59 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira
Referências Bibliográficas:
de força entre homem e mulher. É uma certeza de que isso vai ser
melhor? Não é possível dizer. Agora, é no mínimo mais inclusivo
do que a experiência masculina em absoluto, ou seja, ao fazer
isso você reduz o viés de proteção e a justiça a um dos gêneros.
Você pluraliza a justiça social nesse país se coloca obviamente
uma pessoa afetada pela desigualdade na discussão da Carta. Em
geral, no Brasil, a gente vai achar entre os bolsões de pobreza e de
miséria a mulher preta como a principal cativa da desigualdade
brasileira. Logo, é muito provável que o Chile esteja no momento
de reinaugurar a sociedade diante da impossibilidade de usar um
véu. Vamos supor uma assembleia paritária para decidir quais
princípios de justiça ou quais papéis serão desenhados e prati-
cados dentro da sociedade chilena. Então, é mais ou menos isso
que significa o véu. O autor perguntaria para você o seguinte: se
você ignorasse o seu papel na sociedade e tivesse que redesenhá-la
agora, qual perfil teria a sociedade que você está redesenhando? Se
você pudesse ignorar algumas preferências suas e algumas prefe-
rências de mundo, ou ainda, se você pudesse ignorar a certeza de
que você é cristão, e que no futuro pode surgir uma nova religião
hegemônica; se você pudesse pensar a liberdade religiosa para
além dos seus limites religiosos, como que seria a liberdade reli-
giosa desse novo país que você inventaria? Então, o véu tem essa
possibilidade de nos fazer imaginar uma sociedade mais ou menos
inspirada no trabalho do Kant, ou seja, como você usa o máximo
possível a razão humana? Como é que você a honra da melhor
forma possível? Essa história pode de algum jeito se parecer com
o imperativo categórico, com universalismo kantiano? Você pode
até falar de imperativo hipotético! Até o próprio Rawls comenta
isso, quer dizer, você pode fazer uma interpretação kantiana do
véu da ignorância ou da própria teoria contratual que ele está
propondo. Uma aplicação bem-sucedida, na minha opinião, são
as teorias de contrato sexual, por exemplo, de autoras feministas
que são até mais arrojadas e inovadoras nesse aspecto do que o
próprio Rawls e que estão mais próximas de Kant.
Mariele: Eu vou aproveitar as temáticas sobre tomadas de decisão
e ponto decisório e vou trazer o debate para a contemporaneidade
e esse contexto pandêmico que estamos vivendo. Nós vivemos um
momento de crise humanitária que nos obriga a tomar decisões
cada vez mais rápidas. Além disso, não são quaisquer decisões.
Espera-se que tomemos as melhores decisões possíveis. Ao mesmo
75 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira
resumo, se vocês têm todo o perfil social fora das instituições, vocês
são injustos. Se vocês têm todos os perfis dentro das instituições, ou
seja, se você faculta, em última análise, todos os cargos e posições
de poder a todas as pessoas, vocês vivem em uma sociedade justa.
Ele diria que nós avançamos na justiça social.
Mariele: Eu agradeço ao professor Dalton pelo diálogo pertinente
sobre a obra de John Rawls.
Ricardo: Também quero muito agradecer a presença do Dalton
que aceitou muito gentilmente o convite.
Dalton: Quero de novo dar os parabéns a vocês por saírem na
frente, por dispersarem conteúdo de qualidade nas redes, por
atualizarem a nossa linguagem fechada e universitária e, com isso,
diminuir um pouco o campo do negacionismo, por atazanarem um
pouco esse forte sentimento anticiência nas redes. Vocês deram e
dão passos largos para colaborar com o restabelecimento da nossa
possibilidade de afetar positivamente a sociedade. Parabéns pela
iniciativa e muito obrigado pela oportunidade.
79 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira
Referências Bibliográficas:
AMPHITHEATRUM SAPIENTIAE AETERNAE, Justiça– O que é
fazer a coisa certa? Com Michael Sandel. Youtube. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=H7paGgzMszQ>.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasi-
leira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006.
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes;
2000.
_______. Liberalismo Político. São Paulo: Ática, 2001.
______. Justiça e democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
______. O Direito dos Povos. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo:
Martins Fontes, 2004.
______. Conferências sobre a história da filosofia política. São Paulo:
Martins Fontes, 2012.
Capítulo 5: Desenvolvimentismo em
tempos de pandemia: a atualidade do
pensamento econômico de
Celso Furtado
outros livros das décadas seguintes, você vai vendo que aquele
conceito que foi exposto naquele período já não é o mesmo, ele foi
ressignificado por Furtado por intermédio dos fluxos de diálogos
por onde ele transitou.
Por exemplo, a dependência econômica é um termo que o
autor utiliza muito nos anos da década de 1950. Quando você vai
ver lá na década de 1970, o termo já não é só econômico, mas passa
a ter uma abordagem cultural. Furtado tem essas dimensões dentro
do mapa teórico, que é um grande mapa com várias camadas e
dimensões, o que nos ajuda a explicar um pouco do seu pensa-
mento. A grande herança deixada por Furtado é justamente essa
camada ou dimensão que se chama formação. Formação reverbera
a teoria furtadiana como um projeto, não como um pensamento
fechado. E ele deixa pistas de como podemos pensar o desenvolvi-
mento deixando claro que cada região e localidade tem o objetivo
específico de pensar o seu desenvolvimento local. Mas é certo
que com a retaguarda do Estado, sempre com a retaguarda do
projeto nacional. O economista paraibano afirma que é necessário
que tenha o Estado fomentando o processo de articulação entre
os entes federados, mas também é preciso que haja um diálogo
participativo por parte da população dos territórios.
Ricardo: A minha próxima questão permeia de algum modo a obra
clássica Formação Econômica do Brasil. Escrita por Celso Furtado no
ano de 1959, esta obra traduzia um momento otimista na história
do nosso país, durante o auge do governo JK, quando ainda não
se vislumbrava o que viria acontecer alguns anos depois. Em certo
sentido, Furtado expressou em palavras um conjunto de ideias em
voga tanto no Brasil como no resto da América Latina a respeito
das premissas desenvolvimentistas. Trata-se de uma obra seminal
sobre o pensamento e a história econômica do Brasil.
Trazendo o problema posto por Celso Furtado para se pen-
sar o momento atual vivenciado no Brasil, o desmonte do Estado
— com o sucateamento e a privatização de empresas públicas e
de sociedades de economia mista — se justifica tão somente pela
panaceia neoliberal sustentada por agentes do mercado financeiro
e preconizadas pelo governo federal. A tentativa de privatização
dos Correios e do sistema elétrico nacional são casos sintomáticos
deste retrocesso neoliberal, que não encontram ressonância em
outras partes do mundo. A lógica se desloca do atendimento à
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 94
Referências Bibliográficas:
CARDOSO, Fernando Henrique. Pensadores que inventaram o Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 2013
FURTADO, Celso. Depoimento de Celso Furtado aos estudantes de
economia. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-
vf7uHlMK2oI&t=181s>. Acesso em: 31 maio 2021.
HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2007.
OLIVEIRA, Francisco de (Org.). Celso Furtado: economia. São Paulo:
Ática, 1983. (Coleção Grandes Cientistas Sociais).
Capítulo 6: Biopolítica e necropolítica
na contemporaneidade
desigualdade? Acho que essa é outra questão que a gente não fala
e esses temas que estudo, como a biopolítica, o estado de exceção,
a militarização e a micialização embrincam com a questão da de-
sigualdade social. A gente precisa falar mesmo isso: a sociedade
brasileira é profundamente desigual com um crivo absurdo entre
as classes sociais. Há muita gente ganhando com essa crise e a
gente nem discute o papel do Estado.
Então, eu acho que para o enfrentamento em relação ao para-
digma hegemônico, só a luta política. É a politização dos conflitos,
conforme Agamben (2010). Pode ser interpretado também con-
forme o conceito de política de Nietzsche (2005). Em uma de suas
definições de política, Nietzsche relaciona com tensão, fight e luta.
Logo, a gente precisa politizar os conflitos sociais para assumir a
crise e superá-la. O quadro é muito difícil e, na minha opinião,
só através da luta política para que ocorra a superação. Porque
fica realmente difícil contar com esses laços e redes solidárias se
intensifiquem a ponto de uma transformação.
Ricardo: A próxima questão versa sobre a questão da Segurança
Pública no Rio de Janeiro — que é um tema muito caro a você.
Já há um bom tempo que você se debruça sobre essas questões,
inclusive, orientando projetos de pesquisa voltados para a questão
propriamente da Segurança Pública. Vários ex-governadores do
estado do Rio de Janeiro foram afastados ou presos nos últimos
tempos, a exemplo de Moreira Franco, Garotinho, Rosinha, Sérgio
Cabral, Pezão e mais recentemente o Wilson Witzel. Quase todos
a despeito de suas diferenças ideológicas e partidárias mantive-
ram uma política de tolerância zero em relação à criminalidade,
pelo menos no discurso eleitoral. Todavia, a questão da violência
se articula a uma ideia que paira sobre o senso comum de que a
favela é lugar de bandido. A gente ouve muito isso no nosso coti-
diano, sobretudo, no Rio de Janeiro. Gostaria que você tecesse em
linhas gerais algumas considerações acerca dessa cultura punitiva
entranhada no cotidiano do homem comum e, particularmente,
do cidadão fluminense.
Carlos Henrique: No processo político de saída da ditadura, nós
tivemos no Rio uma eleição que foi um marco: a eleição de Brizola
no começo dos anos 1980. O Brizola chamou o Nilo Batista, o Darcy
Ribeiro e, contrariando a orientação do governo federal que era
o general Figueiredo, nomeou como comandante geral da Polícia
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 108
que chamou atenção sobre esse ponto (2012). O direito produz vio-
lências no plural. A violência como uma desigualdade social é um
processo extremamente violento e perverso. Então, eu penso que
se não houver uma politização disso tudo fica difícil romper com
essa política econômica e mudar realmente a forma de fazer política.
Ricardo - Mais uma vez obrigado pela sua presença. Foi uma
satisfação ter você aqui conosco.
Mariele - Eu também agradeço a disponibilidade, o aceite e o
bate – papo. Eu acredito que hoje foi um chamado para pensarmos,
sobretudo, enquanto analistas políticos, o papel do Estado seja
para a importância da produção de políticas públicas, seja para
fortalecimento das relações de poder. Tivemos uma tarde muito
frutífera, essa conversa me fez lembrar de um texto curto clássico
do Bachrach e Baratz, As Duas Faces do Poder (2011), que eles afir-
mam que a gente precisa olhar também para a interface invisível
do poder. Eu acho que a fala do professor Carlos Henrique expôs
bem as inúmeras interfaces invisíveis que engendram o poder.
Muito obrigada, professor Carlos Henrique.
Carlos Henrique - Eu quero agradecer toda essa gentileza, reitero
o que falei no começo que eu sou um cara realmente privilegia-
do. Tenho minhas dores e sofrimentos, mas sou privilegiado na
academia. Essas relações que eu fiz e faço são extremamente pra-
zerosas. Eu que devo agradecer, pois para mim foi muito gostoso
e agradável poder dialogar e conversar com vocês.
113 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira
Referências Bibliográficas:
está atrelada à urgência do avanço dessa política que com ele estava
um pouco desacelerada. Havia inúmeros seminários, discussões
e debates, mas pouca prática. O desenho do programa e a nego-
ciação com as universidades não estavam acontecendo. A prática
veio mesmo com a gestão de Tarso e depois, com Haddad. É algo
bem interessante de como isso aconteceu tendo como ator central
a Andifes, que é a associação das universidades federais.
Mariele: Agora, eu vou direcionar a nossa conversa considerando
um artigo recente que você publicou que tem como título Univer-
sidades Federais Brasileiras e o impacto regional do Reuni, publicado
na Revista Gestão & Politicas Públicas. Há um trecho em que você
afirma que “o Reuni foi implementado no sentido de privilegiar
o equilíbrio entre as regiões, dados presentes nos documentos
da política". Com essa afirmação, você traz não só a realidade
social e as necessidades de cada instituição para implementação
do Reuni, como também traz o caráter político para entender o
ciclo de políticas públicas. Aliás, esta é uma ideia que está na sua
tese de doutorado e você já citou inclusive na resposta anterior.
Como que você analisa essas variáveis explicativas dentro do ciclo
de políticas públicas, que nomeia na sua tese de doutorado como
politics e policy? Considerando esses aspectos, houve diferença
de implementação do Reuni em uma instituição nova e em uma
instituição de ensino que já estava consolidada?
Aline – Na língua portuguesa, a gente tem dificuldade com a
palavra política. Tudo é política. Então, para diferenciar o campo,
acaba-se usando um pouco do inglês e os conceitos de politics, policy
e polity. São três formas diferentes do que chamamos em português
de política. A policy é a política pública. Ela é a ação governamental
e a gente pode pensar nela em ciclos ou em uma única grande ação,
que não necessariamente é etapista. A politics é a política do dia a
dia. Ela representa a negociação que se faz e a constante construção
de consenso entre atores políticos. Por atores políticos, não são só
aqueles que são eleitos, mas as outras pessoas que estão envolvi-
das no dia a dia. Por exemplo, um projeto de lei pode colocar em
pauta uma política pública e, consequentemente, a construção
dela vai precisar de muita negociação política. Então policy e po-
litics estão sempre combinadas. A questão é que quando a gente
lê a teoria sobre políticas públicas existe uma vertente bastante
administrativa, parecendo que a negociação política não acontece,
ou seja, há a formulação e a implementação, deixando de lado a
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 122
Referência Bibliográfica:
ZAMBELLO, Aline Vanessa. Universidades Federais Brasileiras
e o Impacto Regional do REUNI. Revista Gestão & Políticas Públicas,
3(2), 246-267, 2003.
Capítulo 8: Políticas públicas e
desigualdades no combate à pandemia
Referências Bibliográficas: