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DEBATES E

AGENDAS
EM CIÊNCIAS
SOCIAIS

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ORGANIZADORES:
MARIELE TROIANO E
RICARDO BRUNO DA SILVA FERREIRA

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© Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira (organizadores)
Editora Telha
Todos os direitos reservados.
A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui
violação de direitos autorais. (Lei nº 9.610/1998)

Produção Editorial
Publisher: Douglas Evangelista
Gerente editorial: Mariana Teixeira
Coordenação Editorial: Lucas Riehl
Revisão do texto: Anna Guimarães
Capa: Fernando Campos
Diagramação: Rebeca S. Sales

Catalogação na publicação
Elaborada por Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166

D536

Debates e Agendas em Ciências Sociais: Diálogos em tempos de


pandemia / Organizadores Mariele Troiano, Ricardo Bruno da Silva
Ferreira. – Rio de Janeiro: Telha, 2023.

Autores: Aline Vanessa Zambello, Bárbara Breder


Machado, Carlos Henrique Aguiar Serra, Dalton Rodrigues
Franco, Flávia Mendes Ferreira, Lorena Guadalupe
Barberia, Maria do Socorro Sousa Braga, Mariele Troiano,
Maurício Mello Vieira Martins, Rafael Gonçalves Gumiero,
Ricardo Bruno da Silva Ferreira.

Livro em PDF

ISBN 978-65-5412-241-2

1. Ciência política. 2. Democracia. I. Troiano, Mariele (Organizadora).


II. Ferreira, Ricardo Bruno da Silva (Organizador). III. Título.

CDD 320

Índice para catálogo sistemático


I. Ciência política

Editora Telha
Rua Uruguai, 380, Bloco E, 304
Tijuca — Rio de Janeiro/RJ — CEP 20.510-052
Telefone: (21) 2143-4358
E-mail: contato@editoratelha.com.br
Site: www.editoratelha.com.br
Sumário

Apresentação................................................................................................. 5

Capítulo 1: Bicentenário de Friedrich Engels –


Maurício Mello Vieira Martins, Ricardo
Bruno da Silva Ferreira e Mariele Troiano........................... 9

Capítulo 2: Desvendando as eleições municipais de 2020 –


Maria do Socorro Sousa Braga, Mariele Troiano
e Ricardo Bruno da Silva Ferreira....................................... 26

Capítulo 3: Feliz dia das mulheres para quem?


Reflexões sobre política, patriarcado e subjetividade –
Bárbara Breder Machado, Flávia Mendes Ferreira
e Mariele Troiano ................................................................. 40

Capítulo 4: O cinquentenário da teoria da justiça


de John Rawls (1971-2021) – Dalton Franco,
Ricardo Bruno da Silva Ferreira e Mariele Troiano.......... 65

Capítulo 5: Desenvolvimentismo em tempos de pandemia: a


atualidade do pensamento econômico de Celso Furtado –
Rafael Gonçalves Gumiero, Mariele Troiano e
Ricardo Bruno da Silva Ferreira.......................................... 80

Capítulo 6: Biopolítica e necropolítica na contemporaneidade –


Carlos Henrique Aguiar Serra, Ricardo Bruno
da Silva Ferreira e Mariele Troiano ................................. 100

Capítulo 7: A política pública de expansão das universidades


federais – Aline Vanessa Zambello, Mariele Troiano
e Ricardo Bruno da Silva Ferreira..................................... 115

Capítulo 8: Políticas públicas e desigualdades no combate à


pandemia – Lorena Guadalupe Barberia, Mariele
Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira...................... 134

Lista de autores/as.................................................................................... 149


Apresentação

Esta coletânea partiu da iniciativa de manter discussões so-


bre Ciência Política durante o período em que as universidades
estiveram fechadas devido à prevenção da transmissão do vírus
SARS-CoV-2. Como o único meio que restou, sobretudo, no pri-
meiro momento, foi o ambiente virtual, os professores Mariele
Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira do Departamento de
Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense de Campos
dos Goytacazes resolveram guiar um conjunto de entrevistas se-
miestruturadas e transmiti-las em formato de lives.
Embora a preparação para as entrevistas fossem as mesmas,
seguindo o script (definição de tema, convite ao entrevistado,
estudo e produção de roteiro e transmissão ao vivo), foi em um
comentário nos bastidores que a ideia da coletânea surgiu: “Vocês
já pensaram em um registro escrito desse material?”. Foi desse modo
que nasceu a ideia de transformar – e adaptar - as mais de mil horas
de entrevistas nessa coletânea inédita e tão necessária.
De fato, a Ciência não parou sequer um minuto em tempos
de pandemia e o livro não tem como objetivo a comprovação de
horas trabalhadas e pesquisas realizadas. Todavia, mobilizar es-
pecialistas tão renomados para abordarem, em uma comunicação
acessível, temas tão urgentes para o próprio enfrentamento do
momento político, social e econômico em que estamos vivendo é
motivo suficiente para organização deste livro.
Diálogos em Tempos de Pandemia – Debates e Agendas em
Ciências Sociais é fruto de uma ação extensionista que aconteceu
durante os anos de 2020 e 2021 e concretizou em inéditos oito
capítulos que giram em torno do mesmo objetivo: divulgar co-
nhecimento científico em Ciência Política de modo acessível e
pertinente ao contexto atual.
Embora todas as entrevistas tenham sido comandadas pelos
professores Mariele e Ricardo e realizadas em tempos distintos
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 6

(duas realizadas no final do ano de 2020 e as outras durante o


ano de 2021), não há dúvidas que a coletânea é resultado de um
esforço coletivo em manter a produção e divulgação científica em
Ciência Política atualizada por meio de pesquisadores altamente
competentes e capacitados das mais diversas instituições e for-
mações acadêmicas.
Para isso, a coletânea é composta por oito capítulos. Quatro
entrevistas abordam temas que de certa forma se debruçam em
datas comemorativas, obras ou autores específicos, enquanto as
outras quatro comunicações objetivam apresentar temas mais em-
píricos. Contudo, dos oito capítulos são possíveis extrair análises
contemporâneas e agendas para futuras pesquisas.
No primeiro capítulo, ideias de Friedrich Engels triunfam na
fala do professor Maurício Mello Vieira Martins da Universidade
Federal Fluminense. Engels é apresentado como um clássico neces-
sário e modesto tamanha riqueza das suas contribuições analíticas.
A entrevista aconteceu em novembro de 2020, mês e ano que marca-
ram o bicentenário do autor. Iniciar a coletânea com essa entrevista
significa equiparar a importância da luta e da organização social que
visa à transformação, à manutenção e ao crescimento da memória
de grandes pensadores das Ciências Sociais.
A professora Maria do Socorro Sousa Braga da Universidade
Federal de São Carlos é a protagonista capítulo 2. Especialista
em sistemas partidários, a entrevistada apresenta os reflexos da
política norte-americana no sistema brasileiro e a influência dos
resultados das eleições municipais de 2020 para as eleições esta-
duais e presidencial de 2022.
Para o terceiro capítulo, a interdisciplinaridade foi o caminho
para trabalhar as questões de gênero e os direitos das mulheres.
Uma entrevista comemorativa foi organizada com a presença
das professoras Bárbara Breder Machado do Departamento de
Psicologia da Universidade Federal Fluminense e Flávia Mendes
Ferreira, professora de Sociologia da Secretaria de Estado da Edu-
cação do Rio de Janeiro. A entrevista aponta para a data de 8 de
março como um continuum necessário de luta pela equidade, mas
que, naquele ano, havia sido impactada pela pandemia tanto pelo
número crescente de violência doméstica, quanto pela redução de
mobilizações que deixaram as ruas vazias.
7 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

O capítulo 4 é composto por uma entrevista com o professor


Dalton Rodrigues Franco, da Universidade Estácio de Sá, em ce-
lebração do cinquentenário da clássica obra de filosofia política
Teoria da Justiça, do autor norte-americano John Rawls. Por meio da
discussão sobre conceitos como ‘véu da ignorância’ e ‘bens primá-
rios’, a entrevista expõe uma intensa discussão sobre a importante
inclusão do outro em projetos de construção de uma cidadania.
No capítulo seguinte, a entrevista com professor Rafael Gon-
çalves Gumiero, da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará,
abarca a atualidade do pensamento econômico de Celso Furtado.
A conversa revela o quanto ainda está vigorante o pensamento
furtadiano na sociedade atual. Afinal, o centenário de Celso Fur-
tado, comemorado em 2020, não celebra uma superação da nossa
condição de subdesenvolvimento.
O capítulo 6 é ocupado pelo pesquisador Carlos Henrique
Aguiar Serra, da Universidade Federal Fluminense, que aborda
os temas da necropolítica e do biopoder, sobretudo, relacionando
às políticas de enfrentamento à violência.
A entrevista com Aline Vanessa Zambello, doutora pela
Universidade Estadual de Campinas, preenche o capítulo 7 tra-
zendo dados empíricos sobre as políticas de expansão de acesso
às universidades federais nos últimos anos e os atuais enfrenta-
mentos do Reuni.
Conferindo maior profundidade à dimensão empírica, a
professora Lorena Guadalupe Barberia, da Universidade de São
Paulo, ilustra o último capítulo da coletânea. O debate dessa entre-
vista se mantém atual ao apresentar a Rede Solidária de Pesquisa
que acompanha de perto as políticas públicas de enfrentamento
à pandemia, abordando temas das áreas de educação e saúde.
Os assuntos explorados estão interligados ao indicarem uma
agenda de pesquisa em Ciências Sociais, bem como proporcio-
narem o diálogo entre teoria e prática para enfrentamento desse
momento tão obscuro de crise que é fecundo em democracias
recentes. Ainda que os capítulos tratem de diferentes assuntos,
todos eles estão relacionados ao eixo central desta coletânea: a
produção de conhecimento científico de modo acessível, sobretu-
do, para não acadêmicos.
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 8

A coletânea se destaca ainda por ser uma iniciativa coleti-


va. Ou seja, mesmo partindo de dois docentes, as transcrições
contaram com a colaboração da aluna de graduação e bolsista de
extensão, Thaymara Assis de Lima. Além dessa equipe central,
um conjunto de espectadores que assistiram as lives e interagiram
no chat, de certo modo, influenciaram para o desdobramento do
livro. Ademais, os entrevistados figuram entre as grandes estrelas
da coletânea, não só por serem pesquisadores renomados nacional
e internacionalmente, mas por mobilizarem conteúdos sob o viés
da interdisciplinaridade, considerando suas distintas formações
e graus de experiências.
Agradecemos a todas e todos que fizeram parte dessa em-
preitada, tornando possível a divulgação de uma universidade
que pulsou em tempos de pandemia. Nossos sinceros desejos que
os diálogos jamais cessem!
Capítulo 1: Bicentenário de
Friedrich Engels(*)

Maurício Mello Vieira Martins — Possui


graduação em Sociologia pela PUC-Rio (1982),
Mestrado (1988) e Doutorado em Filosofia
(1997) pela mesma instituição. Atualmente é
Professor Aposentado da Universidade Federal
Fluminense. Pesquisador do Núcleo Interdisci-
plinar de Estudos e Pesquisas sobre Marxismo
(Niep-Marx) da mesma universidade.

Ricardo: Boa tarde! Estamos com o Professor Maurício Vieira Mar-


tins, professor de Sociologia do Instituto de Ciências Humanas e
Filosofia da Universidade Federal Fluminense. Ele é uma referência
no campo dos estudos marxistas e, por isso, vamos conversar a
respeito do bicentenário de Friedrich Engels. Eu tenho um respeito
enorme pelo professor Maurício que tem uma trajetória muito
interessante no campo das Ciências Sociais pesquisando direta-
mente o marxismo. Minha primeira pergunta será sobre a obra
A ideologia alemã, escrita por Karl Marx e Friedrich Engels, cujos
autores sinalizaram para uma tentativa de disputar a herança in-
telectual legada pela filosofia hegeliana na década de 1840. Então,
eu gostaria de saber qual foi a importância da filosofia de Hegel
na formação do pensamento de Engels? Ademais, quais foram as
outras influências intelectuais do autor?
Maurício: Boa tarde. Agradeço o convite do professor Ricardo e
da professora Mariele; é um prazer estar aqui com vocês. Inicio
minha intervenção abordando essa primeira pergunta que o Ri-
cardo formulou, que diz respeito a um texto de Marx e Engels

(*) Foi mantido neste texto o caráter oral — e por vezes informal — da minha
apresentação para os estudantes de graduação de Ciências Sociais da UFF/
Campos. Agradeço a gentileza do convite do professor Ricardo Bruno e da
professora Mariele Troiano para participar do Projeto Diálogos do Fim do Mundo.
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 10

intitulado A ideologia alemã, escrito em 1846. O texto não chegou a


ser publicado durante a vida dos autores; ou seja, sua publicação
é póstuma e quando ela finalmente aconteceu, os pesquisado-
res do marxismo e os ativistas políticos se deram conta de que
estavam diante de um documento muito importante em termos
da formação de Marx e de Engels como pensadores. O que a A
ideologia alemã nos apresenta de novo, quando comparamos esta
obra com trabalhos anteriores dos autores, é uma crítica que até
então ainda não havia sido formulada. Refiro-me ao fato de que,
em torno do ano de 1843, por exemplo, as referências de Marx e
Engels sobre Ludwig Feuerbach — um pensador importante na
formação dos fundadores do materialismo dialético — eram refe-
rências positivas. Marx e Engels apreciavam em Feuerbach o fato
dele ter conseguido fazer o que poderíamos nomear de uma virada
materialista no debate até então existente na Alemanha da época.
E, aqui, a categoria “materialismo” tem um sentido inteiramente
diferente de como ela é utilizada na nossa linguagem cotidiana,
nas nossas conversas com os nossos amigos. Pois quando eu digo
informalmente: “Ah, João é muito materialista”, e se eu falo isso
numa reunião social, o sentido desta frase não é um elogio ao
João... Provavelmente, estou dizendo que ele é muito apegado
a bens materiais, a valores materiais. Então, é preciso esclarecer
inicialmente que materialismo, nos textos de Marx e Engels, tem
um sentido qualitativamente distinto deste. Materialismo pode
ser interpretado, resumindo aqui uma longa história, como uma
doutrina filosófica que afirma o primado do ser material sobre as
ideias. Os pensadores materialistas sustentam que o ser material
antecede tanto lógica quanto cronologicamente o pensamento e
as ideias. O contraste a ser feito é com a corrente idealista; e aqui a
palavra idealista tem um sentido muito diferente do que costuma
ter na linguagem cotidiana. Nesta última, quando eu digo que
a Marina é idealista, provavelmente estou dizendo que ela tem
bons ideais, ou que ela luta pelos seus ideais. Mas nas Ciências
Sociais e na Filosofia, o idealismo é aquela doutrina filosófica que
afirma (de modo inverso ao que faz o materialismo) o primado
do pensamento sobre um mundo material. É uma tese tanto de
Marx como de Engels que o idealismo filosófico é uma versão
mais sofisticada do pensamento religioso. Se este último fala
abertamente em Deus, já o idealismo refere-se a uma ideia, que
seria anterior ao mundo material.
11 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

Retornando então à pergunta do Ricardo sobre A ideologia


alemã, é preciso dizer que neste texto há uma polêmica importante
com Ludwig Feuerbach, pensador materialista, que havia publi-
cado, em 1841, A essência do cristianismo. Neste livro, Feuerbach
desenvolve o conceito de alienação religiosa, afirmando que na
verdade não foi Deus quem criou o homem, mas, inversamente,
o homem criou Deus, e depois passou a se declarar criado por ele
(o que caracteriza a inversão própria da alienação). A essência do
cristianismo foi lida como portadora de uma objeção consistente a
Hegel, provavelmente o pensador idealista mais influente na Ale-
manha. Anos depois, Friedrich Engels vai dialogar com Feuerbach
em um texto chamado Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica
alemã. Neste escrito tardio de Engels, tantos anos depois de A
ideologia alemã, ele afirma algo como (cito de memória) “por um
instante todos nós fomos feuerbachianos”. Isso significa que tanto
Engels como Marx ficaram entusiasmados com a tomada de posi-
ção do Feuerbach, que questionava fortemente a ideia hegeliana.
Então, Feuerbach foi aquele pensador que afirmou o primado do
ser material e a anterioridade do real em relação à nossa entrada
nas relações mundanas.
A novidade da obra A ideologia alemã é que nela Marx e Engels
enunciam com todas as letras aspectos problemáticos da posição
materialista de Feuerbach, coisa que não tinham feito até então. Nas
palavras do livro, tratava-se de um materialismo contemplativo.
Mas por que contemplativo? Marx e Engels afirmam que Feuer-
bach desconhecia o papel da atividade na configuração do mundo
real. E, reparem, atividade humana é também trabalho! Aliás, neste
momento, eu convido todos vocês a olharem em volta de onde
estão. Vocês certamente perceberão que não estamos imersos em
uma natureza originária: estamos cercados por dispositivos que
um dia foram parte da natureza. Nossos computadores, tablets,
edifícios e construções: isso já não é mais uma natureza originá-
ria. Então, Marx e Engels enfatizavam que Feuerbach não havia
alcançado uma formulação consistente sobre essa transformação
da natureza, sobre essa transformação da realidade pela via do
trabalho humano.
E, vejam só que curioso: se, por um lado, a A ideologia alemã
reitera a crítica a Hegel que já havia sido feita pelos autores nos
seus textos anteriores, por outro lado, é também verdade que a
presença do Hegel acaba se mostrando como mais duradoura no
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 12

trajeto de Marx e Engels. Isso significa que a partir de um certo


momento, Feuerbach vai praticamente desaparecer dos escritos
dos nossos autores, ao passo que algumas das contribuições de
Hegel persistem de modo mais durável na obra de Marx e Engels.
No caso de Engels, há a exceção que é o texto mais tardio que eu
mencionei (Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã), mas
Feuerbach não chega a se constituir como interlocutor de longa
duração. Já Hegel, vejam só que ironia, vai permanecer como refe-
rência durante o trajeto intelectual tanto de Engels como de Marx.
Uma categoria que eu mencionei muito brevemente, a atividade
(ou tätigkeit na língua alemã) é da maior relevância no pensamento
marxista. Hegel era um pensador que tinha uma consciência muito
nítida da importância da atividade como um atributo fundamental,
embora ele enfatizasse mais a atividade espiritual ou a atividade
intelectual, em detrimento da atividade material, da práxis (um
conceito bem desenvolvido em A ideologia alemã).    
Eu diria, então, que a importância de A ideologia alemã é que se
trata de uma obra em que Marx e Engels conseguem formular uma
crítica mais elaborada tanto ao pensamento de Hegel (apresentan-
do com desenvoltura a sua categoria de práxis, uma intervenção
no mundo real), como também um distanciamento em relação ao
materialismo contemplativo de Feuerbach, que até aquele mo-
mento era o autor que fornecia, por assim, dizer, a sustentação
para se criticar Hegel. A rigor, mesmo nos textos anteriores a 1846,
seria um exagero dizer que Marx e Engels eram feuerbachianos,
no sentido forte da palavra. Na correspondência deles, é possível
localizar diferenças de pensamento. Mas de todo modo, não havia
ainda uma crítica enunciada com toda a complexidade como nós
vamos encontrar em A ideologia alemã.                                                
Concluindo a resposta, eu destaco o prosseguimento do con-
tato com a economia política como um saber relevante tanto para
Marx como para Engels. Aliás, a este respeito, é preciso enfatizar
que, antes de A ideologia alemã, Engels publicou em 1844 um artigo
intitulado Esboço para uma Crítica da Economia Política. Isso significa
que o contato de Engels com a Economia Política é anterior ao do
próprio Marx, por mais que possamos ficar surpreendidos com
esta anterioridade. Marx cita positivamente a importância desse
breve artigo de Engels, inclusive em sua obra magna, O capital. E não
podemos deixar de mencionar também a relevância do projeto po-
lítico dos socialistas da época na formação do pensamento tanto de
13 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

Engels como de Marx. Então, para aquele estudante que se pergunta:


“Marx foi o primeiro socialista?”, “Engels foi o primeiro socialista?”
A resposta é certamente negativa: já existiam socialistas anteriores
a Marx e Engels que, deste ponto de vista, deram prosseguimento
a correntes teóricas e políticas já existentes. E, mesmo tendo feito
modificações muito substantivas nessas correntes políticas, ainda
assim elas são fontes que devem ser mencionadas, como foi o caso
das obras de Robert Owen e Charles Fourier.
Mariele: Eu vou continuar em uma perspectiva ampla e perguntar
sobre a contribuição de Marx e Engels para os estudos modernos
(se é que podemos falar assim), sobre as religiões na sociedade
capitalista. Qual foi a contribuição desses autores para os estudos
sobre religiões nas sociedades capitalistas?
Maurício: Num primeiro momento, eu destaco a já mencionada
categoria de alienação religiosa que foi inicialmente desenvolvida
por Ludwig Feuerbach, não apenas em A essência do cristianis-
mo, texto de 1841, como também em outros escritos posteriores.
Feuerbach vai fazer menção a uma alienação religiosa. Abro um
parêntese para mencionar que há toda uma controvérsia entre os
estudiosos sobre qual seria a melhor tradução para o português da
palavra alemã Entfremdung. Tradicionalmente se traduz esta cate-
goria como alienação, mas há quem prefira usar estranhamento. Eu
pessoalmente alterno entre as duas possibilidades. Talvez a opção
por estranhamento nos chame mais a atenção para uma dimensão
filosófica que está aqui presente: dimensão que diz respeito ao “se
sentir estranho no mundo”, ao “não se sentir em casa”. Estes são
alguns dos sentidos da Entfremdung, categoria já desenvolvida
por Hegel e retomada por Feueurbach, mas num sentido mais
materialista. Feuerbach dizia que o homem se estranha, se aliena,
projetando-se na figura de Deus. É preciso mencionar aqui também
a categoria da antropomorfização, que seria típica de um processo
de alienação religiosa. Se formos decompor esta última categoria,
encontraremos nela a palavra Antropos, que significa homem e
encontraremos também, morfos, que significa forma. Então, an-
tropomorfizar significa dar uma forma humana àquilo que nós
não conhecemos, no caso em questão, dar forma humana a uma
suposta divindade religiosa. Nós tendemos a atribuir uma forma
humana ao desconhecido. E vocês podem imaginar o impacto
gerado por Feuerbach quando ele afirmou que não foi Deus quem
criou o homem, mas inversamente, foi o homem quem criou Deus
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 14

(numa projeção antropomórfica) e, não se reconhecendo como


verdadeiro autor desta representação, declarou a existência de um
sujeito que habita no céu, tendo uma relação de preponderância
sobre os sujeitos humanos.
Um comentário paralelo: enquanto eu trabalhava textos de
Marx e Engels em sala de aula, já tive alunas feministas que muito
legitimamente questionaram o fato destes autores do século XIX
que só escreveram “o homem”, ou “os homens” em seus textos,
construindo frases como “o homem se aliena em Deus”, ou então
“o trabalhador vende sua força de trabalho”. Eu fui obrigado a
concordar com esta observação, dizendo que hoje nós devemos
dizer “os homens e as mulheres” (e precisamos também incluir
os trans e outras categorias), para que não sejamos acusados de
fazer concessões a uma visão patriarcal do mundo. Ressalvo ape-
nas que na época de Marx e Engels esta questão ainda não estava
no horizonte com a força que tem hoje, e ressalvo também que,
felizmente, há muitas feministas que se somaram à crítica marxista
ao capitalismo, como foi o caso de Clara Zetkin, ou contempora-
neamente, Angela Davis.
Retornando agora ao fio da meada, gostaria de dizer que Marx
e Engels absorvem em parte a categoria da alienação religiosa de
Feuerbach, mas também acabam reconstruindo consideravelmente
a categoria. Por que reconstruindo? Porque em Feuerbach, a análise
girava em torno de uma espécie de uma relação dual entre o sujeito
humano e o que era visto como um predicado deste sujeito. Na
terminologia de Feuerbach, seria típico do pensamento religioso
fazer uma inversão entre sujeito (o ser humano) e o seu predicado
(o Deus, que passa a ser nomeado com o criador). Marx e Engels
concordam com este tema da inversão, mas eu diria que eles am-
pliam consideravelmente o panorama da discussão. Cerca de três
anos antes de A ideologia alemã, Marx escreve que “a crítica do céu
deve se transformar em crítica da terra”. O que significa essa ex-
pressão? Significa que nós precisamos analisar também as relações
sociais em que homens e mulheres vivem, no mundo terreno. Esta
análise ficava apenas em segundo plano na elaboração feuerbachia-
na, pois ele não se perguntava qual era a sociedade que produz a
religião e qual era o contexto histórico dessa religião. Havia uma
dimensão em tese atemporal (que valeria em todos os tempos e
em todas as sociedades) presente na reflexão do Feuerbach. Tanto
Engels como Marx vão divergir desse aspecto. Então, como uma
15 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

primeira contribuição dos nossos autores para o tema do estudo


das religiões, eu mencionaria essa categoria filosófica da alienação
religiosa que vai comparecer em seus textos. Uma categoria que
tem sua referência mais próxima em Feuerbach, mas que acaba
sendo modificada ao longo da obra tanto de Engels como de Marx.
Mas seria possível dizer que Marx e Engels foram sociólogos
da religião? Essa é uma questão importante. Eu preciso ressalvar
que os dois autores não reivindicavam este lugar teórico (de fazer
uma sociologia da religião), até porque as referências à Sociologia
que nós encontraremos nos textos de Marx e Engels na maioria das
vezes são referências negativas. Isso se justifica pelo fato de que a
Sociologia, pelo menos a daquela época, tinha como pressuposto
uma partilha dos objetos de conhecimento: Sociologia para um
lado, Ciência Política para um outro lado, Antropologia como uma
terceira área etc. Nós não encontramos esta defesa de uma partição dos
objetos de conhecimento na obra de Engels ou na obra de Marx. Eles
tinham uma ambição totalizante, no melhor sentido desta palavra,
uma visada para a totalidade do mundo social, o que hoje em dia
nós chamamos da transdisciplinaridade dos saberes.    
Como uma segunda contribuição de Marx e de Engels para
o estudo sobre as religiões, eu menciono também algo que já co-
meçamos a abordar anteriormente: trata-se do entendimento de
que não existe uma religião atemporal. A rigor, não é possível falar de
uma “essência do cristianismo”, tal como consta no título do livro
de Feuerbach. É uma tese forte tanto de Marx como de Engels que
as religiões vão se transformando ao longo do tempo. Então, uma
abordagem que incidisse apenas sobre a gênese da religião, sobre
a sua origem, seria insuficiente, porque é preciso enfatizar também
o que ocorreu historicamente com uma dada religião, quais foram
as transformações pelas quais ela passou. Há uma frase que me
parece muito impressionante num texto de Marx que se chama
A Questão Judaica. Reparem: Marx vinha de uma família judaica
tanto por parte de pai como por parte de mãe, ou seja, estava bem
familiarizado com as características do judaísmo. E ele escreve
em seu texto algo como: “o judaísmo não se conservou apesar
da história, mas sim através dela.” A primeira vez que eu li esta
frase, achei-a enigmática. Hoje, entendo que o texto rompe com
um senso comum que supõe que cada religião tem um núcleo, e
que este núcleo se mantém estável através do tempo. Marx não
concorda com essa visão.
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 16

Pois o judaísmo do século XIX — quando Marx escreveu seu


texto — é qualitativamente diferente da sua primeira aparição,
milenar, como uma grande tradição religiosa. Então, o que pre-
cisa ser feito, inclusive metodologicamente, é colocar em relação a
uma dada religião o contexto histórico no qual ela tem vigência. O
primado mais uma vez é da realidade histórica, e não do conjunto
de textos, do corpus dos textos doutrinários. Por mais importantes
que esses textos sejam, pois eles fundam uma determinada dou-
trina, se eu me ativesse apenas ao corpus doutrinário e procurasse
explicar por ele a religião de hoje, isso não daria certo; eu perderia
determinações fundamentais do fenômeno.
Chegando nesse ponto, talvez vocês se recordem de uma frase
famosa de Marx, que afirma que “A religião é o ópio do povo” (na
verdade, uma ideia que já aparecera em Moses Hess e que Marx
retoma). Pois bem, nós poderíamos interpretar essa frase como
se a religião envolvesse sempre uma postura de conformismo
e resignação. Mas no próprio texto em que Marx escreve isso,
a Introdução à crítica da Filosofia do Direito de Hegel, ele apresenta
uma visão mais complexa do fenômeno, e faz uma referência ao
“protesto contra a miséria real”, também presente na experiência
religiosa. Mas estas ressalvas de Marx quanto à complexidade do
fenômeno religioso caíram no esquecimento. Eu diria que coube a
Engels, anos mais tarde, recuperar e desenvolver este tema. Num
livro intitulado As guerras camponesas na Alemanha, Engels faz um
importante estudo sobre uma rebelião do protestantismo liderada
por Thomas Müntzer. Müntzer representava a vocalização dos in-
teresses dos camponeses empobrecidos, das massas plebeias sem
trabalho, em condições de vida extremamente precárias, que se
manifestaram naquele que é considerado possivelmente o movi-
mento contestador mais importante anterior à Revolução Francesa
de 1789. Reparem que Thomas Müntzer é executado em 1525, um
episódio muito violento ao final dessas guerras camponesas, que
mereceram toda atenção por parte de Engels. Neste livro, Engels
mostra que a religião pode vocalizar também uma insatisfação
muito acentuada com determinado status quo. Neste sentido,
poderíamos dizer que ela não é apenas o ópio do povo. Isso me
parece que nem sempre nós levamos em conta quando estudamos
o pensamento de Marx e Engels. Então, se vocês me perguntassem
se para estes autores a religião é apenas fonte de solidariedade
(para uma usar uma expressão da antiga sociologia francesa),
17 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

minha resposta seria negativa. Como autores que possuíam uma


formação dialética, tanto Marx como Engels enxergavam as tensões
existentes em seu interior, ou seja, enxergam os laços de coerção
que são sem dúvida proporcionados pela adesão a um credo reli-
gioso, mas também enfatizavam as contradições que são expressas
por uma prática religiosa. Este é um ensinamento importante que
nós devemos trazer para os nossos dias. Os processos históricos
não são monolíticos. Elas apresentam fissuras, e Engels estava
particularmente interessado nelas.
Ricardo: Interessantíssima a reflexão que você faz sobre o estudo
das religiões no campo marxista, algo que muitas vezes acaba sen-
do negligenciado no nosso cotidiano. Dentro da própria academia
acaba se privilegiando, de uma maneira geral, a própria dimensão
do trabalho quando se fala dos estudos marxistas da Sociologia e
da Filosofia marxista. Eu me lembro inclusive, de uma crítica que
muitas vezes foi direcionada ao Marx e ao Engels propriamente
nesse texto da Questão Judaica, em que se acusava esses autores
de serem antissionistas. Então, é algo que na verdade, não é bem
assim! Como o próprio Maurício sinalizou, a dimensão religiosa
é importante na acepção desses dois autores, algo que vai muito
além de simplesmente você reduzir a obra marxiana a frase mais
conhecida deles que seria “a religião é o ópio do povo”. É algo
muito mais complexo, envolve inclusive, um substrato filosófico,
a importância do hegelianismo que é fundamental. Eu queria, na
verdade, nessa próxima pergunta falar não propriamente de Engels
em si, mas falar basicamente de autores que refletiram e discutiram
sobre a importância do Engels. Nesse sentido, eu gostaria de fazer
uma pergunta relacionada ao Lenin e a obra O Estado e a Revolução
quando tenta de alguma maneira ressaltar a importância do Estado
na obra do Engels. Lenin critica, inclusive, intelectuais notórios no
campo socialista, especialmente, naquele período, como Karl Kaut-
sky, que teria tentado deturpar o que Engels pensava a respeito do
Estado. Alguns autores tentaram de alguma forma pensar o Estado
como sendo um órgão de conciliação de classes ou que vai de algu-
ma maneira contra a própria reflexão marxista e engelsiana. Afinal,
qual é a contribuição de Engels para a Teoria do Estado?
Maurício: Sobre a questão que o Ricardo apresentou, talvez nos
ajude a refletir uma informação de caráter histórico. Engels pre-
senciou ao longo de sua vida a expansão do sufrágio para camadas
de trabalhadores que até então estavam dele alijadas pelo instituto
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 18

do voto censitário. Falando de uma maneira simplificada, o voto


censitário restringe a participação nas eleições, lançando mão de
cláusulas de propriedade ou de renda anual. Em termos práticos,
isso diminuía enormemente a participação política tanto em ter-
mos do chamado voto ativo (“votar em”), como do voto passivo
(“ser votado por”). Estou evitando utilizar a expressão “sufrágio
universal” para designar a expansão do sufrágio ocorrida ao lon-
go do século XIX (embora em parte da literatura a expressão seja
usada). Naquele momento, não era de fato um sufrágio universal,
tendo em vista que as mulheres continuaram excluídas dele. Eu
não sou um historiador para fornecer para vocês as datas com
precisão, mas o fato é que o acesso feminino ao voto só vai acon-
tecer ao longo do século XX. E alguns exemplos disso são inclusive
vergonhosos, como é o caso da França, um país com uma longa
tradição emancipatória, mas no qual as mulheres só puderam
participar de eleições em 1945.
Pois bem, retomando o nosso tema, o que eu quero frisar é que
Engels ficou entusiasmado com as novas possibilidades que a ex-
pansão do voto trazia para seu projeto revolucionário. Em um texto
tardio, de 1895 (ano de sua morte), ele escreveu uma introdução
a um livro de Marx, que recebeu o título de As Lutas de Classes na
França de 1848 a 1850. Nessa introdução, Engels faz uma avaliação
das transformações advindas para o jogo político, em razão dessa
expansão do voto, que beneficia a classe trabalhadora. Há um mo-
mento interessantíssimo do texto em que ele cita Odilon Barrot,
um primeiro-ministro francês, inteiramente identificado com status
quo, identificado com os interesses dos proprietários. A frase que
Engels cita de Barrot é: “a legalidade nos mata” (“la légalité nous
tue”). E o que significa essa frase? Por que ele está dizendo que a
legalidade nos mata? Porque este primeiro-ministro tinha clareza
de que com a expansão do sufrágio para as classes populares, in-
clusive, por questões numéricas óbvias, estava posta sobre a mesa
a possibilidade real de um líder das classes trabalhadoras assumir
o topo do sistema de poder. Até então, esta possibilidade era siste-
maticamente bloqueada através do voto censitário, que estipulava
requisitos para o voto inacessíveis para as classes trabalhadoras.
Reparem que esta introdução foi escrita em 1895, Marx já havia
falecido nesta época, e Engels procura mostrar que cabe à classe
trabalhadora usar da melhor maneira possível essa expansão do
voto a seu próprio favor.
19 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

O Ricardo na sua pergunta lembrou muito bem que tempos


depois Karl Kautsky e Wilhelm Liebknecht farão algo extremamente
discutível sobre estas considerações engelsianas. Eles apresentarão
Engels como uma espécie de defensor incondicional — em qualquer
tempo e lugar — apenas do que nós hoje em dia chamamos da via
institucional de transformação social, aquela que se materializa
na ação parlamentar. Mas reparem que isso mutila gravemente a
posição de Engels, que não afirmou que é possível apenas com o
voto fazer todas as transformações. Continua sendo necessária a
pressão real pelos movimentos sociais nas ruas, pois apenas a luta
institucional não basta. Aliás, no século XX, a experiência chilena
de Salvador Allende — um presidente de esquerda eleito pelo voto
— nos mostra exatamente isso. Quem rompeu com a legalidade,
quem deu um golpe de Estado em 1973 não foram os trabalhadores,
foi o chefe das Forças Armadas, Augusto Pinochet. Para este poder
conservador chileno, era insuportável a existência de um presidente
que contrariasse seus interesses.
Eu diria que a posição de Engels sobre o tema do sufrágio
é uma posição matizada, que procura incorporar suas diferentes
dimensões. Engels reconhece a descontinuidade histórica trazida
pela expansão do sufrágio, e legitimamente comemora isso. Expan-
são essa que não caiu do céu como um presente: ela foi produto
de uma forte pressão popular, que envolveu inclusive a morte de
ativistas que lutavam pela causa. Aproveito até para fazer uma
breve incursão no nosso mundo contemporâneo. Eu ouço alguns
alunos em sala de aula dizendo algo como: “Vamos anular os
votos, está tudo corrompido! Quem vota acaba sendo conivente
com o status quo”. Quando isso ocorre, geralmente, eu respondo:
“olha concordo com vocês sobre a corrupção generalizada do
sistema político, mas tenham consciência que a expansão do su-
frágio é uma conquista histórica relevante, preciosa, reconhecida
por intelectuais e ativistas importantes”. Eu até brincava com os
alunos e dizia: “e a importância do voto foi reconhecida não por
intelectuais de Facebook..., mas por Friedrich Engels e por Lênin”.
Ricardo mencionou Lênin em sua questão, e nós podemos lembrar
de um famoso texto leninista que se chama Esquerdismo: Doença
infantil do Comunismo. O texto está disponível na internet, vocês
podem localizá-lo com facilidade. Um de seus capítulos intitula-se:
“Deve-se participar dos Parlamentos burgueses?” A resposta de
Lênin a esta pergunta é “sim”: ele apresenta as razões pelas quais
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 20

ativistas de esquerda devem participar do Parlamento. Enfim, a


luta política se dá por diferentes frentes, pela via institucional e
pela via extra institucional, como Engels bem frisou. Até porque
quando abrimos mão de nossos votos, estamos permitindo que
a elite da sociedade eleja apenas seus representantes, pois ela, a
elite, certamente não abrirá mão de eleger os representantes de
seus interesses particularistas. Por tudo isso, Kautsky agiu mal
quando reduziu a posição de Engels, que é complexa, aos seus
próprios interesses reformistas.
Ricardo: Eu gostaria que você falasse brevemente sobre a vida inte-
lectual e o papel político desempenhado por Engels. Tanto Engels
como Marx foram filósofos e economistas, produziram uma con-
tribuição acadêmica ímpar. Então, ao que me parece, é que há um
Engels militante, propagandista que, de certa forma, está falando
para os operários e para a classe trabalhadora daquele contexto
do século XIX; e um Engels intelectual e com uma contribuição
acadêmica para se pensar a gênese da crise da própria sociedade
capitalista. Em que sentido Engels contribuiu teoricamente para
a área de Ciências Sociais? Ou seja, há um paradoxo na própria
contribuição intelectual de Engels?
Maurício: A pergunta que o Ricardo formulou agora me fornece
a oportunidade de destacar um aspecto que eu considero muito
pertinente na contribuição de Engels. Há um conceito marxista
famoso que é o da “determinação das condições objetivas de exis-
tência”, que foi sendo aos poucos abreviado pelos jovens marxistas
e se tornou conhecido apenas “determinação do econômico” (o
que a rigor já é uma redução do sentido original do conceito). Este
conceito designa a determinação que a vida material exerce sobre
as outras dimensões da existência humana, como a política, o di-
reito e a cultura. Um exemplo muito simples desta determinação:
para podermos estudar, frequentar a universidade, precisamos
ter nossas necessidades básicas satisfeitas. Quem tem fome não
consegue se desenvolver em seus estudos. A mesma coisa vale
para a atividade política: se eu quero me dedicar a alguma ativi-
dade política, também preciso ter minha sobrevivência material
assegurada, sem ela, nenhum ativismo político se sustenta.
O problema é que esta afirmação da determinação das condi-
ções objetivas de existência — que é justa e inegável — passou a ser
interpretada já no século XIX como um sinônimo de economicismo.
21 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

Para aqueles estudantes que não sabem o que significa esta pala-
vra, ela designa aquela postura que reduz de maneira drástica e
imediata a complexidade da vida em sociedade à sua dimensão
econômica. Quando se faz isso, perde-se de vista a importância
das ideias numa dada sociedade, a dialética que existe entre a vida
real e o conjunto da ideologia. Por exemplo, nós que moramos no
Brasil sabemos da força que as ideias de direita exercem sobre uma
parcela considerável da população, gerando efeitos na realidade.
Pois bem, Engels combateu a visão economicista do marxis-
mo, simplificadora da complexidade da realidade histórica. As
coisas se reduziriam — na expressão de Engels, contrapondo-se a
essa perspectiva economicista — a resolver uma espécie de equação
de primeiro grau, onde você tem um “x” a ser determinado e este
“x” é função da atividade econômica. Eis aqui uma contribuição
fecunda de Engels, esclarecendo um erro de interpretação muito
frequente, que consiste em supor que o marxismo é um economi-
cismo. Engels enfatiza a importância das superestruturas, que são
aquelas dimensões relacionadas à política, ao direito, às ideolo-
gias, na organização da sociedade. Ele menciona em seus textos,
por exemplo, o direito de herança, que é uma instituição básica
para reprodução do status quo. O capital é transmitido de geração
para geração e isso para ser viabilizado demanda a existência de
um arcabouço jurídico. É certo que se fizermos uma pesquisa das
causas últimas, digamos assim, desse arcabouço jurídico, nós pro-
vavelmente encontraremos determinações econômicas. Engels não
nega a determinação das condições objetivas, mas ele a qualifica
como uma determinação em última instância, estrutural. Neste
sentido, seria errôneo procurar em cada notícia que leio no jornal
uma causa econômica. Fazer isso seria praticar um péssimo mar-
xismo e uma péssima teoria social. Tendo clareza sobre o tema,
nós podemos acrescentar que quando se elege um período mais
amplo, que ultrapasse a conjuntura imediata, aí as determinações
estruturais vão ficar mais visíveis.
Só para concluir esta questão, eu lembro que caso pensás-
semos na política como apenas um epifenômeno (um fenômeno
secundário) das relações sociais, poderíamos questionar se Marx
e Engels foram também ativistas políticos? Eles foram dois dos
fundadores da Primeira Associação Internacional dos Traba-
lhadores. Fizeram isso por saber que cruzar os braços e esperar
que as contradições econômicas sejam suficientes para nos levar
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 22

a uma outra sociedade, fazer isso seria um equívoco. Engels e


Marx sabiam da importância da intervenção humana deliberada
e coletiva no curso da história.
Mariele: Após essa explanação que confere relevância ao pen-
samento de Engels, fico aqui me perguntando o porquê de não
termos como obrigatórias as leituras das obras de Engels nas nossas
ementas e em nossos cursos como temos das obras de Marx, por
exemplo. É possível a gente falar da necessidade de um resgate
do pensamento de Engels, inclusive, tentando separar um pouco
Engels de Marx? E é possível fazer esse exercício?
Maurício: Mariele, eu diria que para a pergunta que você apresen-
tou, a consideração a ser feita é: a resposta depende do país onde
nós estamos e, também, do momento histórico em que vivemos.
Se nós estivéssemos na União Soviética da década de 1940 ou
mesmo da década de 1950, por incrível que pareça, o predomínio
na leitura cabia aos textos de Engels. Eu não cheguei a mencionar,
porque o Engels tem uma obra muito vasta, mas em particular um
livro dele chamado Anti-Dühring era adotado como uma espécie
de texto básico do marxismo. A primeira parte deste livro, se eu
não me engano, os três primeiros capítulos, foram publicados em
separado, com o título de “Do Socialismo Utópico ao Socialismo
Científico”. Este é um texto de divulgação que Engels escreveu e
circulava em muitos ambientes não só da União Soviética, como
também no âmbito do chamado marxismo ocidental. Não gosto
muito dessa categoria: marxismo ocidental, pois considero-a um
tanto imprecisa (reúne autores a rigor heterogêneos). Mas o fato é
que certas teses que alguns intelectuais do século XX supunham ser
de Marx, eram na verdade de Engels. Este engelsianismo se estru-
turava em torno de um corpus textual composto pelo Anti-Dühring,
pelo Do socialismo utópico ao socialismo científico e, também, pelo
ensaio Ludwig Feuerbach e fim da filosofia clássica alemã. E por que
esses textos? Porque são textos de leitura mais acessível, quando
comparados, por exemplo, a O Capital de Marx.
Aliás, é preciso dizer que o primeiro contato com O Capital
de Marx não é fácil. Eu geralmente recomendo que seja feito em
grupos de leitura ou em sala de aula (ou seja, com algum tipo de
orientação), pois se você assumir a tarefa de ler o texto sozinho,
provavelmente vai desistir depois de algum tempo, pois é uma lei-
tura difícil. Então, faço esse primeiro registro acerca da percepção
23 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

que nós temos hoje no Brasil de que o Engels foi muito secundari-
zado e esquecido. Esta é uma percepção que tem um local e uma
data definidos, pois nem sempre foi assim.
A partir da década de 1970, surge um movimento de inte-
lectuais com base na Alemanha, que recebeu o nome de “A Nova
Leitura de Marx”, alguns de seus representantes são Helmut
Reichelt, Michael Heinrich e Hans-Georg Backhaus. Esse movi-
mento consistiu em propor um retorno a Marx e, basicamente,
um retorno à teoria do valor elaborada em O capital. Vale lembrar
que existem ainda hoje no Brasil pesquisadores importantes que
estudam o pensamento de Marx e de Engels, mas que curiosamente
conhecem muito pouco sobre a teoria do valor. E ela é a pièce de
rèsistance, ou seja, é o “prato principal” de uma vida inteira de es-
tudos realizados por Marx. Isso mostra que a teoria do valor ainda
é pouco conhecida fora dos círculos marxistas mais especializa-
dos, pois ela demanda um trabalho específico e um investimento
de tempo. Assim, a ideia desse grupo alemão que propôs a nova
leitura de Marx era retornar aos textos sobre a teoria do valor e,
ao mesmo tempo, superar eventuais traços de evolucionismo que
estariam presentes no debate, bem como algumas simplificações
que foram feitas por Engels. Este grupo é particularmente crítico
com relação a Engels, que é apresentado como um vulgarizador
do pensamento de Marx.      
Hoje em dia, eu acredito que podemos usar aquela expressão
popular que nos ensina que “não devemos matar a criança na água
do banho”, ou seja, talvez estes teóricos da nova leitura de Marx
tenham sido severos demais na sua relação com Engels, fazendo
pesadas críticas a ele. Em particular, foram objeto de crítica algu-
mas passagens de Engels que indicam uma incompreensão dele
sobre alguns tópicos da teoria do valor.
Vamos agora examinar um exemplo de contraste. O Professor
John Bellamy Foster é um marxista muito respeitado, autor de
vários livros, dentre eles A ecologia de Marx: materialismo e natureza.
Pois bem, ele recentemente escreveu algo como “criticar Engels em
um certo momento se tornou o passatempo preferido da esquerda
acadêmica”. Foster tem uma outra posição: é um autor simpático
ao pensamento de Engels, afirma que ele pode ter errado, mas que
precisamos reconhecer sua grandeza. Com este objetivo, Foster
cita passagens da Dialética da Natureza, que é o título de um livro
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 24

inacabado de Engels, publicado apenas após a sua morte. Este livro


traz passagens que são surpreendentemente compatíveis com as
nossas preocupações ambientais atuais. Nele, Engels escreve algo
como (eu cito de memória, livremente): “Os homens acham que
estão tendo vitórias sobre a natureza, mas eles não percebem que
a cada vitória a natureza se vinga e reivindica os seus próprios
direitos”. A Dialética da Natureza é um texto que onde vemos com
muita clareza o nosso pertencimento como espécie humana à
Natureza. Mais do que isso, existem passagens que indicam que a
ideia de dominar e subjugar a natureza é uma noção datada, que
nos cobra um preço. No nosso século XXI, estamos pagando esse
preço altíssimo, por exemplo, com o aquecimento global.
Para concluir, lembro que tanto Marx como Engels são autores
com uma obra muito vasta e multifacetada. Apenas a edição alemã
dos Escritos Militares, de Engels, tem cerca de duas mil páginas. É
um vasto material que documenta o interesse de Engels por essa
área da experiência humana tão dramática e tão violenta, que se
manifesta no imenso número de guerras e confrontos militares
ao longo da história. No Brasil, a Editora Baioneta recentemente
publicou estes Escritos Militares. Este é apenas mais um exemplo
da importância de Engels como pensador e de seu valor próprio,
para além de sua parceria bem-sucedida com Marx. Concluindo,
quero agradecer muito a atenção de todos vocês. Espero que tenha
sido um encontro produtivo para todos nós.
Ricardo: Eu agradeço ao professor Maurício Vieira pela disponibi-
lidade. Foi mais do que uma entrevista, eu acho que ele deu para
a gente uma aula aqui sobre Friedrich Engels. Agradeço muito,
mais uma vez, foi muito importante a sua participação.
Maurício: Foi um prazer estar com vocês.
Mariele: Muito Obrigada. Até mais.
25 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

Referências Bibliográficas
ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. São Paulo: Paz e Terra, 1976.
______. Do socialismo utópico ao socialismo científico. In: ______.
Textos. Vol. 1. São Paulo: Edições Sociais, 1977.
______. Ludwig Feuerbach e fim da filosofia clássica alemã. São Paulo:
Edições Sociais, 1977.
______. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 9.
ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.
______. As Guerras camponesas na Alemanha. A revolução antes da
revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2010 [1850].
______. Prefácio. In: MARX, K. As Lutas de Classes na França de 1848
a 1850. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2012.
______. Escritos Militares. São Paulo: Baioneta, 2020.
ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo:
Boitempo, 2007.
FEUERBACH, Ludwig. A Essência do Cristianismo. Trad. bras. José
da Silva Brandão. Petrópolis: Vozes, 2012.
FOSTER, John Bellamy. A ecologia de Marx: materialismo e natureza.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005 (2000).
LÊNIN, Vladimir. O Estado e a revolução. Disponível em: <https://
www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/
prefacios.htm>. Acesso em: 05 dez. 2021.
______. Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo. São Paulo:
Expressão Popular, 2014.
MARX, Karl. O capital. 10. ed. São Paulo: Difel, 1985. Livro 1. V.I, II.

______. A questão judaica. 2. ed. São Paulo, Moraes, 1991.


Capítulo 2: Desvendando as eleições
municipais de 2020

Maria do Socorro Sousa Braga — Atual-


mente é professora associada da Universidade
Federal de São Carlos (UFSCar). Possui gra-
duação em Ciências Sociais pela Universidade
Federal Fluminense (1992), mestrado (1997),
doutorado (2003) e Pós-doutorado (2005) em
Ciência Política pela Universidade de São Pau-
lo (USP). Foi pesquisadora visitante do Centro
Latino-Americano (LAC) da Universidade de
Oxford (2009), com bolsa Fellowship da Aca-
demia Britânica.

Mariele: Saúdo a todas e todos. Hoje, nós vamos conversar um


pouco sobre os resultados das eleições municipais de 2020 e anali-
sar algumas perspectivas acerca das eleições presidenciais de 2022.
E, para isso, estamos com uma especialista no assunto a quem eu
agradeço a disponibilidade: a professora Maria do Socorro. Eu es-
tou muito feliz em reencontrá-la mesmo que de forma remota. Eu
vou começar com uma pergunta bem geral. Os desempenhos das
eleições municipais até 2012 traziam uma ideia de quem poderia
ser o próximo protagonista para o pleito presidencial a partir dos
números das votações. Qual é a importância das eleições munici-
pais para o pleito presidencial e vice-versa?
Maria do Socorro: É um prazer enorme estar aqui com vocês,
agradeço a oportunidade de debater essas eleições, bem como as
consequências para a democracia no Brasil. Para isso, vou falar
um pouco dos resultados preliminares das eleições de 2020 e
perspectivas futuras para as eleições de 2022. Essa é uma questão
que a gente viu bastante no debate nacional quando políticos,
jornalistas e analistas se perguntaram sobre essa relação. No Bra-
sil, os partidos tendem a ser os mesmos em todos os pleitos. Eles
estão em praticamente todos os municípios, nos estados e, por
27 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

sua vez, na disputa nacional. É bem verdade que para a eleição


presidencial não são todos os partidos que apresentam candida-
tos, porque é uma disputa que por envolver um colégio nacional
exige mais recursos, articulação entre diversas forças estaduais e
ampla estrutura partidária. Então, saber o quanto as eleições mu-
nicipais influenciam, determinam ou têm um impacto nas eleições
nacionais, especialmente, as presidenciais é uma grande questão
a ser comprovada. Mas eu penso que primeiro devemos conside-
rar os tamanhos dos colégios municipais, pois temos as capitais
e os municípios com mais de 500 mil habitantes que possuem a
dimensão de países. Obviamente que as eleições municipais in-
fluenciam, sobretudo, quanto maiores forem esses eleitorados. Os
partidos relevantes tendem a ter melhores desempenhos nessas
eleições locais e, consequentemente, é de se esperar uma melhor
performance nas eleições nacionais.
Entretanto, no Brasil, mais de 70% dos municípios são peque-
nos, ao mesmo tempo em que há partidos como o próprio atual
Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que ao herdar dos anos
de bipartidarismo compulsório uma capilaridade muito grande
consegue até hoje se manter em grande parte dessas cidades. O seu
desempenho em 2020 demonstrou isso, apesar de votação reduzida
acabou se mantendo presente em termos de capilaridade devido ao
fato de estar em grande parte desses municípios pequenos. Quando
você observa o indicador ‘número de cidades’, você percebe que
esse partido ainda é relevante. Embora somente tenha lançado
candidato presidencial em duas eleições, 1989 e 1994. Mas por
outro lado vem elegendo bancadas expressivas para o Congresso
Nacional, mantendo-se até 2018 como um dos partidos cruciais
para a governabilidade. As eleições municipais contribuem para os
partidos terem lideranças locais (prefeitos e vereadores) que serão
cabos eleitorais para outros políticos do partido (ou coligação)
disputarem cargos eletivos no nível subnacional, especialmente,
para deputados e governadores.
É importante chamar a atenção para excepcionalidade das
eleições de 2018, quando um presidente se elegeu por um partido
nanico, o Partido Social Liberal (PSL). Uma constelação de fatores
pode ser mobilizada nesse sentido, mas sairíamos um pouco da
pergunta. Saliento, apenas que Bolsonaro acabou tendo apoio de
outros segmentos e redes sociais que o colocaram numa relação
direta com a população, driblando o partido. Naquela ocasião
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 28

marcada por altos índices de desconfiança. Ele fez outro trabalho na


campanha eleitoral que de certa forma funcionou muito bem para
seus objetivos políticos. Essas eleições demonstram que, apesar
do que representou 2018, ou seja, que apesar da desorganização
provocada nos padrões de competição e representatividade do
corpo social; em 2020, houve certo movimento no sentido da
retomada da organização do sistema partidário brasileiro. As
eleições municipais sinalizam para essa reorganização do sistema
partidário, o que, por sua vez, vai ter impacto, especialmente,
para as eleições presidenciais de 2022 e para as eleições para o
Congresso Nacional.
Mariele: Os meios de comunicação falaram bastante sobre o fato
de o presidente Jair Bolsonaro não ter sido um bom cabo eleitoral,
ou seja, que ele não executou com sucesso essa função. Se a gente
olhar os números, principalmente, do primeiro turno em que se
tinha 45 candidatos ao cargo de vereador apoiados pelo presidente,
resultando em apenas em 10 eleitos. Ou ainda que dos 9 candidatos
às prefeituras apoiados pelo presidente, todos foram derrotados,
nós podemos afirmar que há um processo de enfraquecimento da
figura do presidente no âmbito político?
Maria do Socorro: Eu tenho outros dados que também vão nesse
sentido, mas aqui vou chamar a atenção especialmente para o
seu próprio filho, Carlos Bolsonaro, que para a Câmara do Rio de
Janeiro, conseguiu se reeleger, mas com uma votação menor do
que aquela obtida em 2016. Então, eu penso que sim viu, Mariele!
À primeira vista, esses indicadores todos que você elencou estão
de acordo com aqueles que outros analistas já apontaram, e que
convergem para um enfraquecimento da figura do presidente e do
núcleo duro que está ao seu redor. Porque há uma família, um clã,
o fenômeno do familismo poderia ser pensado aqui, ocupando a
presidência da República desde 2019. Mas é importante frisar, que
é a primeira vez que temos um clã governando o Estado Nacional.
Observamos esse fenômeno político em capitais, cidades grandes
e menores, mas ocupando a Presidência da República, no Brasil,
nunca houve algo dessa natureza.
Ainda há outro elemento que ele está sem partido. O presi-
dente estar sem partido todo esse tempo foi estratégico, e tem a ver
com o fato dele não ter admitido tantas derrotas. Mas é visível que
a onda bolsonarista de 2018, que elegeu governadores, deputados
29 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

federais, deputados estaduais e senadores, já não teve o mesmo


impacto nas eleições de 2020. Agora, isso não significa que ele e/ou
os partidos que o apoiam saíram enfraquecidos. E podemos, ainda,
separar os partidos que estão mais próximos do presidente, como
o próprio Republicanos, o Partido Progressista (PP); esses partidos
saíram muito bem das eleições, foram os principais vencedores
dessas eleições. Um elemento importante para isso pode ter sido
o próprio auxílio emergencial, que nesse contexto de pandemia
foi bastante importante para as várias famílias que estão passando
por necessidades, dentre outros fatores.
Ricardo: Uma questão que gostaria de fazer a professora Maria
do Socorro diz respeito à falha temporária que houve nos super-
computadores do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ao longo do
primeiro turno das eleições. Evento esse que acabou provocando
algum atraso na apuração no primeiro turno. Muitos grupos
bolsonaristas se valeram desse episódio para tentar em alguma
medida questionar a licitude do processo eleitoral no Brasil. Nes-
se sentido, é possível traçar um paralelo entre o bolsonarismo
no Brasil e o trumpismo dos Estados Unidos a partir do fato que
não admitiram a derrota eleitoral apelando justamente para esse
discurso de fraude?
Maria do Socorro: Essa é outra boa pergunta! Tem um paralelo,
mas antes precisamos entender o que é esse trumpismo e o que é
esse bolsonarismo. São dois fenômenos políticos que precisamos
entendê-los, há muita similaridade entre eles. Eu penso que o
nosso bolsonarismo é muito alimentado pelo trumpismo, mas que
também tem suas especificidades. A derrota do Trump nos Estados
Unidos pode ajudar no enfraquecimento do bolsonarismo, pois
ele já não tem mais o farol estadunidense. Os dois governantes,
como outros na Hungria e na Polônia, são tidos por análises inter-
nacionais como populistas autoritários. No livro Cultural Backlash
da Pippa Norris & Ronald Inglehart, compreendemos como esses
governos populistas autoritários se mantêm defendendo pautas
conservadoras e se voltam também para a desqualificação da de-
mocracia liberal, especialmente suas instituições, como a negação
dos partidos e da Justiça Eleitoral.
No contexto brasileiro, isso ficou muito evidente após 2014
com a questão da Lava-Jato. Por mais que depois tenha vindo as
revelações da Vaza-Jato, a operação Lava-Jato ajudou a fortalecer
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 30

a narrativa antiestablishment. A maioria dos partidos foi envolvida


nessas denúncias, aumentando a desconfiança de diversos públicos
sobre essa instituição
Além disso, há forte intolerância em relação à oposição,
partidos são tratados como inimigos. Não são comportamentos e
atitudes esperados numa ordem democrática, em que o pluralismo
é o esperado. Já temos muitos obstáculos, mesmo filtros à amplia-
ção da representação de vários públicos. Há setores majoritários
no Brasil que são sub-representados mesmo após os incrementos
nessa última quadra democrática. Mas mesmo essa situação de-
ficitária não foi motivo para setores defenderem a eliminação de
partidos oposicionistas. Essas atitudes autoritárias vêm ocorrendo
desde a campanha eleitoral de 2018.
Outra questão é a de que a nossa Justiça Eleitoral que
desde sua criação, em 1932, tem ampliado cada vez mais a sua
importância para o bom funcionamento do processo eleitoral.
Evidentemente que a Justiça Eleitoral brasileira tem problemas,
especialmente agora com a segurança digital, mas ela é uma das
instituições mais bem vistas no Brasil e no mundo. A expectativa
é que em 2022 não haja nenhuma falha nesse sentido, mas o pró-
prio presidente, inclusive durante a sua campanha questionou
a Justiça Eleitoral. E ele continua questionando. Eu penso que a
própria Justiça Eleitoral está tomando também suas precauções
para reduzir e inibir cada vez mais esse tipo de comportamento
que é extremamente nocivo para a nossa democracia.
Mariele: Agora eu vou partir da afirmação que a professora nos
deu na resposta anterior de que houve uma vitória dos partidos
considerados de direita, sendo eles o Partido Social Democrático
(PSD), o Partido Progressistas (PP), os Republicanos e os Demo-
cratas (DEM). Mas o que significa isso? Como podemos fazer a
leitura e interpretação desses dados? A gente ouviu nas últimas
semanas alguns analistas dizendo que o Brasil, finalmente, fez as
pazes com a política tradicional. Será que a gente pode interpretar
esses dados também a partir dessa perspectiva?
Maria do Socorro: A minha interpretação é que temos uma reto-
mada do sistema partidário que existiu até 2014, quando houve
relativa estabilidade daquele quadro partidário. No âmbito nacio-
nal observamos até então a hegemonia de dois partidos, Partido
da Social Democracia Brasileira (PSDB) no período de 1994-2002
31 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

e Partido dos Trabalhadores (PT) entre 2003-2014 e suas respe-


tivas coalizões governamentais. Mas nas disputas subnacionais
proporcionais prevaleceu crescente fragmentação partidária. Em
termos de disputa local, no período de 2004 até 2012 tivemos uma
relativa estabilidade dos principais atores políticos também nesse
nível. Mas em 2016 o PT perdeu cerca de 60% de suas prefeituras.
Essa eleição foi crítica para o sistema partidário, quando se iniciou
forte realinhamento do eleitorado, já apontando para a profunda
desorganização política nacional que vamos observar em 2018,
com a eleição de um outlier na disputa presidencial. Verificamos
certa reorganização do sistema partidário em 2020 em que houve
maior projeção desses partidos de direita que compõem, em sua
maioria, a base de apoio do presidente. Qualquer critério que usa-
mos para avaliar o desempenho desses partidos, por exemplo, o
número de cidades que irão controlar — principalmente do grupo
das 95 maiores cidades — quando comparados aos resultados das
eleições de 2016, tanto os Democratas quanto o PSD e o PP foram
os partidos que de fato tiveram maior destaque em todos esses
critérios. Assim, os Democratas, por exemplo, entram em 2021
controlando quatro capitais — Rio de Janeiro, Salvador, Curitiba
e Florianópolis. O partido estava vindo, principalmente depois
de 2002, em uma curva declinante. Já o PP vinha apresentando
declínio em sua votação, portanto, é possível afirmar que nessas
eleições, esses partidos da direita neoliberal, tiveram realmente
um ganho eleitoral considerável.
Tem os partidos da direita conservadora, mais próximos do
presidente Jair Bolsonaro. Esse grupo é formado pelos seguintes
partidos: Partido Liberal (PL), Republicanos, Partido Social Liberal
(PSL), Patriotas, Partido Social Cristão (PSC) e o Partido Renovador
Trabalhista Brasileiro (PRTB) — que é o partido do atual vice-pre-
sidente. A maioria teve melhor desempenho nessas eleições. Eles
tiveram um crescimento de quase 97%.
Vocês devem estar se perguntando: por que esse crescimento
tão grande? Porque quando você compara com 2016, os resultados
foram bem mais modestos. Em 2020, de fato, eles tiveram uma su-
bida que em muitos casos triplicaram a votação. Então, isso acabou
redundando no crescimento de votos e de cadeiras, especialmente
para as Câmaras dos Vereadores. Os únicos partidos que perderam
em relação à disputa pelas Câmaras dos Vereadores foram o PRTB,
do atual vice-presidente, e o PSC.
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 32

Ricardo: Vou fazer uma pergunta a respeito das novas candi-


daturas que surgiram nessas eleições municipais no campo da
esquerda. Eu gostaria de entender um pouco melhor se esse forta-
lecimento de algumas candidaturas regionais significa de fato uma
renovação da esquerda. Aqui me refiro a algumas candidaturas,
como de Guilherme Boulos em São Paulo, Marília Arraes em Recife
e a própria Manuela d’Ávila em Porto Alegre. Eu queria saber um
pouco a respeito dessa renovação no campo da esquerda.
Maria do Socorro: O desempenho da esquerda no geral foi mais
humilde, mas o desempenho isolado dessas lideranças foi muito
expressivo para esse campo. O Boulos ir para o segundo turno foi
importante para o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), o que
deu força viabilizando candidatos representativos de segmentos
sub-representados ou sem representação no estado. Tudo bem que
a Manuela D’Ávila era a mais conhecida, pois ela já havia saído
como vice do PT para a Presidência em 2018, consequentemente, isso
agregou mais visibilidade nacional, aumentou seu capital político. Já
em Recife, Marília Arraes tem uma grande inserção na cidade e seria
a candidata do PT em 2016, mas não foi por conta das divergências
relacionadas ao diretório nacional, acabando preterida. E agora, ela
acabou se saindo muito bem se cacifando para 2022.
Eu chamo, especialmente, atenção para a candidatura de
Boulos, que é uma candidatura recém-iniciada no campo da polí-
tica partidária, que vem com um projeto e com políticas públicas
representativas de segmentos marginalizados do campo político
nacional e, especialmente, local. O seu programa político inova e
marca uma renovação geracional. Nesse sentido, a campanha do
Boulos teve um efeito bastante importante que foi o aumento das
candidaturas LGBTQIA+ ou o que podemos chamar de candi-
daturas de gêneros, que cresceram bastante nesse pleito. Houve
também avanço, mesmo que pequeno, na representação das mu-
lheres nas Câmaras dos Vereadores, a porta de entrada inicial para
a estrutura de oportunidades políticas conferidas pelo sistema
político brasileiro. Observa-se, portanto, que houve importante
avanço social e de gênero no que diz respeito ao acesso àquelas
arenas locais de poder, que, em alguma medida, pode ter relação
com a ampliação e o aumento da popularidade dessas candidaturas
de cabeça de chapa oriundas do espectro ideológico da esquerda.
33 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

Mariele: Falamos até agora de direita neoliberal, direita conservadora


e de esquerda. Agora, nós vamos falar um pouco sobre os partidos de
centro. Comparando aos pleitos anteriores, podemos afirmar que as
eleições de 2020 mostraram um fracasso ou ainda uma desaceleração
considerando os números de votos recebidos pelos candidatos do
PSDB e do Movimento Democrático Brasileiro (MDB)?
Maria do Socorro: É verdade! Alguns meios de comunicação de
fato os colocaram como os grandes perdedores e os dados finais
mostraram isso mesmo. O PSDB e MDB saem das urnas como os
maiores perdedores, mas não se tornam partidos irrelevantes tanto
em número de cidades que governarão como em número de votos.
Mas o PT também não foi bem! Comparado com 2016, teve
uma derrota menor em 2020, mas continuou perdendo cidades.
Mas esses dois partidos — o PSDB e o MDB — perderam especial-
mente votos para prefeitos e vereadores, diminuindo o número de
cidades que vão governar. O fato do PSDB se manter na capital e
no governo do estado, acabou dando uma disfarçada nessa derrota.
Mas entre os dois, o PSDB foi realmente quem teve a derrota mais
fragorosa. O declínio dos tucanos já vem ocorrendo há algum tem-
po. Comparando as eleições de segundo turno de 2016 com 2020,
por exemplo, eles caem de 17% para 10% dos votos válidos para
prefeito no país. Também foi o partido que mais perdeu cidades
governadas tanto no grupo das 95 grandes cidades quanto no total
do país. No primeiro caso, eles caíram de 20 para 17 cidades. Tem
outro aspecto que eu penso que vale a pena examinarmos sobre
o PSDB, porque vai ser um dos partidos que vai tentar apresentar
candidato presidencial em 2022, mas que apresenta muitas dificul-
dades. Além de ter diminuído em número de cidades, incluindo as
capitais, ele se concentra geograficamente no estado de São Paulo,
que agora vai responder por 33% das prefeituras governadas pelo
partido. Esse índice em 2016 representava 21%. Nada menos que
nove dessas cidades estão incluídas no grupo das 95 maiores do
país, mas que estão concentradas no estado de São Paulo. Isso é
um problema para qualquer candidatura nacional, pois reduz
muito a sua capilaridade pelos outros estados.
Já o MDB está muito próximo desse declínio do PSDB. Ele
elegeu 265 prefeitos a menos que em 2016 e teve 11% de votos no
primeiro turno, contrastando com os 14% em 2016. Contudo, o
MDB saiu das urnas com 779 prefeituras e o PSDB com 516, entre
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 34

as quais nove capitais. Então, apesar desse decréscimo que a gente


acabou de ver, esses partidos podem chegar em 2022 ainda com
condições de eleger uma boa bancada de deputados federais.
Parece-me que não terão dificuldade, por exemplo, para superar
a cláusula de desempenho que em 2022 já será de 2% dos votos
nacionais. Hoje projeções mais otimistas já mostram que pelo
menos 15 partidos não vão conseguir dar conta dessa cláusula nas
próximas eleições, diminuindo assim a fragmentação partidária.
Ricardo: Professora Maria do Socorro, um dos problemas que nós
tivemos nessas últimas eleições municipais foi o alto índice de
abstenção. Então, minha pergunta gira em torno desse momento
que vivemos hoje, ou seja, do medo de parcela da população em re-
lação ao contágio da covid-19. Mas eu gostaria de saber, a partir da
sua interpretação, o motivo do alto grau abstenção das urnas nesse
processo eleitoral. Essa abstenção tem a ver com o medo do contágio
do vírus da covid-19 ou ela representa um desinteresse da população
pela política? E complementando a minha pergunta, algum grupo
político foi mais prejudicado por esse alto índice de abstenção?
Maria do Socorro: Essa pergunta é muito importante também
porque precisamos pensar como se deu a participação nesse
pleito. Primeiro eu vou falar um pouco da abstenção e apresentar
alguns dados que eu consegui coletar. Aliás, vou juntar esses
dados sobre a abstenção com índices dos votos nulos e votos
brancos também porque penso que esses três indicadores são
formas propícias para avaliarmos a participação da sociedade em
eleições periódicas. Em relação à abstenção, foi a maior em vinte
anos. Em todo país não foram votar mais de 23% dos eleitores,
enquanto na eleição anterior de 2016, esse índice ficou em torno
de 17%. Quando examinamos esses três indicadores — abstenção,
votos brancos e votos nulos — supera-se o valor do candidato mais
votado para prefeito em 483 cidades brasileiras. Vejam só: dessas
483 cidades, 18 são capitais. Vocês percebem como é interessante
esse dado, mas também preocupante, mesmo considerando o con-
texto pandêmico. A soma de três expressões de comportamento
eleitoral foi maior que a votação recebida pelo candidato que teve
mais voto em 482 cidades.
O maior índice de abstenção parece estar relacionado com
o medo da doença covid- 19. Mesmo com o importante trabalho
da Justiça Eleitoral, criando protocolos para todo o processo,
35 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

muitas pessoas optaram por não ir às urnas. Essa preocupação


fica evidenciada pelos próprios públicos que mais se abstiveram.
Entre esses setores os que menos participaram foram os idosos,
ou seja, aqueles mais vulneráveis a essa doença. Outro segmento
que participou menos dessas eleições foi o dos jovens.
Há outros segmentos do eleitorado que podem ter expressado,
se decidindo por algum desses tipos de comportamento político, o
voto de protesto. Todavia, quando consideramos somente as taxas
de votos brancos e nulos, verificamos que estas foram menores que
em 2016, ou seja, entre aqueles eleitores que foram às urnas em
2020, a maior tendência foi optar por um dos candidatos/partidos
ofertados, sinal importante da sobrevida da elite política brasileira.
Aspecto reforçado pela alta taxa de reeleição de boa parte desses
quadros políticos. Tivemos a maior taxa de reeleição, só não foi
superior à taxa de reeleição de 2008. Certamente quem estava bem
avaliado ou tinha relativa popularidade foi reeleito. Enquanto em
cidades que havia alta rejeição desses governantes, novos prefeitos
foram eleitos, como é o caso, por exemplo, de Belém onde o PSOL
fez seu primeiro prefeito.
Mariele: Vamos falar um pouco de eleição presidencial de 2022. O
que a gente pode esperar dessas eleições? É possível que a gente
tenha uma eleição ainda menos ideológica? Como os partidos
precisariam se organizar, tanto partidos de esquerda quanto de
direita, para apresentarem candidatos realmente competitivos?
Maria do Socorro: Temos ainda um tempo considerável até lá,
mas essas eleições, em alguma medida, já apontam para alguns
cenários. Como vimos, parte dos partidos da chamada direita neo-
liberal e direita conservadora saíram fortalecidos. Partidos mais
próximos do presidente Jair Bolsonaro devem aumentar seu capital
político fortalecendo a base do governo e, assim, cacifando-o para
buscar a reeleição. Aliás, eles já saem desse pleito com mais cabos
eleitorais, indicando para a construção de certa capilaridade nos
estados para atingir esse objetivo em 2022.
No polo oposto, o PT deve reapresentar o ex-presidente Lula
da Silva pela esquerda, para outros, centro esquerda. É possível
que tenha que compor com mais partidos até da direita, centro
direita para ampliar o apoio eleitoral. Nesse campo, ainda tem
o Partido Democrático Trabalhista (PDT), que embora não saia
muito fortalecido também deve colocar o Ciro Gomes, como seu
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 36

candidato presidencial. Já a composição do atual MDB, PSDB e


os Democratas, à centro-direita, pode resultar numa outra can-
didatura, possivelmente do atual governador de São Paulo João
Dória. Afinal, eles fizeram uma composição aqui em São Paulo,
por exemplo, onde houve um acordo no qual o próprio PSDB
teria o cargo de governador com o Dória, considerando seu vice
do MDB, enquanto na prefeitura com Bruno Covas, também
do PSDB, com o vice do Democratas. Reflexo do jogo que já
visava à reeleição, sobretudo, do Rodrigo Maia na Câmara dos
Deputados, com um arranjo com o MDB para o Senado Federal.
Possivelmente, sem a possibilidade da reeleição, esse acordo,
portanto, ficará para 2022. Vamos ver se isso acontece, ou o MDB
vai se dividir. Se ele não se dividir, a composição vai passar por
Dória. Seria esse o candidato para esse bloco, e aí vamos ver
quem vão escolher para vice, poderá vir do Democratas. Isso se
eles seguirem juntos até lá.
Vocês sabem que o Dória foi eleito com apoio do Bolsonaro.
Mas nessas eleições, ele se afastou do Bolsonaro. Há algum tem-
po ele corre do Bolsonaro. Inclusive, Dória não foi um bom cabo
eleitoral do próprio Bruno Covas, são grupos rivais dentro do
próprio partido. E o Bruno Covas também se escondeu do Dória,
sua impopularidade também não ajudou. Mas acabada a eleição, os
dois foram juntos para o palanque comemorar a vitória. Também
vimos as principais lideranças do MDB e mesmo do Democratas
no mesmo palanque. Então, já é, ou ao menos parece indicar a
materialização dessa coalizão que deve chegar lá em 2022. A ver.
Conforme eu disse para vocês, 2021 será um ano muito difícil.
E quanto maior a dificuldade, mais complexo para os governantes
dar conta da saída da pandemia e da questão da vacina, e ainda, em
cenário muito crítico do ponto de vista macroeconômico. Nós es-
tamos na expectativa de um aumento da recessão, do desemprego
e da inflação. Os indicadores econômicos não são nada positivos.
Pelo contrário, nós vamos ter a maior recessão no ano de 2021, au-
mento do desemprego, menor poder de compra, principalmente,
para os setores populares e o fim do Auxílio Emergencial — que
ainda nem sabem o que vão colocar no lugar. Já está se discutindo
esse programa do Renda Mínima.
Deve também entrar nessa agenda do ano que vem a pauta
conservadora comandada pelo Ministério da Damares Alves, com
37 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

forte apoio dos setores cristãos, entre os quais os evangélicos pen-


tecostais, base de apoio do atual presidente. A expectativa, caso
levem adiante essa pauta que conservadora, é que haja muitos con-
flitos no Congresso, inclusive entre setores que apoiam o próprio
governo, pois eles são divididos em Bancada da bala e Bancada
da Bíblia. Essas bancadas têm fortes divergências e devem entrar
em conflito, afetando também os partidos que estão ao redor
do presidente. É possível que venha ocorrer uma minirreforma
ministerial nos próximos meses, que é justamente para dar mais
poderes a esses partidos. Se isso ocorrer, chegaremos em 2022 com
o presidente bem mais fortalecido, garantindo mais palanques es-
taduais. Mas isso dependerá desses partidos. Inclusive, a tendência
é que o presidente se filie a um desses partidos ao invés de criar o
próprio partido. Então teremos assim a materialização dessa outra
composição de forças ao redor do presidente.
Agora, se der tudo errado e o presidente não conseguir ad-
ministrar todos esses problemas, a tendência é que esses partidos
saíam da base, pois esses partidos são adesistas, ou seja, eles ficam
enquanto conseguem poder e suas moedas de troca para sobre-
viverem. Além disso, esses partidos têm ciência da cláusula de
exclusão de 2% que vai levar a redução deles e, consequentemente,
da fragmentação partidária em 2022. Temos ainda a janela parti-
dária ainda no primeiro semestre de 2022 que também pode nos
indicar a direção desses partidos. E, conforme as consequências
tradicionais da variável governismo da política brasileira, apesar
das implicações do cenário econômico, podemos ter uma eleição
muito competitiva. Boa parte desses elementos podem mudar de
acordo com o cenário socioeconômico, e como o atual presidente
atuará para manter, por um lado, a sua base parlamentar, e por
outro lado, conseguir aumentar sua popularidade ao longo de
2021. Ao longo de 2022, seria muito bacana a gente voltar a ter essa
conversa para ter outro olhar sobre essas tendências.
Em relação à esquerda, os partidos vão fazer um grande
debate interno. Apesar desses resultados do PSOL, ainda que fo-
calizados em alguns estados, sai com lideranças mais fortalecidas,
como a expressiva votação do Boulos, também elegeu o prefeito da
cidade de Belém, mas a capilaridade nacional é limitada, e poderá
ser penalizado pela cláusula. Pior ainda para o Partido Comunista
do Brasil (PCdoB), o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e o Partido
Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), que precisam se
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 38

unir a partidos maiores se pretendem sobreviver nas próximas


eleições. Sem tempo de televisão e nem recursos públicos em 2022
não terão como se manter na disputa política. A expectativa é que
o PT seja o desaguadouro desses partidos, juntos eles poderão
sobreviver a essas novas dificuldades.
Agora em relação ao Ciro Gomes, deve se manter isolado no
PDT tendo em vista seu comportamento mais agressivo e pouco
agregacionista. Contudo, em decorrência de alterações na compo-
sição dos demais partidos e, especialmente, do desempenho do
bloco governista em 2021 e do PT, hoje principal oposição ao Exe-
cutivo, é possível reposicionamento do Ciro. Então, pode mudar
o cálculo político dessas lideranças no futuro próximo. Afinal, se
Bolsonaro estiver muito forte, a tendência é que as forças da centro-
-esquerda e centro-direita se unam para impedir sua reeleição, em
prol da própria sobrevivência da democracia, e assim retornamos
o caminho da normalidade. Finalzinho de 2021, já conseguiremos
ter uma ideia de quais tendências da classe política se tornarão
realidade visando a campanha eleitoral de 2022.
Mariele: Agradeço a professora Maria do Socorro. Tivemos uma
aula sobre os partidos e o sistema partidário. Eu acho que fica
depois dessa conversa uma agenda de pesquisa muito importante
de ser enfrentada.
Ricardo: Eu agradeço também muito sua participação. Foi muito
interessante a gente ter essa possibilidade de fazer esse debate apesar
de um ano atípico que passamos. Foi enriquecedor falarmos sobre
a temática eleitoral articulando com a conjuntura política brasileira.
Eu faço das palavras da Mariele as minhas: foi uma aula e, por isso,
agradeço enormemente a sua disponibilidade e participação.
Maria do Socorro: Eu queria agradecer aos dois e parabenizá-los
pelo projeto do blog e das várias lives que estão fazendo. Para mim,
também foi enriquecedor, pois é sempre bom debater e compar-
tilhar os resultados das pesquisas que estamos desenvolvendo.
Desejo um bom ano e que a vacina chegue para todos.
39 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

Referência Bibliográfica
NORRIS, Pippa; INGLEHART, Ronald. Cultural Backlash: Trump,
Brexit, and authoritarian populism. Cambridge/UK: Cambridge
University Press, 2019.
Capítulo 3: Feliz dia das
mulheres para quem?
Reflexões sobre política,
patriarcado e subjetividade

Bárbara Breder Machado é professora adjunta


do Departamento de Psicologia da Universidade
Federal Fluminense (Campos dos Goytacazes),
coordenadora do Laboratório de Psicanálise, Po-
lítica, Cultura e estudos de gênero (UFF/PUCG);
Doutora e mestra em Ciência Política pelo Pro-
grama de Pós-Graduação em Ciência Política
PPGCP/UFF; psicóloga formada pela Universi-
dade Federal Fluminense — UFF.

Flávia Mendes Ferreira é doutora e mestra


em Ciência Política pela Universidade Federal
Fluminense — UFF; licenciada em Ciência So-
ciais pela UFF, bacharel em Ciências Sociais pela
Universidade Estadual do Norte Fluminense —
UENF; professora de Sociologia da Secretaria de
Estado da Educação do Rio de Janeiro.

Mariele: Estamos no mês em que se comemora o Dia Internacional


da Mulher. Dia 8 de março não é um dia só que ilumina a memória
de conquistas passadas, mas, sobretudo, um dia de luta que pre-
para um projeto futuro de maior equidade de justiça de gênero,
raça e classe social. Estamos no ano de 2021, completando um ano
de crise sanitária e humanitária, cujos efeitos são devastadores
para o sistema de saúde global, mas também de consequências
que descobrem e sinalizam as desigualdades estruturais histori-
camente construídas dentro dos países e entre eles. Com isso, a
pandemia da covid-19 põe em xeque não só a saúde, a economia
e a política, mas também as sensibilidades, as relações culturais,
41 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

as relações sociais e nossos papéis sociais. Com essa provocação,


gostaria de ouvir as professoras convidadas para a nossa conversa
de hoje sobre os diferentes impactos da pandemia sob homens e
mulheres ao que se refere à divisão sexual do trabalho.
Bárbara: Prezadas colegas. Agradeço o convite para compor este
debate. Espaço esse de oportunidade de transmissão de saber,
promoção de reflexão coletiva e de produção de conhecimento em
tempos desoladores e desafiadores da pandemia. Eu gostaria de
iniciar agradecendo a possibilidade de estar com vocês nesse mo-
mento, ocupando os espaços de fala, sobretudo, neste mês de março
dado a importância do 8M. As possibilidades de abordar o tema são
tão grandes, as urgências são tão agudas, o cenário é tão desolador
que faz com que a gente pense de maneira muito complexa e tenha
muitas chaves de entrada para a questão sobre gênero.
Eu começo afirmando que a pandemia nos coloca simul-
taneamente de frente a três tempos. Temos um passado terrível
— refiro-me aos aspectos sócio-históricos violentos de fundação
desse país. Passado esse que deve ser encarado de frente visando
elaborar coletivamente as feridas históricas para que, neste mo-
mento desolador, possamos alçar uma perspectiva de construção
de futuro outro, que não esse. Desta forma, temos como desafio
e dever, enquanto intelectuais do nosso tempo, de pensar de que
maneira nós podemos ensejar a construção de um futuro, forjado
a partir de um presente tão desolador, através do enfrentamento
de um passado de feridas históricas importantes, que até agora,
tratamos de negar, silenciar ou apenas, mirar de soslaio, tendo em
vista que, coletivamente, não tivemos a coragem de olhar de frente.
Então, saudar essa iniciativa interdisciplinar é importante. Vai
ao encontro de um dos argumentos que eu tenho levantado que se
a oportunidade que temos de produzir alguma saída de constructo
intelectual para esse tempo é pela via da interdisciplinaridade. Ne-
nhum campo de conhecimento vai dar conta de responder e oferecer
vias possíveis e fortes os suficientes para nos sacar do estado em que
estamos e transformar a realidade concreta que temos enfrentado.
Colocar o título da atividade em forma de pergunta provocativa
“Feliz Dia da Mulher para quem?”, além de intencional, foi uma
espécie de intervenção a fim de provocar reflexões em um tempo
de antecipação de certezas. E gerou o efeito de abertura de diálogo,
prévia, e certa construção coletiva com algumas interlocutoras e
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 42

grupos nos quais estamos inseridas. Não se trata de afirmar se é um


dia feliz ou não; e sim refletir sobre o contexto atual e a condição
de subordinação na qual estamos inseridas durante todo o ano. Em
tempo que os encontros estão proscritos dado o cenário desolador
da pandemia, nos restam as telas e as letras digitais como possibi-
lidade de compor, colocar-se com e associar-se. Penso que é válido
colocar de saída o contexto que o título dessa mesa foi criado. Longe
de questionar a importância do dia — óbvio que não é disso que
se trata — a pergunta surge na partilha de um cansaço, de uma
exaustão que experienciamos no dia 8 de março.
É digno de nota que neste ano, o dia 8 de março foi uma
segunda-feira e, embora, início da semana, foi um dia que nos
encontramos já estávamos exaustas da sobrecarga dos tempos
pandêmicos, da inviabilização do nosso trabalho tanto o
reprodutivo, quanto o produtivo. Mas também estávamos exaustas
das inúmeras mensagens de “Feliz dia da Mulher” que reificavam
os estereótipos sobre nós, reduzindo-nos ao âmbito doméstico, à
maternidade, às insígnias sustentadas pelo discurso masculinista
sobre as mulheres que nos enfraquecem, nos aprisionam e nos
adoecem. Esse dia foi um dia muito cansativo e exaustivo. Uma
segunda-feira que parecia trazer em si todo o peso da pandemia e
da condição desigual de gênero de séculos. Ao refletir sobre esse
mal-estar, me dei conta da redução das estratégias de lutas típicas
desta data, dado a impossibilidade de estarmos juntas em presença,
talvez tenha contribuído para a sensação de estafa.
Há tempos não temos nos encontrado nas ruas para marchar-
mos juntas devido às medidas sanitárias que visam à prevenção
da covid-19. A impossibilidade de associação em corpos presentes,
compartilhando gritos de palavras de ordem e compondo com
muitas. Corpo político na massa que exige o reconhecimento, di-
reito e liberdade. Faltou isso esse ano! A gente não pode se ver, a
gente não pode sentir nosso corpo maior que ele é. Porque ele não
é um corpo único, individual. Quando a gente se encontra no 8M,
torna-se possível compartilhar possibilidades de enfrentamentos
coletivos de nossas opressões. Pois a gente entende e passa a vis-
lumbrar que não se trata de uma história individual senão uma
opressão coletiva estrutural. Esse ano, dado a pandemia, nós per-
demos essa possibilidade de transformar dor em luta. Então, eu
também acho que o cansaço desse 8M também vem desse lugar.
Tal como os galos de João Cabral de Melo Neto, que sozinho não
43 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

tece uma manhã. Nós mulheres, no 8M, nas ruas, gritamos. E,


assim, uma se torna capaz de pegar o grito da outra e lançar mais
longe e a outra mais longe ainda, até tecer redes e vislumbrar outro
amanhã de igualdade e liberdade. Mas nesse tempo de isolamento,
essa cena está proscrita, pelo menos, a efervescência das ruas. A
gente não pode ir às ruas.
Talvez seja lugar comum afirmar que a pandemia promove a
agudização da opressão estrutural do sistema capitalista — temos
repetido isso várias vezes — que seu modus operandi da produção de
cadáver e a opressão da vida recai sobre os corpos e as existências
mais vulneráveis de uma forma ainda mais pungente. Ou talvez,
apesar de óbvio, seja preciso repetir esse argumento uma, outra e
mais uma outra vez para desnaturalizar o cinismo alcunhado no
termo de “novo normal”. Estamos batendo a marca de 3 mil mortes
por dia, como conceber isso como novo normal? Então, se por um
lado não é novo que a pandemia diz dos processos de opressão, por
outro lado a gente precisa reclamar, reivindicar e repetir quantas
vezes mais até que isso produza efeito de estranhamento na lógica
genocida que estamos vivendo de uma forma naturalizada.
É preciso politizar estas mortes e desnaturalizar os processos
que as produzem. Mulheres estão na linha de frente do cuidado e
do trabalho reprodutivo. Estamos exaustas, adoecendo e morrendo.
Mães solo, arrimo de família, mulheres trabalhadoras que correm
risco quando saem para trabalhar ou que enfrentam a dureza do
trabalho remoto, que a esta altura, se configura privilégio dado o
problema da gestão da crise sanitária que nós estamos vivendo.
É preciso afirmar que a situação é tão crítica que a possibilidade
de reduzir a exposição a um vírus mortal neste país se configura
como um privilégio. Isso é muito grave! Impossível não ecoar a
célebre frase de Bertolt Brecht, quase em tom de desabafo que tem
habitado nossa vida cotidiana nas trocas, reflexões e mensagens:
“que tempos são esses em que temos que defender o óbvio?”
Reconhecer privilégio é reconhecer o direito que falta ao outro,
mas também é tomar posição para mitigar a desigualdade. Acho
que esse é um ponto importante.
Na minha fala, não trago novidades, senão, repetição a fim de
fomentar a reflexão do óbvio que segue sendo os corpos e as exis-
tências de nós mulheres um dos principais alvos da opressão e da
expropriação, agora também na pandemia. Por isso, o que se desvela
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 44

nesses tempos agudos não é como sabemos o novo. A misoginia


é um dos eixos no tripé da acumulação primitiva, segundo Sílvia
Federici. E, por isso, que sustenta o sistema sendo um dos vetores
mais nefastos que a nossa sociedade se escora junto com o racismo.
É nesse ódio às mulheres e suas desvalorizações que se
mantém a divisão social e sexual do trabalho e graves danos ao
processo de formação de subjetividades das mulheres. É nesta
via que tenho desenvolvido as produções nos estudos do pós-
doutorado: a ideia de destacar os vetores de opressão que formam
em disputa o campo simbólico. O que Freud chama de cultura e o
que Lacan retoma como movimento simbólico. Em outras palavras,
é preciso politizar o campo do Outro e entender de que forma
esses vetores de opressão engendram o processo de subjetivação
quando se é mulher. O que traz consequências decisivas e nefastas
enquanto sofrimento das mulheres, senão, o nosso aniquilamento.
Isto nos acua, nos (de)forma em uma tal intensidade, que nos trans-
formam em cúmplices dos próprios processos que nos oprimem.
Sendo assim, o processo de empoderamento também é um
processo de tomada de consciência de classe, de gênero, de um
lugar enquanto mulher. Uma certa tomada de lugar frente à cadeia
discursiva que nos é ofertada pela lógica masculinista. A domi-
nação masculina não apenas deflete os nossos processos mentais
como também os utiliza desses sistemas como aparato de controle
para a reificação e a replicação do pensamento patriarcal. E, é justo
aí, que oferece a ele longevidade. Pois, trata-se de um dispositivo
potente e transversal que atua através de processos mentais, atra-
vessam os processos de subjetividade, sustenta a divisão social e
racial do trabalho e práticas de violência em todos os seus níveis em
um ciclo vicioso. Pois, o campo social, marcado por esta relação de
poder oferece referências simbólicas, misóginas e desvalorizadas
que impactam nos processos de constituição subjetiva. Há uma
espécie de retroalimentação. Romper com esse ciclo é urgente.
É preciso também ter em vista que o feminismo não é pauta
secundária, pelo contrário, ele é fundamental para operar esta
ruptura. O que temos visto na pandemia é o aumento vertiginoso
e escandaloso de vários tipos de violência (física, psicológica,
simbólica e doméstica), que resultam no aumento das taxas de
feminicídio. Neste sentido, seguimos o caminho da Gerda Lerner
em A Criação do Patriarcado (2019). Ela afirma que a classe não é um
45 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

construto separado do gênero. Justo o oposto! A classe é expressa


em termos relacionais de gênero. Desta forma, pensar a superação
do capitalismo só é possível se a perspectiva feminista for incluída,
bem como o antirracismo, conduzindo a análise, portanto, na via
da interseccionalidade. Dado que as classes foram construídas e
sustentadas pelas relações patriarcais. E é por isso que é preciso
destacar a indissociabilidade desses marcadores consolidados na
dualidade entre trabalho produtivo pago e trabalho pró-criativo
doméstico não pago. Talvez não seja demais ressaltar que a femi-
nilização do cuidado por meio da perspectiva burguesa marca o
atributo da mulher como o segundo sexo. Nessa mesma lógica,
a partir da qual se sustenta o discurso sobre o feminino, que é o
esteio da divisão que estabelece o parâmetro do que é ser mulher.
O que vai alijar, portanto, as mulheres não brancas desse ideal.
Assim, importante recorrer a esse debate interseccional para refletir
sobre classe e gênero que não pode estar dissociada da perspectiva
antirracista dado que a sobreposição de opressões se configura às
mulheres não brancas, as mais vulneráveis aos efeitos do patriar-
cado. Talvez nunca tenha sido tão importante aprender com Lélia
Gonzalez, Neusa Santos e outras tantas intelectuais, que abriam
este campo. Repito: a única via de enfrentamento e transformação
do cenário atual e defesa da democracia é por meio do pensamento
crítico norteado pela interseccionalidade porque nós estamos fa-
lando em defesa de democracia. E é justo isso que está em disputa
hoje. Então, precisamos nos situar bem nesse terreno e entender
para que serve a universidade nesse país. É necessário, portanto, a
reestruturação do pensamento que não seja androcentrada, porque
a luta de classes e de poder também é a luta pelos símbolos que
sustentam as narrativas possíveis de existência.
Então, fazendo uma retomada, pensar 8M é pensar também a
disputa de símbolos. Fazendo recuo a essa apropriação do mercado
dessa data que nos oferece símbolos que reificam estereótipos de
gênero e de controle sobre nossa existência e corpos. Assim, pode-
mos afirmar que se há alguma felicidade nesse dia, ela é extraída
da luta, na rua, ela é extraída dos avanços que custaram e custam
até hoje vidas. Sabemos quem está sangrando nesse país.
Essas ideias eram as que eu queria colocar como terreno ini-
cial para debatermos juntas. Vou encerrar a minha fala com uma
afirmação importante para nos advertir de que o patriarcado é um
constructo histórico e, por isso, se tem um começo e terá um final.
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 46

Isso é importantíssimo porque, muitas vezes, a gente olha o que


está posto no horizonte e desanima. Mas não podemos deixar de
ter em mente que, se é um constructo histórico, se é um processo
histórico, ele é passível de ser derrotado e, por isso, é, também,
no espaço acadêmico que se faz essa luta. Nesse sentido, a minha
defesa e a minha existência na academia enquanto uma intelectual
engajada é pensar a possibilidade de desconstruir o patriarcado na
trincheira da academia. Eu queria terminar essa minha primeira
intervenção, falando para as alunas e os alunos, da necessidade de
conduzir nossa formação crítica associada ao compromisso social
de mitigar a desigualdade defendendo a democracia, e que isso
passa necessariamente pela via feminista antirracista.
Flávia: Eu queria começar agradecendo o convite e dizer que é
um prazer participar dessa conversa com vocês. No dia que nós
começamos a pensar no título para a nossa conversa era o dia
internacional da mulher. A Bárbara lembrou bem como se deu a
construção dessa nossa atividade. Foi um dia de incômodo e de
um mal-estar. Já era noite de um dia inteiro que passamos rece-
bendo mensagens. Mensagens em grupos diversos e de colegas
do trabalho que nos faziam refletir sobre aquele conteúdo, afinal,
feliz dia da mulher para quem?
Eu trouxe alguns dados como proposta para pensarmos a
nossa realidade, porque às vezes parece que a nossa conversa
é “mimimi”, pois tanto na via institucional quanto na política,
muitas vezes nossas desigualdades são tratadas como algo menor,
reproduzindo e naturalizando o papel da mulher na sociedade
patriarcal. Quando não, questões de gênero são compreendidas
como uma agenda à parte, uma agenda identitária que pode
ser resolvida depois. Isso também gera cansaço. Então, o nosso
cansaço é porque parece que o tempo todo nós temos que repetir
as mesmas coisas e são coisas que são sentidas, porque não são
coisas apenas teorizadas e lidas. Há diversas temáticas dentro do
campo das Ciências Sociais, por exemplo que eu estudo que são
completamente distantes de mim, por mais que eu sinta, eu não
estou vivendo. Isso já não acontece quando estou debatendo a
questão de gênero, porque é uma vivência cotidiana.
A partir dessas vivências em ser mulher na academia que pen-
samos em formar o grupo Poieses Alquimia Feministas. Um grupo
de mulheres acadêmicas pensando o estar na universidade. Uma
47 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

instituição que não foi pensada para nós e fomos tomando o espaço
e peitando muita coisa ali dentro. Então, as diversas diferenças que
acontecem são no dia a dia e que agora na pandemia — aprovei-
tando o gancho do que você estava falando — ficou pior. Por quê?
Primeiro, porque a pandemia é desigual. A pandemia é desigual e
escancarou toda a desigualdade da nossa sociedade, que quem não
tinha percebido ainda, não teve mais como negar, não teve como
esconder porque ela não afetou todo mundo da mesma maneira.
Então, teve o trabalhador que não pode em nenhum momento,
por exemplo, fazer homeoffice, porque é necessário que ele esteja na
rua. A partir dessa desigualdade, pensar como a pandemia afeta
as mulheres, as mulheres mais pobres, as mulheres negras, a as
mulheres moradoras da periferia.
A área da educação reflete alguns desses problemas. Por
exemplo, é uma área muito feminina e, por isso, é muito desva-
lorizada. Ser professora é tido como um trabalho de mulher, que
muito se confunde com um trabalho também cuidar e de educar
a criança. Vamos pensar como a pandemia afetou a mãe de uma
criança que não está indo à escola devido às medidas de preven-
ção à covid-19. A mãe que tem que trabalhar e está com a criança
ou a mulher que nesse momento ficou sem trabalho e é a chefe
de família. Tem ainda a mulher que não tem a possibilidade de
adotar o distanciamento social e a que sofre violência doméstica.
Conforme uns dados coletados de onze estados, só no
primeiro semestre do ano passado tivemos o aumento de 80%
da violência da mulher. Só no primeiro semestre de 2020! Se
pensarmos as desigualdades entre todos os estados brasileiros,
concluímos que as regiões não sofrem da mesma maneira. Os da-
dos destacam as regiões Norte e Nordeste com índices muito mais
altos, com estados com mais de 200% de aumento de violência. Isso
sem falar nos índices subnotificados, como, por exemplo, sobre
casos de estupros. Em um primeiro momento parece que diminuiu,
mas na verdade está subnotificado, pois muitas mulheres estão em
casa com aquele que a violenta, sem a rede de apoio dela — seja do
trabalho, da faculdade, da escola ou de algum lugar que a mulher
circula e troca informações.
Estamos vivendo uma crise sanitária, humanitária e econô-
mica. Uma crise econômica que já vinha acontecendo e que afeta
muito mais as mulheres, e ainda mais as mulheres negras, as
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 48

mulheres pobres, as mulheres periféricas. Por isso, não dá para


pensar esse momento que nós vivemos de todo dia um novo recor-
de de mortes sem considerar o quanto isso nos afeta e nos fere. E,
por isso, o nosso cansaço e a nossa angústia porque não tem como
não pensar a questão de gênero. Pensar gênero é pensar política!
Não tem como pensar política e qualquer questão política sem
pensar as questões de gênero, porque a maneira como homens e
mulheres vivem suas vidas no espaço público não é idêntico, não
é igual. Quando nós nascemos, nós somos marcadas pelo gênero.
Por exemplo, a maneira como o Estado organiza o que é família
na Constituição e no código civil expõe um papel definido do que
é um homem e do que é ser mulher. Ser homem e ser mulher é
colocado pelo Estado. O Estado estabelece dessa maneira e estamos
presas nessa estrutura. O Estado patriarcal reproduz toda essa
estrutura que estamos submetidos e, então, é impossível pensar
qualquer crise que a gente viva sem levantar a questão de gênero.
Não tem como pensar a crise de covid-19, e não pensar a
situação das mulheres, porque é óbvio, a crise da covid vai afetar
mais as mulheres. Pensar crise humanitária e não pensar as mu-
lheres, que já estavam sobrecarregadas no antigo normal que nós
vivíamos. O antigo normal já não era muito normal, com uma
sociedade completamente desigual e violenta.
No antigo normal, as mulheres já estavam sobrecarregadas
com esse papel do cuidar dado a elas e, exatamente, por isso, há um
vazio de políticas públicas, como a falta de creches. Porque paira
uma divisão: o que que é papel do Estado e o que é do ambiente
privado? No ambiente privado, esse papel do cuidar vai ser colo-
cado para as mulheres, vai ser direcionado para as mulheres. O
cuidado com idosos, crianças e pessoas doentes é tido como papel
das mulheres. Então, por exemplo, agora no período da pandemia
têm muitas pessoas doentes que pegaram covid e estão nos hos-
pitais, e têm as que não estão, e nos dois casos são mulheres que
estão fazendo toda essa rede de cuidados, ou seja, as mulheres,
que além de dar conta do trabalho doméstico, do cuidado das
crianças — que não estão indo para escola, porque as escolas estão
fechadas — estão cuidando das pessoas que adoeceram. Então
é mais peso para nós mulheres, mais um motivo para todo esse
cansaço que no dia 8 de março quando estávamos pensando, quase
um ano de pandemia: “Feliz dia para quem?”.
49 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

Pensando da nossa condição de mulher não tem nada de


feliz. As notícias são péssimas e o cenário é desolador. Por outro
lado, têm as brechas que vão se abrindo, conforme Foucault (2011)
apresenta, que a opressão gera resistência.
Eu arrisco afirmar que nós estamos diante de uma quarta
onda feminista e que esse debate está se ampliando. Vemos cada
vez mais mulheres jovens pensando a sua condição de mulher. A
pauta de gênero está se tornando politicamente importante.
No viés liberal, a gente pega, por exemplo, o 8 de março e o
tanto de empresas que fizeram comerciais, que fizeram propagan-
das colocando a funcionária da empresa para dizer que emprega
mulheres, que tem uma porcentagem de mulheres naquela empre-
sa... Fingindo uma certa igualdade, vendendo produtos específicos
e oferecendo descontos: “Você é mulher? Compra aqui na minha
loja, na minha empresa que você terá desconto.”. A pauta de gênero
aparece em uma agenda liberal que tenta mostrar uma certa igual-
dade, de que somos iguais, de que chegamos em determinados
cargos hierárquicos e está tudo bem. Mas, ao fazer isso, mascara
nossa condição de mulher, porque não somos todas iguais. Não
somos atravessadas pelas mesmas opressões. Por outro lado, no
campo progressista, esse debate, está colocado pela pauta feminis-
ta com certo incômodo de que não se trata apenas de uma pauta
identitária. Então, também para pensar mesmo o novo mundo,
outra possibilidade fora desse que a gente vive, também tem que
pensar essa condição de mulher.
Então, esse “Feliz Dia das mulheres para quem?” é principal-
mente pensar a partir da nossa ideia inicial de mulheres e política
ressaltando a pauta de gênero. A pauta que está sendo colocada
é gênero e ela se faz necessária para compreender, por exemplo,
o que hoje estamos vivenciando no Brasil.
Mariele: Há um pressuposto da transversalidade na questão
de gênero presente em todas as configurações que a mulher
vivencia seja no ambiente doméstico ou no ambiente de trabalho
que precisa ser considerada quando debatemos, por exemplo,
os desdobramentos da pandemia. Logo, não diferente, as
desigualdades de gênero se configuram, também, no campo
científico. Nessa direção, gostaria de propor uma reflexão sobre
a desigualdade de gênero na academia. Eu sei que vocês têm
um grupo de mulheres intelectuais chamado Poiesis e Alquimia
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 50

Feministas, citado anteriormente, que tem como propósito pensar


e acolher, em certa medida, pesquisadoras, visando dar suporte
frente a essas dificuldades sofridas pelas mulheres na academia.
Eu gostaria que vocês comentassem um pouco: Qual é a proposta
do grupo? Como ele surgiu?
Flávia: Trata-se de um grupo de mulheres de todas as regiões do
Brasil e de outros países. São todas mulheres acadêmicas, mes-
trandas, doutorandas e universitárias, ou seja, mulheres que a
academia atravessa suas vidas. Há mulheres de todas as áreas. Isto
é especial e torna o debate enriquecedor. Eu gosto desta proposta
do grupo e nós temos feito trocas desde o ano passado. É um gru-
po bem ativo, que abre a possibilidade de as mulheres exporem
questões da sua vivência, mas também de pensar a nossa conjun-
tura e de como colocar esse bloco na rua. A gente tem pensado em
publicação e projetado atividades também para o período após a
pandemia. Muitas mulheres não se conhecem pessoalmente, pois
é um grupo que surgiu durante a pandemia, quando já estávamos
em quarentena. Eu não conheço a maioria do grupo e estamos
assim, escrevendo e pensando coletivamente.
É importante para pensar que a universidade é uma
instituição dentro da sociedade. Então, assim como as demais
instituições, ela reproduz o patriarcado. A universidade reproduz
o que outras instituições reproduzem. O fato de produzir ciência,
o fato de produzir conhecimentos, tentando dar respostas a
diversas questões das diversas áreas científicas para a sociedade,
dar um retorno para a sociedade, do investimento público na nossa
atividade, na nossa carreira, é o trabalho que a gente faz, mas que
também está reproduzindo outras relações. Acho que é preciso
desnaturalizar um pouco o intelectual. Algumas vezes, o professor
universitário é colocado como herança da sociedade moderna, do
Iluminismo, de que faz parte de um grupo de pessoas que estão à
frente das demais. Há uma certa naturalização na nossa sociedade
como se o cientista, o intelectual fosse uma pessoa que se tivesse
à parte. Mas se esquece que a universidade é uma instituição,
composta por pessoas. Essas pessoas são homens e mulheres que
tiveram suas criações como homens e mulheres. Suas vivências
sociais também estão reproduzidas naquele ambiente. Isso sem
falarmos que a universidade não foi um ambiente inicialmente para
ser ocupado por mulheres. As mulheres entraram na universidade
depois dos homens. Elas entraram depois. Assim, a questão que se
51 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

coloca é a seguinte: Como foi a adaptação para essa entrada? Acho


que a Bárbara vai poder falar mais sobre isso, pois é a condição de
fala dela, de como é ser mãe e ser pesquisadora.
Aliás, um dado que a pandemia nos trouxe é o número de
artigos publicados no ano passado. Até então, as mulheres estavam
publicando mais. Quando veio a quarentena no ano passado, esse
número caiu, então o número de mulheres que publicou no ano
passado diminuiu. O número de mulheres como primeira autora
de um artigo também caiu. Eu até anotei aqui alguns dados do
Parent in Science do ano passado. Por exemplo, no ano passado,
52% das mulheres com filho deixaram de entregar um artigo, pois
não conseguiu entregar. Enquanto só 38% dos homens com filhos
foram afetados por essa condição. Reparem na diferença! E aí até
quando olhamos para as mulheres sem filhos — porque ela não
tem filho, mas aí tem todas as tarefas de cuidar da casa, cuidar
dos familiares, de um idoso, ou seja, todo o trabalho doméstico
feito pelas mulheres. Notamos que 40% das mulheres sem filhos
também deixaram de entregar o artigo, quando só 20% dos homens
sem filhos ficaram sem entregar um trabalho. Isso mostra a partir
dos dados do IBGE que as mulheres gastam o dobro do tempo em
afazeres domésticos. Esta questão perpassa também o ambiente
acadêmico, perpassa a universidade. Quem está na universidade
também tem essa tarefa doméstica, também tem essa tarefa de
cuidar da casa e dos filhos. A pandemia escancarou essa realidade
que ninguém pensava muito: quem está produzindo? Os pesquisa-
dores homens estão escrevendo mais que pesquisadoras mulheres.
Outro dado também que eu achei curioso é que os homens
citam mais os colegas homens. Há uma solidariedade masculina
que nós mulheres começamos a construir só agora. Os artigos mais
citados são os artigos escritos por homens, que são citados por
outros homens. Então, há uma parceria entre os homens. Enquanto
os artigos das mulheres são menos citados.
Bárbara: Vou falar um pouco sobre o Poiesis & Alquimia Feministas,
que é uma experiência incrível de potência na pandemia. Um grupo
de mulheres que foi parido, justamente, no contexto pandêmico,
como via de enfrentamento ao acirramento das desigualdades de
gênero entre pesquisadores homens e pesquisadoras mulheres.
O início e a consolidação desse grupo deram-se de uma
forma muito interessante, pois é uma espécie de dissidência de
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 52

um grupo maior de trocas entre pesquisadores em sociologia e


áreas afins. E, em maio, ainda no início da pandemia, recebemos
por este grupo duas mensagens simultâneas e analisadoras tanto
da nossa condição de opressão quanto da invisibilidade dela e
do agravamento da divisão desigual do trabalho. Ainda que te-
nha sido enviada por uma pessoa muito querida, que talvez não
tenha alçado a compreensão da realidade concreta que limita as
pesquisadoras, sobretudo, as que são mães ou não reconhecem o
seu lugar de privilégio.
Importante ressaltar que as pesquisas apontam que no perío-
do pandêmico, a taxa de publicação dos pesquisadores homens
mais que dobrou. Enquanto a das mulheres nunca esteve tão baixa.
As mensagens diziam mais ou menos assim: “Gente, o prazo para
submeter artigo acaba amanhã: “não se esqueçam” e, na sequência:
“Feliz dia das mães!”. Eu respondi essa pergunta assim: “agradeço
as congratulações sobre o Dia das Mães e gostaria de saber se esse
congresso pensa em estender o prazo para que as mamães possam
participar!” E foi uma provocação que eu fiz ali e, em sequência,
as outras mulheres intelectuais começaram a falar sobre opressão
na academia. Ao colocar a questão desvelada na cena, ficou claro
em poucos minutos que a condição de impossibilidade de escrever
um artigo e postulá-lo a um congresso, em tempos de trabalho
remoto e escolas fechadas não era algo que dizia respeito apenas
a uma condição individual. Senão, que havia um entrave comum
que impedia nosso avanço. Vale ressaltar a frase precisa de Vir-
ginia Wolf (2020) que afirma que o reservatório no qual se forjam
célebres intelectuais homens é o mesmo que submete e sufoca as
mulheres. Naquele instante percebemos que era necessário agir
em associação, que precisávamos estar juntas, no mesmo espaço.
É aquilo que a Flávia colocou anteriormente, a gente não se co-
nhece presencialmente, mas se considera — como aquela piada
de bar — porque a gente se organizou e se associou no momento
certo, para fazer frente à opressão que a gente estava vivendo. De
imediato, eu e a pesquisadora Tabata Berg criamos outro grupo
e fomos incluindo parceiras de trabalho, que seguiram incluindo
outras. Hoje somos 65 mulheres pesquisadoras de diferentes áreas
e localidades do Brasil.
Então, eu acho que isso é importante e foi o que eu tentei
falar um pouco na minha fala de abertura: essa opressão é estru-
tural, ela não diz sobre a minha singularidade, embora a impacte
53 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

diretamente, seja a minha subjetividade, a forma de exercer a


maternidade e os enfrentamentos no campo profissional. A ma-
ternidade solo, por exemplo, é algo que tem impacto decisivo na
minha vida enquanto mãe, a maneira que conduzo esta questão na
minha vida é algo de uma especificidade particular. Entretanto, a
condição de mãe solo não é algo individual, é algo estrutural, que
diversas outras mulheres enfrentam. Como a Flávia bem coloca
na fala dela, forma do exercício da parentalidade está fundamen-
tada, arraigada e sustentada na forma que a sociedade estabelece
os papéis de gênero.
Apesar do advento de uma criança seja realizado pelo casal, as
práticas, as atividades, o trabalho do cuidado, como falou a Flávia,
é feminizado, ou seja, o cuidado infantil é construído socialmente
como algo de responsabilidade exclusiva das mulheres. E, isso faz
com que a nossa existência fique atrelada ao reduto doméstico, que
a nossa experiência de estar no mundo seja equiparada à mater-
nidade, como se o cuidado de uma pessoa no mundo fosse algo
próprio, inato de uma mulher. E não é! Por isso, que ser mãe solo
não é o mesmo que ser mãe solteira. A disputa que envolve este
conceito parece desimportante, mas não é. Porque a gente deslocou
essa categoria, porque não se trata se eu sou solteira ou não, se trata
do fato que eu assumo os cuidados solitários de parentalidade e
significa que a outra pessoa não os cumpre. Mas isso não diz res-
peito a minha vida apenas, e sim de uma opressão estrutural, pois
sistematicamente os homens (em geral) se ausentam da cena do
cuidado. De tal forma que acontece algo bem interessante quando
um homem exerce seu lugar de responsabilidade no exercício da
parentalidade, é algo que chama atenção. Faz o trabalho que uma
mulher faz e é quase ovacionado por isso. Como falamos na cena
da militância, “recebe biscoito” por fazer simplesmente o mínimo
da sua participação no trabalho não pago.
E qual é o modo de enfrentar? Por meio da associação!
Compartilhar histórias para que a compreensão destes vetores de
opressão, não sejam reduzidos a um drama pessoal. Por exemplo,
o assédio sofrido na universidade não é algo da tragédia, do drama
da vida de uma aluna. É algo sustentado estruturalmente e, muitas
vezes, com a anuência da negligência institucional. E, para isso, a
gente precisa se associar para fazer esse enfrentamento.
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 54

Para deixar mais claro o argumento: nenhum avanço em


nossas pautas e nas operações será possível, se não a entende-
mos como políticas — como falou Flávia — politizar o debate e
produzir associação. Então, o Poiesis e Alquimia Feministas é uma
associação de intelectuais que sentiram nas suas vidas e nos seus
lattes o impacto da pandemia. Isso é algo importante! Meu primeiro
artigo, que eu consegui escrever foi com Tábata Berg e Rubiana
Nascimento Viana, intitulado de “Publique ou abdique: o paradoxo
das pesquisadoras-e-mães no contexto da divisão sexual e racial no tra-
balho intelectual” (2021). Criamos essa espécie de neologismo, essa
palavra unindo-as com hífen. Porque, enquanto mulheres, somos
levadas a escolher no imperativo ou ser mãe ou ser pesquisadora.
Realidade que não se impõe para os pesquisadores homens. Por
isso, precisamos politizar e ocupar a academia com esse debate,
para lembrar que a “perspectiva neutra da ciência” — como estava
falando Flávia — não é neutra coisa nenhuma, não é universal
coisa nenhuma, é masculinista, e isso precisa estar claro. Os
processos de avaliação de publicação, todos os processos desde a
maneira que a gente constrói, seja de promoção na carreira, seja de
reconhecimento acadêmico é pensado numa lógica masculinista.
Isso é muito importante a gente pensar! E aí eu destaquei um
trecho desse texto que eu escrevi com a Tábata e com a Rubiana:
(...) diante da situação de quarentena, há uma
configuração dos espaços de trabalho transfor-
mando a casa em uma espécie de ampliação
de gabinete para os pesquisadores homens, en-
quanto para as mulheres tornou-se ainda mais
um espaço de engessamento profissional. O lar
se antes se configurava como pretenso reduto
privado, agora se apresenta como lugar de
produção acadêmica incessante, reafirmando,
impulsionando esses trabalhadores homens
a reificadamente tomarem lugares de poder
e ascensão na esfera pública. Por outro lado,
observamos que no caso das mulheres longe
de promover a produção acadêmica, o espaço
doméstico segue sendo lugar de opressão,
inibição, invisibilização do trabalho intelectual
na medida em que a divisão desigual do traba-
lho reprodutivo se impõe de maneira brutal.
É o lugar, o qual se precisa produzir, a gente
precisa fugir.
55 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

Importantíssimo e urgente este debate. Dias desses eu vi mi-


nha colega dando de amamentar ao filho em reunião. Isso tem um
lado muito legal que é essa ideia de reafirmar a coexistência em
nós destes múltiplos papéis e não esconder nenhum deles para que
possamos ocupar nossos lugares devidos no mundo do trabalho.
Mas também tem outro lado da questão de que quando se tem o
“care”/cuidado feminizado e o período do trabalho remoto, ou seja,
quando a nossa vida coexiste na tela e na vida privada e pública se
fundam, essas fraturas sociais se expõem. Volto a questão, como
dar aula em casa sendo mãe solo com as escolas fechadas? Isso
não pode ser uma questão analisada como algo individual, que
concerne apenas a vida das professoras. Repito: é algo estrutural
que sistematicamente vem produzindo sobrecarga e expropriação
de trabalho (não pago) das mulheres.
Então, eu vou fazer mais provocações! Quando a gente vai
dividir a disciplina nos departamentos, por exemplo, isso é levado
em conta? Quando a gente vai pensar em promoção é levado em
conta o impacto da maternidade na publicação? Antes da pan-
demia, estudos demonstraram o quanto a produção acadêmica
das mulheres intelectuais depois de terem filhos era afetada em
quatro anos, ou seja, quatro anos ficamos tentando correr atrás da
produção acadêmica! E este cenário não se coloca para os homens
que são pais. Que paternidade é essa? Que lugar na parentalidade
eles estão ocupando? Com certeza, o dado objetivo diz que não
é se apropriar da responsabilidade e do trabalho. Outro dado
importante, as mulheres estão em maior escala nas atividades de
extensão (que visam a transformação social, ações de intervenção
para fora dos muros da Universidade) o que pontua muito pouco
para o prestígio acadêmico e para os processos institucionais do
plano de carreira. Isso é um dado analisado muito importante.
Então, precisamos ter muito claro que a organização da própria
Universidade está estruturada nessa divisão sexual do trabalho.
E como falou a Flávia, a divisão sexual do trabalho e a femini-
zação do cuidado foi criada com a ideia de que ele é essencialmente
feminino. Onde? Trata-se de uma ideologia que habita corpos e
mentes sustentada pela perspectiva do patriarcado. Uma inven-
ção falaciosa! Portanto, acho que isso é muito importante a gente
ressaltar, porque isso impacta na vida intelectual das mulheres,
nas produções, na subjetividade, até mesmo na relação, na tomada
de lugar na parentalidade. Esse impacto no que as minhas alunas
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 56

vão ter de conteúdo e encontrar na universidade: vão ler poucos


textos que tenham autoria de mulheres, vão ser achatadas na ló-
gica masculinista, muitas vezes desmotivadas e em alguns casos
até assediadas e vão acreditar que não deveriam estar ocupando
o espaço acadêmico, legitimamente conquistado, mas que histo-
ricamente a nós, foi negado.
Flávia falou algo muito importante, alguma coisa assim: “aca-
demia não foi construída para as mulheres, elas foram tomando no
peito o lugar”. Eu adorei a metáfora! A gente foi tomando no peito,
no sentido que a gente foi se colocando ali com os nossos corpos.
Mas o quanto a gente teve que se adaptar a isso? O quanto a gente
tem que se autoviolentar? As formas de produção acadêmica, a
maneira de ser e circular na universidade, o quanto a gente sofre
violências cotidianas na universidade vergonhosamente natura-
lizadas e silenciadas? E o custo é o adoecimento. A universidade
não está dissociada da realidade, pois as formas de opressão estão
ali, são violências que culminam e podem culminar em uma vio-
lência de assédio sexual e moral. Mas também tem algumas outras
violências que são invisibilizadas, como, por exemplo: como um
sorrisinho, uma piada misógina sobre a questão da maternidade
e produção acadêmica, uma apresentação do quadro de horário
do semestre sem levar em consideração a condição de trabalho
remoto na pandemia e muitas outras. Então, há uma série de
formas de violentar os nossos corpos, as nossas existências e nos
destituir desse lugar. Então, o Poiesis & Alquimia Feministas virou
um grupo de troca e de produção científica para a gente pensar:
qual é a nossa condição de trabalho? Nós que temos que nos sub-
meter a uma lógica cerceadora e misógina que habita a academia
ou ela deve se modificar para nos receber em nossa multiplicidade
e potência? Por meio da construção de outras lógicas e epistemo-
logias, novas formas de produzir saber com rigor acadêmico. É
muito interessante porque a gente faz ali algo que é de uma rede
suporte e de produção.
Hoje, por exemplo, eu não tenho condições nenhuma de sen-
tar-se em minha casa e construir um artigo sozinha. Não é uma
questão intelectual, é uma questão de tempo de poder sentar-se na
frente do computador, ler e organizar. Em um tempo que a rotina
de trabalho produtivo está simultânea ao do trabalho procriativo e
não pago. A gente não pode se esquecer da Virginia Woolf falando
das interrupções no processo de criação e escrita em Um teto todo seu
57 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

(1929). Esse tempo só seu, não existe, pois sou mãe 24 horas. Então,
são as duas coisas que eu faço ao mesmo tempo. Hoje, por acaso,
minha filha não está comigo porque está com outra mulher, minha
mãe, que forma minha rede de apoio, para que eu possa estar aqui
inteira, porque geralmente eu estou lá (cuidando da minha filha)
ao mesmo tempo que eu estou cá (em uma atividade acadêmica).
Estou dando aula, mas estou dando café da manhã. Interessante que
nestes tempos, isso vaza na tela das plataformas de aula. Escrevi
a fala de hoje com diversas interrupções, tenho uma menina de 7
anos, que demanda atenção e auxílio para as atividades básicas. Ela
quer saber o que é, o que eu faço...enfim! Bom que ela já está lendo
feminismo (o que é uma beleza!), mas há uma condição de trabalho
que é muito desigual que a gente precisa pautar isso.
Então, nesse sentido, já que eu não posso fazer sozinha, como
eu vou fazer? Eu vou fazer com! Isso é de uma potência incrível!
Esses dias eu vi um post no Instagram de Flávia e falei: “Flávia, isso
é artigo, vamos escrever isso! Vai pela via dos estudos de gênero
e vou pela psicanálise; e a gente vai construir esse artigo!” É essa
associação que a gente precisa fazer em todas as esferas, inclusive
na produção intelectual. Então, já citei aqui dois ou três artigos que
eu fiz, mas eu fiz porque eu fiz com essas mulheres. E na medida
que a gente faz junto, a gente se fortalece enquanto intelectuais. Eu
as reconheço enquanto intelectuais, elas me reconhecem enquanto
intelectual e a gente produz juntas. Fizemos agora juntas um dossiê
para sair esse ano sobre a condição de trabalho das mulheres nas
diferentes frentes e campos de saber da academia.
Então, esse grupo é muito importante. A própria coordena-
ção é coletiva, a divido com a Tábata Berg, doutora e professora
na Universidade Federal de Viçosa, Olívia Mello Fonseca e Alice
Pereira, professoras doutoras do Instituto Federal Fluminense de
Macaé. Um espaço incrível de construção de atividades, debate
e produção. Além de ser um espaço de troca de experiências que
nos permitem refletir sobre as condições de trabalho e de gênero
que nos aprisionam. Por exemplo, esses dias estávamos pensando
a tal da “Síndrome da Impostora”, e o porquê é comum a insistência
da pergunta para si mesmo questionando se devemos ou não estar
nesse espaço, se a gente é boa ou não para ser professora universitá-
ria. Percebemos ali, informalmente, que é uma experiência comum.
Justo porque cotidianamente nos querem fora da universidade. E
precisamos nomear isso, dizê-lo para poder enfrentar. Pois, se a
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 58

gente ocupa esse espaço hoje não é sem resistência, existir na uni-
versidade é ato de resistência. Todo momento, a gente sente esse
movimento centrífugo que nos impele para fora a todo momento.
Em resposta, nós reafirmamos cotidianamente que esse é nosso lu-
gar! Não sem custo psíquico, não sem adoecimento, não sem rede.
Então, eu acho que o Poiesis & Alquimia Feministas vem com
essa potência maravilhosa de transformar isto que é bruto em
produção acadêmica e laço, objetos raros e de muito valor.
E, para tentar concluir, se a opressão que permeia o bojo
social também se presentifica na academia, é preciso tomar o
lugar de enfrentamento institucional desta questão e construir
conhecimento a partir da perspectiva feminista. A produção de
conhecimento e o discurso — como afirma Foucault — opera a
prática. Desta forma, a maneira que temos, via universidade de
transformar a realidade que está posta, é, também, produzindo
conhecimento e operando práticas.
Nessa perspectiva, para que a possibilidade de habitar a uni-
versidade seja possível, para todas e cada uma é necessário que o
campo acadêmico se transforme, por meio do enfrentamento dos
vetores de opressão que aí também fazem sua morada. Neste sen-
tido, queremos caber na universidade do tamanho que a gente tem
e na pluralidade que existimos. Por isso, nos recusamos encolher
para caber, como temos feito sistematicamente. É a universidade
que tem que se transformar para caber a nossa potência e a nossa
multiplicidade. Então é um efeito que produzido desde a uni-
versidade para fora dela, justo para que seja possível a entrada e
permanência de cada vez mais alunas. Associem-se, precisamos
estar organizadas!
Mariele: Quanta força tem a sua fala! Estamos tão distantes fisi-
camente, mas ao mesmo tempo sinto muita força na sua fala. Eu
entrei no grupo há dois dias e diante de um grupo tão consolida-
do e engajado, imaginava anos de existência. Me espantei que é
formação recente, nasceu agora, justamente como uma resposta
para essa condição das mulheres e pesquisadoras. Que incrível!
Eu vou encaminhar para o final, vou trazer um ponto que foi
comum até agora, do início ao fim, de que quando a gente fala de
gênero necessariamente é preciso colocar outras questões como
raça e classe social. A Bárbara trouxe na primeira fala dela que
para pensar um projeto político democrático é necessário pensar
59 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

uma transformação da sociedade e que isso precisa ser colocado


em pauta de forma conjunta e complexa. Até porque precisamos
avançar esse projeto democrático para além dos processos insti-
tucionais. A partir disso, eu gostaria que vocês comentassem essa
problemática de como a gente pode pensar um projeto democrático
para além dos processos institucionais, ou seja, uma forma concre-
ta de inclusão de direitos para todas e todos. Será que é possível
pensar nisso? É viável e em quais caminhos?
Bárbara: Eu estive no início da formação do projeto Diálogos do Fim
do Mundo e teve naquele momento inicial de pensar, estamos na
pandemia e está acabando o mundo! Fomos refletindo juntos e em
dada altura da reunião eu afirmei: é bom que acabe este mundo!
Porque essa organização patriarcal, machista e racista que sustenta
esta ordem tem que acabar. Em tom jocoso, disse que eu virei uma
entusiasta do fim do mundo! Ao mesmo tempo que uma entusias-
ta da construção de outro que não esse. Então, acho que a gente
precisa se organizar e precisa vislumbrar o novo. Mas ressalto que
se estamos vivendo algo que nunca vivemos, a saída vai ser uma
saída pela qual nunca passamos. Então, eu acho que precisamos
nos responsabilizar pelo momento histórico que estamos vivendo.
E entender, desde já, que teremos que tentar construir algo que
nunca tivemos na mão. Forjar o inédito! Penso que estamos vivendo
um gap de pensamento intelectual, e nos modelos de relações de
sociabilidade (dado a vida em tela — on-line), logo novos modelos
de resistência terão que sair das nossas mãos e mentes. E vão sair
como? A meu ver pela única via possível: de maneira interdiscipli-
nar, insubordinada, indisciplinada e coletiva. Uma coisa que ouvi
da Talíria Petrone, em 2019 (deputada federal), e me tocou muito
quando ela foi a Campos dos Goytacazes, quando disse: “a gente
precisa lutar da trincheira que tem!” Então, da trincheira da academia,
temos um grande serviço a prestar à sociedade, pensar em novas
linhas de fuga, porque se esse mundo está em ruínas, ele também
possui brechas. São essas brechas que precisamos procurar para
reconstruir o inédito. E vai ser algo inovador, que não vivemos
ainda. Eu acho que a esperança está no fazer, se entender enquanto
seres políticos e intelectuais engajados.
Se há algum aprendizado sobre a pandemia, e a lógica de
contágio do coronavírus foi que não há possibilidade de sustentar
qualquer tipo de experiência que impulsione vida no individualis-
mo. Enquanto uma única pessoa estiver infectada por esse vírus, a
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 60

humanidade toda tem risco. Então, passou da hora de entendermos


que ou a saída é coletiva ou não há saída.
A saída possível é o que precisamos construir através da
coletividade. E insisto, na interseccionalidade, na associação dos
laços afetivos de luta. Precisamos nos associar, nos organizar
politicamente e estrategicamente na pluralidade das existências
para poder construir esse novo que nunca vimos, uma tal visão de
mundo que ainda não vivemos. Então se cabe a nós, vamos fazer
né? Se cabe a nós, vamos construir!
Eu defendo esses marcadores: a interseccionalidade, a in-
terdisciplinaridade, a indisciplina e a insubordinação. Eu adoro
pensar a UFF Goitacá como potência porque somos periferia,
estamos ali numa posição subalternizada! Isso tem uma potência
de produção teórica intelectual de intervenção no mundo ímpar.
A UFF Goitacá faz extensão! Isso é muito importante! Outra coisa
que eu queria marcar, é sobre nossa veia extensionista, de ação no
mundo... O nosso Instituto se chama Desenvolvimento Regional
e é para isso que estamos aqui, entende? É para isso que eu estou
no Departamento de Psicologia, a colega no Serviço Social, ela
nas Ciências Sociais ou outro. Estamos aqui para desenvolver a
região! A vocação é política na melhor acepção da palavra. Então
vamos tomar um lugar e a responsabilidade de construir esse
mundo. Utopia? Utopia! Uthopos, ou seja, outro lugar que não é
este! Aí, eu fico com a utopia ativa e o direito ao devaneio de um
lugar outro que não esse.
Flávia: A questão que a Mariele colocou é muito complexa, pois
perpassa tudo que a gente falou, o que estamos vivendo, todo
sofrimento e incômodo. Eu acho que é isso: pensar nas diversas
operações que já estavam colocadas, que já existiam na nossa
sociedade no antigo normal e que não era nada normal. E, a
partir daí, pensar quais as saídas, pensar as novas utopias. Eu
fiquei pensando, como Eduardo Galeano, que a utopia está no
horizonte! Eu acho que trazer uma fala esperançosa aqui no final,
depois de dados, depois de problematizações, de desnaturalizar a
universidade, de pensar que tudo é conjuntura política, que todas
as questões têm que ser atravessadas e pensadas pela questão de
gênero. É isso! É Foucault e Galeano! Foucault pensando que tem
resistência. Surgiu esse grupo de mulheres, por exemplo, durante
a quarentena, os movimentos sociais que estão também pensando
61 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

as brechas. Hoje, se a gente pensa nos grupos que foram criados


agora na pandemia de mulheres se apoiando... Eu vi muito isso
na internet, essa rede de uma mulher que precisava trabalhar e a
vizinha ficava com filho. Foi sendo criada uma rede de mulheres.
E outro movimento também para não deixar de citar as opressões
e a questão da intersecção, é todo esse debate sobre o racismo que
eclodiu no ano passado, a partir do que aconteceu lá nos Estados
Unidos. Claro que a gente já pensava isso no Brasil, já tem um
movimento forte aqui no Brasil e o quanto esse debate explodiu
no mundo! Sacudiu o mundo! Assim, o neoliberalismo é colocado
em xeque agora e faz pensar e olhar que essa sociedade individua-
lista não dá conta. Inclusive economistas liberais estão repensando
isso: de como esses grupos oprimidos se organizam. Eu acho que é
pensar na utopia no horizonte e que existem brechas. E são nessas
brechas que a gente vai atuar e é por onde a gente tem que entrar! E
o novo é esse que a gente vai construir, o novo que seja diferente do
antigo. Afinal, o antigo mundo não era legal! Não um novo normal
porque o que está acontecendo não tem que ser naturalizado. É um
diferente que a gente traz no peito com esperança!
Mariele: Muito bom! Infelizmente eu tenho que encerrar aqui!
Quero agradecer mais uma vez as presenças da professora Bárbara
e professora Flávia. Muito produtiva a conversa. Eu gostei e vou
fechar com uma fala que vocês colocaram agora e eu considero
muito importante que é ressaltar que o espaço de debate já é um
resultado de luta, de empoderamento, de resistência. Isso é inova-
dor! É necessário ressaltar que esse espaço é um lugar que a gente
tomou e vai continuar sendo tomado por mulheres, com seus corpos
e suas subjetividades e, como colocado pela Bárbara, não seremos
nem nada menos para nos adaptar ao espaço. Pelo contrário! Coloco
isso, não só como forma de enfrentar as condições consequentes da
desigualdade instalada, mas também para apontar a necessidade
de pensar gênero para projetar em uma nova configuração social
que vai ser requerida a posteriori. Eu acho que o grande produto da
nossa conversa é a interpretação de que a saída é coletiva e feminina.
Como estou muito feliz com a conversa, eu vou terminar com Paulo
Freire ao dizer que é preciso esperançar! Obrigada!
Bárbara: Ele tem uma outra frase de que a esperança quando não
está associada morre. Então, a gente precisa associar a nossa espe-
rança. Apesar do cenário desolador e do horror que temos vivido.
Na via do que o Emicida propõe fazer: elo, reconectar, organizar a
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 62

esperança para a podermos sobreviver e transformar o que a gente


está vivendo. Eu agradeço muito a oportunidade. Muito bom fazer
parte da UFF, ter sido formada pela UFF e seguir formando pessoas
pela UFF. Então, é uma marca da minha existência e que eu sou
muito feliz em poder contribuir nessa luta para a construção de um
mundo mais igualitário, justo e que seja realmente democrático.
Porque se não for um mundo para todos, não será para nenhum. É
preciso que seja para todos e cada um. No sentido que contemple
a pluralidade e as diversas possibilidades de existir. Penso que é
importante ocuparmos a universidade a partir dessa perspectiva.
Flávia: Eu só quero agradecer. Adorei passar a tarde com vocês.
Adorei nosso bate-papo. Obrigada!
63 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

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_____. Palavra silenciada: poder e morte em Hospital Geral. 2015.


Dissertação de mestrado em Ciência Política pelo Programa de
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 64

Pós-Graduação em Ciência Política Universidade Federal Flumi-


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lheres e outros artigos femininos. Porto Alegre: L&PM, 2020.
Capítulo 4: O cinquentenário da
teoria da justiça de john rawls (1971-2021)

Dalton Rodrigues Franco é doutor e mestre


em Ciência Política pela Universidade Federal
Fluminense. Graduado em Ciências Econômi-
cas pela Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro. Atualmente professor de Ciências
Sociais e Ciência Política da Universidade Es-
tácio de Sá (UNESA), onde também coordenou
o Laboratório John Rawls.

Ricardo: Boa tarde a todos! No dia de hoje, nós temos a oportu-


nidade de debater sobre o centenário de John Rawls, autor esse
que teve uma contribuição ímpar no campo da Filosofia Política
ao discutir, dentre outros temas, a questão do liberalismo político
e a temática da justiça. Neste ano de 2021, comemoram-se os cem
anos de John Rawls, falecido em 2002, e comemora-se, também,
o cinquentenário do clássico Uma Teoria da Justiça, cuja primeira
edição remonta ao ano de 1971. O nosso convidado é o professor
Dalton Franco que coordena o Laboratório John Rawls. Eu vou
começar com uma questão de caráter genérico sobre o pensamento
e a obra de John Rawls. Levando em consideração aquele aluno
que ainda não conhece o autor ou não teve acesso às suas obras,
por onde ele deveria começar? Qual o caminho a ser trilhado para
entender o pensamento de John Rawls?
Dalton: É um prazer estar com vocês. Eu conheci o nome de John
Rawls informalmente há alguns anos, quando trabalhei para o
Movimento Negro, acerca de quinze ou vinte anos atrás. Meu pri-
meiro contato se deu em uma discussão intensa sobre a relevância
do autor no seio do Movimento Negro, em que atuei por alguns
anos da minha vida. Anos depois, eu tive a chance de começar a
ler profissionalmente a obra dele com mais profundidade para
alguns projetos que realizei na universidade. Vou tentar ajudar o
público a entendê-lo dizendo o seguinte: John Rawls se comunica
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 66

com a gente e com os nossos problemas. Todo trabalho de um teó-


rico tem ou pode ter algum grau de relação com alguma informação
de problemas semelhantes. Então, se a obra do autor possui certa
relevância no Brasil, isso se deve a pontos em comum com o nosso
cotidiano. Como se sabe, ele não é brasileiro. É um filósofo americano
que lecionou por muitos anos na Universidade de Havard. O trabalho
do autor se comunica originalmente com assuntos que não se asse-
melham a nenhum caso concreto, experiência ou fenômeno político
no Brasil, mas por outro lado, sua generalidade sim, fala aos nossos
casos particulares.
Do ponto de vista da cronologia, do seu contexto, Rawls viveu
todos os grandes eventos do século passado e, portanto, possui
uma memória forte da Crise de 1929, da ascensão dos regimes
totalitários, uma lembrança vívida do Plano Marshall, do New
Deal e do próprio Movimento Estudantil. O filósofo estadunidense
pode observar os movimentos estudantil, feminista e de direitos
civis acontecerem. Ele assistiu à experiência racial acontecer, quer
dizer, viu a segregação decantar em forma de lei. Então, para um
jurista da qualidade dele, isto era um acinte, ou seja, mesmo sen-
do teórico, ele apresentou um debate em que o texto e o contexto
apresentam correlação.
Agora, dando dicas mais programáticas de acesso: nós temos
boas traduções do trabalho de John Rawls no Brasil. Temos boas
conferências disponíveis no YouTube de professores brasileiros.
Mas o que eu posso dizer é que o trabalho do Rawls repercutiu
significativamente na internet. Por exemplo, Michael Sandel fala do
Rawls no Youtube. Então, você pode pegar o Rawls por essa fonte,
além, obviamente, das principais obras do autor traduzidas para a
língua portuguesa como a obra Uma Teoria da Justiça e o Liberalismo
Político. Para se ter uma ideia, Uma Teoria da Justiça é um calhama-
ço de mais de setecentas páginas. O Liberalismo Político tem mais
algumas centenas de páginas. Já Direito dos povos é mais conciso.
Por sua vez, as Conferências sobre a história da Filosofia Política se apre-
sentam como outro livro também traduzido, ao passo que Justiça
e Democracia, finalmente, é uma obra propedêutica. Esse último,
coleta trabalhos publicados fora dos Estados Unidos, inclusive,
possui tradução em artigos variados, o que de algum modo ajuda
na sua compreensão. De modo pontual, entendo que um vídeo
de aquecimento no Youtube resolve, ou melhor dizendo, ajuda o
estudante a entender preliminarmente a obra Justiça e Democracia.
67 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

Em suma, eu diria francamente o seguinte: o melhor para você


entrar no Rawls é possuir algum sentimento em relação às con-
cepções de justiça e de injustiça. Se sentir tocado de algum modo
sobre a desigualdade, ou seja, sobre a noção de justiça e a relação
entre igualdade e desigualdade. Para um filho de uma diarista é
o que talvez me toque em particular, ou seja, sair de uma partida
diferente e ver como é o sistema de competição na sociedade. Quer
dizer, se você for mobilizado, você se depara com a realidade da
desigualdade brasileira, você olha as estruturas ideológicas que
consagram a desigualdade no Brasil. Defendo que a leitura das
obras de John Rawls acerca da teoria liberal pode ser algo bem
interessante. Em resumo, para não estender muito nas questões,
eu diria que do ponto de vista teórico tem essa questão sobre a
desigualdade, a injustiça e a concepção de justiça. Eu diria que o
trabalho dele tenta reunir dois domínios que dificilmente conver-
sam e que considero possível estabelecer um diálogo. Trata-se da
democracia e do capitalismo. Então, o esforço rawlsiano é fazer
conversar capitalismo e democracia. É um assunto que para nós é
caro, quer dizer, a gente fica tentando além das nossas preferências
ideológicas entender como se democratiza a própria democracia
e como se democratiza o capitalismo. A primeira dica consiste
em ser tocado em particular pela desigualdade brasileira e buscar
obviamente referências teóricas para enfrentar esses problemas na
prática ou na vida acadêmica, ou seja, ser de algum modo uma
pessoa animada por leituras transformadoras da sociedade, já que
o Brasil ainda carece de uma discussão dura sobre liberalismo,
marxismo e outras matrizes ideológicas. O ponto é que as insti-
tuições liberais estão para chegar no Brasil.
Ricardo: Acho que você conseguiu introduzir bem a obra do John
Rawls. Digo sempre aos meus alunos, que a despeito da minha
predileção pelo estudo da temática do liberalismo político, que a
teoria liberal deve ser pensada no plural e não no singular. Falamos
assim de liberalismos e não de um liberalismo. Em alguma medida,
o pensamento de John Rawls nos sinaliza nessa direção de modo
que se torna possível conjugar o liberalismo com a questão da igual-
dade, que é algo que está situado no horizonte teórico do autor.
Neste sentido, eu gostaria que o nosso entrevistado comentasse a
respeito da atualidade da Teoria da Justiça, além da celebração dian-
te do centenário de John Rawls. Eu gostaria que você discorresse
tanto sobre a importância da obra Teoria da Justiça de 1971 quanto
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 68

do modo particular que o autor articula, no âmbito da filosofia po-


lítica, questões como a liberdade e a igualdade. De que modo Rawls
sobrepõe o princípio da liberdade à categoria da igualdade, muitas
vezes entendida como uma igualdade de condições?
Dalton: A Teoria da Justiça remonta à década de 1970, mas conti-
nua atual para nós no sentido que impulsionou a filosofia política
dando um novo fôlego para esta área de conhecimento. A Ciência
Política, de um jeito ou de outro, caminhou para uma direção dis-
tinta, de modo que esta teoria normativa ficou um pouco escanteada.
Uma Teoria da Justiça toma o cuidado de ser uma proposta de justiça
baseada numa concepção política da justiça. Então, quer dizer, Rawls
teve o cuidado de dizer o seguinte: a justiça é antes de tudo uma
concepção política. A gente pode falar de como essa obra repercute
até hoje de várias formas. Poderíamos chamá-la de neocontratualis-
ta, isto é, um intelectual e obra que se propõe a atualizar as teorias
contratuais clássicas, tanto que eu o cito rapidamente nas aulas ao
lado do trio de autores Locke, Hobbes e Rousseau.
Rawls busca conferir um grau de abstração para essas obras
a partir da experiência da liberdade e da igualdade. Ele vai tra-
balhar com uma espécie de tentativa de captura, com iscas, para
pensar a liberdade em um sentido amplo, quer dizer, para além
das noções muito triviais de liberdade formal. Rawls vai dizer o
seguinte: você deve ser obviamente uma pessoa completamente
livre para escolher princípios políticos que vão estabelecer os níveis
de relações da sua vida. Depois disso, quando você for colocar
essa ideia na prática é que todas as liberdades se tornam possíveis.
Logo, a liberdade e a igualdade têm a ver, para ele, com a tentativa
de colocar de algum modo a liberdade como algo plenamente de-
mocrático. A sua proposta difere da igualdade absoluta, digamos
assim. Seria o seguinte: eu devo ter a liberdade real de abdicar de
ocupar algum espaço ou devo ter a oportunidade de participar de
qualquer espaço? Esse é mais ou menos o que ele intitulou como
liberdade e igualdade. Assim, Rawls vai dizer então: a igualdade
absoluta é uma injustiça política, ou seja, somos pessoas que temos
talentos e interesses diferentes. Por esta razão, se recebêssemos,
do que ele chama da estrutura básica da sociedade, um quinhão
igual, ou seja, se recebêssemos o mesmo produto da cooperação
humana com talentos diferentes, esta sociedade se basearia em uma
concepção injusta e equivocada. Se você tem mais talento do que
eu, dentro das mesmas condições, você deve ganhar obviamente
69 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

um resultado, um prêmio maior do que o meu. Agora, o sistema


de justiça, ou seja, a estrutura básica da sociedade, não deve blo-
quear que eu tenha ou desenvolva o mesmo talento que você, me
esforce tanto quanto você e não chegue aos mesmos resultados
que você chega. Neste sentido, esta estrutura e esta sociedade são
injustas, ou seja, trata-se de um acordo de cooperação baseado
numa obrigação e em uma injustiça.
Assim, se o acordo contratual está baseado em uma obriga-
ção, este tem que estar baseado num princípio de justiça, isto é, é
injusto que tenhamos o mesmo talento e você ganhe mais do que
eu. Se eu quero exercer o mesmo projeto que você, seria isso, por
outro lado, se eu não quero exercer o mesmo projeto que você,
Rawls argumenta que eu devo ganhar menos. Quer dizer, o re-
sultado do acordo de cooperação dessa sociedade é de me pagar
menos e pagar mais a você. A igualdade para ele ocorre se eu
tiver interesse de praticar a mesma posição social que você e que
obviamente eu não tenha nenhum obstáculo formal a esse projeto
pessoal. Aí, você pode, então, extrair do ambiente o racismo, que
consiste em um acordo de cooperação justo do ponto de vista de
quem o defende, quer dizer, tem um grau de justiça no racismo
desinteressante. Interessante no sentido negativo! O mesmo no
sistema escravocrata, quer dizer, a escravização, que é um acordo
de cooperação onde alguém extrai o máximo de outra pessoa; ao
mesmo tempo, e por outro lado, este arranjo não configura uma
concepção pública de justiça. Este acordo é uma concepção de
justiça particular. Ninguém em posição de igualdade vai pactuar
ser escravizado por outra pessoa, ou seja, ninguém vai renunciar à
possibilidade real de exercer um projeto prazeroso de vida. Como
outro exemplo, uma empresa privada que cria uma vacina e outra
que fornece uma vacina prioritariamente para os seus se baseia
em um tipo de justiça privada. Pandemias são eventos públicos
e são problemas públicos. O nosso acordo geral de colaboração é
público. A nossa concepção de justiça é pública.
Na avaliação do Rawls, nos dois casos citados, trata-se de
uma liberdade desigual. Em outras palavras, no segundo caso,
eu tenho o recibo particular baseado na minha propriedade para
chegar primeiro na fila de vacina. Então, se temos uma liberdade
privada prevalecendo sobre a pública, significa que temos uma
liberdade desigual prevalecendo em um sistema de liberdades
iguais. Então, este caso circunstancial da vacina é emblemático ao
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 70

sugerir uma estrutura de reforço da desigualdade.


Para Rawls, seria realmente um equívoco pensar a liberdade
absoluta ou a liberdade privada prevalecendo sobre a liberdade
pública. Além desse tema da vacina, tem outro tema interessante
que é a desigualdade e a cooperação no acordo da desigualdade.
Em certo sentido, este elimina a possibilidade de sermos uma
sociedade igualitária em absoluto.
Por um lado, Rawls concorda que podemos ter graus de desi-
gualdades, ou seja, algum grau de desigualdade é interessante para
o sistema amplo de liberdade, especialmente a liberdade de inicia-
tiva. Imagine o seguinte: se o acordo é de cooperação coletiva, o
produto dessa sociedade tem que ser distribuído por um princípio
de justiça que deve ser público. Portanto, o autor tolera a diferença
na seguinte situação: eu concordo que a desigualdade aconteça
desde que o estrato inferior seja necessariamente beneficiado da
desigualdade, ou seja, não me importa que você ganhe vinte e eu
ganhe um, desde que as posições sociais estejam disponíveis, que
eu dispute cargos nessa sociedade como você disputa e que se eu
desistir de disputar, se você quiser ganhar de vinte para vinte e
um, que eu não desça de mil para quinhentos. Em outras palavras,
estamos todos no mesmo barco. Então, o autor vai dizer o seguinte:
se você melhora, eu não posso piorar ou a base da sua melhora na
sociedade não pode ser a piora da minha posição na sociedade.
Nada parece ser mais contrário ao que preconiza o Rawls do que
a atualização da lista da revista Forbes. O que a lista da Forbes
fala é o seguinte: temos mais bilionários no Brasil do que nunca e
mais miseráveis do que nunca.
Nada mais contrário à Teoria da Justiça do que viver num
ambiente onde o acordo de cooperação está baseado em uma
concepção política de justiça e esse acordo busca aprofundar a
desigualdade entre os estratos, ou seja, o estrato de baixo aumen-
tou e o quinhão do estrato de cima aumentou proporcionalmente.
Nada mais desigual no âmbito da teoria liberal de Rawls como esta
questão relativa à vacina. Quer dizer, a vacina vai ser uma vacina
“antiRawls”(**), ou seja, essa vacina prioritária vai obviamente

(**) No momento desta entrevista, abril de 2021, debatia-se a possibilidade


de empresas privadas ofertarem vacinas a seus funcionários antes da oferta
pública sob os critérios de saúde pública usualmente em vigor no Programa
Nacional de Imunizações do Brasil.
71 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

deixar as corporações fortes ainda mais robustas, e as corporações


fracas mais pauperizadas.
Assim, a gente está falando de uma teoria de princípio, de
uma matriz em que você decide adotar no início da configuração
do Estado que você vai praticar. Assim, uma espécie de acordo
preliminar de teorias que vão decantar certamente depois em
regras constitucionais petrificadas ou não petrificadas.
Em síntese, quero dizer o seguinte: teorias importam. A teoria
normativa importa. Esses princípios rawlsianos podem habitar as
Constituições. O princípio da dignidade da pessoa humana, por
exemplo, tem precedência hermenêutica sobre a produção legal
brasileira. Uma Teoria da Justiça pode também ter precedência her-
menêutica, ou seja, ela pode ou vai dar o lastro de interpretação
para todo sistema de produção de normas dessa sociedade. Logo,
este trabalho, para isso, ao longo de aproximadamente setecentos
páginas, está dividido em três partes fundamentais. A primeira
parte, depois das instituições, é onde está centrada a fala. O último
trecho da minha fala consiste em pensar como se edifica institui-
ções justas. Como você monta a Carta Constitucional? Como que
você estabelece o acordo? Ao final, você vai praticar? Por último,
a finalidade. Como que isso vai ser praticado? Quais são os fins
dessa sociedade? Acho que para eu não me alongar, defendo que a
importância da Teoria da Justiça é de algum jeito atualizar as teorias
contratuais, pois ela colabora com a revisão das Constituições, ela
colabora com a vitalidade da Filosofia Política dentro da Ciência
Política e, novamente, colabora com o debate sobre desigualdade
social. Assim sendo, entendo que esta é mais ou menos os três, os
quatro itens principais da obra. Espero estimular os nossos alunos
a encarar o problema posto.
Mariele: Excelente sua explicação sobre os conceitos centrais de
John Rawls como bens primários e equidade. Minha proposta é
avançarmos um pouco a reflexão para uma expressão famosa e
um tanto polêmica do autor. Gostaria de ouvi-lo um pouco sobre
o conceito de véu da ignorância. Sob esta ótica, também realizo
a seguinte pergunta: há uma aproximação dessa ideia de Rawls
com a filosofia moral de Kant, bem como sua noção de sujeito e
imperativo categórico?
Dalton: O véu é a parte mais polêmica do trabalho de John Rawls.
A parte mais atacada e a que sofre mais a malevolência da nossa
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 72

leitura. É importante ressaltar que ele é um liberal. É um certo


pleonasmo dizer isso. Temos contra ele uma interpretação, uma
maneira um pouco dura, que podemos ridicularizar, como uma
metáfora irrealista, uma metáfora inatingível e inalcançável. Uma
fraude em relação ao trabalho de uma pessoa que se diz kantiana.
A gente pode ser bastante duro com o Rawls em relação ao véu.
Agora tem uma outra maneira de ver. Eu olho como uma
maneira elegante, como ele tenta seduzir, eu entendo que o véu
é uma isca, uma sutileza que comunica muito bem com as nossas
animosidades. Então, ele tem um papel de comunicação impor-
tante na obra do autor. Ele pode ser uma teoria incompleta da
maneira de você se tornar um sujeito autônomo kantiano. Então,
eu vejo uma filosofia pragmática nessa imagem. Logo, ele atrai
uma audiência interessante de pessoas ilustres para debater uma
coisa que é uma boa discussão. É um véu duplo, digamos assim!
Assim sendo, você entra na malha dele quando você vai discutir
o véu. Ou você critica nas próprias bases ou você critica fora das
bases dele. Em geral, as pessoas criticam fora das bases do libe-
ralismo do autor.
De dentro para fora, é possível implodir o trabalho dele com o
véu. Não obstante, eu tento apresentar de maneira mais cativante
para os estudantes. Poderíamos nos perguntar: como que é este
véu da ignorância? Olha, o véu é uma metáfora que Rawls cria
para pensar o seguinte: se você fosse imaginar uma sociedade nova
hoje, você imaginaria essa sociedade com base na sua experiência,
sua preferência religiosa, sua preferência ideológica, na sua posição
privilegiada que você tem na sociedade e nas suas tradições? Isto
daria mais ou menos um acordo de uma nova sociedade baseado
no seu próprio planeta. Logo, é impossível a gente não levar em
consideração esse tipo de informação na hora de estabelecer uma
Constituição de uma nova sociedade. Ele está tentando colocar com
essa metáfora uma espécie de mutilação ou pelo menos um convite
educado para que você tente ignorar de algum modo a tua posição
na hora de fazer uma projeção de sociedade ideal. Se você fosse
projetar uma sociedade ideal, meio platônica, você pode ver o véu
no platonismo, kantismo ou no aristotelismo, por exemplo. Se você
fosse projetar uma sociedade dinâmica e de liberdades amplas, sem
saber que posição você teria nela, talvez você tivesse um cuidado a
mais na mobilidade entre os estratos sociais. Se você é empresário
e é convidado para participar de uma Assembleia Constituinte, por
73 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

exemplo, você vai obviamente projetar princípios que vão garantir


primeiro a liberdade econômica ou que vão garantir um prêmio
infinitamente vantajoso para a livre iniciativa e um prêmio menor
para o menor esforço e vice-versa. Neste sentido, o véu que ele
vai tentar nos convidar educadamente para pensar é um pedido:
imagine que você não sabe se você será empresário nessa nova
sociedade. Trata-se de um truque literal, quer dizer, imagine que
você...Vou fazer uma brincadeira. Ele literalmente faz isso ao mexer
com a nossa fantasia mais infantil. Tudo bem! Eu concordo com
você empresário, concordo que você é uma pessoa desempregada,
você é um trabalhador não especializado, para falar como ele fala
do estrato inferior, trabalhador não especializado. Imagine que
você é um trabalhador não especializado ou que você é um empre-
sário. Agora, suponha como seria se você entrasse numa loteria,
num sorteio, depois que a sociedade fosse reinaugurada, depois
do boot no sistema. Como que você distribuiria a justiça nesse novo
mundo? Então, o véu é um pedido de isenção possível. Por favor,
pense que você não vai ser empresário no futuro, quer dizer, que
vai ser empresário hoje, mas que você pode entrar numa máquina
mágica que vai jogá-lo no estrato superior, inferior ou no estrato
médio dessa sociedade. Quer dizer, você faria uma geometria mo-
ral diferente, a expressão é dele, você faria uma engenharia moral
bastante plástica de maneira a não se fazer sofrer o estrato inferior
e nem fazer sorrir ilimitadamente o estrato superior. Como é que
o nosso observador pode enxergar isso?
Esse debate está um pouco longe de acontecer sobre a reforma
constitucional brasileira. Um país vizinho está dentro desse debate.
O Chile está fazendo essa discussão. O Chile está fazendo uma
avaliação da justiça naquele país. Trata-se de um país que era um
case, até pouco tempo atrás, de sucesso liberal para os entusiastas
de certo liberalismo econômico. Para falar a expressão dos colegas
entusiasmados, o vizinho era um case de sucesso de liberalismo e
neoliberalismo na América Latina, viveu falta de liberdades am-
plas e relativo sucesso econômico, até que o avanço demográfico
foi acontecendo e a proteção social no Chile entrou em colapso.
A sociedade chilena obviamente está fazendo um debate sobre o
modelo de sociedade desejada. O Chile está propondo que a As-
sembleia Constituinte seja paritária, isto é, metade de delegados
homens e metade de delegadas mulheres. Qual o esforço implícito
nessa decisão dos colegas? É de algum modo reduzir a disparidade
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 74

de força entre homem e mulher. É uma certeza de que isso vai ser
melhor? Não é possível dizer. Agora, é no mínimo mais inclusivo
do que a experiência masculina em absoluto, ou seja, ao fazer
isso você reduz o viés de proteção e a justiça a um dos gêneros.
Você pluraliza a justiça social nesse país se coloca obviamente
uma pessoa afetada pela desigualdade na discussão da Carta. Em
geral, no Brasil, a gente vai achar entre os bolsões de pobreza e de
miséria a mulher preta como a principal cativa da desigualdade
brasileira. Logo, é muito provável que o Chile esteja no momento
de reinaugurar a sociedade diante da impossibilidade de usar um
véu. Vamos supor uma assembleia paritária para decidir quais
princípios de justiça ou quais papéis serão desenhados e prati-
cados dentro da sociedade chilena. Então, é mais ou menos isso
que significa o véu. O autor perguntaria para você o seguinte: se
você ignorasse o seu papel na sociedade e tivesse que redesenhá-la
agora, qual perfil teria a sociedade que você está redesenhando? Se
você pudesse ignorar algumas preferências suas e algumas prefe-
rências de mundo, ou ainda, se você pudesse ignorar a certeza de
que você é cristão, e que no futuro pode surgir uma nova religião
hegemônica; se você pudesse pensar a liberdade religiosa para
além dos seus limites religiosos, como que seria a liberdade reli-
giosa desse novo país que você inventaria? Então, o véu tem essa
possibilidade de nos fazer imaginar uma sociedade mais ou menos
inspirada no trabalho do Kant, ou seja, como você usa o máximo
possível a razão humana? Como é que você a honra da melhor
forma possível? Essa história pode de algum jeito se parecer com
o imperativo categórico, com universalismo kantiano? Você pode
até falar de imperativo hipotético! Até o próprio Rawls comenta
isso, quer dizer, você pode fazer uma interpretação kantiana do
véu da ignorância ou da própria teoria contratual que ele está
propondo. Uma aplicação bem-sucedida, na minha opinião, são
as teorias de contrato sexual, por exemplo, de autoras feministas
que são até mais arrojadas e inovadoras nesse aspecto do que o
próprio Rawls e que estão mais próximas de Kant.
Mariele: Eu vou aproveitar as temáticas sobre tomadas de decisão
e ponto decisório e vou trazer o debate para a contemporaneidade
e esse contexto pandêmico que estamos vivendo. Nós vivemos um
momento de crise humanitária que nos obriga a tomar decisões
cada vez mais rápidas. Além disso, não são quaisquer decisões.
Espera-se que tomemos as melhores decisões possíveis. Ao mesmo
75 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

tempo, decisões, de modo geral, exigem respostas de cunho moral


e que considerem diferentes realidades. A partir do pensamento
rawlsiano, como podemos tomar a melhor decisão em tempos de
crise? Ou seja, como a noção de razão pública de John Rawls pode
ser articulada para pensarmos questões políticas contemporâneas
como essa que estamos vivenciando?
Dalton Franco: Rawls vai o tempo todo tentar honrar a nossa
capacidade de interpretar o mundo e de verificar o desacordo que
nos marca. Não é o acordo e a singularidade a nossa principal
marca, é a pluralidade. O que ele vai chamar e dizer em vários
trabalhos, seja em O Liberalismo Político ou em Uma Teoria da Justiça,
é que o pluralismo é uma coisa incontornável. Você vai precisar
colocar essa certeza no cenário, ou seja, o debate e a divergência
são traços humanos permanentes. Nós temos o ônus de achar
princípios que se tocam permanentemente no tempo como as
liberdades e as instituições que nós criamos e ficaram no tempo
entre gerações pari passu a possibilidade de escolher racionalmente
os princípios que irão orientar a sociedade. Em momentos de crise,
nós temos que lidar com questões polêmicas. A sociedade sempre
tem experiências pretéritas que vão ser possíveis de nos ajudar a
cuidar. Por conseguinte, Rawls tem um cuidado de tratá-las. Eu
diria o seguinte: alguns dispositivos didáticos utilizados pelo autor
também nos servem para cuidar de crises como essa da pandemia.
Seriam momentos dos quais ele descreve como seriamento ou engate
entre princípios ou o que ele chama às vezes de ordem lexical. Como
você estabelece uma cronologia de princípios? Ou seja, qual o primeiro
princípio que você escolheria? Que princípio você considera o mais
justo de todos? Ou seja, se você fosse me dar um ranking de princípios
e decisões morais que agradem todas as pessoas inequivocamente. En-
tão, vamos supor que escolhêssemos a vida como primeiro princípio,
todos devem gozar a vida igualmente e vamos supor que para fim
didático que você depois escolhesse obviamente a liberdade de gozar
da propriedade. A partir da estratégia adotada por Rawls, o primeiro
princípio não pode ser violado pelo segundo princípio.
Então, se você define o conjunto de princípios, as leis que vão
sair dos princípios devem obviamente obedecer à ordem serial que
você deu para os princípios. Nesse ponto, a propriedade privada não
pode violar o primeiro princípio. Se temos no tempo que o principal
cuidador da vida é a saúde pública, esse é o caminho da razão pública.
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 76

Desde o começo do século passado, nós temos um consenso es-


tabelecido que a epidemiologia é um campo da medicina, não é uma
especialidade do legislador. Nesse caso, o legislador não é supremo,
supremo é o princípio. Rawls vai até dar nome para a razão pública
e vai dizer que quem exerce a razão pública são as instituições de
controle constitucional, que aqui costumamos chamar de Supremo.
De modo concreto, há um acordo, que é comum entre nós, no qual a
vacina dada está na ordem do que a epidemiologia recomenda para
a proteção da vida. Dizer que aquilo é um acordo decantado ao longo
dos séculos entre nós significa uma combinação de ordenamento de
princípios. Você não precisa ter uma identidade política para gostar
de vacina. Trata-se de um acordo secular entre nós. Você não precisa
de ideologia para gostar de vacina, você precisa gostar é da vida para
gostar da vacina. Basicamente, o seriamento é um remédio para nós,
e a razão pública é a razão possível. Ela seria uma espécie de chama-
mento coletivo, até para momentos em que obviamente um encanto
de uma liderança política efêmera nos fizesse pensar o contrário de
uma razão pública estabelecida. Assim sendo, a razão pública pode
ser contra majoritária, mas no caso brasileiro, mesmo fustigada, ela é
majoritária até aqui. Em resumo, acho que tem remédio no seriamento,
isto é, o segundo princípio não pode violar o primeiro e Rawls vai
chamar isto de razão pública.
Ricardo: As eleições municipais no Brasil ocorreram no mês
de novembro de 2020 com a proliferação de uma série de
candidaturas de grupos considerados como minoritários na
disputa eleitoral. Muitas destas candidaturas conseguiram
um resultado eleitoral surpreendente. Por exemplo, nós
tivemos lideranças indígenas e representantes da comunidade
LGBTQIA+ que obtiveram um excelente desempenho nas urnas.
O que o Rawls teria a nos dizer sobre esse retrospecto eleitoral
com base em seu princípio de justiça?
Dalton: Rawls celebrava esse grande debate acerca da possibi-
lidade genuína de toda pessoa ser capaz de realizar um projeto
pessoal numa sociedade. Quando você tem uma sociedade onde
isso não é possível você tem uma sociedade injusta. Nesses termos,
você tem um acordo baseado numa injustiça. Os negros tinham
que se sentar no banco detrás do ônibus. Como é que você assina
os termos de um acordo no qual você não pode usar igualmente
o banco do ônibus? O que ele conta para nós é que cargos e posi-
ções de autoridade devem ser efetivamente facultados a todos e
77 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

a todas. Neste ponto seria o seguinte: “Olha, vocês demoraram,


mas está tudo bem!”. De modo curioso, essa questão me faz lem-
brar da Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF), n. 186, que o então partido Democratas abriu contra a
Universidade de Brasília anos atrás contra as cotas. Rawls diria o
seguinte: “Olha, as cotas são constitucionais”. O que significa dizer
que as cotas podem ser praticadas no Brasil. Essa foi a primeira
grande decisão ou a primeira grande discussão em que o Rawls
aparece naqueles votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal
(STF). O ministro Lewandowski colocou o Rawls falando meio
aristotelicamente no voto dele, mas é óbvio que o Rawls é mais
compreensível do que o Lewandowski. Ali ficou marcado o campo
de recepção e de acolhida no direito do trabalho do Rawls, ou seja,
a discussão sobre ação afirmativa ou discriminação positiva. A
obra acabou tendo uma abertura grande a partir dessa discussão
no STF. Desde aquela época houve um avanço extraordinário na
política de cotas, inclusive, o debate mais amplo se beneficia desse
instrumento. As cotas por portadores de necessidades e as cotas
para mulheres nas eleições, além da decisão recente de incluir as
mulheres nas chapas ou a proporcionalidade das mulheres nas
chapas com todo o controle de efeito.
Agora, a ação afirmativa no trabalho dele não é óbvia, você
precisa extrai-la. Você precisaria aplicar uma espécie de interpre-
tação do trabalho. Você poderia falar do mesmo jeito do Gilberto
Freyre, em que é fácil de você falar de democracia racial, contendo
uma conclusão cristalina da leitura dele das doces relações raciais
brasileiras. Freyre fala que somos uma democracia racial, o que
implica no espraiamento do mito da democracia racial. Na minha
interpretação, Rawls vai atravessar os tempos sem ser tão singular
no tema, ou seja, vai atravessar outras cotas no futuro, por exem-
plo, as cotas para conteúdo audiovisual. Isto é mais pacífico por
assim dizer. Este é um debate que agrada tanto o nacionalismo
de esquerda, quanto o nacionalismo de direita. O conteúdo ge-
nuinamente nacional. Então, você vai estudar países nos quais as
ações afirmativas para filmes e para novelas são fortes. Você vai
descobrir países que você gosta. A França é dura com a política de
cotas, ou seja, para conteúdo cultural francês. Eu acho que sem ter
caído no equívoco do Gilberto Freyre, o trabalho do Rawls vai ser
sempre um trabalho de apoio a qualquer conceito de desigualdade
estrutural na sociedade. Nesse aspecto da eleição, creio que, em
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 78

resumo, se vocês têm todo o perfil social fora das instituições, vocês
são injustos. Se vocês têm todos os perfis dentro das instituições, ou
seja, se você faculta, em última análise, todos os cargos e posições
de poder a todas as pessoas, vocês vivem em uma sociedade justa.
Ele diria que nós avançamos na justiça social.
Mariele: Eu agradeço ao professor Dalton pelo diálogo pertinente
sobre a obra de John Rawls.
Ricardo: Também quero muito agradecer a presença do Dalton
que aceitou muito gentilmente o convite.
Dalton: Quero de novo dar os parabéns a vocês por saírem na
frente, por dispersarem conteúdo de qualidade nas redes, por
atualizarem a nossa linguagem fechada e universitária e, com isso,
diminuir um pouco o campo do negacionismo, por atazanarem um
pouco esse forte sentimento anticiência nas redes. Vocês deram e
dão passos largos para colaborar com o restabelecimento da nossa
possibilidade de afetar positivamente a sociedade. Parabéns pela
iniciativa e muito obrigado pela oportunidade.
79 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

Referências Bibliográficas:
AMPHITHEATRUM SAPIENTIAE AETERNAE, Justiça– O que é
fazer a coisa certa? Com Michael Sandel. Youtube. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=H7paGgzMszQ>.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasi-
leira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006.
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes;
2000.
_______. Liberalismo Político. São Paulo: Ática, 2001.
______. Justiça e democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
______. O Direito dos Povos. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo:
Martins Fontes, 2004.
______. Conferências sobre a história da filosofia política. São Paulo:
Martins Fontes, 2012.
Capítulo 5: Desenvolvimentismo em
tempos de pandemia: a atualidade do
pensamento econômico de
Celso Furtado

Rafael Gonçalves Gumiero é bacharel e


licenciado em Ciências Sociais pela UNESP
campus de Marília, mestre e doutor em Ciên-
cia Política pela Universidade Federal de São
Carlos, pós-doutor em Sociologia pela Universi-
dade Federal da Grande Dourados. Atualmente,
Rafael Gumiero atua como docente do curso de
Ciências Econômicas da Universidade Federal
do Sul e Sudeste do Pará, e como docente e
coordenador no programa de pós-graduação em
Planejamento e Desenvolvimento Regional e
Urbano na Amazônia da Universidade Federal
do Sul e Sudeste do Pará.

Ricardo: Boa tarde a todos! Vamos debater hoje a obra do econo-


mista paraibano Celso Furtado que completaria cem anos em julho
de 2020, caso estivesse vivo. Temos a oportunidade de conversar
com o professor Rafael Gumiero da Universidade Federal do Sul e
Sudeste do Pará. Essa entrevista vai ser conduzida tanto por mim,
quanto pela professora Mariele Troiano, do Departamento de
Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense de Campos
dos Goytacazes. Antes propriamente de dar início à nossa entre-
vista, eu gostaria de agradecer aos nossos alunos e professores
do Departamento que constantemente acompanham as nossas
atividades. Saúdo a todos pelo interesse na discussão de um autor
tão importante para o pensamento social brasileiro. Quero também
frisar que esta entrevista integra o projeto de extensão intitulado
Diálogos do Fim do Mundo, projeto este que se debruça tanto na
produção de textos em um blog universitário, como também
versa sobre uma série de debates acadêmicos com especialistas
81 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

renomados acerca dos mais variados assuntos. No evento de hoje,


nós teremos a oportunidade de conduzir a discussão a respeito
da obra e do pensamento de um grande economista brasileiro.
Celso Furtado, sempre buscou pensar o Estado como produtor
do desenvolvimento, ou melhor dizendo, como indutor do desen-
volvimento social. Eu gostaria de introduzir essa entrevista com
uma frase do Celso Furtado sobre a juventude brasileira proferida
no XXIV Encontro de Estudantes de Economia, da Unicamp, no
ano de 1997. Ele disse assim: “Sem coragem, sem audácia e sem a
capacidade de arriscar não se governa, e essas virtudes são prin-
cipalmente da gente jovem que construa o Brasil com coragem e
com a audácia” (FURTADO, 2021).
Mariele: Boa tarde! Agradeço a presença do público, bem como a
parceria acadêmica com o professor Ricardo Bruno na coordenação
do projeto de extensão Diálogos do Fim do Mundo. Agradeço a dis-
ponibilidade e o aceite do convite pelo Professor Rafael Gumiero
para estar conosco nesta tarde. A entrevista de hoje visa discutir
o pensamento de um dos maiores economistas do Brasil, além
de ser o mais reconhecido internacionalmente. Hoje, nós vamos
conversar sobre o pensamento e a obra de Celso Furtado.
Celso Furtado foi mais do que um economista, foi também
jornalista, gestor público, ministro do Planejamento, ocupou um
assento na Academia Brasileira de Letras, autor de diversos livros
em dezenas de línguas traduzidas. Ele acreditava na interdisci-
plinaridade das Ciências Econômicas com as Ciências Sociais e,
sobretudo, com a Ciência Política. Buscamos discutir na entrevista
de hoje o legado intelectual de Celso Furtado, que contribuiu para
o pensamento econômico social brasileiro propondo uma Teoria
do Desenvolvimento para o nosso país. Assunto tão pertinente e
tão necessário para os dias que estamos vivendo.
Eu começo a entrevista de um modo diferente fazendo uma
citação: “A Teoria do Desenvolvimento de Furtado é considerada
uma ação externalizada da teoria à práxis, ou seja, o forte propósito
de intervenção na prática por intermédio de mudanças estruturais
da economia e da sociedade da América Latina e Brasil” (GU-
MIEIRO, 2020, p. 25). Essa citação está na página vinte e cinco do
livro A Teoria do Desenvolvimento de Celso Furtado – Diálogos entre as
teses do subdesenvolvimento (2020). Obra do autor Rafael Gumiero,
especialista no pensamento de Celso Furtado.
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 82

Creio que a minha apresentação de Celso Furtado foi muito


aquém de todo o merecimento da identificação de maior econo-
mista desenvolvimentista do país. Ele tem uma biografia repleta de
contribuições intelectuais e atuações na vida pública. Eu gostaria
que o professor Rafael Gumiero apresentasse uma síntese da obra
do Celso Furtado a quem ainda não o conhece.
Rafael: Primeiramente eu gostaria de agradecer a professora Ma-
riele e ao professor Ricardo pela oportunidade de estar discutindo
um assunto tão pertinente para os dias atuais. Em relação à pri-
meira pergunta colocada pela professora Mariele, o que se pode
dizer é que Celso Furtado é um desses autores de longa trajetória,
que possui inúmeros trabalhos que inicialmente contou com a tese
de doutorado Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII:
elementos de história econômica aplicados à análise de problemas
econômicos e sociais, produzida no Doutorado em Economia, na
Universidade de Paris, em 1948 e posteriormente publicada em
forma de livro em 2001, pela iniciativa da Associação Brasileira
de Pensamento e História Econômica (ABPHE) por intermédio da
editora Hucitec. Posteriormente, Furtado publicou a obra Economia
Brasileira (1954), antecedendo o clássico Formação Econômica do
Brasil, de 1959. Concomitantemente, Furtado desempenhou prio-
ritária participação como servidor público, desde o seu ingresso
no Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP)
durante o governo Getúlio Vargas, se estendendo à diretoria do
Banco Econômico de Desenvolvimento Econômico (BNDE), criação
e o primeiro superintendente da Superintendência de Desenvol-
vimento para o Nordeste (SUDENE), de 1958 até 1964, bem como
foi o primeiro-ministro do Ministério do Planejamento, de 1962
até 1964. Posteriormente, caído o regime da ditadura no Brasil,
retornou ao Brasil e foi nomeado ministro da Cultura, de 1986 até
1988. Soma-se a essas diferentes funções que desempenhou, a de
professor de Desenvolvimento Econômico na Faculdade de Direi-
to e Ciências Econômicas da Universidade de Paris. Há também
alguns textos e artigos importantes.
Celso Furtado tem uma longa trajetória não só como intelec-
tual atuante dentro dos meios públicos e na academia, mas também
como professor e pode ser enquadrado como um daqueles autores
que a gente denomina como intelligentsia. O conceito de intelligent-
sia refere-se ao intelectual que está dentro dos aparatos públicos e
consegue utilizar as técnicas de planejamento para produzir formas
83 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

de intervenção da economia pelo Estado com uma capacidade de


gerar uma teoria condutora desses instrumentais institucionais.
Furtado é um autor que tem três importantes fases do pensa-
mento. Na primeira, como eu mencionei com a publicação da obra
Economia Brasileira em 1954, pela editora A Noite, da qual ele fez o
próprio financiamento do contrato editorial que se estendeu até o
seu exílio em 1964. Essa primeira fase é denominada como uma fase
em que, como a sua própria autobiografia coloca como a “fantasia
organizada”. Neste momento, Furtado está à frente das instituições
públicas, seja como diretor da Comissão Econômica para a América
Latina e Caribe (CEPAL) na América Latina em Santiago no Chile,
como diretor do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDE), e
posteriormente, o primeiro superintendente da Superintendência
do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE); além do primeiro-
-ministro do planejamento do governo de João Goulart.
Após essa fase, houve o início do exílio de Furtado entre 1964
até o início de 1984, cuja denominação do período é de uma “fantasia
desfeita”, como descrito em seu livro autobiográfico. Esse período
é justamente quando todos os arquétipos possíveis de pensar uma
modernização produtiva, social e distributiva no Brasil foram por
água abaixo depois do golpe militar. Furtado decide, então, pelo
exílio. Ele se exila não por um ato de vontade, mas pelo fato dos
seus direitos terem sido cassados. Um dos momentos importantes
na carreira do autor consiste no período em que ocupou o cargo
de professor da cadeira sobre América Latina, na Universidade de
Sorbonne, no curso de Economia. Enquanto docente, Furtado não
é um dos assuntos mais explorados, mas formou várias gerações,
inclusive de brasileiros que estavam exilados na França cursando
pós-graduações na Sorbonne. Furtado retorna ao Brasil com a mis-
são de assumir o Ministério da Cultura, em meados dos anos de
1980, como fica evidente nas obras mais recentes que a dona Rosa
D'Aguiar, que é a viúva do Celso Furtado, organizou em 2019.
Primeiro, ela organizou o livro Diários Intermitentes e, em 2021,
Correspondência Intelectual: 1949–2004 do Celso Furtado, onde foi
demonstrado que ele foi praticamente um promotor da redemo-
cratização do Brasil. Então, Furtado retornou ao Brasil fazendo
parte desse processo de construção da redemocratização. Furtado
ocupou um papel importante nesses momentos não só pela função
que desempenhou como Ministro da Cultura no governo do Sar-
ney, que foi o primeiro governo da redemocratização, mas também
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 84

como um dos fiadores do processo da redemocratização junto com


vários outros autores e atores como o próprio Ulysses Guimarães.
Nos anos de 1990, Celso Furtado começou a trabalhar em
uma agenda que já estava sendo revisitada, mas que tinha a in-
tenção de promovê-la como agenda formadora da nova geração
de intelectuais brasileiros. As obras que o economista paraibano
lançou na década de 1990 foram A construção interrompida (1992),
Os Ares do Novo Mundo (1991), O capitalismo global (1998) e o Longo
Amanhecer (1999) e, finalmente, Raízes do Subdesenvolvimento (2001).
Estes livros tiveram o objetivo de tentar investigar a ideia de quais
seriam os problemas do Brasil para uma nova geração. Essa seria a
terceira fase do autor que abrange o período situado entre o final
da década de 1980 até o seu falecimento em novembro de 2004.
Furtado também teve assento na Academia Brasileira de Letras.
Além disso, eu colocaria uma quarta fase que é depois do fa-
lecimento do Furtado, que é entre 2004 até a fase atual dos anos de
2020. Eu colocaria três pontinhos logo em seguida do ano de 2020.
Por que esse período? Porque é um período que o Furtado deixou
um legado não só pela institucionalização do Centro Internacional
Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, do qual a
dona Rosa é uma das promotoras e tem realizado um vasto catá-
logo de reedições de obras importantes de décadas anteriores que
estavam esgotadas, além de ter colocado à disposição uma série
de arquivos do famoso economista, organizando várias obras do
qual Furtado ainda leva a autoria de modo que o autor permanece
ainda nos dias de hoje em nossas universidades, seja por meio dos
cursos que nós lecionamos e cursos em que nós fomos alunos. Eu
tive a oportunidade de conhecer Celso Furtado por intermédio de
professores de Ciências Econômicas, na disciplina de Teoria Eco-
nômica ainda na graduação. Então, Furtado está presente dentro
das instituições e das universidades também. Eu colocaria essa
quarta fase referenciando a figura de Furtado como formador de
uma nova geração que também está saindo das universidades e
está entrando, consequentemente, ou estava entrando até pouco
tempo atrás, quando ainda havia concursos públicos, em institui-
ções públicas para o desenvolvimento, como a SUDENE, o IPEA,
as Universidades Federais, os Institutos Federais, propagando a
ideia furtadiana de projeto de Nação.
85 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

Mariele: Avançando na discussão, a minha pergunta se refere


ao primeiro capítulo do seu livro intitulado Matrizes da Teoria do
Subdesenvolvimento. Nesse capítulo, você analisa os impactos de
crises econômicas e políticas da década de 1920 e da depressão da
década de 1930, que evidenciaram as fragilidades das economias
dos países da América Latina. Foi nesse contexto que alguns auto-
res e alguns intelectuais começaram a pensar o desenvolvimento
para além do crescimento econômico. A partir disso, eu gostaria
que comentasse sobre esse momento histórico, ou seja, sobre esta
perspectiva mais histórica em que questões de desenvolvimento
e subdesenvolvimento passaram a ser motes de projetos políticos.
Rafael: Considero importante fazer uma referência ao meu livro,
que se concentra nas obras do Celso Furtado da primeira fase de
seu pensamento de 1954 a 1964, com exceção de Teoria Política do
Desenvolvimento Econômico, de 1967. Este livro trata de uma síntese
da primeira fase do pensamento econômico de Celso Furtado.
A proposição desta primeira fase é justamente discutir como
que dentro de um cânone teórico, no final do século XIX e início
de XX, começa a surgir teorias divergentes. Teorias do campo
das Ciências Econômicas, que é o campo do conhecimento que
estava mais próximo das tentativas de produção de plataformas de
intervenção da economia. Por conseguinte, as crises de 1929 e após
a Segunda Guerra Mundial demonstraram que o livre mercado
não era autossuficiente para conduzir formas de reestruturação
da economia. Alguns países entraram no período de estagnação e
outros países tinham baixo crescimento, ou seja, eram chamados
países em atraso econômico no início do século XX. Evidentemente
que Joseph Schumpeter com o livro a Teoria do Desenvolvimento
Econômico (1911) e John Maynard Keynes com sua Teoria Geral do
Emprego, do Juro e da Moeda foram fundamentais para tentar fazer
essa virada em relação a uma teoria que já estava consolidada nos
centros acadêmicos, como nos Estados Unidos e demais países da
Europa; além de outros países da periferia com cursos de Ciên-
cias Econômicas e áreas afim, com o cânone da teoria neoclássica.
Assim sendo, a ideia proposta pela teoria liberal não dava conta
para explicar a realidade de países em processo de estagnação,
que não conseguiam reativar as suas economias em uma dinâmi-
ca que potencializassem a distribuição de renda, que gerassem
aumento e crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). A partir
desse momento, os primeiros autores começaram a pensar essa
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 86

questão para além de autores canônicos, como Schumpeter e Ke-


ynes. Eles começaram a trabalhar com uma visão diferente. Uma
visão de que o Estado seria um ator fundamental no processo de
reconstrução de planejamento. Na verdade, o Estado não era só um
ator fundamental, mas era ator necessário para entender o diag-
nóstico da economia como um todo e para tentar provocar pulos
de modernização produtiva. É por conta disso que investimentos
dos bancos estatais são extremamente importantes. Então, alguns
autores começaram a trabalhar com uma teoria que divergia da
noção de livre mercado, que era tão famosa e tão canônica desde
David Ricardo, enunciado pelo livro Princípios de Economia Política
e Tributação, de 1817.
Os primeiros autores que trabalharam nessa empreitada
foram Manoilescu, Rosenstein-Rodan, Perroux, Boudeville e Gers-
chenkron. São autores que estavam, com exceção do Perroux, em
países do Leste Europeu ou fora do Leste Europeu. Por exemplo,
Gerschenkron foi um autor russo, que estava analisando uma Rús-
sia especializada na atividade produtiva agrária, que se encontrava
em processo de industrialização pela Revolução Russa na década
de 1910. Já Rosenstein-Rodan estava trabalhando também no Leste
Europeu e Manoilescu na Romênia. Existia uma série de autores
que começaram a trabalhar conceitos que foram depois destoando
e circulando para outros espaços acadêmicos dentro da Europa.
Finalmente, foram ideias que passaram a circular dentro da Europa
na década após a Segunda Guerra Mundial. Então, termos como
desemprego disfarçado, invisibilidade da economia, função do Estado e
bancos estatais se tornaram recorrentes dentro do repertório inte-
lectual de modo que os referidos autores ressignificaram todo um
conjunto de ideias que estavam ainda sob a hegemonia dessa teoria
neoclássica com influência liberal.
Os autores então citados, já no final da década de 1920 e início
de 1930, tiveram papéis fundamentais no processo político. Aqui na
América Latina, nós já tínhamos autores que estavam trilhando o
mesmo caminho como Roberto Simonsen e Raúl Prebisch. Roberto
Simonsen era um dos representantes da Associação dos Industriais
Brasileiros. Já Prebisch foi mentor da Comissão Econômica para a
América Latina e Caribe (CEPAL), que foi uma importante insti-
tuição e escola do pensamento desenvolvimentista que, inclusive,
Furtado fez parte. Houve ainda outros economistas latino-ameri-
canos, mas eu destacaria esses autores e escolas de pensamento.
87 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

Ricardo: Algo que eu costumo dizer com frequência é que Celso


Furtado acaba sendo muitas vezes um autor negligenciado na área
de Ciências Sociais. É um autor da mais alta importância! Inclusive,
eu li há um tempo em um livro do Fernando Henrique Cardoso,
que fazia alusão ao prefácio de Raízes do Brasil, escrito por Antonio
Candido, que as primeiras gerações de cientistas sociais brasilei-
ros foram influenciadas por três obras fundadoras: Casa-grande e
Senzala, de Gilberto Freyre, publicada no ano de 1933; Raízes do
Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, lançada três anos depois; e
Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Junior em 1942.
No capítulo dedicado a Celso Furtado, na antologia sobre o Pen-
samento Social do Brasil, Fernando Henrique recoloca a questão
posta por Antônio Candido incluindo Celso Furtado no rol dos
grandes pensadores nacionais a partir da publicação do clássico
Formação Econômica do Brasil, no ano de 1959 (CARDOSO, 2013).
Este trabalho, com certo teor ensaístico, consiste em uma obra
basilar no pensamento político e social brasileiro, sendo também
uma interpretação histórica da economia nacional.
Nesse sentido, a obra do Celso Furtado, sob uma perspec-
tiva estruturalista, analisa os ciclos econômicos que vigoraram
na história do Brasil, o que acaba por conferir uma importância
ao domínio do Pensamento Social Brasileiro, além de dialogar a
todo o momento com a área de Ciências Sociais. Muitas vezes, nós
temos por hábito trabalhar os temas sob um viés particularista, o
que dificulta a interdisciplinaridade com outras áreas do conhe-
cimento científico. A respeito do subdesenvolvimento, que é um
tema caro ao Celso Furtado, eu faço a seguinte pergunta: Podemos
afirmar que Celso Furtado rompe com o modelo faseológico que
estava explicitamente ou implicitamente colocado em quase todas
as versões da Teoria do Desenvolvimento? De acordo com o autor,
o subdesenvolvimento deveria ser considerado como sinônimo
de sociedade tradicional e pré-industrial, ou um estágio pelo qual
teriam passado os países desenvolvidos? Em suma, qual era a pro-
posta de Celso Furtado para a superação do subdesenvolvimento?
Rafael: Celso Furtado trouxe uma discussão que rompeu com
este paradigma, que particularmente Walt Whitman Rostow, um
autor norte-americano trabalhou em sua obra intitulada Etapas do
Desenvolvimento Econômico (1958). Por sinal, esse é um livro bem
difundido. O próprio Rostow é um autor muito conhecido por
conta não só da sua produção literária, mas por atuações marcantes
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 88

dentro do governo norte-americano no staff superior, ou seja, como


embaixador e como articulador de políticas voltadas para a inte-
gração da América Latina e Estados Unidos. Não obstante, Rostow
apresentava uma ideia de modernização ainda muito acanhada.
Uma modernização que estava sendo pensada a partir da ideia de
uma faseologia, isto é, de que há etapas de atraso econômico com
base inicial em uma economia basicamente primário-exportadora
para um processo de industrialização centrado na indústria para
inovações tecnológicas e, por fim, passando por um crescimento
gerado pelo consumo de massas.
Furtado rompeu com essa discussão. O economista brasileiro
concebia o desenvolvimento como um processo estrutural atrelado
à formação econômica e social dos países. Assim sendo, o cresci-
mento econômico não necessariamente vai lhe dar saída para um
problema, que é denominado como autônomo. O autor descola o
crescimento econômico dessa faseologia. Logo, para compreender
quais são as alternativas para o desenvolvimento de um país, é
preciso diagnosticar o que é o subdesenvolvimento, partindo da
análise quantitativa e qualitativa das estruturas econômicas, po-
líticas, demográficas e sociais.
Pode-se assim dizer que Furtado era perito na discussão
relativa ao subdesenvolvimento brasileiro. Deste modo, o autor
começou a dar os passos fundamentais para levar para a literatura
daquele momento — da década de 1950 — um modelo do qual o
Brasil era um produto do referido processo. Furtado trabalhou
com uma ideia de subdesenvolvimento que não necessariamente
estava ligada a uma estagnação econômica e a uma economia
basicamente sustentada pelo setor primário mediante produtos
exportáveis com base em ciclos econômicos, por exemplo. Nós ti-
vemos no Brasil os famosos ciclos produtivos da cana-de-açúcar, da
mineração de ouro, do café, da borracha na Amazônia e partir daí,
foi constatado certo predomínio do subdesenvolvimento em nosso
país. Por sua vez, o Brasil da década de 1950 estava caminhando
também para um processo de fortes investimentos com base no
plano de metas do governo de Juscelino Kubitschek e com uma
engenharia institucional e uma racionalidade do planejamento eco-
nômico já montada pela gestão de Getúlio Vargas. Nesse momento,
Furtado escreveu afirmando que a ideia de desenvolvimento é
díspar dentro de um país que tem crescimento econômico de um
lado, no caso das regiões Sul e Sudeste e de estagnação econômica,
89 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

e de outro, nas regiões Norte e Nordeste. Então, quer dizer que


era necessário apreender o que era esse subdesenvolvimento. A
partir de então, Celso Furtado começou a trabalhar com a noção
de um modo superior de desenvolvimento do Brasil. O autor
colocou em pauta os casos de países que estavam em processo de
industrialização e que não conseguiram distribuir equitativamente
esses produtos da situação monetária gerada pelo crescimento do
setor industrial, como se deu em São Paulo.
O modo de superação sustentado por Furtado se erige a partir
do entendimento de que o Estado é um ator fundamental e que
sem ele não é possível dar esse passo para que a racionalidade
econômica seja aplicada em formatos de planejamento pela indús-
tria. Mas não é só isso. Furtado acrescentou esse pensamento sob
a perspectiva dessas desigualdades regionais. Assim, ele é um dos
primeiros autores a trazer essa noção de desigualdades regionais,
necessária para pensar a industrialização. Nesse caso, o Nordeste
é o exemplo mais claro desse processo, com a Superintendência do
Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE).
Furtado entende que é por meio de pesquisas geológicas que
estão relacionadas ao solo, ao meio ambiente, a hidráulica e com
a expertise econômica das Ciências Econômicas que seria possível
pensar uma industrialização que convergisse para as especificida-
des do Nordeste. A partir desta lógica, você não poderia desprezar
todos os insumos gerados dentro da agricultura como o algodão e
a pecuária que tinham um papel secundário na economia nordes-
tina, apesar do ciclo da cana-de-açúcar ter sido extinto. Furtado
trilhava a ideia de que a industrialização precisava ser entendida
não no ponto de vista geral, mas sim regional, alinhavada à pro-
dução específica gerada a partir dos produtos de cada território.
Assim sendo, Celso Furtado reconhece que o desenvolvimen-
to não decorre apenas pela via econômica, mas possui também
um viés político e social. Dentro do Nordeste, Furtado enfrentou
as elites —e isso está lá nas atas da SUDENE. Vou fazer aqui uma
propaganda — também porque é importante esse material do Pro-
condel. Procondel é um órgão específico da SUDENE e que deixou
todas as atas digitalizadas desde seu início em 1959 até os dias
atuais. É um material muito importante! Nas atas, Furtado apa-
rece dialogando com as elites nordestinas. Então, ali se desenhou
uma arena decisória entre os atores. Por um lado, Furtado com
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 90

a expertise técnica, com sua equipe e, do outro lado, os políticos.


Então, quer dizer, técnica versus política local/regional no qual
foi o patrimonialismo uma das características que formou essa
estrutura política brasileira.
No esteio do debate, Furtado explicou que seria preciso
fazer um desenvolvimento acerca das instituições, ou seja, uma
reforma administrativa que vencesse ou tentasse superar vícios
que já estavam impregnados dentro de aparatos públicos, como
no Departamento Nacional de Obras Contra as Secas no Nordeste
(DNOCS) e que reposicionasse a ideia trazida pelo Departamento
Administrativo do Serviço Público (DASP) de concursos públicos,
ou seja, que ocorresse a inserção da expertise nas instituições, jun-
tamente com os cursos de graduação e pós-graduação. Assim,
essas expertises passariam a ser incorporados como diretores da
SUDENE, por exemplo, tornando necessária a abertura de cursos
de graduação e pós-graduação em Agronomia, Economia, Ciên-
cias Sociais e Administração Pública. Há também uma espécie de
impulso, na década de 1950, para que surgissem novos cursos em
locais onde ainda não existiam.
Décadas depois, Furtado explicou que o subdesenvolvimento
foi ressignificado com uma complexidade tremenda conforme o
capitalismo foi se intensificando em as suas formas de acumulação.
Surgiram as transnacionais em meados da década de 1960 e início
de 1970 e elas começaram a ocupar espaços, periferias ou frações do
capital que antes eram ocupadas pela burguesia nacional. Furtado
passa a entender que o capitalismo tem poder de ressignificação de
acumulação de capital muito rápido e que para isso é necessário não
só a indústria, mas uma indústria calcada nas necessidades locais
para ter projeto local ou territorial do processo. É claro que com a
atuação do governo federal! Por fim, é necessário também que esse
desenvolvimento seja pensado visando potencializar a cultura local.
Há um vídeo sobre Celso Furtado, que circulou bastante re-
centemente, sobretudo no ano passado, que foi o centenário dele,
que chama Choque Cultural, que pode ser visualizado na platafor-
ma de vídeo chamada Vimeo. Nesse vídeo pequeno de apenas
quinze minutos de duração, o economista paraibano ressaltou a
importância da cultura popular como uma forma de enfrentamen-
to da dependência cultural que vem de países norte-americanos
e europeus, ou seja, a dependência pelo consumo que também
91 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

passa a ser um poderoso agente influenciador das elites locais,


regionais e nacionais para que passasse a estar dependente de um
projeto internacional e não autoproclamar o seu próprio projeto
nacionalista. Nesse vídeo, Furtado está ressaltando a cultura do
sertanejo, ou seja, do sertão nordestino e das festas que também
têm essa inspiração. É a criatividade que Furtado acrescenta no
final da década de 1970, como o grande aliado ao enfrentamento
para o desenvolvimento. Uma criatividade da população oriunda
dos jovens. São os jovens que têm condições de fazer esse passo
que é de superação. Os jovens, pois eles não têm apegos históri-
cos a questões que estão ligadas à cultura. O jovem quer tentar se
desprender e tentar inovar. É o jovem que tem essa capacidade de
promover a participação popular nos processos decisórios.
Mariele: Muito interessante! O professor Ricardo e o professor
Rafael Gumiero mencionaram autores que desenvolveram de
certo modo teorias econômicas como Joseph Schumpeter e David
Ricardo. Então, eu gostaria de perguntar se é possível afirmar
que Celso Furtado elaborou uma nova teoria econômica? Nessa
perspectiva, como ele se afirmou como um autor clássico no pen-
samento econômico?
Rafael: Como exposto anteriormente, Celso Furtado teve uma
grande formação dentro da Sorbonne pelos professores François
Perroux e Maurice Byé. Eles foram também os orientadores de
Furtado para a sua tese. Porém, o grande desafio de Furtado no
início do seu processo de gestão de carreira foi dentro da CEPAL
e lá ele teve a tutela do Raúl Prebisch, importante economista
argentino. Raúl Prebisch, antes de entrar na CEPAL, fez parte do
Banco Central Argentino, um forte adepto da teoria keynesiana.
Então, Furtado conseguiu dar passos fundamentais pra pensar o
subdesenvolvimento brasileiro, entendendo-o com base cepalina.
Isso o próprio professor Ricardo Bielschowsky, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fala muito bem nos seus livros e
artigos sobre o Furtado. Ele cita o caso do livro A Formação Econômica
do Brasil como uma obra-prima do estruturalismo cepalino. Em
certo sentido, pode-se dizer que Furtado teve um grande andaime,
digamos assim, que foi construído desde a CEPAL a partir de uma
preocupação em entender o subdesenvolvimento pela formação
do país econômico social e pelas questões específicas regionais. O
autor deu um passo decisivo justamente ao tentar combinar uma
multiplicidade de áreas de conhecimento, como foi dito aqui no
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 92

início da nossa conversa.


É importante frisar que o entendimento de Furtado no que
tange às sínteses econômicas demanda o diálogo com outras áreas
de conhecimento científico. É preciso dialogar com a história. A
história tem um papel fundamental na teoria furtadiana. A história
tem um papel elementar, que vem desde Karl Marx com o mate-
rialismo histórico, do qual Furtado teve uma discussão e começou
a entender que os processos de formação econômica dos países
são importantes e precisam ser apreciados para entender o que é
o subdesenvolvimento do nosso país. O mesmo acontece com as
Ciências Sociais, sobretudo, com a Sociologia que ele envereda de
forma mais forte nos anos de 1970, durante o seu exílio. Eu diria
que o autor dialoga com os antropólogos e antropólogas também.
O que eu quero colocar é que Furtado começa a se enveredar por
várias áreas do conhecimento entendendo que só a economia não
é suficiente para formatar uma teoria original e, por isso, sua teoria
tem múltiplas dimensões. Dimensões essas que são compostas
pelas diferentes áreas: História, Economia, Política e, eu acrescen-
taria mais uma que corresponde justamente a essa quarta fase que
eu coloquei no início da entrevista, que é da formação de novos
intelectuais, técnicos e técnicas. Dentro dessas três arenas - história,
economia e política, Furtado vai trabalhando e dando tenacidade
para tais conceitos.
Eu queria destacar ainda que na virada da primeira para a
segunda fase, Furtado teve um viés voltado para a teoria econô-
mica onde se digladiou em uma arena simbólica do conhecimento
usando os termos bourdieusianos, ou seja, dialogando com o
Rostow e com Gunnar Myrdal, que é outro autor conhecido após
a obtenção do Prêmio Nobel na década de 1970. Furtado estava
dialogando com os “colegas” entre aspas dele. No Brasil, como
Roberto Campos, que foi um dos principais intelectuais da sua
geração que fez parte dos governos.
Então, quer dizer, Furtado estava trabalhando com uma cons-
trução contínua da sua teoria ao longo das suas fases. É quase que
impossível nos ater a apenas uma leitura de um livro do Furtado,
como por exemplo, a obra Teoria Política do Desenvolvimento Econô-
mico, e afirmar conhecer a teoria de Furtado. Eu posso saber para
onde que o autor se direciona, mas eu sei quais são as alternativas
de superação do desenvolvimento, pois conforme você vai lendo
93 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

outros livros das décadas seguintes, você vai vendo que aquele
conceito que foi exposto naquele período já não é o mesmo, ele foi
ressignificado por Furtado por intermédio dos fluxos de diálogos
por onde ele transitou.
Por exemplo, a dependência econômica é um termo que o
autor utiliza muito nos anos da década de 1950. Quando você vai
ver lá na década de 1970, o termo já não é só econômico, mas passa
a ter uma abordagem cultural. Furtado tem essas dimensões dentro
do mapa teórico, que é um grande mapa com várias camadas e
dimensões, o que nos ajuda a explicar um pouco do seu pensa-
mento. A grande herança deixada por Furtado é justamente essa
camada ou dimensão que se chama formação. Formação reverbera
a teoria furtadiana como um projeto, não como um pensamento
fechado. E ele deixa pistas de como podemos pensar o desenvolvi-
mento deixando claro que cada região e localidade tem o objetivo
específico de pensar o seu desenvolvimento local. Mas é certo
que com a retaguarda do Estado, sempre com a retaguarda do
projeto nacional. O economista paraibano afirma que é necessário
que tenha o Estado fomentando o processo de articulação entre
os entes federados, mas também é preciso que haja um diálogo
participativo por parte da população dos territórios.
Ricardo: A minha próxima questão permeia de algum modo a obra
clássica Formação Econômica do Brasil. Escrita por Celso Furtado no
ano de 1959, esta obra traduzia um momento otimista na história
do nosso país, durante o auge do governo JK, quando ainda não
se vislumbrava o que viria acontecer alguns anos depois. Em certo
sentido, Furtado expressou em palavras um conjunto de ideias em
voga tanto no Brasil como no resto da América Latina a respeito
das premissas desenvolvimentistas. Trata-se de uma obra seminal
sobre o pensamento e a história econômica do Brasil.
Trazendo o problema posto por Celso Furtado para se pen-
sar o momento atual vivenciado no Brasil, o desmonte do Estado
— com o sucateamento e a privatização de empresas públicas e
de sociedades de economia mista — se justifica tão somente pela
panaceia neoliberal sustentada por agentes do mercado financeiro
e preconizadas pelo governo federal. A tentativa de privatização
dos Correios e do sistema elétrico nacional são casos sintomáticos
deste retrocesso neoliberal, que não encontram ressonância em
outras partes do mundo. A lógica se desloca do atendimento à
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 94

população, do caráter social das políticas públicas, para se centrar


no lucro de uma gama de grupos específicos que estão no poder.
Se Celso Furtado estivesse vivo, qual seria o diagnóstico a respeito
do momento atual?
A defesa do neoliberalismo enquanto política econômica pa-
rece seguir na contramão da posição adotada pelos países centrais
na atualidade. Bilhões de dólares foram injetados na economia
visando atender tanto a população necessitada quanto no socorro
a empresas endividadas em uma época de incertezas pandêmicas.
Em vez de investimento público e de uma agenda positiva capi-
taneada pelo Estado, preconiza-se o enxugamento da máquina
pública com a consecução de reformas apoiadas pelo mercado. À
luz de Celso Furtado, o Estado deixaria de cumprir a sua principal
função: atuar como indutor do processo de desenvolvimento social
a favor dos trabalhadores e dos mais pobres.
No meu ponto de vista, o Brasil segue preocupado com uma
discussão voltada para a solução do déficit público. Não que isto não
seja importante, não que Celso Furtado não tenha se preocupado
com este problema ao longo da sua carreira, sobretudo na época
em que atuou como Ministro do Planejamento. A pergunta que se
coloca, então, é a seguinte: o que o autor teria a nos dizer acerca
da atual agenda econômica defendida pelo governo federal? Além
do mais, o que o pensamento furtadiano pode contribuir para a
recolocação e a reorganização do Estado no mundo pós-pandemia?
Rafael: É evidente que para Celso Furtado, o Estado passe por
diferentes transformações ao longo das últimas décadas apesar
do desenvolvimentismo ter perdurado até 1984, até o final dos
governos militares — alguns colocam até o final de 1989, com o
governo de Sarney. Após este período, o Brasil vivenciou uma era
neoliberal, e mais recentemente nas gestões petistas, o país culti-
vou a vocação desse estado desenvolvimentista, com plataformas
de programas sociais e ambientais para tentar entender esse de-
senvolvimento de outra forma com variáveis que estavam sendo
adicionadas, ou seja, não só por meio indicadores relacionados
à macroeconomia e à acumulação de processos produtivos, que
efetivamente contribuem com os indicadores econômicos ao final
dos trimestres e ao final de cada ano.
Acredito eu que, em primeiro lugar, Furtado entenderia
que o processo de desenvolvimento, como discutido em outros
95 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

momentos de suas obras, não está fielmente vinculado unicamente


aos indicadores que estão apreciados dentro do mercado econômico.
O que temos que entender é que o Estado se configura como um
promotor de acesso à população de serviços sociais que abrangem as
áreas de saúde, educação, habitação, infraestrutura social e urbana
e, também, entender que tais processos são reinventados pela dinâ-
mica dos movimentos sociais, que têm poder de gerar realocações
de forças, ou seja, através de organizações sociais e movimentos
sociais. O Estado, na prática, tem a função de ser aquele que facilita
o acesso da população aos direitos sociais do qual a Constituição
coloca como direito para todos.
Furtado vai um pouco além entendendo que a sociedade
civil possui a capacidade de pensar formas que vão além da par-
ticipação popular, como se deu em uma das tônicas dos planos
e programas petistas iniciados nos anos 2000, principalmente,
durante o governo de Lula, em que erigiu um conjunto de arenas
decisórias que incluíam a participação popular. Assim, os gestores
públicos foram colocados como representantes da política pública
em diálogo por meio da participação da população dos municípios
com as audiências públicas. Isso foi um importante avanço, mas
que sozinho não é suficiente. Evidentemente que a formação pelo
ensino e pesquisa também tem papel fundamental nesse proces-
so e as universidades públicas federais e os institutos federais
chegaram com essa tentativa de abrir as portas e democratizar o
ensino superior, entendendo que não é só ofertar vagas, mas que
é necessário entender o processo de construção social a partir das
desigualdades sociais. Diante de tal situação, as ações afirmativas
têm um valor grande dentro desse processo. A Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ), por exemplo, é uma das pioneiras
dentro do processo de democratização do ensino. Processo esse
que a Mariele também conhece, assim como eu conheço. Nós es-
távamos como discentes na Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar) quando foi colocado em pauta a discussão dentro dos
conselhos e, também, da comunidade de discentes sobre a inserção
das ações afirmativas dentro dos vestibulares, nos anos de 2000.
Então, a ideia de desenvolvimento, que está colada evidentemente
ao Estado, tem um repertório mais amplo do que somente entender
investimentos para infraestrutura de grandes empreendimentos.
Ao longo do tempo, o país atravessou, pelo menos desde os
governos militares, por grandes projetos de discursos instalados,
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 96

que permitiram a integração das rodovias estaduais com as na-


cionais e ferrovias por conta da extração de minérios nos anos
de 1980, como por exemplo, o projeto Grandes Carajás. Recente-
mente, houve o caso da hidrelétrica de Belo Monte, além do caso
histórico de Tucuruí, que é um município próximo à Marabá, que
teve uma série de impactos ambientais e sociais. Mesmo com uma
perspectiva desenvolvimentista, do qual os governos de gestão
petista encamparam, o país não deixou de sofrer os impactos,
certos problemas que foram aguçados por esses grandes projetos
de infraestrutura. E novamente, eu coloco o dedo do Furtado para
explicar que a criatividade está em você dialogar com a população.
Vamos olhar novamente para os casos de Marabá e da Ama-
zônia. Há povos, assim como em outros lugares do Brasil. Povos
originários, ou seja, indígenas, quilombolas e ribeirinhos que ne-
cessitam entrar no diálogo da arena decisória. Nesse ponto é que
adentra uma grande questão, que será: a comunidade perante uma
determinada cidade ou de cidades que vai impedir a instalação de
um grande projeto como foi o caso das hidroelétricas? Esse proces-
so parece ser vagaroso, mas é democrático na sua essência. Então,
Celso Furtado coloca que a democracia é um pilar fundamental de
desenvolvimento — que ele já falava lá nos anos 1950 — enquanto
a instauração do Golpe Militar ocorrido entre os anos 1964 e 1984,
acabou ficando evidente dentro de uma teoria, como alguém que
trazia as marcas dentro desse processo gravíssimo dentro da nossa
sociedade brasileira, que muitos tentam minimizar. Furtado tra-
balha um pouco com essa seara e com esses repertórios.
O desenvolvimento pensado pelo governo federal se limitou a
enfatizar investimentos públicos em pontos estratégicos, mas atual-
mente nós temos que reavaliar qual é o papel de uma política pública.
Temos políticas com cortes mais transversais que são nacionais, como,
por exemplo, a distribuição de renda como Bolsa Família e outros
programas como o Benefício Assistencial ao Idoso (BPC). Ou o salá-
rio-mínimo que passou a ser um importante fator durante a década de
2000, como empoderamento de distribuição de renda para as famílias
que passaram a ganhar um valor superior ao que era designado como
aumento acumulativo pela inflação do ano passado.
Para além disso, é importante entender que o território tem valor
na discussão furtadiana. Esse território que é emanado dessas cultu-
ras, dessa multiplicidade de povos que podem trazer contribuições
97 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

importantes. Não é à toa que as florestas, no caso a Amazônia, se man-


tiveram intocadas por tantas décadas e séculos pelos povos nativos.
É claro que a racionalidade de pensar é diferente, mas a
forma de gestar o espaço e o manejo é diferente e é uma forma
sustentável. Então, talvez essa ideia de manejos agrícolas seja um
poderoso vetor dentro das instituições. Vou colocar as instituições
federais como o caso das universidades e institutos federais, como
promotores desses processos produtivos tentando capitalizar, por
exemplo, a biotecnologia dentro de espaços que estão relacionados
ao meio ambiente.
Só para concluir este tema, eu gostaria de citar uma passagem
de um pequeno artigo do Furtado escrito e publicado um pouco
antes do seu falecimento, em novembro de 2004. Esse artigo se
chama Os Desafios da Nova Geração, sendo publicado em junho de
2004 por um jornal de economistas. Eu vou ler o último parágrafo,
em que o autor expõe o problema da seguinte forma:
Não é por arrogância que me atrevo a falar
aos meus colegas economistas e então conse-
lheiros, a idade não nos outorga direitos, mas
a experiência nos arma para enfrentar muitos
sabores. Sabemos que uma luta dessa magnitu-
de só terá êxito com a participação entusiástica
de toda uma geração. A nós, Cientistas Sociais
caberá a responsabilidade maior de velar para
que não se repita os erros do passado, ou me-
lhor, para que não voltem a ser adotadas falsas
políticas de desenvolvimento, cujos benefícios
se concentram nas mãos de poucos.

Essa é a mensagem que Furtado gostaria de deixar para nós.


Nesse texto, com apenas quatro páginas, muito pequeno, eu gosto
de passar para os meus estudantes desde o primeiro ano de Ciências
Econômicas. Eu falo: “— Então pessoal, vamos aprender a fazer
fichamento!”. Todo mundo leva um susto, pois estão saindo do
ensino médio. Aí eu continuo: “ — Vamos começar por esse texto
aqui, ele é pequenininho, mas ele tem muitas informações impor-
tantes!” Com isso, eu vou tentando criar didáticas para entender
essas camadas que tem dentro desse texto, desse pequeno artigo.
Mariele: Tivemos uma grande contribuição refletindo acerca
do pensamento político, econômico e social de Celso Furtado.
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 98

Aliás, como já dizia Celso Furtado, “nem sempre as ideias ficam


obsoletas com o passar do tempo, por vezes, ganham em vigor”
(FURTADO apud D’AGUIAR, 2020). Estamos aqui, em uma tarde
de quarta-feira, resgatando as ideias furtadianas e expressando a
necessidade de um projeto de desenvolvimento para o nosso país
que converse com a nossa multiplicidade e com a nossa diversi-
dade. Agradeço assim ao professor Rafael pela disponibilidade e
pelo aceite do convite.
Ricardo: Reitero os agradecimentos ao professor Rafael Gumiero,
que nos apresentou o tema de forma didática e com tamanha vi-
vacidade. Agradeço ainda a parceria intelectual com a professora
Mariele Troiano. Como estamos nos encaminhando para o final
da entrevista, fique à vontade, professor, para fazer as suas con-
siderações finais.
Rafael: Eu agradeço novamente pelo convite, é um prazer estar
no canal do Departamento de Ciências Sociais da Universidade
Federal Fluminense. Muito obrigado Mariele e Ricardo pelo con-
vite. Eu fiquei muito feliz pelo convite e espero ter contribuído
nessa tarde para a discussão posta. Então, eu agradeço a todos e
todas que puderam ficar conosco no dia de hoje. Efetivamente, eu
acho que esse é o projeto furtadiano, que a gente consiga dialogar
e transmitir as ideias, não só em tom de informação, mas também
em diálogos que reverberem em outros espaços não só acadêmi-
cos, como em associações de trabalhadores, de bairro e assim por
diante. Há uma herança furtadiana deixada para nós e para vocês
que estão nos assistindo: ela não é uma construção que é do dia
para noite ou da noite para o dia, é necessário estabelecer um ponto
de militância na propagação e no diálogo. Assim, eu agradeço a
todos que estiveram aqui conosco. Muito obrigado e até a próxima!
99 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

Referências Bibliográficas:
CARDOSO, Fernando Henrique. Pensadores que inventaram o Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 2013
FURTADO, Celso. Depoimento de Celso Furtado aos estudantes de
economia. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-
vf7uHlMK2oI&t=181s>. Acesso em: 31 maio 2021.
HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2007.
OLIVEIRA, Francisco de (Org.). Celso Furtado: economia. São Paulo:
Ática, 1983. (Coleção Grandes Cientistas Sociais).
Capítulo 6: Biopolítica e necropolítica
na contemporaneidade

Carlos Henrique Aguiar Serra é professor


associado IV do Departamento de Ciência
Política da Universidade Federal Fluminense.
Possui graduação e mestrado em Ciências Po-
líticas e Sociais pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro e doutorado em His-
tória pela Universidade Federal Fluminense.

Mariele: Sejam bem-vindas e bem-vindos a mais uma atividade


do projeto de extensão Diálogos do Fim do Mundo. A conversa
de hoje tem o tema: Biopolítica e Necropolítica na Contempora-
neidade, e o convidado é o professor Carlos Henrique Aguiar
Serra. Agradeço o aceite do convite, a disponibilidade para estar
conosco nessa conversa, e estou muito feliz em conhecê-lo mesmo
que de forma remota.
Carlos Henrique: Eu agradeço o convite para a conversa. Vou
tentar passar um pouco do que eu venho refletindo e produzindo.
A pandemia me afastou da sala de aula, acho que a sala de aula é
um espaço tão rico de troca não só pelo conhecimento em si, mas
de vivências e experiências. E esse mundo virtual nos afastou disso.
Então, reitero o prazer, a satisfação de estar aqui. Eu que agradeço
mesmo o convite, a gentileza do Ricardo e da Mariele.
Ricardo: A gente que agradece a satisfação de estar aqui com
você. O Carlos Henrique, que foi meu professor no mestrado e
no doutorado em Ciência Política, esteve nas minhas bancas de
pós-graduação. É um parceiro de longa data e alguém que a gente
sempre estabelece algum tipo de troca dentro da universidade.
Como eu falei, é um prazer a sua presença nesta tarde, e como foi
posto na própria divulgação, este evento busca se voltar para a
discussão de temáticas relacionadas aos problemas da Biopolítica
e da Necropolítica — assuntos e temas que são contemporâneos. A
101 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

minha primeira pergunta na verdade se volta para a própria pro-


dução acadêmica do Carlos Henrique nesses últimos tempos. Aliás,
há anos você se debruça sobre temáticas contemporâneas, como o
problema da Segurança Pública no estado do Rio de Janeiro, além
de outros conceitos e categorias analíticas que vêm ganhando cada
vez mais proeminência atualmente seja no Brasil, como no resto
do mundo, como, por exemplo, a noção agambeana de estado de
exceção, o conceito de biopolítica em Foucault e mais recentemente
a concepção de necropolítica, que veio a se tornar quase um man-
tra em artigos e publicações acadêmicas. Gostaríamos que você
apresentasse um panorama geral sobre a sua produção científica
nos últimos anos destacando a relevância dessas categorias con-
temporâneas da Ciência Política para se pensar o Brasil de 2021.
Carlos Henrique: Grato pela pergunta. São temas extremamente
complexos. Eu gosto de trabalhar de modo interdisciplinar, por
isso eu escrevo na área de Ciências Sociais, principalmente na área
de Ciência Política, mas tenho também uma passagem na História.
Eu não consigo perceber um campo de saber isolado. Comecei o
doutorado há quase trinta anos em História. O meu tema foi so-
bre história do pensamento jurídico penal no Brasil de 1937 até o
golpe de 1964. Peguei duas figuras do campo jurídico penal que
foram o Roberto Lyra e Nélson Hungria, mas já pensando essas
questões relativas à punição, principalmente, ao controle social.
Sendo que na minha graduação em Ciências Sociais na Pontifícia
Universidade Católica (PUC), me deu um start a partir de um gru-
po de estudos sobre violência urbana que ali existia. Eu tive uma
oportunidade de conversar com o professor Rangel Bandeira. Ele
tem uma história muito bacana, foi exilado, preso político e passou
por alguns países. Então, uma pessoa com muita vivência e que
discutia a questão da violência na sociedade brasileira. Peguei o
fim da ditadura militar na universidade. Tudo aquilo me chamou
muita atenção. Achei um tema extremamente instigante e que eu
acho que hoje em dia eu conseguindo com a ajuda óbvia de um
monte de colegas tentar responder como é que uma sociedade que
sai de um regime autoritário clama por mais punição. Isso daí se
der tempo eu vou abordar.
São os paradoxos do Estado de direito que produz também
um conjunto de ilegalidades, ao mesmo tempo que produz arbítrio.
Mas, assim, tentando ser mais objetivo e sintético, em um pouco
mais de uma década, participei de associações como a Sociedade
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 102

Brasileira de Sociologia (SBS) e a Associação Nacional de Pós-Gra-


duação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), favorecendo a
formação de um grupo de trabalho sobre violência. Em meados
dos anos de 2000, esse grupo foi ganhando mais densidade de
modo que em 2010, eu passei a coordenar na ANPOCS o grupo
de trabalho sobre violência, crime e punição. No ano seguinte, a
proposta de grupo de trabalho para a SBS também foi aprovada.
Constituímos um grupo formado por muitos pesquisadores, como
Marcelo Alvarez, que é o atual coordenador do Núcleo de Estudos
da Violência da Universidade de São Paulo (USP), Luís Antônio
Francisco de Souza da Universidade Estadual Paulista (UNESP),
Fernando Salla, também da USP, Luiz Cláudio Lourenço, que é
da Universidade Federal Fluminense (UFF), Camila Dias da Uni-
versidade Federal do ABC (UFABC), Luís Antônio Bogo Chies da
Universidade Católica de Pelotas (UCPEL), entre tantos outros
competentes profissionais. A gente criou mesmo uma rede de
pesquisa que vem produzindo coletivamente sobre temas como
segurança pública, biopolítica e necropolítica.
Eu uso muito o instrumental analítico foucaultiano, principal-
mente, numa tentativa de o autor perceber as engrenagens do poder,
que é uma expressão dele, essa ideia de mecânica do poder, capi-
laridade do poder e de uma sociedade disciplinar. Costumo usar o
conceito de biopolítica, como uma tecnologia de poder que surge em
fins do século XVIII e permanece até os dias atuais, ou seja, a partir
do momento que o capitalismo começa realmente a se fortalecer na
Europa. Cabe ressaltar que Foucault estudou a sociedade europeia,
e não estudou a sociedade brasileira. No Brasil, desgraçadamente
a disciplina se combina com tortura e castigos físicos. A sociedade
brasileira não aboliu ainda hoje os castigos físicos.
Tem um texto de um sociólogo paulista, Edson Passetti, que
trabalha em uma corrente teórica que eu gosto muito, que é o
abolicionista penal. O Passetti diz algo assim: “uma sociologia dos
castigos, se a gente for tentar aplicar o Foucault à fórceps, não dá!”.
O que ele quer dizer com isso? Que para entender a biopolítica na
contemporaneidade é preciso considerar a seletividade e a tecno-
logia de como esse poder e essas porções de poder acabam sendo
exercidas, principalmente, naquilo que Foucault fala do fazer viver
e deixar morrer, e do fazer morrer e deixar viver.
103 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

Uma das teses de uma orientanda, que já é doutora, Carolina


Cunha, tem uma passagem que eu gosto que é sobre a concepção
do poder punitivo ser misógino. Eu acho que em uma sociedade
como a brasileira, que é profundamente desigual, sexista, machista
e misógina, a Ciência Política tem um papel de se debruçar sobre
a violência em relação aos corpos femininos.
Quando Foucault, na década de 1970, escrevia a obra História
da sexualidade, ele já estava atento que nessa biopolítica, por exem-
plo, nas ações policiais há uma letalidade policial enorme. Antes
mesmo de vir aqui eu estava assistindo aos jornais e percebendo
quanta violência há. Hoje, um advogado em Goiás foi espancado
e isso representa o cotidiano, principalmente, o dia a dia das ca-
madas populares.
Nessa perspectiva, quando o Achille Mbembe está falando dos
corpos descartáveis muito se relaciona com a biopolítica foucaultiana.
Fazer viver e deixar morrer representa os indignos da vida, que são
alvos dessas políticas genocidas. O fato é que a gente sabe que quem
está morrendo e quem está sendo executado. Não morre um homem
branco! Eu sou um privilegiado! Somos todos aqui privilegiados e
a gente sabe quem está morrendo e quem é o alvo preferencial das
instituições policiais. Mas aí, uma ressalva que eu acho que também
é importante: a polícia não mata sozinha. Temos que falar sim de
letalidade policial, e tenho explorado isso nos meus últimos traba-
lhos, abordando temas como a militarização e a miliciarização da
Segurança Pública.
Se a gente pensar, por exemplo, na esfera do governo fede-
ral e, particularmente, aqui no Rio de Janeiro, vamos perceber
que para estudar a questão da Segurança Pública, é impossível
desconsiderar o papel das milícias. Há uma letalidade do Estado.
Na verdade, o Estado produz uma política que é genocida e atin-
ge quase que exclusivamente esses segmentos. Eu tenho muito
cuidado de trabalhar com esses autores. Não os mitifico mesmo!
Tem uma passagem muito engraçada quando eu fui fazer o
concurso de doutorado e apresentei meu projeto que virou tese. Uma
querida professora, Sônia Mendonça, ela me elogiou e falou assim:
“Poxa! Gostei muito do projeto do Carlos Henrique. É muito bom um
programa de história que tenha um foucaultiano”. E eu percebi que era
um elogio e eu não tive coragem de chegar e falar: “Não, professora,
eu não me sinto foucaultiano!” Passou o tempo, eu fui aprovado e falei
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 104

para ela que eu não era e só trabalhava com categorias do Foucault.


Então, ela brinca comigo até hoje que eu a enrolei.
Então, se o objeto da Ciência Política é as relações de poder,
por que não estudar a punição? A punição inicialmente é um conceito
jurídico. Há muitos juristas que afirmam isso. Posso citar dois pelo
menos: Nilo Batista e Eugenio Raúl Zaffaroni. A pena é uma questão
política ainda mais se a gente pegar no nosso Brasil desde colônia
e percebermos que os códigos ficam cada vez mais repressivos e
autoritários em uma tentativa de realmente de guetificar, para usar
uma expressão do sociólogo francês Loïc Wacquant. Então, a partir
dessas interfaces entre os temas é possível compreender um pouco
sobre o cenário político atual.
Ricardo: Eu lembro muito das conversas em uma das aulas com
o Carlos Henrique, em que ele sempre de alguma forma buscou
construir uma Ciência Política não dogmática. De certa forma, uma
coisa é você se valer do Foucault enquanto um autor importante
na atualidade ressaltando as suas contribuições analíticas, mas
sem mitificá-lo por outro lado, sem tomar o seu pensamento de
uma forma engessada. Neste sentido, eu concordo com você. As-
sim como você se colocou que não se considera um foucaultiano,
fazendo uma brincadeira, o Marx também não se considerava um
marxista (ENGELS, 1892).
Carlos Henrique: Linda aquela carta embora muito marxista não
a entenda. Quando Marx escreveu esta carta em tom irônico para
o Engels, Marx está falando assim: “é isso que dizem que eu sou?
Então eu não sou!” É fantástico isso! Por isso, uma coisa é o pen-
samento de Marx; e outra coisa são os marxistas.
Mariele: Minha pergunta também é interdisciplinar. O falso
embate entre economia e saúde durante a pandemia foi pano de
fundo para decisões políticas de diversos países. No Brasil, tivemos
opiniões de especialistas de todos os lados, alguns economistas
como Delfim Neto, que afirmaram que a pandemia poderia ser
interpretada como uma janela de oportunidades para remodelar
relações trabalhistas ampliando o trabalho remoto, diminuindo
custos e expandindo a produtividade das empresas (YOSHIDA,
PADILHA, FILIPPE et al. 2020). Outros como Jonathan Portes,
professor do King’s College, afirmaram que a pandemia por si só
não empobreceria os países, caso isso acontecesse seria o efeito
de escolhas políticas equivocadas. A verdade é que não temos
105 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

um entendimento pleno e nem sabemos ainda do alcance exato


da crise que estamos inseridos. Em contraponto a tudo isso, te-
mos visto por meio das redes sociais uma mobilização intensa
de auxílio e assistência acontecendo nas periferias e em favelas.
Sob essa perspectiva, há possibilidade de um novo paradigma de
enfrentamento da crise, bem como do próprio papel do Estado
surgir e se reproduzir?
Carlos Henrique: Esse é um falso embate, Mariele. O que há
é a hegemonia de uma política conservadora. O que há é uma
opção pela produção da morte. O que a gente enquanto analista
político tenta compreender é sobre qual é o real papel do Estado.
Se até economistas liberais criticaram e criticam enfaticamente o
papel do governo que não socorreu e não buscou nenhum apoio
quando poderia ter feito isso. Por que outros países fizeram? Fato
é que outros países fizeram e se outros países fizeram, pode-se
entender que as ações aqui tomadas foram também escolhas e a
opção política do atual governo. Então, até mesmo do ponto de
vista da ciência, essa discussão é estapafúrdia. Recentemente, um
infectologista de São Paulo falou: “A gente ainda está discutindo
cloroquina quando tem mais de 500 mil pessoas mortas!” Isso
representa a banalização!
Essa questão me fez lembrar de José Luís Fiori. Fiori tem du-
pla formação — Economia e Ciência Política — e trabalha muito
bem com a questão da história, processo de longa duração, usa
cordel e esteve algumas vezes na Universidade Federal Fluminen-
se. Então, teve uma vez que ele foi, não sei se o Ricardo se lembra,
para explicar a crise dos anos 2000 e ele começou respondendo a
partir do século XIII. O auditório estava lotado e ele olhou para
mim e falou meio baixinho: “Foi meio pesado essa!” Mas é isso:
precisamos entender formação histórica social brasileira! Nós
sequer tivemos o Welfare State, direitos sociais e garantias sociais
plenas. Nós tivemos um breve momento, vide tradição do tra-
balhismo de Getúlio Vargas, mas que logo foi interrompido. Há
muitas singularidades da nossa história política como a própria
ausência de continuidade, ao contrário, há muita descontinuidade.
Vem o golpe, vem a ditadura que atropela a democracia, o Estado
cresce e depois volta democracia.
Não sou economista. Logo, eu vou falar como cientista políti-
co. Primeiro, nós temos que assumir a crise. Depois disso perceber
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 106

que em toda e qualquer crise há prejuízo, e produção de danos.


Precisamos enfrentar e reduzir esses danos. Mas não avançamos
nessa discussão. Não sei se estou sendo muito pessimista, mas eu
não vejo isso daí. Eu vejo, ao contrário, essas populações e essas
camadas cada vez mais marginalizadas não são incluídas. Na ver-
dade, elas cada vez mais estão vulneráveis e o Estado poderia sim
intervir. Você coloca uma coisa muito interessante no final, que
é essa questão da solidariedade. Eu só acredito na solidariedade
enquanto uma construção social que muita gente quando começou
a pandemia tinha uma ideia até meio interessante, uma ideia de
que a humanidade iria sair melhor, que o confinamento mudaria
os laços. Poderia sim, mas eu não estou vendo nada disso. Quem
era egoísta potencializou, ao contrário, a sociedade está cada vez
mais egoísta. As redes de solidariedade existem, mas cadê o Estado
pautando essas relações? O que eu estou querendo dizer que são
iniciativas voluntárias e que o Estado está fora. Não tem, na ver-
dade, um papel coletivo. Não tem uma ação estatal coordenada e
orientada para essa redução de danos. Portanto, eu vejo com muito
pessimismo tudo isso porque o país está em uma crise total com
um governo que não a enfrenta.
O professor Renato Lessa produziu um artigo muito bom
chamado “A Destruição” (2021). Nunca vi com tanta clareza a
apresentação do projeto político do atual governo que não é
para construir absolutamente nada, não é para propor nada, é
simplesmente para destruir. Isso é inovador e não se compara
com outros tempos como os que vivemos sob o governo de Fer-
nando Henrique Cardoso. O debate era outro, era outra a lógica.
O desmonte do governo do Fernando Henrique via Ministro da
Educação Paulo Renato Souza, que na época que comandava, era
pautado nas políticas das privatizações. Mas não como a gente
tem hoje em dia, quando a universidade pública é alvo sistemático
de ataques. O que que foi esse nosso ex-ministro da educação?
Atitudes marcadas por ataques sistemáticos, violentos, grosseiros
e de um profundo desconhecimento em relação ao que a gente
faz na universidade pública.
Para pensar que dessa crise surja realmente uma organização
coletiva e um processo de conscientização também precisamos pen-
sar qual tipo de Estado que nós queremos. Queremos um Estado
que defenda os seus fins públicos com investimento? Eu acho que
nossa resposta passa por aí. Queremos um Estado que combata a
107 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

desigualdade? Acho que essa é outra questão que a gente não fala
e esses temas que estudo, como a biopolítica, o estado de exceção,
a militarização e a micialização embrincam com a questão da de-
sigualdade social. A gente precisa falar mesmo isso: a sociedade
brasileira é profundamente desigual com um crivo absurdo entre
as classes sociais. Há muita gente ganhando com essa crise e a
gente nem discute o papel do Estado.
Então, eu acho que para o enfrentamento em relação ao para-
digma hegemônico, só a luta política. É a politização dos conflitos,
conforme Agamben (2010). Pode ser interpretado também con-
forme o conceito de política de Nietzsche (2005). Em uma de suas
definições de política, Nietzsche relaciona com tensão, fight e luta.
Logo, a gente precisa politizar os conflitos sociais para assumir a
crise e superá-la. O quadro é muito difícil e, na minha opinião,
só através da luta política para que ocorra a superação. Porque
fica realmente difícil contar com esses laços e redes solidárias se
intensifiquem a ponto de uma transformação.
Ricardo: A próxima questão versa sobre a questão da Segurança
Pública no Rio de Janeiro — que é um tema muito caro a você.
Já há um bom tempo que você se debruça sobre essas questões,
inclusive, orientando projetos de pesquisa voltados para a questão
propriamente da Segurança Pública. Vários ex-governadores do
estado do Rio de Janeiro foram afastados ou presos nos últimos
tempos, a exemplo de Moreira Franco, Garotinho, Rosinha, Sérgio
Cabral, Pezão e mais recentemente o Wilson Witzel. Quase todos
a despeito de suas diferenças ideológicas e partidárias mantive-
ram uma política de tolerância zero em relação à criminalidade,
pelo menos no discurso eleitoral. Todavia, a questão da violência
se articula a uma ideia que paira sobre o senso comum de que a
favela é lugar de bandido. A gente ouve muito isso no nosso coti-
diano, sobretudo, no Rio de Janeiro. Gostaria que você tecesse em
linhas gerais algumas considerações acerca dessa cultura punitiva
entranhada no cotidiano do homem comum e, particularmente,
do cidadão fluminense.
Carlos Henrique: No processo político de saída da ditadura, nós
tivemos no Rio uma eleição que foi um marco: a eleição de Brizola
no começo dos anos 1980. O Brizola chamou o Nilo Batista, o Darcy
Ribeiro e, contrariando a orientação do governo federal que era
o general Figueiredo, nomeou como comandante geral da Polícia
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 108

Militar o coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira. Surge aí


uma outra visão de policiamento, de projeto político de segurança
pública, que desde então a oposição mais conservadora aqui no
Rio falava que o governo Brizola tratava os bandidos com flores.
Naquela época era muito comum, algo que nunca fez sentido,
que é a ideia de que “bandido bom é bandido morto!”. Isso não se
sustenta, pois a milícia não é evitada pelo governo. Tem um trabalho
muito sério do Departamento de Sociologia da UFF, coordenada
pelo professor Daniel Hirata sobre milícias. Há outros que estão
investigando esse sentido de potencialização dessa miliciarização.
Fato é que Brizola não consegue fazer o Darcy seu sucessor.
Então, elege-se Moreira Franco em 1986. O que faz Moreira Fran-
co? Ele tenta destruir o projeto Centros Integrados de Educação
Pública (CIEPS). É uma outra lógica de segurança pública que é
freada com retorno do Brizola no começo dos anos 1990 ao governo.
Neste contexto, Nilo Batista venceu o vice-governador e eu tive o
privilégio de ser convidado, eu tinha defendido mestrado na PUC
e recém aprovado no doutorado da UFF, para trabalhar na vice-go-
vernadoria na formação das polícias. Era um projeto sensacional
em uma conjuntura também extremamente complicada marcada
pela chacina da Candelária, chacina do Vigário Geral, pouco antes
do que houve no Carandiru em São Paulo, e muitas tentativas de
intervenção militar aqui no Rio de Janeiro. Fato é que Brizola e Nilo
conseguem frear isso daí e retomam basicamente a mesma postura
em relação ao primeiro governo do Brizola. Na expressão do coronel
Carlos Cerqueira (1986) sobre policiamento comunitário, sua grande
utopia era a criação de uma polícia cidadã, ou seja, a polícia deveria
sempre agir em conformidade com o Estado de direito.
Quem se elege depois é o Marcelo Alencar. Embora as singu-
laridades e especificidades, Marcelo Alencar, Moreira, Garotinho,
Rosinha, Cabral, Pezão e Witzel possuem visões próximas de se-
gurança pública como uma política do confronto. A militarização
no governo de Marcelo Alencar reflete quando ele nomeia como
secretário de segurança o general Cerqueira que colocava no cur-
rículo o fato de ter executado Lamarca, que havia sido secretário
de segurança do Rio de Janeiro.
Tem um texto do Nilo Batista muito bom chamado Violência
do Estado e os Aparelhos Policiais publicado na revista Discursos
Sediciosos (1997). Neste texto, ele coloca a ideia de “gratificação
109 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

faroeste” para argumentar a remuneração dos policiais. Qual é o


grande problema até hoje dessa militarização da segurança pú-
blica? A militarização não é apenas só o desmilitarizar a polícia
militar. Não é isso! Como falei anteriormente, há a questão da luta
política e tentar conscientizar o policial militar e o policial civil que
eles são trabalhadores, que eles são servidores públicos que servem
a população. Mais do que isso talvez, eles são trabalhadores assa-
lariados e, nesse caso, desmilitarizar implica romper e refutar de
forma taxativa essa ótica que a segurança pública trabalha desde
os anos de 1990 sob a ótica da guerra e da construção do inimigo.
Por isso esse preconceito em relação às favelas e a ideia errada
de “favela é lugar de bandido". Acho que isso historicamente se
explica quando o processo de produção capitalista se expande na
Europa e no Brasil e produz a marginalização e a pauperização. Se
por um lado, este processo produz embelezamento e urbanização,
por outro lado, produz de maneira incessante exclusão e margina-
lização. Aquele livro maravilhoso do Victor Hugo, Os Miseráveis
(1682), ilustra o que expus. Como também a tese de doutorado da
Maria Stella Bresciani intitulado O Espetáculo da pobreza em Londres
e Paris no século XIX (2015), que é um livro belíssimo. Portanto, essa
ótica precisa ser completamente superada e desconstruída, pois
existe uma sanha punitivista mantida pelo governo e por uma boa
parcela da sociedade brasileira, uma sacralização da punição, ou
seja, a punição é adotada e lida como se fosse a solução de todos
os conflitos sociais. Foucault falava na obra Vigiar e Punir (1977):
“não punir menos, mas sim punir melhor”. É quando se inicia a
transição para ordem burguesa.
Tem um sociólogo francês que eu descobri recentemente
chamado Didier Fassin. Ele é autor de um texto que objetiva uma
releitura do Foucault (FASSIN, 2009). Em uma tradução bem ras-
teira, ele diz algo como: “punir é uma paixão contemporânea”.
Com isso, ele está chamando a atenção desse desejo punitivista.
Há um outro autor chamado Thomas Lemke (2012) que trabalhou
com o conceito de guetificação a partir da abordagem de Foucault.
Neste sentido, essa sanha punitivista está imbricada nessa lógica da
Segurança Pública há décadas, principalmente, no Rio de Janeiro
onde vem sendo executada a ponto de um ex-governador - que foi
afastado do cargo - comemorar o desfecho de um sequestro como
se fosse um gol na ponte Rio- Niterói. A mesma ideia pode ser
percebida diante das falas que surgem contendo ordem para matar
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 110

configurando uma chancela do Estado. Quem me chamou atenção


desses aspectos foi um orientando, agora doutor em Ciência Política,
delegado titular da Polícia Civil, fundador dos Policiais Antifascis-
mo, Orlando Zaccone. A tese de doutorado dele, Indignos da Vida
(2013), é sobre a política de extermínio no Rio de Janeiro coordenada
pelos governos do Sérgio Cabral onde apresenta basicamente o ar-
gumento de que “a polícia não mata sozinha, o Estado mata junto”.
Logo, o Estado é extremamente letal. O que é mais assustador é
que há a chancela estatal. O atual governador que substitui Wilson
Witzel, está no mesmo caminho, pois não fez nenhuma autocrítica
do massacre em Jacarezinho onde 30 pessoas foram executadas.
Não se discute mais absolutamente nada sobre esse assunto. Ele
comemorou também, bem como o chefe da operação e o delegado
celebraram, se abraçando e clamando que foram vitoriosos. Isso é
a biopolítica, é o viver em estado de exceção permanente.
Outro exemplo atual e infeliz foi a ameaça que o Ministro
da Defesa, o general Braga Netto, fez ao Congresso Nacional,
dizendo algo como: “se não houver voto impresso não teremos
eleições!” O que é isso? Isso não é o Estado de exceção? Isso não
é uma ameaça de um golpe? Cadê o Estado? O Estado está longe
disso! O Estado não é algo imóvel, não! O Estado é uma instância,
onde vários atores, classes e instituições estão interagindo com
as suas relações de poder e suas disputas pela hegemonia. Mas o
que vemos, infelizmente, é uma hegemonia conservadora vigente,
principalmente, no campo da Segurança Pública.
Mariele - Muito obrigada, Carlos Henrique. Em abril de 2020,
o vice-governador do Texas, o conservador Dan Patrick, em en-
trevista ao canal Fox afirmou "há coisas mais importantes que se
viver". Sugerindo que as pessoas voltassem à normalidade dos
seus empregos e que ele e outros idosos estariam dispostos a se
sacrificarem para salvar a economia. Nota-se com essa fala alguns
aspectos como uma racionalidade econômica específica, mas tam-
bém uma percepção de que alguns corpos podem ser descartáveis
para o funcionamento e manutenção da economia de um país.
Talvez poderíamos afirmar que há uma desigualdade disfarçada
na retórica do bem em comum. Eu gostaria de ouvi-lo sobre esse
disfarce, o quanto que ele afasta as ideias de justiça e bem consi-
deradas tão importante para a estruturação e manutenção de um
pacto social igualitário, um projeto político democrático ou, no
mínimo, menos excludente.
111 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

Carlos Henrique - Ótimo, Mariele! Eu lembro dessa declaração.


Quando a gente acha que nada mais vai nos chocar, percebemos
que estamos completamente equivocados. No Brasil, a frase pode-
ria ser a seguinte: “E daí? Não sou coveiro!” Respondendo a sua
pergunta, eu acho que há uma naturalização da desigualdade, o
que é um erro grotesco. Não digo um erro teórico, mas um erro
político. Porque se você naturaliza a desigualdade, você banaliza
a vida. Aliás, ao contrário, há uma aposta na morte. Daria tam-
bém para falar da produção de subjetividade, ainda mais nesse
contexto de confinamento de poucas trocas, mas aqui ficarei só
no âmbito político.
Acho que a questão está no papel do Estado, ou seja, na sua
produção incessante de corpos descartáveis – que se multiplicam
pois eles são realmente descartáveis. Retomando o exemplo da
chacina de Jacarezinho, vocês percebem que mesmo com essa
produção letal exorbitante de 30 execuções, quem chora são os
familiares. O mesmo daria para exemplificar a partir do descaso
e o negacionismo em relação à pandemia, ou seja, como se fosse
uma invenção a possibilidade de contágio.
O ponto é que há receptividade entre o discurso estapafúrdio
do presidente que imita alguém com falta de ar com alguém que
ri ao lado dele, sejam homens ou mulheres. Tem alguns códigos
nesses discursos políticos que eu acho que a gente tem que estar
mais atento nisso sobre a clareza na definição do papel político
do Estado. O Estado não tem que atuar na produção da exclusão
e naturalizar a desigualdade. Ao contrário, o Estado tem que po-
litizar a desigualdade social para que a produção desses corpos
descartáveis tragicamente não se potencialize e se intensifique.
A gente vê hoje o aumento do contingente da população abai-
xo da linha da pobreza. Uma porcentagem alta da população que
não tem o dinheiro do transporte ou do almoço. Eu tive uma aluna
há muitos anos na UFF que não tinha dinheiro da passagem. Vocês
sabem o que é não ter o dinheiro da passagem? Isso é um retrato
fiel de uma realidade que está do nosso lado. A população está
cansada de uma política extremamente genocida e irresponsável,
que cada vez mais aumenta essa exclusão. Ainda há a questão da
escravidão, dos corpos femininos e dos corpos negros.
Outro ponto que gostaria de frisar é a ideia de que o direito
produz violências. Walter Benjamin é um dos primeiros intelectuais
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 112

que chamou atenção sobre esse ponto (2012). O direito produz vio-
lências no plural. A violência como uma desigualdade social é um
processo extremamente violento e perverso. Então, eu penso que
se não houver uma politização disso tudo fica difícil romper com
essa política econômica e mudar realmente a forma de fazer política.
Ricardo - Mais uma vez obrigado pela sua presença. Foi uma
satisfação ter você aqui conosco.
Mariele - Eu também agradeço a disponibilidade, o aceite e o
bate – papo. Eu acredito que hoje foi um chamado para pensarmos,
sobretudo, enquanto analistas políticos, o papel do Estado seja
para a importância da produção de políticas públicas, seja para
fortalecimento das relações de poder. Tivemos uma tarde muito
frutífera, essa conversa me fez lembrar de um texto curto clássico
do Bachrach e Baratz, As Duas Faces do Poder (2011), que eles afir-
mam que a gente precisa olhar também para a interface invisível
do poder. Eu acho que a fala do professor Carlos Henrique expôs
bem as inúmeras interfaces invisíveis que engendram o poder.
Muito obrigada, professor Carlos Henrique.
Carlos Henrique - Eu quero agradecer toda essa gentileza, reitero
o que falei no começo que eu sou um cara realmente privilegia-
do. Tenho minhas dores e sofrimentos, mas sou privilegiado na
academia. Essas relações que eu fiz e faço são extremamente pra-
zerosas. Eu que devo agradecer, pois para mim foi muito gostoso
e agradável poder dialogar e conversar com vocês.
113 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

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Capítulo 7: A política pública de
expansão das universidades federais

Aline Vanessa Zambello - Doutora em


Ciência Política pela Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp). Mestra em Ciência
Política e bacharela em Ciências Sociais pela
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Membro do Grupo de Pesquisa "Ideias, Inte-
lectuais e Instituições".

Mariele: Agradeço a presença de todas e todos, bem como o acei-


te do convite e disponibilidade da Aline. Na última década, nós
observamos uma transformação importante no cenário universi-
tário federal. A trajetória da educação superior no Brasil até então
era pautada, em sua maioria, por uma atuação do setor privado
e crescia de modo desordenado entre as regiões, sobretudo, ao
que se refere à distribuição das vagas, aos acessos e as ofertas de
cursos. Recentemente, um conjunto de políticas públicas para o
ensino superior público federal marcaram e ainda marcam uma
inflexão deste panorama. Foram colocadas em prática algumas
ações voltadas para a ampliação destes espaços e implementados
programas como o Expandir e o Programa de Apoio a Planos de
Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni).
Houve a ampliação de acesso aos estudos por meio do Exame Na-
cional de Ensino Médio (Enem) e do Sistema de Seleção Unificada
(Sisu). Foram incentivadas as leis de ações afirmativas e programas
de permanência estudantil. Não há dúvidas que o Reuni é um
marco recente de expansão das universidades federais e um des-
taque no conjunto de políticas públicas para educação superior no
Brasil. Essa é a temática da conversa de hoje, que temos a honra de
conduzir na presença da especialista no assunto, Aline Zambello.
A gente tem a impressão de que a universidade brasileira
é uma instituição recente. Aliás, quando a gente compara da-
tas e analisa a historicidade das fundações de universidades
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 116

latino-americanas, percebe-se que as nossas universidades são


posteriores a elas. A partir deste contexto, eu gostaria de iniciar
a nossa conversa perguntando: O que é uma política pública de
educação? E qual é o percurso histórico das políticas públicas de
educação em que as universidades brasileiras foram pensadas?
Aline: Olá, agradeço o convite. Vou começar falando um pou-
quinho sobre políticas públicas que a própria teoria do campo
não tem uma definição única e específica para o conceito. A gente
pode colocar políticas públicas como todas aquelas ações que um
governo escolhe fazer ou escolhe não fazer. Então, aquilo que diz
respeito às ações implementadas, desenhadas, pensadas e formu-
ladas pelos governos em qualquer nível e que afetam diretamente
à sociedade são políticas públicas. Políticas públicas de educação
nada mais são do que tudo aquilo que um governo escolha fazer
ou não fazer diante da educação formal. Pois tem também a edu-
cação informal que é outro debate. E isso que você falou, Mariele,
é completamente realidade.
A educação superior no Brasil é recente e as universidades são
mais recentes ainda. A primeira universidade data de 1920 e era
chamada de Universidade do Distrito Federal, localizada no Rio
de Janeiro. Mas os cursos superiores são ainda anteriores, datados
da vinda da família real em 1808, quando então apareceram os pri-
meiros cursos superiores em várias localidades no país. Até então
qualquer pessoa que quisesse estudar no nível superior tinha que
ir para a Europa, principalmente, para os principais destinos que
eram a França e Portugal. Nos contos de Machado de Assis, por
exemplo, e em outros autores da literatura brasileira, às vezes a
gente encontra essas referências dos estudos fora e, claro, que isso
também influencia grandemente o ensino superior brasileiro, in-
clusive, as ciências sociais que tiveram grande influência do ensino
superior francês. A gente tem bastante referência nessa questão.  
O que eu queria destacar, se me permitem falar mais um pou-
co sobre a trajetória do ensino superior brasileiro, é que até 1970,
aproximadamente, as matrículas estavam concentradas no setor
público. A gente já tinha ali um setor privado levado pelas univer-
sidades confessionais. E foi a partir desta década que as instituições
privadas passaram a fazer parte de forma mais abrangente e esse
número se inverte. Hoje, o maior número de matrículas está no
setor privado, uma proporção mais ou menos de 75% se concentra
117 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

no setor privado e 25% no setor público. E não estou falando só


de universidade, estou falando de instituições de ensino superior,
que há uma diferença também.
A universidade tem o famoso tripé – Ensino, Pesquisa e
Extensão. Tem formas de serem avaliadas nos espaços como no
Ministério da Educação (MEC), no caso do ensino superior público,
que é diferenciado de instituições isoladas. Há certos critérios que
precisam ser cumpridos, tal como o número de mestres e doutores
no quadro docente. Por exemplo, tanto universidades públicas
quanto privadas precisam ter pelo menos 33% do seu quadro de
docentes professores doutores, precisam ter ações de extensão,
tal como essa atividade que nós estamos nesse exato momento. É
preciso ter ações de pesquisa também. Isso não cabe às instituições
isoladas. Tem uma diferença também na forma de estar e na forma
de ser de cada uma dessas instituições.
A dicotomia do ensino público e do ensino privado marca a
trajetória brasileira e várias questões podem ser derivadas desse
debate. O financiamento é um fator que sempre aparece. Uma
universidade é cara para se manter e o profissional exigido para
ser professor é extremamente qualificado para isso. Só essas
duas características para o funcionamento de uma universidade
já seriam suficientes para apontar para a necessidade do financia-
mento público. Por isso, constantemente o debate como: “olha,
vamos cobrar mensalidade, não vamos cobrar mensalidade”
ressurge no debate público. O próprio ranking das instituições e
a criação de critérios para mensurar a qualidade das instituições
aparecem nesses debates. É comum dizer que as universidades
públicas precisam ter posições cada vez melhores dentro dessas
avaliações quando elas levam em consideração a qualidade. Mas a
gente precisa levar em consideração também as pesquisas que são
realizadas dentro da universidade pública. A grande maioria das
publicações e das pesquisas estão localizadas nas universidades
públicas. Não é uma exclusividade, mas é uma grande maioria.
Isso tudo são pontos importantes na trajetória das universidades
públicas federais. Além disso, há ainda as universidades públicas
estaduais que têm outra ordem de funcionamento. No período
entre 2003 e 2016, quando aconteceu efetivamente a política de
expansão, percebemos uma mudança sem precedente histórico
para as universidades federais.
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 118

Ricardo: Obrigado, Aline! Você apresenta no início da sua fala


uma espécie de panorama entre a experiência de implementação
das universidades no Brasil, na América Portuguesa, por assim
dizer, em relação aos países que compuseram a América Hispâ-
nica. Há sem dúvida uma defasagem muito grande. Enquanto na
América Hispânica a gente tinha uma experiência universitária
que remonta ao período colonial; o processo de implementação
das universidades no Brasil remonta propriamente ao século XIX,
em que a universidade naquela época constituía um bem das
elites imperiais, sendo que muitas vezes os filhos dessas elites
estudavam fora do Brasil, sobretudo na universidade de Coim-
bra. É importante fazermos este paralelo quando se busca pensar
justamente a questão do Reuni, que para além da universidade
ser pensada como bem de elite, de alguma maneira, representou
a democratização do ensino superior no Brasil. Não sei se você vai
concordar com essa opinião colocada por mim, e nesse sentido,
eu queria que você falasse um pouco a respeito da trajetória das
universidades públicas do Brasil, destacando certamente o Reuni
como uma política pública importante no sentido de promover a
difusão da educação superior brasileira. Como o Reuni foi pensado
enquanto política pública e como ele entra na agenda e passa por
esse processo de reformulação na atualidade?
Aline: O Reuni ficou muito conhecido na época em que ele foi
anunciado em 2007. Algumas universidades, inclusive, fizeram
greve. Tivemos grupos estudantis que demarcaram posições con-
trárias! Mas a verdade é que o Reuni não existe no singular, não
há um Reuni. O Reuni são três. O Reuni representa três fases. A
gente teve uma primeira fase de expansão das universidades fede-
rais que é uma expansão quantitativa baseada na construção e na
inauguração de novos campi universitários. Foi exatamente nesse
momento que eu localizei a minha tese, dei um enfoque bastante
grande nas criações dos campi de 2003 até o decreto do Reuni em
2007, quando tem a criação de 170 novos campi. É um momento em
que quase dobra o número de campus das universidades federais.
Campus localizados em regiões interiorizadas: 63% dos campi do
final desse período que eu fiz o estudo, estavam localizados em
regiões que não eram nem capitais e nem regiões metropolitanas.
Então, a gente tem um conjunto bastante grande de espaços sendo
ocupados em lugares mais interiorizados. E isso colabora com o
aspecto da democratização. Eu até estava concordando aqui ao
119 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

ouvir a sua pergunta porque a universidade chega perto de quem


vai utilizá-la. A gente sabe que existe um custo para um aluno do
interior se deslocar para estudar em uma capital, seja de desloca-
mento, moradia, entre outros.
Ao mesmo tempo que se tem o Reuni que libera recurso
para essa expansão, há ainda o Reuni 2 que é de 2013 em diante,
quando são abertas novas universidades. Entretanto, nos anos
de 2015 e 2016 há o declínio do investimento para a expansão
das universidades. Hoje, há uma paralisação dos recursos que
foram destinados. Então o Reuni não é 1, são 3. E estou pensando
apenas na expansão quantitativa pois, pari passu, foram colocadas
várias políticas públicas que colaboraram com a democratização.
A própria política de acesso, ou seja, a substituição do vestibular
único aplicado pela instituição e a existência do Enem possibilitou
que alunos da rede pública pudessem acessar o ensino superior.
Não há mais uma taxa de inscrição na universidade! Mas tam-
bém há retrocessos, pois antes o Enem era gratuito para alunos
egressos da rede pública, agora em 2021 não foi. Até onde eu
sei, teve uma taxa que era razoavelmente elevada. Ainda temos
o acesso às vagas pelo Sisu. Eu não preciso mais ir até a univer-
sidade prestar um vestibular separado, pois eu acesso a vaga
pelo Sisu. O candidato pode verificar a sua colocação diante dos
outros candidatos e fazer uma escolha mais acertada que elimina
aquela expectativa de esperar sair a lista para ver se conseguiu a
vaga ou não. Isso facilita o acesso. Já a lei das ações afirmativas
foi criada em 2012, mas a implementação de ações afirmativas já
estava acontecendo nas universidades federais desde 2004. Em
várias delas já havia formas variadas de acesso e a lei vem para
estabelecer um padrão na implementação.
Por fim, houve uma política de permanência que eu diria que
é a cereja do bolo, quando o campus é colocado perto do aluno.
O acesso via Enem, que é uma prova diferente dos vestibulares
tradicionais, é possível assegurar a possibilidade de acesso não só
a essa vaga, mas também a outras vagas dentro das universidades
federais além de permitir a reserva de vagas pelas ações afirmativas
e, associado à política de permanência, é possível estabelecer uma
forma não só do aluno entrar na universidade, mas dele concluí-la.
Assim, há um conjunto de políticas voltadas para as univer-
sidades federais que garantem o acesso e a permanência. Desse
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 120

ponto de vista, a gente tem a possibilidade de democratização, pois


se tivéssemos só aumentando as vagas, como geralmente ocorre
já seria um avanço, mas talvez não significasse tanto do ponto de
vista da democratização.
A entrada na agenda se deu quando o Lula foi candidato em
2002. O programa de governo trazia um caderno específico só
para política educacional. Era um caderno que tinha por volta de
trinta páginas só sobre educação, do qual os autores dessa proposta
eram grandes intelectuais da área. A Mariele já conheceu o New-
ton Lima, ele foi coordenador do programa de governo na área
de educação na época, reitor da universidade federal, foi prefeito
da cidade de São Carlos. Participava tantos outros intelectuais
da área que pensaram e já estavam debatendo a necessidade de
rever a questão do financiamento. A gente tem uma trajetória de
financiamento da universidade federal complicada. A universi-
dade federal na década de 1990 não tinha suprimentos básicos
como condições de pagar energia elétrica por muitos meses. As
universidades, naquele período, viviam das emendas parlamenta-
res como forma de reforçar financiamento. Essa relação constante
acabou criando um vínculo entre deputados federais e a própria
universidade representada também pela Associação Nacional de
Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes)
depois de 1999. A Andifes é uma associação de todas as univer-
sidades federais e fez essa negociação junto ao governo federal.
Então, tinha esse orçamento chamado de “Emenda Andifes” que
reunia as emendas parlamentares dos deputados para poder entrar
no orçamento complementar a verba de custeio, que é o dinheiro
para pagar não só salário, mas também para custear segurança e
limpeza, enfim, o dia a dia da universidade. Percebam que eu não
estou falando de verba de pesquisa, especificamente, que ainda
faltava bastante. Temos uma trajetória de déficit de investimento
dentro das universidades federais.
Algo que apareceu no programa de governo do Lula e que
quando ele ganha a eleição, torna-se emergente. Entra para agenda
pública porque todo mundo estava esperando. Era uma expecta-
tiva bastante grande. Todas as universidades estavam esperando
recursos e demorou um pouquinho para acontecer. Teve troca de
ministro — saiu Cristóvão Buarque do Ministério da Educação e
entrou o Tarso Genro, que logo foi substituído pelo Fernando Ha-
ddad. A justificativa da saída do Cristóvão Buarque do ministério
121 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

está atrelada à urgência do avanço dessa política que com ele estava
um pouco desacelerada. Havia inúmeros seminários, discussões
e debates, mas pouca prática. O desenho do programa e a nego-
ciação com as universidades não estavam acontecendo. A prática
veio mesmo com a gestão de Tarso e depois, com Haddad. É algo
bem interessante de como isso aconteceu tendo como ator central
a Andifes, que é a associação das universidades federais.
Mariele: Agora, eu vou direcionar a nossa conversa considerando
um artigo recente que você publicou que tem como título Univer-
sidades Federais Brasileiras e o impacto regional do Reuni, publicado
na Revista Gestão & Politicas Públicas. Há um trecho em que você
afirma que “o Reuni foi implementado no sentido de privilegiar
o equilíbrio entre as regiões, dados presentes nos documentos
da política". Com essa afirmação, você traz não só a realidade
social e as necessidades de cada instituição para implementação
do Reuni, como também traz o caráter político para entender o
ciclo de políticas públicas. Aliás, esta é uma ideia que está na sua
tese de doutorado e você já citou inclusive na resposta anterior.
Como que você analisa essas variáveis explicativas dentro do ciclo
de políticas públicas, que nomeia na sua tese de doutorado como
politics e policy? Considerando esses aspectos, houve diferença
de implementação do Reuni em uma instituição nova e em uma
instituição de ensino que já estava consolidada?
Aline – Na língua portuguesa, a gente tem dificuldade com a
palavra política. Tudo é política. Então, para diferenciar o campo,
acaba-se usando um pouco do inglês e os conceitos de politics, policy
e polity. São três formas diferentes do que chamamos em português
de política. A policy é a política pública. Ela é a ação governamental
e a gente pode pensar nela em ciclos ou em uma única grande ação,
que não necessariamente é etapista. A politics é a política do dia a
dia. Ela representa a negociação que se faz e a constante construção
de consenso entre atores políticos. Por atores políticos, não são só
aqueles que são eleitos, mas as outras pessoas que estão envolvi-
das no dia a dia. Por exemplo, um projeto de lei pode colocar em
pauta uma política pública e, consequentemente, a construção
dela vai precisar de muita negociação política. Então policy e po-
litics estão sempre combinadas. A questão é que quando a gente
lê a teoria sobre políticas públicas existe uma vertente bastante
administrativa, parecendo que a negociação política não acontece,
ou seja, há a formulação e a implementação, deixando de lado a
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 122

construção de consenso que faz parte do que eu estou chamando


de politics. Ao mesmo tempo, a Ciência Política tem uma leitura
sobre relações Executivo-Legislativo, sobre a questão do Judiciário,
que está olhando bastante para a politics, mas nessas interpretações
nem sempre aparecem as políticas públicas. Eu tentei fazer esse
jogo entre essas duas metades para dizer que existe uma relação
muito forte entre esses dois campos, que às vezes nos estudos,
obviamente não em todos (não sou a primeira a dizer isso), mas
que eles acabam sendo bastante especializados dentro da sua área,
como se fossem áreas separadas: políticas públicas de um lado e
a ciência política do outro. E não é assim. Elas estão associadas.
A partir disso, eu fiz uma análise em cima da criação dos
campi. A escolha do meu objeto não foi aleatória. O objeto de uma
pesquisa científica nunca é aleatório. A criação dos campi não teve
uma lei ou uma diretriz ou uma determinação tal como o Reuni
teve. O Reuni tem um documento com diretrizes gerais e também
um decreto de criação, só que nesses dois documentos não se fala
sobre criação de campus, pois essa política específica de criação de
campus foi construída na negociação. A proposta é extremamente
ampla porque basicamente foi aventado para as universidades
federais a possibilidade de ampliação. É essa criação de estrutu-
ras e capacidades estatais que acaba gerando uma expectativa de
recursos a serem investidos. Nesse momento, algumas universi-
dades já tinham projetos de ampliação e outras não. No processo
de circular a possibilidade de investimento, o MEC deixou claro
que não financiaria prédios e terrenos para a criação de campus. E
então, surge uma oportunidade para a negociação acontecer! Esse
prédio precisa ser cedido pela prefeitura ou pelo governo estadual
ou pode ser oriundo de uma doação de empresários, por exemplo,
mas o espaço tem que ser criado para o campus existir já que os
novos campi não tinham um terreno ou prédio.
A política pública gera uma expectativa de distribuição de
recursos e de possibilidade de imposição de capital político. Então,
toda vez que se tem uma política pública para ser implementada ou
ser executada, os atores políticos que estão envolvidos, alimentam
uma expectativa considerando inclusive a possibilidade de modu-
lar a situação. Na teoria clássica, a política pública funcionaria a
partir da decisão de políticos eleitos. Em seguida, escolhem todas
as variáveis e implementam a política pública como uma variável
técnica. A partir dessa noção de olhar a expectativa gerada pelos
123 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

atores que entraram em negociação com as universidades federais,


que precisam alinhar interesses e recursos, para então, estabelecer
um acordo com o MEC. Tudo isso iria depois para o MEC como
um projeto a ser aprovado ou não. Logo, é um jogo interessante
para entender essa relação entre política pública e as negociações
políticas. É isso que chamo de polity.
Na minha pesquisa de doutorado, eu me volto para os in-
teresses, a interação, os atores e como isso foi sendo construído.
Tem alguns casos que são interessantes, pois o fato de eu poder
negociar com qualquer pessoa e de qualquer maneira, possibilita a
criação de resultados variados. Vamos pegar o caso da Universidade
Federal da Grande Dourados (UFGD). Ela é um desmembramento
da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), do então
o campus de Dourado. Existem projetos desde a década de 1980 para
esse desmembramento acontecer, mas não foram para frente. Dentro
da universidade não chegavam em um acordo. Eles não conseguiam
colocar em prática, não havia consenso e havia muitos conflitos.
Quando veio a política pública expansionista tendo em vista en-
contrar um espaço possível de convencimento, aí o projeto saiu do
papel e virou a universidade que a gente conhece hoje. Eu acho
esse caso um exemplo interessante para pensar essas diferenças.
A Universidade Federal do Acre (UFAC) tinha um projeto,
inclusive, mediado por professores da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp) para criação de uma universidade que
chamavam de Universidade da Floresta com integração com a
população indígena do local. Era um projeto bem diferente da
relação da universidade com as comunidades indígenas que já
tinha sido criado há alguns anos. Quando veio a política expan-
sionista, o projeto não vingou e, por conta de negociações internas
da Universidade Federal do Acre, transformou-se em um campus e
não em uma universidade. Ou seja, criou-se um campus associado
à Universidade Federal do Acre, chamado campus da Floresta.
Houve ainda o caso da Universidade Federal da Fronteira
Sul (UFFS) que tem campus em três estados diferentes - Paraná,
Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Esses espaços foram obtidos
a partir de movimentos sociais. Tem vários movimentos sociais
que se organizaram e que mediaram a aprovação desses espaços
juntamente com o governo federal.
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 124

O último caso que acho bastante interessante é o da Univer-


sidade Federal da Paraíba (UFPB). A universidade se interessou
em ampliar e ter um novo campus, entrou em contato com as elites
locais, com os prefeitos e com os políticos daquela localidade de
vários municípios para conversar com quem poderia ajudar. Dois
municípios se interessaram em acolher esse campus. Mas eles não
conseguiram entrar em um acordo, pois os dois queriam ter o
campus. O resultado que eles conseguiram foi deixar um campus
em dois municípios. Então, tem parte do campus em um muni-
cípio e parte do campus em outro município. É o mesmo campus
que está dividido. A gente pode ver que essas negociações foram
dando formas diferentes de campus, de estrutura, da maneira como
a universidade conseguiu colocar em prática aqueles desenhos
iniciais de ampliação.
Ricardo – Eu acho muito interessante a fala da Aline porque ela
de alguma forma converge com a nossa experiência enquanto
Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional.
A Universidade Federal Fluminense de Campos dos Goytacazes
(UFF Campos), de certa maneira, é um produto do Reuni e dessa
política de expansão universitária que se deu nessas décadas mais
recentes, por assim dizer. Certamente a Aline trabalha mais de
perto com a questão das universidades federais, mas fazendo um
paralelo, a gente poderia pensar também o processo de democra-
tização, e de interiorização dos institutos federais de ensino que
também constituem uma política pública importante, desenvolvida
em um certo período da história recente brasileira.
A minha pergunta agora é em outra direção. A gente passa,
inclusive, por um processo relativamente conturbado, na atuali-
dade, de implementação sem muita discussão. Essa é a grande
realidade da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Projeto
esse, decorrente em alguma medida da própria reforma do ensino
médio, que esteve lá pelo ano de 2017. A gente sabe muito bem
que a BNCC não se volta apenas para o Ensino Médio, há também
a BNCC direcionada ao Ensino Fundamental, mas eu acho que
a minha pergunta de alguma forma busca situar mais a ideia de
se pensar a BNCC a partir do Ensino Médio, porque talvez seja o
ponto crítico, de uma maneira geral. Eu queria saber de acordo
com seus estudos e com a sua pesquisa, a que ponto as mudanças
propostas pela nova BNCC de alguma forma acentuam as desi-
gualdades escolares já existentes no Brasil, aumentando ainda
125 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

mais o fosso que separa as escolas dos ricos em relação às escolas


dos pobres?
Aline – Sua pergunta é interessante. O ensino médio é uma política
que perpassa minha área de atuação. Não foi alvo da pesquisa do
doutorado, mas tenho pensado e acompanhado essas questões da
BNCC. Foi em 2017 que começou também a expectativa em relação
ao Novo Ensino Médio, junto com a discussão da BNCC. Então, tem
algum lastro, vamos dizer assim, na necessidade de rever a forma
como o Ensino Médio é conduzido. Anteriormente a esse movi-
mento, o ensino médio estava voltado para o vestibular tradicional.
Está prevista na Lei de Diretrizes e Base da Educação
Nacional (LDB) e as legislações que embasam a educação, elas
preveem não só uma educação só de conteúdo, mas também uma
formação cidadã. Pensa-se na necessidade do desenvolvimento
do pensamento crítico, da interpretação do mundo a sua volta,
da utilização dos conhecimentos na prática. Então, existe sim,
um lastro da necessidade de rever. O que acontece é que a forma
como foi colocada tanto essa BNCC, extremamente apressada. Eu
concordo com você Ricardo, não teve uma discussão ampla com
os profissionais da educação, com as pessoas que estão atuando
diretamente e com os burocratas de nível de rua, por exemplo.
Muito menos uma discussão ampla de quem promove o dia a
dia escolar, que são os gestores, professores e todos que direta e
indiretamente compõem esse ambiente. De fato, não houve uma
discussão. Tem até um caso curioso que participei de uma divul-
gação - não era uma discussão - para professores de uma rede de
ensino, que até então eu estava atuando. Os professores começaram
todos a fazer várias perguntas. As pessoas queriam entender o
que estava acontecendo. Todos estavam bastante indignados. Aí
quem estava fazendo essa divulgação foi grosseiro nas respostas
dizendo “Olha, a rede privada não vai mudar!".
Nesse sentido, a desigualdade que já existe entre rede privada
e pública no que tange à formação do Ensino Médio, especificamen-
te, existe a expectativa de que vá aprofundar. Não dá para afirmar
com certeza. Os itinerários passarão a ser implementados ano que
vem, em 2022. Eles vão entrar em prática obrigatoriamente em
todas as instituições e cada instituição tem uma certa liberdade de
propor esses itinerários. Existem boas formas de se colocar esses
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 126

itinerários em prática, mas aí a gente precisa aguardar para ver


qual vai ser o resultado disso.
O que eu tenho percebido é que dentro da rede privada de
ensino no interior do estado de São Paulo, que é o que eu acom-
panho mais próximo, o que organiza a forma ainda é o vestibular
tradicional. Assim sendo, há de se considerar que os conteúdos que
caem no vestibular continuarão sendo ministrados com ampliação
para outros conteúdos do itinerário. A partir daí cada instituição
pode aprofundar ou pode criar formas de intercessão ou ainda
poderá trazer novos conteúdos que não fazem parte hoje do con-
teúdo escolar. Mas penso que enquanto o vestibular não mudar,
essas instituições tendem a permanecer, de grande modo, com o
conteúdo programático e metodologias. No ensino público, tem
sido feito algumas experiências. Nas eletivas, aqui no estado de
São Paulo na rede estadual, os professores têm liberdade de criar
a partir dos seus campos de especialidade. O que é interessante
para o professor, mas ao mesmo tempo, promove uma certa de-
pendência de como o professor trabalha e como a escola permite
essa atuação acontecer.
No caso do estado de São Paulo, a gente tem uma deficiência
gravíssima na contratação de professores efetivos. Uma boa parte
dos profissionais hoje, são os chamados categoria “O”, que são
profissionais eventuais, por assim dizer. São contratos de tempo
determinado em uma situação bastante complicada. Isso impede
a institucionalidade, ou seja, a criação de um fio condutor entre
a escola e a comunidade, o fortalecimento de laços de solidarie-
dade entre comunidade e a escola para que a formação seja de
fato integral, para que compreenda os âmbitos da cidadania e
conteúdo escolar. Assim, minha visão é um pouco pessimista em
relação a sua pergunta e como eu tenho acompanhado o que tem
acontecido. Pode ser que lá na frente, na hora de implementar,
haja mudanças, mas a princípio não vejo uma possibilidade de
melhorar de rever ou diminuir a desigualdade, pelo menos aqui
no estado de São Paulo.
Mariele – Obrigada, Aline! Também vou conduzir, agora, a pró-
xima pergunta com reflexões que têm permeado a nossa mídia
nesse momento diante do contexto pandêmico que estamos vi-
vendo. A pandemia de 2019 impôs uma série de novos protocolos
sociais e de saúde para a população brasileira. Também expôs
127 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

internacionalmente a importância do Sistema Único de Saúde


(SUS). O sistema é sem dúvidas uma das maiores conquistas da
sociedade brasileira. É um produto que 100% da população bra-
sileira tem acesso universal, integral e gratuito. É um caso raro no
mundo todo. Apesar de serem mecanismos bastante distintos, no
federalismo brasileiro, sabemos que quando estamos analisando
políticas públicas, algumas referências de um campo servem
também ao outro, sobretudo, os modelos de políticas públicas.
Sob essa ótica, o funcionamento vigente do SUS pode servir de
exemplo para uma retomada de fôlego às discussões sobre um
Sistema Nacional de Educação? Ou seja, o que há de valioso no
SUS que serviria também para a pauta da educação, que a gente
pode aproveitar a posteriori?
Aline - Junto com as discussões do SUS na pandemia, eu acho que
a gente também enfrentou uma discussão da valorização da ciência,
do papel das universidades públicas na condição e na descoberta
científica. Então, a gente tem ali, talvez até uma integração, se a
gente pensar na questão dos hospitais universitários também, que
alguns estão integrados ao SUS. A gente tem até uma integração na
parte de condução das próprias políticas. Eu acho que a pandemia
trouxe essa discussão do lugar da ciência, do financiamento e das
pesquisas científicas. Muita gente começou a perceber a importân-
cia da ciência. Perceber a importância da nossa profissão: nós três
somos cientistas! Às vezes tinha uma ideia que ser cientista seria
acordar em um belo dia e dizer “Eureca, descobri alguma coisa!”.
Mas a ciência não se move por essas descobertas aleatórias. Há
casos na história, mas ela não se move assim. A produção de co-
nhecimento científico é fruto de muito esforço, muito suor, muita
pesquisa, muitas mãos e muita gente envolvida. Uma pesquisa
envolve alunos bolsistas de graduação, bolsistas de pós-graduação,
redes de professores, presenças e apresentações em congressos e
publicações, apenas para citar alguns exemplos. Temos uma sé-
rie de instrumentos na ciência que precisam ser mantidos ativos
por meio de novas descobertas e avanços científicos para que nos
momentos de necessidade humanitária, eles possam ser ativados.
Mas não é isso que tem acontecido no Brasil, pois temos perdido
investimento público na condição da pesquisa científica desde
2016. Em 2013 foi destinado 10,8 bilhões para as universidades
federais, retirando o salário dos funcionários. Em 2019, o custeio
passou a ser de 5,2 bilhões. Há uma defasagem bastante grande
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 128

no financiamento das universidades. Não estou falando especial-


mente de pesquisa. Estou falando da universidade como um todo.
Em 2021 está previsto 4,3 bilhões, e até o último acompanha-
mento que eu tinha feito, tinha sido liberado metade disso. Sem
perspectiva e sem certeza se a outra metade também será liberada.
Então, os impactos desse déficit de financiamento afetam a própria
condição da pesquisa e o funcionamento das universidades. Falar
algo como: “ eu não estou vendo o que a universidade está fazendo
no dia a dia” ou “eu não faço parte disso!” implica não só em erro
sobre impacto da ciência, mas também por não considerar que a
universidade, além de pesquisa, oferece ensino e extensão.
Existe um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplica-
da (IPEA) de 2011 sobre a multiplicação do Produto Interno Bruto
(PIB) por gasto social. A educação em qualquer nível, e não estou
falando só de universitária, é considerada. Os dados indicam que
a cada um real destinado para a educação a gente tem um efeito
multiplicador do PIB, assumindo o valor de 1,85. Então, um ganho
acima de 80% em cima da multiplicação desse gasto. É o gasto
que mais multiplica o PIB! Isso demonstra que o ensino no Brasil
ainda é fator de mobilidade social, em qualquer nível, não só do
ensino superior.
Portanto, eu penso que se estamos numa pauta de “defendo
o SUS”, a gente também precisa estar em uma pauta de “defendo a
ciência”, “valorizem as instituições públicas” e “defenda a pesquisa
pública”. Porque tudo isso tem ganhos coletivos, não é só ganhos
individuais. E que esses ganhos às vezes não aparecem porque são
difusos. Quando eu olho o PIB, eu não desagrego o PIB por efeito
multiplicador, eu tenho que fazer um estudo específico por conta
disso. As pessoas com mais qualificação têm salários maiores e isso
tem efeito lá no final da cadeia quando se faz o cálculo do PIB.
Se há avanços na ciência com esses profissionais, é mais fácil con-
seguir mobiliza-los rapidamente. A gente só conseguiu produzir
as vacinas com os insumos que vieram do exterior, porque temos
mão de obra especializada para isso, formada, treinada dentro de
todas as instituições de ensino superior, sobretudo, dentro das
universidades federais. Temos autarquias de pesquisa, a Funda-
ção Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto Butantan são os dois
grandes exemplos. Duas instituições que precisam ser mantidas
constantemente e não só na época da pandemia.
129 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

Ricardo – Essa atividade de hoje integra o projeto de extensão


Diálogos do Fim do Mundo, no qual eu e a professora Mariele
Troiano somos os coordenadores, mas que é composto por uma
série de professores, pesquisadores e alunos, sobretudo da UFF
Campos. Em algum sentido, isso vai ao encontro do que foi
posto pela Aline porque a universidade não se reduz apenas à
dimensão do ensino. Ela agrega também a questão da pesquisa e
da extensão. A gente tenta, na medida do possível, desenvolver
projetos tanto no campo da pesquisa, como também da extensão.
Minha pergunta é um pouco daquilo que foi posto por você na
sua última fala, sobre esse decréscimo gradual nos investimentos
para as universidades federais. A partir das suas pesquisas, qual
o resultado prático dessa política de redução de recursos para a
manutenção e ampliação de um ensino superior público, gratuito
e universal? Ou seja, qual o resultado prático dessa perda gradual
de verba para as universidades?
Aline - Os efeitos são muitos. Já há na história das universidades
federais um exemplo que é o período dos anos de 1990. Eu falo
desse período porque foi o momento que meus professores na
graduação e pós-graduação estavam na universidade, são ricos os
relatos de vivência. Penso que teremos um desmonte dessa política
de expansão. O que significa isso? Significa que a UFF Campos
estará lá, só que o prédio não terá recursos para sua manutenção
a ponto de não ser possível utilizá-lo. Esse é um efeito bastante
imediato, que promove efeito em cascata, pois chega um momento
que os servidores dentro das universidades federais passam a ter
dificuldades de trabalhar. Existem relatos de não ter folha sulfite
para trabalho de secretária em épocas de escasso recurso. Então,
se você não consegue imprimir um documento para assinar, se
você não consegue tramitar um processo do dia a dia, às vezes
até uma requisição de algum item que é preciso fazer registro e
você não consegue fazer porque não tem papel, porque não tem
dinheiro para comprar papel há então uma paralisação imediata
da universidade. É um indicativo do início do desmonte. Acho que
mais que impedir a expansão, pode ocorrer a retirada do grande
ganho dessa política expansionista que foi trazer alunos de gru-
pos sociais mais vulneráveis, mais pauperizados e que dependem
exclusivamente de ajuda financeira para estar dentro da universi-
dade. O aluno que precisa de um auxílio de permanência teve esse
benefício cortado em muitas universidades, deixando de existir.
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 130

Eu não sei qual é a realidade da UFF, eu não acompanho. Mas na


Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) já se fala em cortes
diretamente relacionados à distribuição de bolsas necessárias para
que as pessoas fiquem dentro da universidade.
Há o desmonte da estrutura física que precisa de manutenção,
equipamento eletrônico, prédio, limpeza e pagamento de energia
elétrica, por exemplo. Desmobiliza tudo que é necessário e paralisa
o funcionamento do trâmite diário da universidade, isso sem falar
na paralisação das atividades de pesquisa. Cursos e profissionais
que dependem de laboratórios, reagentes, técnicos e maquinários
passam a não conseguir realizar suas atividades. A universidade
existe, mas ela não funciona. É um efeito dominó imediato, que
vai sendo prolongado ao longo do tempo, pois a diminuição da
pesquisa significa menos capacidade de colocar o país e a economia
nacional no topo de uma cadeia produtiva. O que isso implica? A
gente sabe que produtos tecnológicos têm mais valor agregado do
que produtos não tecnológicos e que o Brasil tem instituições com
registros de patentes. Essas instituições vão se tornando empresas
e startups, tudo vai sendo minado e deixando de existir. Até porque
o setor privado das grandes empresas, não faz o investimento na
pesquisa do jeito que a gente acha que faz. Quem faz o investimento
pesado na pesquisa é o setor público. Tal situação vai minando
essa cadeia de transmissão de desenvolvimento, de pesquisa, de
inovação e de funcionamento da própria universidade.
Desmonta-se também o processo de inclusão. A gente teve
um ganho em termos de acolhimento de alunos com renda de até
1,5 salário-mínimo. Tem uma pesquisa do Fórum Nacional de
Pró-Reitores de Assuntos Comunitários e Estudantis (Fonaprace),
conduzido pela UFF, sobre o perfil de discentes das universidades
federais. Eles chegaram à conclusão de que em 2018, 70% dos alu-
nos das universidades federais tiveram renda per capta de até em
1,5 salário-mínimo. A gente tem um grande contingente dentro das
universidades que precisa dessa estrutura funcionando. Às vezes,
as pessoas precisam de um laboratório de informática para fazer
os estudos ou de uma biblioteca com bibliotecários e com livros
novos, para poder conduzir as pesquisas, precisa ter acesso a rede
que disponibiliza periódicos internacionais e que no Brasil a gente
tem acesso gratuitamente via universidades. Não é a realidade
dos outros países! Há muitos convênios que se mantém com as
universidades brasileiras via Coordenação de Aperfeiçoamento de
131 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

Pessoal de Nível Superior (CAPES) que também estão sendo esgo-


tados. Quebrando essa cadeia de transmissão, retrocede também
nos ganhos que tivemos até agora. Portanto, eu acho que isso são
efeitos de longo prazo, inclusive.
Mariele - Muito pertinente, nesse momento que a gente está fa-
lando sobre retomada. Minha próxima pergunta é sobre a massa
de alunos que ingressa no ensino superior. Os alunos ingressam
na mesma forma em todas as áreas de conhecimento? Ou eles
têm entrado em cursos de menor procura, só reproduzindo a
diferença entre classe, raça e gênero? Até que ponto o Reuni foi
bem-sucedido?
Aline – O Reuni não teve, necessariamente, como objeto central a
inclusão equitativa nas áreas de conhecimento. O Reuni teve como
objeto central a expansão das universidades federais em busca de
certa democratização, mas não necessariamente a inclusão equita-
tiva nas áreas de conhecimento. Esse não é o meu objeto de estudo,
especificamente, mas tem inclusive, essa pesquisa de perfil discente
com dados sobre a divisão por áreas. A partir desse trabalho, a
gente consegue perceber um pouco de que forma isso acontece.
No geral, por conta das ações afirmativas, ocorreu a entrada
em todas as áreas. Não é exatamente igual, porque sabemos que
os cursos mais concorridos acabam dificultando a entrada. Mas
nós temos listas separadas. Então, alunos cotistas e não cotistas
concorrem não entre si, mas em sua própria categoria. Isso garante
a entrada mais ou menos distribuída entre as áreas de conheci-
mento. O que trava esses alunos é a parte da permanência. Alguns
cursos, principalmente, as engenharias e os cálculos são as pedras
no sapato da grande maioria dos alunos, pelo menos aqui em São
Carlos é assim. Esses cursos são as causas de retenção e as causas
de evasão escolar, por não conseguir cursar de modo satisfatório
essas disciplinas. Essa é outra discussão, pois inclui questões de
metodologia, aplicação e avaliação, por exemplo. Acredito que a
questão é de continuação e não necessariamente de entrada.
Temos ganhos em relação, principalmente, à critérios étnicos
raciais. Tenho alguns dados sobre isso. Em 2003, por exemplo, 28%
da entrada dos alunos, era de alunos autodeclarados pardos. Em
2018, esse índice passou a ser de 39%. Entre os alunos autodecla-
rados pretos, os valores saltaram de 5,9% em 2003 para 12% em
2018 - valor acima da média do Instituto Brasileiro de Geografia e
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 132

Estatística (IBGE). Esse é o mosaico da sociedade que está refle-


tindo na universidade. Conseguiu-se, inclusive, o que algumas
teorias vão chamar de “discriminação positiva” - a capacidade
de inclusão maior dessa população que antes estava fora da
universidade. E por que isso é importante, no fim das contas?
As universidades no Brasil ainda possibilitam muita mobilidade
social. Não é a realidade de outros países, mas no Brasil ainda
fazem mobilidade social. A capacidade de a pessoa ter uma renda
superior e uma vida melhor do que seus pais e os seus avós é
atrelada à entrada e permanência em uma universidade. Essa é
uma mudança geracional impulsionada com o ensino superior
conquistado. O efeito positivo não é do Reuni, especificamente,
mas desse conjunto de políticas que vão pensar o campus mais
próximo, a ação afirmativa executada, o Enem acontecendo, o
Sisu eficiente, o Plano Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes)
ajustado, ou seja, tudo isso funcionando como um relógio. Se eu
tiro orçamento e recurso, esse relógio vai se desmontando e vou
devolvendo essa população para seus lugares. A população não
acessa à universidade e o processo de mobilidade social que é
esperado e desejado não acontece.
Mariele: Muito obrigada! O que você colocou para a gente, hoje,
Aline, é um chamado para perceber a universidade para além do
ensino. A universidade é composta de atores, de regras institucio-
nais e, sobretudo, de recursos. A mídia e o senso comum acabam
reduzindo muito as múltiplas variáveis que movem a universidade.   
Aline: Quero parabenizar você e o Ricardo pelo projeto. É uma ati-
vidade que demonstra a capacidade da universidade de capilarizar
o conhecimento científico, de levar aquilo que se produz dentro da
universidade para todos. Provavelmente entre as pessoas que nos
acompanham, têm alunos da universidade, mas também pessoas
que não estão na universidade e que acabam sendo conduzidos
por um processo de reflexão crítica sobre a nossa própria posição
do mundo. Então, parabéns pelo projeto! Eu acompanhei algumas
outras lives, e me sinto muito honrada de participar junto com
tantos outros nomes de peso da comunidade científica. E é muito
importante esse trabalho que vocês fazem com recurso público
para a comunidade em geral e traduzindo de uma maneira que
todo mundo possa entender.
Ricardo: Muito obrigado e até breve.
133 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

Referência Bibliográfica:
ZAMBELLO, Aline Vanessa. Universidades Federais Brasileiras
e o Impacto Regional do REUNI. Revista Gestão & Políticas Públicas,
3(2), 246-267, 2003.
Capítulo 8: Políticas públicas e
desigualdades no combate à pandemia

Lorena Guadalupe Barberia - É professora


livre-docente do Departamento de Ciência
Política da Universidade de São Paulo (USP),
pesquisadora principal do Núcleo de Estudos
Comparados e Internacionais (NECI) e pes-
quisadora principal do Centro de Estudos em
Política e Economia do Setor Público (CEPESP)
da Fundação Getúlio Vargas-São Paulo. É
doutora pela Fundação Getúlio Vargas-EAESP
em Administração Pública e Governo, mestra
em Políticas Públicas pela John F. Kennedy
School of Government da Harvard University
e concluiu sua graduação em Economia pela
University of California, Berkeley.    

Mariele – Hoje é dia 10 de novembro de 2021. Um dia em que os


jornais anunciam uma nova onda de pandemia de covid-19 na
Europa. Recordes na Rússia, piores índices de contágios na Ale-
manha, um novo alerta da Organização Mundial de Saúde (OMS)
para outros países do mundo. A pandemia ainda não acabou. O
mundo passa de 5 milhões de mortes por conta do Covid-19 e o
Brasil passa de 600 mil mortos. E ao mesmo tempo que nos da-
mos conta desses números sabemos que eles são simbólicos. Ou
seja, são números contabilizados de acordo com os dados oficiais
dispostos por cada país, mas que conforme a própria OMS, esses
números estão longes de serem reais, podendo ser duplicados ou
até mesmo triplicados aos valores aqui expostos. Há quase dois
anos, para se pensar as políticas públicas em nosso país passou
a considerar esses números para promoção do enfrentamento
de um vírus considerando sua alta taxa de contaminação e suas
consequências. De modo multidisciplinar e científico, percebemos
que a pandemia também é um fenômeno político, sobretudo, em
135 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

relação às formas e decisões sobre a sua contenção. Para falarmos


um pouco sobre políticas públicas e desigualdades no combate à
pandemia de Covid-19, e fazermos aqui, até mesmo um exercício
de reflexão sobre esse futuro incerto que nos espera, não só um fim
de uma pandemia, mas o fim pandêmico que parece expor ainda
mais as nossas desigualdades e vulnerabilidades sociais, e torná-las
ainda mais urgentes. Agradeço a presença da pesquisadora Lorena
Barberia, que coordena a Rede de Pesquisa Solidária em Políticas
Públicas e Sociedade. Eu gostaria de saber como a Rede Solidária
foi pensada. Afinal, quais são os objetivos de investigação? Quem
participa e como vocês estão organizados?
Lorena - Eu não poderia iniciar uma fala sem antes insistir: a pan-
demia não acabou! Estamos aqui conversando porque queremos
entender o porquê de não ter acabado. Se passaram dois anos tão
intensos, repletos de tantos sofrimentos. O que que acontece que
a gente ainda se encontra neste momento? Sabendo sempre, como
você reforçou, que o que acontece na Europa, o que acontece na
Ásia, que o que acontece nos Estados Unidos e no hemisfério norte,
que isso nos ajuda a entender para onde nós estamos caminhando
e quais são desafios que a gente deveria estar se preparando. Então,
temos que conversar neste momento porque estamos vivendo essa
sensação muito diferente da nossa realidade e do que a gente está
vendo fora do Brasil. A gente precisa explicar isso para as pessoas
e mostrar dados e evidências que nos ajudem a entender definiti-
vamente que a pandemia ainda não acabou, sobretudo, no Brasil.   
Eu sou cientista política e faço as minhas próprias pesquisas.
Temos o nosso grupo de pesquisa, com todos os alunos. Quando
começou a pandemia, no grupo, uma das pesquisadoras, uma
aluna de graduação, disse para mim: “Professora, nós das Ciências
Sociais não vamos fazer nada? O que nós vamos fazer?” Eu achei
um questionamento tão importante para pensarmos um pouco: “É
verdade”, eu pensei! Uma pandemia dessa magnitude, somando
todos os desafios que a gente tem. E nós, portadores de muitas
ferramentas e de muito conhecimento, temos que debater e levar
conhecimento para auxiliar no enfrentamento à pandemia. Então,
eu gosto de contar essa história porque tem uma questão de espírito
coletivo forte, de engajamento de alunos de mestrado, doutorado,
de graduação e de professores que quiseram se mobilizar e dizer
“vamos trazer um olhar multidisciplinar para esse contexto”.  
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 136

A Rede de Pesquisa Solidária em Políticas Públicas e So-


ciedade surge justamente com esse objetivo: precisamos ter
solidariedade porque é um momento muito importante de falar
sobre vulnerabilidade e de falar sobre quem está sofrendo. Para
isso, temos que pensar, debater e avaliar as políticas públicas. E a
gente tem que ter rigor científico para fazer isso. Também temos
que pensar que, nesse primeiro momento, existe uma obsessão
com modelos matemáticos muito sofisticados discutindo o que
estava acontecendo na pandemia, como seria a pandemia e qual
era o fator “R” de reprodução do vírus, qual era o tipo de prog-
nóstico que viria, quando seria o pior momento ou ainda quando
iria melhorar. Então, nós tínhamos uma ênfase muito grande em
modelos e em estudos que não levavam em conta tanto o contexto
social e político. Portanto, a gente quis entrar e dizer: “nós preci-
samos insistir em dialogar com quem está fazendo esses estudos,
trazendo esse olhar das políticas públicas, trazendo esse olhar das
vulnerabilidades e desigualdades”. Pensando também na questão
de como as políticas públicas em cada esfera precisa pensar no
diálogo. A gente não pode só pensar em construir hospitais de
campanha ou lidar com a pandemia sob um olhar específico, mas
sim, pensar nos outros aspectos e nas outras áreas das políticas
públicas. Por exemplo, o impacto na educação e na economia, sob
uma perspectiva mais integral e multidisciplinar. Essa foi a ideia da
Rede! Aliás, isso continua sendo o que nos motiva e já produzimos
36 notas técnicas, contendo uma pauta e uma sugestão de quais
são as políticas públicas que a gente está recomendando como
mudança. Trazemos dados sempre inéditos! Essa é uma questão
importante para nós: trazer alguma informação nova e um debate
importante com um posicionamento de políticas públicas.
Sempre postamos todos os dados e o material que a gente
está produzindo na Rede. Deixamos isso aberto com toda a trans-
parência. Por que estamos fazendo isso? Porque a gente entende
que esses dados sempre podem ser melhorados, corrigidos. Quem
tiver dúvidas e não acredita em nossas pesquisas pode ir lá e
consultar nossos indicadores. Aliás, quem também quiser usar
esses indicadores será muito bem-vindo porque a ciência é um
empreendimento coletivo. Quanto mais estamos todos trabalhando
juntos, compartilhando dados e nos ensinando enquanto grupo,
mais fortalecidos nós somos como cientistas sociais. Então, esse é
137 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

um pouco do espírito da Rede e não estamos parando, porque a


pandemia não parou.  
Ricardo – Realmente o material que tem sido produzido é funda-
mental. Vocês têm uma plataforma completa e com uma grande
quantidade de informações de dados, isso de alguma forma é
muito interessante e contribui para que a gente possa pensar a
ciência cada vez mais de forma transdisciplinar. Acredito que
de alguma maneira essa proposta da Rede vai ao encontro dessa
perspectiva de se pensar o conhecimento por meio de pontes.
Então, eu acho muito significativo esse trabalho que vem sendo
desempenhado pela professora Lorena, juntamente com outros
profissionais, obviamente.
E nesse sentido, eu já vou realizar a minha pergunta que de
alguma maneira, tem tudo a ver com o que a professora Lorena já
estava colocando que diz respeito à dificuldade de acesso a essa
quantidade de informações. Fala-se muito, inclusive, no Brasil
em termos de subnotificação de dados. Temos do ponto de vista
oficial mais de 600 mil mortes, uma quantidade cada vez maior
de internações, de pessoas que contraíram a doença, mas há tam-
bém por sua vez, uma quantidade expressiva de subnotificações.
Assim sendo, a minha pergunta caminha nesta direção, de buscar
entender como a Rede e a sua pesquisa se volta para tentar captar
esses dados que são de difícil acesso. Do ponto de vista acadêmico
é muito difícil estudar um evento que está mudando diariamente
de uma forma muito veloz e com dados de difícil acesso. A obten-
ção de dados sobre a pandemia não permite tempo para a coleta
de dados e reflexão sobre o problema. Nessa perspectiva, quais
são as principais fontes de dados da Rede de Pesquisa e quais são
os maiores desafios que vocês enfrentam e enfrentaram durante
este percurso? Como vocês têm lidado com as subnotificações que
envolvem o atual contexto?
Lorena – É uma ótima pergunta! É muito importante para entender
o nosso trabalho porque, neste momento, estamos falando que
não acabou a pandemia. Uma das questões que reforçamos mui-
to quando estamos discutindo a pandemia é a questão da forma
que está fragmentada a informação e de que os bancos de dados
estão registrados de acordo com diferentes aspectos da pandemia.
Assim, nós que estamos integrados, temos vários problemas so-
bre saber o que está acontecendo hoje. Se eu quero saber o que é
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 138

publicado hoje, o número de casos, de óbitos e de pessoas testadas.


Toda essa informação é da data de notificação e não da data do
acontecimento. Então, isso desde o início da pandemia ficou muito
claro a natureza desse problema. Mas por que esse problema ainda
continua? Por que a gente ainda não conta com essa integração dos
bancos de dados? A gente não conta com a informação atualizada
e transparente, sendo atualizada na velocidade da pandemia?
Por exemplo, ontem em São Paulo, foi afirmado pelo noti-
ciário que não houve nenhum óbito. Isso não é verdade! Não é
verdade que não houve óbitos de covid-19 em São Paulo no dia de
ontem. Por tudo que está acontecendo, a gente sabe que sempre
acontece de toda segunda-feira os óbitos serem muito menores,
do que realmente foram. E os óbitos notificados na segunda-feira
são os óbitos de três ou quatro ou cinco semanas atrás. A partir
do momento que passamos a entender esse problema, a gente
passa a também considerá-lo para pensar uma política pública,
seja como um gestor ou como uma pessoa que está decidindo so-
bre sair ou não sair, circular ou não circular. Ou seja, há um risco
muito grande quando temos essa informação fragmentada e que
já surge defasada. Isso acontece porque eu estou vendo o que está
sendo notificado e não o que está acontecendo neste momento na
minha localidade, em meu estado ou em meu país. Logo, a gente
tem uma preocupação muito grande com essa questão, que temos
que lembrar sempre quando pensamos políticas públicas: existe
uma diferença e você precisa considerar o contexto anterior ao
dado que você observa. Portanto, quando a gente está pensando
neste momento, por exemplo, sobre o que é e quando é obrigatório
notificar percebemos que política pública é muito importante para
entender um dado.
Por isso que a gente tem se esforçado muito para estudar e
para aprimorar a compreensão desses dados. Por exemplo, quando
relatam que há menos óbitos e menos casos, a única forma que
eu consigo avaliar isso é avaliando o que é um caso oficialmente
dentro deste estado, dentro deste município e como se confirma
um caso por lá. Ao mapear oficialmente os decretos e a informação
oficial sobre o que significa ter um caso de covid, a gente descobre.
Além de tudo, estamos falando de um dado defasado, de sistemas
com informações falhas, de bancos de dados fragmentados e a
própria ideia de “um caso de covid” mudou e muda ao longo da
pandemia.
139 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

Então, esse banco de dados dos casos também migrou. Se você


viajava em janeiro ou em fevereiro de 2020, e não tinha ingressado
na China ou no Vietnã ou em alguns determinados países, mes-
mo você tendo uma infecção aguda, respiratória e tendo todos os
outros indicativos de você estar infectado com o vírus, você não
era considerado e classificado como um caso de covid. A gente
sabe que muitas pessoas nesse período, que não tinham viajado
não foram incluídas como caso ao longo de 2020. No início era
só se você estava já no hospital e já tinha covid grave, aí você era
classificado. Mudou esse critério em julho de 2020 para incluir
alguém que tinha sintomas, mas não poderia ser um contactante,
não poderia ser alguém assintomático. E em setembro, a gente
mudou de novo o critério para dizer que podemos avaliar com
outros indicadores.
Imagine a dificuldade para as políticas públicas e para a gente
entender a pandemia, se nem a medida do que é um caso não é
mensurado. Não levamos em consideração que isso foi mudando
ao longo da pandemia. A gente tem um viés muito grande em
fazer uma inferência sobre o que está acontecendo com os casos e
os óbitos. Porque pode ser que a gente tenha mais ou menos casos,
pelo motivo da definição ter mudado e não porque a gente real-
mente tem uma melhora nos casos em um determinado momento.
A gente precisa mapear a política pública, e depois comparar os
resultados disponíveis.
A gente insiste muito em todas as áreas. Por exemplo, como
sabemos que temos poucos casos de covid nas escolas? Como
testamos covid nas escolas? Como avaliamos? Cadê o banco de
dados de casos de covid nas escolas? Se a gente não olhar isso, é
muito difícil a gente olhar o resultado e confiar que não tem um
viés nessa informação. Portanto, estamos insistindo muito nisso,
em como é produzida a informação e quais são as políticas públicas
que mudam como essa informação que é produzida.
Mariele - Muito obrigada pela resposta, Lorena. Agora a gente
vai caminhar para um bloco mais específico, falando dessa mo-
bilidade de informação, porque produzir e conduzir informação
também envolve decisão política. Os boletins e os resultados dos
trabalhos da Rede Solidária sinalizam que há desafios científicos,
mas também políticos para o enfrentamento bem-sucedido da
pandemia, ou seja, política é parte também integral da resposta
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 140

dessa pandemia. Afinal, quando falamos de políticas públicas,


estamos falando de decisões. De acordo com o conceito mais sim-
ples, digamos assim, básico das políticas públicas em torno de uma
decisão que sempre favorece um em detrimento do interesse de
outro. A partir disso, eu gostaria que a Lorena comentasse sobre
essa relação entre política e pandemia, sobretudo, a influência de
decisões não farmacológicas, como o distanciamento social, que
foi uma variável que a Lorena trabalhou bastante como medida
efetiva para o enfrentamento da pandemia em nosso país.
Lorena - É uma área superinteressante entender como responde-
mos de modo a pensar que uma das questões que a gente queria
saber é: Como comparamos o que está se fazendo no Brasil com
o que se faz em outros lugares? Por que, por exemplo, muitas
pessoas gostam de dizer lockdown como se fosse uma questão que
existiu no Brasil? A gente precisa saber como comparar o que está
acontecendo no Brasil em relação a outros países. Qual é a equi-
valência dessa resposta quando se compara com outros casos? Só
conseguimos fazer isso, se a gente olhar primeiro para políticas que
são decretos, leis e políticas oficiais. Não pode ser o governador
dizendo em uma conferência de imprensa. Essa não é uma política.
Uma política é um ato concreto que foi formulado e tem uma for-
mulação por escrito que estipula qual vai ser a orientação. Então,
a gente foi atrás de procurar produzir indicadores quantitativos. E
por que é importante que seja quantitativo? Porque a gente quer
comparar e produzir uma avaliação. Se a gente deixasse uma coisa
muito abstrata ou muito genérica ou ainda muito pouco específica,
tornaria complicada sua avaliação. Por exemplo, afirmar que uma
política é moderada. Como ela foi moderada? Logo, a gente precisa
de uma especificidade para explicar.
A gente tem que contrastar o que aconteceu no Brasil com
outros países para entender que, em geral, essas medidas de con-
tenção e farmacológicas como a de fechar escolas e empresas, não
poder circular na rua, que você pode ser parado por um policial,
pode ser multado e que você tem que provar que você tinha uma
permissão para estar circulando. Fizemos isso de uma forma mais
coordenada no início da pandemia e aos poucos a gente entrou
numa flexibilização, que chamamos de “zigzag". Isso para a po-
pulação, acho que para todo mundo na verdade, ficou confuso.
Ou seja, não ficou muito claro os critérios nos quais a gente flexi-
bilizava e colocava as medidas mais rígidas ou menos rígidas. E
141 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

o que significava quando a gente dizia que é um momento mais


flexibilizado. Será que realmente queria dizer que as coisas esta-
vam melhorando e que os riscos estavam diminuindo? Depois, as
pessoas começaram a ver que muitas vezes a pandemia foi muito
pior em 2021, seja no número casos e óbitos. A pandemia foi pior
sim! Entretanto, as medidas de distanciamento físico são muito
mais flexíveis em 2021 que quando comparado ao ano de 2020.
Existe uma questão temporal e espacial muito importante
para entender esses indicadores e poder compará-los. Usando o
mesmo critério, por exemplo, eu consigo te mostrar porque 2020
teve um distanciamento físico mais rígido quando comparado com
2021. Foi uma questão importante documentar e procurar mostrar
esse impacto e sinalizar também para os gestores que esse zigzag
precisa ser levado em conta. Quando perguntamos “por que não
deu certo?”, nós conseguimos responder que houve muita descoor-
denação e muita volatilidade. E onde essas políticas deram certo,
foi quando havia clareza e coerência nelas permitindo detectar e
controlar o vírus por semanas. Ou seja, pouco conseguimos im-
plantar e permanecer com uma constância de poder dizer “agora
temos controle de verdade do que está acontecendo no nosso mu-
nicípio e nosso estado. Esse é o momento de flexibilizar dentro de
um cenário de controle”. Nós chegamos a isso, mas flexibilizamos
antes de chegarem a um cenário semelhante.
Ricardo - Acho muito interessante que toda vez que algum pesqui-
sador se debruça para investigar um fenômeno que está em curso,
um processo que está inconcluso de certa forma. A própria questão
que eu já vou colocar vai ao encontro dessa fala da professora Lore-
na, no sentido de pensar essas políticas públicas que ocorreram no
Brasil em termos de não coordenação desde o início da pandemia
até os dias atuais, o que nos dá uma falsa sensação de que as coisas
estão melhorando. Então, há uma dimensão política em termos do
que vem acontecendo diante desse quadro da pandemia. Por isso,
é fundamental a gente tentar, sem sombra de dúvida, pensar essas
questões de uma forma mais interdisciplinar como vem fazendo
a professora Lorena por meio da Rede de Pesquisa.
Lorena, em seus recentes estudos, você sinaliza que as po-
líticas de enfrentamento à pandemia começaram de certa forma
coordenadas entre os governos estaduais, mas que com passar do
tempo foram se tornando cada vez menos coordenadas e coesas.
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 142

Eu gostaria que você explicasse o quanto essa desorganização


e essa descoordenação afetaram não apenas o enfrentamento à
pandemia, mas como de alguma forma isso acabou por agravar
as desigualdades sociais existentes no nosso país.
Lorena – É uma ótima pergunta. Poderíamos falar disso por
horas. Primeiro, eu acho que é importante entender que esse é um
vírus que se transmite no ar, ou seja, é um vírus que quando você
fica infectado tem um período que você não percebe que está com o
vírus e que já pode estar transmitindo para outras pessoas. E, nesse
contexto, a gente precisa entender que o enfrentamento, o custo
é muito elevado e é muito ineficiente se cada um procurar a sua
própria estratégia e sua própria forma de enfrentar. Eu vou trazer
um exemplo para pensarmos sobre a vida cotidiana. Eu entrei ou-
tro dia no laboratório para fazer um exame e a funcionária estava
com uma máscara muito simples. Eu fiquei preocupada dizendo:
“você está num ambiente fechado e se expondo o dia inteiro”. E
ela me disse: “não, eu não preciso estar com uma máscara boa,
porque as máscaras boas são para quem está em contato com o
vírus”. Então, eu fiquei pensando em como é difícil essa questão.
Estamos no segundo ano de pandemia e em um laboratório que
se faz pesquisa com sangue, ou seja, que tem conhecimento sobre
a transmissão, ainda está precisando esclarecer e discutir sobre a
transmissão do vírus. Não dá para saber, oras! Não é uma questão
que só olhando a cara da pessoa você vai saber quem está trans-
mitindo o vírus ou não está.
Agora, vamos levar essa questão para o âmbito do municí-
pio e do estado. O problema que a gente tem cada vez mais na
pandemia é que se está descentralizando a resposta. Cada lugar
está inventando sua própria estratégia e a sua própria receita de
enfrentamento. Isso é muito ineficiente porque existe conhecimento
científico e a gente ganha quando há conhecimento coletivo. Quan-
do a gente olha, por exemplo, a vacinação agora neste momento.
Cada município está fazendo uma diferente estratégia sobre o
reforço: “Afinal, qual dose de qual vacina se pode estar fazendo
reforço? Com qual vacina?” Essa questão descoordenada não nos
ajuda. Isso está nos prejudicando.
Da mesma forma, na parte de muitas áreas do enfrentamento
da pandemia, a gente precisa entender que essa descentralização
também acontece devido à tamanha autonomia que possui o gestor
143 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

local. O problema da autonomia é que muitos municípios na rea-


lidade brasileira não contam com uma equipe especializada, que
entende sobre ventilação, quais são as normas de CO2, de medição
de ar e especificidades como essas. Somos cientistas políticos e a
gente estuda como o gestor responde à sociedade, mas também o
que ele gostaria de ganhar eleitoralmente e ser reeleito. Portanto,
qual é o problema da autonomia? A gente tem que lembrar que ti-
vemos as eleições municipais no fim do ano de 2020, antes da piora
da pandemia. Foi um período em que os municípios começaram a
flexibilizar no período das eleições porque quem estava concorrendo
não queria ser o cara chato de fechar tudo, impor um maior rigor
e acabou com essas flexibilizações de outubro e novembro. Nós
sabemos que por isso começamos a piorar muito em dezembro
e janeiro. A piora que tivemos foi muito explicada por essa flexi-
bilização desenfreada que houve no final do segundo semestre.
Neste momento, estão começando as campanhas presidenciais
e em alinhamento, as campanhas dos governadores. Novamente,
nós teremos governadores que irão rapidamente flexibilizar o uso
da máscara primeiro em meu estado seja para pautar na mídia.
Aliás, essa é uma medida muito importante que a Europa inteira
e os Estados Unidos precisavam voltar atrás e considerar essa me-
dida que custa pouco e salva muita gente. Mas nós estamos neste
momento vendo esse problema porque muitas das medidas estão
ficando a cargo do gestor local, podendo flexibilizar sem critérios
científicos ou os que dizem que usaram critérios científicos, só que
não consideram os diferentes critérios usados para poder justificar
em um estado, pode ter efeito contrário para a mesma medida
aplicada em cada município. Então, isso não está nos ajudando.
Acho também que a gente está ciente disso. Existem alguns pac-
tos que a gente viu no início da pandemia entre os governadores.
Vários governadores assinaram em uma carta ao governo federal.
Agora, a gente precisa dessas mesmas cartas. Algo como: “Eu
me comprometo a seguir a ciência e não os votos”. Nós precisamos
de um pacto para estabelecer algumas políticas, pois as políticas
públicas defendem os mais vulneráveis. É isso que sempre temos
que lembrar: a política pública tem que ser para quem não tem
voz, que é mais vulnerável. Essa política pública não é para a
pessoa que tem os meios para se proteger. Essa política pública
é para a pessoa que não tem os meios e que está exposta. Qual
é a melhor política pública para proteger essa pessoa? E se essa
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 144

política pública é clara e está em todo o estado, é muito mais fácil


todo mundo caminhar juntos. Agora, quando cada um está fazendo
seu pacote de medida de enfrentamento, fica muito confuso e fica
uma questão eleitoral que gera mais polarização para as pessoas.
Fato é que as pessoas estão confusas porque no Rio de Janeiro
pode tirar a máscara, mas em outros lugares não pode. A França
voltou a colocar máscaras obrigatórias esta semana; e a gente está
tirando. Essa é uma questão muita confusa para a população. Tem
algumas questões que a gente já sabe. Afinal, são dois anos de estu-
dos apontando que as decisões políticas funcionam, mas precisam
ser pactuadas e coordenadas. Máscaras são um exemplo bom.
A gente tem uma lei federal desde julho de 2020 referente ao
uso de máscaras de proteção, mas os municípios estão alterando
e liberando. A gente precisa entrar nesse debate porque se a gen-
te não entende esse incentivo para coordenar, a gente continua
nesse círculo que a gente chama de zigzag. Só quando ficarmos
muito graves de novo e diante um próximo tsunami que a gente
começará a refletir e ter uma pressão suficiente para reagir. Só
que cada vez que esse movimento acontece com as políticas na
pandemia: começam fortes, ficam moderadas e vão se enfraque-
cendo, sejam as políticas de distanciamento, sejam as políticas de
auxílio à população mais vulnerável. Essa é a história de todas as
pandemias. Quem continua sofrendo por mais tempo, de forma
muito mais grave uma pandemia é a população mais vulnerável.
Esse é o momento chave para a gente reagir e estar em alerta, caso
contrário as desigualdades que já existiam irão cada vez se agravar
por essa desproteção dos mais vulneráveis.
Ricardo - Nós sabemos que desde o início da pandemia vem
ocorrendo uma série de pesquisas e publicações acadêmicas que
de alguma forma realçam cada vez mais o papel da ciência, a
importância da universidade, inclusive, a própria importância
do SUS e da área de saúde, mas essa ressignificação da universi-
dade, da pesquisa, da ciência encontraram por outro lado, uma
certa resistência no que diz respeito, à prevalência em termos de
Brasil de um discurso anticientífico e negacionista ao extremo que
muitas vezes nos obriga a ter que falar o óbvio. Nesse sentido, há
uma série de publicações da área de saúde se debruçando sobre
a questão da pandemia. Qual seria de fato, a contribuição da área
de Ciências Sociais no estudo dessa temática?
145 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

Lorena - Eu acho que a as Ciências Sociais são fundamentais para


este momento. Nós estamos vendo, estamos vivendo isso, os asses-
sores da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) são alunos de
Ciências Sociais que foram lá, se formaram e hoje se mobilizaram.
Muitos dos assessores nos comitês de crises são alunos das Ciências
Sociais que entendem sobre muitas questões. O fato é que a gente
precisa reconhecer o papel em todas as áreas das respostas à pan-
demia e o quanto estamos presentes. Precisamos olhar para cada
área e perceber que por trás há uma comunidade muito grande
de cientistas sociais engajados e trabalhando no enfrentamento.
Acho que essa é uma questão que a gente tem falado na
Rede. Nós somos parte da linha de frente e temos que nos posi-
cionar e se engajar dessa forma. Somos parte da linha de frente
e podemos ajudar em algumas questões que a área médica ou a
área científica a partir de outros olhares, não tem simplesmente
o conhecimento que a gente aborda. Por exemplo, essa questão
de como ocorre a disputa política e como ela é importante para
entender a resposta à pandemia. Se fosse só uma questão técnica
de como você controla a pandemia, você poderia desenhar uma
resposta sem levar em conta as condições sociais e políticas, mas
não é e nós temos uma sensibilidade para fazer isso. Eu acho que o
que nos ajuda a trazer um olhar crítico de questionar muitas vezes
uma solução técnica e dizer que isso não vai funcionar da forma
que vocês estão defendendo e da maneira que vocês imaginam
que vai funcionar. Porque as minhas crenças e os meus valores
como eleitor e como cidadão são fundamentais para saber se essa
política ou esse programa vai dar certo.
No primeiro ano da pandemia, nós tivemos um debate enor-
me sobre salvar a economia ou salvar a saúde. Este ano, a gente
está tendo um debate importante agora de que as escolas têm que
voltar obrigatoriamente porque temos que salvar a educação. En-
tão, veja como mudou o debate. No ano passado, o debate era sobre
economia e saúde; este ano, a gente está dizendo, como já voltou a
economia, agora vamos pautar um debate politizador na educação
e na saúde. Nós sabemos que são falsos debates motivados por uma
questão política, porque somos cientistas que enxergamos a política
e entendemos os conflitos e como eles são mediados e articulados
dentro do momento importante como este. Então, acho que a gente
tem que pensar um pouco. Nosso papel como cientistas sociais é
trazer e ajudar a esclarecer a importância da política, a importância
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 146

do contexto social e de que nós pensarmos muitas vezes o porquê


de algo não dar certo, porque algo está sendo observado, e tem
claramente um determinante político.
Nós temos um olhar diferenciado para identificar isso, só
que isso não é suficiente. A gente precisa ter ferramentas e estudar
muito, porque a política é um campo muito complexo e muito
difícil. E você como cientista social tem um desafio maior que
outras áreas, pois temos que apresentar dados com o maior rigor
e com maior cuidado para ganhar conhecimento e compreensão
da sociedade para entender por que alguma questão está sendo
motivada pela política e não por uma questão técnica. Só para dar
um exemplo, estamos fazendo um monitoramento no Twitter dos
pronunciamentos que existem sobre cada vacina, por tipo de va-
cina, considerando a Coronavac, Astrazeneca e Pfizer. Mapeamos
os eventos adversos, os ensaios clínicos, os grandes eventos que
ocorreram sobre as vacinas, os discursos do presidente e de atores
chaves na política brasileira sobre vacinas. E quantitativamente, a
gente está conseguindo mostrar que o grande debate que circula
nas redes sociais sobre as vacinas é que elas causam AIDS. Na
semana passada era que nos transformaríamos em jacarés. Tudo
isso tem um determinante político e não técnico. Não são eventos
sobre os ensaios e artigos científicos sobre essas vacinas que estão
produzindo. Essa movimentação nas redes sociais são ataques
coordenados politicamente motivados. Em termos gerais, eu pre-
ciso dizer isso de uma forma rigorosa, quantitativa, com muito
cuidado de mensuração e mostrar como um modelo econométrico,
para assim provocar visibilidade de teste e verificação nas pessoas.
Eu acho que a gente tem que estar preparado. Hoje, mudou a
tarefa dos cientistas sociais do mundo todo. Mudou a nossa lição de
casa porque a sofisticação do debate neste momento está nos obrigan-
do a aprimorarmos também enquanto pesquisadores, sermos ainda
mais competitivos e podermos discutir com economistas, discutir com
epidemiólogos e questioná-los com nossos dados e nossos estudos.
Isso é importante! De fato, nós fazemos parte da linha de frente, mas
para estarmos nessa linha de frente temos que estar engajados em
aprimorar quem somos, o que estudamos e como estudamos.
Ricardo: Eu agradeço mais uma vez a intervenção e a fala mais
que necessária da professora Lorena. Eu acredito que esse debate
é bem-vindo e necessário atualmente.  
147 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

Lorena: Agradeço muito. Adorei a conversa e espero ter ajudado.


Nosso trabalho ainda não acabou e precisamos muito de vocês.
Precisamos muito de vocês engajados e nos ajudando. A ciência é
coletiva e vamos fazer isso juntos. É uma conversa que não acaba.
Mariele: Eu também queria agradecer. É um privilégio meu ter
sido sua aluna e agora te ouvindo é sempre um aprendizado. Eu
acho que o recado foi dado em nome da ciência e me sinto engajada
com essa urgência de olhar para esses dados, para esse contexto e
para essa realidade. Muito obrigada, Lorena!
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 148

Referências Bibliográficas:

BARBERIA, Lorena Guadalupe. Rede de Pesquisa Solidária em


Políticas Públicas e Sociedade. Disponível em https://redepesquisa-
solidaria.org/. Acesso em 12 jan. 2022.
BRASIL, Lei n. 14.019 de 2 de julho de 2020. Dispõe sobre o uso de más-
cara de proteção individual. Disponível em https://www.in.gov.
br/en/web/dou/-/lei-n-14.019-de-2-de-julho-de-2020-276227423.
Acesso em 12 jan. 2022.  
ZAMBELLO, Aline Vanessa. ENTRE A POLITICSE A POLICY:
A IMPLEMENTAÇÃO DA POLÍTICA EXPANSIONISTA NAS
UNIVERSIDADES FEDERAIS (2003-2012). Ciência Política, Tese,
Departamento de Ciência Política, Universidade Estadual de
Campinas, 2021.
Lista de autores/as

Aline Vanessa Zambello é doutora em Ciência Política pela Uni-


versidade Estadual de Campinas (Unicamp), Mestra em Ciência
Política pela Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) e Ba-
charela em Ciências Sociais pela UFSCar. É integrante do Grupo
de Pesquisa "Ideias, Intelectuais e Instituições".
http://lattes.cnpq.br/0499847686134397

Bárbara Breder Machado é docente do Departamento de Psico-


logia da Universidade Federal Fluminense (UFF/ Campos dos
Goytacazes) onde coordena o Laboratório de Psicanálise, Política,
Cultura e Estudos de Gênero. Psicóloga formada pela UFF, Mestra
e Doutora em Ciência Política pela mesma instituição.
http://lattes.cnpq.br/6132106075115936

Carlos Henrique Aguiar Serra é docente no Departamento de


Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde
coordena o Núcleo de Estudos das Violências do Direito (NUVID).
Possui graduação em Ciências Políticas e Sociais pela Pontifícia Uni-
versidade Católica do Rio de Janeiro, mestrado em Ciências Políticas
e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
e doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense.
http://lattes.cnpq.br/2288728426904473

Dalton Rodrigues Franco é docente de Ciência Política da Uni-


versidade Estácio de Sá (UNESA), onde também coordenou o
Laboratório John Rawls. Possui graduação em Ciências Econômicas
pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, mestrado e dou-
torado em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense.
http://lattes.cnpq.br/1457561109557662
Diálogos em tempos de pandemia - Debates e Agendas em Ciências Sociais 150

Flávia Mendes Ferreira – é Professora de Sociologia da Se-


cretaria de Estado da Educação do Rio de Janeiro. Graduada
em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Norte Flu-
minense (UENF), Mestra e Doutora em Ciência Política pela
Universidade Federal Fluminense (UFF).
http://lattes.cnpq.br/5931971441443946

Lorena Guadalupe Barberia é professora livre-docente do De-


partamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo,
pesquisadora principal do Núcleo de Estudos Comparados e
Internacionais (NECI) da Universidade de São Paulo e pesqui-
sadora principal do Centro de Estudos em Política e Economia
do Setor Público (CEPESP) da Fundação Getúlio Vargas-São
Paulo. Ela é doutora pela Fundação Getúlio Vargas-EAESP em
Administração Pública e Governo, mestra em Políticas Públi-
cas pela John F. Kennedy School of Government da Harvard
University e concluiu sua graduação em economia e espanhol
pela University of California, Berkeley.
http://lattes.cnpq.br/1819969410137713

Maria do Socorro Sousa Braga é professora associada do De-


partamento de Ciência Política da Universidade Federal de
São Carlos e coordenadora do Núcleo de Estudo dos Partidos
Políticos Latino-Americanos (NEPPLA). Possui graduação
em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense
(1992), mestrado (1997), doutorado (2003) e Pós-doutorado
(2005) em Ciência Política pela Universidade de São Paulo.
Foi pesquisadora visitante do Centro Latino-Americano (LAC)
da Universidade de Oxford (2009), com bolsa Fellowship da
Academia Britânica.
http://lattes.cnpq.br/2311094074614215

Mariele Troiano é docente no Departamento de Ciências


Sociais da Universidade Federal Fluminense (Campos dos
Goytacazes) e pesquisadora associada do Centro de Estudos
de Cultura Contemporânea (CEDEC). É graduada em Ciências
Sociais, mestra e doutora em Ciência Política pela Universidade
151 Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira

Federal de São Carlos) com estágio docência na University of


Hull (Inglaterra).
http://lattes.cnpq.br/3227437575714593

Maurício Mello Vieira Martins é professor associado da Universi-


dade Federal Fluminense e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar
de Estudos e Pesquisas sobre Marxismo (Niep-Marx). Possui
graduação em Sociologia pela Puc-Rio (1982), Mestrado (1988) e
Doutorado em Filosofia (1997) pela mesma instituição.
http://lattes.cnpq.br/3278647084073010

Rafael Gonçalves Gumiero é professor adjunto do curso de


graduação em Ciências Econômicas do Instituto de Estudos em
Desenvolvimento Agrário e Regional (IEDAR), da Universidade
Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA). Coordenador e
professor do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e
Desenvolvimento Regional e Urbano na Amazônia (PPGPAM),
da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA).
Possui bacharel e licenciatura em Ciências Sociais (2006-2007)
pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
- UNESP - Campus de Marília. Possui mestrado em Ciência Po-
lítica pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Possui
doutorado em Ciência Política pela Universidade Federal de São
Carlos (UFSCar). Possui Pós-Doutorado em Sociologia pelo Pro-
grama de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal
da Grande Dourados (UFGD).
http://lattes.cnpq.br/3606249612497573

Ricardo Bruno da Silva Ferreira é docente do Departamento


de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF/
Campos dos Goytacazes). Possui o Bacharelado e a Licenciatura
em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF),
mestrado e doutorado em Ciência Política pela mesma instituição.
É Coordenador do Projeto de Extensão Diálogos do Fim do Mundo.
http://lattes.cnpq.br/9199448333883628
“Já pensaram em reunir todo esse conteúdo em um
livro?” Foi com essa pergunta que surgiu a proposta de
organizar a coletânea Diálogos em Tempos de Pande-
mia. Mariele Troiano e Ricardo Bruno da Silva Ferreira
organizaram os roteiros de oito entrevistas sobre gran-
des temas que permeiam a área de Ciências Sociais,
convidaram pesquisadores e professores e, em tom de
bate papo, esmiuçaram temas pertinentes para refletir o
momento presente de desgaste institucional, ao mesmo
tempo que reuniram material de discussão para tempos
futuros, visando a retomada de um projeto de desen-
volvimento democrático. O produto foi surpreendente
não só quantitativamente em relação à acessibilidade
do material coletado e visualizações das gravações,
como também qualitativamente por compartilharem as
agendas de pesquisas dos autores convidados. Para
essa coletânea, os textos ganharam um formato especial
a partir das transcrições e mantiveram o objetivo inicial
de levar o debate sobre temas, conceitos e autores
para além dos muros da universidade pública. Diálogos
é um convite para a comunicação científica acessível,
ISBN 978-65-5412-241-2

permanente e necessária para os dias atuais.

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