Você está na página 1de 18

AS DITADURAS

ARGENTINA
E BRASILEIRA
EM AÇÃO
Violência repressiva
e busca de consentimento
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
REITORA Sandra Regina Goulart Almeida
VICE-REITOR Alessandro Fernandes Moreira

EDITORA UFMG
DIRETOR Flavio de Lemos Carsalade
VICE-DIRETORA Camila Figueiredo

CONSELHO EDITORIAL
Flavio de Lemos Carsalade (PRESIDENTE)
Ana Carina Utsch Terra
Angelo Tadeu Caetano
Camila Figueiredo
Carla Viana Coscarelli
Élder Antônio Sousa e Paiva
Emília Mendes Lopes
Ênio Roberto Pietra Pedroso
Henrique César Pereira Figueiredo
Kátia Cecília de Souza Figueiredo
Lívia Maria Fraga Vieira
Luciana Monteiro de Castro Silva Dutra
Luiz Alex Silva Saraiva
Marco Antônio Sousa Alves
Raquel Conceição Ferreira
Renato Assis Fernandes
Ricardo Hiroshi Caldeira Takahashi
Rita de Cássia Lucena Velloso
Rodrigo Patto Sá Motta
Weber Soares
Daniel Lvovich
Rodrigo Patto Sá Motta
Organizadores

AS DITADURAS
ARGENTINA
E BRASILEIRA
EM AÇÃO
Violência repressiva
e busca de consentimento
© 2023, Os organizadores
© 2023, Editora UFMG

Este livro, ou parte dele, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita do Editor.

D615 As ditaduras argentina e brasileira em ação : violência repressiva e busca do consentimento /


Daniel Lvovich, Rodrigo Patto Sá Motta (organizadores). – Belo Horizonte : Editora UFMG,
Los Polvorines : Ediciones UNGS, 2023.

331 p. : il. – (América Latina : Histórias Conectadas).

ISBN: 978-65-5858-097-3 (Editora UFMG)


ISBN: 978-987-630-680-5 (Ediciones UNGS)

1. América do Sul. – História. 2. Argentina – História. 3. Brasil – História. 4. Ditadura e


ditadores. 5. Governo militar – América do Sul. I. Lvovich, Daniel. II. Motta, Rodrigo Patto Sá.
III. Série.

CDD: 321.98
CDU: 321.64(8=6)

Elaborada por Vilma Carvalho de Souza – Bibliotecária – CRB-6/1390

COORDENAÇÃO EDITORIAL Michel Gannam


DIREITOS AUTORAIS Anne Caroline Silva
ASSISTÊNCIA EDITORIAL Eliane Sousa
COORDENAÇÃO DE TEXTOS Clarissa da Cunha Vieira
PREPARAÇÃO DE TEXTOS Olívia Almeida
COORDENAÇÃO GRÁFICA Fernando Freitas
PROJETO GRÁFICO Fernando Freitas
FORMATAÇÃO E MONTAGEM DE CAPA Ederson Ciriaco
PRODUÇÃO GRÁFICA Warren Marilac

EDITORA UFMG
Av. Antônio Carlos, 6.627 – CAD II / Bloco III
Campus Pampulha – 31270-901 – Belo Horizonte/MG
Tel: + 55 31 3409-4650 – www.editoraufmg.com.br – editora@ufmg.br

EDICIONES UNGS
Universidad Nacional de General Sarmiento
J. M. Gutiérrez 1150, Los Polvorines (B1613GSX)
Prov. De Buenos Aires, Argentina
Tel.: +54 11 4469-7507 – ediciones@campus.ungs.edu.ar – ediciones.ungs.edu.ar
SUMÁRIO
Apresentação7

1. Estado e governo nas ditaduras brasileira (1964)


e argentina (1976) 19
Paula Canelo
Rodrigo Patto Sá Motta

2. Os planos econômicos e seu impacto 49


Karina Forcinito
Pedro Henrique Pedreira Campos

3. Ações repressivas e violência estatal  79


Gabriela Águila
Mariana Joffily

4. Ditadura e o mundo do trabalho 111


Carolina Dellamore
Daniel Dicosimo

5. Políticas sociais e trabalhistas durante


as ditaduras dos anos 1960  147
Heliene Nagasava
María Florencia Osuna
6.
Política habitacional e reformas urbanas em Buenos Aires
e no Rio de Janeiro (1964-1973) 171
Gabriela Gomes
Samuel Silva Rodrigues de Oliveira

7. Propaganda e ação psicológica 201


Daniel Lvovich
Janaína Martins Cordeiro

8. O campo cultural: políticas culturais,


censura e resistências  229
Federico Iglesias
Miriam Hermeto

9. A(s) juventude(s) como questão 263


Gabriel Amato
Laura Luciani

10. A violência física e simbólica


na educação básica argentina e brasileira 295
Alexandre Felipe Fiuza
Ana Karine Braggio
Gisela Fabiana Andrade

Sobre os autores 327


Apresentação
Para além de múltiplas diferenças e especificidades, as histórias da Argen-
tina e do Brasil se mostram intimamente conectadas. Essa afirmação, que
recentemente passou a fazer parte do senso comum de historiadores e ou-
tros cientistas sociais, merece ser desdobrada em uma análise mais atenta
que seja capaz de dar conta de sua complexidade.
É claro que ambos os países sofreram processos similares de alcance
mundial ou continental – desde a ruptura da ordem colonial prévia à sua
própria constituição estatal e nacional, às crises econômicas de 1890 e 1930,
às ondas de protestos sociais de fins da década de 1910, às rupturas insti-
tucionais dos anos 1930 ou às reformas neoliberais das últimas décadas
do século XX – que se desenrolaram de acordo com condições específicas
geradas em cada história nacional.
Igualmente importantes são aquelas dimensões em que as histórias de
ambos países se conectaram de maneira estreita, por exemplo, na circulação
de fluxos comerciais – como no fornecimento de charque buenairense aos
mercados brasileiros, o que teve impacto relevante na eclosão da Guerra dos
Farrapos, ou no fornecimento de erva-mate dos estados do Paraná e Mato
Grosso para a região do Rio da Prata –, de ideias e produtos culturais de
diferentes orientações políticas – direita e esquerda – e de pessoas – como
no caso dos exilados argentinos e brasileiros que encontraram abrigo no
país vizinho nos contextos ditatoriais dos anos de 1940 e 1960-1980. Outro
aspecto importante dessas relações foi a competição histórica entre os dois
países pela posição de maior potência da América do Sul, desde as disputas
em torno do acesso à região platina e do controle sobre as províncias orien-
tais (1820-1830) até as tensões ligadas aos projetos de construção de grandes
hidrelétricas no rio Paraná (Itaipu, Yacyretá e Corpus) nos anos 1970-1980,
o que levou a uma vigilância mútua das respectivas forças militares. Isso
para não falar da tradicional rivalidade futebolística, que simbolicamente
tem importância na cultura de ambos os países.
Certamente, as histórias de Brasil e Argentina se entrelaçaram também
de maneira cooperativa quando os estados se dispuseram a realizar alguns
empreendimentos comuns, tal como nos casos de suas sangrentas partici-
pações na Guerra do Paraguai ou da colaboração entre os respectivos apa-
relhos policial-militares na vigilância e repressão de ativistas de esquerda,
especialmente no caso do Plano Condor. Felizmente, e graças aos processos
de democratização pós-ditaduras, em tempos recentes, Brasil e Argentina
empreenderam o caminho da integração pacífica, investindo nos campos
econômico e político, a partir dos acordos do Mercosul. Para além dos as-
pectos políticos e econômicos, abriu-se um espaço de maior cooperação
e integração mútua também no campo da cultura e do conhecimento. A
propósito, este livro e a coleção de que faz parte são também produtos da-
queles impulsos de colaboração entre ambas as nações e das oportunidades
de intercâmbio acadêmico que foram abertas a partir de então.
Reflexões acadêmicas que abarcam os dois países se desenvolveram em
período relativamente recente, sobretudo em uma chave comparativa que
permite iluminar os traços comuns e as peculiaridades de cada caso. Estu-
dos como os de Boris Fausto e Fernando Devoto, Kathryn Sikkink, José Luis
Bendicho Beired, Alejandro Groppo, Maria Helena Rolim Capelato, dentre
outros mostram o aumento do interesse por análises comparativas no fim
do século XX e na primeira década do século XXI.1 A proposta desta coletâ-
nea é contribuir para essa linha de pesquisa, oferecendo estudos que fazem
comparações e conexões, tendo como objeto central as ditaduras recentes.
A história comparada supõe um enfoque capaz de desprovincianizar
as abordagens tradicionais e de colocar à prova pressupostos que podem
parecer evidentes. Não se trata de uma corrente historiográfica, mas de
uma abordagem que, nas palavras clássicas de Marc Bloch, busca “eleger,
em um ou mais meios sociais diferentes, dois ou mais fenômenos que à
primeira vista parecem apresentar certas analogias entre si, descrever suas
curvas evolutivas, constatar as similitudes e as diferenças e explicá-las na
medida do possível”.2 Estabelecer quais os traços comuns e os peculiares
resulta, assim, em condição necessária para a operação explicativa, o que,

8 Daniel Lvovich | Rodrigo Patto Sá Motta (orgs.)


ao nosso ver, implica também analisar e interpretar. Para que, em história,
exista explicação, deve haver certa homologia entre os fenômenos selecio-
nados, assim como devem ser percebidas diferenças que deem sentido à (e
que são ao mesmo tempo o objetivo da) operação. Além disso, os enfoques
comparativos expandem os horizontes do conhecimento e aproximam os
métodos da história aos das outras ciências sociais.
No período recente, às metodologias comparativas se somaram os en-
foques que transcendem os antigos limites e fronteiras, propondo estudar
conexões, circulações e fenômenos transnacionais. Os pioneiros da história
transnacional e da história conectada consideraram – e é compreensível que
assim tenham feito, dadas as perspectivas em que baseavam suas análises
e os objetos de estudo em que concentravam sua atenção – a história com-
parada como uma perspectiva eurocêntrica destinada a ser superada.3 No
entanto, concordamos com Maria Ligia Coelho Prado que sustentou ser o
enfoque comparativo muito frutífero para a análise de nossas sociedades,
já que
com o rigor e os procedimentos metodológicos próprios do ofício de his-
toriador, buscar a “unidade do problema” em duas ou mais sociedades
latino-americanas, rompendo as barreiras nacionais, pode ser uma efetiva con-
tribuição à compreensão de temas históricos centrais para ditas sociedades.4

Para isso, é fundamental não estabelecer hierarquias apoiadas em juízos


de valor prévios. “As comparações, quando se liberam do eurocentrismo e
das generalizações, se transformam em instrumentos muito interessantes
para compreender assuntos aceitos como ‘naturais’ por uma determinada
historiografia nacional.”5
Entretanto, nada impede combinar essas perspectivas com os elemen-
tos próprios da história conectada, por exemplo, levar em consideração
que existem mediadores entre os espaços considerados; buscar pontos de
contato reais, e não simplesmente formais entre duas sociedades distintas;
criticar a ideia que existe um só centro de poder ou de saber. Indepen-
dentemente do enfoque metodológico, a vantagem dos olhares sensíveis
às conexões e comparações amplia as possibilidades de conhecimento e de
diálogo transnacional, sugerindo novas linhas de investigação e novas hipó-
teses para a explicação/compreensão das realidades sociais.
Para este livro, convidamos pares de autores de cada país para escrever
os capítulos “a quatro mãos” – apenas no caso do último capítulo o texto foi
escrito por dois brasileiros e uma argentina –, um audacioso experimento

As ditaduras argentina e brasileira em ação 9


acadêmico que implicou desafios de natureza ao mesmo tempo historio-
gráfica, intelectual e cultural. A ideia era que colocassem em contraste a
própria história com a do país vizinho, na expectativa de produzir análises
sobre aspectos pouco percebidos até então e uma compreensão mais ampla
sobre as experiências ditatoriais na nossa região, para além das fronteiras
nacionais. Com isso, nossa intenção é gerar novas perspectivas de conhe-
cimento e instigar a realização de pesquisas inovadoras sobre a temática,
indicando caminhos de trabalho para jovens investigadores.
Os autores tiveram a liberdade de escolher o método de análise que
consideraram mais adequado a seu objeto. A única exigência foi que não
se contentassem com uma mera justaposição dos dois casos, mas que efe-
tivamente empreendessem análises comparativas/conectadas. Tratou-se
de trabalho muito complexo, pois tiveram de abarcar as histórias dos dois
países, o que exigiu o domínio de diversos níveis de conhecimento e de
diferentes enfoques para embasar as análises. Outra dificuldade é que no
período abarcado pela ditadura brasileira sucederam-se duas ditaduras na
Argentina: a autodenominada Revolução Argentina (1966-1973) e o cha-
mado Processo de Reorganização Nacional (1976-1983). Embora existam
pontos comuns entre essas duas experiências ditatoriais argentinas, muitos
traços as diferenciam, entre eles, a escala repressiva muito maior da segunda
e o contraste entre o formato institucional da ditadura de 1966 – em que
as Forças Armadas apoiaram o golpe e o regime, mas não o integraram
formalmente – e a ditadura de 1976 – em que uma Junta Militar assumiu o
poder. Além disso, no primeiro caso (1966), buscou-se promover uma po-
lítica econômica desenvolvimentista impulsionada por uma aliança tecno-
-burocrática-militar – similar, nesse ponto, à ditadura instaurada no Brasil
em 1964 –, enquanto, no segundo caso (1976), o regime econômico res-
pondeu a orientações liberal-neoconservadoras. Em cada texto, os autores
decidiram se abordariam o primeiro caso, o segundo, ou ambos.
Este livro é fruto de uma parceria de trabalho entre docentes da área de
história da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universi-
dad Nacional de General Sarmiento (UNGS) iniciada cerca de 10 anos atrás,
que envolveu participação e organização de eventos, intercâmbio de docen-
tes e discentes, e publicações comuns. Com o tempo, a rede que criamos
alcançou também colegas de outras instituições acadêmicas, o que se refle-
tiu no perfil dos coautores deste livro. A partir desses contatos acadêmicos
surgiu a ideia de organizar uma série de livros (América Latina: Histórias
Conectadas) coeditada por nossas editoras universitárias, sendo este o seu

10 Daniel Lvovich | Rodrigo Patto Sá Motta (orgs.)


primeiro produto. Outros livros estão em planejamento e esperamos que
logo sejam publicados também.
A série é inaugurada com este estudo coletivo sobre as ditaduras mais
recentes da nossa história, que ocuparam o poder entre os anos de 1960 e
1980 sob forte (mas não exclusivo) protagonismo dos militares. A escolha
não é casual, pois, de fato, o fenômeno autoritário tem sido uma verdadeira
constante histórica, que nossas sociedades têm lutado para superar. Não é
sem razão, portanto, que uma crescente produção acadêmica venha se de-
dicando ao tema das ditaduras na América Latina, à qual oferecemos esta
contribuição que se singulariza por abordar simultaneamente dois casos
marcantes.
Devido à intenção de avançar nas reflexões sobre o impacto e a natu-
reza desses fenômenos autoritários, decidimos colocar em foco as políticas
implantadas pelas ditaduras. Essa abordagem nos permite considerar uma
gama de aspectos fundamentais para compreendê-las, tanto as estratégias
para alcançar legitimidade e consentimento como também as ações voltadas
à contenção ou eliminação dos inimigos. A ideia é enfocar as políticas em-
preendidas pelos respectivos Estados para atender aos objetivos e interesses
dos grupos ocupantes do poder, desde as ações mais repressivas e violentas
contra os inimigos (reais e imaginários), passando por programas econômi-
cos, até as políticas sociais e culturais planejadas para conquistar apoio de
alguns setores sociais. Tal enfoque nos permite perceber os grupos sociais
beneficiados pelos estados ditatoriais (portanto, potencialmente mais dis-
postos a apoiá-los), os alvos privilegiados pelas ações repressivas, as estraté-
gias visando construir e estabilizar a institucionalidade política autoritária,
as ações sociais e culturais para atender às demandas e divulgar valores
caros ao regime político, e as estratégias de publicidade e comunicação.
Estamos cientes da necessidade de estudar também as apropriações
e reações a tais políticas estatais, o que alguns capítulos chegaram a tocar,
mas, devido aos limites físicos do livro, seria difícil abordar esses aspectos
de maneira sistemática. Por isso, pretendemos organizar outro volume de-
dicado às reações sociais e às ações de resistência. Assim, neste volume, a
ideia é enfocar as ações estatais, tendo em vista compreender as estratégias
de manter o poder político baseadas tanto na repressão quanto na busca de
consentimento social. Em síntese, preocupa-nos entender por que alguns
grupos sociais apoiaram ativamente ou ao menos deram consentimento às
ditaduras. Um esforço analítico importante para a interpretação da histó-
ria, mas que pode ser relevante para o presente e o futuro. Partindo desse

As ditaduras argentina e brasileira em ação 11


desenho conceitual, fizemos os convites para os autores do livro, que cola-
boraram conosco neste empreendimento a um só tempo narrativo, analítico
e interpretativo.
Este livro está organizado em 10 capítulos, dedicados a analisar e com-
parar distintas políticas e formas de intervenção pública das ditaduras da
Argentina e do Brasil.
No primeiro capítulo, Paula Canelo e Rodrigo Patto Sá Motta estuda-
ram as estratégias de governo e as reformas autoritárias implantadas pe-
las ditaduras nas respectivas estruturas estatais. Os argentinos adotaram
caminhos mais radicais, ou mais refundadores, com a suspensão total de
casas parlamentares e partidos, e uma militarização mais intensa do go-
verno. No Brasil, a intervenção foi igualmente autoritária e sob comando
militar, com os generais controlando o processo decisório durante os 20
anos seguintes. Porém, houve maior acomodação com as lideranças civis,
que tiveram grande participação no processo golpista e no governo, resul-
tando em um regime ditatorial mais tolerante com as instituições políticas
liberais, especialmente casas parlamentares, partidos e poder judiciário,
ainda que submetidas ao poder militar e sofrendo constantes intervenções
e expurgos. Não obstante sua maior flexibilidade política, a ditadura bra-
sileira aumentou a centralização de poder e de recursos na esfera federal.
No caso da Argentina, ao contrário, houve iniciativas para descentralizar a
administração (municipalização) e instituir políticas que tornavam o Estado
central um agente subsidiário em várias matérias, o que significava reduzir
o raio de ação pública em benefício de instituições comunitárias e privadas.
Em seu capítulo sobre os planos econômicos e seus impactos, Karina
Forcinito e Pedro Henrique Pedreira Campos analisam os divergentes cami-
nhos seguidos pelas políticas econômicas dos regimes ditatoriais do Brasil
e da Argentina, muito embora eles tenham compartilhado a natureza auto-
ritária das medidas tomadas, o perfil concentrador de renda e a ampliação
da dependência no que diz respeito aos centros de poder econômico inter-
nacionais. Enquanto no Brasil o regime ditatorial reforçou um padrão de
acumulação centrado no desenvolvimento industrial, mediante a expansão
da estrutura produtiva com ênfase na indústria pesada, energia, construção
e transportes, na Argentina se iniciou um processo de desindustrialização,
com reprimarização da economia e redução do mercado interno.
No capítulo dedicado a analisar as práticas repressivas e a violência es-
tatal na Argentina e no Brasil, Gabriela Águila e Mariana Joffily tratam dos
contextos prévios aos golpes de estado, buscando elementos que permitam

12 Daniel Lvovich | Rodrigo Patto Sá Motta (orgs.)


explicar as características da violência estatal. As autoras estudam também
os processos de formação dos organismos e dispositivos repressivos, as ca-
racterísticas dos repressores e o perfil das vítimas em perspectiva compa-
rada, assim como a presença de conexões ou articulações entre as ditaduras,
que envolvem a formação de redes repressivas e a circulação de ideias e
práticas repressivas comuns. Finalmente, o capítulo analisa os diferentes
impactos da violência estatal na memória coletiva do Brasil e da Argentina.
O capítulo de Carolina Dellamore e Daniel Dicosimo é dedicado ao
impacto das ditaduras sobre os trabalhadores e o mundo do trabalho. Nesse
setor, as políticas estatais passaram, sobretudo, pela repressão violenta, pois
os trabalhadores eram um dos alvos principais das ditaduras marcadamente
antiesquerdistas e antioperárias, que necessitavam controlar o movimento
sindical para o sucesso de planos econômicos concentradores de renda em
benefício das empresas e de seus proprietários. Além disso, foram adotadas
medidas para debilitar a capacidade de resistência dos trabalhadores, como
a Lei de Greve no Brasil e a Lei de Associações Profissionais na Argentina.
Porém, as ditaduras tomaram algumas iniciativas para suavizar sua relação
com o mundo do trabalho e mostrar uma imagem menos violenta, particu-
larmente no caso brasileiro, em que o Estado ampliou financiamentos para
equipar as estruturas sindicais, uma ação próxima às tradições corporati-
vistas originadas do varguismo. Também dedicadas a comparar as políti-
cas sociais e trabalhistas de ambos os regimes ditatoriais, María Florencia
Osuna e Heliene Nagasava analisam os casos dos ministérios do Trabalho
brasileiro (1964-1967) e o de Bem-Estar Social argentino (1966-1970). Esses
ministérios foram determinantes na articulação das políticas de proteção e
seguridade social, bem como compartilharam o paradoxo de que, embora
se colocassem nos antípodas dos regimes populistas das décadas de 1940 e
1950, acabaram por se apropriar de elementos dessas tradições em benefício
dos dispositivos que criaram. Além disso, as coincidências se estendem em
boa medida ao perfil ideológico e técnico dos funcionários recrutados e aos
modos de implementação das políticas de previdência social e habitação
aplicadas pelas ditaduras.
Também orientado para as políticas sociais, o capítulo escrito por
Gabriela Gomes e Samuel Oliveira analisa comparativamente as políticas
habitacionais e urbanas das ditaduras civil-militares de Argentina (1966-
1973) e Brasil (1964-1985) desenvolvidas durante o auge dos projetos de
modernização social autoritária que circularam na América Latina no pe-
ríodo. Assim como se passou na Revolução Argentina, nos primeiros anos

As ditaduras argentina e brasileira em ação 13


da ditadura brasileira, as políticas habitacionais foram orientadas para con-
trolar o crescimento urbano e o desenvolvimento industrial. Além disso,
a preocupação com a segurança e o controle social geraram a erradicação
dos assentamentos informais e a transferência de seus habitantes para habi-
tações construídas por projetos estatais, com o objetivo de alterar os com-
portamentos e estilos de vida dos pobres que habitavam as favelas e “villas
miseria”. Contrariamente ao discurso oficial que pretendia colocar fim à
“marginalidade social” nas cidades latino-americanas, as políticas de ambos
os regimes agudizaram a reprodução das desigualdades sociais e contribuí-
ram para a gentrificação e para a segregação socioespacial do tecido urbano.
Por sua parte, no capítulo sobre propaganda e ação psicológica nas
ditaduras de Argentina e Brasil, Daniel Lvovich e Janaína Cordeiro desta-
cam que, embora a doutrina de ação psicológica tenha sido incorporada ao
acervo das Forças Armadas de ambos os países desde o final da Segunda
Guerra Mundial, no caso argentino suas práticas foram aplicadas de ma-
neira mais sistemática e permanente do que no Brasil. Nos dois casos, o
esforço da propaganda oficial se articulou, de diversas maneiras, com a
contribuição da imprensa e das empresas privadas de publicidade. O apelo
propagandístico aos motivos do nacionalismo mais estreito se vinculou de
diferentes modos a tópicos muito diversos. No caso do Brasil, predominou
o chamado ao otimismo e prevaleceu a visão de um país em processo de
franco desenvolvimento; na Argentina, durante os primeiros anos ditato-
riais, prevaleceu o discurso da guerra antissubverssiva e, mais adiante, o de
“ganhar a paz”, que, sem abandonar por completo o anterior, se associava
aos valores de harmonia social e de desenvolvimento.
No seu texto, Federico Iglesias e Miriam Hermeto buscam examinar a
constituição e as especificidades do campo cultural durante ambas as dita-
duras, considerando-o na dimensão de política cultural estatal e também
como alvo de repressão por parte dos governos autoritários. Para isso, or-
ganizaram três chaves de leitura: as bases, institucionais e de valores das
políticas culturais de cada regime; os fundamentos ideológicos e o fun-
cionamento institucional da censura e da repressão cultural; e, por fim, o
estudo de alguns aspectos da resistência cultural à censura e à repressão.
Embora existissem marcantes semelhanças em determinados traços ideo-
lógicos, na existência de tendências de longo prazo, que ganharam maior
intensidade durante as ditaduras, e nas diversas modalidades de censura que
se desenvolveram naqueles anos, no Brasil, o regime e suas agências cultu-
rais se mostraram dispostas a aceitar determinadas modulações críticas e a

14 Daniel Lvovich | Rodrigo Patto Sá Motta (orgs.)


permitir e possibilitar o fenômeno da acomodação em uma escala impen-
sável para o caso argentino.
Gabriel Amato e Laura Luciani abordam no capítulo sob sua responsa-
bilidade as políticas dirigidas à juventude pelas duas ditaduras. As questões
juvenis foram entendidas como uma problemática que deveria ser abordada
com políticas direcionadas ao controle, à disciplina e, em certas ocasiões, à
participação de setores da juventude, na medida em que foram convocados
de maneira subordinada aos objetivos gerais das ditaduras. Nesse sentido,
os autores destacam o desenvolvimento dos projetos Rondon e Argentinos!
Marchemos Hacia las Fronteras, que, embora tivessem traços comuns, dife-
riram quanto à sua extensão, alcance e conteúdos ideológicos. Por sua parte,
a contribuição de Alexandre Felipe Fiuza, Ana Karine Braggio e Gisela
Fabiana Andrade se dedica a explicar os processos de transformação dos
sistemas educativos nacionais do Brasil desde 1964 e da Argentina desde
1976, evidenciando suas particularidades e identificando como condições
para essas mudanças o uso da repressão física, da censura e da violência
simbólica. No Brasil, as políticas educativas mantiveram certa proximidade
com as implementadas anteriormente a 1964, embora tenham sido elimina-
dos os programas e projetos educativos de caráter libertador e emancipador.
No caso argentino, a ditadura buscou desestruturar os elementos homoge-
neizadores do sistema educativo precedente através da implementação de
políticas que introduziram amplas margens de desigualdade e fragmenta-
ção. As políticas educativas de ambos os países coincidiram na busca do
controle social dos processos educativos, tendo como objetivo a vigilância
e repressão contra estudantes e professores.
As ditaduras brasileira e argentina surgiram em um contexto seme-
lhante, sob o impacto simultâneo da Guerra Fria e das lutas políticas inter-
nas à América Latina, que não eram mero reflexo do quadro internacional.
Os militares tomaram o poder apresentando-se como salvadores das res-
pectivas pátrias, alegando a necessidade de derrotar processos subversivos
de esquerda em que apontavam inimigos parecidos: o comunismo, o mar-
xismo, o terrorismo e as lideranças populares (que preferiam nomear de
demagogos ou populistas). Além disso, os golpes ocorreram tendo como
pano de fundo crises econômicas, notadamente processos inflacionários
que aumentavam a instabilidade política e aguçavam as disputas sobre os
rumos a adotar. Aspecto inicial e fundante das ditaduras foi a violência
repressiva, tanto a dirigida contra a esquerda como a outros alvos, por isso
o tema percorre todos os capítulos do livro. A repressão foi também uma

As ditaduras argentina e brasileira em ação 15


fonte de legitimidade, pois atraía o apoio dos segmentos que partilhavam
valores antiesquerdistas e antipopulares. No entanto, isso não era suficiente
para a garantia de poder estável, as ditaduras precisaram formular outras
ações, e dar-lhes publicidade. Daí a importância de estudar suas políticas
sociais, econômicas, culturais e educacionais, como propusemos neste livro.
A análise das políticas estatais desenvolvidas nos dois países durante o
contexto ditatorial mostra muitos aspectos semelhantes, como ficará claro
na leitura deste livro. Mas também algumas singularidades significativas
chamaram nossa atenção e merecem ser exploradas em futuros estudos. De
maneira geral, a ditadura argentina instalada em 1976 implantou um con-
junto de políticas mais inclinadas à ruptura com as tradições anteriores, ge-
rando um quadro em que a ideia de “refundação” ganha mais pleno sentido,
ao passo que a ditadura brasileira se mostrou mais inclinada a acomodar-
-se com instituições e práticas anteriormente vigentes. Tais diferenças são
perceptíveis em várias dimensões da ação estatal, mas, principalmente, na
economia, nas políticas sociais e culturais e na institucionalidade política.
Destaca-se, em especial, que, embora fosse mais flexível em muitos aspec-
tos, a ditadura brasileira ampliou o alcance da ação estatal e da burocracia
pública frente à economia e à sociedade, processo conectado também ao
aumento da arrecadação de tributos e sua concentração no governo federal.
Nessa direção, a ditadura brasileira de 1964 guarda traços de semelhança
com a que foi instaurada na Argentina em 1966, enquanto a ditadura de
1976 certamente ampliou a ação do Estado, porém o fez principalmente na
esfera da repressão e do controle político: na economia, reduziu sua partici-
pação em favor do mercado (sobretudo através de mecanismos de redistri-
buição regressiva) e diminuiu a proteção e o incentivo à indústria nacional;
nas políticas sociais, buscou descentralizar ações e recursos em nome de
uma visão subsidiária do Estado, que deveria ser secundário e complemen-
tar em relação à “comunidade”, ao poder público local e ao mercado. Essas
diferenças teriam notável impacto tanto no contexto das ditaduras como
nos períodos seguintes.
O processo de esgotamento das ditaduras teve origens parecidas, como
o descontentamento gerado pelo quadro inflacionário e a crise da dívida
externa, que aumentou a sensação de cansaço de parte da população em re-
lação ao poder militar e às suas ações autoritárias e repressivas. No entanto,
a rota de saída das ditaduras teve aspectos bastante distintos nos dois ca-
sos. Para usar linguagem tipicamente militar, no caso do Brasil ocorreu um
recuo organizado da ditadura, enquanto na Argentina houve uma derrota

16 Daniel Lvovich | Rodrigo Patto Sá Motta (orgs.)


total. Nos termos das ciências sociais, a transição no segundo caso foi por
colapso, enquanto no primeiro houve uma transição por pacto. Embora
enfrentando conflitos internos e eventuais recuos, os militares brasileiros
organizaram uma transição “lenta e gradual”, que foi facilitada por sua
acomodação anterior com lideranças civis e algumas instituições liberais.
Diante da dificuldade ou da incapacidade de projetar uma saída semelhante,
os militares da Argentina apostaram tudo na aventura das Malvinas, espe-
rando atrair apoio popular ao governo com base na mobilização do patrio-
tismo, mas com a desastrosa derrota militar perderam a chance de controlar
o processo de transição.
Durante a fase inicial do processo de transição para a democracia nos
dois países, o caminho moderado brasileiro às vezes pareceu mais vantajoso
em termos de estabilidade institucional, devido aos conflitos provocados
na Argentina pelos levantes militares nos anos 1980, mas também graças
às conquistas sociais e políticas consubstanciadas na Constituição de 1988.
Esse caminho, no entanto, sacrificou as demandas por verdade e justiça
que caracterizaram e orientaram a transição na Argentina. Analisando o
quadro recente, quando lideranças políticas saudosas da ditadura chega-
ram ao poder no Brasil, e com forte protagonismo de militares (da ativa
e da reserva), percebemos que a transição mais conflituosa da Argentina,
especialmente os julgamentos dos integrantes das Juntas Militares, trouxe
melhores resultados a longo prazo em termos de superação da ditadura e
consolidação democrática.
De todo modo, o passado ditatorial recente dos dois países segue pre-
sente nos debates e nas disputas atuais, na medida em que suas memórias
(conflitantes, claro) continuam sendo mobilizadas/manipuladas nas ações
e discursos de muitos agentes sociais. Este livro é uma contribuição aca-
dêmica ao conhecimento, implicando a adoção de pressupostos científi-
cos como distanciamento crítico em relação ao tema (e à própria memória
social) e a utilização metódica de evidências documentais amplas. Porém,
não é o caso de postular posicionamento acadêmico neutro diante do ob-
jeto, muito menos quando estudamos ditaduras. Esperamos contribuir para
mostrar que as ditaduras foram experiências nefastas para nossos países,
que não vale a pena reviver.
Mas, para a correta compreensão desse quadro histórico, é impor-
tante estudar em mais detalhe as ações empreendidas pelas ditaduras, por
exemplo, para entender por que foram apoiadas por certos grupos sociais.
Essa operação acadêmico-intelectual revela aspectos sutis das experiências

As ditaduras argentina e brasileira em ação 17


ditatoriais e, de maneira constrangedora e preocupante, a realidade do enrai-
zamento do autoritarismo em certos segmentos sociais. Trata-se, portanto,
de conhecimento relevante por razões tanto acadêmicas como políticas.
Escrevemos estas linhas de apresentação quando a pandemia da
covid-19 tensiona ao extremo o cenário mundial, e em especial o latino-
-americano, agravando as consequências das profundas desigualdades que
marcam nossos países. Tudo parece indicar que, tanto na pandemia como
na reconstrução que virá, voltaremos a assistir e a participar de enfrenta-
mentos entre opções autoritárias e socialmente excludentes, e outras demo-
cráticas e igualitárias, alternativas que seguirão marcando a fogo o futuro
da América Latina.

Daniel Lvovich
Rodrigo Patto Sá Motta

NOTAS
1
Boris Fausto e Fernando Devoto, Brasil e Argentina: um ensaio de história comparada (1850-
2000), São Paulo, Editora 34, 2004; Kathryn Sikkink, El proyecto desarrollista en la Argentina y
Brasil: Frondizi y Kubischek, Buenos Aires, Siglo XXI, 2009; José Luis B. Beired, Sob o signo da
nova ordem: intelectuais autoritários no Brasil e na Argentina (1914-1945), São Paulo, Loyola,
1999; Alejandro Groppo, Los dos Príncipes, Juan D. Perón y Getulio Vargas: un estudio compa-
rado del Populismo Latinoamericano, Villa María, Editorial Universitaria, 2008; Maria Helena
Rolim Capelato, Multidões em cena: propaganda política no varguismo e no peronismo, São
Paulo, Fapesp, Papirus, 1998.
2
Marc Bloch, A favor de una historia comparada de las civilizaciones europeas, em Historia e
historiadores, Madrid, Akal, 1999, p. 115, tradução nossa.
3
Serge Gruzinski, Les mondes mêlés de la Monarchie catholique et autres “ connected histories”,
Annales HSS, n. 1; jan./fev. 2001; Sanjay Subrahmanyam, Connected histories: notes towards
a reconfiguration of early modern Eurasia, em Victor Lieberman (ed.), Beyond Binary His-
tories. Re-imagining Eurasia to c. 1830, Ann Arbor, The University of Michigan Press, 1999,
p. 732-762.
4
Maria Ligia Prado Coelho, América Latina: historia comparada, historias conectadas, historia
transnacional, Anuario Escuela de Historia Facultad de Humanidades y Artes, Rosario, n. 24,
p. 21, 2011-2012, tradução nossa.
5
Ibidem, p. 21, tradução nossa.

18 Daniel Lvovich | Rodrigo Patto Sá Motta (orgs.)

Você também pode gostar