Você está na página 1de 22

O mundo a zero

Drummond, Haroldo de Campos,


Ricardo Aleixo e as máquinas do mundo
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Reitora: Sandra Regina Goulart Almeida
Vice-Reitor: Alessandro Fernandes Moreira

EDITORA UFMG
Diretor: Flavio de Lemos Carsalade
Vice-Diretora: Camila Augusta Pires de Figueiredo

CONSELHO EDITORIAL
Flavio de Lemos Carsalade (presidente)
Ana Carina Utsch Terra
Angelo Tadeu Caetano
Camila Augusta Pires de Figueiredo
Carla Viana Coscarelli
Élder Antônio Sousa e Paiva
Emília Mendes Lopes
Ênio Roberto Pietra Pedroso
Henrique César Pereira Figueiredo
Kátia Cecília de Souza Figueiredo
Lívia Maria Fraga Vieira
Luciana Monteiro de Castro Silva Dutra
Luiz Alex Silva Saraiva
Marco Antônio Sousa Alves
Raquel Conceição Ferreira
Renato Assis Fernandes
Ricardo Hiroshi Caldeira Takahashi
Rita de Cássia Lucena Velloso
Rodrigo Patto Sá Motta
Weber Soares
Eduardo Jorge de Oliveira

O mundo a zero
Drummond, Haroldo de Campos,
Ricardo Aleixo e as máquinas do mundo
© 2024, O autor
© 2024, Editora UFMG

Este livro, ou parte dele, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita
do Editor.

O48 m Oliveira, Eduardo Jorge de.


O mundo a zero : Drummond, Haroldo de Campos, Ricardo Aleixo e
as máquinas do mundo / Eduardo Jorge de Oliveira – Belo Horizonte :
Editora UFMG, 2024.


349 p. : il.

Inclui bibliografia.


ISBN: 978-65-5858-130-7


1. Literatura – História e crítica. 2. Literatura comparada.
3. Arte. 4. Ensaio. I. Título.
CDD: 809.84
CDU: 82-4

Elaborada por Vilma Carvalho de Souza – Bibliotecária – CRB-6/1390.

COORDENAÇÃO EDITORIAL Michel Gannam


DIREITOS AUTORAIS Anne Caroline Silva
ASSISTÊNCIA EDITORIAL Eliane Sousa
COORDENAÇÃO DE TEXTOS Clarissa da Cunha Vieira
PREPARAÇÃO DE TEXTOS Maria do Carmo Leite
COORDENAÇÃO GRÁFICA Fernando Freitas
PROJETO GRÁFICO Fernando Freitas e Giovanni Barbosa
FORMATAÇÃO Alessandra Magalhães
MONTAGEM DE CAPA Fernando Freitas
IMAGEM DA CAPA Katja Gentric, Sem título [Cape Point] integrante do projeto: A máquina do
mundo, uma enquete detetivo-filosófica no Cabo da Boa Esperança. Fotografia de uma intervenção quase
despercebida no espaço político. Material: 3 fios de cabelo, uma aba de caixa de pasta de dente,
duas etiquetas de preço autocolantes. 3 x 3,9 x 1,7 cm. Reproduzida com a cortesia da artista.
PRODUÇÃO GRÁFICA Warren Marilac

EDITORA UFMG
Av. Antônio Carlos, 6.627 – CAD II / Bloco III
Campus Pampulha – 31270-901 – Belo Horizonte/MG
Tel: + 55 31 3409-4650 – www.editoraufmg.com.br – editora@ufmg.br
AGRADECIMENTOS

Este livro não teria sido possível sem a ajuda de várias pessoas e ins-
tituições. Difícil nomear todas e todos numa lista que seria exaustiva.
Esta obra faz parte de um ciclo que começou formalmente com um curso
e terminou com um manuscrito de tese de habilitação apresentado em
2022 na Faculdade de Filosofia da Universidade de Zurique. A forma
inicial foi um curso magistral oferecido no Instituto de Romanística da
mesma Universidade em 2017. Assim, o primeiro agradecimento vai para
todas e todos os estudantes que frequentaram as aulas, especialmente Sofia
Sabatini, que foi minha assistente. O agradecimento se prolonga às e aos
colegas que acolheram o manuscrito, pelo tempo de dedicação à leitura
e aos comentários. Agradeço ainda à Maria Filomena Molder, com quem
iniciei os diálogos sobre a máquina do mundo em 2015/2016. E às e aos
colegas Tristan Weddigen, Adriana López-Labourdette, Jens Andermann,
Johannes Bartuschat, Itzíar López Guil, Tatiana Crivelli, Sandro Zanetti,
Sandra Frimmel, Tiago Pinheiro, Eduardo Sterzi, Maria Elisa Rodrigues,
Kenneth David Jackson, Pedro Meira Monteiro, Florencia Garramuño,
Marisa Gago Iglesias, Diana Junkes, Júlio Mendonça, Ivan Campos (in
memoriam), Raquel Campos, Ricardo Aleixo, Maria Esther Maciel, Vera
Casa Nova, Ana Martins Marques, Edimilson de Almeida Pereira, Prisca
Agustoni, Camila Figueiredo, Anne Caroline Silva e a todas e todos da
equipe da Editora UFMG. Dedico ainda este livro à memória da minha
avó, Zilma Silva Marques, a primeira a me mostrar a máquina do mundo.
E veramente chi non estima questa arte parmi che molto
sia dalla ragione alieno; ché la machina del mondo, che noi
veggiamo coll’amplo cielo di chiare stelle tanto splendido
e nel mezzo la terra dai mari cinta, di monti, valli e fiumi
variata e di sí diversi alberi e vaghi fiori e d’erbe ornata,
dir si po che una nobile e gran pittura sia, per man della
natura e di Dio composta; la qual chi po imitare parmi es-
ser di gran laude degno; né a questo pervenir si po senza
la cognizion di molte cose, come ben sa chi lo prova.
Baldassare Castiglione, Il cortegiano (1528), libro I, cap. LIX.

Não vês que a grande máquina inquieta


Do Mundo se desfaz toda em tristeza,
E não por natural causa secreta?
Não vês como se perde a Natureza?
O ar se turba? O mar, batendo geme,
Desfazendo das pedras a dureza?
Não vês que os montes caem? a terra treme?
Luís Vaz de Camões, “Elegia 11” (1616).

– e onde existe Camões? E aonde Homero?


Joaquim de Sousândrade, “O guesa” (1877).

Le moi ne s’oppose pas plus à l’autre que l’homme ne


s’oppose au monde: les vérités apprises à travers l’homme
sont “du monde”, et elles sont importantes de ce fait.
Claude Lévi-Strauss, La pensée sauvage.

André Vallias, Geo, 2015.


SUMÁRIO

Prefácio 13
Maria Filomena Molder

Introdução
MÁQUINAS ÉPICAS E RESTOS HISTÓRICOS 23

Capítulo 1
O MUNDO, UMA ELEGIA 25
Variações a partir de Drummond
O mundo no dicionário 27
Máquina do mundo: totalidade e fragmento 29
Majestosa e circunspecta 31
Uma fotografia dolorosa: sentimento
[da máquina] do mundo 34
O mundo e a ruga 35
Máquina encantada, máquina desencantada:
“nada escrito no céu” 37
A medida do poema, alguma crítica 48
Microcortes do Geist brasileiro:
o cósmico e o corpóreo 48
Meu corpo, meu negro 50

Capítulo 2
EXPERIÊNCIAS ATLÂNTICAS, EXPERIÊNCIAS
DE DESTROÇOS 55
A máquina do mundo: naufrágio com o leitor 55
Dois poemas de A paixão medida 61
Camões & Cia.: Drummond,
Haroldo de Campos, Ricardo Aleixo 66
Língua maquínica: cantar, ao som do dano 67
A estranha ordem geométrica de tudo:
os sentidos e os instantes 76
Um poema-orelha: poesia, sinal de menos
(um excurso) 77
Língua maquínica, voz e grito gráfico 80
Atenção, desvio: tradição, transmissão 82
Máquinas do mundo: estrelas, mapas e atlas 84
Viagens do olhar: das protossintaxes
espaciais à ética cartográfica 89
Camões, anti-Camões: Lira e antilira 95
Sem emitir um som que fosse impuro /
nem um clarão maior que o tolerável 100
Som pausado e seco: a máquina melancólica
de Carlos Drummond de Andrade 104
Pablo Lobato, Laura Vinci: som rouco
e poeira branca 106
Ruínas da máquina do mundo:
“e ruindo se vai a porta” 119
Mistério, minério: breve excurso sobre o som 121
Mundo, rosto, montagem 124

Capítulo 3
UM POEMA EM BIG BANG 129
A máquina do mundo repensada
Uma paralelização contínua: um desvio bíblico
ou “os fios retorcidos num cabo” 148
Paródia e pós-utopia na máquina do
mundo repensada 160
Cânone, kairos e crise: ouvindo a estrutura do ritmo 169
Máquina do mundo: enteléquia viva 183
“rodam sobre seus rodízios de três zeros” 197

Capítulo 4
SAPATOS TIPOGRÁFICOS 205
“Máquina zero”, de Ricardo Aleixo
Máquina zero: a máquina da máquina 234
“Por último, a saúde / do que acaba”:
ecos de exílio no mundo 254
“Boca também toca tambor”:
uma ancestralidade maquínica da voz 265
O tambor do texto cantado:
ritmos da palavra e do corpo 278
Era uma vez uma voz:
estruturas de um mundo vocalizado 283
Cantar o zero por linhas tortas:
“Minha linha”, “Cantiga de caminho”
e notas sobre a cantiga 287

Conclusão
EXPERIMENTUM LINGUAE 293
A máquina do mundo nas encruzilhadas
da língua portuguesa

NOTAS 299

REFERÊNCIAS 335

SOBRE O AUTOR 349


Prefácio

Maria Filomena Molder

ABERTURA
Em março de 2016, num dos nossos encontros parisienses, Eduardo Jorge
ofereceu-me A máquina do mundo repensada de Haroldo de Campos. Sentada
no autocarro que apanhei no Quai d’Orsay em direcção à Étoile, comecei
de imediato a ler o longuíssimo poema. Quando saí, ainda o ia a ler com-
pletamente absorvida, e continuei a fazê-lo sem interrupção na recepção
do hotel até ter terminado.
Este não tinha sido o primeiro nem seria o último livro de Haroldo
de Campos que chegava às minhas mãos através das mãos desse amigo
brasileiro, seu leitor dedicado e apaixonado.
Entretanto eu tinha lido do Haroldo sobretudo traduções1 e, em parti-
cular, uma que terá de ocupar um lugar bem alto na montanha ou no mar,
a saber, a tradução do Qohélet/Ecclesiastes, que ele fixou como O-que-sabe, e
que fora uma das traduções-base (a outra era a de Guido Ceronetti), utili-
zadas por mim, um ano antes, para as conferências sobre o “grande Anó-
nimo” (Culturgest, Lisboa).
Já na Primavera de 2017 no seu seminário na Universidade de Zurique:
“Poéticas Contemporâneas I: O Poema como Máquina do Mundo”, Eduardo
Jorge de Oliveira ocupava-se do motivo da máquina do mundo, tal como ele
se desenrolou em língua portuguesa na poesia portuguesa e brasileira. Nos
anos seguintes prosseguiu o seu estudo, expandindo-o e aprofundando-o,
até chegar à redacção final e ao título definitivo de O mundo a zero. Drummond,
Haroldo de Campos, Ricardo Aleixo e as máquinas do mundo, permitindo ao leitor
surpreender in actu as múltiplas passagens entre máquina e mundo, ele-
gendo como guia a última variação do motivo (a mais recente, mas segura-
mente não a derradeira), encontrada na poesia de Ricardo Aleixo:
Se, para Drummond, o mundo redundantemente termina no mundo, e,
para Haroldo de Campos, o mundo tem seus saltos tigrinos em direção
às estrelas e galáxias, de certo modo, para Ricardo Aleixo, existe in nuce
a tarefa de uma etnografia de mundos inferiores à dimensão da máquina
do mundo. (...) A presença africana e afro-brasileira na sua poesia é um
fator que colabora para uma leitura mais ampla da máquina do mundo e
que corrobora para o deslocamento da razão ocidental, da qual a máquina
camoniana é a expressão mais bem-acabada (p. 81).

Por razão daquela oferta, decidi que o terceiro ciclo de conferências na


Culturgest, marcado para o Inverno de 2017, seria intitulado A Máquina do
Mundo e preparei-me para reler Camões e Drummond, e também Dante,
incentivada e orientada por Haroldo de Campos.
Tendo tomado conhecimento dessa decisão, Eduardo Jorge convidou-me
para participar no seu seminário e foi assim que, no mesmo ano de 2017, dei
duas aulas na Universidade de Zurique. Aí desenvolvi a ideia de que a má-
quina do mundo se tornou um contraste de ourivesaria poética em língua
portuguesa, isto é, um experimento poético que se magnetizou numa cons-
telação, herança estilhaçada. Na nota 83 (p. 308) da obra aqui em apreço
está bem clara a notícia. Só que a atenção ao estilhaçamento é mais do
Eduardo do que minha.
Se não há desonra na consideração desta abertura como um caso de
petite histoire, a qualificação será ainda deficiente, pois aquilo que é con-
tado vale, sobretudo, como um apólogo instrutivo do modo singular de
ler e partilhar a leitura, próprio de Eduardo Jorge de Oliveira. Esse amigo
dos livros – também poeta – é um forjador de comunidades, e a confiança
é a seta que atravessa os vínculos que o ligam a cada um dos convidados,
fazendo-os vibrar, lançadeira que agarra e faz cruzar a trama à urdidura,
num movimento simultaneamente guerreiro e têxtil. Numa das quadras
de “Boca também toca tambor” (citado e analisado expansivamente por
ele no Capítulo 4, seção “Boca também toca tambor”: uma ancestralidade
maquínica da voz – p. 265-278, Ricardo Aleixo preenche a pauta musical
de débitos e créditos que entre si trocam poetas-leitores:

boca tambor que só toca


direito se o tocador
ouvir no fundo do peito
o som de outro tambor

Agora embrenhemo-nos nas mais de 300 páginas de O mundo a zero.

14 Eduardo Jorge de Oliveira


DESENVOLVIMENTO

(…) me pedibus delectat claudere uerba (…)2


Horácio. Saturai 2.1, 28-30.

Lembrei-me desse verso de Horácio, porque desde as primeiras páginas


de O mundo a zero fala-se de passos, de pés e sapatos, o que é inevitável
(embora às vezes se evite) quando se trata de poetas. Abrindo o Capítulo
4, todas as epígrafes escolhidas são a sua prova viva, com particular ênfase
para a de Nietzsche com a ideia de que não se escreve apenas com as mãos,
mas também com os pés que caminham (mais à frente Eduardo Jorge Oli-
veira irá salientar com humor penetrante o mau passo que é saltar do pé
para a mão):

Não seria apenas uma metáfora afirmar que a primeira imagem que se
tem de um poeta é daquele ou daquela que anda, que erra, seja em exílio
como Dante, ou na figura do viajante, como Camões; enfim, ao longo da
história observa-se uma grande parte de poetas em movimento, de modo
que tampouco seria exagero situar a terminação nervosa da língua, lite-
ralmente, nos seus pés.

São instrutivos a “Introdução” e os dois primeiros capítulos, nos quais


a estrutura rítmica é toda medida pelo compasso de restos e destroços (a que
se juntam as ruínas, que inundam as p. 110 et seq. do Capítulo 3). Sim, a
musicalidade é elegíaca e de elegia se fala no Capítulo 2, atribuindo-a ao
mundo: desse modo se decifra o cantar da máquina de Drummond como
“um acontecimento do ‘sofrer pedestre’” (p. 64), um mundo “que não vai
além do mundo” (p. 77), que se faz acompanhar de variações. Camões
também entra na dança, aliás, é o primeiro a entrar. E pouco importa que
a máquina do mundo já fizesse parte da gíria medieval e renascentista em
textos de sábios vários, portugueses, italianos e ingleses, e mesmo nas en-
trelinhas da Commedia de Dante. Tal como ela se apresenta no Canto X de
Os Lusíadas, a máquina do mundo inclui-se nos efeitos míticos e históricos
– em suma, poéticos – internos ao poema. Eduardo Jorge está ciente do
tratamento da máquina anterior ao poema épico português, mas protege
a precedência poética que acaba por coincidir com a ideia de que todos
os poetas são contemporâneos (assim aparecem eles, uns gregos, outros
latinos, e Dante, o moderno, conversando uns com os outros enquanto
caminham até ao nobile castello, no Canto IV do Inferno), uma “poética

O mundo a zero 15
sincrônica” (conceito cunhado e desenvolvido por Haroldo de Campos – cf.
p. 135-136 – e que percorre, perambula, como sola do pé, sapato de largo
fôlego e mancha tipográfica no livro de Eduardo Jorge de Oliveira). Por
exemplo:

Drummond assinala uma linha em direção a Camões, a qual coincide com


a fundação de um tópos Camões-Drummond. Tópos que é, por sua vez, um
arco tenso entre o Atlântico e a estrada de Minas. (...) Em última instân-
cia, a atividade expropriatória do poema de Drummond tornou Camões
mais contemporâneo, enquanto Drummond, por sua vez, tornava-se mais
antigo (p. 127).

Porém, se na máquina épica não há tonalidade elegíaca, já nos versos


da Elegia 11 que servem de segunda epígrafe deste livro (et pour cause...),
é evidente, na comum experiência de perda e desastre, a intimidade entre
Camões e “máquina melancólica de Drummond”: “Não vês que a grande
máquina inquieta / Do Mundo se desfaz toda em tristeza, / E não por
natural causa secreta? / (...) Não vês que os montes caem? a terra treme”?
Dessa máquina não teve notícia Vasco da Gama. Eduardo Jorge de Oliveira
está bem ciente dessa afinidade e aponta para ela a partir da descrição
sagaz da fotografia de Carlos Drummond de Andrade (feita por Rogério
Reis em 1983):

As mãos em primeiro plano cobrem parcialmente seu rosto, que por sua
vez está inclinado, a subtrair-se do mundo ao mesmo tempo que subtrai o
mundo do seu campo de visão. Ele expõe sumariamente no campo fotográ-
fico a práxis do poeta com a força das ambivalências com as quais ele lidou
na poesia. Pode-se retornar à “Elegia 11” de Camões, que ainda lança sua
luz para compreender a relação entre o poema e uma medida do mundo,
pois os poetas escutam e detalham “aqueles movimentos ordinários, a que
responde o tempo, que não mente” (Elegia 5 de Camões) (p. 35).

Nos capítulos 3 e 4, o tom elegíaco, saturnino, desfaz-se. Trata-se em am-


bos os casos de estrondo do big bang – sustentação e efeito do longo poema
de Haroldo de Campos –, que ressoa nos poemas de Ricardo Aleixo, com
particular jogo de excesso-comedimento em “Boca também toca tambor”.
Se nos dois primeiros capítulos são os passos de Drummond – “E como
eu palmilhasse vagamente / uma estrada de Minas, pedregosa, / e no fecho
da tarde um sino rouco // se misturasse ao som de meus sapatos /que era
pausado e seco”; – que, como um “cantar do dano” ouvido em Camões, o
fazem baixar os olhos, “desdenhando/ colher a coisa oferta que se abriria
gratuitamente ao meu engenho”, e o levam a instaurar o precipício, também

16 Eduardo Jorge de Oliveira


nos dois últimos eles retornam, sobretudo no Capítulo 4 dedicado a Ricardo
Aleixo, como uma lançadeira nas mãos de um tipógrafo (o “grito gráfico”).
2
Em geral não gosto de estatísticas, mas gosto de contar os degraus das
escadas, o que no caso se projecta sobre a falta de equivalência que reina
entre o número de páginas de cada um dos capítulos. Nos dois primeiros,
a brevidade é senhora (e por vezes capítulos e subcapítulos não chegam a
encher uma página), sente-se uma respiração de sopro curto, porém, não
falta o ar (veja-se a seção “Microcosmos do Geist brasileiro: o cósmico e
o corpóreo” ou a seção “Quem dobra os sinos?”). Trata-se de escadas de
muitos degraus onde por vezes se engole a língua (o claro enigma, o enigma
que “tende a paralisar o mundo”, o “mal do enigma”, obrigam a coisas
destas, cf. “Máquina encantada, máquina desencantada: ‘nada escrito no
céu’”, Capítulo 1).
Já nos capítulos 3 e 4, demorar-se é a palavra de ordem (aliás, não há
subcapítulos). E quando chegamos às 21 páginas da seção “Uma paraleli-
zação continua: um desvio bíblico ou ‘os fios retorcidos num cabo’” ou às
30 páginas da primeira seção do Capítulo 4, “Máquina zero: a máquina da
máquina”, detemo-nos. Aqui, chegamos a um limiar, as portas de duas
habitações foram abertas e nós somos convidados a entrar, por um lado,
na despedida do mundo poético e na cerimônia de conversão do poeta em
pó cósmico, que se dão na Máquina do mundo repensada; e, por outro, na
diversão em exílio da autorreprodução da máquina, própria de Ricardo
Aleixo. Nessas escadas são poucos os degraus, largos como patamares, e a
corrida é de longo curso.
Quer dizer, nos capítulos 2 e 3, sem percebermos como, fomos co-
locados in media res (a isto não será alheio o manancial histórico e crítico
acumulado sobre as obras de Camões e de Drummond, este ouvidor “no
fundo do peito” do som do tambor camoniano). Por sua vez, nos capítulos
3 e 4 celebra-se uma iniciação. Claro que nada disso está quieto e constan-
temente se misturam os dois modos de proceder, rítmicos e espaciais, de
Eduardo Jorge de Oliveira.
Mas deixemos ouvir a sua própria voz, numa nota de rodapé a uma
nota de rodapé de Haroldo de Campos, desenhando o inquieto perfil do
seu livro e apontando para a desigualdade feliz, a heterogeneidade do tra-
tamento de cada um dos poetas em leitura, fiel à heterogeneidade irredu-
tível da arte poética de cada um:

O mundo a zero 17
(...) o presente estudo sobre a máquina do mundo: parte do problema vem
da própria obra de Ricardo Aleixo, da de Haroldo de Campos, e convida
a uma releitura de Drummond – e esse não é um estudo sobre a poesia
de Drummond, mas com ela – e à presença de Camões. Existe aqui, na
dimensão sincrônica e no seu critério estético-criativo, uma perspectiva de
leitura processual que não se encerra nos poetas lidos e estudados, mas se
prolonga por outras poéticas3 (nota 212, p. 315).

Quer dizer, trata-se de uma tradição poética, mas não de um cânone,


antes de um fazer, desfazer, refazer de uma “corrente emotiva” que conhe-
ceu a queda na linguagem em “invenção permanente” (p. 54). Em A má-
quina do mundo repensada acha-se a missão de uma respiração boca-a-boca:

A máquina do mundo repensada seria, assim, o poema em que a respiração


de outros poetas circula na corrente emotiva dos três cantos. O termo “re-
pensada”, de Haroldo de Campos, também pode ser respirada. Com isso,
“máquina do mundo” e big bang encontraram uma gênese no início do
novo milênio (p. 146).

Miniatura à altura dos olhos de um homem, a máquina de Camões é


transportável, uma espécie de laboratório portátil do funcionamento do
mundo, “um pequeno volume”, apesar de ela ser grande e a sua fabrica-
ção ter origem num saber que é sem início nem fim: “Vês aqui a grande
máquina do mundo, / Etérea e elemental, que fabricada / Assim foi do
Saber, alto e profundo, / Que é sem princípio e meta limitada.” Nesse
saber estão incluídas as premonições sobre a vida do poeta que escreve
o poema (cf. p. 55-56 et seq.). A de Drummond não é um objecto, mas
uma combustão sem chama nem cinza, todas as palavras estão a arder,
permanecendo ao mesmo tempo íntegras na projecção mais do que cine-
matográfica – técnica em que a projecção corrói o ecrã – que o poeta leva
a cabo. Poema excêntrico, o seu ponto de vista é ainda ptolomaico como
em Camões, mas os efeitos poéticos pertencem a um sistema cosmológico
estilhaçado do homem cindido consigo mesmo, como é mostrado por
Eduardo Jorge Oliveira: “Assim, mesmo de costas para o mar e sobre
uma estrada pedregosa em Minas, há notas de naufrágio na poesia de
Drummond, pois ele manteve o olhar fixo na pedra, isto é, na rocha capaz
de romper a quilha das embarcações em terra firme” (p. 75).
Repensada é a máquina do mundo de Haroldo de Campos, quer di-
zer, ele é o único que faz um balanço dessa experiência poética em língua
portuguesa, mesmo que acrescente Dante, sobretudo pelo uso da tercina

18 Eduardo Jorge de Oliveira


da Commedia4 por Drummond de Andrade. Trata-se de um poema da ve-
lhice e da consciência da velhice. Duplicando já o mezzo del camin di nostra
vita – “dante com trinta e cinco eu com setenta” –, o poeta avista a morte
aproximando-se.
Sublinhe-se a proeminência na máquina haroldiana da palavra nexo,
palavra derradeira, repetida três vezes, sem recurso à pontuação, no úl-
timo verso, e que desempenha o papel do ksúnos heraclitiano, conceito mais
elevado do que o de logos, cimento magnético que liga cada coisa a cada
outra. No modo como termina sem concluir A máquina do mundo repensada,
escuta-se um murmúrio, um soluço interrompido, que é também um efeito
da extraordinária maestria parodística do poeta: “O nexo o nexo o nexo o
nexo o nex.” Muito sensível a ela, Eduardo Jorge escreve umas admiráveis
linhas sobre a letra x de nexo, expandindo o seu efeito cósmico e existencial
a outras palavras, tornando, assim, audível o modo como o x governa a
boca de quem o sopra, um efeito fisiológico e cósmico da poeira explosiva
que o poema propaga:

Um exemplo está no terceiro canto, com a explosão das palavras grafadas


com a letra X, num repertório que vai do “paradoxo” ao “nexo”: “extremo”,
“vermelho-extrema”, “galáxias”, “máximo” e “expande”, “reflexão”, “fê-
nix”, “deixar”, “oximoro”, “expansão”, “perplexo”, “extasiados”, “se dei-
xam”, “excurso”, “exercício”, “ex-tringe”, “expulsa”, “perplexo”, “nexo” e
“sexo”, e o verso final “O nexo o nexo o nexo o nexo o nex”. Fazendo uma es-
pécie de raio-x dessas palavras, é provável encontrar um nexo com o “soneto
em X” de Stéphane Mallarmé. (...) A constelação de “X” do terceiro canto
escrito em terza rima comporta a memória do soneto de Mallarmé (p. 140).

Assinale-se ainda a importância decisiva do poema de Haroldo de


Campos intitulado 2000 para a decifração de A máquina do mundo repensada
(do mesmo ano). Tal como o poema de Drummond e o de Ricardo Aleixo,
ele foi primeiramente publicado num jornal, coincidência de bom augúrio.
Eduardo Jorge de Oliveira cita-o na íntegra e esmiúça-o cuidadosamente.
O poema longo pode ser lido como uma versão aumentada do poema mais
breve, sinal de urgência da cena da origem, Bere’Shith, na proximidade com
o coup de dès de Mallarmé.
Já a máquina zero de Ricardo Aleixo transforma o lugar em espaço (no
sentido de Michel de Certeau5). Saltando por cima do muro da herança, ele
caminha descalço. Muitas vezes, porém, também se senta nele, esperando
por outros errantes. Além disso, se nunca o deitou abaixo, já abriu nele
algumas frechas. As múltiplas máquinas desaguam no território do zero

O mundo a zero 19
em acto, entre o pé e o sapato, ambos actores do poema de Aleixo em que
reinam, segundo Eduardo Jorge, a autopoiesis e a técnica da assemblage. Por
isso, e com as suas próprias palavras, Ricardo Aleixo nunca saiu da má-
quina do mundo (p. 233).

Eduardo Jorge frequentou a oficina do gesto e teve bons mestres que a lite-
ratura brasileira multiplicou com perícia e estudo. Nessa oficina a imagem
e a palavra são correlatas à maneira goethiana, mas com sentido brasileiro
(ou sentidos, o plural é sempre melhor nesses casos), isto é, imagem e pa-
lavra comem-se uma à outra, devoram-se e vomitam-se, pois trata-se de
uma questão antropológica de funda fisiologia. Pedras-de-toque escolhidas
(além das obras Bronze revirado, 2011, de Pablo Lobato e Máquina do mundo,
2005, de Laura Vinci – entre o dobrar dos sinos e a poeira do mecanismo –
cf. “Pablo Lobato, Laura Vinci: som rouco e poeira branca”, “Quem dobra
os sinos?” e “Breve história da escultura em pó”, Capítulo 2): a fotografia
de Drummond por Rogério Reis, já mencionada; a montagem fotográfica
de Drummond de Andrade (“Mundo, rosto, montagem”, p. 124-127), si-
multaneamente “lúdica e lutuosa”, em que o rosto se transforma “em me-
dium da matéria em transformação”, enquanto decomposição prometida e
animalidade partilhada; e ainda a mancha e a composição tipográfica da
capa de A máquina zero.

Na capa do livro são as teclas de uma máquina de datilografar – outra


máquina – que fazem as vezes da máquina de corte de cabelo contra um
mundo careca, que se apresenta como cabeça, ordem. E, assim, existe uma
investida da escrita contra o mundo. Com o poema de Ricardo Aleixo, esse
tipo de corte – de cabelo, do mundo – se insere na rede de sentidos que é
desdobrada no zero evocado pelo poeta. Do mundo ptolomaico ao corte
de cabelo, tudo cabe na máquina do mundo.

Ouçamos a pergunta feita na Introdução e que atravessa o livro inteiro6:


“se é possível o mundo a zero a partir da própria rede que a máquina do
mundo aciona, técnica e historicamente, através da poesia” (p. 24). Em cada
uma das máquinas poéticas em jogo o autor espera desdobrar a pergunta
nas suas vestes em leque. Em rigor, aquela pergunta é uma aporia – essa
pedra que está no meio do caminho, desde os escritos de Aristóteles, e que
Drummond elevou a geologia poética –, o obstáculo que convida Eduardo
Jorge a saltar: “hic rhodus, hic saltus.”

20 Eduardo Jorge de Oliveira


Neste Mundo a zero, entre os três poetas brasileiros eleitos, “o tríptico
desigual” (p. 65), Drummond é o hélios-poeta,7 a sua acção penetra em to-
das as direcções, com efeitos mágicos progressantes e regressantes. E isto,
mesmo no caso do Capítulo 3 que se dedica à Máquina do mundo repensada,
onde a desistência do poeta, renunciando aos poderes ofertados da má-
quina, o faz exilar do convívio com Camões e Dante: “camões, dante e pal-
milhando / seu pedroso caminho o itabirano / viram no rosto o nosso ser
estampando // minto, menos Drummond / que ao desengano de repintar
a neutra face / agora com crenças dessepultas do imo arcano desapeteceu”.
Quanto ao Capítulo 4, dedicado a A máquina zero, em rigor, é aquela em
que aqueles efeitos mágicos conhecem a suprema efectividade, através dos
modos poéticos de entranhar e desentranhar, abrir sulcos e tirar água do
poço, descalçar-se e murmurar com que Ricardo Aleixo avança por entre
as ruínas da cidade de Berlim.
Mas ainda há outra coisa a dizer sobre Drummond que não se des-
cortina exactamente em nenhum dos outros poetas do tríptico, a saber, o
seu lado demoníaco (em sentido goethiano8), o lado perigoso, da vida em
perigo do poeta insubmisso, intratável e inadaptado, que a saliva do poema
“Procura da Poesia” (A rosa do povo) deixa cair. Eduardo Jorge de Oliveira
escolhe estes versos: “penetra surdamente no reino das palavras / Lá es-
tão os poemas que esperam ser escritos”, aproximando-os de um preceito
que Ricardo Aleixo teria seguido “ao fazer com que a máquina tenha uma
concretude vinda do zero” (p. 240). Aqui, vejo outra coisa, vejo, manifesto,
o segredo da epígrafe de Claro enigma (um dito de Paul Valéry): “Les évè-
nements m’ennuient”, exibindo ferozmente a indiferença de Drummond
e o seu aborrecimento em relação ao andamento do mundo, precisamente
aos acontecimentos.
Por sua vez, Haroldo de Campos revela-se desde o início como maître-à-
penser de Eduardo Jorge, tendo o discípulo alcançado aquele patamar em que
já não se luta mais, pois o amor e a admiração o salvam de ser subjugado. Seu
conterrâneo, Ricardo Aleixo abre caminho pela selva da cidade, guiando-o
pela estranheza da própria história social e política brasileira, através da
imagem do “corpo do preto”, e do idioma seu companheiro, o “pretoguês”:
“Os poetas – mas não apenas eles – buscaram um novo marco para a lin-
guagem e, talvez, de tal busca surja uma vontade de ver o mundo a partir
do zero” (p. 214). O título da obra encontra-se plenamente justificado.
Sabe-se desde o início que de máquina vem maquinação. É aqui que
a máquina do mundo se expande e embrenha na paisagem gramatical dos

O mundo a zero 21
usos suspeitos: Tramar o trânsito, tecê-lo com as palavras e conceber um
mundo ao estabelecer uma ordem temporariamente ordenada no poema,
que lhe leve para uma maquinação permanente a partir da qual o poema
tanto é ordem temporária quanto lugar de passagem (p. 223). Aí se revê a
“dimensão percursora” de Ricardo Aleixo.
Em rigor, o estudo de Eduardo Jorge de Oliveira “se ocupa sobretudo
de poetas”. Gosto muito desta declaração: “sobretudo” marca a extensão,
a imensidão da empresa, a sua fundura e o seu calibre (e que se pode re-
sumir à “opacidade poética” de que se fala na p. 39); “quase” vai ter com
o aparato crítico brasileiro e de muitos outros alhures. São múltiplas as
pedras-de-toque das qualidades excepcionais desse poeta que decidiu ser
também um scholar atittré.

CODA
Os que estão vivos têm sempre razão, embora todos – os que estão agora
vivos e os que estiveram vivos e estão agora mortos – tenham conhecido
e conheçam igualmente a perdição. Por outro lado, nunca os vivos estão
em condições de fazer justiça inteira aos mortos. Deles recebem a luta e o
veneno, e não há maneira de escolher. Os poetas sabem isso melhor do que
ninguém. Não, não é assim, os poetas praticam isso, fazem isso.
Entre a herança recebida, dilapidada, posta a render, e a agonia ju-
bilosa provocada pelo veneno, oferecido graciosamente em cada herança
(muitas vezes vomitado sob a forma de paródia, oximoro ou palinódia),
se move O mundo a zero. Drummond, Haroldo de Campos, Ricardo Aleixo e as
máquinas do mundo.
P. S. Faltaria ainda pagar uma dívida, nascida de um amor parcial,
fatal e intuitivo pela alegria, a partir do poema de Ricardo Aleixo com o
mesmo nome.

22 Eduardo Jorge de Oliveira

Você também pode gostar