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EDITORA UFMG
Diretor: Flavio de Lemos Carsalade
Vice-Diretora: Camila Augusta Pires de Figueiredo
CONSELHO EDITORIAL
Flavio de Lemos Carsalade (presidente)
Ana Carina Utsch Terra
Angelo Tadeu Caetano
Camila Augusta Pires de Figueiredo
Carla Viana Coscarelli
Élder Antônio Sousa e Paiva
Emília Mendes Lopes
Ênio Roberto Pietra Pedroso
Henrique César Pereira Figueiredo
Kátia Cecília de Souza Figueiredo
Lívia Maria Fraga Vieira
Luciana Monteiro de Castro Silva Dutra
Luiz Alex Silva Saraiva
Marco Antônio Sousa Alves
Raquel Conceição Ferreira
Renato Assis Fernandes
Ricardo Hiroshi Caldeira Takahashi
Rita de Cássia Lucena Velloso
Rodrigo Patto Sá Motta
Weber Soares
Eduardo Jorge de Oliveira
O mundo a zero
Drummond, Haroldo de Campos,
Ricardo Aleixo e as máquinas do mundo
© 2024, O autor
© 2024, Editora UFMG
Este livro, ou parte dele, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita
do Editor.
349 p. : il.
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5858-130-7
1. Literatura – História e crítica. 2. Literatura comparada.
3. Arte. 4. Ensaio. I. Título.
CDD: 809.84
CDU: 82-4
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Campus Pampulha – 31270-901 – Belo Horizonte/MG
Tel: + 55 31 3409-4650 – www.editoraufmg.com.br – editora@ufmg.br
AGRADECIMENTOS
Este livro não teria sido possível sem a ajuda de várias pessoas e ins-
tituições. Difícil nomear todas e todos numa lista que seria exaustiva.
Esta obra faz parte de um ciclo que começou formalmente com um curso
e terminou com um manuscrito de tese de habilitação apresentado em
2022 na Faculdade de Filosofia da Universidade de Zurique. A forma
inicial foi um curso magistral oferecido no Instituto de Romanística da
mesma Universidade em 2017. Assim, o primeiro agradecimento vai para
todas e todos os estudantes que frequentaram as aulas, especialmente Sofia
Sabatini, que foi minha assistente. O agradecimento se prolonga às e aos
colegas que acolheram o manuscrito, pelo tempo de dedicação à leitura
e aos comentários. Agradeço ainda à Maria Filomena Molder, com quem
iniciei os diálogos sobre a máquina do mundo em 2015/2016. E às e aos
colegas Tristan Weddigen, Adriana López-Labourdette, Jens Andermann,
Johannes Bartuschat, Itzíar López Guil, Tatiana Crivelli, Sandro Zanetti,
Sandra Frimmel, Tiago Pinheiro, Eduardo Sterzi, Maria Elisa Rodrigues,
Kenneth David Jackson, Pedro Meira Monteiro, Florencia Garramuño,
Marisa Gago Iglesias, Diana Junkes, Júlio Mendonça, Ivan Campos (in
memoriam), Raquel Campos, Ricardo Aleixo, Maria Esther Maciel, Vera
Casa Nova, Ana Martins Marques, Edimilson de Almeida Pereira, Prisca
Agustoni, Camila Figueiredo, Anne Caroline Silva e a todas e todos da
equipe da Editora UFMG. Dedico ainda este livro à memória da minha
avó, Zilma Silva Marques, a primeira a me mostrar a máquina do mundo.
E veramente chi non estima questa arte parmi che molto
sia dalla ragione alieno; ché la machina del mondo, che noi
veggiamo coll’amplo cielo di chiare stelle tanto splendido
e nel mezzo la terra dai mari cinta, di monti, valli e fiumi
variata e di sí diversi alberi e vaghi fiori e d’erbe ornata,
dir si po che una nobile e gran pittura sia, per man della
natura e di Dio composta; la qual chi po imitare parmi es-
ser di gran laude degno; né a questo pervenir si po senza
la cognizion di molte cose, come ben sa chi lo prova.
Baldassare Castiglione, Il cortegiano (1528), libro I, cap. LIX.
Prefácio 13
Maria Filomena Molder
Introdução
MÁQUINAS ÉPICAS E RESTOS HISTÓRICOS 23
Capítulo 1
O MUNDO, UMA ELEGIA 25
Variações a partir de Drummond
O mundo no dicionário 27
Máquina do mundo: totalidade e fragmento 29
Majestosa e circunspecta 31
Uma fotografia dolorosa: sentimento
[da máquina] do mundo 34
O mundo e a ruga 35
Máquina encantada, máquina desencantada:
“nada escrito no céu” 37
A medida do poema, alguma crítica 48
Microcortes do Geist brasileiro:
o cósmico e o corpóreo 48
Meu corpo, meu negro 50
Capítulo 2
EXPERIÊNCIAS ATLÂNTICAS, EXPERIÊNCIAS
DE DESTROÇOS 55
A máquina do mundo: naufrágio com o leitor 55
Dois poemas de A paixão medida 61
Camões & Cia.: Drummond,
Haroldo de Campos, Ricardo Aleixo 66
Língua maquínica: cantar, ao som do dano 67
A estranha ordem geométrica de tudo:
os sentidos e os instantes 76
Um poema-orelha: poesia, sinal de menos
(um excurso) 77
Língua maquínica, voz e grito gráfico 80
Atenção, desvio: tradição, transmissão 82
Máquinas do mundo: estrelas, mapas e atlas 84
Viagens do olhar: das protossintaxes
espaciais à ética cartográfica 89
Camões, anti-Camões: Lira e antilira 95
Sem emitir um som que fosse impuro /
nem um clarão maior que o tolerável 100
Som pausado e seco: a máquina melancólica
de Carlos Drummond de Andrade 104
Pablo Lobato, Laura Vinci: som rouco
e poeira branca 106
Ruínas da máquina do mundo:
“e ruindo se vai a porta” 119
Mistério, minério: breve excurso sobre o som 121
Mundo, rosto, montagem 124
Capítulo 3
UM POEMA EM BIG BANG 129
A máquina do mundo repensada
Uma paralelização contínua: um desvio bíblico
ou “os fios retorcidos num cabo” 148
Paródia e pós-utopia na máquina do
mundo repensada 160
Cânone, kairos e crise: ouvindo a estrutura do ritmo 169
Máquina do mundo: enteléquia viva 183
“rodam sobre seus rodízios de três zeros” 197
Capítulo 4
SAPATOS TIPOGRÁFICOS 205
“Máquina zero”, de Ricardo Aleixo
Máquina zero: a máquina da máquina 234
“Por último, a saúde / do que acaba”:
ecos de exílio no mundo 254
“Boca também toca tambor”:
uma ancestralidade maquínica da voz 265
O tambor do texto cantado:
ritmos da palavra e do corpo 278
Era uma vez uma voz:
estruturas de um mundo vocalizado 283
Cantar o zero por linhas tortas:
“Minha linha”, “Cantiga de caminho”
e notas sobre a cantiga 287
Conclusão
EXPERIMENTUM LINGUAE 293
A máquina do mundo nas encruzilhadas
da língua portuguesa
NOTAS 299
REFERÊNCIAS 335
ABERTURA
Em março de 2016, num dos nossos encontros parisienses, Eduardo Jorge
ofereceu-me A máquina do mundo repensada de Haroldo de Campos. Sentada
no autocarro que apanhei no Quai d’Orsay em direcção à Étoile, comecei
de imediato a ler o longuíssimo poema. Quando saí, ainda o ia a ler com-
pletamente absorvida, e continuei a fazê-lo sem interrupção na recepção
do hotel até ter terminado.
Este não tinha sido o primeiro nem seria o último livro de Haroldo
de Campos que chegava às minhas mãos através das mãos desse amigo
brasileiro, seu leitor dedicado e apaixonado.
Entretanto eu tinha lido do Haroldo sobretudo traduções1 e, em parti-
cular, uma que terá de ocupar um lugar bem alto na montanha ou no mar,
a saber, a tradução do Qohélet/Ecclesiastes, que ele fixou como O-que-sabe, e
que fora uma das traduções-base (a outra era a de Guido Ceronetti), utili-
zadas por mim, um ano antes, para as conferências sobre o “grande Anó-
nimo” (Culturgest, Lisboa).
Já na Primavera de 2017 no seu seminário na Universidade de Zurique:
“Poéticas Contemporâneas I: O Poema como Máquina do Mundo”, Eduardo
Jorge de Oliveira ocupava-se do motivo da máquina do mundo, tal como ele
se desenrolou em língua portuguesa na poesia portuguesa e brasileira. Nos
anos seguintes prosseguiu o seu estudo, expandindo-o e aprofundando-o,
até chegar à redacção final e ao título definitivo de O mundo a zero. Drummond,
Haroldo de Campos, Ricardo Aleixo e as máquinas do mundo, permitindo ao leitor
surpreender in actu as múltiplas passagens entre máquina e mundo, ele-
gendo como guia a última variação do motivo (a mais recente, mas segura-
mente não a derradeira), encontrada na poesia de Ricardo Aleixo:
Se, para Drummond, o mundo redundantemente termina no mundo, e,
para Haroldo de Campos, o mundo tem seus saltos tigrinos em direção
às estrelas e galáxias, de certo modo, para Ricardo Aleixo, existe in nuce
a tarefa de uma etnografia de mundos inferiores à dimensão da máquina
do mundo. (...) A presença africana e afro-brasileira na sua poesia é um
fator que colabora para uma leitura mais ampla da máquina do mundo e
que corrobora para o deslocamento da razão ocidental, da qual a máquina
camoniana é a expressão mais bem-acabada (p. 81).
Não seria apenas uma metáfora afirmar que a primeira imagem que se
tem de um poeta é daquele ou daquela que anda, que erra, seja em exílio
como Dante, ou na figura do viajante, como Camões; enfim, ao longo da
história observa-se uma grande parte de poetas em movimento, de modo
que tampouco seria exagero situar a terminação nervosa da língua, lite-
ralmente, nos seus pés.
O mundo a zero 15
sincrônica” (conceito cunhado e desenvolvido por Haroldo de Campos – cf.
p. 135-136 – e que percorre, perambula, como sola do pé, sapato de largo
fôlego e mancha tipográfica no livro de Eduardo Jorge de Oliveira). Por
exemplo:
As mãos em primeiro plano cobrem parcialmente seu rosto, que por sua
vez está inclinado, a subtrair-se do mundo ao mesmo tempo que subtrai o
mundo do seu campo de visão. Ele expõe sumariamente no campo fotográ-
fico a práxis do poeta com a força das ambivalências com as quais ele lidou
na poesia. Pode-se retornar à “Elegia 11” de Camões, que ainda lança sua
luz para compreender a relação entre o poema e uma medida do mundo,
pois os poetas escutam e detalham “aqueles movimentos ordinários, a que
responde o tempo, que não mente” (Elegia 5 de Camões) (p. 35).
O mundo a zero 17
(...) o presente estudo sobre a máquina do mundo: parte do problema vem
da própria obra de Ricardo Aleixo, da de Haroldo de Campos, e convida
a uma releitura de Drummond – e esse não é um estudo sobre a poesia
de Drummond, mas com ela – e à presença de Camões. Existe aqui, na
dimensão sincrônica e no seu critério estético-criativo, uma perspectiva de
leitura processual que não se encerra nos poetas lidos e estudados, mas se
prolonga por outras poéticas3 (nota 212, p. 315).
O mundo a zero 19
em acto, entre o pé e o sapato, ambos actores do poema de Aleixo em que
reinam, segundo Eduardo Jorge, a autopoiesis e a técnica da assemblage. Por
isso, e com as suas próprias palavras, Ricardo Aleixo nunca saiu da má-
quina do mundo (p. 233).
Eduardo Jorge frequentou a oficina do gesto e teve bons mestres que a lite-
ratura brasileira multiplicou com perícia e estudo. Nessa oficina a imagem
e a palavra são correlatas à maneira goethiana, mas com sentido brasileiro
(ou sentidos, o plural é sempre melhor nesses casos), isto é, imagem e pa-
lavra comem-se uma à outra, devoram-se e vomitam-se, pois trata-se de
uma questão antropológica de funda fisiologia. Pedras-de-toque escolhidas
(além das obras Bronze revirado, 2011, de Pablo Lobato e Máquina do mundo,
2005, de Laura Vinci – entre o dobrar dos sinos e a poeira do mecanismo –
cf. “Pablo Lobato, Laura Vinci: som rouco e poeira branca”, “Quem dobra
os sinos?” e “Breve história da escultura em pó”, Capítulo 2): a fotografia
de Drummond por Rogério Reis, já mencionada; a montagem fotográfica
de Drummond de Andrade (“Mundo, rosto, montagem”, p. 124-127), si-
multaneamente “lúdica e lutuosa”, em que o rosto se transforma “em me-
dium da matéria em transformação”, enquanto decomposição prometida e
animalidade partilhada; e ainda a mancha e a composição tipográfica da
capa de A máquina zero.
O mundo a zero 21
usos suspeitos: Tramar o trânsito, tecê-lo com as palavras e conceber um
mundo ao estabelecer uma ordem temporariamente ordenada no poema,
que lhe leve para uma maquinação permanente a partir da qual o poema
tanto é ordem temporária quanto lugar de passagem (p. 223). Aí se revê a
“dimensão percursora” de Ricardo Aleixo.
Em rigor, o estudo de Eduardo Jorge de Oliveira “se ocupa sobretudo
de poetas”. Gosto muito desta declaração: “sobretudo” marca a extensão,
a imensidão da empresa, a sua fundura e o seu calibre (e que se pode re-
sumir à “opacidade poética” de que se fala na p. 39); “quase” vai ter com
o aparato crítico brasileiro e de muitos outros alhures. São múltiplas as
pedras-de-toque das qualidades excepcionais desse poeta que decidiu ser
também um scholar atittré.
CODA
Os que estão vivos têm sempre razão, embora todos – os que estão agora
vivos e os que estiveram vivos e estão agora mortos – tenham conhecido
e conheçam igualmente a perdição. Por outro lado, nunca os vivos estão
em condições de fazer justiça inteira aos mortos. Deles recebem a luta e o
veneno, e não há maneira de escolher. Os poetas sabem isso melhor do que
ninguém. Não, não é assim, os poetas praticam isso, fazem isso.
Entre a herança recebida, dilapidada, posta a render, e a agonia ju-
bilosa provocada pelo veneno, oferecido graciosamente em cada herança
(muitas vezes vomitado sob a forma de paródia, oximoro ou palinódia),
se move O mundo a zero. Drummond, Haroldo de Campos, Ricardo Aleixo e as
máquinas do mundo.
P. S. Faltaria ainda pagar uma dívida, nascida de um amor parcial,
fatal e intuitivo pela alegria, a partir do poema de Ricardo Aleixo com o
mesmo nome.