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São Paulo, sábado, 26 de março de 2005

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RODAPÉ

Mérot e as virtudes da corrosão


FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

"T oda família clássica sente-se na obrigação de ter um


fracassado: uma família sem fracassado não é uma família de
verdade porque lhe falta um princípio que a conteste e lhe dê
legitimidade". A abertura do livro "Mamíferos", de Pierre
Mérot, professor parisiense na casa dos 40, ex-editor, ex-
jornalista, condensa, num misto de boa insolência literária e
etologia aforismática, o espírito da sua narrativa: literatura
urbana, de um intelectualismo ácido, uma sexualidade franca
e sem adornos, uma escrita avessa à impostura dos grandes
temas e à impostação das grandes frases.
O fracassado em questão é o "tio", protagonista anônimo,
ironicamente designado a partir da instituição que abomina,
a família, que, acumulando "tropeços gratificantes" (sem
filhos, sem empregos, sem parceira monogâmica, sem
prestígio ou títulos), conquistou o primeiro plano desta
biografia do "Homem Sem Qualidades" moderno,
chapinhando na sua lama cotidiana, aqui, convenientemente
ordenada nas três partes que compõem o volume, "Gastrite
Erosiva", "Pedido de Falência" e "Roupa Suja". Elas prestam
conta minuciosa do entra e sai incessante dos bares -
território que o tio, alcoólatra convicto, domina, demarca e
defende com todo engajamento, mínimo, de que é capaz-,
das duas "tentativas de suicídio afetivo", ou seja, os
casamentos desfeitos, e dos ensaios, frustrados, de uma vida
profissional ordinária.
O estilo de Mérot, corrosivo e raso, arma uma verdadeira
razia da rotina contemporânea. Pouco concessivo,
desencantado, o tio é acompanhado de fora e de perto pelo
narrador, que o desenha atraente em sua recusa do jogo
social. De fracasso em fracasso -o desfile é longo, e a
demolição, certeira-, ele desempenha a vocação, que é
também a do autor, de anatomista. Revolve as entranhas do
mundo operoso e diligente e o mau cheiro não se faz de
rogado. Do serviço civil obrigatório no Museu da Marinha,
pretexto para dissecar o espírito público que move a
burocracia, às passagens pelo mundo empresarial (editoras
marginais e o mundo quase tecnológico do minitel, finado
ancestral gaulês da internet), culminando numa experiência
como professor (observador participante de uma farsa
pedagógica numa escola de periferia), Pierre Mérot expõe,
com a contundência seca, incisiva e sarcástica da caricatura,
as razões pelas quais o trabalho, há muito, deixou de
dignificar.
Premiado com o de Flore, "Mamíferos" evocou uma série de
modelos literários ao aparecer, em 2003. As referências mais
freqüentes foram a Louis-Ferdinand Céline (1894-1961),
pela misantropia e o bisturi incisivo, a Charles Bukowski
(1920-1994), pelo veneno destilado em mares de álcool,
mas, principalmente, ao escritor francês Michel Houellebecq
(1958), pelo sexo e pelas poucas concessões ao
politicamente correto. De fato, há no livro uma impaciência
francesa, rabugice, e um humor cortante que, mesmo de
vocação satírica, não abre claros num céu cinzento. A
disposição de não compactuar, descartando quase tudo -
trabalho, família, arte, pedagogia, psicanálise, casamento,
amor-, num mesmo esgoto, lembra o autor de "Plataforma"
(2001) e "As Partículas Elementares" (1998), dos quais há
traduções brasileiras. Como Houellebecq, Pierre Mérot
provoca e polariza, sem tampouco propor qualquer
revolução formal evidente. A contundência é a da
simplificação e da repulsa às meias palavras, da opção por
uma escrita chã, quase relatório, que apenas muito
excepcionalmente se permite alçadas líricas, brotando das
circunstâncias menos esperadas.
O paradoxal é o interesse que este "angry young man" não
mais tão jovem desperta, atraindo por vias tortas o que restou
de simpatia e identificação possível em seus companheiros
de espécie e falência. Difícil saber ao certo se o que
prevalece é o elemento de individualismo exacerbado que
seu gosto pela marginalidade oferece (um certo não-me-
amolismo que se refugia nas ilusões desfeitas) ou o
compartilhamento de seu diagnóstico, preciso e pouco
consolador. O conjunto vale a visita.

Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço

Mamíferos

Autor: Pierre Mérot


Tradução: Eduardo Brandão
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 34 (176 págs.)

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