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As Três Vidas

João Tordo
Dom Quixote

A vida depois da vida


Por Nathalie Gal

Numa linha introdutória, diria que o romance As Três Vidas, de João Tordo, é
uma obra "para todos os gostos" ou, mais exactamente, uma obra destinada a públicos
muito heterogéneos. Não se trata meramente, porém, de um livro de "massas" motivado
por objectivos comerciais. A obra vende e conquista, de facto, até por várias frentes,
mas não porque se proponha fazê-lo.

Importa, no entanto, referir que existe aparentemente alguma "banalidade" na


obra, no sentido em que esta corresponde a todos os estereótipos do género literário em
causa. A trama em si é do mais comum possível: uma história autobiográfica, um amor
impossível, um conjunto de peripécias e enigmas – tudo conjugado num jogo habilidoso
de emoções que magnetiza a curiosidade do leitor. As personagens estão, também elas,
de algum modo estandardizadas: o jovem protagonista ingénuo e dócil a quem a vida
ensinará duras lições; o ancião sapiente e bizarro, que se revela gradualmente o avô
rejeitado pela prole, a criatura fragilizada pela passagem corrosiva do tempo; a jovem
rapariga, cujo espírito irreverente e indomável subjuga nefastamente o coração do herói.

Tudo isto nos parece expectável num "romance-padrão", o que não é de forma
alguma depreciativo, até porque é, em grande medida, essa familiaridade que cativa o
grosso dos leitores. No entanto, pensar-se-á, e com razão, não foi com certeza o
constituinte vulgar da obra que a consagrou vencedora do Prémio Saramago em 2009. O
que faz, então, deste romance não apenas mais um romance? A resposta não é linear,
mas assenta num facto, quanto a mim, indiscutível: a genialidade de João Tordo reside
na sua mestria em fazer do ordinário extraordinário.

Sob o revestimento de um romance "típico", As Três Vidas desvela dimensões


profundas e latentes do ser e da interacção deste com a vida. E, admiravelmente, fá-lo
engendrando um conjunto de questões, que saltam da trama para a realidade, às quais,
em grande parte e propositadamente, não responde. A sua concepção e explicitação são
apenas parciais para que o leitor complete o não-dito e o não-feito. Mas muito mais
importante do que deslindar os mistérios intrigantes do enredo é discernir as verdadeiras
questões que estes representam fora da ficção. Muitas vezes, o silêncio do autor
prenuncia a inexplicabilidade inerente a certos fenómenos, como a morte, o futuro, o
destino, o porquê de as coisas serem como são e de não serem diferentes.

Um dos aspectos intrigantes da obra é que o protagonista, que narra a sua


biografia na primeira pessoa, não tem nome. Esta ausência passa facilmente
despercebida, já que o autor se esmera em torná-la imperceptível, mas, mesmo quando
nos apercebemos dela, o facto não incomoda, porque a caracterização da personagem ao
longo da obra é de tal minúcia e coerência que o imaginário do leitor dispensa qualquer
vínculo nominal. Esta omissão por parte do autor denota o claro intuito de incutir uma
certa "impessoalidade" na personagem, que a torna, paradoxalmente, mais pessoal para
cada um dos leitores. Releva-se assim uma personagem que pode (e deve) personificar
qualquer ser humano e cuja concretização final depende do olhar criativo do leitor.

Outra das noções que o autor esboça para análise, porventura a noção basilar que
permeia toda a obra, prende-se com o título: "As Três Vidas". A expressão poderá ter
várias aplicações, mas não remete seguramente para a vida depois da morte; pelo
contrário, remete para a vida depois da vida. De outra perspectiva, as três vidas
representam genericamente as três personagens principais e também as três fases da
vida de cada uma delas: Camila desperta para a vida com o sonho (idealizando a mãe, o
funambulismo, o futuro), depois confronta-se com a realidade (deparando-se com a
discrepância entre o sonho e o real) e finalmente caminha para a obstinação (quando
cria o seu próprio mundo, no qual se refugia em crescente obsessão, quase loucura pelo
risco). Já Milhause Pascal primeiramente incorre no crime (na sua insólita participação
na guerra), depois procura a reconciliação (consigo mesmo e com parte dos outros) e
acaba por desligar-se progressivamente da existência. O protagonista deixa-se arrebatar
pela novidade e pelas emoções, que o conduzem a um prolongado período de frustração,
do qual finalmente ressuscita para um recomeço por narrar.

Esta é a vida de três pessoas que se cruzam e descruzam em momentos cruciais,


e estas são as três vidas de cada uma delas, que se seguem umas às outras sem aviso
prévio, como se independentes do próprio corpo que habitam, mas profundamente
interligadas entre si, tendo cada uma como ténue ponto de partida o final da anterior. A
vida sucede-se assim à própria vida, reconstruindo-se continuamente sobre os vestígios
do que já não é, porque não há alternativa senão continuar a vivê-la contra as investidas
funestas. Tal é como uma corda infinita no topo das alturas, que, apesar de esticada,
bamboleia, por vezes freneticamente, com o passo incerto daquele que a calca. O
acrobata tem apenas uma certeza, tão apaziguadora quanto inquietante: a corda não cai.

Da simplicidade da escrita emana o belo e da profundidade do seu conteúdo a


maior riqueza. Não há uma palavra a mais nem a menos, não há conceitos mal
expressos, não há termos rebuscados, ideias rocambolescas ou impenetráveis. Há, isso
sim, imenso por onde explorar. A linguagem flui, despertando a vontade de ler e,
sobretudo, de pensar.

As Três Vidas corresponde, enfim, às expectativas de vários tipos de leitores: os


coleccionadores de histórias, os amantes de literatura, os exploradores de ideias, os
esmiuçadores de entrelinhas, os caçadores de insólitos e os sequiosos de emoções.
Qualquer um deles encontrará válidas e distintas razões para se deter nas páginas deste
romance, porque o seu autor consegue eximiamente enredar todos estes elementos numa
unidade infragmentável.

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