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O
de Assis
A mim me repugna toda atitude que desliga o homem desuaobra:isto
redunda em tecnicismo, que, no meu entender,éumdosmaioresmales
da época.
Mudam os tempos. Há 100 anos, para se fazer crítica e histórialiterária
era necessário conhecer o meio físico, com suas linhas isotérmicas e
isóbaras, falar da raça e analisar o momento histórico. Oautoraísurgia
como um produto por assim dizer fatal, uma espécie de cogumelo
estético. Depois, foi o biografismo e a preocupação de explicar os
personagenspelaideologia,peloscomplexos,pelosressentimentos,pelos
conflitos do autor consigo mesmo ecomseumeio.Agora,éoexameda
obra como um ens a se, como um objeto autônomo, uma partida de
xadrez sem jogadores.
No caso de Machado de Assis, uma análise meramente formalista
prejudicaria sensivelmente o resultado e, talvez, impossibilitaria uma
interpretação final e global da obra.
Por outro lado, a crítica nacional, anterior, que longamente se debruçou
sobre ele, foi quase unânime em ver nele um grande autor, o maior de
todos, sem dúvida, mas um autor duro, amargo, pessimista, destruidor
da crença no homem e da crença em Deus. Depois este julgamento,
quase “oficial”, veio uma tentativa de recusa pelo silêncio, por parte da
crítica ideológica: Machado não merecia consideração, porque teria sido
um “desengajado”, um “alienado”, voluntariamente recluso em sua torre
de marfim. Não se teria preocupado com os problemas sociais de sua
época, especialmente o da escravidão (o que nem sequer é verdade), e
por isso deveria ser considerado uma figura marginal, um burguês que
escreveu para divertir os burgueses.
Discordo convicto da crítica “oficial” e da crítica ideológica. Entendo que
Machadonãofoipessimista,nosentidopróprioerigorosodapalavra,não
descreu do homem nem de Deus, não se desinteressou daproblemática
do seu tempo, não escreveu para divertir os burgueses.
Pelo contrário, uma das suas excelências foi, precisamente, denunciar o
erro-da-raiz da filosofia burguesa da vida quando estava no auge a
civilização dela nascida.
Machado de Assis é um dos mais impressionantes exemplos de
self-made-man. Mulato, filho de umoperárioedeumalavadeiraoriunda
dos Açores, órfão muito cedo, só freqüentou a escola primária, ainda
assim muito deficiente.
Não obstante, aprendeu francês, inglês e alemão, formou sólida cultura
humanística, tornou-se o mais perfeito prosador da língua portuguesa
contemporânea, galgou, passo a passo, sem fazer nenhuma concessão,
todos os postosdavidaliterária,emorreucercadodorespeitodetodos,
como Presidente perpétuo da Academia Brasileira de Letras, que ele
ajudara a fundar.
Alémdisso,elecultivoudiscretamente,mascomfervor,muitasamizades,
nutriuamaisfrancaadmiraçãopordiversasfiguras,contemporâneasedo
passado,comoLeãoXIII,obispobrasileiroD.Vital,vítimadeperseguição
regalista, José de Alencar, homem e escritor de temperamento e de
tendências muito diversas das suas.
Ora, quem admira crê no homem, aposta nos valores humanos. O
verdadeiro céptico, o verdadeiro pessimista assume atitude cínica, de
nivelamentodetodosnomesmopântano,deexplicaçãodetodososatos
humanos por motivos interesseiros ou sórdidos, quando não (mais
modernamente) prefere explicar tudo pelos hormônios, pelos
ressentimentos, pelas condições econômicas ou pelos conflitos com a
sociedade ou com o meio familiar. O autêntico pessimista professa a
maldade radical da natureza humana. Acha que nada vale nada, que
todos são veniais, todos têm seu preço e que os atos aparentemente
heróicos ou excepcionais se reduzem à vaidade, ao exibicionismo, ou a
uma forma de loucura, mansa ou furiosa.
Não é isto que se encontra em Machado de Assis. Ele foi um agudo,
profundo, quase cruel analista da alma humana. Punha a nu os mais
recônditos pensamentos, as mais secretas motivações de seus
personagens, para denunciar a vigorosa presença do amor-próprio.
Analisouosdiversoscomportamentoseasdiversasdissimulaçõesdomoi
de surface, a decisiva importância que a opinião tem nos atos das
pessoas. Numa palavra, mostrou a fragilidade moral dos homens. Mas
tinhaendereçocerto:ohomemdominadopelafilosofiaburguesadavida,
o homem integrado nessa “civilização de aparências”, que éaburguesa.
(Estáclaroquenãomerefiroàclassesocial,masaoestadodeespíritoe
à escala de valores que historicamente coincidiram com a ascensão e o
domínio da burguesia, e que se pode encontrar emantigosnobreseem
proletários e pode não encontrar-se num componente da classe média).
A obra de ficção de Machado de Assis claramente se distribui por duas
fases muito distintas: uma primeira, que coincide com a temperada
adesão ao Romantismo, convencional, bem-comportada, ordenada a
agradar as mulheres e distraí-las nos seus ócios; a segunda, a partir
sobretudo de 1880, original, independente, realista, analista, fria,
pontilhada de lances dehumour.
Realmente, por volta dos 40 anos, nel mezzo del camin, o nosso autor
passou por umagravecrise,umaintensavibraçãointerior,umadolorosa
experiênciaexistencial,qualquercoisaquepoderíamosdenominarhojede
“angústia metafísica”. Vários fatores tê-lo-iamlevadoaessa“pausapara
meditação”: o agravamento da epilepsia, a meditada leitura de Pascal,
Pensées (sobretudo, creio eu, La misère de l’homme sans Dieu), a
profundaobservaçãodoespetáculodavida,acorajosaindagaçãosobreo
sentido final do mundo e do homem.
Descobrindo,emtodaaprofundidade,afraquezadosercontingente,sua
atração pelos abismos do não-ser, dispôs-se a aplicar sua descoberta à
dissecação dos atos humanos, como que se comprazendo em
mostrar-lhes o lado negativo, a constante mistura de néant, se se pode
dizer esse absurdo, ou mais inteligivelmente,emchamaraatençãopara
os buracos, as falhas, as deficiências.
A experiência ontológica a que se entregou é apavorante, exige um
arcabouçomentalmuitorijoeumequipamentofilosóficosolidíssimo,para
não desnortear e lançar no pessimismo radical. Machado terá sofrido a
tentação de tal pessimismo. Terá mesmo — quem sabe! —sucumbidoà
atenção, terá interiormente passado por uma fase opaca, sentindotravo
na boca, abismos na alma, perturbação na inteligência, paralisia na
sensibilidade. Teria sido esse o primeiro resultado de sua contemplação
do “desconcerto do mundo”, para usar a expressão de Camões.
Não só em certas passagens dealgunsromancesecontossesenteessa
espécie de impregnação autobiográfica, mas também num poema como
“A uma criatura”, “antiga e formidável, que a si mesma devora os
membros easentranhas”,criaturaque,nofim,ficamossabendoqueéa
Vida e não a Morte, como se seria naturalmente levado a supor.
Mas essa fase foi vencida, e Machado caminhou para uma pacificação
espiritual, finalmente atingida, como veremos. Não obstante, aplicou
sempre, até os últimos romances e contos, as técnicas de análise
dissolvente enegativista,exatamenteparadenunciaroerrofundamental
da concepção individualista e egocêntrica de vida.
Convencidos desse erro, pô-lo a nu e combateu-o, não com atitude de
apóstolo ou militante, que nunca teve, mas comaarmadoridículoedo
humour. Uma das técnicas que mais emprega é a de tratar gravemente
as coisas fúteis e levemente as coisas sérias. Ele quer obstinadamente,
mas como quem não se empenha, como quem sorri, como quem não
acredita em nada, ele quer mostrar a miséria moral de um homem que
ostenta virtude —oburguês—,masestácorroídointeriormente,porque
desligou a Moral de suas verdadeiras bases, a justiça e o amor.
O romance a que acima me referi, Memórias Póstumas de Brás Cubas,
serve particularmente a esse fim, porque o autor éumdefunto,que,da
outravida,sedispõeacontar,comsinceridadeahistóriadosseuspassos
nesta vida. Já não tem compromissos, já não é obrigado a guardar
conveniências,eentãofaladesiedosoutroscomtodoodesembaraçoe
toda a lucidez. Tranqüilamente mostra os fingimentos, os egoísmos, as
capitulações, as baixezas, as misérias de toda sorte,oimpériosoberano
da vaidade, o culto sistemático das aparências. É umlivroterrível,mas,
sebemaproveitado,serámuitosalutar.Comliçõesdeespiritualidadeede
desligamento das liturgias do prestígio e do poder. Um livro que pode
ajudar-nos muito a aprender a rir de nós mesmos, de nossas loucas
corridas atrás do Nada.
Os romances e contos de Machado de Assis são muito pobres de ação:
quase tudo, ou ao menos o essencial, passa-se na cabeça dos
personagens. No fundo, o que está em jogo, o que se está procurando
compreender e definir é a inteireza moral. Daíporquesepodedizerque
nossoautor,sendoumargutoeimplacávelanalistadaalmahumana,um
dissecador da vaidade e do amor-próprio, é de fato um moralista e um
perfeccionista.Queraintegridadeeencontrafalhas,fraquezas,covardias,
venalidade, interesse, baixeza, sordidez.
Depois de Memórias Póstumas de Brás Cubas, romance publicado em
1881, veio Quincas Borbas, de 1891. É a história de um amor adúltero
platônico,toleradopelomarido,queexploraoricoamantedamulher,até
deixa-lo louco e sem dinheiro. Aliás, o personagem principal, Rubião,
tinharecebidoafortunaporherançadeumfilósoforicoedoido:herdouo
dinheiro e a loucura.
O filósofo, Quincas Borba, inventara uma filosofia nova, o Humanitismo,
que, nofundo,éumasátiraaopositivismodeComteeaoevolucionismo
deSpencer,queestavamemgrandevoganoBrasilnaqueletempo,oque
mostraafortepersonalidadedeMachadodeAssis,capazderesistireaté
de repelir as pressões intelectuais e culturais no meio social.
Este segundo romance é bem mais estruturado do que o primeiro e
apresenta um desfile de gente ordinária, que passa a vida matando o
tempo e comendo o dinheiro de Rubião, generoso e ingênuo.
Em1904apareceEsaúeJacó,históriadedoisgêmeos,PedroePaulo,em
tudodesconformes,emtudodiferentes,emtudoconflitantes,inclusiveno
amor à mesma mulher, Flora,quenuncasedecidepornenhum,eacaba
solteira. É realmente um magistral estudo da hesitação humana,
especialmente a feminina. Lateralmente o livro deixa ver o grande
cepticismo do autor em relação à política: ou ele seria ummonarquista,
decepcionado com o advento da República, ou entendia que não há
espíritopúbliconoshomenspúblicos.Énestestermosqueelefazumdos
seuspersonagens,talvezalterego,oConselheiro,noticiaraproclamação
da República brasileira: “Na Rua do Ouvidor, soube que os militares
tinham feito uma revolução”. Eis como ele apresenta o pai de Flora,
político profissional: “Nele a política era menos uma opinião que uma
sarna; precisava coçar-se amiúdo e com força”.
Memorial de Aires, publicado em 1908, ano da morte do autor, é um
romancediferentedetodososoutros.Semironia,semmordacidade,sem
humour, sem cepticismo, conta a história de um casal muito unido, que
acaba por adotar uma jovem, que se casa e a quem eles transferem a
felicidade, guardando para si a saudade de si mesmos e do seu
imperturbável amor.
OscríticoscostumamvernocasalAguiar-D.Carmoatransposiçãoliterária
do casal Machado-Carolina. Foi o livro escrito depois da morte desta,
morte que deixou o velho inconsolável e destruído.
Carolinaforaseuanjo-da-guarda,seuapoio,suacompanheiraperfeita,a
imagem e o símbolo de uma humanidade ideal. Ele era homem muito
fechado,muitoesquivo,muitoreservadoquantoaexpansõesafetivas:ela
foi-lhe confidente, estímulo, repouso, equilíbrio.
Sei bem que posso estar escandalizando, quando falo em resultados
espirituais da obra literária, que é, ou deve ser, segundo dizem,
meramente estética, marcada somente pela “literalidade”, bem
estruturadaoumalestruturada,denarrativalinear,sincopadaoureserva,
comestilodiretoouindiretolivre,comdois,trêsouquatroactantes,com
catálises, sintagmas e paradigmas etc. Mas paciência: sou dos que
acreditam nas conseqüências dos atos, dos que pensamquenadapassa
por nós sem deixar marcas, que a todo momento estamos fazendo
opções, na linha do lucro oudaperdadetempo,nalinhadaeternidade.
Se me permitem a ousadia, direi que acrescento à famosa sentença de
Terêncio — “h
omo sum: humani nihil a me alienum puto” — estaoutra:
“todos os atos humanos são graves e sérios, inclusive os levianos”.
Os personagens machadianos em geral não trabalham: são ricos, são
herdeiros, vivem de expedientes. As mulheres, então,sãoperfeitamente
ociosas, conforme ocorria numa sociedade escravocrata como adele.Os
contos insistem em certos tipos, como o louco ou o avarento.
A galeria de mulheres é particularmente rica: poucos terão apanhado a
psicologiafemininatãobemquantoele.Sofia,deQuincasBorba,eCapitu
deD.Casmurro,talvezsejamasduasmelhoresfiguras.Masnãosepode
esquecer a outra Sofia e a Mariana, do “Capítulo dos Chapéus”, D.
Benedita, D. Camila...
Tantos nos romances como nos contos, Machado nos dá uma perfeita
imagem da vida carioca no último quartel do século passado. Os
costumes populares e os da classe média, osespetáculosdeteatroede
ópera, as festasreligiosaseleigas,osdesportospreferidos,osestilosdo
comércio, os cartazes e as tabuletas, os anúncios, os cafés e
restaurantes, as brigas de rua, a vida das ruas. Nesse sentido, pode-se
dizer que ele é o melhor cronista do Rio Imperial, embora também o
tenha sido ex-professo, nascolunasquemantevenosjornaisdurante31
anos, de 1866 a 1897, com intervalos, mais ou menos longos.
Nessas crônicas comentava os acontecimentos locais, os nacionais e os
internacionais, tudo com muita independência, muita seleção pessoal,
muito domínio dos acontecimentos digamos assim. Chamava-se a si
mesmo “escriba de coisas miúdas”, e afirmava em termos peremptórios
sua transcendência em relação aos fatos:
“A
lémdisso,nascicomcertoorgulho,queháagorahádemorrercomigo.
Nãogostoqueosfatosnemoshomenssemeimponhamporsimesmos.
Tenho horror a toda superioridade. Eu é queosheideenfeitarcomdois
ou três adjetivos,umareminiscênciaclássica,eosmaisgalõesdeestilo.
Os fatos, eu é que os hei de declarar transcendentes; os homens, eu é
que os hei de aclamar extraordinários” (10 de julho de1892).
O poeta Machado de Assis é nitidamente inferior ao contista, ao
romancista e até mesmo ao cronista. No entanto, sua obra distingue-se
na literatura brasileira, sobretudo pelo cuidado da forma e pelo rigor do
metro. Na fase romântica, muito mais fecunda, seguiu os cânones da
escola, explorou a temática corrente e entregou-se a um lirismo
comedido, o que já é exceção num País tropical e palavroso.
Utilizou todos os ritmos da língua, inclusive os raros, como é o caso do
octossílabo (ou enessílabo, conforme a maneira de contar) e o
alexandrino clássico.
Na segunda fase compôs pouco, mas chegou a realizar alguns poemas
excelentes, como “A mosca azul”, “Soneto de Natal”, ou “A Carolina”. A
forma aprimora-se aindamaisefreqüentesvezesdeixatransparecerseu
novo estado de espírito: ironia, cepticismo, secura. Fez duas traduções
emversosmuitoboas:oSalmo136,“SuperfluminaBabilonis”,insertono
longopoema“Acristãnova”,dolivroAmericanas(1875),e“OCorvo”,de
Edgard Poe, no livroOcidentais(1901).
Em matéria de atitudes estéticas, escolas literárias, estilos de época ou
que outro nome tenham, Machado sempre se colocou em posição
eqüidistante, fugindo ao sectarismo e aos exclusivismos. Valeria a pena
transcreveraquioqueeledissearespeitodoNaturalismo,cujainfluência
começava então a ser avassaladora. Mutatis mutandis, têm muita
atualidade essas palavras, embora possam ser desagradáveis:
“A
nova geração freqüenta os escritores da ciência: não há por aípoeta
digno desse nome que não converse um pouco, ao menos, com os
naturalistasefilósofosmodernos.Deve,todavia,acautelar-sedeummal:
o pedantismo. Geralmente, a mocidade, sobretudo a mocidade de um
tempoderenovaçãocientificaeliterária,nãotemoutrapreocupaçãomais
do quemostraràsoutrasgentesqueháumaporçãodecoisasqueestas
ignoram; e daí vem que os nomes ainda frescos na memória, a
terminologia apanhada pela rama, são logo transferidos ao papel, e
quanto mais crespos forem os nomes e as palavras, tanto melhor. Digo
aos moços queaverdadeiraciêncianãoéaqueseincrustaparaornato,
mas a que se assimilaparanutrição;equeomodoeficazdesemostrar
que se possui um processo cientifico não é proclamá-lo a todos os
instantes, mas aplica-lo oportunamente” (O
bra Completa, Edit. José
Aguilar Ltda., Rio, 1962, vol. III, p. 836).
As coisas que dissemos por último nos oferecem ponte para outra
consideração. O caso Machado de Assis é verdadeiramente singular.
Sendo brasileiro, portanto tropical e derramado, conseguiu tornar-seum
atiço, pelo equilíbrio, pela sobriedade, pelo senso de proporção e de
medida. E isto é particularmentenotávelnummulato,gago,decondição
humilde como ele era.
Deveriaserumrecalcado,umexibicionista,umpalavroso.Foiocontrário.
Os inimigos da grandeza humana, os negadores do valor e do esforço
pessoal, os pessimistas, numa palavra, procurarão explicações na
psicologia da compensação, no condicionamento social, na decantação e
inversão das pressões externas. Mas issorealmentenãosatisfaz.Porque
explica sem explicar. É uma simples fuga à realidade, uma aceitação a
priori de esquemas que nos são propostos. Admito que os elementos
adversos tenham motivado a atitude dohomem;masfoisuaopção,sua
inabalável decisão e firmeza de vontade que produziram o espantoso
resultado.
Como disseacima,acrítica“oficial”vêneleomaiorescritordaliteratura
brasileira, sim, o único de dimensões verdadeiramente universais, sim,
um destruidor de valores, um homem seco e desprovido de ternura
humana, umentrepeneurdedémolitions(parausar,noutrosentido,uma
expressão de León Bloy), um schopenhaueriano. Já disse também que
discordo dessa exegese. Penso que deve ser outra a explicação do
weltanschauung machadiano. E fundo-me, para tanto, nas palavras do
próprio autor.
Sabemos, por declarações suas, que as leituras que o acompanharam
desdeajuventudeforamPascaleaBíblia.EnaBíblia,olivropreferidofoi
oEclesiastes.
Ora, todos sabem que este livro é um dos mais misteriosos, mais
provocantes,maisdiscutidos.Faladotorpeespetáculodomundo,dafútil
agitação dos homens, de suas tolas ambições. Tudo é vaidade e
perseguição do vento. Além disso, os maus são vitoriosos e os bons
muitas vezes sofrem injustiças. Nadahádenovodebaixodosol:osdias
se sucedem iguais, as gerações passam, e a terra continua.
“O
sol nasce e se põe, e tende ao seu lugar, donde volta alevantar-se.
Dirigindo-se ao meio-dia e voltando para o setentrião, torna e retornao
vento,enosmesmoscircuitosgiraovento.Todososriosentramnomar;
e o mar jamaistransborda;aolugarondevãoosrios,láretomamoseu
caminho. Cada coisa não faz senão afadigar-se,quantoninguémsaberia
dizer;nãosefartaoolhodever,nemoouvidosecansadeouvir.Oque
já foi, isso será. O que já se fez, isso se fará;nadadenovodebaixodo
sol” (Eccl. 1, 6-9).
Tudo é cansativo, causa tédio; tudo é vaidade e perseguição do vento.
Foi isso que Machado viu com seus olhos agudos, com sua inteligência
penetrante, com sua responsabilidade exacerbada. Viu, analisou,
desconsolou-se, e consolou-se no desconsolo do Eclesiastes.
Pode-se dizer — estou certo disso — que sua obra foi uma glosa desse
livro da Bíblia:
“V
oltei-meparaoutrascoisas,eviasoperaçõesquesefazemdebaixodo
sol, e as lágrimas dos inocentes, e que ninguém os consola; nem eles
podemresistiràviolência,vistoestaremabandonadosdetodosocorro.E
feliciteimaisosmortosdoqueosvivos,econsidereimaisfelizdoqueuns
e outros aquele que ainda não nasceu, e que não viu os males que se
fazem debaixo do sol. Contemplei de novo todos os trabalhos dos
homens, e reconheci que suas habilidades estão expostas à inveja do
próximo: e nisto também há vaidade e perseguição do vento” (Ibid., 4,
1-4).
Estranha linguagem para um livro sagrado! Dir-se-ia o discurso de um
cético e de um amargo pessimista: Dir-se-á o moto de que a obra de
ficçãodeMachadofoiaglosa:“O
bserveidenovoevidebaixodosolque
a corrida nãoéparaoságeis,nemabatalhaparaosdestemidos,nemo
pão para ossábios,nemariquezaparaosentendidos,nemofavorpara
os inteligentes: todosestãoàmercêdascircunstanciasdotempo”(I bid.,
9-11).
MasseriapossívelqueoLivroSagradonosquisesselevaraodesemprego
cínico?
Evidentemente não!Etextualmentenão:oEclesiastesacabaderepente,
por um epílogo incisivo, que mostra a perspectiva e a finalidade do autor:
“A
s palavras dos sábios são como aguilhões, e como cravos bem
pregados às coletâneas dos autores: e sãodadasporumsópastor.Não
busques, meufilho,maisdoqueessas.Nãosepõetermoemmultiplicar
livros,eodemasiadoestudocansaacarne.Conclusãododiscurso,depois
deouvi-lotodo:TemeaDeuseguardaseusmandamentos,porqueissoé
ohomemtodo;Deuscitaráemjuízotodasasaçõesacercadetodacoisa
oculta, quer seja boa, quer seja má”(E
ccl., 12, 11-14).
Ora, Machado vai descobrir isto, e mais ainda, depois de sua longa e
doloríssima experiência, acrescida do sofrimento trazido pela morte de
sua Carolina. Muitos anosantes,numacartaaela,quandoaindanoivos,
ela dizia-lhe:
“D
epois... depois, querida, queimaremos o mundo, porque só é
verdadeiramente senhor do mundo quem está acima das suas glórias
fofas e das suas ambições estéreis” (2-3-1868).
Numa cartaaseuamigoJoséVeríssimo,datadade4-2-1905,mortajáa
esposa,eledizisto:“emverdadeosofrimentoéaindaamelhorparteda
vida”.
Mas o principal é o que se segue. Como já disse, o Eclesiastes tem
desafiado a argúcia dos exegetas, que tomam caminhos diversos de
interpretação e de crítica textual. Uma das maisrecenteséaR.Pautrel,
tradutor e comentador do livro, na famosaBíbliadeJerusalém(D
uCert,
Paris, 1956).
Paraele,oautordoEclesiasteséumsó,devendo-seentenderaaparente
pluralidadedeautorescomoumadiscussãointerior,umdilaceramentodo
espírito. O Kohelet seria uma espécie de eu adebater-secomoanti-eu,
um homem terrivelmente perturbado com o espetáculo da vida.
“A
brindo diante de nós o absurdo do mundo, em que não se vê justiça,
em que os maus são premiados e os bons são oprimidos, em que tudo
passa, em que as felicidades são fugazes e quase sempre deixam gosto
decinzasnaboca;mostrando-nosdemaneiratãovida,tãointensamente
poética os ‘desconcertos do mundo’, o Eclesiastes quer-nos inculcar o
desapegorealetotalàscoisastransitóriaseafixaçãonotemordeDeus.
Entretanto,éaindaumlivroincompleto,quenãotrazemsioúltimoselo:
‘E
le prepara o mundo à compreensão de que bem-aventurados são os
pobres’” (Op. cit., p. 847).
Pormaisestranhoquepareça,teveessavisãoMachadodeAssis,maisde
50 anos antes de Pautrel, que é um especialista.
Numa crônica datada de 25 de março de 1894, conta-nos ele que, na
Semana Santa,entrounumaigrejaparaverosofícios.Observoubemas
pessoas que enchiam o templo: quase só mulheres. Aspirou o incenso,
foi-se envolvendo pela atmosfera litúrgica.
“S
oou o cantochão. Chegou-me o incenso. A imaginação deixou-se-me
embalar pela música e inebriar pelo aroma, duas fortes asas que a
levaram de oeste a leste. Atrás dela foi o coração, tornado à simpleza
antiga. E eu ressurgi, antes de Jesus. E Jesus apareceu-me antes de
morto e ressuscitado, como nos dias em que rodeava a Galiléia, e,
abrindo os lábios, disse-me que a sua palavra dá solução a tudo.
—Senhor,disseeuentão,avidaéaflitiva,eaíestáoEclesiastesquediz
ter visto as lágrimas dos inocentes, e que ninguém os consolava.
— Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados. —
Vede a injustiça do mundo. ‘Nem sempre o prêmio é dos que melhor
correm, diz ainda oEclesiastes, e tudo se faz por encontro e casualidade.’
— Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles
serão fartos.
—MaséaindaoEclesiastesqueproclamahaverjustos,aosquaisprovêm
males...
Aíestá.Terminodizendoqueestáéachaveparaentenderosentidofinal
da obra de ficção machadiana. Não se pode isola-la das cartas, das
crônicas, deste trecho, ora citado. Elas e ele informam a tese do
pessimismo radical. Sim, porque, naverdade,Machadomergulhoufundo
os olhos no espetáculo do sub sole, para oserguerdepois,banhadosna
luz da Esperança Teologal.