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Paisagem como modo

de entender o mundo
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Reitora: Sandra Regina Goulart Almeida
Vice-Reitor: Alessandro Fernandes Moreira

EDITORA UFMG
Diretor: Flavio de Lemos Carsalade
Vice-Diretora: Camila Figueiredo

CONSELHO EDITORIAL
Flavio de Lemos Carsalade (presidente)
Ana Carina Utsch Terra
Angelo Tadeu Caetano
Camila Figueiredo
Carla Viana Coscarelli
Élder Antônio Sousa e Paiva
Emília Mendes Lopes
Ênio Roberto Pietra Pedroso
Henrique César Pereira Figueiredo
Kátia Cecília de Souza Figueiredo
Lívia Maria Fraga Vieira
Luciana Monteiro de Castro Silva Dutra
Luiz Alex Silva Saraiva
Marco Antônio Sousa Alves
Raquel Conceição Ferreira
Renato Assis Fernandes
Ricardo Hiroshi Caldeira Takahashi
Rita de Cássia Lucena Velloso
Rodrigo Patto Sá Motta
Weber Soares
Laura Beatriz Lage

Paisagem como modo


de entender o mundo
© 2023, A autora
© 2023, Editora UFMG

Este livro, ou parte dele, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita
do Editor.

L174p Lage, Laura Beatriz.


Paisagem como modo de entender o mundo / Laura Beatriz Lage.
- Belo Horizonte : Editora UFMG, 2023.

344 p.: il.



Originalmente apresentado como tese na Escola de Arquitetura

da UFMG, em 2018, com o título: Paisagem como ligação territorial:
conservation/preservation through development.

Inclui bibliografia.

ISBN: 978-65-5858-121-5

1. Paisagem. 2. Planejamento urbano. 3. Patrimônio. I. Título.


CDD: 711.42
CDU: 711,4

Elaborada por Vilma Carvalho de Souza – Bibliotecária – CRB-6/1390

COORDENAÇÃO EDITORIAL Michel Gannam


DIREITOS AUTORAIS Anne Caroline Silva
ASSISTÊNCIA EDITORIAL Eliane Sousa
REVISÃO DE TEXTOS Mariana de Souza Novaes Teixeira
COORDENAÇÃO GRÁFICA Fernando Freitas
FORMATAÇÃO E MONTAGEM DE CAPA Giovanni Barbosa
PRODUÇÃO GRÁFICA Warren Marilac

EDITORA UFMG
Av. Antônio Carlos, 6.627 – CAD II / Bloco III
Campus Pampulha – 31270-901 – Belo Horizonte/MG
Tel: + 55 31 3409-4650 – www.editoraufmg.com.br – editora@ufmg.br
AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, primeiramente, e aos meus amados: meus pais, meu


marido, meus animais, meus amigos e familiares. Aos meus mentores in-
telectuais e a todos que contribuíram de alguma forma para a realização
deste trabalho, vocês sabem quem são. Em especial a Graham Fairclough e
Sam Turner, da Universidade de Newcastle, e a Niek Hazendonk e Henk
Baas (Cultural Heritage Agency of the Netherlands, Amersfoort), pela au-
torização do uso das imagens.
Isto é uma pedra, mas daqui a algum tempo talvez seja
terra, e da terra se transformará numa planta, ou num ani-
mal, ou ainda num homem (…) Pode acontecer que, no
decorrer do ciclo das metamorfoses, ela se converta num
ser humano e adquira espírito (…) Esta pedra é pedra, mas
também é animal, é também Deus…
SIDDHARTHA, 1922.
LISTA DE SIGLAS

APA – Área de Proteção Ambiental


BBO – Bodemarchief in Behoud em Ontwikkeling
CEP – Convenção Europeia da Paisagem
CMMAD – Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
DCR – Divisão de Conservação e Restauração
DEFRA – Department for Environment, Food & Rural Affairs - Departa-
mento de Meio Ambiente, Alimentação e Assuntos Rurais
DEPAM – Departamento de Patrimônio Material
DET – Divisão de Estudos e Tombamento
DPHAN – Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
EMATER – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural
EU – European Union - União Europeia
GIS – Geographic Information System
GPS – Global Positioning System
HLC – Historic Landscape Characterisation
HUL – Historic Urban Landscape
IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis
IBDF – Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal
ICCROM – International Centre for the Study of the Preservation and
Restoration of Cultural Property - Centro Internacional de Estudos para
a Conservação e Restauro de Bens Culturais
ICMBio – Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
ICOMOS – International Council of Monuments and Sites - Conselho In-
ternacional de Monumentos e Sítios
IFLA – International Federation of Landscape Architects - Federação Inter-
nacional de Arquitetos Paisagistas
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
IUCN – International Union for Conservation of Nature - União Internacio-
nal para a Conservação da Natureza
LCA – Landscape Character Assessment
MHN – Museu de História Natural
ONG – Organização Não-Governamental
ONU – Organização das Nações Unidas
OQP – Objetivos de Qualidade Paisagística
RPPN – Reserva Particular do Patrimônio Natural
SAAE – Serviço de Abastecimento de Água e Esgoto
SEMA – Secretaria Especial do Meio Ambiente
SIG – Sistema de Informação Geográfica
SIGEP – Comissão Brasileira de Sítios Geológicos e Paleontológicos
SPAN – Serviço do Patrimônio Artístico Nacional
SPHAN – Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
SPHAN – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação
UC – Unidade de Conservação
UICN – União Internacional de Conservação da Natureza
UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais
UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e
a Cultura
WHC – World Heritage Commission
SUMÁRIO

Apresentação 13

Introdução 19

PARTE I
PAISAGEM COMO “MODO DE ENTENDER O MUNDO”

Definindo paisagem 29

Reflexões contemporâneas sobre a paisagem


A paisagem como ambiente experienciado 41

A desconexão do homem da natureza (ambiente)


e sua relação com a paisagem
O paradigma científico moderno e o paradigma científico emergente 89

Reflexões
Parte I 125

PARTE II
PAISAGEM NO BRASIL E NO MUNDO:
AS ABORDAGENS DA UNESCO E DO IPHAN

Paisagem segundo a UNESCO 139

Paisagem segundo o IPHAN 169

Reflexões
Parte II 195
PARTE III
PAISAGEM COMO LIGAÇÃO ENTRE A CONSERVAÇÃO
DO PATRIMÔNIO E O PLANEJAMENTO TERRITORIAL:
“CONSERVATION THROUGH DEVELOPMENT”

Paisagem segundo a Convenção Europeia da Paisagem (CEP) 209

Reino Unido e a Convenção Europeia da Paisagem 223

Planejamento da Paisagem na Holanda 237

Caderno de imagens 257

Reflexões
Parte III 269

Considerações finais 281

Notas 297

Referências 333
APRESENTAÇÃO

Natureza, cultura, patrimônio, paisagem são palavras-conceito que per-


meiam meu cotidiano há algum tempo. No entanto, é constante minha
busca de sua compreensão, assim como de suas inter-relações.
A motivação primeira para a elaboração deste trabalho surgiu após
a apropriação, pelo campo disciplinar do patrimônio cultural, da ideia de
paisagem, mais especificamente, o conceito com o qualificativo “cultural”,
ou seja, a “paisagem cultural”. Após alguns estudos e observações, o uso
do qualificativo começou a me incomodar e, apesar da “paisagem cultural”
para o patrimônio indicar uma ampliação do conceito, na tentativa de uni-
ficar as dimensões culturais, naturais, materiais e imateriais do patrimônio
(FIGUEIREDO, 2014), buscando entender melhor a relação do homem com
o seu meio, essa categorização, por outro lado, no meu modo de entender,
acaba por reduzir o conceito ainda mais amplo de “paisagem”.
A partir disso, a busca do entendimento do que é paisagem se inten-
sificou e me recordei de algumas paisagens que me marcaram. A primeira
delas, relaciona-se com a paisagem de minha cidade natal, Jaboticatubas/
MG, que apesar de meu distanciamento temporal e espacial desde os qua-
tro anos de idade, quando me mudei para Belo Horizonte/MG, trazia-me
conforto. Em minha memória, era uma paisagem ligada à natureza, ao
campo, ao contato com os animais, a uma maior liberdade, no sentido da
ausência de medo em relação ao outro.
De tempos em tempos retornava à cidade e experimentava gradati-
vamente sua mudança, sempre com muito incômodo, pois, para mim, a
mudança sempre era para pior, apesar de ouvir comentários como: “Olha
como a cidade está crescendo!”, “Viu que a rua de sua antiga casa foi asfal-
tada?”, “a cidade está crescendo tanto que agora temos até prédio!”.
Essa ânsia pela mudança, ou melhor, pela modernização, presente nos
discursos que ouvia, sempre era acompanhada de comentários com ideias
antagônicas, muitas vezes, vindos da mesma pessoa e nem percebidos por
ela, como de quando se fazia o footing na praça, de onde se via as monta-
nhas que contornavam a cidade (agora com a visão impedida pelo novo
“prédio”), ou um lamento da transformação do antigo teatro em delegacia
e do fechamento do cinema, onde assistia-se filmes de Mazzaropi. Também
presenciei a substituição dos cavalos pelas motos, já que o asfalto pede
velocidade, além de não trazer conforto ao animal ferrado.
Mais recentemente, também em nome da modernização, vi a substi-
tuição de um altar de madeira, em estilo rococó, da Igreja Matriz de Nossa
Senhora da Conceição, padroeira da cidade, por uma peça em mármore,
mais parecida com uma lápide. E assim como apontado por Veras (2014,
p. 18):

Era difícil compreender os porquês de tamanha destruição em nome de


uma modernização que destruía a arquitetura sem dotar de qualidade o
espaço reconstruído, deixando órfãos e sem história, como se aquela ci-
dade tivesse sido reconquistada por outras pessoas (VERAS, 2014, p. 18).

Na realidade, apesar daquela paisagem existir em mim, era outro


tempo, outras pessoas, outras relações, das quais, agora, eu estava de fora,
como observadora. Mas, apesar de eu não fazer mais parte ativa daquela
paisagem, ela ainda restou como parte de mim, aquela paisagem ainda
existe em minha lembrança.
Aí me lembrei de um texto que li recentemente, do sociólogo polonês
Zygmunt Bauman, que ele chama o mundo moderno de “líquido”, “por-
que, como todos os líquidos, ele jamais se imobiliza ou conserva a sua
forma por muito tempo”. Ele ainda acrescenta que “tudo ou quase tudo no
nosso mundo está sempre em mudança” (BAUMAN, 2010). A paisagem
está sempre em mudança, ela faz parte deste mundo “líquido” que não
conserva sua forma por muito tempo. Mas qual o porquê de isso acontecer?
O que é importante permanecer e por quê?
Estamos num mundo onde existe uma aceleração do ritmo das mu-
danças em contraste com os séculos anteriores “de interminável reiteração
e letárgica mudança”. Essa característica dos tempos modernos permitiu
que as pessoas experienciassem a ideia de que “‘as coisas mudam’, que ‘já
não são como costumavam ser’, no decorrer de uma única existência hu-
mana”. Segundo Bauman (2010), essa percepção trouxe o estabelecimento

14 Laura Beatriz Lage


de uma “associação (ou mesmo um laço causal) entre as mudanças na con-
dição humana, o afastamento das velhas gerações e a chegada dos mais
novos”. Arrisco a dizer que isso é visível na nossa paisagem cotidiana e
teremos a oportunidade de discutir sobre isso no decorrer do trabalho.
A segunda paisagem que me marcou, também ligada à minha infân-
cia, mas que agora me traz desconforto com a sua mudança acelerada, é a
paisagem da Serra do Curral, na cidade onde cresci, em Belo Horizonte/
MG. Morávamos, eu e minha família, num barracão alugado, ao fundo de
uma casa, no bairro Caiçara, de onde eu avistava quase toda a serra, assim
como de diversos pontos da cidade até os anos de 1990. No Natal, a antena
de uma rádio, que já não existe mais, era decorada com luzes, tomando a
forma de uma árvore de Natal. Eu e minha mãe passávamos horas olhando
a dança de luzes da árvore da antena.
As imagens que guardei em minha memória, minhas paisagens, aque-
las que me trazem uma sensação de bem-estar, de aconchego, assim como
deve ocorrer com as paisagens de inúmeras pessoas, estão ligadas à infân-
cia. Talvez isso se deva à apropriação lúdica das coisas, referente a essa
fase da vida. Quase todas as pessoas criam paisagens mentais para criar
suas relações com o mundo. Mesmo que não chamem de paisagem, espe-
cialmente aquelas do cotidiano ou as relacionadas às memórias da infância
(FAIRCLOUGH, 2008, p. 277), elas fazem parte de nossa memória, de nossa
relação com o mundo.
A Serra do Curral, símbolo da cidade, foi tombada pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 1960 e protegida
pela Lei Orgânica do Município de Belo Horizonte em 1990, tendo ocorrido
seu tombamento municipal em 1991. Em 1995, através de um plebiscito
promovido pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, a Serra do Curral
foi eleita com o título de símbolo de Belo Horizonte, concorrendo com a
Igreja São Francisco de Assis, Praça da Liberdade, dentre outros.
Apesar das proteções existentes, a Serra do Curral desaparece gradati-
vamente dos olhares dos belo-horizontinos. Isso se deve, em grande parte,
à pressão política exercida pelo mercado imobiliário e da construção, que
muitas vezes se coloca mais forte perante a vontade dos citadinos, contri-
buindo com uma verticalização quase sufocante de nossas cidades.
A partir dessas observações, assim como Veras (2014), também per-
cebi a dificuldade existente no planejamento territorial, de se trabalhar com
a imaterialidade nos projetos urbanos, os significados da cidade, talvez

Paisagem como modo de entender o mundo 15


devido a uma certa incompreensão do que seja a paisagem. Essa mesma
dificuldade é encontrada no campo do patrimônio cultural, apesar da ten-
tativa da apropriação do conceito, que ainda não foi refletido na prática.1
Dentro do campo do patrimônio cultural, ainda se trabalha com a ideia de
notoriedades, apesar de existirem tentativas de ampliação de sua atuação.
Outro problema observado em meu cotidiano de trabalho, que me
causa inquietações quando falamos de planejamento, paisagem e patrimô-
nio, é como esses conceitos são refletidos através das legislações existentes.
Tendo como exemplo a cidade de Belo Horizonte, existe uma sobreposição
de legislações que, muitas vezes, coloca o patrimônio como uma espécie de
entrave ao desenvolvimento da cidade.
Curiosamente, ao contrário do que ocorre na Europa e apesar de nossa
influência eurocêntrica ainda muito presente, no Brasil, aparentemente,
não existe uma correlação direta entre patrimônio e paisagem. Talvez isso
dificulte o entendimento do que é paisagem, pois, o campo patrimonial
tenta incluir a paisagem em seus discursos e ações, quando a paisagem
também abriga e reflete as ações do patrimônio e do planejamento territo-
rial, num processo dialógico. A categorização da paisagem em “paisagem
cultural” reduz a paisagem ao entendimento corrente de patrimônio, não
abarcando o restante das relações existentes dentro dela, deixando a paisa-
gem, assim como já acontece muitas vezes com o patrimônio cultural, fora
do planejamento territorial.
A partir desses questionamentos e inquietações, busquei entender a
relação existente entre paisagem, patrimônio e planejamento territorial e
o que leva alguns países a reconhecer a paisagem como patrimônio, como
lidam com o planejamento da paisagem e o porquê da existência de dificul-
dades de entendimento e, consequentemente, dificuldades de lidar com as
transformações na paisagem no Brasil, dentro do entendimento da relação
do homem com seu meio.
É curioso notar que a paisagem amazônica, da floresta tropical e a
paisagem das praias são ligadas à nossa identidade, conforme apontado
por José Murilo de Carvalho em seu texto “O motivo edênico no imaginário
social brasileiro”. A história do reconhecimento de nosso patrimônio e a
valorização de nossas riquezas naturais nos dá pistas sobre esses porquês,
além da grande ânsia desenvolvimentista existente desde os primórdios
do país, que impacta diretamente e influencia na qualidade da produção
de nossa paisagem.

16 Laura Beatriz Lage


Com o intuito de precisar a paisagem como categoria de pensamento
e mostrar suas possibilidades de aplicações práticas, debrucei-me em au-
tores que discutem a percepção da paisagem, com o objetivo de apreender
o quê, no processo de transformação da paisagem, contribui para o reco-
nhecimento de seu caráter, conforme Veras (2014), o que “seria invariável
no seu grau de variância”? Como “medir” as transformações na paisagem,
modernizando-se sem perder a identidade e ao mesmo tempo conservando
as origens de seus elementos constituintes?
Assim, a partir de um conceito amplo de paisagem e de suas possi-
bilidades e aplicações práticas, buscou-se contribuir com as políticas de
proteção cultural e ambiental e o planejamento urbano e territorial, no dire-
cionamento de uma ação conjunta significativa, reintegrando o homem com
a natureza e possibilitando a proteção/conservação via desenvolvimento.

Paisagem como modo de entender o mundo 17


INTRODUÇÃO

Com a modernidade afirmou-se um pensamento da paisa-


gem e, no entanto, a modernidade é essa fase da história
humana em que, por todo o mundo, se destroem paisagens.
BERQUE, 2011.

Este trabalho foi motivado, primeiramente, por inquietações no entendi-


mento do conceito de paisagem e, posteriormente, mas de forma mais pro-
funda, a partir da percepção da transformação de paisagens afetivas, sem
preocupação com o preexistente, a identidade, sem relação com o lugar,
perdendo qualidade ambiental e estética, principalmente, perdendo qua-
lidade paisagística.
A inquietação e incômodo causados por esse tipo de transformação
também se encontravam nas discussões que levaram à Convenção Eu-
ropeia da Paisagem (CEP). Da mesma forma, quando da publicação do
Belvedere Memorandum, plano de gestão territorial holandês (1999-2009),
aludiu-se a uma “grande insatisfação da sociedade com a crescente unifor-
midade de cidades e paisagens, uma crescente expansão urbana levada por
demandas do mercado e uma alegada perda de identidade”.1
Esse movimento levou à pesquisa das razões dessas mudanças. Dentro
do campo da arquitetura, especialmente do patrimônio cultural e planeja-
mento urbano e territorial, é marcante a desconexão entre as duas áreas,
onde parece existir uma certa incompreensão da noção de paisagem entre
os profissionais que lidam com ela, cada um a entendendo dentro de seu
campo disciplinar restrito, expressa na legislação que rege as transforma-
ções nas nossas cidades e ambientes de modo geral. Essa separação entre os
campos de atuação é reflexo da forma de pensar da ciência moderna, cate-
gorizada, que desmembra o objeto estudado, com o intuito de entendê-lo.
No entanto, o que se percebe é que ao desmembrá-lo, corre-se o risco de
perder a essência de seu todo, que só pode ser entendido nas relações exis-
tentes entre as partes, de forma interdependente. Aí se encontra o problema
da ideia de “Paisagem Cultural”, apropriada especialmente no campo do
patrimônio cultural.
A discussão levantada aqui busca não reforçar os paradigmas da Mo-
dernidade, sobretudo no que se refere à dicotomia entre homem/cultura
e natureza. A crítica à Modernidade não pretende negá-la, mas entendê-la
como parte de um processo que, mesmo ainda presente em nossa forma de
pensar, apresenta mudanças epistemológicas significativas.
Muitos geógrafos europeus e norte-americanos escreveram sobre o
tema da paisagem, usando do termo para desenvolvimento de suas teo-
rias, dentro do contexto de várias escolas de pensamento, assim como o
fizeram outras disciplinas. O termo “Paisagem Cultural”, segundo Fi-
gueiredo (2014), associou-se ao patrimônio nos anos de 1990. Com o re-
conhecimento da paisagem como um bem de interesse de preservação
cultural, sua discussão voltou à tona, levando ao debate até mesmo o uso
do qualificativo “cultural”. Apesar do qualificativo ampliar a dimensão
do patrimônio cultural (FIGUEIREDO, 2014, p. 30-31), reforçando a ideia
de paisagem criada, percebida e apropriada culturalmente pelo homem,
suplementando a abordagem naturalista e superando a ideia de paisagem
como panorama, ele simplifica o conceito, impedindo o surgimento da pai-
sagem em sua complexidade, para além do campo patrimonial, reduzindo
o conceito a mais uma categoria de patrimônio, correndo o risco de perder
sua potencialidade unificadora. Como apontado por Berque (2011, p. 209):
“Tratando-se do humano e da ecúmena (o conjunto dos meios humanos)
toda a paisagem é necessariamente cultural (…)”.
O problema da categorização é relativo à atenção dada aos elementos
constitutivos da paisagem, subdividindo-os em categorias e às leis gerais
que os regem, impedindo, assim, a emergência da paisagem em toda sua
complexidade, em sua prática. Os elementos da paisagem só podem ser
definidos em relação aos outros, onde a simplificação metodológica com
o objetivo de explicá-la a reduz a ponto de não entendermos sua essência,
que é complexa.
Devido a essa complexidade, a paisagem não deve ser abordada a par-
tir de cada elemento separadamente ou segundo a soma deles, “como tem
sido a prática corrente”, conforme apontado por Figueiredo (2014, p. 29),
mas através da análise da convergência do entendimento do conceito em

20 Laura Beatriz Lage


várias áreas de estudo, a partir de uma visão ampliada, com o intuito de
superar as diversas categorizações, em especial no campo patrimonial.
Spirn ([1998] 2002, p. 130) atenta que “chamar uma paisagem de natural e
outra de artificial ou cultural, perde-se o fato de que paisagens nunca são
completamente uma ou outra”.
Assim, a paisagem neste trabalho é entendida para além da visão mo-
derna do conceito, pautado em dicotomias, mas numa compreensão de pai-
sagem, incluindo sua objetividade e subjetividade ao mesmo tempo, sem
contradições, voltada para sua openness, encarando-a como uma categoria
de pensamento, uma forma de entender o mundo.
A separação disciplinar, a forma categorizada de abordagem da ciên-
cia moderna, por sua vez, corrobora com a ruptura entre o homem e a
natureza, talvez o principal reflexo do paradigma da ciência moderna. O
homem primitivo entendia a natureza como um todo, do qual ele era parte.
Posteriormente, o homem se coloca como dominador da natureza, fora
dela, seu observador e tutor. Essa desconexão é transposta na forma como
a paisagem é entendida e gerida, refletindo nas políticas que lidam com
seu manejo. Em quase todo o mundo, os órgãos responsáveis pela gestão
de paisagens são divididos em ambientais, culturais, territoriais etc, muitas
vezes com entendimentos diferenciados do mesmo conceito, isso quando
o conceito é abordado.
Considerando as transformações ocorridas nas paisagens de nossas
cidades, na maioria das vezes, colocando em risco sua identidade e subs-
tituindo elementos significativos por outros sem referência ao local onde
será inserido, com perdas significativas da qualidade estética, ambiental e
paisagística e comprometendo a disposição anímica (Stimmung) da paisa-
gem, partimos da hipótese que não existe um entendimento comum entre
os órgãos envolvidos no manejo da paisagem, especialmente pelos órgãos
de preservação cultural e ambiental e planejamento urbano e territorial,
do que é uma paisagem, reduzindo sua compreensão a aspectos morfo-
lógicos, impactando negativamente as práticas relativas à sua proteção e
gestão. Além disso, o modelo de desenvolvimento levado em consideração
nas políticas relativas ao planejamento territorial não considera os aspec-
tos paisagísticos do preexistente, priorizando o desenvolvimento ligado ao
acúmulo de capital, negligenciando e quebrando laços imateriais e contri-
buindo para o dano estético (aesthetic harms).2
De acordo com alguns estudiosos e filósofos da paisagem, entre
eles Augustin Berque, Alain Roger e Rosário Assunto, a experiência da

Paisagem como modo de entender o mundo 21


paisagem se funda em sua experiência estética. A identidade estética de um
lugar é reconhecer a natureza, a cultura, a sua história em interação e ite-
ração. O patrimônio e sua salvaguarda têm como base a história, a cultura
e a experiência estética dos lugares. Na paisagem, o patrimônio cultural
toma forma, em sua materialidade e significância, fazendo dela também
um patrimônio, numa relação dialógica. A paisagem reflete a interação do
homem com a natureza, que sofre alterações de acordo com a evolução da
sociedade, influindo na forma como ela é entendida, criada e gerida. É um
constructo social em constante desenvolvimento, mediado pela cultura.
Sua valoração parte de suas características físicas, espaciais, simbólicas,
econômicas, sociais e culturais, em sua relação com o homem. A paisagem
pode ser entendida como a natureza na qual a civilização se reflete a si
mesma e se reconhece a si mesma. A civilização se modifica social, cultural
e economicamente e, consequentemente, modifica sua paisagem de acordo
com suas crenças. A paisagem se encontra na relação do homem com o seu
ambiente, conforme elaborado por Berque, ela reside nessa trajetiva.
No entanto, a forma de preservação adotada no Brasil, muitas vezes,
coloca o patrimônio, o objeto protegido, fora do fluxo natural da vida,
impedindo sua transformação, que é inerente à paisagem. Assim, apesar
do potencial integrador do patrimônio, que poderia contribuir com o res-
gate da conexão do homem com o seu meio, ele se perde na categoriza-
ção e na forma tradicional estática de preservação, deslocando a paisagem
do comum, do lugar de vivência das pessoas. Já no âmbito do planeja-
mento urbano e territorial, em prol do desenvolvimento econômico, em
prol do acúmulo de capital a qualquer custo, a paisagem é negligenciada,
assim como a identidade do lugar, a importância de algumas permanên-
cias e os laços imateriais existentes, contribuindo com a perda da capaci-
dade de apreciação do usuário, gerando espaços sem disposição anímica
(Stimmung).
Essa prática de preservação estática e “congelante” é encarada como
um entrave ao “desenvolvimento”, assim como as práticas relacionadas
às proteções ambientais, indo de encontro a proposta de desenvolvimento
econômico, pautada pelo modelo de planejamento territorial brasileiro,
quando deveriam ser encaradas como potencialidades.3 Esse confronto não
abre espaço para que a trajetiva, a relação entre o sujeito (homem) e objeto
(ambiente experienciado), onde nasce a paisagem, aconteça, contribuindo
com o desenvolvimento do dano estético, conforme discutido por Berleant
(1997a).

22 Laura Beatriz Lage

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