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UMA GEOGRAFIA TRANSVERSAL

- e de travessias -

(O meio ambiente através dos territórios e das


temporalidades)

CLAUDE e GEORGES BERTRAND


(Université de Toulouse-Le Mirail / France)
Éditions Arguments
-Paris 2002-
COLEÇÃO “PARCOURS ET PAROLES”
Coleção dirigida por Chantal BLANC-PAMARD

SAUTTER, Gilles, Parcours d´um géographe. Des paysages aux ethnies, de la


brousse à la ville, de l´Afrique au monde, 2 volumes, dezembro 1993, 397 + 322
p.
PÉLISSIER, Paul, Campagnes africaines en devenir, fevereiro 1995, 320p.
COUTY, Philippe, Les apparences intelligibles. Une expérience africaine, março
1996, 306 p.
DEFFONTAINES, Jean-Pierre, Les sentiers d´un géoagronome, outubro 1998,
360 p.
JOLLIVET, Marcel, Pour une science sociale à travers champs, paysannerie,
ruralilté, capitalisme (France XXe.siècle), fevereiro 2001, 420 p.
HUBERT, Bernard, Pour une écologie de l´action. Savoir agir, apprendre,
connaître, abril 2004, 440 p.
FRÉMONT, Armand, Géographie et action. L´aménagement du territoire, janeiro
2005, 218 p.

Esta obra foi traduzida para o espanhol sob


o título “Geografía del Medio Ambiente -
El sistema GTP: Geosistema, Terrritório y
Paisaje”
Editorial Universidad de Granada
UMA GEOGRAFIA TRANSVERSAL
- e de travessias -

(O meio ambiente através dos territórios e das


temporalidades)

CLAUDE e GEORGES BERTRAND


(Université de Toulouse-Le Mirail / France)

Edição e Tradução Coordenada por


MESSIAS MODESTO DOS PASSOS
Capa Editores Responsáveis
Jeffersom Cordeiro Assoni
Rogerio Bernardino da Silva
Dr. Jorge Guerra Villalobos
Editoração e Diagramação
Rogerio Bernardino da Silva Conselho Editorial
Drª. Maria das Graças Lima
Drª Maria Aparecida Cecílio
Revisão Ortográfica
Ms. Kiyomi Hirose
Manoel Messias Alves da Silva
Drº. Geovanio Rossato
Drº. Elias Brandão
Tradução
Messias Modesto dos Passos
Lilian Chaves Spini Coimbra
Colaboradores
Matheus Aparecido Gogoy Ribeiro
Lucas César Frediani Sant´Ana

Esta obra é a tradução de « Une géographie traversier. L´environnement à travers territoires


et temporalités », publicada em 2002 pela Éditions Arguments (Paris) que cedeu seus
direitos para a edição em português, cuja tradução foi coordenada por Messias Modesto
dos Passos – Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico/CNPq.

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)


(Biblioteca Central UEM, Maringá PR., Brasil)

O conteúdo da obra, bem como os argumentos expostos, são de responsabilidade exclusiva de seus autores, não
representando o ponto de vista da editora, seus representantes e editores.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
quaisquer meios (eletrônico, ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco
de dados sem permissão escrita do tradutor.

Av. Colombo, 5540 - Zona 07 - CEP 87030-121 - Fone |44| 3263.6712 - Maringá - PR
www.graficamassoni.com.br - contato@graficamassoni.com.br
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
2009 - Primeira Edição
DEDICATÓRIA

À François Taillefer, pela liberdade dos caminhos transversais – e de


travessias.

À Chantal Blanc-Pamard, por estes textos dispersos e hoje reunidos.

Esta obra é uma obra compartida, de amplo alento, que deve muito
à permanência e ao espírito de uma equipe, constituída por administrativos,
pesquisadores, professores, engenheiros e técnicos do CIMA (Centro
interdisciplinar de pesquisas sobre os meios naturais e aménagement rural),
criado em 1972, convertido logo em GÉODE (Geografia do meio ambiente) da
Université de Toulouse-Le Mirail e do CNRS (UMR 5602). Em colaboração
com outros pesquisadores, geógrafos e de outras disciplinas, franceses e
estrangeiros, muito particularmente os co-autores dos artigos. A contribuição
de cada um de nós é solidária do conjunto. Uma prova de amizade.
SUMÁRIO
Prefácio
Introdução: saberes híbridos, saberes fragmentados.............................................. I

I
O Geossistema: (re)construir uma geografia naturalista

Apresentação................................................................................................... 1
• Paisagem e geografia física global – 1968........................................................... 7
• Ecologia de um espaço geográfico - Os Geosistemas do Valle de Prioro - 1972.?
• Ensaio de análise ecológica do espaço montanhês – 1973............................... 36
• O geossistema ou “sistema territorial natural” – 1978..................................... 47
• A geografia física desnaturada? – 1978............................................................ 62
• A natureza em geografia: um paradigma de interface – 1991.......................... 81
• A geografia e as ciências da natureza – 1992................................................... 98

II
O Território: do natural ao antrópico, uma arqueologia de tempo longo

Apresentação...............................................................................................119
• O impossível quadro geográfico – 1975......................................................... 123
• “A arqueologia da paisagem” na perspectiva da ecologia histórica – 1978... 168
• A memória dos terroirs – 1991........................................................................ 176
• Apogeu e declínio de um geosistema silvo-pastoril - 1984................................. ?
• Não há território sem terra – 1995................................................................. 187
• Territorializar o meio ambiente – 1992......................................................... 193

III
A paisagem: irrupção do sensível no campo do meio ambiente

Apresentação...............................................................................................211
• A paisagem entre a natureza e a sociedade – 1978........................................ 213
• O Sodobre (Tarn): esboço de uma monografia - 1978....................................... ?
• Os geógrafos franceses e suas paisagens – 1984.............................................. 233
• A paisagem ou a irrupção do sensível nas políticas de meio ambiente e de
transformação do território............................................................................. 248
• A paisagem, uma ferramenta para a transformação dos territórios no Médio Pirineus....256
• Compor uma paisagem é recompor uma geografia – 1996............................. 264
IV
O sistema GTP (Geossistema, Território, Paisagem),
o retorno do geográfico?

Apresentação...............................................................................................271
• O geossistema: um espaço-tempo antropizado – 2000................................... 275
• A discordância dos tempos - 2002...................................................................... ?
• A paisagem e a geografia: um novo encontro? – 2001................................... 285
• O meio ambiente: caminhando para uma ciência diagonal? – 1998............. 301
• O olho do abutre – 1995................................................................................ 309
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As travessias bertrandiana
Prof. Dr. Messias Modesto dos Passos
Programa de Pós-Graduação em Geografia da FCT-UNESP, Campus de Presidente
Prudente – passos@stetnet.com.br

Em 9 de maio de 2006, visitei o Prof. Georges Bertrand em Toulouse.


O objetivo inicial era realizar uma entrevista sobre os caminhos/travessias desse
geógrafo, de cujas obras eu me nutri, desde a minha Dissertação de Mestrado
até as Teses (Doutorado e Livre-Docência), passando por inúmeros artigos
sobre a análise da paisagem.
O Professor Bertrand foi muito atencioso e possibilitou um encontro
muito rico e prazeroso (fiquei com a impressão de que ele foi surpreendido
pelo meu “conhecimento” referente a praticamente toda a produção que ele
construíra ao longo de sua extraordinária travessia). Não demorou muito e
ele apresentou-me o convite “para irmos aos Pirineus”... A este convite eu
contra-ataquei: “não, vamos primeiro ao Brasil”. Dessa informalidade, nasceu
a formalidade, materializada na concessão dos direitos de tradução e publicação
de seu mais recente livro: Une Géographie Traversière – L´environnement à
travers territoires et temporallités e, mais, a vinda do Prof. Bertrand, como
Professor Visitante junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da
Unesp – Câmpus de Presidente Prudente.
O primeiro desafio da tradução do livro foi a tradução do título do
livro. Depois de refletir e, notadamente, de consultar as anotações que eu fizera
ao longo da entrevista realizada na Université de Toulouse Le Mirail, apelei para
a minha amiga Fernanda Rennó, uma simpática mineira que está em Toulouse
desenvolvendo Tese de Doutorado. A Fernanda foi perfeita, ao enviar-me o
site http://www.cafe-geo.net/article.php3?id_article=152 cuja leitura foi muito
esclarecedora para a tradução e a compreensão da palavra “traversière”.
É apoiado na minha conversa informal com o Bertrand (9/5/06)
e no conteúdo do “Mon Caf” – Debate introduzido e animado por Georges
BERTRAND, Professor Emérito da Université de Toulouse-Le Mirail que
pretendo, a título de “prefácio”, esclarecer o sentido de “Paisagem, uma geografia
transversal – e de travessia”.
Abordar a paisagem como uma questão transversal – e de travessia –
suscita muito mais interrogações que afirmações. A citação de Michel Serres
“Le paysage revient inattendu dans le vide où le système comme un arc-en
ciel dans le pré »1, página 229, Les cinq sens, Grasset, 1983, coloca as questões
essenciais inerentes à paisagem e nos irterpela sobre muitos pontos.
1 “A paisagem retorna, inesperada, para o vazio ou o sistema como um arco-íris no prado.”
Prefácio

•O retorno da paisagem: foi preciso esperar o fim dos Trinta Gloriosos


para que se tivesse um olhar de interesse pela paisagem, há muito tempo esquecida,
notadamente pelos gestores do território;
•A relação entre paisagem e sistema;
•A abordagem sensível, poética e cultural, que marca o retorno da paisagem
através da imagem do arco-íris.
A primeira dificuldade desde que se fala de paisagem é lhe dar uma definição.
Segundo um provérbio chinês “a paisagem está ao mesmo tempo na frente dos olhos
e atrás dos olhos”. Cada um de nós tem uma imagem associada à paisagem e a define
através de suas próprias referências. E mais, todos os povos não exprimem a noção de
paisagem. Esta concepção vaga tem um sentido diferente em função das línguas e das
culturas. Os rurais não falam de paisagem, eles falam da terra: “a gente cultiva a terra”
e a gente “olha a paisagem”.
Além do debate em torno das definições se coloca a questão do “retorno” da
paisagem. Há muito tempo esquecida, a paisagem tornou-se atualmente uma preocupação
tanto ecológica e econômica como cultural, interferindo com as problemáticas do meio
ambiente e da gestão do território. A obra sob a direção de Thomas Casel, Paysages de
Midi-Pyrénées, URCAUE MP, Ed. Privat, 2000, ilustra como diferentes leis fizeram
progredir o conhecimento da paisagem no plano administrativo e como se continuou
um saber que é pouco a pouco traduzido sobre o terreno. Existem incontestáveis
sucessos, em algumas disciplinas, no nível epistemológico e no desenvolvimento local
(monografias, leis, debates, diálogos “paisagísticos”), entre os responsáveis pela gestão
e as populações. Observa-se, no entanto, certo atraso da pesquisa.
O elemento desencadeador desta nova consideração é a questão do “fim
da paisagem”, num período de “crise da paisagem”. Na verdade, face à evolução
das práticas agrícolas (remembrement 2) emerge a inquietação pela destruição da
paisagem que se colocam como memória de nossas sociedades e o aparecimento de
novas paisagens mais ou menos aceita (paisagens urbanas, transformação das paisagens
rurais tradicionais).
Mas este novo interesse suscita outros problemas e interrogações. Nós
somos confrontados com uma multiplicidade de fontes, de interpretações históricas e
de lobbies que se interessam no sujeito. A multiplicação de correntes, tendências de
“escolas” que se opõem nas ambições e aspirações diferentes dão uma visão confusa
da percepção atual da paisagem. A noção de paisagem procede menos da polissemia
que da cacofonia (vazia de sentido, frágil, logomarca etc.); se quer ligar a paisagem às
formas de interdisciplinaridade atualmente frágeis. É preciso encontrar outra coisa,
fora das disciplinas. É preciso reconhecer e favorecer a diversidade das interpretações
e das abordagens. Propor uma abordagem “traversière”, híbrida, susceptível de associar
os contrários: natureza e sociedade, subjetivo e objetivo, individual e coletivo, teórico
e prático, ciência e cultura, ordinário e extraordinário etc. Associa a paisagem ao
território no sistema GTP (Geosistema/Território/Paisagem) fundado sobre a trilogia
2 Remembrement: O remembrement é uma operação territorial de rearranjo das parcelas de exploração
agrícola realizada no quadro de uma comuna. O objetivo maior é otimizar a repartição das parcelas agrícolas
entre os agricultores (trocas, reagrupamentos etc.) a partir de uma situação anterior onde a propriedade
territorial dos agricultores estava muito parcelada e dispersada. Esta operação é acompanhada de trabalhos
de conexão total (reagrupamento dos caminhos de explotação e do transporte das parcelas). Nos anos 1970,
o remembrement/reagrupament é frequentemente traduzido/responsabilizado por uma forte desaparição das
haias (cercas vivas) avaliadas como pouco práticas pela agricultura moderna. (N.T).
Prefácio

Source-Ressource-Ressourcement.
Quatro questões vivas em torno da paisagem:
•Se a paisagem é uma representação cultural, como combinar esta
subjetividade com a materialidade de um território?
•Como a situar na “revolução coperniciana” que perturba, num ambiente
ecológico e social em crise, nossa relação no mundo? A paisagem, a maneira como a
gente a utiliza, cuja gente vive e a sente é um traço de perturbar nossa visão do mundo
que atualmente emerge nas questões da gestão (aménagement 3) do território e do
meio ambiente.
•Como integrar esta nova sensibilidade nas abordagens territoriais?
•Transcendendo os saberes acadêmicos, as práticas tecnocráticas e políticas,
ela não oferece uma via à democracia participativa?
Traverser quer dizer “ne pas s´arrêter”4 É uma etapa. É um meio de reunir
as informações, de sair de certa forma de geografia setorial que não respondia mais às
necessidades de nossa sociedade. É preciso construir um sistema a partir dos diferentes
elementos. É mais que um simples agregar. É preciso rejeitar a cesura entre geografia
física e humana, aproximar-se da história. É preciso utilizar a geografia para “traverser” as
outras disciplinas com a condição de traçar um caminho. Como o diz Antonio Machado:
“O caminho, a gente o faz caminhando”. É preciso considerar que desde que a gente
fala de paisagem, de meio ambiente, de gestão/amènagement ou de território, a gente
fala sempre do mesmo objeto. É um conjunto que a gente não pode utilizar com uma
única metodologia. É um paradigma que toma em consideração todos os elementos e
híbrido dos contrários (exemplo: natureza/sociedade, individual/coletivo, ordinário/
extraordinário).[...]. É uma entrada particular no território que é função de cada um.
Propomos três entradas: naturalista (antropização), socioeconômica e
territorial, sociocultural (paisagem).
Sobre o título, em uma primeira reflexão eu traduziria por “Geografia
Transversal”..., porque o Bertrand sempre expôs a idéia de que não se deve analisar
nem sempre de forma horizontal, nem somente vertical, mas sim de forma transversal.
No entanto, depois da leitura do “debate”, resumidamente exposto acima, eu traduzo
por “Uma geografia transversal – e de travessias”.
Fragmentos da travessia de Georges Bertrand
A expressão “meio ambiente” aparece na mídia, e na geografia, somente a
partir da Conferência Internacional Sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento
Humano, realizada – sob o patrocínio da ONU - em Estocolmo-Suécia, no ano de
1972. Até então, o geógrafo – de forma setorizada – estava confrontado com o estudo
do “meio”5.

3 Aménager = disposer avec ordre/dispor com ordem. Até a crise de 1929, considerava-se, geralmente,
que a repartição das atividades econômicas e sociais era definida pelas condições naturais. A partir de então,
desenvolveu-se a idéia de que a organização econômica e social é/deve ser controlada pelo Estado, ou seja,
o Estado interfere sobre a localização das atividades. (N.T.)
4 “não parar”
5 Recomendamos a leitura de: (a) O sistema meio ambiente. In: Passos, M. M. dos “Biogeografia e
Paisagem”, pp. 89-104; 2003 e (b) Demangeot, J. Les milieux “naturels” du globe. Paris:Masson, 3e. édition,
1990, pp. 9-14.
Prefácio

Portanto, precisávamos encontrar/elaborar um método para tentar entender


o meio ambiente na sua totalidade, ou seja, o estudo do “meio”, na perspectiva de uma
ou outra disciplina não somente era complicado, como, sobretudo, não era suficiente
para a compreensão da complexidade do “meio ambiente”.
Atribuímos a Georges Bertrand a realização desse método.
O desafio de Georges Bertrand, confrontado com o “meio natural” - mais
concretamente com o conceito de Complexo Territorial Natural – dos russos6 era
desenvolver um método global que considerasse o papel do homem no funcionamento
do meio ambiente. É inegável a influência de André Cholley, geógrafo físico francês
que considerava a geografia como o estudo da combinação dos vários elementos da
paisagem, ou seja, contemplava a noção de meio ambiente que, se estruturava e,
notadamente, funcionava como um sistema!
Georges Bertrand reconhece que a noção de sistema é muito vaga, muito
imprecisa. É mais uma matéria de epistemologia que de método; é uma maneira de se
ver as coisas, é um estado de espírito.
O desafio que estava – e ainda está – colocada para o geógrafo é
“territorializar” o meio ambiente7 e, com isso, tentar superar a análise setorizada, onde
as disciplinas e, consequentemente o conhecimento científico, estavam isoladas...
A “solução” foi o que chamamos de “interdisciplinaridade” e que, na geografia – em
tempo de “multidisciplinaridade necessária” – se deu de forma periférica, ou seja, uma
“interdisciplinaridade” dentro da própria geografia.
A antropização tornou-se um dos motores essenciais da evolução
“natural”.
A teoria geossistêmica de Bertrand tem como premissas a Soil survey e Land
survey anglo-saxões; os geossistemas russos; e mesmo as análises integradas do meio
natural (antes da invenção do ecossistema), desenvolvidos para nortear as linhas gerais
da organização territorial.
Nos anos 1950, estava colocado para a ex-URSS a necessidade de prospectar
– para organizar e posteriormente ocupar – as terras virgens da Sibéria Ocidental. E os
russos constataram que a maneira mais curta, objetiva e pragmática de diagnosticar as
potencialidades paisagísticas desse território desconhecido era criar estações/laboratórios
e instalar pesquisadores com o objetivo de “estudar as novas terras numa perspectiva de
conjunto”. Algumas lideranças desses grupos de pesquisadores – Isachenko, Sochava...
– se destacaram, mesmo no mundo ocidental, pelo saber fazer e aplicar um método de
trabalho, o método dos geossistemas.
Na verdade, a análise integrada do meio, denominada de geossistema8 , por
Bertrand, é o resultado de uma epistemologia (a filosofia alemão, a noção de meio, a
naturlandschaft), mas é também uma coisa extremamente prática.
6 Recomendamos a leitura do capítulo “A ciência da Paisagem”. In: Passos, M. M. dos “Biogeografia e
Paisagem”, pp. 30-64; 2003.
7 Recomendamos a leitura do capítulo: “Territorializar o meio ambiente”. In: Claude et Georges Bertrand
“Uma geografia transversal – e de travessias. O meio ambiente através dos territórios e das temporalidades”;
pp. 193-212, Maringá: Massoni, 2007. Tradução organizada por Messias Modesto dos Passos.
8 Inicialmente Bertrand considerava o geossistema como uma das unidades horizontais do terreno:
geossistema, geofacies e geótopo. Mais tarde, ele próprio reconhece que o geossistema é tão somente um
modelo e, portanto, uma abstração e, portanto, passa a definir as unidades de terreno, de forma hierárquica:
geótopo, geofácies e geocomplexo.
Prefácio

O modelo geossistêmico bertrandiano é constituído de três subsistemas:


potencial ecológico/abiótico, exploração biológica/biótico e ação antrópica.
Segundo Bertrand os especialistas em ciências naturais e os ecólogos não
viam com bons olhos o cômputo da intervenção humana. E o que Bertrand fez, na
verdade, foi inserir o antrópico no modelo russo – este limitado aos dois subsistemas:
potencial ecológico e exploração biológica -, ou seja, partir do pressuposto de que a
“natureza não é natural”, pois, está irremediavelmente impactada pela sociedade. O fato
da natureza está impactada – pela sociedade – não cria ao geossistema o compromisso de
estudar a sociedade e, sim, o funcionamento do território modificado pela sociedade.
Portanto, o geossistema é um conceito antrópico!

A globalidade, na geografia física global de Bertrand


Para Bertrand, a forma como a Geografia foi construída, a maneira como
ela evoluiu, não gerou um conjunto científico coerente. Notadamente na França,
onde ela se desenvolveu sob a forte influência de Vidal de La Blache, foi construída
para ser uma pedagogia, ou seja, explicar o mundo às novas gerações, à sociedade em
geral! A Geografia é uma disciplina, universitária, acadêmica e não propriamente o
que poderíamos chamar de “ciência”. A vantagem da Geografia é que ela é a única
disciplina que, no início da sua existência, podia se vangloriar de ser uma “ciência” de
síntese... ao tentar ligar os fatos humanos e naturais. Portanto, era já interdisciplinar
e “ciência do meio ambiente” antes mesmo da expressão meio ambiente ganhar a
relevância atual.
Apesar de Bertrand ter militado em vários organismos de políticas de
ordenamento do território na perspectiva ambiental, ou melhor, apesar da sua
preocupação – suficientemente explicitada na sua obra – com a Geografia em seu
conjunto, o “global”, para Bertrand, passa pela interdisciplinaridade, isto é, por outras
disciplinas.
A partir dos anos 1970 a ecologia, ou melhor, o pensamento e a idéia
ecológica vingaram! No entanto, nos dias atuais há uma demanda muito grande de
geografia. É o que Bertrand chama de “retorno do geográfico” [...] Não é o retorno da
disciplina Geografia; nem a volta do geógrafo. É o retorno da dimensão geográfica das
coisas: o espaço, o tempo, o multi-escalar, o problema do equilíbrio do meio...
A apreensão da dimensão geográfica só será possível a partir de uma visão
do todo, do conjunto, ou seja, avaliar como funciona, nesta condição, a sociedade, os
elementos naturais abióticos e bióticos. Portanto, precisarmos aprender uma Geografia
“de base”: as condições do clima, do solo, da sociedade.

Não se deve isolar o elemento ecológico da conjuntura sócio-


econômica:
Primeiramente devemos apreender a paisagem como objeto científico... A
partir daí pode-se dizer o que quiser. O que não dá é para ficar fazendo ideologia de
imediato; isto é, sem uma “construção”. Não dá para concordar com as pessoas que
tratam da paisagem sem utilizar, sem ter um método nem conceitos. Apenas opinam
Prefácio

sobre a paisagem. Não mostram a base científica que lhes permite opinar. Assim a
pesquisa será um “todo cheio de vazios”. Desse jeito a pesquisa não será nada. Portanto,
essas pessoas não fazem pesquisa realmente. Fazem política.

A chave e a fechadura
A expressão metafórica “a chave e a fechadura”, repetidas vezes utilizada por
G. Bertrand tem endereço, ou seja, os geógrafos tinham as melhores condições para
ocuparem o centro da problemática ambiental: arrolaram os dados, os inventários foram
feitos – o relevo, o clima, a vegetação, o solo, a sociedade, a economia etc. E os conceitos
de ecossistemas e de geossistemas eram a “chave”, isto é, permitiam a análise integrada,
a análise do conjunto. Acontece que os geógrafos não acreditaram na possibilidade
desses conceitos para “compreender o todo”. O conceito de geossistema foi pouco aceito
e insuficientemente aplicado porque os geógrafos tinham (e tem) uma visão de “oito
ou oitenta”, isto é, “já que o geossistema não é capaz de entender literalmente o todo,
então qual o sentido de adotá-lo como “procedimento metodológico””? No entanto,
ninguém negava a impossibilidade de reunir tudo! Acontece que a essência pode sim
constar num modelo conectivo. Sabe-se muito bem que não é possível juntar tudo e
que, nem tudo se presta à classificação e pode ser hierarquizado. Ocorrem omissões,
“caixas pretas”.
Inegavelmente o “GTP” (Geossistema, Território e Paisagem) representa um
notável avanço epistemológico, com relação ao conceito precedente de geossistema.

Por que?
Porque era necessário pensar em algo que permitisse conceituar a
“complexidade-diversidade”. Tínhamos o ecossistema – que ajudava na análise da
complexidade biológica; e o geossistema, que pretendia compreender a complexidade
geográfica. Percebeu-se que todas as disciplinas, todas as pesquisas que se baseiam num
conceito apenas (“monoconceituais”, portanto) têm a pretensão de, a partir dele, falar
do todo. Era preciso tomar uma posição, afirma G. Bertrand, de algum modo, mais
sábia e científica. Dizer: “Bom, a complexidade-diversidade (complexidade feita de
diversidade) não pode ser analisada por meio de um só conceito, pois isso é idealizar”.
Se lidamos não apenas com a complexidade, mas também com a diversidade das coisas,
podemos afirmar que naquilo que estudamos há elementos de ordem natural, de ordem
social e de ordem cultural. Por que não inventar alguma coisa que seja “policonceitual”?
Então é isso – conclui G. Bertrand -: “eu proponho que se analise a mesma realidade a
partir de três conceitos diferentes”. Conceitos que são três entradas no sistema. Chamo
“conjunto tripolar”, ou seja, no interior da complexidade, enxergo três grandes tipos
de diversidade: uma que está mais ou menos ligada aos fenômenos naturais, uma que
está associada aos fenômenos da economia e outra, aos culturais.
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SABERES HÍBRIDOS, SABERES FRAGMENTADOS

A maneira como o homem vive a terra, como ele a percebe e como


a representa, como ele a explica e a transforma, freqüentemente a desarruma.
Como ele se dedica a compreender sem jamais a dominar? A questão é sempre
refeita. O debate é de ordem metafísica. Incomensurável, ela é às vezes
ontológica e axiológica. Ela é também a mais prosaica e a mais quotidiana das
realidades vividas: aquela do recurso e da subsistência, do trabalho e do habitat,
do imaginário e do simbólico, do pássaro que canta e da algazarra da cidade, do
tempo que passa como do tempo que faz, no balanço das estações.
A interrogação científica está sempre presente. Mas ela não pára
de inchar e de se complicar num ambiente pouco sereno de crise ecológica
planetária, para alguns, de fim do mundo. A pesquisa, disciplinar ou
interdisciplinar, procura seus sinais. Ela navega entre natureza e cultura, espaço
e sociedade, material e ideal; entre o vivo e o inerte, o invisível e o sensível.
Se esforçando, no grau das ideologias e das crises, não sem derivas e atrasos,
não perdendo de vista a questão inicial, talvez muito geral e muito trivial para
ser abordada de frente.
Atualmente, ela se chama meio ambiente. Conglomerado certamente
compreensível, mas indefinido e ambíguo no qual é preciso, mais por convenção
que por convicção, sem real conivência, inscrever, neologismo colocado à
parte, um tema de pesquisa recorrente que se estende por meio século, pois
bem anterior à emergência da noção moderna de meio ambiente fundada em
grande parte sobre a ecologia sistêmica.
A temática é unívoca: estudar sobre as franjas incertas das ciências da
sociedade e das ciências da natureza os espaços geográficos, paisagens e territórios
que nos rodeiam e, numa certa medida, nos condicionam. Apreendendo-os
globalmente como objetos, ou sujeitos mistos, às vezes naturais e sociais. Quase
sempre antropizados, quase sempre artificializados. O princípio de hibridação
é o fio condutor de nossa pesquisa.
A problemática, a priori e no essencial, é de inspiração geográfica.
Ela é revisitada e enriquecida graças a múltiplas idas e vindas disciplinares
ou interdisciplinares. Com a vontade afirmada de propor, a cada etapa e para
cada objeto, um método de análise específica, teórico em seu princípio, mas
sustentado e estendido por estudos concretos de terreno, sejam fundamentais,
sejam implicados no Aménagement1-desenvolvimento. Sem preocupação
particular de referência disciplinar. Em suma, um saber fragmentado para um
paradigma híbrido. Todavia, com transparência em relação à questão: não se
1 Estamos traduzindo “aménagement” por “gestão” ou “organização”, quando o
sentido mais próprio para aménagement seria “organizar em ordem”.
18 Introdução

trata, num ambiente historicamente marcado pela influência da ecologia e


das ciências da natureza, assim como por um forte domínio tecnocrático e de
derivas ideológicas, de um retorno do geográfico numa sociedade que se mostra
um pouco mais cuidadosa em relação à naturalidade ameaçada das coisas, assim
como da beleza das paisagens do mundo?

na felicidade do contorno/contournière

“Todas as manhãs do mundo são sem retorno”


Pascal QUIGNARD

A contournière era este pedaço de campo particularmente cuidado,


ao abrigo de uma haia ou à sombra de uma árvore, onde o camponês, antes de
traçar o próximo sulco, deixava respirar sua parelha de animais. Num único e
mesmo olhar, ele observava a parcela terminada e aquela que ainda restava a ser
trabalhada. Entre seu sonho de camponês e a realidade da terra. Entre seu passado
e seu futuro. Momento privilegiado numa jornada de trabalho e numa vida de
camponês. Depois, o trator, abateu a árvore e derrubou a haia. O trabalho da terra,
e a paisagem, deixaram aí um pouco de sua alma e muito do seu equilíbrio.
Na carreira de um pesquisador, não é prevista a pausa de uma contournière.
Se nos solicitam a analisar em nosso objeto de estudo esta “durabilidade”, esta
“sustentabilidade”, estas forças retroativas e esta construção patrimonial e
identitária que nós estamos na incapacidade de reunir para construir nossa
epistemologia pessoal. E melhor ir avante. Para respirar um instante sobre nossa
própria contournière, é preciso um acontecimento excepcional, uma solicitação
exterior forte e amigável.
Esta obra foi construída a quatro mãos com o grande encorajamento
dos editores. Ela é co-assinada por Claude Bertrand (Engenheira do CNRS) e
Georges Bertrand (Professor de universidades). Na seqüência e com a mesma
cumplicidade de quase meio século de vida comum através de paisagens e
terrenos, pesquisas e arquivos, cartografias e textos. Dos Pirineus aos Andes,
do Maciço Central ao Píton da Fournaise, passando pela Península Ibérica e os
lugares altos que são para nós os Picos de Europa e as Montanhas Cantábricas.
Itinerário que se inscreve, no essencial, no ambiente humano e na programação
científica do Centro Interdisciplinar de Pesquisa sobre os Meios Naturais e
a organização rural (CIMA), laboratório de pesquisa do CNRS associado à
Universidade de Toulouse-Le Mirail, criada em 1972 e implantado, desde 1995,
o GÈODE (Geografia do meio ambiente)-UMR 5602 do CNRS. Teve muitos
outros encontros e mudanças... e algumas controvérsias. Eles serão lembrados
em seu tempo e no seu lugar.
Somente aparece aqui a figura de François Taillefer. Sua carta datada
de 24 de dezembro de 1960, colocada no epígrafo da primeira parte desse livro,
acentua sua permanência de vigia tutelar. Esta obra lhe é dedicada assim como a
Chantal Blanc-Pamard que deve assumir aqui a responsabilidade de sua amigável
pressão.
Introdução 19

Todo retorno sobre si mesmo, mesmo sobre comando e sob controle


exterior, é uma empresa arriscada, necessariamente artificial e sempre suspeita
de instrumentalização. É difícil de proteger-se contra a fabricação implícita, a
posteriori, de uma pseudocoerência e, sobretudo, de uma autojustificação que
pode facilmente cair numa autocrítica de circunstância. Algumas regras do
jogo se impõem. Elas fazem parte disso que nós qualificaremos de “princípios
da contournière”.
- Nós não faremos o novo com o velho. Os textos, redigidos entre
1960 e 2002, portam cada um sua idade e eles devem ser colocados em seu
contexto histórico.
- Trata-se, muito explicitamente, de uma obra de recomposição a
partir de uma escolha concluída em janeiro de 2002. Todavia, o princípio
teleológico que a funda não foi introduzido a posteriori, como para recompor
e resguardar peças disparatadas. A unidade conceitual está colocada desde o
início.
- Esta retrospectiva não tem sentido senão quando restituída sobre
uma trajetória ao longo do tempo com um indispensável prolongamento
prospectivo. Ela engaja tanto o futuro como o presente. Ocasião raramente
possível de trabalho na longa duração de um período que viu emergir a ecologia
e o meio ambiente anunciando profundas mudanças.
- Este retorno sobre si mesmo é também um retorno sobre os outros.
A varredura epistemológica deve ser ampla e permanente. Transdisciplinar,
ela deve também ser extradisciplinar, englobando o conjunto dos atores
e das intervenções que, cada dia mais, concerne o meio ambiente e o
desenvolvimento dos territórios. Posição “panótica” (Michel Serres) que,
paradoxalmente, recoloca em discussão a noção de meio ambiente no seu
deslizar para o desenvolvimento sustentável.
Sob estas condições e reservas, a pausa contournière é bem-vinda.
Ao bom momento. Na condição de que ela não seja um rápido golpe de olho
colocado no retrovisor para abrir a estrada e ampliar o campo. Sem o inútil
jogo de memória.

a exigência de um paradigma

Enraizar o meio ambiente no território dos homens e na história


longa das sociedades. Tal é o horizonte distante desta obra. A pesquisa de um
paradigma susceptível de investir este campo de hibridação entre aquilo que
é habitualmente catalogado como, de um lado, o social e, de outro, o natural.
O meio ambiente é o jogo e a geografia a ferramenta. Fórmula cômoda que
engaja uma pesquisa, mas não a resume. Tudo se joga sobre as margens indecisas
dos objetos ou dos sujeitos, de métodos e de disciplinas, num domínio em
movimento e de propensão onipresente.
20 Introdução

Dos tempos das passarelas ao tempo da desordem

Nós vivemos uma revolução coperniciana. Brutal, irresistível,


irreversível, imprevisível. Nós mudamos e o mundo muda; nós mudamos o
mundo e o mundo nos muda. A forte escalada da questão ambiental se efetua
numa confusão de fenômenos exacerbados e desconhecidos, contraditórios e
mal matizados: desregulamentos ecológicos e econômicos, dificuldades sociais e
incertezas políticas, avanços científicos com grandes buracos negros, aberturas
culturais... A pesquisa científica se interroga e oscila sobre seus fundamentos
científicos e disciplinares, indispensáveis, mas medíocres. Às vezes, a ponte
da criatividade; às vezes, ultrapassada e em pane de imaginação criativa. A
interdisciplinaridade, que efetuou suas primeiras experiências, felizmente abalou
o edifício e conseguiu realizar algumas belas descobertas. A pesquisa não será
mais como antes e as disciplinas já consideram estas mudanças.
Todavia, as práticas interdisciplinares, institucionais ou espontâneas,
têm mostrado seus próprios limites, tanto no plano metodológico como no
factual. Em todos os casos, o método, esta caixa de ferramenta do pesquisador,
tem muito de mal ajustado entre fatos sociais e fatos naturais, entre discursos
vazios e tecnologias sofisticadas. A viabilidade dos novos modelos científicos
transdisciplinares, quando eles existem, não está assegurada. Enfim, a formação
dos pesquisadores não é mais garantia, sobretudo para os mais jovens e, sobretudo,
se eles têm diretamente participado de grandes programas interdisciplinares
que os têm distanciado de suas referências disciplinares e acadêmicas. Ou o
meio ambiente, tal como ele se desenha progressivamente, talvez e antes de
tudo, como uma nova cultura geral que não se limita àquilo que é conveniente
chamar de cultura científica e técnica.
Não há resposta unívoca para estes questionamentos entrecruzados. Os
caminhos são múltiplos e desigualmente traçados. As passarelas são freqüentes.
Elas permitem passar de uma margem à outra, de uma disciplina à outra, de uma
disciplina à interdisciplinaridade, e vice-versa. Elas não preenchem os vazios.
Uma pesquisa conseqüente sobre o meio ambiente, mesmo objetiva como a
nossa, se deve trabalhar sobre as margens, entre as interfaces e os interstícios,
aqui onde se acavalam e se entrechocam não somente os fenômenos ambientais,
mas também os conceitos e os métodos dos quais nós nos servimos para a
realização da pesquisa.
Introdução 21

Um paradigma como ferramenta

No labirinto do meio ambiente, o paradigma tem por função principal


dar sentido e um sentido. Ele organiza os objetos e os sujeitos em torno de
palavras-chave e de questões vivas. Propor a construção de um paradigma não
tem nada de presunçoso nem de excepcional. Isto que significa ainda um grande
palavrão para alguns pesquisadores isolados na sua cientificidade tecnocrática
constitui, no quotidiano, uma tentativa muito concreta e muito pragmática,
perfeitamente adaptada no muito saturado e à dispersão da problemática
ambiental. É sobre tais bases, às vezes, epistemológicas e metodológicas, que
o meio ambiente foi recentemente recolocado e recentrado sobre a sociedade
(Edgar Morin, Michel Serres, Dominique Lecourt, etc.). Com todas as recaídas
científicas e culturais que contribuem para transformar a imagem da sociedade
na sua relação com o planeta.
O meio ambiente não é mais um simples substituto e/ou um
prolongamento das ciências da natureza e da ecologia científica; não mais que,
no plano político, a reserva de caça dos ecologistas. Atualmente, mais que
nunca, o meio ambiente reclama um “método de complexidade”, associando
dialeticamente epistemologia e história das ciências, teoria e prática, método
e técnica, saber e formação. De maneira explícita e de maneira construtiva.
Sem ingenuidade e sem ilusão. Com este grão de utopia que permite ver largo
e longe... na escala da questão colocada. Deixar evoluir o paradigma. Ou
mudar ao longo da caminhada. Como se produziu muitas reprises ao longo do
nosso itinerário. De tal sorte que a gente pode atualmente falar de uma cadeia
de paradigmas... à qual virão se juntar outros elos. Em continuidade ou em
oposição. Mas sempre na pesquisa de uma clareza conceitual.
“È preciso sempre ter duas idéias,
uma para matar a outra”
Filósofo anônimo.
Qual geografia para qual meio ambiente?

Em relação ao meio ambiente, a geografia não aparece, a priori, uma


disciplina mal colocada. Ela não foi, ao menos durante a primeira metade do
século XX, uma ciência do meio ambiente ao pé da letra, ocupando uma posição
estratégica única entre natureza e sociedade e jogando, em função desse fato, um
papel de primeiro plano no conhecimento do planeta e na valorização dos seus
recursos? Esta foi a idade de ouro de uma geografia de síntese, dita regional. A
partir dos anos 1950-1960, a geografia enquanto disciplina institucionalizada
deriva para outras problemáticas. Ela passa ao lado da ecologia nascente (1960-
1970) e exercita realizações distantes com um meio ambiente atrasado pela
longa obediência naturalista. A geografia física, isolada e dividida, esmagada
pela preeminência da geomorfologia, não sobreviveu. Atualmente, as reticências
subsistem. Elas são mais difíceis de ser levantadas, pois elas procedem, às vezes,
22 Introdução

da ideologia e da competência científica (por exemplo, no domínio do vivante


e das ciências ecológicas).
O meio ambiente e a geografia não são, pois, uma antiga dupla
de marcha desigual. Nem verdadeiramente solidário, nem verdadeiramente
separado. Entre indiferença e desconfiança. A interdisciplinaridade reconhecida
dos últimos decênios tem, portanto, aberto algumas perspectivas e desenvolvido
mudanças, mas a geografia não é senão que uma disciplina entre as outras. Os
geógrafos ganham projeção na temática ambiental sem verdadeiramente exercer
sua instituição. É verdade que eles avançam o mais freqüentemente disfarçados:
biogeógrafos, geomorfólogos, hidrólogos, etc. Apesar das enormes necessidades
exprimidas pelos professores e os gestores de todos os níveis. Trata-se para a
disciplina em geral e mais especialmente para a geografia física de uma nova,
e talvez última, ocasião perdida?
É inconcebível que a pesquisa sobre o meio ambiente, transdisciplinar
por necessidade, possa avançar sem dimensão geográfica afirmada. A questão
não é mais saber se a geografia é a ciência do meio ambiente, mas de considerar
a dimensão geográfica do meio ambiente. Em interatividade com as outras
disciplinas. O exemplo da ecologia não é para evitar, mas para meditar. Apesar
de algumas transgressões científicas e de derivas políticas a ecologia, no sentido
maior de paradigma e de método, torna-se a principal, mesmo a única referência
construída para uma parte essencial da questão ambiental: aquela que considera
o ser vivo. Qual geografia para qual meio ambiente? Quais convergências
epistemológicos e metodológicas entre a ecologia e a geografia? Quais pontos
de desentendimento? Quais pontos a superar? Quais avanços comuns?
O casamento dessimétrico entre o meio ambiente, a dominante
ecológica, a geográfica e a dominante social constituem o postulado de partida e
a peça central de nossa pesquisa. Sua complexidade e sua ambigüidade justificam
o suficiente para novos paradigmas. No coração de uma interdisciplinaridade
“disciplinada”, nos dois sentidos do termo. Com a vontade de inserir a
problemática ambiental ainda mais à frente na sociedade e na cultura. A
meio caminho entre a epistemologia e o método; a meio caminho entre a
pesquisa e a prática; a meio caminho entre a geografia e as outras disciplinas.
Num sistema de hibridação que ainda falta inventar e fazer evoluir no ritmo
do impulso ambiental.

Palavras-valise e questões vivas

Espalhado sobre quase meio século, nosso trabalho foi sem cessar
confrontado com contrastes e obstáculos múltiplos, alguns ligados aos estados
Introdução 23

sucessivos das pesquisas sobre o meio ambiente, outros inerentes à nossa própria
formação disciplinar: falta de cultura epistemológica, imprecisões semânticas,
insuficiências teóricas e metodológicas, hesitações institucionais. Enquanto
motivação maior que se inscreve no vazio de nossa pesquisa. Todos não
foram explicitados. Eles nos acompanharam, complicando nossas abordagens,
confundido as pistas que precede e procede ao nosso fazer.

Que palavras para dizer?

Em um domínio também prolífico que o meio ambiente primeiro


exige é o da linguagem. Este domínio novo e sem fronteiras está saturado de
palavras vazias de sentidos que cada um preenche ao seu gosto: ambiance2,
amenidade, antrópico, catástrofe, clímax, crise, durabilidade, meio, natureza,
paisagem, tempo longo, sustentabilidade e... meio ambiente. Irredutíveis uns
aos outros, imprecisos e voláteis, eles sustentam belas discussões bizantinas.
Como manipular e hierarquizar este vocabulário utilizado? É preciso inventar
neologismos e abusar dos anglicismos?
Como nós já assinalamos, é sem entusiasmo e sobre o atraso que nós
retemos a palavra meio ambiente como qualificativo geral de nosso estudo.
Para se formatar à história e ao uso atual, no plano nacional e internacional.
Vale, pois, para o meio ambiente. Considerando que não se trata mais de um
conceito científico, mas somente de uma noção banal e polissêmica. A ser
manipulada com precaução.
As grandes etapas que fundam nossa pesquisa saíram de “palavras-
valise” reagrupadas nos agregados semânticos significantes. Mais que palavras
isoladas de seu contexto, estes tipos de cachos semânticos constituem enquanto
entradas específicas no meio ambiente, por exemplo, em torno dos termos de
geosistema, território, paisagem. Autônomos e interativos, estas configurações
“lingüísticas” são efêmeras. Elas evoluem ao âmbito dos avanços da pesquisa. A
maior parte destas palavras ou grupos de palavras serve para qualificar sujeitos,
objetos, fenômenos transversais, evoluindo entre o natural e o social. Elas
transcendem os vocabulários disciplinares e elas existem interdisciplinares.
Seu status é extradisciplinar. Sua lista está aberta.

A conexão disciplina-interdisciplina

A irresistível onda interdisciplinar dos anos 1968 que revirou e


fecundou o campo científico do meio ambiente não é o início da respiração? A
ampla programação institucional, “este carneiro com cinco patas e roletas azuis”,
2 No sentido de “clima”: faltava clima na festa...
24 Introdução

segundo o geógrafo Raymond Regrain, é certamente inovado após honestos


serviços. Estamos, portanto, no início de uma fase pós-disciplinar com o retorno
às disciplinas? Não se trata mais de conectar disciplina e interdisciplina?
Cada disciplina se envolvendo com sua própria auréola interdisciplinar. Esta
interdisciplinaridade periférica, que não interessa senão apenas à geografia
constitui para nosso propósito um teste metodológico essencial que engaja o
futuro de nossa pesquisa.

O corte entre o natural e o social

A pesquisa sobre o meio ambiente não progredirá significativamente


enquanto a gente continuar a argumentar em termos de separação, mesmo de
contradição e de conflito entre fatos naturais e fatos sociais. Se o meio ambiente
é, por definição, o domínio da interação e da mescla, este deve ser traduzido
por conceitos e noções híbridas: paisagem, território, recurso, etc. Qual lugar
e qual papel atribuir à naturalidade, à artificialização, à sociabilidade, isto é,
às múltiplas formas de antropização que nos reaproximam desta “antroplogia
da natureza” proposta por Philippe Descola?

A passagem da complicação para a complexidade

A análise do sistema que tem funcionado bem para matizar o


ecossistema e o geosistema pode ser estendida ao conjunto do meio ambiente,
inserindo a dimensão social e cultural? Como conciliar a dinâmica interna
de um sistema com a evolução histórica senão saindo do modelo sistêmico
propriamente dito? Certamente, “a complexidade está na base” (E. Morin).
É preciso ter uma idéia sobre aquilo que se considera como o fundamento do
sistema, assim como sobre seu princípio teleológico.

A conjugação de múltiplas diversidades e pluralidades que separam o meio


ambiente

O reconhecimento da biodiversidade foi um passo decisivo, mas


insuficiente. É preciso também considerar outras formas da geodiversidade;
de uma parte, no domínio físico, por exemplo, na ordem geomorfológica ou
territorial; de outra parte, no domínio sociocultural onde a irrupção do sensível
e do qualitativo multiplicou as representações e os vividos. Como conduzir uma
análise que considere, ao mesmo tempo, a unicidade de cada sujeito-objeto
ambiental, da pluralidade de suas representações e da indispensável modelização
e generalização abertas sobre tipologias? Como combinar a diversidade biofísica
Introdução 25

dos meios e a pluralidade sociocultural do vivido? A diversidade-pluralidade


está na base. Ela é a forma mais preciosa da complexidade.

A trajetória do meio ambiente num espaço-tempo multidimensional

A análise espacial e seus jogos de escala são relativamente bem


matizados, mas eles estão ainda muito isolados das temporalidades e das escalas
correspondentes. Não é suficiente opor um tempo longo a um tempo curto e de
se deliciar da durabilidade ou da sustentabilidade sem referências nas durações
e ritmos específicos, físicos e sociais, dos fenômenos considerados. A catástrofe,
dita natural, e a crise, dita social, podem conduzir ao catastrofismo se a gente
não as coloca nas suas temporalidades específicas. Em que sistema de referência
espaço-temporal é preciso analisar as durações, os ritmos, as periodizações e suas
representações sociais? Como assegurar contínuos e rupturas entre o passado
e o futuro e se projetar numa aventura prospectiva?
Enquanto questionamentos entrecruzados, entre muitos outros, que
emergiram no curso de meio século de pesquisas teóricas e práticas. Muitos
restam sem respostas, mas nenhum foi inútil. Estas interrogações, deslocadas
no tempo, guiaram uma abordagem geral e garante uma continuidade
epistemológica e metodológica. Se esforçando para conduzir o debate acima
das práticas disciplinares ou interdisciplinares. Colocando a experiência até
propor um novo paradigma. Ornamento irrealista e sem sentido? Sem nenhuma
dúvida, ele era concebido como da arte para a arte e se pretendia edificar
uma cidadela dogmática a ser defendida a qualquer preço. Talvez que não, se
ele não fosse senão uma simples ferramenta, colocada à prova dos terrenos e
dos encontros, em suma, “um vulgar tambor de ferro pintado” para retomar a
expressão de Gunther Grass.

c o n s t r u i n d o o c a m i n h o : a s c e rt e z a s p r o v i s ó r i a s
(1957-2002)

“Eles não sabiam onde estavam, eles não sabiam onde iriam
e, no entanto, eles discutiam incansavelmente o itinerário.”
Geoffrey CHAUCER, décimo primeiro conto de Canterbury
26 Introdução

Conforme o espírito da Arguments33, esta obra narra a história de


uma pesquisa de longo curso e de um itinerário científico personalizado.
Nós retalhamos e retemos em prioridade os textos cujo conteúdo teórico e
metodológico era susceptível de provocar uma reflexão epistemológica geral.
Em detrimento de estudos monográficos e concretos assim que, para nosso
grande desgosto, trabalhos comportando uma icnografia pesada e dificilmente
reprodutível. Por exemplo, toda uma cartografia de grande formato, tirada
em um número limitado de exemplares, que representa, portanto, uma das
especificidades do nosso trabalho e, freqüentemente, seu ponto de resultado.
Esta base concreta e precisa, de interesse prático, certamente faz falta a este
tipo de obra.
Os documentos apresentados não foram objetos de nenhuma
recomposição. Eles figuram na integridade de seu texto (com algumas exceções
assinaladas) e na integridade de seu vocabulário. Palavras aparecem, anglicismos
ou neologismos; outras são objeto de deslizamentos de sentido. É o caso das
principais palavras-valise: geossistema, meio ambiente, paisagem. Isto pode
provocar algumas confusões que nós não nos esforçamos de suprimir nas
introduções dos capítulos correspondentes.
As grandes linhas da cronologia foram mantidas com alguns
reajustamentos; seja para corrigir a defasagem, às vezes de muitos anos, entre a
redação de um texto e sua publicação; seja para dar mais coerência à exposição.
A unidade problemática e a homogeneidade temática da pesquisa facilitaram
a forma final da obra. Certamente, as chamadas grandes partes e os principais
capítulos foram escolhidos a posteriori, mas eles não fazem geralmente que
retomar os títulos ou as expressões nos artigos concernentes.
O plano histórico se organiza naturalmente em torno dos quatro
grandes conceitos ou noções que marcaram nossa pesquisa:
••o geossistema: (re)construir uma geografia naturalista;
••o território: do natural ao antrópico, uma arqueologia de tempo
longo;
••a paisagem: a irrupção do sensível no campo do meio ambiente;
••o sistema GTP: o retorno do geográfico?
Cada capítulo é precedido de uma breve apresentação redigida em
março de 2002.
Faltava inventar um título. Ele deveria descrever um itinerário.
Longo e indeciso. A partir de uma geografia pouco concernente, de um
meio ambiente impreciso, de uma interdisciplinaridade incerta. A escolha
3 Éditions ARGUMENTS, 11 bis, rue Tiphaine – 75015 Paris – responsável pela publicação de
« Une Géographie Traversière – L´environnement à travers territoires et temporalités » de Claude e
Georges BERTRAND, na França, no ano de 2002.
Introdução 27

estacionou sobre “uma geografia transversal – e de travessia”. Geografia para


nada renegar de nossas origens científicas, de nossa vida profissional, das
felicidades e das experiências divididas no seio de um laboratório do CNRS e
de um departamento universitário. Mas somente “uma” geografia entre muitas
outras e sem exclusividade. Traversière (transversal e de travessias) porque
esta pesquisa recorta em diagonal não somente a geografia, mas muitas outras
disciplinas com múltiplas paradas e idas e retornos. Traversière também na
medida onde, tanto por necessidade como por gosto, nós percorremos caminhos
estreitos e fronteiras, às vezes, rejeitados. Traversière, enfim, como esta flauta
de orquestra que canta a simplicidade e o frescor da terra.

Como deve ser a pesquisa em curso, não há conclusão.


28
29

PRIMEIRA PARTE

O GEOSISTEMA
(RE)CONSTRUIR UMA GEOGRAFIA
NATURALISTA
“A gente não pode mais atualmente separar a evolução do
relevo do meio climático e biogeográfico nem romper a unidade
do meio físico...” “Não se trata de estudar separadamente,
como a gente fazia antigamente, o relevo, o clima, a vegetação,
as águas, mas o complexo que eles formam. E mais, um estudo assim
compreendido teria o risco de não ser acadêmico, pois ele desbordaria
sobre problemas de valorização racional dos recursos
naturais da região. Ele definiria com precisão as unidades
naturais que o constituem e suas relações, assim como suas
possibilidades. Eis algumas reflexões que não têm outro objetivo senão
de vos encorajar a pesquisar caminhos novos...”
“Uma ciência que não se renova é uma ciência morta.”
François TAILLEFER (carta escrita para GB em 24/12/1960).

Nós entramos na geografia pelas paisagens. Para compreender a forma


e o funcionamento. Por sua beleza também. Desde nossas primeiras experiências
de campo, a partir dos anos 1956-1958, no curso das enquetes agro-silvo-pastoral,
realizadas pelo serviço de Restauração dos Terrenos em Montanha das Águas e
Florestas, assim como no quadro dos diplomas de estudos superiores no sudoeste
do Maciço Central, nós percebemos nossa incapacidade para apreender o
meio natural, não somente em alguns de seus componentes (vegetação, solo),
mas, sobretudo, na sua globalidade. Em particular, o impacto humano sobre as
paisagens, no entanto evidente sobre o terreno, nos escaparia, como pertencendo
a um outro modo de conhecimento e, sobretudo, de pensamento. O inesgotável
debate natureza-sociedade está, pois, colocado, desde o início, em termos de
práticas geográficas, bem antes que ele não seja questão de análise integrada
do meio natural, do ecossistema e do meio ambiente. Deste ponto de vista, a
geografia clássica e a formação universitária que ela dispensava nos pareceram em
situação de fracasso. A geomorfologia então triunfante, também indispensável
e apaixonante que ela era, se distanciava muito da geografia humana, tornando
as sínteses regionais de mais a mais artificiais. Todavia, nós sabíamos já, graças a
algumas raras vozes isoladas, como a de um Maximiliano Sorre ou de um Henri
Gaussen, que o meio geográfico era um todo, que a natureza não era muito natural
e que a sociedade, como a natureza, comportava uma parte de biológico. Para
nós, a paisagem, até a mais banal, exprimia já esta complexidade.
30

Nada era mais familiar ao geógrafo que o mosaico mutante das


paisagens da Terra. Nada era mais estranho ao método geográfico que
a análise global dessas mesmas paisagens... Analisar uma paisagem é
colocar um problema de método. Antes que qualquer coisa, é preciso
elaborar a ferramenta de trabalho.
(Georges BERTRAND, Introdução da Tese de Doutorado de
Estado,preparada entre 1960 e 1967, defendida em 1974).

Esta posição de tese é válida ainda, pelo menos no seu princípio.


Mesmo se os termos mudaram e se os conteúdos evoluíram. Começa então um
longo caminho aos limites da geografia. Ele é marcado por grandes etapas, a
maior parte ligada às leituras e aos encontros com outros pesquisadores, outras
disciplinas, outros métodos, outros terrenos. O mais freqüentemente fora da
disciplina, mas sempre em ligação com ela.
Nada teria sido possível sem o interesse colocado a todo tempo ao mundo
vivo, se longe do ensinamento tradicional da geografia. O fato decisivo foi a formação
complementar adquirida, entre 1957 e 1968, no Serviço da Carta da Vegetação da
França a 1/200.000, na sombra tutelar de Henri Gaussen, que nos familiarizou com
a botânica, a fitogeografia dos meios temperados e tropicais, assim como com novos
métodos e técnicas de trabalho em torno da foto-interpretação e da cartografia.
O apoio, direto e amigável, de Georges Dupias, nos domínios da sistemática e da
florística, foi essencial para a elaboração da Tese de Doutorado sobre as montanhas
cantábricas centrais. Esta biogeografia sem os geógrafos foi para nós libertadora, mas
inacabada.
A “biogeografia dos geógrafos” que nós nos esforçamos para segui-
la, de promover com Gabriel Rougerie e Henri Elhai, foi sentida como uma
intrusão na disciplina, muito particularmente pelos geomorfólogos. O enxerto
mal extraído. O erro foi querer levar a biogeografia à prática geográfica clássica
que precisaria ter assumido o encontro direto, e a confrontação, com a ecologia
americana que começava a aparecer na França. Uma grande reunião que não
aconteceu.
Esta nova cultura biogeográfica, mais ou menos bem assimilada,
vai nos permitir, não somente alargar o campo epistemológico e conceitual,
mas, sobretudo, ter uma grande disponibilidade para levar em consideração
as novidades que passam, quase que ao acaso e em desordem, ao domínio do
geógrafo. A partir de 1962, encontramos a maior parte dos elementos que vão
servir de base para uma primeira tentativa de estudo integrado do meio natural.
Citemos os mais significativos entre eles:
••a ecologia norte-americana e o conceito de ecossistema através dos
“Fundamentos de Ecologia” de E.P.Odum;
••a landschaftkunde alemã e a ecogeografia de Carl Troll;
••a tese de pedologia florestal de Philippe Duchaufour;
31

••a teoria da biorresistasia de Henri Erhart;


••os diversos trabalhos de lingüistas e de matemáticos abordando os
sistemas e a teoria dos conjuntos (Charles Piaget, Jean-Louis de
Moigne);
••os inventários práticos, exploratórios, de diversos soil survey, land
survey e landscape survey americanos, australianos e canadenses;
••os primeiros contatos, difíceis e muito parciais, com a “ciência
da paisagem” russa e o conceito de geossistema elaborado por
V.B.Sochava e A.G. Isachenco;
••as tentativas de Jean Tricart para desembaraçar a geografia física das
gavetas relevo-solo-clima-vegetação.
Entre 1964 e 1966, preparamos, a partir de uma série de seminários,
o artigo “Paisagem e geografia física global”, publicado tardiamente (1968)
na Revue de géographie des Pyrénées et du Sud-ouest. Nós o consideramos como
o mais fundador de nossa tentativa, no entanto, ele foi recusado pelo comitê
de redação dos Annales de Géographie pelo motivo que o método proposto era
muito complicado e não suficientemente geográfico. Fracasso disciplinar. Pelo
contrário, estas proposições foram bem acolhidas nas outras disciplinas, tanto ao
lado das ciências da natureza como das ciências sociais. O artigo foi traduzido
em muitas línguas e ele foi a origem de um reconhecimento pela comunidade
científica do CNRS, geógrafos aí compreendidos (Medalha de Prata, 1992).
O mexer-meninge de maio de 1968 soa para nós como uma liberação
científica e cultural. Ele nos conforta na soldagem das idéias e das transgressões
disciplinares. Enquanto que a grande maioria dos geógrafos proclama o todo
social e rejeita, não sem motivo, uma geografia física sectorizada, nós restamos
agarrados sobre a vertente natural da interface natureza-sociedade. Desconforto
disciplinar, mas incomparável mirante transdisciplinar. Esta experiência
é confortada pela participação em comitês ou comissões encarregadas de
promover a interdisciplinaridade no plano nacional: Comitê ECV (Espaço e
quadro de vida) do Ministério da Qualidade de Vida, Comitê ECAR (Ecologia
e aménagement rural) da DGRST, missão de avaliação da pesquisa em ecologia
(dita missão Di Castri), Comitê DMDR (Diversificação dos modelos de
desenvolvimento rural) do Ministério da Pesquisa e da Indústria. Missões
científicas no estrangeiro nos abrem perspectivas sobre a “natureza” e seu
vivido/experiência nos países e regiões ditas então em via de desenvolvimento
(Andes, Nepal, Europa Mediterrânea e Central, Magreb etc.). Durante este
período, desenvolvemos e colocamos em prática os métodos fundados sobre
a integração pelo geossistema. Com Olivier Dollfus, propomos um modelo de
organização do espaço montanhês que se esforça para transcender as monografias
tradicionais. Paralelamente, procuramos reconstruir uma geografia física, mais
global e mais naturalista, mais antropizada e mais social. Após longas discussões
com Nicolas Beroutchachvili, elaboramos uma concepção de geosistema
aberta sobre o social. Os trabalhos individuais e coletivos do CIMA ilustram
e prolongam estas diferentes tentativas. Mais polêmicas, os três artigos que
fecham esta primeira parte sublinham as numerosas ocasiões fracassadas pelos
geógrafos franceses no momento onde a emergência da ecologia científica e o
meio ambiente propunham novas pistas.
32
33

PAISAGEM E GEOGRAFIA FÍSICA GLOBAL*


Esboço metodológico1

“Paisagem” é um termo pouco usado e impreciso e, por isto


mesmo, cômodo, que cada um utiliza a seu bel prazer, na maior parte
das vezes anexando um qualificativo de restrição que altera seu sentido
(paisagem vegetal etc.). Emprega-se mais o termo “meio”2 , mesmo tendo
este termo outro significado. O “meio” se define em relação a qualquer
coisa; este termo é impregnado duma finalidade ecológica que não é
encontrada na palavra “paisagem”.
O problema é de ordem epistemológica. Realmente, o conceito
de “paisagem” ficou quase estranho à geografia física moderna e não
tem suscitado nenhum estudo adequado. É verdade que tal tentativa
implica numa reflexão metodológica e pesquisas específicas que
escapam parcialmente à geografia física tradicional. Esta é, com efeito,
desequilibrada pela hipertrofia da pesquisa geomorfológica e por graves
carências, em particular no domínio das ciências biogeográficas. Enfim,
ela permanece essencialmente analítica “separativa” 3 , enquanto que
o estudo das paisagens não pode ser realizado senão no quadro de uma
geografia física global.
A paisagem não é a simples adição de elementos geográficos
disparatados. É, numa determinada porção do espaço, o resultado da combinação
dinâmica, portanto instável, de elementos físicos, biológicos e antrópicos que,
reagindo dialeticamente, uns sobre os outros, fazem da paisagem um conjunto
único e indissociável, em perpétua evolução. A dialética tipo-indivíduo é o
próprio fundamento do método de pesquisa.
É preciso frisar bem que não se trata somente da paisagem “natural”,
mas da paisagem total integrando todas as implicações da ação antrópica. No
entanto, deixaremos provisoriamente de lado as paisagens fortemente urbanas
que, criando problemas originais, determinam possivelmente, para alguns de
1 Este trabalho foi apresentado em 14 de novembro de 1967, ao Instituto de Geografia Daniel Faucher
(Toulouse), no curso de uma reunião do Grupo de Pesquisa de Geografia Física dirigido por M. Professor
TAILLEFER. Agradecemos muito calorosamente os naturalistas e os geógrafos que participaram do
debate. Temos em conta suas observações e suas críticas. Duas comunicações sobre o mesmo sujeito
foram feitas, uma perante a Comissão de Biogeografia e de Climatologia nas Jornadas geográficas de
Bordeaux (março de 1968), a outra por ocasião do Colóquio de Taxonomia que se realizou na École
Normale Supérieure do boulevard Jourdan, Paris, maio de 1968.
2 Milieu (meio): “Espaço que envolve imediatamente as células ou os organismos vivos e com o qual
os seres vivos realizam trocas constantes de matéria e de energia...” Grand Larousse Encyclopédique,
t.7, p. 358.
3 Qualificativo emprestado de P. PÉDELABORDE que opõe a climatologia clássica “separativa”
(estudo das temperaturas, das precipitações, etc.) à climatologia “dinâmica” (estudo global das massas
de ar). Introduction à l’étude scientifique du climat, Paris, C.D.U., 1955, p.3.
34 Paisagem e Geografia Física Global

seus aspectos, métodos análogos.


Estudar uma paisagem é antes de tudo apresentar um problema de
método.
A exposição que segue dá ênfase sucessivamente a problemas de
taxonomia, de dinâmica, de tipologia e de cartografia das paisagens 4.

A análise da paisagem

A noção de escala é inseparável do estudo das paisagens. As


escalas têmporo-espaciais de inspiração geomorfológica de A. CAILLEUX
e J. TRICART foram utilizadas como base geral de referência para todos os
fenômenos geográficos (a ordem de grandeza é indicada entre parênteses,
abreviada G.I, G.II, G. III etc.)5.

Classificações elementares

Cada disciplina especializada no estudo de um aspecto da paisagem


se apóia num sistema de delimitação mais ou menos esquemático, formado
de unidades homogêneas (ao menos em relação à escala considerada) e
hierarquizadas, que se encaixam nas outras. A classificação fitogeográfica de
H. GAUSSEN: ANDAR (ex. mediterrâneo) – SÉRIE (ex. carvalho verde) -
ESTÁDIO (ex. garrigue) é a melhor ilustração disso. Em qualquer dos casos,
trata-se de unidades específicas que podem ser qualificadas de “elementares”
em relação ao complexo formado pela paisagem. Esses sistemas são tão variados
quanto numerosos e nós não reteremos senão os que apresentam um interesse
do ponto de vista da taxonomia das paisagens.
As classificações climáticas e pedológicas são também tão gerais como
teóricas e, além disso, são bastante discutíveis. A hierarquia bem conhecida
desde Max Sorre: clima zonal (G.I), clima regional (G.I a G. IV), clima local
( G.V – G VI) e microclima (G. VII), pode fornecer um primeiro ponto
de partida. Os geomorfologistas nunca demonstraram muito interesse por
questões taxonômicas. Podemos citar somente a classificação morfoestrutural
apresentada por G. VIERS conforme os trabalhos de J. TRICART: o domínio
estrutural (ex. a Europa herciana, G. III) - a região estrutural (ex. as Ardenas,
G. IV) – a unidade estrutural (ex. um anticlinal pré-alpino, G.V)6 A bacia-
vertente, unidade hidrogeomorfológica, corresponde a uma descontinuidade
essencial da paisagem, mas ela é heterogênea por definição e o limite a jusante
é sempre difícil de ser estabelecido. Enfim, as paisagens ditas “físicas” são, com
efeito, quase sempre amplamente remodeladas pela exploração antrópica. A
divisão em parcelas, territórios, comunidades, quarteirões e “pays” vai então
4 Esta abordagem foi essencialmente inspirada pelas pesquisas sobre o terreno em vista da preparação
de uma tese de doutorado de Estado: Les paysages cantabriques: Picos de Europa et Montana de Leon
(Nord-Ouest de l´Espagne).
5 J. TRICART, Principes et Méthodes de la Géomorphologie. Paris: Masson, 1965, 79-90. Ver
também L. GLANGEAUD, Degré de regionalité. Bull Soc. Géol. Fr., 1952.
6 G.VIERS, Eléments de Géomorphologie, Paris: Nathan, 1967, 27-29.
Paisagem e Geografia Física Global 35

constituir um dos critérios essenciais da taxonomia das paisagens 7.


No entanto, a melhor aproximação do problema é fornecida pela
vegetação que se comporta sempre como verdadeiro “reativador” do meio. As
unidades fitogeográficas citadas acima (andar- série - estádio) correspondem
a massas vegetais perfeitamente definidas tanto no plano fisionômico quanto
no plano dinâmico. A fitossociologia moderna com orientação sinecológica
vem harmoniosamente completar este sistema, permitindo delimitar unidades
homogêneas do ponto de vista florístico (associações e agrupamentos vegetais,
G. VI a G.VII).
Como era de se esperar, essas diversas classificações elementares
não têm entre elas nenhuma relação lógica porque os fenômenos em causa
pertencem a ordens geográficas diferentes. Certos especialistas realizaram
reagrupamentos parciais que constituem já uma primeira etapa para a definição
das paisagens. Nesse domínio, os biogeógrafos, já há muito tempo, precederam
os geógrafos.

As combinações bioecológicas

A biocenose é “um agrupamento de seres vivos, correspondendo, pela


composição e pelo número das espécies e dos indivíduos, a certas condições
médias do meio, agrupamento de organismos ligados por uma dependência
recíproca que se mantém por reprodução de maneira permanente”8 . O pântano
com rãs é um exemplo dessa combinação. A biocenose coloniza o biótipo que
é a unidade elementar correspondente ao menor conjunto homogêneo do
meio físico-químico (G. VII-VIII). O ecótopo, a biogeocenose, o microcosmo,
o “holocoen”, o “naturcomplex” o fisótopo, a geoforma etc., exprimem com
algumas variações, e de diversas maneiras, uma realidade bem próxima 9.
As unidades biogeográficas superiores, como a tundra, a savana, a
floresta tropical úmida, são qualificadas de “biomas”. São massas relativamente
homogêneas de vegetais e de animais, em equilíbrio entre elas, e com o clima.
As “zonas ecológicas equipotenciais” de P. REY poderiam servir de unidades
intermediárias entre a biocenose e o bioma, tanto mais que elas tentam integrar
certos dados geológicos e humanos (G. V-VI). Apoiando-se nessa noção de
“equipontencialidade” ecológica e aplicando métodos de análises multifatoriais
preconizadas por B.-L.-J. BERRY no domínio da pesquisa sociopsicológica, M.
PHIPPS tem a ambição de achar as estruturas da “paisagem biogeográfica” e de
definir matematicamente um “modelo biogeográfico” da paisagem 10.
Os biogeógrafos modernos foram ainda mais longe a caminho da
síntese, definindo o “ecossistema”. Acentuaram as cadeias e as redes tróficas,
7 Terminologia utilizada por R. BRUNET nos estudos a serem publicados: La notion de quartier
rural. Bull. A. G. F., 1968 et Rev. Géogr. Pyr. S-O, 1968.
8 M. ANGELIER, Cours de biogéographie animale proferido no Centro de 3º ciclo de Biogeografia,
da Faculdade de Ciências de Toulouse, ano 1963-1964.
9 Cf. mais particularmente E. S. KORMONDY, Readings of ecology. New Jersey, 1965, 220 p.
10 R. REY, CABAUSSEL, ARLES, Les bases biogéographiques de la restauration forestière et pastorale
dans de département de l´Aude-Corbières, Razes, Piège. Toulouse, 1961 (C.N.R.S, Service de la Carte
de la vegetation 39 p. ronéo) M. PHIPPS, Introduction au concept de modèle biogéographique. Actes
2º Symposium Internat. Phot. Interprétation, Paris, 1966, IV (2), 41-49.
36 Paisagem e Geografia Física Global

isto é, as ligações alimentares que unem os indivíduos e as comunidades vivas:


“Qualquer que seja o ecossistema estudado..., trata-se sempre, em definitivo, de
um problema de elaboração, de circulação, de acumulação e de transformação
de energia potencial pela ação dos seres vivos e seu metabolismo” 11. Entre
as melhores aplicações desse sistema, em particular no plano cartográfico, é
preciso citar os trabalhos dos norte-americanos, dos belgas, dos alemães, dos
soviéticos e dos poloneses12. O ecossistema não tem nem escala nem suporte
espacial bem definido. Ele pode ser o oceano, mas também pode ser o pântano
com rãs. Não é, portanto, um conceito geográfico. Nessas condições, é melhor
renunciar a reajustar a taxonomia biogeográfica a escolher livremente unidades
geográficas globais adaptadas ao estudo da paisagem. Diversas tentativas já
foram realizadas nesse sentido.

As primeiras sínteses geográficas

A “região natural” foi durante longo tempo o pilar da geografia


francesa. “O termo de região se aplica... tanto a conjuntos físicos, estruturais ou
climáticos como a domínios caracterizados pela sua vegetação” 13. Realmente,
a “região natural” escapa a toda definição racional tanto pelo conteúdo como
pela superfície coberta (G. III a G. V). Pode-se conservar esta unidade maleável
e cômoda com a condição de colocá-la num sistema taxonômico coerente. De
uma maneira geral, as sínteses de geografia física realizadas durante a “idade de
ouro” da geografia regional francesa pecavam pela falta de cultura biológica e
ecológica. É fora da França que devem ser procuradas as raras tentativas para
apreender a paisagem na sua totalidade. Deixaremos por enquanto de lado todas
as delimitações mais ou menos agronômicas ligadas ao “land-use” britânico ou
ao “soil-survey” norte-americano.
A noção de “Landschaft” domina toda a geografia germânica.
Desde a 2ª metade do século XIX, uma “Landschaftskunde” tentou precisar
as relações do homem e do meio. O determinismo abrupto desta ciência da
paisagem arruinou completamente a iniciativa e certamente contribuiu a
desviar os geógrafos franceses da ecologia, então em nascimento. C. TROLL
retomou esta idéia apoiando-se nos trabalhos dos ecologistas anglo-saxões,
tirando proveito de sua própria experiência sobre foto-interpretação 14. Ele
11 P.DUVIGNEAUD et M. TANGHE, Ecosystème et biosphère. L’ écologie, science moderne de
synthese (vol.2). Trav Centre Ecologie générale, minist. Education Nationale, Bruselles, 1962, p.
127.
12 Entre outros, citemos: J.M. CROWLEY, M. JURDANT, A. –W. KUCHLER, V. – E. SHELDFORD
(Canadá, USA) J. SMITHUSEN, C.TROLL et R. TUXEN (Allemagne), P. DUVIGNEAUD
(Belgique), TCHACHENKO, NEOSTRUEV, PALYNOV, SOTCHAVA, VILENSKY, VINK, etc.
(URSS), KONDRACKI (Pologne) et PLESNIK (Tchécoslovaquie). Ver mais particularmente J.-M.
CROWLEY, La Biogéographie vue par um géographe, C. R. som. Soc. Biogéographie, 1967, n° 380-
382, 20-27.
13 A. CHOLLEY, La Géographie Guide de l’ etudiant. Paris, 1951, p. 31.
14 C. TROLL, Landscape ecology. Public of the I.T.C. UNESCO Centre for Integrated Surveys,
1966, Delft S. 4, 23 p.
Paisagem e Geografia Física Global 37

lançou as bases da “Landschaftsokology” que é um estudo da paisagem do


ponto de vista ecológico. As paisagens são divididas em “ecótopos” (ou em
“landschafzellen”) que são unidades inteiramente comparáveis ao ecossistema.
Este método representa um progresso decisivo sobre os estudos fragmentados
dos geógrafos e dos biogeógrafos, porque ele reagrupa todos os elementos da
paisagem, e o lugar reservado ao fenômeno antrópico é bem importante nele.
No entanto, trata-se mais duma atitude de espírito do que de um método de
estudo cientificamente estabelecido. A definição dos “ecótopos” permanece
imprecisa e a hierarquização dos fatores não é evocada. Nenhuma tipologia
sistemática permite lançar claramente o problema de representação cartográfica.
Trata-se em suma de um método mais ecológico que geográfico.
Pesquisadores soviéticos e americanos ultrapassaram por generalização
o conceito de ecossistema e tentaram abordar as paisagens sob o aspecto
estritamente quantitativo 15, A paisagem é considerada como um sistema
energético cujo estudo se lança em termos de transformação e de produtividade
bioquímica. Esta “geochimical landscape” enriquece e simplifica ao mesmo
tempo a noção tradicional de “paisagem”. Mas os próprios especialistas se
perguntam como poderão medir (posta de lado, a fotossíntese) as transformações
de energia ao nível de outros elementos que não os vegetais, particularmente
no âmbito da microfauna. Mesmo o cálculo aproximado do balanço energético
de uma paisagem não é ainda possível. No momento, o principal interesse da
“geochimical landscape” é chegar a uma tipologia dinâmica das paisagens em
função da migração das substâncias geoquímicas. Distinguem-se 3 categorias
de paisagens: um tipo “residual” (estável), um tipo de “trânsito” (perda de
substância) e um tipo de “acumulação”. Sob uma formulação diferente,
reencontra-se a biorresistasia de H. ERHART que certos geógrafos tentam
adaptar à geografia física16 . Neste nível de concepção, a paisagem aparece
como um objeto de estudo bem definido que apela para um ponto de vista
metodológico.

A síntese da paisagem

Todas as delimitações geográficas são arbitrárias e “é impossível achar


um sistema geral do espaço que respeite os limites próprios para cada ordem
de fenômenos” 17. Contudo, pode-se vislumbrar uma taxonomia das paisagens
com dominância física sob condição de fixar desde já seus limites.
1º) A delimitação não deve nunca ser considerada como um fim
em si, mas somente como um meio de aproximação em relação à realidade
geográfica. Em lugar de impor categorias preestabelecidas, trata-se de pesquisar
as descontinuidades objetivas da paisagem.
2º) É preciso de uma vez por todas renunciar a determinar unidades
sintéticas na base de um compromisso a partir das unidades elementares; seria
certamente um mau método querer superpor, seja pelo método cartográfico
15 ibid
16 H. ERHART, La genèse des sols entant que phénomène géologique. Esquisse d’une théorie géologique
et géochimique. Exemples d’application. Paris 2e. ed., 1967, 177 p.
17 P. CLAVAL, La division regionale de la Suisse. Rev. Géogr. de l´Est, 1967, 83-94.
38 Paisagem e Geografia Física Global

direto, seja pelo método matemático (sistema de rede), o máximo de unidades


elementares para destacar daí uma unidade “média” que não exprimiria
nenhuma realidade por existir a estrutura dialética das paisagens. Ao contrário,
é preciso procurar talhar diretamente a paisagem global tal qual ela se apresenta.
Naturalmente, a delimitação será mais grosseira, mas as combinações e as
relações entre os elementos, assim como os fenômenos de convergência
aparecerão mais claramente. A síntese vem felizmente no caso substituir a
análise.
3º) O sistema taxonômico deve permitir classificar as paisagens em
função da escala, isto é, situá-las na dupla perspectiva do tempo e do espaço.
Realmente, se os elementos constituintes de uma paisagem são mais ou menos
sempre os mesmos, seu lugar respectivo e, sobretudo, suas manifestações no seio
das combinações geográficas dependem da escala têmporo-espacial. Existem
para cada ordem de fenômenos “inícios de manifestação” e de “extinção” e
por eles pode-se legitimar a delimitação sistemática das paisagens em unidades
hierarquizadas 18. Isto nos leva a dizer que a definição de uma paisagem é função
da escala. No seio de um mesmo sistema taxonômico, os elementos climáticos
e estruturais são básicos nas unidades superiores (G. I a G. IV) e os elementos
biogeográficos e antrópicos nas unidades inferiores (G.V a G. VIII).
O sistema de classificação finalmente escolhido comporta seis níveis
têmporo-espaciais; de uma parte a zona, o domínio e a região; de outra parte,
o geossistema, o geofácies e o geótopo. (Observar a Tabela).

As unidades superiores

As pesquisas têm-se limitado às unidades inferiores. No entanto,


pareceu necessário apresentar um sistema taxonômico completo. Para as
unidades superiores, é suficiente retomar o sistema de delimitação consagrado
pelo uso, precisando somente a definição e o lugar relativo de cada unidade.
O qualificativo de zona deve ser imperativamente ligado ao conceito
de zonalidade planetária. É então reservado aos conjuntos de 1ª grandeza (zona
temperada). Na realidade, a zona se define primeiramente pelo seu clima e
seus “biomas”, acessoriamente por certas megaestruturas (os escudos das áreas
tropicais...).
O domínio corresponde a unidades de 2ª grandeza. O domínio
mediterrâneo s.s. é um exemplo deste tipo com suas paisagens vigorosamente
individualizadas. Da mesma maneira, define-se um domínio cantábrico
caracterizado por certa combinação de relevos montanhosos e de climas
oceânicos. A definição do domínio deve ficar suficientemente maleável para
permitir reagrupamentos diferentes no qual a hierarquia dos fatores pode não
ser a mesma (domínio alpino, domínio atlântico europeu...).
A região natural, já apresentada, situa-se entre a 3ª e 4ª grandeza. Os
Picos de Europa constituem, no interior do domínio cantábrico, uma região
18 R. BRUNET, Les phénomènes de discontinuité en géographie (thèse complém. Toulouse, 1965,
22-28), sur exemplaire. ronéoté (em vias de publicação no “Memoires e Documents du Centre de
Recherches et Documentation cartographiques et géographiques du C.NR.S.”).
Paisagem e Geografia Física Global 39

natural bem circunscrita que corresponde à individualização tectônica de um


maciço calcário vigorosamente compartimentado e carstificado. Ele constitui
uma “frente montanhosa” hiperúmida e hipernebulosa caracterizado por um
andar biogeográfico original (mistura faia-carvalho verde nas baixas encostas,
ausência de resinosas, limite superior da floresta bem baixa, passagem da “terra
fusca” oceânicas aos solos alpinos húmicos).

As unidades inferiores

Foi necessário montar todas as peças das unidades globais inferiores


à região natural. Após numerosos ensaios, forjaram-se 3 entidades novas: o
geossistema, o geofácies e o geótopo. Estes termos têm a vantagem de não terem
sido utilizados, de serem construídos num modelo idêntico e de evocar cada um
o traço característico da unidade correspondente. Na verdade, geo”sistema”
acentua o complexo geográfico e a dinâmica de conjunto; geo“fácies” insiste
no aspecto fisionômico e geo “topo” situa essa unidade no último nível da
escala espacial 19.

19 Num primeiro estudo consagrado à análise de um caso concreto (G. BERTRAND, Esquisse bio
géographique de la Liébana, La dynamique actuelle des paysages, RGPSO, 1964, fasc. 3, p. 225-
262), havia-se utilizado um vocabulário diferente que tinha sido criticado por um certo numero de
especialistas.
40
Paisagem e Geografia Física Global

NB. As correspondências entre as unidades são muito aproximativas e dadas


somente a título de exemplo.
1- conforme A. CALLEUX – J. TRICART e G. VIERS
2- conforme M. SORRE
3- conforme R. BRUNET
Paisagem e Geografia Física Global 41

O geosistema

O exemplo do geossistema Sierras Planas (Espanha do Noroeste,


domínio cantábrico, região dos Picos de Europa). As Sierras Planas são
plataformas escalonadas entre 180 e 450 m. de altitude entre o oceano
Atlântico e o maciço Cantábrico. Talhadas no arenito e os quartzitos do
Primário, elas representam os vestígios de superfícies de aplanamento de
idade miocênica que se ligam ao piemonte norte-cantábrico hoje em sua
maior parte afundado e afogado sob o oceano. Esses planaltos, talhados
em estreitas línguas, por sulcos de erosão plio-quaternários, mergulham
num clima hiperocêanico particularmente úmido e nebuloso. As “landes”
atlânticas partilham a superfície com as turfeiras oligotróficas de “Sphaignes
e Polytricum”. As Sierras Planas foram desmatadas e usadas como pastagens
desde o neolítico. Atualmente, elas são subutilizadas: alguns pedaços para
pastoreio, reflorestamentos recentes com “Eucalyptus globulus” e “Pinus
insignis”, uma exploração arcaica da turfa. É uma paisagem nítida e bem
circunscrita que se pode, por exemplo, identificar instantaneamente nas
fotografias aéreas. Portanto, as Sierras Planas se ligam a unidades elementares
discordantes e de extensão variável: um piemonte complexo que franjeia
toda a vertente norte-cantábrica, um clima comum ao conjunto do litoral
asturiano, fenômenos de podzolização que são vistos em todas as rochas
matrizes quartzíticas das montanhas cantábricas, uma série vegetal dominada
pelo carvalho pedunculado que cobre uma superfície muito mais vasta, enfim,
uma exploração silvo-pastoral, que não é muito diferente das encontradas
nas regiões vizinhas. A unidade da paisagem é, portanto, incontestável.
Ela resulta da combinação local e única de todos esses fatores (sistema de
declive, clima, rocha, manto de decomposição, hidrologia das vertentes) e
de uma dinâmica comum (mesma geomorfogênese, pedogênese idêntica,
mesma degradação antrópica da vegetação que chega ao paraclímax “lande”
– podzol ou à turfeira). A paisagem das Sierras Planas caracteriza-se por certa
homogeneidade fisionômica, por uma forte unidade ecológica e biológica,
enfim, fato essencial, por um mesmo tipo de evolução. Este exemplo permite
esboçar uma definição teórica do geosistema.
42 Paisagem e Geografia Física Global

O geosistema situa-se entre a 4ª e a 5ª grandeza têmporo-espacial.


Trata-se, portanto, de uma unidade dimensional compreendida entre alguns
quilômetros quadrados e algumas centenas de quilômetros quadrados. É
nesta escala que se situa a maior parte dos fenômenos de interferência entre
os elementos da paisagem e que evoluem as combinações dialéticas mais
interessantes para o geógrafo. Nos níveis superiores a ele só o relevo e o clima
importam e, acessoriamente, as grandes massas vegetais. Nos níveis inferiores, os
elementos biogeográficos são capazes de mascarar as combinações de conjunto.
Enfim, o geossistema constitui uma boa base para os estudos de organização do
espaço porque ele é compatível com a escala humana.
O geosistema corresponde a dados ecológicos relativamente estáveis.
Ele resulta da combinação de fatores geomorfológicos (natureza das rochas e
dos mantos superficiais, valor do declive, dinâmica das vertentes...), climáticos
(precipitações, temperatura...) e hidrológicos (lençóis freáticos epidérmicos e
nascentes, PH das águas, tempos de ressecamento do solo...). É o “potencial
ecológico” do geossistema. Ele é estudado por si mesmo e não sob aspecto
limitado de um simples “lugar”. Para uma soalheira calcária da média montanha
pirenaica, por exemplo, as paredes talhadas no calcário urgoniano – aptiano
da bacia de “Tarascon-Ariège”, o potencial ecológico corresponde a vertentes
recobertas de camadas de fragmentos rochosos, a uma insolação e a um
aquecimento do substrato, superiores à média regional, enfim, à ausência de
fontes e mesmo de todo o escoamento epidérmico. Pode-se admitir que existe,
na escala considerada, uma sorte de “contínuo” ecológico no interior de um
mesmo geossistema, enquanto que a passagem de um geosistema ao outro é
marcada por uma descontinuidade de ordem ecológica.
O geosistema se define em seguida por certo tipo de exploração
biológica do espaço. A vertente Norte da Montanha Negra (SW do Maciço
Central), bem servida por chuva fresca e nebulosa é colonizada por uma
floresta de faia montanhosa com urzes, “Aspérula odorata”, “Melia”, como a
flor etc... em equilíbrio com solos brunos florestais de vertente. Há uma relação
evidente entre o potencial ecológico e a valorização biológica. No entanto, esta
última depende também muito estreitamente do estoque florístico regional.
Por exemplo, se o pinheiro pectíneo fosse espontâneo na Montanha Negra,
a floresta de faia seria naturalmente substituída, seja por uma floresta de faia
de pinheiro, seja mesmo por uma floresta de pinheiro pura, com “Prenanthes
purpúrea” em solos lixiviados ou em solos podzólicos.
O geosistema está em estado de clímax quando há um equilíbrio
entre o potencial ecológico e uma exploração biológica. A floresta de faia já
citada realiza este equilíbrio. O potencial ecológico está de qualquer maneira
“saturado” e o geossistema caracteriza-se por uma boa estabilidade de conjunto.
Mas é um caso relativamente raro.
Com efeito, o geosistema é um complexo essencialmente dinâmico
mesmo num espaço-tempo muito breve, por exemplo, de tipo histórico. O
clímax está longe de ser sempre realizado. O potencial ecológico e a ocupação
biológica são dados instáveis que variam tanto no tempo como no espaço. A
mobilidade biológica é bem conhecida (dinâmica natural da vegetação e dos
solos, intervenções antrópicas etc.). De outro lado, parece que os naturalistas se
Paisagem e Geografia Física Global 43

interessaram pouco pela evolução própria do potencial ecológico que precede,


acompanha ou segue as modificações de ordem biológica. Por exemplo, a
destruição de uma floresta pode contribuir para a elevação do lençol freático
ou desencadear erosões susceptíveis de transformar radicalmente as condições
ecológicas. As noções de “fator-limitante” e de “mobilidade ecológica” merecem
um exame aprofundado da parte do geógrafo advertido dos fenômenos de
geomorfogênese e de degradação antrópica.20
Por essa dinâmica interna, o geosistema não apresenta necessariamente
uma grande homogeneidade fisionômica. Na maior parte do tempo, ele é formado
de paisagens diferentes que representam os diversos estágios da evolução do
geossistema. Realmente, estas paisagens bem circunscritas são ligadas umas as
outras através de uma série dinâmica que tende, ao menos teoricamente, para
um mesmo clímax. Estas unidades fisionômicas se unem então numa mesma
família geográfica. São os geofácies (pl. VII A e B).

O geofácies e o geótopo

No interior de um mesmo geossistema, o geofácies corresponde então


a um setor fisionomicamente homogêneo onde se desenvolve uma mesma fase
de evolução geral do geossistema. Em relação à superfície coberta, algumas
centenas de km² em média, o geofácies se situa na 6ª grandeza de escala de A.
Cailleux e J. Tricart.
Como para o geossistema, pode-se distinguir em cada geofácies um
potencial ecológico e uma exploração biológica. Nessa escala, é muitas vezes
esta última que vem a ser determinante e que repercute diretamente na evolução
do potencial ecológico. O geofácies representa assim uma pequena malha na
cadeia das paisagens que se sucedem no tempo e no espaço no interior de um
mesmo geossistema. Pode-se falar de cadeias progressivas e de cadeias regressivas
de geofácies, como também de um “geofácies-clímax”, que constitui um estágio
final da evolução natural do geossistema. Na superfície de um geossistema, os
geofácies desenham um mosaico mutante cuja estrutura e dinâmica traduzem
fielmente os detalhes ecológicos e as pulsações de ordem biológica. O estudo
dos geofácies deve sempre ser recolocado nessa perspectiva dinâmica.
Às vezes, é indispensável conduzir a análise no âmbito das microformas,
na escala do metro quadrado ou mesmo do decímetro quadrado (7ª grandeza).
Uma diaclasse alargada pela dissolução (Pr. VIII, B), uma cabeceira de nascente,
um fundo de vale que o sol nunca atinge, uma face montanhosa, constituem
igualmente biótipos cujas condições ecológicas são muitas vezes muito diferentes
das do geosistema e do geofácies dentro das quais eles se acham. É o refúgio de
biocenoses originais, às vezes relictuais ou endêmicas. Este complexo biótipo-
biocenose, bem conhecido dos biogeógrafos, corresponde ao geótopo, isto é, a
menor unidade geográfica homogênea diretamente discernível no terreno; os
elementos inferiores precisam da análise fracionada de laboratório.

20 Sobre a noção de “mobilité écologique”, cf. G. BERTRAND, Pour une étude géographique de la
végétation RGPSO, 1966, fasc.2, p. 129-143.
44 Paisagem e Geografia Física Global

A tabela acima resume a classificação sintética das paisagens. De um


lado, ela dá a escala e o lugar relativo de cada unidade global na hierarquia das
paisagens como também os encadeamentos entre as diversas unidades. De outro,
ela situa a série geossistema-geofácies-geótopo em relação a certo número de
unidades e de classificação elementares.

A dinâmica da paisagem

Considerando a paisagem como uma entidade global, admite-


se implicitamente que os elementos que a constituem participam de uma
dinâmica comum que não corresponde obrigatoriamente à evolução de cada
um dentre eles tomados separadamente. Somos levados então a procurar os
mecanismos gerias da paisagem, em particular no âmbito dos geossistemas e
dos geofácies. O “sistema de erosão” de A. CHOLLEY inspirou diretamente
esta ordem metodológica. Por que não alargar o conceito de “sistema de
erosão” no conjunto da paisagem? Passar-se-ia assim de um fato estritamente
geomorfológico à noção mais vasta, mais completa e, sobretudo, mais geográfica,
de “sistema geral de evolução” da paisagem.
1- O exemplo de geossistema “mediterrâneo” da Baixa Liebana e do
geossistema hiperoceânico das Sierras Planas (domínio cantábrico, região dos
Picos de Europa) 21. Os ravinamentos e os desnudamentos das vertentes são
freqüentes na Baixa Liebana. As causas são primeiramente geomorfológicas
(possante dissecção plio-quartenária nos xistos tenros, mantos superficiais
espessos e instáveis) e fitogeográficos (tapete vegetal ralo e frágil de tipo
relictual, isto é, em desequilíbrio bioclimático). A situação é agravada pelo
sistema de valorização antrópica que multiplica os desmatamentos, os incêndios
e a degradação das florestas claras, dos “maquis” e das “garrigues”. Os solos
são descontínuos e mal evoluídos (tipos “rankeriformes”). A geomorfogênese
condiciona então a dinâmica de conjunto desse geosistema e domina o “sistema
de evolução” da paisagem. Nas Sierras Planas, os pastores asturianos destruíram
a floresta para aumentar as áreas de pastoreio. Eles desencadearam uma cascata
de processos pedológicos (podzolização, formação de turfa, hidromorfização)
botânicos (extensão das “landes” ácidas) e, às vezes< mesmo geomorfológicos
(movimentação dos mantos arenosos já pedogeneizados). A pedogênese tem aí
um papel essencial e bloqueia atualmente a dinâmica geral da paisagem. Cada
um desses geossistemas possui então um sistema de evolução diferente.
2- O sistema de evolução de uma unidade de paisagem, de um
geossistema, por exemplo, reúne todas as formas de energia, complementares
ou antagônicas que, reagindo dialeticamente umas em relação às outras,
determinam a evolução geral dessa paisagem. Para as necessidades da análise,
podem-se isolar três conjuntos diferentes no interior de um mesmo sistema
de evolução. Com efeito, eles estão estreitamente solidários e se entrecruzam
largamente:
- O sistema geomorfogenético tal qual o compreendem os geomorfologistas
modernos que insistem no seu caráter dinâmico e biocliomático (J. TRICART);
21 G. BERTRAND, ibid. note 19.
Paisagem e Geografia Física Global 45

- A dinâmica biológica que intervém ao nível do tapete vegetal e


dos solos. Ela é determinada por toda cadeia de reações ecofisiológicas que se
manifestam através dos fenômenos de adaptação (ecótipos), de plasticidade,
de disseminação, de concorrência entre as espécies ou as formações vegetais,
etc... com prolongamentos no nível dos solos;
- O sistema de exploração antrópica que tem muitas vezes um
papel determinante, seja ativando ou desencadeando erosões, seja somente
modificando a vegetação ou solo (desmatamento, reflorestamento...).
3- O sistema de evolução se define por uma série de agentes e de
processos mais ou menos bem hierarquizados. Sem querer desenvolver aqui
essa questão, podem ser distinguidos agentes naturais (climáticos, biológicos,
etc...) que determinam processos naturais (ravinamentos, pedogênese, dinâmica
ecofisiológica...) e agentes antrópicos (sociedades agropastoris, florestais...)
dos quais dependem os processos antrópicos (desmatamento, incêndio,
reflorestamento). Se não é nunca fácil apreciar a importância de determinado
agente ou de determinado processo isolado, é, no entanto, possível classificar
os sistemas de evolução em função dos fatores dominantes (geomorfogenético,
antrópico...). É já um primeiro esboço de classificação das paisagens.

A tipologia das paisagens

Antes de classificar os geosistemas, é preciso dar-lhes nomes. Trata-se


de definir o mais breve possível combinações ricas, muitas vezes únicas, que
escapam às terminologias tradicionais. Na verdade, não são evitadas perífrases
complicadas que a despeito de serem carregadas, não são sempre explícitas.
A solução mais fácil consiste em designar o geossistema pela vegetação
correspondente que representa muitas vezes a melhor síntese do meio. Como
o nome de uma espécie não é suficiente, pode-se reter o da formação vegetal
clímax e seu traço ecológico essencial (geossistema da floresta de carvalho
atlântica acidófila, geossistema da floresta de faia montanhosa higrófila...).
Todavia, não se pode fazer disso uma regra geral porque o tapete vegetal não é
sempre o elemento dominante ou característico da combinação (por exemplo,
para certos geosistemas de alta montanha ou das regiões áridas). Daí parece
preferível reter o traço ou a associação geográfica característica, qualquer que seja
sua natureza. Para maior precisão, acrescenta-se o nome do conjunto regional
ao qual pertence o geosistema. Citemos a título de exemplo: para a vertente
Norte do maciço Cantábrico Central, o geossistema hiperoceânico das Sierras
Planas, o geossistema da montanha média oceânica silicosa da Sierra de Cuera,
o geossistema do setor das gargantas calcárias com lenhosas, submediterrânea,
o geossistema da alta montanha cárstica dos Picos de Europa. Para a Montanha
Negra ocidental: o geossistema das garupas superflorestadas da alta Montanha
Negra, o geossistema submediterrâneo acidófilo do Cabardes...
Os geofácies se definem facilmente no interior de cada geossistema
porque eles correspondem sempre a uma combinação característica. Nesta
escala, a vegetação fornece os melhores critérios, em particular sob a forma de
argumentos fitosociológicos, com a condição de completar as definições das
46 Paisagem e Geografia Física Global

paredes calcárias de montanha com Potentilletalia caulescentis, geofácies do


prado calcícola pastoril com Elyno seslerietea... A denominação dos geótopos
obedece aos mesmos princípios: cabeça de nascente com Osmunda regalis,
turfos de Androsace em auto-solo húmico, turfeira com Sphaignes...
A relativa complexidade desse esboço taxonômico sublinha
perfeitamente os problemas que aparecem na classificação global das paisagens.
A dificuldade é menos de chegar a uma definição sintética que de adaptar o
sistema de classificação ao fato de que a estrutura e a dinâmica das diferentes
unidades mudam com a escala.
As tipologias estritamente fisionômicas (vertente florestal, planalto
calcário com garrigue) ou ecológicas (geossistemas mediterrâneo, atlântico,
montanhês...) não deram os resultados esperados. Elas são cômodas, mas
carecem de rigor e sua generalização é difícil. A escolha caiu numa tipologia
dinâmica que classifica os geossistemas em função de sua evolução e que engloba
através disso todos os aspectos das paisagens. Ela leva em conta três elementos:
o sistema de evolução, o estágio atingido em relação ao clímax, o sentido geral
da dinâmica (progressiva, regressiva, estabilidade). Esta tipologia se inspira,
portanto, na teoria de biorresistasia de H. ERHART. Foram distinguidos 7
tipos de geodsistemas agrupados em 2 conjuntos dinâmicos diferentes.

Os geosistemas em biostasia

Trata-se de paisagens em que a atividade geomorfogenética é fraca


ou nula. O potencial ecológico é, no caso, mais ou menos estável. O sistema
de evolução é dominado pelos agentes e os processos bioquímicos: pedogênese,
concorrência entre as espécies vegetais, etc... A intervenção antrópica pode
provocar uma dinâmica regressiva da vegetação e dos solos, mas ela nunca
compromete gravemente o equilíbrio entre o potencial ecológico e a exploração
biológica. Esses geosistemas em estado de biostasia classificam-se de acordo
com sua maior ou menor estabilidade.
Os geosistemas climáticos, plesioclimáticos ou subclimáticos
correspondem a paisagens onde o clímax é mais ou menos bem conservado, por
exemplo, uma vertente montanhosa sombreada com cobertura viva (P. Birot)
contínua e estável, formada por uma floresta de faias em solos brunos florestais
Mul-Moder. A intervenção humana, de caráter limitado, não compromete
o equilíbrio de conjunto de geossistema. No caso de um desmatamento ou
mesmo de acidente natural (corrida de lama), observa-se bem rapidamente
uma reconstituição da cobertura vegetal e dos solos; o potencial ecológico não
parece modificado.
Os geosistemas paraclimácicos aparecem no decorrer de uma evolução
regressiva, geralmente de origem antrópica, logo que se opera um bloqueamento
relativamente longo ligado a uma modificação parcial do potencial ecológico
ou de exploração biológica. O melhor exemplo é o do geosistema hiperoceânico
das Sierras Planas em que a floresta de carvalho destruída foi substituída por
uma lande empobrecida em equilíbrio com os podzóis. A base aqui é de origem
Paisagem e Geografia Física Global 47

pedológica. A podzolização interdita todo retorno espontâneo do clímax


florestal. A evolução não pode prosseguir senão artificialmente para uma outra
forma de clímax (reflorestamento com resinosas após aração profunda).
Os geosistemas degradados com dinâmica progressiva são bem
freqüentes nas montanhas temperadas úmidas submetidas ao êxodo rural.
Os territórios rurais cultivados passam ao abandono, com landes, capoeiras e
retorno a um estado floresta-clímax. É o caso de certas áreas declivosas dos
territórios rurais pirenaicos do andar do carvalho séssil, que se cobrem de mata
de tronco fino, como aveleiras, bétulas, castanheiras e carvalhos diversos que
não constituem obrigatoriamente a frente pioneira da floresta de carvalho-
clímax anteriormente destruída.
Os geosistemas degradados com dinâmica regressiva sem modificação
importante do potencial ecológico representam as paisagens não afrouxadas
ou ainda montanhas cantábricas com economia agropastoril. A vegetação é
modificada ou destruída, os solos são transformados pelas práticas culturais e
o percurso dos animais. No entanto, o equilíbrio ecológico não é rompido,
malgrado um início de ressecamento ecológico. As erosões mecânicas, sempre
muito localizadas, guardam um caráter excepcional (por exemplo, ao longo
dos caminhos vicinais).
48 Paisagem e Geografia Física Global

Pl. I, A e esquema

Geossistema montanhês-continental “acidífilo” da vertente sul cantábrica (col


del Pando, 1400 m de altitude, vale de Prioro).

1 – Geofácies bastante estáveis e pouco distantes do clímax. Vertente xistosa


inteiramente coberta por um manto de plaquetas de xistos em processo de
“formação de argila”. Exposição sombreada. Hetraie acidifilo com Aspérula
odorante e Anémone sylvie sobre cadeia de solos cinza florestais com Moder.

2 – Geofácies de hetraie-parque regularmente com pastagem e com Hellébore


fétide e Digitale D. lútea L.) sobre solos cinza fino e amontoado.

3 – Geofácies de fundo de talvegue preenchido por detritos finos e de solos cinza


alógenos. Campo arborizado com sarothame (S. cantabricus Wk) Fougère-aigle
e Allouchier (Ária nívea Grantz).

4 – Geofácies de campo acidífilo com almofadinhas de gramíneas (Erica arbórea


L e aragonensis Wk) e de sarothamme (S. cantabricus Wk) sobre solos cinza
descontínuos e sinais de erosão. Placas descamadas por erosão epidérmica.

5 – Geofácies de formações abertas com Labiées (Thymus mastichina L.) sobre


regolito instável.

6 – Geofácies de vertentes xistosas descamadas e recobertas por uma


micropavimentação de brilho calcário. Alguns tufos de Thym.

7 – Geofácies da cornija calcária. Rocha lapidada e fraturada pelo gelo. Tufos


de Ononis spinosa L.
Paisagem e Geografia Física Global 49

Pl. I A
50 Paisagem e Geografia Física Global

Pl. I, B e esquema

Geossistema mediterrâneo com Chêne verde do platô calcário de Cabardès e


do Minervois (vertente sul da Montanha Negra, Sudoeste do Maciço Central
– França).
1 – Geofácies dos planaltos calcários com garrigue (terreno árido e calcário
da região mediterrânea; vegetação de chênes verdes e de arbustos aromáticos
que recobre o terreno) de Chêne Kermès, Buis, Thym comum e Brachypode
ramoso sobre solos rendiziformes (reflorestamento e colonização subespontânea
de Pinho pignon e Pinho d´Alep).
2 – Geofácies dos fundos de pequenos vales secos preenchidos por argilas de
descalcificação. Vegetação densa com Genêt scorpion, Spartier e Badasse
(Dorycnium suffruticosum Villars).
3 – Geofácies de vertentes erodidas e instáveis com “cobertura vivente”
destruída: litossolos calcários, tufos de Thym, Buis e Romarin.
Paisagem e Geografia Física Global 51

Pl.IB
52 Paisagem e Geografia Física Global

Os geosistemas em resistasia

A geomorfogênese domina a dinâmica global das paisagens. A


erosão, o transporte e a acumulação dos detritos de toda a sorte (húmus,
detritos vegetais, horizontes pedológicos, mantos superficiais e fragmentos
de rocha in loco) levam a uma mobilidade das vertentes e uma modificação
mais ou menos possante do potencial ecológico. A geomorfogênese contraria
a pedogênese e a colonização vegetal. No entanto, é preciso distinguir os 2
níveis de intensidade:
De um lado, os casos de resistasia verdadeira ligados a uma crise
geomorfoclimática capaz de modificar o modelado e o relevo. O sistema de
evolução das paisagens se reduz então ao sistema de erosão clássico. A destruição
da vegetação e do solo pode nesse caso ser total. Cria-se um geossistema
inteiramente novo. Este fenômeno é freqüente nas margens das regiões áridas
onde ele é muitas vezes acelerado pela exploração antrópica (terras más do Oeste
dos EE.UU). Pode tratar-se também de uma ruptura de equilíbrio catastrófica
(por exemplo, lava torrencial em montanha).
Por outro lado, os casos de resistasia limitada à cobertura viva da
vertente, isto é, à parte superficial das vertentes: vegetação, restos vegetais,
húmus, solos e, às vezes, manto superficial e lençóis freáticos epidérmicos. Esta
evolução ainda não interessou suficientemente aos geógrafos e aos biogeógrafos.
É certo que ela é quase negligenciável do ponto de vista geomorfológico
porque ela não cria relevos, mesmo que anuncie às vezes os inícios de uma
crise geomorfológica. No entanto, seu interesse é capital do ponto de vista
biogeográfico porque ela mobiliza toda a parte biologicamente ativa da vertente.
Pode-se qualificar esta erosão de epidérmica para bem distingui-la da erosão
verdadeira ou geomorfológica e para evitar as confusões e as discussões inúteis
que durante certo tempo puseram em oposição contra e a favor da erosão sob
cobertura vegetal: eles não falavam do mesmo tipo de erosão nem da mesma
cobertura vegetal e não situavam na mesma escala. A erosão epidérmica tinha
já sido definida sob o nome de erosão biológica (G. BERTRAND, ibid. Note
19,140-143), mas este qualificativo era uma fonte de confusão. A tipologia dos
geossistemas em resistasia deve levar em conta todos esses fatos.
2 A) Os geosistemas com geomorfogênese natural. Nas regiões áridas
e semi-áridas, assim como na alta montanha, a erosão faz parte do clímax, isto
é, ela contribui a limitar naturalmente o desenvolvimento da vegetação e dos
solos (vertente montanhosa com talude de detritos móvel, superfície de um
glacis de erosão alimentado por escoamento anastomosado de oued).
2 B) Os geossistemas regressivos com geomorfogênese ligada à
ação antrópica. Já se insistiu longamente sobre este aspecto da dinâmica das
paisagens. É preciso encarar 3 casos: primeiro, os geossistemas em resistasia
bioclimática cuja geomorfogênese é ativada pelo homem. Em seguida, os
geossistemas marginais em mosaico, isto é, com geofácies em resistasia e com
geofácies em biostasia, caracterizados por certo desequilíbrio e certa fragilidade
natural. O exemplo típico é o do domínio mediterrâneo cuja degradação não
está ligada somente ao fator antrópico. Enfim, os geossistemas regressivos e com
Paisagem e Geografia Física Global 53

potencial ecológico degradado que se desenvolve por intervenção antrópica


no seio das paisagens em plena biostasia (certas culturas de plantation em
economia colonial).
Este esboço tipológico deve ser sumariamente colocado na dupla
perspectiva do tempo e do espaço.
No tempo, o problema mais delicado é considerar a parte das heranças.
Com efeito, essas não são somente geomorfológicas e pedológicas, mas também
florísticas e antrópicas. Seria preciso reconstituir a cadeia histórica dos
geossistemas, sobretudo levando em conta a alternância e a duração respectiva
das fases de equilíbrio biológico e das fases da atividade geomorfológica. Os
resultados combinados da análise de pólen, do exame dos depósitos superficiais
e dos paleo-solos, do estudo da ação humana, desde os inícios da vida pastoril
e da agricultura, permitem às vezes obter-se uma idéia precisa da dinâmica
recente das paisagens. [A região cantábrica se presta bem a essa pesquisa graças
aos trabalhos dos pré-historiadores, dos palinólogos e dos fitosociólogos].
No espaço, a justaposição dos geossistemas é um fato geral. No
entanto, os geosistemas com equilíbrio biológico ocorrem, sobretudo, nas zonas
temperadas tropicais úmidas, assim como em certas regiões de planície. A alta
montanha e as diagonais áridas abrigam os geossistemas com mais ou menor
atividade geomorfogenética. A exploração antrópica está em vias de perturbar
esta distribuição essencialmente bioclimática estendendo os geosistemas em
desequilíbrio biológico. Mas a erosão geomorfológica, muitas vezes rápida e
espetacular, não se exerce senão em superfícies reduzidas. Em compensação,
o verdadeiro perigo do ponto de vista da organização do espaço é a erosão
epidérmica que, de forma às vezes insidiosa, arranha a película viva das vertentes
em setores extensos sem que se preste a ela uma real atenção. O estudo da
distribuição espacial dos geosistemas é, pois, um problema de geografia ativa
que vem reforçar o interesse da pesquisa cartográfica.
54 Paisagem e Geografia Física Global

Pl.II A – Geosistema mediterrâneo “acidífilo” de Liebana (Picos de Europa, vertente


norte cantábrica, 400 m de altitude).

Pl.IIB – Geótopo com Aspidium Lonchitis Sw. Sobre “auto-solo” húmico carbonatado
alojado em microcavidades de dissolução cárstica do calcário viseano (geosistema
montanhês-atlântico da Hetraie calcícola, Picos de Europa, 1 400 m de altitude.
(Dimensões da cavidade: 30 x 60 cm.
Paisagem e Geografia Física Global 55

A cartografia das paisagens

A representação cartográfica das paisagens exige um inventário


geográfico completo e relativamente detalhado. A análise deve ao menos descer
até o nível dos geofácies mesmo se eles não devem figurar na carta. O essencial
do trabalho se efetua no terreno: levantamentos geomorfológicos, pedológicos
e fitogeográficos, exame das águas superficiais, observações metereológicas
elementares, inquéritos sobre o sistema de valorização econômica (gestão
florestal, percursos pastoris, direitos de uso etc.). Essas informações e
levantamentos temáticos são completados pelos trabalhos de arquivos e
inquéritos diversos (cadastro, serviços administrativos etc.). A consulta da
bibliografia especializada é bem entendido indispensável, mas ela é muitas vezes
difícil de ser utilizada por causa da diferença de ponto de vista. Para orientar toda
essa documentação volumosa e disparatada, é preciso escolher uma linha mestra.
Ela é fornecida pelo tapete vegetal cujo levantamento sistemático a 1/50.000
segundo um método simplificado, intermediário entre o do Serviço da carta
da Vegetação a 1/100.000 dos Alpes de P. Ozenda, serve de base à cartografia
global das paisagens. A interpretação das fotografias aéreas constitui um apoio
precioso porque ela fornece uma visão sintética e instantânea das paisagens.
Ensaios cartográficos foram realizados em diversas escalas [contentemo-nos em
lembrar aqui o método seguido e os resultados obtidos no curso das pesquisas
de tese e de direção de Mestrados].
Na escala média (1/100.000 e 1/200.000), pode-se cartografar
geossistemas de maneira satisfatória com a condição de renunciar à acumulação
dos sinais analíticos e de escolher uma representação sintética. Cada geosistema
corresponde a um lugar cuja cor e respectiva trama é escolhida em função da
dinâmica do geossistema, (por exemplo: azul para os geossistemas climáticos,
verde para os geossistemas paraclimáticos, amarelo para os geossistemas
regressivos com degradação antrópica dominante, vermelho para os geossistemas
com evolução essencialmente geomorfológica). Os jogos de trama permitem
variar essa tipologia. Na carta 1/200.000 das montanhas cantábricas centrais
(cobrindo mais ou menos 6.000 Km²), foram determinados 32 geosistemas.
[Esta carta a 1/200.000 em 7 cores existe sob forma de maquete e deverá estar
terminada em 1968].
Na escala grande 1/20.000, pode-se facilmente cartografar os geofácies
no interior dos geossistemas. A cor ou a variação na cor de cada geossistema
indica a situação dinâmica em relação ao clima (geofácies-clímax em azul,
geofácies degradado em amarelo ou em vermelho). Pode-se assim escolher
um tema, por exemplo, as relações entre a cobertura vegetal e a erosão
epidérmica.
A geografia física global não está destinada a substituir nem mesmo
a concorrer com os estudos especializados tradicionais dos quais, aliás, ela se
nutre. Ela constitui uma pesquisa paralela que aproxima, confronta e completa
os dados da análise e que coloca cada elemento no seu complexo de origem,
estudando mais especialmente as combinações geográficas e sua dinâmica global.
Sua função essencial é, portanto, de redescobrir a geografia física tradicional e
56 Paisagem e Geografia Física Global

de fazer diretamente apelo às ciências biológicas e às ciências humanas. Mais


ainda, dando o meio de descrever, de explicar e de classificar cientificamente
as paisagens, ela se abre naturalmente para os problemas de organização do
espaço não urbanizado. Mas este estudo global dos meios naturais não pode ser
conduzido somente pelos geógrafos. Ele não pode expandir-se senão na pesquisa
e na reflexão interdisciplinar.
57

ECOLOGIA DE UM ESPAÇO GEOGRÁFICO


OS GEOSSISTEMAS DO VALLE DE PRIORO
(Noroeste da Espanha)1

Por suas paisagens horizontais, erodidas e poeirentas, o Valle de Prioro


introduz, em plena Montanha Cantábrica, aspectos do páramo2 castilhano. É
um dos numerosos alvéolos da grande depressão intramontanhosa que ventila
a vertente sul do maciço cantábrico, entre León e Palencia, à meia distância
entre os altos relevos do divisor de água e os platôs cascalhentos do piemonte
da Velha Castilha (fig. 1). O Valle de Prioro corresponde à parte montante
da bacia hidrográfica do rio Cea, afluente do rio Esla, subafluente do Douro.
A princípio, duas paisagens se individualizam:
O Alto Prioro, entre 1.300 e 1.800 m de altitude, forma uma cintura
quase contínua de maciços de forte inclinação e dilacerados pela erosão
torrencial. O mosaico de paisagens ali formado é vigoroso e contrastado: nos
setores elevados aparecem vertentes estruturais denudadas com solos e mantos
de detritos dispostos em franjas ou acumulados em pequenos vales secundários;
nos setores sombreados aparecem maciços florestais (faias e carvalhos)
estáveis e homogêneos; formações arborizadas abertas nos pedimentos xistosos
móveis; alguns campos de lapiás colonizados por rústicas garides3 compostas,
basicamente, por espécies do gênero Thymus.
O Baixo Prioro, entre 1.100 e 1.300 m de altitude, exibe suas paisagens
monótonas e degradadas sobre os patamares escalonados e vales aluviais
que ocupam o centro da depressão: platôs interfluviais quase inteiramente
recobertos pelo fino tabuleiro de campo aberto; sobre as colinas, bosques de
carvalho cobertos por gramíneas; landes4 abertas sobre pavimentos instáveis;
uma rede em evolução de ravinas e canais em volta dos povoados e ao longo
das cañadas 5.
Duas impressões, aparentemente contraditórias, se depreendem
desta análise prévia: a marcas generalizadas de uma “seca” observada tanto na
composição florística e na estrutura da cobertura vegetal quanto nos modelados
atuais das vertentes; a existência clara de certa “umidade” que se manifesta
apenas em alguns aspectos particulares da vegetação e dos solos, mas que se
confirma pelas características climáticas. Em suma, trata-se de paisagens
1 Tradução de Jailton Dias (jailton.dias@ibama.gov.br)
2 Platô do piemonte castilhano.
3 Tipo de associação vegetal xerófita típica de locais pedregosos e ensolarados. [N.T.]
4 As landes são formações vegetais cuja fisionomia geral é dominada por arbustos e subarbustos
sempre-verdes, normalmente dominados por Ericaceaes e Fabaceaes. (Nota do Tradutor – N.T.)
5 Caminhos pastoris, utilizados para transferir o gado de um local para outro, em períodos de
transumância.
58 Ecologia de um espaço geográfico - Os geosistemas do Valle do Prioro

“secas” sobre um clima “úmido”. Esta observação não constitui um paradoxo.


Ela apenas ressalta o profundo desequilíbrio ecológico do conjunto do Valle
de Prioro.
O método global que se propõe seguir aqui não é sintético em
todos seus desdobramentos 6. Seria confundir a finalidade da pesquisa com a
abordagem metodológica. O estudo integrado de paisagem deve, quase que
obrigatoriamente, ser precedido por um inventário analítico dos dados. Este
pré-requisito é tão indispensável quanto grande é o desconhecimento das
Montanhas Cantábricas centrais, no plano geográfico.

O inventário dos dados

Um anfiteatro montanhoso voltado para o sul

O Valle de Prioro é uma bacia intramontana (1.100-1.800 m de


altitude), comprimida (7-12 km W-E, 6-7 km N-S, 49 km2), bem circunscrita
(o rio Cea atravessa uma garganta) e dissimétrica. O sistema de inclinação é
grosseiramente concêntrico. As paredes rochosas e as longas vertentes íngremes
(médias superiores a 40%) formam uma borda quase contínua, reforçado por maciços
de cornijas subverticais. Mais abaixo, se desenvolve uma auréola de inclinações
médias, porém irregulares, da ordem de 15 a 35%. O centro da depressão, zona de
convergência hidrográfica, é marcado por inclinações débeis ou nulas, inferiores a
15%. Este sistema de vertentes em anfiteatro, voltado para o sul, exerce um papel
essencial na distribuição e na ecologia dos ambientes geográficos. É o resultado
de um escavamento, comandado por um encaixamento simples de topografias
morfoclimáticas, num contexto estrutural particularmente atormentado. As
Montanhas Cantábricas centrais pertencem, com efeito, a uma zona externa não
granítica e muito diferenciada de um maciço antigo reincorporado e remodelado por
uma orogênese do Terciário. O Valle de Prioro corresponde a uma vasta deformação
sinclinoidal que afeta as séries xistosas carboníferas [6].
As cristas estruturais que bordejam a bacia representam as raízes dos
sinclinais hercinianos (calcários cristalinos, arenitos quartzitos, conglomerados
calcários ou quartzíticos). As deformações tectônicas, vigorosas e extremamente
complexas e confusas, resultam, todavia, em formas estruturais simples e quase
monótonas, dada à uniformidade da inclinação do terreno (45-90º): barras, hog-
backs, cristas normais ou de flancos inversos (sinclinal de Tejerina). A altitude destas
cristas (1.550-1.800 m) e o rigor da declividade (50-80%) são dois fatores ecológicos
limitantes muito uniformes. Por outro lado, as litofácies calcárias e as litofácies
areníticas ou quartzíticas resultam em substratos por vezes muito diferenciados e
muito imbricados. O maciço de Cueto, a sudoeste do Valle de Prioro, traz em sua
face norte, entre 1.718 e 1.600 m, a formação de um anfiteatro de paredes abruptas
de origem glacial isolado que margeia, a jusante, as ondulações morâinicas do
Maximum.
Os patamares escalonados que truncam os xistos frágeis (fácies Culm)
6 G. BERTRAND [3]. Os números em negrito remetem à bibliografia.
Ecologia de um espaço geográfico - Os geosistemas do Valle do Prioro 59

do centro-sul da bacia correspondem ao enraizamento das rañas7 do piemonte


cartilhano no interior das Montanhas Cantábricas. Há pelo menos dois tipos de
formas encaixadas: de um lado, os aplainamentos sub-horizontais entre 1.250 e
1.350 m de altitude que abrigam, localmente, os cascalhos deslizados das rañas; de
outro lado, as superfícies de pouca inclinação entre 1.150 e 1.180 m de altitude que
convergem para o baixo curso do rio Cea. Este sistema de patamares escalonados,
similares a glacis de erosão em rocha frágil, foi elaborado ao longo do Plioceno e do
Villafranchiano. Ele caracteriza a fase final do grande levantamento sinorogênico
do maciço cantábrico que se desenvolveu, essencialmente, durante o Oligo-
Mioceno.
A planície aluvial, bem individualizada e abaixo dos patamares, compõe-
se de três elementos topográfica e cronologicamente distintos: cones-glacis aluviais
muito achatados, provavelmente periglaciais (ao oeste do povoado de Prioro), dois
terraços aluviais, dos quais, o mais baixo (Maximum glacial) forma uma camada
espessa e contínua onde se encaixam os cursos d’água.
Os talus em rochas frágeis ocupam todos os níveis topográficos. Entre as
cristas estruturais dominantes e os mais altos níveis das rañas, de 1.600 a 1.350 m,
se estendem longas garupas esculpidas por vales estreitos. As rochas frágeis (xistos
e arenitos) recobertas e compactadas por barras e cristas resistentes são submetidas
a violentos solapamentos basais. Os talus mais modestos (20 a 100 m de altura) que
separam os diferentes níveis de aplainamento são dissecados em pequenas ravinas
bem entalhadas e, nas áreas de cañadas, em forma de “dorso de elefante”.

Um clima montanhoso oceânico “continentalizado”, com inverno rigoroso e


verão seco do tipo mediterrâneo

É preciso partir do estudo do bioclima local que envolve o conjunto do


Valle de Prioro, do qual se possui alguns dados meteorológicos. Os “topoclimas” (J.
Tricart), isto é, os contrastes climáticos ligados ao sistema de inclinação do relevo
e aos fenômenos relacionados à exposição, assim como os aspectos microclimáticos,
serão considerados posteriormente, à escala de geossistemas e geofácies.
Situado nas margens da “Ibéria seca” (H. Lautensach), o Valle de Prioro
se incorpora, essencialmente, aos ritmos e aos mecanismos climáticos regionais da
“Ibéria úmida”.
Reconhece-se ali, o efeito orográfico direto da vertente sul-cantábrica
acima dos platôs da Velha Castilha suavizado, certamente, pela distância em relação
ao mar (circulação ciclônica do setor sudoeste, particularmente, durante o outono);
o efeito orográfico atenuado, mas ainda eficaz da “fachada” hiperoceânica, própria
da vertente cantábrica norte (deslocamentos freqüentes de massas de ar oceânicas
acima dos desfiladeiros do divisor de água pelo fluxo de N e de NE; fortes precipitações
de chuva e neve); o efeito da “continentalização”, própria das bacias hidrográficas
sul-cantábricas (ressecamento pela subsidência do ar, forte radiação e inversões
térmicas de inverno); enfim, a ocorrência de uma seca de verão do tipo mediterrânea
(estabilização anticiclônica), interrompida por breves tempestades orográficas.
7 Rañas (espanhol): platôs cascalhentos; em geomorfologia: camadas cascalhentas ao longo dos platôs
de piemonte.
60 Ecologia de um espaço geográfico - Os geosistemas do Valle do Prioro

Fig. 1 – Croqui de localização da área de estudo.

Fig. 2 – O relevo do Valle de Prioro


Cristas e paredes subverticais: 1. Cristas e hog-backs em calcários e conglomerados
calcários do Westphalien. – 2. Cristas e hog-backs em conglomerados quartzíticos do
Stéphanien. – 3. Morainas glaciais do Maximum. – 4. Vertentes íngremes (inclinações
entre 15 e 30%) e ravinadas em xistos frágeis (fácies Culm). – Inclinações inferiores
a 15% (no mesmo material que em 5); 6. Alto nível de erosão do Quaternário antigo.
– 9. Vales aluviais. – 10. Gargantas fluviais.
Ecologia de um espaço geográfico - Os geosistemas do Valle do Prioro 61

As precipitações são abundantes, mas distribuídas em duas estações


pluviométricas distintas.
A impressão de seca que se tem, a principio, da paisagem deve ser
reavaliada, de forma objetiva, pela análise das séries estatísticas da estação
meteorológica de Prioro. O centro de observação de Prioro se situa a 1.123 m de
altitude, no meio da bacia, na base das grandes vertentes da borda setentrional
8. A quantidade de precipitação média (m) anual é de 1.362 mm (M: 1300;
Q1: 1000; Q2: 1700; min.: 712; máx.: 2.290) 9. Os contrastes sazonais são
bem perceptíveis. Um forte máximo na estação fria (máximo principal de
novembro a janeiro; máximo secundário em março) concentra mais de ¾ das
precipitações, sendo mais da metade em forma de neve, que se opõe quase sem
transição a um mínimo de verão curto, mas com muito pouca precipitação
(julho-agosto).

As temperaturas, bastante baixas devido à altitude, apresentam fortes


amplitudes sazonais e diárias.
A amplitude térmica é alta em todas as estações 10. O fluxo térmico
recebido pelo Valle de Prioro se caracteriza por dois aspectos sazonais muito
contrastados: de um lado, uma antecipação na chegada do inverno (outubro-
novembro), brutal, longo e profundo; de outro lado, um retardo na chegada do
verão (junho), forte (máximo em julho), mas breve.
Ainda que imperfeitas, as séries estatísticas da estação do Prioro permitem,
pelo menos, definir um “clima meteorológico médio”. Os verdadeiros bioclimas,
mais rudes, mais contratados, muito diversificados, só podem ser apreendidos
combinando a análise destes dados enumerados com as observações quantitativas
ou qualitativas realizadas diretamente em campo (temperatura e umidade do ar,
fenologia etc.).
A estação vegetativa é, ao mesmo tempo, breve e tardia
Ela não dura mais de 4 a 5 meses (fim de maio a setembro) e, além
do mais, é perturbada por uma seca de verão de quase dois meses (P < 2 T em
julho-agosto). O mês de maio constitui o início da primavera. É um mês com
boa precipitação (100 mm), com geadas leves (-2 a -4ºC, porém freqüentes);
com quedas de neve raras, mas não excepcionais; com aquecimentos bem
marcados do ar, ainda que irregulares (média das máximas entre 15 e 20ºC para
uma média mensal de 12ºC). O fator ecológico preponderante é, no entanto,
8 Estação simples de coleta de dados pluvio-térmicos – precipitações: séries contínuas de 34 anos
(1931-19650; temperaturas: séries contínua de 4 anos (1960-1963). Os resultados foram comparados
àqueles das estações meteorológicas vizinhas e levou-se em conta os ajustes críticos de J. MOUNIER
(1969) que trabalhou, ademais, os resultados de três estações vizinhas de Riaño, Cistierna e Santibañez-
de-la Pena.
9 m = média; M = mediana; Q1 = 1º.quartil; Q2 = 2º. quartil, etc.; min. = mínimo; máx. =
máximo.
10 Amplitude anual extrema: 48º; amplitude extrema para um mesmo mês de verão (agosto de 1961):
+32º e -2º5 = 34º5; idem para um mês de inverno (fevereiro de 1960): +30º e -16º = 16º.
62 Ecologia de um espaço geográfico - Os geosistemas do Valle do Prioro

a fusão da neve que libera grandes massas de água. Junho é o mês essencial
no plano fenológico. O fluxo térmico é suficiente (média das máximas entre
20 e 30ºC).. Por outro lado, as precipitações se distribuem de forma bastante
irregular (m: 69; M: 65; Q1: 35; Q2; 93; Q3: 23; Q4: 130; min.: 4; máx.: 189);
contudo, uma importante compensação ocorre a nível de lençol freático devido
à saturação decorrente da fusão nival. É o momento do brotamento geral e da
floração de primavera (em particular as géofitas).
Um curto verão do tipo mediterrâneo, quente e seco, vem desarranjar
as reservas de água e perturbar o desenvolvimento das plantas.
Julho e agosto têm sempre P < 2 T com ar seco e forte insolação:

A seca de verão é um fenômeno bastante estável. Os recursos hídricos


não são suficientes para contrabalançar os efeitos da evapotranspiração,
sobretudo se o mês de junho tiver sido seco. Todavia, não é possível afirmar que
haja uma interrupção do ciclo vegetativo. Setembro se classifica, geralmente,
entre os meses deficientes (P < 3 T), sendo “seco” do ponto de vista ecológico,
ainda que o grau higrométrico e a nebulosidade aumentem, uma vez que sucede
um período seco que esgotou as reservas hídricas do solo.
A estação biologicamente desfavorável se estende por aproximadamente
sete meses: de outubro a abril.
A chegada do inverno em outubro/novembro é marcada por um forte
aumento da nebulosidade e das precipitações (116 mm em outubro; 180 mm
em novembro), sendo uma parte sob a forma de neve (4 a 6 dias de queda de
neve, em novembro), e também, por uma queda brusca das temperaturas (os
ciclos de gelo-degelo tornam-se quase cotidianos). O inverno se estabelece,
de fato, do fim de novembro ao fim de fevereiro. As precipitações, bem
distribuídas e torrenciais (dezembro: m = 184; M = 145; Q1 =83; Q2 = 245;
Q3 = 85; Q4 = 305; min. = 32; máx. = 572) acontecem, em grande parte,
de forma sólida. A cobertura de neve se mantém por mais de três meses, em
média. O frio noturno é da ordem de -10 a -16ºC. Em março e até mesmo em
abril, o fim do inverno se caracteriza por um aumento das precipitações e da
nebulosidade, retardando o aquecimento do ar e a fusão da neve, isto é, com
influência direta na reativação biológica. Os fatores limitantes são, portanto,
múltiplos e rigorosos. O bioclima local do Valle de Prioro possui uma amplitude
ecológica relativamente estreita.
Uma poderosa atuação agro-silvo-pastoril humana rompeu com o
equilíbrio dos ambientes geográficos e provocou uma regressão generalizada
nas potencialidades ecológicas.
Ecologia de um espaço geográfico - Os geosistemas do Valle do Prioro 63

As comunidades de montanha do Valle de Prioro, ainda bem ativas


e bem estruturadas, conservam o controle completo do espaço rural.
A população aumentou regularmente até os anos 1950. As primeiras
manifestações de êxodo rural apareceram apenas nos recenseamento de 1960
(1900 = 985 habitantes; 1910 = 994; 1920 = 1079; 1930 = 1109; 1940 = 1151;
1950 = 1194; 1960 = 1137). O equilíbrio demográfico é aquele de uma população
jovem: em 1950 e 1960, registrou-se, respectivamente, 46 e 34 nascimentos, 21 e
13 falecimentos. A densidade média é de 23 hab/km2. Existem 240 propriedades
agropastoris divididas entre os povoados de Prioro e Tejerina. A situação ecológica
atual do Valle de Prioro é comparável àquela dos altos vales dos Pireneus franceses
em meados do século XIX. A exploração agrícola não deixa praticamente nenhum
lugar abandonado. As landes e as florestas são submetidas a um pastoreio intensivo.
Não existe nenhum traço da frente pioneira florestal.
O sistema pastoril, pedra angular da vida econômica e social, é
também, o agente ecológico que domina a dinâmica atual dos ambientes
geográficos.
O Valle de Prioro abriga uma das grandes comunidades pastoris
tradicionais das Montanhas Cantábricas. Todo espaço não cultivado, florestal
ou não, é deixado para a pastagem de ovinos, caprinos e bovinos. Além disso,
regularmente, coloca-se fogo, provavelmente, para favorecer o crescimento das
gramíneas. Estas vastas pastagens, propriedades comunais ou aristocráticas,
cobrem mais de 30 km2. Elas se conectam umas às outras e aos povoados
através de amplas cañadas anastomosadas. Há, de um lado, as atividades
pastoris e de criação local que comportam efetivos bastante grandes (em 1960:
2.300 ovinos; 912 ovinos; 341 caprinos; 59 cavalos, mulas, asnos; ou seja, uma
densidade de 72 cabeças de gado por km2, sendo 53 de ovinos ou caprinos).
Excluindo a superfície agrícola útil e as paredes rochosas, ultrapassa-se muito a
uma carga animal de 100 cabeças por km2. Apenas os ovinos são deslocados,
durante o verão, para fora do Valle de Prioro. De outro lado, o Valle de Prioro
participa da grande transumância castilhana, diretamente herdada da poderosa
Mesta 11. Laços familiares e econômicos ligam os criadores do Prioro a grandes
proprietários de grandes domínios pastoris extensivos (dehesas) de Extremadura.
Embora o Valle se localize nas proximidades das grandes vias de transumância,
ele é cortado por uma cañada secundária que conduz aos puertos pirenaicos
(estivas) dos altos maciços. Durante séculos, o Valle de Prioro foi percorrido
e pastoreado todos os anos, nas subidas e descidas das pastagens de verão, por
milhares de “merinas”12 da Mesta. Hoje, os ovinos transumantes constituem
apenas alguns milhares, mas são o bastante para manter os ambientes geográficos
em estado de sobrepastagem.
As florestas, ao menos os vestígios deteriorados da cobertura florestal,
fazem parte do espaço pastoril.

11 O Honrado Concejo de la Mesta de Pastores, ou simplesmente Mesta foi criado em 1203,


agrupando pastores de Castilha e correspondeu a mais poderosa associação corporativa da Idade Média
na Europa.
12 Tipo de ovino de raça española, especial para a produção de lã. [N.T.]
64 Ecologia de um espaço geográfico - Os geosistemas do Valle do Prioro

Nas formações arbóreas abertas, os taillis13 predominam sobre


as futaies14 que subsistem apenas como pequenos fragmentos. Estes são,
essencialmente, bens comunais criados pelo Serviço Florestal do Estado
que carece de recursos e que possui pouco interesse por estas florestas de
produtividade medíocre. O projeto de manejo florestal de 1902 não foi seguido
de nenhum reflorestamento de pinheiro silvestre nos maciços meridionais 15.
Os espaços cultivados se opõem brutalmente àqueles não-cultivados,
destinados ao pastoreio.
O espaço cultivado, compacto e bem manejado, está concentrado
nos glacis e terraços aluviais do centro-sul da bacia. Ainda dominado pelo
sistema de rotação bienal de culturas, ele parece bastante estável em seus limites.
Ali se cultiva trigo, cereais e legumes. As pradarias destinadas à roçagem 16,
manejadas e irrigadas, estão confinadas aos vales aluviais.

Um tapete vegetal ralo e degradado

A vegetação impõe suas especificidades às paisagens do Valle de


Prioro. Uma relativa riqueza florística contrasta com o estado de degradação
do conjunto da cobertura vegetal.
As formações vegetais de produtividade medíocre, degradadas e
abertas se estendem por quase a totalidade do espaço não-cultivado.
As florestas compactas, as gramíneas e as landes fechadas colonizam
apenas um pequeno número de ambientes favoráveis, geralmente situados nas
áreas sombreadas ou margeando os talvegues. As landes cobrem quase dois
terços da superfície total. Estas são formações acidófilas empobrecidas, mais
freqüentemente monoespecíficas (uma espécie do gênero Sarothamnus ou de
Ericaceae)17 e largamente vasculares, que asseguram apenas uma medíocre
proteção do solo (recobrem de 5 a 30%). As árvores (carvalhos, faias, Sorbus
aria) que aparecem espalhadas pelas landes ou que se associam a formações
arbóreas muito abertas (10 a 100 árvores por hectare) correspondem aos
rejeitos de velhos troncos. De pequeno porte (7 a 15 m), condensadas e
muito ramificadas, elas trazem em seu aspecto os traços do envelhecimento
(copas atrofiadas ou mortas) e a ação do vento (tufos densos ou em “forma de
bandeira”). O tapete vegetal apresenta dois aspectos sazonais: durante a estação
seca, ele se reduz a uma cobertura empobrecida (10 a 50%) de Phanerophitas
isoladas (carvalhos etc.) e de Chamephitas em moitas; no fim da primavera,
a cobertura se adensa com o aparecimento das Geophitas e das Therophitas,
sem, entretanto, recobrir todo o solo (20 a 70% apenas). A única exceção,
significativa no contexto ecológico e pastoril, é que, durante a primavera,
13 Os “taillis” designam uma floresta, destinada à silvicultura ou não, onde a vegetação não chegou à
idade adulta. Um “tailli”, com o tempo, passa a ser denominado de “futaie”. [N.T.]
14 Uma “futaie” corresponde a uma floresta destinada a silvicultura, quando as árvores atingem o
ponto de corte. Trata-se de um “tailli” em idade adulta. [N.T.]
15 Proyecto de ordenación de los Montes Buscay y agregados de Prioro. Servicio Forestal del Estado.
Provincia de León. 1902.
16 O tremo original francês é “prairies de fauche”, que designa aquelas plantações de forrageiras
destinadas a serem roçadas e deixadas in loco, como uma forma de manejo destes espaços. [N.T.]
17 Espécies arbustivas ou subarbustivas de aspecto rude. [N.T.]
Ecologia de um espaço geográfico - Os geosistemas do Valle do Prioro 65

a expansão de grandes samambaias tornam verdes os terrenos previamente


queimados.
As formações vegetais se distribuem irregularmente ao longo das
vertentes de 1.100 a 1.800 m de altitude.
Pode-se distinguir quatro séries vegetais que se associam a três andares
de vegetação.
O andar continental-montano representado pela série acidófila do
Quercus Pyrenaica que ocupa o centro da depressão (1.100 a 1.300 m) sob
a forma de taillis degradados de 5 a 20 m de altura, abertos e invadidos por
espécies heliófilas da lande: Quercus pyrenaica ou Quercus toza 18, Crataegus
oxyacantha, Sarothamnus cantabricus, Erica arborea, E. mediterranea, E.
umbellata. As gramíneas e as áreas abandonadas se caracterizam, sobretudo, por:
Satolina pectinata, Thymus mastichina, T. chamaedrys, Centaurea paniculata,
C. solsticialis, Plantago carinata etc.
O andar montano inferior, entre 1.250 e 1.450 m de altitude, é
colonizado pela série acidófila do Quercus petraea fortemente híbrido com o
Quercus Pyrenaica ou com o Quercus pedunculata. O estrato arbóreo, ralo e
monótono, comporta praticamente dois únicos velhos carvalhos; a lande cobre
praticamente toda a extensão. Deve-se, ainda, agregar às espécies citadas:
Genista cinerea, Erica aranonensis ou E. australis, E. lusitanica, E. vagans,
Vaccinium myrtillus, Pteris aquilinum, Jasione montana etc.
O andar montano superior, entre 1.400 e 1.650 m de altitude, se
limita, praticamente, aos maciços calcários. É representado por uma séria
calcícola e mesófila de faia (Fagus silvatica). Os poucos maciços florestais são
de faiais, homogêneos ou pontuados por diversos tipos de carvalho. Encontra-se
ali a maioria das espécies características de sub-bosque sombreado e úmido dos
faiais pireneu-cantábricos: Aspérula odorata, Anemone nemorosa etc. Ária
nivea se mistura às faias nas margens das florestas e nas formações arbóreas
abertas. A fácies regressiva mais característica é representada por um tipo
de garide calcícola xerófita: Thymus chamaedrys e T. mastichina, Teucrium
polium, Helianthemum alyssoides, Ononis spinosa, Epipactis latifólia, Koeleria
valesiaca.
O andar sub-alpino, difícil de se delimitar, é constituído de landes
acidófilas que nem sempre se diferenciam das landes paraclimáticas do degrau
montano. A Sarothamnus cantabricus, a Vaccinium myrtillus, a Calluna
vulgaris formam o pano de fundo da colonização vegetal. Ali se misturam:
Genista obtusiramea, G. tridentata ou trichomanes, Thymus alpestris,
Hypericum burseri, Astragalus semprevirens, Erodium petraeum...
O mosaico vegetal do Valle de Prioro, por sua diversidade florística
e seu grau de degradação, possui dois problemas essenciais do ponto de vista
da dinâmica global das paisagens.
18 O Quercus pyrenaica (carvalho-negro; chêne tauzin, em francês) que tem um aspecto eu-atlantique
(vegetação ocorrente no litoral do atlântico sul europeu) na França e, no noroeste da Península Ibérica,
uma planta de montanhas secas de nuance continental (espécie atlântica íbero-montana). P. Dupont,
La flore atlantique européenne. Document pour les cartes des productions végétales. Toulouse, Thèse
Sciences, 1962, p.285.
66

a. Calcários e conglomerados calcários do Westphalien. – b. Conglomerados quartzíticos do Stéfanian. – c. Xistos frágeis (fácies
Culm, asdósias, arenitos xistosos). – d. Glacis pré-glacial. – e. Terraço fluvial do Maximum glacial. – f. Brecha periglacial. – g.
Solos brunos florestais e rendzinas florestais. – h. Solos brunos ácidos com pedimento superficial. – i. Revestimento xistoso
de vertente. – j. Rankers e litosolos. – k. Faias e faial montano mesófilo. – l. Pinheiro silvestre e pinheiral reflorestado. –
m. Lande acidófila aberta. – n. Gramínea xerófita. – o. Culturas. – p. Cañada (com canais). – q. Garides. – r. Povoado de
Prioro. – s. Curvas das precipitações médias anuais. – t. Idem: setor com seca de verão bem marcada. – u. Nebulosidade e grau
higrométrico. – v. Cobertura de neve. – G. Geossistema e geofácies (os algarismos romanos e árabes remetem ao texto)
Ecologia de um espaço geográfico - Os geosistemas do Valle do Prioro
Ecologia de um espaço geográfico - Os geosistemas do Valle do Prioro 67

Primeiramente, a floresta não deve ter nunca recoberto o conjunto dos


degraus continentais e montanos. Não se deve pensar como se o clímax fosse,
por toda a extensão, do tipo florestal. Mesmo excluindo o degrau sub-alpino,
a floresta nunca colonizou certas vertentes acima de 1.450-1.550 m de altitude.
Os fatores limitantes são, de um lado, a formação de paredes subverticais e
os grandes afloramentos de conglomerados quartzíticos hiperácidos; de outro
lado, na ausência de coníferas montanas ou sub-alpinas, são as faias e as Sorbus
aria, espécies do degrau montano “médio”, que formam o limite superior da
floresta [1].
Em seguida, a vizinhança nítida entre as formações vegetais pouco
degradadas à base de plantas “úmidas” e certas fácies mais degradadas, onde o
caráter xerófilo é acompanhado de uma renovação quase completa do estoque
florístico, não pode ser explicada por uma simples “regressão” das séries vegetais.
Não se trataria, porventura, de características adquiridas recentemente sob o
efeito da ocupação antrópica que, por meio da “drenagem” dos ambientes, teria
conduzido a uma colonização por plantas “xerófitas”?

Um complexo edáfico e hidrológico degradado e instável

A epiderme das vertentes do Valle de Prioro traz, em mais da metade


de sua superfície, os traços de uma geomorfogênese ativa dominada por diferentes
formas de escoamento superficial e da fragmentação das rochas. Grandes planos
inclinados em rocha nua com franjas de depósitos móveis dispersas, ravinas em
atividade que cortam o talus dos glacis, pequenos vales secundários preenchidos
por formações pedogeneizadas avizinham-se com vertentes florestadas que
apresentam todas as aparências de estabilidade. A erosão não é, no caso, um
fenômeno generalizado do tipo climácico. Pelo contrário, ela é o reflexo do
desequilíbrio ecológico atual do Valle de Prioro.
Um escoamento de caráter torrencial em uma pequena bacia
hidrográfica (49 km2) de rochas impermeáveis e frágeis, sem reservas
hidrológicas.
O rio Cea drena uma bacia entalhada em xistos folheados facilmente
desintegrados em pequenas placas e em arenitos-quartzitos fortemente
diaclasados. O calcário de fácies conglomerática aflora apenas em 15 a 20%
da bacia, aproximadamente, e as formas cársticas são muito localizadas e mal
desenvolvidas (lapiás e alguns abismos). Não existem reservas hidrológicas
profundas. O escoamento, que se concentra em corredores torrenciais de perfil
longitudinal e estreitos, responde instantaneamente às fortes chuvas e às águas
advindas da fusão da neve. Na ausência de medidas e de observações sazonais
coerentes, pode-se admitir a atuação do seguinte regime: estiagem de verão bem
marcada, quando pequenos vales secundários secam (julho-agosto), máxima
secundária de outono com enchentes pluviais instantâneas, freqüentemente
acompanhadas por tempestades (setembro-novembro), retenção de neve
no período frio (dezembro-março), máxima principal associada a enchentes
advindas da fusão da neve e a abundantes chuvas de primavera (abril-maio).
O desequilíbrio sazonal e, mais particularmente, as deficiências de verão, são
68 Ecologia de um espaço geográfico - Os geosistemas do Valle do Prioro

ainda mais notáveis pela baixa capacidade de retenção superficial dos mantos
de detritos e dos solos.
Vertentes herdadas do Quaternário “frio”, modeladas e dissecadas
pelo escoamento atual.
Com exceção dos três níveis de glacis, os terraços aluviais e os
depósitos morainicos de altitude, as inclinações do terreno foram modeladas
por processos periglaciais: vertentes regulares, camadas areníticas, processos de
solifluxão preenchendo os pequenos vales. Todos estes modelos são desfeitos ou
destruídos por processos posteriores, os quais devem ser inseridos dentro de um
sistema morfogenético antrópico. Os depósitos móveis são carreados e a rocha
é fragmentada em blocos grosseiros, sem fornecer muitos elementos arenosos
ou coloidais (pequenas placas de xisto, cascalhos quartzíticos desprendidos
de conglomerados). É a origem de numerosos processos de pedimentação de
vertentes (por fragmentos).
As vertentes nuas, sem “cobertura viva”, isto é, sem vegetação nem
solo, cobrem mais de um terço da superfície do Valle de Prioro.
Uma tipologia sumária permite isolar: as paredes talhadas em
conglomerados (calcários ou quartzíticos), que são geralmente elementos de
cristas ou de barras; as vertentes retilíneas de denudação (xistos ou vertentes
estruturais em calcário); as garupas convexas com pedimento móvel; os canais
que margeiam os patamares dos glacis. A conjunção “talus-rocha frágil-
depósitos móveis-exposição sul” é um fator ecológico essencial, responsável
pela concentração geográfica dos fenômenos de meteorização.

Os solos são rasos e descontínuos


Os solos in situ com mais de 30 cm de espessura e com perfil
completo são encontrados apenas nas áreas de floresta e nas landes densas.
Nas áreas calcárias e de faiais, ocorrem as rendzinas ou solos brunos calcários;
as landes acidófilas se equilibram com solos brunos lixiviados. Sob este clima
relativamente úmido, parece que a brunificação e a lixiviação correspondem
aos processos pedogenéticos dominantes. Os solos de horizonte A-C, do
tipo Ranker 19, cobrem aproximadamente um terço da superfície do Valle
de Prioro. Estes são, por vezes, fossilizados por um processo de pedimentação
por xistos. A geomorfogênese suplanta, neste caso, a pedogênese. Os solos
formados in loco são raros. Como exemplo, ocorre um tipo de turfa originária
de musgos, relictual, parcialmente aflorada e sobreposta aos pedimentos
atuais. O qualificativo de solo formado in loco se aplica também a todos os
mantos de detritos pedogenizados em sua massa, provavelmente advindos de
antigos solos brunos aflorados, que preenchem os fundos dos pequenos vales ou
encontrados, em trânsito, nas vertentes sob a forma de franjas de origem nival.
Eles constituem os únicos reservatórios aqüíferos superficiais.
O déficit hídrico da estação seca é o principal “fator ecológico
limitante” dos ambientes geográficos do Valle de Prioro.

19 Solos pouco desenvolvidos. [N.T.]


Ecologia de um espaço geográfico - Os geosistemas do Valle do Prioro 69

Para os comentários, se
reportar ao texto. As figuras
e os símbolos são os mesmos
no texto e nos mapas.

O nordeste do Valle de Prioro


visto do centro da bacia:
mosaico de três grandes
geossistemas do Valle de
Prioro e de oito de seus
geofácies

O noroeste do Valle de
Prioro visto do centro
da bacia. Em primeiro
plano, uma “cañada”
secundária que parte
da “cañada” principal
nas proximidades do
povoado de Prioro.
70 Ecologia de um espaço geográfico - Os geosistemas do Valle do Prioro

A água que é estocada no inverno sob a forma de neve é rapidamente


evacuada na primavera da mesma forma que a água pluvial escoa após cada
chuva. A capacidade de retenção é muito limitada. Os raros lençóis freáticos
epidérmicos são lençóis elevados e isolados (terraceamento dos pequenos vales,
ausência de processos de solifluxão), vestígios de antigos lençóis mais vastos
e melhor alimentados e que foram fragmentados pelos processos erosivos. O
processo de ablação de uma grande parte dos depósitos móveis e a desorganização
consecutiva dos níveis freáticos resultou numa multiplicação de pequenos
pontos de afloramento de água que aceleram o processo de secagem. As
nascentes perenes são raras e de débito medíocre. A “secura” das paisagens do
Valle de Prioro é, portanto, muito mais um fato hidrológico de origem recente
do que uma conseqüência climática e climácica.

O estudo integrado dos ambientes geográficos

O método global

O inventário de dados a partir de grandes temas (relevo, clima...) não


estabelece uma cadeia explicativa lógica apoiada em uma descrição razoável
das paisagens. É um caminho necessário, mas não suficiente. Os ambientes
geográficos do Valle de Prioro não são compreendidos nem em si mesmos, nem
por si mesmos. “A compartimentação é a palavra de ordem, mas não uma prova
de inteligência” 20.
O estudo das paisagens do Valle de Prioro é uma tentativa de aplicação
de uma teoria do método geográfico global que foi exposto em outra época e da
qual serão retomadas apenas alguns pontos-chaves 21.
O objeto-paisagem considerado como um “conjunto” geográfico
indissociável é uma realidade que transcende as análises setoriais. É preciso
recorrer a um método global, ou seja, em certo sentido, “estruturalista”. Como
toda estrutura, a paisagem é formada de elementos “mas estes estão subordinados
às leis que caracterizam o sistema como tal; e essas leis, ditas de composição,
não se reduzem a associações cumulativas, mas conferem ao todo, enquanto tal,
propriedades de conjunto distintas daquelas que pertencem aos elementos” 22.
O espaço geográfico é descontínuo. Trata-se de um mosaico de
unidades espaciais isomorfas cuja homogeneidade é uma característica relativa,
relacionada à escala (10 ha de soulane23 calcária com garides; 200 ha de colinas
xistosas colonizadas por Quercus pyrenaica).
Cada unidade constitui, em sua escala, uma estrutura espacial, isto é,
20 Michel BOUET, in Le Monde, Paris, 21/abril/1971, p. 25.
21 G. BERTRAND [3]. Les structures naturelles de l’espace géographique: l’exemple des montagnes
Cantabriques centrales (nord-ouest de l’Espagne). Número especial da Revue Géographique des Pyirénées
et du Su-Ouest, 1972, nº 2, p. 175-226.
22 Jean PIAGET, Le structuralisme. Paris, PUF, 1970. Coll. Que sais-je?, nº 1311, p. 8.
23 Extensões herbáceas situadas acima do degrau florestal, de face para o sul, portanto, bem expostas
ao sol. O termo francês para designar o oposto de “soulane” é “ombret” ou “ombrée”, que corresponde
à face sombreada das montanhas, voltadas para o norte. [N.T.]
Ecologia de um espaço geográfico - Os geosistemas do Valle do Prioro 71

uma combinação de elementos hierarquizados e interdependentes. Para tornar


mais didático, pode-se agrupar em três subconjuntos: o potencial abiótico (rocha,
ar, água), a exploração biológica (vegetais e animais) e a utilização antrópica
(queimadas, desmatamento, culturas etc.).
Cada estrutura espacial isomorfa se define por uma dinâmica própria.
Esta é determinada pela interação de todos os elementos do complexo no seio de
um “sistema evolutivo” próprio da unidade geográfica considerada. Ele engloba
o sistema morfogenético, a dinâmica biológica e o sistema de ocupação sócio-
econômica.
Cada unidade dinâmica é resultante de um determinado grau de
estabilidade: uma área florestal sombreada é mais estável que uma área de
exposição sul ocupada por pastagem intensiva.
As unidades de paisagem estão ligadas umas às outras através de
relações dinâmicas atuando no tempo e no espaço. É preciso, portanto, classificar
umas em relação às outras, em função de suas estruturas, mais particularmente,
em função de seu tamanho e de sua dinâmica, ou seja, de sua estabilidade. A
taxonomia proposta é apenas uma corologia. Em teoria, ela abrange seis níveis
espaciais principais: a zona, o domínio geográfico, a região natural, o geossistema,
o geofácies e o geótopo.
A taxonomia ecológica do Valle de Prioro deve ser considerada em dois
níveis diferentes. De um lado, a inserção ecológica dentro do noroeste ibérico:
o Valle de Prioro está ligado ao domínio das Montanhas Cantábricas, espremido
entre o Oceano Atlântico e a Velha Castilha, de Astúrias até às províncias bascas.
A vertente sul-cantábrica, de relevo mais plano e clima mais seco, constitui um
subdomínio diferente daquele da vertente norte, mais compacto e mais oceânico.
A vertente sul-cantábrica se divide, por sua vez, em três regiões naturais: as altas
regiões do divisor de águas, as serras calcárias meridionais e, entre elas, a depressão
intermontana, cujo Valle de Prioro constitui uma sub-região.
De outro lado, as divisões ecológicas internas do Valle são mais
complexas. A oposição, já assinalada, ente o Alto e o Baixo Prioro corresponde
apenas a uma primeira impressão ligada a uma “leitura” direta e rápida da
paisagem. Cada análise setorial faz aparecer um recorte específico do espaço
(fig. 2). A superposição cartográfica do conjunto das divisões setoriais fornecem
apenas contornos grosseiros e, freqüentemente, inexatos. A cartografia integrada
foi praticada, diretamente, seja sobre o terreno, seja por foto-interpretação (fig.
3).
O Valle de Prioro se subdivide em cinco geossistemas 24: o geossistema
supra-florestal “ácido” (G. XXVIII); o geossistema montano “calcário” (G. XX); o
geossistema sub-montano “ácido” (G. XIII); o geossistema continental-montano
“ácido” (G. XVII); o geossistema continental “ácido” (G. XV). Foram deixados
de fora os geossistemas G. XXVIII e G. XV, os quais são unidades de pequena
extensão e marginais em relação ao Valle de Prioro.
24 G. BERTRAND, Les geosystèmes cantabriques (com uma carta colorida na escala 1:200.000). Revue
Géographique des Pirennées et Soud-Ouest. (1972). A classificação dos geossistemas repousa numa
taxonomia sistemática das unidades geográficas das Montanhas Cantábricas (G.I, G.II... : geossistemas;
g1, g2: geofácies; γ1, δ2... geótopos).
72 Ecologia de um espaço geográfico - Os geosistemas do Valle do Prioro

O geossistema montano calcário do Alto Prioro (G. XX)

O conjunto geográfico do Valle de Prioro constitui-se um meio


individualizado. Por outro lado, ele está ligado tanto à “região natural” das serras
calcárias meridionais quanto à depressão intramontana. Estendendo-se por uma
quinzena de quilômetros quadrados, aproximando-se a um terço da superfície da
bacia, ele engloba, ao mesmo tempo, os maciços do nordeste (Puerto del Pando)
e os contrafortes montanhosos do sudoeste (entre 1.400 e 1.670 m de altitude).
A combinação ecológica é dominada por quatro elementos que interferem de
forma distinta: o clima montano mais úmido (mínimo de 1.400 a 1.500 mm),
com maior quantidade de neve (aproximadamente 3 meses de cobertura de
neve) e o mais nebuloso da bacia; o único substrato calcário dissecado em
paredes e vertentes íngremes comandadas pela estrutura (barras e cristas,
inclinações estruturais de reverso); o único faial que apresenta determinado
número de características florísticas e ecológicas marginais; situado acima da
zona cultivada, este geossistema está em plena da zona silvo-pastoril e suas
paisagens desigualmente degradadas trazendo as marcas dessa dupla forma de
ocupação, que acentuou os contrastes entre as vertentes.
O geossistema XX é caracterizado por unidades isomorfas de tamanho
bastante grande, ente 500 e 3.000 ha. A distribuição dos sete geofácies
distinguidos é comandada, essencialmente, por efeitos combinados dos
topoclimas, da carga pastoril e da declividade.
XX-g1: As áreas sombreadas por faial em solo bruno representam a
estrutura ecológica mais complexa, mais estável e menos distante do clímax
em todo o Valle de Prioro 25.
Este geofácies florestal se desenvolve bem, tanto em substratos calcários
quanto silicosos. Todavia, ele se restringe sempre às áreas sombreadas. Estável
do ponto de vista da geomorfogênese, ele constitui a biomassa mais importante
do Valle de Prioro e representa, provavelmente a melhor produtividade em
matéria vegetal (particularmente pela presença de árvores). No entanto, a
regeneração natural por meio de sementes de faia parece ser impossível. A
rebrota é vigorosa, mas não passa do estado arbustivo. O geofácies das áreas
de sombra florestais está em estado de biostasia, mas com equilíbrio biológico
precário. Sendo mantido pela inércia, este geofácies dificilmente se reconstitui
após degradação.
XX-g2: Os patamares de faial-parque e XX-g3: As vertentes suaves
com gramíneas arborizadas. Estes dois geofácies estão em equilíbrio com a
atividade pastoril ali desenvolvida. Os patamares de faial-parque se limitam
25 Ponto de descrição: Estação a 1.450 m de altitude, na média vertente, numa inclinação de 35%,
exposição N-NE, nas sobras no maciço setentrional, de frete ao Puerto del Pando que é freqüentemente
atingido pelas massas de ar úmidas e nebulosas: 1) floresta aberta (cobertura de 90 a 95%): estrato
florestal: faia 3-4 (os números que seguem cada nome de planta correspondem a uma relação de
abundância-dominância - de 0 a 5) 20-25 m de altura, tronco mal desenvolvido, crescimento lento;
pequenos bosques evoluindo para uma medíocre mata; sub-bosque: Plântulas de faia +, Galium odoratum
1, Anemone nemorosa +; serrapilheira contínua, espessa (5 cm), bem decomposta. Deslizamento lento da
serrapilheira, alguns pequenos terraços ligados aos caminhos feitos pelo gado. – 2) solo bruno argiloso,
friável, 50-70 cm de espessura, boa penetração das raízes; horizonte B fracamente marmorizado. – 3)
lençol freático regularmente alimentado e próximo da superfície. – 4) vertente xistosa suavemente
convexa; processos de solifluxão de 2 a 3 m de espessura (placas finas de xisto e pequenos fragmentos
calcários) completamente estabilizados.
Ecologia de um espaço geográfico - Os geosistemas do Valle do Prioro 73

às superfícies de interflúvios xistosos que se abrem como desfiladeiros entre as


cristas e as barras calcárias. Estes correspondem às “cañadas” obrigatórias para
as tropas. O faial perde ali sua estrutura florestal e seus elementos florísticos
mais característicos (Anemone, Galium etc.). As árvores, isoladas a cada
15-30 m entre elas ou em grupos de 3-4 troncos originários de uma mesma
planta com característico formato arredondado (10-20 m de altura, primeira
bifurcação a 5-10 m do solo, diâmetro dos troncos: 0,80 a 1,30 m por 70-90
anos de idade). Não há vestígio algum de regeneração. A lande associada
possui dois andares: um estrato sub-arbustivo dominado por samambaias (3-4)
e por espécies de Sarothamnus e de Rubus; um estrato herbáceo dominado por
Festucas (4-5). Os solos formados em um regolito xistoso delgado se parecem
com aqueles existentes sob a floresta; todavia, os horizontes com húmus são
pouco espessos e o conjunto do perfil é mais comprimido e argiloso. A ausência
de declividade, a cobertura vegetal contínua em todas as estações (no inverno,
as moitas de gramíneas persistentes e os talos secos das samambaias protegem
o solo contra o contato direto com a neve), o desenvolvimento do sistema de
raízes das samambaias contribuem para assegurar a estabilidade deste geofácies,
mesmo com a pressão da atividade pastoril.
As vertentes suaves de gramíneas arborizadas apresentam as mesmas
características de paraclímax. O pastoreio intensivo e o pisoteamento do
gado mantêm um gramado em estado baixo com gramíneas xerófitas (Koeleria
valesiaca), excluindo samambaias e alguns tipos de Genista. As veredas são
marcadas por micro-formas de vertentes, pequenos terraços e pequenas colinas
recoberta por gramíneas, que parecem estabilizadas.
XX-g4: As soulanes desnudas com garides e XX-g5: As soulanes
rochosas arborizadas cobrem mais de um terço da superfície do geossistema.
Suas paisagens sem vegetação, degradadas, opõem-se violentamente às áreas
sombreadas por florestas que lhes fazem face 26.
As soulanes rochosas arborizadas ocorrem, unicamente, no reverso
estrutural das cristas calcárias. Nas vertentes completamente rochosas de 40
a 60% de inclinação, aparecem algumas árvores isoladas (faias e Sorbus aria),
não mais que 10-20 indivíduos por hectare (enraizamento direto nas diáclases;
troncos de 5-10 m para uma altura total de 12-20 m; formato intermediário
entre arredondado e florestal; nenhum tipo de regeneração seja por semente ou
brota; idade de 80-100 anos). Não há qualquer outro tipo de vegetação, nem
tampouco, algum solo formado. Por outro lado, a soulane rochosa é adornada
de franjas de depósitos pedogenizados resultantes da ação atual da enxurrada e
da neve. Esta paisagem é completamente o contrário de uma frente pioneira
florestal. É preciso admitir que tais árvores se desenvolveram em um meio
florestal aberto e sobre solos contínuos. Trata-se, portanto, de um geofácies
de regressão recente de, no máximo, uma centena de anos, relacionado à
sobrepastagem. A erosão atual é fraca, uma vez que todo material móvel foi
carreado. Observa-se, atualmente, apenas a formação de pequenos fragmentos
resultantes da gelivação. As unidades g4 e g5 estão, portanto, submetidas a uma
26 O ponto de descrição da soulane desnuda com garides se situa a 150 m de distância do daquele da
XX-g1: estação a 1480 m de altitude, na meia vertente, inclinação de 25%, exposição S-SO: garides
aberta (cobertura de 5%), estrato único (Cf. acima I, 4, c); litossolos, sem lençol freático; vertente
regular periglacial com campos de lapiás desgastadas, alguns fragmentos de rocha ativos.
74 Ecologia de um espaço geográfico - Os geosistemas do Valle do Prioro

evolução resistásica, ligada aos efeitos combinados do topoclima da soulane e


da atividade pastoril.
XX-g6: Os pequenos vales aterrados, com gramíneas xerófitas. Os
mantos de alteração removidos das soulanes são, em parte, depositados aos pés das
vertentes e nos pequenos vales laterais onde formam acumulações descontínuas
de vários metros de espessura. Estes depósitos móveis, geralmente formados
por brecha calcária misturada a horizontes de solos brunos rendziniformes, são
ravinados e tem, localmente, o aspecto de canais. Por outro lado, eles são mais
ou menos protegidos por um tipo de gramínea xerófita densa combinada com
plantas de forte enraizamento: samambaias, Thymus, Erica mediterranea.
XX-g7: As soulanes com landes acidófilas não estão ligadas,
unicamente, aos afloramentos e aos pedimentos de rochas ácidas. A partir
destes, a lande coloniza como “manchas de óleo” as soulanes calcárias descobertas
graças à plasticidade de seus componentes (Ericaceaes e Satothamnus). Esta
evolução ainda limitada a algumas dezenas de hectares indica nada menos
que o início da regressão do geossistema montano calcário em proveito do
geossistema submontano “ácido”.

O geossistema submontano “ácido” do Médio Prioro (G. XIII)


Os ambientes que se intercalam entre os muros calcários periféricos
e as paisagens horizontais da depressão central formam um conjunto de
transição, ainda que sejam fisionomicamente muito próximos das paisagens
do Baixo Prioro. Esse geossistema delineia uma cintura quase que contínua
entre 1.200 e 1.400 m de altitude (podendo atingir até 1.600 m). Ele cobre
aproximadamente 18 km2, correspondendo a um terço da superfície total. A
combinação ecológica básica é bastante simples:
•• um ambiente ácido. O equilíbrio climácico repousa, em parte, sobre
as inter-relações entre a acidez das rochas (xistos, arenitos), dos
solos (brunos ácidos, rankers), das águas superficiais e da cobertura
vegetal;
•• é o domínio, por excelência, da lande acidófila (Callunas, Ericaceaes,
Genistas, Sarothamnus). As formações vegetais, muito pobres, são
monótonas e, freqüentemente, monoespecíficas. Os carvalhais
climácicos, com a mistura de Quercus pyrenaica, Q. peduculata, Q.
petraea, foram largamente desmatados;
•• um ritmo bioclimático contrastado, onde as fortes precipitações da
estação fria se alternam com um período muito nítido de seca de
verão. Os topoclimas possuem um papel essencial na distribuição dos
geofácies, mas de uma forma menos sistemática do que no interior
do geossistema montano calcário (fig. 4);
•• vertentes em resistasia. As ocupações com atividades agrícolas e
pastoris reavivaram uma erosão que se desenvolve em condições
geomorfológicas favoráveis: longas vertentes íngremes em rochas
friáveis (fácies Culm), início da concentração e da incisão
torrencial.
Fig. 4. – Esboço cartográfico dos geossistemas e dos geofácies do Valle de Prioro.
Os contornos foram esquematizados e certos geofácies foram reagrupados; a base utilizada foram as fotografias aéreas na escala 1:28.000
– 1:30.000 – 1. Limite de geossistema nítido e estável. – 2. Limite de geossistema instável e pouco nítido. – 3. Cañada principal (via de
transumância). – 4. Povoados.
Ecologia de um espaço geográfico - Os geosistemas do Valle do Prioro

A legenda detalhada do mapa corresponde ao segundo capítulo do artigo (os algarismos romanos remetem aos geossistemas e os algarismos
arábicos aos geofácies).
75
76 Ecologia de um espaço geográfico - Os geosistemas do Valle do Prioro

XII-g1: As áreas sombreadas e as ravinas florestadas são encontradas


apenas nos vales do oeste e do norte, onde o efeito topoclimático é acentuado
pelas massas de ar advectivas úmidas e nebulosas que atravessam os talvegues
setentrionais 27.
Não se trata mais de um ambiente florestal, mas de um complexo
de degradação pós-florestal. A biomassa, menos importante do que aquela
observada nos faiais das áreas sombreadas, não parece subsistir. A regeneração,
nula para algumas espécies de carvalho e fraca para outras, é um pouco mais
favorável para a faia que, ainda que subordinada ao estrato florestal, consegue
crescer e resiste melhor aos incêndios e ao pastoreio. Isso não significa que a
faia substitui os carvalhos e, ainda menos, os faiais aos carvalhais.
XIII-g2: As plantações de pinheiro silvestre. Praticadas em meio aos
carvalhais abertos dos maciços meridionais, elas se desenvolvem em condições
bastante boas sem modificar os solos e já apresentando um sub-bosque bem
ácido. Nota-se, apenas, um espessamento da serrapilheira e um clareamento do
sub-bosque. Aceiros protegem estas novas florestas que são muito ameaçadas por
incêndios voluntários das landes e das áreas abandonadas das áreas vizinhas.
XIII-g3: As garupas em landes baixas e XIII-g4: As vertentes de
gramíneas densas correspondem a ambientes regularmente pastoreados. A lande
monoespecífica (Calluna vulgaris) se expande à custa de outras formações. Ela
se equilibra em cima se solos Rankers e de solos brunos lixiviados. O solo é
relativamente bem protegido contra a erosão mecânica.
XIII-g5: As vertentes íngremes associadas a pedimento móvel, seja às
landes altas, seja (XIII-g6) às formações arborizadas muito abertas constituem
as unidades geográficas mais originais e maiores deste geossistema. No caso
da lande alta, o estrato arbustivo dominante possui uma taxa de recobrimento
de 25-30% a 1-2 m acima do nível do solo. Ela se apresenta quase sempre
com um povoamento monoespecífico (Sarothamnus cantabricus, Erica
mediterrânea, E. arborea etc.). Trata-se, sempre, de plantas acidófilas, sociáveis,
de enraizamento profundo e resistentes à seca. Entre as moitas, o solo se
apresenta nu. Os pedimentos móveis, de espessura de 3 a 20 cm, sobrepõem-
se diretamente aos xistos, ou fossilizam depósitos finos pedogenizados que não
devem ser solos “herdados” e truncados, mas provavelmente, solos atuais que
continuam evoluindo sob o pedimento protetor. Os poucos Quercus pyrenaica
multicentenários, de troncos ocos e mutilados, não modificam as dinâmica da
vertente. Estes são vestígios de uma antiga cobertura arbórea... mas, certamente,
não florestal.
XIII-g7: As paredes rochosas talhadas em arenitos e quartzitos
apresentam apenas alguns arbustos esparsos de Rhamnus frangula.

27 Ponto de descrição: 1350 m de altitude, base de uma vertente, inclinação de 20%. – 1) Floresta
aberta colonizadas por lande (cobertura de 60-70%) com: estrato florestal (20%): carvalhos híbridos
(Quercus petraia) (3), faia +, pequenos bosques de 15-20 m de altura, idade de 80-100 anos; lande
associada (60%): Erica mediterranea (3), Erica cinerea (1), Genista cinérea (1), G. trichomanes (1),
Ilex aquifolium (+). – 2) solo bruno: 20-30 cm de espessura, ácido (pH 5), seco; rocha matriz: pequenas
placas de xisto em meio à argila; o solo é, geralmente, recoberto por um pedimento xistoso; serrapilheira
esparsa. – 3) a erosão mecânica se limita ao deslizamento do pedimento e a algumas incisões no manto
de detritos.
Ecologia de um espaço geográfico - Os geosistemas do Valle do Prioro 77

XIII-g8: Os terrenos de cultivo28 de sequeiro e XIII-g9: As pradarias


destinadas à roçagem dos vales aluviais, cf. XVII-g3 e XVII-g4.

O geossistema continental “ácido” do Baixo Prioro

As paisagens austeras do Baixo Prioro anunciam os páramos de


Castilha conservando certo número de traços montanos: um relevo de colinas
convexas e de patamares com bordas dissecadas que foram entalhadas numa
massa xistosa relativamente homogênea; um clima “continentalizado” de bacia,
seco e ensolarado, com inversões térmicas de inverno; uma grande pobreza
florística: as plantas dos ambientes úmidos e sub-úmidos (faias, carvalhos,
Ilex aquifoilium) não ultrapassam as baixas vertentes dos maciços periféricos ,
enquanto que as plantas específicas dos platôs da Velha Castilha não extrapolam
as gargantas do rio Cea (é o caso da Lavandula stoechas, do Cistus ladanifer,
do Quercus lusitanica...). É, enfim, o setor mais cultivado e também o mais
florestado (ainda que o povoamento florestal seja medíocre). Os geofácies
formam blocos compactos de grande tamanho, da ordem do km2.
XVII-g1: As colinas florestadas de Quercus pyrenaica cobrem
aproximadamente metade da superfície do geossistema 29. O solo fica coberto
todas as estações e não há vestígios de erosão mecânica. Por outro lado, este
geofácies se caracteriza pela superexploração de sua cobertura vegetal: rotação
muito curta dos cortes florestais, pastoreio abusivo, incêndios mal controlados.
A biomassa é, assim, mantida em um nível muito baixo. Como para os outros
terrenos comunais do Valle de Prioro, o fator ecológico limitante é de ordem
jurídico-ecológico (direitos de uso efetivo, ausência de manejo florestal).
XVII-g2: As landes-graminosas xerófitas de vertente diferenciam
daquelas do geossistema XIII apenas por sua composição florística: elas
comportam uma maior abundância de espécies de ambientes secos e degradados
(Genista cinérea, Calicotome spinosa, Centaureas, Thymus, Helleborus
etc.).
XVII-g3: Os terrenos de cultivo 30 de sequeiro são estáveis e
rigorosamente delimitados. Eles se organizam em talhões compactos sobre os
glacis inferiores e sobre certos patamares entre 1.100 e 1.400 m de altitude. O
parcelamento, exíguo e irregular, se organiza a partir da configuração do terreno
(terraços, quebra-ventos, cercas vivas). O sistema de rotação alterna, de um
ano para o outro, culturas de cereais e repouso (ou, pelo menos, culturas de
leguminosas intercaladas). As terras abandonadas são raras. Os rendimentos
em trigo não passam de 10 t/ha.
XVII-g4: As pradarias destinadas à roçagem dos vales aluviais são
28 Tradução do termo terroir, que possui um significado além de um espaço geográfico para o simples
cultivo, mas sim, que agrega valores culturais tradicionais, geralmente com uma determinada especialização
agrícola. [N.T.]
29 Ponto de descrição: estação a 1230 m de altitude, na base de uma vertente convexa, inclinação
de 12%, exposição SE. – 1) taillis de forrageira (4): estrato arbóreo com Quercus pyrenaica, 15 m de
altura, ramificado, idade de 30-50 anos; forrageira (5) – Crateagus (2), Genista cinérea (1), Callunas
(1), Helleborus foetidus (+), gramíneas (3). -2) solo bruno espesso sobre colúvios de fundo de vale
(40.50 cm).
30 Idem nota 25. [N.T.]
78 Ecologia de um espaço geográfico - Os geosistemas do Valle do Prioro

cuidadosamente manejadas e irrigadas. Esponjosas e, às vezes, alagadas pelos


lençóis freáticos nas épocas das enchentes causadas pelo derretimento da neve,
demonstram um nítido déficit hídrico durante o verão. Os solos apresentam
um horizonte basal de pseudo-gley.
XVII-g5: Os talus desnudso com ravinas e cones (altura de 30 a 80
m) são os únicos geofácies do Baixo Prioro, cuja estrutura e dinâmica estão
diretamente ligadas à geomorfogênese. A parte superior convexa do talus é
colonizada por uma lande empobrecida composta por Callunas e Ericaceaes
(cobertura de 20-30% em cima de Rankers instáveis). O escoamento difuso
se organiza, progressivamente, em pequenas ravinas que vão se anastomosando
e formam, na base da vertente, depósitos de 2 a 4 m de altura por 4 a 10 m
de largura. Estes depósitos móveis, mal fixados pela vegetação (samambaias,
Ericaceaes, taillis de Quercus pyrenaica) são dissecados e modelados em
pequenos cones de erosão pelos escoamentos posteriores. Os tipos de talus, de
escala métrica ou decamétrica, são atuais e de origem antrópica.

As “cañadas”

As cañadas, que criam sulcos no Valle de Prioro, não se sobrepõem ao


mosaico de geossistemas. Elas correspondem aos eixos de degradação, a partir
dos quais avançam as formas de erosão e de destruição do tapete vegetal que
comandam a evolução de um certo número de geofácies. O tronco principal da
cañada, uma ferida contínua de 10 a 30 m de largura, atravessa o Valle de Prioro
de norte a sul, pelas cristas e pelo vale central do Cea. É a via de transumância
clássica. Com existência bem antes da criação da Mesta, ela funciona, pelo
menos desde a Alta Idade Média. As cañadas secundárias se convergem para
esse eixo principal ou se divergem a partir dos povoados. Elas se perdem, em
seguida, em meio às pastagens, em múltiplas ramificações. Seria mais lógico
distinguir, em cada geossistema, um geofácies de cañada. Mas pareceu mais
importante abordar o fenômeno em seu conjunto, objetivando examinar o seu
significado ecológico global (fig. 4).
As cañadas formam ambientes lineares sempre mais degradados e mais
secos que as paisagens que as envolvem. Na porção central, o pisoteio do gado
destruiu a vegetação, e o solo é acompanhado, geralmente, de ravinamentos que
entalham a rocha matriz. Os pequenos canais aparecem cada vez que ocorre
uma concentração de animais (travessia de um pequeno curso d’água, ou de
um pequeno vale, periferias dos povoados) ou cada vez que a cañada corta um
ambiente frágil: talus entre dois glacis, soulanes, depósitos móveis, talvegues.
Nas margens das cañadas, a cobertura vegetal subsiste, mas ela é modificada
pelo pastoreio intensivo, pela compactação do solo e pela acumulação dos
excrementos dos animais. O grupo de plantas especializadas é dominado por
espécies como Marrubium vulgare, Cardub.
Ecologia de um espaço geográfico - Os geosistemas do Valle do Prioro 79

A dinâmica atual das paisagens

A dinâmica “atual” corresponde à evolução das paisagens na escala


humana: a unidade de tempo é em século, talvez décadas. Ela se inscreve nos últimos
suspiros do Quaternário, conservando sua especificidade relacionada à influência
humana. Nesse espaço-tempo “histórico”, os ambientes geográficos como aqueles
do Valle de Prioro evoluíram essencialmente sob o efeito de um “sistema evolutivo
antrópico”: ressecamento edáfico e microclimático, destruição ou produção de
biomassas, geomorfogêneses epidérmicas ou remodelagens de vertentes etc. É
preciso ressaltar que, mesmo no caso desse sistema de ocupação silvo-agro-pastoril
do tipo tradicional, pouco mecanizado, o ritmo das transformações antrópicas é bem
superior que o ritmo de reconstituição das estruturas naturais. O clímax é rompido,
ao menos na escala secular. O ciclo climácico, assim como o ciclo geomorfológico
de W.M. Davis e dos neo-davisianos, é apenas uma perigosa visão do espírito.
O mosaico mutante das paisagens se inscreve no espaço e no tempo.
A aplicação de uma taxonomia de base “dinâmica” permite definir os conjuntos
geográficos do Valle de Prioro.
Na escala dos geofácies, as situações “dinâmicas” são muito diferenciadas.
Pode-se distinguir:
•• os geofácies em biostasia subclimácica (as estruturas naturais estão pouco
alteradas; a unidade é relativamente estável). Ex.: XX-g1;
•• os geofácies em biostasia paraclimácica (estabilização em estruturas
novas após uma fase de regressão pouco marcada). Ex.: XX-g2-g3, XIII-
g1, XIII-g3-g4, XVII-g1;
•• os geofácies em regressão no plano das estruturas bióticas, mas sem
modificação sensível no potencial abiótico. Ex.: XVII-g2;
•• os geofácies em regressão, onde a destruição das estruturas bióticas
é acompanhada de um certo número de modificações no potencial
abiótico. Ex.: XX-g6, XIII-g5-g6;
•• os geofácies em resistasia (geomorfogênese dominante). Ex.: XX-g4-g5,
XVII-g5, as cañadas;
•• os geofácies de substituição. Ex.: XX-g7, XIII-g2, VXII-g3-g4.
Os geofácies de degradação (regressão biótica, abiótica e resistasia) são, de
longe, predominantes sobre os geofácies em biostasia: eles recobrem próximo de 80%
da superfície total do Valle de Prioro, perfazendo aproximadamente 40 km2.
Na escala dos geossistemas, esta degradação generalizada, ainda que muito
diversa a nível de geofácies, se organiza em dois aspectos opostos:
• O geossistema montano “calcário” é relativamente estável no plano
espacial. Certamente, ele é um pouco invadido, em direção ao alto, pelo geossistema
supra-florestal (devido à progressão da lande subalpina sobre os faiais) e, para baixo,
pelos geossistema submontano “ácido” (por intermédio do XX-g7). Ele deve sua
estabilidade de conjunto ao substrato calcário que inibe a combinação ecológica em
termos pedogenético, florístico e hidrológico. Os afloramentos calcários constituem
uma das maiores descontinuidades do espaço do Valle de Prioro e, dessa forma, uma
das estruturas permanentes da paisagem. A dinâmica interna do geossistema tem
80 Ecologia de um espaço geográfico - Os geosistemas do Valle do Prioro

um duplo efeito: de um lado, a acentuação dos contrastes entre os geofácies, por


exemplo, entre os sombreados (XX-g1) e aqueles voltados para o sul (XX-g5).
• Por outro lado, os três outros geossistemas (G. XIII, G. XV, G. XVII),
que se estendem sobre um mesmo substrato edáfico, se degradam ao mesmo tempo
em que se uniformizam. Estruturas climácicas diferenciadas são substituídas por um
complexo de regressão monótono e simples formado pela lande alta, os samambaiais
ou taillis de carvalho associados a pedimentos móveis ou a Rankers. Trata-se de
um exemplo de “ocultação” de geossistemas e da elaboração de uma nova unidade
isomorfa completamente dominada pela ocupação sócio-econômica.
Os contrastes ecológicos existentes tanto na escala dos geofácies quanto
naquela dos geossistemas correspondem, portanto, a situações dinâmicas muito
diferentes. É aí que surge, mais precisamente, a noção de “heterostasia” de H.
Erhart 31.
• A dinâmica das paisagens do Valle de Prioro está, cada vez mais, ligada
às rápidas transformações do sistema de apropriação econômica: crescimento do
êxodo rural, mecanização e transformações agro-pastoris, desenvolvimento de uma
política de reflorestamento e de gestão hidráulica.

BIBLIOGRAFIA

METODOLOGIA
[1] G. BERTRAND, Esquisse biogéographique de la Liébana (Massif Cantabrique,
Espagne). La dynamique actuelle des paysages. Revue Géographique des Pyrérées et
Soud-Ouest, 1964. p. 225-262.
[2] G. BERTRAND, Paysage et géographie physique globale. Esquisse méthodologique.
Revue Géographique des Pyrérées et Soud-Ouest, 1968. p. 249-272.
[3] G. BERTRAND, Écologie de l’espace géographique. C.R. Soc. Biogéographie,
séance du 18/12/1969, nº 406, p. 195-205.

VALLE DE PRIORO
[4] Cartes topographiques: Mapa militar de Espanha 1:200.000, nº 14; Mapa de Espana
1:50.000, Riaño nº 105.
[5] Photographies aériennes: Servicio geográfico del ejército. Riaño nº 105, nº 43.193
à 43.197 et nº 43.306 à 43.311.
[6] G. BERTRAND, Morphostructures cantabriques. Revue Géographique des Pyrérées
et Soud-Ouest, 1971. p. 49-70 (une carte et une planche de coupes au 1:200.000).
[7] J. MOUNIER, Carte des régimes thermo-pluviométiques das l’Ouest et le Nord-
Ouest e la Péninsule Ibérique (1:1.000.000) avec notice explicative de 4 p., 1969.
CNRS, Recherches cartographiques apliquées au climat et à l’hydrologie, Équipe de
recherche associé à la Faculté des Sciences de Grenoble.

31 H. ERHART, La gênese des sols en tant que phénomène géologique. Esquisse d’une théorie
géologique et géochimique. Biostasie et rhexistasie. Paris, Masson, Evolution des sciences, 2e édition,
1967.
81

ENSAIO DE ANÁLISE ECOLÓGICA DO ESPAÇO


MONTANHÊS1

Como todos os objetos geográficos ou ecológicos complexos


(cidade, campo, floresta rio), a montanha é uma realidade quotidiana da vida
e da linguagem, uma espécie de combinação compreensiva e diretamente
experimentada, que pertence a todos e que cada um crê compreender e dominar.
Todavia, esta banalidade que salta aos olhos limita o espírito de análise. Basta
considerarmos as definições disponíveis sobre a montanha. Elas surpreendem
por sua indigência. A mais comum e a menos insatisfatória entre elas retém este
fato universal e fundamental que é a classificação vertical dos meios comandada
pelo gradiente térmico altitudinal. Isto equivale a isolar do complexo, então
a privilegiar, um único critério ecológico, por mais importante que ele seja,
ou seja, atribuir uma importância desmesurada a um sistema taxonômico
parcial, aceitável somente para uma escala espacial determinada (os níveis de
vegetação). A consideração da zonalidade poderia ter enriquecido este esquema
se não nos tivéssemos limitado a um nível elementar de discussão (a montanha
é um meio “zonal” ou “azonal”?). Raros são os autores, como C. Troll e G.
Rougerie, que foram além, e tentaram reconhecer uma especificidade ecológica
e uma organização interna própria dos meios montanheses 2.
É verdade que todos os grandes fenômenos montanheses “naturais” são
geralmente bem conhecidos em suas respectivas categorias. No estado atual da
pesquisa na geografia física e na ecologia, podemos fixar a imagem individual,
monográfica, de um maciço montanhoso, ou conduzir a análise separada de
um elemento do meio montanhês ou de um subconjunto (configuração do
relevo, níveis de vegetação). Por outro lado, o meio montanhês enquanto tal
continua rebelde à análise global, à generalização teórica e à “modelização”.
Mas, paradoxalmente, reconhecemos comumente que apesar da diversidade de
suas situações geográficas e da variedade de suas paisagens, todas as montanhas
são da alçada de uma mesma entidade geográfica...
Esta contradição formal bloqueia a análise do fato montanhês. Ela
torna a comparação entre as montanhas muito superficiais e aproximativas,
impede as classificações sistemáticas e complica o estudo dos mecanismos
específicos. As referências a princípios de organização do espaço montanhês,
tais como o nivelamento bioclimático, o papel da exposição etc., não são raras,
mas elas são usadas em ordem dispersa sem elaborar um esquema sistemático.
Para compreender o mais completamente e o mais rapidamente possível
a organização do espaço “natural” himalaio, recorremos primeiramente ao
conhecimento direto que podemos ter de outras montanhas (Andes, Alpes,
1 Em colaboração com Oliver DOLLFUS, Professor de Geografia da Université Paris VII.
2 Ver: A introdução da Biogéographie dês montagnes de G. ROUGERIE. Paris, CDU, p. 14.
82 Ensaio de análise ecológica do espaço montanhês

Pirineus, montanhas ibéricas etc.). Mas estas comparações ocasionais entre


um elemento e outro se revelaram artificiais, perigosas e ineficazes. De onde
surge a obrigação de fabricar uma ferramenta. Nesse caso, só pode ser um
modelo teórico de referência reunindo em um conjunto lógico os princípios
de organização espacial próprios do espaço montanhês. No ponto de partida,
existe o enunciado de um postulado: todas as montanhas fazem parte de um
mesmo plano (pattern) e elas funcionam de maneira idêntica. A montanha é
uma estrutura organizada por um “sistema” que podemos tratar como um “campo
espacial” (B. J. Berry) a partir de um modelo teórico. Neste plano, o objetivo
é tirar o espaço montanhês do “excepcionalismo” geográfico 3.
Este “modelo” montanhês é, por enquanto, apenas um esboço
superficial e parcial. Estritamente “qualitativo”, o que limita seu alcance
teórico e a utilização prática, ele reúne apenas fatos conhecidos há muito
tempo, seja pelos geógrafos, seja pelos naturalistas. Sua elaboração passa pela
seleção e a classificação de informações setoriais díspares (geológicas, climáticas,
hidrológicas, biogeográficas, antrópicas...). O meio montanhês é apenas um caso
particular de paisagem. Podemos então lhe aplicar o método de tratamento já
elaborado e, em particular, reter como fio condutor a escala espacial dos objetos
4
, o que permite estabelecer uma primeira classificação entre as estruturas
ecológicas (referência ao sistema de escalas de Cailleux-Tricart) 5.
Este esboço, então, só pode ser, em um primeiro momento, estrutural
e estático, ou seja, topológico. Todavia, o fracasso já assinalado das “definições”
estritamente descritivas e estruturais incita a se situar primeiramente em uma
perspectiva dinâmica. Uma unidade de paisagem se define menos por um “limite”
e uma extensão no espaço do que por uma autonomia de funcionamento. A
montanha deve primeiramente ser apreendida como um sistema espacial.

A montanha, “interface” turbulenta

Como toda porção da epiderme terrestre, a montanha funciona como


uma “interface”, ou seja, como uma superfície de contato ao longo da qual se
operam transferências de matéria e de energia entre os elementos da litosfera,
da atmosfera, da hidrosfera e da biosfera. É, então, por definição, uma superfície
de instabilidade. Ora, nesta perspectiva dinâmica, a originalidade da montanha
é de ser a “interface” terrestre que apresenta o máximo de rugosidade e, por
conseqüência, o máximo de instabilidade, de “turbulência”.
De fato, a rugosidade está primeiramente ligada à própria protuberância
do volume montanhoso global. Mas é também uma rugosidade interna, ligada
à compartimentação da massa montanhosa, primeiramente do ponto de vista
topográfico (justaposição maciço-bacia-garganta, sucessão terraço-parede-
plano inclinado), mas também do ponto de vista das massas de ar, da cobertura
3 F.K. SCHAEFER, Exceptionalism in geography. Annals of the Assoc. of American Geographers,
1953, vol. 43, p. 226-249 e H. CAPEL, Exceptionalismo en geografia. Pensamiento y método geográficos.
Départ. de Geografia da Universidad de Barcelona, 1971, 40 p.
4 La science du paysage. Revue géographique des Pyrénées et du Sud-Ouest (Toulouse), 1972, nº
2.
5 J. TRICART, Príncipes et méthodes de la géomorphologie. Paris, Masson, 1965, p. 79-90.
Ensaio de análise ecológica do espaço montanhês 83

vegetal, etc. Para uma mesma superfície projetada, a “interface” apresenta um


maior desenvolvimento na montanha do que na planície (às vezes mais do
dobro), com isso a turbulência é então aumentada. Além disso, a “interface”
montanhesa é muito imbricada e muito contrastada, o que aumenta mais os
efeitos de turbulência: a oposição entre uma zona de sombra e uma zona de
sol é a ilustração mais clássica disto. Esta “turbulência” ou (instabilidade)
generalizada do ar, da água, dos mantos de detritos, da cobertura vegetal, e
mesmo dos compartimentos tectônicos, constitui uma espécie de lei ecológica
que define o meio montanhês. Ela ocorre em todas as escalas (orogênese de
um maciço, efeito de fachada, efeito topoclimático, efeito de cadeia, etc.).
A montanha então se define como um sistema atravessado por um potente
fluxo energético que se mantém a um nível de entropia mínimo 6. Por isto, o
espaço montanhês se caracteriza por um potencial “morfológico” elevado, ou
seja, como um meio favorável à evolução (criação, transformação, destruição)
de “formas” no sentido amplo (topográficas, climáticas, biológicas, etc.). Mas
antes de apreender a mudança, é necessário precisar a natureza das estruturas
mais estáveis que organizam o espaço montanhês.

Primeiros elementos para estabelecer um “modelo


topológico”

A montanha é, por definição, um fato topográfico. É então a própria


existência do relevo e sua organização volumétrica que comandam o mosaico
ecológico. Esta consideração muito banal foi, no entanto, negligenciada
pela maior parte dos naturalistas, razão do caráter teórico e laxista de suas
divisões espaciais, tais como os níveis de vegetação, que não levam em conta
fatos geomorfológicos. Nós nos propomos a esboçar uma espécie de “grade”
topológica de referência, caracterizando os grandes níveis de organização dos
espaços montanheses. Em teoria, trata-se de reconhecer leis de distribuição. Na
prática, ainda não é possível formular tais leis ecológicas. Podemos, no máximo,
pressenti-las e caracterizá-las grosseiramente sob a denominação provisória de
“efeitos” ecológicos.

O volume rochoso global determina o efeito de massa e o gradiente ecológico


geral

O volume montanhoso ligado à orogênese dá a escala geral de todos


os fenômenos, aquela que serve, de um modo ou de outro, de “envelope” para
o sistema montanhês e age sobre os elementos que se situam em níveis de
escalas inferiores (nível II para o Himalaia, III para os Pirineus, IV para os
Vosges etc.). O volume rochoso se define por seus componentes horizontais
(localização, extensão, forma do “envelope”) e seus componentes verticais
(elevação, distribuição das altitudes). A combinação destas características
topológicas condiciona diretamente as grandes estruturas ecológicas:
6 F. BONN, Vers une approche énergétique de l´environnement physique. Aspects théoriques. Bull.
De recherche de l´université de Sherbrooke (Québec), nº 7, janeiro 1973, 74 p.
84 Ensaio de análise ecológica do espaço montanhês

O efeito de massa. Ele garante o grau de individualização (tectônica


e ecológica) da unidade montanhesa em relação às unidades vizinhas
(continentais ou marítimas) e em relação às manifestações da zonalidade (grau
de dependência zonal).
O efeito de localização. A localização em latitude (efeito zonal)
se combina com a posição em relação às massas continentais e marítimas e
com a orientação geral da cadeia. Na escala das cordilheiras, devemos opor as
cadeias meridianas plurizonais (Andes) às cadeias “longitudinais” (leste-oeste)
monozonais (Himalaia). O estoque biológico (florístico, faunístico) depende do
conjunto destes critérios (problema das migrações, das “pontes”, dos isolats).
O efeito de gradiente geral. Baseado no gradiente topográfico, ele
se compõe dos gradientes térmicos e pluviométricos, e dos diversos gradientes
biogeográficos. Ele determina os níveis do conjunto das paisagens.

O efeito de fachada e de abrigo correlativo

Ele depende do volume montanhoso (elevação), da posição na


latitude e da orientação do conjunto da montanha em relação ao fluxo
atmosférico dominante (vento do oeste, alísio, monção, etc.). Um maciço
pode ter uma (Himalaia) ou duas fachadas (Andes). Estas últimas podem ser
mais ou menos ativas, às vezes com inversões sazonais (fachada principal,
fachada secundária). O valor dos gradientes, conseqüentemente da divisão por
níveis, não é o mesmo sobre uma fachada exposta a um fluxo atmosférico ativo
que sobre uma vertente abrigada. Esta é uma primeira nuance introduzida ao
princípio de divisão por níveis.
Ensaio de análise ecológica do espaço montanhês 85

Quadro I – Esboço de um “modelo ecológico montanhês”

A compartimentação geomorfoestrutural

Esta compartimentação determina (aproximativamente nos níveis


III e IV) a distribuição das grandes unidades topográficas (maciços, bacias
86 Ensaio de análise ecológica do espaço montanhês

e vales) no interior da montanha. Ela resulta do jogo tectônico, mas pode


ser transformada pelas gliptogêneses sinorogênicas ou pós-orogênicas. Nas
cordilheiras, as unidades se dispõem grosseiramente em faixas paralelas mais
ou menos comprimidas ou dilatadas (no Himalaia: Siwaliks, Mahabharat,
Região Média etc.). Esta compartimentação tem como principais conseqüências
ecológicas:
o aparecimento de descontinuidades no gradiente ecológico geral e o
estabelecimento de gradientes locais com rupturas brutais, até mesmo inversões
(estabelecimento de “níveis” verdadeiros).
estes limites determinam o grau de autonomia de cada compartimento
em relação ao conjunto montanhoso. A dimensão e a individualização
topográfica do compartimento entram então em consideração. Existe, por
exemplo, um limiar isostático (nível III?) abaixo do qual um bloco montanhoso
perde a possibilidade de reagir por compensação tectônica. Esta autonomia
se encontra, sob outra forma, no domínio biogeográfico (efeito de massa,
endemismo, ecotipos, etc.).

Os efeitos de frentes montanhosas e de abrigos correlativos

Estes efeitos (níveis IV - V) são a conseqüência direta da combinação


do efeito de fachada e da compartimentação geomorfoestrutural. De fato, cada
compartimento apresenta uma heterogeneidade sistemática que é conseqüência
da direção e da atividade do fluxo atmosférico dominante. Do lado da fachada,
cada compartimento apresenta uma frente montanhesa (H. Gaussen), ou seja,
uma vertente submetida aos fenômenos de ascendência orográfica, então mais
úmida e mais nebulosa do que os outros setores da montanha, especialmente
as vertentes “sob o vento”. À medida que se adentra no interior da massa
montanhosa, o efeito de frente se atenua e o nível ótimo de precipitação
e de nebulosidade se eleva sobre a vertente, enquanto é reforçado o efeito
de abrigo (efeito de tela de um compartimento sobre o outro) e efeito de
continentalização. A eliminação do efeito de frente pode ser total e pode-se
ter, na parte mais abrigada da montanha, mecanismos climáticos autônomos
de bacia. Esta distribuição sistemática é muito mais complexa quando existem
vários efeitos de fachada de poder desigual e que funcionam em estações
diferentes (Himalaia central).

O efeito topoclimático

Este é o papel bem conhecido da exposição na montanha, determinada


pela inclinação, modificada pela latitude e pelo efeito de máscara. A exposição
aos raios solares às vezes foi confundida com o efeito de fachada ou de frente
montanhesa. Na verdade, é a combinação entre estes dois mecanismos,
independentes e atuando em escalas espaciais diferentes, que permite explicar
um número importante de fatos bioclimáticos e de situações ecológicas. Por
exemplo, uma zona iluminada de frente montanhesa externa se diferencia de
Ensaio de análise ecológica do espaço montanhês 87

uma zona iluminada de frente montanhesa interna; uma zona sombreada de


fachada se diferencia de uma zona sombreada de vertente “sob o vento”. Este
é um meio de classificar os geossistemas montanheses.

As catenas

Na escala da vertente elementar, ou seja, do plano mais ou menos


inclinado não interrompido por um escoamento transversal, são os fenômenos
de gravidade que organizam prioritariamente o espaço montanhês (circulação da
água, do ar, dos detritos) a partir de uma dinâmica essencialmente “oblíqua”.
A maior parte das geofácies e dos geótopos se caracteriza por suas
posições (montante, jusante...) na cadeia de vertente.

Do “modelo” estático ao “modelo” dinâmico

Este esquema topológico contendo outros continua inteiramente


estático. Ele tenta encontrar e codificar a lógica da organização espacial
na montanha. Mas ainda lhe faltam informação e coerência. Todavia, ele
permite esboçar uma primeira classificação comparativa das unidades de
paisagem. Cada unidade de um mesmo sistema taxonômico (por exemplo:
região natural, geossistema, geofácies, geótopo) é estabelecido, em sua escala
espacial, em função, por um lado, do conjunto ecológico funcional ao qual ele
se liga (fachada, frente montanhesa, face ensolarada, etc.) e, por outro lado,
dos conjuntos ecológicos que ela contém.
A instabilidade estrutural é, mais ainda do que nos outros espaços
ecológicos, a condição de existência, portanto de equilíbrio, dos meios
montanheses. A instabilidade é “climáxica” (no sentido epistemológico),
o que acarreta a inadequação em montanha do conceito de clímax em sua
acepção clássica e, sobretudo, dos pressupostos cíclicos que o acompanham
habitualmente (a “volta ao clímax” é, de fato, a base da concepção de série
regressiva ou progressiva de vegetação). O determinismo ecológico estacionário
em estado bruto se apaga diante da probabilidade, que incorpora o tempo. Como
se pode mostrar nas Montanhas Cantábricas Centrais, duas faces ensolaradas,
idênticas do ponto de vista do “substrato” geomorfológico e bioclimático, mas
em posições geográficas diferentes em relação às “reservas” florísticas, uma em
uma grande bacia, a outra em um pequeno vale lateral e isolado, podem ter, a
um dado momento, formações vegetais e solos diferentes.
As inter-relações no tempo e no espaço. Elas estão, a priori, na própria
origem da dinâmica dos meios montanheses. No espaço, a fineza e os contrastes
do mosaico ecológico tornam as interações entre meios, ou elementos de meios,
freqüentes e freqüentemente determinantes. É o próprio princípio do efeito
de cadeia. De modo mais geral, é preciso destacar o papel essencial do efeito
de dominação. Ligado à gravidade, ele é, por causa da rugosidade da interface,
específico dos meios montanheses. Estes fenômenos de dominação são muito
88 Ensaio de análise ecológica do espaço montanhês

conhecidos: ventos catabáticos e “massas frias”, tendência a desmoronamentos,


estações vegetais “abissais” (H. Gaussen) etc. Com o tempo, a freqüência da
superação de certos limites geológicos ou ecológicos fundamentais (limites
isostáticos, inclinação de equilíbrio de uma vertente, limite mecânico e
bioquímico, limite do 0º, limite letal), e das interações entre o conjunto destas
rupturas, multiplica sob nossos olhos os casos de defasagem e de histerese. A
intervenção das atividades agro-silvo-pastoris, e também turísticas, acentua mais
ainda esta tendência à diversificação espacial e à “turbulência” temporal. A idéia
do “catastrofismo” montanhês não é uma visão. Ele deveria ser reconsiderado
nesta ótica ao mesmo tempo espacial e dinâmica.
Os meios montanheses apresentam um estado notável de
“heterostasia” (H. Erhart). Este é mais um fato banal da observação: uma face
ensolarada excessivamente usada como pastagem, sem revestimento, erodida,
pode avizinhar uma face sombreada colonizada por um alto bosque longamente
desenvolvido no local. Certos ecologistas vêem nisso uma justificação à noção
de “policlímax”. Na verdade, a distribuição dos clímax, mesmo teóricos, não
é estável no espaço: a face sombreada também pode ser degradada sob certas
condições bioclimáticas e geomorfogênicas. Conjuntos ecológicos vizinhos
podem então ser objeto de evoluções diferentes, até contraditórias. Na
montanha, mais do que em outro lugar, o espaço e o tempo interferem em uma
dialética que ainda não está bem esclarecida. Isto leva a várias observações:
- ainda não se pode elaborar um “modelo” montanhês dinâmico: por
enquanto, o único método aceitável consiste em estabelecer o modelo estático
atual (cf. Himalaia): depois, pelo método histórico “regressivo”, reconstituir
um determinado número de “modelos” característicos (por exemplo, o modelo
do Maximum glaciar quartenário);
- as tentativas de cronologias setoriais (fases glaciais ou periglaciais,
estágios fitocinéticos) que tiram conclusões gerais do exame de fenômenos
isolados de seu contexto ecológico devem, a priori, ser considerados com
muita reserva; as reconstituições históricas não levam suficientemente em
consideração a heterogeneidade estrutural dos meios de montanha; a passagem
das imagens estacionárias (fornecidas pelo estudo de “cortes” ou a análise dos
pólens de uma turfeira) para a generalização deveria apoiar-se sobre um exame
aprofundado das estruturas e das dinâmicas espaciais atuais ou subatuais;
- por isto, é preciso considerar como um erro metodológico grave o
privilegiar as reconstituições cronológicas em relação à observação sistemática
da distribuição atual dos fenômenos; a experiência de pesquisas conduzidas nas
montanhas cantábricas mostra que um bom conhecimento do modelo ecológico
atual, e mais especialmente de sua heterogeneidade, permite compreender
melhor certas evoluções e, em particular, limitar o alcance das grandes hipóteses
clássicas (flutuações climáticas do Quartenário, vastas correntes migratórias
para as plantas e os animais) 7;
- em resumo, o velho método “naturalista”, às vezes criticado pelos
defensores da “nova geografia”, que parte da observação e da classificação
dos fatos atuais, e que progride por controle histórico “regressivo”, revela-
7 Ver nota 3.
Ensaio de análise ecológica do espaço montanhês 89

se bem superior ao método histórico herdado dos geólogos, depois dos


geomorfologistas, para os quais o cuidado de datação, ou seja, com o tempo,
predominam freqüentemente sobre o espaço, isto é, sobre a distribuição atual
dos fenômenos.
De uma definição breve e contestável do espaço ecológico montanhês,
chega-se à concepção de um modelo teórico e qualitativo. Este último se reveste
primeiramente de um aspecto estrutural e estático, que é possível elaborar ainda
que as leis de distribuição se depreendam bem mal do magma das interferências.
Por outro lado, a construção de um modelo dinâmico ainda parece impossível.
Todavia, podemos, a partir de agora, fixar os princípios gerais e, sobretudo,
revelar certo número de pontos de obstáculos. Parece que chegamos a um
patamar da reflexão e do método, a partir do qual o raciocínio “qualitativo”
deve ser transcendido pela análise matemática, única suscetível de elaborar
um modelo exaustivo confiável, prático.
90

O GEOSISTEMA OU “SISTEMA TERRITORIAL NATURAL”


Nicolas BERUTCHACHVILI1 e Georges BERTRAND2

A reflexão comum entre um pesquisador soviético e um francês sobre


a “ciência do geosistema” deve ser retomada, antes de tudo, dentro da corrente
geral da pesquisa naturalista. De um lado, existem tais defasagens entre as
teorias, os métodos, as linguagens e as práticas em que não é possível comparar
situações históricas distintas e, por vezes, sem relações diretas.
Por outro lado, é necessário evitar a comparação da “ciência do
geossitema” com as disciplinas, tais como a botânica, a geomorfologia ou
a biogeografia, que dependem de trâmites científicos diferentes. Muito
simplificadamente, dentro do único objetivo de ilustrar nosso propósito,
situaremos primeiro a “ciência da paisagem” em relação aos três grandes modelos
conceituais ou paradigmas que dominam os métodos de pesquisa dentro do
domínio das ciências da natureza.
- O paradigma descritivo e classificatório. Desenvolveu-se no século
XVIII e na primeira metade do século XIX, permitindo lançar as bases das
grandes ciências modernas e, estabelecendo sua problemática e sua linguagem,
continuou a se desenvolver no interior de cada campo de estudo (por exemplo,
a taxonomia da paisagem) e pode mesmo sustentar pesquisas de vanguarda.
- O paradigma genético e setorial. Essencialmente desenvolvido
a partir do evolucionismo darwiniano, ele domina o conjunto da pesquisa
naturalista, visto que ele foi progressivamente institucionalizado dentro do
quadro positivista das grandes disciplinas do ensino e da pesquisa. É, por
exemplo, o caso da geomorfologia que se mantém em grande parte apoiada
nos modelos teóricos de W.M. Davis.
- O paradigma sistêmico. Vulgarizado durante a segunda metade do
século XX, ele corresponde a um profundo corte epistemológico. A teoria dos
conjuntos e a análise dos sistemas transformaram as matemáticas, as físicas e
a biologia. A ecologia tomou um novo impulso, tirando todas as vantagens do
conceito de ecossistema. Desde 1950, as reflexões metodológicas de A.Cholley
se inscreviam dentro desta mesma perspectiva, mas elas não passaram de suas
aplicações nos quadros da geomorfologia bioclimácida e, mais discretamente,
da biogeografia. A “ciência do geossistema” soviética e francesa participa
deste movimento3. Ela não acrescenta e não retira nada dos trâmites setoriais
1 Mestre de conferências de Geografia, Université de Tbilisi (Górgia) – União Soviética.
2 Professor, Institut de Géographie, Université de Toulouse-Le Mirail.
3 Em 1964-1965, nós havíamos definido o geossistema como uma unidade taxo-corológica, dentre
outras: geotopo, geofácies, geossistema, região natural, domínio geográfico, zona. O geossistema
representa um espaço natural dividido em geofácies. Esta definição taxonômica tem sido utilizada por
outros autores, tanto em pesquisas fundamentais como em trabalhos de aplicação. Os estudos que estão
O geossistema ou “sistema territorial natural” 91

tradicionais. Ela participa de uma outra problemática, com teorias, objetos e


métodos próprios 4.

As etapas da pesquisa

A ciência do geossistema não constitui, hoje em dia, um conjunto


perfeitamente homogêneo. Cada “escola” possui sua própria concepção de
paisagem, sua própria problemática e, freqüentemente, sua própria linguagem.
Todavia, além das evidentes especialidades, é necessário insistir junto à
comunidade dos pesquisadores teóricos que se submetam a um mesmo conjunto
de regras. Trata-se menos, de fato, de oposições ou de contradições, que de
caminhos paralelos com importantes defasagens, que têm em comum uma enorme
diversidade de meios colocados à disposição das equipes de pesquisa. Pode-se,
esquematicamente, distinguir três situações dentro do movimento mundial da
“ciência do geossistema”. Isto não é propriamente falar dos estados sucessivos
da análise da paisagem. De fato, estes modos de abordagem são largamente
complementares, eles coexistem e interferem mesmo a instantes desasados nos
seus desenvolvimentos.
A análise fisionômica ou “ciência da paisagem” no sentido restrito

Sua origem se confunde com a descrição dos primeiros exploradores,


geógrafos ou naturalistas. Eles se organizaram em diversos países e em diferentes
épocas. No decorrer do século XIX, por exemplo, na Alemanha, com a
“Landschaftskunde” de Passarge e, na Rússia, com a “landschaftovedenie” de
Berg, Visotski e Morov. É uma primeira tentativa de descrição global e arrazoada
do meio natural, apoiada na análise dos componentes visíveis da paisagem, tais
como são definidos nas diferentes análises setoriais: relevo, clima, vegetação,
etc. Ela resulta em tipologias sumárias: princípio de zonalidade, regiões
naturais de L. S. Berg 5. É, em princípio, menos um método de investigação
praticado diretamente sobre o terreno que uma forma de apresentação e
elaboração de análise do terreno, realizadas no quadro dos estudos setoriais.
Esta rotina continua a se desenvolver, em particular no domínio anglo-saxão,
em que ela originou os diferentes métodos do “landscape survey”, que fizeram
suas provas no arranjo de espaços ainda pouco utilizados ou mal conhecidos
(Austrália, Canadá, Estados Unidos). Mais recentemente, a aplicação da análise
multifatorial ou multivariada permitiu a superação de uma etapa fundamental
na escolha e no tratamento lógico dos parâmetros setoriais6.
contidos neste número da Revue Géographique des Pyrenées et du Sud-Ouest e as legendas de suas
cartas foram elaboradas de acordo com este conceito. Em um esforço de uniformização conceitual e de
simplificação da linguagem, nós nos reunimos com o CIMA para uma definição mais lógica, como a de
V. B.Shochava, que faz do geossistema, como o ecossistema, uma abstração e um conceito (nota de G.
Bertrand).
4 A “ciência da paisagem” parece reconhecida como tal pela comunidade geográfica internacional,
em particular após o Congresso Internacional de Geografia de Moscou em 1977. Mas como está ela na
França? Ela não aparece nem nas classificações bibliográficas ou é confundida mais freqüentemente com
a biogeografia.
5 L. S. BERG, Les régions naturelles de l’URSS. Paris, 1941, Payot.
6 M. PHIPPS, Recherches sur la distribution géographique de l’utilization du sol: structure locale,
modèle biogéographique, structure régionale. Thèse de doctorat d´État (Sciences). Toulouse, 1969, 174
p. ; G. ALLAIRE, M. STOUPY, Analyse écologique et cartographique du paysage. Proposition pour
92 O geossistema ou “sistema territorial natural”

A análise integrada do meio natural ou a pesquisa interdisciplinar

O ponto de partida não é a paisagem em si mesma, mas antes as


diferentes disciplinas naturalistas ou sociais a partir das quais se tenta reconstruir
e apreender o “complexo territorial natural” (prirodnoterritorialny complex).
Não somente todos os componentes conhecidos, visíveis ou invisíveis, são
levados em consideração, mas ainda são analisados como elementos de um
conjunto dotado de propriedades específicas. É, pois, dentro deste princípio,
uma análise de sistema sem título, mas com duas importantes restrições: de um
lado, ela permanece essencialmente qualitativa, mesmo utilizando o tratamento
multifatorial; de outro lado, ela permanece interdisciplinar, isto é, ela se
contenta em combinar a posteriori os dados geomorfológicos, biogeográficos,
antrópicos etc. Ela pode descrever os conjuntos relativamente complexos,
mas não chega freqüentemente, a explicá-los porque os mecanismos em foco
escapam das análises das disciplinas tradicionais 7.

A análise sistêmica ou a “ciência do geosistema”

Situada, desde o princípio, fora do domínio das análises fracionárias do


meio natural, ela nasceu de um esforço de teorização sobre o meio natural, o mais
banal, natural e global, com suas estruturas e seus mecanismos, tal como existem
objetivamente, isto é, mais ou menos modificados pelas ações antrópicas, mais
independentemente (pelo menos teoricamente) de todo fenômeno direto e não
controlado pela percepção 8. Esta construção teórica é, pois, possível a partir da
quantificação, isto é, de medidas estacionais complexas. O ponto de partida é o
conceito de geossistema ou “sistema geográfico” ou “sistema territorial natural”,
que depende da aplicação direta da teoria dos sistemas e da cibernética. O estudo
do geossistema comporta três “níveis” diferentes: físico, geoquímico e etológico.
As medidas de laboratório são destinadas ao conhecimento do funcionamento
do conjunto: balanço de matéria e energia, “estados” espaciais e temporais do
geossistema. Estas teorias não estão desenvolvidas e colocadas em prática a não
ser na União Soviética onde os laboratórios de pesquisa são dotados de meios
poderosos. Na França, as diferentes tentativas neste assunto estão, atualmente,
em posição intermediária entre a fase “interdisciplinar” e a fase “sistêmica” e
sem grandes possibilidades de desenvolvimento no plano material.

O CONCEITO DE GEOSISTEMA

A transição da descrição mais ou menos ordenada e coordenada


une étude quantitative de la distribution spatiale de l´utilisation du sol. Tese de Doutorado – Toulouse,
1972. 3 vol., 307 p. ; J-C WIEBER, Dynamique érosive et structures des paysages (essai d´approche
méthodique). Tese de Doutorado de Estado (Letras), Paris, 1977, 2 vol., 813 p.
7 “La Science du paysage” RGPSO, 1972, fasc. 2 (t 43), p. 127-292, 1 carte h.t. (Actes du premier
colloque sur la science du paysage). J.C. RICHARD, Paysage, écosysteme et environnemente: une
aproche géographique. L’éspace géographique, 1975, p. 81-92.
8 Esta discussão é repetida neste mesmo número (RGPSO), por G. Bertrand, Le paysage entre la
nature et la société, RGPSO, 1978, p. 235 sqq.
O geossistema ou “sistema territorial natural” 93

dos elementos naturais e humanos que constituem um meio natural à análise


científica deste mesmo meio natural não foi efetiva senão a partir do momento
em que este último foi considerado a priori como um “conjunto” geográfico
dotado de uma estrutura e um funcionamento próprios; isto é, quando a
“paisagem” real e multiforme está erigida em conceitos. O termo geossistema foi
utilizado pela primeira vez por V.B. Sochava em 1960 9. O geossistema serve para
designar um “sistema geográfico natural homogêneo associado a um território”.
Ele se caracteriza por uma morfologia, isto é, pelas estruturas espaciais verticais
(os geohorizontes) e horizontais (os geofácies); um funcionamento, que engloba
o conjunto de transformações dependentes da energia solar ou gravitacional,
dos ciclos da água, dos biogeociclos, assim como dos movimentos das massas
de ar e dos processos de geomorfogênese; um comportamento específico, isto
é, para as mudanças de estado que intervêm no geossistema em uma dada
seqüência temporal.
O geossistema se diferencia do ecossistema, apesar de que ambos
tratem de uma aplicação da teoria geral dos sistemas e da modelização sistêmica
da natureza 10: o geossistema é um conceito territorial, uma unidade espacial
bem delimitada e analisada a uma dada escala; o geossistema é muito mais
amplo que o ecossistema, ao qual cabe, deste modo, uma parte do sistema
geográfico natural.
Mas estes dois conceitos traduzem, de fato, duas abordagens muito
diferentes da natureza visto que seus objetivos não são os mesmos. O ecossistema
representa uma abordagem biocêntrica e metabólica, sob a qual os elementos
não vivos do meio não são subordinados à análise dos elementos vivos no
decorrer dos processos de fotossíntese e da cadeia trófica. No geossistema, não
existe nenhuma abordagem preferencial e nem hierarquia a priori. O conjunto
das estruturas e dos mecanismos é apreendido globalmente. A hierarquia natural
dos elementos, tal como aparecem na análise quantitativa do espaço-tempo
concreto, é que determina as prioridades da análise.

Os componentes do geosistema

O geossistema, volume que se inscreve nas três dimensões do espaço,


se define por sua massa, isto é, por uma certa quantidade de matéria, e por uma
certa energia interna. Distinguem-se três tipos de componentes:
••componentes abióticos (litosfera, atmosfera e hidrosfera) que formam
o geoma;
••componentes bióticos ou biomassa (fitomassa e zoomassa) que
constituem o bioma;
••componentes antrópicos.
Nas interfaces entre eles aparecem os componentes de contato,
9 V.B. SOCHAVA, L´Étude des géosystèmes: stade actuel de la géographie physique complexe.
Izvestija Akademii Nauk SSSR. Serija geograficeskaja, 1972, nº 3, p.18-21 (bibliografia). Tradução
francesa (por C. Rondeau), CNRS. Centre de Documentation et de la cartographie géographique,
Paris.
10 L. Von BERTALANFFY, General system theory, foundation, development, applications. New
York, 1968, G. BRAZILLER, Théorie générale des systèmes, Paris, 1973, Dunod. J.-L. LE MOIGNE,
La théorie du système general. Théorie de la modélisation, Paris, PUF, 1977.
94 O geossistema ou “sistema territorial natural”

como o solo ou as camadas da atmosfera, que são fortemente influenciadas pela


biomassa (geohorizontes florestais). Dentro deste procedimento globalizante, tal
como é praticado na União Soviética, as características setoriais, por exemplo,
a composição florística, a definição genética do relevo, as páleo-evoluções etc.,
não intervêm, a não ser secundariamente e não constituem, em nenhum caso,
de ponto de partida para análise (muito particularmente no que concerne
aos levantamentos de campo). A integração dos elementos é aqui de origem
conceitual e se impõe como um a priori da análise geossistêmica.

A estrutura do geosistema: geohorizonte e geofácies

A estrutura do geossistema corresponde aos fenômenos de distribuição


espacial, sobre o plano vertical e sobre o plano horizontal.
a. O geohorizonte. A estrutura vertical interna de um geossistema é
determinada pela estratificação em geohorizontes. Em determinado momento,
um geohorizonte se caracteriza por uma fisionomia (envoltório, forma, volume,
textura, cor), por massas (massa total ou massa de cada componente), por
energia (energia total ou energia de cada componente). O geohorizonte
define-se pela visão de estratos na distribuição das massas; por exemplo, uma
descontinuidade na distribuição da aeromassa (diferença de temperatura, de
umidade, de velocidade no escoamento do ar) ou de fitomassa. Os geohorizontes
são as estruturas verticais homogêneas que se superpõem uma às outras. Cada
geohorizonte se diferencia do geohorizonte superior e do geohorizonte inferior.
Ele não corresponde somente ao estrato da vegetação, ou ao estrato da biomassa,
mas ao conjunto dos componentes (aeromassa, hidromassa etc.).
b. O geofácies. A estrutura horizontal interna de um geossistema é
constituída, por um dado tempo, pelo mosaico de geofácies. Cada geofácie
apresenta uma estrutura específica de geohorizontes, isto é, que ele corresponde
às características de cada geohorizonte e às relações entre os diferentes
geohorizontes que compõem este geofácie. Define-se, assim, por certa
fisionomia, certa massa e certa energia interna. Esta estrutura é variável ao
longo do tempo e sua organização, a um preciso momento, corresponde a um
“estado” do geofácie.

O funcionamento do geosistema

Em oposição ao modelo ecossistêmico, ele não leva em conta somente


o funcionamento biológico, ou seja, o metabolismo (fluxo de matéria e de
energia que atravessa a cadeia trófica), mas o funcionamento físico global, a
um tempo biótico e abiótico. Assim, pode-se distinguir:
••as transformações da energia solar, da qual apenas uma pequena parte
é utilizada pela fotossíntese (falta levar em consideração o conjunto
do balanço térmico e do balanço de radiação do geossistema);
••as transformações da energia gravitacional, que compreende a
O geossistema ou “sistema territorial natural” 95

circulação da água, queda das folhas, os diversos processos erosivos


associados à gravidade (desabamentos etc.);
••o ciclo da água no interior do geosistema (precipitação,
evapotranspiração, escoamento etc.);
••os ciclos biogeodinâmicos, que comandam as transformações e as
trocas quantitativas e qualitativas de matéria, para exemplo da
transformação da matéria viva por humificação e mineralização;
••os processos geomorfogênicos, que modificam os modelados e os
volumes rochosos;
••os movimentos da massa aérea (vento, mudanças de pressão etc.).

“Estados” e “comportamento” do geosistema

Na primeira fase da pesquisa, tanto na França como na União


Soviética, foram privilegiados os estudos da distribuição espacial dos fenômenos,
processando-se os estudos corográficos. A noção de espaço evoluiu mais em
relação àquela do tempo. Entretanto, a partir de 1945, Berg propôs o termo
“aspecto” da paisagem e, em conseqüência, Solntsev analisou os ciclos e os ritmos
dos processos dos geossistemas. Mas estes estudos não puderam se desenvolver,
a não ser com a colocação de estações de medidas regulares acopladas com
equipamentos de teledetecção, portanto após uma dezena de anos.
Cada geossistema se define por uma sucessão de estados ao longo
do tempo (“sostoianie”). Cada “estado” corresponde a uma estrutura e a um
funcionamento, portanto a uma certa situação no espaço. Isto significa que
não é mais possível separar a relação temporal da relação espacial. A análise
do geossistema é uma rotina espaço-temporal e o estudo de estados sucessivos,
voltando a aplicar a teoria geral dos sistemas. Falta distinguir a mudança do
“estado” do geossistema, da mudança do geossistema. A mudança do “estado”
intervém quando ocorre a modificação da estrutura (distribuição de massas)
e do funcionamento (balanço energético), mas também quando ocorre uma
modificação de entrada (energia solar, precipitação, mudança de temperatura,
etc.) e de saída. Entre estes últimos, falta não somente compatibilizar as saídas
reais (evapotranspiração, escoamento, albedo, erosão), mas também todas
as modificações intervenientes ao longo do desenvolvimento do “estado”
(produção de biomassa, etc.), isto é, todas as modificações resultantes do
funcionamento dos processos que definem o “estado”. O “estado” de um
geossistema se caracteriza por uma quantidade infinita de parâmetros de
estrutura e de funcionamento. Basta, na prática, a determinação de certo
número de parâmetros fundamentais que servirão à caracterização de um
“estado”. Por exemplo, na análise do “comportamento” de um relvado, define-
se um “estado” de queda de chuva de determinada intensidade, um estado com
gelo, etc. Entretanto, a mudança de uma entrada não é suficiente para conduzir
a uma mudança de “estado”. Uma simples variação de temperatura não repercute
obrigatoriamente sobre o conjunto da estrutura e do funcionamento. Não pode
haver mudança de “estado”, a não ser que os três componentes do geossistema
(abiótico, biótico e antrópico) sejam modificados. Falta levar em conta o
“estado” anterior. O estudo do “comportamento” do geossistema consiste, pois,
96 O geossistema ou “sistema territorial natural”

em definir, e dentro de certa perspectiva de previsão, a sucessão dos “estados”.


A mudança do geossistema ocorre quando há uma modificação da estrutura e
do funcionamento, isto é, quando há a mudança do conjunto dos “estados”. O
geossistema é uma abstração e um conceito. O “estado”, pelo contrário, é uma
realidade objetiva e mensurável, que se insere no tempo e no espaço.

A estação de Martkopi

Entre a análise espacial e a análise temporal, há um princípio


metodológico e tecnológico, que não está efetivamente superado, mesmo na
União Soviética e particularmente para os pesquisadores da estação de Martkopi
(Cáucaso), vinculada ao Instituto de Geografia de Tbilissi (Geórgia); visto que
a análise dos “estados” requer a colocação de um observatório permanente,
dotado de um equipamento considerável para medir os parâmetros e assegurar
o tratamento das informações. Além disso, a necessidade de confrontar os
comportamentos a várias escalas têmporo-espaciais levou à colocação de uma
rede de observatórios a três níveis principais:
••levantamentos “estacionários”, em Martkopi. Eles permitem
acompanhar em detalhe o “estado” de alguns geossistemas e,
conseqüentemente, construir modelos matemáticos;
••pesquisas “expedicionárias”, apoiadas sobre operações de teledetecção.
Elas permitem cobrir vastos territórios e generalizar os resultados
obtidos em Martkopi;
••levantamentos “semi-estacionários”, a partir de estações
temporárias. Eles asseguram a transição entre o nível “estacionário”
e o “expedicionário”, permitindo, por exemplo, o conhecimento do
funcionamento de todo um geossistema a partir da análise de um
“estado”.
O aspecto mais novo e mais rico de conseqüências teóricas e práticas
é constituído pela pesquisa sobre a sucessão dos “estados” e sobre a previsão de
tal sucessão, a curto, a médio e a longo prazo. Os principais resultados já estão
expostos por N. Beroutchachvili e outros 11.
A análise do geossistema é, desta maneira, amplamente utilizada nos
estudos e projetos de organização espacial. Ela intervém primeiramente sobre
um aspecto que se pode qualificar de tradicional, dentro da regionalização e
planificação (exploração agrícola de terras virgens); na organização do território
(carta geossistêmica para “kolkhozes”, localização e organização de “zonas de
recreação”), na arquitetura paisagística, etc.
O ajuste, ao longo dos dez últimos anos, de uma metodologia muito
avançada e de uma tecnologia de ponta, abre ao geosistema perspectivas
aparentemente ilimitadas no domínio da aplicação direta à organização (do
11 N. BEROUTCHACHVILI et J. RADVANYI. Les estrutctures verticales des géosystèmes, RGPSO,
1978, p. 181 sqq. N. BEROUTCHACHVILI et J. F. RICHARD. Aspects traditionnels et aspects
modernes dans la “Science du paysage” en URSS. ORSTOM, Pub. Centre d´Adiopodoumé, 10 p. Estes
diferentes trabalhos, somados ao presente estudo, representam, em grande parte, a colocação em forma
de discussões surgidas durante as missões de N. Beroutchachvili na França, particularmente em Paris
e em Toulouse, em 1975 e 1976.
O geossistema ou “sistema territorial natural” 97

espaço). A modelização do geossistema permite sistematizar a análise do


“complexo territorial natural”, generalizando e acelerando os levantamentos de
campo. A previsão, a curto e a médio prazo, do comportamento do geossistema,
começa a se desenvolver a partir do estudo dos “estados” e da probabilidade
de suas sucessões no espaço e no tempo. A geoquímica do geossistema e as
pesquisas metalogenéticas que lhe são associadas trazem uma aplicação direta
no reconhecimento de jazimentos minerais. A teledetecção permite uma
vigilância permanente dos geossistemas cujos “estados” são analisados após as
medidas tomadas pelos satélites.

Geosistema e análise social 12

A pesquisa sobre o geossistema tornou-se um ramo autônomo da


análise geográfica naturalista. Ele se afirmou sobre um plano conceitual e
teórico que se apóia sobre a análise dos sistemas e sobre a cibernética. Ela
permitiu desenvolver uma metodologia nova que, sendo global, apóia-se sobre
a quantificação de parâmetros elementares.
O conhecimento do “meio natural” pode ser aprofundado sobre o
plano de sua estrutura interna como do seu funcionamento. Todavia, a análise
geossistêmica mantém-se ligada aos seus países de origem: União Soviética,
Alemanha, Polônia, Tchecoslováquia e, dentro de menos medida, França.
Nos países anglo-saxões e na maior parte dos países da Europa Ocidental, a
análise do geossistema, de inspiração geográfica, esbarra com a concorrência da
ecologia e da análise ecossistêmica, que preenchem uma função metodológica
análoga, a partir de outros conceitos. Tratam-se, em ambos os casos, de duas
abordagens de inspiração e finalidades naturalistas. Sua utilização no domínio
econômico e social já é um fato conhecido, mas a prática permanece ainda
muito superficial, ainda ambígua, e levante certo número de questões que, até
o presente, não são abordadas por elas mesmas.

A antropização do geosistema

O elemento humano é levado em conta no quadro teórico do


geossistema, seja indiretamente entre os “componentes bióticos”, seja
diretamente como “componente antrópico”. Ora, este último dificilmente
se aprecia em volume e em massa. Não existe correlação direta entre a
“antropomassa” (?) e a energia desprendida, sobretudo em se tratando de
sociedades ou de grupos sociais teoricamente desenvolvidos. Não seria melhor
situar a ação antrópica exteriormente ao geossistema e em relação dialética
com ele? Isto será uma solução a facilitar, mas fará adiar o problema. Admite-
se que o Homem, isto é, a sociedade, integre a natureza, porém falta manter
o componente antrópico dentro do geossistema, em condições de melhor
definir o seu conteúdo. O fato de reconhecer a existência de um componente
antrópico (portanto, interno, por definição, ao geossistema) não significa que
12 G. BERTRAND, La géographie physique contre Nature?, Géodoc 8, 1978, 33 p. Institut de
Géographie de Toulouse-Le Mirail.
98 O geossistema ou “sistema territorial natural”

o conjunto da estrutura e do sistema socioeconômico seja subordinado ao


geossistema. Não basta uma explicação geossistêmica da sociedade, visto não
possuir uma explicação ecológica estrito senso. Tal procedimento revelaria um
determinismo natural que ninguém mais saberia defender. A inserção do fato
antrópico no geossistema se limita, então, ao menos no estado atual da pesquisa,
a levar em conta o impacto econômico e social sobre o complexo territorial
natural, isto é, às modificações impostas aos geofácies e aos geohorizontes e
suas conseqüências sobre os ”estados” e o comportamento do geossistema.
Convém notar, a este propósito, que a propensão dos pesquisadores é trabalhar
nas “áreas virgens” ou em ambientes pouco modificados pelo homem (florestas
e campos). Tem havido uma tendência a minimizar o impacto antrópico que
deverá, portanto, mais e mais freqüentemente, ser um dos motores essenciais da
evolução dos geosistemas. A metodologia geral deverá certamente ser repensada
em função desta antropização generalizada dos geosistemas terrestres. Ela não
se manterá a menos que se situe sempre no quadro de uma análise naturalista
do espaço geográfico, sem relação direta com a o estudo socioeconômico. “É
necessário convir que diferentemente das relações internas do geossistema que
são submetidas às leis naturais, as relações dos geosistemas com os sistemas
territoriais de produção deverão ser consideradas como as relações externas e
submetidas às leis socioeconômicas” 13.

A perspectiva social do geosistema

As ciências sociais em geral e a geográfica, em particular, estão à


procura de uma metodologia susceptível de colocar o inevitável inventário
dos “dados” naturais e capaz de restituir os componentes físico-geográficos
aos sistemas de produção socioeconômicos. Os estudos setoriais próprios da
geografia física tradicional (geomorfologia, climatologia) não podem senão
trazer pontos de vista parciais, logo fracionários.
A prática geográfica consiste em assentar diretamente sobre um meio
natural predeterminado (relevo/clima/vegetação/solos/águas) o confronto das
atividades econômicas e sociais sem alguma reflexão sobre o “sistema natural”,
sobre o “sistema social” e sobre as ligações que poderiam existir entre ambas.
Isto faz, freqüentemente, da monografia geográfica regional uma caricatura
de método integrado. A ecologia e o ecossistema permitem desenvolver uma
metodologia de grande valor científico, mas com dois inconvenientes maiores:
de um lado, a finalidade trófica do ecossistema não pode se aplicar diretamente
à sociedade; por outro lado, o ecossistema marginaliza os elementos naturais
estranhos à biocenose (os processos da geomorfogênese em particular).
Dominando o complexo territorial natural no espaço e no tempo e, ainda em sua
totalidade de seus mínimos detalhes (quantificação dos parâmetros), o conceito
de geossistema e seus “objetivos” derivados: geofácies, geohorizontes e “estados”
constituem uma ferramenta metodológica e técnica que deverá responder em
todo ou em parte à demanda social. Um procedimento essencialmente teórico
13 A.G. ISACENKO, Géotopologie et science du paysage. Izvestija Vsesojuznog Geograficeskogo.
Obscestva, 1972, nº 3, pp. 161-173. Tradução francesa (por C. Rondeau), CNRS. Centre de
Documentation et de Cartographie géographique, Paris. (Ver principalmente p. 24 da tradução).
O geossistema ou “sistema territorial natural” 99

consistirá em inserir a análise geossistêmica na problemática social (e não o


inverso), definindo-se complexo territorial a partir de caracteres do modo e do
sistema de produção, em particular em sua ligação com as forças produtivas. O
geossistema aparecerá agora, por sua vez, como uma estrutura natural funcional
e como um produto do trabalho social.

A arqueologia do geosistema

A análise etológica conduz a certa previsão a curto e longo prazo,


mas o estudo do geosistema não permanece somente restrito ao presente,
sem nenhuma perspectiva histórica, o que empobreceria as interpretações e
impediria as generalizações. Falta esboçar a história do geossistema.
É, de um lado, uma “história natural”, que posiciona o problema do
enquadramento dos geosistemas atuais e de sua evolução. Necessita, portanto,
reunir e confrontar as diferentes cronologias e histórias setoriais (geológica,
geomorfológica e biogeográfica) para esclarecer os “estados” dos geosistemas e
suas sucessões históricas. A modelização geosistêmica parece suficientemente
avançada para triar e hierarquizar as informações históricas recolhidas da
bioquímica, da geomorfologia, da palinologia, etc.
É, por outro lado, uma história social, igualmente tão indispensável
que aumenta com a pressão socioeconômica sobre a natureza e que toda
previsão de “estados” de um geossistema implica num bom conhecimento dos
estados anteriores, ou seja, uma análise prévia das relações históricas entre a
sociedade e o espaço. Com efeito, as “terras virgens” tornam-se mais e mais
raras e o espaço é quase inteiramente “ecúmeno” (L. E. Hamelin). Não se
pode mais conceber o geossistema isolado dos sistemas socioeconômicos que
se sucedem sobre um mesmo espaço. Esta “história” social do geossistema
começa desde a pré-história e utiliza conjuntamente os métodos e as técnicas
da história e da arqueologia. Os etnólogos e os antropólogos trabalhando com
pequenas comunidades humanas, de fraco desenvolvimento técnico, mostram
o caminho melhor que eles perderam, às vezes por falta de uma ferramenta
para apreender globalmente o meio 14. Esboçando, por outra via, uma pesquisa
sobre o geossistema agrícola ou agrossistema, conseguem restituir o sistema de
produção agrícola e a sociedade rural no seu ambiente físico 15.
O avanço epistemológico, metodológico e tecnológico dos geógrafos
soviéticos poderá conduzir os outros pesquisadores ao desalento. Nenhuma
equipe francesa pode, atualmente, rivalizar com seus grandes laboratórios e
suas estações experimentais, além de que a mediocridade dos meios materiais
14 R. CRESSWEL, Éléments d’ethonologie. Paris, Colin, 1975, (Ver particularmente a contribuição
de J. Barrau).
15 G. BERTRAND, Pour une historie écologique de la France rurale. In Histoire de la France Rurale
(sob a direção de G. Duby e A. Wallon), Paris, Seuil, 1975, t.l, p. 34-113. L’archéologie du paysage
dans la perspective de l’écologie historique, Caesarodunum (Bull. Inst. ét. latines et Centre de rech. A.
Piganiol), Tours, 1978, nº 13 (Actes Colloque Archéologie du paysage, Paris, 1977), p.132-138.
100 O geossistema ou “sistema territorial natural”

não permite imaginar uma pesquisa paralela. Não se trata de recuperar o


tempo-perdido, mas, ao contrário, aproveitar a experiência para desenvolver
uma reflexão e pesquisar aqueles setores justamente pouco ou mal explorados;
impactos da sociedade sobre o meio natural, relações entre os sistemas de
produção socioeconômicos e o geossistema, etc.
O geossistema é o conceito simplificador e integrador que tem faltado
(e ainda falta) à geografia física francesa. Mas a análise geosistêmica não é
assunto para qualquer pesquisador, nem mesmo para uma equipe isolada. A
prática do geossistema implica, em médio prazo, a uma reflexão de conjunto,
não somente sobre a pesquisa naturalista, mas, sobretudo, sobre a inserção
da natureza da análise social onde os geógrafos têm um papel de destaque, se
assim o desejarem e se organizarem, em conseqüência, um quadro essencial à
sua realização.
101
102
103

A GEOGRAFIA FÍSICA DESNATURADA?


A nova dialética da natureza e o silêncio dos geógrafos

Por muito tempo perdida ou compartimentada, a natureza, isto


é, o universo físico considerado globalmente como sistema é reencontrada
e interrogada. Uma nova “dialética da natureza” está em gestação. Ela já
revolucionou o campo próprio das ciências da natureza, primeiramente pelo
canal das ciências ditas exatas, em seguida, por aquele das disciplinas bioquímicas
e, mais recentemente, ecológicas. Esta onda epistemológica e metodológica,
que é bem preciso ser qualificada de naturalista, começa a penetrar as ciências
da sociedade até aqui bastante estranhas aos fatos naturais e geralmente pouco
preocupadas em levá-los em consideração. Esta situação não é nova. Ela reata
com a tradição naturalista dos três séculos precedentes ao longo dos quais
a natureza e o natural, sob formas tão diferentes e contraditórias quanto o
darwinismo, o organicismo, o romantismo, o positivismo etc., ocuparam um
lugar privilegiado — freqüentemente o primeiro — no movimento filosófico
e científico do mundo ocidental. Por outro lado, com o século XX, a natureza
parece apagar-se e isto pelo menos tanto no espírito das pessoas quanto na
realidade biológica e econômica. Este refluxo deve ser relacionado com a fase
particularmente triunfalista e agressiva de uma expansão tecnoeconômica
aparentemente generalizada, benéfica e ilimitada. Senão dominada, mas
certamente neutralizada, a natureza tornou-se então subsidiária, transparente,
quase desprezível. É verdade que ao mesmo tempo o positivismo científico a
corta em fatias que se transformam rapidamente em retalhos de conhecimentos
muito especializados e socialmente ineficazes, exceto, é claro, no que diz respeito
aos aspectos tecnológicos indispensáveis ao desenvolvimento econômico.
No pensamento idealista secretado pelas economias liberais, os fatos naturais
são rebaixados para o benefício de um humanismo centrado sobre o culto da
pujança indefinida da livre empresa humana. A natureza não é mais do que
um ponto de partida do qual se afasta cada vez mais a sociedade humana em
marcha. A natureza garante a intendência. Na análise materialista posterior a
Engels e Marx, a natureza não é nunca esquecida enquanto tal, mas na prática
quotidiana ela se encontra quase sempre ocultada pela sociedade e suas forças
produtivas. É assim que as diversas exegeses da “dialética da natureza” de Engels
foram pouco ou mal recebidas até estes últimos anos, muito especialmente no
campo das ciências econômicas e sociais. O postulado marxista é respeitado,
mas ele perdeu no mais das vezes seu caráter operacional.
Hoje, é de um “retorno à natureza” que se trata. A ecologia, enquanto
ciência constituída, e o ecologismo, enquanto aspiração filosófica vasta e
104 A geografia física desnaturada?

indefinida, representam apenas o aspecto mais banal de uma evolução muito


rápida (“revolução?) e muito geral que transtorna as infra-estruturas econômicas
e sociais, as sensibilidades, as ideologias e as ciências. O desenvolvimento
tecnoeconômico dá uma ressonância especial a reflexões freqüentemente
disparatadas e contraditórias, mas que se deixam levar freqüentemente – e às
vezes não sem motivo - a uma espécie de dramatização ecológica. Onipresente
e magnificada, a natureza desce para a rua, poetizada, às vezes violenta, com
freqüência reformada, sempre ambígua. Então o retorno à natureza assume a
forma revolucionária de uma contracultura- e de uma contra-sociedade - total
e às vezes totalitária. Neo-romantismo e/ou neonaturalismo? Transbordamento
irresistível ou simples reajuste das metafísicas tradicionais? Ora, a relação
maniqueísta clássica natureza-cultura, natureza-sociedade, natureza-homem
(são relações diferentes, mas elas são freqüentemente confundidas) permeiam
ainda mais ou menos implicitamente as práticas científicas mais quotidianas.
O postulado materialista que o homem, e então a sociedade, está na natureza
e não fora dela, e muito menos “contra” ela, assume toda sua amplitude e
pode se tornar a pedra angular de uma reflexão renovada sobre o lugar e o
papel da geografia física e dos geógrafos no desenvolvimento atual da pesquisa
naturalista e social.
A geografia se situa no âmago deste debate. Os geógrafos são de fato
os intercessores entre certo conhecimento naturalista e certas formas de análise
social. Eles nunca eliminaram totalmente de sua problemática o elemento
natural e menos ainda suas implicações socioeconômicas. Aliás, eles não
podem permiti-lo a si mesmos sob risco de perder sua identidade em relação às
outras ciências sociais, o que aconteceu recentemente a certas formas novas da
geografia humana. Os geógrafos se beneficiam então de uma espécie de renda
de situação na junção das ciências da sociedade e das ciências da natureza,
em um momento em que etnólogos, antropólogos, sociólogos, economistas e
historiadores tentam se situar, não sem dificuldade, em tal perspectiva.
O silêncio dos geógrafos diante da emergência da natureza e da
expansão das atitudes socioecológicas com isso apenas parece mais pesado e
mais decepcionante. Se certos especialistas de geografia humana manifestam
individualmente certo interesse e aceitam modificar sua problemática, os
especialistas de geografia física, por outro lado, permanecem na expectativa
ou tomam outros caminhos. Trata-se de uma recusa científica motivada, ou
então de um desinteresse epistemológico, ou ainda de uma incapacidade
metodológica? A geografia física moderna teria se tornado paradoxalmente
uma atitude contranatureza?
A geografia dita “física” não é mais do que um subconjunto da
geografia disciplina de ensino e de pesquisa. Ela foi constituída na França há
menos de um século, essencialmente sob o impulso de Emmanuel de Martone.
Ela continua a produzir e a se reproduzir ali no interior de uma instituição
universitária e científica reconhecida e dominada por uma comunidade
organizada de professores e de pesquisadores. A geografia física representa então
certa “ordem” científica e social cujo excesso de peso não deve ser subestimado
diante de situações epistemológicas novas, sobretudo quando estas parecem se
desenvolver fora, até em contradição com o que é considerado como a própria
A geografia física desnaturada? 105

tradição geográfica. É assim que a ecologia por seu método e os ecologistas por
suas técnicas e suas divulgações, invadem o terreno habitual dos geógrafos, os
quais se sentem ameaçados em seu equilíbrio científico e pedagógico. Ao situar
a problemática fora dos quadros disciplinares tradicionais, a “volta à natureza”
carrega em si os germes de disputas e deve então ser analisada tanto em termos
de poder quanto de saber.
O conteúdo da geografia física, ou seja, o estudo do meio natural
e/ou desses principais elementos (relevo, solo, clima, vegetação) está, pelo
menos em primeira análise, suficientemente explícito. De qualquer modo,
ele é sustentado por uma produção contínua e vigorosa que parece justificar
a todo o momento e em toda circunstância a existência desta disciplina e dos
especialistas que a praticam. É neste sentido que se pode efetivamente dizer
que a geografia se prova ao existir e ao caminhar. Mas caminhando em que
rumo, com qual objetivo e com quais meios?
Antes de abordar o problema de fundo, é preciso limitar nosso
propósito. Não se trata de conduzir em algumas páginas uma epistemologia da
geografia física e de desenvolver uma análise crítica sobre o conjunto de uma
produção científica mais do que semi-secular. As pesquisas atuais e passadas
conduzidas pelos geógrafos “físicos” existem enquanto tais e entenda-se de
uma vez por todas que seu interesse específico não será aqui jamais posto em
dúvida, quer se trate de geomorfologia, de climatologia ou de biogeografia.
Nossa atitude se situa no lado direito de uma problemática (vidaliana?) que é
a de resituar as sociedades humanas em sua prática do espaço geográfico. Esta
pesquisa se baseia a priori sobre uma concepção unitária da natureza, então,
por simetria, da geografia física. Esta coerência deve evitar se deixar levar pelos
múltiplos desvios próprios da história desta disciplina. Por exemplo, o exame
crítico da geomorfologia não pode se conduzir a partir dos mesmos postulados
da geografia física considerada como um conjunto, sob pena de confusão e de
caricatura. A geomorfologia se tornou rapidamente mais do que a parte de
um todo. Em relação à natureza, ela é ao mesmo tempo bem menos e muito
mais do que a geografia física. Todavia, o problema central da geografia física,
tal como é atualmente praticada pelos geógrafos, continua sendo seu laxismo
conceitual e metodológico. Esta situação deve ser assinalada em prioridade
antecipando o debate de fundo, pois ela não deixa de influir no desenrolar e
no conteúdo de nosso empreendimento. De fato, a ausência de bases teóricas e
de um campo de aplicação perfeitamente definido para o conjunto da geografia
física permitiu o desenvolvimento excêntrico de pesquisas tão diversas e às
vezes tão contraditórias na sua finalidade (alternadamente naturalista ou
social) que a crítica deveria ser multidirecional, mudar constantemente de
objeto e de finalidade, isto é, permanecer na sombra ambígua de seu sujeito.
É assim que a maioria das críticas recentemente dirigidas ao mesmo tempo à
geografia física e à geomorfologia permaneceram sem alcance real, pois, de
um lado, elas atacavam um vasto corpo mole, desequilibrado e animado por
movimentos centrípetas e, por outro lado, elas mesmas não emanavam de um
projeto científico coerente 1. Por outro lado, ao confrontar a globalidade da
natureza à globalidade da geografia física, jogam-se as bases de um procedimento
ao mesmo tempo lógico e específico que encontra sua origem no postulado de
1 A. REYNAUD – Épistémologie de la géomorphologie, TIGRE-Reims, 1975, T 23-24.
106 A geografia física desnaturada?

uma geografia física contra a natureza. O debate então pode ser circunscrito e
se resumir a três propostas:
– a geografia física é por seu objeto – o estudo do “meio natural”
- uma ciência da natureza que se desenvolveu à margem dos conceitos e dos
métodos naturalistas;
– a geografia física não é mais do que um subconjunto da
geografia, ciência iminentemente social, mas ela nunca escolheu se ligar a uma
metodologia social em função de objetivos sociais;
– a geografia física – Janus em situação bifrontal entre as ciências
da natureza e as ciências da sociedade – não resolveu aquilo que aparece
como uma contradição interna. Ela não superou seu problema de identidade,
conseqüentemente de método.

A natureza compartimentada ou as ocasiões perdidas

É inútil retraçar mais uma vez a história da geografia 2. Apenas serão


retidas as ocasiões perdidas, isto é, de nosso ponto de vista pessoal, estes alguns
momentos capitais ao longo dos quais a pesquisa geográfica inclinou... sempre
no mesmo sentido: o do afastamento em relação à natureza.

O impossibilismo vidaliano

Não houve simplesmente um mau começo? A geografia vidaliana,


que é uma reação salutar e fecunda contra a ecologia e a antropogeografia
mecanistas e sábias da Europa central, encontra-se por aí mesmo na origem
de uma ruptura praticamente definitiva com a tradição naturalista européia.
Em nome do humanismo, a geografia se separa da natureza. Freqüentemente
invocado e brilhantemente descrito, o “meio natural” de fato nunca é definido
nem estruturado, menos ainda conceitualizado, ainda que ele seja na maioria
das vezes visto e tratado como um conjunto coerente. O discurso geográfico
se nutre de felizes empréstimos da geologia, da climatologia, da botânica etc.
Ele nunca é nem totalmente errado, nem totalmente exato. Ele traduz com
facilidade, mas não sem contradições nem aproximações, as mil facetas do
espaço geográfico. A “geohistória” fará mais tarde dele seu pasto e ali encontrará
quase sempre o que ela procura. Além disso, a evocação regional nasceu,
colando à realidade graças à sensibilidade e às qualidades pessoais do geógrafo.
Esta técnica de inspiração literária fundamenta a unicidade do fato observado
e impede toda generalização, conseqüentemente qualquer pesquisa das leis ou
princípios que regem as relações de uma sociedade com seu meio geográfico. A
geografia regional foi constituída em bloco, mas ela não progredirá mais, pois
ela não repousa sobre nenhum método de análise. Vidal de la Blache e seus
sucessores “regionalistas” ou historiadores atribuíram uma missão impossível
ao ramo físico da geografia.
2 O. DOLLFUS – L´analyse géographique. Paris, PUF, 1971.
A geografia física desnaturada? 107

O seqüestro da herança

Enquanto a geografia regional se reproduz sem problema, mas


também sem inovação, Emmanuel de Martonne e seus sucessores, diretamente
inspirados pelo espírito de sistema e pelos modelos teóricos de W. M. Davis,
assim como pelos trabalhos de terreno dos geólogos franceses e americanos,
criam sobre o estudo unicamente do relevo um verdadeiro procedimento
científico baseado na descrição refletida, na tipologia e na generalização.
Desde a origem, a geomorfologia contém seu próprio método e sua própria
finalidade. Como tal, ela não tem mais diretamente seu lugar nem na análise
socioeconômica, nem mesmo na análise dos meios naturais. O erro foi não
concluir imediatamente as conseqüências disto no plano do desenvolvimento
da geografia. O extravasamento geomorfológico prejudica definitivamente o
projeto vidaliano e condena a geografia física a perder toda sua identidade e a
se dispersar. Não subsiste mais do que algumas disciplinas, certamente muito
vivas, mas heteróclitas, e geógrafos unidos por uma única herança comum: o
“espírito geográfico” que, por melhor que seja, não pode servir como método
nem para a pesquisa, nem para a pedagogia.

A lição de ecologia esquecida

Em torno dos anos 50, chega-se ao apogeu e ao bloqueio de um


sistema. Cholley tenta alargar as bases da análise dos meios naturais a partir
dos métodos da geomorfologia. O conceito de “sistema” de erosão permite
desenvolver a geomorfologia climática que repousa sobre a análise de
combinações primeiramente binárias (relevo-clima) depois ternárias (relevo-
clima-vegetação). Todavia, na prática do terreno, limitamo-nos a progressões
rigorosamente lineares do tipo “relevo-solo-clima-vegetação” que às vezes
lembram uma litania e ainda não constituem o esboço de uma combinatória.
Mas as preocupações biológicas não estão ausentes do espírito “sistêmico” de
Cholley. Ele é, depois de Max Sorre, um dos raros geógrafos a se dar conta que
a vida é um dos grandes sistemas que organizam a natureza. “Esta síntese, no
entanto, existe e é a vida que a realiza... as regiões naturais são essencialmente
de ordem ecológica... Há um método que os geógrafos deveriam considerar e
praticar mais assiduamente, é o método biológico” 3. A chave está na fechadura,
mas ela não foi girada. Esta solicitação não teve continuidade, pois os geógrafos
permanecem afastados material e intelectualmente das ciências naturais. As
exortações de um Max Sorre, o exemplo de um P. Marres, os encorajamentos de
um H. Gaussen ressoam no deserto biológico da geografia dos anos 1950-1960.
É bem verdade que os progressos da biogeografia são rapidamente integrados na
geomorfologia bioclimática da qual J. Tricart fixa os princípios e os métodos.
A biogeografia enquanto tal entra pela porta dos fundos, por exemplo, pelo
intermédio da palinologia com H. Elhaï.

3 A. CHOLLEY – La Géographie. Guide de l´étudiant, Paris, 1951.


108 A geografia física desnaturada?

A ruptura com a geografia humana

No entanto, a constatação do fracasso é difícil de estabelecer. Ele


ainda não é evidente para todo mundo. É verdade que o bloqueio é tanto
constitucional quanto metodológico:
- no plano do método, a geografia física ou mais exatamente a
geomorfologia dominante, não apenas não trás nada que possa ser diretamente
integrado à análise social, mas ainda faz pesar uma capa pseudodeterminista
tanto mais perniciosa pelo fato de ser implícita ou denunciada por aqueles
mesmos que se servem dela;
- no plano da instituição geográfica, os geógrafos físicos, isto é, os
geomorfólogos, ocuparam durante muito tempo uma posição dominante que
lhes permitiu impor seus métodos, seus pontos de vista sobre a política científica
e reproduzir o sistema para sua vantagem.
Um modus vivendi tornado necessário para defender posições
universitárias ameaçadas se estabeleceu então entre geografias cada vez mais
díspares. Os geógrafos se tornaram os locatários de um edifício em mal estado,
mas cuja fachada ainda inspira certa consideração. Alguns geomorfólogos
perceberam recentemente as conseqüências desta situação e se desviaram ou
para a geologia ou para a ecologia.

A natureza esquecida e a geografia física desorientada

A evolução da geografia física nunca se colocou em termos de


alternativa, pois faltava no começo um denominador comum aos dois
procedimentos, naturalista e social. Na ausência de um objetivo único claramente
delimitado, a pesquisa geográfica encontrou-se bastante desorientada, mas
nem por isso inativa. Nós a vimos empreender consecutivamente, e não sem
sucesso, outras problemáticas, por exemplo, na climatologia dinâmica ou na
geomorfologia litorânea. Estas novas pesquisas são praticadas sem se excluir, mas
sem realmente se combinar, e seu principal problema é menos o de se integrar
na geografia do que de se aproximar das outras disciplinas. A geografia física
então está em expansão, ela progride pelas margens. Assim, ela pode engordar
indefinidamente sem nunca questionar a totalidade e a hierarquia de seu
conhecimento. Esta construção madrepórica marca os limites da geografia física
enquanto ciência. A prática geográfica não é suficientemente sustentada por
uma reflexão organizada e contínua sobre a teoria, o método, a epistemologia.
Trata-se não apenas de um problema de organização interna, mas também de
relação com as disciplinas vizinhas. Nessas condições, a progressão contínua
por acumulação dos conhecimentos não constitui um progresso. O deslizamento
aos solavancos ao mesmo tempo para fora do campo naturalista e do campo
social confirma o postulado inicial:
– a geografia física em seu conjunto não corresponde atualmente
a um procedimento nem naturalista, nem social;
A geografia física desnaturada? 109

– ela oscila entre os dois, mas sem assumir uma função que
possamos qualificar de dialética no sentido mais amplo deste termo;
– ela não constitui então uma ponte entre as ciências da natureza
e as ciências da sociedade, no máximo uma passarela escondida, freqüentada
apenas pelos geógrafos e alguns historiadores.
A ausência de projeto físico global torna a natureza incompreensível,
sem graça e transparente. Na sua prática quotidiana, a geografia física contribuiu
assim sem querer para tirar a natureza da geografia e das ciências naturais. Uma
geografia física contra a natureza?

A natureza reencontrada

A partir dos anos 1960, a emergência da natureza na sociedade foi


irregular, mas irresistível. Já evocamos as formas e as modalidades diversas,
contraditórias e confusas, deste “retorno à natureza” que atinge todos os aspectos
da vida política, econômica e cultural. A análise se limitará aqui apenas ao plano
científico e metodológico, deixando claro ainda que se trata de um aspecto
limitado e artificialmente isolado de um fenômeno mais amplo que os cientistas
não apenas acompanharam, mas também com muita freqüência precederam
com seus trabalhos, suas reflexões e suas intervenções no plano político.
No ponto de partida da pesquisa científica, há uma espécie de
“mutação” epistemológica. É bem verdade que não “matamos Descartes”,
mas não trabalhamos mais exclusivamente com o quebra-cabeça cartesiano e
positivista, e quando ele é destruído, não procuramos reconstruí-lo. Podemos
enumerar apenas brevemente os novos “ramos” do saber: a biologia e, mais
tarde, a ecologia demonstram a unidade funcional da natureza do átomo à
biocenose mais complexa. A termodinâmica e a cibernética fornecem modelos
analógicos indispensáveis. A análise sistêmica permite refundir e reorganizar
os conhecimentos dispersos4. O estruturalismo lingüístico e antropológico
estabelece pontos inimagináveis entre as ciências do homem e as da natureza.
Os filósofos e os sociólogos interrogam a natureza para melhor situá-la no
processo da produção econômica e da reprodução social.
Teríamos nesse caso para os geógrafos mais um encontro não
realizado?
É bem verdade que a natureza está um pouco demais na moda, e é
evidente que o esnobismo ecológico atinge o auge. Mas este excesso constitui
em si mesmo um tema possível de reflexão. Certos geógrafos enfim admitiram
que era necessário mudar de procedimento e de método, que sua participação
nessas novas formas de pesquisa de inspiração ecológica não implicariam em
nenhuma renúncia nem em nenhum servilismo, e que sua colaboração devia
ser ao mesmo tempo construtiva e crítica.

4 Jean-Louis LE MOIGNE – La théorie du système général. Théorie de la modélisaation. PUF. Paris,


1977. 258 p.
110 A geografia física desnaturada?

A natureza conceitualizada e a renovação da pesquisa naturalista: ecossistema


e geosistema

Bastará que seja lembrado aqui o desenvolvimento da ecologia de


síntese e separar dela o conceito renovado e enriquecido de ecossistema cuja
eficácia teórica e prática não levanta nenhuma dúvida 5. É preciso ver antes
de tudo um desbloqueio geral do conhecimento naturalista: as disciplinas
saem de seu isolamento, o método é reestruturado em um conjunto organizado
(níveis de integração dos “objetos” biológicos da célula até a biosfera, ciclos
dos elementos, situação do metabolismo dos seres vivos, reconstituição das
cadeias tróficas, cálculo dos fluxos energéticos e das diferentes formas de
produtividade etc.). O ecossistema não tem com isso a pretensão de varrer e de
substituir os procedimentos setoriais mais clássicos. Muito ao contrário, ele criou
para si, entre estes diferentes aspectos da pesquisa, uma complementaridade
das estratégias que assegurou o salto para frente das ciências naturais. Com
isto, mesmo trabalhos tradicionais, como a sistemática e a taxionomia, são
relançadas e renovadas. Mais que uma pesquisa específica e autônoma, a
ecologia de síntese aparece então como um sistema de reflexão, de referência
e de controle, que situa cada procedimento setorial em uma estrutura inter-
relacional dando à produção naturalista uma coesão até aqui desconhecida.
Ao conceitualizar a biosfera, o ecossistema tornou-se, em relação à natureza, o
modelo integrador dominante que supera cada vez mais amplamente o âmbito
da pesquisa naturalista clássica.
O ecossistema resolveu a análise integrada da biosfera ao mesmo tempo
nos planos teórico e prático. Na entrada do sistema, estão as plantas verdes e a
fotossíntese que, pela assimilação clorifiliana, determinam o funcionamento
complexo e hierarquizado do encadeamento trópico. O circuito da matéria
viva é estabelecido e cientificamente dominado. Este esquema explicativo
foi constituído por biólogos e para uma finalidade biológica. É bem verdade
que ele integra e contabiliza em seu funcionamento elementos não vivos. Mas
estes são naturalmente rejeitados para a periferia do sistema. Eles estão então
subordinados, simplificados, às vezes mutilados e até esquecidos. É o caso,
por exemplo, do conjunto dos processos geomorfogênicos que, no entanto,
interferem com os seres vivos, mas em níveis temporais e espaciais ainda pouco
conhecidos dos ecólogos. O ecossistema é uma abordagem ecológica da natureza,
ele não é toda a natureza, e não devemos desviá-lo de seu objetivo biológico.
Os geógrafos soviéticos, no começo mais ou menos inspirados pela
ciência natural da Europa Central (Landschaft), mas, sobretudo encorajados
pela política de reconhecimento e de valorização das terras virgens, foram
levados a construir um método de pesquisa que lhes permitisse apreender
rapidamente estes novos territórios na sua integralidade. Nos últimos vinte
anos, as diversas tentativas de análise integrada do complexo físico-geográfico
deram origem a uma potente ferramenta teórica e metodológica que põe em
jogo meios técnicos sofisticados. Esta “ciência do geossistema” (Sochava)
repousa totalmente sobre a medida dos balanços geoquímicos e dos fluxos
5 Ver mais particularmente E. P. ODUM. Écologie. New York, 1975 – R. MARGALEF, Ecologia.
Barcelona, 1974 – P. DUVIGNEAUD. La Syntèse écologique. Paris, 1974.
A geografia física desnaturada? 111

energéticos globais. Existem numerosas fases intermediárias em que ocorrem


estudos qualitativos e quantitativos, estacionais ou “expedicionais” (survey),
estruturais (geohorizontes) ou evolutivas (etologia dos geosistemas) 6.
O geosistema é então uma conceitualização da epiderme terrestre,
ali onde se encontram, se misturam e interferem a litomassa, a aeromassa,
a hidromassa e a biomassa. Ele contém então o ecossistema. Todavia, este
não lhe é subordinado sob o plano conceitual, pois se trata de um outro
procedimento científico. O geosistema não é uma conceitualização da
natureza, mas unicamente do espaço geográfico material, quer este seja ou não
modificado. Além disso, ele continua sendo um conceito naturalista no sentido
restrito. Enfim, por sua origem histórica, seu conteúdo, a metodologia que ele
desenvolve, ele constitui um conceito geográfico... ainda que pouco conhecido
e praticamente inutilizado pelos geógrafos franceses 7.
A geografia física encontra ao mesmo tempo uma unidade e um
estatuto científico. O geossistema lhe fornece um conceito integrador, a
análise sistêmica um método para apreender os sistemas de inter-relações que
dominam a evolução dos complexos naturais. A separação entre vivo e não
vivo não é evidentemente suprimida, mas ela é assumida pela continuidade dos
fluxos de matéria e de energia. Além disso, não existe nem contradição nem
mesmo concorrência entre a análise geossistêmica e as pesquisas setoriais tais
como a geomorfologia, a climatologia, a biogeografia. Existe, ao contrário, todo
um sistema de colaboração a ser estabelecido em diferentes níveis teóricos e
práticos. Na verdade, a análise global e as análises setoriais deveriam funcionar
no âmago da geografia física reencontrada da mesma forma em que a síntese e
a análise se combinam em todo raciocínio científico.
A atitude globalista que presidiu o estabelecimento dos métodos
ecossistêmico e geossistêmico representa uma aquisição sem precedente no
domínio das ciências da natureza. Por um lado, ela quebrou a compartimentação
do conhecimento e o fechamento psicossociológico do pesquisador; por outro
lado, ela centrou novamente a problemática naturalista sobre os estudos
de inter-relações até aqui muito negligenciados e permitiu o interesse por
problemas menos sofisticados, mas freqüentemente mais importantes no
plano ecológico e social. Mas seria perigoso fazer disso um fim em si mesmo. A
pesquisa prioritária da integração dos elementos ou dos mecanismos naturais
não releva um globalismo e muito menos uma filosofia holística qualquer. Ela
constitui uma fase da pesquisa que foi desencadeada pela crise das disciplinas
e das pedagogias setoriais. A análise integrada participa do movimento juxta,
pluri ou interdisciplinar ao mesmo tempo em que tenta superá-lo e organizá-
lo sobre temas e objetivos precisos. De qualquer forma, isto é um retorno da
pesquisa naturalista também, com toda a clareza, para os procedimentos setoriais
os mais especializados, pois estes últimos não serão mais separadas nem da
natureza, nem da sociedade.

6 N. BEROUTACHACHVILI e J. L. MATHIEU – L´Éthologie des géosystèmes . L´espace


géographique, nº 2, 1977.
7 G. BERTRAND – Paysage et géographie physique globale. Revue Géogr.des Pyr. et du S.O., T.
39, 1968. Ver também os trabalhos de J. F. RICHARD, por exemplo, « Problèmes de géographie du
paysage”. ORSTOM, 1972, 98 p.
112 A geografia física desnaturada?

A ecologia, ciência social?

Não basta que a geografia física se reestruture enquanto procedimento


naturalista coerente para que o projeto geográfico global volte a ser subitamente
viável, fiável, competitivo. Cada dia mais aumenta a distância conceitual entre
o que permanece de geografia física e uma geografia humana que acreditou
descobrir alhures outras urgências, em particular por via da “New Geography”.
A geografia certamente perdeu uma de suas especificidades – e certamente
sua melhor vantagem - que era de querer explorar a relação do social com o
natural. O vazio assim criado se acha indiretamente, mas muito rapidamente,
preenchido pela ecologia.
Ultrapassando seu campo de origem - aquele da vida vegetal e
animal – a ecologia científica então deslizou para o campo da análise social. A
aplicação do método ecológico impôs-se como uma das prioridades da pesquisa
fundamental e aplicada. Um recente “recenseamento das diversas abordagens
ecológicas” põe em evidência a força e a diversidade desta penetração que
atinge agora todas as ciências humanas e sociais sem exceção 8. Levantar um
primeiro balanço pode parecer prematuro. Todavia, já podemos distinguir
algumas grandes tendências que não serão sem conseqüências no futuro
imediato da pesquisa econômica e social. A ecologia científica aumentou e
enriqueceu fortemente o campo da análise social. As ciências da natureza e as
ciências da sociedade se aproximam, as passagens nos dois sentidos se tornam
mais numerosas e mais freqüentadas. Por exemplo, o melhor conhecimento
das leis naturais já permite compreender melhor certos mecanismos sociais,
generalizá-los e até descobrir outros novos. Não nos estenderemos aqui sobre
a irreversibilidade da contribuição ecológica nem sobre seu caráter altamente
positivo. Do mesmo modo, negligenciaremos tudo o que releva simplesmente
da moda, todas as falsas aparências, aquilo que G. Sautter qualifica de “simples
montanhas ecológicas”. Resta o método ecológico em si e as modalidades de sua
aplicação aos problemas sociais. Deste ponto de vista, começamos a perceber
certo desencantamento. “Por mais brilhantes que sejam certos trabalhos
produzidos nesta linha, por mais interessantes as descobertas, eles não trazem
a prova e não provocam a convicção de que a relação recíproca dos grupos
humanos com seu meio possa ser mais bem apreendida por uma abordagem
ecológica no sentido restrito do que seguindo os caminhos mais clássicos9. Esta
ineficácia relativa releva na verdade uma confusão cada vez mais evidente
entre a função metodológica e a finalidade teórica da ecologia quando esta
última é transposta para o campo social. Por um lado, a ecologia pode se tornar
uma ciência social, ou até mesmo “a” ciência social? Por outro lado, em quais
condições as ciências sociais podem “ecologizar-se”? Estas duas proposições não
são idênticas, nem paralelas, nem mesmo complementares. No estado atual do
conhecimento, elas são contraditórias e irredutíveis (aparência ou realidade?). A
pesquisa social contemporânea está em larga parte amarrada por este nó górdio.
A contradição é ao mesmo tempo de ordem teórica e metodológica 10.
8 Ch. BLANC-PAMARD – Recension des diverses approches “écologiques » des systèmes
géographiques et des sociétés. Paris, Maison des Sciences de l´homme, 1977, 99 p.
9 G. SAUTTER in prefácio Ch. Blanc-Pamard, cf. nota precedente.
10 O. DOLLFUS. Anthropologie et Sciences naturelles. – L´Espace géographique, 1977.
A geografia física desnaturada? 113

A Ecologia Científica Não É Uma Teoria Da Natureza

Ela não é mais do que um método científico que tem por objetivo
analisar os fenômenos vivos em seu meio ambiente. A confusão entre teoria e
método é bastante freqüente e às vezes voluntariamente sustentada. Ao passar
para o campo social, a ecologia deve então conservar seu estatuto de método
e não erigir-se implicitamente em uma teoria vagamente naturalista, a menos
que se trate de uma opção filosófica claramente afirmada. Além do mais, o
método ecológico revela-se imperfeito, pois é incompleto. Ele pode apreender
apenas o aspecto biológico da natureza. Ele deve então ser comparado e fundido
com o método geossistêmico tal como foi anteriormente exposto. O dualismo
ecologia-sociedade sobre o qual repousa uma parte da problemática social atual
é apenas uma falsa alternativa já que o primeiro termo é inadequado em relação
à natureza que ele deve representar.

O método ecológico não é “neutro”

No campo das ciências sociais, existe uma tendência excessiva a confundir o


ecossistêmico, que é uma análise de sistema com finalidade biológica ou biogeoquímica,
com a análise de sistema propriamente dita que pode ser considerada como uma simples
ferramenta de trabalho transferível de um campo científico para outro. No entusiasmo
geral pelo meio ambiente e pela “natureza”, houve arrebatamento e submersão com
demasiada freqüência. Menos bem armadas no plano metodológico, as ciências sociais
se deixaram invadir por uma linguagem, conceitos, modelos e técnicas que lhes eram
estranhos e freqüentemente inadequados. Por exemplo, o desejo de aplicar o método
de cálculo dos balanços energéticos a um sistema urbano releva da caricatura social e do
pior dos reducionismos. É o triunfo dos procedimentos analógicos, cujos perigos foram
mostrados por H. Laborit, os quais fazem analisar uma comunidade de cidadezinha como
uma colônia de ouriços do mar. As aproximações e os atalhos indo da termodinâmica
até a organização urbana, passando pelo metabolismo das plantas com clorofila, podem
ser particularmente enriquecedores com a condição de dominar todas as etapas e de
saber reconhecer certos limites de funcionamento. Determinismo, funcionalismo e
organicismo florescem sem um verdadeiro meio de controle. A própria cibernética e
a referência a sistemas fechados pode ser perigosa quando se passa sem precaução para
sistemas sociais abertos por definição. Que significa então a entropia no antrópico?
Esta situação é ainda mais prejudicial para o procedimento social pelo fato de que o
enriquecimento metodológico tem por corolário um empobrecimento conceitual na
medida em que a ecologia favorece o desenvolvimento de problemáticas mecanicistas
e deterministas às vezes muito rudimentares. M. Godelier, ao prestar contas da ecologia
americana (R. Rappoport, P. Vayda) observa que “esta abordagem forneceu múltiplas
informações, mas sua fragilidade teórica é a de privilegiar como tipo de contradição
explicando o movimento das sociedades as contradições entre quantidades (quantidades
de homens, quantidades de recursos), e de não prestar atenção às contradições próprias
às relações sociais. Por aí, seu materialismo se revela insuficiente para prestar contas
dos fatos históricos” 11.
11 M. GODELIER – L´anthropologie, science des sociétés primitives, d´après Ch. Blanc-Pamard (note
1, p. 24), p. 21
114 A geografia física desnaturada?

A reutilização direta do método ecológico nas ciências humanas e sociais


sem reflexão prévia sobre o objetivo final, a teoria e os conceitos, provoca atualmente
um inevitável laxismo e mantém uma certa confusão. Entre a ecologia científica e
as ciências sociais subsiste um hiato. Neste campo, a geografia se beneficia de uma
experiência certa e de uma certa técnica, como o destacou recentemente P. Gourou.
Então, a geografia parece ter um papel primordial a desempenhar. Sob a condição de
propor um novo procedimento.

A geografia reencontrada?

“Eu estou cada vez mais persuadido que a ciência antropossocial precisa articular-se com a
ciência da natureza e que esta articulação requer uma reorganização da própria estrutura do
saber”
E. Morin. La nature da la nature. 1977, p. 9

No plano da teoria epistemológica, devemos, seguindo E. Morin e S.


Moscovici, retomar a natureza na base, isto é, a montante da ecologia e da geografia física,
que apenas podem propor metodologias por certo indispensáveis, mas intrinsecamente
inadequadas a tal problemática. A pesquisa das leis físicas não deve fazer esquecer que
é o sistema de produção e as forças produtivas que dão à natureza sua existência social,
ou seja, ao mesmo tempo sua realidade cultural no sentido mais amplo e seu potencial
econômico. Este postulado fundamenta a teoria social e lhe subordina o método
ecológico. Este se encontra como que compartimentado pelo procedimento social.
A racionalidade econômica e cultural inclui os esquemas ecológicos e não o inverso.
Neste ponto, nos unimos a certo número de etnólogos e de antropólogos, tais como J
Barrau e M. Godelier, que fizeram o esforço de reinterpretar a ecologia no plano geral do
conhecimento científico e não apenas em um quadro disciplinar estreito 12. Isto equivale
a inverter a problemática que postula que a ecologia é uma ciência social e, portanto,
deve ser integrada no processo da pesquisa social no sentido mais amplo. Este domínio
social da ecologia equivale a construir cenários socioecológicos rigorosos baseados
sobre a unidade de ação (ou de produção), de lugar (ou de espaço) e de tempo (ou de
duração de um sistema ou de uma técnica de produção). Não encontramos dessa forma
a monografia geográfica tão decantada e, no entanto, tão indispensável para a pesquisa
social? Mas esta monografia renovada seria ao mesmo tempo sistemizada e sistematizada.
Assim, ela responderia às pesquisas em andamento dos etnólogos e dos sociólogos, tal
como M. Jollivet. Esta reflexão teórica acompanha o desenvolvimento de toda uma
prática ao mesmo tempo geográfica e ecológica que é parte integrante da pesquisa do
CIMA-ERA 427. A partir de um procedimento temático estritamente naturalista, isto
é, a análise integrada do meio natural pelo método do geosistema, surgiu uma espécie de
“deriva” social e histórica comportando vários tipos de pesquisa: estudos paisagísticos,
ecologia histórica e “arqueologia da paisagem”, pesquisas socioecológicas aplicadas à
transformação em zona de montanha, realização de novas “monografias geográficas”,
etc 13. É apenas mais um procedimento entre outros e ele não se basta.
12 M. GODELIER – Reproduction des écosystèmes et transformation des systèmes sociaux. CFER,
CNRA, 1977.
13 Não desenvolveremos aqui estes aspectos da pesquisa, pois, já foram contemplados com diversas
publicações. G. BERTRAND – A “Archéologie du paysage dans la perspective de l´écologie historique
». Colloque Archéologie du Paysage. Caesarodunum. Tours, 1978, nº 13, p. 132-138.
A geografia física desnaturada? 115

A natureza e a geografia física conheceram então paralelamente os


mesmos avatares. Perdidas e compartimentadas no plano do conhecimento,
elas são agora reencontradas e reestruturadas, o que parece indicar que elas são
menos estranhas uma para a outra do que parece. A geografia física desnaturada
não seria mais do que um grosseiro contra-senso... Todavia, ele durou mais de
116 A geografia física desnaturada?

meio século e não se tem certeza de que todos seus efeitos estejam dissipados.
A geografia física atual está felizmente em crise e em desordem, por
mais que isto desagrade aos conformistas que se auto-satisfazem com sua rotina
e se auto-reproduzem. Liberada de uma grande parte da geomorfologia e dotada
de uma nova metodologia, a geografia física pode elaborar novos projetos e,
sobretudo, abrir-se para o exterior sem se dispersar. Enfim, a geografia pode
dialogar com a ecologia. É na confluência dessas duas correntes, quando suas
águas se tiverem misturado por muito tempo, que será elaborada esta nova
dialética da natureza, na qual o homem e a sociedade serão partes atuantes.
117

A NATUREZA NA GEOGRAFIA:
UM PARADIGMA DE INTERFACE

O debate geográfico sobre a natureza é consubstancial à natureza da


geografia. Sempre presente, mas sempre mascarado. Como se ele ameaçasse o
edifício na sua base. Se um colóquio1 dedicado à geografia e à sua prospectiva
trata muito especialmente e em destaque da natureza, isto ocorre ou para se
livrar dela, a priori e definitivamente, ou porque das perguntas e das respostas
dependem, em uma larga medida, o futuro e a orientação geral da disciplina. Esta
é a alternativa. Eu vou dar minha posição pessoal neste debate, me apoiando
nos quinze anos de experiência do CIMA-URA 366 do CNRS da Universidade
de Toulouse-Le mirail.
Nos passos de Edgar Morin, que eu cito: “eu estou cada vez mais
convencido que a ciência antropossocial precisa articular-se com a ciência da
natureza e que esta articulação requer uma reorganização da própria estrutura
do saber”. Questionamento ambicioso, uma vez que ele diz respeito ao mesmo
tempo à teoria e à prática, ao método e à epistemologia, e que só pode ser
abordado na sua globalidade, sob a forma de um paradigma reconhecidamente
provisório.

A questão: a natureza não é mais o que ela era

Em menos de duas décadas, a relação da sociedade com a natureza


mudou; o conhecimento científico da natureza e a própria natureza evoluíram.
Foi uma revolução cultural, ideológica e científica, econômica e social. Tal é
a origem do mau funcionamento da geografia atualmente.
As ocasiões perdidas de uma “geografia física contra a natureza”
A história da geografia física é marcada por:
- encontros fracassados: com a geografia alemã de tradição naturalista
(C. Troll), com seus próprios “fundamentos biológicos” (M. Sorre), com a
ecologia americana (E. P. Odum), com as pesquisas sobre o meio ambiente e
a paisagem;
- más escolhas: ruptura de fato com a geografia humana e regional,
setorização (climatologia, biogeografia etc.) e invasão da geomorfologia;
1 Conferência pronunciada em 12 de dezembro de 1990 no Colóquio sobre “La Géographie: situer,
évaluer, modéliser”. Grandes colóquios de prospectiva do Ministério da Recherche et de la Tecnologie,
Paris.
118 A natureza em geografia: um paradigma de interface

- atrasos acumulados: em particular na reflexão epistemológica


e metodológica que é praticamente inexistente no conjunto da geografia
física.
Mas rejeitar a geografia física com seus avatares, não deve conduzir,
como foi infelizmente o erro de alguns geógrafos apressados, a eliminar uma
natureza onipresente. Minha intervenção não será então nem uma defesa,
nem uma ilustração da geografia física (4 e 6). O debate é de outra natureza:
é o da dimensão neutral de uma geografia reconhecida como ciência social do
território.

A emergência, no coração do social, de uma natureza “regenerada”

- a natureza domesticada. Do século XVII à metade do século


XIX, a natureza foi geográfica. A descoberta de novos mundos, de recursos
desconhecidos e aparentemente inesgotáveis, de paisagens exóticas, funda
uma ciência geográfica, imperial e imperialista, reconhecida como o estudo das
relações entre os homens e os meios naturais. Foi a idade de ouro da geografia
clássica; aquela de uma adequação entre uma ciência pedagógica e o estado
de um mundo;
- a natureza apagada. Com a revolução industrial e suas bases
ideológicas e científicas (entre as quais a filosofia positivista e de tendência
marxista), a natureza aparentemente submetida e banalizada pela economia
triunfante, desmembrada pela divisão do trabalho científico, apagou-se diante
da preponderância, da violência das relações sociais. A geografia vacila sobre
seus fundamentos naturais e se torna humana e econômica, depois social e
cultural.
- a natureza reencontrada. Hoje, os amanhãs não sorriem. Alguns
recursos essenciais se degradam ou se esgotam; os grandes ciclos naturais estão
ou parecem perturbados; as paisagens familiares desaparecem para sempre. A
natureza natural não é mais um dado certo. Está emergindo uma outra natureza,
forte, mas finita; um universo natural, coberto de crises, de catástrofes e de
irreversibilidades; um conjunto frágil que apreendemos com um olhar novo,
cheio de admiração e de temor, e um pensamento novo, original e audacioso.
A ecologia acaba de reinventar a natureza e de redesenhar uma economia
política do planeta.

A natureza entre a ecologia e o meio ambiente

- a natureza é a ecologia. Em vinte anos, a ciência ecológica se impôs


ao conjunto das ciências da natureza e ela invade hoje amplamente o campo das
ciências sociais. A ecologia deve ser considerada, ainda atualmente, senão como
a ciência única da natureza, pelo menos como o indispensável denominador
comum para globalizar e conceitualizar, sistemizar e modelizar, diferenciar
e diversificar, enfim mundializar as abundantes e heteróclitas pesquisas
A natureza em geografia: um paradigma de interface 119

naturalistas. Para isso, o conceito de ecossistema é a extraordinária ferramenta


modelizadora. A geografia não pode ignorar a ecologia. Ela pode apenas inspirar-
se nela em todos os níveis da construção científica, e não somente sob aspecto
de empréstimos ocasionais ou de colagens aproximativas. Mas o geógrafo deve
também deixar claro sua insatisfação, até sua desconfiança.
A ecologia científica, apesar de sua complexidade e de seus princípios
inclusivos, é uma ciência unívoca, com finalidade biológica que não pode
pretender responder à análise de todos os aspectos da natureza e menos ainda
dos fatos sociais. O sistema ecológico, sempre difícil de localizar, marginaliza os
processos abióticos e se presta melhor à análise das dinâmicas internas do que
à consideração das evoluções que se inscrevem todas em uma duração que, na
maioria das vezes, é a da história das sociedades e dos meios que o naturalista
ignora ou minimiza.
Além disso, a pesquisa ecológica é equívoca, tanto na essência
como pela sua evolução: por essência, porque se trata de nada menos do que a
emanação científica do biologismo, até mesmo do organicismo; por evolução,
com a primeira derivação de uma antropologia escorada pela sociobiologia, e
uma segunda derivação, totalmente atual, em direção aos ecologismos políticos.
Mas não devemos nos enganar de adversário. A ecologia científica não é mais
do que o aspecto racional de um movimento histórico mais amplo, de uma
ideologia dominante, não apenas da natureza, mas também da sociedade e
que precisamos admitir ou combater como tal. Então, é possível reconhecer a
superioridade metodológica da ecologia científica e usar a complementaridade
com a geografia para abordar o problema do meio ambiente.
- não existe “ciência”, singular ou plural, do meio ambiente. A crise
contemporânea da natureza fez da pesquisa sobre o meio ambiente uma moda e
uma necessidade. O meio ambiente é, antes de tudo, um imenso questionamento,
global e confuso, quase metafísico, que a sociedade faz a si mesma e, mais
precisamente, ao conjunto da comunidade científica. O meio ambiente é, em
resumo, o que sobra quando as diferentes ciências não esqueceram nada em
seus respectivos domínios, ou seja, todas as interconexões, e mais precisamente
aquelas que fazem interagir os fatos naturais e os fatos sociais. Enfim, trata-se
menos de uma ciência do que de uma consciência, coletiva e multiforme, à qual
cada disciplina é obrigada a responder sob pena de desqualificação. A geografia
é uma delas, e certamente uma das mais bem situadas.

Uma epistemologia: não há geografia sem paradigma da


natureza

Os postulados fundadores

- não há território sem terra. Hoje, a geografia se reconhece e é


reconhecida, sem ambigüidade, como uma “ciência social”. Isto equivale a
lembrar com ênfase o que muitos geógrafos esqueceram: a virtude teleológica
de um sistema geográfico voltado para o social. Ao propor definir, por amplo
120 A natureza em geografia: um paradigma de interface

consenso, a geografia como “ciência dos territórios”, os animadores deste


colóquio admitem, então, a priori, e pelo menos implicitamente, que existe em
alguma parte na análise geográfica uma dimensão natural, pois não há território
sem “terra”, ou seja, sem espaço, sem solo, sem ar, sem água, sem vida. É através
da terra e do território que esta problemática da natureza torna-se problemática
social, interna na geografia, portanto submetida a escolhas e a hierarquias que
a limitam e a transcendem ao mesmo tempo.
- a geografia não é toda a natureza. A geografia não pode pretender,
como ela o fez ao longo dos séculos passados e ainda na maior parte de nossos
manuais de ensino, transmitir a totalidade do fato natural, sob todos os aspectos
e em todas as escalas de tempo e espaço. Por exemplo, em todos os níveis de
ensino, é preciso, por um cuidado com a eficácia como com a deontologia,
diferenciar bem aquilo que é produto direto e efetivo da pesquisa em geografia
e o que releva da simples compilação e vulgarização (por exemplo, a tectônica
das placas ou o “buraco” de ozônio).
- não há natureza sem geografia (7). As contribuições passadas e atuais
da geografia para o conhecimento da natureza são bem conhecidas: domínio
inigualável, teórico e, sobretudo, prático, do espaço, apoiado pela representação
cartográfica e a familiaridade com o jogo das escalas espaciais; contribuição para
um tipo de abordagem antropológica da natureza e, acima de tudo, apropriação
por muito tempo exclusiva da análise das formas do terreno por meio da
geomorfologia. A geografia continua com uma boa carta no jogo.

Uma estratégia de interface

- uma dimensão naturalista no campo das ciências sociais. O domínio


da complexidade e da diversidade do objeto analisado aqui se reveste de uma
dimensão original. É preciso ultrapassar um limite epistemológico maior, aquele
que separa as ciências da natureza das ciências sociais. Neste campo ainda
mal determinado, permanecemos submergidos pelo número e diversidade dos
estudos monográficos de origem geográfica ou etnológica que geralmente não
apresentam nenhuma dimensão metodológica ou teórica reproduzível. Mesmo
as pesquisas mais recentes e melhor construídas, como aquelas conduzidas por
PIREN ou l’ORSTOM, contentam-se com tratar de situações particulares em
um cenário mais pragmático do que conceitual.
- “uma natureza entre a unidade da ciência e a pluralidade das
culturas”. Foi por ter esquecido esta dualidade, que não é, evidentemente,
reduzível à separação entre as ciências da natureza e ciências da sociedade, que
os especialistas da geografia física clássica se submeteram aos estudos “objetivos”
de tipo naturalista e só forneceram aos especialistas da geografia humana ou
regional produtos “acabados” e “insignificantes”, aperitivos indigestos ou
“quadros geográficos” imutáveis. Por um lado, é preciso exercitar-se em objetivar
a natureza para compreender sua estrutura e funcionamento. Por outro lado, é
preciso fazer a natureza passar através do filtro dos valores e das representações.
Um não pode ocorrer sem o outro.
A natureza em geografia: um paradigma de interface 121

- a reversibilidade do processo científico: não apenas as sociedades em


seus meios, mas também os meios nas suas sociedades. Por um lado, é preciso,
de forma bem clássica, resituar as sociedades nos meios ditos naturais que
elas conhecem e utilizam em função de seu sistema de produção econômica e
cultural. Por outro lado, é preciso também resituar os meios ditos naturais nas
sociedades que os utilizam, ou que os utilizaram. Eles aparecerão então em sua
plena realidade, ao mesmo tempo como produtos da natureza e da sociedade.

Uma teoria: a antropização da natureza

A natureza na geografia: do espaço social ao espaço antropizado

A natureza não pode mais continuar a ser este “obscuro objeto


de desejo” que fascina os geógrafos sempre sem persuadi-los de levá-la
cientificamente em conta. Sem ignorar a elevação metafísica de tal debate,
pode-se, em primeira análise e com um cuidado de pragmatismo, limitar-se a
algumas petições de princípio destinadas a delimitar um campo de intervenção
geográfico e, sobretudo, a finalizá-lo.
A natureza, considerada aqui como o universo das formas e dos
processos físico-químicos e biológicos, apenas se reveste de uma significação
geográfica em termo de espaço social, ou para retomar a expressão de L.E.
Hamelin, de espaço “ecúmeno”. A natureza na geografia é primeiramente
espaço, um espaço cada vez menos natural e cada vez mais antropizado.
O qualificativo de antrópico define classicamente a ação direta ou
indireta do homem e das sociedades humanas sobre a natureza (exemplo:
a erosão antrópica). Eu proponho ampliar o conceito até a totalidade da
combinatória natureza/sociedade. O antrópico é o conjunto das formas e a
antropização é o conjunto dos processos materiais e imateriais que nascem da
interação entre os sistemas sociais e os sistemas naturais. É toda a natureza que
é, direta ou indiretamente, integrada na análise geográfica: a erosão dos solos,
assim como a representação da paisagem, o estresse de origem bioclimática,
assim como a floresta considerada como espaço de laser ou de produção de
matéria lenhosa.

A dimensão geográfica da natureza

Os exemplos bem-sucedidos de passagem do natural para o antrópico


não faltam na pré-história, na arqueologia, na história, na etnologia, até na
ecologia. Na geografia, a situação é muito mais confusa e como que amarrada.
Bastaria, no entanto, entender-se sobre alguns princípios simples, definindo
ao mesmo tempo a especificidade e o interesse geral do procedimento
geográfico.
122 A natureza em geografia: um paradigma de interface

Uma natureza socializada, mas também humanizada e... biologizada

A finalidade social é a base do sistema de interpretação geográfica da


natureza. Mas ela não basta. A natureza na geografia é também esta parte de
natural biológico que cada indivíduo carrega em si e que influi sobre sua relação
com o meio ambiente. Nós estamos no limiar da sociobiologia. Isto não é mais
uma razão para esvaziar a questão. É de fato ineficaz tratar a natureza na geografia
se, por um excesso de prudência, deixarmos de lado esta dimensão biológica
da qual Max Sorre tinha proposto os primeiros fundamentos, adequados à sua
época, mas prescientes. Do mesmo modo, a análise das representações das
paisagens reintroduz o indivíduo, e sua sensibilidade, no processo social. O
alargamento do campo geográfico para o biológico e o cultural devolve então,
na natureza, todo o lugar ao indivíduo e ao individual.

Uma natureza globalizada, mas onde o sistema não apaga o elemento

Este é bem o compartimento que tornou socialmente inoperante a


geografia física e a precipitou em uma espécie de suicídio. Aliás, a globalização-
integração não é um fim em si mesmo. Ela só se justifica em relação a uma
sociedade que não é nunca diretamente confrontada com uma cuesta ou com
uma formação vegetal, mas com um meio geográfico complexo mais ou menos
antropizado. Esta apreensão de conjunto indispensável não deve impedir idas
e voltas do sistema aos elementos que o constituem. Ela constitui até uma
referência permanente e operacional para as análises setoriais (ex.: a vegetação
no geossistema).

Uma natureza territorializada e não apenas espacializada

O espaço é uma palavra-valise e um conceito pouco operacional do


qual os geógrafos abusaram. Ele apenas assume sua dimensão geográfica quando
ele se torna terroir ou território, ou seja, quando ele se carrega de significação
social.

Uma natureza historiada e não apenas temporalizada

Este é um dos campos de pesquisa em que a contribuição da geografia


pode ser mais significativa em relação à ecologia e às outras ciências da
natureza:
- não podemos mais hoje separar a análise do espaço daquela do tempo
e em particular daquela da duração dos fenômenos que até aqui foi esquecida
ou tratada de modo rudimentar (cf. a noção de série na fitogeografia ou de fase
na pedologia);
A natureza em geografia: um paradigma de interface 123

- a natureza não pode mais ser apreendida a partir de cronologias


estritamente naturalistas. O movimento da natureza deve ser inscrito no
movimento da história humana e vice-versa. A natureza tal como é vivida pelas
sociedades não cessou de evoluir no fim das grandes glaciações do qüartenário
e a pequena era glacial não é certamente a única catástrofe natural dos tempos
históricos. Começamos a melhor apreender a evolução natural e/ou antrópica
da maioria dos grandes meios geográficos. Além disso, o tempo natural não
é o tempo social e os dois devem ser constantemente confrontados. Nesta
perspectiva, a análise dos ritmos, em particular de ordem biológica, resta
inteiramente por ser reconsiderada. É preciso também que o geógrafo reaprenda
a circularidade do tempo, das fenologias naturais e dos ritmos calendários.
Hoje, na geografia, não existem mais estações! Como falar de meio ambiente
e de paisagem se perdemos o sentimento da duração e esquecemos a cor do
tempo?

Uma natureza patrimonializada... Para ser mais bem atualizada

Recusando toda visão saudosista e conservadora da natureza, é preciso


desenvolver uma análise patrimonial de tempo longa, isto é, considerar que a
natureza, tal como ela se apresenta hoje, é de fato um sistema físico-químico
herdado que continua a evoluir e cuja regulagem é, em grande parte, baseada
em suas capacidades de memória, de estocagem e em fenômenos de inércia e
de histerese saídos da história dos meios ambientes paleolíticos. Além disso,
não podemos trabalhar com o meio ambiente sem pensar no futuro, imediato
ou distante, isto é, sem cenários prospectivos.

Um método: dominar a complexidade e a diversidade

Não se pode hesitar muito tempo entre o inconveniente de propor


um esboço provisório e a necessidade de apresentar um método sem o qual
tudo o que eu propus não passa de um discurso entre outros. A exploração
geográfica da interface natureza-sociedade exige um método de complexidade
e de diversidade. Ele se situa no encontro de vários percursos metodológicos
e deve responder a princípios contraditórios: evitar todo globalismo ambíguo,
evitar ser unívoco e linear, permanecer didático para ser operatório.

Um sistema conceitual tridimensional: geossistema, território, paisagem


(GTP)

- conceitos “mistos” no cruzamento dos campos semânticos e


disciplinares.
A maioria dos objetos, dos conceitos e das noções que encontramos
pertence ao mesmo tempo ao campo cultural e ao campo social. São “mistos”
no sentido de Serge Moscovici e eles devem ser tratados como tal, isto é, como
124 A natureza em geografia: um paradigma de interface

entidades polissêmicas. Sobre as margens indefinidas da natureza e da sociedade,


palavras se aglutinam ou derivam ao sabor das analogias científicas ou das
proximidades lexicais. Nós levantamos uma primeira lista de aproximadamente
trinta palavras de uso corrente na geografia: biorresistasia, cenário de vida,
climas, limitação, crise, meio ambiente, meio, paisagem, potencialidade, etc...
cujo sentido depende, freqüente e implicitamente, do contexto de utilização.
- a separação em três campos semânticos e conceituais. O procedimento
é duplo: conceitualizar e hierarquizar. Ficou rapidamente evidenciado que um
sistema conceitual único, do tipo daquele empregado na ecologia a partir do
ecossistema, não permite varrer a totalidade da interface natureza-sociedade e de
revelar sua diversidade. A escolha (provisória e em teste) caiu sobre um sistema
tripolar cujos três subconjuntos se organizam em torno de três conceitos (ou
noções) dominantes: geossistema, território, paisagem. Os outros conceitos, ou
as simples palavras, são reagrupados e definidos em função do subconjunto de
referência. Alguns dentre eles assim podem assumir, com toda clareza, sentidos
diferentes de acordo com o lugar que eles ocupam no sistema GTP.

O geossistema: a dimensão antrópica de um conceito naturalista

O geossistema se inspira na geografia física soviética, na ecologia


americana e em diversos “land-use” (uso da terra) e “landscape science” (ciência
da paisagem) anglo-saxões. È o conceito central e centralizador de uma geografia
física em vias de reconstrução.
- é um conceito naturalista que põe em evidência a interação entre
seus três componentes; biótico, abiótico, antrópico.
- é um conceito espacial que define unidades espaciais a partir de uma
grade taxocorológica com duas entradas: uma entrada horizontal (geótopo,
geofácies, geocomplexo etc.), e uma entrada vertical (geohorizontes). Estas
unidades são diretamente cartografáveis e em conexão direta com a análise do
“pixel”. É um “suporte terreno” ideal para a teledetecção.
- é um conceito temporal e histórico. Ele leva em consideração
tanto a evolução (memória do geossistema) quanto a fenologia (“estados”
do geossistema). Por exemplo, distingue-se “paleogeossistemas” estáveis,
diversificados e carregados de memória e “neogeossistemas” ainda incertos em
seu equilíbrio interno e sua “identidade” (mato, espaços verdes). – o geossistema
não é um fim em si mesmo. Ele permite resituar de modo interativo os elementos
que o compõem (a vegetação no geossistema, o fogo no geossistema) e ele é
aberto à interdisciplinaridade (a memória dos terroirs na arqueologia).

O território: a dimensão naturalista de um conceito social

O território está no centro deste colóquio como ele está no centro da


geografia. Algumas de suas características relevantes devem ser precisadas.
A natureza em geografia: um paradigma de interface 125

- é preciso acabar com o determinismo natural e o possibilismo


geográfico. Este é um debate de uma outra era, indigno da cultura científica
contemporânea. No entanto, ele ainda está por ser exorcizado. Territorializar
a natureza é inverter a problemática das relações entre sociedades e seus meios.
Os geossistemas estão lá, no seu mosaico funcional com seus componentes à
base de ar, água, de rocha e de vida. Mas eles não exprimem em si mesmos
nenhuma possibilidade ou impossibilidade social. Eles não têm projeto
social. A potencialidade e a limitação não estão na natureza da natureza. Os
determinantes, se existem, estão na sociedade. Eles exprimem ali a desigualdade
das sociedades e dos homens diante da natureza, do território, da paisagem. A
natureza tem petróleo, mas ela não tem a idéia!
- do recurso à fonte. Por outro lado, é essencial remontar do recurso
social ao recurso natural:
-No agrossistema, que é um geossistema truncado por produzir certa
qualidade e quantidade de matéria viva, vegetal e animal, não devemos partir
do “natural do terroir”, mas do projeto de colheita e de organização da produção.
Os agrônomos estabeleceram há muito tempo que a fertilidade não possui
nada de um dado natural, mas releva de uma tradução cultural, até mesmo
de uma representação cultural da natureza. Nem por isso o funcionamento
do agrossistema continua menos comandado pela fotossíntese e a assimilação
clorofílica. A noção de recurso renovável ou não-renovável não tem nenhum
sentido fora do tempo e sem contexto econômico. Por outro lado, uma fonte
natural pode ser definitivamente esgotada ou renovar-se em um intervalo de
tempo que é preciso ser determinado, e que não é obrigatoriamente aquele da
história econômica.
- A evolução natural na evolução de território. O princípio de
causalidade linear que há muito tempo vigorou cede o lugar a uma análise
sistêmica. A pesquisa interessa-se pelos fenômenos de atraso e de diferença de
horário, de retroatividade e de histerese. A “memória” da natureza começa a
ser decifrada. Um bom exemplo é aquele da explicação, a partir de dinâmicas
desaparecidas, da evolução atual com efeito de “bola de neve”. Precisamos
nos precaver contra um “catastrofismo” recente, remanescente do ecologismo
reinante que trabalha com o excepcional sem conhecer médias e medianas.
Toda catástrofe considerada natural deve ser restituída em uma periodização e
uma rítmica dos fenômenos naturais. Enfim, a catástrofe natural não é sempre
uma catástrofe social... e vice-versa.

A paisagem: a dimensão cultural da natureza

Com a paisagem entramos no mundo das representações da natureza,


em um meio de sensibilidade e subjetividade.
- a dimensão natural da paisagem. Os geógrafos não estão mais na
fase de confundir a paisagem com a natureza e propor métodos de análise
estritamente naturalistas. Os ecologistas renovam, portanto, o erro com a
recente “landscape ecology”, que sob a má tradução de “ecologia da paisagem”
126 A natureza em geografia: um paradigma de interface

mistura o artificial e o ambíguo. A paisagem nem por isso é menos “natural”


por alguns de seus componentes e releva, sob este ponto de vista, da análise
geossistêmica.
- a “quadratura” metodológica da paisagem. Para sair da verborragia
paisagística atual, é preciso fazer a aposta reducionista de tratá-la pelo método
científico. Uma grade de leitura tempo-espacial permite construir um cenário
paisagístico a partir dos atores, dos locais e dos tempos (incluídas as estações).
Esta formalização garante o elo entre a paisagem, o geossistema e o território e a
transforma em um dos elementos no sistema de interface sociedade-natureza.

A exploração geográfica da interface sociedade-natureza

O sistema GTP (geossistema, território, paisagem) define três


campos conceituais, semânticos e metodológicos. Ele permite uma varredura
lógica, hierarquizada e diferenciada do conjunto da interface. Cada palavra,
cada conceito, cada objeto é situado em um sistema de coordenadas tripolares
e pode ser definido em relação à distância que os separa dos três conceitos
fundadores.

Uma prática: a disciplina antes da interdisciplina

Três práticas geográficas parecem se revestir de uma importância


capital em uma prospecção “naturalista” da geografia.

O retorno à natureza é um retorno para o terreno e sobre o terreno

Como a natureza era bela quando o Senhor Perrichon se dedicava


à geografia! Ele percorria o terreno com grandes passadas, rabiscava na sua
caderneta de notas e, de volta à calma de seu gabinete, deixava correr sua
imaginação e sua pluma. Hoje, o Senhor Perrichon trancafiou-se em seu
laboratório, grudado à sua tela, angustiado por certo terrorismo quantitativista
e modelizador. A geografia certamente ganhou com isso um status tecnológico
e uma espécie de aura de cientificidade. A natureza com isso perdeu muito. É
bem verdade que hoje ninguém, nem mesmo alguns engenheiros teledetectores,
acredita mais na “verdade terreno”. Mas para que ele se torne operatório,
o sistema cognitivo da geografia deve pôr de novo o terreno no centro do
dispositivo metodológico e inventar para ele novos protocolos e novas
ferramentas, tanto no domínio da observação quanto no da experimentação.

Uma imageria geográfica a ser diversificada

Este é o ponto forte da geografia e é preciso reforçá-lo mais. Como


A natureza em geografia: um paradigma de interface 127

apresentar um geossistema, um território ou uma paisagem sem jogos de imagens,


de perspectivas ou de escalas? As tecnologias audiovisuais ou infográficas estão
muito mais avançadas do que o modo como são praticadas pelos geógrafos.
Sem esquecer as técnicas mais clássicas, como a cartografia de terreno que não
soube renovar-se e que é uma ferramenta indispensável de transformação do
território e de reconhecimento das estruturas das paisagens.

A didática: produzir para se reproduzir

No campo dos estudos naturalistas e ecológicos, a imagem da geografia


é indefinida e descorada. No entanto, os geógrafos trabalham nesse campo, e
seus trabalhos são reconhecidos e numerosos. De qualquer modo, é preciso ser
identificado enquanto produtor de geografia! A transmissão da ecologia para
o ensino e a sociedade em geral realizou-se em grande parte através do modelo
simplificador e integrador do ecossistema... ou mais exatamente, da pedagogia
“poça de rãs”. Enquanto os geógrafos se esgotam em discursos, em descrições
monográficas, ou então, falsos irmãos vestindo a túnica de Nessus, vendem a
geografia através de um ecossistema emendado. O sistema GTP poderia, com
alguns ajustes, ser esta ferramenta didática que falta à geografia.

Conclusão: um corpo geográfico identitário para uma


abertura transdisciplinar

As ciências progridem freqüentemente pelas margens. Mas elas


só se constroem pelo centro, a partir de um corpo disciplinar que baseia sua
existência científica e profissional. Construir um paradigma geográfico da
natureza é contribuir para dar uma identidade à geografia. Aqui, é preciso
pegar ou largar.
Apenas quando a casa está construída se pode abrir a porta e engajar-se
em um campo mais vasto, interdisciplinar, até transdisciplinar. Assim, a geografia
está cada dia mais confrontada à imensa “questão aguda” do meio ambiente. A
geografia, enquanto ciência social aberta para a natureza, tem a obrigação de
participar dessa discussão. Com a condição de ter as ferramentas adequadas.
O sistema GTP (geossistema, território, paisagem) é um sistema geográfico de
exploração da interface sociedade/natureza. Ele pode se tornar rapidamente
operacional. Ao mesmo tempo disciplinar e engajado na transdisciplinaridade,
ele é um “misto” em busca de espaço de liberdade. Um conhecimento híbrido
é sempre um conhecimento que avança muito.

COMPLEMENTO BIBLIOGRÁFICO PESSOAL

Teoria, método, epistemologia


1 - 1968 BERTRAND (G.)
128 A natureza em geografia: um paradigma de interface

Paysage et géographie physique globale: esquisse méthodologique – Révue géographique


des Pyrénées et du Sud-Ouest. – 1968, vol. 39, nº 3. – p. 249-272, 3 fig., 2 pl. Phot.
h.t.
2 - 1975 BERTRAND (G.)
Pour une histoire écologique de la France rurale, in Histoire de la France rurale. –
France, Paris : Le Seuil, 1975. – p. 35-116.
3 - 1978 BERTRAND (G.)/BEROUTCHACHVILI (N.)
Géosystème (Le) ou « système territorial naturel » - in : « Géosystème et Aménagement
» - Revue géographique des Pyrénées et du Sud-Ouest. – 1978, vol. 49, nº 2 – p. 167-
180.
4 - 1978 BERTRAND (G.)
Géographie (La) physisque contre nature ?
GEODOC – 1978, nº 8. – 35p.
5 - 1978 BERTRAND (G.)
Paysage (Le) entre la nature et la société, in « Géosystème et aménagement » - Revue
géographique des Pyrénées et du Sud-Ouest. 1978, vol. 49, nº 2. – p. 239-258.
6 – 1982 BERTRAND (G.)
Construire la géographie physique. Hérodote. – 1982, nº 26. – p. 90-116.
7 – 1989 BERTRAND (C.)/BERTRAND (G.) – Mémoire (La) des terroirs, in : Pour
une écologie agraire. – France, Paris : Colin, 1991. – p. 11-17, index
8 – 1989 BERTRAND (G.) – Chassez le naturel.... L´espace géographique. – 1989,
vol. 18, nº 2, - p. 102-105.

Estudos práticos
9 – 1972 BERTRAND (G.) – Écologie d´un espace géographique : les géosystèmes du
Valle de Prioro (Espagne du nord-ouest). L´espace géographique. – 1972, nº 2. – p.
113-128, 4 fig., 1 pl. Phot.
10 – 1973 BERTRAND (G.)/DOLLFUS (O.) – Himalaya (L´) central: essai d´analyse
écologique. L´espace géographique – 1973, nº 3. – p. 224-232, 1 fig.
11 – 1978 BERTRAND (C.)/BERTRAND (G.)/RAYNAUD (J.) – Sidobre (Le)
(Tam) : esquisse d´une monographie, in « Géosystème et aménagement « - Revue
géographique des Pyrénées et du Sud-Ouest. – 1978, vol. 49, nº 2. – p. 259-314, 9 fig.,
1 tabl., 2 pl. Fig. 4 phot. h.t. carte coul. h.t.
12 – 1980 BERTRAND (G.)/DOLLFUS (O.)/HUBSCHMAN (Q.) – Cartographie
(Une) de reconnaissance des géosystèmes dans les Andes du Pérou. – Revue
géographique des Pyrénées est du Sud-Ouest. – 1980, vol. 51, nº 2. – p. 169-181, 1
carte coul. h.t., réf. bibl.
13 – 1983 BERTRAND (G.) – Apogée et déclin d´un géosystème sylvo-pastoral
(Montagne de Léon et de Palencia, Espagne du nord-ouest). In « Forêts » - Revue
géographique des Pyrénées et du Sud-Ouest. – 1984, vol. 55, nº 2. – p. 239-248, 2
fig.
14 – 1986 BERTRAND (C.)/BERTRAND (G.) – Végétation (La) dans le géosystème
A natureza em geografia: um paradigma de interface 129

: phytogéographie des montagnes Cantabriques centrales (Espagne), in « L´élément


et le système », Revue géographique des Pyrénées et du Sud-Ouest. – 1986, vol. 57,
nº 3. – p. 291-312, 1 phot., 1 carte coul. h.t.
15 – 1990 BERTRAND (G.) – Pour une pratique du paysage : l´exemple du Sidobre
(Tarn, France). Table Ronde la Quadrature du Paysages, Toulouse, 1988, 04, 27-29.
Toulouse : Revue géographique des Pyrénées et du Sud-Ouest, 1990, (Travaux IV).
– 26 p.
Publicações coletivas do CLIMA-URA 366-CNRS
16 – 1970 – Science (La) du paysage. Colloque interdisciplinaire sur la Science du
Paysage et ses Applications, Toulouse, 1970, 04, 21-22 – France, Toulouse: Revue
géographique des Pyrénées et du Sud-Ouest. – 168 p.
17 – 1978 – Géosystème et aménagement. - Revue géographique des Pyrénées et du
Sud-Ouest. – 1978, vol. 49, nº 2. – 338 p., 3 cartes h.t. coul.
18 – Élément (L´) et le système. Revue géographique des Pyrénées et du Sud-Ouest.
1986, vol. 57, nº 3. – 484 p., 2 cartes h.t. coul.
130

A GEOGRAFIA E AS CIÊNCIAS DA NATUREZA


O postulado de base: não há geografia sem natureza, não
há natureza sem geografia

Esta é a questão. Está cada vez mais difícil apoiá-la. Se isto não
acontece, ou é feito sem convicção e com condescendência, como a pensam
e a praticam certos geógrafos franceses, esta intervenção é inútil. A geografia
então pode apenas desviar-se, como outras ciências sociais, para um outro lugar
que se parece muito com lugar nenhum. Ela viraria então as costas às grandes
interrogações sociais, culturais e econômicas que agitam hoje o meio das
sociedades e o aménagement do espaço. É bem verdade que a geografia pertence
prioritariamente ao campo das ciências humanas e sociais. Ela é, por excelência,
a ciência social do território. Neste papel, ela engloba inelutavelmente uma
parte de natureza, pois não há território sem “terra”. Esta parte de natureza,
ora superestimada, ora subestimada, deu lugar a múltiplos debates, algumas
vezes violentos, na maioria das vezes estéreis. A tendência geral é ignorá-la
na prática quotidiana e especialmente na formação geográfica. Liberada de
qualquer lógica, a “evocação” da natureza na geografia se tornou surrealista,
espécie de deus ex machina que só faz aumentar o número e a virulência de seus
detratores. Está na hora de voltarmos às fontes do conhecimento da natureza
e às ciências que se encarregam disso.
O avanço entre a geografia e as ciências da natureza é difícil. Por um
lado, é preciso ultrapassar um limite epistemológico de primeira grandeza entre
ciências da sociedade e ciências da natureza com os obstáculos que são, por
exemplo, a analogia, o reducionismo, o superdeterminismo, a babelização etc.
Por outro lado, a geografia não tem mais diante dela as antigas “ciências naturais”
que um espírito um pouco culto poderia mobilizar diretamente. Atualmente, a
geografia se encontra diante de ciências “duras”, complexas, diferenciadas, em
incessante recomposição e usando as mais altas tecnologias.
A geografia também tem a obrigação de transformar um produto natural
bruto (massa de ar, árvore, montanha, fonte) em um produto “socializado”, isto
é, incorporado nas problemáticas sociais, econômicas e culturais. A partir de
um fato natural, a geografia tem a obrigação de produzir a mais-valia social. A
nascente se transforma em recurso. Esta transformação, até esta transmutação,
foi por muito tempo confiada à geografia física considerada, pelo menos no
início, como um subconjunto da disciplina. A função, até mesmo a existência
desta geografia física está no centro do debate. Ela é objeto de muitas críticas
e de violentos ressentimentos em que se misturam as escolhas científicas, as
querelas institucionais e muitos rancores pessoais. Mesmo se a geografia física
A geografia e as ciências da natureza 131

francesa desenvolve algumas pesquisas promissoras, devemos admitir que ela


está globalmente desqualificada. Ela não é mais o melhor acesso aos domínios
das ciências da Vida e das ciências do Universo. Os problemas de natureza e
de meio ambiente se tornaram interrogações centrais, agudos, para todas as
sociedades e para o conjunto do planeta Terra. Isto é o que não souberam, não
puderam ou não quiseram ver um certo número de geógrafos físicos franceses
que recentemente foram erguer suas amarguras e seus cartazes diante das grades
dos ministérios! Mais do que nunca, nós temos que afirmar e demonstrar que
não há geografia sem natureza e não há natureza sem geografia!

Um balanço ambíguo: um pensamento humanista com forte


conotação naturalista

Pela origem universitária, literária e histórica de seus pais fundadores,


por suas orientações filosóficas e políticas, a geografia francesa nasceu
realmente da história e do humanismo. Esta filiação, impulsionada por Vidal
de la Blache e os geógrafos de sua escola de pensamento, se constituiu em
uma espécie de ideologia implícita que garantiu uma sólida continuidade nos
campos institucionais, acadêmicos, científicos e pedagógicos. Analisando de
mais perto, este procedimento geográfico não repousa sobre nenhum corpo
epistemológico e metodológico clara e unanimemente afirmado. Se a geografia
francesa manifesta algumas veleidades científicas, elas se situam quase todas
na vontade de dominar as relações das sociedades com seus meios de vida que
são ainda no século passado, amplamente naturais ou rurais. Trata-se de uma
ambição de tipo naturalista e ambientalista pioneira, diretamente enxertada
nas “ciências naturais”.

Um enraizamento naturalista mal dominado

A geografia francesa sempre manteve com as ciências naturais relações


privilegiadas. A “paisagem” e/ou o “meio” geográfico foram por muito tempo,
pelo menos implicitamente, quase sempre e prioritariamente de ordem natural.
O pensamento geográfico propriamente dito se constituiu a partir de um sólido
patrimônio natural e naturalista que ela não apenas explorou, como também
contribuiu para formar. Dessa forma, os geógrafos contribuíram muito para o
conhecimento dos relevos e dos climas de todas as partes do mundo. O Tratado
de geografia física (Traité de géographie physique) de Edward de Martonne,
assim como seu estudo sobre a geografia física da França, tiveram uma grande
repercussão entre os naturalistas. Humana e humanista sem equívoco, a
geografia francesa esteve então em contato com os naturalistas. Os geógrafos
freqüentemente percorreram o terreno em sua companhia, compartilhando
suas grandes teorias e impregnando-se de seus modos de raciocínio. Esta liga,
preciosa e frágil, contribuiu muito para formar, em mais do que alguns métodos,
o que se convencionou chamar um “estado de espírito geográfico” contra o
qual os geógrafos marxizantes, e mais tarde os modernistas, nunca deixaram de
se erguer. É verdade que esta espécie de ecumenismo geográfico-naturalista é
132 A geografia e as ciências da natureza

mais da alçada da alquimia que de um tratamento científico. Ele resistiu mal ao


tempo, às modas, às evoluções e revoluções científicas. Ele criou a ambigüidade
da disciplina ao passo que teria podido fundamentar sua ambivalência e, assim,
abrir, com um século de antecedência, um caminho brilhante para os estudos
ambientais que, desde o fim do século XIX, correspondia bem à vontade dos
geógrafos de dominar as relações entre os homens e seus meios de vida. Mas o
estado político e, portanto, científico, da Europa no fim do século XIX e começo
do século XX, só podia fazer explodir esta contradição pelo menos aparente entre
humanismo e naturalismo. Os geógrafos franceses escolheram o humanismo,
por sua honra enquanto homens, por sua carência de cientistas. Mas poucos,
a exemplo de E. Reclus, assumiram sobre esta questão uma posição de ordem
ideológica e tiraram dela conseqüências no plano das pesquisas. Apesar das
aparências e de uma grande produção científica, a ruptura entre sociedade e
natureza consumou-se. A geografia física, com Martonne, pode se estabelecer
e tornar-se autônoma, cada vez mais “ao lado” da geografia humana. Embora
as declarações de princípios não faltem, especialmente entre os historiadores
influenciados pelas premonições de um Bloch, elas diluem-se na nuance tímida
e na insignificância discursiva. Para que pode então servir o “quadro geográfico”
mais bem acabado, que concede o maior espaço à evocação dos relevos, dos
climas e dos solos, se não se sabe bem qual lugar atribuir aos fatos naturais na
combinação geográfica? O extraordinário Quadro geográfico da França de
Vidal de La Blache provocou cegueira ao ofuscar. Na maioria dos casos, os
dados geográficos, climáticos, algumas vezes botânicos, são injetados em estado
bruto com múltiplas digressões eruditas. É verdade que a matéria científica
ainda limitada era facilmente acessível ao geógrafo assim como a toda pessoa
instruída. O resultado é muito mais descritivo do que explicativo ou então a
explicação permanece no próprio interior do fenômeno natural (formação de
uma cadeia de montanhas, descrição do nivelamento de vegetação etc.) e,
muito mais raramente, na intersecção dos fatos naturais e dos fatos humanos.
Desta justaposição ou sucessão indecisa, o geógrafo pode reter apenas nuances,
“influências”, “possibilidades” ou então brutais determinações. Sem convencer.
Daí surge o debate truncado e enganoso sobre o determinismo que vai, de modo
inútil, mas durável, envenenar as relações entre um geógrafo humano tímida
e hipocritamente “possibilista” e um geógrafo físico sem outra saída a não
ser girar sobre si mesmo. Em resumo, e contrariamente a certas aparências, a
geografia não teve um bom começo a respeito de um dos problemas geográficos
fundamentais que é o das relações dos homens com os “meios naturais”.

A geografia na sombra da geologia: a expansão da geomorfologia

Em 1908, Auerbach pôde escrever: “seguramente, é no contato e


pela graça da geologia que a geografia renovou sua idéia da terra”. Em 1841, é
publicado o primeiro mapa geológico da França em 1/500.000, por Beaumont e
Petit-Dufresnoy e, em 1868, é criado o Serviço do Mapa Geológico da França em
1/80.000. A geologia aparece, então, bem antes das outras ciências da natureza,
como o próprio fundamento do estudo do espaço, e para a análise geográfica,
a “base de mapa” do território dos homens. As primeiríssimas linhas do tomo
A geografia e as ciências da natureza 133

II do Tratado de geografia física de Martonne são significativas: “O estudo do


relevo do solo é a parte mais importante da geografia física. Poderíamos até
considerá-lo como a base de toda geografia”. A proeminência da geomorfologia
está assim estabelecida de uma vez por todas, para o bem e para o mal. A partir
deste credo, a geomorfologia vai pesar muito sobre a geografia francesa, ao
mesmo tempo científica e institucionalmente. Os geomorfologistas tomaram
o poder e não o cederão durante mais de meio século. A análise precisa e
organizada do relevo e dos modelados, cada vez mais sendo um fim em si mesmo,
desenvolve rapidamente verdadeiros protocolos científicos que fazem falta aos
outros ramos da geografia. Mas ela permeia e empalidece outros aspectos do
meio natural. Este não tem existência própria e não permite nenhuma teorização
ou conceitualização.
Todo esforço se concentra na evolução das formas do relevo com
os geniais levantamentos de Cholley sobre o “sistema de erosão” baseado nas
interações entre os processos e/ou agentes de erosão: em suma, uma análise
sistêmica pioneira. A geomorfologia dos anos 1950 não se contenta em tomar
emprestado da geologia; ela inova e propõe novas interpretações dos fenômenos
geológicos superficiais. A geomorfologia estrutural estreitamente solidária
com a geologia é então completada pela geomorfologia climática, mais do que
esboçada por Martonne, e que se inspira em outras ciências naturais, tais como
a climatologia, a biogeografia, e até na pedologia nascente. Cholley, mais uma
vez ele, enriquece o sistema de erosão com combinações binárias (relevo-clima)
ou terciárias (relevo-clima-vegetação). Em torno dos anos 1960-1970, J. Tricart
atinge um nível superior de integração geomorfológica lançando o conceito de
sistema geomorfogênico incluindo os aspectos bioclimáticos. A geomorfologia
francesa, bem enraizada na geologia e utilizando os dados das outras ciências
naturais, brilha no mundo inteiro... assim como nos outros ramos da geografia.
Ela vai se tornar o principal, senão o único componente da geografia física.
É ela que forma o novo espírito geográfico: sentido do terreno, representação
cartográfica, quantificação e experimentação em laboratório, etc. É dessa forma
que o modesto ábaco de Cailleux-Tricart para medir o índice de desgaste dos
pedregulhos será, em torno dos anos 1950, a primeira ferramenta científica posta
nas mãos dos geógrafos debutantes! Este primeiro acesso a uma cultura geológica
e a um método científico marcará profundamente várias gerações de geógrafos,
mesmo se eles escolheram, mais tarde, tornar-se geógrafos “sociais”.
Este entusiasmo pela geologia e pela geomorfologia pode ser explicado
de várias maneiras: desenvolvimento precoce da geologia em relação às outras
ciências da terra que se limitaram, por muito tempo, aos inventários específicos
e aos métodos de classificação; procedimento cronológico da geologia
estratigráfica próxima da cultura histórica dos geógrafos; atração intelectual
pelas grandes teorias planetárias (derivadas do Gondwana, formação das cadeias
de montanha e lençóis de escoamento, glacio-eustatismo, etc.); importância
do relevo na organização e na diversificação do espaço na escala privilegiada
de trabalho dos geógrafos que cruzam os dados diretos sobre o terreno com as
informações da carta topográfica de “Estado-maior” em 1/80.000.
134 A geografia e as ciências da natureza

A subordinação das outras ciências naturais e os bloqueios de uma “geografia


física contra a natureza” (G. Bertrand)

De fato, a filiação com as ciências naturais nunca foi totalmente


assumida, mesmo no que diz respeito à geologia. E dessa forma a geomorfologia,
sob o impulso de Martonne, depois de Baulig, fundamenta seu vigor e sua
especificidade sobre as teorias do ciclo da “erosão normal” e da peneplanação
que, embora amplamente inspiradas pelo geólogo Davis, são construções abstratas
e geométricas que isolam a “erosão” da combinação natural, negligenciando o
clima (pelo menos em um primeiro momento), os solos e a vegetação. Em suas
primeiras publicações teóricas, Birot chega até as interpretações matemáticas
da evolução das vertentes (por exemplo: por “creeping”) as quais representam
um desafio à observação e à experimentação naturalistas.
A climatologia é progressivamente integrada em posição subordinada
no sistema de erosão, mas ela é apenas raramente estudada enquanto tal
(Bénévent). É preciso esperar C. Péguy (1955), depois P. Pedelaborde
(1970) para que se desenvolva um estudo explicativo e dinâmico dos climas.
Paralelamente, A. Guilcher atinge a oceanografia e a oceanologia pelo viés
da geomorfologia litoral.

FICHA 1

E a biologia?

Em 1962, o botanista e fitogeógrafo Gaussen repreende rudemente


os geógrafos na sua própria revista Annales de géographie: “Estaria na hora
dos geógrafos se interessarem pelas questões biológicas”. Ele assim põe em
evidência aquilo que sempre foi e permanece a mais grave carência da geografia
física francesa. Se a hegemonia do filão geologia-geomorfologia familiarizou o
geógrafo com as ciências da terra, ela o isolou das ciências da vida. É verdade
que estas disciplinas conheceram um desenvolvimento tardio e que o fastidioso
aprendizado da sistemática desanimou mais de um geógrafo. A geografia da
vegetação da Flahaut data apenas do começo do século (em torno de 1910),
a fitossociologia de Braun-Blanquet e de Emberger, dos anos 1925-1930, a
fitogeografia de Gaussen e a cartografia da vegetação da França em 1/200.000
dos anos 1950. Mesmo se os empréstimos são freqüentes, eles permanecem
sem exceção (Marres) marginais e não entram nos programas dos concursos de
agregação e no ensino universitário. Mais globalmente, o apelo premonitório de
Sorre é apenas uma voz no deserto. Os “Fundamentos biológicos da geografia
humana” são freqüentemente citados, mas não seguidos. O interesse e a
cultura do geógrafo se orientam para outro aspecto, o histórico-literário ou o
matemático (P. Birot, C. Péguy). A ausência de cultura biológica no sentido
amplo, e de conhecimentos científicos nos campos da física e, sobretudo da
química e da biologia, afasta a geografia da grande revolução das ciências
da natureza. Esta última, que ocorre na França em torno dos anos 1950, vai
assegurar a proeminência da biologia, de onde nascerá a ecologia alguns anos
mais tarde.
A geografia e as ciências da natureza 135

A síndrome da “cuesta”

Nem por isso a geografia física francesa, dominada e orientada pela


geomorfologia, deixa de atingir sua plenitude ao longo dos anos 1950. Ela
brilha na comunidade geográfica internacional, mas não recebe mais do que
uma acolhida discreta por parte dos especialistas das ciências da natureza. No
entanto, este é o único campo da pesquisa geográfica que dá provas de uma
verdadeira cientificidade. Os laços com a geologia, estrutural e sobretudo
dinâmica, se estreitam. Os mais eficientes e os melhores equipados dentre os
geomorfologistas tiram as conseqüências deste fato e tentam uma aproximação
institucional com a geologia (Rognon, Tricart etc.). Esta evolução por
cissiparidade, freqüente na história das ciências, tem poucos adeptos. Outros
geomorfologistas, depois de algumas reconversões formais, se desgastam em
provocar um combate de retaguarda para tentar defender muito mais alguns
privilégios do que orientações científicas promissoras. Afastada da grande
mutação científica dos anos 1950-1960, a geografia física francesa nem por
isso pesa menos no conjunto da disciplina. No ensino como na preparação
de teses, ela muitas vezes se tornou um exercício de estilo e uma temível
ferramenta de seleção nos concursos de recrutamento, para a contratação
de professores de geografia e, o que parece ainda mais injustificável, para a
contratação de professores de história. O inútil e acadêmico “comentário de
carta (mapa)” acompanhado da fabricação de um “corte geológico” torna-se
um exercício estéril. A situação é insuportável para uma geografia humana em
plena evolução e que não sabe mais como dialogar com uma geografia física
fechada em seus próprios questionamentos (evolução das “cuestas”, mecanismos
da peneplanação, papel da tectônica, etc.). As relações entre as sociedades e
os meios só são evocadas em monografias de geografia regional cada vez mais
raras, descritivas e mal construídas demais para serem eficazes. O mau uso do
fato natural na análise geográfica, alternadamente influente e transparente,
mantém esta “síndrome de cuesta” que marca a falência de certa concepção
não dominada da geografia física. Esta não apenas perdeu o sentido do social,
como também esqueceu aquele da natureza.

Da biogeografia dos geógrafos aos estudos integrados do meio natural:


colagens e bricolagens promissoras

De Martonne consagrou o terceiro tomo de seu Tratado à biogeografia,


mas ele confiou sua redação a dois especialistas, um em botânica (Chevalier),
e outro em zoologia (Cuénot), o que evidencia o caráter marginal de uma
disciplina nem um pouco preocupada pelas questões biológicas. Em 1953, os
geógrafos não estarão mais tentados pela “biogeografia mundial” de Cailleux
que, no entanto, abre a via à corologia moderna e afirma que “a unidade físico-
química do mundo vivo é essencial”. A partir dos anos 60, os poucos geógrafos
(P. Birot, H. Elhaï, G. Rougerie, G. Bertrand) que se aventuram no campo das
ciências biogeográficas se inspiram na ecogeografia de Troll, na ecofisiologia
de Ellenberg, na cartografia fitogeográfica de Gaussen, na fitossociologia de
136 A geografia e as ciências da natureza

Emberger, na pedologia florestal de Duchaufour; ou seja, pesquisas conduzidas


na tradição naturalista. Mais uma vez, Maximilien Sorre, com sua biologia
humana e seus “complexos patogênicos” só serão ouvidos um pouco mais tarde,
com os primeiros desenvolvimentos da geografia médica e da ecologia humana.
No entanto, é a partir destas práticas biogeográficas que vão emergir, lenta e
dificilmente, novas concepções mais ou menos globalizantes e construídas do
“meio geográfico natural”. A partir dos anos 65-70, influências diversas, mas
convergentes (ecologia científica e ecossistema, “land-survey”, “complexos
territoriais naturais” soviéticos), vão quebrar o funcionamento setorial da
geografia física francesa e favorecer o desenvolvimento dos “estudos integrados”
do meio natural. Trata-se de uma ruptura epistemológica e metodológica
fundamental que, enfim, oferece uma existência e consistência à geografia
física. Os trabalhos de G. Rougerie sobre os meios florestais, a montanha
da “ecogeografia” por J. Tricart, os estudos experimentais de vertentes de F.
Morand, as primeiras abordagens quantitativas de J. -C. Wieber, a primeira
tentativa de “geografia física global” de G. Bertrand permanecem muito isolados
e na maioria das vezes não são mais do que colagens ou bricolagens realizados
com meios insuficientes e sempre contra a correnteza em uma geografia francesa
afastada da natureza, ao passo que esses trabalhos são geralmente bem acolhidos
nas outras disciplinas e pelos geógrafos estrangeiros (ingleses, norte-americanos,
australianos, soviéticos, poloneses, etc.) que neste campo estão mais avançados
que os franceses.
O futuro da geografia física está em germinação nestas tentativas
especiais que apresentam a dupla vantagem de estabelecer um contato estreito
com as novas ciências da terra em via de recomposição e de ser capaz de abordar
diretamente os problemas do meio ambiente, portanto, de sociedade. Mas com a
condição que estas experiências isoladas e um tanto disparatadas sejam o ponto
de partida de uma reflexão generalizada para fazer da ciência geográfica, em
sua globalidade, uma nova e dupla ponte em direção das ciências da natureza
de um lado, e da problemática social do meio ambiente, do outro.

O desafio social: fazer parte do domínio do meio ambiente

O meio ambiente é para a geografia francesa um esquecimento longo


e profundo. Hoje, um retorno aos clássicos “estudos do meio” não teria nenhum
sentido. O recrudescimento, planetário e catastrófico, dos problemas de natureza
e de meio ambiente embaralha as premissas de uma questão até aqui tratada de
modo marginal. O pensamento ecológico que lhe é associado deve ser analisado
como uma mutação dos sistemas de valores. A problemática ambiental,
pluridisciplinar e pluriprofissional se desenvolve então em um “meio ambiente”
social e científico cada vez mais complexo. Ela está associada a outras urgências
e exige outras ambições. A fim de dar mais clareza à exposição, trataremos desta
situação global, primeiramente no âmbito específico das ciências da natureza,
em seguida, do ponto de vista mais geral da sociedade.
A geografia e as ciências da natureza 137

A emergência da ecologia científica reorganiza e dinamiza as ciências da


natureza: o “global change” unifica a natureza

A ecologia científica se desenvolve nos Estados Unidos em torno dos


anos 50. Ela só se manifesta na França nas ciências naturais a partir do começo
da década de 70, em particular pela difusão dos Fundamentals of Ecology de
E. e H. Odum (1971). Todavia, esta obra passa praticamente despercebida
pelos geógrafos.
A geografia, por outro lado, parece distanciar-se das ciências da
natureza. Por um lado, o aprofundamento dos conhecimentos, a sofisticação
dos métodos e das técnicas, o hermetismo das linguagens científicas não
permitem mais estabelecer este laço de evidência, simples e direto, graças ao
qual o geógrafo se apropriava, por um bom preço, da contribuição das ciências
da terra. O simples fato de fabricar um “corte geológico” é hoje um exercício
de alto risco a partir do momento em que se pretende explicar as formas
superficiais pelas estruturas profundas. Por outro lado, a tradicional e discursiva
síntese geográfica se apaga diante do potente maquinário cibernético do “global
change”. Aliás, a participação institucional da geografia nos grandes programas
de pesquisa interdisciplinares, nacionais ou internacionais, não é coisa fácil e
interessa apenas a alguns geógrafos às vezes mascarados de geomorfologistas,
climatólogos ou teledetectores.

FICHA 2

Ecologia e ecossistema

A ecologia é uma ciência biológica que estuda as relações entre uma


biocenose (conjunto de seres vivos: vegetais, animais, homens) e um biótopo
(meio físico-químico), e as relações dos organismos vivos entre si. Ela tem por
objetivo o “estudo da organização, do funcionamento e da evolução dos sistemas
biológicos correspondendo aos níveis de integração iguais ou superiores àquele
do indivíduo”.
O ecossistema é o conceito fundador da ecologia sistêmica moderna.
É “um sistema de interações complexas das espécies entre si e entre elas e o
meio”... “deste conjunto... nascem propriedades globais, novas em relação
àquelas dos elementos em interação”... “estas interações se desenvolvem no
espaço-tempo, em todas as escalas de observação, e elas são levadas por fluxos
de matéria e fluxos de energia dissipativos.”

O meio ambiente substitui o natural no coração do social

“Por muito tempo natural, o meio ambiente invadiu o social muito


mais que o social o invadiu. Primeiramente, margem distante e facultativa que
se tornou em seguida periferia obrigatória e cada vez mais exigente, ele está
138 A geografia e as ciências da natureza

hoje no centro do social, nó górdio da gestão do território e da qualidade da


vida”. (Bertrand, 1990). A situação é ambígua. A reunião entre a ecologia e
o meio ambiente é uma metafísica planetária, uma bifurcação epistemológica
ou uma renovação metodológica? O meio ambiente não apenas “embaralha
as ciências” (Oppenaeau, 1991), mas ele interroga as sociedades sobre suas
relações com os territórios e com o planeta Terra. A natureza e as ciências
da natureza devem ser repensadas em termos sociais, econômicos e culturais.
“Todo fenômeno econômico (considera R. Passet, 1989), tem a dimensão dos
fenômenos da natureza”.
Hoje, com as flutuações dos “buracos de ozônio”, a “aridificação e/ou
desertificação das zonas intertropicais, as cargas poluentes contidas nos grandes
fluidos que são a água e o ar, todos sabem, sem cair no catastrofismo, que a
antropização vai cada vez mais influir no funcionamento do ecossistema terrestre
e no futuro a longo prazo das sociedades. Resta à geografia francesa se assumir
em relação a uma problemática da natureza que nunca foi tão “geográfica”, isto
é, ao mesmo tempo social e espacial!

A geografia deve se definir em relação aos novos “valores” do pensamento


científico

Os geógrafos permaneceram até estes últimos anos retirados do


grande movimento epistemológico que transformou as ciências da vida e as
ciências da terra. Além das modas e das querelas de escola, um certo número de
grandes correntes parecem promissoras, e pelo menos por um tempo, merecem
ser analisadas.
A mais banal delas se refere ao domínio da complexidade e da
diversidade. Ao se subdividir em subespecialidades, a geografia física em resumo
não fez mais do que adaptar-se e prolongar os procedimentos analíticos e as
divisões disciplinares tradicionais das ciências da natureza. Há mais ou menos
20 anos o pensamento científico organizou-se e globalizou-se graças à análise de
sistema cujo ecossistema é uma notável modelização. A interatividade reúne os
elementos e fundamenta a dinâmica dos sistemas. A diversidade interna é então
reconhecida, ao mesmo tempo como motor do equilíbrio dinâmico interno e
como motor da evolução do sistema natural. A globalização e a sistêmica não
devem ser confundidas, mas elas são oriundas de uma mesma estratégia científica
que pode resituar a geografia em relação a si mesma, em relação à geografia
humana e, sobretudo, em relação àquilo que devemos ainda qualificar, na falta
de melhor, de “geografia regional”.
A relevância atribuída à vida e às múltiplas formas do ser vivo é um
dos aspectos mais enriquecedores da pesquisa científica no campo das ciências da
natureza e um dos que causam mais problemas, não somente para os geógrafos,
como também ao conjunto das ciências sociais. A geografia francesa, sem
“fundamentos biológicos”, hoje está como que paralisada, não apenas incapaz de
adaptar-se a essas novas maneiras de pensar a natureza, mas também de exercer
em relação a elas a análise crítica que se impõe. As outras ciências sociais não
conhecem melhor sorte, mas elas não estavam encarregadas desta dimensão
A geografia e as ciências da natureza 139

natural que a geografia não consegue mais exercer corretamente. A ecologia


assume o posto por integração ascendente e sem nunca modificar seu discurso
biológico dominante. O geógrafo estaria no direito de se fazer, e aos outros
especialistas das ciências sociais, perguntas capitais... se ele tivesse competência
para isso. Aliás, mesmo se a biologia não tem nada a ver com o biologismo e
ainda menos com a sociobiologia, o extraordinário sucesso da ecologia fora de
seu campo específico conduz, por banalização científica e, sobretudo para e
extracientífica, a comportamentos analógicos e reducionistas que se revelam
tanto mais perversos porque tendem a ser exercidos no campo incontrolável
da política Além disso, a própria ecologia científica tende naturalmente a
ultrapassar o campo animal e vegetal para transformar-se em uma ecologia
humana cujo procedimento biológico se estende ao econômico, ao social e ao
cultural., em direção a esta “noosfera” que seria para alguns (Duvigneaud) a
forma superior do Bios!
É preciso também levar em consideração o potente ressurgimento do
sensível e da sensibilidade. Como bom positivista à procura da cientificidade,
o geógrafo sempre se esforçou por objetivar seu objeto de estudo segundo o
esquema das ciências ditas “duras”. Este foi o caso tanto na geografia humana
como na geografia física. Entretanto, a geografia sempre deixou livre curso
à expressão de sua subjetividade por ocasião das numerosas descrições das
regiões e das paisagens que ilustram seus trabalhos. Os estudos ambientais dão
hoje prioridade ao sujeito ou pelo menos representam uma dialética mais ou
menos sutil entre sujeito e objeto. O interesse voltado para os espaços verdes
percebidos e “vividos” (Frémont), o apelo aos mecanismos das representações,
a reabilitação tardia dos estudos paisagísticos faz cair o garrote convencional
daquilo que não era, na maioria das vezes, mais do que uma pseudo-objetividade
tímida e empobrecedora. Hoje, o geógrafo pode chamar uma paisagem de
paisagem e rehumanizar sua geografia física. Um novo tipo de relação da
geografia com a natureza está em curso, mais subjetivo e mais “humano”. Ele
exige abordagens epistemológicas e metodológicas diferentes daquelas da
geografia física clássica.

Um projeto para a geografia: construir um paradigma de


interface entre a sociedade e a natureza

O exame da relação da geografia com as ciências da natureza se


desenrola na perspectiva geral de novo impulso da disciplina como ciência
do território (L’Espace géographique e GIP RECLUS, Grande Colóquio de
Prospecção do Ministério da Pesquisa e da Tecnologia, Géoforum, etc.). As
propostas que se seguem já foram em parte expostas em outros contextos, mas
nunca diretamente em relação às outras ciências da natureza.
140 A geografia e as ciências da natureza

A necessidade de uma interface entre a geografia e as ciências da natureza:


o conceito de antropização

A geografia física, tal como foi concebida e funciona, preenche


mal, ou até não preenche em absoluto, esta função de interface entre a
geografia e as ciências da Vida e do Universo. É preciso construir um sistema
global de interação a partir de interrogações epistemológicas e de realizações
metodológicas, senão novas, pelo menos renovadas. O problema não é mais
aquele de uma geografia em busca de autonomia, até de independência, nos
planos científico e institucional; o problema é aquele da ciência geográfica
confrontada na sua totalidade ao natural dos territórios. O problema não
diz respeito unicamente à geografia: é o mesmo do conjunto das ciências
da sociedade em busca de passagens sensatas e acessíveis para as ciências da
natureza.
Esta teoria de interface se baseia no conceito de antropização. Para o
geógrafo, a natureza é primeiramente espaço, um espaço cada vez menos natural,
cada vez mais “territorializado”, isto é, possuído, explorado, artificializado,
degradado. O qualificativo de antrópico define classicamente esta ação direta
ou indireta das sociedades sobre seus territórios. O conceito pode ser estendido
à totalidade da combinatória sociedade-natureza. O antrópico representa o
conjunto das formas (cerca viva, solo cultivado, construção) e a antropização
representa o conjunto dos processos materiais (“erosão antrópica”, silvicultura)
e imateriais (representação paisagística) que nascem do impacto de um
pensamento e/ou de uma ação humana sobre um sistema natural (pécoration) e
vice-versa (enfrichement). É toda a natureza que é dessa forma integrada direta
ou indiretamente à análise “social” da geografia. Os objetos e processos levados
em consideração não são mais “naturais” e nem tampouco “sociais” (Moscovici),
mas resultam de uma “hibridação” (Serres). O recurso, a potencialidade, a
obrigação e a crise se originam nesse campo semântico de interface que precisa
ser reconhecido enquanto tal e aprofundado para “socializar” os fatos de natureza
e “naturalizar” os fatos de sociedade: a linguagem senão o debate, com isto,
ficam mais claros. Por exemplo, no curso de um mesmo estudo, passamos, assim,
por patamares sucessivos e sem ambigüidade, do funcionamento natural, físico-
químico e biológico de um dado ecossistema pastoril (aí incluído o impacto
da pastagem) a seu funcionamento paisagístico tirado da representação social
(aí incluído sua materialidade de objeto natural).

A análise tridimensional de interface: o método GTP (Geossistema,


Território, Paisagem)

A interface sociedade-natureza está ainda muito insuficientemente


dominada. A proposta então é apenas provisória. Ela se baseia sobre três
postulados: não se passa diretamente dos conceitos usados nas ciências da
natureza para os conceitos sociais; não se pode conceitualizar a totalidade da
interface a partir de um conceito único e unívoco; devemos elaborar um método
de complexidade e de diversidade.
A geografia e as ciências da natureza 141

Esta pluridimensionalidade permite evitar os avatares que são aqueles,


por exemplo, da nova ecologia urbana: ou o ecossistema urbano se constitui em
uma perigosa deriva biológica, assimilando a cidade a um organismo vivo; ou
então ele não é mais do que a expressão, na última moda, para simplesmente
designar um sistema econômico, social e cultural urbano; ou então ele se limita
cientificamente à análise dos funcionamentos físico-químicos e biológicos da
cidade no âmbito de uma aplicação estrita do modelo ecossistêmico.
O sistema proposto define três campos semânticos que, cada um com
sua própria finalidade, varrem a interface a partir de três conceitos centrais: o
geossistema, o território, a paisagem.
O geossistema, inspirado na geografia soviética e em diversos
“land-use” anglo-saxões, é um conceito de inspiração naturalista que leva em
consideração as massas, os volumes e os funcionamentos bio-físico-químicos.
Ele está estreitamente ligado com as linguagens, os conceitos e os métodos das
ciências da natureza. Ele introduz a dimensão geográfica nos estudos de meio
ambiente natural privilegiando a dimensão histórica (impacto das sociedades)
e a dimensão espacial (horizontal: geohorizontes, e vertical: geótipo, geótopo,
geofácies, geocomplexo, etc.), campos nos quais ele é mais eficiente que o
ecossistema.

FICHA 3

Geografia física e ecossistema

A geografia física é o ramo “naturalista” da geografia. Do interior


da geografia, ciência social, ela estuda as combinações e as interações entre
as sociedades humanas e os meios ambientes naturais que contribuem para a
estruturação e o funcionamento de seus territórios.
O geossistema é o conceito central e centralizador da geografia física
“integrada”. É uma porção de espaço, homogênea na escala considerada, que se
caracteriza por uma combinação dinâmica, portanto instável, entre elementos
abióticos (rocha, água, ar), elementos bióticos (vegetais, animais) e elementos
antrópicos (impacto das sociedades). Reagindo uns sobre os outros, estes
diversos elementos fazem do geossistema um “sistema geográfico” indissociável
que evolui em bloco.
É um conceito espacial que define unidades espaciais a partir de
uma grade corológica com duas entradas: uma entrada vertical (geótopo,
geofácies, geocomplexo, “região”, região natural, domínio, zona...) e uma
entrada horizontal (geohorizonte). É um conceito temporal e histórico. Ele
leva em consideração tanto a evolução (“memória” do geossistema) quanto a
fenologia (“estados” sazonais do geossistema).
Exemplos: geótopo (cabeça de fonte), geofácies (uma parcela de
vinhedo), geocomplexo (uma vertente), uma região (os Aspres), uma “região
natural” (o Roussillon), um domínio (o Mediterrâneo) etc.
142 A geografia e as ciências da natureza

O território, conceito central da ciência geográfica, é considerado


aqui apenas na sua dimensão natural. Ele é de alguma forma a interpretação
socioeconômica do geossistema, como o agrossistema é aquela do ecossistema.
A dialética fonte-recurso fundamenta esta análise do território. Encontramos
aqui então a família dos conceitos híbridos (potencialidade, limitação, meio
ambiente, meio), cuja manipulação exige um longo trabalho semântico e
metodológico para sair das aproximações atuais.
A paisagem, noção mais que conceito, permite aqui ao geógrafo aceder
ao mundo das representações sociais da natureza assegurando ao mesmo tempo
um elo, outros diriam uma conivência, com os objetos naturais em sua dimensão
geossistêmica. É dessa forma que uma lagoa da lande em via de eutropização é
uma paisagem intensamente vivida e um patrimônio cultural e ecológico que
está desaparecendo... se não for artificializada por limpeza da vegetação da
água ou por drenagem.
Trata-se de assumir, em plena luz, uma passagem multidirecional e
interativa. Em um sentido, ela permite ir, por exemplo, no caso de um solo, de
um fenômeno físico-químico bruto (“perfil pedológico”) para sua interpretação
socioeconômica (“perfil cultural”) e sua representação social (fertilidade).
No outro sentido, ele assegura a transição de um projeto socioeconômico
(silvicultura) e de uma representação social (espaço verde) para um objeto
natural (ecossistema florestal).

A generalização da questão ambiental impõe novas formas de


interdisciplinaridade e também de disciplinaridade

A “revolução interdisciplinar” dos anos 1968 foi particularmente


benéfica para as ciências da natureza e para a emergência dos problemas
do meio ambiente. Ela foi e continua marcada pelo lançamento de grandes
programas interdisciplinares, internacionais (Man and Biosphere, Global
Change...) ou nacionais (PIREN-CNRS...) que modificaram, freqüentemente
em profundidade, as relações institucionais e metodológicas entre as ciências da
natureza, associando-lhes as ciências da sociedade. Esta onda interdisciplinar vai
continuar. Todavia, começa-se a entrar em uma fase que poderíamos qualificar
de pós-interdisciplinar. Ela se caracteriza por um retorno aos procedimentos
disciplinares, como se para tirar melhor partido das conquistas múltiplas, mas às
vezes descontroladas da interdisciplinaridade. Uma nova estratégia, disciplinar,
se impõe. Para se definir em relação às outras disciplinas.
A geografia, em seu conjunto, tem a obrigação de abrir um diálogo
privilegiado com a ecologia científica. Estas duas disciplinas, próximas por seu
procedimento diagonal, amplamente complementar, não ganham nada com
ignorar-se ou, mais traiçoeiramente, fazerem concorrência uma à outra. A troca
pode parecer desigual, pelo tanto que a ecologia se impôs tanto no domínio
social como no natural. Mas a própria ecologia se encontra hoje em crise
científica e institucional, ameaçada pelo reducionismo ambiente e contestada
pelos especialistas da biologia molecular. O diálogo entre a ecologia e a geografia
já está aberto. Ele deve se desenvolver em torno de problemáticas e de temáticas
A geografia e as ciências da natureza 143

comuns, como a “landscape ecology”, as catástrofes, o aménagement dos cursos


d’água e a gestão das “zonas úmidas” (Lefeuvre).
É neste contexto científico renovado e recentrado que se impõe o
novo impulso da geomorfologia, que pode apoiar-se, de um lado, nos trabalhos
da geologia dinâmica e, por outro lado, nos estudos ecológicos. Os especialistas
do quaternário, pedólogos, sedimentólogos, palinólogos e, mais recentemente,
antracólogos abriram a via, e os geomorfologistas trouxeram preciosas
contribuições ao estudo dos paleoambientes. Hoje, é a geomorfologia histórica
(no sentido de uma pesquisa dirigida para o período correspondendo à história
humana) e contemporânea que deve se desenvolver no âmbito de estudos
integrados, como começa a ser o caso em hidrologia continental (Bravard),
no campo muito evoluído da erosão das terras de cultura (Wichereck), da
dinâmica das vertentes (Muxart) e das “catástrofes” ou “crises” naturais
(Métailié; Desailly).
Esta indispensável integração metodológica remete a geografia
francesa, não sem nostalgia, à “idade de ouro” das grandes monografias regionais
do fim do século XIX e do começo do século XX. Elas correspondem a um
estado do mundo e do conhecimento do mundo. Elas são, portanto, há muito
tempo obsoletas. Todavia, o princípio permanece. É aquele da combinação
e da interação espacial de fenômenos sociais e naturais, bem entendido em
sistema dissipativo sempre localizado, mas amplamente aberto para o planeta.
Encontramos aqui os “bairros” de R. Brunet, assim como os primeiros estudos
regionais da Geografia Universal RECLUS. Hoje, a análise de sistemas e a
modelização permitem retomar, segundo protocolos finalizados e na base de
tratamentos científicos, aquilo que dependia, antigamente, da intuição. A
inserção localizada e sistematizada dos fatos naturais depende sem dúvida
nenhuma do processo de territorialização que hoje melhor define a geografia
moderna.

Conclusão: caminhando para uma dimensão


“neonaturalista”?

Os problemas relacionados ao meio ambiente estão em vias de


“embaralhar”, ao “misturá-las”, as ciências da sociedade e as ciências da
natureza. Esta hibridação está apenas começando. Ninguém pode prever este
desenvolvimento, senão que ele é radical e irreversível. A geografia tem muita
dificuldade em se situar nesta perspectiva dinâmica. Seu sistema “bifrontal”
que, como Jano, só pode olhar para um lado de cada vez, tornou-se rígido e
unívoco.
Isto não faz com que a geografia esteja menos estrategicamente bem
situada para se dotar de uma interface com as ciências da terra. É a interatividade
do sistema que está no centro do debate. Até agora ela não aconteceu. E ela só
acontecerá quando a dinâmica de interface funcionar no plano epistemológico,
isto é, quando os geógrafos tomarem parte, como os ecólogos, em uma nova
forma de pensar a natureza no interior de nossas disciplinas e de nossa sociedade.
Não devemos deixar a natureza para ecólogos de qualquer extração!
144 A geografia e as ciências da natureza

O geólogo-oceanógrafo X. Le Pichon, em um artigo intitulado


“Quando as ciências da terra reaceleram” (La Recherche, Le Pichon, 1990),
distingue um antigo “polo naturalista e histórico” e um novo “polo quantificador
e modelizador”. No mesmo número da mesma revista, J. J. Perrier se pergunta:
“os naturalistas são supérfluos”? E critica a “ilusão reducionista“ que, hoje,
não apenas rejeita as “ciências” humanas e sociais, mas chega a questionar
até a ecologia científica! É bem verdade que o velho naturalismo do século
XIX morreu junto com a “história natural” e o “estudo do meio”. Hoje, se abre
uma nova via, mais “global”, mais aberta, mais “sensível”, mais “humanista”,
melhor construída, capaz de reduzir a distância entre as ciências da sociedade
e as ciências da natureza, no próprio centro das questões de meio ambiente.
Em conclusão do colóquio “O planeta Terra”, organizado em 1989
pelo Ministério da Pesquisa e da Tecnologia no âmbito dos Grandes colóquios
de prospecção, H. Curien distingue “experimentadores” e “espreitadores”.
Hoje, as ciências da terra padecem de falta de espreitadores que, do interior dos
laboratórios de experimentação, devem assegurar com vigilância e competência
uma espreita social e humanista. Segundo a opinião dos especialistas (Henry,
1983), “não se pode confiar o destino dos homens ao conhecimento objetivo da
natureza material”. Estabelecido nas margens sociais das ciências da natureza, o
geógrafo não é, por sua dupla cultura, social e naturalista, um dos espreitadores
avançados do meio ambiente dos homens?

Leituras recomendadas
BERTRAND C et G., 1975, Pour une histoire écologique de la France rurale, Histoire
de la France rurale, Tome I, Pariss, Le Seuil.
FRONTIER S. et PICHOD-VIALE D., 1991, Ecosystèmes : structure, fonctionnement,
évolution, Paris, Masson.
MARTONNE E. (de), 1947, Traité de géographie physique, 7e. éd. , 3 tomes, Pariss,
Colin
Ministère de la Recherche et de la Technologie, 1989, Actes du colloque Planète-
Terre, Paris.
ROUGERIE G, et BEROUTCHACHVILI N., 1991, Gèosystèmes et paysages, Paris,
Colin.
SORRE, M., 1943, Les Fondements biologiques de la géographie humaine. Essai d´une
écologie de l´homme, Paris, Colin.

Palavras-chave
Antrópico – Antropização – Ecologia – Ecossistema – Geografia física – Geossistema
– Interface natureza-sociedade – Paisagem – Ciências da natureza – Ciências da Vida
e do Universo – Território.
145

SEGUNDA PARTE

O TERRITÓRIO
DO NATURAL AO ANTRÓPICO
UMA ARQUEOLOGIA DE TEMPO LONGO
“Eis aqui, os vaqueiros, os pastores, os limpadores,
os vinicultores, os trabalhadores da floresta,
todos vocês que deram, escultores obstinados,
a meu país sua fisionomia e seus adornos de príncipes.”
Louisa Paulin, Lo Remembro

Durante a década de 1970, a dupla emergência da ecologia científica


e a ascensão do meio ambiente muda radicalmente o enfoque de nossa
problemática. A sinecologia, subentendida pelo conceito de ecossistema,
fornece à pesquisa uma ferramenta cômoda e triunfante. O mundo vivo,
globalizado e interativo, pode ser apreendido nas suas relações com os outros
elementos do meio. Encontramos uma resposta, ao menos parcial e provisória,
às questões de método que não tínhamos desde 1960.
Paradoxalmente, é o momento onde a deriva dos continentes
geográficos se acelera até parecer irreversível. O fim de um sonho? A
ecogeografia de Jean Tricart pode ser considerada como a última tentativa
construtiva para religar a geografia física ao meio ambiente aportando às
dimensões geomorfológicas e cartográficas que lhe faltavam.
Pelo fato de suas origens, este meio ambiente de primeiro tipo
é essencialmente naturalista. Sua incapacidade de cuidar das transições
socialmente justificadas e cientificamente cabíveis entre fatos naturais e fatos
sociais vai se transmitir aos primeiros aquecimentos interdisciplinares. Ora,
a dimensão ambiental se joga nas interfaces e mais ainda nos interstícios, na
opacidade de mestiçagens mal matizadas. Neste entre-dois há o antrópico.
Ele primeiramente foi um qualificativo limitado a uma erosão consecutiva ao
desmatamento; mas ele foi ampliado para todos os impactos humanos sobre o
meio... apesar de tudo, apresentado no décimo primeiro e último capítulo de
todo bom manual de ecologia.
Revertamos a problemática. O antrópico (adjetivo substantivo),
despojado de seu aspecto estritamente negativo, participa, a priori, desde 1972,
da definição do geossistema (Georges Bertrand). Ele é um dos três subsistemas
(com o biótico e o abiótico) que funcionam em sinergia. Ele é a origem da
146

artificialização do geossistema e, com a evolução demográfica e econômica,


tende a tornar-se um dos processos dominantes da combinação territorial...
como o operário da décima primeira hora.
Tal é o postulado e uma das razões desta segunda parte consagrada
ao território, isto é, ao espaço geográfico produzido e vivido pelas sociedades
sucessivas. Ele se presta a uma contribuição à dimensão histórica e arqueológica
do meio ambiente.
Em 1972, Georges Dubi nos propôs sustentar, segundo o costume,
um quadro geográfico da França na abertura do seu Histoire de la France
rurale. Como estávamos em processo de redação de tese, declinamos sua oferta
acrescentando, sob forma de capricho, que não seríamos imobilizados às relações
das sociedades rurais com seus meios geográficos em um quadro desenhado a
priori, mas também confuso. Georges Duby, diretor-chefe, aceitou a idéia e a
formulação e solicitou urgência de uma cópia. Liberando o pensamento e a
escrita, Georges Duby nos permitiu substituir “o natural dos terroirs” na história
dos agrosistemas e das sociedades rurais. A salvo de todo determinismo natural
inerente e de todo possibilismo volátil.
Desde os anos 1974-1980, iniciam-se colaborações interrompidas com
os historiadores, arqueólogos, agrônomos, engenheiros florestais e pedólogos...
e alguns geógrafos, que se interrogam sobre a dimensão ecológica de suas
temáticas e começam a se interessar pela longa história do meio ambiente nas
perspectivas sociais e naturalistas. Por exemplo, a fundação com o historiador
Denis Woronoff do Grupo de História das Florestas Francesas abre um novo
campo de pesquisa, transdisciplinar no seu princípio, mas fortemente ancorado
numa problemática histórica. A floresta até então percebida como um espaço
selvagem a ser desmatado é reconsiderada no seu conjunto; de uma parte,
como uma unidade territorial integral, com seu funcionamento próprio, seus
vegetais, seus animais, seus usos múltiplos e seus grupos humanos marginais;
de outra parte, como a primeira fonte de energia e de matéria-prima de uma
sociedade que torna-se pelo essencial uma “civilização do vegetal” (no sentido
de Pierre Gourou), se urbaniza e se industrializa fundando seu desenvolvimento
sobre a madeira de construção e de aquecimento, assim como sobre o carvão
vegetal. A floresta não perde nada do seu mistério e do seu simbólico: o mito
de Broceliande e das usinas siderúrgicas de Paimpont participam da mesma
história. O Grupo de Florestas Francesas, que reúne historiadores, engenheiros
florestais e geógrafos, se perenizou diversificando seus ângulos de abordagem.
A generosa interdisciplinaridade iniciada na década de 1970 se
justapõe às disciplinas mais que as hibridizar. Para ser eficaz, o processo deve
penetrá-las no coração para fazer emergir novas questões vivas e elaborar
métodos adaptados. Por exemplo, ajudando os historiadores ruralistas,
esquecidos de sua geografia inicial, a refundar a análise das estruturas agrárias,
dos terroirs e das identidades, considerando que não existe “território sem
terra” e que a natureza está presente e impregnada mesmo nos espaços mais
artificializados. A melhor mediação é fornecida pela nova arqueologia do
terreno, na condição que ela amplia sua pesquisa de campo, depois ao terroir e
ao território. Isto implica uma colaboração material de ordem metodológica,
mesmo que modestamente, mas também eficazmente, colocando à disposição
147

recursos técnicos, por exemplo, em torno da cartografia, da foto-interpretação


ou, mais recentemente, da imagem de satélite.
Da mesma maneira, é preciso persuadir os ecólogos, assim como
alguns geógrafos sociais, que o espaço geográfico material não era um simples
suporte transparente e isótropo que eles tinham o hábito de eliminar de suas
demonstrações. Propondo a uns como aos outros de “territorializar o meio
ambiente”, nós nos esforçamos para restabelecer a combinação geográfica na
sua dupla dimensão socioeconômica e biofísica, às vezes, material e imaterial.
As aplicações concretas são realizadas em meios muito diferentes, do Maciço
Central Francês aos Pirineus Franco-espanhóis, do Himalaia-Nepal aos Andes
da Colômbia e do Peru. Pesquisas certamente interdisciplinares..., mas a
geografia não é, pelo menos em algumas de suas premissas, um jogo de interface
e de hibridação? Ambigüidade difícil de administrar, ainda mais de justificar...,
mas estimulante para se instrumentalizar.
Levado pelo espírito de reforma dos anos 1968, este posicionamento
científico torna-se institucionalmente artificial e frágil, Se ele foi mais ou
menos bem inserido, mesmo que tardiamente, nos dispositivos de pesquisa, o
mesmo não acontece no ensino universitário. Cria-se assim uma defasagem
particularmente perigosa para o futuro dos estudos ambientais... e geográficos.
A formação, entre disciplina e interdisciplina, torna-se a principal pedra de
impedimento desta arqueologia ambiental de tempo longo.
Despertando “a memória dos terroirs”, nós colocamos indiretamente,
desde os anos 1970, sem ter plena consciência, os problemas do patrimônio,
da identidade e dos valores anexados atualmente ao território. A paisagem,
ainda enevoada por um mal resolvido realismo científico é, portanto, desde
já, um cenário de decoração.
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POR UMA HISTÓRIA ECOLÓGICA DA FRANÇA RURAL

PRIMEIRA PARTE
O IMPOSSÍVEL QUADRO GEOGRÁFICO
Sobre um tema atual, o livro de um
geógrafo, quase fatalmente e por força
das coisas será um quadro/tableau.
L. FEBVRE, 1922

Monumental e elegante, “o quadro geográfico da França” está em


discussão. Ele é uma obra específica do mestre da geografia francesa, onde
não há nada para se mexer. Desde Paul Vidal de la Blache e seu minucioso
historiador L. Febvre, que tudo parece já ter sido dito a respeito dos caracteres
geográficos da campanha francesa e sobre as relações históricas existentes entre
os camponeses e o espaço cultivado por eles. M. Bloch, D Faucher, R. Dion
entre outros, historiadores e geógrafos, souberam evocar os traços originais
permanentes e fundamentais, das paisagens rurais francesas, sublinhando a
unidade e a diversidade, a moderação e as violências destes meios antigos
e profundamente humanizados. As descrições sucessivas coroam uma etapa
capital, a primeira, mas revolucionária, do conhecimento histórico e geográfico.
Meio século depois da afirmação de L. Febvre que dizia que o livro de um
geógrafo quase fatalmente, pela força das coisas, seria um quadro, devemos
recusar a atitude clássica e cômoda que consiste em folhear, sob forma de um
quadro, uma introdução geográfica a uma obra da história. Com efeito, o quadro
geográfico foi ao mesmo tempo a conseqüência e a causa de uma concepção
bloqueada das relações entre o homem e o meio.
Abrir a história dos camponeses por um quadro geográfico do campo
francês, é supor o problema ecológico resolvido. É mumificar um espaço
artificialmente estabilizado no tempo e delimitar no espaço; senão falsificar,
ao menos embaraçar de pressupostos a análise das relações históricas entre as
comunidades do campo e os meios físicos; é finalmente congelar o movimento
da natureza e da história quando o que se precisa é colocá-lo em evidência.
O movimento da natureza e da história é tão hábil e tão cheio de nuances,
que o quadro só pode reter os traços gerais e permanentes em detrimento dos
diversos tipos de dinamismos, efêmeros e duráveis, reversíveis ou irreversíveis,
que formam a trama da história rural. Não se trata pois, dentro de um élan
metafísico, de prender o movimento dialético entre a sociedade rural francesa,
considerada globalmente, e o espaço rural francês, “o hexágono”, mas, ao
contrário, apreender as relações multiformes que se estabelecem entre os
152 O impossível quadro geográfico

tipos de sociedades rurais e os tipos de meios rurais. Além disso, todo quadro
supõe limites territoriais. O quadro também supõe, implicitamente, a escolha
de uma escala espacial de estudo. Os geógrafos clássicos tomaram como base
as “regiões naturais” ou “as regiões geográficas”. Mas existem outros níveis
espaciais, nos quais a função econômica e social variou no curso da história
(parcela cadastral, exploração e propriedade agrícola, território, comuna etc.).
Enfim, os progressos recentes, mas separados, obtidos pelas ciências naturais e
históricas, levantaram a questão das relações entre os feitos humanos e os feitos
ecológicos, às vezes mais aberto, outras mais exato, de qualquer forma menos
simples que há meio século atrás
A interpretação histórica do fator natural nas relações com a
sociedade e a estrutura agrária fica, pois, o problema mais mal elucidado, o
mais raramente abordado e, sobretudo, o mais mal colocado de toda a história
rural. Falta curiosamente uma “dimensão ecológica” a esta história que, aliás,
é largamente aberta sobre outras disciplinas, tais como a Economia, Etnologia,
Antropologia etc. A pesquisa histórica sobre as florestas, as pastagens, os
agrícolas, fica, salvo exceções, presa à finalidade econômica e jurídica. A
floresta só interessa ao historiador na medida em que é onerada do direito de
uso ou abatida. Somente a história das variações climáticas se abre com E. Le
Roy Ladurie sobre as perspectivas ecológicas. Mas a maioria dos historiadores
fica indiferente a este problemas, cegos diante das informações ecológicas. É
um verdadeiro disparate e difícil de interpretar o que contém nos documentos
arquivados.
Esta lacuna não é fortuita. Ela está ligada diretamente ao espírito
da escola histórica e da escola geográfica francesa. (...) Existe uma inibição
tradicional da história diante dos problemas naturais que ela considera como
domínio dos geógrafos. Trata-se de uma atitude que vai além de uma simples
questão de divisão do saber. É uma posição de princípio que releva da lógica
interna de um sistema de pensamento. Uma vez que o homem domina a natureza
- é o primeiro sentido do “possibilismo” que se difundiu entre os historiadores
- o meio natural não constitui um fator determinante da evolução humana.
Assim, a grande maioria dos historiadores se deixou fechar na alternativa
brilhante e confortável, mas pouco científica de L. Febvre que, esquematizando
o pensamento de P. Vidal de La Blache, colocou em oposição o possibilismo
humano ao determinismo natural. Dramatizando as relações do homem e da
natureza, esclerosou-se a reflexão e a pesquisa neste domínio.
É verdade que a geografia francesa não ofereceu aos historiadores
os materiais que pudessem lhes atender. A única grande fonte acessível aos
historiadores, ainda usada largamente, é constituída pelos grandes estudos de
geografia regional do começo do século (Blanchard, Dion, Sorre etc.), cujos
capítulos consagrados à apresentação dos meios naturais estão geralmente
ultrapassados. Renunciar ao “quadro” é também colocar distâncias em torno
da ciência geográfica tradicional e, mais particularmente, a geografia física.
Dessa forma, as ligações privilegiadas entre a história e a geografia, tão
fecundas há meio século, perderam progressivamente seu interesse e estão
normalmente distendidas; é um efeito de evolução própria da geografia física
que foi submergida pelas pesquisas geomorfológicas e que, desta maneira, ficou
O impossível quadro geográfico 153

muito desequilibrada e, sobretudo, muito setorial, perdendo contato com os


problemas humanos. Falta à geografia moderna esta visão global e diretamente
explicativa dos fenômenos naturais de suas interações, assim como uma
orientação francamente biológica. Ora, estas características constituem mesmo
os fundamentos da ecologia moderna. Escolheu-se pois abordar esta história
rural dentro de uma perspectiva ecológica.

A dimensão ecológica

Um estudo ecológico com finalidade histórica parece, ainda em nossos


dias, apostar mais nos ecologistas que nos historiadores Certamente existe o
exemplo radiante de Max Sorre ou de F. Roy Ladurie, etc. Mas não se trata de
experiência sem amanhã? Todavia, o problema do meio natural foi colocado
e sente-se agora, por toda parte, a necessidade de uma explicação, mesmo
incompleta e imperfeita. É preciso reunir a documentação disponível que é
pouco abundante, heteróclita (singular, excêntrica) e muito dispersa. Antes
de tudo, é preciso persuadir os historiadores, os ecologistas e os geógrafos que
se deve abrir um novo campo de reflexão e de investigação interdisciplinar.
A tentativa exige, senão a elaboração de um método específico, pelo
menos substituir um certo número de princípios. No estudo sobre o “clima desde
o ano mil”, E. Le Ruy Ladurie estabeleceu uma ruptura epistemológica entre,
de uma parte, o “estudo climático do tipo histórico e, de outra parte, o “estudo
humano do clima”. Este cuidado com a finalidade é essencial. Conduziu nossa
escolha. Todavia, para nosso propósito, a problemática histórico-ecológica
é ainda mais complexa. Ela se desdobra em pelo menos quatro níveis de
resolução:
- o estudo dos meios naturais tais como se apresentam atualmente,
isto é, profundamente modificados pelas sociedades humanas. Este estudo
não coloca problemas particulares na medida em que se apoia sobre métodos
geográficos e ecológicos habituais. Apesar de se interessar diretamente só pela
história rural mais contemporânea, constitui a única base de saída segura.
- o estudo das flutuações naturais de certos elementos do meio natural
tomadas isoladamente. É o exemplo do clima citado anteriormente, ou de
pesquisas muito localizadas sobre certas espécies ou formações vegetais (análise
de pólen ou de carvão de bosque). Este estudo fornece informações preciosas,
mas muito dispersas e que não se concordam sempre entre si.
- o estudo das flutuações dos meios naturais decorrentes das
intervenções humanas (roçada, equipamentos hidráulicos, erosão dos
solos, reflorestamento, etc.). Estes aspectos são geralmente evocados pelos
historiadores. Analisam em detalhe os aspectos econômicos, sociais e jurídicos,
mas não sabem geralmente tirar partido dos dados ecológicos propriamente
ditos por falta de formação naturalista. O exemplo de um estudo marcante
sobre a vida rural na Alta Provença na Idade Média permite sublinhar a dupla
inconveniência desta lacuna. De um lado, Thérese Sclafert não soube utilizar
plenamente todas as informações relativas à dinâmica regressiva dos meios,
154 O impossível quadro geográfico

que desempenham um papel essencial na deterioração das condições da vida


agrícola, pastoral e florestal; a introdução de sua tese, essencialmente tirada dos
trabalhos de segunda mão de R. Blanchard, é um fraco apoio desde que existem
numerosos estudos de ecologistas ou de florestais. Por outro lado, um ecologista
dificilmente poderá utilizar o trabalho de um historiador porque a documentação
ecológica não foi nem reunida, nem elaborada, nem, sobretudo, criticada no
plano histórico. De seu lado, os ecologistas freqüentemente negligenciam,
sem entretanto o ignorar, o aspecto histórico de suas pesquisas. A que podem
servir, portanto, sumários fitossociológicos sofisticados estabelecidos, ignorando
toda ou quase toda intervenção humana? Ora, esta tentativa é relativamente
freqüente.
- o estudo das relações dialéticas entre a evolução das sociedades rurais
e a evolução dos meios aparece então dentro de toda sua complexidade. Em
suma, trata-se de premiar um edifício do qual partes inteiras ainda não estão
construídas. A principal dificuldade é ter que debater a todo momento problemas
que tratam domínios diferentes (ecológicos, agronômicos, físicossociológicos)
e que ficam sem resposta dentro de suas respectivas categorias.
Dessa maneira, renunciaremos à análise ecológica direta da
paysannerie1 francesa através dos séculos, quer dizer, ao exame de seus aspectos
biológicos, antropológicos, étnicos, integrando com os ambientes naturais que
constituem a ecologia humana no sentido pleno. O estado dos conhecimentos
não permite abordá-la diretamente. Apenas para exemplo, se começamos
a entrever as relações entre a ecologia e a antropologia - hemotipologia no
caso particular das populações pirineanas. Ora, não seria o caso de reduzir ao
estado do epifenômeno aquilo que constitui a realidade ecológica profunda
do mundo rural.
Adotaremos, pois, uma atitude mais clássica, limitando este estudo
à análise das relações históricas que se estabeleceram entre as sociedades do
campo e os espaços rurais que elas exploram.

O espaço rural: realidade ecológica e criação humana

O espaço rural, no sentido amplo, é o meio natural organizado para a


produção agrícola, animal ou vegetal, pelos grupos humanos que fundam sobre
sua totalidade ou sua parte, sua vida econômica e social. Ele se opõe ao espaço
urbano, em função das superfícies quase que inteiramente construídas e das
fortes densidades de população que são organizados para preencher as funções
urbanas: comerciais, administrativas, artesanais e industriais, intelectuais e
políticas. Surgido no neolítico com as primeiras formas de agricultura, o espaço
rural se confunde praticamente, até o sec. XIII, com o ecumeno. Até a revolução
industrial, as cidades são organismos pontuais dispersos. Só a partir do sec. XX
é que o espaço urbano se estende às custas do espaço rural. Mas, desde a Idade
Média, a presença de populações urbanas, cada vez mais numerosas e mais
poderosas no plano econômico e político, tem pesado sobre a vida e o organismo
ecológico do campo: os espaços rurais foram muito rapidamente dominados
1 Conjunto de camponeses.
O impossível quadro geográfico 155

pelas cidades, os quais constituem a zona de influência. Em primeira análise, o


espaço rural é pois uma criação humana permanente, que depende não somente
das populações campesinas que o cultivam e que nele vivem, mas também uma
parte da burguesia urbana que detém o domínio político e imobiliário.
Mas o espaço rural não existe fora das condições naturais. Ele é uma
realidade ecológica. Por definição, ele comporta uma parte maior de elementos
naturais ou diretamente derivados do meio natural: relevo, clima, solo, águas,
vegetais, animais. Todavia, seus componentes naturais não podem ser impostos
como uma dádiva prévia, mas como uma realidade vivida, às vezes dominante,
às vezes dominada, combatida e utilizada do interior de uma organização social
e econômica. A análise ecológica situa-se obrigatoriamente à jusante do fato
humano. É por tê-lo esquecido ou pelo menos negligenciado, que muitos estudos
ecológicos ou geográficos não apresentam mais que um pequeno interesse pela
história ou pela geografia rural.
O espaço rural só pode ser apreendido globalmente. É um conjunto
em que os elementos naturais se combinam dialeticamente com os elementos
humanos. De um lado, ele forma uma “estrutura” na qual a parte aparente é a
“paisagem rural”no sentido banal do termo (bocage, terra, lagoa, floresta); de
outro lado, constitui um “sistema” que evolui sob a ação combinada dos agentes
e dos processos físicos e humanos. Desta forma, quando analisamos a ecologia
do espaço rural, é preciso ter consciência que não examinamos uma parte
de um todo. A ecologia, por sua vez, deve, pois, ser tratada no seu ambiente
socioeconômico e na sua perspectiva histórica.
Todavia, não se pode abordar o estudo ecológico propriamente dito
sem ter a precaução de assegurar suas bases, ou seja, no encontro, discutir e
criticar, ver exorcizar um certo número de idéias preconcebidas, de noções
confusas, de pseudoconceitos de ordem geográfica ou ecológica que encobrem
os trabalhos dos historiadores e paralisam o seu espírito de análise. Entre as
heranças particularmente nefastas, tomou-se primeiramente o conceito de meio
natural, seguido do problema do possibilismo e do determinismo.

Não há mais “meio natural”

O “meio natural” ou “espaço físico” deixa para o historiador uma


noção confusa e passe-partout (muito ampla, chave mestra) carregada de forças
misteriosas e terríveis, em que o geógrafo seria um intercessor obrigatório, mas
do qual se desconfia, apesar de tudo. Os exorcismos de L. Febvre contribuíram,
no seu tempo e à sua maneira, para esclarecer a situação, mas eles também
reforçaram, como já vimos, a separação do saber tão prejudicial aos estudos
rurais. Mais recentemente, F. Braudel e E. Le Roy Ladurie, desordenaram
algumas idéias formadas e, por exemplo, inseriram as sociedades e os problemas
mediterrâneos no seu ambiente natural. Eles reclamaram da parte dos
historiadores mais iniciativa e mais rigor na análise do fator ecológico. Com
efeito, toda evolução neste domínio passa pela aquisição de um certo número
de conceitos da ecologia moderna.
156 O impossível quadro geográfico

Para o ecologista, o “meio” é o ambiente físico-químico de um ser


vivo ou de uma comunidade de seres vivos com o qual os últimos estabelecem
trocas permanentes de matéria e energia. Por exemplo, a lavanda verdadeira
(Lavandula officinalis chaix) pressiona no meio mediterrâneo da garrigue que
corresponde à combinação dos elementos climáticos (seca estiva...), edáficas
(solo, calcário do tipo rendiziforme), florístico (....), faunístico, etc. Como o
indica de outra parte a etimologia, o meio natural se define com relação a um
objeto, vegetal ou animal. Na maior parte dos trabalhos clássicos de ecologia,
trata-se de uma planta ou de uma comunidade de plantas (floresta, charneca).
Com efeito, a ecologia moderna é essencialmente uma fitogeografia: as plantas
são mais cômodas a manipular, mais bem conhecidas, estreitamente dependentes
de um meio homogêneo, enquanto que os animais são mais diversificados,
menos bem repartidos e ainda mais móveis. Esta orientação estritamente vegetal
da ecologia “naturalista’, por mais cômoda que ela seja, é muito restrita para
nosso propósito. Sobretudo, ela coloca um problema de finalidade.
Do ponto de vista das comunidades rurais, o “meio natural” é, numa
primeira aproximação, o conjunto dos elementos “naturais”: relevo, clima,
águas, solo, vegetação, fauna, que concorrem para a estruturação do espaço
rural.
A existência do “meio” está ligada ao equilíbrio entre todos os
elementos que o compõem. Mas só se pode falar de um equilíbrio instável,
evolutivo. Quando o equilíbrio atinge seu mais alto nível, ou seja, quando o
“potencial” abiótico está inteiramente saturado pela explotação biológica ( não
existe mais lugar para se tomar para os seres vivos exteriores à combinação),
diz-se que o meio está em estado de “clímax”( em grego: o mais alto barreau
(nível?) de escala). O conceito de clímax, ou de equilíbrio climácico, é a base
de toda a interpretação ecológica quando se trata de caracterizar a dinâmica
dos meios naturais. Ao menos em teoria, o clímax é assimilado ao ponto de
partida da evolução dos meios. Dessa forma, ele representa para nosso meio
natural no sentido mais estreito do termo, o ambiente ecológico “primário”
não modificado pelo homem. O clímax é pois um postulado cômodo para a
análise histórica do espaço natural.
O “meio natural”, no sentido estrito de estrutura do equilíbrio
climácico, sem perturbação de origem antrópica, praticamente não existe mais
sobre o conjunto do território francês desde a alta Idade Média e mesmo em
numerosos setores (planalto limonoso da Bacia parisiense, certos planaltos
calcários) desde o neolítico. Como demonstraremos mais adiante, os solos, as
florestas, as charnecas, as pastagens, as lagoas e os rios, etc., com os quais os
camponeses têm contato mais ou menos estreitos, não são meios naturais no
senso estrito, mas meios em geral profundamente modificados na sua estrutura e
evolução pelo tipo de exploração (ou tipos sucessivos de exploração). Sozinhos,
alguns setores restritos, dificilmente acessíveis e de fraco interesse econômico,
puderam ficar próximos das condições climácicas (paredes de montanhas,
gargantas, pântanos insalubres), e ainda trata-se de territórios que puderam
desempenhar a função de refúgio durante os períodos de insegurança. Por
exemplo, é impossível descobrir nos Pirineus franceses um setor que não tenha
sido jamais utilizado e modificado pelas populações montanhesas (exceto as
O impossível quadro geográfico 157

altas cristas, pelo menos até o século XIX). A maior prova, nos Pirinéus como no
resto do território francês, é que o conjunto do solo está apropriado. O cadastro
deveria ser um dos primeiros documentos utilizados pelo ecologista.
Assim, o espaço rural não dever estar em oposição ao meio natural.
Um sucede o outro Mas se o meio natural não existe mais, o espaço rural
comporta importantes elementos naturais. Estes últimos não formam uma
estrutura da evolução autônoma, mas participam da dinâmica do conjunto
do espaço rural. Todavia, em uma primeira aproximação, é preciso distinguir
vários tipos de combinações:
- os espaços submetidos à cultura intensiva e praticamente contínua,
ou seja, inteiramente roçados e com solos modificados pelo modo de cultivo
e pelo uso de estrume e pastagem. As condições climáticas podem ser
transformadas, sobretudo a escala de microclimas;
- os espaços seminaturais, ou seja, aqueles que conservaram o essencial
das estruturas naturais (a cobertura vegetal, os solos, a circulação do ar e da
água), mas onde a evolução é controlada pelo tipo e freqüência das intervenções
antrópicas. É o caso das florestas, de uma parte dos campos de altitude, de
numerosas lagoas, pântanos e rios;
- os espaços intermediários submetidos a fases alternadas, mais ou
menos longas, de exploração e abandono. As terras sem cultivo e a maior parte
das charnecas entram nesta categoria.
Se não há mais meio natural no que diz respeito à estrutura e sistema
independentes, os elementos naturais e seus mecanismos próprios participam
sempre na formação e no dinamismo do espaço rural (exceto o caso limitado de
cultura inteiramente artificial, sob estufa, por exemplo). Esta realidade ecológica
não tem pois existência fora do espaço rural e das organizações humanas. Como
problema essencial, resta saber qual lugar ela ocupa na combinação rural. Aqui,
tropeça obrigatoriamente na questão do determinismo.

Uma falsa alternativa: possibilismo ou determinismo?

Conduzir uma análise ecológica do espaço rural sem reduzir primeiro


esta alternativa sobre o plano conceitual seria absurdo e inoperante. Aliás,
esta falta de postulado é, em grande parte, responsável pela confusão dos
espíritos.

Do possibilismo filosófico ao determinismo científico

No final do século XIX, o problema do possibilismo foi colocado no


centro do debate geográfico... e parece ter ficado para muitos historiadores.
Ora, o humanismo vidaliano intervindo em nome da “liberdade humana” só
pode ser compreendido no ambiente científico e político da época. Trata-se
de reagir contra a ecologia alemã nascente, ainda simplista sobre o plano
158 O impossível quadro geográfico

científico e sobretudo carregada de subentendidos éticos e políticos (de onde


vem certas bases “científicas” do racismo nazista). Se Vidal de la Blanche
combateu o determinismo ecológico de Haeckel, ele jamais lançou as bases
de uma teoria contraditória. Ele simplesmente, com a ajuda de exemplos
precisos, mostrou que grandes civilizações, passadas ou atuais, desenvolveram-se
independentemente dos meios naturais, onde eles desabrocham, mas utilizando
os elementos naturais. A nosso conhecimento, ele jamais evocou a atitude
“possibilista” no que diz respeito a tal. O esquema possibilista foi vulgarizado
por L. Febvre, eco amplificador, mas também deformador, do pensamento
vidaliano. Jamais destacaremos suficientemente o impacto de L. Febvre sobre
o movimento histórico francês, particularmente nas suas relações com a escola
geográfica francesa. Certamente, durante meio século, o “possibilismo” (pelo
menos a atitude que aqui corresponde) parece ter feito suas provas na medida
em que constitui uma das pedras angulares da interpretação histórica e também
geográfica. Nas grandes teses de geografia regional na primeira parte do século
XX, a análise das relações entre as sociedades humanas e as condições naturais
é conduzido com muita lógica no interior deste sistema de pensamento que
permite todas as nuances.
São justamente estas nuances que marcam os limites científicos do
possibilismo. Trata-se, com efeito, da aplicação “literária” de um princípio
filosófico vago, tipo de atitude de espírito no qual o humanismo a priori serve
em qualquer tipo de caução moral. Da tomada de posição não formalizada de
Vidal de la Blache contra uma teoria débil e perigosa, os historiadores passaram
para um tipo de posição a princípio pouco refletida e pesadamente cunhada de
que se pod considerar, com um certo recuo, como uma escapa elegantemente
diante das responsabilidades. O possibilismo tal qual se pratica não é mais para
o historiador ou para o geógrafo senão uma forma de evitar o problema das
relações entre as sociedades humanas e os meios naturais. Os inconvenientes
são de uma excepcional gravidade:
Primeiramente, o possibilismo não é outra coisa senão a forma
“científica” do laxismo. Por exemplo, afirma-se, de um lado, que a “policultura
aquitana é uma garantia contra as incertezas do clima”; de outro, que as culturas
frutíferas do vale do Rhône só puderam se desenvolver graças à implantação da
rede ferroviária. Estas afirmações contraditórias no seu princípio não são falsas,
mas elas não são mais exatas: elas são indiferentes, porque elas colocam cada
problema ecológico em um âmbito diferente, o que permite tomar a hipótese
que se deseja, conscientemente ou não. Levar em conta o fator ecológico, por
sua falta de rigor, veio como facultativo e marginal: confiamo-la ao geógrafo
que geralmente não é melhor armado para decidir o debate.
O erro fundamental foi o de confundir os níveis de resolução e
de aplicar diretamente um princípio quase metafísico à análise de um caso
histórico, limitado pela definição no tempo e no espaço. Não se discute o
“possibilismo” da mesma maneira, à escala da espécie humana e à escala de
uma comunidade vilareja do século XI! O que demonstra bem que ninguém
jamais considerou o “possibilismo” como teoria científica. O mesmo não ocorre
com o determinismo natural.
Se o problema deste determinismo fica colocado, ele se deslocou e
O impossível quadro geográfico 159

como que desabrochou desde Haeckel e Claude Bernard, ao mesmo tempo


que as ciências biológicas. A descoberta da “mensagem genética” inscrita
no estoque cromossômico funda o determinismo biológico, quer seja ele
“casual ou necessidade”. As pesquisas sobre a “deriva genética” e os exames
hemotipológicos abrem novas vias aos antropólogos e aos demógrafos, os quais
não podem mais discernir as incidências sobre o plano da ciência histórica.
Nossa proposta, a dobradiça das ciências biológicas e das ciências humanas,
situa-se naquilo que é habitualmente considerado com um limiar epistemológico
essencial. Com efeito, o problema é mal colocado e a “ruptura”, se ela existe,
se encontra em outra parte.

Um determinismo “relativisado”pelos avanços agrotécnicos

O debate determinista deve ser decomposto em vários níveis de


resolução, em função da escala dos fenômenos estudados, quer sejam eles
espaciais, temporais ou sociais. Mas, é preciso primeiro se desembarassar do
discurso maniqueísta sobre as relações do homem e da natureza que só tem
sentido no plano metafísico e que levanta novamente teorias filosóficas que
não concernem, pelo menos diretamente, à nossa pesquisa. A única questão
é apreciar no concreto o peso dos fatores naturais sobre o desenvolvimento
das sociedades rurais e a organização dos espaços rurais franceses. Levar em
consideração as escalas espaciais permite resolver rapidamente uma das
confusões clássicas da análise histórica. Pegaremos como exemplo, não menos
clássico, o problema da localização da vinha que opôs o historiador R. Dion ao
geógrafo D. Faucher. A vinha e sobretudo os grandes vinhedos, afirma R. Dion.
Localizam-se perto das grandes cidades e dos grandes eixos de comunicação,
primeiramente marítimos e fluviais e, mais tarde, no século XIX, ferroviários.
Uma carta da vinha na França à escala ao milionésimo ilustra perfeitamente o
princípio de localização que confirma, por outro lado, a pesquisa histórica (que
explica também, ao contrario, a expansão mais lenta e mais tardia dos vinhedos
que se instalam na Bourgogne ao norte da Provence e que parece ligada em
parte às dificuldades de circulação sobre o eixo “rodaniano”). Por outro lado,
se estudarmos sobre o terreno ou sobre as cartas topográficas a 1:80.000, como
sabia fazer admiravelmente D. Faucher, observa-se que os vinhedos localizam-
se sempre, numa dada região, sobre os territórios que lhe são mais favoráveis
(ou menos desfavoráveis: vertentes pedregosas com solos secos, exposição ao
sul fora de alcance dos lençóis de neblina freática dos vales, como na costa
do Moselle e costa do Jurançon). O determinismo ecológico é evidente, assim
como o determinismo urbano e comercial. Não existe nenhuma contradição, ao
contrário, uma “lógica” na organização do espaço onde interferem, em escalas
diferentes, as dificuldades humanas e ecológicas. Com efeito, se os grandes
vinhedos se formam preferencialmente nas proximidades dos grandes centros
comerciais, eles localizam-se nos setores ecologicamente favoráveis (vinhedos
de costa). A relação cidade-vinhedo-costa periurbana abrigada é um dos fatos
fundamentais da organização do espaço até o século XIX. Citemos, como
exemplo, os casos do pequeno vinhedo constituído na Idade Média sobre as
costas ensolaradas, perto da cidade de Caen. Esta discussão sobre a localização
160 O impossível quadro geográfico

dos vinhedos franceses, que foi abordada na literatura clássica, constitui


mesmo o tipo de falso problema no qual todos os aspectos da realidade não
são analisados nas suas respectivas escalas espaciais. Devemos tomar a idéia
que o determinismo natural está sempre no interior de uma dada estrutura
socioeconômica. O exemplo do pequeno vinhedo de Caen permite, aliás,
precisar este dado de base passando do aspecto espacial ao aspecto temporal,
quer dizer, ao papel do determinismo natural em função da evolução histórica.
Como todos os pequenos vinhedos instalados na Europa de Noroeste até os
limites ecológicos da vinha, qualquer parcela de vinha plantada nos arredores
de Caen não sobreviveram ao desenvolvimento do comércio com as regiões
mais meridionais. Certos historiadores aí viram uma ilustração do “possibilismo”
humano. Não podemos contradizê-los se eles ponderam a escala de evolução
econômica geral da França. Por outro lado, pode-se afirmar que existe
determinismo natural no interior do sistema socioeconômico, como aquele
da cidade de Caen e de seus arredores na Idade Média. Tomemos um outro
exemplo e analisemos um caso muito conhecido de bloqueio ecológico ligado `a
natureza do solo de cultura. Os solos leves, finos e arenosos, geralmente foram
cultivados antes dos argilosos, pesados e hidromórficos como uma conseqüência
natural da ausência do arado à aiveca, de atrelagens apropriadas e de animais
vigorosos. É o caso da Aquitânia: os platôs calcários foram explorados antes
das depressões argilosas que as circundam, como Le Limargue. Não tem menos,
graças à evolução geral da agricultura (introdução do arado à versoir, pastagem
etc.), estes solos pesados foram roçados e tornaram-se algumas vezes o centro
de gravidade de novas comunas. Nesse caso, os platôs calcários vizinhos foram
deixados sem cultivar, e reconquistados pela floresta. Novamente no século XX,
com o aparecimento dos grandes arados e dentro de novas condições sociais e
econômicas, as terras leves e muito cascalhentas dos platôs calcários deixaram
de ser cultivadas. Observa-se realmente que um determinismo natural sucede
ao outro: neste caso, existiu mesmo uma “inversão” de determinismo! Isto
vem do fato que cada sistema agrícola utiliza o meio natural o melhor de seu
potencial agrotécnico e que se estabelece um equilíbrio na saturação do meio
pela atividade agrícola. O fracasso das culturas empreendidas no século XVIII
nas garrigues languedocianas, pelos pequenos vinicultores sem terra, sublinha
a realidade deste limiar ecológico em um dado sistema agrícola.
O último exemplo leva a colocar a questão do determinismo natural
em relação à estrutura social. O camponês cerealista, o viticultor do Sul da
França, o pastor da montanha são, em um dado momento, fechados nos sistemas
de produção que ocultam seus próprios determinismos. Por exemplo, o primeiro
não pode ultrapassar os dez quintos do hectare em função da seca estival, para
a qual as variedades de sementes que têm disponíveis não são resistentes. O
segundo só pode cultivar suas vinhas nos solos calcários secos e pedregosos;
o terceiro não pode aumentar a carga animal devido à qualidade medíocre
das pastagens naturais, pois não possui os meios, as técnicas ou os recursos
financeiros para melhorar. Chega-se assim progressivamente às relações ainda
mais sutis, mas no nosso entendimento fundamentais, entre os determinismos
naturais e a diferenciação social. Numa mesma planície úmida, o pequeno
camponês instalará a parcela de vinha indispensável para o consumo familiar,
no setor menos desfavorável de sua propriedade, mesmo que ela obtenha
O impossível quadro geográfico 161

apenas um vinho ordinário. Nesse caso, o grande proprietário aproveita o


bom crescimento das ervas para transformar seu domínio de pastagens, tirando
assim o máximo de rendimento. Ele procurará seu vinho (que ele deseja da
melhor qualidade) seja no comércio, seja comprando em qualquer vinha sobre
as vertentes vizinhas. O determinismo funciona neste caso no interior de cada
unidade de produção.
Considerar que todas estas situações e as flutuações que as ritmam
relèvent do possibilismo é não querer aceitar o movimento histórico de
conjunto, negligenciar as etapas e ignorar as situações concretas no tempo e no
espaço. Certamente, o “camponês francês” generalisado e abstrato dominou o
meio natural. Dentro da realidade cotidiana, e até secular, o camponês passou
de um determinismo a outro, pelo degrau sempre mais curto, após a revolução
industrial, mudando o modo de proceder, com o século XX. Portanto, o estudo
das “soleiras agrotécnicas” no sentido mais amplo desta expressão (agronômicos,
financeiros etc.) deve constituir uma parte importante de nosso estudo. Todavia,
são os períodos de estabilidade, de bloqueio (determinismo), que são talvez os
mais interessantes tanto para o ecologista quanto para o historiador porque
eles configuram as comunas e as mentalidades camponesas.
Num dado sistema agrícola, sobretudo se ele é pouco evoluído,
portanto rígido, como é o caso praticante até o século XIX, para a maioria
das regiões e classes sociais rurais, o “terroir” estável representa, no interior
da comuna, ela mesma estável, a adaptação da comunidade camponesa aos
recursos naturais. Os recursos naturais conhecidos são utilizados ao máximo
e o sistema se bloqueia, ele próprio. Geralmente o desbloqueio só pode ser
feito pelo exterior: pensa-se imediatamente na introdução da castanha e da
batata. Enfim, não se pode acreditar que os progressos agrotécnicos “liberam
os camponeses”. Os determinismos mudam. O determinismo natural saindo
pode mesmo reforçar, como foi o caso com a “regionalização”das produções
agrícolas na França, no século XIX, graças ao desenvolvimento dos meios
de comunicação, com, por exemplo, substituição das culturas de hortelã ou
hortência (maraîchères) e florais pelas vinhas de massa do sul mediterrâneo.
A Campanha “crayeuse” é um outro caso destes determinismos ecológicos
sucessivos, separados por limiares agrotécnicos ou econômicos particularmente
brutais. Os grandes rebanhos de carneiros para lã foram uma das bases da fortuna
dos condados da Campanha e uma das razões da existência das feiras de Provins,
Lagny, etc. Em compensação, no séculoXIX e durante o primeiro terço do século
XX é a Campanha “miserável”, tal como a descreve os “quadros geográficos”
contemporâneos: solos rasos e secos considerados impróprios para o cultivo,
deixados para as plantações de pinus de baixa relação. Pode-se considerar que
dentro da produção agrícola desta época existiu um determinismo ecológico
no senso estrito.As raras experiências de exploração fracassaram praticamente
todas. O êxodo rural, acelerado no momento dos combates da Primeira
Guerra mundial, esvaziou a região. Mas, depois de alguns anos, assiste-se a
uma mudança completa na economia desta Campanha que não tem mais
nada de miserável. A possibilidade de comprar grandes domínios a preço
muito baixo contrabalançou a mediocridade natural dos solos que pode-se
atualmente melhorar rapidamente em condições financeiras satisfatórias
graças aos progressos efetuados na mecanização e na utilização de adubos
162 O impossível quadro geográfico

químicos. Se se insiste ainda sobre uma inversão econômica é para sublinhar


bem que, neste caso, a referência ao possibilismo só corresponde à realidade
para explicar a evolução geral da Campagne. O que importa igualmente é saber
que os agricultores “champenois”do fim do século XIX e começo do século XX
feriram o determinismo do meio ecológico, não mais que os atuais criadores e
plantadores de beterraba que, uns e outros, a seu modo, e em função de suas
capacidades agrotécnicas, exploraram um meio “determinado”pelas estruturas
socioeconômicas.
Concluindo, o postulado determinista, nos limites estritos que lhe
determinaram, tanto no tempo como no espaço, funda a problemática desta
análise histórico-ecológica. De um lado, rejeita-se o possibilismo integral e
contínuo, de outro, renuncia-se igualmente ao determinismo natural invariante.
A realidade não está entre estes dois extremos. Ela é diferente. Longas fases de
bloqueio, portanto, de determinismo, durante os quais os camponeses foram
confrontados com as estruturas ecológicas limitadas, sucedem períodos de
inovação e de progresso durante os quais as novas possibilidades aparecem na
exploração do meio. Todavia, os benefícios contêm neles mesmos seu próprio
determinismo. É colocar sobre o plano econômico, de modo muito particular, o
problema muito mais vasto e muito mais complexo da evolução do mundo rural:
não uma evolução contínua, mas de longos períodos de estabilidade separados
por limiares geralmente bem marcados. Poderia-se falar de “determinismo
ecológico relativisado” se esta expressão não trouxesse confusão. Estendendo
a análise mais adiante e invertendo os dados do problema, deveria-se afirmar
que são os determinismos econômicos e sociais que bloqueiam a exploraçào do
meio. O fato essencial é que o conjunto dos elementos econômicos que entram
na composição do espaço rural, não somente não são percebidos da mesma
maneira pelas diferentes categorias de agricultores, mas ainda seu conteúdo
objetivo não é o mesmo. Para o nosso propósito de finalidade histórica, as
estruturas ecológicas do espaço rural, a imagem deste espaço, ele mesmo,
são um produto social. Estamos, pois, longe do “quadro geográfico” e de sua
composição “objetiva” e fixista de relações entre as sociedades rurais e seus
espaços de produção e de vida.
163

POR UMA HISTÓRIA ECOLÓGICA DA FRANÇA


RURAL

SEGUNDA PARTE
O NATURAL DOS “TERROIRS”
O fundamento da agricultura é o conhecimento da
base natural das terras que queremos cultivar
Olivier de SERRES

A agricultura é o conjunto de trabalhos que modificam o meio natural


para produzir os vegetais e animais úteis ao homem. Ela é, de um lado, uma
transformação do meio e uma adaptação de certas potencialidades. Colocar
em perspectiva histórica este problema, ele mesmo complexo, levanta as
dificuldades específicas ligadas por sua vez à mediocridade da informação e a
questões de método.
Por exemplo, um dos aspectos fundamentais da vida agrícola através
das idades é um problema de rítmo, balanceamento sasonal, de fenologia
da produção e da vida agrícola com seu cortejo de trabalho e de festas. Não
se sabe como se pode tratar, a partir de grupos humanos dotados de rigidez
econômica e social diferentes, de problemas também complexos de estabilidade
e instabilidade, de continuidade e descontinuidade, de permanência e acidental.
Dito de outro modo, precisaria poder determinar a partir de que variação
de amplitude um fenômeno natural é sentido e suportado por um grupo de
camponeses, seja como uma pulsão “normal” repetitiva (“cíclica”), portanto
atendida, ao qual o grupo está adaptado e que se inscreve no calendário
agrícola, seja como uma calamidade ou uma catástrofe natural, considerada
como uma ruptura do ciclo agrícola, quer dizer exterior ao grupo humano. Uma
tempestade de granizo do fim de verão é sempre catastrófica para um viticultor
do século XVIII ou do século XIX. Mas não o é para o pecuarista vizinho e suas
conseqüências são muito menos graves para o viticultor atual que subscreveu
uma segurança contra tal fenômeno. A idéia ela mesma de catástrofe aplicada
à evolução do meio natural é cunhada de antropomorfismo e não pode ser
diretamente transportada sobre o plano da história rural.
Além disso, tais notações isoladas de seu contexto ecológico e
socioeconômico são sempre difíceis de interpretar. Elas tomam facilmente
conclusões incontroladas, como a relação estabelecida entre o desmatamento
e a erosão dos solos nos Alpes do Sul durante o século XIX. No atual estado do
conhecimento, não parece mais possível levar a menor apreciação motivada de
164 O natural dos “terroirs”

ordem geral sobre o papel do “natural dos terroirs” na evolução da agricultura


francesa do neolítico ao século XX. Tal problemática histórico-ecológica
jamais foi colocada claramente. Sua mise en place só pode ser realizada por
aproximações sucessivas:
- em primeiro lugar, trataremos o espaço rural como uma simples
entidade ecológica, com a ajuda dos conceitos da ecologia de síntese ou
biocenótica;
- em segundo lugar, será possível agora examinar os diferentes tipos
de espaços rurais, em função de sua escala espacial (parcela, território, “pays”,
região natural) e sua repercussão econômica (espaço cultivado, espaço florestal,
espaço pastoril);
- em terceiro lugar, poderemos enfim abordar as difíceis questões
históricas da produção agrícola e da vida rural no sentido amplo (salubridade,
mentalidades, etnobotânico, etc.) que são relacionados com o meio “natural
dos terroirs” o qual todo mundo, desde Olivier de Serres, está de acordo em
reconhecer a importância, mas sem saber ou poder lhe atribuir em lugar objetivo
na história da agricultura francesa.

O espaço rural é um ecossistema

A agricultura é um espaço biotécnico.


Daniel FAUCHER

O espaço rural, tal como definido anteriormente, é ao mesmo tempo


uma realidade ecológica e uma criação humana. É o primeiro aspecto que vamos
tratar prioritariamente, utilizando mais os conceitos e métodos da ecologia que
da geografia.
O espaço rural não é mais que um aspecto particular, mas banal,
da epiderme terrestre. É uma superfície de contato e de instabilidade, uma
interface no sentido dos físicos, onde se encontram e se combinam os elementos
da litosfera, da atmosfera, da hidrosfera e da biosfera. Podemos distinguir três
subconjuntos:
- o potencial abiótico que agrupa todos os componentes inertes: o
substrato geológico e o relevo que lhe é associado, o clima, as águas;
- a exploração biológica que compreende o conjunto das comunidades
vivas, vegetais e animais;
-a utilização antrópica que está ligada a um certo tipo socioeconômico
de exploração do espaço e que interfere com os dois subconjuntos
precedentes.
Mas o espaço rural não é somente uma estrutura espacial autônoma,
é também um sistema integrado e funcional no qual todos os elementos são
dinamicamente solidários uns com os outros, portanto indissociáveis. O espaço
O natural dos “terroirs” 165

rural é, portanto, um ecossistema, ou seja, uma entidade ou uma unidade natural


que inclui as partes vivas para produzir um sistema estável no qual as trocas
entre as duas partes se inscrevem em caminhos circulares. (E. P. Odum, 1958).
“Qualquer que seja o ecossistema estudado, trata-se sempre de um problema
de elaboração, de circulação, de acumulação e de transformação (energia
potencial) para a ação dos seres vivos e de seu metabolismo”. (P. Duvigneaud).
O ecossistema é a representação global e enegética, de uma parte de redes de
seres vivos entre si, de outra parte das relações entre estes seres vivos e seu
ambiente material. Ele é construído sobre a análise das transformações da
matéria e sobre os balanços energéticos que unem os diferentes elementos da
biosfera.
Esta comunidade de seres vivos (biocenose) está fundada sobre os
mecanismos bioquímicos da fotossíntese e da assimilação clorofiliana que
constituem o ponto de partida do metabolismo. Este último corresponde ao
conjunto de reações químicas e biológicas que asseguram o equilíbrio dos
organismos vivos. O interesse se coloca sobre as ligações alimentares, ou cadeias
trópicas, que unem os seres vivos:
- à base da pirâmide dos seres vivos, os produtores ou autótrofos. São
os únicos organismos capazes de elaborar diretamente a matéria viva a partir das
matérias minerais do solo e dos gases da atmosfera (azoto, carbono). Trata-se
dos vegetais clorofilianos e de certos microrganismos;
- aos consumidores ou heterótropos primários que se nutrem
unicamente a partir de substâncias já elaboradas pelos produtores. São os
herbívoros;
- aos consumidores ou heterótrofos secundários que comem os
herbívoros. São os carnívoros ou predadores;
- aos decompositores (bactérias, cogumelos) que se alimentam de
restos orgânicos, de cadáveres. Eles asseguram o retorno da matéria viva no
estado mineral.
A destruição de um único nó repercute sobre o equilíbrio do
conjunto. Ora, a agricultura não é somente uma ruptura do ecossitema natural,
mas é também uma subtração.da produção natural para fins exteriores ao
funcionamento do ecossistema. Ela coloca em evidência um ecossistema de
tipo particular que podemos qualificar de agrossistema. (G. Bertrand).

O agrossistema é um ecossistema exportador “mutilado”.

Do ponto de vista biocenótico, o espaço rural não aparece como o


simples suporte físico das atividades agrícolas. Ele não é redutível às “estruturas
agrárias”assim como as definem tradicionalmente os geógrafos e historiadores. A
oposição entre o “bocage” e o “openfield” não é mais do que a metrologia agrária,
mas não é o centro do debate ecológico. Não se trata mais de descrever uma
“paisagem” agrária, mas de compreender o funcionamento de um “sistema”.
166 O natural dos “terroirs”

- O agrossistema é um ecossistema mutilado (M. Delpoux), organizado


pelo homem para produzir uma certa qualidade e uma certa quantidade de
matéria viva, vegetal ou animal.
- Qualquer que seja o grau de transformação sofrida do.fato da
organização da produção agrícola, o funcionamento do agrossistema fica, salvo
algumas raras exceções, tributário dos mecanismos naturais da fotossíntese e da
assimilação clorofiliana. O mesmo ocorre com a pecuária bovina e a cultura da
vinha, assim como com o crescimento de árvores de uma floresta ou de ervas
de uma pastagem.
- A produção do agrossistema é orientada pelos grupos humanos
sucessivos, em função de suas necessidades, levando em conta as potencialidades
naturais que determinam um certo registro de possibilidades biológicas. O
último é mais ou menos “aberto” ou “fechado” de acordo com os meios.
- A produção agrícola é acompanhada de um prélevement
(levantamento parcial) que é a colheita no sentido amplo. Ela corresponde a
uma exportação de matéria viva ou morta. O agrossistema é um ecossistema
exportador ( E. P. Odum). A colheita empobrece o ecossistema e o desequilibra.
Ele deve, obrigatoriamente, ser compensado pela entrada de matéria viva ou
morta (estrumação, adubo químico ou verde, calagem) e por manejos culturais
destinados a favorecer e acelerar certos processos biológicos (..., irrigação
etc.). O equilíbrio ecológico de uma agricultura, de uma parcela cultivada,
por exemplo, é recolocado permanemtemente sobre a relação saída - entrada.
Aumentar a fertilidade de um campo, melhorar o rendimento de uma cultura é,
portanto, fornecer os elementos minerais e acessoriamente a matéria orgânica
superior em quantidade e em qualidade a simples taxa de compensação. É
também para corrigir certas características desfavoráveis do meio (calagem de
terras ácidas, “sablage” de terras argilosas etc.)
- um dos problemas fundamentais da agricultura francesa, pelo menos
até metade do sec. XIX, foi justamente a dificuldade, e às vezes a impossibilidade
prática de assegurar esta balança ecológica, restituindo ao meio o equivalente
químico dos elementos retirados com a colheita. Durante muito tempo,
colheu-se não somente a espiga do trigo, mas também o caule. Atualmente,
queima-se o restolho com a palha e o enterra. A prática antiga, agravada aliás
pela respiga, tinha sido necessária para o precário equilíbrio entre a colheita e
a carga humana. Ela contribuiu para bloquear a produção dos sistemas cereais
sob o antigo regime, tanto mais parcimonioso era o fornecimento em matéria
orgânica de origem animal, por razões parecidas.
- A segunda dificuldade da agricultura francesa até aquilo que
chamamos, não sem qualquer exagero, de “revolução forrageira”, foi a
concorrência entre a produção vegetal e a produção animal. É a primeira
que quase sempre carregou. Ela é muito mais simples (um único nível
de transformação “trófica”contra duas) e sobretudo muito mais aleatória
(mediocridade das raças animais, doenças) e ela podia alimentar, com igual
superfície, mais pessoas (mas à custa de carências alimentares no domínio das
proteínas animais).
- Enfim, o agrossistema não é somente uma estrutura e um sistema de
O natural dos “terroirs” 167

produção. É também um meio de vida, um ambiente em grande parte herdado


das sociedades rurais anteriores, mas sempre dinâmico. Ele intervem sobre os
comportamentos físico-sociológicos e contribui para formar a mentalidade
camponesa.
O agrossistema corresponde, portanto, por definição, à destruição
dos equilíbrios naturais e à sua substituição pelos equilíbrios secundários,
instáveis, diretamente ligados ao tipo e ao rítmo da exploração. O sistema
de cultura é a base de todo o complexo ecológico. Uma mutação agrícola é
uma mutação ecológica. Um abandono da agricultura remete em favor do
conjunto do agrossistema, portanto suas estrutruras ecológicas. Além disso, o
êxodo rural e o abandono dos cultivos não são, na maioria dos casos, a origem
da reconquista pela natureza. Esta foi destruída de modo geral irreversível e os
estados pós-agrícolas são, de fato, novas combinações ecológicas (cf. maquis
mediterrâneos.
O conceito de agrossistema, baseado nas relações dialéticas entre
os elementos que compõem o espaço agrícola, autoriza as perspectivas, senão
novas, menos raramente abertas e ainda mais raramente exploradas. Tem a
vantagem de demonstrar que o problema ecológico não é nem un préalable,
nem um paralelo na pesquisa histórica. Ele pertence à combinação agrária e
não podemos dissociá-lo sem risco de romper o equilíbrio já frágil das tentativas
de reconstituições históricas. Seu lugar na análise histórica da sociedade rural
francesa é aquele da terra, o tempo que faz e que vai fazer, a água, a planta
cultivada ou natural, o animal doméstico ou a besta selvagem, ocuparam durante
mais de 20 séculos, nos trabalhos e no lazer, nos temores e nas esperanças,
as supertições e as crenças dos camponeses. Estes não são somente, de uma
maneira ou de outra, ligados à gleba. Eles são um elemento, às vezes dominador
e dominado, dos agrossistemas.

Conclusão: primeiros elementos para uma história dos


agrosistemas

A incapacidade atual para abarcar, em um mesmo movimento, a


evolução sócio-econômica da vida rural francesa e a dinâmica própria de
seu meio ambiente agro-ecológico, impede de apreender a realidade global
das sucessivas combinações agrárias. Portanto, mais que a evolução histórica
geral, são certos estados momentâneos, certas situações concretas de equilíbrio
ou desequilíbrio entre as sociedades camponesas e seus espaços rurais, as que
apresentam maior interesse, tanto para o historiador como para o ecologista.
Uma tal mise en point sobre esta questão é ainda prematura. Não
obstante, se podem reunir os elementos para um primeiro esboço. Entre uma
simples fotografia do espaço rural francês, em forma de “quadro” (tableau)
geográfico ou ecológico, e uma impossível análise cinemática, temos escolhido
uma solução intermediária. Consiste esta em apresentar alguns dos ecossistemas
que se tem sucedido no transcurso da história rural francesa. Cada agrosistema
corresponde a uma determinada relação entre um tipo de sociedade rural
e um tipo de meio ambiente, tanto no plano material como no plano dos
168 O natural dos “terroirs”

comportamentos e das mentalidades. A passagem de um a outro “modelo” de


agrosistema corresponde a uma mutação das relações entre a sociedade rural
e seu meio ecológico (inovação agrotécnica, guerra, movimento demográfico,
oscilações climáticas etc.). A análise destas mutações é essencial. Ela expõe,
desde o ângulo da ecologia, o controvertido problema das “revoluções
agrícolas”.
Porém consideramos que seria um grave erro metodológico tentarmos
aqui um exame exaustivo dos agrosistemas históricos. Isto seria retornar aos erros
habituais do “quadro geográfico”. De uma parte nos faltam demasiados meios;
as informações estão dispersas e nem sempre bem controladas. O estudo não
poderia ser homogêneo. Não seria compatível com as novas abordagens para
incorporar esta história do espaço rural da França. De outra parte, atentaríamos
contra o espírito desta publicação coletiva, impondo, a priori, um esquema
ecológico fechado aos diferentes especialistas da investigação histórica. A
análise do elemento ecológico só pode efetuar-se objetivamente no interior
do estudo histórico, em seu devido lugar dentro da explicação global. A prévia
abordagem ecológica se limita a colocar os problemas e a fornecer os métodos
e os pontos de vista do ecólogo.
A enumeração que segue se efetua, pois, a título indicativo e muito
provisório:
- O modelo climácico pré-agrícola. Consiste em definir a situação
dos meios naturais anterior a intervenção agrícola. Estes se caracterizam
essencialmente pelas grandes flutuações climáticas do quaternário frio, durante
as quais aparecem a maior parte dos elementos ecológicos relativamente
heterogêneos que constituem as combinações ecológicas do período histórico
(modelados fluviais, glaciares, periglaciares, alterações e solos, sistemas de
drenagens, flora e fauna etc.). Vários traços ecológicos são importantes no
plano dos desmatamentos e dos cultivos.
- A diversificação do mosaico ecológico onde a floresta joga um
papel preponderante, mas não exclusivo, ao lado das formações aarbustivas e
herbáceas mas cômodos para percorrer e desmatar.
- A instabilidade de um determinado número de meios, mais fáceis
de ser dominados pelos primeiros agricultores.
Os elementos ecológicos que compõem os ecosistemas (mantos de
detritos e os solos em particular) constituem uma riqueza “finita” que não se
pode renovar na escala histórica.
- O tempo das clareiras. Corresponde a um longo período que vai
desde os primeiros desmatamentos neolíticos até finais da Alta Idade Média.
O espaço cultivado, pouco extenso e compartimentado, se libera pouco do
meio natural. Os agrosistemas são dominados pelos ecosistemas naturais que os
rodeiam. Certamente é a única época na qual as sociedades camponesas tiveram
que lutar diretamente contra a “natureza” em sentido estrito. Verdadeiramente
durante este período se formou as “mentalidades ecológicas” das comunidades
camponesas. Um certo número de comportamentos e de crenças sobreviveram à
destruição dos meios. Existem numerosas matrizes no tempo e no espaço, mas o
O natural dos “terroirs” 169

fato ecológico dominante que permanece é o enclavamento (enclave) do espaço


agrícola. Certamente, não é mais o caso da Narbonense mediterrânea e galo-
romano. Porém, em pleno renascimento carolingiano, a campanha se reduz “a
uma paisagem organizada em torno de pontos de povoamentos fixos” (G. Duby).
Algumas informações agro-ecológicas contidas no políptico de Irminon não têm
certamente mais valor geral, senão notas e reflexões agronômicas contidas nos
livros de cultivo de certos fisiocratas do século XVIII. Apesar do campesinato
está enraizado, não parece ter sempre limites muito bem definidos.
- As frentes pioneiras agrícolas e a mutação ecológica. Os
desmatamentos que se desenvolvem desde o século XI ao XIII supõem uma
alteração dos equilíbrios naturais que só pode ser comparada com a crise
ecológica do século XX. A terra de cultivo não só é conquistado da floresta,
senão também de superfícies pantanosas ou simplesmente inundáveis. Se produz
um certo número de evoluções ecológicas irreversíveis tais como a destruição
da floresta, a dissecação dos meios inundados ou inundáveis, a destruição de
plantas e animais, inclusive o esgotamento dos primeiros solos cultivados. O
problema da água, todavia mal estudado, parece ter jogado um papel essencial
nas modalidades de conquista do solo; parece mais importante que a destruição
propriamente dita da floresta, que monopolizou em demasia a atenção dos
historiadores.
- O espaço agrícola finito. No século XIII, o período do crescimento
espacial terminou. Não há mais praticamente meios naturais, com exceção
das extensões aquáticas (ribeiras, lagos e marés). O problema já não é lutar
contra certos elementos naturais, senão organizar a produção em espaços mais
ou menos dominados. Todavia, se utilizam diretamente as “potencialidades”
naturais sem poder sempre compensar a redução da fertilidade natural. O
crescente desequilíbrio se deve, em particular, a uma mal inserção da pecuária
na economia agrícola. O campo do século XIII corresponde mais ou menos ao
espaço agrícola atual. Todavia, se trata de uma agricultura geralmente extensiva,
ainda próxima aos circuitos ecológicos naturais, nos quais o aporte humano,
em técnicas de cultivo e abonos, só assegura equilíbrios precários e, inclusive,
muito ameaçados até finais do século. Os agrosistemas ampliaram sua superfície,
porém seu funcionamento não parece ter melhorado muito.
- O refluxo agrícola e a pressão ecológica. A guerra dos Cem Anos, as
epidemias de peste negra e as oscilações “úmidas” dos climas originam uma crise
agrária que parece ter modificado as relações estabelecidas entre as sociedades
camponesas e os meios que explotam. O espaço rural “finito” e extensivo do
século XIII resulta, em grande parte, desmantelado. Certamente, não há que
olvidar a importância real dos abandonos agrícolas (Wustungen). Porém as
frentes florestais invadem os pastos e as parcelas cultivadas, as infraestruturas
hidráulicas mal conservadas deixam de proteger das inundações, os pantanais
se extendem e constituem importantes focos de malária; a falta de manutenção
das vias de comunicação, das pontes em particular, aumenta o isolamento de
grupos de agricultores; os animais “daninos” rodeam os limites das fazendas.
Este retorno forçado à vida selvagem enche de grande temor as campanhas
franceses. Ademais, a fertilidade adquirida diminui com os abandonos de
cultivos e a crise da pecuária. As comunidades rurais famintas e debilitadas
170 O natural dos “terroirs”

não controlam mais seus agrosistemas.


A reorganização do espaço rural exigirá vários séculos. Em algumas
regiões, o movimento começa no século XVI. É o começo das “roturações”
do Languedoc que atacam as garrigas (E. Le Roy Ladurie). Esta reconquista
parece ter sido em todas as partes mais difícil que os primeiros desmatamentos.
Se trata de um simples problema de densidade humana e de estrutura social?
Nós podemos também perguntar se a expansão agrícola do século XIII deixou
seqüelas ecológicas, em particular um esgotamento dos solos cultivados e uma
degradação da floresta (na verdade, as florestas ganham menos territórios que
os matorrais/capoeiras e prados sobre os culstivos nos séculos XIV e XV).
- O espaço semeado e limitado. É difícil fazer-se uma idéia da
situação ecológica do século XVII e princípios do XVIII. A produção global
da agricultura parece ter aumentado, certamente graças a algumas melhorias
técnicas. Não obstante, a compartimentação administrativa e a prioridade
outorgada à produção de cereais tem como conseqüência a homogeneização dos
sistemas de cultivos, isto é tirar pouco proveito do mosaico ecológico regional.
A única exceção parecer concernir ao vinhedo. Isto tem como conseqüência
uma grande rigidez e uma produtividade muito baixa que deixa esta agricultura
muito sensível a qualquer incidência em relação a uma situação média
artificialmente mantida pela administração real. A vida agrícola está a mercê
da menor oscilação econômica ou climática. Nesta agricultura bloqueada os
elementos ecológicos sofrem uma pressão constante que ameaça sua existência.
A floresta desmantelada e cujos recursos são in
171

A “ARQUEOLOGIA DA PAISAGEM” NA
PERSPECTIVA DA ECOLOGIA HISTÓRICA

A “arqueologia da paisagem” não é, por enquanto, mais do que uma


expressão feliz, mas ela certamente terá sucesso. Seria preciso, por essa razão,
reconhecer nela um campo de investigação, senão novo, pelo menos em via
de renovação? Podemos experimentar certa apreensão, pois poderia tratar-se
apenas de uma adaptação fácil de velhas práticas ao gosto atual. O risco não
seria de ver surgir uma espécie de neogeografia agrária formalista e geométrica?
Não poderíamos nos contentar em pôr algumas rendas em velhos trapos!
Esta é a razão pela qual é preciso situar muito rapidamente
a “arqueologia da paisagem”. Do ponto de vista da sociedade global
contemporânea, ela traduz o surgimento da ecologia no social e se conecta ao
movimento ecológico e ambientalista. Esta nova exigência sobre a qualidade
do vivido explica um aumento da curiosidade pelos “ambientes de vida” atuais
e antigos. A arqueologia registra esta nova necessidade se interessando pela
paisagem. Assim agindo, ela vai obrigatoriamente invadir o campo das ciências
naturais e ter que se adaptar a novos métodos e técnicas. A “arqueologia da
paisagem” deve então ser apreendida como uma tentativa de reencontrar o
vestígio das relações históricas estabelecidas entre a sociedade e a natureza.
Trata-se de um procedimento complexo e ainda pouco habitual que
não pode reduzir-se apenas à aquisição de uma ou de várias técnicas novas. A
“arqueologia da paisagem” deve ser, em um primeiro momento, englobada em
uma problemática mais vasta que é aquela da ecologia histórica, isto é, de um
estudo das relações entre as sociedades sucessivas e os espaços geográficos que
elas transformam para produzir, habitar e sonhar.
Esta comunicação é o resultado de uma reflexão coletiva empreendida
no âmbito das pesquisas do CIMA-ERA 427 que se dedica, desde 1996, à análise
integrada dos meios naturais e, desde 1974, à ecologia histórica em colaboração
com pré-historiadores, arqueólogos e historiadores. 1

A transparência da paisagem

À primeira vista, a paisagem parece ser um objeto concreto


perfeitamente adaptado aos métodos e técnicas da arqueologia, especialmente
da arqueologia aérea. Se a reconstituição de um habitat ou de uma parcela, a
1 O CIMA – Centro interdisciplinar de pesquisa sobre os meios naturais e o aménagement rural
(Equipe de pesquisa associada ao CNRS nº. 427) - organizou um colóquio interdisciplinar sobre “a
ecologia histórica” em julho de 1976 em Bagnères-de-Bigorre (Hautes-Pyrénées).
172 “A arqueologia da paisagem” na perspectiva da ecologia histórica

detecção de uma via romana, pertencem desde sempre à pesquisa do arqueólogo,


a utilização dos levantamentos vegetais, das análises de solo e o exame dos
lençóis freáticos é também de prática comum e geralmente bastante frutífera.
Considerar e interpretar a paisagem diz respeito a uma outra problemática que
é, por definição, de ordem ecológica. Ora, a paisagem em si, na sua globalidade,
escorrega como areia entre os dedos. É realmente preciso nos estendermos desde
o começo sobre o sentido da palavra e sobre a finalidade do procedimento.
A “paisagem” pertence à linguagem comum ao mesmo tempo
mais banal e mais rica de sentidos diferentes. Podemos tentar, pelo menos
negativamente, definir o seu conteúdo.
– A paisagem não é um objeto “objetivo” suscetível de ser
apreendido diretamente enquanto tal. Trata-se, com efeito, de uma porção
de espaço delimitado por um olhar, assim posta em perspectiva e percebida
por um observador através de uma filtragem de valores sociais, econômicos,
religiosos, estéticos. A paisagem é então, desde a origem, um produto socializado
e a “paisagem arqueológica” é, em larga parte, uma criação da arqueologia. A
paisagem não é o registro neutro de fenômenos naturais.
– A paisagem também não é a emanação direta da natureza.
Não existem mais espaços naturais, que foram substituídos, aparentemente
desde antes do período histórico, por unidades agrícolas, florestais ou pastorais
mais ou menos controladas por grupos humanos. A paisagem então ainda é,
nesse novo sentido, um produto social. Todavia, mesmo as paisagens mais
artificializadas permanecem sempre dominadas por mecanismos naturais:
energia solar, fotossíntese, que elabora a matéria viva, ciclos bioquímicos,
energia gravitacional, etc. Não há paisagem sem dimensão ecológica.
A paisagem não é então um conceito, no máximo uma noção
abundante que cada um acreditou poder usar a seu modo e sob acepções diversas.
Ela exerce há alguns anos a função de casa da mãe joana. Com isso, ela se
tornou confusa, depois insignificante e enfim transparente! Os arqueólogos
vão aumentar ainda mais esta incoerência, esta ambigüidade, depois dos outros
pesquisadores?
A experiência mono ou pluridisciplinar mostra que não se pode, pelo
menos na fase atual da pesquisa ecológica e social, haver entendimento sobre
o conteúdo da paisagem. Propomos uma outra via: renunciar a este vocábulo
no plano científico - e continuar usando - no seu sentido banal - e pesquisar
verdadeiros conceitos, talvez menos ricos em seu conteúdo, mas mais claros,
portanto, mais operacionais.

Os conceitos naturalistas

A produção de conceitos diferentes marca ao mesmo tempo várias


fases na pesquisa sobre a paisagem e a diversidade das finalidades.
– O “meio geográfico” é menos um conceito do que uma noção
mal dominada à qual a anterioridade e a imprecisão garantiram certo sucesso.
“A arqueologia da paisagem” na perspectiva da ecologia histórica 173

Esta é de qualquer forma uma apreensão literária e sensível da paisagem que


exige mais habilidade do que rigor e que não resiste ao uso. O “meio geográfico”
se decompõe rapidamente em uma destas enumerações com vários elementos
que ainda caracterizam alguns “quadros geográficos”. É por falta de análise
coerente e pertinente do “meio natural” que a geografia humana desviou-se
não apenas da natureza, mas também da análise regional clássica. Nem por
isso o “meio geográfico” representa menos uma primeira tentativa de definir
a paisagem em relação ao homem ou à sociedade, isto é, ele trás a natureza a
uma dimensão social, o que corresponde à preocupação da arqueologia.
O ecossistema dos naturalistas é um conceito clássico diferentemente
vigoroso e brilhante. Ele integra, hierarquiza e explora o lugar e o funcionamento
de cada ser vivo e de cada espécie na cadeia alimentar, levando em conta sua
relação com os outros elementos da biocenose e com as condições do biótopo.
O ecossistema se baseia sobre o mecanismo bioquímico da fotossíntese e da
assimilação clorofiliana. Todos os elementos ali são solidários e a destruição
de um único elo repercute sobre o equilíbrio do conjunto. A informatização
permite a modelização e a simulação, pelo menos na teoria, da reconstituição
do conjunto do sistema a partir de alguns elementos conhecidos, o que não
pode deixar o arqueólogo indiferente. Entretanto, o conceito de ecossistema,
por mais indispensável que pareça à “arqueologia da paisagem”, não parece
suficiente. É uma construção essencialmente biológica que empurra para suas
margens os componentes não vivos do meio, por exemplo, ele negligencia o
relevo e os efeitos geomorfológicos e, de um modo geral, integra mal o espaço
e seus efeitos aos diferentes níveis de escala. O ecossistema está na paisagem,
ele não é toda a paisagem. Nem por isso ele deixa de ser atualmente uma das
melhores abordagens.
- Alguns geógrafos franceses, em particular a equipe do CIMA-ERA
427, se interessaram recentemente pelas análises integradas do “complexo
físico-geográfico”, retomando a expressão dos pesquisadores da União Soviética
ou da Europa Central que desenvolveram conceitos e métodos particularmente
eficazes, mas bastante sofisticados. Trata-se, como no caso do ecossistema,
de uma tentativa de apreender globalmente o meio natural e de tratá-lo pelo
método sistêmico. Toda unidade de paisagem, ou geossistema, define-se por
uma estrutura espacial e por um funcionamento biogeoquímico autônomo no
qual a fotossíntese não é mais do que um subsistema cuja função muda com
a paisagem estudada. O geossistema então aparece como um novo conceito
que permite apreender o conjunto das relações que existem sobre uma porção
de espaço dada entre um potencial abiótico, uma exploração biológica e uma
174 “A arqueologia da paisagem” na perspectiva da ecologia histórica

utilização antrópica. Todavia, ainda que ele leve muito em conta o subconjunto
socioeconômico como elemento estruturante e dinâmico da combinação
ecológica, o geossistema permanece um conceito rigorosamente naturalista
na sua concepção e na sua finalidade.
Para o naturalista que utiliza o método ecossistêmico ou geossistêmico,
a paisagem não é mais um pau-para-toda-obra ambíguo. O pesquisador
pode classificar, comparar, cartografar, portanto, definir estruturas e analisar
dinamismos. Ele pode também, em certa medida, prever evoluções paisagísticas.
A análise integrada dos geossistemas se abre então naturalmente para a história
e para a arqueologia. Graças a este conceito, a ecologia histórica torna possível
uma “história natural” da paisagem. O mesmo não acontece para uma “história
social” desta mesma paisagem.

A interpretação social do geossistema

O historiador ou o arqueólogo que deseja interpretar as relações


mutantes entre uma sociedade e um “meio natural” se vê confrontado, como
todo pesquisador em ciências sociais, a uma escolha de tipo filosófica. Não se
trata de reproduzir aqui o debate sobre o determinismo natural senão para dizer
que ele foi mal colocado na escala da sociedade e que ele foi durante muito
tempo mascarado na França pelo sucesso fácil do “possibilismo” vidaliano, muito
especialmente entre os historiadores para os quais o meio natural tornou-se
inexistente por ser tão plástico.
É preciso inverter a problemática e não mais considerar o “meio”
como um dado preestabelecido em função do qual ações antrópicas seriam
possíveis ou impossíveis. De fato, não se pode abordar a análise social através
da mediação de conceitos e de postulados naturalistas. É preciso partir de uma
problemática e de conceitos sociais, ou seja, do modo de produção dominante e
dos sistemas de produção que dependem dele. As relações ecológicas e culturais
da comunidade aldeã medieval como a clareira não podem ser concebidas fora
do mundo de produção feudal e dos limites técnicos do sistema de produção
agrícola. É bem verdade que o geossistema “clareira”, mesmo profundamente
remanejado e dominado pela ação antrópica, não deixa de ser uma estrutura
e um sistema que possui uma existência própria de tipo ecológica. Mas ele só
tem uma “existência” social através do sistema de produção que organiza o
espaço, o utiliza, o organiza ou o destrói. O geossistema então não é utilizado,
vivido e percebido enquanto tal, mas sim em relação com as forças produtivas
e em função das categorias sociais. Trata-se então de uma relação de produção
no sentido amplo e é isto que interessa em primeiro lugar ao historiador e ao
arqueólogo. Isto equivale, em um primeiro tempo, a construir um número
de cenários ecológicos equivalente ao número de sistemas de produção e um
número de subcenários equivalente às categorias sociais. Este procedimento
pesado mas eficaz permite perceber que os determinantes ecológicos são
na maioria das vezes de origem social e funcionam entre limites técnicos e
culturais. Estas conclusões não são muito novas, mas elas ligam a ecologia ao
“A arqueologia da paisagem” na perspectiva da ecologia histórica 175

social e o social à ecologia em um movimento dialético que, de um lado, evita a


neutralização do “natural do terroir” e, por outro lado, afasta este imperialismo
ecológico que às vezes tende a mecanizar e a esmagar as relações das sociedades
com seus espaços.

Superar a alternativa

A situação atual da ecologia histórica ainda é a de uma alternativa.


Por um lado, é a atitude naturalista que, ao usar a história e suas
fontes, procura apreender melhor as paisagens atuais ao reconhecer-lhes uma
história na qual o elemento humano representa uma função essencial. Com
isso, conceitos ou postulados tão clássicos quanto o clímax, o pára-clímax, os
estágios de artificialização, e o próprio ecossistema se encontram ao mesmo
tempo confusos e enriquecidos.
Por outro lado, é uma atitude historizante mais garantida, capaz de
contabilizar e rentabilizar o subsistema ecológico: os ritmos sazonais e os ciclos
biológicos que dominam o calendário agrícola, a definição psicoeconômica de
“catástrofe natural” em uma dada sociedade, os recursos naturais tecnicamente
mobilizáveis, etc. Há, então, subordinação e dispersão de matéria ecológica
que é, com esta condição, posta a serviço da história, isto é, inserida em uma
problemática social. Esta atitude seria particularmente perigosa e ineficaz se
se tratassem de partes isoladas que não seriam sustentadas por uma reflexão
metodológica constante do tipo daquela que a ecologia histórica tenta
conduzir.
Na sua fase atual, a ecologia histórica tenta escapar a esta alternativa
que, aliás, faz cada vez mais papel de contradição interna. O retorno a certo
hengelianismo poderia ajudar a desenvolver a problemática. Mas o corte só
tende a persistir no plano da prática quotidiana da pesquisa, na medida em que
ele é mantido pelas divisões disciplinares, e até por uma interdisciplinaridade
mal conduzida.

Das técnicas arqueológicas ao método científico

- No plano do método, notamos duas atitudes que, aliás, não são


inconciliáveis. O mais difundido, por ser o mais fácil, consiste em pesquisar
nas ciências da natureza um apoio técnico, particularmente no campo da
datação e da cronologia fazendo apelo a disciplinas tais como a palinologia,
a paleontologia, a pedologia, etc. Há aí uma complementaridade natural
interessante, mas que não vai além da troca de serviço, e que permanece
exterior à problemática fundamental de cada disciplina. Esta atitude é tanto
mais insuficiente e criticável pelo fato que o arqueólogo freqüentemente
só faz apelo a uma única técnica, por exemplo, à fotografia aérea. A outra
atitude, mais responsável e mais exigente, é a de estabelecer a partir de uma
experiência interdisciplinar uma reflexão comum sobre um sujeito de estudo
176 “A arqueologia da paisagem” na perspectiva da ecologia histórica

comum, neste caso a paisagem. É esta via que uma “arqueologia da paisagem”
bem compreendida deveria tomar.
- a “arqueologia da paisagem” parece desde já obedecer a certa lógica
interna que implica que os pesquisadores possam rapidamente adquirir bases
ecológicas diferentes de simples técnicas reproduzíveis. A “arqueologia da
paisagem” parece poder se desenvolver a partir de alguns postulados simples;
- a “arqueologia da paisagem” é um procedimento socioecológico
integrado que transcende a simples análise das estruturas agrárias;
- a “arqueologia da paisagem” deve usar o método regressivo, pois
o único ponto de referência é o geossistema tal qual como existe e funciona
atualmente. Precisamos nos separar definitivamente do mito da “floresta
primitiva” e de um hipotético clímax;
-a “arqueologia da paisagem” deve ser uma reconstituição contínua dos
geossistemas e deve superar as separações tradicionais dos estudos históricos;
- a “arqueologia da paisagem” deve ser uma pesquisa espacial que
não se contenta com ler no solo os limites geométricos, mas que deve analisar
unidades de produção.
A arqueologia da paisagem está em evolução. Agora ela parece muito
menos simples e imediata do que poderíamos supor no começo. A reconstituição
de combinações socioecológicas complexas ainda é pouco habitual ou ainda
ingênua e grosseira demais. Isolada, a arqueologia da paisagem não pode
desenvolver-se, pois ela não pode garantir sozinha a problemática ecológica
que lhe é indispensável. Ela deve participar do esforço teórico e prático da
ecologia histórica que constitui atualmente um caminho entre tantos outros
para reencontrar a unidade perdida da história e da natureza.
177

A MEMÓRIA DOS TERROIRS


Claude e Georges Bertrand
“O campo é um país estrangeiro”
G. Pérec

Prostrada sob o sol mediterrâneo, na vibração opaca do calor e da luz,


a cidadezinha C., envolta por seus vinhedos e pelas suas garrigues (vegetação
típica da zona mediterrânea), nos confins do Minervois vinícola e da Montanha
negra florestal, não seria, vista da auto-estrada que corre muito reta para o
Mediterrâneo, mais do que uma bonita paisagem “pitoresca”, se não chegassem
até nós, misturadas com o sol e o vento, as palpitações mais profundas de sua
história, as quais fazem dela um fragmento, uno e indivisível, da civilização
agrária do Languedoc e da França.
Fragmento que não é mais do que um mosaico. Terroir que justapõe,
que superpõe, recompõe. Muralhas obesas e restos de castelo medieval, moinho
de trigo do século XVII com as pás cortadas e como que perdido em um vinhedo
uniforme, parcelas quadriculadas por vários cadastramentos romanos, garrigues
retornadas ao estado selvagem invadindo “rompudes” do século XVII e por
sua vez tomadas, ao sabor dos incêndios, pelo fluxo e refluxo dos pinheirais;
carreteiros meio apagados que sobem a montanha próxima a pino, dólmen
derrubado sobre a mais alta colina, abrigo magdalenense perto da fonte seca e,
afastado da cidadezinha, cubo cinza da “cave” cooperativa, último símbolo de
uma sociedade vinícola hoje em crise.
A memória afugenta o banal. No coração do consciente e do
inconsciente coletivo forja-se a identidade na profundidade de uma história que
dá sentido às formas da paisagem. Então, a bastide (tipo de aglomeração urbana
fortificada, no topo de uma colina, ou habitação rural isolada) e a garrigue,
o moinho e o pinheiro, o chai (lugar onde se fabrica o vinho, se estocam as
uvas) e o arado, a trilha perdida e o menor vestígio de mureta, inscrevem-se
em uma arqueologia do viver e do saber que desenha uma civilização agrária
e fundamenta uma cultura.
Este prefácio, improvisado do exterior da disciplina arqueológica,
não pode ser mais do que o ponto de vista parcial de dois hurons geógrafos,
que situam sua reflexão na interface da natureza e da sociedade... lá mesmo
onde nascem e amadurecem os terroirs. Primeiramente, reflexão sobre a
disciplina arqueológica em si: a arqueologia como memória dos terroirs ao
mesmo tempo flutuantes e multisseculares: a arqueologia como ciência, aquela
dos arqueólogos, com seus métodos e suas técnicas, com suas certezas e seus
178 A memória dos terroirs

questionamentos. Mas também interrogações sobre este extraordinária e nova


“necessidade da arqueologia” e particularmente da arqueologia agrária, em
um momento em que a atividade agrícola se encolhe, em que a civilização
rural tradicional se desintegra e em que, em torno de nós, morrem os terroirs
e apagam-se lentamente suas memórias. Enquanto o campo, esta terra dos
ancestrais dos citadinos, “folclorizada” e “turistificada”, se torna como que um
país estrangeiro.
“Contribuir para o espetáculo”...
(A. Schnapp)

Contrariamente à maioria das outras ciências do homem e da


sociedade, a arqueologia hoje se encontra na moda e às vezes, direta ou
indiretamente, no pico da atualidade. Nossa sociedade urbana cada vez mais sem
raízes, agitada e preocupada com o seu futuro, esforça-se por permanecer atada
a seu passado camponês, à sua história e à sua paisagem. Pesquisa de identidade
que não é isenta de um pernicioso saudosismo construído em torno do mito dos
“bons velhos tempos”. Assim, a arqueologia encontra-se na mira, no cruzamento
das grandes “questões agudas” que povoam nossa civilização: trajetórias das
sociedades e de suas culturas, relações da sociedade e da natureza, cargas
mitológicas e simbólicas, política de preservação e de gestão do patrimônio.
Questionamentos com implicações culturais, econômicas, biológicas...
A arqueologia, ciência do passado como a história, tem sobre esta
última a vantagem decisiva de trabalhar com o concreto, de exibir aos olhos
provas tangíveis, objetos ou imagens de objetos, que retêm tanto mais a atenção
por serem freqüentemente tão belos quanto estranhos. Quem nunca sonhou
diante de um torque (colar usado pelos celtas, e depois pelos romanos) ou de um
capitel, diante de um drakkar reconstituído como diante do mais humilde ralo
de osso ou de pedra? Produtora de imagens fortes e “exóticas”, perfeitamente
telegênica e fácil de mediatizar, a arqueologia soube sair do academicismo
e da confidencialidade. Ciência do mistério e freqüentemente do suspense,
ela adapta-se perfeitamente à personalização e à dramatização do sistema de
comunicação contemporâneo. O arqueólogo, herói dos tempos modernos, é
então confundido com o aventureiro em busca de algum tesouro... geralmente
submarino. E cruzeiros supostamente arqueológicos sulcam os mares do globo.
“A arqueologia é intimada a contribuir para o espetáculo”. Para seu próprio
risco... mas também para sua vantagem.
Esta situação não é realmente nova para os tradicionais e soberbos
caminhos dourados da arqueologia: egiptologia, antiguidades grega e romana,
algumas pesquisas pré-históricas. Até aqui a arqueologia agrária, disparatada e
desorganizada, muito mais humilde em seus achados, tinha ficado, enquanto
parente pobre, de lado. Por sua vez, ela tornou-se atual e entrou totalmente em
uma vida cultural ampliada, aprofundada, muito mais sensível à diversidade
das culturas regionais e ávida por ouvir todos os sotaques do terroir.
“O fim dos terroirs”
(E. Weber)
A memória dos terroirs 179

A arqueologia agrária encontra-se confrontada, e não somente na


França, com a superposição no espaço de dois movimentos contrários que se
sucederam no tempo.
De um lado, desde o Neolítico, ocorre o desabrochar de uma
civilização rural com forte base agrícola, potente e dominadora, motor
multissecular da economia e da sociedade. Ela modelou as estruturas e os
funcionamentos fundamentais do espaço geográfico: cidades e finage (conjunto
das terras exploradas por uma mesma comunidade rural), parcelas, redes de
caminhos, fertilidade dos solos, distribuição das terras, circulação das águas.
A impressão de equilíbrio de conjunto, aliás não redutível à imobilidade, está
ligada a uma globalização e a uma colocação em perspectiva de longo prazo
certamente excessivas. Portanto, ela não tem, para o arqueólogo, mais do que
um frágil valor operacional. O comum parece ser os desequilíbrios múltiplos,
acompanhados ou seguidos de reajustes parciais.
Por outro lado, com a segunda guerra mundial e a “reconstrução”
que se seguiu, ocorre a expansão industrial e urbana que amplifica o êxodo
rural e torna a crise agrária irreversível. Primeiramente, fusões de propriedades
destruidoras e plantações insensatas de florestas de resinosas; em seguida,
abandono e “congelamentos de terra” que atingem os mais fracos dos terroirs:
periferias urbanas, zonas úmidas, meios mediterrâneos e montanheses, litorais,
etc. Hoje, as unidades de produção da agroindústria não se inscrevem na lógica
de uma estrutura agrária e de uma paisagem rural. Elas são incompatíveis com
a tradicional “organização dos campos”, este fundamento dos terroirs proposto
por Olivier de Serres.
Se certos terroirs ou elementos de terroir são protegidos por sua
própria fossilização, muitos outros são desmembrados ou desaparecem para
sempre. Às vezes, a permanência do habitat e da exploração agrícola faz
com que o passado morto e o passado ainda vivo se misturem às formas mais
atuais da atividade agrícola e rural. É o caso da maioria das grandes estruturas
agrárias: cidadezinhas, parcelas, caminhos e campos parcialmente perenizados
desde seu estabelecimento neolítico ou medieval. Tal como palimpsestos mal
apagados, os terroirs das antigas civilizações agrárias estão cada vez mais difíceis
de decifrar. Tanto mais porque a prática científica não é a única em causa. A
pesquisa arqueológica se inscreve cada vez mais em uma realidade econômica
e uma política de conservação que ultrapassam os próprios arqueólogos, mesmo
com eles sendo os principais atores... e às vezes também as primeiras vítimas
disto.

A emergência do patrimônio

Assim como a pesquisa histórica passou, no século passado, da história


factual a uma concepção mais global e mais complexa, a arqueologia viu, ao
longo das últimas décadas, seu campo de investigação ampliar-se e diversificar-
se. Isto porque a própria noção de patrimônio evoluiu consideravelmente nesse
nosso século carente de heranças. Ao clássico patrimônio artístico do começo
do século XX, tomado em um sentido elitista, ofuscado pela peça rara ou de
180 A memória dos terroirs

forte valor estético ou econômico, sucedeu uma visão patrimonial mais aberta e
mais social, de algum modo mais democrático. Foi na corrente desta revolução
cultural que a arqueologia agrária pôde se desenvolver. A memória dos mais
humildes, aquela dos camponeses, é cada vez mais solicitada. As paisagens que
as sociedades rurais elaboraram e mantiveram são cada vez mais apreciadas em
um movimento de recuperação cultural que não é isento de ambigüidade, mas
que, por enquanto, só pode favorecer o desenvolvimento da arqueologia.
De uma parte, o objeto mais banal e mais quotidiano se tornou digno
de interesse. A casa camponesa, o arado, a cerca viva são analisados da mesma
forma que a capela do castelo ou a villa do notável galo-românico. Por outro
lado, a arqueologia não procura mais isolar os objetos excepcionais nem fazer um
inventário à la Prevert. Ela se exercita em determinar conjuntos significantes
de objetos para reconstituir sistemas culturais, arquiteturais, econômicos,
etc. Hoje, a arqueologia entrou na análise do processo social. Ela deve então
participar de uma política patrimonial ampla e didática que coloca em novos
termos a questão até aqui mal resolvida da preservação e da apresentação dos
resultados da pesquisa. Cada vez mais são feitos esforços para compensar a
inevitável mumificação da museologia clássica, desenvolvendo as exposições
no próprio sítio, respeitando o meio ambiente, o mais próximo das condições
reais. Para os setores particularmente frágeis ou ameaçados, e sobretudo para
os sítios arqueológicos “importantes”, foi desenvolvida uma estratégia de
“santuarização” do tipo daquela das reservas naturais... ao passo que os turistas
podem extasiar-se diante de uma cópia de Altamira ou de Lascaux. Este é o
preço a pagar para que um patrimônio aumentado seja oferecido ao maior
número nas piores condições.

O encontro com a ecologia

O arqueólogo é um homem de terreno, um homem do concreto que


escava e que mede. Desde as suas origens, a arqueologia agrária encontrou,
pode-se dizer de forma absolutamente natural, a natureza e os problemas
naturais. Primeiramente, encontro com os elementos físicos: o solo suporte
da agricultura e protetor dos vestígios arqueológicos; a flora e a fauna, bases
da alimentação, e a rocha, base das ferramentas; o clima e suas oscilações; as
águas indispensáveis e destruidoras. O encontro com as ciências da terra e as
ciências da vida então era inevitável: geologia, zoologia, botânica, climatologia,
pedologia, geomorfologia, etc. Ele foi precoce e fecundo. Os arqueólogos
souberam pôr esta interdisciplinaridade a serviço de sua problemática. A atitude
dos pré-historiadores é, a este respeito, exemplar. Eles jogaram rapidamente não
apenas com os conhecimentos trazidos pelas outras disciplinas, mas sobretudo
com seus métodos e suas técnicas, menos aliás para se apossarem delas do que
para utilizá-las para seus próprios fins.
Todavia, o encontro decisivo vai acontecer muito mais tarde, a partir
dos anos 1960-1970. Os arqueólogos, como os outros pesquisadores em ciências
sociais, descobrem a ecologia. Por um lado, o ecologismo ambiente faz emergir
a idéia de natureza, vulgariza a noção de meio ambiente e alarma-se pela sua
A memória dos terroirs 181

fragilidade diante do aumento das transformações feitas pelos humanos. Por


outro lado, a ecologia científica de origem norte-americana provoca uma ruptura
epistemológica e metodológica cuja ferramenta integradora é o ecossistema. Seu
valor heurístico não precisa mais ser provado, tampouco suas lacunas fora do
campo da biologia, assim como seus limites de aplicação. Mas graças à ecologia
de sistema, o inventário linear dos elementos naturais não é mais o melhor
modo de conceber a combinação da natureza, aquela com a qual se defrontam
quotidianamente as sociedades rurais. Ao insistir mais sobre o funcionamento
do que sobre a estrutura, o ecossistema revela o jogo das interações e dos
equilíbrios-desequilíbrios. Este “modelo” reconstitui, então, certa “lógica do
vivo” que não está muito distante daquela que preside a todas as agriculturas
e à própria definição dos terroirs.
“O natural dos terroirs”
(G. Bertrand)

Hoje o arqueólogo é um naturalista que não pode mais ignorar a


si próprio. Mas ele deve avaliar os perigos do raciocínio analógico a partir
da ecologia vegetal e animal, e saber que a pesquisa sobre a franja móvel das
ciências da natureza e das ciências da sociedade exige muitas precauções e
algumas antecipações.
O debate é menos aquele da relação teórica e filosófica do “homem”
e da “natureza” do que aquele das relações práticas estabelecidas, por um dado
tempo, entre agricultores pertencendo a uma sociedade rural especificada e
meios naturais bem individualizados. A consideração do “natural dos terroirs”
supõe então uma inversão da problemática naturalista que é preciso então
traduzir, e por fatos de sociedade, tanto culturais quanto econômicos. No meio
do caminho, o arqueólogo evitará tanto a armadilha do clássico “determinismo
natural” quanto aquela do “possibilismo” inútil. Ele relativisará, definindo todo
fenômeno natural ou “recurso natural” do interior do sistema de produção
considerado em função das capacidades agrotécnicas e do complexo de valores
culturais que o engloba. É dessa forma que o moinho perdido no meio dos
vinhedos marca tanto a permanência do jogo dos ventos do mar ou da terra,
quanto a obsessão da sociedade do Antigo Regime em produzir grãos, para
alimentar as cidades do Languedoc próximas, mesmo em solos e climas pouco
favoráveis. Foi desta forma que garrigues foram destruídas e plantadas com
trigo. Mas estas “rompudes” tomadas no século XVII de solos frágeis e pobres
foram rapidamente abandonadas após o êxodo rural e as erosões consecutivas
ao desmatamento. Estas últimas, por outro lado, favoreceram o assoreamento
das bacias vizinhas... nas quais, depois da crise do phylloxera, estendeu-se à
viticultura. Durante este tempo, as garrigues arborescentes tornaram-se o lugar
conflituoso e altamente simbólico da caça ao javali. A análise arqueológica,
sem perder sua acuidade e apoiando-se nas disciplinas vizinhas, então se fez
mais concreta, mais global... portanto, mais viva. A arqueologia passa então
da descrição mais ou menos fixa e desarticulada das “condições naturais” da
agricultura para o conceito de “agrossistema”. (C. e G, Bertrand).
A noção clássica, mas vaga, de antropização do meio natural deve ser
tratada com o mesmo pragmatismo. O “homem” do ecólogo freqüentemente
182 A memória dos terroirs

não é mais do que o trabalhador da décima primeira hora. É bem verdade


que o seu lugar no ecossistema agora é reconhecido... essencialmente como
perturbador de hipotéticos clímax naturais. Os desenvolvimentos recentes da
pré-história, da história e da geografia física dão outra dimensão ao impacto
antrópico. Não existem mais meios naturais, pelo menos em nossas regiões da
Europa depois dos grandes desmatamentos da Alta Idade Média, portanto, bem
antes dos “incrementos” e aménagments variados dos séculos XVIII e XIX. Os
ecossistemas naturais, terrestres ou aquáticos não são mais que compartimentos
modificados e transformados do espaço rural, explorados para produzir de modo
mais ou menos extensivo colheitas vegetais ou animais: florestas reduzidas
a árvores cortadas ou altas, matos e landes incendiadas, pastagens e lagoas
postas em “assec” e “evolage”, rios regularizados e calibrados... Mas por todo
lugar subsiste, com exceção talvez da cultura fora do solo, essa parte de natural
sem a qual não existe terroir. As catástrofes naturais estão sempre presentes,
igualmente numerosas e devastadoras, para que não as esqueçamos.
Enfim, é preciso saber superar o campo próprio da ecologia científica e
abordar o terreno mais misterioso da ecoantropologia. De fato, o natural remete
sempre ao sobrenatural com seu feixe de símbolos, de crenças e de mitos. As
cosmogonias agrárias reinventam e limitam a natureza. A “pedra plantada” não
demarca apenas a estrada material e o ulular da coruja não é apenas um mau
agouro para os ratos... A arqueologia agrária em movimento se isola cada vez
menos facilmente de uma interpretação antropológica cada vez mais ampla que
restitui o menor objeto arqueológico a seu meio de valores e de signos.

A arqueologia agrária não existe...?

O que está mais bem situado hoje do que a arqueologia agrária, na


familiaridade dos terroirs, para responder a estas questões essenciais e a muitas
outras ainda não formuladas, para melhor colaborar com seu aménagement ou
com sua preservação?
Falta à arqueologia agrária o essencial: falta-lhe existir, isto é, ser
reconhecida, mas sobretudo reconhecer a si própria enquanto tal. Dividida, a
arqueologia agrária não é (ainda) totalmente uma disciplina. Fazer perguntas
bem feitas e respondê-las bem em um cenário muito restrito não basta. Para
a arqueologia agrária, como para o conjunto da pesquisa arqueológica, trata-
se de existir fundamentando seu próprio paradigma e garantindo sua própria
reprodução. A arqueologia agrária permanece efetivamente por construir na sua
problemática como na sua continuidade histórica. Aquilo que se chamou até
aqui de “arqueologia agrária” na verdade não é mais do que um conglomerado
de pesquisas cujo valor intrínseco não está em causa, mas que continuam
dispersas, freqüentemente especializadas e esotéricas, sem comunicação entre
elas e sem projeto de conjunto.
Um dos raros pontos em comum entre estas pesquisas dispersas é o
estabelecimento de um conjunto impressionante de técnicas e de tecnologias:
conduta sistemática das escavações, análise dos pólens, dendrocronologia,
antracologia, termoluminescência, teledetecção, cartografia, informatização dos
A memória dos terroirs 183

dados, etc. Mas na maioria das vezes trata-se apenas de técnicas emprestadas a
outras disciplinas, mesmo se elas são eventualmente objeto de desenvolvimentos
metodológicos em relação com a arqueologia. Este é o caso da palinologia ou da
teledetecção. Este arsenal técnico e tecnológico, freqüentemente de muito alto
nível e bem dominado, permitiu o desenvolvimento de um notável sistema de
medidas. Mas a “arqueometria”, por mais sofisticada e eficiente que seja, não
pode fundamentar a arqueologia agrária sozinha, tal como o demonstraram,
há várias décadas, as tentativas de metrologia sistemática e cega das estruturas
agrárias por historiadores e geógrafos.
Aliás, é preciso que os arqueólogos superem suas querelas bizantinas,
emirjam das disputas cronológicas e transcendam suas tipologias ao atribuir a
si mesmos um sentido na história. Saber se a arqueologia pode se tornar uma
ciência completa escapa a este propósito inicial. Esta questão deve ser remetida
aos arqueólogos e à sua estratégia a respeito da história e dos historiadores. Vista
do exterior, a arqueologia e a história participam de um mesmo procedimento
científico, mesmo se seus objetos e sobretudo suas ferramentas diferem. Trata-
se de olhares específicos, mas complementares, para uma mesma realidade. A
verdadeira coerência, a única que coloca dúvida, é a do patrimônio agrícola e
rural, da evolução das sociedades e dos espaços rurais. Esta problemática está
relacionada com a história, mas uma história revisitada e aumentada por uma
arqueologia que evolui além de sua própria tecnicidade.
“Archeology as anthropology?”
(L.R. Bindford)

Tal é a interrogação central feita há quase um quarto de século pela


New Archeology inglesa e norte-americana. “Em vez da história das culturas,
hoje há mais interesse pela história dos processos evolutivos da cultura”.
Esta afirmação de Don S. Rice não é tão evidente quanto parece. A prática
quotidiana de muitos arqueólogos mostra que eles não estão sempre prontos a
superar aquilo que é para eles um verdadeiro limite epistemológico. Alargar o
campo da pesquisa arqueológica não basta. É preciso revisar sua finalidade e,
sobretudo dar a si mesmos os meios estruturais e metodológicos.
A pesquisa arqueológica deve inscrever-se no tempo mais longo
da história agrária, da “revolução” neolítica a nossos dias. Seria preciso ser
arqueólogo antes de se dizer pré-historiador, especialista da Antiguidade ou
da Idade Média. Triunfante entre os pré-historiadores, tradicionalmente bem
representada entre os especialistas da Antiguidade, a arqueologia agrária parece
ter muita dificuldade em aparecer entre os medievalistas, como se estivesse
paralisada pela primazia atribuída às fontes escritas. Todavia, assistimos há
alguns anos a um desenvolvimento promissor da arqueologia dos torrões
feudais, das cidadezinhas, das forjas e das reservas de caça. Por outro lado, a
época moderna e contemporânea continua sendo o grande buraco negro da
pesquisa arqueológica. A expansão recente das arqueologias urbanas e industriais
permite, no entanto, exprimir bons augúrios sobre as possibilidades de uma
arqueologia agrária estendida às construções, ao instrumental mecânico e
motorizado, às plantas de cultura, à zootecnia e às diferentes realizações do
artesanato rural.
184 A memória dos terroirs

No mesmo movimento, esta arqueologia agrária a longo prazo não


pode ser mais do que uma arqueologia de campo amplo. A precisão e a minúcia
que presidem à conduta das escavações contemporâneas, e que aumentam
com as performances técnicas e as exigências metodológicas, são a honra da
disciplina. Todavia, o comprimento de um campo arqueológico sobre um
mesmo sítio, na maioria das vezes exíguo, e o necessário trabalho “camada por
camada”, devem encontrar um paliativo e inscrever-se em uma “arqueologia de
escala” que ainda resta por elaborar. O arqueólogo deve passar por níveis tempo-
espaciais sucessivos, dos alguns metros quadrados, até mesmo centímetros
quadrados do horizonte arqueológico ao infinito do horizonte geográfico. Ele
encontrará ali outros especialistas, geógrafos, historiadores, ecólogos, agrônomos
e sobretudo aí inventará necessariamente outras formas de arqueologia. Ele não
estará muito longe desta “arqueologia das paisagens”, ela também ainda por
construir, que logo servirá, entre o natural e o social, de passagem obrigatória
para as arqueologias especializadas.

A arqueologia agrária entre sociedade e natureza

Ao longo do percurso, esta arqueologia agrária ampliada só poderá


agitar e enriquecer as disciplinas vizinhas, não apenas no campo social, mas
também no campo naturalista. De fato, os objetos arqueológicos oriundos do
terroir são praticamente todos “mistos” (S. Moscovici), nos quais o natural
se mistura ao social. O alicerce conduz à pedreira e à camada arqueológica;
o osso de cervídeo conduz à floresta desaparecida e à mudança do clima. A
arqueologia agrária aparece cada vez mais como uma disciplina de “interface”
entre as ciências da natureza e as ciências sociais. Mesmo que ela deva continuar,
no essencial de seus questionamentos, dentro da vertente social, por isso não
lhe cabe menos explorar a vertente natural. Esta dupla e desigual filiação
fundamenta sua especificidade e lhe permite atacar com toda competência as
“questões agudas” acumuladas no entroncamento da natureza e da sociedade,
do espaço e do tempo, “ do ideal e do material” (M. Godelier), e às quais as
outras disciplinas não têm os meios de responder.
O debate sobre a dimensão histórica e antropológica da arqueologia
não está superado. Ele ampliou-se e deslocou-se. Ele precisa levar em conta
esta irredutível parte de “natural” que perdura nos terroirs e cuja memória cabe
a ele nutrir e prolongar. Mas reconstruir uma memória dos terroirs implica,
em primeiro lugar, construir uma arqueologia agrária. Enquanto os terroirs
desarticulados e suas memórias esmigalhadas e confusas se diluem ou se hibridam
na civilização urbana, é grande a urgência de fundamentar uma arqueologia
agrária concebida como uma ecoantropologia, nos limites instáveis da sociedade
e da natureza. A arqueologia agrária é a memória dos terroirs. E se os terroirs
perdessem sua memória...
185

APOGEU E DECLÍNIO DE UM GEOSSISTEMA


SILVO-PASTORIL1
(Montanha de León e de Palencia, Noroeste da Espanha)

A silhueta bifurcada de uma faia isolada, recoberta pela neblina,


os galhos de um carvalho maltratado, rastejando numa terra incendiada,
um caminho profundo de margens erodidas com, por sua vez, a braña 2,
lande3 infinita cujas ondulações cinzentas se parecem com as nuvens:
“instantaneidades” da paisagem cantábrica. E a presença do gado (bovinos,
ovinos, eqüinos e caprinos), agente principal da paisagem: seus ruídos, suas
cores, seus odores e seus taons4 agressivos, seus lentos passeios pelas vertentes
inclinadas, sua pressão dominadora sobre as gramíneas, o arbusto e a árvore que
é pisado, amassado, arrasado e mutilado... mas, também, fertilizado, regenerado
e reestruturado.
Entre a linha divisória que separa os afluentes do Douro que drenam
as torrentes cantábricas e as altas planícies da Velha Castilha, nas montanhas
das províncias de León e Palencia, de 900 e 2.600m de altitude, se estendem
paisagens diversas, modeladas por uma das grandes civilizações pastoris, hoje
decadente, do mundo ibérico. Paisagens relíctas, baseadas em remanescentes e
retroações; paisagens adormecidas ou paisagens reativadas à custa de abandonos
e de retomadas. Talvez, uma das chaves para entender o funcionamento do
geossistema 5.

Entre floresta e lande

Escalonamento florestal rompido e florestas confinadas

O faial de montanha acidófilo da vertente atlântica representa,


entre 600 e 1.200-1.400 m de altitude, a única faixa florestal mais ou menos
1 Tradução de Jailton Dias (jailton.dias@ibama.gov.br)
2 Denominação típica da Cantábria e Astúrias (Espanha) para designar as zonas de montanhas onde
o gado aproveita as pastagens tardias em épocas secas e que tem uma grande importância nos períodos
de transumância. [Nota do Tradutor - N.T.]
3 As landes são formações vegetais cuja fisionomia geral é dominada por arbustos e subarbustos.
[N.T.]
4 Tipo de inseto (Tabanus bovinus) típico de áreas de pastagens nas proximidades da água, que ataca
com picadas e suga sangue de bovinos e eqüinos. [N.T.]
5 G. BERTRAND, 1974. Essai sur la systématique du paysage. Les montagnes cantabriques centrales
(Nord-Ouest de l´Espagne). 3 tomos, 1160 p. Univ. Toulouse – Le Mirail. – C. E G. BERTRAND,
1982. La végétation dans les géosystèmes des montagnes cantabriques centrales. Carta em quadricromia
a 1 : 200.000.
186 Apogeu e declínio de um geosistema silvo-pastoril

contínua. Noutras partes, a floresta é compartimentada em maciços e bosques


que mal cobrem um terço da vertente abaixo dos 1.600 m de altitude. Aqui,
poucas florestas “plenas” com estratos arbóreos contínuos e com sub-bosques
bem individualizados, mas com um mosaico de taillis6 mal regenerados, de
arbustos evoluídos para matagais, de formações arbóreas abertas, de florestas
abertas e de parques. As árvores, tortuosas, bifurcadas, de múltiplas interações,
não tem nada de porte florestal. Entretanto, sua diversidade de espécies e
variedade é marcante: a faia (Fagus silvatica) rica de fenótipos e certamente
de ecótipos; os carvalhos caducifólios (Quercus pedunculata, Q. sessiliflora, Q.
pyrenaica) bastante híbridos; os carvalhos perenes (Quercus ilex, Q. lusitanica)
de ecótipos indeterminados; os pinheiros (Pinus sylvestris, P. insignis) e os
eucaliptos (Eucalyptus globulus) de reflorestamento, enfim, os juniperais
(Juniperus thurifera).

Limitações para a floresta

••Limitações mesológicas. O ambiente natural não é, na sua totalidade,


favorável ao desenvolvimento de árvores e, muito menos, de florestas.
Os bioclimas de altitude, úmidos, nebulosos, com muito vento e neve,
determinam o limite superior da floresta entre 1.200 e 1.400 m na
vertente atlântica e, entre 1.400 e 1.600 m, na vertente castilhana. A
peña, parede rochosa, com seus desmoronamentos e formação de talus,
seus corredores formados por avalanche e remodelados pelas torrentes,
se estende das altas cristas até o fundo das gargantas. A floresta
recolonizou estes lugares com formações arbóreas ou arbustivas. A
predominância de dois tipos de substratos pouco favoráveis à floresta:
de um lado, os maciços de calcário dolomítico bastante carstificados;
de outro, os quartzitos e os conglomerados cimentados por hematita.
Os povoamentos florestais conseguem desenvolver-se apenas sobre
os xistos.
••Limitações corológicos. Apesar de sua diversidade, o estoque
florístico regional não tem capacidade de explorar a totalidade das
potencialidades bioclimáticas e edáficas. Lembremos, por exemplo,
a situação relictual dos juniperais que se restringe às baixas áreas
calcárias ensolaradas. A ausência, mal compreendida, de grandes
resinosas de montanha (pinheiro, pinheiro silvestre) ou subalpinas
(Pinus uncinata) e a raridade dos Bouleaux7 reduzem a área potencial
da floresta e privam a massa e as margens das florestas de espécies
pioneiras. A faia, que constitui a maior parte da biomassa florestal
da vertente norte, se retrai, principalmente, nas porções sombreadas
dos maciços calcários meridionais (onde há uma má regeneração dos
troncos). Ela ocorre depois, nas estações relictuais das montanhas
próximas a Castilha. Os faiais cantábricos, os mais meridionais da
Europa ocidental, excetuando a floresta relictual da Sierra de Gredos,
se localizam no “limite máximo”, leia-se na “zona contestada” da
6 Os “taillis” designam uma floresta, destinada à silvicultura ou não, em que a vegetação não chegou
à idade adulta. Um “tailli”, com o tempo, passa a ser denominado de “futaie”. [N.T.]
7 Árvores da família Betulaceae. São comuns na Europa e ocorrem, em geral, sobre solo pobre e
silicoso, até 2.000 m de altitude. [N.T.]
Apogeu e declínio de um geosistema silvo-pastoril 187

área da faia 8. Estas faias não têm nenhum poder de disseminação e


ficam confinadas entre os carvalhos-verdes (Quercus ilex), juniperais
(Juniperus thruifera e J. sabina). Os carvalhos caducifólios não
possuem um papel florestal importante, com exceção do Quercus
pyrenaica que, sob múltiplas formas híbridas, é a espécie dos taillis,
das florestas abertas e das landes arborizadas. Considerado como um
estrito euro-atlântico, a espécie Quercus pyrenaica ocupa uma área
singular, “íbero-atlântica de montanha” 9.

O “monte bajo” 10, fenômeno diagonal

Um mosaico de formações arbustivas, subarbustivas e herbáceas cobre


mais de 60% da superfície total das montanhas e assegura certa continuidade
fisionômica do litoral asturiano ao piemonte castilhano: maquis-lande da
Marina, garrigues da Baixa Liebana, landes com samambaias e espécies do
gênero Sarothamnus de média montanha úmida, lande-gramíneas dos puertos11
(pastagens alpinas e subalpinas), garides12 rústicas calcárias de vertente
ensolarada, matagais dos platôs castilhanos. Entretanto, o essencial do monte
bajo é constituído pela braña, lande acidófila dominada por numerosas espécies
da família Ericaceae (Erica arbórea, E. aragonensis, E. multiflora, E. lusitanica,
E. cinérea etc.), Daboecia cantabrica, Calluna vulgaris, arbustos da família
Fabaceae (Cytisus cantabricus, C. Horrida, C. trichomanes) etc. A monotonia
fisionômica das landes e a sociabilidade elevada de suas espécies não mascaram
a riqueza florística regional que, acrescentando a sua extensão territorial, nos
leva a interrogar sobre as origens do monte bajo e, mais particularmente, da
braña, tanto nas suas relações com as florestas, quanto com os sistemas pastoris.
A hipótese de uma formação, ao menos em parte “climácica”, não está fora
de cogitação.

O domínio pastoril do espaço

A exploração pastoril deve ter começado ainda no Neolítico; porém,


os testemunhos arqueológicos e palinológicos são tênues e localizados. Somente
as últimas etapas, aquelas do século XVIII e XIX que parecem, talvez sem
razão, fundamentais, permitem confrontar os estudos de arquivos e as análises
de terreno 13.

8 M. BECKER, 1981. in Le Hêtre (sob a direção de E. Teissier du Cros). INRA, Paris, 612 p.
9 P. DUPONT, 1962. La Flore atlantique européenne. Introduction à l’étude du secteur ibéro-
atlantique, Toulouse, 414 p.
10 O termo “monte”, em espanhol, tem o significado um tipo de terreno com espécies florestais não
sujeito a atividade agrícolas, podendo servir de área de proteção, cumprir funções ambientais, recreativas
etc. [N.T.]
11 Trata-se dos “portos de montanha”, que correspondem a estrada ou caminho utilizado para atravessar
uma montanha ou área montanhosa. [N.T.]
12 Tipo de associação vegetal xerófita típica de locais pedregosos e ensolarados. [N.T.]
13 Pesquisa histórica não-publicada realizada por J.-P. Amalric, professor de História Moderna
(Universidade Toulouse-Le Mirail).
188 Apogeu e declínio de um geosistema silvo-pastoril

A Mesta 14: a organização de um espaço de transumância

Com a exceção dos pobres campos e das pradarias destinadas à


roçagem 15, de apropriação individual ou regularmente redistribuídas, as
montanhas são de propriedade das comunidades rurais (municípios, consejos).
De fato, as montanhas da vertente cantábrica sul têm sido arrendadas aos
grandes proprietários de merinas (ovelhas para produção de lã) de Castilha,
Extremadura ou Andaluzia. Por escolha econômica real, a montanha e seus
habitantes foram entregues à oligarquia pastoril madrilenha, que usou e abusou
de seu “direito de locação” introduzindo, todo ano, centenas de milhares
de ovinos sem ter o devido cuidado com os terrenos de pastagens e com a
floresta. Esta grande transumância conheceu seu apogeu nos séculos XVII-
XVIII com a chegada da Mesta, verdadeira empresa de colonização do interior,
desestabilizadora das sociedades locais, depredadora dos recursos naturais,
destruidora das paisagens.
Em meados do século XIX, com a decadência e a abolição da Mesta,
a transumância dá lugar primordial à criação local, sobretudo bovina, baseada
nas migrações de verão e no livre percurso pelas landes e florestas. Todavia, o
gado (bovinos, ovinos, eqüinos, caprinos) continua a percorrer a maioria dos
compartimentos da paisagem (fig. 1).

A exploração desordenada da floresta

A floresta não é um simples anexo do espaço pastoril. Os taillis


fornecem lenha e as árvores em forma de forquilha, com galhos e raízes tortuosas
eram destinadas à construção de instrumentos de trabalho (arados, cangas,
carroças). As comunidades rurais sempre tomaram medidas de proteção,
mas, aparentemente, sem grandes resultados. Os serviços florestais do Estado
sempre tiveram interesse por uma das raras regiões da Espanha capaz de produzir
madeira de certa qualidade, mas foi preciso esperar até os anos 1950, após as
devastações causadas pela Guerra Civil, para se elaborar os primeiros inventários
florestais e que fossem propostos alguns planos de gestão dos montes de utilidad
pública, bem como algumas medidas de proteção da vegetação mais ameaçada
(juniperais). De fato, a gestão florestal começa nos anos 1960-1970 com a
grande política de reflorestamento das brañas com espécies resinosas pelo
Patrimônio Florestal do Estado, sem se preocupar com as comunidades rurais,
com o equilíbrio dos ambientes montanos e com o futuro das plantações.

Um neo-geossistema silvo-pastoril

As paisagens das montanhas de León e de Palencia lembram aquelas


14 O Honrado Concejo de la Mesta de Pastores, ou simplesmente Mesta foi criado em 1203, agrupando
pastores de Castilha e correspondeu a mais poderosa associação corporativa da Idade Média na Europa.
[N.T.]
15 O tremo original francês é “prairies de fauche”, que designa aquelas plantações de forrageiras
destinadas a serem roçadas e deixadas in loco, como uma forma de manejo destes espaços. [N.T.]
Apogeu e declínio de um geosistema silvo-pastoril 189

das fachadas secas das montanhas mediterrâneas da Europa. Sua localização,


nas margens oceânicas úmidas do domínio mediterrâneo, permite evidenciar
alguns dos seus funcionamentos, ou, de forma mais específica, algumas das suas
disfunções. A impressão que se tem de “vertentes secas sob climas úmidos”16
é apenas um atalho para exprimir que a combinação geográfica atual funciona
mal e que os seus mecanismos não estão ainda elucidados: rupturas dos estratos
vegetais, degradação do espaço florestado, extensão das landes sem relação
florística com as florestas vizinhas, recolonização das vertentes por plantas
xerófitas e heliófitas, múltiplos traços de erosão...

A organização do espaço silvo-pastoril

••Os eixos pastoris: cañadas, veredas y cordeles 17. A onipresença


plurissecular das merinas transumantes está gravado nas vertentes,
até na própria rocha. À “cañada Real de León”, grande eixo de
transumância da Espanha de noroeste, vem somar-se cañadas
secundárias que sobem os grandes vales (Porma, Cea, Carrión,
Pisuerga) para conduzir as merinas aos puertos pirenaicos ou puertos
de las merinas, pastagens supraflorestais de excelente qualidade que
correspondem à destinação das tropas durante o verão. De fato,
as merinas e as tropas dos vilarejos eram obrigadas as ficar longos
períodos, às vezes, o ano todo, na média montanha: sobrecarga pastoril
dos puertos, mau tempo freqüente nestas montanhas diretamente
expostas às massas de ar oceânicas (quedas de neve precoce ou
tardia). Numerosas veredas partem das cañadas, atravessam vilarejos
e culturas, cruzam cursos d’água e colos e, por meio dos cordeles, criam
formas radiais em toda a média montanha e, mais particularmente,
naquelas voltadas para o sul.
•• O fogo-ferramenta 18. A Mesta é abolida, as estratégias econômicas
mudaram, mas a prática pastoril continua imutável. O fogo, seguido
do pisoteio e do estercamento pelo gado, foi e continua como uma
ferramenta insubstituível no preparo da pastagem: fogo corrente
controlado nas landes e gramados arbustivos; pequenas queimas
de limpeza nos sub-bosques; queimadas dos matagais e taillis;
mas também queimadas culturais itinerantes que se perpetuaram
localmente até próximo dos anos 1950; enfim, alguns incêndios nas
jovens plantações de resinosas.
••O Quercus pyrenaica pastoril e pirófilo. Os carvalhos, ao menos
aqueles de características dominantes e parecidos com a espécie
Quercus pyrenaica, constituem árvores, ou pelo menos, arbustos, os
mais representativos do espaço silvo-pastoril. Além de constituir
taillis monoespecíficos, alguns bem representativos (altura: 15 m,
diâmetro: 0,25m, idade: 50 anos, mas ainda ocorre, de forma isolada
16 G. BERTRAND, 1972. Écologie d’un espace géographique: les géosystèmes du Valle de Prioro
(Nord-Ouest de l’Espagne). L’Espace géographique, n. 2, p. 113-128.
17 Tipos de caminhos pastoris, utilizados para transferir o gado de um local para outro, em períodos
de transumância, que se diferenciam um do outro pela largura ou pela denominação regional. [N.T.]
18 Estudo de J.-P. Métailié. Veja, também, do mesmo autor, Le feu pastaral dans les Pyrénées Centrales
(Barousse, Oueil, Larboust), Toulouse, CNRS, 1981, 239 p.
190 Apogeu e declínio de um geosistema silvo-pastoril

e como moitas nas landes e pastagens abertas pelas queimadas, em


concorrência direta com espécies da família Ericaceae e com Calluna
vulgaris. Coloniza toda a vertente ensolarada sul desde os matagais
de carvalho-verde até o limite da lande alpina a 2.250 m de altitude
onde ele progride sob a forma de almofadas. Os faiais retomam lugar
sobre as áreas sombreadas calcárias. Colaborando com J.–P. Métailé,
propomos a hipótese de uma espécie secundariamente pirófila e
heliófila, susceptível de colonizar rapidamente, por reprodução
vegetativa, os substratos ácidos incendiados e sobrepastejados. Enfim,
o carvalho da espécie Quercus pyrenaica é uma planta forrageira.
O gado ingere as folhas e os talos e a maioria dos velhos carvalhos
apresentam o formato de candelabro, como árvores podadas (fig.
2).

Geofácies silvo-pastoris

Eles se repartem de forma descontínua ao logo dos eixos pastoris.


Citaremos aqui, a título de exemplo, apenas algumas unidades mais
significativas:
••Rañas do piemonte castilhano, a 900 m (próximo a Boñar): matagal
pirófilo e superpastejado 19, assim composto: 4. Quercus ilex. 1 – 3.
Q. pyrenaica. 2 – 2. Cistus ladaniferus, Calluna vulgaris, Lavandula
pedunculata, Asphodelus albus. 2-3 – 1. Gramíneas.
••Vertente xistosa da bacia do Cervera, a aproximadamente 550 m:
refúgio de carvalhos da espécie Quercus pyrenaica nanicos (1,50 a
2 m) e queimados pelo excesso de urina e de fezes, galhos e troncos
tortuosos, folhagem em forma de teto.
••Pastagem em taillis de Quercus petraea em solo bruno ácido evoluindo
em brotos jovens, no Cervera, próximo a 1.100 m. Sub-bosque
herbáceo (Agrostis, Festuca) mantido pela técnica de “pequenas
queimadas”.
••Patamar de rañas da bacia do Riaño, a aproximadamente 1.200 m:
queimadas pastoris de um ano; forte ressurgimento de carvalhos da
espécie Quercus pyrenaica em galhos mal queimados ou diretamente
dos tocos; raros renascimentos de espécies do gênero Calluna e
Helianthemum.
••Vertente sobre xistos, no Riaño, a aproximadamente 1.250 m: lande
monoespecífica de Erica aragonensis sobre pavimento pedregoso;
velhos Quercus pyrenaica (250-350 anos ?) isolados, com copas mortas
(5 a 12 m de altura; 1 a 3 m de diâmetro).
••Porção calcária voltada para o sul, em Besande, a aproximadamente
1.300 m: faial degradado e solos brunos desgastados; garide composta
por Ononis spinosa, Thymus mastichina, algumas moitas de faia.
••Vertente sombreada do Valdeburón sobre xisto alterado e morainas
a 1.450 m: faixa limite composta por faial, assim constituída: 3 – 4:
Fagus silvatica e Ilex aquifolium. 2. – 2-3: Cytisus sarothamnus,
Pteridium aquilinum. 2. – 1: Festuca. 4.

19 O primeiro número indica o estrato (de 0 a 7); o segundo, a abundância-dominância por estrato (de
0 a 5).
Apogeu e declínio de um geosistema silvo-pastoril 191

FIG. 1
Repartição da carga pastoril por ambientes e por estações
(tendência geral desde, pelo menos, o século XVIII)
1. Formações abertas e pastadas. – 2. Mata e floresta. A grande flecha representa, esquematica-
mente, o sistema de “cañadas”, “veredas” e “cordeles” (CRL: Cañada Real de León; cc: Cañada
Cerverena). Ambientes: HC: Altas Cristas – PM1: “Puertos de las merinas” (pastagens supra-
florestais), em substrato silicoso. – PM2: Idem em substrato calcário. – H1: Faial de montanha
acidófilo úmido. – H2: Faial de montanha calcícola mesófilo. H3: Faial de montanha calcícola
relictual. – ps: Plantação de pinheiro silvestre (século XVIII ?). – cp: Carvalhal de montanha
da espécie Quercus pyrenaica. – B: “Braña” (landes acidófilas). – G: Garrigue de montanha
(Caragana frutex em substrato calcário). – M1: Matagal de carvalho-verde, em substrato cal-
cário. – M2: Idem em substrato silicoso.
Estação de percurso: para a grande transumância: P, E, A, H; para as criações locais: p, e, a, h
(primavera, verão, outono, inverno).
192 Apogeu e declínio de um geosistema silvo-pastoril

FIG.2
Funcionamento espacial do geossistema agro-pastoril (1960-1980)
1. Progressão do carvalho da espécie Quercus Pyrenaica em moitas, matagais e taillis. – 2. Pro-
gressão do pinheiro silvestre. – 3. Degradação em curso das matas e florestas pelas pastagens.

••Cañada, em Valdetúejar, a aproximadamente 1.150 m: ravinamento


sobre os xistos: espécies do gênero Marrubium, Santolina
pectinata.

Conclusão – um geossistema silvo-pastoril em estado de


histerese

Este conjunto silvo-pastoril fisionomicamente heterogêneo corta, em


diagonal, os geossistemas mais ou menos escalonados da vertente sul-cantábrica
(serras meridionais, bacias intra-montanas, altos maciços etc.). Ele compartilha
geofácies, com cada um destes geossistemas, que se caracterizam por topoclimas,
substratos, solos e patrimônios florísticos diferentes. Poderia, neste caso, se
falar de um geossistema? (cf. carta em cores anexa)
Apogeu e declínio de um geosistema silvo-pastoril 193

O estado e o funcionamento de um geossistema

A fragilidade dos meios naturais e a ausência de numerosas essências


florestais explicam, em grande parte, o estado de degradação, leia-se desequilíbrio.
Mas é o sistema pastoril, mais exatamente, o estado de sobrepastagem, que é
o responsável pela criação destas novas paisagens, marcadas pela presença do
gado e pelo fogo. Antes de ser fisionômica, a unidade é funcional.

A história do geossistema: inércia e histerese

A carga pastoril atual é bastante pequena para explicar o estado do


geossistema e seu funcionamento. Este geossistema apareceu há pelo menos
alguns séculos sob o efeito da transumância e continua a funcionar por si
próprio. A evolução dos últimos vinte anos, com a diminuição da carga pastoril,
é caracterizada por dois fenômenos não-contraditórios.
Em primeiro lugar, uma inércia bastante geral. Os geofácies estão
ainda sob “tensão pastoril”. Não há nenhuma onda de desmatamento e muito
menos de frente pioneira florestal do tipo pirenáica20. Esta inércia ecológica
se reveste, aqui, de tamanha importância que devemos nos questionar sobre a
irreversibilidade de certos processos físicos ou biológicos engajados no momento
de maior pressão pastoril (retirada do manto de alteração e dos solos herdados,
desaparição de essências florestais e de espécies herbáceas).
Em seguida, a histerese de certos geofácies que atingiram um limite
de instabilidade (abertura de estratos vegetais inferiores com mobilização de
depósitos móveis etc.). Sem causa aparente, alguns processos se aceleram em
forma de bola de neve: perda dos solos brunos sob os faiais, raspagem de vertentes
calcárias por avalanches que arrastam os últimos agrupamentos de faia etc.
Este “neo-geossistema” funciona atualmente tanto por inércia quanto
por persistência e acaba de entrar na sua primeira fase de declínio. Mas os
processos que o comandam são irreversíveis na sua maioria, ao menos na escala
secular e seu restabelecimento pelos camponeses parece por demais difícil.
Fortemente destruidor, ele não é menos criador de recursos e de paisagens. Não
seria o Quercus pyrenaica um ecotipo relacionado ao fogo e ao pisoteamento
do gado? Ele representa menos um antigo testemunho da existência da floresta
do que um colono capaz de consolidar as florestas existentes, de ganhar espaço
sobre as landes e as queimadas, constituindo um recurso forrageiro. É preciso
conhecer melhor para poder geri-lo, dentro e fora da floresta.

20 C. SUFFERT-CARCENAC, 1978. Les grandes unités éco-agrologiques des Pyrénées françaises


en 1970-1978. Esquisse cartographique au 1:25.000, RGPSO, 49, 4, p. 443-454.
194

NÃO HÁ TERRITÓRIO SEM TERRA

Desde a publicação da História da França Rural em 1975-1976, sob


a direção de Georges Duby e de Armand Wallon, produziu-se esta revolução
copérnica que foi, para as ciências sociais como para as ciências da natureza, o
progresso espetacular da ecologia e da problemática ambiental. Isto equivale a
dizer que o problema mudou de “natureza”, nos dois sentidos do termo, e que
de marginal tornou-se central tanto para o historiador quanto para o geógrafo,
ultrapassando amplamente o âmbito destas duas disciplinas e de suas relações
acadêmicas para participar do grande debate contemporâneo sobre a relação
entre a sociedade e a natureza.

A relação com a geografia física: um problema


ultrapassado?

Minha intervenção inscreve-se nesta abertura, considerando em


especial que a geografia física não é mais para a história, e de longe, a única
passarela para levar em consideração os meios ambientes das sociedades rurais.
Os historiadores, e mais especificamente, os pré-historiadores e os arqueólogos,
dirigem-se cada vez com mais freqüência a outras disciplinas, tais como a
ecologia, a botânica, a geologia de superfície, a pedologia, a palinologia, etc.
É o conjunto desta situação que precisamos analisar, sem com isso negligenciar
a profundidade dos laços que unem histórica e culturalmente a geografia à
história, os quais subsistem hoje, às vezes, até reforçados no que diz respeito
ao sistema educativo. Situação contraditória e ambígua, ainda mais difícil de
dominar por ser implícita e carregada de “valores” culturais que ultrapassam
os campos estritos da pesquisa e da pedagogia.
Não há território sem terra!

O título de minha contribuição, como toda afirmação de natureza


tautológica, reforça que a coisa deveria ser simples, tanto no plano lógico
quanto epistemológico. Não existe sociedade rural, e com mais forte razão, nem
produção agrícola, sem a base “territorial” de um “terroir”, sem esta “terra” que
se refere explicitamente, entre outras coisas, a uma combinação de elementos
naturais de origem biológica ou físico-química. Se este problema continua
atual ainda hoje, é porque ele foi mal compreendido, mal formulado e mal
vivido, e porque nós estamos completamente defasados com um dos temas
fundamentais e uma das maiores preocupações de nossa sociedade em busca
de um “desenvolvimento durável”, forma renovada e ampliada do “mesnage
Não há território sem terra 195

des champs” (conservação dos campos) de Olivier de Serres.


Nenhum especialista, ainda que fosse um filósofo, não pode responder
no lugar dos historiadores. Qual parte estes últimos, na sua diversidade, atribuem
à “natureza” e ao “natural dos terroirs”? Assim feita na sua globalidade, com toda
sua ambigüidade, a pergunta não faz apelo apenas à aquisição dos conhecimentos
e ao tratamento da informação, nem mesmo às problemáticas e aos métodos
científicos. A interrogação é muito mais profunda. Ela atinge a própria filosofia
do pesquisador, a sua concepção da sociedade e da natureza, ou seja, da história.
O geógrafo, mesmo o “físico”, não tem nenhuma competência para responder
no lugar do historiador; ele apenas pode ajudar a formular algumas questões
colocando-as em uma perspectiva... histórica”!

A rejeição do “determinismo” e da “natureza” na análise


histórica

A situação é bem conhecida, mas estamos longe de termos tirado


todas as conseqüências, pois elas atingem os próprios fundamentos de nossas
disciplinas. A invenção do possibilismo por Lucien Febvre chocava pela sua
superficialidade. Significava se livrar fácil de todo um painel da história rural.
A partir dali, as “condições naturais”, como agradava chamá-las, aparecem
como uma entrada ou como uma espécie de deus ex machina ao qual se faz
apelo de acordo com as circunstâncias, por exemplo, em certas evocações
climáticas do “La Méditerrannée sous Philippe II (O Mediterrâneo sob Philippe
II), de Fernand Braudel. É normal que com o uso, os historiadores tenham se
desinteressado de um sistema de raciocínio ao mesmo tempo perigoso e ineficaz,
e que a geografia física tenha reduzido suas ambições apenas à geomorfologia,
isolando-se da renascimento das ciências naturalistas em torno da fitogeografia,
da pedologia e da biogeografia.
A negação ingênua do determinismo científico que, no entanto,
não é mais do que o reconhecimento das leis físicas, e sua confusão com uma
dominação sem retorno da “natureza” sobre o “homem”, leva a uma situação
metodológica que é preciso qualificar de impossível de administrar e cujos
miasmas ainda contaminam a cultura de base dos historiadores.

O retorno ao “natural dos terroirs” (1970-1980)

Nunca será demais insistir sobre a mutação metodológica e


tecnológica ocorrida na França nas ciências sociais por volta dos anos 1960-
1970: interdisciplinaridade, análise sistêmica e modelização, ecologia e meio
ambiente, abertura para as representações culturais e as mentalidades. A partir
deste momento, a relação até então privilegiada entre a história e a geografia
perde uma grande parte de seu interesse. Os pré-historiadores e os arqueólogos
são os primeiros a estabelecer relações fecundas com outras disciplinas, muito
mais eficientes e mais aptas a responder a suas preocupações tanto metodológicas
quanto tecnológicas: palinologia, pedologia, bioquímica, antracologia etc. Estas
196 Não há território sem terra

disciplinas têm em particular a vantagem para os historiadores de permitir


datações precisas e determinar cronologias confiáveis. Uma parte, muito
minoritária, da geografia física inscreve-se neste movimento de renascimento
da pesquisa naturalista e tece sem nenhuma dificuldade novos laços com a
história rural. Historiadores e geógrafos criaram assim o Grupo de História das
Florestas Francesas (Denis Woronoff, Georges Bertrand).

A história do meio ambiente e a dimensão patrimonial


(1980-1995)

Os historiadores são diretamente solicitados a participar das pesquisas


sobre o meio ambiente, especialmente sob o impulso do Ministério do Meio
Ambiente, do programa PIREN (CNRS), da missão do Patrimônio (Ministério
da Cultura), etc. Por um lado, eles integram as questões de ecologia e de
meio ambiente à sua própria temática histórica como o fez, em seu tempo,
Emmanuel Le Roy Ladurie para a história dos climas. Por outro lado, eles
são solicitados pelos especialistas das ciências da natureza para considerar a
evolução do meio sob o efeito da antropização (desmatamento, erosão dos
solos, gestão das florestas, aménagements hidráulicos, cadastramento, etc.).
Assistimos assim a uma ampliação e a uma renovação das problemáticas e das
metodologias da história rural. Nessas novas estratégias interdisciplinares, os
geógrafos - os “físicos” em especial - ocupam um lugar não desprezível ao lado
dos historiadores na análise das estruturas e das paisagens agrárias, a exemplo
de Pierre Brunet.

A interface entre a história rural e a geografia física

Os antigos demônios hoje estão exorcizados. A Caixa de Pandora foi


enfim fechada sobre o “determinismo natural” e o “possibilismo”. A história
e a geografia da natureza entraram nas correntes do pensamento científico
moderno. A análise interdisciplinar de situações concretas substituiu o
movimento da natureza no movimento da história social e vice-versa. O
conceito de ecossistema não faz mais referência apenas à dinâmica biofísica e
o conceito de geossistema comporta, por definição, uma dimensão antrópica.
O agrossistema é um geossistema truncado para a exportação de uma colheita
vegetal e animal, que um “dado” de técnicas agrícolas compensa, de estercagem
e de adubação. A dialética sociedade-natureza está solidamente estabelecida na
agronomia, como o demonstram os trabalhos do SAD-INRA. O meio ambiente,
a um primeiro momento de conotação estritamente naturalista, apresenta agora
uma finalidade humana e social cada vez mais bem afirmada. Os geógrafos
“físicos” tomaram mais do que era sua parte nesta evolução social e cultural de
conceitos a princípio naturalistas. Eles o fizeram em grande parte graças a sua
proximidade real com as ciências históricas e a cultura que emana delas. Eles
não são mais intercessores. Eles tornaram-se, mais simples e saudavelmente,
sócios como os outros.
Não há território sem terra 197

A paisagem: um novo campo do conhecimento a ser desbravado


em comum

A paisagem nasce quando um olhar percorre um território. Ao mesmo


tempo objeto material e sujeito de representação. Ela é, em essência, um produto
de interface entre a natureza e a sociedade. Ela é a expressão do trabalho das
sociedades humanas sobre a natureza, ao mesmo tempo com e contra esta
última. A paisagem então não é apreendida fora de sua dimensão histórica e
de seu valor patrimonial. Ela tornou-se um ponto de encontro interdisciplinar
privilegiado, em particular entre historiadores e geógrafos. Ela é hoje objeto de
numerosos programas de pesquisa e de publicações. Citemos três experiências
exemplares 1: Aline Durand, que aproveitou a complementaridade dos métodos
históricos, geográficos, palinológicos e antracológicos, e que propõe uma nova
interpretação das paisagens mediterrâneas; Jerôme Bonhôte, que a partir do
estudo das forjas catalãs e das carvoarias do Ariège, abala a interpretação
fitogeográfica clássica da floresta pirenaica; Serge Briffaud, o qual faz uma
brilhante demonstração da “invenção da paisagem” através de múltiplos
“olhares cruzados” ao longo de vários séculos de observação dos Pireneus. Entre
estes três, quem é historiador, quem é geógrafo?

Para uma nova aproximação entre a história e a geografia

Entretanto, não devemos ter muitas ilusões. Se estas pesquisas não estão
mais hoje contra a correnteza, elas nem por isso são menos marginais. O problema
é de fato muito mais amplo e de natureza institucional. Por um lado, o lugar desta
geografia física renovada não é muito confortável no centro de uma disciplina
que se “sociologiza” desastradamente. Além disso, a associação tradicional entre a
história e a geografia perdeu muito de sua credibilidade por não ter desenvolvido
problemáticas e metodologias comuns, enquanto tudo a justifica e deveria acomodá-
la no campo da pesquisa e ainda mais no do ensino, do “primário” ao “superior”. É
preciso saudar a este propósito o trabalho de reflexão conduzido pelo inspetor geral
Pierre Desplanques e sua equipe, que propõem uma nova maneira de “ensinar a
geografia” em simbiose com a história.
Este colóquio demonstrou que os historiadores ruralistas não hesitam em
apelar para a geografia física para participar do novo impulso de sua disciplina. Por
sua vez, a geografia física tem, mais do que nunca, necessidade dos historiadores para
desenvolver com eles pesquisas sobre os meios ambientes das sociedades e sobre as
paisagens que estas produzem e imaginam. O paradoxo não estaria no fato que esta
geografia física de inspiração ecológica e ambiental encontra-se certamente muito
mais próxima das problemáticas históricas, e muito especialmente da história rural,
do que a disciplina geográfica no seu conjunto?
1 Jérôme BONHÔTE. Forges à la catalane et évolution forestière dans les Pyrénées de la Haute
Ariège. Pour une histoire de l´environnement. Thèse de doctorat, Université de Toulouse-Le Mirail,
1992, 425 p.
Serge BRIFFAUD. Naissance d´un paysage. La montagne pyrénéenne à la croisée des regards XVIe-XIXe
siècles. Association Guillaume Maurin – Archives des Hautes Pyrénées – Tarbes, 1984.
Aline DURAND. Les paysages médiévaux du Languedoc (Xe-XIIe. Siècles). Presses Universitaires
du Mirail, 1998, 447p.
198

TERRITORIALIZAR O MEIO AMBIENTE


Um objetivo para a geografia
A carência de meio ambiente da geografia francesa

A expressão “geografia do meio ambiente” sempre soou falso aos


ouvidos dos geógrafos: tautologia para uns, engano para outros. A geografia
francesa não parece ter se recuperado de ter sido, ao longo do século XIX,
“a ciência do meio”, feliz prefiguração dos estudos sobre o meio ambiente, e
de ter esgotado esse veio por incapacidade de se renovar tanto no plano do
objeto de estudo quanto naquele do método. Hoje, a relação entre as pesquisas
geográficas e os estudos ambientais é difícil. No entanto, ela é inevitável. O
futuro da geografia passa pela adesão crítica e construtiva aos problemas e aos
temas do meio ambiente.
Aliás, o tema é abordado com certa prudência no Géoforum 1991 por
intermédio do “Sentido e prática do meio ambiente: do lado dos geógrafos”.
“Ao largo dos geógrafos” teria sido provocante, mas certamente mais justo,
considerando que as pesquisas fundadoras do meio ambiente foram elaboradas
sobre bases ecológicas, fora do campo da geografia. Desdobramento arrasador
que, em menos de duas décadas, perturbou, com excesso e confusão, o campo
dos “estudos do meio” tornando obsoletas muitas análises geográficas. “O meio
ambiente transtorna as ciências”, escreve J. C. Oppeneau, e a geografia mais
do que as outras.
Hoje nos resta correr atrás do tempo perdido. Podemos nos basear
nos trabalhos avançados de geógrafos isolados, até mesmo de laboratórios de
geografia. Mas o tempo dos pioneiros, uns iniciando o meio ambiente florestal,
outros o meio ambiente urbano, outros ainda os “espaços vividos” e as paisagens,
sem verdadeiras conexões e sem nenhuma teorização, esse tempo passou. É o
conjunto da disciplina geográfica que deve, enquanto tal, sob seu nome e em
seu nome, se engajar com seu corpus metodológico e suas práticas.
Nesta efervescência explosiva e competitiva, a geografia não é
especialmente aguardada. Não há um lugar pronto para ser tomado. A geografia
deve demonstrar sua capacidade de enriquecer ou de renovar os problemas
ambientais. E o fazer respondendo a várias exigências.
Territorializar o meio ambiente 199

Conduzir uma operação científica em três níveis:

-em nível epistemológico, participar mais diretamente e de forma


mais criativa do movimento geral das idéias a respeito das questões do meio
ambiente, de ecologia, de qualidade de vida, etc. Este é um debate de sociedade
de amplitude planetária que põe diretamente em contribuição o conjunto
dos conhecimentos e das práticas geográficas. Ele deve transitar pelo filtro da
epistemologia e da história das ciências, especialidades ainda insuficientemente
praticadas na geografia.
-em nível disciplinar, afirmar a identidade geográfica renunciando
de uma vez por todas a abraçar a totalidade da problemática ambiental em
todas as escalas de espaço e de tempo. Isto se resume em desenhar um ou
vários itinerários geográficos, cientificamente balizados por métodos, técnicas
e práticas, distinguindo bem o que se origina na pesquisa fundamental, o que
deve continuar prioritário no campo do meio ambiente, da pesquisa finalizada
e da participação direta em perícias ou em desenvolvimentos tecnológicos.
-em nível interdisciplinar, participar da reflexão e dos estudos da
mesma forma que as outras ciências da sociedade e da terra. A geografia
deve primeiramente medir as conseqüências do desenvolvimento das outras
disciplinas, da extensão de seus conceitos e de seus campos de investigação
assim como das relações que elas já estabeleceram entre elas. A emergência
da ecologia científica deve ser particularmente levada em consideração como
um fator positivo. Deste ponto de vista, o posicionamento dos geógrafos,
pesquisadores ou peritos, nos grandes programas interdisciplinares nacionais ou
internacionais deve ser analisado com muita atenção, pois ele freqüentemente
não ocorre para o benefício da disciplina e, por esta razão, não é suficientemente
reconhecido pela comunidade científica e as grandes organizações nacionais e
internacionais que cuidam do meio ambiente.
Além desta problemática a montante, de caráter essencialmente
científico, a geografia deve também cumprir outra missão, ainda mais delicada,
a respeito da pedagogia. Neste campo, a responsabilidade assumida pela
geografia tornou-se esmagadora e ameaçou, várias vezes, romper o equilíbrio
da disciplina. Esta problemática a jusante, inerente às origens da geografia,
está ligada ao fato de que os geógrafos são encarregados, em todos os níveis de
ensino, seja diretamente, seja indiretamente pelo viés da história, a explicar o
mundo às jovens gerações. As questões do meio ambiente ali estão largamente
presentes, ainda que os geógrafos não tenham o monopólio deste ensino. É
dessa forma que o professor-geógrafo, quer ele seja bem ou mal formado, é
qüotidianamente levado a ultrapassar os limites da competência científica da
sua disciplina (placas tectônicas, “buraco” de ozônio, poluições bioquímicas,
etc.). Situação aberrante, insustentável para muitos geógrafos e causando
prejuízo à credibilidade da disciplina que é preciso denunciar e corrigir. De um
modo mais geral, a geografia tem uma função didática que se origina na cultura
geral e que é preciso sempre ter em mente quando são tratadas questões tão
mediatizadas como as do meio ambiente.
Diante do avanço do meio ambiente, a geografia está, em todos os
200 Territorializar o meio ambiente

aspectos, em uma situação análoga àquela que ela conheceu, em torno dos
anos 60, quando apareceu a noção de transformação do território. A ambição
tinha sido desmedida: fazer da geografia a “ciência da transformação”. Foi
preciso diminuir as pretensões. Mas a experiência foi salutar e a geografia é
hoje amplamente reconhecida nesse campo.

A investida ambientalista: as premissas de uma “revolução


copérnica”

O meio ambiente ambíguo

O meio ambiente, o termo e seu uso, é uma fonte inesgotável de


confusões, de digressões, de conluios. O meio ambiente está em tudo e,
reciprocamente, no centro como na periferia. É um exemplo acabado de
palavra “que engloba tudo”, ou seja, da noção-valise, transbordando de sentido
e de seu contrário, que todo mundo ouve mas que cada um compreende ao
seu gosto. Sua evolução semântica é uma deriva. Primeiramente, ela foi meio
ambiente inanimado (clima, rocha, água) dos povoamentos vegetais, e depois
das biocenoses, em uma concepção estreitamente naturalista. Em seguida, ela
se tornou, por extensão, o “meio ambiente natural” dos homens, com forte
conotação biológica. Depois, ela penetrou no campo social, econômico e
cultural, primeiramente com implicações biológicas e, em seguida, invadindo
a “noosfera”.
Este expansionismo, aparentemente sem limites, é sem nenhuma
dúvida um formidável revelador de “questões vivas” e um meio de questionamento
dos comportamentos e das análises científicas. Mas é também uma dominação
totalizante, sempre mal controlada, que faria surgir preocupações legítimas nos
pesquisadores das ciências humanas e sociais, e mais ainda nos filósofos, se, de
analogias a globalizações, a atitude ambientalista não se tornasse freqüentemente
insignificante, demasiadamente cheia de muito vazio e, sobretudo, muito mais
perigosamente, moralizante e maniqueísta demais. É preciso que os geógrafos
superem sua reticência diante das tecnocracias e das místicas do meio ambiente
e contribuam para exorcizá-las. Pois desdenhar ou minimizar o meio ambiente
seria, para a geografia, passar ao largo de uma das grandes mutações, cultural e
científica, do mundo contemporâneo.

Uma metafísica planetária

Enquanto por toda parte desmoronam as ideologias conhecidas, a


ascensão da noção de meio ambiente aparece como a grande revolução do
século XX no modo de pensar do mundo e, mais precisamente, nas relações do
homem e da natureza. Tudo se passa como se a Terra, a natureza, os céus e os
pássaros girassem (ia escrever novamente) em torno do homem e dependessem
cada vez mais dele, de seu impacto material como de sua sensibilidade e de seus
fantasmas. De objetivo, o mundo se tornou subjetivo. E quando todas essas
Territorializar o meio ambiente 201

coisas não rolam mais sobre carretéis, fala-se de crise ou de catástrofe, tanto mais
que esses fenômenos se desenvolvem e interferem em um mundo que sabemos
finito, com um futuro no mínimo incerto. Então, o antropocentrismo egoísta
se apaga, sem contradição aparente, diante de um ecocentrismo universalista
que pode se tornar da mesma maneira radical... e igualmente ridículo. É assim
que o meio ambiente, tal como um conceito flácido, balança, em princípio,
entre dois extremos.
É preciso, então, ver a gestação de uma nova ideologia nessa tomada
de consciência da fragilidade e da finitude do mundo? No mínimo, vemos o
fim das ideologias de “progresso”, positivas e otimistas, marxistas ou liberais,
que acompanharam e incensaram a revolução industrial. E no melhor caso,
o nascimento de uma ética de base científica, mas que nem por isso deixa de
ser, inevitavelmente, o vetor de ideologias incontroláveis e contraditórias,
hiperprogressistas ou sobretudo ultraconservadoras, à imagem dos ecologismos
políticos tentados por todos os extremismos. Não devemos, por cientifismo, ou
por angelismo, considerar a pesquisa ambientalista fora de seu... meio ambiente
ético e metafísico, como se pudesse facilmente expurgá-la de alguns de seus
impulsos místicos. Não se faz meio ambiente sem consciência e o aspecto
político nunca está muito afastado.

Uma bifurcação epistemológica

O pensamento ambientalista não se reduz a um suplemento da alma


nem a um suplemento da ciência. É outra coisa bem mais importante: uma
revolução no modo de conceber e estudar o mundo com um estatuto geral de
epistemologia das relações entre o homem social e a natureza.
O meio ambiente marca, antes de tudo, o retorno da natureza e do
natural que a expansão econômica aparentemente ilimitada tinha apagado
com a artificialização crescente do mundo. Os geógrafos estão direta e
lamentavelmente envolvidos. É um pungente desmentido a uma geografia
à moda de Janus, na qual a geografia humana e a geografia física viraram
deliberadamente as costas uma à outra e em que o elemento natural foi
marginalizado e tornado socialmente insignificante.
O meio ambiente, pelo menos do modo como é concebido hoje,
tornou-se, depois de muitas tergiversações, claramente antropocêntrico, e em
uma ampla medida, sociocêntrico. A natureza e os fenômenos naturais aí são,
certamente, considerados em si mesmos e para si mesmos, mas cada vez mais
em uma perspectiva social no amplo sentido, ao mesmo tempo econômico e
cultural. Isto não aconteceu sem reticências por parte dos cientistas “duros”,
mas a “demanda social” foi mais forte e até suscitou a reconversão de numerosas
problemáticas. A pesquisa em meio ambiente é o próprio exemplo da pesquisa
interdisciplinar confirmada uma vez que ela associa, pelo menos na teoria, as
ciências sociais às ciências da natureza.
Todavia, a “pesquisa em meio ambiente”, afirma J. C. Oppeneau,
“não é uma disciplina”. Não é uma ciência, atual ou em formação, nem mesmo
202 Territorializar o meio ambiente

uma metaciência que vem superar todas ou parte das ciências da sociedade e da
natureza. As chamadas “ciências do meio ambiente” não são nunca mais do que
reagrupamentos interdisciplinares circunstanciais em torno de um programa
de pesquisa, fundamental ou finalizado, de uma perícia ou de uma formação
pedagógica (DEA, Escola Doutoral, etc.). O meio ambiente não corresponde
a um novo objeto, complexo, que se acrescentaria aos objetos científicos mais
“simples” já reconhecidos e às suas respectivas ciências.
O meio ambiente é, acima da interdisciplinaridade, a consideração
global de fenômenos conhecidos ou desconhecidos e o estudo privilegiado
de suas interações. Superando a divisão das ciências positivas, ele encontra
a unidade do que é vivo e a unidade do planeta. Não há meio ambiente sem
sistêmico. A noção de meio ambiente é essencialmente funcional e ampla...
aí incluído o funcionamento das “caixas pretas”!
Ao incitar os cientistas a colaborarem entre si e as ciências da natureza
a se associar com as ciências da sociedade, a pesquisa em meio ambiente
ultrapassou um patamar epistemológico importante e lançou os fundamentos de
uma nova maneira de pensar as ciências em um dado contexto social. O saber
científico adquiriu aí uma nova configuração e uma nova dimensão. Certos
filósofos vêem nisso a passagem de um “contrato social” para um “contrato
natural”. “A história global entra na natureza, a natureza global entra na
história: aí está algo inédito na filosofia” (Michel Serres). Aí está também o
inédito na geografia!

Um objetivo para os geógrafos : territorializar o meio


ambiente

“A geografia serve primeiramente para falar do território.”


Jean-Paul Ferrier

O diálogo entre o meio ambiente e a geografia do qual somos


convidados a participar por Géoforum 1991 se clareia com uma nova luz. Por
um lado, não é um debate interdisciplinar entre duas ciências que se desafiam
ou colaboram no âmbito dos métodos e das práticas, é uma confrontação
dissimétrica entre, de um lado, uma disciplina, a geografia, e de outro um
complexo epistemológico do mais alto nível que reúne toda a reflexão e todos
os desenvolvimentos científicos sobre as relações dos homens e de seu meio
ambiente. Por outro lado, esta troca sempre tem tendência a ultrapassar o
terreno científico e a se desenvolver no campo da ética. Situação complexa,
difícil de administrar, mas inevitável e enriquecedora, da qual era preciso definir
o estatuto para evitar os adiamentos e as derrapagens.
A geografia é hoje reconhecida como “a ciência social dos territórios”
(Colloque de prospective, Ministère de la Recherche et de la Technologie,
Paris, 1990). A compreensão geográfica do meio ambiente deve se manifestar
essencialmente nessa perspectiva. “Territorializar” o meio ambiente é, ao mesmo
tempo, enraizá-lo na natureza e na sociedade fornecendo os meios conceituais
Territorializar o meio ambiente 203

e metodológicos de fazer avançar o conhecimento ambiental nesse campo.


Partiremos de seis conceitos fundamentais. Eles iniciam seis filões autônomos,
mas solidários, em torno do conceito central de território.

Socializar o meio ambiente

Este procedimento segue a linha da evolução do “conceito” de meio


ambiente e ele não se origina unicamente da geografia. Os antropólogos, os
sociólogos e os economistas já trouxeram sua contribuição em comparação
aos naturalistas no início bastante reticentes. Socializar o meio ambiente é
mudar a finalidade do sistema, ultrapassar a mesologia e a etologia para entrar
na análise das estratégias sociais e dos modos de representação. Uma grande
parte da geografia humana, urbana ou rural, é diretamente mobilizável nesse
tipo de procedimento ao longo do qual ela encontrará concepções da natureza
mais assimiláveis para ela do que muitas análises da geografia física.

Espacializar o meio ambiente

A contribuição da geografia aqui é essencial, mas ela está longe de


ter atingido seu pleno desenvolvimento. Constatamos que numerosos estudos
ambientais ou flutuam em um espaço mal determinado, ou se limitam a uma
divisão do espaço de tipo corológico herdado da biogeografia. A abordagem
espacial, qualitativa ou quantitativa, tornou-se um conhecimento no sentido
pleno, rico em implicações e prolongamentos sociais e naturais no qual muitos
geógrafos se destacam.

Antropizar o meio ambiente

Os meios ambientes naturais no sentido estrito se tornaram exceção.


Os meios ditos “naturais”, floresta, cursos de água, litorais, estão na verdade
ampla e remotamente artificializados. Sua própria estrutura, e ainda com
mais razão seu funcionamento, conseqüentemente sua evolução, dependem
largamente das condições de sua transformação e de sua gestão pelas sociedades
sucessivas. Este aspecto essencial do meio ambiente não é desconhecido dos
ecologistas, mas eles não possuem sempre os meios conceituais e metodológicos
de apreender seu alcance: seja porque eles o minimizam e se dispensam de
estudá-lo, seja porque eles o interpretam de forma negativa ou catastrofista.

Hibridizar o meio ambiente

Hoje, todos estão convencidos de que o meio ambiente não é natural


nem naturalista, mas que ele contém ainda uma parte, maior ou menor, de
204 Territorializar o meio ambiente

natural. Ele é então um produto de interface que é preciso tratar como tal.
Ora, os conceitos utilizados para apreendê-lo se originam geralmente ou das
ciências do homem e da sociedade, ou das ciências da vida e da terra. O diálogo
desanda freqüentemente para a cacofonia. Há muita confusão no manuseio
dos conceitos e até na linguagem mais comum. O meio ambiente deve cuidar
de seu vocabulário. A geografia, mais do que outras disciplinas, tem o hábito
de manusear conceitos “mistos” na encruzilhada de campos semânticos e
disciplinares: meio social, limitação, crise, meio, paisagem, potencialidade,
recurso, etc. A pesquisa ambiental deve se prestar urgentemente a um
esclarecimento semântico que deve assegurar, com prioridade, o domínio de
mecanismos conceituais tirados ainda muito freqüentemente da analogia e do
reducionismo.

Historiar o meio ambiente

Esta é a continuação lógica das propostas precedentes. Só se pode


socializar e antropizar o meio ambiente se ele foi inscrito na perspectiva do tempo
e da duração. Este tempo é primeiramente aquele da natureza, periodização de
muito longa duração e tempo circular das estações. Mas é sobretudo o tempo
da história das sociedades que fizeram e desfizeram seu próprio meio ambiente...
ou das outras sociedades. É a memória dos territórios e das regiões, gravada no
espaço como no espírito dos homens (Cl. E G. Bertrand, 1991).
Este procedimento é próprio tanto dos historiadores, dos arqueólogos,
dos pré-historiadores, dos palinólogos, dos climatólogos... que dos geógrafos.
Estes últimos provaram muito cedo sua capacidade de tratar estas questões que
exigem uma dupla competência, naturalista e histórica.

Patrimonializar o meio ambiente

Os estudos ambientais são concebidos, direta ou indiretamente, para


ajudar a ação. Patrimonializar não é então apenas procurar uma explicação no
passado ou assegurar uma sobrevivência, é também projetar o meio ambiente em
um futuro que só pode ser de evolução rápida e freqüentemente de mutação. É
difícil assegurar com suficiente seriedade científica esta dimensão prospectiva,
ainda muito rara, mas ela é indispensável. Sem ela, a pesquisa ambiental
careceria de sentido e de tempero.

Direções de pesquisa para uma prática geográfica do meio


ambiente

As poucas propostas que seguem não têm a pretensão de cobrir a


totalidade do campo ambiental ao qual a geografia poderia pretender se ela se
desse por objetivo central “territorializar” o meio ambiente. Trata-se somente
de apresentar certo número de campos de pesquisa atualmente em curso, seja
Territorializar o meio ambiente 205

a título pessoal, seja mais geralmente a título coletivo no âmbito do CIMA-


URA 366 CNRS. Este é um modo entre outros de abordar esta problemática
complexa, se comprometendo a propor e a realizar um sistema paradigmático
coerente e auto-suficiente.

O domínio geográfico do meio ambiente passa por uma reconstrução da


geografia física e pela elaboração de um corpo metodológico identitário

Para se firmar como tal, a geografia deve trazer a prova de sua


especificidade e de sua eficácia, ou seja, fundar sua identidade sobre resultados
tangíveis através de um método original. Nos últimos vinte anos, o CIMA-URA
366 progressivamente imaginou e pôs em prática um “paradigma de interface”
que acaba de ser apresentado sob sua forma integral, ainda que sucinta, no Grand
Colloque de Prospective que o Ministério da Recherche et de la Technologie
consagrou à geografia (Paris, 12 de dezembro de 1990). Remetemos a ele,
lembrando somente três postulados metodológicos fundamentais do ponto de
vista das pesquisas sobre o meio ambiente:
– é um método que se situa na perspectiva da geografia, “ciência
social dos territórios”;
– é um método de interface que se compromete a aprofundar a análise
interativa dos fatos sociais e dos fatos naturais;
– é um método de complexidade e de diversidade que tenta apreender
o meio ambiente espacial por meio de um sistema conceitual tridimensional:
o geossistema, conceito naturalista; o território, conceito socioeconômico; a
paisagem, noção sociocultural.
Este procedimento se reveste de aspectos práticos, científicos e
didáticos, que se desenvolvem a partir de diferentes problemáticas ou temáticas.
Aqui só serão lembrados, a título de exemplo, quatro deles, particularmente
significativos do ponto de vista do meio ambiente.

O cuidado do território e a qualidade de vida: reencontrar a dialética perdida


entre o meio ambiente e sua organização

Entre o meio ambiente e sua organização existe um fosso intelectual


e institucional. Ele é em parte de ordem histórica. O conceito moderno de
organização do território surgiu do grande movimento voluntarista que acompanhou
a reconstrução das economias após a segunda guerra mundial e impulsionou as
primeiras tentativas de planificação dos territórios. As interrogações práticas sobre
o meio ambiente e as primeiras políticas de “proteção da natureza” são, em larga
parte, nascidas do mau funcionamento dessas organizações do território, sob a forma
marginal e indefinida dos estudos ditos de “impacto”. As verdadeiras pesquisas
ambientais só começaram muito mais tarde, em torno dos anos 80, na maioria das
vezes independentemente das pesquisas sobre a organização do território e a partir
de instituições políticas, administrativas e científicas diferentes.
206 Territorializar o meio ambiente

Uma aproximação foi esboçada nesses últimos anos, especialmente


graças ao PIREN (CNRS) e ao Ministério do Meio Ambiente (Ministère de
l’Environnement), no âmbito de programas interdisciplinares, e o “Plano Verde”
assumiu a dimensão global do problema. Todavia, o movimento é lento e ainda
incerto, pois ele vai contra modos de pensamentos dominantes, estruturas
estabelecidas e interesses imediatos dos grupos de pressão constituídos em volta
dos ministérios, dos comitês científicos e dos laboratórios.
Ainda hoje, o meio ambiente e a organização do território estão em
grande parte separados e são considerados, na melhor das hipóteses, como
duas concepções diferentes da análise do espaço, irredutíveis para alguns: uma
seria positiva, a outra negativa; uma economicista, a outra ecologizante; uma
progressista, a outra conservadora. Esse jogo de yin e yang deveria ter um fim,
ou seja, encontrar a unidade funcional do espaço. “Com seu objetivo mais
claramente definido, a pesquisa ganhará em eficácia social”. Aos desequilíbrios
mundiais socioeconômicos se acrescentam progressivamente desequilíbrios
ecológicos que atingem todas as populações do planeta, mas ainda mais
gravemente os povos mais desprovidos: aliás, desequilíbrios socioeconômicos
e desequilíbrios ecológicos são estreitamente “dependentes” e a “desigualdade
ecológica é dramática quando se vê o que se passa nos países do sul e nos países
do leste” (Alain Ruellan).
Os geógrafos estão particularmente bem armados para garantir a
sinergia meio ambiente-organização em torno do conceito de território. Isto
não seria mais do que encontrar o premonitório “mesnagement” de Olivier
de Serres e as aplicações que os madeireiros franceses fizeram disso durante
séculos. Assim, a geografia se posicionaria no centro do debate, forte, por um
lado, pela sua dupla competência social e naturalista, e, por outro lado, pelo
seu domínio de espaço através do conceito de território e das tecnologias de
aferição (cartografias e imagens por satélite) (cf. trabalhos dos geógrafos de
ORSTOM).
Chegou então o momento de inverter a problemática. Até o presente,
a questão ambiental era apenas um aspecto subsidiário da política de organização
do território, uma espécie de corretivo mais ou menos condescendente, a
manifestação sempre um pouco tardia de um “suplemento da alma”. Esse
raciocínio que esteve subjacente em mais de 20 anos de pesquisas fundamentais
e finalizadas parece se inverter. É a partir de uma política ampla do meio
ambiente, baseada essencialmente sobre a qualidade de vida, que se deve hoje
abordar as questões de organização do território. A organização se torna, de certo
modo, um procedimento conceitual, metodológico e prático, correspondendo
à aplicação de uma política do meio ambiente. A organização do território é
então concebida como a ciência de gestão territorial do meio ambiente. Esta
virada na tendência está ocorrendo na França, particularmente sob o impulso
do Ministério do Meio Ambiente (Ministère de l’Environnement). Ela ainda
não está controlada e deve ser analisada e manipulada com prudência. A
geografia tem muito a ganhar: uma nova base de reflexão epistemológica,
métodos e práticas a serem renovados e adaptados, campos de aplicação para
suas tecnologias de imagens. Há um patamar a ser superado. Isso implica,
imperativamente, em reconsiderar o papel e o conteúdo da geografia física e
Territorializar o meio ambiente 207

em abrir a geografia a dois campos de pesquisa que ela domina mal: o biológico
e o sensível, sem os quais não se pode falar seriamente de vida e de qualidade
da vida.

A unidade do território: superar o fosso entre o urbano e o rural e redescobrir


o meio ambiente urbano

Se o tradicional fosso entre geografia humana e geografia física tende,


no melhor dos casos, a esvanecer, a pesquisa geográfica contemporânea funciona
ainda, em grande parte, sobre a separação entre estudos com dominante urbana e
estudos com dominante rural. A nova dialética entre a organização do território
e o meio ambiente nos leva a interrogar sobre a conveniência de uma separação
que a diminuição da atividade agrícola e as novas funções urbanas do espaço
rural não justificam mais.
Se, no conjunto, os estudos geográficos dominam tão bem a
organização do território do lado urbano quanto do lado rural, o mesmo não
acontece com o meio ambiente. O meio ambiente rural é sobretudo apreendido,
sem dificuldades especiais mas sem grande eficácia no plano econômico e social,
a partir dos dados clássicos da geografia física. Aí se encontram florestas, solos,
águas e climas familiares ao geógrafo, e a análise paisagística permite abordar sem
muita dificuldade o “vivido” pelos rurais. Por outro lado, as questões biológicas,
e não apenas as poluições, são tratadas com muito mais dificuldade. É um meio
ambiente em que a vida e sua qualidade não estão perfeitamente situadas.
O meio ambiente urbano, por sua vez, é pouco estudado pelos
geógrafos. As preocupações e os métodos da geografia física são dificilmente
aplicados ali, e os geógrafos então deixam a cidade aberta a uma “ecologia
urbana” que procura se definir, não sem pertinência, mas sem ambigüidade.
Novos comitês científicos se dedicam a fazer progredir o conhecimento do meio
ambiente urbano. Os geógrafos aí têm, a priori, um lugar que ainda está por
concretizar por estudos adaptados. Enfim, é partindo da cidade que se analisará
com mais eficácia um espaço rural que está perdendo sua coerência e que, cada
vez mais, só existirá enquanto meio ambiente em relação à realidade urbana e
à imagem da urbanidade.

A antropização e a “memória das regiões”: do espaço-natureza ao território-


artefato

O impacto das sociedades sobre a natureza é uma das grandes “questões


vivas” do momento. Esta interrogação múltipla suscitou numerosos e frutíferos
estudos, há muito tempo entre os pré-históriadores, os arqueólogos e os
geógrafos, mais recentemente entre os historiadores, os economistas e os juristas.
Estes estudos hoje são aprofundados e confirmados, por meios sofisticados e
ambições globais, por físicos, biologistas, geólogos, climatólogos, em particular
no âmbito de programas de pesquisa sobre o meio ambiente planetário.
208 Territorializar o meio ambiente

Os geógrafos participaram bem pouco deste movimento, como se


eles não tivessem nada a provar. Ora, no campo das relações dos homens com
seu meio, suas competências são antigas e reconhecidas. Mas elas nunca foram
suficientemente reunidas e teorizadas para constituir um corpo teórico específico
e inovador. Por sistema antrópico, entendemos o conjunto dos processos
materiais e imateriais, de origem social, econômica ou cultural, que transformam
o espaço-natureza em um meio ambiente mais ou menos artificializado. O meio
ambiente se define então como a interface espacial coberta de objetos ou de
fenômenos “mistos” (S. Moscovoci) que relevam ao mesmo tempo da natureza
e da sociedade, seja em sua estrutura, seja em seu funcionamento.
A fonte, no sentido próprio como no sentido figurado, se torna
então um recurso no centro de um sistema social dado ou na interferência de
diversos sistemas sociais que a disputam. O processo de antropização pode ser
especificado; de uma parte, analisando os mecanismos da artificialização; de
outra parte, restituindo o artefato ao ou aos sistemas de valores correspondentes.
Esta pesquisa implica várias leituras, simultâneas e contraditórias, de uma mesma
“unidade ambiental”. Um pinheiral é ao mesmo tempo um ecossistema, uma
paisagem, uma massa de produção de matéria fibrosa, um espaço de caça etc...
para atores diferentes ou mesmo para um único e mesmo ator.
Este método multidimensional repousa sobre uma base histórica. É
preciso fazer falar a “memória das regiões”. Ele evita tratar os problemas do
meio ambiente na superfície, sem profundidade histórica, ou seja, sem levar em
conta efeitos de histerese e sem restituir os meios a uma perspectiva evolutiva.
Em particular, como se poderia falar de crise ou de catástrofe sem análise prévia
das durações e dos ritmos a longo prazo? (cf trabalhos de Jean-Paul Métailié,
Bertrand Desailly e Serge Briffaud, do CIMA).

Um retorno crítico e construtivo à monografia geográfica: a pesquisa de um


modelo sistêmico de análise do meio ambiente territorial

Definir o meio ambiente territorial de um grupo social consiste


primeiramente em reunir uma informação disparate proveniente de fontes
e de disciplinas diversas. Resta encontrar um princípio de ordem, depois
de generalização, que permita apreender a estrutura e o funcionamento
deste sistema territorial. Podemos fazer apelo à corologia, à mesologia, ao
ecossistêmico, etc. Mas nenhum desses modelos revela a totalidade do meio
ambiente e em particular sua dimensão sociocultural. A etnologia antropológica
fornece bons exemplos de monografias territoriais e os sociólogos também se
interessaram por este problema (M. Jollivet). Os geógrafos foram os artesãos
nessa matéria. Entre 1890 e 1950, certa concepção da monografia fez a eficácia
e a glória da geografia regional francesa. Mas, por falta de renovação, ela
também fez sua ruína. Cogitar de inspirar-se nisto releva ainda hoje, para muitos
geógrafos, da provocação. É verdade, as críticas eram e continuam pertinentes.
Mas se nos damos ao trabalho de reformulá-las, podemos encontrar soluções
inovadoras no arsenal científico contemporâneo. A monografia tradicional
era discursiva, descritiva, qualitativa, analítica (as famosas “gavetas”: relevo,
Territorializar o meio ambiente 209

clima, população, economia) e insistia, em nome de um “excepcionalismo” mal


formulado, na unidade da realidade observada. Hoje é possível imaginar um
modelo sistêmico que evita a maioria desses inconvenientes. Além disso, esse
procedimento nos conduz a reintroduzir uma parte controlada de qualitativo e
uma certa dose de excepcionalismo, por exemplo, na apreensão das paisagens
(ex. Gavarnie, grande sítio mundial). Nós já podemos construir monografias
ambientais finalizadas que, em diferentes escalas de tempo e de espaço, fazem
progredir o conhecimento fundamental dos territórios e podem servir de ajuda
à decisão (ex.: o Sidobre).

Conclusão: o meio ambiente no espaço do social

Durante muito tempo natural, o meio ambiente invadiu o social muito


mais do que o social o invadiu. Primeiramente, margem distante e facultativa,
transformada em seguida em periferia obrigatória e cada vez mais exigente, o
meio ambiente está hoje no coração do social, nó górdio da gestão do território
e da qualidade de vida.
Para a geografia, deixar-se arrastar por este maremoto não basta. É
preciso que ela invista no meio ambiente melhor ainda do que ela o fez para
a organização do território. Afirmando sua identidade de “ciência social do
território” e a baseando sobre um procedimento específico que lhe permita
consolidar sua participação na pesquisa interdisciplinar. Que isto ainda não
seja, para a disciplina, uma ocasião perdida que veria o meio ambiente sair
irremediavelmente do “território dos geógrafos”.

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210 Territorializar o meio ambiente

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211

TERCEIRA PARTE

A PAISAGEM:
IRRUPÇÃO DO SENSÍVEL NO CAMPO
DO MEIO AMBIENTE
“O campo de oliveiras
se abre e se fecha como um leque.”
Federico GARCÍA LORCA

A paisagem se impôs à pesquisa mais que a pesquisa se impôs à


paisagem. Em menos de duas décadas, ela tornou-se um tema central da
sociedade. Ela acompanha o triunfo da imagem e da sensibilidade, do formal e
das aparências, do efeito-decoração e do efeito-imagem. Criadora da identidade,
ela participa do patrimônio dos indivíduos e das sociedades. Ela tornou-se uma
das facetas culturais do meio ambiente. Para muitos pesquisadores, geógrafos
aí compreendidos, é uma revolução cultural e científica. É preciso se liberar
do domínio cientista e objetivista, das finalidades naturalistas (nem sempre
admitidas), para ascender ao mundo das representações e do vivido. Antes de
ser um problema de “natureza”, a paisagem, e através do seu meio ambiente,
torna-se uma questão de cultura..., mas não somente. No fundo da paisagem
resta sempre alguma coisa de natural.
Na verdade, a ebulição paisagística dos anos 1980-1990 se caracteriza,
sobretudo, pela onda de considerações fúteis e confusas, com poucos méritos
em termos de análises: discursos confusos ou receita de fast-food paisagístico,
blefe de informações e lobies obstinados, refúgio de muita mediocridade. O
paisagismo fez receita sobre bases frágeis e, às vezes, falaciosas.
Nós entramos na paisagem por volta dos anos 1964-1966, com
cautela e diplomacia. O mais importante foi ter experiência de geógrafo,
diretamente associado à paisagem e à análise naturalista do geossistema.
Confusão rapidamente corrigida, mas responsável por alguns mal-entendidos.
Em 1970, um chamado do Ministério da Cultura encomenda ao CIMA-CNRS
uma pesquisa fotográfica sobre as paisagens graníticas do Sidobre (sudoeste do
Maciço Central) ameaçado pela explotação de pedreiras. Nossa resposta, em
1972, insiste sobre os riscos ecológicos e econômicos, sociais e culturais, que
atingem a evolução das paisagens... com grande surpresa de uma administração
(era anterior à criação do Ministério do Meio Ambiente) mais habituada a
classificar uma capela romana do que a intervir numa paisagem em conflito.
Em 1978, a publicação conjunta de um artigo teórico e de uma monografia do
212

Sidobre constitui uma primeira tentativa para recolocar a dimensão paisagística


numa abordagem ambiental. A criação, em 1992, do Instituto Tulousiano
de Paisagem (ITP), interdisciplinar e sobretudo interprofissional, tinha por
principal objetivo sair do discurso vazio e de inserir a paisagem na gestão do
meio ambiente e da organização/gestão dos territórios.
A paisagem tornou-se a representação mais familiar e mais concreta
do meio ambiente. A este título, ela constitui uma incomparável ferramenta de
diálogo e de projeto para a organização/gestão (legislação paisagística), assim
como um formidável caminho para a formação pedagógica. Na condição de
conservar suas raízes territoriais. Em 1994, nós redigimos nesse sentido o parecer
do Conselho Econômico e Social do Médio-Pirineus sobre “A paisagem, uma
ferramenta para a organização/gestão1 do território”. A paisagem tornou-se
muito importante para ser reduzida unicamente ao paisagismo.

1 Aménagement: estamos traduzindo por “organização/gestão”.


213

A PAISAGEM ENTRE A NATUREZA E A


SOCIEDADE

Por que debater ainda sobre a banal paisagem? Trata-se, por escrúpulo
disciplinar, de preservar o objeto antiquado que é, ao mesmo tempo, o cenário
de uma geografia confinada? Trata-se de submeter-se à onda ecológica que
invade a análise social? Ou de responder a uma pergunta ainda confusa e
ambígua e a novas questões sobre as relações que a sociedade mantém com o
espaço? Trata-se de refletir sobre um dos aspectos das relações entre natureza
e cultura no centro da combinação social? Ou, então, de atacar uma noção
ideologicamente opaca, aproveitada e aviltada pelo discurso dominante das
mass media e pela prática tecnocrata? O problema da paisagem está centrado
hoje em todas estas questões e muitas outras ainda. Todas estas interrogações e
todos estes elementos díspares são na verdade indissociáveis, mas, por enquanto,
inextrincáveis.
A questão da paisagem parece freqüentemente o tipo do debate
impossível, até um falso debate. Futilidade científica, no entanto, existência
material e cultural quotidiana e inelutável. Uma contradição que justifica, por
si só, este esboço metodológico. Por que a paisagem terá sido esvaziada tanto
da problemática social quanto da problemática naturalista? É bem verdade que
a paisagem não é responsabilidade de nenhum especialista, e é menos ainda
uma disciplina científica constituída. Não existe uma “ciência da paisagem”, no
sentido amplo do termo. E sem dúvida jamais haverá. Seria preciso considerar a
existência de um procedimento específico? Mas com qual finalidade? A partir
de qual axiomática e com qual metodologia?

A ideologia da paisagem – a emergência e a rejeição

Partir de uma definição analítica e rigorosa da paisagem seria supor


o problema resolvido, e ele o seria apenas de um modo unilateral. Paisagem,
uma palavra viva, quotidiana, que cada um usa como quer, e que pode parecer
fora de moda, insípida, ou romântica demais. Precisamos nos deixar guiar
pelo emprego social, e sua brusca renovação que faz dela uma palavra forte e
mobilizadora, uma palavra-chave da sociedade atual. As Mass media, o discurso
político-tecnocrático, o vocabulário científico, em seguida, multiplicam as
referências a uma paisagem proteiforme, indeterminada, indeterminável.
Paisagem, paisagístico, etiquetas de garantia coladas em qualquer produto à
venda: casa de campo, bairro novo, escritórios, espaço verde... ou publicação
científica. Na melhor das hipóteses, a palavra só está participando da indefinição
214 A paisagem entre a natureza e a sociedade

publicitária. Seria fácil detectar o esnobismo e a desonestidade de tal prática,


entre uns e outros, construtores ou pesquisadores... Formou-se uma ideologia da
paisagem? Ou a paisagem participa da confusão da ideologia dominante? Mas a
emergência social da paisagem une-se à onda ecológico-ambiental que varre a
sociedade de consumo. Farta de contradições e de sua irredutível globalidade,
a paisagem tornou-se um desafio político: sua análise científica se coloca tanto
em termos de saber quanto de poder.
A recusa em considerar a paisagem como um objeto de pesquisa
explica-se melhor agora. Argumentos científicos lhe são opostos. Por sua
complexidade, por sua transgressão do campo natural para o campo social,
ela afasta de si as categorias científicas tradicionais: isto não é um conceito
e nunca poderá ser. Nenhum método conhecido poderia ser aplicado a uma
noção tão confusa e caótica, pois a paisagem é apenas um aglomerado de objetos
díspares e muito complexos que têm individualmente sobre ela a vantagem
de uma existência científica baseada em disciplinas conhecidas, da geologia
à arquitetura. Acima de tudo, a paisagem limita-se ao visível, portanto, ao
perceptível: ela é apenas a aparência das coisas, os mecanismos sendo, quanto
a eles, invisíveis. Acrescentemos a isto alguns argumentos políticos: a paisagem
torna-se então um produto de recuperação ou de agitação, uma operação
ideológica sem fundamento científico. É bastante significativo ver opiniões
habitualmente estranhas umas às outras, ou mesmo opostas, convergirem a esse
respeito. A paisagem é, então, objeto de execuções sumárias: ressurgência da
geografia descritiva clássica, visão pseudocientífica de ecologistas delirantes,
maquinação tecnocrática destinada a mascarar os “verdadeiros” problemas das
sociedades. Manipulações duvidosas, sobretudo por parte daqueles que sempre
temem estar atrasados em relação a uma idéia, um conceito... ou uma paisagem.
A paisagem é dessa forma esmagada entre excessos de sensatez e de loucura,
ou, mais prosaicamente, entre o desprezo e a impostura.

Inadequação das metodologias naturalistas

Desqualificação da geografia clássica

Nada de mais familiar ao geógrafo do que a paisagem concreta e sua


descrição balanceada de forma feliz. Nada de mais estranho para a geografia do
que a análise global e metodológica da paisagem. Esta desqualificação da geografia
clássica corresponde a duas lacunas fundamentais do projeto geográfico: por um
lado, ausência de reflexão teórica sobre o conceito de natureza e de paisagem1 ;
por outro lado, ausência de organização da monografia regional.
No ponto de partida, encontramos a geografia triunfante dos anos 50-
60, dominada por uma geomorfologia em pleno desenvolvimento metodológico e
cada vez mais autônoma, pois o desenvolvimento tardio e marginal da climatologia
e da biogeografia modifica pouco a hierarquização setorial do saber geográfico
esmagado pela problemática da geomorfologia. O estudo geomorfológico mascara
a paisagem ou a desvitaliza.
1 G. BERTRAND (2). O número entre parênteses remete à orientação bibliográfica in fine.
A paisagem entre a natureza e a sociedade 215

Em. de Martonne, e sobretudo seus êmulos, afastaram o projeto


humanista e historizante que Vidal de la Blache baseava no estudo das
paisagens geográficas em sua utilização humana. A partir daí, os estudos setoriais
desenvolvem-se paralelamente, cada um aprofundando seu domínio, não
trazendo nenhuma contribuição voluntária e refletida à consolidação daquilo
que já não é mais uma “síntese geográfica”. As tentativas de Max. Sorre, que
propõe uma espécie de síntese biológica prefigurando a ecologia humana,
aquelas de A. Cholley, o qual prefigura ao mesmo tempo a combinação natural
e a “análise de sistema”, o exemplo de Ch. P. Péguy, o qual propõe uma espécie
de síntese topológica do Queyras, continuam basicamente sem continuidade.
A geografia regional, descritiva, não conceitualizada, não é então mais do
que um procedimento literário sem futuro. Além disso, a inserção brutal de
fatos humanos em um “cenário natural” desenhado a priori estabelece uma
ambigüidade pesada sobre o conjunto do procedimento geográfico. A escola
francesa deixou-se levar, e a despeito de reticências, e até de resistências, por
um método de análise fundamental determinista que ela não dominava. O meio
natural é então tratado em uma descrição compartimentada que se desenvolve
de forma deficitária em relação à problemática social. A geografia humana
desvia-se cada vez mais deste tipo de análise ao mesmo tempo equívoca e inútil.
Inapta a apreender a paisagem na sua complexidade socioecológica, a geografia
clássica nem por isso deixou de trazer algumas contribuições indispensáveis
à análise paisagística: as noções de espaço e de escala, a contribuição da
geomorfologia e a familiaridade com as ciências histórica e arqueológica.

O geossistema e o domínio do “subsistema natural”

A pesquisa sobre a paisagem que deslancha na França em torno de


1965 participa de um movimento de questionamento e de renovação da pesquisa
científica. Diversos “filões” conduziam a esta convergência epistemológica:
o desenvolvimento da biologia, e mais tarde da ecologia biocenótica, que
demonstra a unidade biológica e funcional da natureza ao impor os primeiros
conceitos integradores (biocenose, biótopo, ecossistema); os modelos do
estruturalismo lingüístico; a teoria dos conjuntos e a análise sistêmica, que
dão uma realidade aos complexos e permitem examiná-los globalmente sem os
destruir; a reflexão dos sociólogos e antropólogos sobre a natureza reencontrada
em suas relações com a cultura e a sociedade; o esforço mais geral de inserção
da ecologia na análise marxista.
Na origem dos trabalhos modernos sobre a paisagem “natural”, estão
metodologias poderosas desenvolvidas por geógrafos soviéticos e generalizadas
na Polônia, Tchecoslováquia, Alemanha, onde elas se combinaram com a
corrente da Landschaftsökologie2 Os métodos empregados são essencialmente
quantitativos e baseados na cibernética. Eles apóiam-se em medidas de estações
que permitem estabelecer balanços biogeoquímicos e energéticos em escala
das diferentes “geofácies” da paisagem. Existe uma “ciência do geossistema”,
segundo Sochava, isto é, uma “ciência da paisagem natural” que permite não
2 N. BEROUTCHACHVILI e G. BERTRAND. O geossistema ou sistema territorial natural.
RGPSO, 1978, 2 supra, p. 167 sqq.
216 A paisagem entre a natureza e a sociedade

apenas levantar balanços, mas já se exercita, graças à cibernética, na previsão


dos “estados” da paisagem. Os estudos de “landscape survey”, realizados desde
o começo do século XX em diversos países anglo-saxões, ao mesmo tempo
mais “leves” e mais pragmáticos, conduzem diretamente ao aménagement do
espaço.
O método de pesquisa proposto em Toulouse a partir de 1967 e
aprimorado desde então inspira-se nestas diferentes correntes. Ele repousa sobre
alguns princípios elementares:
É um método global. A paisagem dita “natural” é, ao mesmo tempo,
uma estrutura e um sistema que funciona no espaço e no tempo. Adequação
de um método a seu objeto, mas também reação contra a propensão natural
da pesquisa científica a fragmentar-se e perder de vista o que é essencial para o
conhecimento das combinações ecológicas ou sociais.
É um método integrado. A integração não sendo a síntese e o estudo da
paisagem não sendo uma “supersíntese” enciclopédica. Trata-se de uma análise
de sistema que reconhece uma hierarquia entre os conjuntos e os elementos, e
que estuda suas inter-relações.
É a pesquisa de uma nova linguagem. Sem tal linguagem, o objeto-
paisagem não poderia ter existência prática e científica, o que explica a prioridade
atribuída à definição das unidades de paisagem e à sua classificação. De simples
tipologias compreensivas, passamos para sistemas taxocorológicos mais elaborados3
que permitem apreender toda a nuances do mosaico paisagístico .
As noções de escala dos fenômenos naturais ou humanos e de limites no
espaço e no tempo são, por definição, indissociáveis da taxinomia e da corologia.
Pesquisas sobre os “estados” dos geossistemas permitem, por um lado, definir toda
unidade paisagística por seu ritmo (fenologia) e, por outro lado, acompanhar e até
prever as evoluções da paisagem. Assim, dispomos das premissas de uma história
e de uma arqueologia da paisagem.4
O geossistema permite apreender sem discriminação e sem hierarquização
prévias a totalidade do “complexo geográfico natural”. O “subsistema natural”,
que funciona em toda paisagem, pode então ser perfeitamente dominado em
si mesmo e para si mesmo. No entanto, com isto o problema metodológico da
paisagem não está resolvido.

A paisagem à margem da ecologia

A ecologia domina as ciências da natureza e penetra no mais profundo


das ciências humanas e sociais. Seria preciso ver neste fato um progresso
metodológico na medida em que conceitos testados, tais como o ecossistema, o
meio ambiente, etc. parecem tanto aplicar-se à sociedade quanto à natureza? A
ecologia científica teve êxito ali onde a geografia fracassou? Existe uma solução
ecológica para a problemática paisagística?
3 J. F. RICHARD (16)
4 G. BERTRAND. A arqueologia da paisagem na perspectiva da ecologia histórica. Caesarodunum,
nº13, 1978, p. 132-138.
A paisagem entre a natureza e a sociedade 217

A pesquisa sobre a paisagem se inscreve na corrente geral da ecologia


científica, mas à margem e em uma atitude de reflexão crítica. As reservas não
dizem respeito ao método ecológico propriamente dito, mas às modalidades
teóricas e práticas e sua aplicação no campo social. A ecologia é uma ciência
biocêntrica e o ecossistema é um conceito biológico que focaliza o balanço
energético na produção de matéria viva pelo mecanismo da fotossíntese, do
metabolismo e da cadeia alimentar.
No plano metodológico, a análise ecossistêmica é freqüentemente
assimilada a uma análise de sistema, e é considerada como um simples
instrumento de trabalho “neutro”, sem que sejam percebidas as interferências
possíveis com um fim biológico. Por exemplo, os processos e os elementos
abióticos estão subordinados aos processos e aos elementos vivos; ora, o vegetal
ou o animal não são o centro da paisagem, nem mesmo o “reativo” privilegiado
desta última.
Se a ecologia está em vias de dominar os aspectos biológicos do
meio ambiente social, - ver os progressos recentes da etologia humana e da
ecologia médica - ela não peca menos por ingenuidade e reducionismo toda
vez que ela pretende vestir a realidade social com seus próprios conceitos e
impor uma interpretação global – ecossistêmica - da sociedade humana; a
tentativa de síntese ecológica de P. Duvigneau é uma prova disso.5 Então, o
biologismo funcionalista não está muito longe, abrindo a porta ao profetismo
e ao catastrofismo ecológicos. Compreende-se, assim, a reserva de princípio
adotada por certos ecólogos e, mais sistematicamente, pelo conjunto dos
pesquisadores marxistas que integram, lentamente, a ecologia na análise dos
processos sociais.
A inserção da paisagem na análise social não passa, pelo menos
diretamente, por métodos de inspiração naturalista. A sociedade continua
afastada da natureza, apesar dos progressos consideráveis realizados no plano
filosófico e metodológico, e do sucesso de algumas experiências práticas, pouco
numerosas e, sobretudo, setoriais ou monográficas demais6 . A alternativa
ainda está entre a separação ou a confusão dos conhecimentos. Não desejamos
propor nenhuma passagem direta entre a análise naturalista e a análise social.
Um método e um conceito degradam-se quando eles transgridem seu próprio
campo disciplinar, pois eles mudam implicitamente de finalidade e de conteúdo.
Os conceitos de geossistema e de ecossistema não podem ser transpostos para
a análise social. Eles não podem servir de ponto de partida para o estudo da
paisagem. Entretanto, é preciso ver neles análises de sistemas bem-sucedidas
em seus campos respectivos. E eles podem servir de exemplo e de modelos
analógicos. Além disso, como eles permitem reduzir a complexidade do meio
natural sem o mutilar, eles são indispensáveis para garantir a inserção do natural
na análise social. Não pode haver projeto pertinente a menos que ele esteja
constantemente amparado por uma reflexão sobre a natureza e sobre o lugar
que se lhe atribui em relação à cultura e à sociedade.
Ao reconhecer a priori a realidade socioecológica da paisagem,
situamos a reflexão na interface natureza-sociedade. Como o escreveu S.
5 P. DUVIGNEAU. La synthèse écologique (A síntese ecológica). Paris, Doin, 1974, 294 p.
6 S. MOSCOVICI (11).
218 A paisagem entre a natureza e a sociedade

Moscovici, “o combate se desenvolve efetivamente em duas frentes. Na frente


das ciências sociais, para lhes dar a conhecer a dimensão natural dos fenômenos,
dos dinamismos sociais. Na frente das ciências naturais, para levá-las a se
compenetrar da especificidade do social, a abandonar o desprezo no qual elas
mantêm as conquistas nesse campo e a renunciar às simplificações, às vezes
pueris - elas são numerosas em etologia - de suas especulações.

A dialética da paisagem

“O princípio de simplificação reinou sobre o universo. As coisas foram


totalmente e por princípio isoladas de seu meio ambiente e de seu observador,
um e outro privados de qualquer existência, quiçá incômoda. A concordância
das observações elimina o observador e o isolamento experimental elimina
o meio ambiente perturbador. As coisas se tornaram objetivas...”, como foi
estabelecido por E. MORIN7 .
Tomada uma hora como sujeito, uma hora como objeto, freqüentemente
limitada ao fenômeno da percepção, a paisagem escapou à racionalidade linear,
redutora e causal do cartesianismo, assim como do objetivismo do cientificismo
positivista. Na fragmentação da pesquisa científica atual, a análise global da
paisagem aparece como a busca de uma utopia em um mundo extradisciplinar.
O fim não é chegar, pelo menos de imediato, a um método de análise específico,
mas levantar problemas que procedimentos mais clássicos e mais setoriais não
permitem abordar. Todavia, a lógica do raciocínio implica que a pesquisa,
mesmo superficial e incerta, seja conduzida ao fim, isto é, que ela conduza a
uma prática da análise paisagística. O paradigma sistêmico (L. von Bertalanffy,
E. Morin, J. L. Le Moigne)8 permite tentar esta aventura. É preciso, em um
primeiro tempo, organizar a paisagem no interior de um sistema. Apreender uma
paisagem é acumular conscientemente os obstáculos conceituais e metodológicos
e atacar-se ao que parece ser um tecido de contradições. Basta enumerar as
principais “qualidades” que se reconhecem habitualmente à paisagem para
constatar que elas vêm de categorias freqüentemente consideradas estrangeiras
ou contraditórias. Trata-se, então, de estabelecer alguns postulados que nos
esforçaremos, em seguida, por demonstrar:
1. A paisagem se impõe na sua trivial globalidade: é preciso partir
do banal e do global desembaraçando-se (na medida do possível) de todo
pressuposto disciplinar, metodológico e finalista.
2. A paisagem é um objeto socializado, uma imagem, que só
existe através do fenômeno fisiológico da percepção e de uma interpretação
sociopsicológica. Aqueles que lidam com a floresta e os pastores vivem duas
imagens diferentes, senão contraditórias, da mesma floresta.
3. A paisagem nem por isso deixa de ser uma estrutura natural,
concreta e “objetiva”, isto é, independente do observador. A floresta é um
espaço concreto e uma biomassa que funciona por si mesma.

7 E. MORIN (10)
8 L. von BERTALANFFY (1).
A paisagem entre a natureza e a sociedade 219

4. A imagem social da paisagem é produto de uma prática econômica


e cultural. Os florestais pousam sobre a floresta o olhar do dono diante de um
aparelho que produz madeira na harmonia da natureza. O olhar dos pastores é
o dos excluídos diante de uma pastagem em potencial...
5. A especificidade da paisagem decorre menos de ser mais “complexa”
e mais “heterogênea” do que os objetos científicos habituais do que da
dificuldade de dominar as grandes categorias metafísicas: o natural e o cultural,
o espaço e o social, o “objetivo” e o “subjetivo”.

A recusa do maniqueísmo paisagístico

A maioria dos estudos sobre a paisagem se limitou, pelo menos


implicitamente, a uma interpretação dualista.
a. A paisagem é uma natureza-objeto. Só há existência social através
de um processo que vai da formação da imagem à sua interpretação social. Esta
combinação que faz intervir diferentes mecanismos fisiológicos, psicológicos,
lingüísticos, econômicos, ideológicos, etc. foi várias vezes analisada e não
parece útil voltarmos sobre esse ponto aqui. A paisagem é definida como um
fenômeno cultural.
b. A paisagem é uma natureza-objeto. Ela é uma realidade que existe
independentemente da observação e do observador e que não é nada além de
uma porção de espaço terrestre. A paisagem é reconhecida como um fenômeno
natural.
Estas duas proposições são geralmente consideradas como
contraditórias: o confronto entre o culturalismo e o naturalismo, ou seja,
entre a filosofia e a filosofia materialista. Nestas condições, a situação parece
efetivamente sem saída. Mas só é sem saída a interpretação idealista que reduz
a paisagem a um simples fenômeno de percepção, limitando o estudo às análises
de “espaços percebidos” ou de “espaços vividos”. Aliás, é o caminho idealista,
que nem sempre se revela, talvez porque ele não reconheça a si mesmo, que
prevalece hoje na pesquisa sociológica e geográfica.9 O interesse recente
voltado para o fenômeno da percepção permitiu nuançar e humanizar - ou
mais exatamente socializar - a consideração do meio ambiente dito natural.
Um progresso na geografia regional clássica. Este procedimento nem por isso
apresenta três defeitos insuperáveis 10.
A existência material e “objetiva” da paisagem é negada ou
negligenciada. Na maioria dos casos, trata-se mais de uma reação epidêmica,
autodefesa contra um uso mal compreendido do “determinismo natural” do
que uma posição de princípio.
A sociedade está isolada de seus fundamentos biológicos e espaciais e
o meio físico, se é mencionado, permanece na confusão. O sistema de produção
está cortado de sua base de produção primária. Economistas, sociólogos e “new
9 A. FRÉMONT (5)
10 G. BERTRAND. Pour une histoire écologique de la France rurale. Histoire de la France rurale.
Paris, Le Seuil, 1975.
220 A paisagem entre a natureza e a sociedade

geographers” localizam na maioria das vezes seus pólos e seus fluxos de atividades
em espaços geométricos e desnaturados.
As noções de espaço vivido e de espaço percebido não podem
pretender cobrir o conjunto do fenômeno cultural, este “filtro da civilização”,
segundo P. Gourou, cuja análise exige uma projeção histórica que apenas os
etnólogos souberam realizar, ao estudar pequenas comunidades humanas que
exploram diretamente um meio bem circunscrito 11.

A inter-relação objeto-sujeito

Nenhum progresso será realizado sem o reconhecimento da


globalidade do fenômeno paisagístico e a elaboração de um método apropriado.
A problemática se baseia em quatro postulados.
1. Renunciar à atitude idealista e àquilo que constitui, pelo menos
na prática atual, seu principal corolário, a análise setorial da paisagem “vivida”
ou “percebida.”
2. Considerar a paisagem ao mesmo tempo como objeto e sujeito,
realidade ecológica e produto social.
3. Apreender a relação objeto-sujeito em um movimento dialético.
“No plano epistemológico geral, observa S. Moscovici, o sujeito e o objeto não
são mais entidades dadas que se constituem cada uma de seu lado, mas produtos
da experiência e da teoria que os definem um pelo outro; eles se formam um
pelo outro e saem transformados de seu encontro. Por sua estrutura, eles são
mistos. Sua diferença e sua separação não têm que ser questionadas em uma
unidade mole e conciliadora, já que ela é a condição necessária a toda ciência.
Entretanto, convém lhe dar um novo sentido: o sentido de uma afirmação
simultânea do sujeito e do objeto - em vez da negação do sujeito pelo objeto e
vice-versa - o sentido de uma relação mutante dos pesos respectivos, de acordo
com a escala e o caráter da realidade por compreender, com a precisão das
verdades a se obter 12. Tal problemática da paisagem engloba em um mesmo
movimento o objeto espacial e os diferentes usos e percepções ligados às
diferentes práticas sociais.
4. Todavia, a separação entre análise naturalista e análise social não
pode ser evitada no estado atual do método científico; mas ela não é nem
permanente, nem insuperável. Aquisições recentes da antropologia física e
social, assim como da ecologia animal e humana demonstram que não apenas
esta distinção se desloca, mas ainda que ela se atenue à medida que a pesquisa
progride. A paisagem não se encontra nem de um lado, nem de outro, nem
entre os dois: ela está nos dois.

11 J. BARRAU dans Éléments d´ethnologie de R. Cresswell. Paris, Colin, 1975,2, p. 7-41.


12 S. MOSCOVICI (11)
A paisagem entre a natureza e a sociedade 221

Pesquisa de um paradigma socio-ecológico

A pergunta é feita por J. -L. Le Moigne: como representar através de


um sistema um objeto identificável por um observador?

A paisagem é um sistema...

A mais simples e a mais banal das paisagens é ao mesmo tempo


social e natural, subjetiva e objetiva, espacial e temporal, produção material e
cultural, real e simbólica, etc. A enumeração e a análise separada dos elementos
constitutivos e das diferentes características espaciais, psicológicas, econômicas,
ecológicas, etc. não permitem dominar o conjunto. A complexidade da
paisagem é ao mesmo tempo morfológica (forme), constitucional (estrutura)
e funcional, e não devemos tentar reduzi-la dividindo-a.
Como é organizado e como funciona um sistema paisagístico? A
paisagem se inscreve no espaço real e corresponde a uma estrutura ecológica
bem determinada: mas ela só é “apreendida” e qualificada enquanto tal a partir
de um mecanismo social de identificação e de utilização. A paisagem aparece
cada vez menos como uma estrutura ecológica e social e cada vez mais como
um processo de transformação, logo, como um fenômeno inscrito na história.
Ela é uma interpretação social da natureza. E o método consiste, pelo menos
em um primeiro tempo, em ir da sociedade para a natureza 13.
O postulado que fundamenta a análise da paisagem então só pode
ser social: “é o sistema de produção no sentido amplo, isto é, produzindo bens
materiais e culturais, que, no interior de um grupo social definido e em um
espaço dado, desenha o conteúdo material e cultural de uma paisagem.” Por
grupo social, entendemos um conjunto de indivíduos organizados dentro de
um mesmo sistema de produção, unidos entre eles por uma mesma prática da
natureza e que produzem em conjunto coerente de bens materiais e culturais.
A paisagem então só tem realidade e sentido para um grupo social e pode haver
para uma mesma estrutura material “objetiva” tantos processos paisagísticos
quantos forem os grupos sociais. O sistema de produção agro-silvo-pastoril
estabeleceu, a partir do meio montanhês pirenaico, um conjunto paisagístico
cujo conteúdo material (organização dos terroirs, fenologia, fertilidade,
produções animais e vegetais) e a significação cultural se definem em relação à
sociedade montanhesa. A estiva, pastagem de altitude, é um geossistema ou um
geofácies definido por certa combinação topo-climática-pedológica-florística.
Mas é também um espaço fortemente socializado, dominado por toda uma
prática e toda uma simbologia pastoril. A estiva (pastagem de alta montanha)
é socialmente significada, organizada em volta de pólos (cabanas, jasses
(laticínios), bebedouros), percorrida por fluxos sazonais (pastores e rebanhos). A
fonte é um ponto de água, mas também um ponto de referência e de encontro,
às vezes um ponto de neutralização ou ainda de luta em um espaço conflituoso.
A paisagem agro-silvo-pastoril vai além daquilo que é visto; ela é aquilo que
13 E. MORIN (10)
222 A paisagem entre a natureza e a sociedade

se sabe, que é feito, deve ser feito, que é vivido quotidianamente: tal limite
arraigado e invisível, mas que não devemos transgredir, materializa tal relação
de força no interior do grupo social, tal tabu espacial, tal projeto de cultura ou
tal esperança de colheita. O observador, o turista ou o pesquisador científico
podem, do exterior, apreender algo além de formas ricas, porém mudas?

“A complexidade está na base” (E. Morin)

O processo paisagístico, desenvolvido a partir de um feixe de interações


de uma tal complexidade, pode ser considerado como um “polissistema”
reagrupando sistemas complexos em si mesmos, mas bem individualizados e
funcionando de modo mais ou menos autônomo (sistema natural e sistema
social, sistema de produção econômica e sistema de representação cultural,
etc.). “Nada na paisagem muda ao mesmo tempo, na mesma velocidade ou na
mesma direção” (M. Santos)14. Todo estudo da paisagem coloca, então, a priori,
o problema da análise das defasagens no espaço e no tempo entre os principais
componentes do processo. Esta situação dinâmica favorece as manifestações
de histerese e de inércia. As paisagens atuais dos centros de cidade dão um
bom exemplo destas distorções entre uma situação sociodemográfica herdada,
evoluções econômicas contraditórias e realizações arquiteturais programadas
no contexto de uma revalorização mistificadora do domínio urbano.
a. Defasagem entre o natural e o social. O funcionamento natural se
inscreve além do longo prazo dos grupos sociais em questão e até da duração da
história humana. Diversos recursos naturais são considerados “não renováveis”
em escala humana, seja porque eles correspondem a uma herança geológica
(minerais, lençóis de água subterrâneos, alteridades, etc.), seja porque seu
estabelecimento exige séculos (solos, florestas, etc.). Uma alteridade, um solo e
uma lande, combinados em uma mesma paisagem, não têm a mesma significação
temporal, especialmente do ponto de vista de sua utilização econômica. Esta
defasagem banal não é diretamente apreendida pela “leitura” da paisagem. O
pesquisador deve passar pela análise geossistêmcia. O camponês, por sua vez,
dispondo da experiência prática do meio, integra diretamente e mais ou menos
eficazmente esta defasagem na sua visão da paisagem.
b. Defasagem entre a elaboração dos elementos materiais do sistema
de produção e a elaboração das estruturas mentais. As representações sociais da
paisagem se enraízam no mais profundo da memória coletiva e do imaginário. A
floresta de Brocéliande sobrevive ao desmatamento 15. A paisagem, patrimônio
cultural e econômico, é assumida como uma herança. A casa da família, a
propriedade ou a exploração agrícola fazem parte da paisagem. Permanência
cultural que favorece certo respeito do passado e que freqüentemente entra
em oposição com os imperativos da mudança econômica e social. A paisagem,
transcendida por sua carga emocional, se relaciona na maioria das vezes com
a arqueologia social.
c. Estratificação social do processo paisagístico. A divisão do trabalho
14 M. SANTOS. De la société au paysage. Hérodote, n. 9, 1978.
15 G. BERTRAND. Pour une histoire écologique... note 10, p. 247.
A paisagem entre a natureza e a sociedade 223

e a diversificação cultural em uma mesma sociedade, no mesmo espaço,


fazem relações materiais e representações culturais diferentes nascerem e se
enfrentarem.
Cada sociedade secreta tem uma relação paisagística privilegiada
imposta ao conjunto social pela ideologia da classe dominante. Assim, se passa
com o campo, recentemente visto como um espaço verde de lazer. Assim como
com a “reabilitação” do centro das cidades.
Cada grupo social vive uma paisagem específica cujo conteúdo,
extensão e polarização dependem essencialmente da organização do trabalho
e dos níveis culturais. Assim é nessa paisagem “média”, nascida da associação
de uma paisagem urbana de HLM coletivo com uma paisagem de camping a
beira mar. Mas as paisagens pertencendo a uma categoria são filtradas pela
imagem da paisagem do grupo social dominante e às vezes misturadas por suas
representações: a imagem das “marinas” não é estranha ao amontoamento
estival nos campings litorâneos.
d. A paisagem pulverizada. Nas sociedades tecnicamente desenvolvidas,
muito diversificadas e apresentando muita desigualdade, a relação privilegiada
entre uma sociedade e um espaço não é mais do que uma lembrança, às vezes
acompanhada de uma vaga, porém tenaz, saudade. Os grupos sociais não estão
mais contidos em uma paisagem específica, rica de sua própria história. A
paisagem está pulverizada em fragmentos de espaços especializados, sem laços
históricos, freqüentemente geograficamente isolados uns dos outros: espaço para
trabalhar, espaço para habitar, espaço de lazer. Estas unidade monoespecíficas
que carecem de profundidade histórica e social invadem rapidamente as
paisagens tradicionais, fundando um novo tipo de relação entre a sociedade e
o espaço e constituindo uma nova fonte de conflitos entre os grupos sociais.

A paisagem em cena

Deixemos à paisagem sua globalidade de processo socioecológico


analisando-a em seu meio ambiente social e natural e em uma perspectiva
histórica sem cair nas escapatórias setoriais. Proponhamos, provisoriamente,
um procedimento simples, ao mesmo tempo em que reconhecemos que ele não
se origina de um artifício.

O cenário paisagístico e a regra das três unidades

Como todo processo, a paisagem não tem existência fora do sistema


no qual ela funciona. Elaborar uma “representação” da paisagem consiste
em limitar-se a um sistema de referência socioecológico. Para reencontrar a
lógica interna do sistema, inspiramo-nos diretamente com uma regra das três
unidades:
Unidade de ação, (ou de produção), baseada no funcionamento do
sistema de produção material e cultural.
224 A paisagem entre a natureza e a sociedade

Unidade de tempo correspondendo a um período estável do sistema


de produção. (Exemplo, o sistema agro-silvo-pastoril pirenaico entre o começo
do declínio demográfico, 1850-1870, e o estabelecimento dos primeiros grandes
equipamentos turísticos, 1950-1960).
Unidade de lugar, delimitando o espaço material onde se desenvolve
o sistema de produção. Ela pode, nos casos mais simples, corresponder à própria
paisagem (Exemplo: paisagem do sistema agro-silvo-pastoril pirenaico) ou então
se distinguir, quando se trata de paisagens pulverizadas.
A paisagem é então inserida em uma rede coerente de significantes
sociais. Este sistema de referência social incorpora a utilização material e a
significação cultural da paisagem, que podem ser cada vez menos dependentes
uma da outra. A paisagem, embora transformada em um produto social finalizado,
não deixa de constituir uma realidade ecológica. Seu conteúdo socioecológico e
seu envelope ecoespacial podem ser delimitados. Nesta perspectiva, a “vocação
natural” e o “determinismo natural” se apagam diante da determinação técnica
e cultural. O determinismo natural16 torna-se, então, um determinismo social
que representa muito na produção da paisagem. Se o sistema de produção muda,
toda a relação paisagística será modificada em conseqüência, exceto alguns
elementos que podem manter-se por inércia e constituir os casos de histerese.
Uns determinismos se apagam, outros aparecem, tão provisórios quanto os
sistemas de produção dos quais eles dependem. A paisagem não é mais esta
entidade neutra e compassada que paira imutavelmente sobre o campo social.
É um produto econômico e cultural integrado ao sistema social, mas ela não
pára de surgir e funcionar como um sistema ecológico.
Todavia, este cenário só se aplica enquanto tal no caso de sociedades
agrárias muito enraizadas no tempo e no espaço, tais como as sociedades rurais
do Antigo Regime na França ou as sociedades montanhesas no Nepal antes da
explosão demográfica da primeira metade do século XX. Isso permite definir
um tipo de relação pré-industrial e pré-urbana na qual a paisagem se confunde
com o espaço de produção e com o espaço quotidianamente vivido. Nesses
“agrossistemas” quase imóveis e fechados em si mesmos, o determinismo
socioecológico atua plenamente e a margem de inovação, muito reduzida,
permanece um privilégio da classe dominante que é a única a poder pretender
a outras experiências a partir de meios exteriores ao sistema socioecológico.

Os cenários complexos

A elaboração do cenário deve ser modulada em função da


complexidade crescente dos sistemas sociais. Daí decorre a necessidade de um
sistema de cenários imbricados e dependentes uns dos outros ao mesmo tempo
no espaço social e no tempo.
a. O cenário paisagístico dominante representa o modelo econômico
e cultural geral. Este modelo impõe a toda uma sociedade um mesmo tipo de
relação com a paisagem e favorece sua difusão e reprodução. Na sociedade
16 G. BERTRAND. Pour une histoire écologique…
A paisagem entre a natureza e a sociedade 225

caracterizada hoje pela concentração da população em subpaisagens industriais


e urbanas cada vez mais limitantes, desenvolve-se, como um antídoto, uma
ideologia do “retorno à natureza e à vida natural” que impõe modelos de
consumo das paisagens.
b. Os subcenários, ou cenários paisagísticos dominados, exprimem a
situação real das diferentes categorias sociais na sua prática econômica e cultural
do espaço. Estes subcenários podem ser eles mesmos mais ou menos imbricados
para traduzir as múltiplas nuances sociais. Este é o caso dos trabalhadores
imigrantes que vivem sua perda das raízes paisagísticas nas infrapaisagens
urbanas.
c. A relação entre o processo paisagístico dominante e os diversos
processos paisagísticos dominados pode ser explicada apenas com algum tempo.
Ela impõe a elaboração de cenários históricos que permitem estudar, através
de grandes categorias sociais, os problemas de defasagem e de histereses. A
análise do sistema paisagístico em uma dada sociedade equivale a estabelecer
o organograma dos cenários paisagísticos em função das categorias sociais
presentes. É isto que nós desenvolvemos a respeito do Sidobre.
Ainda não parece possível reduzir os múltiplos cenários paisagísticos
a algumas categorias simples, nem tampouco levantar sua tipologia. Todavia,
o “método” dos cenários já provocou a perda, por parte da paisagem, de seu
caráter de imprecisão literária e de fenômeno “excepcional”. Todos os cenários
são construídos sobre modelos idênticos; eles são, portanto, comparáveis,
seja globalmente, seja termo por termo (cenário dominante, subcenários
hierarquizados, etc.). Nós ainda estamos longe de uma generalização
taxocorológica comparável àquela do geossistema; mas, além da evocação
literária monográfica, uma primeira descrição racional é iniciada, primeira
etapa do método comparado.

Fazendo as vezes de uma introdução à análise da paisagem

A descoberta da paisagem por um número cada vez maior de


disciplinas, o ressurgimento da paisagem em literaturas geográficas muito
diferentes, parece indicar que o termo não é mais suspeito de conservadorismo
e de aventureirismo. A paisagem volta para a ordem científica depois de ter
sido mantida afastada. O que deveria alegrar um antigo usuário da terminologia
paisagística se, além das petições de princípio, uma reflexão conceitual e uma
pesquisa prática pudessem ser iniciadas.

Elementos para uma definição da paisagem

A paisagem seria, simplesmente, aquilo que se vê? A paisagem não


seria, como para Y. Lacoste, apenas uma “visão das três dimensões, que de certo
ponto de observação não pode ver tudo, porque certas partes do espaço estão
cobertas”? Mas se a percepção está, necessariamente, na origem da representação
226 A paisagem entre a natureza e a sociedade

de uma paisagem, ela não basta para explicar esta última.


Propor uma definição, sempre mutilante, seria, de todo modo,
prematuro. Mas, introduzamos alguns elementos que ainda não podem pretender
constituir, isoladamente, um sistema explicativo e menos ainda chegar à
elaboração de um conceito.
A produção de uma paisagem é geralmente considerada como um
processo tripolar no qual intervêm um observador, um mecanismo de percepção
e um objeto.
Na base da paisagem, existe uma porção de espaço material
enquanto estrutura e sistema ecológico, portanto, independente da percepção.
Materialidade anterior que enraíza a paisagem no espaço e determina um
envelope e um conteúdo comuns a todas as representações paisagísticas desta
porção do espaço.
O observador individual participa de um sistema histórico-cultural e
socioeconômico que canaliza suas interpretações paisagísticas. Não podemos
raciocinar como se fosse sempre a primeira vez que um observador grava uma
paisagem. Esta, ou pelo menos o tipo de paisagem correspondente, é imediata,
senão anteriormente, decifrada, filtrada, condicionada pela memória individual
e coletiva. O desenvolvimento dos meios de difusão audiovisuais acelerou
muito este processo. O contato com o terreno é sem dúvida indispensável ao
desencadeamento do processo paisagístico, mas ele não é essencial na produção
final da imagem. Ao querer definir a paisagem a partir de uma leitura direta de
um espaço, cairíamos novamente em um dos dogmas da geografia tradicional. À
idéia da paisagem apreendida, graças à visão instantânea do terreno, precisamos
substituir o lento caminho de um processo que é histórico e social bem antes de
ser individual e pessoal. Etnólogos e antropólogos analisaram há muito tempo
as reproduções do espaço específicas de certas comunidades humanas.
A concepção da paisagem que se depreende assim progressivamente
continua bastante vaga e incerta. Mais uma simples “noção” do que um conceito.
Todavia, parece interessante reaproximá-la dos conceitos de ecossistema e de
geossistema. O conceito de ecossistema é a interpretação biológica da interface
terrestre, o conceito de geossistema é a sua interpretação geoquímica. A
paisagem não seria, muito banalmente, uma interpretação social da interface
terrestre que a pesquisa científica não seria capaz, ainda que parcialmente,
de apreender? A reaproximação da noção de paisagem com a noção de meio
ambiente torna-se então muito significativa. O meio ambiente consiste no
conjunto dos elementos externos que rodeiam a sociedade e que interagem com
ela; a paisagem é, ao contrário, uma produção interna, nascida da sociedade e
conferindo uma existência social àquilo que se encontra em contacto com o
envelope externo desta, ou seja, a interface sociedade-natureza.
Em tal perspectiva, a paisagem se individualiza ao mesmo tempo em
relação com o espaço propriamente dito e com o mecanismo da percepção.
Ela aparece cada vez mais como um produto social historizado que permite
interpretar o espaço geográfico nos limites de um sistema de produção
econômico e cultural. A paisagem é então posta como uma mediadora entre a
A paisagem entre a natureza e a sociedade 227

sociedade e a natureza, ou seja, uma interpretação social da natureza e, talvez,


mais adiante, uma interpretação natural da sociedade.

A paisagem e as contradições do sistema socioecológico

Considerando a paisagem como um dos processos do polissistema


socioecológico, pomos em evidência algumas contradições que colocam a
paisagem no centro da problemática ecológica e social.
Contradições entre o estado ecológico real de uma paisagem e sua
interpretação social (alguns meios montanheses agro-silvo-pastoris considerados
e tratados como “meios naturais”).
Contradições entre o modelo dominante de produção e representação
da paisagem e a realidade vivida pelas categorias ou classes sociais dominadas
(o elitismo dos aménagements de espaços de lazer).
Contradições entre as necessidades econômicas e os modelos culturais
impostos e, por outro lado, as possibilidades materiais e as aspirações das
diferentes classes sociais.
Além das aparências e das imagens impostas, as paisagens que
nós produzimos e que nos rodeiam nos escapam ainda em sua profundidade
histórica, ecológica, social. O acesso à paisagem e à sua representação cultural
não constituiriam um aspecto das lutas sociais? O processo paisagístico ainda
não está dominado. Ao escolher situar a análise da paisagem entre a natureza
e a sociedade nós exploramos, entre outras, uma via ainda pouco freqüentada,
mas que oferece a possibilidade de resituar a natureza na dinâmica social
e a sociedade na dinâmica natural. Além do argumento paisagístico, nós
reencontramos a complexidade vivida do quotidiano e do banal.
228

O SIDOBRE (DEPARTAMENTO DO TARN)


ESBOÇO DE UMA MONOGRAFIA 1,2
“Ecletismo e arbitrário... Não saberíamos nos confinar em uma sociedade local”
Marcel JOLLIVET

O Sidobre é o objeto deste estudo. Mas não quisemos nem produzir


uma monografia a mais, nem construir uma reflexão metodológica de caráter
geral sobre um fundo monográfico. O Sidobre, que individualiza o domínio
do granito3 , os trabalhadores do granito e a indústria do granito na paisagem,
a economia e a sociedade, delimita um campo de pesquisa e alimenta uma
problemática. Ele possibilita fazer uma análise científica situando a natureza e
os fatos naturais em uma interpretação social. Ele permite, para além dos limites
de uma região, refletir sobre a oportunidade da abordagem monográfica num
momento em que a maioria dos geógrafos a desqualifica. Não nos preocupamos
nem em retornar às fontes, nem de marchar em contracorrente. Por outro lado,
as análises do tipo monográficas são freqüentes entre os sociólogos, os ecólogos,
os etnólogos, os agrônomos etc., onde muitos tentam refinar as bases teóricas4
. Este questionamento sobre o valor metodológico da monografia apresenta
um caráter de urgência: os estudos de impacto, exigidos pela Lei de 1976 sobre
a Proteção da natureza dependem, a respeito do ordenamento territorial, de
uma problemática comparável e ilustram uma demanda político-tecnocrática
ambígua que continua sem resposta científica satisfatória.
Esta problemática pode parecer complexa e ambiciosa na medida
em que três temas diferentes interferem: uma pesquisa conceitual sobre a
monografia, a inserção do “natural” na análise sócio-econômica, o estudo do
Sidobre. Ela apenas demonstra a prática tortuosa da pesquisa no âmbito das
ciências sociais. O pesquisador atua entre os equilíbrios difíceis de controlar
entre a teoria e a prática, os procedimentos de pesquisa e os de exposição dos
“resultados”, o global e o setorial, o geral e o local, a natureza e a sociedade etc.
A tarefa só seria confusa e paradoxal, leia-se ambígua, na medida em que não
fossem bem definidas, desde o princípio, as regras do jogo, ou seja, a finalidade
da pesquisa e as etapas de seu desenvolvimento.

1 Em colaboração com: Claude CARCENAC, Gérard HERAIL, Jacques HUBSCHMAN, professores


da Universidade de Toulouse-Le Mirail e Jean RAYNAUD, pesquisador do Escritório Regional de
Lugares e Paisagens de Aveyron.
2 Tradução de Jailton Dias (jailton.dias@ibama.gov.br)
3 Granito e não-granito. Os termos locais foram respeitados!
4 M. JOLLIVET e H. MENDRAS. Les collectivités rurales françaises. T. II. Sociétés paysannes et
lutte de classes au village, Collin, Paris, 1974, 266 p.
O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia 229

Um apelo crítico à monografia

Um método para a monografia geográfica?

Deixaremo-nos guiar pelo terreno e sua descrição? Ou tentaremos,


ao contrário, impor um modelo interpretativo que leve em conta a totalidade
do projeto de pesquisa, isto é, o método de análise em si, o objeto de estudo e
a equipe responsável pela pesquisa?
a. – O processo pesquisa-objeto-método. Por sua riqueza de intenção
e sua complexidade técnica, a monografia, mais do que qualquer outro tipo
de análise científica, exige a identificação do pesquisador e a análise de suas
motivações. Antes de ser uma “ferramenta” científica, a monografia exige
uma relação global e duradoura entre o pesquisador e o objeto de pesquisa. O
estudo integrado de uma micro-unidade sócio-ecológica provoca um confronto
com a totalidade da vida local, mais particularmente com as realizações e os
projetos de gestão que cristalizam as oposições e fazem surgir os conflitos. A
relação da pesquisa com a população do Sidobre não basta em si mesma; ela
deve ser analisada em termos de conflito...
Qual é o objeto da monografia e como delimitá-lo? Qual é a coerência
interna do objeto, em particular do ponto de vista das relações entre o social e o
ecológico? Existe um Sidobre ou existem vários Sidobres? Como o ambiente,
próximo ou distante, regional ou nacional, se inscreve na análise monográfica?
Enfim, o tema da monografia é o Sidobre em si ou a crise sidobreana? A
monografia tem algo a mais, ou é apenas uma simples análise de situação?
Deve a monografia ser um método embasado cientificamente, ou um modo
literário, um discurso? Trata-se de um método de investigação, de “pesquisa”
no sentido estrito, ou é um simples método de exposição dos resultados, ou são
os dois ao mesmo tempo?
b. – A monografia geográfica e sua caricatura. A prioridade concedida
aos estudos setoriais e às análises de situação e, mais recentemente, às iniciativas
de “modelização”, quantitativas ou qualitativas, têm constituído uma reação
salutar conta a fase monográfica precedente que havia diluído o esforço de
generalização e de reflexão. A monografia não passa de um meio de pesquisa
dentre outros e ela pode parecer melhor adaptada a certas situações, porém, em
determinadas condições, pois a monografia nunca foi considerada como uma
“super-síntese” científica. O que existe são monografias disciplinares diferentes
por seu projeto e por seu conteúdo. Nosso ponto de partida, e de chegada, será
a monografia geográfica. Nenhum geógrafo jamais se preocupou em codificar
esta abordagem como intuito de lhe assegurar um mínimo de rigor científico. A
monografia tradicional dos geógrafos analisa uma unidade espacial considerada
como homogênea, região natural ou região, para gerar a “síntese”, associando
os aspectos naturais, históricos, econômicos, sociais etc. A pesquisa tende à
objetividade e à exaustividade. As grandes teses da escola geográfica “regional”
francesa ilustram esta definição. A monografia tornou-se, assim, o alvo cômodo
de todos aqueles que questionam a instituição geográfica. Longa é a lista dos
seus defeitos críticos: ecletismo e arbitrário... confinamento na sociedade local,
230 O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia

recortes espaciais e sócio-econômicos artificiais, falsa impressão de unicidade do


objeto estudado, que impede a comparação e a generalização, subestimação do
fator político e do ambiente sócio-econômico, inadequação de certas análises
setoriais (em particular no tocante ao meio natural), superposição de temas,
laxismos no tratamento da informação e na análise das combinações, dedicação
à descrição literária gratuita etc. Esta condenação sem apelação se justifica
apenas se ela se referir, não ao método em si, mas a uma certa prática caricatural
da monografia geográfica. Existem, também, brilhantes êxitos. Todavia, não
estariam eles ligados muito mais à arte – ou artifício – do narrador ou escritor
do que ao rigor do método científico do pesquisador? Seria a monografia um
gênero literário que os geógrafos atuais, ao contrário de alguns historiadores,
não sabem mais praticar e divulgar?5 .
c. – Pode a análise de sistemas fundamentar a monografia? Um
dos desvios da análise monográfica é operar diretamente no descritivo e no
discursivo, sem método nem conceitos preliminares e, sobretudo, sem “projeto”
explícito. Contudo, a monografia “geográfica” participa de uma abordagem ao
mesmo tempo global e espacial. Ela é o único meio de integração horizontal
que permite analisar em bloco os elementos sociais e ecológicos combinados
em um mesmo espaço. Não nos resta que lamentar a inconseqüência daqueles
que desejam apreender o “global” e o “espacial” e que continuam, todavia,
denegrindo a monografia. O Sidobre se impõe como um objeto monográfico. A
análise prioritária do lugar, a coerência do espacial e do social, a individualização
da paisagem pelo granito, a economia e a mentalidade coletiva asseguram, em
primeira análise, a pertinência da abordagem monográfica. A unidade teórica
do método monográfico responde apenas pela unidade conceitual do objeto.
Todavia, se esta adequação é necessária, ela não é suficiente para fundamentar
um método. É preciso encontrar um princípio de ordem.
No domínio das ciências biológicas e naturais, a ecologia científica
superou estas dificuldades graças ao conceito de ecossistema, o qual não passa
de uma conceituação monográfica da ecologia: o ecossistema representa a
aplicação da análise sistêmica à ecologia. Desta forma, podemos depreender
que a análise de sistema fundamenta cientificamente a monografia.
O objeto monográfico deve ser concebido e modelizado antes de ser
analisado no detalhe. O Sidobre será apreendido através do “sistema Sidobre”,
ou seja, a partir de uma hipótese construída e operacional em função apenas
de certa finalidade, ou mais exatamente, de determinado “projeto” creditado
(pelo pesquisador) ao “sistema”. Rejeitamos, a priori, os princípios cartesianos
que constituem, ao menos implicitamente, as bases da monografia geográfica
clássica: a objetividade, a exaustividade, o reducionismo (ou a setorização da
informação).
d. – Qual projeto monográfico? A inserção da natureza na monografia
geográfica constitui um dos aspectos deste postulado6 . E é preciso estar
atento com relação às duas posições contraditórias que dominam, ainda, mais
ou menos implicitamente, a pesquisa social: de um lado, a “transparência”, a
5 Por exemplo, E. LEROY-LADURIE, Montaillou, village occitan, Paris, 1976.
6 G. BERTRAND. La géographie physique contre nature? Géodoc, n°. 8, 1978. Institut de Géographie,
université de Toulouse-Le Mirail.
O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia 231

“neutralidade”, ou seja, a inexistência da natureza e dos seus elementos naturais


na combinação social, o que promove, habitualmente, a supressão de toda
análise físico-ecológica; de outro lado, a prática do “quadro geográfico” prévio,
belo ornamento estático e concepção determinista da relação da sociedade com
um “meio natural” definido de uma vez por todas.
O ecossistema constitui uma primeira ferramenta integradora. O
Sidobre corresponde bastante bem ao esquema do ecossistema exportador tal
como ele foi definido por M. Delpoux7 . O ecossistema Sidobre é atravessado
por um fluxo de matéria e de energia alimentado pela transformação do granito
bruto em pedra sepulcral, cortada, polida, gravada e instalada em um cemitério.
As degradações e os danos ligados à exploração artesanal do granito representam
a entropia de um sistema que usa e abusa de um recurso não-renovável.
Poderíamos refinar esta análise e dar uma interpretação ecológica coerente
do sistema Sidrobre. Mas a questão sidobreana não é somente, ou mesmo
prioritariamente, um problema ecológico. As modificações mais ou menos
irreversíveis do meio natural são apenas um aspecto da mutação do sistema
sócio-econômico. A abordagem ecológica clássica, de caráter naturalista, por
mais indispensável que ela seja, não permite sequer apreender o tema ecológico
sidobreano sob todas as suas facetas, por exemplo, em tudo o que se refere
aos elementos abióticos do meio natural (geomorfogênese etc.). Os aspectos
ecológicos constituem, portanto, apenas um subconjunto do sistema e a análise
ecossistêmica consegue apenas mascarar os mecanismos sociais e financeiros. A
rejeição do método ecológico englobante se explica pela ineficácia do modelo
ecossistêmico quando o desviamos de seu objetivo primeiro e quando ele se
torna, por isto, mecanicista e grosseiro.
O projeto desta monografia é de ordem social. Ele destaca, portanto,
uma problemática sócio-econômica. Ele repousa numa análise de relações
entre o modo de produção dominante e a sociedade global; relações entre os
diferentes atores sociais, tanto no plano cultural, quanto no plano econômico
e social; relações entre a sociedade e a natureza. A monografia do sistema
Sidobre tem por propósito analisar o processo de implantação local do modo
de produção capitalista em suas implicações sociais e ecológicas.
e. – O conceito de espaço-estado. O contexto teórico existe. A
questão da prática monográfica não está, contudo, resolvida. O pesquisador
continua frente à complexidade do conteúdo do objeto monográfico, à dispersão
e à heterogeneidade da informação. A análise sistêmica pode, aqui também,
contribuir para resolver esta situação. Um sistema é um complexo que funciona
no tempo e no espaço. Sua invariância é assegurada por um equilíbrio entre as
entradas e as saídas e por fenômenos de auto-regulação que contribuem para
manter a forma e a função do sistema (homeostasia). A evolução do sistema
intervém, quando ocorre, por exemplo, modificação de uma entrada. O sistema
muda, então, de estado e, mais exatamente de “espaço-estado”. Por outro lado,
muda-se de sistema quando o fluxo das entradas-saídas é modificado. As noções
de mudança de estado podem ser aplicadas à monografia. O pesquisador aparece,
assim, como um cenarista que recorta, do filme monográfico, os espaços-
estados homeostáveis, definidos pela estabilidade de sua forma e de sua função.
7 M. DELPOUX. Écosystème et paysage. RGPSO, 1972, n° 2, p. 157-174.
232 O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia

Encontramos, assim, uma unidade de ação, de tempo e de lugar já evidenciada


na elaboração de cenários paisagísticos8 . Assim, o projeto monográfico se
encaixa no tempo e no espaço, na natureza e na sociedade.

O Sidobre em cena

a. – A ambigüidade das relações de pesquisa entre o CIMA9 e o


Sidobre. O Sidobre nunca constituiu um centro de interesse prioritário por
parte da equipe do CIMA. Não é menos verdade que desde uma dúzia de anos
o Sidobre, seja pelo jogo de conflitos que ali ocorre, seja pelo “apego familiar
e sentimental de vários membros da equipe”, tem representado para o CIMA
um objeto de perplexidade, uma ocasião de duvidar da validade dos métodos de
pesquisa e da finalidade das intervenções do grupo de pesquisadores. O Sidobre
tem sido um exercício obrigatório para a pedagogia da pesquisa.
De 1957 a 1963, o Sidobre constituiu um terreno de estudos
individuais voltados, essencialmente, à geomorfologia. A partir do trabalho de
G. Baeckeroot 10, compreendemos melhor a decomposição esferoidal do granito
e a influência dos processos periglaciais sobre os modelados das vertentes.
De 1964 a 1969, a abertura das primeiras grandes pedreiras atraiu a
atenção para o desmantelamento da paisagem rural, a degradação ecológica e
estética da paisagem: começo da fase “ambientalista” durante a qual o CIMA
analisou a crise como um problema de proteção dos espaços, face à exploração
selvagem pelos mineradores de granito. J. Raynaud estudou a vegetação do
Sidobre e cartografou a degradação e as rupturas de uma paisagem 11.
Em 1970, o CIMA obteve um contrato de estudo do Ministério de
Assuntos Culturais (Serviço de Proteção dos Espaços). A equipe analisou os
diferentes aspectos do espaço e da sociedade (artesanato em granito, degradações,
plantações florestais, fluxos turísticos etc.) e propôs um zoneamento na escala
de 1: 10.000. O CIMA se viu, desde então, engajado na crise que abalou o
Sidobre e que opôs a Administração aos mineradores de granito. O zoneamento
de constatação foi utilizado por alguns e experimentado por outros como um
zoneamento de proteção destinado a paralisar os setores do Sidobre ainda
virgens de pedreiras. Os pesquisadores, ao mesmo tempo, mal compreendidos
e mais ou menos comprometidos, provaram uma certa amargura e passaram
a ter restrições com relação ao Sidobre... e aos contratos de estudo de uma
administração indecisa (fig. 6).
A partir de 1973-1974, o CIMA foi levado a desenvolver uma reflexão
crítica sobre suas próprias atuações no Sidobre: a questão é, enfim, considerada
em sua forma global, ao mesmo tempo, econômica, social, psicológica, ecológica
e estética. Foi nesse momento que se colocou em marcha um procedimento
do tipo monográfico. É uma análise imposta do exterior por um grupo de
8 G. BERTRAND, Le paysage entre la nature et la société.
9 CIMA – Centre Interdisciplinaire de Recherche sur les Milieux Naturels et l’Aménagement Rural
(Centro Interdisciplinar de Pesquisa dos Meios Naturais e da Gestão Rural). [Nota do Tradutor]
10 G. BAECKEROOT (1951-1952-1957).
11 J. RAYNAULD (1971) e cartas anexadas.
O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia 233

pesquisadores mais ou menos engajados na crise do Sidobre, de onde aparece


a subjetividade e a dramatização explicitamente afirmadas da construção
metodológica, portanto, do estudo.
b. – Princípios da encenação. A organização interna da monografia
implica na adoção de um “modelo” explicativo capaz de dar conta da estrutura
e do funcionamento do Sidobre:
A monografia sidobreana é uma análise de sistema de inspiração
“geográfica” que privilegia o exame da combinação sócio-ecológica em
detrimento de outras problemáticas.

Fig. 1
Do Sidobre granítico aos “outros Sidobres”.
Os subsistemas sidobreanos e a concorrência por espaço.
234 O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia

A monografia sidobreana volta a elaborar uma análise dos processos


sócio-econômicos que se desenvolvem no tempo e no espaço, em escalas
diferentes e interferentes.
A monografia sidobreana não consiste em isolar arbitrariamente
o Sidobre geográfico de seu ambiente político, social, econômico, cultural e
natural. Ao contrário, o Sidobre aparece como um sistema aberto e animado
por um fluxo de “entradas” e de “saídas” sociais, políticas, ecológicas, culturais
etc., que dependem da estrutura sócio-política dominante e da estrutura
ecológica regional.
A monografia sidobreana, como toda análise de processo, deve ser
apreendida a partir de um estudo diacrônico. Os “espaços-estados” sucessivos
distintos correspondem, cada um deles, a uma modificação local do sistema
de produção (fig. 1):
1870-1945: A emergência do sistema graniteiro
1945-1960: A expansão do sistema graniteiro
1960-1978: A continuidade do sistema graniteiro
Cada “espaço-tempo” se caracteriza por um estado do sistema graniteiro
dominante: produção, grupos sociais, situação fundiária, relação ecológica e
cultural com a paisagem etc.; um estado de subsistemas dominados (agrícola,
florestal, turístico) etc.; um estado de subsistemas ligados às intervenções
exteriores (econômicas e culturais) e de seus impactos nas paisagens reais ou
imaginárias. O cenário monográfico não depende, contudo, de uma abordagem
historizante linear. Ele se baseia na elaboração de “planos” ou de “seqüências”
ao mesmo tempo diacrônicas e sincrônicas, defasadas temporalmente e
deslocadas espacialmente, que participam diretamente no funcionamento
do sistema Sidobre contemporâneo. A brutalidade das transformações não
consegue esconder o que constitui a essência do sistema sidobreano, ou seja,
a continuidade de seu funcionamento no tempo e no espaço: continuidade
do trabalho do granito a partir de técnicas certamente diferentes, mas que
não mudam fundamentalmente a relação do homem, da célula familiar e da
sociedade com o espaço, isto é, com o fundiário e com a natureza; continuidade
humana: os mesmos homens e as mesmas famílias, ao longo de duas gerações no
máximo, movimentou e controlou a produção graniteira, a sociedade e o espaço
sidobreanos. A sociedade tradicional permaneceu no mesmo lugar e assumiu,
ao mesmo tempo, sua própria reprodução e sua própria transformação.

O sidobre e o sistema graniteiro

“Tudo isto é certamente útil e rentável...


(o) Sidobre sempre me produziu o efeito de uma
necrópole onde a Peyro Clabado seria o monumento comemorativo”.
R. NAUZIÈRES12

12 R. NAUZIÈRES (1905). A citação exata (p. 40 da primeira edição) refere-se apenas ao Pic des
Fourches; estendemos seu sentido ao conjunto do Sidobre.
O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia 235

O Sidobre se situa ao sul do Departamento do Tarn, a uma dezena


de quilômetros ao nordeste de Castres. Trata-se de um espaço granítico pouco
extenso (aproximadamente 120 km2), de forma elíptica (15 km por 7 km),
que se liga às altas terras do sudoeste do Maciço Central, no contato com a
Aquitânia oriental (fig. 2). O granito determina geograficamente o Sidobre. A
natureza sidobreana conheceu valores de uso múltiplos e contraditórios e sofreu
profundas transformações... mas tendo o granito como a única problemática.
O Sidobre é um exemplo típico do que se convencionou chamar de “região
natural”.

A emergência do sistema graniteiro: 1870-1945

a. – A pobreza agrícola de um confim granítico

No conjunto dos pobres Ségalas13 do Tarn, o Sidobre aparece como


uma região miserável e isolada. Ele não corresponde, por outro lado, nem
a uma unidade histórica, nem a uma unidade agrícola (fig. 2). No plano
administrativo, sete porções de comunas compartilham o substrato granítico.
Entretanto, se trata dos confins das comunas, uma vez que as sedes e os centros
de gravidade econômicos se localizam nas periferias do granito:
Burlats, Roquecourbe, Vabre e suas indústrias têxteis; Le Bez e
Ferrières, pequenos centros agrícolas; Lacrouzette e Saint-Salvy de la Balme
são bastante “sidobreanos”, mas os vilarejos se situam nas bordas do Sidobre
e seus terroirs14 úteis se estendem sobre os solos argilosos derivados de xistos
que envolvem o maciço granítico.
O modelado granítico e a composição físico-química dos solos
derivados das areias grosseiras representam um grande obstáculo para a
agricultura (fig. 4): dorsais rochosas e vertentes íngremes com solos esqueléticos,
pavimentados e ácidos; bacias encharcadas ou turfosas (as sagnes15 ), campos
minúsculos, contornados, divididos por “chaos”16 e salpicados de blocos
arredondados17 ou lajes de granito contra os quais se quebra a lâmina frágil do
arado. É a região dos sulcos sinuosos e ininterruptos. “Uma região do Sidobre
muito pouco produtiva e na maior parte inculta. Os habitantes estão quase
sempre na indigência. O centeio é tudo o que se colhe”18 .
13 Trata-se de uma região do Maciço Central caracterizada por colinas com terrenos pedregosos (quartzo,
notadamente), dedicados, essencialmente, ao cultivo do centeio. A própria origem do termo “ségala”
vem de “seigle” (centeio). [N.T.]
14 Espaço geográfico que possui um significado além de um simples terreno de cultivo, mas sim, que
agrega valores culturais tradicionais, geralmente com uma determinada especialização agrícola. [N.T.]
15 “Sagne” é um termo de origem occitana utilizado para designar zonas úmidas tipo brejo ou turfosa.
[N.T.]
16 Na Geologia francesa, o termo “chaos” é utilizado para designar modelados originados pelo acúmulo de
blocos de rochas que se desprendem dos rochedos por erosão, a partir do diaclasamento; pode-se entender
como uma acumulação caótica de blocos de rochas. No caso do Sidobre, os “chaos” correspondem a
verdadeiros “rios de pedras”. [N.T.]
17 O termo francês para caracterizar estes blocos arredondados é “boules”, que significa “bolas”, pois
os blocos de granito do Sidobre se apresentam como grandes “bolas de granito” salpicadas pelo terreno,
arredondadas pelo processo de esfoliação esferoidal da rocha. [N.T.]
18 Citado por E. GRILLOU (1957), p. 406.
236 O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia

Não existe sociedade rural estruturada, mas alguns elementos


dispersos... ainda que uniformemente medíocre e sem nenhum meio de
desenvolvimento próprio:
•• duas dezenas de pequenas explorações diretas de 4 a 10 hectares, dos
quais apenas 2 a 3 hectares cultiváveis (La Safranière);
•• uma dúzia de domínios burgueses das 50 a 400 hectares, estabelecidos
no século XIX pela média burguesia industrial e liberal das cidades
e vilas vizinhas (Castres, Roquecourbe), são lavrados por uns vinte
parceiros e pequenos agricultores, particularmente sem recursos:
propriedades de lazer e de caça, onde os investimentos se limitam
à manutenção de uma modesta “casa do dono” e à implantação de
reflorestamentos com resinosas (Campsoleil, Feuillebois);
•• numerosos “biens de village”19 (canteiros de hortas e parcelas
florestadas) de poucos metros quadrados pertencentes a pequenos
tecelões (Lacrouzette);
•• verifica-se também um determinado número de habitantes sem-
terra (pequenos artesãos e comerciantes, indigentes) que sobrevivem
utilizando os terrenos comunitários para o cultivo, a pastagem e a
coleta de lenha (Lacrouzette, Saint-Salvy).
De 1870 a 1910, o Sidobre apresenta todas as características de um
superpovoamento; as famílias são numerosas e o êxodo rural só é percebido a
partir de 1920 (fig. 3).

Fig. 2
Localização e extensão do Sidobre.
1 – Cantão. 2 – Comuna. 3 – Batólito granítico
19 “Biens de village” são pequenas parcelas de terra, ao redor das cidades, destinados a cultivos
específicos, como hortaliças, uva etc. [N.T.]
O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia 237

b. – A “peiro”20
A utilização e produção do granito constitui uma tradição, com é
testemunhado pela arquitetura local e alguns instrumentos agrários (cilindros,
pedra de amolar, cochos etc.) “No próprio Sidobre, o granito foi utilizado para
a construção: as escadas, as plataformas e os parapeitos, os enquadramentos de
janelas, as pias, foram feitos de granito talhado. E algumas cercas eram feitas
de placas de granito instaladas verticalmente”21 . O granito sidobreano, a peiro
(existem muitas variedades) é um material duro e quebradiço, heterogêneo, com
estrutura orientada e é mais ou menos alterado em superfície. Ele se apresenta
em formas arredondadas de várias centenas ou milhares de toneladas ou em
forma de lajes que afloram nas vertentes. Ele é difícil de ser cortado e seu
emprego é relativamente especializado. A história do artesanato sidobreano é,
portanto, estreitamente dependente do progresso técnico e do escoamento.

Fig. 3
Ascensão demográfica das comunas de dominância graniteira
Retomada do crescimento da população de Lacrouzett (4) e Saint-Salvy (6) e, mais recentemente, de
Burlats (1), onde se explorou mais tardiamente o granito azul. Diminuição nas comunas agrícolas de
Ferrières (3) e de Bez (2). Vabre (7) perdeu quase toda atividade econômica desde o fechamento da
última indústria têxtil; Roquecourbe (5) é uma pequena vila industrial ativa (malharia “reconvertida”).

20 “Peiro” ou “peyro” é uma palavra da língua occitana que significa “pedra”. [N.T.]
21 A. ARMENGAUD (1975) a quem agradecemos de nos ter fornecido um trabalho inédito.
238 O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia

Os “peiraires”22 da pobreza e a “peiro” comunal. Foram os proletários


os primeiros a se lançarem na exploração do granito, graças à utilização das
áreas comunais. “Todo minerador residente na comuna podia escolher uma
rocha, explorá-la ao seu gosto e ali instalar uma pedreira sem pagar nenhum
imposto”23 . Técnicas rudimentares e ferramentas mal adaptadas: “explorava-se
unicamente os blocos arredondados” em superfície. Para cortar estes blocos,
praticava-se uma espécie de sangria... ajustava-se os cantos com aço não-
temperado... golpeava-se... com marreta”24 . Fabricava-se, sobretudo pedras para
meio-fio, transportadas por carro-de-boi até às cidades vizinhas. Os mineradores
tinham que fornecer, em 1881, as pedras que serviriam para a construção do
porto Miredames em Castres e, em 1896, do porto de Biais: é do granito do
Sidobre que foram construídos os contrafortes do viaduto de Garabit, em 1875,
e depois aqueles do viaduto do Viaur, em Tanus 25.
Os peiraires trabalham lentamente, mas destroem muitos blocos
arredondados, “rochedos vibrantes”26 , ou seja, um completo caos. Contudo,
eles podem explorar apenas os blocos superficiais livres das camadas de areias
grosseiras ou de argilas avermelhadas com cascalhos que os envolvem27 . Ora,
muitos desses blocos arredondados são alterados, isto é, intemperizados em
profundidade, e o “peiraire” não tem nenhuma forma de saber o seu estado
antes de começar a trabalhar. A “caça às pedras” suscita rivalidades entre os
peiraires. Cada um tenta controlar uma parcela da comuna ou pelo menos um
bloco de rocha: “Toda rocha que será marcada, isto é, sobre a qual tiver sido
feito algum trabalho, pertencerá durante um ano àquele que a marcou... Toda
rocha que tiver sido cortada, isto é, que tiver sofrido um começo de exploração
e da qual tiver sido tirado um ou vários blocos pertencerá durante três anos
aquele que a explorou” (Conselho Municipal de Lacrouzette, 1891). Todavia,
esta evolução rápida permanece muito limitada no espaço. Ela se restringe
aos comunais de Lacrouzette (Pic des Fourches) e de Saint-Salvy (Pic de la
Veyrière). Até 1910, o espaço graniteiro interessava no máximo a uns 5% do
Sidobre (fig. 1).
Do “peiraire” ao polidor de pedra: da produção de blocos para meio-
fio à de monumentos funerárias. A expansão urbana e industrial associada ao
melhoramento dos meios de comunicação abriram o mercado para a produção
de blocos para meio-fio (por exemplo, para a construção do cais de Bordeaux)
e, fez aparecer, por volta de 1900, uma nova oportunidade: aquela da arte
funerária (lápides funerárias, túmulos, mausoléus)28 . A partir de 1918, os
sidobreanos recebem numerosas demandas de monumentos aos mortos. Em
1920, contavam-se 150 polidores de pedra, ao passo que não havia mais de duas
22 A denominação “peiraires” refere-se àqueles que se dedicam ao trabalho com pedras, no caso, com
o granito. [N.T.]
23 E. GRILLOU (1957).
24 G. GABAUDE (1963), p. 336.
25 A. ARMENGAUD (1975).
26 Trata-se de blocos de rochas desprendidos, em geral sobre outros blocos de rochas maiores, que
podem ser movidos. O termo francês para designar estes blocos de rocha é “rochers tremblants”, que,
literalmente traduzido quer dizer “rochedos vibrantes”. [N.T.]
27 O platô granítico do Sidobre é constituído por uma antiga superfície de erosão virada para o oeste
e ainda fossilizada, no centro-sul do maciço, por argilas avermelhadas com cascalhos do Eoceno. Carta
geológica de Castres na escala de 1: 80.000.
28 “Em 1905, os túmulos talhados no Sidobre entraram pela primeira vez no cemitério de Toulouse”
(A. Armengaud, 1975).
O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia 239

dezenas de “peiraires” em 1855. Desde 1905, a “pedra” significa mais que a


agricultura e os progressos técnicos, mesmo chegando tardiamente, permitiram
melhorar os rendimentos29 . O “peiraire” que se tornou “polidor de pedra”
instalou uma pequena fábrica permanente: emergência de uma nova categoria
social ainda dominada, mas que já participa do poder local. É o início discreto
do “sistema graniteiro” sidobreano.

c. – O Sidobre dos sidobreanos: infâmias e diabruras do granito


O Sidobre de 1900 apresenta uma paisagem aberta, largamente
desmatada e cultivada, ainda que alguns trechos de floresta de carvalhos e de
faia subsistem nos vales estreitos e em alguns grandes domínios (Fueillebois, Le
Verdier, Campsoleil, La Doreillé etc.). Os dorsais cobertos de landes30 baixas
e pastadas isolam depressões ocupadas por campos encharcados com esparsas
árvores do gênero Betula. Os campos cultivados se agrupam sobre os patamares,
ao redor das fazendas e dos pequenas povoados (Cros, Cabrol, Ricard etc.). Esta
paisagem agrária de grandes clareiras é contrastada e até desumanizada pelas
silhuetas insólitas dos grandes rochedos (Peiro Clabado, Roc de l’Oie, Trois
Fromages etc.), dos “chaos” (La Fusarié, Saint-Salvy), aos quais se acrescentam
umas duas dezenas de misteriosos “rochedos vibrantes” e uma quantidade de
“compayrés” (“rios” de pedras). Nas lendas e recitais, os rochedos estão sempre
presentes, misturados à vida dos homens, obsessivo, associado ao Diabo em
pessoa31 . Ele dá à paisagem um aspecto “anormal” e ameaçador que marca os
espíritos. Além disso, o granito é tido como o responsável pela grande pobreza
dos solos e da agricultura. Ele é visto como um obstáculo e sentido como uma
maldição. O desenvolvimento do artesanato modifica pouco esta mentalidade
devido ao enraizamento camponês e à luta cotidiana com os rochedos que
provoca numerosos acidentes. O granito faz parte do espaço de trabalho, do
espaço vivido e da mitologia. Mas ele é, também, a honra e o símbolo do
Sidobre. Desde o início do século XX (1910), a municipalidade de Lacrouzette
vê, dentre os mais marcantes “monumentos naturais”, alguns que devem ser
protegidos, assim como os “curiosos rochedos que atraem um número cada vez
maior de visitantes durante a estação favorável”32 .

29 G. GABAUDE (1966) 1928: primeiras tentativas de polimento; 1930: martelagem mecânica;


1932: cortes por meio de explosivos; 1936: eletrificação do Sidobre etc.
30 As landes são formações vegetais cuja fisionomia geral é dominada por arbustos e subarbustos.
[N.T.]
31 A. DENIS (1971) p. 103. De acordo com a lenda uma camponesa teria conseguido do Diabo que
ele tirasse de seu campo todos os rochedos antes do amanhecer do dia. As rochas que o Diabo teria
jogado no vale do Agout constituem a “Bolsa do Diabo”.
32 E. GRILLOU (1957).
240 O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia

“O povo dos grandes blocos vindo dos tempos passados”*


Vista do rochedo de l’Oie em 1912, hoje pertencente a um ambiente preservado, enquanto
o Sidobre é poetizado no momento de uma ressurgência histórico-mitológica (cf. p. 290 e
seguintes). (Foto de Maurice Bertrand, 1912 e * verso do Docteur Dop, 1954, citado por A.
Denis, 1975)

Tariman: pequena exploração agrícola de oito hectares em 1912.


Lavoura num dos poucos bons campos de exploração na parte baixa de uma bacia de areniza-
ção. Casa de arquitetura rústica construída à base de granito. Cercas erguidas com placas
de rocha. Tariman é hoje uma residência secundária sem atividade agrícola e as terras são
ocupadas com resinosas (gênero Picea). (Foto de Maurice Bertrand, 1912).
O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia 241

d. – O Sidobre de R. Nauzières e o “retorno à natureza” dos vilandreses33

O desenvolvimento dos centros industriais e administrativos


(Castres, Mazamet, Albi) concentra a população nas cidades e faz aparecer
uma média burguesia que conserva costumes camponeses e um gosto pela
caça, pela pesca, pelo piquenique, pelo passeio. É um primeiro “retorno à
natureza”. O Sidobre representa a natureza romântica e selvagem às portas de
Castres. A via férrea Castres-Lacaune (1905), o melhoramento das estradas,
o aparecimento dos primeiros veículos e bicicletas facilitam a evasão das
classes abastadas. Raymond Nauzières, bibliotecário municipal de Castres, é
o inventor de um Sidobre turístico, de um “outro Sidobre” que vai se superpor
ao Sidobre dos “peiraires”. R. Nauzières não é o primeiro a descobrir e a se
apaixonar pelas paisagens graníticas. Mas, seu entusiasmo, sua habilidade,
a publicação do Guia do Sidobre (1905, reeditado em 1931) vão impor, em
particular à burguesia de Castres, uma certa imagem do Sidobre e uma prática
turística34 . Os excursionistas, ainda pouco numerosos, seguem os itinerários
demarcados por alguns lugares altos: Saut de la Truite, Peiro Clabado, Rocher
de l’Oie, Lac du Merle, Rocher Tremblant de Sept-Faux etc. (fig. 8). Eles não
ficam mais que um dia, pois faltam locais de hospedagem; eles se interessam
apenas pelos “rochedos vibrantes”, “compayrés”, “chaos” etc. A população
local, naturalmente reservada, pouco fala e, em geral, compreende apenas o
patois35 , é ignorada, leia-se, desprezada por sua pobreza, sua falta de higiene.
Os “peiraires” são considerados como destruidores selvagens. Todavia, o
Sidobre de R. Nauzières, urbano e de verão, cobre apenas uma porção limitada
do Sidobre granítico e coincidiu exclusivamente com o Sidobre graniteiro dos
arredores do Pic des Fourches. R. Nauzières se preocupa, desde 1905, com a
destruição ou a mutilação de diversos “chaos” e “rochedos vibrantes”. Vários
rochedos pitorescos foram classificados ou inscritos no inventário dos sítios
em 1912, 1922, 194136 sem suscitar uma verdadeira oposição por parte dos
polidores de pedra (que ameaçam até mesmo destruir a Peiro Clabado). Ainda
não há grandes interesses econômicos em jogo e os polidores de pedra não
possuem o poder municipal. Por outro lado, as medidas de proteção, muito
pontuais, não impedem exploração alguma. No conjunto, os sidobreanos e
os visitantes se ignoram; estes últimos não trazem nenhuma contribuição com
sua passagem, nem mesmo um contato humano. Entretanto, os burgueses que
se escandalizam com a destruição de um bloco de granito, aproveitam seus
passeios para encomendar... um túmulo para a família.

e. – Os Sidobres científicos de exportação: o Sidobre geomorfológico de


Emmanuel de Martonne ( 1927)

A origem dos blocos arredondados de granito e sua acumulação em


“compayrés” ou em “rochedos vibrantes” sempre intrigaram os eruditos locais
33 “Vilandreses”: habitantes da cidade (pejorativo).
34 R. Nauzières (1905).
35 “Patois” corresponde ao dialeto falado localmente. [N.T.]
36 CIMA (1970), p. 93-95.
242 O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia

sem que eles chegassem a uma explicação satisfatória. Depois de ter visto ali
os traços incontestáveis do Apocalipse e do Dilúvio, foram descobertos alguns
tipos de megalíticos: “as pedras quase suspensas, se não fossem uma combinação
druídica37 , serviriam sempre a algum julgamento de Deus”38 . Em meados
do século XIX, temos, com Massol, uma primeira interpretação geológica: “a
terra do Sidobre, ficando mais leve, foi levada pelos ventos e chuvas, e... os
rochedos, desnudos, rolaram no precipício”39. Em 1879, o geólogo Caravin-
Cachin surge com a hipótese de uma origem glacial: um Sidobre recoberto por
uma gigantesca moraina 40. O geógrafo Emmanuel de Martonne, aparentado
da burguesia de Castres pela família de Paul Vidal de la Blache, seu sogro, passa
férias no Sidobre, na propriedade da família de Ruscayrolles e faz, em 1927,
uma primeira interpretação coerente do modelado local.
“Em geral, por todas as partes, a rocha granítica é recoberta por
areia grosseira, exceto sobre as vertentes abruptas de desfiladeiros profundos...
como ao do Agout, no Sidobre. Observa-se também blocos arredondados que
aparecem, às vezes, nas alturas formando agrupamentos pitorescos... ou no fundo
de certos vales onde a torrente desaparece, reaparecendo sob o amontoado de
blocos de rochas (“compayrés” do Sidobre). Trata-se, evidentemente, de partes
que teriam resistido à decomposição isolada pela corrente d’água e acarretou o
aparecimento das areias grosseiras... O afloramento destes pela corrente d’água,
chegando a deixar blocos encavalados, pode ter ocorrido sob um clima mais
úmido que o atual, no Quaternário. A retirada do “chaos” do fundo do vale
sempre ocorreu por rupturas da encosta devido ao rejuvenescimento de um
novo ciclo”.
Graças a duas páginas do Tomo 1 do Tratado de Geografia Física,
a uma fotografia e a um croqui, o modelo granítico do Sidobre, seus blocos
arredondados e seus “compayrés” entraram na literatura geográfica41 .
Mas esta primeira demonstração científica parece ter sido ignorada
no âmbito local. A exploração do granito tem ocorrido sem nenhum apoio
da prospecção geológica e da análise geomorfológica. No plano turístico e
cultural, é a exploração morâinica que prevaleceu, devido a audiência regional
de Caravin-Cachin e, talvez, devido ao mito da erosão glacial fazer parte da
cultura escolar burguesa. A pesquisa científica não contribui em nada para os
sidobreanos e ninguém parece se preocupar com isso.

f. – Abertura econômica e confinamento sócio-psicológico (1930-1945)

O Sidobre permaneceu nos confins do sistema de produção agrícola


do tipo “ségala” de baixa produtividade e baixa produção, sem excedente,
sem possibilidade de comercialização e de investimentos, portanto sem
nenhuma esperança de desenvolvimento. O único elemento positivo foi o
37 Relativo aos druidas: pessoas encarregadas das tarefas de aconselhamento, ensino, jurídicas e
filosóficas dentro da sociedade celta (Wikipédia) e que teriam, segundo a tradição, organizado os blocos
de rochas do Sidobre, como megalíticos. [N.T.]
38 Citado por A. Denis (1971).
39 E. GRILLOU (1957).
40 E, CARAVIN-CACHIN (1898).
41 Em. De Martonne (1947).
O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia 243

aparecimento do pequeno artesanato graniteiro nos arredores de Lacrouzette,


depois de Saint-Salvy. Mas o trabalho com o granito não era ainda o motor
da economia e da sociedade, pois faltavam meios técnicos, recursos financeiros
e escoamento da produção. Este desenvolvimento não era acompanhado de
uma abertura equivalente no plano social e cultural. O trabalho com o granito,
particularmente rústico, domina o sidobreano. A educação das crianças
sofre por isso e o nível cultural continua bastante baixo, uma vez que existe
o problema da passagem do occitano ao francês. De um lado, o sidobreano
não tem tempo e nem meios de acessar a cultura francesa; de outro, ele perde
suas raízes camponesas e a tradição oral. Enfim, os raros contatos com os
turistas, freqüentemente desagradáveis, o leva a fazer uma desprezível imagem
de si mesmo. Por volta de 1930-1935, o “retrato falado” do sidobreano, feito
a partir da cidade, não era nada lisonjeador: um trabalhador sério, mas rude,
um “selvagem” que não fala o francês e que vive numa região poética, mas
estranha, que ele a destrói sem pudor, sem preocupação com o “belo” e o
“pitoresco” e, por fim, um familiar dos ritos funerários. O sidobreano traz em
si e vive esta representação social desagradável. Ele é, por isso, fortemente e
de maneira constante culpabilizado. Ele é completamente revoltado com as
proibições que protegem algumas (raras) rochas pitorescas, sobretudo porque
a matéria-prima, ou seja, os blocos de granito superficiais, não é inesgotável.
Além do mais, trata-se de uma primeira e excepcional violação da propriedade
privada, da liberdade de empreender e de se enriquecer. Numa sociedade
capitalista em plena expansão, o sidobreano dos anos 1910-1940 aparece não
apenas como um marginal sem recursos, mas, sobretudo, como um excluído
a quem se proíbe de explorar seus recursos originais e de desabrochar em sua
especificidade econômica, social e cultural. Nestas condições, a identificação
cultural sidobreana consistiu, acima de tudo, num isolamento em si mesmo,
numa desconfiança em tudo que é “estrangeiro”, ou seja, por tudo que vem de
fora do espaço sidobreano.

A expansão do sistema graniteiro e o “milagre” sidobreano 1945-1960


A retomada econômica que seguiu a Segunda Guerra Mundial foi
particularmente favorável para os polidores de pedra. O artesanato graniteiro
mudou de escala e de natureza a partir de novas bases financeiras, técnicas e
comerciais. O Sidobre agrícola e miserável entrou, sem transição, no modo
de produção capitalista. O Sidobre fundado na agricultura “ségaliana” e na
quebra da “pedra” foi substituído pelo “sistema Sidobre” das minas extração
de granito e por fábricas.
a. – Uma frente pioneira capitalista
O artesanato graniteiro foi o motor de expansão capitalista. A
instalação e o desenvolvimento rápido de um sistema de produção a partir de
uma estrutura “pré-capitalista” e, por assim dizer, proletária, uma vez que foram
os mais miseráveis que trabalharam primeiro a “peiro”, só pôde se efetuar a partir
de uma marcante concorrência de circunstâncias internas e externas.
244 O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia
O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia 245
246 O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia

Entre os elementos de origem local, dois fatores se combinam e


constituem uma situação particularmente vantajosa:
• a existência de uma força de trabalho com reputação e especializada
de caráter familiar, fortemente enraizada, sem nenhuma consciência
reivindicativa e sindical, que já possui o monopólio regional do tratamento do
granito e que pode contar com uma boa clientela para o mercado funerário;
• a matéria-prima se confunde com o espaço e com o patrimônio
fundiário. Os terrenos comunais, mais ou menos ocupados, foram explorados
e são utilizados agora com parcelas agrícolas privadas. Como a maioria dos
Sidobreanos são pequenos proprietários, o granito pertencia àqueles que o
explorava. Aqueles que não tinham a propriedade do granito ou que não
tinham o suficiente (ou de boa qualidade) beneficiavam da não-aplicação do
código de mineração para a exploração a céu aberto: eles poderiam acessar a
matéria-prima por um simples contrato de arrendamento, na maioria das vezes
de caráter verbal. O Sidobre apresenta, assim, a originalidade de não possuir, ao
menos abertamente, um mercado fundiário: uma jazida não se vende e nem se
compra. Se existir transações, elas não passam do círculo estreito de parentesco
ou de clientela. É, portanto, naturalmente que a solidariedade fundiária atua
contra o comprador “estrangeiro”. A instalação de um minerador de origem
vosgiana, há muito tempo escandaliza. Os artesãos não possuem recursos nem
para investir ou para estocar a matéria-prima, nem para procurar um terreno
para instalar sua fábrica. A própria água, ao menos durante os primeiros
anos, é captada sem custo algum nos córregos vizinhos. Todavia, os grandes
domínios burgueses, ao redor de um quarto da superfície do Sidobre, escapam
dessa influência direta ou indireta dos artesãos graniteiros. Estas propriedades
ficaram nas mãos das mesmas famílias que as protegeram, ao mesmo tempo, dos
mineradores sidobreanos e das intervenções exteriores. Estas estruturas sociais
e fundiárias resultam em um controle de fato de um espaço e de uma profissão.
Elas apenas favoreceram os apoios externos e as incitações ao desenvolvimento
econômico.
Os artesãos mineradores e os polidores de granito conseguiram
rapidamente a confiança do capitalismo bancário e este jamais foi contrariado
pela evolução econômica: progressão contínua dos números de negócios,
ausência de dificuldades sociais. Os bancos locais, Banco Popular do Tarn
e de Aveyron, seguido pelo Banco Courtois, abrem os caminhos aos bancos
nacionais (BNCI, Société Générale) e intervêm com seus empréstimos e
suas cauções que facilitam os investimentos em equipamentos (aquisição de
polidoras, serras, veículos, guindastes etc.).
Ao passo que a venda de pedras para meio-fio enfraquece (concorrência
com o concreto, muito mais barato), o desenvolvimento do mercado de artigo
funerário de luxo faz decolar, de forma duradoura, o artesanato graniteiro. Os
monumentos de ostentação estão em moda entre a burguesia urbana e serve
para conservar a memória da diferença social: lápides polidas, painéis de
granito de diferentes cores, mausoléus em estilo antigo, romântico ou oriental,
epitáfios dourados gravados no granito, bloco bruto de algo original ou algum
protestante... Por outro lado, a utilização do granito nas construções privadas
ou públicas continua muito modesta. Os livros de encomendas são preenchidos
O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia 247

sem nenhuma política comercial, sem mesmo uma tentativa de entendimento


entre os artesãos, sem uma pesquisa do mercado. Única exceção: a organização
anula de uma Feira do Granito de Castres.
A abertura geográfica do Sidobre, de ocorrência lenta, só foi efetiva
no plano econômico, com a utilização massiva de caminhões e, por volta de
1945, de veículos militares obsoletos americanos que não apenas garantem o
transporte rodoviário, mas podem ser utilizados nas minerações: a exploração
do granito tinha entrado numa fase de mutações técnicas que transformou as
condições de produção e desarranjou as relações espaciais42 . É o começo da
exploração do granito azul. Os locais de extração mudam, a minerações se
deslocam de Lacrouzette para o centro-leste do maciço granítico e Saint-Salvy.
O Sidobre do granito azul, até então poupado, torna-se objeto de tensões, de
um lado entre os mineradores e os protetores da natureza; de outro lado, entre
os mineradores e os polidores de granito.
Contudo, é a expansão econômica generalizada, a euforia, leia-
se frenesi, que culmina nos anos 1960. Uma nova sociedade, fundada no
enriquecimento e no sucesso econômico está em nascimento.

Paisagem agrícola e graniteira aberta no início do século.


A dorsal granítica do Pic des Fourches é coberta de blocos arredondados de granito e de uma
lande baixa composta por espécies do gênero Calunna e por Erica cinerea. É sobre estes ter-
renos comunais de Lacrouzette que os “peiraires” começaram a explorar os blocos arredonda-
dos livres das areias grosseiras graníticas. No primeiro plano, à direira, está a Peiro Clabado,
primeiro rochedo classificado e o símbolo do Sidobre: “esta parte do Sidobre sempre me pro-
duziu o efeito de uma necrópole onde a Peyro Clabado seria o monumento comemorativo”,
escrevia R. Nauzières em 1905.
Na base da dorsal, uma planície muito úmida, encharcada, bacia de arenização destinada à
agricultura. Campos cultivados no primeiro plano. Hoje, este setor é, quase inteiramente, flo-
restado. (Foto de Maurice Bertrand, 1912).

42 E. GRILLOU (1957). 1948: primeiras serras de fio helicoidal com abrasivos (grãos de ferro
fundido, carbureto de silício, corindo); 1953: serra com disco diamantado; 1955: utilização dos primeiros
diamantes sintéticos. A velocidade horária da serra que era de 4-5 cm em 1948, passa a 8-10 cm em
1964 e mais de 30 cm em 1970. Não apenas se trabalha mais rápido, mas se pode também trabalhar
com o granito azul, mais duro que o granito cinza.
248 O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia

O Sidobre graniteiro dos anos 1960.


Zona artesanal de Campselves, próximo a Lacrouzette: a única concentração geográfica de
fábricas de granito. Blocos brutos e placas cortadas no primeiro plano. No plano secundário, à
esquerda, a fábrica de Ets Torrès, a maior empresa do Sidobre. (Foto de A. Denis)

b. – Uma sociedade pré-industrial em vias de desenvolvimento capitalista.

A sociedade sidobreana é organizada em torno do granito. Sua


história é indissociável do trabalho com o granito. Enraizada em seu ambiente
rural e em plena mutação industrial, ela associa traços contraditórios.
A organização familiar da produção graniteira. O trabalho com o
granito correspondeu a um tumor para a agricultura, e acontecia por meio
da exploração agrícola familiar. Depois de 1945, as minerações e as fábricas
continuam sendo geradas sobre as mesmas bases: o chefe de família trabalha
na mina ou na fábrica; a esposa ocupa-se do trabalho doméstico e, muito
acessoriamente, das contas, sem fazer uma verdadeira contabilidade; os garotos
são integrados ao trabalho com o granito o mais cedo possível, após algum
estágio rápido (cursos municipais de formação profissional são organizados em
Lacrouzette).
Minas e, eventualmente, fábrica, constituem a célula de base da
família e da produção. As novas instalações são numerosas: 150 empresas em
1920-1930 e, 270 em 1968, sendo que mais da metade não empregava nenhum
assalariado. Até por volta de 1950, o assalariado é geralmente um parente ou
um vizinho que espera, igualmente, logo se instalar por sua própria conta. A
partir de 1955, a amplitude dos investimentos concebidos e o desenvolvimento
das técnicas incitam o artesão a engajar um ou dois assalariados suplementares.
Faz-se apelo, então, à mão-de-obra estrangeira, portuguesa, espanhola, norte-
africana.
O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia 249

QUADRO 1
HIERARQUIA DAS EMPRESAS SEGUNDO O NÚMERO DE AS-
SALARIADOS
(Fonte: Pesquisa CIMA, 1970-1974)

Expansão demográfica e preservação do grupo social. A ascensão


demográfica é o sinal da expansão graniteira. O Sidobre é o único setor rural
do Departamento do Tarn em expansão contínua e sustentada desde 1936
(fig. 3). Este fato está ligado, primeiramente, à permanência no próprio local,
devido ao trabalho, dos jovens e casais em fase de procriação. A instalação de
todo “estrangeiro” (... no Sidobre) significa, quase sempre, um problema. De
forma geral, apenas se busca e se admite trabalhadores assalariados. O caso
dos assalariados estrangeiros (portugueses etc.) é facilmente resolvido: eles são
marginalizados, seja por se alojarem no próprio local (Lacrouzette, Saint-Salvy),
seja por habitarem (de preferência) próximo a Castres.
Uma sociedade individualista e desigual, mas solidária. Em 1960, a
população sidobreana se eleva a mais de 3.000 habitantes, ainda que não se saiba
nunca bem onde ela começa e onde ela termina. De fora, ela não constitui nada
mais que um bloco monolítico edificado em torno da defesa de um patrimônio
e de interesses econômicos comuns. De fato, esta solidariedade é circunstancial
e se exprime apenas para fazer frente à agressão exterior. Individualismo? Não
existe nenhuma organização sindical ou corporativa estável e nenhum acordo
para a comercialização dos produtos. A sociedade é fundamentalmente desigual,
pouco estruturada e relativamente móvel. Os trabalhadores do granito, num
total de 750, sustentam mais de 2.500 pessoas. É o grupo sócio-profissional
mais numeroso e mais ativo. Excetuando uma dezena de proprietários de terras
e uns cinqüenta antigos agricultores, a população é composta, ademais, de
comerciantes e de artesãos que trabalham, diretamente ou não, em torno da
atividade graniteira (mecânicos, representantes de materiais para mineração,
hoteleiros etc.). Dos 250 empreendedores, somente uns 50 são verdadeiramente
“patrões”, ocupando mais de 7 a 8 operários: grupo dominante que controla
a vida econômica e política, que não forma uma “classe” separada de outros
empreendedores e operário de origem sidobreana, pois há, de um lado, as
ligações de parentesco ou de vizinhança e, de outro, a possibilidade para um
operário ou um pequeno empreendedor de tornar-se um “patrão”. Em 1960, a
pirâmide hierárquica não é estática e a promoção interna é, ao mesmo tempo,
freqüente e rápida. A sociedade sidobreana não é constituída de classes
sociais conscientes de si próprias, organizadas e suscetíveis de se enfrentar. Os
conflitos de trabalho se resolvem de sidobreano para sidobreano, nas melhores
tradições paternalistas... ou patriarcais. Não há conflitos com os assalariados
não-sidobreanos, em particular com os imigrantes, uma vez que estes estão
distribuídos em pequenas fábricas, habitam diferentes locais, distantes uns dos
outros e, além do mais, recebem melhores salários do que os operários do ramo
têxtil... os quais ignoram a recessão, o desemprego e as greves.
250 O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia

Conflitos surgem entre os patrões. Trata-se de lutas econômicas


e políticas. Por volta de 1960-1965, uma certa quantidade de mineradores
passaram à produção direta de blocos brutos que eram exportados para toda a
França (Norte e Paris) (fig. 5). Os polidores de granito apoiados pela população
sidobreana protestam contra os produtores de blocos brutos. E. Grillou relatou
os testemunhos deste apelo, difundido em 1957: “Aos mineradores. O futuro
de nossas famílias está comprometido. Seria nosso dever nos unir para impedir
a saída do granito azul. Este granito é da nossa terra. Ele deve ser trabalhado
aqui... Nossas crianças não poderão desfrutar destas instalações modernas que
sofremos tanto para equipar. Sejamos justos, reconheçamos que foi a exploração
do granito bruto que permitiu a cada um de nós se instalar; mas agora devemos
proteger nosso granito”.

Um exemplo de comercialização.
As vendas dos Estabelecimentos T. durante o ando de 1957

A abertura de novas minerações mais rentáveis, aumentando a


capacidade de extração, atenuou os conflitos que foram mais ou menos
resolvidos por acordos individuais entre os polidores de granito e os mineradores
de granito bruto. A oposição entre os polidores de Lacrouzette e aqueles de
Saint-Salvy de la Baume é antiga, mas se agrava com a exploração do granito
azul, que favorece a segunda comuna. Os habitantes de Lacrouzette constituem
um grupo social original: iniciadores do trabalho com o granito, eles guardam um
O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia 251

certo orgulho; todavia, agora existe concorrência. As lutas para o controle das
municipalidades não são menos intensas e ocorrem algumas crises. Contudo,
nenhuma prefeitura escapa jamais, direta ou indiretamente, do poder graniteiro.
Com a exceção de alguns conflitos restritos, rapidamente sufocados, a sociedade
sidobreana apresenta falsas aparências de unanimidade. Existem fracassos,
abandonos, mas nunca falências oficiais devido aos “arranjos” familiares ou
outros atos. Ao mesmo tempo, as diferentes empresas são concorrentes e
comercializam por sua própria conta em toda a França e no estrangeiro. A
expansão e o enriquecimento possibilitam estas contradições. A economia
graniteira corresponde àquela de uma frente pioneira capitalista empreendedora,
dilapidadora e que nunca experimentou um fracasso econômico. Não obstante,
o fracasso existe no próprio seio do sistema graniteiro: a gestão do espaço conduz
à degradação irreversível do patrimônio ecológico, cultural e, em longo prazo,
econômico.

c. – O fim de uma paisagem e o começo de um caos (fig. 6)

A “caça às pedras” tinha acabado por volta de 1940, mas foi preciso
chegar 1950 para que se abrissem as primeiras minerações. Passou-se a atacar
desordenadamente a base do granito e não mais os blocos arredondados de
superfície. A técnica de exploração evoluiu rapidamente com a utilização de
tratores-esteira. Por razões de produtividade e de custos de exploração, evita-
se cavar abaixo de 4 a 5 m de profundidade, devido atingir o lençol d’água.
Até 1970, as minerações continuaram de tamanho modesto, limitados pelo
parcelamento das propriedades, e as frentes de lavra se restringiam a algumas
dezenas de metros de extensão. A abertura de uma jazida de granito constitui
um risco, uma vez que não existe nenhuma prospecção científica prévia, além
do embasamento granítico, desigualmente fraturado e alterado, possuir uma
heterogeneidade muito grande. A busca às cegas do “bom” granito por meio de
trator-esteira conduz ao massacre da “cobertura viva” (vegetação-solo-fauna-
manto de alteração) que é arrancada, raspada e despejada em diversos fundos de
vale. O trabalho de exploração propriamente dito não é nem um pouco mais
cuidadoso: escombros acumulados o mais rápido e o mais próximo possível, sem
reservar a terra vegetal e as areias superficiais; minerações abandonadas abertas
e desnudas, contaminadas por carcaças de máquinas. Minerações se abrem a
alguns metros de áreas reservadas (“chaos” de La Rouquette). Não obstante,
sua implantação depende de autorização da prefeitura, o que, até por volta de
1970, tratava-se, geralmente, de uma mera formalidade. A classificação ou o
cadastro no inventário das áreas, que leva em conta apenas a proteção pontual
de rochedos ou de parcelas, em vez de considerar o conjunto do ambiente,
é pouco eficaz. As minas de extração não representam apenas uma perda
do potencial ecológico e uma poluição estética; ela introduz uma poluição
sonora (detonação de minas, maquinários) e uma poluição mecânica das águas
correntes (transporte de partículas em suspensão). J. Raynaud faz um inventário
cartográfico das minerações em 1970. Se o Sidobre setentrional é preservado,
todo o setor meridional é amplamente aberto e degradado.
252 O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia
O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia 253
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O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia 255
256 O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia

Colonização da paisagem granítica pelos arbustos e pela floresta.


“... Quando a noite espalha o luar
sobre as colinas sofridas do Sidobre tranquilo,
... Ouve-se rumores próximos à floresta escura,
gritos misteriosos, sussuros discretos;
conferências animadas ocorrem nas sombras:
é o momento em que as rochas compartilham seus segredos”.

No alto, à esquerda: áreas de brejo com lande em La Plancardié; à direita: campos em Brugu-
eyroux.
Abaixo, à esquerda: “chaos” de La Rouquette; à direita: Ferrière Haute.
(Desenhos de André BERTRAND, 1977-1978; versos de G. GABAUDE, 1966)
O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia 257

A dispersão das fábricas e a poluição das águas (fig. 7). A dissociação


entre local de extração do granito e fábricas generalizou-se entre 1950 e 1955.
A fábrica tornou-se uma unidade de produção estável, com equipamento pesado
(guindaste), ligado a um sistema permanente de alimentação elétrica e de água.
Depois de uma tentativa de concentração geográfica na região de Campselves
e nas proximidades de Saint-Salvy, as implantações isoladas se multiplicam
em setores ainda preservados (áreas pantanosas de Carauce, Guior e mesmo
nas proximidades da Peiro Clabado). A contaminação não é apenas visual
(hangares metálicos, telhados vermelhos ou verdes, cercados de destroços e de
carcaças) e sonora (barulhos das serras e polideiras). As fábricas consomem
muita água e as jogam fora após uso. “As substâncias usadas para o corte ou
o polimento e o acabamento se encontram nos efluentes jogados no curso
d’água: resíduos de ferro, carbureto de silício com excipientes coloidais leves,
ácido oxálico, ácido clorídrico etc.” Esta poluição é tanto mecânica quanto
química. Ela poderia ser resolvida com a instalação sistemática de caixas de
decantação que, em 1970, constituíam exceções à regra. Com efeito, “para
além de qualquer alteração no equilíbrio iônico da água é, sobretudo, o nível
de poluição percebido” que importa no momento atual no Sidobre: manchas e
camadas oleosas poluem a superfície da água, revestimentos argilosos e películas
de carbureto de silício sobre os rochedos dos “compayrés”.
O desaparecimento da paisagem granítica sob os arbustos e resinosas 43.
O espaço que não foi aberto pelas minas de extração e pistas de acesso já não é
mais agrícola, com exceção de algumas clareiras de campos e de pastagens (Sept
Faux, Le Lac etc.): as parcelas cultivadas desaparecem sob os samambaiais da
espécie Pteridium aquilinum, depois sob espécies espinhosas da família Rosaceae
e sob a lande alta e fechada com espécies Ulex europaeus; os campos encharcados,
outrora drenados, evoluem com espécies da família Juncaceae, depois para áreas
pantanosas com espécies da família Sphagnaceae, a menos que sejam colonizadas
por um medíocre matagal com Salicáceas do gênero Salix, Betuláceas do gênero
Alnus ou Betula; as landes baixas e xerófitas dos dorsais com Erica cinérea e
outras ericáceas do gênero Calluna, são lentamente colonizadas por povoamentos
abertos e subespontâneos de pinheiros silvestres que precedem um sub-bosque
arbustivo com Ilex aquifolium diversos tipos de carvalho. A partir de 1955-
1960, a política do Fundo Florestal Nacional favoreceu a implantação maciça de
resinosas (Pináceas do gênero Picea, Pseudotsuga, Abies alba) no Alto Sidobre,
entre Ferrières e Vabre (La Doreillé), o setor de Vialavert e, de forma mais
esporádica, ao longo da estrada de Lafontasse a Brassac. Entretanto, as pequenas
florestas e matas do Sidobre são formadas de um povoamento misto de faia e de
carvalhos (Quercus petraea, Quercus robur e, nas áreas secas degradadas, Quercus
pubescens mais ou menos híbridos). Eles sofreram uma super-exploração durante
43 J. RAYNAULD (1971).
258 O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia

a última guerra (lenha para lareira, carvão vegetal) e, em seguida, o massacre


pelos tratores-esteira. Constituem uma biomassa de medíocre produtividade e de
baixo valor de mercado. Os reflorestamentos (faiais, pinheirais e, mais raramente
carvalhais) cobrem apenas pequenas superfícies nos grandes domínios burgueses:
Campsoleil, Le Verdier, Feuillebois etc. De 1955 a 1970, o Sidobre tornou-se
uma paisagem fechada por arbustos, por matagais e escurecido por espécies jovens
do gênero Picea. As antigas estradas agrícolas cercadas por placas de rocha
fincadas e por árvores folheadas44 centenárias ou estão fechados pela vegetação
ou foram arrasados pelos caminhões. Os rochedos que distribuíam pelas landes,
campos e áreas cultivadas e que se destacavam nos sub-bosques dos matagais,
estão agora escondidos sob um manto vegetal compacto e impenetrável 45. O
Sidobre pitoresco de R. Nauzières dá lugar a uma paisagem abatida, degradada
ou, simplesmente, banal. Os chaos foram invadidos pelos arbustos e é invisível a
menos de dez metros; o “rochedo vibrante” está cercado pelas Picea; o “compayré”
está confinado entre uma jazida e uma muralha de escombros.

d. – Os “amigos do Sidobre” ou as ilusões da “união sagrada” (1948-1958)

Um segundo retorno dos citadinos à natureza marca os anos que


seguiram a segunda guerra mundial: avanço do turismo favorecido pelas leis
sociais, o melhoramento da rede de estradas regionais, a moda do piquenique e
do turismo com bicicleta, o aparecimento dos primeiros automóveis populares...
A partir de 1947-1948, o Sidobre é visto, pelas cidades industriais vizinhas, como
um espaço verde. É um fluxo turístico popular e abundante, muito diferente da
primeira onda excursionista “burguesa”. Mas a atitude continuou a mesma, com
uma preferência pela Peiro Clabado e o Lac du Merle onde as margens sombreadas
sevem de lugar de descanso.
Com a fundação do “Amigos do Sidobre” e as Festas da Pedra, a obra
pioneira de R. Nauzières continua. A originalidade da Associação dos Amigos
do Sidobre (1948) está em associar Sidobreanos aos citadinos numa tentativa
de promoção econômica e cultural. Os principais líderes são os três prefeitos
sidobreanos e o professor da escola de Lacrouzette. A associação tem por objetivo
estabelecem um “modus vivendi” entre uma produção graniteira e uma proteção
dos espaços. Ela favoreceu um certo desenvolvimento hoteleiro (Lacrouzette,
Lafontasse), ajudado pela instalação de um pequeno camping em Vialavert.
A publicação, em 1951, de um guia turístico do Sidobre por A. Colrat e A.
Denis e a política de difusão do Sindicato de Iniciativa de Castres asseguram
uma excelente publicidade regional e nacional incluindo o Sidobre nos grandes
44 Em oposição aos pinheiros, trata-se das árvores com folhas. [N.T.]
45 J. RAYNAULD (1971).
O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia 259

circuitos turísticos (Quercy-Albigeois ou Gorges du Tarn-Cévennes). No âmbito


local, a organização anual da “Festa da Pedra” tem uma grande repercussão. Os
polidores do granito não se importam que ela ocorra, mas os mineradores são
bastante reticentes. Com exceção de alguns pequenos problemas pontuais, os
Amigos do Sidobre atuam livremente, uma vez que esta promoção turística
favorece a difusão dos produtos do artesanato sidobreano46 . A silhueta, ao
mesmo tempo, sólida e aérea da Peiro Clabado que ilustra os guias ou folhetos
turísticos e que impressiona tantas películas fotográficas, tornou-se um símbolo
paradoxal de um artesanato destruidor e poluidor, a melhor publicidade dos
trabalhadores do granito.

Recolonização por arbustos e resinosas no Sidobre atual.


“De que infernos precisaria um Dante para vislumbrar os abismos, a fantástica dança destes
dolmens, destes menires naturais que compõem o cenário da fusão do universo? Edificados
num momento de entusiasmo, teriam eles tentado seguir o vôo do deus e, sucumbindo a seus
pés, caíram numa adoração silenciosa onde ficaram para sempre congelados? Ou eles teriam
sido um dia feitos por uma Valquíria desvairada numa cavalgada inimaginável cujos acordes
wagnerianos nos fariam entender que é apenas uma simples ilusão?”
Acima do Lignon, em Feuillebois; platô da Roc de l’Oie; “Deserto”; Próximo a Bringaut e mata
do Verdier.
(Desenhos de André Bertrand, 1977-1978; Texto de P. Bonnet, 1956, citado por A. Denis, 1975)
46 E. GRILLOU (1957). “Enquanto que, pela imprensa, pelos folhetos, pela rádio, as belezas do
Sidobre e a qualidade do seu granito se faziam conhecer, os poderes públicos davam a esta região o
primeiro lugar na atribuição de créditos especiais”.
260 O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia

O Sidobre é, assim, poetizado durante um renascimento histórico-


mitolológico que lhe confere um lugar à parte na literatura poética regional.
Canta-se o romantismo selvagem dos “chaos” com reminiscências druídicas
e ênfases por vezes apocalípticas. Uma obra de A. Denis (1975) assim como
diversas números da Revue du Tarn trazem bastante exemplos: ênfase verbal,
reminiscências wagnerianas, poemas líricos e versos inocentes, interpretam as
feições da paisagem percebida através de uma cultura de importação.
Mas durante este mesmo período, reúnem-se algumas lendas e recitais
sidobreanos em occitano ou em francês. A. Denis (1975) teve o cuidado de
registrar vários deles.
O desenvolvimento da economia do granito marca o fim da “união
sagrada”. Em 1958, depois da degradação de um rochedo por um minerador,
mesmo com a advertência de alguns membros da Associação dos Amigos
do Sidobre, esta última se fragmenta e culmina com a “saída dos líderes,
desanimados pela parcialidade e incompreensão de alguns mineradores47 ”. Este
incidente constituiu, para os trabalhadores do granito, apenas um pretexto que
serviu para se livrarem dos Amigos que se tornaram incômodos. Nesta época,
o artesanato graniteiro estava em plena expansão, os livros de encomendas
estavam lotados (não se precisa mais, portanto, da publicidade “turística”) e os
empréstimos bancários permitiram adquirir equipamentos pesados que nunca
tinham sido utilizados plenamente. Grandes empresas buscam “integrar”
diferentes fases da produção e aspiram à dimensão industrial. É urgente assegurar
o acesso à matéria-prima. É preciso, portanto, abrir outras minas de extração,
maiores, mais cômodas e melhor equipadas, nas áreas de granito azul (bacia
do Lézert) onde existem numerosos rochedos pitorescos que os “Amigos do
Sidobre” desejavam proteger... talvez classificando-os ou inscrevendo-os nos
inventários dos sítios. Os “Amigos do Sidobre” perduraram de 1948 a 1958, o
tempo necessário ao sistema graniteiro para que fosse implantada uma melhor
estratégia de lucro e passasse de uma fase artesanal pré-industrial ao primeiro
estado do capitalismo industrial.

O sidobre – freqüentação turística

e. – A solidão do pesquisador

Durante a explosão desta crise vital para o futuro da economia e do meio


ambiente do Sidobre, distantes e numa indiferença geral, geólogos e geomorfólogos
continuaram as suas pesquisas. Por exemplo, o geomorfólogo G. Baecheroot
propôs uma interpretação periglacial do modelado granítico: alguns “compayrés”
“não passam de ‘chaos’ de solifluxão”48 , e tenta estabelecer uma relação entre o
deslocamento ou o basculamento de blocos e a orientação da “fendas das rochas”
tão procurada pelos mineradores. Ainda que a hipótese periglacial não tenha,
neste caso, uma justificativa científica, a pesquisa sistemática dos planos de
perfuração e de diaclasagem poderia ter conseqüências práticas.
47 E. GRILLOU (1957).
48 G. BAECKEROOT (1951,1952,1957).
O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia 261

A consolidação do sistema graniteiro: 1960-1978

O período 1960-1978 marca a dominação dos trabalhadores do


granito. O Sidobre geográfico continua sendo o espaço vital do sistema
graniteiro; mas este último o extrapola apoiando-se numa rede de relações
nacionais e internacionais. Evolução ou mutação? Conta-se com a
decomposição econômica e social do sistema artesanal e a instalação de uma
estratégia industrial capitalista do tipo clássica com concentração dos meios
financeiros e das unidades de produção. Esta passagem direta e “normal” ao
capitalismo marcaria o fim de uma relação da sociedade com o espaço e as
paisagens graníticas, o fim do sistema graniteiro local, auto-gerido por uma
sociedade rural enraizada. Ao contrário, o sistema graniteiro local se consolida.
Deve-se encarar como uma incapacidade de atingir um estado, geralmente
considerado como superior, da organização econômica? Ou, ao contrário, é
preciso reconhecer que existe uma estratégia local que permite, ao mesmo
tempo, beneficiar do liberalismo econômico e se esquivar dele, quando este
último tenta impor uma regulamentação de exploração, uma proteção da
paisagem? A luta pelo domínio do espaço/matéria-prima, com a liberdade de
usar e abusar, condiciona a escolha global da sociedade local, do sistema de
produção e a estratégia das alianças exteriores, financeiras e políticas. Mais do
que nunca, o Sidobre dos “chaos” e dos “rochedos vibrantes”, o Sidobre turístico,
é jogado para a periferia do sistema sócio-econômico local. O resultado da luta
está na resistência da sociedade local às intervenções exteriores, ou seja, em sua
capacidade de se adaptar às regras e à evolução do modo de produção capitalista.
Não teria havido uma tendência forte demais de considerar o “sistema Sidobre”
como um caso aberrante, fora de ortodoxia capitalista e, por isto, ameaçado
a ter curta duração? Não seria o sistema artesanal, fortemente individualista,
depredador, marcado por uma fluidez que freqüentemente tem aparências de
anarquia, a forma local, adaptada e enraizada, do capitalismo liberal?

a.- O Sidobre dos trabalhadores do granito: espaço de trabalho, espaço


vivido

A industrialização da exploração do granito foi bastante esperada, mas


numerosos elementos favoráveis que não existiam em 1945 apareceram desde
a expansão dos anos 1950. Capitais foram acumulados localmente, enquanto
que em 1945 eles eram inexistentes. Eles passaram a ser investidos no próprio
local e tendo, como garantia, o apoio bancário49.

49 Alguns investimentos de origem sidobreana, aparentemente, foram aplicados nos grandes


empreendimentos turísticos da Costa Brava e da Costa do Sol (Espanha).
262 O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia
O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia 263
264 O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia

Em direção a uma indústria do granito?

O mercado permanece baseado no ramo funerário, mas ele tomou uma


extensão nacional e a concorrência dos trabalhadores do granito vosgeanos ou
bretões é pouco percebida. Os livros de encomendas estão quase sempre lotados.
A comercialização dos produtos, não é, portanto, a maior preocupação deles.
Os construtores especializados colocam à disposição dos mineradores
e dos polidores de granito equipamentos cada vez mais pesados que permitem
aumentar a produção abrindo minas cada vez maiores e construindo grandes
fábricas. A tendência geral é uma super equipagem.
Um fato exterior à profissão graniteira aparece em 1974-1975: a
descoberta, nas proximidades de Saint-Salvy de la Baume, nas bordas dos maciço
granítico, de uma das maiores jazidas de zinco da França. Em 1976, é começada
a exploração por Penarroya. O exemplo local de uma atividade extrativa nas
mãos de uma grande sociedade capitalista vai modificar o comportamento
econômico dos Sidobreanos?
A exploração graniteira vai conservar sua estrutura artesanal e sua
fluidez com base em pequenas empresas. A maior empresa ocupa por volta
de cinqüenta operários, mas ela é a exceção. O número de pequenas fábricas
praticamente não diminuiu. As parcerias são freqüentes, mas temporárias.
Por exemplo, se dois mineiros se juntam para explorar uma nova jazida, eles se
separam dois ou três anos depois, quando esta não é mais rentável. É assim a
história do GSR (Trabalhadores do Granito Reunidos do Sidobre): a princípio,
uma dúzia de artesãos decide comprar material em comum a fim de fazer baixar
os preços. Somente depois de um ano, e sob pressão da administração fiscal que
o grupo cria uma estrutura jurídica. Em seguida, para enfrentar os problemas
de abastecimento de granito, o grupo se torna uma sociedade anônima de
dez acionários para negociar a compra de uma nova jazida em comum, sendo
o capital social constituído por aporte financeiro de cada membro. Com a
exploração da jazida cobrindo rapidamente os investimentos iniciais (200
milhões de francos antigos em 3 anos), a experiência pôde prosseguir e a
comercialização foi objeto do novo esforço de organização: cada acionista
utiliza os serviços comerciais então criados, conservando, entretanto, a gestão
da sua empresa particular. Além disso, por volta de uma dezena de polidores
solicita, também, os seus serviços, mediante o pagamento de uma porcentagem
sobre os negócios tratados50 .
A manutenção do artesanato possui motivações pelo menos
sociológicas e econômicas, mas que são difíceis de serem desvendadas. O
sistema fundiário, que favoreceu muito o avanço do artesanato entre 1945 e
1950, parece atuar contra a concentração, uma vez que a propriedade é muito
fragmentada, as jazidas de pequeno tamanho e é difícil, portanto, alguém
monopolizar o fornecimento de granito.
O bom comportamento do mercado do ramo funerário e sua excelente
rentabilidade incitam todos os Sidobreanos a se instalarem com o apoio dos
bancos. Novas extrações surgem enquanto que as antigas se modernizam. A
50 B. AZAM (1974).
O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia 265

liberdade de empreender conserva uma certa mobilidade social e constitui uma


garantia de promoção interna à qual os sidobreanos estão muito ligados: “aquele
que trabalha duro vence”. A coesão do grupo social se dá a este custo, de onde
surge a violenta negação verbal da noção de luta de classes.
A dispersão geográfica das minas e das fábricas, outro elemento
desfavorável, apenas se acentua com a instalação de fábricas em plena
“natureza”.
A comercialização gera problemas mais complexos, mas que
permanecem pendentes. Os trabalhadores do granito se deixam levar por uma
conjuntura favorável que permitiu manter um certo individualismo, mesmo
com a complicação crescente dos negócios: fornecimento regular de granito da
Escandinávia, da África do Sul, de Portugal, do Brasil, do Labrador; necessidade
de fazer determinadas operações de serragem do granito na Itália; vendas em
toda a França e em parte da Europa.
Todo o sistema graniteiro depende do mercado do ramo funerário, o
qual poderia ser ameaçado pela exigüidade dos cemitérios urbanos, pela moda da
incineração e dos columbários. Todavia, o Sidobre trabalha para uma burguesia
que respeita os valores tradicionais, que vive normalmente em pequenas cidades
e vilas onde os cemitérios ainda são importantes. As numerosas tentativas feitas,
a partir de 1955, para de fornecer granito para a construção civil (ladrilhos,
escadas, revestimento de fachadas e painéis decorativos) não deram muitos
resultados, uma vez que o granito é caro, difícil de trabalhar e ele se confronta
com a concorrência de outros materiais mais difundidos. Um último elemento
participa, enfim, na manutenção do sistema graniteiro tradicional: este último
nunca coloca em jogo interesses suficientes para atrair o grande capital e o
crédito bancário, parece proteger eficazmente os trabalhadores do granito...
tanto é que sua atividade continuará rentável.
A segunda sociedade do granito: as primeiras crises A população
sidobreana se identifica tanto com o trabalho do granito que, separar a análise
social do sistema de produção, seria ainda mais artificial do que em 1945-1950.
São praticamente os mesmos homens, embora mais numerosos (cerca de 3.500),
as mesmas famílias, os mesmos grupos de pressão, que agem no interior da
mesma estrutura social. Toda transformação social aparece como uma ruptura
do consenso sidobreano. Entretanto, algumas oposições são perceptíveis:
A pirâmide social permanece estável, mas a acumulação desigual de
capital cria os primeiros limites, dos quais, alguns vão se revelar intransponíveis.
Uma categoria de grandes empreendedores se destaca do grupo dos artesãos e
começa a garantir sua própria reprodução. O número de instalações de artesãos
não diminui, mas as chances de sucesso já não são mais as mesmas. O Sidobre
evolui, assim, para uma sociedade mais desigual.
O luxo de ostentação das residências distingue os trabalhadores do
granito que tiveram sucesso dos outros integrantes da população, o que suscita
bastante inveja. Aquele bem-sucedido é uma imagem social bem conhecida
dos tarnenses51 , motivo de inveja e de deboche

51 Relativo aos nativos do Departamento do Tarn. [N.T.]


266 O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia

O fornecimento de matéria-prima que tinha ocasionado, ao


longo dos anos 1950, um conflito entre os produtores de granito bruto e os
polidores, se atenua, por volta dos anos 1965, graças a trabalhos desenvolvidos
conjuntamente... mas a exportação de granito bruto continua, em detrimento
dos pequenos polidores.
O êxito social de alguns “estrangeiros” introduz uma ruptura
psicológica e faz aparecer novos comportamentos econômicos, políticos e
ecológicos. A maior empresa de Lacrouzette, a única gerida, desde vários anos,
com bases industriais, com um sistema contábil e uma infra-estrutura comercial,
pertence a um “estrangeiro” de origem espanhola que “para se afirmar, procurou
ter mais sucesso que os demais”. É claro que alguns eram encarregados de lhe
fazer sentir que era um estrangeiro!52 A eleição em Saint-Salvy de um prefeito
de origem estrangeira (porém, um contador de diversas empresas graniteiras)
contribuiu para mudar as mentalidades; a supremacia histórica de Lacrouzette
é contestada pelos artesãos de Saint-Salvy que têm a vantagem de possuir
uma parte importante do granito azul. Enquanto que os primeiros aparecem
como os detentores de uma certa tradição artesanal, aqueles de Saint-Salvy se
lançam na modernização... com ainda menos respeito pela paisagem. Trata-se
tanto de um conflito entre gerações quanto de uma rixa entre comunidades.
Para a geração dos sexagenários-septuagenários que conheceram os últimos
“peiraires”, seus pais e seus irmãos, e que continuam ligados à sua “região” e as
suas paisagens, se opõe à nova geração que vê no trabalho com o granito não
mais um “gênero de vida”, mas uma atividade econômica como qualquer outra,
cuja finalidade e a busca do lucro e o êxito social. As circunstâncias eleitorais
de 1972 em Lacrouzette poderiam ser o primeiro sinal de uma luta pelo poder
econômico. Os interesses divergem mesmo não sendo ainda possível falar de
oposição entre classes sociais. Um próximo conflito pode trazê-los à tona. Mas
a ameaça exterior continua a manter a coesão do grupo.
Do Sidobre granítico ao Sidobre graniteiro: um espaço vivido. O
Sidobre granítico é uma entidade geológica e geográfica que não pertence à
vida cotidiana dos trabalhadores do granito. O Sidobre dos artesãos é o Sidobre
graniteiro cuja natureza e limites evoluíram desde a segunda metade do século
XIX (fig. 1). Em 1970-1975, o Sidobre graniteiro está em plena expansão.
Ele compreende várias zonas organizadas ao redor de dois pólos principais:
Lacrouzette e seus distritos artesanais (Campselves, Clairié) e Saint-Salvy de
la Balme.
As minas de extração da zona central fornecem o essencial do
abastecimento em granito; é o Sidobre do granito azul; a zona intermediária é
aquela das minas e das fábricas dispersas: ela engloba a totalidade do Sidobre
meridional e central; a zona periférica, constituída de grandes fábricas
modernas esta em pleno desenvolvimento: ela ultrapassa largamente o Sidobre
granítico e se estende em direção aos subúrbios industriais de Castres; enfim,
numerosos deslocamentos devem ser feitos a Castres, cidade distante 10 a 15
k m, onde se concentram os equipamentos comerciais e bancários, bem com as
empresas que fabricam os maquinários ou que garantem a venda e os serviços
de manutenção.
52 Relatado por B. AZAM (1974).
O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia 267

Entretanto, mais de um terço do Sidobre granítico escapa à ação


aos trabalhadores do granito. Trata-se, de um lado, do setor de Ferrières-
Peyremouriou, de granitos cinzas de má qualidade e, de outro lado, dos domínios
burgueses que não foram dividido e vendidos.
O Sidobre graniteiro é um espaço de trabalho que o artesão percorre
cotidianamente da mineração à fábrica e do fornecedor ao reparador de
máquinas, não importando o tempo e a condição das estradas (às vezes coberto
de neve ou mais comumente com os solos congelados ou fechado pela neblina
no inverno). É também um espaço de habitat onde residem quase todos os
artesãos. As cidades de Saint-Salvy e, sobretudo, de Lacrouzette são rodeadas
de zonas residenciais desordenadas que justapõem a luxuosas casas de campo de
estilos diversos. Elas possuem apenas um ponto em comum: o de depreciar o
granito em favor de materiais tão contrastantes como o calcário de Dourgne, o
mármore, a ardósia... ou o granilito. Estas mesmas casas de campo sofisticadas se
encontram, isoladas ou agrupadas, em todo o Sidobre graniteiro, contribuindo
para lhe dar um aspecto heteróclito de uma paisagem de subúrbio. O Sidobre é,
enfim, um espaço de lazer na medida em que o “lazer” corresponde ao repouso
de fim de semana, pois o artesão, ao menos aquele da velha geração, raramente
tira ou tirava férias. Ele conservou o costume camponês de levar seu cão e
sua espingarda para “passear” em seu local de trabalho, aos domingos. Ele
participa da caça de lebres e de javali, da coleta de cogumelos etc. Mas estes
costumes se perderam; a geração dos 30-40 anos prefere desfrutar as férias fora
do Sidobre.
O Sidobre graniteiro é aquele das fábricas barulhentas e sujas, das
minas abertas, das grandes casas de campo toulousanas53 e dos chalés alpinos
cercados por arbustos e matagais degradados pelos tratores-esteira. Ele possui
também, nos grandes buracos alagados de um local de extração antigo, pequenas
ilhas escondidas onde subsistem alguns rochedos intactos. Estas paisagens
degradadas, em contínua perturbação, não é nada menos que o espaço de vida,
coerente e homogêneo, na escala humana. O sidobreano ali está e não quer
deixar o local, nem mesmo melhorá-lo, o que constitui para ele um quadro de
vida familiar e familial, uma terra dos ancestrais que se tornou uma fonte de
riqueza e uma segunda natureza. Certamente, todos os sidobreanos, sobretudo
os jovens, não comungam mais com esta “representação” do Sidobre. Mas
seria um erro considerar o ordenamento das paisagens do Sidobre como um
simples problema, seja da economia industrial, seja da estética turística, seja
da ecologia naturalista.

b. – O Sidobre das administrações ou o fiasco do poder público.

Os astutos trabalhadores do granito


Seria exagerado afirmar que a economia e a população sidobreanas
escapam ao controle dos poderes públicos. Todavia, os administradores,
as lideranças e mais ainda, os pesquisadores e os supervisores, enfrentam as
maiores dificuldades em delinear a realidade sidobreana. Esta situação está,
53 Relativo ao estilo originário da cidade de Toulouse. [N.T.]
268 O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia

em parte, ligada ao caráter específico do sistema graniteiro e às condições de


sua implantação. É preciso observar, também, um aspecto da estratégia dos
trabalhadores do granito para escapar do controle administrativo e desencorajar
toda intervenção exterior. A exploração granítica é uma atividade artesanal
itinerante que se separou do meio rural de modo progressivo e que foi sempre
difícil de recensear. Como classificar um trabalhador que é, alternativamente
ou simultaneamente, patrão e operário e que pode trabalhar, ao mesmo
tempo, em vários estabelecimentos? Alguns se declaram mineradores, outros
polidores, simplesmente em função de sua atividade no momento exato da
pesquisa. Os artesãos podem ser inscritos na Câmara das Profissões e na
Câmara do Comércio, ou nas duas ao mesmo tempo... ou em nenhuma delas
(caso freqüente do artesão sem operários). Os diferentes cadastros (INSEE54
, URSSAF55 , sindicato nacional das “Minas e materiais”) são incompletos e
difíceis de coincidir56 . Se as maiores empresas são, desde alguns anos, obrigadas
a possuir uma contabilidade, as pequenas empresas não possuem base contábil
regular e ocorre de muitos artesãos não saber calcular um preço de custo, o que
gera as grandes diferenças de preço para um mesmo monumento funerário57 .
Toda tentativa de pesquisa, especialmente de recenseamento, se choca com
a má vontade dos trabalhadores do granito. Os fiscais do serviço de impostos
sofreram diversos fracassos notórios.
Fracasso da regulamentação da abertura das minerações (1944-1970).
Depois dos decretos de classificação dos espaços de 1946, a Administração se
dedica a racionalizar a exploração do granito pelo viés dos pedidos de autorização
de abertura de minas de extração. A administração da prefeitura e a Comissão
dos espaços examinam os pedidos ignorando toda política de proteção dos
sítios naturais na escala nacional e sem que haja, no âmbito departamental,
uma reflexão global sobre o desenvolvimento graniteiro e o ordenamento do
espaço sidobreano. A Administração se deixa levar por uma tática de ações
descontínuas. Esta é tão ineficaz que os trabalhadores do granito constituem
um grupo de pressão no âmbito departamental que se beneficia do apoio de
representantes políticos nacionais. Foi preciso esperar chegar 1968 e 1969
para que a Administração propusesse um plano de ordenamento do conjunto
do Sidobre... rejeitado pelas municipalidades. De fato, a exploração do granito
é pouco perturbada, mas os mineradores ficam na incerteza e na irritação.
Estas discussões provocam um bloqueio psico-sociológico dos sidobreanos
que, particularmente orgulhosos de seu sucesso material, se sentem vistos com
desconfiança e rejeitados.
O fiasco de 1970. Em 1969, o Ministério dos Assuntos Culturais
lança um estudo sobre a proteção dos espaços naturais. O contrato de estudo é
confiado ao CIMA; o projeto é vago: classificar os sítios pitorescos e determinar
o seu estado físico e estético. O CIMA propõe uma análise que leva em conta
tanto a situação ecológica quanto a evolução econômica e técnica do artesanato
54 Institut National de la Statistique et des Études Économiques (Instituto Nacional de Estatística e
de Estudos Econômicos). [N.T.]
55 Union de Recouvrement des Cotisations de Sécurité Sociale et d’Allocations Familiales (Rede de
Cobrança de Contribuições de Segurança Social e de Subsídios Familiares) [N.T.]
56 O arquivo compilado para os objetivos desta pesquisa é bastante completo, mas pouco confiável,
uma vez que não se consegue discernir as diferentes categorias sócio-profissionais.
57 É o que se destaca na pesquisa sociológica de B. Azam (1974) e que é confirmado pelo sindicato
“Minas e materiais” de Toulouse.
O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia 269

graniteiro58 . Paralelamente a esta pesquisa, os responsáveis regionais dos


Assuntos Culturais iniciaram uma turnê de divulgação nas diferentes comunas
do Sidobre. Ao mesmo tempo, ocorre em todo o sudoeste do Maciço Central
a fase de implantação do Parque Natural Regional do Haut-Languedoc que
deve englobar o Sidobre. Estes diferentes estudos e pesquisas conduzidos
de forma dispersa provocam um certo entusiasmo e as sessões de divulgação
organizadas no Clube Rural de Lacrouzette são turbulentas. É então que
explode a notícia que surpreende a todos: pelo decreto de 1° de julho de 1970,
o conjunto do maciço granito é inscrito no inventário dos sítios pitorescos do
Departamento do Tarn. Certamente, trata-se de uma simples inscrição e não
de uma classificação que impedia a exploração de jazidas. Enquanto alguns
sidobreanos falam de dinamite, outros, usando da influência, fazem pressão
sobre os políticos e sobre a administração. Todos entregam pedidos de abertura
de minerações. O prefeito concede tais autorizações, as quais ultrapassam em
muito as necessidades imediatas dos mineradores. Os trabalhadores do granito
comprovaram seu poder político no plano local e departamental.

c. – Ruptura e degradação do ecossistema Sidobre

O complexo físico do Sidobre está ameaçado e só pode ter um peso


mais ou menos em longo prazo na economia graniteira e a população.

A ineficácia ecológica e estética das medidas pontuais

A dissolução dos Amigos do Sidobre e o fracasso da política oficial


de proteção dos espaços constituíram um golpe mortal às paisagens. Os
trabalhadores do granito ocupam o terreno graças às novas autorizações de
abertura de minas de extração (fig. 9) e, também, à ausência de qualquer
plano integrado de urbanização. A nova legislação sobre as modalidades de
exploração de minas e sobre a luta conta a poluição traz algumas de melhorias
pontuais: aos montes de rejeitos se agregam plantações de resinosas e alguns
tanques de decantação retêm os lodos poluídos... fora do período das cheias. É
também o caso de se acabar com as brutais descargas depois da implantação de
uma instalação de armazenamento de lodos no vale do Durenque. O Serviço
de Minas se dedica, não sem dificuldades, a fazer respeitar tais medidas ainda
muito parciais para serem eficazes no plano ecológico. Qual é a opinião do
Ministério do Meio Ambiente que nunca se preocupou diretamente com o
problema sidobreano?
A destruição e a exploração maciça do granito e o aplainamento
superficial nas áreas de extração cuja frente de lavra raramente ultrapassa
dez metros de altura, a retirada da cobertura viva das vertentes (manto de
alteração, solo, vegetação, fauna), a poluição química e, sobretudo, mecânica
das águas correntes, a urbanização difusa e heteróclita, as plantações florestais
58 CIMA (1970).
270 O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia

em “fragmentos” baseada em pinheiros do gênero Picea etc., desenvolvem


um processo de degradação econômica (destruição do potencial natural) e
estética. A simples recolonização de um depósito de rejeitos grosseiros por
lande baseada em Cytisus scoparius demanda seis a sete anos e a instalação
de uma fitofisionomia pré-florestal com espécies da família Betulaceae e
avelaneiras leva uma dúzia de anos. Além do mais, as escavações continuam
abertas e perigosas. A exploração do granito na atualidade, pouco melhorada
pelas recentes regulamentações é, por essência, inexoravelmente destruidora
e o que se constata, do ponto de vista ecológico global, é uma irreversibilidade
dos processos envolvidos59 .

d. – O Sidobre, terra de lendas (A. Denis)

Mesmo assim, as paisagens graníticas têm sempre bastante visitantes.


Os sítios pitorescos são próximos das estradas ou acessíveis com pequenas
caminhadas. O Sidobre continua sendo um local de passeio de fim de semana
e uma etapa de grandes itinerários turísticos. Mas não existem mais associações
capazes de incentivar uma política turística. Os amantes do Sidobre pertencem
a duas categorias bem distintas, mas que podem coexistir no seio de uma mesma
família de citadinos: de um lado, aqueles que não têm nenhuma ligação com
a região e que a visitam sem muito conhecimento e, sobretudo, sem imagens
preconcebidas. Certamente, eles expressam sua grande indignação, mas
tampouco visitam o conjunto do Sidobre. Admiram os rochedos pitorescos
e os cantos de “natureza selvagem”, mas não resistem parar diante de uma
fábrica para examinar o material, os blocos de granito exóticos, ou entrar
numa mineração abandonada, precedidos pelas crianças que ali descobrem
um excepcional local para brincar. Além disso, a “decomposição em forma
arredondada” do granito atrai desde muito tempo as excursões escolares
conduzidas por professores de geografia ou de ciências naturais. As minas de
extração e as fábricas, juntamente com os “rochedos vibrantes” e os “compayrés”,
se tornaram os centros de atração turística? Em todos os casos, os contatos são
feitos com os artesãos.
De outro lado, existem aqueles que se vinculam, aos menos
sentimentalmente, à descendência dos “Amigos do Sidobre”. Estes nostálgicos
do Sidobre e sua juventude continuam a amar e a defender paisagens que não
existem mais, exceto alguns resquícios, e que estão condenadas, tanto pela
expansão graniteira, quanto pela recolonização vegetal. Para a maioria deles,
a excursão no Sidobre consiste em uma série de desvios para evitar as minas de
extração e as fábricas. Alguns, os mais radicais, renunciaram, definitivamente,
percorrer um Sidobre desfigurado e revivem em si, melancólicos, as imagens de
um Sidobre pré-graniteiro repleto de fantasmas representados pelos “chaos”.
Numa bonita placa turística, O Sidobre, terra de lenda, um antigo membro
dos “Amigos do Sidobre”, lembra com muita emoção e dignidade este Sidobre
turístico residual60 .
59 Não retomaremos aqui o estudo essencialmente ecológico do CIMA (1970) e J. Raynaud (1971).
60 A. DENIS (1975).
O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia 271
272 O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia

e. – Os próximos Sidobres...

Vinte anos de pesquisa reunindo elementos de uma evolução secular


representam demasiadamente pouco para se fazer qualquer futurologia sobre
o Sidobre. De fato, somos incapazes de interpretar globalmente as diferentes
estratégias que se desdobram atualmente e, das quais, algumas devem prever o
Sidobre dos próximos anos. Por outro lado, a análise das contradições internas
e externas do sistema Sidobre permite esquematizar alguns cenários setoriais,
sem que se possa prognosticar como eles se combinarão e se hierarquizarão.

Reprodução do sistema artesanal ou concentração industrial?

Os trabalhadores do granito estabeleceram uma relação de força


englobando o Sidobre numa estratégia nacional. O sistema graniteiro se
baseia numa série de controles de diversos níveis de escala: controle do espaço/
matéria-prima que assegura um fornecimento regular e a preço baixo; controle
dos meios técnicos de produção; controle dos investimentos em equipamentos;
controle político da sociedade sidobreana por meio das municipalidades e dos
raros sindicatos; controle de um mercado funerário.
Este sistema aparentemente coerente e estável parece ser capaz
de assegurar sua própria reprodução. Na verdade, ele repousa numa simples
convergência de individualismos e os controles supracitados são todos de caráter
individual. O consenso social é tão indispensável para a reprodução do sistema
graniteiro quanto a manutenção da expansão econômica para a reprodução
social. A contradição entre individualismo e solidariedade pode ser superada
graças ao controle do poder local pelos trabalhadores do granito e graças à
ameaça exterior de proteção de espaços. Os conflitos internos posteriores a
1970 não reconsideraram o sistema em si. Não são eles, contudo, as premissas de
um outro cenário? Os dois fatos novos são a luta de clãs entre os trabalhadores
do granito e o surgimento de “empreendedores” e empresas modernas que
trabalham atualmente a 50 a 60% de sua capacidade. Os reflexos da competição
e da concorrência, até então inibidos pelo consenso social, se acentuam. Tratar-
se-ia do início de uma concentração industrial com marginalização definitiva
dos assalariados? Estaria a luta de clãs preparando a luta de classes?
Todos aqueles que desejam ver a relação de forças se modificar
esperam que uma “crise” coloque o sistema graniteiro em dificuldades.
Lembramos mais freqüentemente uma crise externa, por exemplo, uma queda
nas vendas de monumentos funerários. Mas não pode se tratar de um brutal
golpe, pois as tentativas de modernização, por mais modestas que sejam, já
começaram... sem nenhum sacrifício para os confortáveis preços de venda. O
perigo só pode vir do interior, ou seja, de um desacordo entre artesãos. E se os
trabalhadores do granito perdessem o controle do fornecimento do granito? Os
proprietários burgueses ainda possuem mais de um quarto do Sidobre, sendo boa
parte situada na zona do granito azul. Se a velha geração de proprietários de
terra conserva ligações sentimentais muito fortes com a terra sidobreana, não
O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia 273

parece ter o mesmo significado para alguns herdeiros potenciais. No caso da


abertura de um mercado fundiário, serão os trabalhadores do granito os únicos
compradores? E mais, não serão eles concorrentes entre si?

“Proteção da natureza” ou ordenamento do espaço?

O Sidobre dos próximos dez a vinte anos61 será um Sidobre florestal.


As paisagens agrícolas são apenas uma mera lembrança. O crescimento dos
arbustos e os matagais que mascaram desde alguns anos os rochedos pitorescos
e impedem o seu aceso, serão lentamente transformadas, pela dinâmica natural,
em mata ou em floresta de espécies folhadas mistas (carvalhos das espécies:
Quercus petraea, Quercus pedunculata, Quercus pubescens e faias) ou de
resinosas (gênero Picea, Abies e Pinus sylvestris). O “chaos” de blocos, os
“rochedos vibrantes”, os “compayrés” estarão no sub-bosque. Eles serão visíveis
e acessíveis, como no pinheiral do Lac Du Merle ou nos faiais do Bousquet e do
Verdier. O espaço turístico será modificado e novos locais poderão ser visitados;
por exemplo, o Sidobre de Peyremouriou ao norte das gargantas do Agout.
Não é preciso esperar por outras inscrições no inventário dos espaços...
aquele de 1970 sendo considerado como caduco. A regulamentação de
exploração das jazidas, a Lei de Proteção da Natureza (1977), o procedimento
dos estudos de impactos e as novas regulamentações da poluição constituem
um arsenal impressionante, mas heteróclito e dificilmente aplicável ao Sidobre.
Toda política direta de “proteção da natureza” parece condenada ao fracasso. É
preciso inverter a questão e não mais a partir de “sítios pitorescos”, mas a partir
da sociedade e do sistema de produção. Trata-se de ordenar um antigo espaço
agrícola em vias de industrialização e de urbanização salvaguardando algumas
“zonas naturais”. Este ordenamento não é concebível sem a concordância e a
participação da população local.

O Sidobre aos sidobreanos?

Grito unânime dos trabalhadores do granito e da população, tal slogan


se justifica no Sidobre?
Ora, o Sidobre foi deixado, em grande parte, ao bel prazer dos
sidobreanos e já conhecemos os resultados. É preciso, portanto, incentivar
a concentração capitalista que irá salvar, talvez, porções de “natureza”,
reagrupando as minas de extração e as fábricas, mas com quais conseqüências
para a sociedade local? É preciso criticar e manter uma ação coercitiva dos
poderes públicos até então cegos e praticamente impotentes? Não está todo o
Sidobre já inscrito no inventário dos espaços? E ele já não faz parte do Parque
Regional do Haut Languedoc, e por quais finalidades?
Os sidobreanos continuam a degradar seu espaço de vida. É fácil
demonstrar que este sistema graniteiro se auto-condena em mais ou menos
61 Este trabalho foi publicado em 1978. [N.T.]
274 O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia

longo prazo. A exploração das melhores jazidas, o desperdício no momento


da transformação da matéria-prima, o espalhamento dos escombros, os rejeitos
não controlados de poluentes não poderão mais deixar os trabalhadores do
granito indiferentes pois estas degradações vão se repercutir nas condições
de extração e nos preços de revenda. O enraizamento dos sidobreanos, a
ligação à sua “região” e às suas paisagens deverá lhes conduzir, um dia, a lidar
apropriadamente com seu próprio meio ambiente. Não existe outra solução
para o Sidobre. Os trabalhadores do granito merecerão, então, ter escolhido
a Peiro Clabado como símbolo. Mas não seria o mausoléu funerário o melhor
símbolo da sociedade sidobreana, sinal de sucesso social, mas também de
irreversibilidade e de aniquilamento?
Seria prematuro tirar da experiência bastante particular do Sidobre
um ensinamento de cunho geral sobre a análise monográfica. No entanto,
na perspectiva exposta por Marcel Jollivet, podemos apresentar uma série de
sugestões que são, igualmente, hipóteses de trabalho:
1. – A monografia parece indispensável na medida em que as ciências
sociais se orientam na direção de uma interpretação global, multidimensional,
da combinação sócio-ecológica. Por acaso, não é a pesquisa monográfica
uma das principais finalidades, raramente admitida, de um grande número
de programas de pesquisa interdisciplinar (contrato da DGRST62 , ATP63 do
CNRS64 ) ou de alguns trabalhos de práticos (notadamente dos “estudos de
impactos”)?
2. – A monografia não parece mais ameaçada pelo “ecletismo e pelo
arbitrário” do que as outras pesquisas sociais, na medida em que ela se define
como uma interpretação subjetiva, mas coerente de uma situação a partir de
uma análise de sistema. Esta última pode parecer, no caso do Sidobre, ainda
formal e, por vezes, formalista, mas é a análise do “sistema graniteiro sidobreano”
que conduz a monografia e que garante a generalização.
3. – A monografia tem por conseqüência principal a quebra
da objetividade e da unidade formal do “objeto”. O Sidobre nasceu, por
consenso social, da fusão e da confusão, de realidade e de imagens sincrônicas
ou diacrônicas ou, numa única palavra, de “representações” que não fazem
referência ao Sidobre em si. Os conflitos entre as categorias sociais se
desenvolvem a partir de realidades econômicas, de espaços vividos e de
percepções paisagísticas diferentes e, freqüentemente, opostas. O imaginário
e a mitologia se misturam inextricavelmente à realidade e funcionam como
dados sociológicos “objetivos”. Estes múltiplos e contraditórios Sidobres que se
enfrentam, se penetram e se destroem no espaço e no tempo, apenas traduzem,
no âmbito local e num meio sócio-ecológico específico, a estratégia de uma
exploração capitalista “selvagem”, mas coerente com si mesma.
4. – A monografia não consiste mais em “se confinar numa sociedade
local”. Ela permite aprofundar a noção tão discutida de “sociedade local”
62 DGRST – Direction Générale de la Recherche Scientifique et Technique (Direção Geral da Pesquisa
Científica e Técnica) [N.T.]
63 ATP – Action Thématique Programmée (Ação Temática Programada) [N.T.]
64 CNRS – Centre National de la Recherche Scientifique (Centro Nacional da Pesquisa Científica)
[N.T.]
O Sidobre (Tarn): esboço de uma monografia 275

assimilando-a num subsistema amplamente aberto, por suas entradas e suas


saídas, sobre a sociedade englobante. O fato de considerar o sistema graniteiro
como um sistema local, específico, enraizado da implantação do modo de
produção capitalista rompe com o “excepcionalismo” monográfico tradicional.
Muito mais que monumento reservado em seu próprio conteúdo e sua própria
arquitetura fim, a monografia aparece, então, como uma abertura capaz de
resultar em conclusões de interesse geral num campo de análise que é aquele
da sociedade global.

BIBLIOGRAFIA

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1947, Em DE MARTONNE, Traité de géographie physique (tome 1. Le relief du sol),
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1951, G. BAECKEROOT, Les formes de cryergie quaternaire en Montagne Noire
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1971, BDPA, Ministère de l’agriculture, Étude départamentale d’aménagement rural
(plusieurs brochures publiées d’octobre 1971 à décembre 1972).
1972, J. RAYNAUD, La végétation du Sidobre. Mémoire de Maîtrise de géograpie,
Université de Toulouse – Le Mirail. (1 carte en couleurs à 1/10.000. Documents
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1973, Les granitiers du Sidobre pensent bâtiment, Officiel du bâtiment et des travaux
publics Midi-Pirénées, n° 102, p. 27-32.
277
278
279

OS GEÓGRAFOS FRANCESES E SUAS PAISAGENS

Na calda da representação da paisagem, a geografia vive no país do


paradoxo e do claro-escuro. A paisagem, esta palavra mestre fraca e perversa,
cheia de sentidos e de contradições, tudo em laxismo ou em falso rigor, está
estreitamente ligada à história da geografia francesa e particularmente àquela de
seus desenvolvimentos recentes. Esta emergência participa de uma renovação
da pesquisa na interface da sociedade e da natureza.Ela está misturada com
outras tentativas que, sem estar diretamente ligadas à paisagem, se situam sobre
suas margens (análises integradas dos meios “naturais”, pesquisas sobre o meio
ambiente e estudos de impacto, espaços vividos e\ou percebidos, noções de
territórios e de país, etc.). Sobre um tema tão fulgaz e conflituoso, nenhuma
abordagem pode almejar a objetividade e todo balanço ganha a configuração
e a mobilidade do caleidoscópio. Isto não é, pois, senão o “ponto de vista” de
um geógrafo... entre outros geógrafos... e entre outros “pontos de vista” . Duas
abordagens preliminares.

••Não estacionar nas incertezas semânticas. Elas não são nem


excepcionais nem impeditivas e os geógrafos têm uma certa habilidade
para manejar palavras-chave com alguma ambiguidade (região,
espaço, território, “pays”, ...paisagem).
••A paisagem flutua entre dois extremos: ou se deixa livre o campo
do sonho, do imaginário e a paisagem deriva na abundância e
no prazer das imagens, dos sentidos, dos sons e dos flertes. Ou a
paisagem é matrizada e friamente organizada para entrar num certo
campo científico. Mas após Bachelard e seus Reeves, estas categorias
tornaram-se cada vez menos contraditórias e exclusivas.

A paisagem dinâmica da terra ( fim do século xix ): um


paradigma perdido

A paisagem não ocupa um lugar central no pensamento de E. Reclus,


mas a descrição dos lugares e dos espaços tem um papel indispensável no
desdobramento das estratégias geopolíticas1. Seu sentido da globalidade da
natureza e dos movimentos que o animam. A análise sutil das relações entre
a natureza e a sociedade fêz de E. Reclus um “ecologista antes da hora” (B.
1 Estas poucas observações se restringem às pesquisas realizadas pelos geógrafos franceses a próposito,
se possível, das paisagens francesas. As referências às pesquisas estrangeiras foram voluntariamente
eliminadas. Além do mais, não seria possível, nos limites deste trabalho, fornecer uma bibliografia
relativa a sujeitos dispersos e imprecisos. Nós retemos apenas a alguns títulos característicos e obras de
referência. Ao contrário, se localizou as principais equipes de pesquisa.
280 Os geógrafos franceses e suas paisagens

Giblin). Infelizmente, seus conhecimentos no domínio das ciências naturais


restam bastante rudimentares para sua época e muito aquém de suas ambições.
E mais, as análises paisagísticas não obedecem a nenhuma regra e elas não são
generalizáveis apesar de sua modernidade.

O “quadro geográfico da frança”: uma geografia sem


princípios (fim do século xix, primeira metade do século xx)

Com a hegemonia vidaliana, a descrição da paisagem funda e distingue a


escola geográfica francesa.

Os traços sigulares de uma paisagem servem para delimitar e para


caracterizar a “região geográfica” (2) O olhar do geógrafo se exerce para perceber
diretamente o terreno no qual o concreto se confunde com o visível. Percepção
à altura do homem. A visão panorâmica, muito rica, aumenta às vezes o campo
da visão e aquele do pensamento. Assim cada geógrafo grava sua colina de Sion.
Abordagem falsamente ingênua. Na verdade, o estudo da paisagem repousa
sobre um quadro rigoroso à base de análises históricas, de referências geológicas
e climáticas, de pesquisas pessoais sobre os relevos, enfim sobre entrevistas e
cálculos estatísticos. A fotografia, e sobretudo a familiaridade das cartas e da
cartografia, multiplicam as referências e diversificam as escalas de percepção e os
ângulos de visão. Trata-se, pois, de uma descrição enriquecida, de alguma sorte
pseudopaisagística. Todas as regiões francesas são cobertas. É um monumental
quadro geográfico, homogêneo, exaustivo, rico de observações e de uma grande
apresentação literária. Este afresco inegalável fez durante mais de cinqüenta
anos o renome da escola geográfica francesa.

A paisagem “vidaliana”, espelho deformante da França.

- Esta descrição das regiões geográficas, tendo freqüentemente a


aparência das coisas e seus dados heteróclitos, deixa na sombra as infra-estruturas
e seus funcionamentos. Se engenhava a fazer ressaltar a “individualidade”
regional, a descrição se fecha no “excepcionalismo” e bloqueia toda tentativa de
conceitualização da paisagem, todo esforço para se chegar até leis gerais. Não se
encontra na França um paradigma paisagístico equivalente à landschaftkunde
que, a despeito de suas fraquezas, assegurou, através da landschaftokologie,
algumas bases dos “estudos integrados dos meios naturais” (geossistemas).
- Embora as paisagens francesas comecem a ser desarrumadas pela
primeira revolução industrial e urbana, os geógrafos continuam a descrever
em prioridade as paisagens tradicionais da França rural. Bloqueio ideológico
e político. Só são retidos e descritos os traços permanentes e gerais que
fixam a sociedade francesa em uma paisagem considerada como estável e na
continuidade de uma história nacional, que é preciso afirmar diante dos perigos
exteriores. Este ruralismo profundo se interessa pouco com aquilo que mexe,
com a evolução a longo termo como com a dinâmica interna das paisagens. O
Os geógrafos franceses e suas paisagens 281

contigente não é geográfico (3). Em toda sua glória, a geografia regional francesa
passa ao lado da grande mutação paisagística do início do século XX.

A geografia sem paisagem (1950-1970)

A paisagem francesa estourada

A partir de 1914 e sobretudo após 1950, se assiste a isto


que Weber chama o “fin des terroirs” (4). Não somente as paisagens rurais
tradicionais são transformadas ou destruídas, mas aquelas que subsistem são são,
freqüentemente, adaptadas à modernização da agricultura. A desvalorização do
uso econômico acarreta, em um primeiro momento, uma desafecção paralela
de seu valor cultural e estético. O Ministério dos Negócios Culturais mantem
um modesto “Bureau das paisagens” que inscreve ou classifica para inventário
sítios mais de capelas que “sítios pitorescos naturais”.

A paisagem geográfica contestada

A renovação científica não é mais favorável aos estudos paisagísticos


que, em nome do materialismo científico e do espírito de análise, são julgados
muito complexos e muito subjetivos. A geografia física se separa da geografia
humana e a geografia regional se desagrega. Mas o peso da tradição e das
instituições é tal (concursos de agregação, tese, etc.) que a evocação da paisagem
subsiste freqüentemente sem verdadeira relação com o corpo do sujeito. É
também a moda da “subpaisagem” (paisagem geomorfológica, paisagem vegetal,
etc.) descritas sem regras particulares.

A paisagem da natureza e a natureza da paisagem : os


paradigmas pseudopaisagísticos

A transformação das paisagens começada na euforia da reconstrução


nacional e do progresso econômico toma aspectos inquietantes (poluição,
catástrofes, destruição irreversível de sítios memoráveis ou simplesmente
familiares, desaparecimento de certos recursos, etc.). O alarme é geral (Clube
de Roma, relatório do MIT, etc.). Muito desigualmente mexida, a França se
caracteriza por um mosaico de paisagens tradicionais conservadas e de “novas
paisagens” deixadas para o urbano.
A aspiração para um melhor quadro de vida e o desenvolvimento
de um “movimento ecológico” confuso mas potente é acompanhado de uma
vigorosa reabilitação social das paisagens ditas “naturais”. A criação de um
Ministério do Meio Ambiente e a definição de medidas de proteção das
paisagens não parece muito atrair os geógrafos que deixam os ecologistas,
os urbanistas e os agrônomos proporem e realizarem os primeiros estudos
paisagísticos. Entretanto, sobre o plano científico, novos paradigmas testados
282 Os geógrafos franceses e suas paisagens

na Matemática, Linguística, Biologia e Ecologia permitem abordar a natureza


da paisagem na sua globalidade e sua complexidade (análise de sistema e
modelisação, teledetecção e informática, etc.).
São os especialistas de geografia física, primeiramente os biogeógrafos
próximos das ciências biológicas (G. Rougerie, G. Bertrand), seguido dos
geomorfólogos confrontados com problemas de organização do espaço (J.
Tricart) que percebem, primeiramente, a necessidade e a possibilidade de
matrizar a análise das paisagens e/ou dos meios “naturais”. Não é possível
elaborar um quadro exaustivo e pertinente dos pesquisadores, equipes, temas e
métodos. Na verdade, este setor da atividade é recente e mal delimitado e não
está nem inventariado nem reconhecido sobre o plano profissional e nacional
(5). Todos os pesquisadores não atingiram a maturidade, muitos ainda nem
publicaram e algums pesquisadores têm, com muita freqüência, modificado
suas teorias e suas práticas. A título indicativo, não sem lacunas e artifícios,
enumeraremos alguns “grupos” característicos.
- O grupo “Pesquisa sobre os equilíbrios das paisagens” (ex RCP 231
CNRS), em torno de G. Rougerie, M. Hotyat e J. -P. Amat se interessa mais
particularmente nas análises setoriais em meios florestais. Pode-se acrescentar
G. Riou (CEGET) e J. -F. Richard (ORSTOM) que desenvolveram, fora da
França, um método de inspiração estruturalista de descrição e de taxonomia
das paisagens (6).
- O Centro Interdisciplinar de Pesquisas sobre os Meios Naturais e a
Gestão Rural (CIMA-LA 366 do CNRS) de Toulouse com C. e G. Bertrand, C.
Carcenac, J. Hubschman, J. P. Métailié, etc. inicia um estudo dos geossistemas
e sua cartografia e se aproxima mais especialmente com a história dos meios
“naturais” (7).
- O Centro de Geografia Aplicada (LA 95do CNRS) de Strasbourg
dirigido por J. Tricart, forte pela sua experiência em cartografia e geomorfologia
dinâmica, desenvolve, em colaboração com os agrônomos, o método
ecogeográfico (cf. cartas ecodinâmicas de J. P. Blank) (8).
- A equipe “Cartografia das Paisagens” ERA 1978 do CNRS de
Besançon de J. P. Wieber, J. P. Massonie (Matemático), Th. Brossard, G.
Fumey, D. Joly, L. Mathieu, desenvolve muitos modelos de análise multifatorial
da paisagem (9).
- L´ERA 426 CNRS “Medidas Estacionais em Meio Temperado” de
F. Morand e P. Arnoud filiada à estação mesológica experimental de Cessières
(10).
- Os biogeógrafos ampliam suas investigações ao conjunto do meio
natural (J. M. Palierne) e se lançam aos estudos histórios dos meios florestais
(G. Houzard) (11).
- Os especialistas em teledetecção definem novas abordagens da
paisagem, às vezes mais globais e mais dinânicas (GRECO “Manche” de F.
Verger, M. Bruneau (CEGET), R. Regrain etc. (12).
- Enfim, os geógrafos participam ativamente da elaboração de cartas
Os geógrafos franceses e suas paisagens 283

de meio ambiente e das paisagens (A. Journaux, J. Bethemont, J. -P. Bravard)


(15).
A diversidade dos itinerários científicos, dos temas, dos métodos e das
técnicas impede qualquer generalização. Observamos simplesmente algumas
convergências.
- Uma importante contribuição à renovação atual da geografia física
numa ótica mais integrada, mais ecológica e geralmente numa abordagem mais
direta sobre os problemas da sociedade e da organização do espaço.
- A pesquisa de novos conceitos e de novos métodos (geossistema,
ecogeografia) numa perspectiva de abertura interdisciplinar.
- A importante conciliação nas escalas espaciais tanto em termos
de limites objetivos concernente aos objetos analisados como no “nível da
percepção” aos quais se colocam os pesquisadores e as disciplinas.
- A necessidade de ultrapassar as tipologias para abordar os problemas
de classificação, tanto corológico como taxonômico com o ojetivo de melhorar
os métodos e as técnicas de representação cartográfica.
- A análise integrada dos meios “naturais” apresenta um
interesse particular à dinâmica interna e à evolução dos meios. A análise dos
processos tem um papel capital assim como tudo que diz respeito à duração, ao
tempo, aos rítmos. À história natural dos meios, se junta a história social, pois
a antropização domina muito freqüentemente o funcionamento dos sistemas
“naturais”, de onde a estreita relação entre a pesquisa fundamental e a pesquisa
aplicada.
Os estudos teóricos e práticos destas diferentes equipes,
conhecidas por sua originalidade, não constituem um conjunto coerente e estão
longe de cobrir o conjunto do território nacional. Ao contrário, eles são bem
difusos fora da disciplina e fora da França. Todavia, não se trata geralmente
senão de abordagens naturalistas da paisagem, mesmo se as implicações
sociais são diretas e múltiplas. Não se pode mais os confundir com os estudos
paisagísticos elaborados a partir do fenômeno da percepção, mesmo que tenha
ocorrido lamentáveis confusões (por exemplo, um geossistema não é uma
paisagem).

A paisagem como espaço vivido-percebido: um paradigma


socioecológico

A grande maioria dos geógrafos admite atualmente que a paisagem


não existe fora da percepção (14). Será, pois, normal que as numerosas pesquisas
sobre a percepção favoreçam uma recentragem e uma renovação dos estudos
paisagísticos. Ora, a paisagem resta à margem do grande debate sobre o espaço,
mesmo quando se trata do espaço percebido ou vivido. Que relação estabelecer
entre paisagem e espaço percebido? Trata-se de dois conjuntos semânticos e
conceituais irredutíveis, de um conceito de campos opostos a um conceito
de cidades? Malgrado tudo, a paisagem se encontra presa num movimento
284 Os geógrafos franceses e suas paisagens

interdisciplinar portador de inovação. Neste setor, inteiramente a explorar, as


orientações se entrecruzam e as tendências são difíceis de prever.
- Uma primeira abordagem, materialista e objetiva, define a paisagem
como uma produção social e a considera como uma ferramenta de produção
complexa e freqüentemente desadaptada (J. L. Kretz) (15).
- A maioria dos geógrafos situa a paisagem na interface da natureza e
da sociedade. De um lado, eles reconhecem sua materialidade, isto é, a existência
de uma estrutura e de um funcionamento próprios aos corpos naturais que a
constituem. De outro lado, eles afirmam que o status paisagístico destes corpos
naturais é determinado pelo sistema de produção econômica e cultural cujos
efeitos diferem segundo as “produções” e os grupos sociais. A dimensão social
e histórica da paisagem é claramente afirmada e a percepção é englobada no
conjunto do processo social.
Um certo número de pesquisadores se dedica a “traduzir” em termos
socioculturais os caracteres próprios dos “meios naturais” ou dos geossistemas.
Estas colocações de tipo dialética, não deterministas (pelo menos no sentido
da geografia clássica) consideram a diversidade no tempo e no espaço dos
grupos sociais (florestas normandas de G. Houzard) e restituem as paisagens,
seu conteúdo cultural como seu uso econômico, nas lutas sociais (Sidobre de
G. Bertrand). Nos seus “quadros de vida” G. Rougerie examina a prática social
dos grandes conjuntos naturais mundiais (16).
- Entre numerosas abordagens paisagísticas realizadas pelos geógrafos
ruralistas (que extraíram muito pouco das estruturas agrárias) as pesquisas
conduzidas por Ch. Blanc-Pamard dão um ar novo vindo da ecologia e da
antropoetologia anglo-saxônica. A paisagem é aqui visualizada como uma
“construção camponesa” analisada no ritmo dos fenômenos naturais e dos
calendários agrícolas (17).
- É preciso destacar deste grupo aquele que com A. Frémont ou G.
Sautter ensaiam traduzir sobre o plano científico a “profundidade cultural da
paisagem” através de todas as camadas sociais, aí compreendidos os escritores e
os poetas, “coniventes com a paisagem” que está longe da pseudo-objetividade
dos geógrafos tradicionais (18-19).
- Tratar à parte das “paisagens urbanas” é bem o sinal de uma doença.
É constatar que a paisagem, no seu estado atual, com sua carga de “natural”
e sua origem “camponesa”, resta uma realidade do mundo rural e passa mal a
porta da cidade. Coloca-se à parte os trabalhos de Sylvie Rimbert, pois se trata,
sobretudo, de análises de espaços vividos e percebidos, em que as paisagens não
aparecem tanto como tais. (M. -J. Bertrand, etc.). Portanto, Sylvie Rimbert
estima que “a cidade é feita tanto de imagens como de tijolos”. Isto significa
possivelmente que não se precisa de tijolos e de imagens para criar uma paisagem
(20)...
Os geógrafos franceses e suas paisagens 285

“Dos usos da palavra paisagem ao conceito ”, para um


paradigma paisagístico (g. Fumey).

Pela primeira vez na geografia francesa, um trabalho epistemológico


aborda a paisagem em si mesma (21). Este trabalho que se inscreve no eixo de
pesquisa da equipe de Besançon propõe um inventário e uma análise crítica dos
métodos explicitados ao curso destes dez últimos anos. Os resultados da enquete
de G. Fumey são decepcionantes. A paisagem está em toda parte e em nenhuma
parte. As raras proposições conceitualizadas não concernem à paisagem
“percebida”. Razão suplementar para saldar o esforço de conceitualização e de
modelização do grupo de Besançon. Este último propõe um esquema teórico
do sistema paisagístico que G. Fumey decompôs em onze subesquemas tipos
que cobrem as diferentes acepções atuais da paisagem. Com um certo otimismo
G. Fumey conclui provisoriamente a existência de um “conceito esfarelado”.
O mais importante é que a equipe de Besançon desenvolve seus modelos
matemáticos e aplica sobre o terreno para testar a pertinência do “visível” e
participa ativamente dos estudos de organização/gestão das paisagens. A prática
acompanha a teoria.

País sem paisagens?

Aquilo que era a “nova geografia” dos anos 1970 rejeita a paisagem
como um resíduo ou uma ressurgência da geografia descritiva, subjetiva,
“ruralista” e conservadora. Estes são, portanto, os mesmos que descobrem
atualmente o filtro sociocultural da percepção e que trabalham sobre os
espaços vividos e percebidos. Mas é sensato retomar a existência do país e
do território e levar em conta, em alguma parte, sua dimensão paisagista? O
principal bloqueio parece proceder de um reflexo cientificismo e economicista
que subentende numerosas atitudes científicas. Portanto, o trabalho de A.
Fremont demonstra que a subjetividade mais avivada de certas descrições
paisagísticas não levanta obrigatoriamente uma ideologia subjetivista quando
ela se inscreve em um projeto científico de geografia social. Viver no país é
tambem viver numa paisagem, sonho acordado e maravilhado. Atualmente, a
paisagem e as pesquisas que ela supõe não são mais marginalizadas. Hérodote et
l’Espace géographique abrem suas colunas e R. Brunet lança um debate sobre
a semiologia da paisagem (23).
Estas observações são decepcionantes. Elas não são descorajantes.
Primeiro, a paisagem está aqui, enraizada no coração da natureza e do social,
no coração das relações sociais, inevitávveis. Ela não se vive antes de se
estudar. É um paradoxo vivo e a polissemia é sua razão de ser. Ela não precisa
ser eliminada. Mas todo pesquisador tem a tarefa de elaborar, de seu “ponto de
vista” científico, um conceito paisagístico que não será jamais um “modelo”
entre outros “modelos”. Absorvidos nos problemas (reais) de descrição, de
perspectiva, de imagens e de percepção, os geógrafos franceses não souberam
elevar o debate para colocar a paisagem na problemática geral que não pode
ser, para a geografia, senão social. A “paisagem geográfica” é inconsistente e
286 Os geógrafos franceses e suas paisagens

triste. Ela não é uma ferramenta de conhecimento das relações sociais e ainda
menos um fenômeno de cultura geral. Géo não é uma revista de geógrafos.
À base da análise paisagística, não há somente a percepção, mas toda
a teoria da informação considerada aqui na sua dimensão social: “codages”
sociais, transmissão e memorização sociais, modo de produção e de reprodução
do processo paisagístico. Peso social e histórico da paisagem, histerese coletiva,
desigualdades para o acesso, a leitura e o uso da paisagem que participam das
estratégias e das lutas sociais. A paisagem é bem isto que a gente vê, mas a gente
não a vê jamais diretamente, a gente não a vê jamais isoladamente e a gente
não a vê jamais pela primeira vez. A paisagem está no espelho da sociedade.
Os geógrafos, entre outros, devem refleti-la.

BIBLIOGRAFIA

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Reclus. Un géographe libertaire ». Número especial Hérodote, Paris, Maspero, 1981,
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(reedição).
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5 – Les études sur le paysage ne relèvent d´aucune commission spéciale du Comité
National de Géographie. A maioria dos pesquisadores aderem à Comissão de
Biogeografia.
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cf. note 3. (Institut de Géographie Daniel Faucher, Université de Toulouse, Le Mirail,
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14 p. J. Tricart et J. Kilian L´éco-géographie et l´aménagement du milieu naturel,
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Os geógrafos franceses e suas paisagens 287

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Fumey, Des usages du mot paysage à la formation d´un concept, Thèse 3e. Cycle,
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rue Mégevand, 25030, Besançon Cedex).
10 – F. MORAND, ERA 426 du CNRS, 20 Avenue des Bleuetes 91300 Massy.
11 – J.M. PALIERNE, « La notion de paysage en géographie est-elle un faux problème ?
» Norois, nº 62, 1969, 8 p. G. Houzard, Les Massifs forestiers de Basse Normandie, Thèse
d´État, Caen, 1980. (Département de Géographie de Caen, 14032 Caen Cedex).
12 – M. BRUNEAU, « Le concept de paysage », Actes du Colloque Géopoint, 1978,
4 p.
13 – A. JOURNAUX, Carte de l´Environnement au 1/50 000, Caen. J.-P. Bravard,
La Chautagne, Institut d´Études Rhodaniennes, 1981, 182 p. (Institut d´Études
Rhodaniennes LA 260 du CNRS, 74, rue Pasteur, 69007 Lyon).
14 – Voir L´Espace géographique nº 4, 1972, e nº 2, 1974.
15 – J.L. KRETZ « La production du paysage rural », CERT EDF., Stage 8804, 1979,
7 p.
16 – G. ROUGERIE, Les Cadres de vie, PUF, SUP, 1975, 264 p.
17 – Ch. BLANC-PAMARD et J.-P. RAISON, « Paesaggio » (estratta da Enciclopedia),
Inaudi, 10, Torino, 1980. Ch. Blanc-Pamard, Le Paysage comme référence commune
du scientifique et du paysan, 50 p. Laboratoire de Sociologie et de Géographie africaine
LA 94 du CNRS, 131, boulevard St-Michel, 75005 Paris.
18 – G. SAUTER, « Le paysage comme connivence », Hérodote, Maspero, Paris, nº
16, 1979, p. 40-66. (Adresse : cf nº 17).
19 – A. FRÉMONT, La Région espace vécu, Paris, PUF, SUP, 1976, 223 p. A.
Frémont, « Les profondeurs des paysages géographiques. Autour d´Ecouves », L´Espace
géographique, Paris, Doin, nº 2, 1974, p. 120-137.
20 – S. RIMBERT, Les Paysages urbains, Paris, A. Colin, 1973, 240 p. (Dynamique
des espaces géographiques. E.R.A. 214, Université de Strasbourg 1 ; 12, rue Goethe
67000, Strasbourg).
21 - Cf. note 9.
22 – Les Territoires de la vie, Colloque Géopoint, Avignon, 1982, 442 p.
23 – Écologies Géographiques, numéro spécial Hérodote. Paris, Maspero, nº 26, 1982.
R. Brunet, « Analyse du paysage et sémiologie. Éléments pour un débat », L´Espace
géographique, Paris, Doin, nº 2, 1974, p. 120-126.
Ver: J.R. PITTE, Histoire du paysage français, 1983, Paris, Taillandier, 2 tomos (203 e
238 p.). É uma contribuição essencial à análise da paisagem geográfica considerada como
uma realidade cultural que liga felizmente a hisória das paisagens urbanas e industriais
àquela das paisagens rurais. Essencialmente descritiva e curiosamente desprovida de
dimensão ecológica.
288

A PAISAGEM OU A IRRUPÇÃO DO SENSÍVEL


NAS POLÍTICAS DE MEIO AMBIENTE E DE
AMÉNAGEMENT DO TERRITÓRIO

A paisagem é, sempre e antes de tudo, o apanágio precioso, mas um


tanto confidencial das emoções poéticas. Hoje, ela explodiu tornando-se uma
das dimensões banais da gestão dos meios ambientes e da transformação dos
territórios. Inscrita na lei, presente em numerosos textos de aplicação, entre
esses as leis paisagísticas, ela exprime uma forte aspiração a valores esquecidos
por um tempo, tais como a qualidade de vida, a identidade e o patrimônio. A
paisagem está no coração da cultura contemporânea como nunca antes, desde
a moda da arte e dos jardins do século XVIII e o período romântico do século
XIX.
No cruzamento dos símbolos e dos sentidos, Xavier Ravier não poderia
escapar de encontrar as paisagens. Através do mito dos Pireneus e da onomástica
occitana, as palavras e as metáforas que exprimem os lugares e os territórios
transcendem a realidade geográfica. As representações paisagísticas enraízam
a sociedade meridional ao mais profundo dos seus territórios. Acampado na
sua “talvera” familiar, no coração de seu campo no Gers, o poeta canta sua
paisagem. Entre natureza e cultura. Entre paixão e saber.

A paisagem entre ciência e poesia

A paisagem tornou-se, em menos de duas décadas, uma das questões


centrais da nossa sociedade, no coração das sensibilidades individuais e
coletivas assim como das estratégias socioeconômicas. Sucedendo ao sistema
essencialmente materialista e tecnocrático dos “Trinta gloriosos” que permitiu,
com urgência e não sem êxitos econômicos e sociais, reconstruir a França e a
Europa após a Segunda Guerra Mundial, novos sistemas de valores começam
a emergir. Eles se querem portadores de uma cultura humanista renovada e
interessam-se especialmente pela qualidade do “vivido” das populações em
questão. O crescimento da ecologia não é estranho a este movimento, mas ela
não é a única referência. Outros valores estão em jogo e vêm temperar aquilo que
a ecologia tem de biológico demais, e também, por uma incômoda extensão, de
catastrofista. Além disso, a invocação da “natureza” é freqüentemente ambígua
e a noção de “desenvolvimento durável” particularmente opaca.
Espremida entre um modelo liberal descontrolado e um pensamento
ecologizante com propensão integrista, a sociedade contemporânea busca novas
A paisagem ou a irrupção do sensível nas políticas de meio ambiente e de 289
transformação de território

referências mais atentas ao homem, a seu patrimônio e a seu futuro. A paisagem,


na sua banalidade quotidiana, pode tornar-se uma destas referências. Com a
condição que ela saia de sua dupla ambigüidade:
– por um lado, do ponto de vista político e administrativo, não houve
preocupação em definir aquilo que se entende por paisagem e avaliar as políticas
adequadas. É dessa forma que foi legiferado recentemente sobre a paisagem (cf.
O “aspecto paisagístico” da permissão para construir).
– por outro lado, do ponto de vista científico e cultural, a paisagem é
ao mesmo tempo uma realidade concreta (árvore, nuvem, cimento, betume) e
uma representação social. Ela releva, então, ao mesmo tempo, das ciências da
natureza e das ciências da sociedade. Esta posição no entroncamento impõe
uma forma de interdisciplinaridade, desenvolvida de uma parte e de outra de
um limite epistemológico maior. A dimensão cultural, no entanto, essencial,
é particularmente difícil de levar em conta e, sobretudo, de combinar com os
outros procedimentos científicos. Ela é ignorada ou isolada. Nos dois casos, ela
é separada da realidade ecológica e econômica da paisagem.
A primeira questão é então saber o que cada um quer dizer quando
fala de paisagem. Certo, a expressão “para cada um sua paisagem” deve ser não
apenas afirmada, mas reforçada. Polissêmica por natureza, a paisagem deve,
entretanto, sair da cacofonia reinante e cultivar sua riqueza polifônica. Uma
semiologia da paisagem, atenta a esta diversidade, ainda resta por construir.
– Propriamente dizendo, a paisagem não existe enquanto tal, no
terreno. Ela é uma criação, ou mais exatamente uma recriação permanente
cada vez que um ser pensante, dotado de sensibilidade e de memória, rico de
sua cultura e dos valores que lhe são associados, olha um objeto material, flor
ou construção, lixo público ou circo de Gavarnie. A representação paisagística
elabora-se a partir de um vai-e-vem entre um sujeito e um objeto. Retomando
uma frase do cineasta Eric Rohmer, (quando olhamos um rosto, vemos apenas
sua metade) nós diremos que quando nós olhamos um território, nós vemos
apenas sua metade. A outra parte está calcada no nosso espírito e coração. A
paisagem é, então, por essência, um produto, ou mais exatamente, um processo
de interface, ao mesmo tempo sujeito e objeto, natural e cultural, individual
e social.
– Se retermos esta definição, pelo menos a título de hipótese, nós
devemos colocar dois postulados:
– a paisagem é um todo indissociável que não existe fora da sua
globalidade e de sua unicidade. Há apenas uma paisagem gascã feita de
pesadas colinas inchadas de solo argiloso, coberta de grandes lavouras, de
bocages interrompidos pelas junções de campos, de campanários graciosos e de
suntuosos pombais que são outros pontos de referência para navegação em um
céu duramente agitado pelo autan (vento do sul). Paisagem que deve tanto à
observação quanto à “remembrance” - recordação- (Michel Serres), tanto ao
conhecimento quanto à “conivência” (Gilles Sautter).
– Toda consideração científica da paisagem necessita então da
construção de um sistema largamente interdisciplinar, de uma parte e, de outra,
290 A paisagem ou a irrupção do sensível nas políticas de meio ambiente e de
transformação de território

do corte que separa as ciências da natureza e aquelas da sociedade. Além disso,


entre estas últimas, é preciso combinar os dados das disciplinas socioeconômicas
com aqueles das disciplinas artísticas. Este último aspecto, freqüentemente
evocado, mas pouco posto em prática, é essencial para diferenciar a paisagem
de outros conceitos científicos, tal como, por exemplo, o ecossistema ou o
geossistema. A semiologia parece constituir uma passagem obrigatória e,
através dela, a poesia. Ler os poemas bucólicos de Antonin Perbose ou escutar
as “geórgicas” lauraguesas de Déodat de Séverac participa do esforço de
patrimonialização e de apropriação identitária que enraiza os estudos sobre o
desenvolvimento local, os contratos de terroir e a colocação dos “pays” (regiões
camponesas) no quadro do Schéma Régional d’Aménagmente du Territoire de
la Région Midi-Pyrénées (Esquema Regional de Transformação do Território
da Região Midi-Pyrénées).

A dimensão cultural da paisagem

Todos sabem hoje que a paisagem não é apenas a natureza. Ela é


uma criação humana, a marca de uma sociedade sobre um território. Tivemos
freqüentemente a tendência de esquecer que a paisagem, antes de ser um objeto
de cenário e de contemplação para populações essencialmente citadinas por
sua residência e sua cultura, é historicamente uma ferramenta, campo, cidade
ou fábrica, destinada a produzir bens de consumo: colheitas animais e vegetais,
habitat, meio de transporte, etc. Ela também não é um jardim submetido ao
capricho de um jardineiro imanente. Nem natural, nem artificial, mas híbrida,
a paisagem não é estática. Ela só dura se a usamos e a famosa “ordem eterna
dos campos” é apenas um erro grosseiro de perspectiva histórica baseado em
uma interpretação tendenciosa do bloqueio econômico e social dos campos
franceses na metade do século XIX.
Toda paisagem exprime, pela sucessão ordenada de seus estados, em
particular no ritmo das estações, um funcionamento que a faz evoluir tanto
nos seus aspectos materiais quanto em suas múltiplas dimensões sociais e
culturais. Não há sempre sincronia entre estes dois aspectos da paisagem e a
defasagem entre a materialidade territorial e a imaterialidade das representações
é um fator essencial do que se convencionou chamar de “crise da paisagem”
contemporânea. Aquele que produz uma paisagem (o agricultor) não é aquele
que a olha (o turista); aquele que a constrói (o arquiteto) não é aquele que
habita (morador do subúrbio). De onde a urgência de introduzir uma dimensão
paisagística multidimensional nos estudos de transformação do território.
– A paisagem não é então mais esta engenhoca, este suplemento de
cultura, descritivo e mais ou menos artisticamente evocado, que serve para
enfeitar um dossiê “objetivo” dedicado à transformação do território. Partir da
paisagem é partir da experiência vivida das populações implicadas. É inverter
tanto a problemática tecnocrática, sobretudo preocupada com eficiência
econômica, quanto a problemática ambiental polarizada sobre a conservação
ecológica.
Até aqui, de fato, tinha sido escolhido, em um contexto geral de crise
A paisagem ou a irrupção do sensível nas políticas de meio ambiente e de 291
transformação de território

do meio ambiente, tratar com prioridade e com urgência do avesso do cenário:


poluição, lixo, evoluções mais ou menos irreversíveis. A paisagem remete o
meio ambiente no seu lado direito, sem ingenuidade, mas sem catastrofismo de
princípio. No plano científico, isto equivale a tratar, primeiramente e com toda
lógica, da homeostasia e da dinâmica dos sistemas ambientais. Assim, as crises
naturais e as catástrofes sociais são resituadas na evolução geral da paisagem;
isto é, na periodização da história da natureza e das sociedades. O catastrofismo
cultural é reposto em seu lugar entre as crenças apocalípticas e milenaristas.
– A paisagem, tal como nós nos propomos analisá-la, se inscreve na
história mais longa da humanidade, mais especialmente desde os primeiros
desmatamentos neolíticos que esboçam a trama paisagística, que servirá de
cenário de vida, durante seis milênios, para as sociedades agrárias européias.
Referência cultural para sempre inscrita na memória de nossos contemporâneos
urbanizados e artificializados. Todavia, é preciso se precaver contra o saudosismo
e o conservadorismo que pairam ainda sobre numerosos estudos da paisagem. É
necessário acoplar esta indispensável dimensão identitária e patrimonial com
uma visão prospectiva associando a imaginação mais utópica, e a mais poética,
à vontade de criar paisagens funcionais que respondam a novas necessidades
materiais e a novos sonhos.

A “quadratura” científica da paisagem

“Quando se quer dizer lealmente o sensível, é melhor um adjetivo de Colette do que


seis demonstrações de lógico...”
“A paisagem, páginas rodeadas de passeios, se torna um modelo lógico e a lógica,
inversamente, redesenha a paisagem”.
Michel Serres. Les cinq sens (Os cinco sentidos)

Há mais de uma década, a paisagem é posta à prova da ciência e dos


métodos científicos. Com resultados muito desiguais e, no conjunto, pouco
convincentes. Cada disciplina implicada esforçou-se por elaborar uma teoria,
mais raramente um método. A interdisciplinaridade foi convocada, na maioria
das vezes, na desordem. O discurso incompreensível prevalece sobre o protocolo
científico.
Ainda estamos no estágio de monografias paisagísticas construídas
com um objetivo prático de transformação do território, por exemplo, para
realizar um estudo de impacto ou para propor uma lei sobre a paisagem.
Algumas são notáveis pela eficácia, outras são apenas receitas instrumentadas
por paisagistas apressados e às vezes pouco escrupulosos. Elas põem bem
em evidência a procura social por paisagem assim como a globalidade e a
unicidade do fato paisagístico. Por outro lado, elas não são nem materialmente
reproduzíveis, nem cientificamente generalizáveis. Numerosos estudos setoriais,
na maioria das vezes disciplinares, podem trazer muitas informações, mas elas
matam, a priori, a interatividade paisagística a despeito dos cruzamentos que
os SIG favorecem cada vez mais. Ao contrário, a criação de uma “ciência da
paisagem” transdisciplinar, várias vezes considerada, nunca deu certo. Talvez ela
292 A paisagem ou a irrupção do sensível nas políticas de meio ambiente e de
transformação de território

não seja desejável na medida em que ela contribuiria para isolar a paisagem dos
outros aspectos do meio ambiente. O bate-boca sobre a paisagem que grassa há
mais de uma década na França favoreceu o desenvolvimento de um paisagismo
muito estetizante, tão indefinido quanto ambicioso e que submete a paisagem
à boa-vontade de alguns. Os estudos de paisagem marcam passo. Foi assim que
o Ministério do Meio Ambiente e da Transformação do Território lançou em
1998 e 1999 um programa de pesquisa para incitar os pesquisadores a avaliar
as políticas públicas que consideram, direta ou indiretamente, as paisagens
francesas atuais e seu futuro.
Sobre essas bases díspares e frágeis, lançamos uma tentativa de
“quadratura” científica da paisagem. Este termo é utilizado aqui sob com dupla
acepção: geométrica e pictural (“quadratura”). Ele reforça, ao mesmo tempo, a
ambição do projeto, apreender a paisagem na sua complexidade, e sua modéstia,
na medida em que sabemos antecipadamente que ele não revelará nunca toda
a combinação paisagística.
A análise da paisagem proposta se baseia em uma grade de leitura
com quatro entradas (ou verbetes?):
– os locais paisagísticos que são um conjunto de corpos materiais
(árvore, muralha, colina) definidos por seu volume, suas propriedades bio-físico-
químicas, seu agenciamento e seu funcionamento (sobre a base do método do
geossistema);
– os atores da paisagem, individuais ou coletivos, atuais ou passados,
endógenos ou exógenos em relação ao território considerado, com sua carga
de memória patrimonial;
– os projetos de paisagem que exprimem o tipo de relação entre os
lugares e os atores e que podem ser tanto contemplativos quanto econômicos
(passantes, empreendedores, etc.);
– os tempos da paisagem que combinam o tempo linear “histórico”,
aquele das sociedades humanas como aquele da natureza, com o tempo circular
das estações (fenologia e sucessão dos “estados” paisagísticos).
Esta grade de leitura permite conceber uma espécie de modelo de
interpretação da paisagem composto de dois subconjuntos:
– um subsistema “cultural” baseado nas percepções e representações
paisagísticas que deve revelar a diversidade e do cruzamento dos olhares sobre
um mesmo território. Ele permite, em particular, evidenciar as questões, as
contradições e os conflitos que nascem em torno da paisagem. Os olhares não
são todos iguais; eles se hierarquizam em função de um modelo dominante
fortemente mediatizado.
– Um subsistema material que propõe uma análise dos objetos da
paisagem, com suas características biológicas ou físicas, sua organização espacial
e seu funcionamento histórico.
A confrontação permanente entre estes dois subsistemas, com
diferentes escalas de tempo e de espaço, permite analisar a sinergia do complexo
paisagístico e evidenciar as disfunções internas, retroações, inércias e defasagens,
A paisagem ou a irrupção do sensível nas políticas de meio ambiente e de 293
transformação de território

que caracterizam toda paisagem. Assim definido, o sistema paisagístico final


pode ser tratado segundo o método dos cenários e projetado no futuro em
termo de prospecção.

Paradoxalmente, e como o destacam as duas citações de Michel Serres


que abrem este parágrafo, esta forma elaborada de complexidade científica não
faz mais do que encontrar a banalidade quotidiana da paisagem que só o poeta
pode transcender diretamente. Passar pela paisagem é, para o pesquisador, um
percurso perigoso. Ele é, entretanto, necessário para fornecer esta dimensão
humana, social e cultural, em uma palavra, cidadã, freqüentemente ausente
das questões do meio ambiente e da transformação do território. Ele nos incita
a pensar no nosso futuro que é também aquele de nossos terroirs, de nossos
territórios, de nossa Terra. A questão da paisagem participa de uma nova forma
de humanismo e de cidadania no cruzamento “entre a unidade da ciência e
a pluralidade das culturas”. (Relatório do Collège de France ao Presidente
François Mitterrand).
O pesquisador deve saber eclipsar-se diante do poeta.

“Lição de escola primária,


evidência irrecusável da argila:
se foi dito que a terra e o homem
não continuam um sem o outro
pelo humilde caminho de ocre e de verdor
ele deixa uma única e mesma pegada
o pé de todos os caminhantes.”

Xavier Ravier. Jour de parole (inédito)


294

A PAISAGEM: UMA FERRAMENTA PARA A


TRANSFORMAÇÃO DOS
TERRITÓRIOS NO MÉDIO PIRINEUS
A paisagem: uma questão de sociedade

Porque se interessar pela paisagem hoje? Além da moda, onde se situa


a necessidade? O que representa a paisagem na gestão do meio ambiente e no
desenvolvimento dos territórios?
O Conselho Econômico e Social do Médio Pirineus, da mesma
forma que o Estado, as coletividades territoriais e numerosos agrupamentos
socioprofissionais ou associativos já o fazem, têm o dever de fazer essa pergunta.
É urgente centrar um debate que está se alargando, às vezes se dispersa, e cuja
retomada é indispensável, sobre bases concretas de transformação do território.
A paisagem, a palavra e a noção, vêm de longe! Com sua amálgama de
realidades materiais e de sensibilidades confusas, a paisagem teve seu tempo de
glória no coração do século XIX romântico. Em seguida, ela desapareceu quase
totalmente das preocupações da sociedade. Praticamente cassada da cultura, às
vezes negada pela arte, freqüentemente ignorada pelos construtores, ela se tornou
como que estranha aos inspiradores e práticos da transformação do território
durante toda a duração dos “Trinta Gloriosos”.
Esta palavra perdida, usada e desvalorizada, ambígua e irritante,
incompreensível, é hoje uma palavra reencontrada, como nova e fortemente
carregada de sentidos. A paisagem se tornou, em menos de uma década, uma
das questões centrais do nosso tempo, no coração das sensibilidades sociais e
das estratégias econômicas, em relação direta com as questões de identidade
cultural, de meio ambiente e de transformação dos territórios, em resumo, com
a qualidade da vida.
Ainda assim, precisamos nos entender sobre a significação que lhe
damos. Não se trata aqui de estabelecer uma definição unívoca e definitiva,
mas de propor uma simples definição-ferramenta que nos permita avançar em
nossa reflexão. Basta nos deixarmos levar, cada um a seu modo, pela evocação
de algumas paisagens familiares de nossa região: modesta colina do Gers com
milharais ondulantes sob o autan (vento do sul), circo em majestade de Gavarnie,
morno matagal da Découverte de Decazeville (Descoberta de Decazeville),
hangar novo em folha da Aérospatiale, fresco bocage dos Pireneus, planalto
descarnado de Causses, praça do Capitole com cores avivadas, loteamento banal
de residências.
A paisagem, uma ferramenta para a transformação dos territórios no 295
Médio Pirineus

A paisagem nasce toda vez que um olhar cruza um território

Este é um encontro entre um ser pensante, dotado de sensibilidade e


de memória, rico de sua cultura, com um objeto material: flor, campos arados,
fábrica ou betume. A representação da paisagem se elabora a partir de um
processo de vai-e-vem entre um sujeito e um objeto. É por essência, um produto
de interface unindo um território a uma sociedade. Esta definição amplificada,
mas orientada, permite evitar certo número de dificuldades: um paisagismo
estetizante que limitaria a paisagem à sua dimensão sensível e simbólica, um
cientificismo naturalista que reteria apenas seu funcionamento biológico e
físico-químico, um integrismo ecológico que veria nela apenas um patrimônio
a preservar.
Esta concepção da paisagem se situa no cruzamento das políticas de
meio ambiente e de desenvolvimento em uma estratégia global de transformação
do território.

A mutação da paisagem, reflexo da crise social

A paisagem aparece então não apenas como uma ferramenta nova e


preciosa para o diagnóstico do estado de um território, mas também como um
dado essencial de um projeto de desenvolvimento para o qual ela constitui um
potente fator identitário. Um conhecimento melhor das questões relativas à
paisagem por parte da coletividade regional só poderá melhorar a pertinência
das análises e a eficácia das intervenções desta última. Assim, precisamos nos
interrogar sobre a atualidade e as modalidades da questão paisagística.
A paisagem está no coração da atualidade porque, tal como a sociedade
e por causa dela, ela está em crise. As razões para isso são bem conhecidas.
Basta lembrar os fatos mais evidentes. A sociedade tradicional francesa, de base
agrícola e rural, se desintegrou sob os efeitos combinados da industrialização
e urbanização. O movimento lento e localizado até por volta dos anos 50
transtorna hoje, sob diferentes formas, a quase totalidade da paisagem francesa,
dos campos abandonados aos subúrbios cada vez menos humanos.
Ao mudar, a sociedade muda a natureza e suas relações com a ela. As
paisagens se tornam cada vez mais artificiais e frágeis. Alguns foram até ao ponto
de anunciar a “morte da paisagem” como outros creram distinguir o “fim dos
terroirs” e o “fim dos camponeses”, enquanto as paisagens urbanas se estendem
e se diversificam. Esta imobilidade, e freqüentemente, esta irreversibilidade,
destroem pontos de referência materiais e culturais. Elas embaralham as
identidades. Um mal-estar relativo à paisagem invade o corpo social, tanto na
cidade como no campo. Esta crise da paisagem é tanto cultural quanto material.
Ela é apenas a ponta de um iceberg. Ela deve ser tratada globalmente, isto é,
tanto como a expressão de uma realidade social, econômica, ecológica, quanto
à representação social, simbólica e identitária desta mesma realidade. Existe
uma dimensão paisagística inevitável para toda política de transformação do
território. É preciso tratá-la com urgência.
296 A paisagem, uma ferramenta para a transformação dos territórios no
Médio Pirineus

O que a dimensão paisagística traz para a transformação do território

A paisagem aparece como um sujeito novo, abordado pela primeira


vez por um conselho econômico e social no âmbito de uma reflexão sobre a
transformação do território.
A paisagem, tal como o operário da décima primeira hora, chegou
muito tarde (tarde demais?) ao campo da legislação e da gestão territoriais. Hoje,
ela promete muito, e dela se exige ainda mais. Esta função “torta de creme” só
pode desvalorizá-la. Ora, ela pode se tornar um instrumento simples e eficaz
de entendimento e de intervenção, com a condição que não lhe peça para ser
uma espécie de esconde-miséria da transformação do território.
Ela não substitui nada no campo do meio ambiente ou da
transformação do território. Nem por isso ela é um simples e tranqüilizador
“complemento”. Ela é uma mais-valia, com a condição de ser considerada uma
ferramenta entre outras.
- A análise da paisagem é primeiramente uma operação de
sensibilização, sob todos azimutes, aos problemas de meio ambiente e de
transformação de território igualmente.
Ela conduz naturalmente à conservação do território e ao
desenvolvimento durável. Ela permite uma estratégia de interface totalmente
essencial para superar certo número de oposições estéreis e de confrontações
inúteis. A diversidade reconhecida das abordagens de uma mesma paisagem,
a evocação de uma longa história comum com apelo às memórias coletivas, às
representações e às experiências vividas fazem dela um instrumento de abertura
e de diálogo.
Esta dimensão pedagógica ou didática da paisagem é fundamental. Ela
merece ser desenvolvida não apenas no interior do sistema educativo, em que
ela é pouco representada, exceto no ensino agrícola, mas também nas formações
profissionais dos agentes encarregados do meio ambiente e da transformação
do território que são geralmente oriundos de formações científicas ou técnicas
específicas.
- A análise da paisagem impõe uma globalização conceitual
e metodológica que, além das diferenças científicas, tecnocráticas e
administrativas, encontra muito simplesmente a complexidade e a banalidade
do quotidiano. A paisagem não é mais do que o lugar onde se colocam
concreta e humanamente as questões de meio ambiente e de transformação
do território. Este procedimento não é simples. Ele repousa sobre um jogo
sutil entre a cultura e a ciência, o subjetivo e o objetivo, o qualitativo e o
quantitativo. Ele se baseia no pensamento sistêmico e na modelização dos
sistemas complexos. É toda uma cultura e uma pesquisa científica que só se
pode adquirir na interdisciplinaridade, na interprofissionalidade, na prática do
terreno e, sobretudo, na abertura para os outros.
- A análise da paisagem não deve ser, pelo menos no que diz respeito
a nossos propósitos, um procedimento em si, desenvolvendo suas próprias
A paisagem, uma ferramenta para a transformação dos territórios no 297
Médio Pirineus

finalidades. O que nos importa aqui, em primeiro lugar, é a dimensão paisagística


das questões de transformação do território e do meio ambiente. A paisagem
é um todo que deve ser analisado por si mesmo e em si mesmo. A análise da
paisagem que nós preconizamos aqui é apenas a parte de um todo, a serviço do
desenvolvimento do território do qual ela constitui uma “entrada” ao alcance
de todos.
- A análise da paisagem então nunca é neutra. É preciso lhe evitar
certo número de obstáculos.
Ela deve se livrar primeiramente de uma visão saudosista que faria da
paisagem um simples patrimônio estático a ser preservado, isto é, uma espécie
de antídoto ao desenvolvimento.
Ela deve também ultrapassar a simples visão exterior ou contemplativa,
estetizante e, resumindo, turística. A paisagem é, primeiramente, um espaço
construído e vivido do interior. O turismo e suas diferentes ferramentas
promocionais desenvolveram muito a percepção lúdica e cultural que não se
basta e que não é o bastante para a paisagem. É preciso ampliar a noção de
paisagem... para o maior benefício das próprias atividades turísticas.
Ela deve, enfim, não mais se reduzir à consideração de alguns “grandes
sítios” e “locais excepcionais”. É bem verdade que estes são essenciais para
provocar uma política turística, mas eles não podem bastar ao desenvolvimento
de um território. As paisagens tratadas aqui são paisagens comuns do Midi-
Pyrénées: florestais, agrícolas, urbanas ou montanhesas, harmoniosas ou
degradadas. Elas são, sob sua aparente banalidade, a verdadeira riqueza regional.
São elas que é preciso administrar e fazer apreciar.
- A análise da paisagem deve abordar diretamente os aspectos
econômicos e jurídicos correspondentes.
A paisagem está ligada à exploração e ao uso, no meio rural como no
meio urbano. A paisagem então tem um custo. No espaço rural tem sempre sido
considerado até aqui que a paisagem, enquanto cenário, era gratuita, e se assim
podemos dizê-lo, pertencia a todo o mundo. A evolução da produção agrícola,
certa progressão dos campos abandonados e dos pousios, lembram que são, no
essencial, os agricultores que mantêm a paisagem rural... gratuitamente. Este
tempo acabou, não apenas porque há cada vez menos agricultores com cada vez
menos meios de manter vastos espaços, mas também porque eles podem, como
outros, reclamar uma justa retribuição por este trabalho de interesse geral que
edifica um patrimônio cultural comum. A paisagem, como o território que a
suporta, vai então ter um preço, pelo menos indireto, e como acontece com
tudo que é pago, o uso vai ser cada vez mais regulamentado, até proibido. É
todo um aspecto da relação histórica entre a sociedade e seu território que se
desmorona e coloca, em novos termos, a questão fundiária. Questão preocupante
que dominará amanhã a transformação das zonas rurais frágeis. Nas cidades, a
transformação da paisagem dos espaços públicos foi há muito tempo assumida
pela coletividade... com mais ou menos eficácia e sucesso!
Em certos casos (campos abandonados agrícolas ou industriais,
periferias urbanas, instalação de novas estruturas, etc.), paisagens são ameaçadas
298 A paisagem, uma ferramenta para a transformação dos territórios no
Médio Pirineus

de desaparecimento ou de transformação às vezes brutal. Estas evoluções devem


ser apreciadas no tempo longo da história das paisagens e não certamente em
casos isolados. A conservação se coloca sob formas diferentes, da transformação
em santuário pura e simples à manutenção artificial por operações de jardinagem
paisagística. Mas estas intervenções são caras e não poderão ser generalizadas
se forem mantidas fora dos circuitos econômicos normais.
A “normalidade paisagística” aqui é a gestão da paisagem do próprio
interior do sistema de produção como parece esboçá-lo, ainda bem timidamente,
a diretiva européia dita “agroambiental”. A gestão paisagística dos campos
abandonados industriais e urbanos levanta questões ainda mal resolvidas por
conta da brutalidade das mutações e de graves implicações sociais, ecológicas
e financeiras.
- A análise paisagística, por sua própria natureza, enfim e sobretudo,
traz dois elementos capitais e totalmente inovadores à transformação do
território:
Se a análise paisagística é, por sua própria essência, de natureza
profundamente patrimonial, ela deve ser também prospectiva. Uma paisagem
vive no longo prazo, e sua consideração obriga a ultrapassar a necessidade
do curto prazo. A política de fusão agrícola, de plantação florestal do Fonds
Forestier National (Fundo Florestal Nacional), de construção de blocos
de HLM, de loteamentos de casas e de sítios industriais durante os “Trinta
Gloriosos” teria tido muito a ganhar se tivessem refletido, nem que seja um
pouquinho, em termos de paisagem!
Enfim, a análise paisagística, que faz constantemente apelo à
sensibilidade, à qualidade da vida, à identidade, ao território, parece ser uma
das ferramentas privilegiadas de reflexão e de desenvolvimento em escala
local (o que, aliás, já é o caso em muitas bacias de vida ou de regiões do Midi-
Pyrénées). A análise paisagística faz então parte deste aspecto “subsidiário
ativo” que pode animar uma reflexão renovada sobre o desenvolvimento
local e regional. A consideração da paisagem participa da dinâmica de um
procedimento cidadão.

Por uma intercomunalidade paisagística. A política dos 3 P: qualidade das


Paisagens, qualidade das Regiões (pays), qualidade dos Produtos

Se a Região deve incitar e coordenar, por exemplo, no âmbito do


contrato de Plano com o Estado, a realização efetiva da política paisagística só
poderá se realizar em um nível intermediário, aquele da “região” ou da bacia
de emprego. É de fato nesta escala que se pode elaborar um projeto global
de território que se apóia na participação e mobilização dos habitantes, dos
socioprofissionais, dos responsáveis associativos, dos eleitos.
A bacia de vida aparece igualmente como o nível pertinente da
cooperação intercomunal, cujas novas competências compreendem justamente
a transformação do espaço. O projeto de desenvolvimento local de um
A paisagem, uma ferramenta para a transformação dos territórios no 299
Médio Pirineus

agrupamento de comunas consiste em valorizar as riquezas naturais e culturais


de cada território, portanto, da paisagem, afim notadamente de criar novas
atividades e serviços que constituem uma reserva potencial de empresas e de
empregos.
Aliás, um dos numerosos problemas da cooperação intercomunal
reside na dificuldade de fazer emergir uma identidade territorial. A consideração
da paisagem na elaboração do projeto de território pode não apenas constituir
uma abordagem metodológica, mas ainda pedagógica, fabricando identidade
para a região. Com a possibilidade que lhes oferece a lei de se dotar de um
esquema diretor para a transformação do espaço, os agrupamentos de comunas
(Communautés et Districts) constituem o nível operacional de consideração
da dimensão paisagística.
A idéia de associar a qualidade de uma paisagem à qualidade de um
região e à qualidade de um produto agrícola, artesanal, industrial ou cultural,
não é nova, mas ela merece ser sistematizada e tornar-se um dos fundamentos
do desenvolvimento econômico e da promoção das regiões e das bacias de vida
do Midi-Pyrénées (exemplo dos vinhedos de Cahors e de Gaillac, de Aubrac
e da faca de Laguiole, etc.).

A indispensável invenção das novas paisagens

Todos os dias são elaboradas, sob nossos olhos, novas paisagens:


loteamentos de residências, grandes prédios de subúrbio, paisagens lineares das
novas infra-estruturas de comunicação, polis tecnológica, novas zonas industriais,
etc. Quando é solicitado uma transformação paisagística geralmente é tarde
demais para intervir de outra forma que não seja a cerca-viva esconde- miséria
ou a estúpida parede anti-ruído.
É indispensável imaginar, como o fizeram os arquitetos para o conjunto
construído e em outras épocas, novas paisagens para amanhã (concurso
prospectivo). É o que começa a ocorrer para as novas paisagens lineares que se
diferenciam vividamente da malha paisagística tradicional: traçados de auto-
estradas, linhas ferroviárias para o TGV, linhas de transporte de energia elétrica.
As preocupações paisagísticas não estão mais ausentes em tais realizações (auto-
estrada Béziers-Clermont-Ferrand, nova estrada entre Toulouse e Auch).
A paisagem é o reflexo e a marca impressa da sociedade dos homens
na natureza. Ele faz parte de nós mesmos. Como um espelho, ela nos reflete, Ao
mesmo tempo, ferramenta e cenário. Como nós e conosco, ela evolui, móvel
e frágil. Nem estática, nem condenada. Precisamos fazê-la viver, pois nenhum
homem, nenhuma sociedade, pode viver sem território, sem identidade, sem
paisagem.

“Não se quebra um espelho, senão destruímos o rosto.”


Henri Bosco: Un oubli moins profond. Gallimard (NFR)
300

COMPOR UMA PAISAGEM É RECOMPOR UMA


GEOGRAFIA

Os professores de geografia que vocês são se questionam sobre esta


súbita irrupção da paisagem nos programas escolares e universitários, senão
no fundo, pelo menos em numerosos cabeçalhos de capítulo. Por que, como e
quando falar disto? Eu não tenho resposta pedagógica pronta e, sobretudo, não
quero ter... uma ou várias, ao sabor dos diferentes casos de figura encontrados.
Este trabalho cabe a vocês, a cada um de vocês, aí onde vocês estão: secundário,
primário, universidade, IUFM etc.
O retorno à paisagem não é uma evidência apesar de seu ar familiar.
Devemos nos interrogar aqui sobre este entusiasmo remetendo-o ao movimento
geral, cultural e científico, que anima a sociedade e a questiona sobre suas
relações com os territórios. Retorno às velhas luas ou então desbravamento de
um novo campo de conhecimento que envolveria, mas sob qual forma e em
que medida, a disciplina geográfica?

A paisagem com múltiplas facetas tornou-se um problema


central da sociedade

A geografia em desentendimento com sua paisagem

A paisagem e a geografia são consubstanciais e participam de uma


mesma cultura clássica. Na verdade, elas não se uniram sempre e nunca
chegaram a elaborar construções científicas coerentes. É o caso destas brilhantes
introduções paisagísticas que enfeitam as grandes teses clássicas do século
XIX sem realmente participar da demonstração científica. Durante os “Trinta
Gloriosos”, a geografia, por um cuidado de cientificidade, dedicou-se à aridez
economicista e materialista. A ruptura entre a geografia física e a geografia
humana acrescentada ao anulamento da geografia regional, praticamente
eliminaram a paisagem não apenas do método, mas também do pensamento
geográfico. É verdade que a análise paisagística sobreviveu mais sob formas
subalternas e, mais freqüentemente, arcaicas. A ruptura epistemológica está
consumada.
Compor uma paisagem é recompor uma geografia 301

A nova paisagem chegou

Isto significa que a paisagem tal como ela é apreendida hoje, mesmo
se lhe reconhecemos raízes eruditas dentre as quais algumas, e não as menos
importantes, são de origem geográfica, não está na mira dos geógrafos clássicos.
A paisagem contemporânea, de raízes múltiplas e contraditórias, participa do
forte movimento ecológico-ambiental que agita as economias tanto quanto as
sensibilidades. Ela faz parte da ideologia dominante e é fortemente sustentada
pela profusão das imagens e onipresença das mídias visuais. Esta paisagem não
pertence a ninguém e todos a reivindicam com razão: paisagistas, arquitetos,
artistas, historiadores, agrônomos, geógrafos. Sem esquecer sua novíssima
dimensão jurídica: desde 1992, a paisagem entrou na lei francesa, aplicável a
todos, no menor POS ou permissão para construir.

A dimensão didática da paisagem

A despeito de uma herança que ninguém contesta, é preciso então


admitir que a paisagem se impõe aos geógrafos do exterior, como um corpo
quase estranho e sobretudo como um novo paradigma a construir. Tal é a
origem das dificuldades encontradas pelos professores geógrafos aos quais se
pede que utilizem conhecimentos que eles nunca adquiriram, que pertencem
a outros campos disciplinares, e que os próprios pesquisadores geógrafos estão
longe de dominar. Todavia, estes professores não permaneceram inativos. Eles
elaboraram didáticas paisagísticas que buscam adaptar-se às diversas situações
pedagógicas que prefiguram talvez novas abordagens geográficas das sociedades e
dos territórios. Estas práticas que se generalizam nos obrigam a nos fazermos uma
pergunta de fundo: a análise paisagística, que tem dificuldade em se organizar
no plano científico, não seria antes uma didática que teria por vocação tabular
dados de pesquisas disciplinares de diversas origens? Esta didática paisagística,
ainda pouco presente no ensino inicial, já está bem desenvolvida na formação
profissional que diz respeito ao meio ambiente e à transformação do território
(cf método paisagístico do CEMAGREF).

Elementos para construir uma análise paisagística

Exaltar a polissemia

No coração da paisagem, há a sua polissemia. Esta é a sua especificidade


e sua riqueza. Nós a colocaremos no centro da problemática paisagística nos
esforçando por analisá-la sem deflorá-la. Isto equivale a abandonar disciplinas
constituídas e outros caminhos mais ou menos balizados sem por isso ignorar
suas contribuições para a análise da paisagem. A paisagem deve ser recolocada
no coração da sociedade, lá onde a cultura e a sensibilidade vêm interferir com
as questões socioeconômicas e ecológicas, muito especialmente aquelas que
relevam da gestão do meio ambiente e da transformação dos territórios.
302 Compor uma paisagem é recompor uma geografia

“O ideal e o material” (Maurice Godelier)

Nesta polissemia, há o que pertence ao sociocultural, e o que pertence


à materialidade do meio ambiente: corpos naturais, artificiais ou artificializados.
Desejamos associar o mais estreitamente possível estes dois aspectos da realidade
paisagística. A paisagem pertence então ao mesmo tempo ao ideal e ao material.
Ela é, ao mesmo tempo, objeto e sujeito. As representações, individuais ou
coletivas, interpretam e constroem uma paisagem a partir da materialidade dos
lugares representados. A árvore que se ergue em uma paisagem é, ao mesmo
tempo, de essência simbólica e metabólica. Dito de outra forma, ela tem uma
vida própria que modifica constantemente seu lugar na paisagem. Aqui, a
paisagem não se reduz a um feixe de representações. Ela funciona como um
vai-e-vem entre um lugar e uma imagem. Reconhecer uma dimensão material à
paisagem, é territorializá-la. Isto, em suma, é reconhecer sua geograficidade.
Propomos, então, balizar a paisagem a partir de duas abordagens
“cruzadas” e complementares: “uma paisagem nasce quando um olhar cruza
um território..., mas um território só se torna uma paisagem sob o cruzamento
dos olhares”.

A “paisagem panóptica” (Michel Serres)

Não devemos nos enganar sobre o século nem sobre a paisagem.


A concepção elitista, estetizante, estática, contemplativa e panorâmica da
paisagem que predominou até o século XX é absolutamente respeitável, mas
ela não corresponde mais ao que a paisagem contemporânea se tornou. Nossa
sociedade está em plena crise de paisagem, ao mesmo tempo psicológica,
ecológica e econômica. As paisagens se transformam e algumas desaparecem.
Diante desta mobilidade, as estratégias patrimoniais e prospectivas nunca
foram tão solidárias. Além disso, o mundo está invadido de imagens e
nenhuma paisagem nos permanece verdadeiramente desconhecida. Em razão
da mobilidade dos homens e das máquinas, os horizontes se transformam
todo o tempo. A paisagem se tornou móvel e seu desenrolar sempre acelerado
consegue confundir nossas próprias sensações de tal forma que às vezes somos
obrigados a exigir uma pausa. Esta visão cinética, multidimensional é também
multidirecional e globalizante. Estamos entrando na paisagem “panóptica” de
Michel Serres. Ela pertence à cultura contemporânea. Ela já é o universo dos
jovens que estão em formação.
Não é fácil entrar em tal paisagem e fazer sua análise. Com toda
evidência, ela não pertence à categoria dos universais e, pelo menos ainda não,
à categoria dos conceitos. Estritamente uma noção, ela é datada, localizada,
finalizada, ou seja, relativizada. Produto cultural por excelência, ela deve
também provar seu valor operacional imediato.
Compor uma paisagem é recompor uma geografia 303

A necessidade de constru ir um sistema de análise da


paisagem

As pesquisas sobre a paisagem flutuam hoje no meio de grandes


debates teológicos sem interesse prático e de uma multiplicidade de receitas
sem princípio de método e de capacidade de reprodução. Aliás, os métodos
mais ou menos construídos são na maioria das vezes tão circunstanciais e tão
limitados que seus autores hesitam em apresentá-los enquanto tais. Este é o
nosso caso, só que após vários anos de reflexão e de experimentação. O lugar
e o tempo que nos são atribuídos não permitem ir além de uma representação
das principais etapas de um percurso metodológico que ainda se procura.

Da monografia ao sistema

Quando o estudo de uma paisagem concreta é abordado - floresta,


bairro de cidade, “região”, podemos apenas destacar seu caráter único sempre
bem marcado nas representações socioculturais (cf. a visita do vinhedo
das Côtes du Rhône). Descrever uma paisagem é, em um primeiro tempo,
individualizá-la e erigir sua monografia. Esta monografia, contrariamente às
monografias geográficas clássicas, deve ser construída. Todavia, o trabalho
de formatação metodológica só pode ser eficaz se ele se acompanha de outros
trabalhos idênticos sobre paisagens similares que permitam a elaboração de
um sistema de comparação. É preciso respeitar dois imperativos: de um lado,
valorizar tudo o que faz a exclusividade da paisagem considerada e que garante
seu valor identitário; por outro lado, lhe aplicar uma grade de leitura comum,
espécie de passarela metodológica para um tratamento sistemático e sistêmico,
única maneira de garantir a modelização, a generalização e a capacidade de
reprodução da análise.

A grade de leitura pré-paisagística

Ela tem por função reunir e classificar a informação recolhida ao


longo das pesquisas. Ela pode se organizar em três fichários:
• um fichário “atores da paisagem”, individuais ou coletivos, que
intervêm diferentemente na paisagem, do simples passante ao construtor;
• um fichário “locais” que corresponde à análise socioeconômica e
geossistêmica do território, com uma atenção particular concedida aos diferentes
zoneamentos;
• um fichário “tempo” que, por um lado, situa a paisagem no tempo
mais longo da história; que, por outro lado, inventoria os ritmos sazonais,
bioecológicos (fenológicos) ou socioculturais (calendários) que periodizam as
representações das paisagens.
304 Compor uma paisagem é recompor uma geografia

As representações paisagísticas: sistema dominante e sistemas dominados

A cada paisagem corresponde um sistema de representação que


considera a natureza dos locais, os projetos dos atores e o desenrolar dos tempos
cíclico e linear. Todo território se inscreve primeiramente em um sistema
de representação dominante, consensual e geralmente muito mediatizado (a
montanha do Ariège dos esportes de inverno, o campo normando). Ele extrai
dali sua identidade, ele ali encontra reconhecimento, no interior como no
exterior.
Atrás desta homogeneidade e convivialidade de fachada, existem
subsistemas dominados que exprimem as representações paisagísticas de
indivíduos ou de grupos sociais particulares de contorno geralmente tão
imprecisos quanto flutuantes. Por exemplo, na paisagem dominante nos Pirineus
do Ariège podemos distinguir o subsistema de inverno dos esquiadores, aquele
dos caminhantes do verão, aquele dos jovens agricultores, dos eleitos, dos
madeireiros, etc. Neste nível de análise, a distinção entre os atores e os projetos
é essencial. Assim, é possível perceber as contradições que aparecem entre as
representações paisagísticas de um mesmo indivíduo ou de um mesmo grupo,
portadores de projetos paisagísticos opostos (um caçador). É preciso também
destacar a existência de “sub-subsistemas” de representações paisagísticas de
uma grande pobreza que correspondem a ambientes de vida muito degradados
(subúrbios). Existem grupos que vivem, isolados, em uma verdadeira subcultura
paisagística.

O sistema paisagístico: questões e conflitos

Uma paisagem, mesmo a mais banal, nunca é unívoca. O sistema de


representação dominante, mais ou menos afirmado, lhe garante sua coerência e sua
representatividade. Ele se inscreve no tempo. Ele garante uma indispensável pátina
patrimonial. Sob esta fachada paisagística, mais ou menos estabelecida, se agitam outros
sistemas de representação, mais ou menos superpostos, mais ou menos agitados (as
representações paisagísticas dos ecologistas de Somport). A paisagem, através de nossas
representações, é o jogo e a questão de forças variadas. Assim considerada, a paisagem
se situa no coração, ou na margem, de múltiplos conflitos sociais e é freqüentemente
por ocasião destes conflitos que emergem novas representações paisagísticas (espaços
verdes).
O método é pesado e rudimentar. Ele é apenas uma etapa. A paisagem
começa apenas e emergir nos campos da pesquisa e da formação. A geografia tem
um lugar a ocupar. Não há paisagem sem geografia. Não há tampouco geografia sem
paisagem. A análise paisagística pode apenas modificar o comportamento metodológico
dos geógrafos, transformando em profundidade sua representação do mundo. Desde o
início, a consideração da paisagem permite superar a separação entre geografia naturalista
e geografia social. Ela reconcilia o material e o ideal, o quantitativo e o qualitativo, ela
ultrapassa o rompimento entre natureza e cultura, ela combina o individual e o coletivo,
o ecológico e o geográfico, a monografia e o sistema. Não é uma revolução, mas é um
passo adiante. Ao compor uma paisagem, recompomos uma geografia.
305

QUARTA PARTE

O SISTEMA GTP
(Geossistema, Território, Paisagem)
O RETORNO DO GEOGRÁFICO?

Após uma década (1987-1998) consagrada essencialmente à gestão


universitária (Presidente da Universidade) e a diversas contribuições no domínio
das políticas territoriais (animador da prospectiva para DATAR, Conselheiro e
Expert do Conselho Econômico e Social do Médio-Pirineus), é o retorno sobre
o terreno da pesquisa e da motivação científica interdisciplinares: Presidente
do Comitê de Programa do PIREVS do CNRS (Programa Interdisciplinar de
Pesquisa sobre o Meio Ambiente, Vida e Sociedade); Presidente do Conselho
Científico do Programa “Paysage et Évaluation des Politiques Publiques” do
MATE (Ministério de Aménagement do Território e do Meio Ambiente).
Neste intervalo de tempo, o panorama da pesquisa evoluiu muito,
em particular sob a impulsão dos grandes programas interdisciplinares. Sem
grandes perturbações. A agitação ecológica e sistêmica dos anos 1960-1970 foi
atenuada. A pesquisa ambiental avança sobre seu erro:
- a interdisciplinaridade entre as ciências da natureza e as ciências
da sociedade continua a marcar o passo;
- um certo retorno às disciplinas que foram testemunhas de um
enfraquecimento das interdisciplinares, assim como de uma necessária
especialização;
- a multiplicação desordenada dos estudos paisagísticos, geralmente sob
a pressão das coletividades territoriais, não favorece sua solidez científica;
- a geografia continua sua transição socioeconômica com, em paralelo,
notáveis aberturas em geomorfologia, hidrologia, climatologia, em fase com o
meio ambiente e a organização/gestão dos territórios;
- as brilhantes proposições e análises críticas de filósofos ou de
epistemológicos (Pascal Acot, Dominique Lecourt, Jean-Louis Le Moigne,
Edgar Morin, Michel Serres, etc.), em princípio bem acolhidas, se choca, na
prática, com os ferrolhos conceituais e metodológicos nos quais se entrincheiram
os pesquisadores e, mais ainda, as instituições disciplinares.
Estas dificuldades maiores não serão superadas enquanto a separação
entre teoria e prática, epistemologia e método, método e tecnologia não sejam
ultrapassadas por tentativas integradas e interativas de tipo paradigmático.
306

Proposto desde 1990, o sistema GTP, que associa o geossistema-fonte ao


território-recurso e à paisagem-identidade não tem outra razão de ser. É uma
tentativa, de ordem geográfica, para matizar, ao mesmo tempo, a globalidade,
a diversidade e a interatividade de todo sistema ambiental. Ele não é um fim
em si mesmo. É apenas uma ferramenta. É apenas uma etapa. O sistema GTP
não substitui nada. Sua função essencial é de relançar a pesquisa ambiental
sobre bases multidimensionais, no tempo e no espaço, quer seja no quadro de
disciplinas ou mesmo em formas de construção da interdisciplinaridade. Sua
vocação primeira é favorecer uma reflexão epistemológica e conceitual e, na
medida do possível, desencadear proposições metodológicas concretas.
As Jornadas do PIREVS-CNRS (Programa Interdisciplinar de
Pesquisa sobre Meio Ambiente, Vida e Sociedade), organizado em Toulouse
pelo Géode-UMR CNRS, consagradas aos “Tempos do meio ambiente” são
uma primeira ilustração. Elas colocam a questão da temporalidade, da duração
e dos ritmos (das crises) que escapam freqüentemente às análises disciplinares.
Elas deveriam permitir ultrapassar as simples referências cronológicas, como as
invocações a uma indefinida e muito imediática “durabilidade”.
Encerrando esta última parte, “L´oeil du gypaète”, introdução de
uma obra para o grande público, não é senão um jogo óptico e de espelho que
reenvia os geógrafos que nós somos para nosso trabalho de agrupar os territórios
e de entender as paisagens.

“Enraizar o meio ambiente no território e na história longa das
sociedades”, colocado desde a introdução, jamais foi perdida de vista, mesmo se
permaneça sempre “no horizonte distante desta obra”. Trata-se de um retorno do
geográfico? Para os geógrafos responderem e agirem em conseqüência. Qualquer
que seja sua contribuição, eles serão cada vez menos sós. O geográfico é, mais
que nunca, o domínio de todos. Como tudo isto que mexe o meio ambiente
e mais precisamente a antropização dos territórios. Esta nebulosa agitada
que a gente descobre todos os dias novas facetas desliza sempre mais para os
problemas da sociedade, mas ela resta consubstancialmente ligada à natureza
e, em particular, ao “natural dos terroirs” e dos territórios, pois há uma forma
essencial do geográfico.
As pesquisas disciplinares e interdisciplinares multiplicam os novos
pontos de vista e itinerários. Sem deixar as vias reais. Restam os caminhos de
travessia. Estes são raramente reconhecidos e suas saídas são incertas. Longa
viagem.

“Se tu andas, tudo anda ao teu lado e


tua estrada é seguida por rebanhos de colinas.”

Jean Giorno
307

O GEOSSISTEMA: UM ESPAÇO-TEMPO
ANTROPIZADO
Esboço de uma temporalidade ambiental

Claude e George BERTRAND


O meio ambiente no paradoxo do tempo

Sempre invocado, o tempo é por toda parte mensurável, mas


inapreensível. Este paradoxo se enraíza no mais profundo das representações
culturais e das interrogações filosóficas. A pesquisa científica não escapa a isto.
Em um meio ambiente “forrado de processos” (J. L. Le Moigne) e ameaçado
em sua “durabilidade”, o tempo certamente se tornou a única e verdadeira
“questão-viva”. Como se inscrevem a floresta e sua regeneração, o campo e
sua colheita, o rio e seus poluentes, a cidade e seus habitantes, o planeta e seu
equilíbrio, no tempo que passa e no tempo que faz? Unívocas ou equívocas,
as respostas não faltam. O meio ambiente permanece fechado em sistemas de
referência disciplinares ou setoriais pouco ou mal adaptados. Globalizante e
neutro, o tempo transcende estas separações. Ele inscreve todos os elementos
em um mesmo e irreversível movimento. Menos do que a pesquisa de um
utópico “tempo comum”, trata-se de desembaralhar a combinatória dos tempos
e de submeter o meio ambiente à prova de uma temporalidade interdisciplinar.
Não faltam deficiências.
-A cronologia mascara a temporalidade. O tempo como processo
mobilizador de energia, de matéria e de informação e a temporalidade, “caráter
do que está no tempo”, estão subordinados à referência cronológica. Esta última
representa mais o papel de ordem do que de inteligibilidade. Tanto mais porque
ela é freqüentemente instrumentada do exterior do fenômeno estudado. O
“tempo referência” prevalece sobre o “tempo processo”. Além disso, fora da
climatologia, verifica-se uma tendência excessiva a separar o estudo do tempo
que passa do estudo do tempo que faz, enquanto que o meio ambiente, na sua
materialidade, nos convida a generalizar esta aproximação.
-Os tempos múltiplos do meio ambiente confundem o meio ambiente
temporal. É evidente que a evolução geral do meio ambiente só pode ser
abordada a partir do cruzamento de medidas de tempo especiais. Esta navegação
minuciosa, baseada em raciocínios analógicos, é tão limitadora quanto redutora.
Uma vez rompida, a combinação ambiental só é reconstituída, no melhor dos
casos, a posteriori, e sem temporalidade específica.
308 O geossistema: um espaço-tempo antropizado

-O espaço tem primazia sobre o tempo e a dupla espaço-tempo é


geralmente desequilibrada. O meio ambiente é geralmente percebido como uma
combinação espacial. A questão do tempo é subordinada e serve essencialmente
para explicitar os fenômenos espaciais.
-O tempo linear é separado do tempo circular. O escoamento do
tempo, histórico e cronológico, é uma preocupação constante e relativamente
dominada. O mesmo não acontece em relação aos ritmos cíclicos, quer eles
sejam fenológicos ou calendários. Não existem mais estações!
-o “comportamento” do sistema ambiental oscila, não sem
ambigüidade, entre a dinâmica interna que assegura sua estabilidade e a
evolução que determina sua mudança, ou seja, a passagem para um outro
sistema. Grande debate teórico que, para além da confusão semântica, interpela
o conjunto do método sistêmico e obscurece a análise temporal.
-Enfim, se as temporalidades e as periodizações consideradas como
“naturais” e aquelas que são qualificadas de “sociais” são freqüentemente
confrontadas, e até mesmo postas em interconexão, elas são raramente
hibridizadas em um ritmo comum. O meio ambiente evolui entre duas
temporalidades paralelas com apenas algumas pontes lançadas ao sabor dos
temas abordados.

O postulado da antropização do tempo

-O passo do tempo no passo dos homens. Desde o neolítico a


antropização tornou-se, ao crescer, um dos processos dominantes, até mesmo o
motor principal das mudanças ocorridas no meio ambiente, na própria origem
do questionamento contemporâneo sobre o “desenvolvimento durável”. Esta
artificialização é particularmente evidente na periodização.
-Tempo antropizado, tempo hibridizado. O postulado é, então, que o
escoamento do “tempo natural”, quer dizer, aquele dos funcionamentos físico-
químicos e biológicos, é perturbado em suas velocidades, suas durações, seus
ritmos, pelo conjunto das atividades humanas. O tempo global de uma mata
alta é a combinação indissociável entre o tempo da silvogênese e o tempo
da “revolução” da silvicultura. Este tempo hibridizado é específico do meio
ambiente global.

O geossistema: uma referência espaço-temporal

-Um conceito hibridizado. O meio ambiente é uma noção vasta


demais e muito vaga para se prestar diretamente a uma análise frontal e formal
do tempo. O geossistema nos fornece um verbete, modesto mas operatório. De
inspiração geográfica, ele se define como uma combinação espacializada onde
interagem elementos abióticos (rocha, ar, água), elementos bióticos (animais,
vegetais, solos) e elementos antrópicos (impacto das sociedades sobre seu
O geossistema: um espaço-tempo antropizado 309

meio ambiente material). De inspiração sistêmica, ele se diferencia, a priori,


do ecossistema:
- conceito espacial, ele se materializa sobre o terreno por um mosaico
de unidades homogêneas em suas escalas respectivas (geótopo, geofácies,
geocomplexo etc.) suscetíveis de serem cartografados;
- conceito “naturalista”, ele não privilegia os fatos biológicos e leva
em conta o conjunto dos componentes do meio geográfico, aí incluídas as
formas do relevo e a geomorfogênese;
- conceito antrópico, ele integra os impactos das atividades humanas,
sem que se possa por isso considerá-lo como um conceito social.
- A pesquisa de uma unidade temporal de base: o conceito de estado
do geossistema. É conhecida a dificuldade teórica em definir o estado de um
sistema (o qual representa a manutenção de uma estabilidade funcional entre
duas mudanças). Quando começa a evolução que acarreta a mudança de
estado, até de sistema? Geralmente, a pergunta é contornada, seja definindo
um “estado médio” ou “intermediário”, ou seja, retendo apenas certas situações
consideradas como características.
Ao longo dos anos 1960-1980, geógrafos soviéticos, especialmente
N. Beroutchachvili, acompanharam no local, graças a um sistema carregado
de medidas físicas, o comportamento plurianual de geossistemas caucasianos
(estação experimental de Martkopi, Geórgia). Tentativa excepcional e
dificilmente renovável. Entretanto, seu alcance heurístico é considerável com
a condição de lhe acrescentar dois complementos: a consideração direta da
antropização do geossistema e a inserção de cada estado e seqüência de estado
em uma perspectiva histórica ampla.

O multitemporal: os “tempos reais” do geossistema

O método consiste em superar a tradicional indigência da análise


temporal (tempo “longo” e tempo “curto” da história, ecossistema “jovem”,
“maduro”, senescente etc.) baseando-se sobre dois princípios: definir um “tempo
real”, específico do geossistema e de seus diferentes estados, elaborar grades de
leitura de múltiplas escalas.

Uma grade de referência multitemporal dos estados do geossistema

Ao longo de um levantamento de terreno ou em laboratório,


decodificando um pixel ou desenhando os contornos de uma unidade
cartográfica, só se pode apreender o significado do estado de um geótopo, de
um geofácies ou de um geocomplexo se é dada a possibilidade de inseri-lo em
uma série evolutiva tão precisa e longa quanto possível. A grade proposta
permanece teórica e simplesmente indicativa. Ela deve ser adaptada em função
do meio geográfico e da problemática considerados.
310 O geossistema: um espaço-tempo antropizado

- O estado instantâneo (E1), aquele da observação direta e imediata


no local, assumiu uma importância primordial com a imagem por satélite e a
interpretação dos pixels.
- O estado quotidiano (E2), aquele associado ao ritmo nictemeral,
representa um papel essencial em certos geossistemas (tropicais) e em certas
estações (ciclo diurno gelo-degelo etc.).
- O “estado meteorológico” (E3) é, de longe, o mais interessante para
o método. Ele define o estado de um geossistema durante a duração em função
de um “tipo de tempo” no sentido meteorológico desta expressão. A duração de
um “tipo de tempo” da zona temperada pode variar de algumas horas a alguns
dias. Como é destacado nos trabalhos de N. Beroutchachvili e de seus colegas,
é o lugar e o papel na sucessão de estados, sazonais e anuais, que permite definir
o comportamento de um geossistema. A análise da sucessão dos estados permite
apreciar a capacidade de memória de um geossistema (ex: estocagem de água
e tempo de secagem da vertente).
- O estado sazonal (E4) é mais conhecido, mas negligenciado. Ele
marca profundamente o comportamento anual do geossistema assim como
a representação paisagística correspondente (“verão indiano”). Ele associa
os ritmos fenológicos naturais (ex: ciclo vegetativo) aos ritmos calendários
(trabalhos agrícolas, freqüentação turística).
- O estado anual (E5) permite levantar um primeiro balanço “cíclico”
da temporalidade do geossistema. Ele abre sobre a análise das oscilações entre
e interanuais: decenais (E6), centenárias (E7), etc. Ao permitir inserir os
“imprevistos” naturais e as “catástrofes” sociais em seu ponto exato no ritmo
do geossistema, ele evita cair no catastrofismo reinante.

Uma grade de periodização histórica do geossistema

Nós apenas recordaremos aqui, adaptando-a à tipologia sumária proposta na


introdução ecológica da História da França rural. (Le Seuil, Paris, 1975). O paleomeio
ambiente designa tudo o que é anterior ao impacto das atividades humanas, ou seja,
para a Europa Ocidental, anterior à revolução agrícola do neolítico. A partir desse
ponto, a história do meio ambiente resulta da combinação entre oscilações “naturais”
(climáticas, biogeográficas, geomorfogênicas) e uma periodização socioeconômica
cada vez mais forte, mais extensa e acelerada, com algumas fases de remissão. Por
exemplo, distinguiremos o “tempo das clareiras” (do neolítico médio ao século VIII);
o “tempo do espaço cheio” (dos séculos X ao XIII), etc... até o “tempo pós-industrial
do agromeio ambiente” (século XXI). A cada um desses períodos corresponde um
mosaico de geossistemas com fortes efeitos de histerese e de inércia (geossistemas
palimpsestos) devidos ao afeito cumulativo da sucessão dos estados.
A superposição dessas duas grades não tem nada de automático. Mas sua
consideração concomitante permite situar cada unidade geossistêmica, com suas
características espaciais (formas, volumes, localização, extensão, etc.) em uma dupla
perspectiva dinâmica (sucessão dos estados) e evolutiva (histórica). Um primeiro
esboço de análise espaço-temporal torna-se então possível.
O geossistema: um espaço-tempo antropizado 311

O mosaico espaço-temporal do geossistema

As pesquisas escalonadas sobre mais de três decênios (1962-1996)


nas montanhas Cantábricas centrais (Noroeste da Espanha), permitem analisar
certos aspectos do funcionamento dos geossistemas. Erguido entre o golfo da
Gasconha e os altos planaltos da meseta de Castilha, este trecho da cordilheira
litoral apresenta paisagens compartimentadas de uma grande diversidade.
Geocomplexos e geofácies (escalas cartográficas: 1/50.000 e 1/10.000) próximos,
até mesmo contíguos, podem evoluir a velocidades e em sentidos diferentes com
“durabilidades” incomparáveis. A antropização está quase sempre na origem
do desencadeamento de sua evolução.
Os “brañas”: geocomplexos multiseculares uniformes e estáveis. Vastas
landes1 acidófilas, em algumas partes naturais, em Éricinées (Erica, Daboecia) e
Callune, provocadas pelo fogo e pela criação de animais pelo menos desde a Alta
Idade Média. Biomassa pobre, podzols raqueriformes. Nenhuma frente pioneira
florestal originada da plantação de faias após dois decênios de subcriação.
As “Sierras planas” (litoral das Astúrias): geocomplexo em vias
de mutação e degradação. Terrenos de percurso usados desde o neolítico e
estáveis pelo menos durante os dois últimos séculos (bacias turfosas, turfeiras
de inclinação, terraços de lande baixa oceânica). Por volta do ano de 1970,
as drenagens e os reflorestamentos desorganizaram a circulação hipodérmica
das águas e a pedogênese. Desaparecimento de “estados” e uniformização
fenológica e florística. Geofácies díspares e empobrecidos, paisagem banalizada.
Irreversibilidade, pelo menos em escala secular, exceto para os geofácies de
vertente.
A bacia de Liébana: geocomplexos em emergência. As ricas
propriedades medievais (videira e policultura) retornadas ao estado de mato
ao longo do século XIX (garrigues e maquis2 densos em Yeusaies e Suberaies)
se abrem e se diversificam a partir de 1965-1970 (arboricultura, pradarias
irrigadas, viticultura, estradas). Criação de novas regiões (terroirs) ameaçadas
pela urbanização turística e processos erosivos. Reforço de uma paisagem
mediterrânea caracterizada por “estados meteorológicos” específicos ligados
a dois foehns (vento seco e quente) alternados que fazem da Liébana uma
ilha seca, luminosa e colorida, rodeada pelas vertentes brumosas dos faiais
atlântico-montanhêses.

Uma mudança de escala da análise no tempo e no espaço produz um forte e


indispensável efeito de zoom

O método se inspira, após adaptação, da teoria da biorhexistase


de H. Erhardt. A diversidade espaço-temporal das montanhas cantábricas
centrais é tratada através de um modelo regional de heterostasia (mapa h.t.
A 1/200.000).
1 Lande: tipo de solo, como o que se encontra no Oeste da França. Cf. Petit Robert “extensão de terra
onde crescem apenas certas plantas selvagens (junco, bruyère, genêt, etc.).
2 Garrigues e maquis: tipos de vegetação arbustiva da região mediterrânea, de solo árido.
312 O geossistema: um espaço-tempo antropizado

Campo em estado de resistasia natural em escala geológica. Trata-se


essencialmente da alta montanha supraflorestal (1.500-2.600m): karstificação
“tropical” desde antes da orogênese miopliocênica, glaciações quartenárias,
torrentes e processos periglaciais ainda em plena atividade. Alguns impactos
mineiros e turísticos. Instabilidade das vertentes.
Campo em estado de biostasia natural plurissecular. Quase toda a
média montanha atlântica úmida e nebulosa: faiais podados em solos marrons
florestais, clareiras pastoris e prados de ceifa. Reversibilidade dos impactos
antrópicos em escala de 10 a 50 anos de acordo com o geofácies.
Campo em estado de biostasia secular com dominante antrópica.
Baixa montanha úmida e bacias da vertente atlântica. Propriedades e
cidadezinhas das Astúrias (milho, pradarias, plantações de eucaliptos).
Equilíbrio ligado às práticas agrárias com reversibilidade assegurada (rotações
agrícolas e florestais).
Campo em estado de resistasia plurissecular com dominante agro-
silvo-pastoral. Montanhas “secas”, bacias continentais da vertente castelã,
certos geofácies de Liébana. Agropastoreio generalizado, desmatamento e landes
monoespecíficas, erosões múltiplas. Irreversibilidade pelo menos em escala de
20 a 50 anos. Geofácies residuais em biostase.

Esboço de uma temporalidade em escala global da cordilheira cantábrica

A análise espaço-temporal em escala múltipla conduz a propor uma


hipótese global do funcionamento da temporalidade cantábrica, pelo menos
desde os começos da antropização.
O forte contraste paisagístico entre as duas fachadas da cordilheira,
tão bem descrito pelo filósofo J. Ortega y Gasset, é essencialmente natural:
orogênico, climático, biogeográfico. Todavia, o “divisor” não é apenas uma linha
de divisão das águas. Ele separa também duas civilizações que não têm a mesma
relação com o território. No norte, comunidades de pequenos camponeses
e de comerciantes baseadas sobre uma gestão agrária de tipo patrimonial e
relativamente democrática (na qual se inspirou o economista Jovellanos).
No sul, é a Castilha, dominada durante séculos pela grande transumância
pastoril da Mesta, imposta por privilégios reais exorbitantes, que conduzia
todo verão, por uma rede hierarquizada de “cañadas” (trilhas), centenas de
milhares de “merinas” (carneiros laníferos) da Extremadura ou da Andaluzia
para as pastagens de altitude. Colonização interior que explorou sem reservas
os homens e as montanhas.
Abolido em meados do século XIX, este sistema desapareceu
progressivamente em torno de 1950-1960. No entanto, não apenas numerosos
geofácies e geocomplexos carregam as seqüelas desta superexploração extinta,
mas sobretudo eles continuam a evoluir sob o efeito de causas desaparecidas
há mais de um século. Exemplo de inércia e também, localmente, de histerese
em uma espécie de caixa de ressonância constituída por um conjunto
geográfico desestabilizado e “regressivo” (erosões, modificações florísticas,
O geossistema: um espaço-tempo antropizado 313

secagens hipodérmicas das vertentes, etc.). A vertente de Castilha ainda hoje


continua sob a influência ecológica, econômica e cultural da Mesta, de suas
representações e de seus ritmos sazonais:

Conclusão: o meio ambiente, uma questão em três tempos?

- Estas poucas hipóteses de trabalho, postulados e propostas


metodológicas, permitem delimitar a dinâmica interna e a evolução do
geossistema. O reconhecimento de um tempo antropizado, a concepção de
um espaço-tempo em mosaico, o recurso à análise multitemporal, são todas
igualmente pistas epistemológicas e metodológicas que contribuem para uma
abordagem da temporalidade, até para um esboço de um “tempo comum” do
geossistema. A título de comparação, um trabalho paralelo deveria ser efetuado
para o ecossistema.
- Entre o geossistema e o meio ambiente, assim como entre o
ecossistema e o meio ambiente, há um patamar epistemológico e metodológico
que nós nos recusamos a ultrapassar. Não é por deslize marginal que se passará
de um para o outro. Por outro lado, o geossistema constitui um “verbete”, entre
outros, na problemática do meio ambiente.
- Nós retomamos aqui um de nossos postulados anteriores, que é
o de considerar o meio ambiente como complexo e indefinível demais para
ser apreendido a partir de um único conceito e de um único método. Nós
trabalhamos para tratar do meio ambiente a partir de um sistema conceitual
tripolar e interativo: geossistema, território, paisagem. Resumindo, uma
estratégia tridimensional, em três espaços, e em três tempos.
O tempo do geossistema é aquele da natureza antropizada: é o tempo
da fonte, das características bio-físico-químicas de sua água e de seus ritmos
hidrológicos.
O tempo do território é aquele do social e do econômico, do tempo
do mercado ao tempo do “desenvolvimento durável”: é o tempo do recurso,
da gestão, da redistribuição, da poluição-despoluição.
O tempo da paisagem é aquele do cultural, do patrimônio, do
identitário e das representações: é o tempo do retorno às fontes, aquele do
simbólico, do mito e do ritual.
Pura, poluída ou lustral, toda fonte flui irresistivelmente para um
mesmo futuro. Todos os meios ambientes, como “todas as manhãs do mundo,
são sem retorno” (Pascal Quignard).
314 O geossistema: um espaço-tempo antropizado

ORIENTAÇÃO BIBLIOGRÁFICA

N. BEROUTCHACHVILI et G. BERTRAND – Le géosystème ou «système territorial


naturel», Revue des Pyrénées et du Sud-Ouest, 1978. Vol. 49, nº 2, p. 167-180.
C. et G. BERTRAND, Pour une histoire écologique de la France rurale. In «Histoire
de la France rurale». Paris, Le Seuil, 1975, p. 35-116.
G. BERTRAND, Apogée et déclin d´un géosystème sylvo-pastoral (Montagne de
León et de Palencia, Espagne du nord-ouest). In «Forêts», Revue des Pyrénées et du
Sud-Ouest – 1984, Vol. 55, nº 2, p. 239-248.
G. BERTRAND, Pas de territoire sans terre. In «L´histoire rurale en
France», Revue Histoire et Sociétés rurales, 1995, Vol. 2, nº 3, p. 68-
71.
315

A discordância dos tempos


“Viver é passar de um espaço (... e de um tempo)
a outro tentando ao máximo não se abalar”

Ao introduzir o tempo nesta frase bem conhecida de Georges Perec,


apenas aumentamos o seu alcance e, certamente, demos um último toque ao
seu sentido. Trata-se de reconhecer a dificuldade de se situar e de agir neste
conjunto obscuro que constitui, ainda hoje, nosso meio ambiente e suas
múltiplas temporalidades.
- Onde a interdisciplinaridade deveria exercer um papel fundamental
na medida em que tanto o tempo, quanto o espaço, não pertence a nenhuma
disciplina em particular;
- Onde permanecem tantas lacunas no conhecimento e tantas
disfunções nos métodos;
- Onde os interstícios entre as disciplinas são cada vez mais numerosos
e maiores que as interfaces, por exemplo, entre a história e a arqueologia (G.
Chouquer – 2000, Ph. Leveau – 2000);
- Onde muitas relações analógicas entre os objetos disciplinares
perdem sua pertinência, em particular entre as ciências sociais e as ciências
naturais;
O que significa dizer, como fazemos corriqueiramente, de “recursos
renováveis”, de “sustentabilidade” ou de “durabilidade”, num tempo absoluto
ou indefinido, isto é, fora dos “passos do tempo” da história dos meios naturais
e do das sociedades? Trata-se de uma década, de um século, de um milênio?
É cientificamente coerente e construtivo dizer, cada um em sua
área, de “equilíbrio” e de “ruptura”, de “limiar” e, de forma mais incisiva, de
“mutação”, sem ter, de antemão, um sistema temporal de referência? Todas
estas terminologias temporais, perigosamente confusas e flutuantes segundo o
pesquisador, segundo as disciplinas e segundo os objetos estudados, é apenas
a parte emergente do iceberg do tempo. As temporalidades jazem ainda nas
profundidades mal exploradas da pesquisa ambiental, sobre as margens indecisas
entre a epistemologia e o método.
Na base de toda pesquisa sobre o meio ambiente está, portanto, o
paradoxo do tempo. A despeito dos grandes princípios fundadores da ciência
moderna, o tempo como tal, isto é, fora de sua instrumentação cronológica,
tem sido, relativamente, negligenciado.
316 A discordância dos tempos

No plano epistemológico geral, todavia, é evidente que a ciência


está fundada na teoria da evolução do universo, do Planeta Terra, das espécies
vivas, incluindo o homem. Ela coloca, mais diretamente e fundamentalmente,
a questão do tempo e de seu fluxo: duração, velocidade, ritmo. Entretanto,
em muitos pensamentos e práticas científicas cotidianas, perdura, ao menos
implicitamente, um fundo de fixismo, sempre em busca de uma estabilidade
perdida, de um equilíbrio idealizado, ou seja, de uma aspiração por uma eterna
volta ao começo. A fitossociologia tradicional é apenas um exemplo. É assim
que a afirmação de certos filósofos e físicos do século XIX, segundo os quais
o tempo não teria nenhuma existência em si, foi mal interpretada (E. Klein,
1995). O tempo tem sido, muito freqüentemente, reduzido a apenas um valor
instrumental de medida e de referência cronológica. Contudo, desde pouco mais
de uma década, a comunidade científica reagiu vigorosamente, multiplicando
os colóquios e as publicações a respeito de diferentes temporalidades: tempo
dos relógios, tempo meteorológico, tempo biológico, tempo das representações
e tempos vividos etc.
No plano metodológico, a contribuição da teoria geral dos sistemas
e, mais concretamente, a análise de sistema e de modelização, fundadas na
análise dos processos em interação, dão, explicitamente, a prioridade à dinâmica
interna e à evolução dos sistemas, ou seja, ao funcionamento e à trajetória do
objeto (F. Blasco, 1997). A ferramenta existe. Aplicações variadas mostram o
caminho. O meio ambiente é cada vez mais discutido, mas ainda não atingiu
uma concepção de conjunto, racional, das suas temporalidades.
Esta dupla contradição, epistemológica e metodológica, nos leva a
formular dois postulados que se encaixam:
- Primeiro postulado: o meio ambiente, como toda temática
transversal, demanda uma referência temporal específica ao cruzamento
sistêmico de múltiplas temporalidades. Ela não pode resultar da simples
adição de temporalidades particulares dos elementos constitutivos (vegetação,
geologia, sociedade etc.) e muito menos, de uma temporalidade elementar
tomada como referência única, por exemplo, de ordem fitogeográfica, como é
o caso, muito freqüentemente.
- Segundo postulado: as temporalidades ambientais são indissociáveis
de suas espacialidades. A maioria dos conceitos e das noções que manipulamos
(ecossistema, geossistema, estado, processo, resiliência etc.) se inscrevem,
ao mesmo tempo, no tempo e no espaço. São híbridos e indivisíveis. Um
espaço-tempo ambiental desponta ao longe e ainda é utópico. O páreo merece
ser destacado, menos por um improvável resultado final do que por um valor
heurístico da marcha científica que ele inaugura.

O meio ambiente perdido no meio de uma discordância de


tempos

Os filósofos e os cientistas, ciências humanas e ciências físicas


confundidas, são hoje unânimes por fazer do tempo uma das dimensões
A discordância dos tempos 317

fundamentais da “revolução copérnica” que reposicione a sociedade num


universo em movimento (J. Chesneaux, 1996, E. Klein, 1995). O meio ambiente
constitui um dos principais componentes: talvez o primeiro e certamente o
mais inovador. Tanto em sua materialidade em termos de ar, de água, de rocha
e dos seres vivos quanto suas representações as mais contraditórias e mais
míticas. Ora, esta tomada em consideração do tempo pela pesquisa ambiental
não é tão evidente. É por isso que os últimos Jornais do PIREVS (Programme
Inderdisciplinaire de Recherche sur Environnement, Vie et Societés ) do
CNRS consagraram os “Tempos do Meio Ambiente” (M. Barrué-Pastor e G.
Bertrand, 2000). Trata-se de uma primeira tentativa de reunir e avaliar, em um
quadro interdisciplinar reconhecido, trabalhos até então dispersos, consagrados
direta ou indiretamente nas diferentes formas de temporalidade, bem como
nas ciências da natureza e nas ciências da sociedade e, particularmente, sua
interface. Logo após a publicação dos Atos, um primeiro balanço deve ser
feito. É possível tirar, desde já, alguns ensinamentos.

A grande distância entre teoria e prática

O tempo, enquanto tempo, raramente serve para o debate. Existe


uma espécie de grande consenso sobre as definições e as teorias. Sem muitas
explicações. Por outro lado, as práticas são cada vez mais reducionistas e
conservadoras. Elas correspondem, geralmente, a uma aplicação inconsistente
de velhos modelos científicos ou, pelo menos, à manipulação laxista de
vocabulários correspondentes.
Como se poderia conciliar o uso da análise de sistema conservando
referências a uma concepção cíclica do tempo? Como combinar o conceito de
ecossistema com a associação fitossociológica ou série fitogeográfica, progressiva
ou regressiva, que destacam velhas concepções climácicas com retorno, ao
menos teórico, ao ponto de partida? Em geografia física, os sistemas de erosão
(geomorfogênicos) se sucederam por muito tempo sem que os pesquisadores
se questionassem sobre os limites (nos processos) e as descontinuidades (nas
formas). Alguns se converteram, então, numa “cindynique” que tem forte
tendência a ignorar o tempo de regeneração (para aqueles da fitogênese
ou da pedogênese) e, por vezes, sucumbem à moda contemporânea do
catastrofismo.
Será suficiente para um historiador opor um “tempo curto” mal definido
a um “tempo longo” indefinível? A volta por cima do “acontecimento” estará
acompanhada de uma reflexão sobre a duração, a velocidade e a periodização
histórica? F. Braudel, J. Le Goff e J. Chesneaux não fizeram, na análise do
tempo, muitos concorrentes. Estes exemplos, tomados dentre muitos outros,
não são insignificantes. São considerações importantes para as disciplinas
relacionadas e uma grande confusão para a pesquisa em meio ambiente.
318 A discordância dos tempos

O tempo-referência mascara o tempo-processo

A base de trabalho de numerosas disciplinas (palinologia, antracologia


, arqueologia etc.) é, em primeiro lugar, datar os fenômenos ou os objetos a
fim de estabelecer as seqüências e as correlações cronológicas. É um passo
indispensável e fundamental para a maioria das pesquisas em meio ambiente.
Porém, cada vez mais insuficiente. É um dos pontos-chave e o mais sensível
na análise das temporalidades.
“As cronologias cada vez mais refinadas reinam em todas as disciplinas,
mesmo que de formas desiguais e nem sempre harmônicas. Regra geral, a
referência cronológica é instrumentada do exterior do fato estudado e lhe é
imposta, por simples transposição, de uma disciplina à outra, por exemplo, da
geologia para a arqueologia ou para a pré-história. A cronologia é, neste caso,
mais palavra de ordem do que de inteligibilidade... Por outro lado, o tempo
como mobilizador de energia, de matéria e de informação, o tempo enquanto
tempo e a temporalidade, isto é, “a característica daquilo que está no tempo”
(Petit Robert) são negligenciados. Com a notável exceção da climatologia e
da meteorologia, temos forte tendência a separar o estudo do tempo que passa
daquele do tempo que está fazendo. O meio ambiente nos convida a fazer
desta aproximação, a pedra angular do método (C. e G. Bertrand). Neste
domínio, os geomorfólogos têm mostrado a via (M. Provansal) e os resultados
comprovadores tem sido obtidos por outros especialistas: antracologistas (J.P.
Vernet, 1977), historiadores (A. Durand, 1998), biogeógrafos (J. Bonhôte et
al. 2000).

Tempo disperso e tempo entrelaçado

O tempo neutro dos relógios corresponde à referência


cronológica geral e constitui a base essencial de todo conhecimento científico.
Todavia, há tendência a mascarar a diversidade das temporalidades e dos
“passos de tempo” de diferentes componentes do meio ambiente e de suas
interações. Ele pode apagar certas evoluções secundárias e, sobretudo, mascarar
as dinâmicas internas que, geralmente, apresentam velocidades diferentes com
desajustes e inércias variáveis de um elemento do meio para outro. Por exemplo,
entre pedogênese e silvogênese, como é o caso entre a podzolização húmico-
ferruginosa e a lande euro-atlântica em curso de repovoamento florestal no
litoral asturiano (Espanha). É por este motivo que o físico E. Guyon nos propõe
dedicar toda nossa atenção na especificidade do que ele denomina de “tempo
da miscelânea”.
A principal das incoerências temporais e, certamente, a mais
prejudicial para os estudos ambientais, é a insistente separação entre um tempo
dito “social” e um tempo dito “natural”. Para muitos cientistas, ela parece ser
evidente, mesmo sem saber bem onde situar o tempo “biológico”. A crescente
complexidade do meio ambiente e a poderosa força da antropização tornam estas
categorias cada vez mais difíceis de se isolar e cada vez menos operacionais. As
A discordância dos tempos 319

pesquisas sobre os gases de “efeitos estufa” são, atualmente, o melhor exemplo


disso. A duração e os ritmos dos agrossistemas tal como eles foram definidos
na Historia da França Rural (C. e G. Bertrand, 1995) são comandados por
uma temporalidade agronômica híbrida. A evolução do meio ambiente nas
Montanhas Cantábricas centrais só pode ser compreendida se levarmos em
conta os desajustes de tempo, as inércias, os “efeitos retardados” e os “efeitos
bola-de-neve”, entre as diferentes dinâmicas (geomorfogênese, pedogênese,
pressão pastoral [La Mesta ], reflorestamento). O postulado da concordância
na evolução dos elementos de um mesmo sistema deve ser repensado.
Estes entrelaçamentos de temporalidades trazem à tona o papel das
mudanças climáticas na evolução dos páleo-ambientes. Dito de outra forma,
não é apenas o clima que muda e que influi nas mudanças globais. De fato, é
todo o mosaico espacial que se modifica. Trata-se da mobilidade geográfica
que foi claramente demonstrada pelos pesquisadores do Laboratório GEODE,
a respeito da evolução das paisagens pirenáicas. A temporalidade ambiental
deve se dar conta desta “trança dos tempos” que D. Guillemet (2000) decifra
em seu estudo sobre a co-evolução entre sociedade e meio ambiente em Belle-
Île-en-Mer (Bretanha, França).

Os hiatos entre dinâmica interna e evolução de um sistema

Eis um ponto essencial e longe de ser resolvido. Ele atinge até mesmo
a credibilidade da análise de sistema tal como a praticamos. Há confusão, leia-se
contradição entre, de um lado, a dinâmica interna de um sistema responsável
por seu funcionamento e por sua resiliência e, de outro lado, a evolução do
sistema em si. Esta última corresponde, com efeito, a uma mudança de processo,
portanto, de sistema. Onde colocar um limite e como definir as condições
da mudança? Por exemplo, a relação lande-floresta não é tão simples quanto
parece, como tem mostrado, desde muito tempo, A. Baudière no Maciço do
Caroux (Maciço Central, França).
Como avaliar o equilíbrio ou o desequilíbrio de um sistema
sem conhecer a periodização em longo prazo? Os pares reversibilidade-
irreversibilidade e “renovabilidade-não-renovabilidade” tem sentido apenas
num “passo de tempo” preciso e, de todo modo, eles têm apenas um valor
relativo em sistemas ambientais em perpétua evolução. Por exemplo, a
“durabilidade” das formações arbóreas abertas de Juniperus thurifera que
se intercalam entre os faiais atlântico-montanos e as florestas de Quercus
ilex (carvalho-verde) mediterrâneo-continental da vertente sul-cantábrica
(Espanha) foi comandada por temporalidades diferentes. Formados no fim
do terciário, estes juniperais são, portanto, pré, ou pelo menos, sinorogênicos.
Eles resistiram às fases glaciais e, mais diretamente, perigraciais. Desde o
século XVI, eles são paradoxalmente mantidos pelas sobrepastagens da Mesta
e, atualmente, ameaçada pela retomada de uma vegetação sub-ocupada pelo
gado (C. e G. Bertrand, 2000).
320 A discordância dos tempos

Um catastrofismo atemporal

A crise contemporânea do meio ambiente, real e, sobretudo, tal


como ela é vivida e freqüentemente amplificada, tem focalizado a pesquisa
em eventos breves, localizados e violentos que eram, até então, normalmente
negligenciados. A “cindynique” permite, hoje, considerar de forma global
estes fenômenos, separando o que faz parte da biofísica e o que é a tradução das
representações sociais. Todavia, um catastrofismo mais ou menos apocalíptico
tende a se propagar na ausência de referências temporais nos ritmos e nas
periodizações. A pesquisa deve combinar a análise das evoluções lentas com
aquelas das crises breves e violentas.
Estas numerosas discordâncias, ao mesmo tempo, conceituais e
semânticas, perturbam a pesquisa sobre a história do meio ambiente e fragiliza
todas as tentativas de prognóstico ou de prospectiva. É hora de conceder, em
nossas pesquisas, um pouco de tempo ao tempo.

Retorno a alguns pricípios básicos

O avanço das pesquisas sobre o meio ambiente chegaram a um


tamanho grau de sofisticação e de dispersão que elas perderam uma das suas
razões de ser: reunir e pôr em sinergia saberes disciplinares compartimentados.
Atualmente, esta interdisciplinaridade global está detrás de nós. Cada disciplina
se envolve de uma auréola interdisciplinar que evolui ao sabor das problemáticas.
Este dispositivo deve ser completado por uma reflexão epistemológica a mais
ampla possível. Neste projeto de (re)construção do meio ambiente, o tempo,
da mesma forma que o espaço, deve exercer o papel unificador e catalisador.
É, portanto, indispensável retomar alguns princípios de base.

Irreversibilidade do tempo, irreversibilidade do meio ambiente

“O bem conhecido, escreve Hegel, justamente por ser bem conhecido,


é desconhecido”. Num mundo científico evolucionista de princípio e, pelo
menos nos fatos, funcionalista, subsistem ainda algumas seqüelas de um tipo
de fixismo implícito sob a forma de referências cíclicas. Divergências de
linguagem ou resquício metafísico? Certamente, a noção de clímax, que
exprime a idéia de um retorno permanente a um estado inicial, e que é mais
natural, foi bastante atenuado e, não raras vezes, apenas exprime uma forma
de homeostasia. Daí, sua extrema ambigüidade, sobretudo quando se associa
ao estado dinâmico de um sistema e ao conceito de processo. Desta feita, a
observação e a experiência mostram que certos objetos (solo, floresta etc.) se
reconstituem... de forma idêntica. Para o dicionário: “idêntico se diz dos objetos
ou seres parecidos, porém, distintos”. O passar do tempo, faz, portanto, sua
obra. E de forma irreversível. Muitos pesquisadores se fazem enganar por um
raciocínio analógico a partir da termodinâmica dos sistemas fechados. Estes
servem, ainda, de referência nos recentes manuais de ecologia. Os sistêmicos
A discordância dos tempos 321

admitem que possam haver ciclos fechados localizados, mas o sistema, em


seu conjunto, evolui numa trajetória sem retorno. Isto é válido para todos os
“ciclos” climáticos ou geoquímicos. Como questionar, nestas condições, sobre
a durabilidade ou a irreversibilidade quando se gira em círculos? É muito mais
salutar, e mais simples, situar cada objeto e cada acontecimento no curso de
uma evolução irreversível pronta a evidenciar os estados idênticos, similares,
análogos..., mas sempre distintos.

O sistema antrópico e o “gradiente de naturalidade” (J. Lecomte, 1999)

Embora a antropização galopante do planeta seja hoje reconhecida


por todos, estamos ainda longe de conseguir a integração dos fatos da sociedade
com aqueles da natureza. A clássica expressão: “impacto do homem sobre
o meio” deve ser revista. De um lado, o homem é uma entidade filosófica
enquanto que o que está em jogo no meio ambiente é a ação complexa das
sucessivas sociedades humanas que constroem materialmente e simbolicamente
seu território. Esta antropização se inscreve no tempo da história ecológica e
social e podemos identificar as fases. De outro lado, impacto significa uma ação
brutal que se exerce do exterior do objeto considerado. As sociedades humanas
não podem mais ser consideradas como estando fora de uma “natureza” (por
sinal, indefinível) e suas intervenções não são sempre brutais ou destruidoras.
Elas criam um sistema híbrido que é seu próprio ambiente e que evolui sem
cessar.
Esta é a razão, pela qual não podemos mais nos contentar em proceder
por pequenas tentativas sucessivas. A dimensão antrópica do meio ambiente
é um todo. A antropização deve ser erigida numa teoria geral que faça das
sociedades humanas os atores “principais”, essenciais e, por vezes, dominantes,
do meio ambiente. Isto, certamente, se verifica diariamente e gera a maior
parte dos problemas ambientais contemporâneos, desde os depósitos de lixo
até a camada de ozônio. Ademais, deve absorver as conseqüências teóricas e
metodológicas destas evidências. Muitos dos bons manuais de ecologia ainda
relegam o “fator humano” para um último capítulo, freqüentemente de caráter
tímido e superficial. A parábola do operário da décima primeira hora deveria
figurar no Evangelho dos ecologistas.
É preciso inverter a problemática. Ou seja, partir das sociedades
humanas que definem e constroem seu meio ambiente ideal e material no
ritmo de sua história. O tempo do meio ambiente é aqui, primeiramente,
o tempo da sociedade, a forma como esta vive as temporalidades múltiplas,
naturais e sociais, ou o mais comum, híbridas. Não se trata de ignorar os
fenômenos naturais. É, simplesmente, lhes situar na combinação ambiental
tal como ela é percebida e materialmente vivida pela sociedade, inspirando,
por exemplo, nas reflexões de J. Lecomte sobre o conceito de “naturalidade” e,
sobretudo, na sua proposição de definir, para cada ambiente, um “gradiente de
naturalidade”. Encontramos aqui a co-evolução dos ecólogos, porém inserida
em uma temporalidade essencialmente social (M. Jollivet e A. Pavé).
322 A discordância dos tempos

A etapa seguinte consiste em definir o sistema antrópico como tal.


Um modelo distante, mas decisivo, é o sistema de erosão geomorfogênica dos
geógrafos (A. Cholley e J. Tricart), com condições de estender sua abrangência
ao conjunto do meio ambiente. Este método já permitiu apreender a história do
meio ambiente montano fornecendo bases de generalização e de comparação,
bem como uma tipologia dos respectivos meios (C. e G. Bertrand, 2000). Esta
concepção é próxima daquela de Philippe Leveau, P. Livet e M. Provansal
(2000) que, confrontada às múltiplas descontinuidades geomorfológicas e
hidrológicas no manejo histórico dado ao vale do Baux (Provence, França),
evocam a elaboração de “sistemas de temporalidades” híbridas. De um modo
geral, esta consideração das temporalidades aparece como um meio de apreender
melhor a combinação dos fenômenos ambientais e, assim, de relançar uma
pesquisa interdisciplinar com tendência a se dispersar na ausência de conceitos
centralizadores tanto sobre o tempo quanto sobre o espaço.

O espaço-tempo e a noção de estado

Este é o aspecto mais complexo da questão temporal aplicada ao


meio ambiente. Com efeito, por comodidade, tratamos o assunto fazendo do
espaço e do tempo duas categorias separadas que, na melhor das hipóteses,
sobrepomos a posteriori. Para uns (geógrafos, botânicos, agrônomos), a
floresta ou uma parcela agrícola são, primeiramente, compartimentos de um
espaço tridimensional. O tempo intervém em seguida, geralmente como um
simples elemento explicativo. Para outros (palinólogos, arqueólogos), o objeto
estudado é, antes de tudo, tratado numa perspectiva cronológica e sazonal (turfa,
campo de folhas). De um lado, a prioridade é dada à materialidade espacial;
de outro, o interesse está centrado no momento de uma evolução. Estes dois
aspectos, de fato indissociáveis, devem ser combinados em um sistema comum
de referência, a exemplo das novas visões em 4D que A. Ruellan traz sobre os
solos (1993-1998).
A análise de sistema oferece esta possibilidade. No centro do
dispositivo se coloca a noção de “estado” que permite pensar em termos de
espaço-tempo. Um estado se define por sua invariância (estabilidade), ou
seja, pela conservação de suas propriedades, estas podendo oscilar ao redor
de uma posição média. É, por exemplo, o caso de uma mata de faia acidófila
em uma vertente de front montano úmido que foi mantida pelos camponeses
desde aproximadamente quatro séculos (Pireneus da região de Ariège, França).
Situação bastante excepcional que não se encontra no setor agropastoril
vizinho, marcado por uma sucessão de estados que provocaram a formação de
novas paisagens (substituição dos carvalhais por faiais, erosão localizada dos
solos, abertura de clareiras etc.). Estes dois compartimentos de uma mesma
vertente evoluem, atualmente, em sistemas temporais diferentes com efeitos
dinâmicos de zona de transição e com a presença de “ecótonos”.
A discordância dos tempos 323

A temporalidade ambiental entre representações sociais e modelos

A maioria dos modelos destinados a estudar o meio ambiente são,


ainda hoje, construções originais e com finalidade naturalista, tal como
ecossistema ou “landscape ecology” em essência. As tentativas para integrar
os elementos sociais, econômicos ou culturais aconteceram pouco a pouco
ou mesmo despercebidas. Diante disso, certos antropólogos e sociólogos
relançaram o próprio princípio de interdisciplinaridade ambiental (relatório
de conjuntura do CNRS – 1996).
Esta forma de integração restaurada, portanto, a posteriori, da
problemática global foi, no máximo, uma solução de recuperação para satisfazer
alguns. Ela é muito artificial para ser epistemologicamente e metodologicamente
eficaz. Um dos mais perigosos avatares destes pseudo-modelos ambientais é
de ter favorecido a sobre-determinação de fatores biofísicos e de ter dado uma
segunda via ao “determinismo natural” que certos pesquisadores em ciências
sociais confundem com intangibilidade das leis universais que regem os
mecanismos físicos. Uma ambigüidade como esta deveria ser atenuada quando
tratamos o conjunto dos processos no seio de um sistema espaço-temporal de
referência.

Pesquisa de um sistema espaço-temporal de referência: a busca


de uma concordância dos tempos

A temporalidade ambiental só pode ser plural. Seu conteúdo demanda


por harmonização. A persistência de lacunas e de discordâncias na análise dos
tempos do meio ambiente nos conduz a propor um sistema espaço-temporal
susceptível de assegurar, ao menos provisoriamente, uma melhor concordância
dos tempos no funcionamento dos objetos estudados entre os métodos e entre as
disciplinas. A empreitada é ambiciosa talvez até sem saída. Para o momento,
vamos nos deter, sobretudo, no aspecto heurístico das primeiras etapas desta
proposta.

Primeira etapa: um espaço-tempo antropizado

Sem retornar àquilo que foi apresentado em outras oportunidades (C.


e G. Bertrand, 2000) insistiremos aqui, no papel central atribuído ao tempo. De
inspiração geográfica, o geossistema tem, primeiramente, um conceito espacial,
com finalidade naturalista ainda que, a priori, antropizada (N. Beroutchachvili
e G. Bertrand, 1978). A dimensão temporal sempre esteve presente, porém, na
retaguarda. Atualmente, tornou-se dominante e tem feito evoluir o conjunto
do conceito.
O geossistema é o estado global de um lugar, em um dado momento,
por uma determinada duração, numa trajetória representada por uma
sucessão de estados (sazonais, plurianuais, pluriseculares etc). No terreno, o
324 A discordância dos tempos

geossistema se concretiza como um mosaico de unidades de diferentes tamanhos


(geótopo, geofácies, geocomplexo etc.) definidos como homogêneos nas suas
respectivas escalas. Estas unidades se organizam em estruturas espaciais mais
ou menos duráveis do que uma cartografia multiescalar adaptada permite
evidenciar (conectividade etc.). Todavia, unidades próximas podem evoluir
em velocidades, ritmos e em sentidos diferentes. É assim que uma prairie de
bocage de várzea hidromórfica se transforma em alguns anos, enquanto que
uma lande de Callunes que lhe faz vizinhança conhece uma estabilidade pelo
menos secular. Estes dois geofácies participam de duas dinâmicas diferentes
separadas por um limite temporal de primeira grandeza. O tempo, por suas
diferentes formas, intervém, da mesma forma que o espaço, na definição e na
cartografia do geossistema (G. Bertrand, 1984).
Segunda etapa: a teoria da bio-resistasia revisitada, o conceito de
heterostasia e a modelagem da diversidade geográfica
Não se trata, aqui, de retomar uma teoria (H. Erhart, 1967)
desprestigiada em sua época e, infelizmente, a ponto de ser esquecida, enquanto
que os progressos realizados no conhecimento dos balanços geoquímicos e
dos fluxos energéticos planetários deveriam fazer dela uma aventura pioneira
carregada de ensinamentos. Esta dimensão essencial não será levada em
consideração aqui. Não obstante, esta teoria tem um grande interesse se vermos
nela um exemplo de integração de temporalidades e de dinâmicas globais no
meio ambiente. Sem retornar aos conceitos-chaves de biostasia e resistasia,
que integram perfeitamente o tempo e podendo, após um arranjo, servir de base
para uma tipologia dinâmica dos meios (G. Bertrand, Montanhas Cantábricas,
Espanha), propusemos utilizar o conceito de heterostasia aplicando-o ao
geossistema. Eis as vantagens disso:
•• dar prioridade à analise da diversidade sob todas as formas,
espaciais e temporais, biofísicas e sociais... e não simplesmente à
biodiversidade;
•• transcender os recortes setoriais para compreender o funcionamento
das interações entre os elementos;
•• demonstrar que a própria diversidade do mosaico (gradientes diversos:
toposeqüências, topoclimas etc.) é um dos motores da dinâmica
interna dos meios. Ela está, efetivamente, na origem das trocas de
matérias e energias que determinam uma turbulência endógena. É
assim que os meios montanos de facetas muito contrastadas constituem
caixas de ressonância que mantém a heterostasia;
••devolver um lugar ao geográfico (relevo, geomorfogênese,
antropização) na pesquisa sobre o meio ambiente. Uma demonstração
particularmente brilhante foi realizada por D. Galop em sua tese
“A floresta, o homem e o rebanho. Seis mil anos de história do
meio ambiente entre Garrone e Pireneus” (1998). Combinando a
precisão dos destaques pontuais (palinológicos ou antracológicos)
com um conhecimento aprofundado dos mosaicos geográficos locais
e regionais, o autor esboçou um quadro particularmente detalhado
e, sobretudo, bem contrastado dos páleo-ambientes pirenáicos
desde os primeiros traços do Neolítico. As oscilações climáticas
A discordância dos tempos 325

não são mais tratadas como o “deus ex machina” tradicional. Elas


diversificam seu efeito à custa dos mosaicos geográficos: sombreados
ou de faces ensolaradas voltadas para o sul, fronts de montanhas e
bacias encaixadas, gradientes diversos. Por outro lado, devemos
reconsiderar as famosas estações-refúgios e seu papel na conservação
de determinadas espécies e na recolonização vegetal. Passando
de uma concepção estacional, e quase excepcional, àquela de um
mosaico geográfico regional, atravessamos um limite na história da
evolução dando uma interpretação mais flexível, com mais nuances
e, sobretudo, mais geral, dos estoques florísticos locais ou regionais e
de sua eventual mobilidade.
Não é vão, num momento onde questionamos sobre a biodiversidade,
de lembrar que ela é apenas um aspecto de uma diversidade geográfica muito
maior.

Terceira etapa: o sistema GTP (Geossistema-Território-Paisagem) ou os


três tempos do meio ambiente

Tentamos definir o que entendemos por meio ambiente antes de


abordar o estudo das temporalidades. Escolhemos um caminho inverso para
destacar que o meio ambiente e sua definição são os produtos flutuantes de uma
história de mil facetas diacrônicas e sincrônicas. Esta diversidade é tão grande
que escapa a todo conceito unívoco, que não consegue, por si só, abarcar a
totalidade de uma problemática ambiental em constante evolução.
Propomos, então, apreender os diversos tempos do meio ambiente
através de um sistema multipolar de três entradas: o geossistema, o território,
a paisagem (C. e G. Bertrand, 2000).
•• O Geossistema é o tempo da Fonte (Source), isto é, aquele dos
componentes e mecanismos biofísicos mais ou menos antropizados
que acontecem a partir do Neolítico. Ele está de acordo com
uma grande parte dos fenômenos espaciais e geomorfogênicos sem
negligenciar os aspectos biológicos.
•• O Território é o tempo dos Recursos (Resource). Corresponde à
descoberta dos diferentes recursos e de sua exploração econômica
pelas sociedades.
•• A Paisagem é o tempo do Ressurgimento (Ressourcement) em sentido
amplo. Ela se inscreve em múltiplas temporalidades do vivido e das
representações, dos símbolos, dos mitos e dos sonhos.
A concordância ou a discordância entre estes três tipos de tempos é
um elemento essencial do funcionamento do meio ambiente. Por exemplo,
o responsável pela gestão de um maciço florestal deve lidar com o tempo da
silvogênese e da silvicultura, o tempo da economia florestal e o da cadeia da
madeira, o tempo do patrimônio paisagístico tanto à escala do maciço florestal
quanto à escala da parcela. A combinação hierárquica escolhida entre estas
três dimensões de um mesmo ambiente condiciona o manejo florestal global
para a duração de um plano de gestão... ou além disso.
326 A discordância dos tempos

Este sistema de referência espaço-temporal aparece de forma natural


numa reflexão prospectiva global e, eventualmente, na construção de cenários
sincrônicos e diacrônicos. O método proposto é, ao mesmo tempo, corológico
e histórico, retrospectivo e prospectivo. Associado ao espaço, o tempo permite,
assim, uma verdadeira construção interdisciplinar. O método deveria permitir
escapar aos habituais desvios disciplinares, propondo um conhecimento, leia-
se uma gestão, do meio ambiente na harmonia dos espaços e na concordância
dos tempos, sem jamais esquecer que o guardião dos relógios não é o mestre
do tempo.
327
328

A PAISAGEM E A GEOGRAFIA: UM NOVO


ENCONTRO
A emergência da paisagem e a nova cultura do território
“A paisagem retorna, inesperada, para o vazio ou o sistema,
como um arco-íris no prado.”
MICHEL SERRES
Les cinq sens
Grasset, Paris, 1983, p. 229.

A emergência da paisagem e a nova cultura do território

Todo catalão, excursionista na alma, mantém diante de seus olhos e


no fundo de seu coração as paisagens do Montseny, montanha identitária por
excelência, as cristas do Turó de l’Home e do Matagalls batidas pelos ventos e
as nuvens contrárias, as estradas que contornam o maciço no meio dos pinheiros
de Alep, antes de deslizar pelas sombras das faias e coníferas. A paisagem sempre
foi um valor premente e vivo da cultura catalã, muito mais afirmada do que nas
outras regiões da Espanha ou da França. O exemplo local da escola de pintura
de Olot, tradicionalmente dedicada à representação das paisagens da Garrotxa,
entre vulcões e Canigou, é o testemunho mais popular deste apego.
Contudo, durante os dois últimos séculos, as paisagens, na
Catalunha como alhures, não foram levadas em consideração nas operações
de aménagement do território, muito especialmente no que diz respeito
à urbanização, às implantações industriais e às grandes infra-estruturas de
comunicação. A periferia de Barcelona no Vallès ou no Llobregart, assim
como a Costa Brava no seu conjunto, fornecem uma ilustração bem infeliz
disso, em violento contraste com a arte refinada dos parques e jardins do centro
da cidade. Mas a paisagem é muito mais do que um jardim. Ela é todo um
território com atividades múltiplas, local de vida, de produção, de lazer. Esta
degradação das paisagens tradicionais é um fenômeno que atinge tanto os países
industrializados quanto os países em desenvolvimento. Podemos falar de crise
da paisagem em escala planetária, e algumas pessoas acreditam ter que anunciar
a “morte da paisagem”. É verdade que numerosas paisagens antigas de muitos
séculos desapareceram e foram substituídas por coisas às vezes inomináveis. A
recente consideração do meio ambiente, polarizada na urgência dos problemas
de despoluição e de tratamento do lixo, preocupou-se pouco com as paisagens
e aquilo que elas representam para as populações envolvidas. A modernização
da sociedade e da economia realizou-se sem a paisagem, e freqüentemente
contra ela. Quando a paisagem foi transformada, a transformação limitou-se, na
A paisagem e a geografia: um novo encontro? 329

maioria das vezes, a soluções parciais e pontuais, álibis e tapa-buracos: espaços


verdes na periferia urbana, operações de jardinagem e, especialmente na França,
essas rotatórias de estradas que proliferam, espécies de “fundos paisagísticos”
colados sobre espaços desumanizados. Além disso, vastas paisagens “comuns”
fortemente identitárias são abandonadas e tornam-se alvos de incêndios
florestais (vertentes do Tibidabo e do Montserrat, colinas de Solsona). As
verdadeiras reabilitações ou criações de paisagens, também elas restritas, podem
ser de grande qualidade (centros urbanos antigos, loteamentos residenciais
nos altos de Barcelona, numerosas cidadezinhas ou habitações rurais isoladas
(mas do Pallars, do Urgellet ou do Berguedà). Todavia, estas realizações, sem
estratégias de conjunto, não representam uma resposta na mesma profundidade,
generalização e urgência da crise da paisagem. Crise particularmente grave em
torno do Mediterrâneo devido à ubiqüidade da pressão humana e à fragilidade
dos ecossistemas que, há milhares de anos, não possuem mais nada de natural.
Ali, algumas paisagens foram roídas até o osso. Irreversivelmente.
Ora, as mentalidades e os comportamentos dos cidadãos estão em
plena evolução. Novos valores e novas necessidades aparecem, em especial
no meio de populações urbanas, majoritárias e cada vez mais distantes de suas
raízes. Aparece uma verdadeira mutação da sensibilidade que atinge nossas
relações com o patrimônio e o território. Surgido primeiramente nos países da
Europa do Norte, este amplo movimento estende-se rapidamente para o Sul.
Com toda a evidência, ele está ligado à sensibilidade ecológica e ambiental,
mas ele a supera e freqüentemente a transcende, por sua dimensão identitária,
patrimonial e cidadã. A Catalunha tem boas razões históricas para não ficar
para trás hoje!
As novas políticas ambientais, especialmente com a criação de Parques
naturais, põem a paisagem cada vez mais no centro de seus projetos, e a análise
paisagística no ponto de partida de sua metodologia, mas geralmente com mais
boa vontade do que rigor científico. Se as receitas são numerosas, os métodos
são bem superficiais. Múltiplas disciplinas são convocadas, tanto no campo das
ciências da sociedade quanto naquele das ciências da natureza, como convém
a uma questão amplamente interdisciplinar. Mas esta interdisciplinaridade de
princípio, de aplicação complexa, raramente oferece os resultados esperados. A
colaboração dos arquitetos, dos urbanistas e dos paisagistas deveria consolidar
o procedimento... com a condição que cada um não venha puxar a brasa para
sua sardinha e impor sua visão da paisagem. Geógrafos estão participando
desse movimento há muito tempo em caráter individual, com um certo atraso,
enquanto comunidade científica nem sempre consciente do desafio para o
território e para si mesma. Neste caso, eles têm uma dupla tradição a defender: a
da formação e a da perícia. Mas, antes, eles devem posicionar-se em relação ao
conjunto das novas problemáticas paisagísticas e oferecer propostas de ordem
metodológica. Primeiramente, eles precisam se definir em relação a si mesmos.
Eles não são os únicos diante da paisagem, e não se esperou por eles.
330 A paisagem e a geografia: um novo encontro?

O retorno da geografia: da descrição à análise


paisagística

A geografia, pelo menos na sua concepção mais clássica, que ainda é


hoje a mais difundida e a que tem mais credibilidade junto ao grande público,
é uma disciplina híbrida que integra fatos da natureza e os qualifica no meio de
conhecimentos de finalidade social. No centro do dispositivo, há o território.
Conceito misto por definição visto que ele exprime a terra dos homens. Esta
posição no entroncamento entre natureza e sociedade não é fácil de assumir. Ela
é denegrida e rejeitada por numerosos geógrafos em atividade, particularmente
na França. Contra a natureza nos dois sentidos do termo, esta atitude está,
sobretudo, fora do compasso, no momento em que a problemática ambiental
está em plena emergência na sociedade. Em um momento em que a sociedade
está em plena emergência da problemática ambiental; em um momento em que
a maioria das disciplinas procuram adquirir esta hibridação que é indispensável
a seus projetos científicos. Citemos, entre os mais belos êxitos, aqueles da
pré-história, da arqueologia, da agronomia. Este também é o caso da ecologia
científica que desenvolve uma vertente social e se esforça por integrar, não sem
dificuldades, uma parte de paisagem humanizada à landscape ecology. Hoje,
esta hibridação não é mais uma escolha, mas uma necessidade. A geografia
estaria contra a correnteza... ou simplesmente atrasada, por ter sido, durante
pelo menos a primeira metade do século XX, adiantada demais?
A tradição paisagística da geografia, essencialmente descritiva e
“problematizante”, isto é, destinada a levantar, a priori, e de um modo descritivo
e discursivo, as perguntas relativas às relações das sociedades com seus meios,
deve ser mobilizada, porém sob a condição de ser remodelada e superada. Com
efeito, ela não corresponde mais aos desafios contemporâneos ligados ao meio
ambiente e ao desenvolvimento dos territórios.
A interrogação é, primeiramente, de ordem epistemológica. A
geografia deve se reposicionar em relação àquilo que vamos qualificar, no intuito
de chocar, de retorno do natural e retorno ao natural. Retorno àquilo que os
geógrafos têm, por volta dos anos 60-80, de alguma forma desdenhado e às vezes
perdido de vista. Por um lado, retorno, de fato, muito ambíguo, à “natureza”
na moda e na cultura, em reação à artificialização crescente da vida urbana;
por outro lado, retorno do natural sob a forma de catástrofes e de perigos, que
mesmo se são em parte ligados à evolução socioeconômica e sociocultural,
correspondem também a indiscutíveis fenômenos biofísicos, com ou sem a
contribuição das perturbações humanas. Uma nova geografia ambiental se
prende a estas questões, em particular no campo da hidrogeomorfologia, da
erosão dos solos, da variabilidade bioclimática. Com sucesso.
A irrupção da paisagem na vida social, e dali para a pesquisa
científica, é apenas um dos aspectos da revolução copérnica da imagem que
abala os modos de percepção de nosso meio ambiente. A paisagem pertence
ao mundo das representações, da estética e da simbologia. Ela está na raiz de
novos comportamentos e de novos valores que abalam nossas relações com os
territórios. Esta dimensão não é totalmente nova em geografia, mas ela ainda
A paisagem e a geografia: um novo encontro? 331

não está totalmente dominada, muito especialmente no que diz respeito à


paisagem. Paisagem “objetiva” ou “subjetiva”, “real” ou imaginária, sonhada ou
virtual, tantas dimensões interativas que devem entrar em uma problemática
renovada e que implicam em metodologias adaptadas. Por exemplo, a paisagem
não é redutível, como a maioria dos fenômenos geográficos, a uma representação
cartográfica, a um bloco-diagrama ou a um “transect”. Ela não deriva apenas do
espírito da geometria. Tanto mais porque a análise de uma paisagem deve dar
um amplo espaço às diferentes formas de apreensões individuais. De fato, não
podemos nos contentar com abordagens coletivas, aliás, difíceis de delimitar.
Esta individualização paisagística supõe métodos de estudo suscetíveis de levar
em consideração subjetividades, representações e comportamentos os mais
diversificados e os mais originais. Ainda que único, um pintor (P. CÉZANNE),
um poeta (A. MACHADO ou F. G. LORCA), e até um geógrafo (P. VILA)
pode representar um papel determinante na construção coletiva de uma
paisagem. Apenas em um segundo tempo, é possível agrupar estes diferentes
autores por afinidades paisagísticas, e esboçar uma tipologia que se revela, na
maioria do tempo, frágil e, sobretudo, fugaz. É verdade que as categorias sociais
(urbanas, rurais) e profissionais (urbanista, madeireiro, agricultor, etc.) devem
ser levados em consideração, mas com prudência e sob o benefício de inventários
individuais. Existem madeireiros pintores e construtores poetas!
A paisagem não pertence a nenhuma disciplina em especial e
a geografia não tem nada a reivindicar, senão a possibilidade de levar sua
contribuição ao centro de um procedimento não apenas interdisciplinar, mas
também profissional, já que ela envolve, em primeira instância, urbanistas,
arquitetos, paisagistas, sem esquecer os atores políticos e administrativos. A
paisagem não é, então, um conceito científico e ela não pode ser tratada como
tal. Ainda assim, a pesquisa deve obter para si acesso à paisagem, o que pode ser
a dimensão geográfica, contanto que não a isolem da história no amplo sentido
(pré-história, arqueologia). Todavia, esta proposta não basta. A nova concepção
da paisagem está profundamente impregnada pelo pensamento e a moda da
ecologia. Esta invadiu, explícita ou implicitamente, o conjunto do campo social.
A geografia, mais acadêmica, ficou muito para trás. Se ela deseja interessar-se de
novo pela paisagem, tanto pela sua dimensão sociocultural quanto ambiental,
ela não fará nada, muito menos contra a ecologia. Estas duas disciplinas, com
origens, métodos e finalidades tão diferentes e freqüentemente contrárias estão,
diante da paisagem, na obrigação de se confrontar e de colaborar no centro
de uma interdisciplinaridade dominada. Na confluência do geográfico e do
ecológico, pode ser elaborada uma forma, entre outras, de análise paisagística.
Ela gira em torno da noção de território e se abre para o conjunto da questão
do meio ambiente e do desenvolvimento.

A paisagem-território

A paisagem é global e múltipla. Em nome do princípio de diversidade,


ela deve continuar assim. Convenhamos que é indispensável, tanto quanto
possível, que ela conserve este valor de totalidade e de compartilhamento.
Todavia, as análises setoriais, como em toda pesquisa científica, são
332 A paisagem e a geografia: um novo encontro?

indispensáveis. Elas não são suficientes. Além disso, elas podem desnaturar
o projeto paisagístico; os fracassos, até mesmo as catástrofes, não faltam no
terreno da prática.
Consideramos aqui que a paisagem é parte de um todo; este todo
sendo o território em amplo sentido. Assim concebida, a paisagem não é
apenas a aparência das coisas, cenário ou vitrine. É também um espelho que
as sociedades erguem para si mesmas e que as reflete. Construção cultural
e construção econômica misturadas. E sob a paisagem, há o território, sua
organização espacial e seu funcionamento. O complexo território-paisagem é
de alguma forma o meio ambiente no olhar dos homens, um meio ambiente
com aparência humana.
Sob esta acepção, ao mesmo tempo global e finalizada, a paisagem
aparece ao mesmo tempo como objeto e sujeito. Ela é o objeto-território na
sua materialidade de mar ou de montanha, de cidade ou de campo. Ela é, ao
mesmo tempo, sujeito, nascido no olhar voltado para o território com sua carga
emocional e toda sua profundidade humana. E um mesmo território só se torna
paisagem através do cruzamento de olhares múltiplos, a partir de fenômenos
sensoriais e cognitivos compartilhados. A paisagem é sensível onde ela não o
é, com sua parte de sentimentos, até de sentimentalidade. Quase sempre há
um toquezinho romântico e pitoresco, mesmo se o negamos. Das ramblas de
Barcelona aos lagos de Aigüestortes, do porto de Empúries aos rochedos de
Montserrat se desdobra uma paisagem que é a identidade e o patrimônio de
todo um povo. Não há paisagem fora da cultura.
Compreendemos aqui porque os pesquisadores hesitaram tanto
diante de tantas materialidades e “valores” acumulados. Freqüentemente,
eles se contentaram com um discurso paisagístico lenitivo e desordenado que
permanece na superfície das coisas. As impressões do momento e as descrições
instintivas fazem parte do processo paisagístico e, sobretudo, não devemos
negligenciá-las. Elas não se bastam. Quanto à análise paisagística, ao custo
de certo peso, deve ser um aprofundamento sem fim dos conhecimentos,
e especialmente desta interação entre elementos considerados diferentes,
até disparates e contraditórios: biofísicos e sociais, econômicos e culturais,
patrimoniais e prospectivos, que combinados sobre um mesmo território, fazem
nascer a paisagem na sua aparente banalidade quotidiana.
Tudo deve ser retomado da base. É claro que não se trata de
inventar tudo. Por outro lado, é preciso remodelar e hierarquizar para dar uma
existência crível à paisagem, e trazer elementos indispensáveis para a gestão
do meio ambiente e para o desenvolvimento dos territórios. Não apenas uma
questão de método. No começo, há a reflexão epistemológica, depois vem a
teoria estreitamente associada à prática, em seguida o método combinado à
tecnologia. Nós, então, escolhemos propor a elaboração, senão de um paradigma
paisagístico, pelo menos de um paradigma ambiental que deixa um lugar para
a paisagem.
A paisagem e a geografia: um novo encontro? 333

O sistema gtp (geossistema-território-paisagem): a paisagem


posta em situação geográfica

Por várias vezes e com insistência, destacamos o grave deficit


metodológico do qual as análises paisagísticas sofrem. Da parte de certos autores
que não pertencem ao mundo científico (paisagistas, arquitetos), isto pode ser
uma vontade deliberada de excluir a paisagem de toda análise, para dar em
seguida livre curso à sua imaginação e criatividade. Isto equivale a confundir a
paisagem enquanto tal, flutuando na realidade social, e a análise do fenômeno
paisagístico que pode derivar, como qualquer outro objeto, de uma pesquisa
científica ao mesmo tempo objetiva, construída e crítica. Cada vez mais mal
tratada e jogada daqui e dali por todos aqueles que se dedicaram a se referir à
paisagem sem considerá-la como um objeto de estudo, a paisagem tem tudo a
ganhar com esse aprofundamento dos conhecimentos, especialmente no que
diz respeito às políticas territoriais de meio ambiente e de aménagement. O que
não impede em nada aqueles que desejarem imergir no desfrute da paisagem
de fazê-lo. Aliás, eles fazem parte da épura e sua contribuição para o sistema
paisagístico é essencial!
Entre os muito numerosos trabalhos dedicados à paisagem, existem
uma multiplicidade de estudos práticos que foram na maioria das vezes
elaborados na urgência e na ausência de antecipação metodológica. Estas
espécies de receitas passageiras, saídas diretamente do terreno, por exemplo,
por ocasião de um estudo de impacto ou da instalação de um parque natural,
se esforçam por responder, caso a caso, à “procura social” que é, no que diz
respeito à paisagem, especialmente flutuante. Há muitos atalhos fáceis e
métodos enganadores. Mas também é aí que se encontram exemplos notáveis
de monografias que podem se tornar, por generalização, interessantes avanços
teóricos e igual número de modelos paisagísticos. Isto equivale a dizer que
as referências bibliográficas a respeito da paisagem não faltam. Não faremos
aqui a análise crítica dos diferentes métodos, mais ou menos construídos, que
vão da análise do visível à ecologia da paisagem (Ph. Berighier). Tomaremos
emprestado de todos, esperando que haverá ainda muitas outras propostas
diferentes, até contraditórias. De fato, a despeito de esforços recentes, a paisagem
é um objeto científico muito mal identificado.
O procedimento preconizado repousa sobre dois postulados:
– Se a paisagem ficasse sem sua polêmica, ela perderia todo seu
sabor. Contrariamente a muitas outras tentativas similares, recusamos
qualquer definição unívoca da paisagem que só poderia derivar de uma atitude
reducionista, no oposto daquilo que desejamos. É preciso, então, imaginar um
sistema aberto para a sociedade e para o território, e considerá-lo como um
sistema entre muitos outros.
– Se a paisagem fosse isolada de seu meio ambiente social e biofísico,
ela não seria mais do que uma aparência, um cenário mais ou menos etéreo;
seria, em resumo, uma paisagem-zumbi. A paisagem-território, tal como a
definimos, se inscreve na realidade geográfica. Ela deriva de um método
científico “objetivo”.
334 A paisagem e a geografia: um novo encontro?

Nós então escolhemos, sempre nessa ótica de pesquisa sobre o meio


ambiente e o desenvolvimento do território, tratar a paisagem como um
dado e como uma dimensão do espaço geográfico no âmbito do paradigma
GTP (Geossistema-Território-Paisagem). O paradigma GTP, já apresentado
(Cl. e G. BERTRAND), e já posto em prática, é uma construção de tipo
sistêmico destinada a demonstrar a complexidade do meio ambiente geográfico
respeitando, tanto quanto possível, a sua diversidade e sua interatividade. Ao
propor três coordenadas no sistema, queremos superar o caráter unívoco dos
estudos que derivam de um único conceito, por exemplo, o ecossistema que é
excessivamente utilizado por analogia (para modelizar uma sociedade ou uma
cidade). Estas três coordenadas abertas em um mesmo sistema geográfico traçam
três caminhos autônomos que correspondem a três categorias espaço-temporal
diferentes, mas complementares: o território-fonte, o território-recurso, o
território-aprovisionamento.
O vale da Noguera Pallaresa em direção da Pobla de Segur (Pallars
Jussà) nos fornece um exemplo disso:
– A Noguera Pallaresa é uma torrente originada nas neves e nas chuvas
que caem sobre a alta cadeia pirenaica. Seu volume, seu regime, sua fauna e
sua flora nas margens e nas próprias águas, ainda que de origem “natural”, são
largamente antropizadas pelas barragens, as poluições e os aménagements das
margens. Esta é a fonte da qual temos que analisar os componentes biofísicos
mais ou menos degradados.
– Esta torrente é também um eixo da vida econômica. Outrora
utilizada para fornecer energia para a indústria mineira (moinhos e forjas à
catalã), para o transporte de madeira, hoje tem o curso modificado pelas
barragens e as retiradas de água. É um recurso que foi diferentemente valorizado
e artificializado pelos sistemas econômicos que se sucederam nos dois Pallars.
O mesmo ocorre com os vulcões da bacia de Olot, cultivados até o século
passado a despeito da inversão das temperaturas; hoje invadidos pelo mato
ou reflorestados, extraordinários cenários do Parque Natural da Garrotxa. A
torrente como o vulcão estão profundamente artificializados.
– Enfim, a Noguera Pallaresa, esplêndida língua de frescor e de verdor,
ainda ecoando os cantos e as façanhas dos barqueiros, rica de seu patrimônio
metalúrgico, torrente mítica, dom da montanha a este Pallars Jussà ressecado,
é um lugar de aprovisionamento, simbólico e “artialisé”. Grandes festas
acontecem na superfície de suas águas. Quanto aos vulcões de Olot, eles estão
no centro das atividades turísticas e dos quadros dos pintores locais.
Estas três entradas, correspondendo à trilogia fonte-recurso-
aprovisionamento, são baseadas em critérios de antropização, de artificialização
e de artialisation. Elas abrem três vias metodológicas:
-O Geossistema, conceito naturalista, permite analisar a estrutura
e o funcionamento biofísico de um espaço geográfico tal como ele funciona
atualmente, ou seja, com seu grau de antropização (Cl. e. G. BERTRAND).
-O Território, conceito bem conhecido dos geógrafos, que permite
aqui analisar as repercussões da organização e dos funcionamentos sociais e
A paisagem e a geografia: um novo encontro? 335

econômicos sobre o espaço considerado.


-A Paisagem, enfim, que representa a dimensão sociocultural deste
mesmo conjunto geográfico.

Um sistema paisagístico com duas coordenadas: material e


“ideal”

O sistema GTP não esgota a totalidade da paisagem. O mesmo


ocorre com o geossistema e o território que encontram alhures seu pleno
desenvolvimento (Cl. e G. BERTRAND). O que conta aqui antes de tudo
é reaproximar estes três conceitos ou noções para analisar como funciona um
meio ambiente geográfico na sua globalidade. Trata-se então, essencialmente,
de apreender as interações entre elementos constitutivos diferentes e,
muito especialmente, de ver como interagem a paisagem, o território e o
geossistema.
Esta paisagem territorializada, que poderíamos qualificar de geográfica,
sem referência particular à disciplina, é ao mesmo tempo aquela dos centros
carregados de história e dos sítios pitorescos, assim como do conjunto das
paisagens ditas “comuns”, cidades e campos, que desfilam sob nossos olhos mais
ou menos distraídos (L. LELLI). Trata-se, então, ao mesmo tempo, de um objeto
espacial propriamente dito, bairro urbano ou bosque/prado (bocage), e de um
olhar lançado sobre este espaço. Este postulado da dupla essência fundamenta o
método. Como ir além das simples aparências e das sensações imediatas? Como
traduzir nossos olhares em representações socioculturais? Como enraizar estas
representações, remanejadas pela memória, na materialidade dos objetos que
estão em sua origem? Entre a árvore-material, rica de sua seiva e de seus frutos,
e a árvore-ideal, símbolo de força e de vida, onde se situa a árvore-paisagem
tal como ela é vista e “vivida”? A questão está aberta; as respostas imperfeitas.
É preciso ir em frente, pois não é concebível deixar se desenvolver políticas
de meio ambiente ou de aménagement-desenvolvimento que ignoram a
paisagem ou então a tratam de modo unívoco. Trata-se da qualidade de vida
das populações e da identidade cidadã. Propomos, então, no âmbito do sistema
GTP, e a título provisório, um método de análise com duas coordenadas. Estes
dois procedimentos são totalmente interativos e apenas a necessidade de uma
exposição linear nos obriga a tratá-los sucessivamente.
-Uma coordenada material que tem por objetivo reunir e tratar a
configuração de conjunto dos corpos materiais que entram na composição
de um espaço geográfico, sejam eles naturais ou artificiais (árvore, estrada,
construção, água). Aplicamos aqui, em um primeiro tempo sem nenhuma
transposição, o método geossistêmico. Ele nos fornece uma coordenada global,
integrada, interativa e com múltiplas escalas no espaço e no tempo. Ele se apóia
na elaboração de diversos documentos: levantamentos de terreno, mapas e
“transects” em várias escalas, croquis panorâmicos e blocos diagramas, imagens
diversas, estatísticas e pesquisas de arquivos. O resultado é bem mais que um
fichário de dados analíticos. É um suporte racional, modulável e de múltiplas
escalas. Ele vai constituir a base material da análise paisagística. Mas, de
336 A paisagem e a geografia: um novo encontro?

nenhum modo, ele não representa a paisagem.


Paralelamente, concluímos uma investigação sobre os atores da
paisagem. O qualificativo de ator é tomado em amplo sentido: do agente
transformador ao agricultor, do caminhante ao pescador, passando pelo eleito
político ou associativo. Cada um tem seu lugar e seu papel em função de sua
cultura, de suas percepções e, sobretudo, de seus projetos paisagísticos. Sabendo
que um mesmo indivíduo (ou uma mesma categoria social) pode ter, em
circunstâncias diferentes, atitudes diametralmente opostas a respeito de uma
mesma paisagem. Trata-se, então, de conduzir investigações “em situação”,
em função dos projetos de cada ator. Esta investigação pode ser, no princípio,
apenas individual, na medida em que a paisagem deriva, em grande parte, da
sensibilidade e da cultura pessoais.
Só em um segundo momento, podemos tentar aproximações jogando,
de acordo com a paisagem ou a sociedade em questão, com categorias sociais
com contornos sempre indefinidos e móveis. Os grupos socioprofissionais
podem fornecer um primeiro esboço de classificação com a condição de se
desembaraçar dele muito rapidamente, fazendo intervir outros critérios, tais
como o tipo de “freqüentação paisagística”, o nível sociocultural, a geração, etc.
De fato, apenas quando a paisagem se torna um desafio social reconhecido e,
às vezes, um objeto de conflito, é que as representações e os comportamentos
paisagísticos se enfrentam e, às vezes, se desafiam e se enrijecem. Neste tipo de
investigação, é preciso substituir as intervenções individuais mais marcantes,
por exemplo, as dos pintores, dos romancistas, dos poetas ou de cientistas,
de políticos e de agentes transformadores que têm marcado duramente uma
paisagem. É dessa forma que geólogos (Lluís SOLÉ SABARÍS), botanistas (O.
de BOLÒS), geógrafos (Pau VILA, Salvador LLOBET, Lluís CASASSAS, Joan
VILÀ VALENTÍ) representaram um papel não negligenciável na construção
mental e cívica da paisagem catalã.

Um sistema geral de representação: sistema dominante e


subsistemas dominados

Para transmitir esta diversidade plena de fios cruzados e de


contradições, imaginamos, a título de hipótese, construir uma espécie de grade
de referência que tem apenas a função de estabelecer um começo de classificação
mais ou menos hierarquizado. Ela é dada aqui a título indicativo (quadro no
fim). Para cada território considerado, qualquer que seja sua natureza e sua
dimensão, construímos um “sistema geral de representações” da paisagem.
Ele se compõe de um sistema de representação “dominante” e de um número
variável de subsistemas “dominados”.
- O sistema dominante, seja ou não imposto por uma minoria cultural
ou econômica atuante, é compartilhado pelo maior número. Ele tem duas
proveniências.
Por um lado, ele tem uma origem histórica e patrimonial baseada na
memória coletiva. Ele deriva, na maioria das vezes, de modelos de paisagens
A paisagem e a geografia: um novo encontro? 337

herdadas, às vezes de períodos muito longínquos (romantismo “à francesa”,


“época de ouro” do campo, etc.). Ele apresenta geralmente uma forte carga
afetiva e identitária, e ele é muito freqüentemente elitista. Ele pode facilmente
se nuançar de saudosismo e de conservadorismo. Ele não precisa de projeto
paisagístico preciso para se impor.
Por outro lado, ele está fortemente influenciado pela mediatização
paisagística tal como ela é fabricada na cultura contemporânea das mídias,
em particular através de spots publicitários que usam muito amplamente as
paisagens, da venda de imóveis à venda de sabão em pó.
– Na dependência do sistema dominante ou em contradição e em
conflito com ele, ou ainda totalmente no exterior, é indispensável pôr em
evidência os subsistemas individuais mais característicos, segundo critérios já
evocados. É possível então desenhar os contornos de subsistemas coletivos. Eles
são de natureza muito diferente e se conectam freqüentemente. Eles podem ser
classificados de modo unívoco. Entre estes, existem grupos sociais que têm uma
consciência bastante clara dos desafios paisagísticos. Eles podem divergir, até se
opor (associações de proteção da natureza, construtores imobiliários). Existem
também grupos sociais muito desfavorecidos que se acham de fato excluídos
de qualquer cultura paisagística e para os quais a paisagem não é nem mesmo
um longínquo Eldorado.
Válido para um dado território, este “Sistema geral de representação”
repousa sobre métodos de investigação que não estão ainda completamente
desenvolvidos e que exigem pesquisas especializadas sobre os mecanismos
psicosociológicos das representações paisagísticas. (L. LELLI).

Conclusão: “a maravilhosa pluralidade do simples” claude


feraggi

Este sistema de representação não é a paisagem em si mesma. Ele não


é mais do que a metade dela. Esta representação só é possível se há alguma
coisa para representar, ao mesmo tempo diante dos olhos e atrás dos olhos, ou
seja, na memória e na cultura. Em frente, há um objeto: o território. Na sua
materialidade e com seu funcionamento específico. Isolado, ele tampouco é
a paisagem.
O sistema paisagístico com duas dimensões, duas “coordenadas”,
tal como o propomos aqui, permite considerar os fenômenos materiais e
ideais, precisar sua hibridação e sua interatividade. Ele se baseia em uma
oscilação permanente, um vai-e-vem que é socialmente controlado (pelo
sistema de representação e a análise do território) e ecologicamente balizado
(pelo geossistema). Não apenas pensamos a paisagem material, mas também
a paisagem material nos pensa (no sentido de J. Baudrillard: “É o objeto que
nos pensa”). É por isso que a paisagem de Montseny nos parece imutável. Na
verdade, ela é sempre recomeçada. Com cada um de nós. Seria preciso que
acontecesse da mesma forma com a geografia. Então, a paisagem e a geografia
terão um novo encontro.
338 A paisagem e a geografia: um novo encontro?
A paisagem e a geografia: um novo encontro? 339

ORIENTAÇÃO BIBLIOGRÁFICA

BÉRINGUIER, Philippe; DÉRIOZ, Pierre. LAQUES, Anne-Elisabeth. (1999). Les


paysages français. Paris: A. Colin, Synthèse, 95 p.
BERTRAND, Claude; BERTRAND, Georges. (2000). Le géosystème: un espace-
temps anthropisé. Esquisse d´une temporalité environnementale. In Les Temps de
l´Environnement. Presses Universitaires du Mirail, p. 65-076.
BERTRAND, Georges. (2000) “Le patrimoine, un avenir pour le territoire”. Les homes
et leur patrimoine en Comminges. Actes du 52e. Congrès de la Fédération historique
de Midi-Pyrénées: Société des études du Comminges. Saint Gaudens, p. 889-896.
LELLI, Laurent. (2000). “Le paysage ordinaire: l´exemple du Nord-Comminges (Haute-
Garonne-France). Essai méthodologique et pratique”. Thèse de doctorat en Géographie
et Aménagement. Université de Toulouse II, 14 janvier, 325 p.
340

O MEIO AMBIENTE: CAMINHANDO PARA UMA


CIÊNCIA DIAGONAL?

G. Bertrand – Presidente do Comitê de Programa do


PIREVS-CNRS

Não é minha intenção, e não me lembro de ter sido, intervir


diretamente no tema do balanço do Programa Interdisciplinar de Pesquisa do
Meio Ambiente, Vida e Sociedade e, ainda menos, em uma futura programação,
que dependem ambos da direção deste programa. Exceto sobre um ponto,
que diz respeito diretamente ao papel e à função do Comitê de Programa,
que eu tenho a honra de presidir. Eu não sou o único a me interrogar sobre
sua funcionalidade no interior de uma hierarquia complexa de comitês e de
conselhos e sobre sua eficácia além da formulação de uma opinião sobre a
criação dos GDR (Grupo de Pesquisa do CNRS). Aliás, eu lamento que nesta
estrutura consultiva, emanação do Comitê Nacional do CNRS, as comissões, as
disciplinas e os pesquisadores interessados não sejam representados de maneira
cientificamente mais satisfatória, e que o presidente seja nomeado, o que limita
sua capacidade de iniciativa.
Tal como foi previsto e funcionou, neste período de “mau tempo
sobre o planeta” CNRS, o Comitê de Programa sempre se esforçou em manter
a orientação científica do Programa e ele nunca negou seu apoio à equipe
de direção. Eu creio poder aqui, em nome do Comitê de Programa, saudar e
agradecer em bloco a direção científica e administrativa do PIREV que enfrenta
a tormenta, mantendo uma pesquisa contínua a partir de financiamentos
descontínuos, construindo interdisciplinaridade a partir de disciplinas muito
disciplinares, e elaborando uma programação com laboratórios às vezes
desprogramados.
O Comitê de Programa ainda soube tomar algumas iniciativas. Ele
participou diretamente da organização e da animação das Jornadas do PIREV
1997 sobre o tema “Os tempos do meio ambiente”, cujas atas estão sendo
publicadas. Ele também soube se lançar em uma reflexão prospectiva que ele
infelizmente não teve tempo de levar a termo. Ainda assim, eu possuo algumas
contribuições que podem esclarecer o debate de hoje. Eu vou me esforçar por
considerá-las, mas a título pessoal e comprometendo apenas a mim, na medida
em que o Comitê do Programa não teve tempo de produzir uma síntese coletiva
e construída. O exercício ao qual eu vou me entregar é então limitado em
sua ambição1 . Ele não é perspectivo, prospectivo, nem premonitório. Ele se
1 Eu agradeço mais particularmente a Marcel Jollivet e Alain Weill, membros da Direção do
PIREVS.
O meio ambiente: caminhando para uma ciência diagonal? 341

esforça simplesmente em sair da tendência e buscar mais a ruptura do que a


continuidade que outros, aqui mesmo, estão encarregados de assegurar.

O meio ambiente, uma noção que evolui permanentemente e


à qual a pesquisa deve adaptar-se e aprofundar-se ao mesmo
tempo

Ninguém hoje em dia questiona a propriedade da questão ambiental,


assim como a necessidade de sua abordagem científica, quaisquer que sejam
as reticências que ainda se manifestem, aqui e lá, no CNRS ou no exterior. A
colocação em perspectiva, até em prospectiva, do meio ambiente só se esclarece
se ele for colocado no longo prazo da história humana. Atrás da noção de meio
ambiente há um modo de ver, de interpretar e de viver o mundo, ao mesmo
tempo global e interativo, que supera e impregna toda análise científica. Ele faz
parte da cultura contemporânea da mesma forma que as noções de identidade,
de patrimônio, de desenvolvimento, de paisagem. O meio ambiente é muito
mais do que um conceito científico.
O fenômeno ambiental nasceu da humanização e da socialização. Ele
foi primeiramente cosmogônico e religioso. Para compreendê-lo e dominar seu
sentido e seus recursos, a ciência e a técnica o dividiram em frações de saber
cada vez mais finas e cada vez mais eficientes... até perder de vista a totalidade
e a interatividade.
Só tardiamente, ao longo dos séculos XVIII e XIX, por caminhos
diversos e nem sempre convergentes, que certos exploradores e cientistas
(sociólogos americanos, naturalistas alemães e anglo-saxônicos, geógrafos
alemães e franceses, depois ecologistas) sentiram a necessidade, ao mesmo
tempo cultural e científica, de estruturar parcialmente aquilo que havia sido
separado e de considerá-lo como um todo, primeiramente como uma estrutura,
em seguida como um sistema funcional. Houve primeiramente uma concepção
naturalista do meio ambiente, no início tendo como objeto as planta e o animal,
em seguida a biocenose, enfim, uma concepção ecologicamente mais elaborada,
em parte inspirada pelo conceito de ecossistema. Até ali, o homem era apenas
o operário da décima primeira hora, perturbador de clímax. Um limite decisivo
foi superado com a consideração da dimensão social e a exploração da interface
natureza-sociedade. Amanhã, a possível transformação do PIR Meio Ambiente,
Vida e Sociedade em um PIR Meio Ambiente e Desenvolvimento será uma
fase suplementar na evolução da pesquisa sobre o meio ambiente. Mas qual
será a etapa seguinte, em quanto tempo e, sobretudo, qual será a orientação e
qual será, nesta evolução, a parte da pesquisa?
A aceleração, e a depreciação, de numerosos processos ecológicos e
socioeconômicos em um ambiente de crise, ao mesmo tempo real e/ou suposta,
nos levam desde já a fazer a pergunta, tendo como única antecipação possível
nossa capacidade de elaborar futuras ferramentas de trabalho organizadas em
torno de um paradigma ambiental coerente.
342 O meio ambiente: caminhando para uma ciência diagonal?

Algumas questões agudas para amanhã

A situação é complexa e suscita controvérsia. Precisamos nos


preparar racionalmente para certas revisões. Os dois “pontos quentes” que nós
levantamos dizem respeito um à dimensão humana e social da pesquisa sobre
o meio ambiente, o outro à conservação e à prática da interdisciplinaridade.

A finalidade humana e social da pesquisa sobre o meio ambiente é, hoje,


um fato reconhecido
Isto não aconteceu sem reticências e os resultados práticos não estão
ainda à altura das petições de princípio. As razões invocadas não são sempre
boas. O movimento de integração dos fatos humanos e sociais sempre se realizou
de modo unívoco por integração ascendente a partir de problemáticas, de
conceitos e de metodologias específicas propostas ou impostas pelas ciências
da natureza. Importantes avanços foram realizados, mas houve também muitos
fracassos e estagnação. Alguns pesquisadores em ciências humanas e sociais não
puderam, não souberam ou não quiseram adaptar-se a esta mecânica que eles
consideram preconcebida. Este é o caso de alguns antropólogos que adotaram,
usando suas palavras, “uma postura de denúncia” em relação à problemática
do meio ambiente. É preciso saber escutá-los ainda com mais atenção porque
muitos deles são íntimos de sociedades às voltas com dificuldades de meio
ambiente e de desenvolvimento.
Então, é preciso prever e organizar para os próximos dez anos uma
reviravolta da problemática ambiental. Ela deve permitir resituar os mecanismos
ecológicos no sentido amplo nos sistemas e nas práticas sociais e econômicas,
culturais e identitárias. Este procedimento, já iniciado, prometedor, faz entrar o
meio ambiente na cultura, ou mais exatamente e com pertinência, na diversidade
das culturas. O famoso limite epistemológico entre as ciências da natureza e
as ciências sociais deve ser abordado e ultrapassado nos dois sentidos. Ele não
é nem rígido nem insuperável. A dimensão antropológica do meio ambiente
tem este preço..., assim como sua abertura para o desenvolvimento durável e
o princípio de precaução. Esta evolução só será possível se aproximarmos a
pesquisa ambiental, dita fundamental (mesmo se ela tem aplicações importantes
e diretas), da outra concepção de meio ambiente que é antes de tudo aquela
de uma ciência ou técnica da ação, ou na melhor hipótese, de uma teoria da
prática. Na França, a entrada recente do meio ambiente e da paisagem na
política de transformação do território deve ser cientificamente preparada,
apoiada e, sobretudo, antecipada. Esta construção social do meio ambiente
deve-se elaborar a partir de dois conceitos, às vezes confundidos, e que é
indispensável diferenciar:
- de um lado, a socialização propriamente dita tal como nós acabamos
de defini-la;
- do outro lado, a antropização que caracteriza o impacto das sociedades
sobre seu território, isto é, a elaboração, consciente ou inconsciente, de seu
próprio meio ambiente (ou o dos outros!). Toda uma terminologia imprecisa e
O meio ambiente: caminhando para uma ciência diagonal? 343

recorrente (forçamento, pilotagem, artificialização, etc.) deve ser harmonizada


no interior de verdadeiros sistemas ou modelos antrópicos que não estão ainda
suficientemente elaborados.
A introdução da dimensão social e cultural vem então reforçar e
completar a noção de diversidade que não é apenas de ordem biológica. É
bem sabido que o meio ambiente de uns não é o meio ambiente de outros e
que muitas incompreensões e conflitos nascem desta situação. Aqui, tocamos
exatamente um dos pontos mais sensíveis do desenvolvimento durável que a
pesquisa sobre ou para o meio ambiente não poderá atingir se não seguir um
caminho obrigatório através das culturas e das práticas sociais.
A pesquisa ambiental já levou em consideração a questão dos
fenômenos socioculturais ligados à percepção, à representação, à experiência
vivida, ao qualitativo, ou seja, a um conjunto de valores através dos quais
uma sociedade constrói simbolica e materialmente seu meio ambiente, que
se ornamenta então com as formas e as cores da paisagem. A análise das
construções paisagísticas é um desafio apenas lançado e que conhece múltiplas
derivas na ausência de métodos suficientemente elaborados. Este é um problema
tanto mais difícil porque é indispensável levar em consideração, no interior
dos sistemas sociais, as atitudes individuais e cidadãs que representam um papel
cada vez mais determinante na gestão do meio ambiente e na transformação
dos territórios.

Desde a origem, a pesquisa sobre o meio ambiente está indissoluvelmente


ligada à interdisciplinaridade.

Esta é, de fato, sua razão de ser, mas também seu tormento, na


medida em que esta situação excepcional é dificilmente admitida pelas
disciplinas constituídas e não é claramente reconhecida e bem administrada
pelas instituições científicas e administrativas. Os estudos sobre o meio
ambiente, sobretudo quando eles se situam na interface entre as ciências da
sociedade e as ciências da natureza, são ainda com muita freqüência uma
realização de “invasores de fronteiras”, espécie de contrabandistas da pesquisa
cuja existência é certamente reconhecida, mas aos quais é permanentemente
pedido que justifiquem sua identidade e sua atividade. Um dos grandes méritos
dos sucessivos PIR foi de aceitar e encorajar este modo de funcionamento.
Mas precisamos nos deter aí, enquanto os inconvenientes são múltiplos
(recrutamento de jovens pesquisadores e financiamentos)?
No seu prefácio, o Relatório de Conjuntura 1996 do CNRS destaca
que a interdisciplinaridade adquiriu agora seus títulos de nobreza e insiste no
“emaranhamento dos campos disciplinares”. De fato, assistimos nesses últimos
anos a um duplo movimento:
- de um lado, a um amontoamento e a um recuo da interdisciplinaridade
em todos os quadrantes, e a um retorno a práticas disciplinares mais
clássicas;
- do outro lado, e o conteúdo geral do Relatório de Conjuntura o
344 O meio ambiente: caminhando para uma ciência diagonal?

confirma, assistimos a um extraordinário desenvolvimento da interdisciplinaridade


no interior e a partir de cada disciplina. A emergência dessa espécie de tribologia
ambiental é absolutamente significativa da contribuição considerável, mas
pouco reconhecida e pouco analisada, da interdisciplinaridade de tipo PIR
às disciplinas constituídas. Este aspecto deve ser levado em consideração
em uma futura programação que não pode mais ignorar esta espécie de
interdisciplinaridade disciplinar.
A dimensão social e o procedimento interdisciplinar não são as duas
únicas questões agudas que vão condicionar a pesquisa futura sobre o meio
ambiente e sua operacionalidade. Problemas de método que não podemos
analisar aqui também se apresentam: a extensão da análise de sistema às
ciências sociais, a dialética entre a monografia e o modelo, o reconhecimento
das temporalidades, ritmos, periodizações específicas ao meio ambiente e, muito
especialmente, a durabilidade que falta inscrever nas temporalidades e nos
ritmos. Seria preciso, em todos estes campos e em muitos outros, poder trazer
propostas que não fossem dispersas e disparatadas. O meio ambiente se tornou
um campo científico vasto, vago, mas reconhecido. Não teria chegado o tempo,
pelo menos em termos de prospecção e de cenário, de considerar a construção
de uma espécie de paradigma ambiental, ao mesmo tempo centralizador e
amplamente aberto para o conjunto das disciplinas envolvidas?

Caminhando para uma “ciência diagonal”?

Falar de “ciências do meio ambiente”, no plural, não acrescenta nada


à situação atual que se caracteriza por uma grande flutuação epistemológica
e uma grande dispersão conceitual e metodológica. Evocar uma “ciência do
meio ambiente”, no singular e sem nuance, parece irrealista. No entanto,
não é a primeira vez que a questão se coloca em campos vizinhos e, em cada
ocasião, uma solução específica foi encontrada. Em diversas circunstâncias do
desenvolvimento social e do progresso científico, novos sistemas científicos
foram construídos: a “florestaria”, a ecologia, a agronomia, a ecotoxicologia e,
até mais anterior, a geografia. Estas configurações se tornaram, com o tempo,
construções científicas reconhecidas, seja de disciplinas fundamentais, ou de
ciências aplicadas.
- Seria preciso sonhar, depois de Roger Caillois, poeta e epistemólogo,
com a criação de uma “ciência diagonal” do meio ambiente que, sem pretender
se tornar uma ciência fundamental e vertical, permitiria combinar a um dado
momento elementos emprestados de diferentes disciplinas para construir um
campo de investigação transversal? A ecologia científica baseada no conceito
centralizador de ecossistema não é o melhor exemplo disso?
- Não seria razoável considerar que a pesquisa sobre o meio ambiente,
em pleno progresso e cada vez mais complexa, não poderá permanecer muito
tempo no estado de dispersão multidisciplinar em que se encontra atualmente?
Uma programação, por mais rigorosa que seja, não conseguirá deter a onda
dos questionamentos, dos métodos e dos conhecimentos. Escolhas estão por
fazer. Especialmente, é preciso levar em conta a importante contribuição das
O meio ambiente: caminhando para uma ciência diagonal? 345

diferentes disciplinas para aquilo que constitui o próprio coração do meio


ambiente-desenvolvimento, isto é, a relação sociedade-natureza na ótica da
durabilidade.
- O futuro sistema de pesquisa sobre o meio ambiente deveria
então ser construído sobre uma “amalgamação entre a interdisciplinaridade
e as disciplinas envolvidas prevendo todas as separações necessárias para
que o conjunto permaneça sempre aberto para as pesquisas mais profundas.
Este sistema de amalgamação-separação só funcionará se ele for pilotado
por um corpo central destinado a controlar a temática e a problemática do
meio ambiente através dos conceitos e dos métodos oriundos das diferentes
disciplinas elaboradas diretamente pela pesquisa interdisciplinar. Este corpo
essencialmente epistemológico, conceitual e metodológico, deve primeiramente
se basear sobre a definição de um campo semântico específico. É importante
que o meio ambiente tenha uma linguagem própria. Até aqui, as “palavras” do
meio ambiente foram emprestadas, o mais fácil e por analogia, das diferentes
disciplinas, com incessantes desvios de sentido e funções. Além disso, a maioria
das palavras-chave é híbrida entre o natural e o social (recursos, paisagem,
antropização, etc.) e elas precisam ser definidas em um campo semântico
unitário e misto. A pesquisa interdisciplinar atual sofre por não possuir tal
corpo semântico e conceitual, centralizador e hibridado. Ele é indispensável
para o desenvolvimento de formações pedagógicas especializadas. Sua função
é de ordem didática.
Este corpo central e este sistema de amalgamação-separação são
destinados a assegurar uma ligação, direta e apaziguada, entre o procedimento
interdisciplinar e as diferentes disciplinas envolvidas. Seria o começo de uma
“ciência diagonal”? Não é isso que importa. O importante é ter consciência
de que, se o meio ambiente é consubstancial com a interdisciplinaridade, esta
última, na sua concepção atual, é apenas uma solução transitória e, na maioria
das vezes, apenas um quebra-galho conceitual e metodológico. Todavia, ela foi
e continua sendo um progresso significativo. Ela não é insuperável e é preciso
querer e saber superá-la. O futuro programa de pesquisa interdisciplinar sobre o
meio ambiente deve poder representar este papel de corpo central. Desejemos-
lhe boa sorte!
346

O OLHO DO ABUTRE

Suspenso como se estivesse imóvel, alto no céu agitado, fragmento


de vida entre os retalhos de nuvens que o vento desprende da abundância da
parede de foenh sobre a alta cordilheira, o abutre perscruta em seu vôo imóvel
a imensidão rugosa das cristas. Sua abóbada silenciosa desenha uma paisagem
que é seu território: rochedos e lagos, florestas e estradas, rebanhos e cidades.
O olho do abutre está à procura deste ínfimo e derradeiro fragmento de osso
esmagado, concentrado substancioso de seu mundo de pássaro.

O global supera a soma dos locais (M. Serres)

É no esforço e na lentidão que aquele que segue uma trilha descobre


a montanha pirenaica: passo a passo, um trecho após o outro, panorama após
panorama. Cada paisagem é diferente, cada cidadezinha é única, cada vale a
nenhum outro semelhante. As imagens e as sensações se sucedem. Ninguém
esquece o seixo da trilha que range sob o sapato cansado, o gargalo apertado
da fonte murmurante, a transformação tão esperada da paisagem na luz da
próxima clareada, o calor cheio de vida de um encontro ou de uma troca de
palavras. A cada um sua paisagem, a cada um seus Pireneus... no ritmo de seus
passos, de seus olhares, de seus desejos. Os Pireneus são variados tanto em sua
natureza como no espírito dos homens. Nós os chamamos de mediterrâneos
ou atlânticos, espanhóis ou franceses e, mais do que nunca, andorranos,
catalães, aragoneses, bascos, araneses, bigourdinos, do Ariège, navarrenses, do
Béarn... Esta diversidade não é novidade. Ela deve ser abordada toda vez que
os Pireneus entram em um período decisivo de sua história, seja no momento
da assinatura do tratado dos Pireneus, do desenvolvimento do termalismo ou
ainda da generalização do turismo invernal.
Como poderia ser de outra forma hoje, com o aparecimento de outras
necessidades sociais e econômicas, com a manifestação de novas sensibilidades
e de novos comportamentos culturais e com a descoberta, enriquecedora, mas
ambígua, da “montanha” e de seus “valores”? Tanto mais porque esta mutação
é estranha aos Pireneus, e porque ela se desenvolve sobre um fundo de crise
interna do maciço: despovoamento, degradação dos sistemas agropastoris,
desindustrialização e desintegração das sociedades tradicionais, decomposição
das paisagens, desilusão quase geral que leva às vezes a um retorno a identidades
tribais. O incremento da regionalização e das autonomias atinge profundamente
os Pireneus, que nunca foram tão atingidos por movimentos tão variados,
rápidos, contraditórios, e quanto a alguns deles, irreversíveis em escala
O olho do abutre 347

humana. De diverso, os Pireneus correm o rico de se tornarem disparatados e


pulverizados.
No entanto, através do olho do abutre, da objetiva do satélite ou a
partir do simples olhar posto em um mapa de dimensão européia, os Pireneus
aparecem singulares em sua plenitude e sua finitude de maciço montanhoso.
Unidade geográfica um pouco esquecida, mas que se impõe hoje no mundo
dilatado de uma Europa transnacional. Unidade geográfica que proporciona
uma nova forma de inteligibilidade a um mundo pirenaico diversificado, mas
enfim reunido. Unidade geográfica que não contradiz em nada a variedade,
tanto a dos objetos como dos olhares. É preciso aqui prestar contas de uma como
da outra. Nenhuma apresentação monolítica, monográfica, monodisciplinar
seria satisfatória. Daí provém esta tentativa de sobrevôo, a partir de diferentes
horizontes, a partir destes olhares cruzados. Sua única ambição é preservar a
diversidade das realidades e dos esclarecimentos no âmbito de uma reflexão
global. Afim de que cada um, em seu local de vida ou de trabalho, em sua
trilha de caminhada, ao volante de seu carro, ou simplesmente diante deste
guia aberto, possa sonhar e reinventar os Pireneus a partir de seu próprio olhar
mergulhado no fundo do olho do abutre.

O Istmo-montanha, o paradoxo fundador

Na escala do continente europeu, a montanha pirenaica não se


distingue imediatamente em um mapa ou uma imagem de satélite. O olho é
irresistivelmente atraído pelo estrangulamento de terra muito pronunciado que
separa a parte continental da Europa da Península Ibérica e pela reaproximação
em golfo das duas extensões marinhas, do Mediterrâneo e do oceano Atlântico.
A Península Ibérica, em posição de “finis-terre” (fim da terra), aparece como
uma poderosa jangada ainda atracada na Europa por um pedúnculo continental
de apenas 450 km de largura.
O istmo é realmente o traço geográfico mais importante aqui. Ele é
portador de toda uma história tanto natural quanto humana. A noção de istmo
é historicamente indissociável da idéia de passagem, de contato, isto é, de fluxos
de atividades múltiplas e contraditórias: geológicas e biogeográficas, políticas
e militares, comerciais e culturais. Pensamos especialmente em Corinto,
Suez e Panamá, isto é, nos grandes locais geoestratégicos e geopolíticos que
representam a comunicação entre os homens.
Ora, aqui o istmo é uma montanha. Uma intumescência orográfica
poderosa e contínua de 2.500 a 3.000 m de altitude, estendendo-se sobre a
totalidade do istmo e erguendo uma massa rochosa inclinada, larga de 50 km
a 150 km, com raros passos transversais elevados e de difícil acesso. À sua
elevação e à sua compacidade, a montanha pirenaica acrescenta os obstáculos
próprios dos climas de montanha, da densidade de seu revestimento florestal
e da circulação torrencial das águas. Tanto no leste como no oeste, as duas
fachadas litorâneas são também rochosas, e deixam pouco espaço a planícies
mal ligadas umas às outras.
348 O olho do abutre

O maciço pirenaico introduz com força, e não sem violência, a


imposição, o obstáculo, a barreira, no próprio coração do istmo.
Istmo-montanha ou montanha-istmo, tal é o paradoxo fundador da
geografia dos Pireneus. O único em condições de colocar, a priori, a questão
da complexidade pirenaica tanto da história social como da história da
natureza. O único que pode revelar situações e interpretações aparentemente
contraditórias.
Até agora, ele não foi suficientemente posto em evidência. Nós nos
temos contentado em brincar com ele, separadamente e de acordo com as
necessidades da demonstração, do istmo ou da montanha, ou seja, da passagem
ou do obstáculo, em procedimentos deterministas ou reducionistas; ou então
ele foi negado em bloco, como se não existissem, ou não mais existissem os
Pireneus. No entanto, o istmo e a montanha, a passagem e o obstáculo, são dois
traços objetivos, consubstanciais ao funcionamento dos Pireneus. Aqui mais
do que em outro lugar, a necessidade de passagem cria o obstáculo e a realidade
do obstáculo determina a necessidade da passagem. Como no caso da maioria
dos istmos, de Suez ou do Panamá, a passagem foi forçada e transformada pelo
trabalho dos homens e exigiu equipamentos pesados e caros para vencer aqui
um deserto de areia, ali uma floresta tropical, acolá uma rugosa montanha.
Esta situação deve ser analisada pelo menos em escala européia sob
uma perspectiva de ampla abertura. Ela, aliás, não se limita apenas à travessia
meridiana da cordilheira unindo uma terra à outra. Nós hoje temos uma
tendência excessiva a esquecer que o istmo pirenaico funciona também de leste
para oeste, entre dois mares; de um lado, graças às duas fachadas litorâneas,
a catalã e a basca, que se ligam a duas grandes civilizações marítimas, uma
mediterrânea e a outra oceânica; por outro lado, graças à presença de dois
vastos corredores naturais: o do Ebre e das bacias navarrenses e bascas no sul,
e o da Garonne e da Aude no norte.
É tanto no sentido leste-oeste quanto norte-sul que se tem o direito
de falar, a respeito dos Pireneus, de istmo sul-europeu. Muito mais do que uma
muralha ou um limite, a montanha pirenaica está plantada, hoje mais do que
nunca, como uma pirâmide ou um marco sobre múltiplas rotas da Europa e
do mundo.

Da margem à unidade

Eis porque os Pireneus não estão mais lá onde estavam! Você notou,
em certos mapas de atlas, sobretudo nos mais recentes, que o maciço pirenaico,
como se sub-repticiamente, mudou de lugar? Para grande prejuízo do mau aluno
que sabia que, desde sempre e tranqüilamente, “os Pireneus são uma montanha,
no fundo da França, em baixo, à esquerda”. Os Pireneus de fato foram por muito
tempo relegados à beirada de um mapa, representados por apenas uma de suas
vertentes, isto é, em um cenário ou uma ordem nacional, espanhol ou francês.
Quando olhamos os Pireneus de Madri ou de Paris, vemos forçosamente apenas a
metade. Hoje, precisamos apreendê-los globalmente como uma realidade acima
O olho do abutre 349

das fronteiras. Os novos enquadramentos europeus deslocam os Pireneus tanto


nas realidades geopolíticas e ambientais quanto em sua significação simbólica.
Nem margem, nem centro, nem eixo, o maciço pirenaico ainda ocupa uma
posição incerta em um espaço europeu móvel. De início, não mais considerar
os Pireneus como um fim de mundo fechado em si mesmo exige um verdadeiro
esforço de questionamento e de otimismo que não está ao alcance do primeiro
homem modificador que aparece. Os Pireneus contemporâneos devem ser
resituados em uma configuração européia aberta que não é apenas aquela,
bastante falaciosa, dos caminhos de Santiago. Tampouco se trata de escolher
entre os dois slogans que se sucederam ao longo das três últimas décadas: “os
Pireneus, montanhas selvagens” e “os Pireneus, montanhas da Europa”. Tanto
um quanto o outro são excessivos, e após reflexão, bem menos contraditórios do
que parecem. Hoje, o problema é outro. Não apenas os Pireneus mudaram de
lugar em um mapa aumentado da Europa, mas eles ganharam, ou readquiriram,
sua unidade de cadeia montanhosa. Erguidos através do istmo sul-europeu, eles
formam, na distância, um poderoso fundo de cenário com duas faces: a partir
do momento em que nos aproximamos deles e que aí penetramos, do norte
como do sul, eles ganham em altura e em espessura para revelar, a cada curva,
o suntuoso mosaico de suas paisagens.

A montanha mosaico

Circos de Gavarnie ou de Pineta, picos de Aneto ou do Midi, Mallos


de Riglos ou canions de Kakoueta, ou ainda anônimos pinheirais, artigues,
estagnots (tradução ou definição não encontrada) e vertentes expostas ao
sol... a paisagem é realmente a entrada banal e familiar, viva e colorida, móvel
e tocante, na realidade geográfica pirenaica. Em uma espécie de fusão sem
fim, nós levamos em nós a infinita diversidade, violentamente contrastada ou
delicadamente nuançada, da paisagem pirenaica. É nestes tesouros individuais,
cuidadosamente reunidos, mas na maioria das vezes desordenados e disparatados,
que é preciso procurar para montar este filme paisagístico que, ao atribuir um
lugar específico a cada imagem, se esforça em dar sentido e profundidade ao
mosaico da paisagem. Não basta, de fato, olhar uma paisagem. É preciso aprender
a lê-la, resituando-a no espaço e no tempo pirenaicos. Pois a extraordinária
variedade da paisagem pirenaica não tem nada de caleidoscópica. Ela exprime
uma organização e um funcionamento ao mesmo tempo natural e social cuja
complexidade mascara a existência.
Constatar esta diversidade é automático; analisá-la na sua globalidade
ultrapassa não apenas cada uma das especializações científicas reconhecidas, mas
também a adição de todas suas contribuições: torná-la compreensível equivale
a querer resolver uma espécie da quadratura da paisagem. Só, na fulgurância
de suas abreviações, o poeta... Mais prosaicamente, nós avançaremos passo a
passo definindo primeiramente os conteúdos, embaralhados e interativos, da
noção de paisagem.
350 O olho do abutre

Paisagens-territórios, paisagens-espelhos

Os Pireneus são paisagens-territórios. Isto significa que não há


mais natureza pirenaica virgem e que todas as paisagens, praticamente sem
exceção, carregam a marca de atividades humanas mesmo quando estas
cessaram há muito tempo. Nem uma única floresta que tenha escapado do
fogo ou da pastagem, ou da carbonagem, ou que não tenha sido restaurada pela
silvicultura. O que dizer das vertentes cujos terraços de culturas “sobem até o
céu”, ou dos campos (bocage) cuidadosamente penteados! Todos os Pireneus
estão, senão dominados, pelo menos tomados, e suas paisagens se tornaram um
componente essencial do patrimônio e da identidade das populações locais.
Então, as paisagens desenham as regiões. Estas são inumeráveis. Às vezes, elas
se sobrepõem ou se amontoam, por exemplo, entre entidades geográficas e
históricas, mas há sempre em algum lugar um coração, cidadezinha, castelo,
capela, onde pulsa a vida de uma comunidade. Estas paisagens-territórios,
mesmo quando elas parecem apagadas pelo tempo e o abandono, continuam
sendo profundamente paisagens-memórias e realidades vividas sobre as quais
se baseiam as novas estratégias de desenvolvimento local.
Os Pireneus são então também paisagens-espelhos. Eles refletem os
olhares que lhes são lançados e conservam duravelmente sua marca. Deste
ponto de vista, Serge Briffaud pode falar, sem exageros, de “invenção da
paisagem pirenaica”. Esta verdadeira criação não é o único feito dos primeiros
exploradores da cordilheira ou de alguns estetas com saudade da montanha.
Nós a encontramos, mais ou menos afirmada, em todos aqueles que tiveram,
em um momento ou outro de suas vidas ou de sua atividade profissional, que
se interessar pelos Pireneus. Os cientistas não escaparam a isto melhor do que
os administradores ou os tecnocratas... sem falar, entenda-se bem, dos próprios
Pireneus. O que seriam os escritos de um Louis de Froidour ou de um Henri
Gaussen se eles não fossem mais do que uma fria... e aborrecida descrição!
Nós escolhemos pesquisar um princípio, geral e simples, de organização
da paisagem pirenaica; isto é, pôr em evidência um mosaico paisagístico que
possa ser aplicado, sem muita distorção, ao conjunto da cordilheira. Para fazê-lo,
propomos usar uma grade de leitura cujas múltiplas entradas, mais banais, são
resultantes da escala das paisagens observadas desde o maciço pirenaico tomado
em conjunto até a mais modesta das vertentes exposta ao sol. Os Pireneus se
impõem primeiramente sobre o terreno ou em sua representação paisagística, por
sua unidade geográfica de maciço montanhoso. É esta unidade orográfica que,
por sua própria existência, seu funcionamento de conjunto e sua organização
interna, determina e anima o mosaico das paisagens. Ele torna seus limites
claros, mesmo se eles são um pouco convencionais em direção ao oeste, onde
existe certa continuidade paisagística com os montes cantábricos. Isolamos
dessa forma um possante compartimento rochoso de 450 km de comprimento
por uma elevação de 2 km a 3 km acima das planícies e dos mares vizinhos.
Trata-se de uma rugosidade importante da crosta terrestre na escala regional.
Estendendo-se de leste a oeste, um pouco ao sul do 43º de latitude norte, esta
cadeia, antigamente dizia-se cordilheira, isola a área mediterrânea da área
temperada. Sobretudo, ela gera unicamente por sua presença, turbulências
O olho do abutre 351

aerodinâmicas e gravitacionais que estão diretamente na origem da dinâmica


geral e da diversidade interna da cadeia. É desta forma que ela desvia, deforma e
freqüentemente desnatura os fluxos atmosféricos dominantes dos setores oeste,
noroeste e norte. Cria-se, dessa forma, uma assimetria climática e paisagística,
entre uma fachada setentrional verde, úmida e nebulosa e uma vertente
meridional abrigada, mais seca e mais iluminada. O estudioso dos Pireneus mais
indiferente continua, durante toda sua vida, sensível à mudança da paisagem
que aparece ao se transpor o mais insignificante passo transversal, e a relação
desse contraste ainda é um dos trechos de bravura da literatura pirenaica-
cantábrica. Todavia, esta grande característica paisagística não tem nada de
exclusivo. Existem no interior do maciço pirenaico muitos outros efeitos de
fachada marcados na paisagem: um, do setor sudeste nos Pireneus catalães e
outro, de setor sudoeste, nos Pireneus bascos.

Um castelo de nuvens e de água

No conjunto, a paisagem pirenaica é sempre a de uma montanha


úmida, nebulosa e coberta de neve (ainda que de forma muito irregular) em
relação às regiões vizinhas. É um enorme castelo de nuvens e de água que
alimenta as planícies vizinhas com múltiplas e fortes torrentes, pontuadas por
cascatas, que são uma das grandes paisagens visuais e sonoras dos Pireneus,
ainda que cada vez mais alteradas por instalações hidroelétricas, pelos traçados
de vias de comunicação e pela urbanização. Esta riqueza em água e em verdor
não passou despercebida aos espanhóis que associam globalmente as paisagens
pirenaicas à Ibéria úmida, enquanto os franceses, que possuem outras paisagens
para comparação, têm antes tendência a considerar os Pireneus como uma
montanha mediterrânea.
A distribuição em níveis é uma outra constante da organização
das paisagens de montanha. Ela é demasiadamente conhecida para que
insistamos nisso. Reteremos somente a passagem complexa das paisagens
florestais, diferentes por seus modos de gestão (matas de exploração madeireira
regularmente cortadas – taillis - e matas compostas de árvores plenamente
desenvolvidas no momento do corte - futaies) às paisagens de pastagem de
verão composta de landes (terra inculta das zonas temperadas, resultante da
degradação da floresta) e de gramados. Aí se encontra, em altitudes muito
variáveis, uma zona tradicionalmente contestada entre a exploração florestal
e a exploração pastoril, hoje ameaçada pela implantação freqüentemente
impensada das estações de esportes de inverno. As paisagens aí são de uma
grande diversidade, mas também de uma não menor fragilidade. Para muitos
estudiosos dos Pireneus, as grandes, belas e “verdadeiras” paisagens dos Pireneus
começam quando as landes e os gramados rareiam e entramos na paisagem
mineral dos circos esculpidos pelas geleiras quartenárias, dos detritos móveis e
das cristas afiadas pelo frio que se miram, como em um selvagem e gigantesco
palácio de gelo, nas mil facetas dos lagos. Estas paisagens grandiosas estão hoje
ameaçadas. Os lagos estão cada vez mais artificializados, enquanto que em
alguns buracos de neve e em algumas faces norte morrem as últimas geleiras
dos Pireneus.
352 O olho do abutre

Esta distribuição clássica das paisagens montanhesas, de acordo com


os efeitos de fachada e de altitude, é muito complicada pela compartimentação
topográfica e geológica da cadeia pirenaica. De um lado e do outro da poderosa
dorsal da “zona axial”, que se estende do Canigou até o pico de Anie, os
principais afloramentos rochosos se organizam grosseiramente em longas faixas
orientadas de leste para oeste. As torrentes e as geleiras originadas na cadeia
elevada central cortaram rochas duras em gargantas e abriram numerosas
bacias laterais, assim como alguns vales longitudinais (Canal de Berdun). Este
dispositivo topográfico disposto como um terço faz paredes rochosas sucederam
às vertentes evasês e multiplica as faces de exposição. Assim, ele compõe um
mosaico paisagístico tanto mais fino e contrastado porque ele se desenvolve em
substratos muito diferenciados (granitos, xistos, calcários, morenas, detritos,
cones torrenciais) e em vertentes com perfil geralmente tensos e caóticos.
Existe uma tendência a confundir os efeitos de fachada e de abrigo,
tais como eles aparecem em conseqüência da posição da vertente em relação aos
fluxos atmosféricos dominantes, com os efeitos devidos à exposição e à radiação
solar (ângulo de incidência dos raios e duração da insolação). É verdade que em
razão da orientação geral da cadeia e de sua compartimentação interna, os dois
mecanismos somam seus efeitos. É desta forma que a vertente orientada para o
sul beneficia ao mesmo tempo do efeito de abrigo e do efeito de exposição. Esta
oposição reforçada entre as vertentes sombreadas e as vertentes ensolaradas
constitui uma dos grandes traços geográficos da paisagem pirenaica. A vertente
ensolarada constitui uma das grandes características geográficas da paisagem
pirenaica. A vertente ensolarada é um dos pontos fortes da civilização agrária
pirenaica e o centro de gravidade do sistema agropastoril tradicional. É o local
privilegiado das cidadezinhas, bem “refesteladas” ao sol, ao abrigo das inversões
térmicas e das inundações dos vales baixos, próximas dos terrenos de percurso
sem neve nas estações intermediárias quando o fim de estação alimentar
torna-se difícil para o rebanho. As terras de cultura foram conquistadas, às
vezes inteiramente fabricadas e contidas atrás de muretas de pedras secas ou de
cercas vivas como divisão. Estas paisagens de terraços associados às cidadezinhas
apoiadas contra a montanha e aos prédios religiosos erguidos em sua sobriedade
de épura romana, se estendem de um extremo a outro da cadeia, com nuances
devidas aos diferentes sistemas agrícolas e às muito variadas arquiteturas locais.
Estas vertentes sul, as primeiras atingidas pelo êxodo rural - falou-se do “fim
das vertentes ensolaradas” - estão hoje parcialmente revigoradas pela abertura
de casas de campo... no meio dos terraços de campos abandonados e de alguns
chalés alpinos incongruentes. Do outro lado, em frente, a vertente sombreada
é uma paisagem de sombra e de silêncio, de nevoeiros úmidos onde a neve
persiste muito tempo na sombra das cristas. A floresta recoloniza as antigas
pradarias irrigadas dos celeiros-estábulos e as landes-gramados engolem as
artigues (tradução e definição não encontradas) pastoris.
Espremidas entre vertentes ensolaradas e sombreadas, as paisagens
dos fundos de vale tiveram uma sorte diferente. Nas bacias da montanha
intermediária, elas constituem freqüentemente o centro das comunidades
agrárias (finage) e reúnem as cidadezinhas e os campos cultivados ou
gramados. No meio dos grandes vales, o uso da paisagem foi por muito tempo
limitado pelas catástrofes naturais (cheias torrenciais, deslizamentos, etc.) e
O olho do abutre 353

pelas inversões térmicas que os tornam presas do ar frio que não permite as
culturas um pouco delicadas. Cidades maiores ou menores permaneceram por
muito tempo limitadas à baixa vertente ensolarada, com cones torrenciais
estabilizados e saliências rochosas das extremidades das geleiras. Foi somente
a partir do século XIX que a urbanização colonizou estes raros espaços planos,
acompanhando a construção das grandes vias de comunicação e a implantação
de alguns estabelecimentos industriais. Estes rios prolongam, assim, no interior
da montanha, as paisagens urbanas, industriais, amplamente degradadas e
poluídas do piemonte vizinho.
Este mosaico teria apenas um frágil valor de referência se ele fosse
imobilizado fora do ritmo das estações, que anima a paisagem pirenaica e a faz
viver e morrer ao longo de um ciclo anual. Eis-nos aqui presos, assim como todo
caminhante, entre um bom conhecimento das grandes características climáticas
regionais e a verificação frenética do boletim meteorológico quotidiano. Entre
estes dois níveis de informação permanece sempre uma margem de incerteza que
se pode esforçar por reduzir partindo do conhecimento do mosaico paisagístico
e de seu funcionamento sazonal através do que será designado pelo nome de
estados paisagísticos.

A paisagem em todos seus estados

Cada faceta do mosaico apresenta um funcionamento bioclimático


mais ou menos autônomo de acordo com os tipos de tempo com uma sucessão
média de “estados” que caracteriza a paisagem considerada. Quem já não
apreciou, em pleno inverno gelado de tipo anticiclônico, a forte concentração
térmica e luminosa das vertentes ensolaradas muito inclinadas com substratos
claros, e quem nunca fugiu das reentrâncias geladas de uma ou outra vertente
sombreada baixa que fica por muito tempo, senão todo o tempo, privada de sol
no inverno! Quem não acompanhou a cerejeira acendendo progressivamente
suas guirlandas ao longo de uma vertente de floresta cinzenta! A primavera da
estiva não é a mesma do campo fechado, e as defasagens fenológicas da vida
animal e vegetal são a maravilha, sempre recomeçada, da paisagem pirenaica.
Saber que se pode, ao sabor de seus projetos ou do tempo que faz, mudar de
faceta, portanto, mudar de paisagem, e criar assim sua própria diversidade.
Saber que podemos nos dar a sensação, senão de dominar o espaço e o tempo
pirenaicos, pelo menos de ritmar a paisagem com as vivas cores das estações.
A análise paisagística assim proposta não é mais do que uma simples
“entrada” na montanha, mas uma entrada “séria” que faz às vezes desse
princípio de inteligibilidade sempre ausente quando reunimos informações e
conhecimentos de diversas origens. Cabe ao caminhante jogar com sua gama
paisagística ao escolher seu itinerário, sua razão, sua hora. Aqui é o ponto
final para o geógrafo e sua proposta. Começa uma outra aventura. Aquela do
caminhante em sua trilha. No máximo, nós poderíamos aqui, citando a célebre
tipologia dos alpinistas inventada por Samivel, tentar doutamente definir
algumas paisagens individualizadas, mas sociologicamente representativas:
a paisagem do conhecedor-cronômetro dos Pireneus, do conhecedor-
354 O olho do abutre

contemplativo, do conhecedor da face norte, do conhecedor imaginário, do


conhecedor romântico (a escolher, versão flor azul ou versão sublimes horrores),
sem mencionar a paisagem que o próprio autor desenha “sob o olhar dos corvos”
irônicos.

Instabilidade e fragilidade dos meios

Este mosaico paisagístico não é eterno, da mesma forma que não o são
os picos e os canions que, no entanto, parecem desafiar o tempo e o olhar dos
homens. Desde o começo das glaciações do Quartenário, a montanha pirenaica
está em evolução permanente, geológica, climática, geomorfológica, biológica.
Ali, todos os meios são naturalmente, ainda que de forma desigual, instáveis
e sacudidos por catástrofes (torrencialidade, avalanches, abalos sísmicos, etc.)
que são como a respiração entrecortada da montanha.
O impacto das sociedades montanhesas sucessivas só pôde exacerbar
esta fragilidade. Desde a criação das primeiras comunidades agrárias por
queimadas, pastagem e cultura se desenvolvem e acarretam destruições
irreversíveis do solo, da fauna e da flora. No entanto, não devemos esquecer,
como acontece com freqüência, os numerosos canteiros de renovação da
montanha, empreendidos cedo demais e coroados na vertente francesa pelos
trabalhos do Serviço de Restauração de Florestas de Proteção, melhoramento
pastoris). As paisagens pirenaicas são o resultado deste duplo movimento de
destruição e de renovação que se realizou tanto contra a natureza como com
ela e por ela.
Hoje, o mosaico paisagístico está preso em um torno entre, de um
lado, a perda de controle de seu território pela sociedade montanhesa (progresso
dos matos, abandono dos caminhos, dos terraços, da pequena hidráulica) e,
de outro lado, a progressão de uma urbanização multiforme (construções,
vias de comunicação, pistas de esqui). A complementaridade das regiões está
comprometida e cada compartimento de paisagem (cidade, pasto, campos
abertos, floresta, gramado...) evolui a uma velocidade e a uma direção diferentes.
Não se vê, pelo menos por enquanto, serem estabelecidas novas coerências
paisagísticas, especialmente nos setores de total abandono ou de urbanização
muito forte. Uma paisagem não é guardada como um cenário de teatro quando
o espetáculo termina.
Para mudar a face, é preciso mudar o olhar. Os olhares dirigidos até
agora aos Pireneus, quer seja o do transformador ou o do ecologista, permitem
descobrir apenas uma metade da face e fazer como se a outra metade fosse
apenas o avesso vergonhoso. A incompreensão era inevitável.

A fonte antes do recurso

Os Pireneus sempre foram definidos como um conjunto de recursos


a explorar no curto prazo e em um contexto econômico específico. Assim, foi
O olho do abutre 355

com os recursos minerais, literalmente pilhados, e também com a água, uma


hora usada para a irrigação local, outra hora para hidroelétricas, irrigação das
planícies vizinhas e, enfim, para alimentar os canhões de neve das estações de
esqui. Hoje, é preciso considerar os Pireneus, globalmente e a longo prazo, como
uma fonte, neutra e gratuita, tendo uma existência e um valor independentes
de toda forma de exploração econômica imediata. Assim deve ser com a
paisagem, sem valor de mercado direto, e que vai se tornar a base qualitativa
indispensável de todas as políticas de renovação da montanha pirenaica. Os
Pireneus não são mais a tradicional montanha bifrontal, olhando como Janus,
de um lado para a Espanha, e do outro para a França. Por outro lado, eles estão
mais do que nunca ameaçados de atomização pela autonomia das comunidades
montanhesas e das coletividades locais. A entidade do maciço pirenaico nunca
foi tão necessária e é preciso lhe dar rapidamente uma dimensão operatória.
Acima de tudo, os Pireneus devem sair dos Pireneus e se posicionar no istmo
sul-europeu, abrindo-se aos fluxos de toda espécie que o animam. Os Pireneus
devem comunicar. Eles precisam especialmente de túneis transversais para
evitar justamente este “efeito túnel” que os sufocam hoje.
Os Pireneus se preparam um amanhã difícil em uma Europa que se
centraliza ao leste e na proximidade de um Mediterrâneo cada vez mais agitado.
O caminhante que vem se refazer na natureza pirenaica deve ter consciência
que ele não está avançando em uma montanha santuário afastada do mundo.
Ele está pisando em uma terra de humanidade antiga que só pode viver e manter
suas paisagens se permanecer profundamente humana. O maciço em si parece
imutável. Mas haverá ainda, amanhã e depois de amanhã, no céu incerto, o
vôo de um abutre para reunir os Pireneus?
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Glossário

GLOSSÁRIO
Algumas palavras...

Desde a introdução desta obra (Quais palavras para lhe dizer?) nós
assinalamos a difícil e essencial questão do vocabulário e da linguagem. O meio
ambiente não constitui apenas um campo semântico específico, mas, sobretudo,
nossa pesquisa se iniciou antes da emergência da ecologia científica e do meio
ambiente. Nós temos, pois procedido por empréstimos sucessivos de diferentes
disciplinas na França e no estrangeiro sem poder sempre evitar uma linguagem
analógica, e mesmo reducionista.
A lista das palavras que segue não é, pois, nem o rascunho de um
improvável dicionário (seriam precisos muitos... quando eles existem*), nem
mesmo de um léxico especializado ou de um glossário sucinto. Ela não tem
outra pretensão que esclarecer o leitor que vai reter, ao longo das páginas
desta obra, algumas palavras raras cuja definição não deve sair do contexto.
Os termos fundadores, quase que todos surgidos no curso da pesquisa (meio
ambiente, geossistema e ecossistemas, paisagem, território, equilíbrio e ruptura,
recurso etc.) são definidos, às vezes redefinidos, e muito repetidos no corpo
desta obra.

• Pierre GEORGE, Dictionnaire de la Géographie, 1990, Paris, PUF,


4ème édition.
• Antoine DE LAGE et Georges MÉTALIÉ, Dictionnaire de la
Biogéographie végétale, 2000, Paris, CNRS
• Encyclopeadia Universalis, Dictionnaire de l´Écologie, 2001, Paris,
Albin Michel.
• Georges BERTRAND et Jean-Paul MÉTALIÉ, Les mots de
l´environnement, Presses Universitaires du Mirail, Toulouse (2003).

Agrosistema: espaço agrícola considerado como uma estrutura


functional, em grande parte organizado e condicionado pelas técnicas e as
práticas agrícolas passadas e atuais.
Alterita: Decomposição química superficial das rochas.
Antracologia: Estudo dos restos vegetais carbonizados no solo ou em
um sedimento.
Glossário

Antrópico, antropismo: Devido a ação do homem.


Assec-évolage: Lago alternadamente colocado a seco para cultura e
preenchido com água para a piscicultura.
Biocenose: biótopo.
Biostasia, resistasia, bio-resistasia, heterostasia.
Cañada, Cordel – Vereda: Pistas pastorais na Espanha (sistema da
Mesta).
Corologia: Estudo da distribuição geográfica dos seres vivos e de outros
corpos naturais. Cf. Taxonomia e Taxicorologia.
Clímax: Estado de equilíbrio de um meio previamente a qualquer
intervenção humana (muito contestado).
Cinidique: Estudo das catástrofes e das crises naturais e/ou sociais.
Determinismo
Écobuage: Queimada controlada da vegetação em vista de uma mise
en cultura ou em pastagem.
Ecossistema
Ecúmeno: Espaço planetário habitado.
Endêmico: Fenômeno circunscrito a uma área geográfica bem
delimitada (geralmente de pequena superfície).
Etologia: Estudo do comportamento de um sistema natural
(ecossistema, geossistema, paisagem) a partir da análise de seus estados
sucessivos.
Eu-atlântica: Espécie ou formação vegetal estritamente limitada ao
domínio atlântico.
Évolage: Assec
Gaste: Terreno de mal qualidade, coberto de friche e às vezes erodido
(Haute-Provence).
Geossistema:
GTP: Sistema Geossistema-Território-Paisagem.
Hemotipologia: Estudo dos tipos sanguíneos.
Homeostasia: Equilíbrio auto-regulado de um corpo natural.
Histeresis: Efeito retardado no comportamento de um elemento na
evolução de um sistema.
Jasse: Grama pastoral de estiagem (Pirineus aragonês).
Mesologia: Relação de um ser vivo ou de uma comunidade de seres
vivos com seu meio.
Glossário

Ombra/hombrée: Vertente voltada para o Norte, pouco ensolarada


(Pirineus). Ubac, ubaga, inverso.
Orogênese: Formação de uma cadeia de montanha.
Paradigma: Configuração global de uma razão filosófica e científica
(epistemologia e história, conceitualização, metodologia, tecnologia e mise
en prática).
Porteille: Pequeno corredor dos Pirineus.
Solana/Soulane: Vertente voltada para o Sul, ensolarada (Pirineus).
Adret, solana, souleille.
Sourcin: Pequena fonte.
Sinecologia: Ecologia de síntese. Cf. Ecossistema.
Sistema, Sistêmico: Teoria científica. Conjunto complexo de objetos
considerados como uma estrutura organizada e dotada de um funcionamento
específico.
Ranker: Solo esquelético, fino e pouco evoluído, frequentemente
muito árido.
Relictual: Fenômeno de sobrevivência com risco de extinção.
Résilience: Propriedade de um corpo natural de suportar, por auto-
regulação, modificações e, ao mesmo tempo, conservar seu equilíbrio global.
(termo discutido).
Rompudes: Desmatamento para a mise en cultura (Baixo-
Languedoc).
Taxonomia: Parte da ciência que descreve e classifica os corpos
naturais.
Taxicorologia: Idem, em função de sua distribuição geográfica.
Teleológico: Em relação com a finalidade de um sistema.
Topoclima: Fenômeno climático ligado à configuração topográfica:
solana, ombra...
Toposequencia: Fenômeno cuja a distribuição geográfica e o
funcionamentao estão ligados à vertente

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