Você está na página 1de 359

1

LARA

L ,
olhos fixos no sol brilhante descendo sobre os picos das montanhas
distantes, nada entre aqui e lá além de dunas abrasadoras,
escorpiões e lagartos ocasionais. Intransitável para quem não
tivesse um bom camelo, as provisões corretas e uma boa dose de
sorte.
Não que ela não tenha sido tentada a experimentar mais de uma
vez.
Um gongo foi tocado, as reverberações ecoando sobre o
complexo. Ele a chamava para jantar todas as noites nos últimos
quinze anos, mas essa noite, estremeceu-a como um tambor de
guerra. Lara respirou fundo para acalmar os nervos, depois se virou,
caminhando pelo pátio de treinamento na direção das palmeiras
altas, as saias cor de rosa roçando delicadamente nas pernas.
Todas as onze de suas meias-irmãs estavam convergindo para o
mesmo lugar, cada uma vestida com um vestido diferente, a cor
cuidadosamente selecionada por sua Mestra de Estética para
complementar sua fisionomia.
Lara detestava rosa, mas ninguém pediu sua opinião.
Depois de quinze anos presas dentro do complexo, essa seria a
última noite das irmãs juntas, e seu Mestre de Meditação ordenou
que passassem a hora antes do jantar em seus locais preferidos,
contemplando tudo o que haviam aprendido e tudo o que realizariam
com as ferramentas que lhes foram dadas.
Ou pelo menos, o que uma delas realizaria.
O cheiro do oásis pairava sobre Lara na mais fraca das brisas. O
cheiro de frutas e verduras, de carne defumada e, acima de tudo, de
água. Preciosa, preciosa água. O complexo estava localizado em
uma das poucas fontes, no meio do deserto vermelho, porém longe
de rotas de caravanas. Isolado. Secreto.
Do jeito que o pai delas, o Rei de Maridrina, gostava. E pelo que
ela sabia sobre ele, era um homem que sempre conseguia o que
queria, de um jeito ou de outro.
Parando na beira do pátio de treinamento, Lara roçou a parte de
baixo dos pés contra as panturrilhas, tirando o pó da areia antes de
deslizar sobre delicadas sandálias de salto alto, com o equilíbrio
estável como se estivesse usando botas de combate.
Click, click, click. Seus saltos ecoavam o ritmo frenético de seu
coração enquanto andava pelo chão de mosaicos e atravessava a
pequena ponte, o som suave de instrumentos de cordas erguendo-
se do gorgolejar da água. Os músicos haviam chegado com a
comitiva de seu pai para fornecer o entretenimento para as
festividades da noite.
Ela duvidava que fariam a jornada de volta.
Uma gota de suor escorreu por suas costas, a fita que segurava
uma faca contra a parte interna de sua coxa já estava úmida. Você
não vai morrer hoje à noite, ela entoou silenciosamente. Não hoje à
noite.
Lara e suas irmãs dirigiram-se para o centro do oásis, um pátio
cercado pela primavera, que o transformou em uma ilha de
vegetação. Elas caminharam em direção à enorme mesa coberta de
seda pesada e com os talheres necessários para uma dúzia ou mais
de pratos que viriam. Os criados, todos mudos, estavam de pé atrás
das treze cadeiras, os olhos fixos nos pés. Quando as mulheres se
aproximaram, puxaram as cadeiras para trás e Lara sentou-se sem
conferir, sabendo que a almofada cor de rosa estaria embaixo dela.
Nenhuma das irmãs falou.
Debaixo da mesa, Lara sentiu uma mão agarrar a dela. Ela
permitiu que seus olhos deslizassem para a esquerda, encontrando
brevemente o olhar de Sarhina, antes de voltar ao prato. Todas as
doze eram filhas do Rei, agora com vinte anos de idade, cada uma
nascida por esposas diferentes. Lara e suas meias-irmãs foram
levadas a este lugar secreto para receber treinamento que nenhuma
garota maridriniana jamais havia recebido. Treinamento que agora
estava completo.
O estômago de Lara se revirou, e ela deixou cair a mão de
Sarhina, a sensação da pele de sua irmã mais próxima, fria e seca
em relação à sua, a fez se sentir doente.
O gongo soou novamente, e os músicos ficaram em silêncio
enquanto as meninas se levantavam. Um batimento cardíaco
depois, o pai delas apareceu, seus cabelos prateados brilhando à
luz da lamparina enquanto atravessava o caminho em direção a
elas, seus olhos azuis idênticos aos de todas as garotas presentes.
O suor escorria pelas pernas de Lara, porém anos de treinamento a
fizeram analisar cada detalhe. O índigo de seu casaco. O couro
gasto de suas botas. A espada amarrada em sua cintura. E, quando
ele se virou para dar a volta na mesa, o fraco contorno da lâmina
escondida em suas costas.
Quando ele se sentou, Lara e as irmãs seguiram o exemplo,
nenhuma delas fazendo barulho.
— Filhas. — Recostando-se na cadeira, Silas Veliant, o Rei de
Maridrina, sorriu, esperou que o provador oficial do Rei assentisse,
depois tomou um longo gole de vinho. Todas espelharam o
movimento, mas Lara mal sentiu o gosto do líquido carmesim
quando lhe cruzou a língua.
— Vocês são o meu bem mais precioso — disse ele, acenando
com o copo para abranger todas elas. — Vinte das minhas filhas
que foram trazidas para cá, vocês foram as sobreviventes. O que
vocês fazem, como prosperaram, é uma conquista, pois o
treinamento que receberam teria sido um teste para o melhor dos
homens. E vocês não são homens.
Foi apenas esse treinamento que impediu Lara de estreitar os
olhos. De mostrar qualquer emoção.
— Todas vocês foram trazidas aqui para que eu pudesse
determinar qual de vocês é a melhor. Qual de vocês será minha faca
no escuro. Qual de vocês se tornará Rainha de Ithicana. — Seus
olhos tinham toda a compaixão de um escorpião do deserto. — Qual
de vocês irá partir às defesas de Ithicana e, ao fazer isso, permitirá
que Maridrina retorne à sua antiga glória.
Lara assentiu uma vez, todas as irmãs fazendo o mesmo. Não
houve antecipação. Pelo menos, não pela escolha do pai. Tinha sido
feita dias atrás, e Marylyn estava sentada no extremo oposto da
mesa, com os cabelos dourados trançados como uma coroa na
cabeça, o vestido lamê para combinar. Marylyn tinha sido a escolha
óbvia, brilhante, graciosa, bonita como o nascer do sol - e tão
sedutora quanto o pôr do sol.
Não, a expectativa era pelo que viria a seguir. A escolha já foi
feita sobre quem seria oferecida ao príncipe herdeiro - Rei, agora -
do Reino de Ithicana. O que permanecia desconhecido era o que
seria feito com o resto delas. Elas eram de sangue real, e isso as
faziam valer alguma coisa.
Todas as irmãs, incluindo Marylyn, haviam se reunido em uma
pilha de travesseiros nas últimas duas noites, cada uma
especulando sobre seu destino. Com quem dos vizires do Rei elas
poderiam se casar. Para quais outros Reinos poderiam ser
oferecidas como noivas. Nem o homem, nem o Reino importavam.
O que toda garota se importava era que se libertaria deste lugar.
Mas todas aquelas longas noites, Lara havia descansado nos
arredores, sem oferecer nada, usando o tempo para assistir suas
irmãs. Para amá-las. Para lembrar como ela lutou com cada uma
delas tantas vezes quanto as abraçou com força. Os sorrisos delas.
Os olhos delas. Do jeito que, mesmo passada a infância, elas se
aninhavam como uma pilha de filhotes recém-afastados da mãe.
Porque Lara sabia o que as outras não sabiam: que seu pai
pretendia que apenas uma irmã deixasse o complexo. E essa seria
a futura Rainha de Ithicana.
Uma salada decorada com queijo e frutas vibrantes foi colocada
diante dela, e Lara comeu mecanicamente. Você viverá, você viverá,
você viverá, entoou para si mesma.
— Durante toda a história, Ithicana dominou o comércio, criando
Reinos e quebrando-os como se fosse um deus das trevas. — O
seu pai se dirigiu a elas, com os olhos brilhando. — Meu pai, o pai
dele, e o pai antes dele, tentaram quebrar o Reino da Ponte. Com
assassinos, com guerra, com bloqueios, com todas as ferramentas à
sua disposição. Mas nenhum deles pensou em usar uma mulher.
Ele sorriu maliciosamente. — As mulheres Maridrinianas são
delicadas. Elas são fracas. São boas para nada mais do que manter
a casa e criar filhos. Exceto vocês doze.
Lara não piscou. Assim como nenhuma de suas irmãs, e ela se
perguntou se ele percebia que cada uma delas estava pensando em
esfaqueá-lo no coração por causa do insulto de suas palavras. Ele
deveria saber bem que cada uma delas era capaz de fazer isso.
Seu pai continuou: — Quinze anos atrás, o Rei de Ithicana exigiu
uma noiva para seu filho e herdeiro como uma oferenda. Como
pagamento. — Seus lábios se curvaram em um sorriso de escárnio.
— O bastardo está morto há um ano, mas seu filho pediu a dívida. E
Maridrina está pronta. — Seus olhos foram para Marylyn, depois
para os criados que se moviam para limpar os pratos da salada.
Nas sombras da noite crescente, Lara sentiu o movimento.
Sentiu a presença da massa de soldados que seu pai trouxe. Os
criados reapareceram com tigelas de sopa fumegantes, o cheiro de
canela e alho-poró flutuando à frente deles.
— A ganância de Ithicana, sua arrogância, o desprezo por vocês,
será a queda deles.
Lara permitiu que seus olhos deixassem o rosto de seu pai,
contemplando cada uma de suas irmãs. Com todo o treinamento,
todo o conhecimento de seus planos, ele nunca pretendeu que
nenhuma delas, exceto a escolhida, vivesse depois do jantar.
As sopas foram colocadas diante deles, e todas as irmãs
esperaram que o provador do pai desse o primeiro gole e
assentisse. Depois, todas pegaram as colheres e começaram a
comer obedientemente.
Lara fez o mesmo.
O seu pai acreditava que esplendor e beleza eram os atributos
mais importantes da filha que escolheu. Que seria a garota que
tinha mostrado maior perspicácia em combate e estratégia. A garota
que havia mostrado mais talento nas artes do quarto. Ele pensou
que sabia quais características eram mais importantes - mas
esqueceu uma.
Sarhina endureceu ao lado dela.
Sinto muito, Lara sussurrou silenciosamente para suas irmãs.
Então o corpo de Sarhina começou a ter espasmos.
Oro para que todas vocês encontrem a liberdade que merecem.
A colher de sopa na mão de Sarhina voou sobre a mesa, mas
nenhuma das outras meninas notou. Nenhuma delas se importava.
Porque todas estavam sufocando, a espuma subindo até seus
lábios quando esses se contraíram e arquejavam, uma por uma,
caindo para frente ou para trás ou para o lado. Então todas elas
estavam descansando imóveis.
Lara colocou a colher ao lado da tigela vazia, olhando uma vez
para Marylyn, que estava de bruços no prato. Levantando-se,
contornou a mesa, erguendo a cabeça da irmã da tigela e limpando
cuidadosamente a sopa antes de descansar a bochecha de Marylyn
contra a mesa. Quando Lara olhou novamente, seu pai estava
pálido e de pé, com a espada meio desembainhada. Os soldados
que estavam escondidos nos flancos avançaram, encurralando os
servos em pânico. Mas todo mundo, todo mundo, estava olhando
para ela.
— Você estava enganado em sua escolha, pai. — Lara ficou
parada com confiança enquanto se dirigia ao Rei. Olhou para ele,
permitindo que a parte sombria, gananciosa e egoísta de sua alma
subisse à superfície e o encarasse. — Eu serei a próxima Rainha de
Ithicana. E deixarei o Reino da Ponte de joelhos.
2
LARA

L ,
acontecido rapidamente. E, no entanto, ela tinha certeza de que
todos os detalhes seriam gravados em sua mente até o dia em que
morresse. Seu pai colocou a espada de volta na bainha, depois
estendeu a mão para pressionar os dedos contra a garganta da
garota mais próxima, mantendo-os ali por vários momentos,
enquanto Lara observava indiferente. Então ele acenou uma vez
para os soldados que os cercavam.
Os homens que pretendiam despachar Lara e suas irmãs
voltaram suas espadas para os criados, cujas bocas sem língua
proferiam gritos sem palavras enquanto tentavam fugir do massacre.
Os músicos foram abatidos, assim como os cozinheiros nas
cozinhas distantes e as criadas forrando camas que nunca mais
voltariam a ser usadas novamente. Logo, todos os que restaram
eram o fiel grupo de soldados do Rei, com as mãos cobertas pelo
sangue de suas vítimas.
Com isso, Lara permaneceu imóvel. Apenas o conhecimento de
que ela era a única filha restante, que era a última aposta restante -
a impediu de abrir um caminho livre da carnificina e fugir para o
além do deserto.
Erik, o Mestre de Armas, aproximou-se através das palmeiras,
uma lâmina brilhando em sua mão. Seus olhos foram de Lara para
as formas imóveis de suas irmãs, e ele deu um sorriso triste. — Não
estou surpreso em encontrar você ainda de pé, pequena barata.
Era o apelido que ele lhe deu quando ela chegou, com cinco
anos e quase sem vida, graças a uma tempestade de areia que
havia acontecido em sua jornada até o complexo. — Gelo e fogo
podem devastar o mundo, mas ainda assim a barata sobrevive —
ele disse — Assim como você.
Ela poderia até ser uma barata, mas a razão pela qual ainda
respirava era graças a ele. Erik a enviou ao pátio de treinamento
como punição por uma pequena transgressão duas noites antes, e
ela ouviu membros da guarda de seu pai planejando a morte dela e
de suas irmãs. Uma conversa liderada pelo próprio Erik. Seus olhos
ardiam quando ela o olhava - o homem que foi mais um pai do que o
monarca de cabelos prateados à direita - mas ela não disse nada,
não lhe deu nem um sorriso em troca.
— Está feito? — o pai dela perguntou.
Erik assentiu. — Todos foram silenciados, Majestade. Exceto eu.
— Então seus olhos se voltaram para as sombras não tocadas pelos
abajures da mesa. — E Magpie.
Dessas sombras surgiu seu Mestre da Intriga, e Lara encarou
fria e brevemente o homem que havia orquestrado todos os
aspectos da noite.
E na voz nasal que ela sempre detestava, Magpie disse: — A
garota fez a maior parte do trabalho sujo para você.
— Lara deveria ter sido sua escolha o tempo todo. — A voz de
Erik estava sem expressão, mas a dor encheu seus olhos quando
passou pelas meninas caídas antes de voltarem ao rosto de Lara.
Lara queria pegar sua faca - como ele ousava lamentar quando
não fez nada para salvá-las - mas mil horas de treinamento a
ordenaram a não se mexer. O Mestre das Armas fez uma reverência
ao Rei. — Por Maridrina. — Então passou a faca pela garganta.
Lara cerrou os dentes, o conteúdo de seu estômago subindo,
amargo e sujo, cheio do mesmo veneno que ela havia dado a suas
irmãs. No entanto, não desviou o olhar, forçando-se a observar Erik
cair no chão, o sangue pulsando em sua garganta em grandes
quantidades até seu coração parar.
Magpie contornou a poça de sangue e entrou completamente na
luz. — Tão dramático.
Magpie não era seu nome verdadeiro, é claro. Era Serin, e de
todos os homens e mulheres que treinaram as irmãs ao longo dos
anos, ele era o único que saia e entrava do complexo à vontade,
administrando a rede de espiões e conspirações do Rei.
— Ele era um bom homem. Um súdito leal. — Não havia
expressão na voz de seu pai, e Lara se perguntou se queria dizer as
palavras ou se eram para o benefício dos soldados que assistiam.
Até a lealdade mais firme tinha seus limites, e seu pai não era bobo.
Os olhos estreitos de Magpie voltaram-se para ela. — A Lara,
como você sabe, Majestade, não foi minha primeira escolha. Ela
teve pontuação quase mínima em quase todos os treinamentos,
com a única exceção do combate. Seu temperamento
continuamente tira o melhor dela. Marylyn — apontou para a irmã —
era a escolha óbvia. Brilhante e bonita. Habilmente no controle de
suas emoções, como ela claramente demonstrou nos últimos dias.
— Ele fez um barulho de nojo.
Tudo o que ele disse sobre Marylyn era verdade, mas não era a
soma dela. Espontaneamente, lembranças inundaram a mente de
Lara. Visões de sua irmã cuidando de um gatinho, o menor de sua
ninhada, que agora era o gato mais gordo do complexo. De como
ouvia em silêncio qualquer dos problemas de suas irmãs e depois
oferecia o mais perfeito conselho. De como, quando criança, ela deu
nomes a todos os criados, porque achava cruel que eles não os
tivessem. Então as lembranças desapareceram, deixando apenas
um corpo imóvel diante dela com cabelos dourados cobertos de
sopa.
— Minha irmã era gentil demais. — Lara voltou a cabeça para o
pai, com o coração disparado no peito enquanto o desafiava. — A
futura Rainha de Ithicana deve seduzir seu governante. Fazendo-o
acreditar que ela é inocente e sincera. Deve fazê-lo confiar nela
enquanto usa sua posição para aprender todas as suas fraquezas
até o momento em que o trairá. Marylyn não era essa mulher.
Os olhos de seu pai não piscaram quando a estudou, e então ele
deu um leve aceno de aprovação. — Mas você é?
— Eu sou. — Sua pulsação rugiu em seus ouvidos, sua pele
pegajosa, e não por causa do calor.
— Você nem sempre erra, Serin — disse o pai. — Mas nisso
acredito que você estava enganado e o destino interveio para
corrigir esse erro.
O Mestre da Intriga ficou rígido e Lara se perguntou se agora
estava percebendo que sua própria vida estava na balança. —
Como você disse, Majestade. Parece que Lara possui uma
qualidade que não tinha considerado nos meus testes.
— A qualidade mais importante de todas: crueldade. — O Rei a
estudou por um momento antes de voltar para o Magpie. — Apronte
a caravana. Cavalgamos para Ithicana hoje à noite. — Então ele
sorriu para ela como se fosse a coisa mais preciosa. — Está na hora
da minha filha conhecer seu futuro marido.
3
LARA

C ,
mas Lara arriscou apenas um olhar para trás para o complexo em
chamas que havia sido sua casa, o chão e as paredes manchadas
de sangue que escureciam enquanto o fogo consumia todas as
evidências de quinze anos de história. Apenas o coração do oásis,
onde a mesa de jantar estava rodeada pela primavera, permanecia
intocado.
Ela quase não podia suportar deixar suas irmãs adormecidas
cercadas por um anel de fogo, inconscientes e impotentes até que a
mistura de narcóticos que ela deu desaparecesse. Suas pulsações,
que haviam sido desaceleradas para uma quase morte por tempo
demais, deveriam estar acelerando, suas respirações aparecendo
para quem olhasse atentamente. Se Lara desse desculpas para
garantir a segurança de todas, arriscaria ser descoberta, e então
tudo isso seria inútil.
— Não as queime. Deixe para que os abutres limpem seus
ossos — disse ao pai, com o estômago se retorcendo, até que ele
riu e aceitou seu macabro pedido, deixando suas irmãs caídas sobre
a mesa, os servos massacrados formando um sangrento contorno
em torno delas.
Era para isso que suas irmãs iriam acordar: fogo e morte. Pois
somente deste modo, com o pai delas acreditando que estavam
todas mortas, elas poderiam ter alguma chance no futuro. Ela
levaria a missão adiante enquanto suas irmãs faziam suas próprias
vidas, agora livres para serem donas de seus próprios destinos.
Lara explicou tudo no bilhete que enfiou no bolso de Sarhina
enquanto o pai ordenava que o complexo fosse varrido pelos
sobreviventes. Pois ninguém deveria ser deixado vivo para que não
sussurrassem uma palavra sobre a garota errada, que agora se
encaminhava para um casamento em Ithicana.
Sua jornada pelo deserto vermelho seria repleta de dificuldades
e perigos. Mas, naquele exato momento, Lara estava convencida de
que a pior parte seria ouvir a conversa de Magpie o tempo todo. A
égua de Lara estava carregada com o enxoval de Marylyn, enquanto
era forçada a cavalgar atrás do Mestre da Intriga.
— A partir deste momento, você deve ser uma perfeita dama
Maridriniana — ele instruiu, sua voz abafando os nervos da menina.
— Não podemos arriscar que alguém a veja se comportar de outra
maneira, nem mesmo aqueles que Sua Majestade acredita que são
leais. — O homem lançou, então, um olhar significativo para os
guardas de seu pai, que formaram a caravana com facilidade.
Nem um deles olhou para ela.
Os guardas não sabiam o que ela era. O que ela foi treinada
para fazer. Qual era o objetivo dela além do cumprimento de um
contrato com o Reino inimigo. Mas todos acreditavam que ela havia
assassinado suas irmãs a sangue frio. O que a fez pensar quanto
tempo seu pai os deixaria viver.
— Como você fez isso?
Horas em sua jornada, a pergunta da Magpie tirou Lara de seus
pensamentos, e ela apertou o lenço de seda branco ao redor do
rosto, apesar do fato dele estar de costas para ela. — Veneno. —
Ela permitiu que uma pitada de acidez penetrasse em sua voz.
Ele bufou. — Não somos ambiciosos agora que acreditamos que
somos intocáveis?
Ela passou a língua pelos lábios secos, sentindo o calor do sol
surgir atrás deles. Então, ela se permitiu mergulhar na piscina de
calma que seu Mestre de Meditação havia lhe ensinado a usar
quando fazia estratégias, entre outras coisas. — Eu envenenei as
colheres de sopa.
— Como? Você não sabia onde estaria sentada.
— Eu envenenei tudo, com exceção das que estavam na
cabeceira da mesa.
O Magpie ficou em silêncio.
Lara continuou: — Tomei pequenas doses de vários venenos por
anos para aumentar minha tolerância. — Mesmo assim, ela se
purificou no momento em que teve a chance, vomitando várias
vezes até seu estômago ficar vazio, depois tomando o antídoto, o
mal-estar atordoante era o único sinal persistente de que havia
ingerido um narcótico.
O pequeno corpo do Mestre da Intriga ficou tenso. — E se os
lugares na mesa tivessem sido alterados? Você poderia ter matado
o Rei.
— Ela claramente acreditava que valia o risco.
Lara inclinou a cabeça ao notar o toque dos sinos no freio do
cavalo enquanto o pai passava, o animal enfeitado com prata em
vez de latão que as montarias dos guardas usavam.
— Você adivinhou que eu pretendia matar as meninas das quais
não precisava — disse ele. — Mas, em vez de avisar suas irmãs ou
tentar escapar, você as matou para tomar o lugar da escolhida. Por
quê?
Porque, para as meninas, lutar para sair desse ambiente
significaria uma vida em fuga. Fingir a morte delas era o único
caminho. — Posso ter passado minha vida isolada, pai, mas os
tutores que você selecionou me educaram bem. Conheço as
dificuldades que nosso povo enfrenta sob a coleira de Ithicana no
comércio. Nosso inimigo precisa ser derrotado e, de minhas irmãs,
eu era a única capaz de fazer isso.
— Você matou suas irmãs pelo bem do nosso país? — Sua voz
estava cheia de diversão.
Lara forçou uma risada seca para fora de seus lábios. —
Dificilmente. Eu as matei porque queria viver.
— Você jogou com a vida do Rei para salvar sua própria pele? —
Serin virou-se para olhá-la, sua expressão aterrorizada. Ele a
treinou, o que significava que era do direito do Rei culpá-lo por tudo
o que ela havia feito. E seu pai era conhecido por ser impiedoso.
Mas o Rei de Maridrina apenas riu com alegria. — Jogou e
venceu. — Estendendo a mão, ele afastou o lenço de Lara para
cobrir sua bochecha com a palma. — O Rei Aren não verá você
chegando até que seja tarde demais. Uma viúva negra em sua
cama.
Rei Aren de Ithicana. Aren, seu futuro marido.
Lara ouviu apenas vagamente o pai ordenar aos guardas que
fizessem acampamento, o grupo pretendia dormir durante o calor do
dia.
Um dos guardas a levantou das costas do camelo de Serin e ela
se sentou em um cobertor enquanto os homens montavam o
acampamento, usando, então, esse tempo para pensar no que
estava por vir.
Lara conhecia tanto quanto - provavelmente até mais - que a
maioria dos Maridrinianos sobre Ithicana. Era um Reino tão envolto
em mistério quanto em neblina: uma série de ilhas que se estendiam
entre dois continentes, as massas de terra protegidas por mares
violentos tornando-as ainda mais traiçoeiras pelas defesas que os
Ithicanos haviam colocado nas águas para afastar os infiltrados.
Mas não foi isso que tornou Ithicana tão poderosa. Era a ponte que
se estendia acima e entre essas ilhas - a única maneira segura de
viajar entre os continentes durante dez meses por ano. E Ithicana
usou esse patrimônio para manter famintos os Reinos que
dependiam do comércio. Desesperados. E, acima de tudo, dispostos
a pagar qualquer preço que o Reino da Ponte exigisse por seus
serviços.
Vendo sua barraca erguida, Lara esperou até que os homens
colocassem suas malas dentro antes de deslizar para a mais bem-
vinda sombra, reprimindo o desejo de agradecê-los quando ela
passou.
Ela ficou sozinha por pouco tempo para tirar o lenço antes de
seu pai entrar, com Serin nos calcanhares. — Agora, vou ter que
começar a treinar você sobre os códigos — disse o Mestre da
Intriga, esperando até o Rei sentar-se antes de se instalar na frente
de Lara. — Marylyn criou esse código, e ouso dizer que ensinar a
você em tão pouco tempo será um desafio.
— Marylyn está morta — respondeu a princesa, pegando um
pouco da água morna do cantil antes de fechá-lo cuidadosamente.
— Não me lembre — ele retrucou.
O sorriso dela estava cheio de uma confiança que não sentia. —
Aceite o fato de que eu sou tudo o que resta das meninas que você
treinou, e então não vou precisar refrescar sua memória.
— Comece — ordenou o seu pai, e então ele fechou os olhos,
sua presença na tenda da filha por decoro de luto, apenas.
Serin começou suas instruções sobre o código. Ela precisava
depender inteiramente da memória, pois não podia levar anotações
para Ithicana. Era um código que nunca poderia usar, sua utilidade
era inteiramente baseada no Rei de Ithicana, que gentilmente a
permitiria se corresponder com sua família. E a bondade, disseram-
lhe, não era um atributo pelo qual o homem era conhecido.
— Como você sabe, os Ithicanos são exemplos de decifradores
de códigos e qualquer coisa que você conseguir enviar estará
sujeita a uma análise minuciosa. Há chances de que eles
desvendem este código.
Lara levantou a mão, contando em seus dedos enquanto
pontuava. — Eu devo esperar estar completamente isolada, tanto
dos Ithicanos quanto do mundo exterior. Eu posso ou não ter
permissão para me corresponder, e mesmo que eu possa, há
chances de que nosso código seja descoberto. Não há como você
me contatar para uma resposta. Não há nenhuma forma de enviar
algo através do povo deles, porque você ainda precisa ter a
lealdade de alguém. — Ela fechou a mão em um punho. — Além de
esgueirar-me, o que significa o fim da minha capacidade de
espionar, como você espera que lhe transmita as informações?
— Se essa fosse uma tarefa fácil, já a teríamos realizado. —
Serin tirou um pedaço pesado de pergaminho de sua mochila. — Há
apenas um Ithicano que se corresponde com o mundo exterior, e
esse é o próprio Rei Aren.
Tomando o pergaminho, que estava gravado com o brasão de
Ithicana: a ponte curva, as bordas enfeitadas de dourado, ela
examinou o documento, que solicitava a entrega de uma princesa
de Meridrina para ser sua noiva de acordo com os termos do
Tratado dos Quinze Anos, assim como solicitava um convite para
negociar novos termos comerciais entre os Reinos. — Você quer
que eu esconda uma mensagem com isso?
Ele assentiu, entregando-lhe um frasco de líquido transparente.
Tinta invisível. — Vamos tentar atrair mensagens dele para lhe dar a
oportunidade, mas não é propenso a se corresponder
frequentemente. Por esse motivo, devemos voltar a estudar o
código de sua irmã.
A lição foi um trabalho tedioso e Lara estava exausta. Levou todo
o seu autocontrole para não suspirar de alívio quando Serin
finalmente partiu para sua própria tenda.
O pai dela se levantou, bocejando.
— Posso fazer uma pergunta, Vossa Majestade? — ela
perguntou antes que ele pudesse partir.
Ao seu aceno, ela lambeu os lábios. — Você o viu? O novo Rei
de Ithicana?
— Ninguém o viu. Eles sempre usam máscaras quando se
encontram com pessoas de fora. — Então o pai balançou a cabeça.
— Mas eu o conheci uma vez. Anos atrás, quando era criança.
Lara esperou, as palmas das mãos ensopando a seda por baixo
das saias.
— Há rumores de que ele é ainda mais cruel do que seu pai. Um
homem severo, que não mostra piedade a forasteiros. — O olhar do
pai encontrou o dela e a piedade incomum em seus olhos fez as
mãos dela virarem gelo. — Eu sinto que ele irá tratá-la cruelmente,
Lara.
— Fui treinada para suportar a dor. — Dor, fome e solidão. Tudo
o que ela poderia enfrentar em Ithicana. Ensinando-a a suportar e
permanecer fiel à sua missão.
— Pode não vir na forma de dor, como você a entende. — O pai
pegou a mão dela e a virou para revelar a palma, estudando-a. —
Seja cuidadosa com a bondade deles, Lara. Acima de tudo, os
Ithicanos são astutos. E o Rei deles não desistirá de nada sem
exigir o que lhe é devido.
O coração dela disparou.
— O coração do nosso Reino está preso entre o deserto
vermelho e os Mares de Tempestade, com a ponte de Ithicana
sendo a única rota segura para lá — continuou ele. — Nem o
deserto, nem o mar se dobram a nenhum mestre, e Ithicana... Eles
veriam nosso povo empobrecido, faminto e destruído antes mesmo
de permitir que o comércio fluísse livremente. — Ele largou a mão
dela. — Por gerações, tentamos de tudo para fazê-los ver a razão.
Fazê-los ver o mal que sua ganância causa ao povo inocente de
nossas terras. Mas os Ithicanos não são homens, Lara. Eles são
demônios escondidos em formas humanas. O que temo que você
descobrirá em breve.
Observando o pai sair da tenda, Lara flexionou as mãos,
querendo envolvê-las em armas. Para atacar. Para mutilar. Para
Matar.
Não por causa de suas palavras.
Por mais severo que fosse o aviso do pai, era um que ela já
ouviu inúmeras vezes antes. Não, foi a queda dos ombros dele. A
resignação em seu tom. A desesperança que apareceu brevemente
em seus olhos. Todos os sinais de que, apesar de tudo que seu pai
havia colocado nessa jogada, ele não acreditava realmente que ela
teria sucesso em sua missão. Por mais que Lara detestasse ser
subestimada, ela odiava aqueles que tinham pena caso se
machucasse. E com suas irmãs agora livres de seus grilhões, nada
mais importava para ela do que Maridrina.
Ithicana pagaria pelos crimes contra seu povo e, quando
terminasse com o Rei, ele faria mais do que se curvar.
Ele iria sangrar.

Nas quatro outras noites de viagem ao norte o grupo viu dunas de


areia vermelha dando lugar a colinas cobertas de mato seco e
árvores grossas, depois montanhas escarpadas que pareciam tocar
o céu. Eles seguiram ravinas estreitas e, lentamente, o clima
começou a mudar, a infinita sujeira marrom intercalada com
manchas verdes e o ocasional desabrochar de flores. O leito seco
do riacho que eles seguiram começou a ficar enlameado e, várias
horas depois, a caravana estava cavalgando entre águas
vagarosas, porém, além disso, a terra estava seca como osso. Dura
e aparentemente inabitável.
Homens, mulheres e crianças pararam de trabalhar em seus
campos para proteger os olhos e ver o grupo passar. Eles eram
todos magros, vestindo roupas simples surradas e chapéus de palha
de abas largas que os protegiam do sol incessante. Eles
sobreviviam das colheitas esparsas e do gado magro que criavam;
não havia outra escolha para eles. Embora, nas gerações
anteriores, as famílias pudessem ganhar o suficiente em seus
negócios para comprar, através da ponte, carne e grãos importados
de Harendell, os crescentes impostos e pedágios de Ithicana
mudaram isso. Agora, apenas os ricos podiam pagar os bens e a
classe trabalhadora de Maridrina foi forçada a abandonar seus
negócios por esses campos secos para alimentar seus filhos.
Mal os sustenta, pensou Lara, com o peito apertado enquanto as
crianças corriam para ver a caravana passar, as costelas
visivelmente salientes sob as roupas esfarrapadas.
— Deus abençoe Vossa Majestade — eles gritaram. — Deus
abençoe a Princesa! — As meninas corriam ao lado do camelo de
Serin, estendendo a mão para as tranças de flores silvestres que
Lara colocou sobre os ombros e depois sobre a sela quando
cresceram demais.
Serin deu a ela um saco de moedas de prata para dispersar e foi
uma luta manter os dedos firmes enquanto os pressionava em mãos
minúsculas. Eles aprenderam o nome dela rápido, e, quando o
riacho lamacento se transformou em cachoeiras de cristal correndo
pelas encostas em direção ao mar, eles gritaram: — Abençoe a
princesa Lara! Vigie nossa linda princesa! — Mas foi um canto
crescente de “Abençoe Lara, a Mártir de Maridrina” que gelou suas
mãos. Isso a manteve acordada muito tempo depois que Serin
terminou suas aulas todas as noites, depois encheu sua cabeça de
pesadelos quando o sono a levava. Sonhos os quais estava presa
por demônios provocadores, os quais todas as suas habilidades
haviam falhado, os quais, não importando o que ela fizesse, não
poderia se libertar. Sonhos os quais Maridrina queimava.
E todos os dias, eles viajavam para mais perto.
Quando a terra ficou exuberante e úmida, juntou-se à caravana
um contingente maior de soldados, e Lara foi transferida do camelo
para uma carruagem azul puxada por uma equipe de cavalos
brancos, com os adornos decorados com as mesmas moedas de
prata do cavalo de seu pai. E, com os soldados, veio toda uma
comitiva de servos atendendo a todas as necessidades de Lara,
lavando-a, esfregando-a e polindo-a enquanto viajavam para a
capital de Maridrina, Vencia.
Os seus sussurros entravam pelas paredes de sua barraca: que
seu pai havia mantido a futura noiva de Ithicana escondida no
deserto todos esses longos anos para sua própria segurança. Que
ela era uma filha preciosa, nascida de uma esposa favorecida,
escolhida a dedo por ele para unir os dois Reinos em paz, seu
charme e graça servidos a Ithicana por Maridrina concediam todos
os benefícios que um aliado deveria ter, o que permitiria ao Reino
prosperar mais uma vez.
A própria ideia de que Ithicana cederia tanto era ridícula, mas
Lara achou graça pela ingenuidade. Não quando captou a
esperança desesperada em seus olhos. Em vez disso, ela
cuidadosamente alimentou sua fúria, escondendo-a sob sorrisos
gentis e graciosas aberturas da janela da carruagem. Era uma força
que ela precisava, já que ouviu os outros sussurros também. —
Tenham pena da pobre e gentil princesa — disseram os servos com
tristeza nos olhos. — O que será dela entre aqueles demônios?
Como ela sobreviverá à brutalidade deles?
— Você está com medo? — Seu pai fechou as cortinas da
carruagem quando se aproximaram dos arredores de Vencia, para
grande desgosto de Lara. Era a cidade de seu nascimento e não a
via desde que foi tirada dos limites do harém e levada ao complexo
para começar seu treinamento aos cinco anos de idade.
Ela se virou para ele. — Eu seria uma tola se não tivesse medo.
Se descobrirem que sou uma espiã, eles vão me matar e depois
cancelar as concessões comerciais por rancor.
Seu pai fez um barulho concordando, depois puxou duas facas
incrustadas com rubis Maridrinianos debaixo do casaco,
entregando-as a ela. Lara as reconheceu como as armas
cerimoniais que as mulheres Maridrinianas usavam para indicar que
estavam casadas. Elas deveriam ser usadas por um marido em
defesa da honra de sua esposa, mas geralmente eram mantidas
paradas. De decoração. Sem utilidade.
— Elas são adoráveis. Obrigada.
Ele riu. — Olhe mais de perto.
Puxando de suas bainhas, Lara testou as bordas e as achou
afiadas, mas o balanço estava errado. Então o pai estendeu a mão
e apertou uma das jóias, e o cabo de ouro caiu para revelar uma
faca de arremesso.
Lara sorriu.
— Se eles não permitirem que você se comunique com o mundo
exterior, precisará esperar um pouco enquanto aprende os segredos
deles, depois fugir. Talvez até consiga se libertar e voltar para nós
com o que aprendeu.
Ela assentiu, sacudindo as lâminas para frente e para trás para
sentir. Não havia chance de voltar e voluntariamente entregar sua
estratégia de invasão. Fazer isso seria suicídio.
Depois de aprender a intenção de seu pai de matar ela e a suas
irmãs no jantar, Lara teve tempo de considerar por que seu pai
queria que as filhas não estivessem destinadas a morrer como
Rainhas. Era mais do que o desejo de manter sua trama em
segredo até que conseguisse tomar a ponte. O pai dela queria que
essa trama fosse mantida em segredo para sempre, pois, se alguém
descobrisse sobre sua capacidade de usar as outras filhas vivas
como ferramentas de negociação, tudo seria negado. Ninguém
jamais confiaria nele. Assim como ele nunca confiaria nela. O que
significava que, se Lara voltasse com sucesso ou não, também seria
silenciada.
O pai dela interrompeu seus pensamentos. — Eu estava lá
quando as meninas mataram pela primeira vez — disse ele. — Você
sabia?
As lâminas pararam em suas mãos quando Lara lembrou. Ela e
as irmãs tinham dezesseis anos quando a fila de homens
acorrentados foi levada ao complexo sob o olhar atento de Serin.
Eles eram assaltantes de Valcotta que haviam sido capturados e
trazidos para testar o valor das princesas guerreiras de Maridrina.
Matar ou ser morta, Mestre Erik havia dito a elas quando foram
empurradas uma a uma para o pátio de combate. Algumas de suas
irmãs hesitaram e caíram sob os golpes desesperados dos
invasores. Lara não. Ela nunca esqueceria o som de carne sendo
cortada que sua lâmina fazia quando afundava na garganta do
oponente. A maneira como ele a encarou com espanto antes de cair
lentamente na areia, sua força vital se acumulando ao seu redor.
— Eu não sabia — disse ela.
— Facas, se bem me lembro, são sua especialidade.
Matar era sua especialidade.
A carruagem roncava pelas ruas de paralelepípedos, os cascos
dos cavalos fazendo pequenos sons agudos contra a pedra. Do lado
de fora, Lara ouviu aplausos ininterruptos e, abrindo a cortina,
tentou sorrir para os homens e mulheres imundos que ladeavam as
ruas, com os rostos pálidos de fome e doença. Pior estavam as
crianças entre eles, olhos sem brilho e sem esperança, moscas
zumbindo perto de seus olhos e bocas.
— Por que você não faz algo por eles? — ela exigiu do pai, cujo
rosto estava inexpressivo quando olhou pela janela.
Ele virou os olhos azuis para ela. — Por que mais você acha que
eu te criei? — Então ele enfiou a mão no bolso e deu a ela um
punhado de prata para atirar da janela, o que ela fez. Ela fechou os
olhos enquanto seu povo empobrecido lutava pelo metal reluzente.
Ela os salvaria. Arrancaria a ponte do controle de Ithicana e nenhum
Maridriniano passaria fome novamente.
Os cavalos diminuíram a velocidade, descendo as íngremes e
sinuosas ruas do porto abaixo. Onde o navio esperava para levá-la
a Ithicana.
Ela puxou a cortina para olhar pela primeira vez o mar, o cheiro
de peixe e salmoura no ar. Havia ondas brancas na água, a subida e
queda das ondas roubando sua atenção quando o pai arrancou as
facas de suas mãos para devolvê-las na hora certa.
A carruagem atravessou um mercado que parecia quase
desprovido de vida, as barracas vazias. — Onde está todo mundo?
— ela perguntou.
O rosto do pai dela estava sombrio e ilegível. — Esperando você
abrir os portões para Ithicana.
A carruagem entrou no porto e parou. Não houve cerimônia
quando o pai a ajudou a descer. O navio que os esperava ostentava
uma bandeira azul e prata. As cores de Maridrina.
Ele a conduziu rapidamente pelo cais e subiu na prancha do
navio. — A travessia para Southwatch leva menos de uma hora. Há
criados esperando para arrumá-la abaixo.
Lara lançou um olhar para trás para Vencia, para o sol brilhando
quente e luminoso acima dela, depois voltou a vista para as nuvens,
a névoa e a escuridão que se estendiam pela estreita via diante
dela. Um Reino para salvar. Um Reino para destruir.
4
LARA

L ,
como um cavalo selvagem, cravando as unhas no parapeito, lutando
para impedir que o conteúdo do estômago caísse no mar. Para
piorar a situação, criada no deserto, ela nunca aprendeu a nadar -
uma fraqueza que já começava a assombrá-la. Toda vez que o
navio saltava no vento forte, sua respiração ficava presa com a
certeza de que eles virariam e se afogariam. As únicas coisas que a
distraíam das visões de ondas se fechando sobre sua cabeça eram
os perigos que certamente a encaravam.
À noite, estaria casada. Ela estaria sozinha em um Reino
estrangeiro que tinha a reputação do pior tipo de crueldade. Seria a
esposa de um jovem que era o senhor de tudo. Essa era a vida da
qual ela estava protegendo suas irmãs, sacrificando a sua própria,
e, tudo isso, pelo bem de seu povo. Mas agora as consequências
dessa escolha estavam terrivelmente pertos. Nuvens pairavam
baixas sobre o mar de ondas brancas, movendo-se
inconstantemente como bestas, mas, através deles, ainda que
levemente, ela conseguia distinguir a sombra de uma ilha. Ithicana.
Seu pai se juntou a ela no parapeito. — Southwatch.
As roupas dele manchadas de viagem foram substituídas por
uma camisa branca impecável e um casaco preto, sua espada
polida pendurada em um cinto decorado com discos de prata e
turquesa. — Aren mantém uma tropa completa de soldados lá o
tempo todo e eles têm catapultas e outras máquinas de guerra
apontadas para o oceano, prontas para afundar qualquer um que
tente tomar a ilha. Existem pontas de ferro no fundo do mar para
rasgar qualquer navio que consiga se aproximar de qualquer outro
ponto que não seja o píer, o qual é equipado com explosivos, caso
achem que foi comprometido. A ponte não pode ser tomada pela
frente. — Sua mandíbula se flexionou. — Foi tentado muitas outras
vezes.
Inúmeros navios e milhares de homens perdidos a cada
tentativa. Lara conhecia a história da guerra que terminou quinze
anos atrás com Ithicana triunfante, mas os detalhes surgiram e
caíram em sua mente como as ondas nas quais o navio passava.
Seus joelhos estavam trêmulos, todo seu corpo estava fraco de
enjoo.
— Você é a esperança do nosso povo, Lara. Nós precisamos
daquela ponte.
Ela temia que se abrisse a boca, derramaria o que restasse no
estômago ao mar, então apenas assentiu uma vez. A ilha estava à
vista agora, dois picos de pedra enfeitados com uma vegetação
exuberante apareciam subindo do mar. Na base deles, havia um
píer solitário coberto de armas, um aglomerado de edifícios de
pedra sem adornos e, além, uma única estrada que levava ao início
da ponte.
A manga do pai roçou seu pulso. — Nem por um segundo
acredite que eu confio em você — ele murmurou, roubando a
atenção dela. — Vi o que você fez com suas irmãs e, embora possa
afirmar ter Maridrina em primeiro lugar em seu coração, sei que foi
motivada pelo desejo de salvar sua própria pele.
Se salvar a própria vida tivesse sido com o que ela se importava,
teria falsificado a própria morte. Mas Lara não disse nada.
— Enquanto sua crueldade a torna perfeita para esse papel, sua
falta de honra me faz questionar se você colocará a vida de nosso
povo acima da sua. — Agarrando seus braços, ele a girou em sua
direção, nada em seu rosto revelando que aquilo era algo além de
uma conversa entre um pai amoroso e sua filha. — Se você me trair,
irei te caçar. E o que irei fazer com você, fará com que você
desejasse ter morrido ao lado de suas irmãs.
O som de tambores de aço dançava através do mar e pelos seus
ouvidos, destacados pelo som distante de trovão.
— E se eu tiver sucesso como Rainha? — Sua boca estava com
um gosto azedo, e ela virou a cabeça, observando as centenas de
pessoas na ilha esperando pelo navio. Esperando por ela.
— Você será a salvadora de Maridrina. Você será recompensada
com mais do que possa imaginar.
— Eu quero minha liberdade. — Sua língua parecia
estranhamente grossa enquanto falava. — Quero ser deixada
sozinha, para minha própria sorte. Livre para ir aonde eu escolher,
para fazer o que eu quiser.
Uma sobrancelha prateada se levantou. — Como você e Marylyn
são diferentes.
— Éramos.
Ele inclinou a cabeça. — Ainda assim.
— Temos um acordo então? A ponte em troca da minha
liberdade?
Seu aceno de cabeça foi marcado pelo som alto de um trovão.
Era mentira, e ela sabia disso. Mas poderia viver com as mentiras
dele porque seus objetivos eram alinhados.
— Içar velas — berrou o capitão do navio, e Lara agarrou o
parapeito enquanto o barco perdia velocidade, os marinheiros
correndo para se prepararem para o desembarque. Os tambores
continuaram sua batida, o ritmo cada vez mais rápido, assim como o
coração de Lara, enquanto o navio flutuava contra o píer vazio, os
marinheiros pulavam para fora do navio para amarrar.
A passarela de desembarque foi abaixada e seu pai a pegou
pelo braço, levando-a em direção a ela. As batidas se
intensificaram.
— Você tem um ano. — Ele pisou na pedra sólida do píer. —
Não vacile. Não falhe.
Lara hesitou, tonta, e, pela primeira vez desde a noite em que
libertou as irmãs do destino sombrio, estava morrendo de medo.
Então ela deu o primeiro passo no mundo que agora era seu novo
lar.
O tambor soou com uma batida trovejante, depois parou.
Segurando firme o braço do pai, Lara subiu o píer, engolindo um
suspiro enquanto observava os Ithicanos mascarados pela primeira
vez.
Seus capacetes de aço eram esculpidos como feras furiosas,
com bocas cheias de dentes rosnando e testas com chifres curvos.
Ela não podia ver nada dos homens abaixo, exceto os olhos, que
pareciam brilhar com malícia enquanto a observavam passar, mãos
em espadas e lanças. Ninguém falou; os únicos sons eram do
zumbido do vento entre as duas torres de pedra e o chamado da
tempestade que ainda viria.
Desviando os olhos dos soldados, o olhar de Lara desceu até a
estrada asfaltada, subindo até a boca escancarada da ponte de
Ithicana. Estava fechada como um túnel, talvez uns quatro metros
de largura e tão alta quanto, feita de pedra cinza que ficou verde
devido a exposição ao ar úmido. Uma grande ponte levadiça foi
içada, toda a base da ponte emoldurada por uma guarita.
Uma figura saiu da abertura escura, os espinhos de aço da ponte
levadiça pendiam acima dele como presas, e Lara sentiu seu
estômago revirar.
O Rei de Ithicana.
Vestido com calças, botas pesadas e uma túnica cinza-
esverdeada, ele era alto e tinha ombros largos. Anos de treinamento
lhe diziam que ele era tão soldado quanto qualquer um que estava
na estrada. Mas esses detalhes foram perdidos, seu coração
palpitando, enquanto ela analisava o capacete que escondia o rosto
do Rei. Tinha um focinho como o de um leão, aberto para revelar
caninos brilhantes e chifres como os de touro brotando em suas
têmporas.
Não era um homem, mas sim um demônio.
A tontura persistente da viagem passou sobre ela em ondas e,
com isso, veio o medo que a possuía como um espírito furioso. O
salto de sua sandália deslizou sobre a pedra e Lara tropeçou contra
seu pai, sentindo o chão se mover como o balançar do barco.
Isso era um erro. Um horrível, terrível erro.
Quando apenas alguns passos estavam entre eles, o pai parou e
virou-se para ela. Na mão livre dele havia um cinto de joias, com as
camufladas facas de arremesso presas uma de cada lado. Enrolou-
a na cintura de seu vestido encharcado, apertando a fivela. Então
ele beijou as suas duas bochechas antes de voltar para o Rei de
Ithicana. — Como está no acordo, estou aqui para oferecer minha
filha mais preciosa, Lara, como um símbolo do compromisso de
Maridrina com sua aliança contínua com Ithicana. Que haja paz
entre nossos Reinos.
O Rei de Ithicana assentiu uma vez e seu pai a empurrou
levemente entre seus ombros. Com pequenos passos, ela caminhou
em direção ao Rei e, enquanto isso, um raio apareceu no ar, o
lampejo fazendo o semblante do capacete se mover, não como se
fosse de metal, mas de carne.
O tambor recomeçou, uma batida firme e dura: Ithicana viva. O
Rei estendeu a mão e, embora todos os instintos lhe dissessem que
se virasse e fugisse, Lara a pegou.
Por razões que não conseguia entender, esperava que estivesse
fria como metal e igualmente firme - mas estava quente. Dedos
longos se curvaram em torno dos dela, as unhas cortadas. A palma
da mão estava calejada, a pele, como a dela, coberta com
pequenas cicatrizes brancas. Os cortes e machucados que não
podiam ser evitados quando o combate era o modo de vida de
alguém. Ela olhou para aquela mão. Ofereceu algum conforto
estranho; o que estava diante dela não passava de um homem.
E homens podem ser derrotados.
Uma sacerdotisa se aproximou à sua esquerda e amarrou uma
fita azul em volta das mãos deles, amarrando-as antes de confirmar
os votos do casamento Maridriniano, para que todos pudessem
ouvir mesmo com o som da tempestade chegando. Votos de
obediência da parte dela. Votos de criar centenas de filhos com ele.
Lara podia jurar que ouviu um leve bufar de diversão por trás do
capacete do Rei.
Mas quando a sacerdotisa levantou as mãos para proclamá-los
marido e mulher, ele falou pela primeira vez. — Ainda não.
Acenando para a sacerdotisa assustada se afastar, ele soltou a
fita que deveria ser trançada nos cabelos de Lara durante o primeiro
ano de casamento. A seda voou em direção ao mar. Um dos
soldados dele de capacete saiu da fileira, correndo para ficar diante
deles.
E então ele gritou: — Você, Aren Kertell, Rei de Ithicana, jura
lutar ao lado desta mulher, defendê-la até o último suspiro, valorizar
seu corpo e nenhum outro, e ser leal a ela enquanto ambos
viverem?
— Eu juro. — As palavras do Rei foram destacadas pelo bater de
cem espadas e lanças contra escudos, e Lara estremeceu.
Mas o choque do barulho não foi nada comparado ao que sentiu
quando o soldado se virou para ela e disse: — Você, Lara Veliant,
Princesa de Maridrina, jura lutar ao lado deste homem, defendê-lo
até o seu último suspiro, valorizar seu corpo e nenhum outro, e ser
leal a ele enquanto vocês ambos viverem?
Ela piscou. E porque não havia mais nada a dizer, sussurrou: —
Eu juro.
Assentindo, o soldado sacou uma faca. — Agora, não seja um
bebê, majestade — ele murmurou, e o Rei respondeu com uma
risada tensa antes de estender a mão.
O soldado atravessou palma da mão do Rei com a faca e, antes
que Lara pudesse se afastar, ele agarrou o braço dela e passou a
faca pela mão dela. Ela viu o sangue escorrer antes de sentir a
picada. O soldado apertou as palmas de suas mãos juntas, o
sangue quente do Rei de Ithicana se misturando com o dela antes
de escorrer pelos dedos entrelaçados.
O soldado ergueu as mãos deles, quase levantando Lara junto.
— Eis o Rei e a Rainha de Ithicana.
Como que para ressaltar suas palavras, a tempestade finalmente
caiu sobre eles com um retumbante trovão que fez o chão
estremecer. Os tambores aumentaram seu ritmo frenético, e o Rei
de Ithicana retirou as mãos do punho do soldado, abaixando o braço
para que Lara não estivesse na ponta dos pés. — Eu sugiro que
você embarque logo no seu navio, Vossa Excelência — disse ele ao
pai de Lara. — Antes que essa tempestade persiga-o até sua casa.
— Você sempre pode oferecer sua hospitalidade — respondeu o
pai dela, e a atenção de Lara passou dele para Serin, que estava
com o resto dos Maridrinianos mais a frente. — Nós somos, afinal,
uma família agora.
O Rei de Ithicana riu. — Um passo de cada vez, Silas. Um passo
de cada vez. — Ele se virou e gentilmente puxou Lara para as
profundezas da ponte, a ponte levadiça descendo atrás deles. Ela
teve apenas a oportunidade de dar uma breve olhada por cima do
ombro para o pai, sua expressão vazia e ilegível. Mais além, Serin
encontrou seu olhar, inclinando a cabeça uma vez em um lento
aceno de cabeça antes que ela sumisse de vista.
Estava escuro lá dentro, cheirando levemente a esterco e suor
de animais. Nenhum dos Ithicanos tirou o capacete, mas, mesmo
com os rostos escondidos, Lara sentiu seus olhares.
— Bem vinda a Ithicana — disse o Rei - seu marido. — Sinto
muito ter que fazer isso.
Lara o viu levantar a mão segurando um frasco. Ela poderia ter
se esquivado. Poderia tê-lo derrubado com um único golpe, lutando
para se libertar dos soldados. Mas ela não podia deixar que
soubessem disso. Em vez disso, lançou-lhe um olhar chocado
quando ele segurou o frasco contra o seu nariz, o mundo girando
em torno dela, a escuridão tomando conta dela. Seus joelhos
dobraram e ela sentiu braços fortes pegando-a antes de cair no
chão. A última coisa que ouviu antes de desaparecer da consciência
foi a voz resignada do Rei: — No que me meti com você?
5
AREN

A , I ,
deitado de costas, olhando para as manchas de fuligem no telhado
do acampamento. Seu capacete repousava ao lado de sua mão
esquerda e, quando ele virou a cabeça para encarar a monstruosa
coisa de aço que havia herdado junto com seu título, decidiu que o
ancestral que teve a ideia dos capacetes era tanto um gênio quanto
um sádico. Gênio, porque isso dava medo aos inimigos de Ithicana.
Sádico, porque usá-los era como enfiar a cabeça em uma panela
que cheirava a meias suadas.
O rosto de sua irmã gêmea apareceu na sua vista, com uma
expressão divertida. — Nana a examinou. Disse que ela está em
boa forma, aparentemente saudável e, tirando a tragédia, viverá
provavelmente muitos anos.
Aren piscou uma vez.
— Decepcionado? — Ahnna perguntou.
Rolando sobre um cotovelo, Aren sentou-se ereto no banco. —
Ao contrário das opiniões de nossos Reinos vizinhos, não sou tão
depravado que desejo a morte de uma garota inocente.
— Você tem certeza de que ela é inocente?
— Você acha que não é?
Ahnna franziu o rosto, depois balançou a cabeça. — Na
verdadeira moda Maridriniana, eles lhe deram uma violeta bonita e
recatada. É bom de olhar e nada mais.
Lembrando como a jovem tremia ao subir o píer, segurando
firmemente o braço do pai, seus enormes olhos azuis cheios de
terror, Aren estava inclinado a concordar com a avaliação de sua
irmã. Mesmo assim, pretendia manter Lara isolada até que pudesse
entender sua verdadeira natureza. E entender exatamente onde
está a sua lealdade.
— Nossos espiões aprenderam mais alguma coisa sobre ela?
Ahnna balançou a cabeça. — Nada. O Rei parece tê-la
escondido no deserto e, até que ela saiu das areias vermelhas, nem
os Maridrinianos sabiam o nome dela.
— Por que todo o segredo?
— Dizem que foi para a proteção dela. Nem todo mundo está
satisfeito com a nossa aliança com Maridrina, Valcotta, acima de
tudo.
Aren franziu a testa, insatisfeito com a resposta, apesar de não
saber dizer o porquê. Maridrina e Valcotta estavam continuamente
em guerra pelo trecho fértil de terra que descia a costa oeste do
continente sul, a fronteira desejada pelos dois Reinos. Era possível
que a imperatriz valcottana tivesse tentado romper a aliança
assassinando a princesa mas ele achou improvável. Primeiro que
Silas Veliant tinha mais filhas do que ele sabia o que fazer, e o
tratado não era específico sobre qual garota seria enviada. Segundo
que todos os Reinos do norte e do sul sabiam que o casamento de
Aren com uma princesa Maridriniana não passava de um ato
simbólico; todas as partes envolvidas estavam mais interessadas
nos termos comerciais subjacentes ao acordo e à paz que eles
compraram. O tratado existiria mesmo sem a princesa.
Mas terceiro, e o que mais o incomodava, que não era da
natureza Maridriniana se esconder de ninguém. Pelo contrário, Silas
teria gostado do assassinato de uma ou duas filhas, porque
fortaleceria o apoio de seu povo à guerra contra Valcotta.
— Ela já acordou?
— Não. Desci assim que Nana a considerou uma esposa
saudável e em forma para você, porque eu queria ser a pessoa a
contar as notícias maravilhosas.
A voz da sua gêmea transbordava sarcasmo, então Aren lançou-
lhe um olhar de aviso. — Lara é sua Rainha agora. Talvez devesse
mostrar um pouco de respeito.
Ahnna respondeu mostrando seu dedo do meio. — O que você
vai fazer com a Rainha Lara?
— Com aqueles peitos, eu sugiro que a leve para a cama — uma
voz grave interrompeu.
Aren virou-se para encarar Jor, o capitão de sua guarda de
honra, que estava sentado do outro lado da fogueira. — Obrigado
pela sugestão.
— O que eles estavam pensando, vestindo-a de seda na chuva?
Poderiam muito bem tê-la feito desfilar nua na frente de todos.
Aren tinha, de fato, notado. Mesmo ensopada pela chuva, ela
tinha sido deslumbrante, sua forma curvilínea, seu rosto requintado
emoldurado por cabelos da cor de mel. Não que ele esperasse mais
alguma coisa. Apesar de ter passado do auge, o Rei de Maridrina
permaneceu um homem vital, e sabia que ele escolheu a maioria de
suas esposas por beleza e nada mais.
O pensamento do outro Rei deixou o estômago de Aren azedo.
Ele lembrou a expressão presunçosa no rosto de Silas enquanto
entregava sua preciosa filha.
Era uma expressão que o Rei Rato tinha direito de usar.
Enquanto Ithicana estava agora vinculada em termos comerciais
novos e indesejáveis, tudo o que o Rei de Maridrina havia desistido
era uma de suas inúmeras filhas e uma promessa de continuar a
paz que havia permanecido entre os dois Reinos nos últimos quinze
anos. E não pela primeira vez, Aren amaldiçoou seus pais por
fazerem seu casamento com Maridrina parte do acordo.
— Um pedaço de papel com três assinaturas fará pouco para
unir nossos Reinos — sua mãe sempre respondia quando ele
reclamava. — Seu casamento será o primeiro passo para criar uma
verdadeira aliança entre os povos. Você irá liderar pelo exemplo e,
ao fazer isso, garantirá que Ithicana faça mais do que apenas
sobreviver por um triz. E se isso não significa nada para você,
lembre-se de que seu pai deu a palavra em meu nome.
E um Ithicano sempre mantinha sua palavra. Por isso, no décimo
quinto aniversário do acordo, apesar de seus pais terem morrido há
um ano, Aren enviou uma mensagem a Maridrina para trazer sua
princesa para o casamento.
— Não posso argumentar que ela é agradável aos olhos. Só
espero ter sorte. — Embora a voz de Ahnna fosse leve, Aren não
perdeu como seus olhos castanhos ficaram entorpecidos com a
menção de sua metade da barganha. O Rei de Harendell, seu
vizinho ao norte, ainda não havia chamado a noiva Ithicana de seu
filho, mas com Aren agora casado com Lara, era apenas uma
questão de tempo. Harendell já deveria saber os termos que
Maridrina havia negociado, e eles desejariam extrair seu próprio
peso de carne. Ambos os acordos incitariam retaliação por Amarid.
O relacionamento do outro Reino do norte com Ithicana já estava
cheio de conflitos, uma vez que seus navios mercantes competiam
pelos negócios com a ponte.
Dando a Jor um olhar significativo, Aren esperou até que a
guarda de honra se tornasse escassa antes de dizer à irmã em voz
baixa: — Não vou fazer você se casar com o príncipe, se não
desejar. Eu os compensarei de outra maneira. Harendell é mais
pragmático que Maridrina; eles podem ser comprados. — Porque
uma coisa era Aren levar uma garota que não havia escolhido e
nunca conheceu como noiva por uma questão de paz. Outra coisa
era entregar sua irmã a um Reino estrangeiro, onde estaria sozinha
em um lugar estranho para ser usada como quisessem.
— Não seja idiota, Aren. Você sabe que eu colocarei o bem do
nosso Reino em primeiro lugar — murmurou Ahnna, mas se apoiou
no ombro esquerdo dele, onde ficou com ele e lutou por ele a vida
toda. — E você não respondeu minha pergunta.
Isso porque ele não sabia o que ia fazer com Lara.
— Não podemos baixar a guarda — disse Ahnna. — Silas pode
ter prometido paz, mas nem por um segundo acredite que ele
pretenda honrar isso por ela. O bastardo provavelmente sacrificaria
uma dúzia de filhas se nos visse abaixando nossas defesas.
— Estou ciente.
— Ela pode ser linda — continuou sua irmã, — mas nunca
acredite em um batimento cardíaco que não seja intencionalmente.
Ela é filha do nosso inimigo. Ele quer que você se distraia com ela.
Ela provavelmente foi instruída a seduzi-lo, a descobrir o que pode
sobre os segredos de Ithicana, na esperança de que seja capaz de
devolvê-los ao pai. Não precisamos dele segurando esse tipo de
moeda de troca.
— Como exatamente ela conseguiria isso? Não é como se a
mandássemos para casa para visitas. Ela não terá contato com
ninguém fora de Ithicana. Ele tem que saber disso.
— Melhor prevenir. Melhor que ela seja mantida no escuro.
— Então eu deveria mantê-la trancada na casa de nossos pais
nesta ilha vazia pelo resto de seus dias? — Aren olhou para as
brasas brilhantes do fogo. Uma rajada de vento levou a chuva para
o buraco no telhado acima, as gotas sibilando quando atingiram a
madeira carbonizada. — E se... — ele engoliu em seco, sabendo
que tinha obrigações com seu Reino — quando tivermos um filho,
devo mantê-lo trancado aqui também?
— Eu nunca disse que seria fácil. — Sua irmã pegou sua mão, a
virando para observar o corte na palma da mão, sangrando onde ele
havia cutucado a ferida. — Mas nosso dever é proteger nosso povo.
Para manter Eranahl em segredo. Para mantê-lo seguro.
— Eu sei. — Mas isso não significava que não sentia uma
obrigação com sua nova noiva. Quem ele trouxe através dos trechos
escuros da ponte, sabendo que quando ela acordasse, estaria em
um lugar completamente diferente do que qualquer outro que
conhecesse. Não a vida que escolheu, mas uma que lhe foi imposta.
— Você deveria ir para casa — disse Ahnna. — O efeito do
sedativo passará em breve.
— Você vai. — Aren deitou-se no banco, ouvindo o trovão
rolando sobre a ilha, a tempestade quase passou, embora logo
fosse substituída por outra. — Ela já sofreu o suficiente sem ter que
acordar em um quarto com um homem estranho.
Ahnna olhou por um momento como se pudesse argumentar,
depois assentiu. — Vou mandar uma mensagem quando acordar. —
Levantando-se, ela deixou o acampamento em passos silenciosos,
deixando-o sozinho.
Você é um covarde, ele pensou. Porque tinha sido apenas uma
desculpa para evitar ver a garota. Sua mãe acreditava que essa
princesa era a chave para alcançar a grandeza de Ithicana, mas
Aren não estava convencido.
Ithicana precisava de uma Rainha que fosse uma guerreira. Uma
mulher que lutaria até a morte por seu povo. Uma mulher que era
esperta e implacável, não porque queria ser, mas porque seu país
precisava que ela fosse. Uma mulher que o desafiaria todos os dias
pelo resto da vida. Uma mulher que Ithicana respeitaria.
E havia uma coisa que ele tinha certeza: Lara Veliant não era
essa mulher.
6
LARA

L ,
gosto azedo na boca.
Sem se mover, abriu os olhos, estudando o que podia do quarto.
Ela viu uma janela aberta, através da qual entrava uma brisa úmida
com cheiro de flores e de uma rica vegetação da qual não podia
nomear, já que passara a vida cercada de areia. A vista era de um
jardim florido, com uma suave luz prateada, como se estivesse
sendo filtrada por nuvens carregadas. O único som era o leve
tamborilar da chuva.
E um zumbido feminino.
Ela relaxou a mão que se fechou em punho, preparada para
atacar, e, lentamente, virou a cabeça.
Uma mulher extraordinariamente impressionante, talvez cinco
anos mais velha que Lara, com longos cabelos escuros e
encaracolados, estava no centro da sala usando um dos vestidos de
Lara. Um dos vestidos de Marylyn, ela percebeu com uma pontada.
Vendo o jeito que ela inclinou a cabeça, Lara sabia que a outra
mulher a ouviu se mover, mas continuou como se não tivesse,
balançando as saias de seda curtas demais de um lado para o
outro, continuando com o zumbido.
Lara não disse nada, observando os móveis de madeira
esculpida, polidos até refletirem, e vasos de flores brilhantes
estavam em quase todas as superfícies planas. Os pisos eram feitos
de pequenos pedaços de madeira dispostos em desenhos
elaborados; as paredes eram de gesso branco e decoradas com
obras de arte vibrantes. Uma porta levava ao que parecia ser a
câmara de banho e a outra, fechada, que ela supunha levar a um
corredor para fora. Satisfeita por ter entendido o ambiente ao seu
redor, Lara perguntou: — Onde estou?
— Oh, você está acordada! — a mulher disse com surpresa
fingida. — Você está na casa do Rei na ilha de Midwatch.
— Certo. — Se Midwatch estivesse, como o nome sugeria, no
meio de Ithicana, ela ficara inconsciente por mais tempo do que
pensava. Eles a drogaram, o que significava que não confiavam
nela. Nenhuma surpresa nisso. — Como eu cheguei aqui?
— Você chegou a Midwatch pelo mar.
— Quanto tempo eu passei dormindo?
— Você não estava adormecida exatamente. Só não estava…
presente. — A mulher encolheu os ombros em forma de desculpas.
— Perdoe-nos. É da natureza de todo Ithiacano ser reservado e
ainda estamos aceitando o fato de ter uma estranha entre nós.
— Parece que sim, — murmurou Lara, notando que a mulher
não havia respondido sua pergunta, embora soubesse exatamente
com o que a haviam drogado e por quê. Manter uma pessoa
inconsciente por dias tem consequências - geralmente fatais. Drogá-
la para limpar sua memória era mais seguro.
Porém, falho. Especialmente quando o indivíduo que estava
sendo drogado já havia sido exposto no passado. Os flashes de
memória já se arrastavam pelas bordas dos pensamentos de Lara.
Memórias sobre andar. Andar com sapatos mal ajustados sobre
uma superfície dura. Ela estava na ponte e, em algum momento ao
longo de sua extensão, eles tiraram-la de lá.
Voltando o olhar para a mulher, ela perguntou: — Por que você
está usando meu vestido?
— Você tem um baú inteiro deles. Eu estava pendurando eles
para você e pensei em experimentar um para ver se gostava.
Lara levantou uma sobrancelha. — E gostou?
— Ah, sim. — A estranha arqueou as costas, sorrindo para o
reflexo no espelho. — Totalmente inútil, mas atraente apesar disso.
Eu poderia usar um ou dois no meu próprio armário. — Estendendo
a mão, ela tirou as alças do vestido dos ombros, permitindo que
deslizasse pelo corpo e se acumulasse no chão a seus pés.
Ela não usava nada por baixo, seu corpo todo musculoso, seus
seios pequenos e empinados.
— Lindo vestido o que você usou para o seu casamento, a
propósito. — Ela passou uma túnica de manga curta por cima da
cabeça e depois vestiu uma calça confortável por baixo. Havia um
conjunto de braçadeiras no chão, e ela as prendeu como se tivesse
feito isso mil vezes. — Eu pediria emprestado como minha parte no
Tratado dos Quinze Anos, mas receio que sua jornada tenha os
desgastado um pouco.
Lara piscou, ao se dar conta — Você é a princesa de Ithicana?
— Entre outras coisas. — A mulher sorriu. — Mas eu não quero
revelar todos os nossos segredos. Meu irmão nunca me perdoaria.
— Seu irmão?
— Seu marido. — Pegando um arco e aljava, a mulher - a
princesa - caminhou pelo chão. — Eu sou Ahnna. — Ela se inclinou
para beijar a bochecha de Lara. — E eu estou ansiosa para
conhecê-la, irmã.
Houve uma batida na porta e um criado carregando uma bandeja
de frutas fatiadas entrou, colocando a comida em uma mesa antes
de anunciar que o jantar seria às sete horas.
— Vou deixar você em paz — disse Ahnna. — Dar a você uma
chance de se estabelecer. Tenho certeza de que acordar aqui foi um
choque.
Depois de anos da tutela agressiva de Serin, seria preciso muito
mais do que acordar em um colchão de penas para chocar Lara,
mas permitiu um leve tremor em sua voz quando disse: — O Rei...
Ele é... Ele vai...
Ahnna deu de ombros. — Aren não é terrivelmente previsível em
suas idas e vindas, receio. Melhor que você se sinta confortável em
vez de esperar que ele volte para casa. Tome banho. Coma
algumas frutas. Tome uma bebida. Ou dez.
Um pouco de decepção passou por Lara, mas ela sorriu para
Ahnna antes de fechar a porta e virar a trava. Ela olhou para o
pedaço de metal por um longo momento, surpresa pelos Ithicanos
permitirem sua privacidade, depois deixou de lado o pensamento.
Tudo o que sabia sobre eles era mais especulação do que verdade.
Melhor viver sua situação como se ela não soubesse nada.
Depois de colocar o vestido que Ahnna havia descartado e
amarrar suas facas, que ela ficou surpresa ao se encontrar sentada
em cima, Lara andou pela sala procurando sinais de que estava
sendo espionada, mas não havia buracos nas paredes ou no teto,
sem rachaduras nas tábuas do chão. Pegando sua bandeja de
frutas, ela entrou no que presumiu ser a casa de banho, apenas
para descobrir que não tinha nada parecido com uma banheira,
apesar das prateleiras de madeira estarem carregadas de toalhas
macias, esfoliantes, sabonetes e toda uma coleção de pentes e
pincéis. No entanto, havia outra porta.
Lara abriu a porta de madeira sólida, revelando um exuberante
pátio inclinado com uma beleza que nunca tinha visto antes. As
paredes das construções estavam ocultas por trepadeiras cobertas
de brilhantes flores rosas, roxas e laranjas, e duas árvores com
enormes folhas divididas subiam em direção ao céu, vários
pássaros coloridos sentados em seus galhos. Um caminho feito de
pedras cortadas emolduradas por pequenas pedras brancas
serpenteava pelo pátio, mas o que a deixou sem fôlego foi o riacho
que fluía através do centro de tudo.
A construção, ela percebeu ao entrar no pátio, foi desenvolvida
quase como uma ponte sobre uma pequena cachoeira. A água caía
em cascata sobre placas de rocha em uma piscina abaixo, que fluía
através de um canal para outra piscina e depois mais outra, antes
de correr sob o outro lado da casa para fora.
Na base da cachoeira, à beira da piscina, ela notou os bancos de
pedra curvos sob a água. Ali era onde se devia tomar banho. O
vapor subiu levemente de sua superfície e um rápido mergulho do
dedo do pé deixou sua pele rosada pelo calor. Havia apenas uma
outra entrada para o pátio, e essa era uma porta oposta à que
levava aos seus quartos.
Atravessando o riacho por uma pequena passarela, Lara
caminhou até a porta e silenciosamente testou a maçaneta.
Trancada. Os quartos do outro lado também tinham janelas feito o
dela, mas estavam fechadas e com cortinas.
Inclinar a cabeça para o céu não revelou nada além de nuvens
agitadas, e ao testar rapidamente as videiras nas paredes as
revelou fortes o suficiente para suportar seu peso, caso ela
decidisse fugir. Inúmeras maneiras de escapar, o que significava
que essa casa não era para ser uma prisão.
Uma voz chamou sua atenção.
— Ela está acordada então?
Aren.
— Há cerca de meia hora.
— E?
Lara correu pelo caminho próximo às flores, ajoelhando-se onde
a água corria sob o prédio.
— Ela estava mais calma do que eu previa. Principalmente, ela
queria saber por que eu estava usando um de seus vestidos.
Suponho que todos temos nossas prioridades.
Silêncio. Então, — Por que você estava usando um dos vestidos
dela?
— Porque eles eram bonitos e eu estava entediada.
O Rei bufou, e Lara se arrastou alguns metros abaixo da
construção até que pudesse ver as pernas deles. Ele segurava um
arco frouxamente em uma mão, que balançava para frente e para
trás. Ela queria ir mais longe, tentar ver o rosto dele, mas não podia
arriscar ser ouvida.
— Ela disse alguma coisa importante?
— Eu tive conversas mais emocionantes com seu gato. Os
jantares juntos estão destinados a ser animados.
— Chocante. — O Rei chutou uma pedra, lançando-a para
dentro do riacho, jogando água no rosto de Lara. — Filha mais
preciosa minha bunda. Aposto que ele tem botas que são mais
preciosas do que aquela garota.
Eu aceito essa aposta, seu bastardo hipócrita, pensou Lara.
Ele acrescentou: — Essas concessões não eram o que eu queria
deste tratado, Ahnna. Não gosto delas e não quero assinar.
— Você precisa. Maridrina cumpriu o final do acordo. Se
quebrarmos a confiança, haverá consequências, sendo a perda de
paz a primeira delas.
Os dois começaram a andar, depois houve botas rastejando, o
baque medido de duas pessoas subindo as escadas, e a voz de
Ahnna era fraca quando disse: — Dar ao Rei Maridriniano o que ele
quer o fará depender ainda mais de nós. Pode valer a pena.
E Lara ouviu por pouco sua resposta: — Maridrina passará fome
antes mesmo de ver as regalias deste tratado.
As brasas da fúria de Lara queimavam quentes nas palavras
dele, lembranças das crianças magras que tinha visto nas ruas de
seu Reino enchendo seus olhos. Endireitando-se, ela invadiu o
caminho de seu quarto, com a intenção de encontrar aquele Rei
imbecil e mergulhar uma de suas facas em suas entranhas
Ithicanas.
Mas ela não faria isso.
Parando no caminho, ela olhou para o céu e respirou fundo,
encontrando calmaria no mar de fogo que era sua alma. Por mais
delicioso que fosse estripar o marido, isso não resolveria os
problemas de Maridrina. Caso contrário, seu pai teria enviado um
assassino há muito tempo para fazer exatamente isso. Não era uma
questão de derrubar um homem, mas derrubar um Reino, e para
fazer isso, ela precisava jogar o longo jogo. Adiar o ataque para
quando fosse mais eficaz. Para lembrar para o que ela foi treinada e
o porquê. Para ser a mulher que seu pai havia criado para salvar
sua terra natal.
Uma porta bateu atrás dela, e Lara a encarou, esperando que
uma das servas tivesse vindo oferecer seus serviços.
Ela não poderia estar mais enganada.
O homem estava nu, exceto pela toalha enrolada na cintura que
o impedia de ser completamente exposto a ela. Mas o que podia ver
era mais que suficiente. Alto e de ombros largos, seu corpo
musculoso era tão definido como se fosse esculpido em pedra, seus
braços marcados com velhas cicatrizes brancas contra a pele
bronzeada. E o rosto dele... Cabelos escuros emolduravam maçãs
do rosto altas e um queixo forte, temperado por lábios carnudos. Os
olhos dele a percorreram, fazendo com que a cor subisse para as
bochechas dela.
— É claro que de todos os quartos em que ela poderia ter
colocado você, ela escolheu esse — disse ele, e a familiaridade de
sua voz era como um balde de água gelada sendo jogado sobre sua
cabeça quando percebeu quem estava diante dela. Tudo o que viu
agora era aquela máscara perversa, e tudo o que ouviu foi Maridrina
morrendo de fome.
As mãos de Lara se contraíram nas facas da cintura, mas ela
cobriu o movimento ajustando a cintura do vestido.
Ele não foi enganado. — Você ao menos sabe como usá-las?
O pensamento de que ela poderia matar esse homem arrogante
e condescendente, onde ele estava, dançou em sua cabeça, mas
Lara apenas lhe deu um sorriso doce. — Eu já cortei carnes o
suficiente.
Os olhos dele brilharam com interesse. — Então a princesinha é
corajosa, afinal. — Gesticulando para as facas dela, ele disse: — Eu
quis dizer, você sabe como lutar com elas?
Dizer não significava que nunca poderia ser pega usando-as de
qualquer maneira sem parecer mentirosa, então Lara levantou uma
sobrancelha confusa. — Fui criada para ser sua Rainha, não uma
soldada comum.
O interesse em seus olhos cintilou. O que não faria. Ela deveria
seduzi-lo e, nisso, ganhar a sua confiança. Mas para que isso
acontecesse, ele tinha que a querer. O vapor tornou a seda de seu
vestido úmida, e ela podia senti-la agarrada aos seios. Ela foi
treinada para isso. Tinha passado por inúmeras lições onde havia
aprendido exatamente o que precisava fazer para atrair o interesse
de um homem. E para mantê-lo. Endireitando as costas, disse: —
Você está aqui para Reivindicar o que lhe é devido?
Sua expressão não mudou. Na verdade, ele parecia entediado
com ela. — A única coisa que devo é tomar um banho antes do
jantar. Arrastar seu traseiro de Southwatch foi difícil. Você é mais
pesada do que parece.
As bochechas de Lara ardiam.
— Dito isto, se você estiver inclinada a fazer o mesmo, poderá ir
primeiro. Como você não vê um banho há três dias, provavelmente
precisa mais do que eu.
Ela olhou para ele, sem palavras.
— Mas, se você está aqui apenas para admirar a… Vegetação,
talvez me conceda um pouco de privacidade. — Ele deu um sorriso
preguiçoso. — Ou não. Eu não sou tímido.
Era o que ele esperava. Ela ser uma pequena esposa
Maridriniana obediente e atender às necessidades dele, querendo
ou não.
Era o que ele esperava, ela pensou, vendo ele a observando,
mas não era o que ele queria. Pensamentos passaram por sua
mente, um após o outro. Das roupas que ele usava, as cores eram
feitas para misturar na selva ao seu redor. As cicatrizes, claramente
vieram de batalha. O arco que ele segurava na mão, pronto para
usar a qualquer momento. Esse homem é um caçador, ela decidiu.
E o que ele quer é uma caça.
Ela estava mais do que feliz em dar-lhe uma. Especialmente se
isso significasse adiar uma certa inevitabilidade que estava
desesperada para evitar.
— Então você pode esperar. — Ela sorriu internamente pela
surpresa que iluminou seus olhos. Soltando o cinto, ela largou as
armas perto da beira da piscina e depois deu as costas para o Rei,
puxando as alças do vestido. Tirando a seda úmida de seu corpo,
Lara chutou a peça de lado, sentindo os olhos dele quando entrou
na piscina, apenas com os cabelos pendurados nas costas para
esconder sua carne nua.
Estava muito quente. Uma temperatura em que se precisava
entrar com calma, lentamente, mas Lara rangeu os dentes e desceu
os degraus, girando apenas quando a água em turbilhão cobriu seus
seios.
O Rei olhou para ela. Ela deu um sorriso sereno. — Eu vou
deixar você saber quando eu terminar.
Ele abriu a boca como se quisesse discutir, depois balançou a
cabeça uma vez e se virou. Lara permitiu que ele desse três passos
antes de gritar: — Vossa Majestade.
O Rei de Ithicana voltou-se para olhá-la, sem esconder a
excitação em sua expressão.
Lara deixou a cabeça cair para trás e a cachoeira caiu sobre
seus cabelos. — Por favor, deixe-me o sabão. Receio ter esquecido
de trazer alguma coisa comigo. — Ela hesitou e acrescentou: — A
toalha também.
O sabão caiu na água ao lado dela com um splash. Lara abriu os
olhos a tempo de vê-lo tirar a toalha da cintura e jogá-la em uma
pedra, batendo os pés no caminho enquanto voltava nu para o
quarto.
Mordendo o interior de suas bochechas, Lara lutou para conter
seu sorriso. Este homem podia ser um caçador. Mas ele estava
enganado se acreditava que ela era a presa.
7
LARA

L
rosada e enrugada, em parte para irritar o Rei de Ithicana e em
outra metade porque a sensação de estar totalmente imersa em
água morna era uma delícia desconhecida. No oásis, o banho era
limitado a uma bacia, um pano e uma esfoliação vigorosa.
De volta a seu quarto, ela cuidou de sua aparência, escolhendo
um vestido azul-celeste que deixava seus braços e a maior parte de
seu decote descobertos, trançando seus cabelos molhados em uma
coroa que revelava seu pescoço e ombros. Em seu baú havia uma
caixa de cosmético com o fundo falso escondendo pequenos vidros
de venenos e drogas, dos quais enfiou um dos frascos em seu
bracelete criado para isso. Ela escureceu os cílios e passou um
pouco de pó dourado pela pele, manchando os lábios de um leve
rosa quando o relógio na mesa bateu sete horas. Então, respirando
fundo, ela saiu para o corredor e seguiu o cheiro de comida.
O piso polido do salão refletia a luz das belas arandelas feitas de
vidro valcottano. As paredes estavam cobertas com uma treliça de
finos pedaços de madeira de cor âmbar, sobre a qual pendiam
várias pinturas brilhantes emolduradas em bronze. O final do
corredor levava a uma cozinha, então ela tomou a porta que dava
para a esquerda e se viu em um vestíbulo revestido de mármore,
uma pesada porta externa emoldurada por janelas que nada
revelava na escuridão crescente.
— Lara.
Girando a cabeça ao som do nome, ela olhou através das portas
abertas para uma grande sala de jantar, dominada por uma linda
mesa feita de madeira com quadrados esmaltados, ao redor da qual
estavam colocadas uma dúzia de cadeiras. Ahnna sentava-se com a
cadeira empurrada para trás e um copo equilibrado sobre um joelho
coberto pela calça.
— Como foi o seu banho? — A diversão nos olhos de Ahnna
sugeria que não tinha conhecimento da conversa de Lara com o
irmão.
— Delicioso, obrigada... — Ela cortou em um suspiro surpreso.
Sentado em uma cadeira em frente à princesa estava o maior gato
que ela já vira, era pelo menos do tamanho de um cachorro.
Analisando ela com olhos dourados, ele levantou uma pata e
lambeu, passando a se arrumar na mesa de jantar. — Bom Deus —
ela murmurou. — O que é isso?
— Esse é o Vitex. Ele é o animal de estimação de Aren.
— Animal?
A outra mulher deu de ombros. — Aren o encontrou abandonado
quando era apenas um gatinho. Levou-o para dentro de casa e
depois não conseguiu que a maldita criatura fosse embora. Ele
mantém as cobras afastadas, tenho que admitir.
Lara observou o animal com cautela. Era grande o suficiente
para derrubar um humano, se conseguisse saltar — Ele é amigável?
— Às vezes. Melhor deixá-lo vir até você, no entanto. Agora,
Vitex. Xô! — A enorme criatura lançou-lhe um olhar de desdém,
depois pulou da cadeira e desapareceu da sala.
Lara sentou-se em frente à princesa, contemplando a parede
cheia de janelas, que ela esperava ter uma vista impressionante à
luz do dia. — Onde está todo mundo?
Ahnna tomou um longo gole de vinho, depois pegou a garrafa no
centro da mesa e encheu a taça de Lara e a sua, o ato fazendo Lara
piscar. Em Maridrina, apenas criados serviam uma garrafa. Você
não se servia. Ela pensou que seus compatriotas poderiam morrer
de sede para não romper com o costume.
— Essa é a residência privada dos meus pais — Ahnna
interrompeu com um estremecimento, depois se corrigiu — do meu
irmão, então não há mais ninguém aqui agora, a não ser nós três,
além da cozinheira e dois criados. E eu vou embora amanhã quando
minha ressaca acabar. — Ela levantou o copo. — Saúde.
Lara ergueu a taça obedientemente e engoliu em seco, notando
que as taças também eram de Valcotta, o vinho de Amarid, e, a
menos que ela não entendesse seu brasão, os talheres eram de sua
terra natal. Ela mentalizou os detalhes para posterior consideração.
Ithicana faz mercado para a maioria dos produtos, comprando em
Northwatch, transportando os produtos pela ponte e vendendo-os
com impostos em Southwatch, apenas para fazer o mesmo
processo de volta com as exportações dos Reino do sul. Os
comerciantes que percorriam a extensão da ponte pagavam
pedágios pelo privilégio e eram sempre mantidos sob supervisão por
soldados Ithicanos. A própria Ithicana não exporta nada, mas parece
que eles não tinham escrúpulos em importar produtos de outros
lugares.
— Toda a ilha é de domínio privado do Rei, então? — Lara
perguntou, imaginando quando ou se o homem em questão
apareceria.
— Não. Meu pai construiu essa casa para minha mãe, para que
se sentisse confortável durante os períodos do ano em que
estivessem aqui.
— Onde eles estavam o resto do tempo?
Ahnna sorriu. — Em outro lugar.
Segredos.
— Há outras pessoas vivendo nesta ilha que eu deveria estar
ciente?
— A guarda de honra de Aren está aqui. Você os encontrará em
algum momento, imagino.
A frustração mordeu Lara, e tomou outro gole de vinho para
acalmar a sensação. Ela só estava aqui em questão de horas.
Ninguém - nem mesmo Serin e seu pai - poderiam esperar que ela
encontrasse um caminho para as defesas de Ithicana no espaço de
um dia. — Estou ansiosa para conhecê-los, tenho certeza.
Ahnna bufou. — Eu duvido disso. Eles são um pouco ásperos
em comparação com o que você está acostumada, eu espero.
Embora você seja um mistério.
A princesa estava fazendo sua própria investigação. Lara sorriu.
— E você? Você diz que partirá amanhã? Essa ilha não é sua casa?
— Eu sou a comandante de Southwatch.
Lara engasgou com a boca cheia de vinho. — Mas você é uma...
— Mulher? — Ahnna completou. — Você descobrirá que
adotamos um estilo de vida diferente em Ithicana. O que há entre
suas pernas não determina o caminho que você seguirá na vida.
Metade da guarnição de Southwatch é composta de mulheres.
— Que libertador. — Lara conseguiu exprimir as palavras entre
tosses, mesmo quando imaginava o horror no rosto de seu pai, caso
ele descobrisse que a ilha que havia falhado uma e outra vez em
vencer na batalha era defendida por mulheres.
— Pode ser para você também, se quiser.
— Não faça promessas que não podemos cumprir, Ahnna —
disse uma voz masculina.
O Rei de Ithicana entrou na sala de jantar, com os cabelos
escuros úmidos pelo banho, embora ela notasse que o rosto dele
ainda estava áspero com barba por fazer. Isso lhe deu uma
aparência provocante, mas ela reprimiu o pensamento no momento
em que ele surgiu.
— O que há de errado em ela aprender a manejar uma arma?
Ithicana é perigosa. Seria para sua própria segurança.
Ele olhou para a mesa e sentou-se no final dela. — Não é com a
segurança dela que estou preocupado.
Lara lançou-lhe um olhar de desdém. — Você se encaixaria bem
em Maridrina, Vossa Excelência, se o pensamento de sua esposa
saber empunhar uma faca coloca tanto medo em seu coração.
— Oh, céus. — Ahnna encheu o copo até a borda e recostou-se
na cadeira. — Eu julguei mal a sua inteligência, Lara.
— Você está perdendo o fôlego, Ahnna — disse Aren, ignorando
o comentário. — Lara acredita que as armas foram feitas para o
domínio de soldados comuns e não são dignas de seu tempo.
— Eu não disse isso. Eu disse que fui treinada para ser esposa e
Rainha, não uma soldada comum.
— E exatamente o que esse treinamento implica?
— Talvez o destino lhe mostre e um dia você descobrirá, Vossa
Majestade. Embora agora, você precisará se contentar com o meu
bordado impecável.
Rindo alto, Ahnna se serviu de mais uma taça de vinho e depois
encheu uma para o irmão. — Isso pode ajudar.
Aren desprezou as duas em favor dos criados que apareciam
carregando bandejas de comida, que colocaram sobre a mesa,
desaparecendo apenas para voltar novamente com mais. Havia
frutas e legumes frescos, todos de cores brilhantes, e grandes
peixes ainda com suas cabeças. Um peixe estava em cima de uma
cama de arroz fumegante, que Lara olhou e depois dispensou, sua
atenção voltando para a carne assada com crosta de ervas, suas
origens pesando e abafando sua raiva pelo excesso de comida.
Comida que poderia ter ido para Maridrina.
Ela esperou que um dos servos a servisse, mas todos partiram.
Então os irmãos reais começaram a se servir, colocando em seus
pratos salada, peixe e carne, tudo ao mesmo tempo, sem levar em
conta a ordem das coisas. — Este é um jantar mais diversificado do
que estou acostumada — disse ela. — Eu nunca comi peixe antes,
embora suponha que seja um alimento básico aqui.
Aren levantou a cabeça, olhando as opções, e Lara viu o seu
canto do olho piscar — Existem algumas ilhas com javalis. Bode.
Frango. Cobra geralmente faz parte da alimentação. Todo o resto é
importação, geralmente de Harendell pelo mercado da Northwatch.
Os espiões de Serin relataram que nem todas as mercadorias
que entram na ponte em Northwatch saíam em Southwatch,
indicando que os Ithicanos usavam a estrutura para transportar
produtos para dentro de seu próprio Reino. Existem maneiras de
entrar e sair da ponte além das aberturas de Northwatch e
Southwatch, Serin gritava continuamente para Lara e suas irmãs.
Esses são os pontos fracos. Encontre uma forma de entrar.
Colocando porções saudáveis de tudo, Lara cortou sua fatia de
carne, observando a suculenta piscina que se formou embaixo.
Então ela deu uma mordida. Sorrindo para um dos criados que
reapareceu com mais vinho, ela disse, — Isso está delicioso.
Nenhum deles falou por um longo tempo e, por sua parte, o
silêncio de Lara foi resultado de sua boca estar cheia de comida.
Era melhor do que qualquer coisa que ela já provara, fresca e
temperada com especiarias que nem podia nomear. Era isso que
significava possuir a ponte, pensou ela, imaginando toda essa
comida chegando em Maridrina.
— Por que seu pai manteve você no meio do deserto vermelho?
— Aren finalmente perguntou.
— Para nossa segurança.
— Nossa?
Dê a verdade, quando puder, a voz de Serin a instrui em seus
pensamentos.
Ela engoliu um pouco de peixe regado com manteiga cítrica. —
Eu e minhas irmãs. Bem, meias-irmãs.
Os dois irmãos pararam de mastigar.
— Quantas filhas ele estava… ele está escondendo lá? — Aren
perguntou.
— Doze, contando comigo. — Lara tomou um gole de vinho e
voltou a encher o prato. — Meu pai selecionou dentre nós a garota
que acreditava que seria mais adequada como sua Rainha.
Aren estava olhando para ela com uma expressão vazia,
enquanto sua irmã gêmea assentiu sabiamente antes de perguntar,
— A mais bonita, você quer dizer?
— Não, receio que não.
— A mais inteligente?
Lara balançou a cabeça, pensando em como rapidamente
Sarhina e Marylyn poderiam decifrar códigos. E construí-los.
— Por que você então? — Aren interveio.
— Não era da minha conta questionar as razões por trás da
decisão dele.
— Certamente você tem uma opinião sobre o assunto?
— Certamente: minha opinião não importa.
— E se eu te perguntasse? — Ele franziu a testa. — Estou
perguntando.
— Meu pai é o monarca mais antigo da história de Maridrina.
Sua sabedoria e compreensão do relacionamento entre nossos dois
Reinos foi o que o guiou a me escolher para ser sua esposa.
Ahnna se empurrou abruptamente em direção a seu irmão, sua
voz urgente quando disse: — Aren, nós fomos infiltrados. Há um
espião entre nós.
Lara sentiu seu estômago revirar quando os olhos de Aren se
voltaram para ela. Seus dedos se contorceram em direção às facas
na cintura, prontos para lutar se precisasse.
— Não há outra explicação para isso — disse Ahnna. — De que
outra forma o idiota daquele Rei poderia saber qual filha seria a pior
esposa de todas para você?
Bufando, Aren balançou a cabeça. Lara escondeu seu alívio
atrás de outra garfada de peixe, que agora tinha o mesma sensação
de engolir serragem.
— Não é de admirar que ele estivesse tão orgulhoso no
casamento — continuou a princesa. — Ele provavelmente imaginou
que você a mandaria de volta depois de uma semana.
— Ahnna. — A voz do Rei de Ithicana estava cheia de
advertência.
— É realmente incrível. É quase como se ela tivesse sido criada
para levá-lo a uma sepultura precoce.
Mais preciso do que você imagina, pensou Lara.
— Ahnna, se você não calar a boca, eu vou afogar você no seu
vinho.
Ahnna ergueu o copo, brindando. — Você é bem-vindo a tentar,
irmão querido.
Lara escolheu esse momento para interromper, enquanto, ao
mesmo tempo, enchia a taça dos dois irmãos. Servir o próprio vinho
se tornou fácil depositar várias gotas do pequeno frasco escondido
em sua mão em cada copo, garantindo que ambos dormissem
pesadamente essa noite. — Falando em meu pai, você permite que
eu me comunique com ele?
Eles a encararam, o descontentamento com o pedido dela claro,
enquanto os dois bebiam todo o vinho, aparentemente inconscientes
de como se espelhavam. Lara sorriu internamente, sabendo que o
narcótico misturado ao álcool faria bem o seu dever.
Por fim, Aren perguntou, — Por que você gostaria? E, por favor,
não me diga que é para sustentar, o que obviamente não é, um
relacionamento íntimo de pai e filha.
Uma dúzia de respostas desagradáveis se formou em sua
mente, e Lara engoliu cada uma delas. Ela precisava que o maldito
homem se apaixonasse por ela. — Ficou claro para mim que, para
proteger os interesses de Ithicana, nunca mais poderei ver minha
família, minha casa ou até meu povo novamente. Que essa casa,
por mais adorável que seja, deve ser minha prisão pelo tempo que
achar melhor. Caneta e papel são tudo o que me resta para manter
minha conexão com tudo o que me resta. Ou seja, se você permitir.
Ele desviou o olhar, sua mandíbula flexionada como se estivesse
travando um grande debate interno. Então seus olhos se voltaram
para sua irmã, a mulher dando a ele um leve aceno de cabeça. O
que foi interessante. Ahnna se mostrou como a alegre e compassiva
da dupla, mas talvez essa não fosse uma avaliação precisa de sua
personagem.
No entanto, qualquer aviso que tivesse passado entre irmão e
irmã, Aren escolheu ignorá-lo. — Você pode se corresponder com
seu pai. Mas suas cartas serão lidas e, se contiverem informações
que põem em risco Ithicana, você será solicitada a removê-las. Se
você for pega usando um código, seus privilégios serão revogados.
O que ele pedisse para ela remover revelaria muita coisa, um
conceito que não foi perdido na Comandante de Southwatch. Os
olhos de Ahnna brilharam com irritação, e ela abriu a boca antes de
fechá-la novamente, não querendo comprometer seu desempenho.
Embora Lara não tivesse dúvida, argumentaria contra a
correspondência assim que Lara estivesse fora do alcance de voz.
— Eu não me importo que minhas cartas particulares sejam lidas
— argumentou Lara, apenas porque ele esperava isso.
— E eu não me importo tanto de lê-las — Aren retrucou. — Mas
todos devemos fazer coisas que não queremos fazer, por isso sugiro
que se acostume. — E sem outra palavra, ele empurrou a cadeira
para trás e saiu da sala com um leve oscilação em seus passos.
Ahnna soltou um suspiro sem entusiasmo. Puxando a rolha de
outra garrafa de vinho, encheu a taça de Lara até a borda. — Em
Southwatch, é o que chamamos de bebida de Ahnna.
Apesar de saber que o comportamento da mulher era um ato
para ganhar sua confiança, Lara sorriu, tomando um gole do líquido.
— Ele é sempre tão rápido em se irritar? — ela perguntou, enquanto
pensava: ele é sempre tão idiota?
O sorriso no rosto da outra mulher desapareceu. — Não. — A
voz dela estava ligeiramente arrastada, e ela franziu a testa para o
copo. — Deus, quanto disso eu bebi?
— Amarid faz os melhores vinhos do mundo - difícil em não se
render.
Pouco tempo depois, o queixo de Ahnna bateu na mesa com um
baque forte. Um dos criados entrou naquele momento preciso, com
o queixo caído ao ver sua princesa roncando na mesa de jantar.
— Se rendeu demais — disse Lara com uma careta. — Você vai
me ajudar a levá-la para o quarto dela?
Ahnna era um peso morto entre os dois enquanto meio a
arrastavam, meio carregavam pelo corredor até o quarto, que era
tão lindo quanto o de Lara.
— Se você segurá-la, Majestade, vou verificar os lençóis se têm
cobras.
Cobras? O pensamento distraiu Lara o suficiente para que quase
caísse de lado sob o peso de Ahnna quando o garoto a soltou. Ele
caminhou até a cama e deu um chute sólido antes de jogar a roupa
de cama, felizmente desprovida de serpentes.
Colocando Ahnna na cama, Lara desviou de um chute no rosto
quando a mulher mais alta rolou sobre o estômago com um
resmungo abafado. Tirando a bota, que tinha uma lâmina afiada,
Lara jogou-a ao lado da cama, seguida pela outra, depois limpou as
mãos. — Obrigada por sua ajuda — disse ela ao garoto, saindo do
quarto e esperando que a seguisse. — Qual o seu nome?
— É Eli, minha senhora. Devo dizer que isso não é normal para
Ah... Vossa Alteza. — Ele mordeu o lábio inferior. — Talvez eu deva
deixar Vossa Excelência...
— Tudo bem. — Lara fechou a porta. — Não há necessidade de
envergonhá-la ainda mais.
O criado parecia pronto para discutir, então Ahnna soltou um
ronco alto, audível através da porta grossa, e pareceu pensar
melhor. — Você precisa de mais alguma coisa essa noite, Vossa
Excelência?
Lara balançou a cabeça, querendo que ele fosse embora. — Boa
noite, Eli.
Curvando-se, ele disse: — Muito bem. Por favor, verifique sua
cama se tem...
— Cobras? — Ela deu-lhe um sorriso que o deixou com as
bochechas vermelhas contra os cachos castanhos e macios de seus
cabelos caóticos. Ele se curvou novamente antes de fugir pelo
corredor. Lara ouviu o barulho de pratos sendo removidos da sala
de jantar e depois silenciosamente voltou para o quarto de Ahnna,
trancando a porta atrás dela.
A princesa não se mexeu muito enquanto Lara procurou
metodicamente qualquer informação que pudesse usar, cobiçando
silenciosamente o arsenal de armas da mulher, que eram as
melhores possíveis. Mas, além da cobiça, não havia nada além de
algumas souvenires, uma caixa de jóias com alguns itens inúteis e
uma caixa de música com um fundo falso cheio de poesia. Um
quarto de infância agora pouco usado.
Depois de desligar a lamparina, Lara espiou a porta para garantir
que o corredor estivesse vazio antes de caminhar para o seu próprio
quarto. Havia barulho de movimento nos dois extremos do corredor;
sem chance de ela chegar ao outro lado da casa sem que um dos
criados percebesse. Mastigando a unha do polegar, Lara olhou o
relógio. O narcótico não tinha a intenção de durar muito, e o Rei não
se entregou ao vinho da mesma forma que sua irmã. O que
significava que estava com pouco tempo.
Tirando o vestido, Lara pegou um uma toalha, juntamente com
esponja e sabonete e, com lamparina na mão, saiu para o pátio. O
ar da noite estava fresco, uma leve névoa de chuva amortecendo
seus passos enquanto andava descalça pelo caminho de pedra em
direção ao quente jardim. Colocando seus suprimentos de banho ao
lado do riacho, Lara tirou a anágua e entrou na água fumegante,
levando uma de suas facas com ela. Então diminuiu a luz e permitiu
que seus olhos se ajustassem à escuridão.
O barulho da selva conseguiu ser ao mesmo tempo
ensurdecedor e calmante, uma cacofonia incessante que acalmou o
tamborilar rápido de seu coração enquanto ela descansava os
cotovelos na beira da piscina, examinando os arredores. O chiar dos
pássaros se fundia com o farfalhar das folhas, os agudos dos
macacos que ressoavam de um lado para o outro através das
árvores. Uma criatura, talvez uma espécie de sapo, emitia um
barulho repetitivo de coaxar, insetos zumbiam e, misturado a tudo
isso, o barulho da cachoeira atrás dela.
Ver. Ouvir. Sentir.
Este último sempre lhe serviu melhor. O mestre Erik chamou isso
de sexto sentido - a parte inconsciente da mente que pega o que
todos os outros sentidos fornecem e acrescenta algo mais. Uma
intuição que poderia ser sintonizada e aperfeiçoada com o sentido
mais valioso de todos.
Então, ouviu um som ou viu um movimento, Lara não poderia
dizer, mas sua atenção foi da linha do telhado para a abertura sob a
casa através da qual o córrego corria.
Guarda.
Com certeza, enquanto olhava para a escuridão, seus olhos
finalmente perceberam a forma de um pé apoiado em uma rocha.
Um lampejo de irritação que eles ousariam vê-la enquanto tomava
banho foi apagado pelo claro entendimento. Aren era o Rei de
Ithicana e ela era filha de um Reino inimigo. É claro que qualquer
metro entre eles seria protegido.
Depois de garantir que não havia outros guardas, ela marcou as
linhas de visão. Procurou lugares que lhe dariam cobertura. Ela
olhou para a sua anágua branca repousando à luz e entrou no
riacho que escoava para a piscina, rastejando nos cotovelos para
manter o corpo embaixo da margem. A água morna acariciou seu
corpo nu enquanto ela se arrastava até a ponte decorativa, que
usava como cobertura para relaxar, movendo-se silenciosamente
atrás de um arbusto com folhas largas.
De lá, ela rapidamente atravessou o pátio, indo para baixo da
janela do Rei, que estava entreaberta.
Ajustando uma folha para cobrir o braço, ela se esticou para
cima e abriu a janela.
Respire.
Usando os dois braços, ela se levantou através da pequena
brecha, a moldura raspando sobre sua bunda nua enquanto se
jogava para dentro, aterrissando silenciosamente sobre os pés
dentro do quarto mal iluminado, a lâmina da faca presa entre os
dentes.
Ela foi recebida pelo enorme gato amaldiçoado de Aren,
encarando-a com olhos dourados. Lara prendeu a respiração, mas o
animal apenas pulou no parapeito da janela e saiu para o pátio.
Seu olhar foi imediatamente para o homem esparramado na
grande cama com dossel. Aren estava deitado de costas, vestindo
apenas roupas de baixo, os lençóis emaranhados em torno de suas
pernas.
Com a faca na mão, Lara deu um passo cuidadoso em direção à
cama, usando um dos tapetes para limpar os pés. Não tinha
necessidade de deixar suas pequenas pegadas.
Não havia dúvida em sua mente, depois de vê-lo nu mais cedo,
que ele era um espécime impressionante de um homem, mas desta
vez, não tinha medo de ser pega olhando. Duas vezes a largura de
seus próprios ombros, ele era musculoso como um indivíduo que se
exercitava regularmente. Luta, a julgar pelas cicatrizes, mas sua
forma física falava de uma vida ativa, não de um homem que se
recostava e governava de um trono.
Circulando na cama, ela examinou o rosto dele: maçãs do rosto
altas, mandíbula forte, lábios carnudos e cílios pretos pelos quais
uma esposa do harém morreria. Barba marcava a linha de sua
mandíbula definida, e ela teve que conter a vontade de estender a
mão e passar o dedo por ela.
Maridrina passará fome antes mesmo de ver o benefício deste
tratado.
As palavras dele ecoaram em sua mente e, por vontade própria,
a mão de Lara serpenteou, descansando a ponta da lâmina contra a
pulsação constante da garganta do homem. Seria fácil. Um corte e
ele sangraria em questão de segundos. Ele não poderia acordar a
tempo suficiente para tocar o alarme. Ela teria ido embora quando
perceberem que ele estava morto.
E ela não teria ganhado nada além de destruir a única chance de
Maridrina ter um futuro melhor.
Lara abaixou a faca e caminhou até a mesa. Seu coração
disparou quando pegou uma caixa de madeira polida de pergaminho
pesado gravada com a ponte de Ithicana, as bordas brilhando com
dourado. O mesmo papel de carta que Serin havia mostrado a ela
que Aren usava para correspondência oficial. Ela imediatamente
procurou por qualquer coisa que fosse dirigida a Maridrina. Tudo o
que encontrou foram pilhas de notas curtas em papel barato, e ela
folheou, recolhendo os relatórios de espiões de todos os Reinos do
norte e do sul. Mais relatórios das ilhas Northwatch e Southwatch,
receitas, requisitos para armas, soldados e suprimentos.
Provisões para Eranahl...
Franzindo a testa, ela tirou a folha de papel de debaixo de uma
pilha quando a cama rangeu atrás dela.
Girando, seu estômago despencou quando seu olhar se
encontrou com o de Aren. Ele estava apoiado em um braço, os
músculos do ombro pressionados contra o elegante marrom
dourado de sua pele.
— Lara? — Sua voz era áspera, os olhos embaçados por
narcóticos, sono e... luxúria. Seu olhar percorreu seu corpo nu,
depois ele esfregou os olhos como se não tivesse muita certeza se
ela era real ou uma aparição.
Faça alguma coisa!
Seu treinamento, ensinado por seus mestres, finalmente
começou. Ou seguia com o que prometia ali nua ou encontraria uma
maneira de fazê-lo voltar a dormir. A primeira era a estratégia mais
segura, mas... Mas essa não era uma carta que ela ainda estava
disposta a jogar.
— Como você chegou aqui? — Seu olhar estava afiado. Se não
agisse logo, ele se lembraria de vê-la quando acordasse, e isso não
fazia parte de seu plano.
Acredite que você é algo a desejar, e ele acreditará também,
disse a voz de Mezat, a Senhora do Quarto das irmãs, invadindo os
pensamentos de Lara. O desejo é sua arma para manejar tão
perversamente quanto qualquer espada.
Isso parecia muito simples quando estava no complexo. Muito
menos agora. Mas ela não tinha outra escolha.
Tirando o frasco da pulseira, Lara cobriu o dedo com a droga
antes de levá-lo à boca para cobrir os lábios.
— Shh, Vossa Excelência. Agora não é hora de conversar.
— Uma pena. Você tem um jeito tão agradável com as palavras.
— Eu tenho outros talentos.
Um sorriso lento surgiu no rosto dele. — Prove.
Uma gota do narcótico caiu no lábio inferior de Lara enquanto
passeava com falsa confiança em direção à cama, sentindo Aren a
beber. Observando sua excitação tomar conta. Talvez houvesse
algo nos ensinamentos de Mezat, afinal.
Subindo na cama, montou nele, seu pulso rugindo em seus
ouvidos quando ele estendeu a mão para segurar sua bunda. Seus
lábios se separaram como se fosse dizer alguma coisa, mas ela o
silenciou com um beijo.
O primeiro beijo de sua vida, e ela estava dando para seu
inimigo.
O pensamento dançou para fora quando ele gemeu nela, sua
língua perseguindo seus lábios cheios de drogas, depois
mergulhando mais fundo em sua boca, a sensação abrindo uma
inesperada enxurrada de calor entre suas pernas.
Ela silenciosamente desejou que as drogas funcionassem
enquanto o beijava novamente, forte e exigente, sentindo a outra
mão roçar a parte inferior de seu peito até que o agarrou e o
prendeu no colchão. Ele riu baixinho, mas ela viu a maneira como
as pálpebras dele tremiam, quase inconscientes, mesmo quando a
outra mão dele desceu pelo seu traseiro, pela parte de trás da perna
e depois pela parte interna da coxa. Para cima e para baixo. Lara
sentiu as drogas começarem a surtir efeito nela, ao mesmo tempo
em que sentia algo construindo em seu núcleo.
Ele rolou, pegando a outra mão e prendendo os dois no colchão,
mordendo os dentes na orelha dela e puxando um suspiro dos
lábios dela. O quarto girou acima dela, mesmo quando sua pele
queimava, seus lábios beijando sua garganta. Entre os seios dela.
Um beijo singular, logo abaixo do umbigo, transformando sua
respiração em suspiros irregulares.
Então Aren suspirou uma vez, caiu e ficou imóvel.
Lara encarou o teto sem piscar, com o coração na garganta. Mas
cada batida parecia ficar mais lenta, o sono a puxando, acolhendo-a
em seu abraço caloroso.
Mova-se, ela ordenou a si mesma, escapando debaixo do peso
dele.
Sabendo que tinha apenas alguns minutos antes que a droga a
derrubasse, Lara tropeçou em direção à janela, dando ao quarto
apenas um olhar passageiro para garantir que estava como o
encontrou. Seus braços estremeceram quando ela se afastou, pés
dormentes encontrando o chão frio, lama escorrendo entre os dedos
dos pés enquanto voltava pelo pátio. De volta ao riacho, a água
dançava sobre sua pele, que, apesar do narcótico, parecia tão
sensível que o toque doía.
A água estava quente. Estranhamente reconfortante quando a
puxou para baixo, acolhendo-a em suas profundezas.
Logo ela estava sufocando. Ofegante. Lutando para se manter
consciente enquanto alcançava a beira e se arrastava para fora da
piscina.
Seu corpo balançou quando puxou a anágua sobre a cabeça.
Ela tropeçou no caminho, rezando para que o guarda pensasse que
estava bêbada. As mãos dela bateram na madeira sólida da porta,
empurrando-a para dentro. Girando e a trancando.
Vá para a cama. Não lhes dê um motivo para suspeitar.
Vá para a cama.
Vá para a...
8
AREN

A
afiar a lâmina de uma faca, olhando para as profundezas da selva
que cercava sua casa. Embora cem sons emanassem das árvores -
o fluxo de água, os chamados dos animais, o zumbido dos insetos -
a ilha parecia quieta. Serena. Pacífica.
Um corpo quente e peludo esfregou em seu braço, e Aren
estendeu a mão para atingir as orelhas de Vitex, o grande gato
ronronando contente até que algo nos arbustos chamou sua
atenção. Havia uma mulher correndo e, mesmo agora, Aren viu
seus olhos amarelos observando-a por baixo de uma folha grande.
— Quer ir buscá-la? — ele perguntou ao seu gato.
Vitex apenas sentou-se e bocejou. — Bom plano. Deixe ela vir
até você. — Aren riu. — Deixe-me saber como isso funciona para
você.
Atrás deles, havia o som de botas contra o mármore e a porta se
abrindo. A irmã dele piscou quando saiu.
— Você está em melhor forma do que eu pensava — disse ele
secamente.
Ahnna franziu o cenho para ele, usando um pé para empurrar o
gato para dentro para poder fechar a porta. — Por que isso?
— Porque a quantidade de vinho que você deve ter consumido
para desmaiar à mesa provavelmente significa que minha adega
está vazia.
— Bom Deus, eu bebi tanto assim?
— Se a conversa que ouvi vindo da cozinha é verdade. —
Pegando o arco, Aren se levantou de onde estava sentado no
degrau da frente, batendo a ponta da arma no dedo do pé. — Eli e
Lara arrastaram você de volta para o seu quarto.
Passando a mão sobre os olhos, Ahnna balançou a cabeça
como se quisesse clareá-la. — Eu lembro de conversar com ela e
depois… — Ela balançou a cabeça novamente. — Desculpe. E
desculpe que estou atrasada. Eu dormi como um cadáver.
Ele também, o que era estranho, já que tinha sido uma noite
limpa. Sem uma tempestade para proteger as costas de Ithicana,
Aren normalmente se agitava e se revirava na metade da noite. Ele
teria se atrasado ao levantar se o maldito gato não o tivesse
acordado.
— Bom dia, crianças.
Aren se virou para ver Jor aparecer através da névoa, com um
pãozinho que ele claramente retirara da cozinha em uma mão.
O homem mais velho deu um aceno a Aren. — Você está muito
bem descansado para um homem que acabou de se casar.
Ahnna gargalhou. — Eu não acho que teve muita companhia
ontem à noite. Ou qualquer noite.
— Já irritou a nova esposa?
Aren ignorou a pergunta, uma visão de Lara de pé ao lado de
sua cama nadando em seus pensamentos, seu corpo nu tão
coordenadamente perfeito que deveria ter sido um sonho. O gosto
de seus lábios, a sensação de sua pele sedosa sob as mãos dele, o
som de sua respiração irregular com desejo. Tudo tinha sido tão
vívido, mas sua memória parou por aí.
Definitivamente um sonho.
Puxando uma folha de papel dobrada do bolso, Aren entregou a
Ahnna. — Suas ordens de marcha para Southwatch.
Ela desdobrou, os olhos correndo sobre os termos comerciais
revisados com Maridrina, as sobrancelhas franzindo com o
aborrecimento renovado.
— Vou com você até o acampamento — disse ele. — Eu preciso
de um mensageiro para levar a Northwatch a cópia deles. Maridrina
já enviou compradores pela ponte com ouro. Eles vão querer
começar. — Para Jor, disse — Quem a está vigiando?
— Lia.
— Bom. Mantenha-a aqui. Não espero que Lara cause nenhum
problema, mas...
Jor tossiu. — Sobre Lara. Aster está aqui. Ele quer uma palavra.
— Ele está no acampamento?
— Na água.
— Claro que ele está. — O comandante da guarnição de Kestark
- ao sul de Midwatch - era membro da velha guarda. Ele foi
nomeado perto do fim da vida do avô de Aren, e a mãe de Aren
havia passado quase todo o seu Reinado procurando uma razão
legítima para substituí-lo, sem sucesso. O velho bastardo se apegou
à tradição Ithicana como uma craca a um barco, e, Aren não deixou
de notar que, de todos os comandantes da guarda, Aster era o único
que não tinha participado de seu casamento. — Suponho que não
devemos deixá-lo esperando.
A névoa pairava no ar como um grande cobertor cinza,
reduzindo o sol a uma esfera de prata e tornando impossível ver
mais de algumas dezenas de passos em qualquer direção. Na
enseada, o guarda-costas de Ahnna esperava por ela, assim como
os seus, homens e mulheres silenciosamente empurrando sua
embarcação para a água. Ahnna se juntou a ele em um dos navios
de Midwatch.
O ar estava calmo, sem brisa para encher a vela, e o ruído da
corrente subindo de onde bloqueava a entrada da enseada parecia
uma violação vulgar do silêncio. Os remos mergulhavam dentro e
fora da água enquanto o grupo passava por perigos à espreita, a
poucos metros abaixo da superfície, movendo-se ao ar livre e em
direção à sombra da ponte.
— Aren.
Virando-se para olhar para a irmã gêmea, Aren seguiu o olhar
dela para a água, onde avistou uma enorme forma nadando
embaixo deles. O tubarão era mais comprido do que o barco em que
estava sentado - e mais do que capaz de destruí-lo, caso tivesse
vontade - mas não era por isso que Ahnna havia apontado o
predador. Sua chegada anunciava uma calmaria nos Mares de
Tempestade, e não demoraria muito para que as águas de Ithicana
estivessem vermelhas de sangue.
Sua espinha formigou e Aren pegou uma luneta, observando os
arredores, seus esforços encontrando nada além de cinza. Uma
coisa boa, porque escondia as idas e vindas de seu povo, mas
também servia ao inimigo.
— Está semanas adiantando. Nana ainda não falou do final da
temporada. — Mas, apesar de todas as palavras de Ahnna, ele
notou que a mão dela havia caído em direção a arma presa na
cintura, os olhos atentos. — Eu preciso voltar para Southwatch.
Através da névoa, uma embarcação começou a aparecer. Aster -
sempre a favor do simbolismo aberto - optou por esperar
diretamente embaixo da ponte.
— Vossa Excelência. — O homem mais velho estendeu a mão
para juntar os dois barcos. — Estou aliviado em vê-lo bem.
— Você estava esperando o contrário? — Os navios balançaram
quando seus guardas trocaram de lugar com o comandante, dando
aos três um pouco de privacidade.
— Dado o que você trouxe para sua casa, sim.
— Ela é pouco mais que uma garota, sozinha e à nossa mercê.
Eu acho que posso me controlar.
— Até uma criança pode colocar veneno em um copo. E os
Maridrinianos são conhecidos por isso.
— Fique tranquilo, Aster, minha vida não corre perigo por Lara.
Silas Veliant não é bobo - ele sabe que ter sua filha me
assassinando só lhe custaria seu novo acordo comercial com
Ithicana.
— Lara. — Aster cuspiu na água. — Eu posso ouvir na sua voz
que ela já está cavando suas garras. Você deve saber que há uma
razão pela qual eles enviaram uma mulher tão bonita quanto ela.
— Como você saberia como ela é, comandante? — Ahnna
interrompeu. — Eu não te vi no casamento, embora suponha que
seja possível que estivesse se escondendo nos fundos.
Aren mordeu a língua. O comandante de Kestark era pequeno
para um Ithicano, e ele não gostava de ser lembrado disso.
— Eu ouvi como ela é. — O olhar de Aster era tão morto quanto
o do tubarão nadando lá embaixo enquanto os observava. — Eu
não participei porque não apoiei sua escolha em tomá-la como sua
esposa.
Ele não estava sozinho nisso. Muitos, especialmente a geração
mais velha, protestaram veementemente contra o sindicato. —
Então por que você está aqui agora?
— Para lhe dar um conselho, Vossa Excelência. Leve a menina
Maridriniana até a água e afogue-a. Segure-a até que você esteja
bem e com certeza ela esteja morta, depois alimente o mar com seu
cadáver.
Por um momento, ninguém falou.
— Inocente. Essa é uma palavra. — Aster fez uma careta,
lançando seu olhar para a ponte acima deles antes de voltar para
Aren. — Eu esqueço como você é jovem, Vossa Excelência. Você
era apenas um garoto mantido em segurança em Eranahl na última
vez que fomos à guerra com Maridrina. Você não lutou nas batalhas
em que jogaram toda a frota contra nós, bloqueando Southwatch e o
comércio enquanto todo o nosso povo passava fome. Você não
estava lá quando Silas Veliant percebeu que não podia vencer à
força e se vingou nas ilhas periféricas, seus soldados matando
famílias e amarrando seus corpos para que os pássaros se
alimentassem.
Aren não tinha idade suficiente para lutar, mas isso não
significava que não se lembrava de como seus pais estavam
desesperados quando propuseram o tratado a Maridrina e
Harendell. — Tivemos quinze anos de paz com eles, Aster. Quinze
anos em que Silas não levantou a mão contra Ithicana.
— Ele ainda é o mesmo homem! — Aster rugiu. — E você levou
uma de suas filhas para a cama! Eu te tolerei em muitas coisas,
Aren Kertell, mas não até agora, em que eu te achei um tolo.
Ahnna tinha uma faca na mão, mas Aren sacudiu a cabeça com
um aviso. Ele passou o ano passado sendo pressionado e
questionado por seus comandantes da guarda e levaria mais do que
alguns insultos para quebrar seu temperamento. — Eu sei, assim
como qualquer pessoa, que tipo de homem Silas Veliant é,
comandante. Mas esse tratado nos comprou paz e estabilidade com
Maridrina, e não farei nada para prejudicar isso.
Aren esperou que o outro homem se acomodasse, depois
continuou. — Enquanto o resto do mundo avança, Ithicana definha.
Nossa única indústria é a ponte e a luta para mantê-la. Nós não
cultivamos nada. Nós não criamos nada. Não sabemos nada além
de guerra e sobrevivência. Nossos filhos crescem aprendendo
centenas de maneiras de matar um homem, mas mal são
alfabetizados o suficiente para escrever seus próprios nomes. E isso
não é bom o suficiente.
Aster o encarou, tendo ouvido esse discurso antes. Mas Aren
repetiria isso mil vezes se era preciso para homens como Aster
aceitarem a mudança que Ithicana precisava.
— Precisamos de alianças - verdadeiras alianças. Alianças que
vão além de pedaços de papel assinados por Reis. Alianças que
permitirão ao nosso povo oportunidades além da espada.
— Você é um sonhador, assim como sua mãe. — Aster levantou
a mão, sinalizando para os outros barcos retornarem. — E é um
futuro bonito que você imagina, eu lhe darei isso, Vossa Excelência.
Mas não é o futuro de Ithicana.
Os barcos bateram juntos, e o comandante pulou entre eles,
instalando-se entre seus guardas. — E para que seu sonho não se
transforme em nosso pesadelo, faça-nos um favor, Vossa
Excelência, e mantenha essa mulher trancada.
9
LARA

L ,
devido aos narcóticos e em outra parte devido ao silêncio. O sono
dela durante a viagem por Maridrina era constantemente
interrompido pelo ruído do ambiente. Soldados, servos, cavalos,
camelos… Mas aqui havia apenas os sons fracos de pássaros
cantando nas árvores do pátio.
Foi pacífico.
Mas essa sensação de paz era uma capa que escondia a
violenta verdade deste lugar. E a violenta verdade de si mesma.
Vestindo-se silenciosamente, Lara se aventurou na direção da
sala de jantar. Ela se preparou para a possibilidade de que Aren se
lembrasse do que aconteceu em seu quarto na noite passada. Que
perceberia que ela o drogou e sua missão terminaria antes mesmo
de começar.
A mesa estava carregada com bandejas de frutas e carnes
fatiadas, iogurte cremoso e pequenos doces salpicados de canela e
noz-moscada. Mas seus olhos eram todos para a vista através das
enormes janelas. Embora fosse tarde da manhã, a luz do sol era
ofuscada por um filtro de nuvens, tornando-o mais brilhante que o
crepúsculo. No entanto, revelou o que a escuridão da noite anterior
havia escondido: a selva perigosa, as árvores altas, a folhagem
embaixo tão densa que era impenetrável, toda coberta de névoa.
— Onde está Vossa Majestade? — ela perguntou a Eli,
esperando que ele não notasse a cor que surgiu em suas
bochechas. As circunstâncias haviam saído de seu controle na noite
anterior. De mais de uma maneira.
A criada mais velha lançou um olhar penetrante para Eli. —
Vossa Majestade se levantou cedo. Ele foi com a comandante para
garantir que os novos termos comerciais com Maridrina fossem
transmitidos para os mercados Northwatch e Southwatch.
Graças a Deus. Ela não tinha certeza se estava pronta para ficar
cara a cara com ele. Não depois das coisas que haviam feito, ele
lembrando delas ou não. Lara deu um aceno morto à mulher,
esperando que isso escondesse seu desconforto. — Os novos
termos comerciais serão uma dádiva de Deus para minha terra
natal. Somente o bem pode vir disso.
Uma sombra parecia passar sobre o olhar da empregada mais
velha, mas ela apenas inclinou a cabeça. — Assim você diz, minha
senhora.
— Qual é o seu nome? Eu conheci Eli e gostaria de conhecer
melhor o resto de vocês.
— É Clara, minha senhora. Eli é meu sobrinho e minha irmã,
Moryn, é a cozinheira.
— São só vocês três? — Lara perguntou, lembrando-se da
legião de servos que acompanhavam sua festa desde os arredores
do Deserto Vermelho até Ithicana.
Um sorriso lento apareceu no rosto de Clara. — Vossa
Majestade costuma ficar na companhia de seus soldados, e não
nesta casa. Embora eu espere que sua presença mude isso, minha
senhora.
Havia um leve brilho nos olhos da criada que aqueceu as
bochechas de Lara. — Você sabe quando ele voltará?
— Ele não disse, minha senhora.
— Entendo. — Lara permitiu que uma pitada de decepção
entrasse em sua voz.
A satisfação a encheu quando o rosto da mulher se suavizou. —
Ele fica ocupado durante a maioria dos dias, mas seu estômago o
traz para jantar em casa, se nada mais o traz.
— Sou proibida de ir em algum lugar?
— A casa é sua, minha senhora. Sua Majestade pediu que se
sentisse confortável.
— Obrigada. — Lara então os deixou para limpar a mesa quando
começou sua expedição pela casa.
Além de seus quartos e de Aren, havia outros quatro quartos, a
sala de jantar, a cozinha e os aposentos dos empregados. Toda a
parte de trás da casa estava cheia de cadeiras estofadas, uma
variedade de jogos nas mesas e paredes cheias de livros. Ela queria
pegá-los, mas apenas passou um dedo pelas lombadas antes de
seguir em frente. Todos os quartos estavam cheios de janelas, mas
a vista era a mesma de todos: a selva. Bonito, mas totalmente
desprovido de civilização. Talvez seja assim que Ithicana seja,
pensou Lara. A ponte, a selva e pouco mais.
Ou talvez seja apenas o que eles queiram que ela pense.
Retirando-se para seus quartos, examinou a seleção de roupas
Ithicanianas no guarda roupa, escolhendo uma calça e uma túnica
que deixava os braços nus, bem como um par de botas de couro
duras, e depois caminhou pelo corredor e saiu pela porta da casa da
frente.
Teste seus limites de uma maneira que não os faça suspeitar de
suas capacidades, Serin instruiu silenciosamente. Eles esperam que
você seja ignorante, desamparada e indulgente. Capitalize seus
erros.
Já pensando que poderia ser seguida, Lara começou a andar.
Havia um caminho que levava para cima, mas optou por seguir a
primavera, sabendo que acabaria por levá-la ao mar.
Foi apenas uma questão de minutos até que ela ouviu o passo
fraco de alguém andando atrás dela. O estalo de um galho. Um
suave respingo de água. Quem quer que fosse, tinha a discrição de
um caçador, mas ela aprendeu a dizer a diferença entre a areia se
movendo com o vento e a que se movia sob o peso de um homem,
então capturar os sons errantes de perseguição nessa selva não era
nada para ela.
Observando os sinais de várias armadilhas na selva, Lara
continuou a seguir o riacho, logo se viu encharcada de chuva e suor,
a umidade do ar fazendo-a sentir como se estivesse respirando
água, mas ainda assim não viu ponte nem praia. Seu seguidor
também não fez nenhum movimento para interferir.
Apoiou a mão no tronco de uma árvore e fingiu cansaço
enquanto olhava para cima, tentando e não conseguindo penetrar
na copa e na névoa.
Serin explicou em detalhes do que sabiam sobre a ponte. Que a
maioria dos píeres eram torres naturais de rocha projetando-se para
fora do mar, mantendo os vãos muitas vezes a noventa ou sessenta
metros acima da água. Havia apenas algumas ilhas nas quais a
ponte desembarcava e essas eram defendidas por todo o tipo de
mecanismo projetados para afundar navios. O seu objetivo principal
era descobrir como os Ithicanianos acessavam a ponte ao longo de
sua extensão, mas ela precisava encontrar essa primeiro.
O riacho estava descendo uma ladeira cada vez mais íngreme, a
água agora fria derramando sobre bordas em pequenas cachoeiras,
enchendo o ar com um rugido suave. Segurando em trepadeiras e
apoiando-se nas rochas, Lara desceu, já temendo a dor da subida
de volta.
Então a bota dela escorregou.
O mundo virou de lado, um borrão verde quando ela caiu, seu
cotovelo batendo dolorosamente contra uma rocha. Então estava
caindo.
Lara gritou uma vez, agitando os braços enquanto lutava para
agarrar uma videira. Ela bateu em uma piscina de água, a força
expulsando o ar de dentro de seus pulmões. A água fechou sobre
sua cabeça, bolhas escorrendo de sua boca quando chutou e bateu
os braços. Suas botas bateram no fundo e ela dobrou os joelhos
para começar a nadar quando...
Encontrou-se com água apenas até a cintura.
— Inferno — rosnou Lara, caminhando até a beira da água. Mas
antes de chegar à praia, um sibilo chamou sua atenção.
Congelando onde estava, Lara examinou o ambiente, os olhos
pousando na cobra marrom e preta se movendo furiosamente no
mato. A criatura era maior do que a menina e estava presa entre ela
e a parede do penhasco. A garota deu um passo hesitante de volta
para a água, mas seu movimento parecia agitar a criatura. Foi isso
que conseguiu por não atender ao aviso de Eli.
Foi preciso muito autocontrole para não alcançar uma das facas
presas à cintura, suas orelhas escutaram o som de botas e um
juramento murmurado baixinho. Jogar facas era sua especialidade,
mas seu seguidor estava no topo do penhasco e a última coisa que
precisava era ser vista usando uma de suas armas.
A cobra se levantou, com a cabeça e olhos em sua altura.
Sibilando. Brava. Pronta para atacar. Lara respirava com firmeza.
Dentro e fora. Vamos lá, quem quer que você seja, ela resmungou
silenciosamente. Lide com essa criatura agora.
A cobra balançava de um lado para o outro, e os nervos de Lara
começaram a se desgastar. A mão dela se fechou sobre a faca, o
dedo dela abriu o punho removível da faca de arremesso.
A cobra se lançou.
Um arco estremeceu, uma flecha preta e esticada acertando a
cabeça da criatura no chão. Seu corpo se debateu violentamente,
depois ficou imóvel. Lara se virou.
Aren se ajoelhou na beira da cachoeira que ela caiu tão
graciosamente, com um arco na mão, uma aljava cheia de flechas
espreitando sobre seus ombros largos. Ele se endireitou. — Temos
um problema com cobra em Ithicana. Não é tão ruim nesta ilha em
particular, mas — ele pulou da margem, aterrissando quase sem
som ao lado dela — se ela a tivesse picado, você não demoraria
muito para partir deste mundo.
Lara olhou para a cobra morta e seu corpo estremeceu. Apesar
de tudo, ela se encolheu e tentou esconder o movimento com uma
pergunta. — Como você pode dizer que é fêmea?
— Tamanho. Os machos não ficam tão grandes assim. —
Agachado, ele arrancou a flecha do crânio do animal. Limpando o
sangue e pedaços de escama da ponta da flecha, que era de três
gumes, ao contrário das pontas farpadas dos Maridrinianos, ele
voltou seu olhar sombrio para Lara. — Você deveria ficar em casa.
Ela abriu a boca, prestes a dizer a ele que não havia recebido tal
instrução, quando ele acrescentou — Não se faça de boba. Você
sabia o que Clara quis dizer.
Ela mordeu o interior da bochecha. — Eu não ligo por estar
confinada.
Ele bufou, depois colocou a flecha limpa de volta na aljava. — Eu
pensei que você estaria acostumada com isso.
— Estou acostumada com isso. Mas isso não significa que eu
tenha que gostar.
— Você foi trancada naquele complexo do deserto para sua
própria segurança. Considere minhas motivações para mantê-la
confinada aqui da mesma maneira. Ithicana é perigosa. Primeiro
que a ilha inteira está presa. Segundo que você não andará dois
passos sem passar por algum tipo de criatura capaz de colocá-la em
seu túmulo. E terceiro que uma princesinha mimada como você não
sabe as regras básicas de se cuidar.
Lara rangeu os dentes. Levou cada grama de controle em seu
corpo para não dizer a ele o quão errado estava nessa conta.
— Dito isso, você chegou mais longe do que eu esperava —
refletiu Aren, os olhos percorrendo o corpo dela, suas roupas
molhadas e grudadas na pele. — O que eles mantinham você e
suas irmãs fazendo naquele complexo? Correr em círculos e
limpando areia?
Era uma pergunta inevitável. Embora seu corpo fosse pequeno,
ele estava composto com os músculos magros de inúmeras horas
de treinamento - o corpo dela não era o da maioria das nobres
Maridrinianas. — Viver no deserto é difícil. E meu pai me queria
preparada para o... vigor da vida em Ithicana.
— Ah. — Ele sorriu. — Que pena que ele também não preparou
você para a vida na selva. — Estendendo a mão com o arco, ele
jogou a ponta dele sobre o ombro dela e, pelo canto do olho, Lara
observou uma forma negra navegar pelo ar.
Uma aranha do tamanho da palma da mão pousou na terra
antes de se arrastar para as sombras. Ela assistiu com interesse,
imaginando se era venenosa. — Não é pior que os escorpiões do
deserto vermelho.
— Talvez não. Mas suspeito que o Deserto Vermelho não esteja
cheio deles. — Pegando uma pedra, ele a lançou uns doze metros
para a esquerda.
Houve um estalo alto e uma tábua coberta de estacas de
madeira se levantou do chão. Qualquer um que acionasse o
dispositivo se veria com meia dúzia de buracos no corpo, da cintura
para baixo. Ela viu o orvalho se agarrando ao fio de um arame uma
dúzia de passos atrás, mas, na verdade, isso a pegaria no escuro.
— Você deve ter vencido o concurso de quem é o machão — disse
ela de uma maneira que implicava que ele realmente não tinha. —
Vamos continuar?
Em vez de retroceder com uma resposta espirituosa, Aren se
aproximou, sua mão se fechando no pulso dela. Lara deveria ter
recuado, mas, em vez disso, congelou, lembrando a sensação
daquela mão em seu corpo nu, os movimentos suaves para cima e
para baixo em sua coxa.
Ela começou a se afastar, mas ele girou o braço dela, franzindo
a testa para o corte raso no cotovelo. Alcançando a bolsa em seu
cinto, ele extraiu uma pequena lata de pomada e um rolo de curativo
e começou a cuidar da lesão com as mãos experientes. Os
músculos de seus antebraços se flexionaram sob o aço e o couro
das braçadeiras dobradas ao redor deles. Tão perto, ela ganhou
uma nova apreciação pelo quanto ele era maior do que ela, com a
cabeça e os ombros mais altos e facilmente com o dobro do seu
peso. Tudo isso massa magra e músculos.
Mas Erik, seu mestre de armas, era tão grande quanto ele, e
treinou Lara e suas irmãs como lutar contra aqueles que eram
maiores e mais fortes. Quando Aren terminou de enfaixar o braço,
ela imaginou onde atacaria. Para o arco do pé ou do joelho. Faca
para abrir as tripas. Outra na garganta antes que tivesse a chance
de controlá-la.
Ele amarrou o curativo. — Desisti de muita coisa para esse
acordo com seu pai e tudo o que recebi em troca, além da promessa
de paz contínua, foi você. Então você vai me desculpar por não
querer vê-la morta nos primeiros dias da sua chegada.
— E, no entanto, você obviamente estava contente em me
permitir passear por suas selvas perigosas.
— Eu queria ver onde você iria.— Apontando para que o
seguisse, Aren se moveu através da folhagem que cobria o chão da
floresta, fazendo um uso mínimo do facão brilhante que ele
segurava em uma mão. — Você estava tentando escapar?
— Fugir para onde? — Ela se forçou a aceitar o braço dele
enquanto ele a guiava sobre uma árvore caída. — Meu pai me
mataria por desonrá-lo se eu voltasse para Maridrina, e não possuo
habilidades que me permitam sobreviver sozinha em outro lugar.
Quer eu queira ou não, Ithicana é onde tenho que ficar.
Ele riu baixinho. — Pelo menos você é honesta.
Lara conteve sua própria risada. Ela era muitas coisas, mas
honesta não era uma delas.
— Então o que você estava fazendo aqui fora?
Guarde as mentiras para necessidades. — Eu queria ver a
ponte.
Aren parou, virando-se para dar-lhe um olhar afiado. — Por quê?
Ela encontrou seu olhar sem vacilar. — Eu queria ver a parte da
arquitetura que valia os direitos do meu corpo. Minha lealdade.
Minha vida.
Ele recuou como se ela tivesse lhe dado um tapa. — Os direitos
dessas coisas são seus, não do seu pai.
Não era o que ela esperava que ele dissesse. Mas, em vez de
aliviar sua apreensão sobre esse aspecto específico de sua missão,
fez sua pele queimar quente com uma raiva que não conseguia
explicar direito, então apenas deu um breve aceno de cabeça. — Se
você diz.
Cortando uma videira fora do caminho com o facão, Aren subiu
uma ladeira íngreme, sem esperar para ver se ela o seguia. — Você
estava indo na direção errada, a propósito. Agora tente me
acompanhar. Há apenas uma breve janela na qual você poderá ver
a ponte através da névoa.
Eles subiram, principalmente por uma trilha estreita, durante a
qual não disseram uma palavra um para o outro. Não havia nada a
ser visto, além de uma selva sem fim, e Lara estava começando a
acreditar que Aren estava brincando com ela quando ele entrou em
uma clareira contendo uma torre de pedra.
Inclinando o rosto para o céu, ela deixou a chuva interminável
lavar o suor do rosto, observando as nuvens girarem e rodopiarem
pelos ventos que não rompiam a copa das árvores.
Aren apontou para a torre. — A quebra na cobertura de nuvens
será breve nesta época do ano.
A torre cheirava a terra e bolor, as escadas de pedra circulando
para cima, desgastadas no centro por incontáveis passos. Eles
chegaram ao topo - um pequeno espaço vazio aberto por todos os
lados, revelando uma selva enevoada em todas as direções. A vigia
estava no ápice de uma pequena montanha, percebeu, e ela mal
conseguia distinguir o mar cinzento abaixo. Não havia praia.
Nenhum píer. E o mais importante, nenhuma ponte maldita.
— Onde é?
— Paciência. — Aren apoiou os cotovelos na parede de pedra
emoldurando o espaço.
Mais curiosa do que irritada, Lara foi ficar ao lado dele,
observando as árvores, as nuvens e o mar, mas sua atenção foi
atraída para ele. Ele cheirava a couro úmido e aço, a terra e a
folhas, mas, por baixo disso, o nariz dela sentiu o cheiro de sabão e
algo distintamente, e não desagradável, masculino. Então uma
rajada de vento rugiu através da torre, afugentando todos os
aromas, exceto o do céu e da chuva.
As nuvens se abriram com uma velocidade incrível, o sol
queimando sobre elas com uma intensidade que ela não sentia
desde que deixara o deserto, transformando as faixas de verde
desbotado em uma esmeralda tão vibrante que quase machucava
seus olhos. A névoa correu com o vento, deixando para trás um céu
safira. Foi-se a ilha misteriosa, e o que foi deixado em seu lugar era
toda cor e luz brilhantes. Mas não importava como procurasse, ela
não conseguia ver nada remotamente parecido com uma ponte.
Uma risada divertida encheu seus ouvidos quando as pontas dos
dedos pegaram seu queixo, gentilmente erguendo o rosto. — Olhe
mais para longe — disse Aren, e os olhos de Lara foram para o mar
agora azul-turquesa.
O que ela viu a deixou sem fôlego.
10
LARA

T
eram nada em comparação com a realidade. Não era uma ponte.
Era A Ponte, pois não havia nada que se comparasse a ela no
mundo.
Como uma grande serpente cinza, a ponte serpenteava até onde
os olhos podiam ver, juntando-se aos continentes. Ela repousava
em cima de uma torre cárstica naturalmente formada que parecia ter
sido colocada pela mão de Deus para esse fim, desafiando o Mar de
Tempestade que batia contra seus pés. Ocasionalmente, seu
comprimento cinza flutuava sobre as ilhas maiores, repousando
sobre grossas colunas de pedra construídas por mãos antigas. A
ponte era uma façanha da arquitetura que desafiava a razão. Isso
desafiava a lógica. Por todos os direitos, isso nem deveria existir.
E era exatamente por isso que todo mundo a queria.
Desviando os olhos da ponte, Lara olhou para Aren cujo olhar
estava fixo na estrutura de pedra. Embora devesse ter visto todos os
dias de sua vida, ele ainda exalava um sentimento de admiração,
como se também não pudesse compreender sua existência.
Antes que ela pudesse desviar o olhar, ele virou a cabeça e seus
olhos se encontraram. À luz do sol, ela viu que os olhos dele não
eram pretos, mas castanhos, o marrom manchado de verde
esmeralda que espelhava seu Reino. — Ver isso reforça seu senso
de auto-valor?
Sua pele queimava quente, e ela se virou, precisando se mover.
— Eu não sou uma mercadoria.
Ele respirou fundo. — Não é isso que significa. A ponte é… Para
Ithicana, é tudo. E Ithicana é tudo para mim.
Assim como Maridrina era tudo para ela.
— É... impressionante. — Uma palavra fraca para a estrutura
antiga.
— Lara — Pelo canto do olho, ela o viu alcançá-la, depois retirou
a mão como se ele pensasse melhor em tocá-la. — Eu sei que você
não escolheu estar aqui.
Ele passou a mão pelos cabelos, as bochechas contraídas como
se estivesse lutando por palavras, e o coração dela começou a bater
com força antecipando o que ele diria. — Quero que você saiba que
não precisa fazer nada que não queira. Que isso... isto é o que você
quer que seja. Ou não quer que seja.
— O que é isto para você?
— O tratado significa paz entre Ithicana e Maridrina. Significa
vidas salvas. Talvez um dia signifique o fim da violência em nossos
litorais.
— Eu não acho que estávamos falando sobre o tratado. — Ela
pretendia entender o que motivava esse homem, o que incluía seus
desejos.
Aren hesitou. — Espero que nosso casamento seja o primeiro
passo para um futuro em que a vida de meu povo não esteja ligada
a esse antigo pedaço de pedra.
A declaração era tão contraditória com o que ele havia dito sobre
a ponte ser tudo, que Lara abriu a boca para pedir que ele
explicasse, mas ela foi interrompida pelo som de uma trombeta ao
longe. Ela tocou uma música e repetiu duas vezes. Aren xingou
após o primeiro som, com a mão alcançando a grande luneta
montada no centro da torre de vigia. Ele procurou pela água,
soltando uma série de maldições quando avistou o que estava
procurando.
— O que é isso?
— Invasores. — Ele se jogou nas escadas, depois se segurou no
batente da porta, interrompendo o progresso. — Fique aqui, Lara.
Somente... não se mexa. Vou mandar alguém para você.
Ela começou a discutir, mas ele já tinha saído. Inclinando-se
sobre a borda da torre, o viu sair da base, correr pela clareira e
desaparecer de vista.
Ficando na ponta dos pés, Lara espiou pela luneta. Demorou um
momento, mas ela finalmente viu o navio passando sob a ponte em
direção a Midwatch, com o convés repleto de homens armados em
uniformes, a bandeira Amaridiana voando no mastro. Uma
embarcação naval. E não, acreditando nas palavras de Aren, uma
que havia chegado em paz.
Um estalo alto dividiu o ar. Lara observou como um projétil
rasgava o cordame, um mastro se estilhaçando e tombando de lado.
Ele caiu, velas e cordas pegando as pontas de metal colocados na
base de um dos pilares da ponte. O navio tombou, derramando
incontáveis homens na água. Outro barulho ecoou em sua posição,
e um buraco apareceu no casco. Um buraco que desapareceu
rapidamente quando o navio afundou na água.
Com as mãos congeladas na luneta, Lara prendeu a respiração
quando violentas barragens de munição destruíram metodicamente
o navio enquanto os que ainda estavam a bordo subiam mais alto
ou nadavam em direção à costa, barbatanas circulando-os
ameaçadores, sem segurança ao alcance. Enquanto ela observava,
um dos marinheiros foi empurrado para baixo e seu sangue correu
frio quando uma nuvem de vermelho floresceu onde ele estivera.
Depois disso, foi um frenesi, os tubarões atacando um após o outro,
a água agora mais vermelha que azul.
Movendo a luneta para onde a ilha encontrava o mar, ela
procurou qualquer sinal de Ithicanos, ansiosos para ver suas
defesas em ação. Mas o ângulo era ruim, a selva obscurecia sua
visão do que estava acontecendo na beira da água.
Essa poderia ser sua única chance de ver como os Ithicanos
repeliam os invasores por dentro, e ela estava perdendo por causa
de um ponto de vista ruim.
Lara se viu correndo. Desceu as escadas e entrou na clareira,
seus olhos treinados no caminho que Aren havia tomado, confiando
que isso a levaria aonde ela precisava ir. A selva não passava de
um borrão de verde enquanto corria, o ar úmido pesado em seus
pulmões enquanto ela pulava sobre rochas, deslizava na lama,
recuperava o equilíbrio e continuava andando. A água não estava
longe e estava em declive.
O caminho irrompeu ao ar livre, cortando a beira de um
penhasco. Muito abaixo, o oceano batia contra a rocha pura. Ela
virou uma curva, encontrando-se no topo de uma encosta íngreme.
Lara parou, escondendo-se atrás de uma pedra.
Ela viu uma enseada que não tinha podido ver da torre de vigia.
Com uma praia de areia branca e águas azul-turquesa, ela estava
escondida do oceano por falésias rochosas, a abertura para o mar
era uma lacuna quase pequena demais para um pequeno barco. O
espaço estava atualmente bloqueado por uma corrente pesada
conectada a edifícios de pedra de cada lado.
A praia estava cheia de soldados. O olhar de Lara foi para os
estranhos barcos parados na areia, que não mostravam sinais de ir
a lugar algum, antes de desviar a atenção para os Ithicanos que
estavam no alto dos penhascos com vista para o mar, a forma alta
de Aren entre eles.
Franzindo a testa, Lara olhou ao redor da pedra, tentando
determinar onde estava localizada a catapulta que os Ithicanos
haviam usado contra o navio, quando ouviu cascalho solto
deslizando pelo caminho atrás dela. Então uma voz: —
...dificilmente vale as pedras que atiramos neles. Um vento forte
colocaria esse pedaço decrépito de merda no fundo do mar.
Com o coração disparado, Lara procurou uma maneira de
escapar, mas a praia estava cheia de soldados, à esquerda havia
um emaranhado de trepadeiras, e à direita havia um abismo nas
rochas irregulares que se projetavam no oceano. A única maneira
de evitar ser pega espionando era a frente.
Saindo do esconderijo, Lara desceu a encosta íngreme e entrou
na praia, ignorando as expressões assustadas dos soldados.
Um homem levou os dedos aos lábios e deu um assobio agudo,
fazendo com que os que estavam nos penhascos - incluindo Aren -
se virassem. Ele não estava tão distante, então conseguiu distinguir
a surpresa e a subsequente irritação que cruzou o seu rosto.
Antes que os soldados pudessem detê-la, Lara circulou a
enseada, subindo os degraus esculpidos na rocha que dava acesso
ao penhasco com vista para o mar. Aren a encontrou no topo,
claramente não inclinado a permitir que ela observasse o que estava
acontecendo. — Eu disse para você ficar na torre, Lara.
— Eu sei, eu... — Ela fingiu perder o equilíbrio no degrau
estreito, escondendo um sorriso enquanto ele a segurava pelo
braço, puxando-a para o topo da falésia e dando-lhe uma visão livre
da ponte e do navio afundando ao lado dela. — O que está
acontecendo?
— Não é da sua conta. Vá para a praia e alguém a levará de
volta para casa. — Ele apontou para um de seus soldados, e a
mente de Lara correu, tentando entender por um motivo.
— Há homens se afogando! — Ela acenou para o soldado
tentando pegar seu braço. — Por que você não os está ajudando?
— Esses são assaltantes. — Aren empurrou a luneta que estava
segurando em sua mão. — Vê a bandeira? Esse é um navio
Amaridiano. Eles estavam tentando encontrar um caminho para a
ponte sob a cobertura do nevoeiro.
— Eles podem ser comerciantes.
— Eles não são. Olhe para a ponte. Vê as linhas penduradas?
Através da luneta, Lara fingiu olhar para os homens pendurados
em cordas quando realmente estava examinando a estrutura em si,
procurando por aberturas. Este era um ponto de vista que ninguém,
exceto os Ithicanos, tinha, e era possível que ela aprendesse algo
valioso. Mas Aren arrancou a luneta da mão antes que pudesse
obter mais do que um rápido olhar.
— Este é um ato de guerra contra nós, Lara. Eles merecem o
que recebem.
— Ninguém merece isso — respondeu ela, e embora sua reação
tenha sido um ato, seu estômago ainda torceu quando as ondas
atingiram o navio, engolindo os destroços inteiros. Todos os
Amaridianos estavam na água agora, alguns tentando alcançar as
cordas pendentes, outros nadando na direção da ilha em que ela
estava. — Ajude-os.
— Não.
— Então eu vou. — Ela se virou, ansiosa para usar uma
demonstração dramática de empatia para olhar mais de perto a
pequena embarcação na praia, apenas para se encontrar cara a
cara com três soldados de Aren. — Deixem-me passar.
Nenhum deles se mexeu, mas também não pegaram suas
armas. Lara olhou por cima do ombro, observando as estruturas
gêmeas de pedra com portas sólidas e sem janelas, que protegiam
o mecanismo de elevação da corrente. Ela suspeitava que eles
sempre estivessem guardados. No entanto, seus olhos foram
atraídos de sua avaliação para o punhado de marinheiros que,
contra todas as probabilidades, estavam ao alcance da brecha que
levava à enseada. Mas vários deles estavam se debatendo, as
ondas pesadas caíam sobre suas cabeças.
— Por favor. — Lara não deveria se importar se os Amaridianos
viviam ou morriam, mas ela descobriu que sim, o tremor em sua voz
era genuíno ao dizer: — Isso é crueldade.
O rosto de Aren estava escuro de raiva. — Crueldade é o que
esses homens teriam feito com o meu povo se conseguissem
superar nossas defesas. Ithicana nunca pediu isso. Nós nunca
invadimos suas terras. Nunca matamos seus filhos por esporte. —
Ele apontou o dedo para os marinheiros, e a bile subiu na garganta
de Lara quando outro foi empurrado sob as ondas, a água
espumando de vermelho quando o tubarão o despedaçou. — Eles
trouxeram guerra para nós.
— Se você deixá-los morrer, você se mostrará melhor? —
Restavam apenas três marinheiros, e eles estavam perto. Porém
barbatanas se arrastavam ao redor deles. — Mostre um pouco de
piedade.
— Você quer piedade? — Aren girou nos calcanhares,
estendendo a mão na aljava enquanto se virava. Três manchas
borradas de preto e os marinheiros restantes afundaram sob as
ondas. Ele girou de volta para encará-la, os nós dos dedos brancos
onde eles agarraram seu arco.
Lara caiu de joelhos, fechando os olhos e fingindo angústia,
enquanto procurava seu próprio foco interior. Ithicana estava
mostrando suas cores verdadeiras. Pátios não pacíficos e fontes
termais calmantes, mas violência e crueldade. E Aren era seu
mestre.
Mas ela seria sua desgraça.
— Espere os ventos morrerem, depois tire os que estão
pendurados na rocha — ordenou Aren a seus soldados. — A última
coisa que precisamos é que um deles encontre o caminho na maré
baixa. — Então as botas passaram por ela e desceu os degraus da
praia escondida.
Lara ficou onde estava, sorrindo interiormente, enquanto os
Ithicanos davam a ela e seu ultraje moral um amplo espaço,
enquanto considerava as palavras de Aren: um caminho para a
maré baixa. Para onde, era a pergunta. Na enseada? Ou ele estava
se referindo a um prêmio muito maior?
Os ventos morreram, o sol recuou atrás de outro banco de
nuvens e as chuvas voltaram, molhando-a até os ossos. Mas ela
não se mexeu. Em um silêncio estóico, ela assistiu os soldados
empurrarem os barcos para a água, navegarem sob a ponte e
atirarem metodicamente nos marinheiros que haviam conseguido se
agarrar às cordas durante todo o calvário, seus corpos sem vida
caindo no oceano abaixo.
Ela não disse nada quando retornaram, apenas marcou a rota
sinuosa que tomaram, que era muito proposital para não ter um
modelo, a necessidade revelada à medida que as marés se
invertiam, as águas fugindo para revelar as armadilhas mortais sob
a superfície. Agulhões de aço e pedras irregulares, todos destinados
a destruir qualquer embarcação que se aproxima, sem saber o
caminho correto.
A maré atingiu seu ponto mais baixo, e Lara começou a subir,
convencida de que tinha visto tudo o que havia para ver. Então uma
sombra na base do píer da ponte mais próxima chamou sua
atenção. Não, não é uma sombra. Uma abertura.
Seu coração acelerou, e foi difícil manter um sorriso no rosto
enquanto a alegria a enchia. Ela encontrou um caminho para a
ponte.
11
AREN

—AR A
por ter uma tripulação em seus navios com pessoas desse tipo. —
Gorrick virou o cadáver que havia sido puxado do oceano, o sangue
escorrendo para a areia branca. Faltava uma perna, cortesia de um
dos tubarões de Ithicana. Também faltava o polegar esquerdo, mas
os tubarões não tinham culpa. Pois o dígito que faltava, combinado
com a marca nas costas da mão, indicava que esse homem havia
passado algum tempo em uma das prisões de Amarid por roubo.
Ajoelhado, Aren examinou o uniforme puído do soldado morto,
os cotovelos gastos nos dois braços. — Todos são condenados,
você disse?
— Todos aqueles que pudemos conferir.
De pé, Aren franziu o cenho para as águas cobertas de névoa da
enseada. A frota Amaridiana conhecia bem os destruidores de
navios de Midwatch, mas a embarcação navegou em direção a
esses, tornando-os alvos fáceis. Talvez um navio antigo com uma
tripulação de condenados fosse tudo o que a Rainha Amarid estava
disposta a arriscar no final da temporada de tempestades, mas
ainda assim... Qual era o objetivo?
Aren voltou-se para Gorrick. — Escreva um relatório e envie-o
aos comandantes das guardas de Watch, informando-os de que os
ataques chegaram mais cedo. — Então ele caminhou a passos
largos em direção ao acampamento, sem nenhum interesse em
voltar para sua casa.
— Sua esposa já foi atrás de você, Vossa Excelência? — Jor estava
deitado ao lado do fogo, um livro em uma mão. — Ela não parecia
muito satisfeita com a forma de misericórdia Ithicana.
Ela não tinha ficado.
Lara sentou-se e ficou emburrada na beira do penhasco até ele
se perguntar se precisava arranjar alguém para arrastá-la de volta
para casa. Então, de repente, ela se levantou, trotou descendo os
degraus da praia e passou por ele sem dizer uma palavra, os
guardas que colocou para vigiá-la pareciam que prefeririam estar
nadando com tubarões do que vigiando sua nova Rainha. Cerca de
uma hora depois, Eli havia chegado com uma carta escrita por Lara
ao pai e, agora, com os comentários de Aster frescos em seus
ouvidos, Aren estava pensando se deveria enviá-la ou não.
— Eu duvido que ela tenha visto muita violência antes. — Aren
foi em direção a sua cama antes de pensar melhor e se sentar ao
lado do velho soldado. — Leia isso.
Pegando a carta de Lara, o homem mais velho leu e depois deu
de ombros. — Parece-me uma prova de vida.
Aren estava inclinado a concordar. A carta dizia pouco mais do
que ela estava bem, estava sendo tratada com gentileza,
juntamente com uma longa descrição de sua casa, com grande
ênfase nas fontes termais. Mesmo assim, ele a leu várias vezes
procurando por código, sem ter certeza se estava feliz ou
desapontado quando não encontrou nenhum.
— Interessante que ela não menciona você. Eu acho que você
terá uma cama fria no seu futuro.
Aren bufou, os restos embaçados do sonho que ele teve de Lara
em seu quarto, em sua cama, em seus braços, passando por seus
pensamentos. — Ela parece ter problemas em ser o preço do
tratado.
— Talvez ela estivesse esperando um marido mais bonito.
Algumas pessoas lidam mal com a decepção.
Aren levantou uma sobrancelha. — Essa é provavelmente a
única coisa que não foi decepcionante para ela.
Jor balançou a cabeça. — Talvez ela não goste de bastardos
arrogantes.
— Ouvi dizer que existem Reinos onde as pessoas mostram um
pouco de respeito por seus monarcas.
— Eu posso respeitá-lo e ainda acho que sua merda fede tanto
quanto a do próximo.
Revirando os olhos, Aren aceitou a caneca que Lia, uma de seus
guardas de honra, passou para ele, sorrindo até ela dizer — Você
está apenas chateado que o Rei Rato de Maridrina lhe enviou uma
garota com uma opinião, em vez de uma idiota sem cérebro que
faria — ela fez um gesto vulgar, — sem questionar.
— Como você, Lia? — Jor disse com uma piscadela, rindo
enquanto jogava o conteúdo de sua caneca para ele. Aren pegou a
carta da mão do homem antes que pudesse sofrer mais danos.
— Você realmente não pretende enviá-la, não é? — Jor
perguntou.
— Eu disse a ela que sim. Além disso, se Silas está querendo
uma prova que está viva, é melhor satisfazê-lo. A última coisa que
precisamos é dar a ele uma desculpa para procurá-la.
— Mentira. Podemos conseguir um falsificador para continuar a
correspondência.
— Não. — Os olhos de Aren flutuaram através das linhas de
escrita pura. — Vou mandá-la ou dizer a ela que decidi não mandar.
Existe alguma coisa aqui que precisamos nos preocupar com que
Magpie leia?
Jor pegou de volta, lendo mais uma vez, e, não pela primeira
vez, Aren amaldiçoou ter nascido alguns minutos antes de Ahnna.
Aqueles poucos minutos condenáveis que o fizeram Rei e seu
comandante, quando ele daria qualquer coisa para que seus papéis
fossem revertidos. Ele era adequado para lutar e caçar e sentar-se
ao redor do fogo, fazendo piadas ruins com outros soldados. Não
por política e diplomacia e por ter toda a droga do seu Reino
dependendo de suas escolhas.
“— Pela descrição de sua casa chique, eles podem adivinhar
que ela está na Midwatch com você. Eles perceberão pelos detalhes
dela sobre a selva que estamos concedendo a ela alguma liberdade
para se movimentar. Falando nisso, — Jor levantou a cabeça — o
que ela estava fazendo correndo pela ilha? Ela veio da mesma
direção que você, que não era a casa...
Aren havia chegado à casa pouco antes de Lara partir em sua
exploração não autorizada da ilha e, em vez de ter Lia a impedindo,
ele decidiu ver para onde sua esposa pretendia ir. — Ela estava
vagando.
As sobrancelhas de Jor se levantaram. — Com qual propósito?
— Procurando a ponte.
Todos os olhos na sala comunal se viraram para olhá-lo, e Aren
fez uma careta. — Foi mera curiosidade... — Ele não sabia
exatamente por que estava defendendo Lara, apenas que as coisas
que ela disse a ele haviam tocado uma ferida. Tinha sido tão fácil se
concentrar nos sacrifícios que ele estava fazendo como parte deste
casamento que não parou para pensar no que isso custara a ela. Do
que isso continuaria custando a ela. Exatamente pelas mesmas
coisas que ele queria proteger Ahnna e por que pagaria uma fortuna
a Harendell em vez de forçar sua irmã a um casamento que ela não
queria. — Quase foi picada por uma cobra, então espero que ela
não volte a vagar tão cedo.
— Eu não ficaria tão confiante com isso — disse Lia. — Quando
a bloqueamos dos barcos, ela parecia pronta para me dar um soco
no rosto. Ela pode não ser uma guerreira, mas não é covarde.
— Estou inclinado a concordar — disse Jor. — Eu vou ter alguns
guardas extras postados para ficar de olho nela quando você não
estiver por perto.
Aren assentiu lentamente. — Envie a carta a Southwatch para
Ahnna e nossos decifradores de código olharem e pedirem a um
falsificador para transcrevê-la em um papel novo. Então envie para
Maridrina. — Seu povo conhecia todos os códigos de Magpie. Se
ela estivesse usando um, eles descobririam.
— Você acha que ela é uma espiã?
Expirando fundo, Aren considerou sua nova esposa, que não era
nada do que ele esperava. Os Reis Maridrinianos usavam suas
filhas como moeda de troca, maneiras de garantir alianças e favores
dentro e fora do Reino. Lara e todas as suas irmãs tinham sido
criadas sabendo que um casamento arranjado com ele - ou com
outra pessoa - fazia parte do futuro delas. Elas tinham sido treinadas
para cumprir seu dever como esposa, independentemente das
circunstâncias.
No entanto, Lara havia deixado claro que o tratado garantia sua
presença em Ithicana, não seu cumprimento como esposa, e ele
respeitava isso. Todas as mulheres que compartilharam sua cama
tinham feito isso porque queriam, e a ideia de passar a vida com
uma mulher que estava lá apenas por dever era desagradável. Ele
preferiria uma cama fria. — Vou dar-lhe algum espaço. Eu acho que
se ela foi enviada aqui para espionar, ela virá até mim em busca de
informações. Os Maridrinianos não são conhecidos por sua
paciência.
— E se ela o procurar? — Jor perguntou.
— Pensarei nisso quando o dia chegar.
— E se ela não procurar?
De certa forma, se Lara era, de fato, uma garota inocente que foi
enviada para garantir um tratado de paz, isso tornava a tarefa de
Aren mais difícil do que se a expusessem como espiã. Porque ele
tinha sua própria agenda quando se tratava de sua esposa
Maridriniana, e ele não iria muito longe se ela odiasse suas
entranhas. — Eu vou conquistá-la, suponho.
A bebida de Lia espirrou entre seus lábios. — Boa sorte com
isso, Vossa Excelência.
Ele deu um sorriso preguiçoso. — Eu conquistei você.
Lia deu a ele um olhar que implicava que era a criatura mais
estúpida a andar na terra. — Ela e eu não somos iguais.
No entanto, não achou isso até que Lara continuou a dar os
ombros para ele por uma noite, depois uma semana, depois duas,
que ele, então, começou a pensar que talvez Lia estivesse certa.
12
LARA

A
passaram sem incidentes. Aren levantava-se ao amanhecer e não
voltava até tarde da noite, mas ele não a deixou sozinha. Sabendo
da exploração não autorizada de Lara a ilha, os criados a vigiavam,
Clara sempre parecendo espanar ou esfregar nas proximidades, o
cheiro da essência de polimento de madeira impregnado em seu
nariz. Embora, na verdade, as tempestades que passaram fizeram
mais do que os servos ou guardas jamais puderam fazer para
manter Lara em casa. Ventos violentos, raios e um dilúvio
incessante de chuva eram ocorrências regulares. Moryn, a
cozinheira, disse a ela que esses eram os últimos suspiros da
temporada e nada em comparação com os tufões que
testemunharia quando a próxima temporada chegasse.
Embora estivesse desesperada para dar uma nova olhada na
abertura do píer, Lara, propositalmente, não fez nada para chamar
atenção, usando esse tempo para procurar discretamente na casa
por alguma pista que pudesse ajudar no planejamento da invasão
de Ithicana por Maridrina. Os mapas eram seu objetivo principal e a
única coisa que ela não conseguia encontrar. Serin tinha inúmeros
documentos detalhando as ilhas que compunham o Reino, nas
quais sempre se desenhava uma longa linha representando a ponte,
mas nenhuma com detalhes. Lara agora via por si mesma - era
quase impossível se infiltrar no Reino devido à falta de praias,
agravadas pelas defesas na água, que os Ithicanos pareciam
capazes de mudar e redesenhar à vontade.
O outro mistério era onde os próprios habitantes da ilha residiam.
Nenhuma civilização grande o suficiente jamais foi vista no mar, e os
desembarques e ataques bem-sucedidos falavam apenas de
pequenas aldeias, levando Serin e seu pai a acreditar que a
população é pequena, violenta e não civilizada, dedicada às
necessidades básicas, a defesa cruel de sua ponte e pouco mais
que isso. Mas, embora ela só estivesse em Ithicana há pouco
tempo, Lara não estava inclinada a concordar com essa avaliação.
Foi o que Aren disse a ela na torre. A Ponte... Para Ithicana, é
tudo. E Ithicana é tudo para mim.
O tom em sua voz mostrou sentimento genuíno. Havia civis aqui.
Os civis que Aren acreditava precisarem de proteção, e todo o seu
treinamento dizia que eles seriam a maior fraqueza de Ithicana. Ela
só precisa determinar onde eles estavam e como explorar esse
conhecimento. Depois, passar isso para Maridrina.
Ela já havia enviado sua primeira carta ao pai, uma carta sem
códigos cuidadosamente elaborada para garantir que não dava
motivo para os Ithicanos deterem-na. Um teste para ver se Aren
permitiria que ela se correspondesse antes que tentasse a tarefa
mais arriscada de conseguir informações que passassem por
decodificadores em Southwatch.
A prova de que Aren tinha sido fiel à sua palavra veio na
resposta do pai dela. E a carta foi entregue por ninguém menos que
o próprio Rei Aren.
Ela o viu chegando em casa pela janela, encharcado pela chuva
mais recente, e não pela primeira vez, imaginou o que ele faria
durante seus dias. Na maioria das vezes ele voltava molhado,
lamacento e com cheiro de suor, o rosto sombreado de cansaço.
Parte dela queria se aproximar dele - temia que tivesse errado sua
estratégia de ganhar sua confiança e o havia alienado
completamente. Mas outra parte disse a ela que tinha feito a
escolha certa em forçá-lo a procurá-la.
— Isso chegou em Southwatch para você. — Ele deixou cair os
papéis dobrados no colo dela. Ele tinha tomado banho e estava
vestido com roupas secas agora, mas a exaustão permanecia.
— Você leu, eu presumo. — Ela desdobrou a carta, notando a
imitação de Serin do roteiro de seu pai e sentindo a mais leve
pontada de decepção. É claro que foi ele quem escreveu. Ele
conhecia os códigos, não o pai dela. Ela deixou de lado, não
querendo ler ainda.
— Você sabe que sim. E para poupar o problema, meus
decifradores de códigos traduziram o péssimo código com destreza.
A transcrição está na parte de trás. Desta vez, deixarei isso passar
porque não veio de você, mas não haverá segundas chances.
Tanta coisa para o código inquebrável de Marylyn. Folheando a
página, ela leu em voz alta: — Aliviado por você estar bem, querida
filha. Envie uma mensagem se você for maltratada, e nós
atacaremos de volta
Aren bufou.
— O que você esperava? Que ele me casaria com você e não se
importaria com o que acontecesse comigo?
— Mais ou menos. Ele conseguiu o que queria.
— Bem, agora você sabe de outra forma. — E agora ela sabia
que obter informações de Ithicana seria tão desafiador quanto
previsto — Talvez você mesmo envie uma carta para tranquilizá-lo
de suas boas intenções.
— Não tenho tempo para manter uma correspondência casual
com seu pai, ou — ele pegou a carta — com Magpie, a julgar pela
caligrafia.
Caramba, os Ithicanos eram bons. Lara desviou o olhar. — Seu
tempo é claramente precioso. Por favor, continue o que for que você
tenha que fazer
Ele começou a se virar, depois hesitou e, pelo canto do olho, ela
o viu avistar o baralho de cartas que deixara empilhado na mesa. —
Você joga?
Uma mistura de nervos e excitação a encheu, a mesma
sensação que teve antes de entrar no pátio de treinamento para
lutar. Esse era um tipo diferente de batalha, mas isso não significava
que ela não venceria.
— Claro que eu jogo.
Ele hesitou e perguntou: — Você ligaria de jogar?
Dando de ombros, ela pegou o baralho e habilmente o
embaralhou, as cartas fazendo sons agudos em suas mãos. —
Deseja mesmo jogar comigo, Majestade? Devo te avisar, sou muito
boa.
— Um dos seus muitos talentos?
O coração de Lara pulou e se perguntou se ele lembrava mais
do encontro íntimo do que ela imaginava. No entanto, ele apenas a
olhou por um momento, depois sentou-se em frente a ela, apoiando
um pé no joelho. — Você tem alguma moeda para apostar ou estou
arriscando meu dinheiro dos dois lados da aposta?
Ela deu um sorriso frio. — Escolha outra forma de aposta.
— Que tal verdades?
Lara levantou uma sobrancelha. — Isso é um jogo de criança. O
que devemos fazer depois? Apostar um com o outro de correr sem
roupa pela casa?
A nudez estava mais de acordo com o que pensou que ele
sugeriria. As cartas eram um truque de sedução que Mezat, sua
Senhora do Quarto, tinha ensinado às irmãs. Todos os homens, ela
lhes dissera, estavam felizes em arriscar suas próprias roupas pela
chance de ver seios nus. Exceto, ao que parece, o Rei de Ithicana.
— Podemos salvar as corridas nuas para a temporada de
tempestades. É muito mais emocionante se houver um raio cortando
sua bunda.
Balançando a cabeça, Lara embaralhou as cartas novamente. —
Poker? — Melhor escolher um jogo em que ela não perderia.
— Que tal Trunfo?
— Mais sorte do que habilidade nesse jogo.
— Eu sei. — A maneira como ele disse foi como um desafio. E
para melhor ou pior, ela nunca recusou um desafio, então deu de
ombros. — Como você quiser. Para cada nove?
— Entediante. Que tal uma verdade para cada vitória?
Sua mente correu com perguntas que ela poderia perguntar.
Com perguntas que ele poderia perguntar, e as respostas que ela
daria.
Chegando ao canto da mesa, Aren pegou uma garrafa de licor
de cor âmbar, tomou um gole na boca da garrafa e depois a colocou
entre eles. — Para tornar as coisas mais divertidas.
Uma das sobrancelhas dela se levantou. — Tem copos na mesa
de canto, não sei se você sabe.
— Menos trabalho para Eli dessa maneira.
Revirando os olhos, ela tomou um gole. O conhaque, como era
para ser, ardeu como fogo por sua garganta. Então ela deu as
cartas, xingando silenciosamente quando ele teve o trunfo. —
Então?
Pegando a garrafa, Aren a olhou pensativamente e o coração de
Lara começou a martelar. Havia mil coisas que ele poderia
perguntar, pelas quais ela não tinha resposta. Pelo qual teria que
mentir, e depois manter viva essa mentira pelo tempo que passasse
aqui. E quanto mais mentiras ela tinha para manter, maior a chance
de ser pega.
— Qual é — ele tomou um gole — sua cor favorita?
Lara piscou, seu coração saltitando e depois se acalmando,
enquanto olhava para longe dos olhos castanhos do Rei, sentindo o
calor subir por suas bochechas. — Verde.
— Excelente. Tem bastante por aqui, então não preciso moldar
seus favores com esmeraldas.
Dando uma risada suave com diversão, Lara entregou as cartas,
que ele rapidamente embaralhou e depois distribuiu.
Ela venceu a próxima rodada.
— Eu não vou fazer perguntas sem sentido — ela alertou,
pegando a garrafa dele. Suas perguntas precisavam ser
estratégicas - não destinadas a descobrir os segredos da ponte,
mas a entender o homem que guardava esses segredos tão perto
de seu coração. — Você teve prazer em matar aqueles invasores?
Ao vê-los morrer?
Aren estremeceu. — Ainda está brava com isso, então?
— Duas semanas não é tempo suficiente para eu esquecer o
massacre a sangue frio de um navio cheio de homens.
— Suponho que não. — Aren recostou-se na cadeira, os olhos
distantes. — Prazer. — Ele disse a palavra como se estivesse
provando, experimentando e depois balançou a cabeça. — Não, não
prazer. Mas há uma certa satisfação em vê-los morrer.
Lara não disse nada, e seu silêncio foi recompensado um
momento depois.
— Eu servi no Midwatch desde os quinze anos. Comando desde
os dezenove anos. Nos últimos dez anos, perdi a noção do número
de batalhas que lutei contra invasores. Mas lembro-me de todas as
treze vezes que chegamos tarde demais. Quando chegamos ao
nosso povo, depois que os atacantes já tinham chegado a esses.
Famílias abatidas. E para quê? Peixe? Eles não têm nada que valha
a pena levar. Então eles tiram suas vidas.
Lara apertou as palmas das mãos nas saias, suor molhando a
seda. — Por que eles fazem isso, então?
— Eles acham que podem aprender a entrar na ponte através
deles. Mas os civis não usam a ponte. Eles não conhecem seus
segredos. Você pensaria que depois de todos esses anos nossos
inimigos teriam descoberto isso. Talvez eles tenham. — O rosto dele
se contorceu. — Talvez apenas os matam por prazer.
Os dedos dele roçaram os dela quando passou pelo mesa,
quentes contra a pele gelada dela. Aren venceu a próxima rodada.
— Já que estamos fazendo perguntas difíceis... — Ele bateu um
dedo no queixo. — Qual é a sua pior lembrança?
Ela tinha cem piores lembranças. Mil. De abandonar suas irmãs
ao fogo e à areia. De Erik, o homem que tinha sido como um pai
para ela, tirando a própria vida na frente dela porque acreditava que
ela matara suas próprias irmãs. De ficar sozinha em uma cova no
chão por semanas. De estar morrendo de fome. De ser espancada.
De ter que lutar por sua vida, enquanto seus mestres lhe diziam que
era para fazê-la forte. Para ensiná-la a suportar. Fazemos isso para
protegê-la, eles disseram a ela e a suas irmãs. Se você precisa de
alguém para odiar, alguém para culpar, olhe para Ithicana. Para o
seu Rei. Se não fosse por eles, se não fosse por ele, nada disso
seria necessário. Derrube-os, e nenhuma garota maridriniana jamais
sofrerá assim novamente.
As lembranças provocaram algo profundo dentro dela, um surto
irracional de raiva, fúria e medo. Um ódio por esse lugar. Um ódio
ainda mais profundo pelo homem sentado à sua frente.
Lentamente, empurrou as emoções profundamente dentro dela,
mas quando ela levantou a cabeça, Lara pôde dizer que Aren tinha
visto tudo isso exposto em seu rosto.
Dê a ele uma verdade.
— Nasci no harém em Vencia. Eu morava lá com minha mãe
entre todas as outras esposas e filhos mais novos. Depois que o
tratado foi assinado, meu pai levou todas as crianças do sexo
feminino com idade apropriada para o complexo para a proteção
delas - para a nossa - de Valcotta e Amarid e qualquer outra pessoa
que tentasse atrapalhar a aliança. Eu tinha cinco anos de idade. —
Ela engoliu em seco, a visão da lembrança difusa, mas os sons e
cheiros vivos como se tivesse acontecido ontem. — Não houve
aviso. Eu estava brincando quando os soldados me agarraram e me
lembro de chutar e gritar quando eles me arrastaram para longe.
Eles cheiravam horrivelmente - como suor e vinho. Lembro-me de
mais homens segurando minha mãe no chão. Ela lutando, tentando
chegar até mim. Tentando impedi-los de me levar. — Os olhos de
Lara arderam e ela afugentou as lágrimas com um grande gole de
conhaque. Depois outro. — Eu nunca mais a vi.
— Eu já não gostava do seu pai antes — disse Aren
calmamente. — Muito menos agora.
— A pior parte é... — Ela parou, olhando para o interior de suas
pálpebras, tentando encontrar o que estava procurando. — É que
não consigo me lembrar do rosto dela. Se eu encontrasse ela pela
rua, não tenho certeza se saberia quem seria.
— Você saberia.
Lara mordeu o interior de suas bochechas, odiando que ele, de
todas as pessoas, dissesse algo que lhe traria conforto. É por causa
dele que você foi tirada de sua mãe. É culpa dele. Ele é o inimigo. O
inimigo. O inimigo.
Uma batida soou alto contra a porta, e Lara pulou, arrancada de
seus pensamentos pela interrupção.
— Entre — disse Aren, e a porta se abriu para revelar uma bela
jovem cheia de armas. Seus longos cabelos negros estavam
raspados nas laterais, o resto preso em um rabo de cavalo no topo
de sua cabeça - um estilo que parecia ser o preferido das guerreiras
- e seus olhos eram de um cinza pálido. Meia cabeça mais alta que
Lara, seus braços nus eram sólidos com músculos, sua pele
marcada com cicatrizes antigas.
— Essa é Lia. Ela faz parte da minha guarda. Lia, essa é Lara.
Ela é...
— Rainha. — A jovem inclinou a cabeça. — É uma honra
conhecê-la, Vossa Excelência.
Lara inclinou a cabeça, curiosa sobre as guerreiras de Ithicana.
Seu pai havia dito a Lara e suas irmãs que elas seriam
subestimadas porque eram mulheres, mas as mulheres aqui
pareciam ser tão respeitadas quanto qualquer homem.
Lia voltou sua atenção para o Rei e entregava-lhe um pedaço de
papel dobrado. — A temporada foi declarada encerrada.
— Eu ouvi as cornetas. Duas semanas antes do ano passado.
Lara pegou sua própria carta, esperando que eles dissessem
mais se acreditassem que estava distraída. Serin havia escrito sobre
seu irmão mais velho, Rask, que era herdeiro. Aparentemente, ele
lutou com sucesso em algum torneio, e o Magpie descreveu os
eventos com detalhes vívidos. Não que ela se importasse, nunca
tendo tido nada a ver com o irmão. Os decodificadores de Ithicana
haviam circulado as letras que formavam o código, não seu código,
ela percebeu, o código de Marylyn. Relendo o documento, de olho
no código que sua irmã mais velha havia criado, Lara conteve um
sorriso ao ver os padrões circulados. Aparentemente, os Ithicanos
eram falhos, afinal.
O sorriso escondido dela desapareceu quando analisou o
código. Maridrina recebendo apenas produtos podres. Grãos de
moldagem. Gado doente. Navios Valcoticanos partindo com os
porões cheios de mercadorias melhores.
Serin havia explicado os novos termos comerciais que haviam
sido negociados como parte do tratado. A retirada dos impostos
sobre as mercadorias que Maridrina compraria em Northwatch, que
depois seriam enviadas para Southwatch sem pedágio. Ao todo, era
um bom negócio para Maridrina e uma grande concessão para
Ithicana. A menos que alguém considere colocar todo o risco de
deterioração das mercadorias durante o transporte nos ombros de
Maridrina. Se o grão comprado em Northwatch apodrecia antes de
chegar a Southwatch, era a perda de Maridrina e não era problema
de Ithicana. E quem imaginaria que Maridrina iria receber as piores
mercadorias quando era Ithicana quem estava coordenando o
transporte. As páginas amassaram-se levemente sob o aperto de
Lara, e desviou os olhos da escrita ao ouvir Aren dizer — Não posso
contornar o pedido dela, suponho.
Lia concordou, depois inclinou a cabeça. — Vou deixar você com
isso.
Lara observou a outra mulher sair, lutando para dominar sua
expressão. A mensagem de Serin não a surpreendeu, mas ainda
era irritante saber que o homem sentado calmamente diante de
suas cartas de baralho estava conscientemente fazendo escolhas
para prejudicar seu povo.
Cartas estalaram contra a mesa. Outra mão. Outra verdade.
Pegando-as, Lara olhou para a mão, sabendo que eles já
estavam levemente bêbados e que ela deveria pensar em uma
pergunta que lhe valesse alguma coisa. Mas quando ganhou, a
pergunta que saiu foi algo diferente. — Como seus pais morreram?
Aren ficou rígido, depois passou a mão pelos cabelos.
Estendendo a mão, ele puxou a garrafa da mão dela, virando-a.
Lara esperou. Nas pesquisas fracassadas dos mapas, ela
encontrou outras coisas. Coisas pessoais. Desenhos do Rei e da
Rainha anteriores, a semelhança entre Aren e Ahnna e sua linda
mãe era marcante. Ela também encontrou uma caixa cheia de
souvenires que apenas uma mãe guardaria. Dentes de leite em uma
jarra. Retratos. Notas escritas em letras infantis. Havia, também,
esculturas grosseiras, com o nome de Aren riscado no fundo. Uma
família muito diferente da dela.
— Eles se afogaram em uma tempestade — respondeu
simplesmente. — Ou pelo menos ele morreu. Ela provavelmente já
estava morta.
Havia mais nessa história, mas estava claro que ele não tinha
intenção de compartilhá-la. E que estava ficando sem paciência
para este péssimo jogo de sorte. Mais cartas na mesa. Lara venceu
novamente.
Você o provocou, ela disse a si mesma. Ele andou bebendo.
Agora é a hora de forçar a barra.
— Como é dentro da ponte? — Os olhos dela saltaram das
cartas, para a garrafa vazia, para as mãos dele, que descansavam
nos braços da cadeira. Fortes. Capazes. A sensação desses
correndo pelo seu corpo dançava pela pele de Lara, o gosto da boca
dele na dela, e ela empurrou os pensamentos para longe enquanto
suas bochechas - e outras partes do corpo - esquentavam.
Os olhos do Rei se afiaram, a névoa de conhaque desapareceu.
— Você não precisa se preocupar com o que a ponte é ou não, pois
nunca terá motivos para estar nela.
Aren se levantou. — Minha avó deseja conhecê-la, e não há
como dizer não a ela. Iremos amanhã ao amanhecer. De barco. —
Ele se inclinou, descansando as mãos nas laterais da cadeira dela,
os músculos de seus braços destacando-se em um forte alívio.
Invadindo seu espaço. Tentando intimidá-la da maneira que seu
maldito Reino intimidava qualquer outro.
— Deixe-me esclarecer tudo, Lara. Ithicana não manteve a ponte
revelando seus segredos com uma garrafa de conhaque; portanto,
se essa for sua intenção, você terá que ser mais criativa. Melhor
ainda, salve-nos de todo o problema e esqueça que ela existe.
Lara recostou-se na cadeira, sem quebrar o contato visual. Com
as duas mãos, ela levantou a saia do vestido, cada vez mais alto,
até que suas coxas fossem reveladas, vendo a intensidade do olhar
dele mudar para um alvo diferente. Erguendo uma perna,
pressionou um pé nu contra o peito dele, observando os olhos dele
correrem do joelho até a coxa até as roupas de baixo de seda que
ela usava por baixo.
— Que tal você pegar sua ponte — ela disse docemente — e
enfiar na sua bunda. — Os olhos dele se arregalaram quando ela
endireitou a perna, empurrando-o para fora de seu espaço. Pegando
o livro, puxou a saia de volta ao lugar. — Vejo você amanhã bem
cedo. Boa noite, Vossa Excelência.
Uma leve risada encheu seus ouvidos, mas ela se recusou a
olhar para cima quando ele disse — Boa noite, Princesa — e saiu
da sala.
13
AREN

V
tornozelos de Aren, ronronando enquanto parecia, aparentemente,
não inclinado a desistir em sua busca de atenção, apesar do fato de
que Aren o estava ignorando por pelo menos dez minutos.
A folha de papel quase em branco sobre a mesa o provocou, as
bordas douradas brilhando à luz da lamparina. Ele chegou a
escrever a saudação formal ao Rei Silas Veliant de Maridrina, mas
nem uma palavra mais. Sua intenção era atender ao pedido de Lara
e corresponder ao pai dela, para garantir ao homem o bem-estar de
sua filha. Mas agora, com a caneta na mão a ponto de pingar nos
caros artigos de papelaria, Aren se viu sem saber o que dizer.
Principalmente porque Lara permanecia um enigma. Ele tentou
aprender mais sobre a natureza dela durante aquele terrível jogo de
cartas e, depois de ouvir como ela havia sido tirada da mãe, ficou
muito claro que se era uma espiã, não era por amor ao pai. Mas isso
não significava que ela era inocente. A lealdade, em certa medida,
podia ser adquirida, e Silas tinha os meios.
Irritado com a natureza circular de seus pensamentos, Aren
jogou a caneta de lado. Pegando a caixa de papelaria, ele puxou o
lado falso para revelar a gaveta estreita projetada para esconder
documentos de olhares indiscretos e empurrou a carta para o pai de
Lara lá dentro. Ele completaria quando tivesse mais certeza de que
o bem-estar de Lara era algo que ele poderia garantir.
Dando um tapinha na cabeça do gato, ela levou o animal até o
outro lado da porta e caminhou pelo corredor. Eli estava polindo
talheres, mas ele olhou para a aproximação de Aren. — Indo para o
acampamento, Vossa Excelência?
Era dolorosamente tentador fugir para o acampamento, onde ele
podia sentar-se ao redor do fogo com seus soldados, beber e
apostar satisfatoriamente, mas isso levantava questões sobre o
porquê de não passar as noites com sua nova esposa. — Apenas
um passeio até as falésias.
— Vou deixar uma lamparina acesa para você, Vossa
Excelência. — O garoto voltou ao trabalho.
Abandonando uma lamparina, Aren andou pelo caminho estreito
até um local onde rochas nuas pairavam sobre o mar. Ondas
bateram contra a rocha negra dos penhascos abaixo, a água
correndo enquanto recuava apenas para surgir novamente, batendo
contra Midwatch como um implacável e impenetrável martelo. Feroz,
mas de alguma forma pacífica, o som embalando os sentidos de
Aren enquanto encarava a escuridão sobre o mar.
Gemendo, ele relaxou, a água que acumulava nas rochas
umedecia suas roupas enquanto olhava a noite, o céu uma colcha
de retalhos de nuvens e estrelas, luz em nenhuma direção para
distrair o brilho. Seus cidadãos sabiam mais que isso,
especialmente na meia-estação. O momento do ano em que as
tempestades deixam de proteger Ithicana, e seu Reino é forçado a
confiar em aço, inteligência e sigilo.
Isso mudaria alguma vez? Poderia mudar?
Com o papel amassado contra seu peito, as páginas dobradas
dentro do bolso da sua túnica, o mesmo papel que o levou a
procurar Lara hoje à noite. Eram ordens para matar.
Duas meninas de quinze anos haviam roubado um barco em
uma aparente tentativa de escapar de Ithicana. Elas haviam
planejado ir para o norte, até Harendell, de acordo com as
informações recolhidas de seus amigos.
A ordem de matar era para elas. A acusação: traição.
Era proibido aos civis deixarem Ithicana. Somente espiões
altamente treinados tinham o direito de sair, e sempre na ordem de
que, se fossem capturados, eles deveriam morrer com sua própria
espada antes de revelar os segredos de Ithicana. Somente os
soldados em seu exército sabiam todos os caminhos para entrar e
sair da ponte, mas era impossível manter as defesas da ilha dos
civis que viviam neles, e todos sabiam sobre Eranahl. Foi por isso
que qualquer civil pego tentando sair era açoitado. E quem
conseguisse a tentativa era caçado.
E os caçadores de Ithicana sempre pegavam sua caça.
Quinze. Aren cerrou os dentes, sentindo a bile subir por sua
garganta. O relatório não explicava por que as meninas haviam
fugido. Não precisava. Aos quinze, elas foram designadas para sua
primeira guarnição. Seria a primeira guerra das marés, e elas não
teriam escolha a não ser lutar. E, em vez de lutarem, arriscaram
suas vidas para fugir. Para encontrar outro caminho. Outra vida.
E ele deveria ordenar a execução delas pelo crime.
Seus pais raramente brigavam, mas essa lei provocou gritos e
portas batidas, sua mãe passeava pelos aposentos com tanto fervor
que ele e Ahnna ouviam com medo de um ataque dela, de seu
coração parar, para nunca mais bater novamente. Fechando os
olhos, ele ouviu o eco da voz dela, gritando para o pai: — Estamos
numa jaula, uma prisão de nossa própria autoria. Por que você não
vê isso?
— É o que mantém nosso pessoal seguro — gritava seu pai. —
Abaixe a guarda e Ithicana está acabada. Eles vão nos separar em
sua luta para possuir a ponte.
— Você não sabe disso. Pode ser diferente, se ao menos
tentássemos.
— Os invasores que vêm todos os anos dizem o contrário, Delia.
É assim que mantemos Ithicana viva.
E sempre, ela sussurrava: — Estar vivo não é viver. Eles
merecem mais.
Aren balançou a cabeça para afastar a memória. Exceto que ela
apenas retrocedeu, contente em assombrá-lo.
Permitir que os civis viessem e partissem de Ithicana
praticamente assegurava que todos os segredos do Reino
vazassem. Aren sabia disso. Mas se Ithicana tivesse fortes alianças
com Harendell e Maridrina, as consequências desses vazamentos
seriam muito mais palatáveis. Com as frotas desses dois Reinos
apoiando a defesa da ponte, isso daria a alguns de seu povo a
chance de seguir outros caminhos além da espada. Sair e estudar.
Trazer esse conhecimento para casa e compartilhá-lo. Isso
significaria que ele não teria mais que assinar ordens de matar
crianças.
Mas as gerações mais antigas foram inflexíveis contra essa
mudança. Uma vida inteira de guerra os transformou contra
forasteiros, os encheu de ódio. E os encheu de medo. Ele precisava
de Lara para ajudá-lo a mudar isso, para fazê-los ver os
Maridrinianos como amigos, não como inimigos. Convencê-los a
lutar por um futuro melhor, independentemente dos riscos.
Porque como estavam as coisas... Não poderia continuar para
sempre.
Puxando os papéis do bolso, Aren os despedaçou, permitindo
que a brisa os levasse ao mar.
Então houve uma comoção nos arbustos, e Aren estava de pé,
com a lâmina na mão a tempo de ver Eli irromper. O servo derrapou
até parar, sem fôlego e disse — É a Rainha, Vossa Excelência. Ela
precisa da sua ajuda.
14
LARA

M , - .P
cobria seus olhos. Seu nariz. Sua boca.
A água jorrava, uma torrente sem fim.
Apenas para cessar.
— Por que você foi enviada para Ithicana? — uma voz sussurrou
em seu ouvido. — Qual é o seu propósito? O que você quer?
— Ser noiva. Para ser Rainha — ela engasgou, lutando contra
as restrições. — Eu quero paz.
— Mentirosa. — A voz enviou medo através dela. — Você é uma
espiã.
— Não.
— Admita!
— Não há nada a admitir.
— Mentirosa!
A água vazou e ela se afogou novamente. Incapaz de expressar
a verdade para se salvar. Incapaz de respirar.
Havia areia sob os dedos, fria e seca. Ela não conseguia se
mexer, os pulsos e tornozelos amarrados à cintura. Amarrada como
um porco.
Escuridão.
Ela rolou, colidindo com uma parede, mais areia caindo sobre a
cabeça, arrastando os cabelos. Para trás, o mesmo.
Não há saída.
Só para cima.
Medo a paralisando, ela levantou a cabeça e viu figuras sem
rosto a encarando.
Tão longe. Com os pulsos amarrados com tanta força que a pele
se soltou, não havia como subir.
— Por que você veio para Ithicana? Qual é o seu propósito?
Você é uma espiã de seu pai?
— Para ser Rainha. — Sua garganta ardia, tão seca. Com tanta
sede. — Ser uma noiva da paz. Eu não sou espiã.
— Mentirosa.
— Eu não sou.
Areia a atingiu no rosto. Não apenas grãos minúsculos, mas
pedaços de rocha que machucaram e cortaram. Forçando-a a se
encolher. Para rastejar. Onze pás atiraram areia nela por todos os
lados. Atingindo-a. Machucando-a. Enchendo o buraco.
Enterrando-a viva.
— Diga-nos a verdade!
— Eu estou! — A areia estava no seu queixo.
— Mentirosa!
Ela não conseguia respirar.
Ela estava sentada em uma cadeira, os pulsos amarrados. Suas
unhas puxando e arranharam as cordas, o sangue escorrendo pelas
palmas das mãos. Tecido cobriu os olhos, mas podia sentir o calor
das chamas.
— Eles farão pior com você em Ithicana, Lara — a voz de Serin
soou em seu ouvido. — Muito pior. — Ele sussurrou os horrores, e
ela gritou, precisando fugir. Precisando escapar.
— Piores coisas serão feitas para suas irmãs — ele cantou,
tirando o capuz.
Havia fogo em seus olhos. Queimando. Queimando. Queimando.
— Você não vai tocar nas minhas irmãs — ela gritou. — Você
não pode tê-las. Você não as machucará.
Exceto que era Marylyn segurando os carvões aos seus pés, não
Serin. Sarhina, com lágrimas escorrendo pelo rosto, quem apertou o
nó.
E foi Lara quem estava queimando. Seu cabelo. Suas roupas.
Sua carne.
Ela não conseguia respirar.
Uma mão estava segurando-a, sacudindo-a. — Lara? Lara!
Lara levantou a mão, segurando o punho da faca, lembrando-se
a tempo de parar antes de esfaquear Aren na cara.
— Você estava tendo um pesadelo. Eli me buscou quando
ouviram você gritando.
Um pesadelo. Lara respirou fundo, cavando fundo em seu corpo
por alguma aparência de calma. Só então viu a porta pendurada
torta em sua moldura, a trava em pedaços espalhados pelo chão.
Aren usava as mesmas roupas que anteriormente, com os cabelos
úmidos e grudados na testa.
Desviando os olhos, Lara pegou um copo de água, com a boca
amarga pelo excesso de conhaque. — Não me lembro de nada. —
Uma mentira, dado o cheiro de cabelo queimado que ainda enchia
seu nariz. Pesadelos que não eram sonhos, mas lembranças de seu
treinamento. Ela disse algo incriminador? Ele percebeu que estava
pegando a faca debaixo do travesseiro?
Aren assentiu, mas sua testa franziu, sugerindo que ele não
acreditava nela. Os lençóis encharcados de suor descolando de sua
pele quando ela se inclinou para fora da cama para encher seu copo
com a jarra de água, sabendo que a camisola que usava mal cobria
seus seios e esperando que o brilho da pele o distraísse.
— Quem fez isso com você?
Lara congelou, certa por um momento que tinha gritado algo
condenador enquanto estava presa em seu estado de fuga. Seus
olhos saltaram para a porta aberta, calculando suas chances de
escapar, mas então os dedos do homem roçaram a pele de suas
costas, seguindo um padrão familiar. Cicatrizes, nas quais sua irmã
Sarhina esfregava óleo todas as noites durante anos, até que
desapareceram em finas linhas brancas.
— Quem fez isto? — O calor em sua voz fez sua pele formigar.
Serin ordenou que fizessem isso depois que ela escapou do
complexo e entrou no deserto para assistir a uma das caravanas
que passava, incontáveis camelos e homens carregados de
mercadorias para vender em Vencia. Por seus problemas, ela
recebeu uma dúzia de chicotadas, Serin gritando o tempo todo que
colocou tudo em risco. Lara nunca tinha entendido completamente
por que ele estava tão bravo. Não havia chance da caravana avistá-
la, e tudo o que ela queria era ver quais mercadorias carregavam.
— Meus professores foram rigorosos — ela murmurou. — Mas
foi há muito tempo. Eu quase esqueço que elas estão lá.
Em vez de apaziguá-lo, Aren apenas parecia ficar mais irritado.
— Quem trata uma criança dessa maneira?
Lara abriu a boca, depois a fechou, nenhuma resposta boa vindo
à mente. Todas as irmãs sofreram espancamentos por infrações,
embora nenhuma com a mesma frequência que ela. — Eu era uma
criança desobediente.
— E eles tentaram bater até arrancar esse traço? — Sua voz
estava como gelo.
Puxando o lençol para cobrir seu corpo, Lara não respondeu.
Não confiava em si mesma.
— Aconteça o que acontecer, ninguém levantará a mão a você.
Você tem minha palavra. — Levantando-se, ele pegou a lamparina.
— O amanhecer está a apenas algumas horas de distância. Tente
dormir um pouco. — Ele saiu da sala, fechando a porta quebrada
atrás dele.
Lara estava deitada na cama, ouvindo o tamborilar suave da
chuva contra a janela, ainda sentindo o traço dos dedos de Aren em
sua pele nua. Ainda ouvindo a obstinação em sua voz de que ela
nunca se machucaria em Ithicana, uma promessa tão inteiramente
em desacordo com tudo o que sabia sobre ele e seu Reino. A
palavra dele significa merda, ela lembrou a si mesma. Ele deu sua
palavra para permitir o livre comércio de Maridrina, e toda a terra
natal dela não ganhou nada além de carne podre.
Seu objetivo era a ponte. Encontrar um caminho para superar as
defesas de Ithicana e entrar na estrutura cobiçada por todos. E hoje,
Aren a estava levando em uma excursão ao seu Reino. Com sorte,
ela veria como eles viajavam, onde e como lançavam seus barcos,
onde seus civis estavam localizados. Era o primeiro passo para uma
invasão bem-sucedida. O primeiro passo em direção a Maridrina
retornando à prosperidade.
Concentre-se nisso, ela disse a si mesma. Concentre-se no que
isso significa para o seu povo.
Mas nenhum número de respirações profundas aliviou o pulso
rápido em sua garganta. Levantando-se da cama, ela foi até a porta
da antecâmara. Pulando, ela agarrou o batente, as unhas cravando
na madeira enquanto se levantava e abaixava, os músculos nas
costas e nos braços flexionando e queimando enquanto repetia o
movimento trinta vezes. Quarenta. Cinquenta. Imaginando suas
irmãs fazendo flexões ao lado dela, incentivando uma a outra
enquanto lutavam pela vitória.
Caindo no chão, Lara deitou-se no chão e passou a flexões,
seus músculos do abdômen queimando feito bestas enquanto fazia
cem. Duzentas. Trezentas. O deserto vermelho era mais quente que
Ithicana, mas a umidade aqui a matava. O suor escorria por sua
pele enquanto ela passava de exercício para exercício, a dor
fazendo mais do que qualquer meditação para afastar pensamentos
indesejados.
Quando Clara bateu na porta com uma bandeja cheia de comida
e uma xícara de café fumegante, Lara estava faminta e incomodada
se a criada notasse seu rosto vermelho e suas roupas suadas.
Tomando café, ela enfiou a comida mecanicamente na garganta,
depois tomou banho antes de vestir as mesmas roupas que usara
durante sua última caminhada pela floresta, incluindo as pesadas
botas de couro. Ela amarrou as facas na cintura e moldou os
cabelos em uma trança apertada que pendia no centro das costas.
A luz estava começando a brilhar nas pesadas cortinas da janela
quando saiu do quarto.
Ela encontrou Eli varrendo o corredor. — Ele está esperando por
você na frente, minha senhora.
Aren estava realmente esperando, e Lara levou um momento
para observá-lo através da janela de vidro antes de tornar sua
presença conhecida. Ele se sentou nos degraus, os cotovelos
apoiados na pedra atrás dele, os músculos dos braços nus sob as
mangas curtas da túnica, as braçadeiras dobradas nos antebraços.
O sol nascente, pela primeira vez não obscurecido pelas nuvens,
cintilou no arsenal de armas amarradas à si, e Lara fez uma careta
para o seu único par de facas, desejando que estivesse armada da
mesma forma.
Empurrando a porta, Lara respirou fundo o ar úmido, provando o
sal do mar na brisa suave e cheirando a terra úmida. Uma névoa
prateada flutuava pelo dossel da selva, o ar cheio de zumbidos de
insetos, o canto de pássaros e os gritos de outras criaturas para as
quais ela não tinha nome.
Aren levantou-se sem reconhecer ela ou seu pesadelo, e ela
seguiu alguns passos atrás para poder observá-lo sem escrutínio
enquanto desciam a trilha estreita e enlameada. Ele tinha uma graça
predatória sobre si: um caçador, seus olhos percorrendo o chão, o
dossel, o céu, o arco segurando frouxamente na mão esquerda, em
vez de pendurar por cima de um ombro, como os soldados de seu
pai os carregavam. Ele não seria pego de surpresa, e ela de braços
cruzados se perguntou quão bom lutador ele era. Se, se tudo der
certo, ela será capaz de superá-lo.
— Você sempre parece querer matar alguém — observou ele. —
Possivelmente eu.
Chutando uma pedra solta, Lara fez uma careta para o caminho
lamacento. — Eu não tinha percebido que a Rainha viúva ainda
vivia. — De fato, ela tinha a impressão de que todos os que
restavam da linhagem real eram o Rei e sua irmã.
— Ela não está viva. Nana é a mãe do meu pai. — Aren virou a
cabeça quando algo farfalhou nos arbustos. — Minha mãe, Delia
Kertell, nasceu na linhagem real. A família de meu pai era de
nascimento comum, mas ele subiu nos escalões militares e foi
escolhido para se juntar à guarda de honra dela. Minha mãe gostava
dele e decidiu se casar com ele. Minha avó... ela é uma curandeira,
de algum renome. Embora outros possam usar palavras diferentes
para descrevê-la, minha irmã inclusa.
— E por que ela quer me ver exatamente?
— Ela já viu você — disse ele.
Lara estreitou os olhos.
— Quando você veio pela primeira vez e ainda estava dormindo.
Ela verificou se sua saúde estava boa. O que ela quer, é conhecer
você. Quanto ao porquê... Ela é intrometida e todos, inclusive eu,
são aterrorizados demais para dizer não a ela.
A ideia de uma estranha inspecionando seu corpo enquanto ela
estava inconsciente parecia profundamente invasiva. A pele de Lara
se arrepiou, mas cobriu a reação com um encolher de ombros. —
Verificando se meu pai havia enviado uma garota cheia de varíola
para enviá-lo ao seu túmulo?
Aren tropeçou e largou o arco, xingando quando se abaixou para
recuperá-lo da lama.
— Não é o método mais rápido de assassinato, mas eficaz, no
entanto. — Ela acrescentou. — E alguns podem dizer que a
repugnância dos últimos anos, horas, dias da vítima valem a pena
esperar.
Os olhos do Rei de Ithicana se arregalaram, mas ele se
recuperou rapidamente. — Se é assim que você pretende me
convencer, vai querer se mudar rapidamente. As pústulas e
erupções cutâneas reduzirão seu apelo, receio.
— Hmm. — Lara cantarolou, em seguida, bateu a língua contra
os dentes em fingida decepção. — Eu esperaria até que a demência
assumisse o controle, para me poupar da memória. Mas é preciso
fazer o que é necessário.
Ele riu, o som rico e cheio, e Lara se viu sorrindo. Eles fizeram
uma curva e entraram em uma clareira dominada por um grande
edifício, um grupo de soldados Ithicanos perambulando à luz do sol.
— Quartel de Midwatch — disse Aren a título de explicação. —
Esses doze são os meus - nossos - guardas de honra.
A estrutura de pedra era grande o suficiente para abrigar
centenas de homens. — Quantos soldados estão aqui?
— O suficiente. — Ele caminhou pela clareira em direção aos
que os esperavam.
— Majestades — disse um deles, curvando-se profundamente,
embora houvesse diversão em seu tom, como se tais honoríficos
raramente fossem usados. Alto e cheio músculos, ele tinha idade
suficiente para ser o pai de Aren, seus cabelos castanhos cortados
rasgados de cinza. Lara olhou fixamente em seus olhos castanhos
escuros, algo em sua voz familiar, e depois de um batimento
cardíaco, ela reconheceu como a do homem que havia conduzido a
parte Ithicana de seu casamento.
— Este é Jor — disse Aren. — Ele é o capitão da guarda.
— Que bom vê-lo novamente — respondeu ela. — Todos os
soldados Ithicanos têm empregos paralelos ou você é uma
exceção?
O soldado piscou uma vez, então um sorriso cresceu em seu
rosto, e ele deu-lhe um aceno de aprovação. — Bom ouvido,
princesa.
— Memória fraca, soldado. Já não sou mais uma princesa - você
mesmo garantiu isso. — Ela passou por todos eles, seguindo o
caminho estreito para o mar.
O homem mais velho riu. — Espero que você durma com um
olho aberto, Aren.
— E uma faca debaixo do seu travesseiro — acrescentou Lia, e
todo o grupo riu.
Aren riu junto com eles, e Lara se perguntou se sabiam que ele
ainda não havia consumado o casamento deles. Que pelas leis de
ambos os Reinos eles poderiam seguir caminhos separados.
Lançando um olhar para trás por cima do ombro, ela encontrou o
olhar de Aren sem piscar e ele rapidamente desviou o olhar, dando
um chute violento na raiz que atravessava a trilha.
Não demorou muito para chegar à pequena enseada onde eles
escondiam os barcos, que eram de vários tamanhos. Pareciam
canoas, exceto que tinham uma armação externa ligando-os a um
ou dois cascos adicionais, o que ela supunha que os equilibrassem
nas ondas. Alguns deles estavam equipados com mastros e velas,
incluindo o par no qual o grupo carregava armas e equipamentos.
Uma pitada de medo cresceu no peito de Lara. Os barcos eram
pequenos em comparação com o navio que ela pegara para a
travessia para Southwatch, e os mares além das paredes do
penhasco que protegiam a enseada pareciam subitamente mais
ásperos do que momentos atrás, os albatrozes subindo alto e
ferozmente, certos para inundar os navios frágeis.
Uma dúzia de desculpas encheu sua mente do porquê ela não
deveria, não podia, deixar a costa. Mas era por isso que estava em
Ithicana - para encontrar uma maneira de superar suas defesas - e
Aren estava prestes a revelar as informações sem qualquer
concessão de sua parte. Ela seria uma tola por deixar passar a
oportunidade.
Aren entrou no barco, então estendeu a mão para ela, mantendo
facilmente o equilíbrio quando o navio subiu e desceu embaixo dele.
Lara se manteve firme, mordendo o interior de suas bochechas ao
sentir a análise dele. Ele abriu a boca, mas ela o venceu. — Eu não
sei nadar, se é isso que você está se perguntando. — Ela odiava
admitir a fraqueza e, pelo leve sorriso em seu rosto, ele sabia disso.
— Não sei se já conheci alguém que não sabia nadar.
Ela cruzou os braços. — Dificilmente é uma habilidade
necessária no meio do deserto vermelho.
Todos os soldados cuidadosamente se ocuparam em várias
tarefas, cada um deles ouvindo claramente.
— Bem. — Aren virou-se para apertar os olhos para o mar. —
Você viu o que espreita nestas águas. Afogar-se pode ser o
caminho mais fácil.
— Que reconfortante. — Ela ignorou a mão dele e entrou no
barco antes que pudesse perder a coragem. Ele balançou sob o
peso adicionado e Lara caiu de joelhos, agarrando-se à borda.
Rindo baixinho, Aren se ajoelhou ao lado dela, segurando um
pedaço de tecido preto. — Desculpe por isso, mas alguns segredos
devem ser mantidos. — Sem esperar pelo consentimento, ele a
vendou.
Merda. Ela deveria saber que não seria tão fácil. Mas a visão
não era a única maneira de descobrir informações, então manteve a
boca fechada.
— Vamos — ele ordenou, e o barco se afastou da praia.
Por um momento, Lara pensou que não seria tão ruim, e então
eles devem ter escapado da enseada, porque o barco começou a
afundar e mergulhar como um cavalo selvagem. O coração de Lara
trovejou em seu peito, e ela se agarrou ao fundo, não se importando
com o que Aren ou o resto dos Ithicanos pensavam dela quando a
água espirrou em suas roupas, molhando-as. Se eles tombassem,
ou se um deles a jogasse, nenhum treinamento a ajudaria. Ela
estaria morta.
E depois comida.
No caminho de seu terror, veio uma onda de náusea, a boca
cheia de sálvia azeda, não importava quantas vezes ela engolisse.
Você consegue fazer isso. Tenha controle de si mesma. Ela cerrou
os dentes, lutando contra o conteúdo crescente de seu estômago.
Não vomite, ela ordenou a si mesma. Você não vai vomitar.
— Ela vai vomitar — disse Jor.
Como se fosse uma sugestão, o café da manhã de Lara subiu
rápido e violentamente, e se inclinou cegamente em direção à beira
direita, enquanto o barco tombava bruscamente na mesma direção.
Seu aperto no barco escorregou quando ela vomitou, e caiu de cara
na água. O mar frio se fechou sobre sua cabeça e ela se debateu,
imaginando a água enchendo seus pulmões, nadadeiras circulando
ao seu redor. Dentes se levantando para empurrá-la para baixo.
Ela já esteve aqui antes. Afogada. Sufocada. Estrangulada.
Um terror antigo com uma nova cara.
Ela não conseguia respirar.
As mãos agarraram sua túnica, puxando-a de volta para o barco.
Ela bateu em algo sólido e quente, então alguém abriu a borda do
tecido que cobria seu rosto, e se viu olhando para as profundezas
dos olhos castanhos de Aren.
— Eu peguei você. — Seu aperto nela era tão feroz que deveria
doer, mas era quase tão reconfortante quanto estar em terra firme.
Atrás dele estava o píer da ponte com a abertura em sua base, tão
tentadoramente perto que seu medo diminuiu. Mas Aren puxou a
venda de volta, mergulhando-a de volta na escuridão.
A perda de sua visão enviou uma onda de tontura através dela.
O suor misturado com a água escorria pelo seu rosto, sua
respiração saindo em pequenos suspiros frenéticos.
Ela respirou fundo, lutando pelo vazio calmo que foi treinada a
buscar se algum dia fosse torturada quando um dos guardas disse.
— Poderíamos pegar a ponte. Isso parece cruel.
— Não — Jor retrucou. — Não vai acontecer.
Mas Lara ainda sentia Aren. Ele estava considerando a ideia. O
que ele só estaria fazendo se também acreditasse que a aterrorizar
desnecessariamente era crueldade. Então ela deixou seu medo
tomar conta.
Uma vez que fez isso, não havia como voltar atrás. O terror dela
era um animal selvagem, algo que a consumia. Seu peito apertou,
seus pulmões paralisaram e estrelas dançaram em sua visão.
As ondas lançavam o barco para cima e para baixo, os agulhões
lançados no mar raspando ao longo do casco forrado de metal. Lara
agarrou-se a Aren, a força do braço dele a segurando contra o peito
e as unhas cravando nos ombros dele, as únicas coisas que a
impediam de cair na loucura.
Vagamente, ela ouviu o grupo discutindo, mas suas palavras
eram um zumbido monótono, tão obscuro quanto uma língua
estrangeira. Mas o comando de Aren: — Apenas faça! — cortou o
névoa de confusão.
Os soldados ao seu redor resmungaram e xingaram. As chapas
de aço no casco se chocaram contra a rocha e, um segundo depois,
cessaram as resistências e ondas do mar. Eles estavam dentro do
píer da ponte, mas o pânico dela não diminuiu, pois ainda havia
água por toda parte. Ela ainda poderia se afogar.
Um estalo de uma tocha. O cheiro de fumaça. O barco se mexia
quando os soldados desembarcaram. Lara lutou para tomar nota
desses detalhes, mas seu foco estava na água ao seu redor, no que
estava escondido nela.
— Há uma escada. — O queixo de Aren, áspero com barba para
fazer, roçou sua testa enquanto se mexia. — Você pode alcançar e
agarrar? Você consegue escalar?
Lara não conseguia se mexer. Parecia ter tiras de aço em volta
de seu coração, cada expiração era dolorosa. Houve uma batida
fraca e repetitiva no fundo do barco, e levou muito tempo para
perceber que era porque ela estava tremendo e a bota batendo no
casco. Mas não conseguia parar. Não conseguia fazer nada além de
agarrar-se ao pescoço de Aren, os joelhos dela apertando as coxas
dele como um torno.
— Eu prometo que não vou deixar você cair. — A respiração
dele estava quente contra a orelha dela e, muito lentamente, ela
dominou o pânico o suficiente para soltar o pescoço dele com uma
mão, estendendo a mão para encontrar o metal frio da escada. Mas
foi preciso toda a bravura que possuía para soltá-lo, se erguer,
alcançando cegamente os próximos degraus.
Aren estava com ela, segurando sua cintura com um braço, o
outro apoiado no aço. Ele a levantou, mantendo-a firme até que
seus pés encontraram a escada.
— Quão longe? — ela sussurrou.
— Mais sessenta degraus, de onde estão suas mãos agora. Eu
estarei bem embaixo de você. Você não vai cair.
A respiração de Lara era ensurdecedora em seus ouvidos
quando ela subiu, toque por toque, seu corpo todo tremendo. Ela
nunca se sentiu assim antes. Nunca teve tanto medo - nem mesmo
quando encarou a morte nos olhos quando seu pai veio tirar Marylyn
do complexo. Ela continuou subindo e subindo, até que alguém a
agarrou pelas axilas, puxando-a de lado e a colocou em pedra
sólida.
— Vamos manter a venda só mais um pouco, Majestade — disse
Jor, mas Lara mal se importava. Havia uma superfície sólida sob
suas mãos, e o chão não estava se movendo. Ela podia respirar.
Pedra raspou contra pedra, botas bateram suavemente, depois
mãos fortes agarraram seus ombros. Sua venda foi retirada e Lara
se viu olhando para o rosto preocupado do Rei de Ithicana. Ao redor
deles estavam os soldados, três deles segurando tochas que
piscavam em amarelo, laranja e vermelho. Mas além deles,
bocejava uma escuridão mais profunda que uma noite sem lua. Uma
escuridão tão completa, era como se o próprio sol tivesse deixado
de existir.
Eles estavam dentro da ponte.
15
LARA

—V ,L ?
Levou alguns segundos para a pergunta de Aren se registrar, a
atenção de Lara toda para a pedra cinza abaixo dela, que estava
manchada de escuro e com terra e líquen. A ponte não era feita de
blocos, como pensara, mas um material liso e perfeito. Como
argamassa... mas mais forte. Ela nunca tinha visto algo assim. O ar
estava mofado e amadeirado com o cheiro de ferrugem, umidade e
estrume. A voz de Aren ecoou nas paredes, perguntando por seu
bem-estar repetidamente antes que o som desaparecesse no
corredor sem fim de preto.
— Lara?
— Estou bem. — E ela estava, no sentido de que seu pânico se
acalmava com a solidez da ponte sob seus pés, a excitação
borbulhando lentamente tomando seu lugar. Ela conseguiu.
Encontrou um caminho para a ponte.
Todo mundo estava olhando para ela, trocando armas e
suprimentos com óbvio desconforto. Aren cedeu ao seu medo e, ao
fazê-lo, revelou um dos segredos de Ithicana. Jor, em particular, não
parecia satisfeito.
O rosto de Aren estava ilegível. — Precisamos nos mexer. Não
quero perder a maré em nosso retorno. — Ele franziu a testa. —
Não enquanto eles estão criando gado.
Gado. Comida. Segundo a carta de Serin, o melhor era encontrar
o caminho para os porões dos navios valcottanos, não os
estômagos Maridrinianos.
Jor levantou a venda. — Melhor colocarmos isso de volta.
Os passos do grupo reverberam enquanto eles andavam, a mão
de Lara apoiada no braço de Aren para orientação, o vento e o mar
apenas levemente audíveis. A ponte se inclinava e se curvava,
subindo em declives suaves e mergulhando em declínios enquanto
serpenteava pelas ilhas de Ithicana. Foi uma viagem de dez dias de
caminhada entre as ilhas Northwatch e Southwatch, e ela mal podia
imaginar como seria ficar dentro da ponte por tanto tempo. Sem
noção do dia ou da noite. Não existia outra maneira de sair senão
correr em direção às bocas desse grande animal.
Embora haviam outras saídas; ela sabia disso com certeza
agora. Mas quantas? Como elas eram acessadas a partir do interior
da ponte? As aberturas eram apenas para os cais, ou havia outras?
Como os Ithicanos sabiam onde estavam?
Estrangeiros de todos os Reinos, comerciantes e viajantes,
atravessavam a ponte regularmente. Eles sempre estavam sob
escolta Ithicana, mas ela sabia que não estavam com os olhos
vendados. Serin havia dito a ela e suas irmãs que as únicas
marcações na ponte eram as que estavam estampadas no chão,
indicando a distância entre o começo e o fim. Até onde ele sabia,
não havia outros sinais ou símbolos, e os Ithicanos eram
aparentemente exigentes em remover quaisquer marcas que
alguém tentasse colocar. Aqueles que foram pegos foram proibidos
para sempre de entrar na ponte, não importando quanto dinheiro
oferecessem pagar.
As respostas não seriam facilmente obtidas. Ela precisava
ganhar a confiança de Aren e, para fazer isso, precisava que ele
pensasse que a estava conquistando.
— Sinto muito pela minha... perda de compostura — ela
murmurou, esperando que os outros não ouvissem, embora a
acústica tornasse impossível que eles não ouvissem. — O mar é...
Eu não estou...
Ela se esforçou para articular uma explicação para seu medo,
estabelecendo-se com, — Obrigada. Por não me deixar afogar. E
por não zombar de mim sem piedade.
Com a venda nos olhos, Lara não tinha como julgar sua reação,
e o silêncio se estendeu antes que ele finalmente respondesse. — O
mar é perigoso. Somente a guerra leva mais vidas Ithicanas. Mas é
inevitável em nosso mundo, por isso devemos dominar nosso medo.
— Você parece não temer nem um pouco.
— Você está errada. — Ele ficou em silêncio por uma dúzia de
passos. — Você me perguntou como meus pais morreram.
Lara mordeu o lábio, lembrando: Eles se afogaram.
— Minha mãe estava doente há anos com um coração ruim. Ela
foi tomada por um ataque uma noite. De um que ela não se
recuperaria. Embora houvesse uma tempestade, meu pai insistiu em
levá-la para minha avó com a pequena esperança de que ela
pudesse ajudar. — A voz de Aren tremeu e ele tossiu uma vez. —
Ninguém sabia ao certo, mas me disseram que minha mãe nem
estava respirando quando a carregou no barco e zarpou. A
tempestade entrou rapidamente. Nenhum deles foi visto novamente.
— Por que ele fez isso? — Ela estava fascinada e horrorizada.
Este não era apenas um casal, mas o Rei e a Rainha de um dos
Reinos mais poderosos do mundo conhecido. — Se ela já tinha ido,
por que arriscar? Ou, no mínimo, por que ele não mandou alguém a
levar?
— Momento de estupidez, suponho.
— Aren. — A voz de Jor estava repreendendo de onde andava
atrás deles. — Diga direito ou não conte nada. Você deve isso a
eles.
Lara ponderou o guarda mais velho, curiosa sobre o
relacionamento deles. O pai dela teria a cabeça de qualquer um que
ousasse falar com ele dessa maneira. No entanto, Jor parecia falar
sem medo; e, de fato, ela não sentiu nada além de uma leve
irritação do Rei andando à sua esquerda.
Aren respirou fundo e disse: — Meu pai não a enviou com outra
pessoa, porque não era o tipo de homem que colocava seu bem-
estar à frente de outro. Por que ele arriscou tudo… Suponho que foi
porque amava minha mãe o suficiente para que a esperança de
salvá-la valesse a própria vida.
Arriscar tudo pela pequena chance de salvar aqueles que você
amava... Lara conhecia essa compulsão porque era assim que se
sentia em relação às irmãs. E isso ainda podia custar a própria vida.
— Romance malfadado à parte, meu argumento é que sei como
é perder algo para o mar. Odeio isso. Temer. — Ele chutou um
pouco de pedra, fazendo-a chocalhar à frente deles. — Ele não
conhece nenhum mestre, certamente não eu.
Ele não disse mais nada sobre o assunto, ou sobre qualquer
outra coisa.
Não havia senso de tempo na ponte, e parecia que eles estavam
caminhando por toda a eternidade, quando Aren finalmente parou.
Cega, Lara ficou totalmente quieta, confiando em seus outros
sentidos enquanto os soldados se moviam. As botas roçavam contra
a pedra, os ecos dificultando que soubesse de que direção eles
estavam trabalhando, mas então uma brisa roçou sua mão
esquerda ao mesmo tempo em que atingiu sua bochecha, o ar
fresco enchendo suas narinas. A abertura estava na parede, não no
chão.
— As escadas são íngremes demais para navegar às cegas. —
Aren a jogou por cima do ombro, a mão quente contra a coxa dela
enquanto equilibrava seu peso. O instinto a fez segurar o homem
pela cintura, os dedos cravando nos músculos duros de seu
estômago enquanto ele se abaixava. Somente no último segundo
ela pensou em estender a mão, passando pelo comprimento de uma
placa sólida que devia ser a porta. Uma porta que, a menos que ela
errasse o alvo, se misturava perfeitamente na parede da ponte.
Os sons da selva cresceram quando eles desceram uma escada
curva, depois a suave luz do sol filtrou através de sua venda.
Aren a colocou de volta em pé sem aviso prévio. Lara balançou
quando o sangue correu de sua cabeça, a mão dele nas costas
dela, guiando-a para frente antes que pudesse se orientar.
— Bom o suficiente — anunciou Jor de algum lugar à frente, e a
venda foi arrancada de seus olhos. Lara piscou, olhando em volta,
mas havia apenas selva, o dossel bloqueando até a ponte.
— Não é longe — disse Aren, e Lara silenciosamente seguiu
atrás dele, tomando cuidado para manter o caminho estreito. Os
guardas os cercaram, armas seguradas frouxamente em suas
mãos, seus olhos vigilantes. Ao contrário do pai, que estava
constantemente cercado por seu grupo de soldados, era a primeira
vez desde o casamento que ela via Aren ser tratado como um Rei. A
primeira vez que os viu protegê-lo tão agressivamente. O que era
diferente? Essa ilha era perigosa? Ou era algo mais? Houve um
estalo nas árvores, e Jor e Lia se aproximaram dela, as mãos indo
para as armas, e Lara percebeu que não era o Rei que eles
estavam preocupados em proteger. Era ela.
Eles contornaram a beira de um penhasco com vista para o mar,
a água a dez metros abaixo batendo violentamente contra as
rochas. Lara procurou nas duas direções um lugar onde os homens
pudessem aterrissar, mas não havia nenhum. Supondo que fosse da
mesma maneira em toda a ilha, ela podia ver por que os
construtores a escolheram como um píer. Era quase impenetrável.
No entanto, dado que Aren pretendia vir de barco, devia haver um
caminho.
A casa apareceu do nada. Em um minuto, eram árvores,
trepadeiras e vegetação; no outro, uma sólida estrutura de pedra, as
janelas flanqueavam com as onipresentes persianas que todos os
edifícios de Ithicana provavelmente possuíam. A pedra foi revestida
com líquen verde e, à medida que se aproximavam, Lara
determinou que era feita do mesmo material que a ponte, assim
como as dependências à distância. Construída para suportar as
tempestades letais que atingiam Ithicana dez meses do ano.
Dando uma volta pela casa, ela viu uma figura curvada
trabalhando em um jardim cercado por pedras.
— Prepare-se — Jor murmurou.
— Finalmente digno de me agraciar com sua presença,
Majestade? — A velha não se levantou, nem se afastou de suas
plantas, mas sua voz era clara e forte.
— Só recebi seu bilhete ontem à noite, vó. Eu vim o mais rápido
que pude.
— Ha! — A mulher virou a cabeça e cuspiu, o líquido voando
sobre o muro do jardim para bater contra um tronco de árvore. —
Arrastou os calcanhares até aqui, suspeito. Isso ou o peso da sua
coroa está deixando você lento.
Aren cruzou os braços. — Eu não tenho uma coroa, que você
bem conhece.
— Foi uma metáfora, seu tolo.
Lara levou a mão à boca, tentando não rir. De alguma forma, o
movimento chamou a atenção da velha, apesar de estar de costas.
— Ou o atraso do meu neto é o resultado dele tentando tirar o
vômito do seu rosto, princesinha?
Lara piscou.
— Cheirei você a cem passos de distância, garota. Presumo que
todos esses anos nas dunas não lhe deram estômago para as
ondas?
Corando, Lara olhou para suas roupas, que ainda estavam
úmidas por cair do barco. Quando olhou para cima, a avó de Aren
estava de pé, com um sorriso divertido no rosto. — É a sua
respiração — explicou ela, e Lara lutou para não pisar no pé de
Aren quando ele cobriu a própria boca para esconder um sorriso. A
velha percebeu.
— Um pouco de enjoo não a teria matado, seu idiota. Você não
deveria ter cedido.
— Tomamos precauções.
— Da próxima vez, deixe-a vomitar. — O olhar dela voltou para
Lara. — Todos me chamam de Nana, então você pode também. —
Então ela apontou um dedo para um dos guardas. — Você arranca
e veste esse pássaro. E vocês dois — apontou o queixo para outra
dupla, — terminam de pegá-los e depois os lavem. E você. — Ela
apontou um olhar de aço para Lia. — Há uma cesta de roupa que
precisa ser lavada. Veja isso antes de ir.
Lia abriu a boca para protestar, mas Nana a venceu. — O que?
Boa demais para esfregar as anáguas das gavetas de uma velha? E
antes que diga sim, lembre-se de que eu limpei sua bunda de merda
mais vezes do que gostaria de contar quando você era bebê. Seja
grata por eu ainda poder fazer isso por mim mesma.
A guarda alta fez uma careta, mas não disse nada, apenas
pegou a cesta e desapareceu ladeira abaixo para recuperar a água.
— Presumo que Jor tenha saído para incomodar minhas alunas.
— Nana levou Lara a perceber, com um sobressalto, que o homem
os abandonara sem que ela notasse. — Ainda não foi revelado que
elas não estão interessadas em um velho lascivo como ele.
— Suas garotas podem se cuidar — respondeu Aren.
— Esse não era o meu ponto, não era? — Nana fechou o portão
do jardim e depois se arrastou na direção deles. Os cabelos eram
de prata maciça e a pele enrugada, mas os olhos eram perspicazes
e exigentes quando olhou para o neto. — Dentes!
O comando latido fez Lara pular, mas, sem hesitar, Aren se
inclinou e abriu a boca, permitindo que sua avó inspecionasse seus
dentes brancos e retos. Ela grunhiu de satisfação e depois deu um
tapinha na bochecha dele. — Bom garoto. Agora, onde está sua
irmã? Me evitando?
— Os dentes de Ahnna estão bem, avó.
— Não são os dentes dela que me preocupam. Harendell já
perguntou sobre ela?
— Não.
— Envie ela de qualquer maneira. Isso mostra boa fé.
— Não. — A palavra saiu de Aren como um rosnado, o que
surpreendeu Lara. Certamente ele não pretendia quebrar seu
contrato com o Reino do norte? Não quando ele estava disposto a
cumprir sua metade sem discussão?
— Ahnna não precisa da sua atenção, garoto. Ela pode cuidar de
si mesma.
— Isso é entre eu e ela.
Nana grunhiu e cuspiu antes de voltar sua atenção para Lara. —
Então foi isso que Silas nos enviou, não é?
— Prazer em conhecê-la. — Lara inclinou a cabeça com o
mesmo respeito que daria a uma matrona maridriniana.
— Vamos ver quanto tempo esse prazer dura. — Mais rápido do
que Lara imaginaria que uma velha pudesse se mover, Nana
estendeu a mão e agarrou-a pelos quadris, torcendo-a para um lado
e para o outro, antes de passar as mãos pelos lados de Lara, rindo
quando Lara os afastou. — Construída para cama e não para
reprodução. — Ela olhou para o neto. — O que eu tenho certeza
que você notou, mesmo que não tenha se aproveitado.
— Vó, pelo amor de Deus...
Estendendo a mão, Nana deu um peteleco no lóbulo da orelha
de Aren — Cuide da sua língua, garoto. Agora, como estava
dizendo... — ela voltou-se para Lara — você terá dificuldades, mas
dará conta. Você tem força de vontade. — Ela passou um dedo
rápido por uma velha cicatriz no braço de Lara, uma que ela ganhou
em uma luta de facas contra um guerreiro valcottiano. — E você
conheceu a dor.
Essa mulher era muito astuta. Foi perto demais. Lara retrucou:
— Eu não sou uma égua reprodutora.
— Graças a Deus por isso. Temos pouco tempo para cavalos
aqui em Ithicana. O que precisamos é de uma Rainha que produza
um herdeiro. Ao contrário de seu pai, meu neto não terá um harém
inteiro para garantir que a linhagem real continue. Só. Você.
Lara cruzou os braços, irritada, embora não tinha o direito de
estar. Não havia chance dela produzir nada. Ela recebeu um ano de
tônico contraceptivo. Não haveria surpresas pela frente.
— Venha comigo, eu lhe darei algo para a enjoo do mar. Garoto,
você vai encontrar outra coisa para mantê-lo ocupado.
Lara a seguiu para dentro. Ela esperava que o interior da casa
estivesse úmido e mofado como a ponte, mas em vez disso estava
seco e quente, os painéis de madeira polida nas paredes refletiam
as chamas na lareira. Uma parede abrigava prateleiras do chão ao
teto cheias de jarros cheios de plantas, pós, tônicos coloridos e o
que pareciam ser insetos de vários tipos. Havia também várias
longas gaiolas de vidro, e Lara estremeceu ao ver formas enroladas
se moverem dentro delas.
— Não gosta de cobras?
— Eu tenho um respeito saudável por elas. — Isso ganhou uma
gargalhada de aprovação.
Depois de vasculhar as prateleiras, Nana pegou uma raiz
retorcida que passou para Lara. — Mastigue isso antes e enquanto
estiver na água. Isso ajudará a manter as náuseas afastadas. Lara
cheirou incerta, aliviada ao descobrir que o cheiro, pelo menos, não
era desagradável.
— Mas não tenho nada para superar o medo. Esse é o seu
próprio problema para gerenciar.
— Como não sei nadar, sinto que meu medo de água é tão
saudável quanto meu respeito por cobras.
— Aprenda. — A nitidez do tom da velha transmitia uma falta de
tolerância à reclamação que lembrou Lara brevemente,
dolorosamente, do mestre Erik.
Com um empurrão, Nana abriu as cortinas que cobriam uma das
janelas, permitindo que a luz do sol entrasse dentro e depois
chamou Lara para mais perto. — Você tem os olhos do seu pai. E
do seu avô.
Lara deu de ombros. — A cor é uma pequena prova de que sou
uma verdadeira princesa de Maridrina.
— Eu não estava falando sobre a cor. — Rápida como as cobras
nas gaiolas, Nana pegou Lara pelo queixo, pressionando os dedos
dolorosamente contra sua mandíbula. — Você é uma coisinha
astuta, assim como eles. Sempre procurando uma vantagem.
Resistindo ao desejo de se afastar, Lara olhou de volta nos olhos
da mulher, que eram castanhos. Como os de Aren. Mas o que ela
viu dentro deles era muito diferente do que viu no dele. — Você fala
como se conhecesse minha família.
— Eu era espiã quando jovem. Seu avô me recrutou para o
harém dele. Ele tinha o hálito mais sujo do que qualquer homem que
já conheci, mas aprendi a prender o fôlego e a pensar em Ithicana.
Lara piscou. Essa mulher havia se infiltrado no harém como
espiã? O fato de poder fazer isso era alarmante por si só, mas
apenas as meninas mais bonitas foram trazidas para o harém do
Rei, e Nana era...
— Ha, ha! — A risada de Nana a fez pular. — Eu nem sempre
pareci a última ameixa seca na tigela, garota. Na minha época, eu
era muito bonita. — Os dedos dela se apertaram. — Então não
pense que não sei em primeira mão como você usa seu rosto bonito
para alcançar seus próprios fins. Ou nos confins do seu país.
— Estou aqui para nutrir a paz entre Ithicana e Maridrina —
respondeu Lara friamente, considerando se teria que encontrar uma
maneira de ver essa mulher abatida. Enquanto ela estava confiante
em sua capacidade de manipular Aren e aqueles próximos a ele,
Nana era outra história.
— Este Reino não foi construído por tolos. Seu pai enviou você
para causar problemas, e se você acha que não estamos
observando você, está errada.
Inquietação cintilou no peito de Lara.
— Aren se importa muito com honra e ele manterá sua palavra
para você, não importa o que isso lhe custe. — Os olhos de Nana se
estreitaram. — Mas não dou mijo por honra. O que me interessa é a
família, e se eu acho que você é uma verdadeira ameaça ao meu
neto, não pense por um instante que não vou providenciar para que
um acidente ocorra. — O sorriso da mulher era todo reto com
dentes brancos. — Ithicana é um lugar perigoso.
E eu sou uma mulher perigosa, pensou Lara antes de responder:
— Ele parece mais do que capaz de cuidar de si mesmo, mas
agradeço sua sinceridade.
— Tenho certeza. — Os olhos de Nana pareciam penetrar
diretamente na alma de Lara, e ela não sentiu grande alívio quando
a velha fechou as cortinas e apontou para a porta. — Ele não vai
querer perder as marés. Harendell está com gado e ele odeia vacas
na ponte.
Porque eles não estão ganhando dinheiro para ele, pensou Lara
amargamente. Mas ela não pôde deixar de perguntar: — Por que
isso?
— Porque ele foi pisoteado durante uma das corridas anuais aos
quinze anos. Três costelas quebradas e um braço quebrado.
Embora lhe dissesse que o pior era ficar comigo enquanto se
recuperava.
Corridas anuais? Do que diabos a velha estava falando? A única
razão pela qual havia gado na ponte era porque seu pai havia
providenciado a compra deles na Northwatch. Não é a primeira vez
que um desconforto a percorreu com a desconexão entre o que
sabia ser verdade e o que estava vendo e ouvindo em Ithicana. Eles
devem ter sido vendidos para Valcotta ou outro país, decidiu.
Carregados em navios para que Maridrina fosse ignorada
completamente. Apesar dos enormes rebanhos de Valcotta, ela não
viu por que os importariam.
Afastando o pensamento, Lara seguiu Nana para fora, onde ficou
cega por alguns passos pela luz do sol, mas quando sua visão se
acostumou, revelou Aren franzindo a testa enquanto pendurava a
roupa em um varal, uma raivosa Lia agachada ao lado de um
lavatório. Com os pés dentro dele.
— Vejo que houve lacunas na sua educação, garoto. — Nana fez
uma careta para um lençol pingando.
— Estou disposto a aceitar certas falhas pessoais. — Aren
puxou as mãos, horrorizado, de um volumoso par de roupas íntimas
que Lia estava tentando entregar a ele.
Nana revirou os olhos. — Criança inútil. — Mas Lara não perdeu
o leve sorriso que cresceu no rosto da velha quando Aren secou as
mãos nas calças.
— Você pretende explicar por que me levou a arrastar Lara até
aqui? Suponho que não foi por uma conversa de cinco minutos.
— Oh, Lara e eu estaremos conversando bastante nas próximas
semanas, porque você a deixará aqui comigo.
A boca de Lara se abriu em horror, não havia treinamento
suficiente para esconder sua consternação com esse
acontecimento.
Aren balançou dos calcanhares até os dedos dos pés, os olhos
estreitados. — Por que eu faria isso?
— Porque ela é a cria do Rei Rato, e eu não vou tê-la
perambulando pela Midwatch enquanto você estiver distraído com
assuntos mais importantes. Aqui eu posso ficar de olho nela.
E provavelmente organizar um acidente dentro de uma semana.
— Não.
Nana colocou as mãos enrugadas nos quadris. — Eu não estava
lhe dando uma escolha, garoto. Além disso, o que você precisa
dela? Apesar de toda a prática que teve ao longo dos anos, você
nunca a teve nas costas uma vez, segundo minha opinião. E você
não terá tempo para isso nos próximos dois meses, melhor que ela
possa estar aqui onde eu possa usá-la.
Aren exalou um suspiro longo e lento, lançando os olhos para o
céu como se procurasse paciência. Lara mordeu a língua,
esperando a resposta dele. Sabendo que ela estava ferrada se
aceitasse o pedido da avó.
— Não. Não a trouxe para Ithicana para mantê-la trancada como
prisioneira, e certamente não a trouxe para que você pudesse
mantê-la como serva. Ela vem comigo.
A mandíbula de Nana endureceu, as unhas enlameadas
cavando o tecido da túnica. Ele nunca disse não a ela antes, pensou
Lara, espantada.
— Você tem muito de sua mãe em você, Aren. Vocês dois cegos,
idiotas idealistas.
Silêncio.
— Nós terminamos aqui. Lara, vamos embora. — Aren girou nos
calcanhares e Lara correu atrás dele, meio convencida de que Nana
enfiaria uma faca nas costas em um último esforço para mantê-la
longe de Aren. Por trás, ela ouviu a velha estalar: — Jor, mantenha
esse garoto seguro ou eu cortarei suas bolas e alimentarei minhas
cobras com elas.
— Sempre cuido, Nana — Jor falou lentamente, depois passou
por Lara e Aren. — Eu andaria mais rápido. Ela não é uma mulher
acostumada a ser negada.
Aren bufou, mas manteve o ritmo medido. — Eu deveria ter
adivinhado que era isso que ela queria. Controladora a velha
morcego.
Controladora, sim, mas também muito sagaz para seu próprio
bem. Lara podia estar indo embora com Aren, mas ele ouviu os
avisos de Nana. Se Lara não tivesse cuidado, ele poderia começar a
levar esses avisos a sério.
— Você não pode culpá-la por tentar proteger seu neto. Ela
gosta de você. — Lara se afastou de uma árvore que hospedava
uma aranha enorme.
— A maioria das pessoas é. Sou muito charmoso, ou pelo
menos me disseram.
Lara lançou-lhe um olhar de pena. — Um Rei raramente deve
entender um elogio ao pé da letra. Bajuladores e tudo mais.
— Que sorte que agora eu tenho você para me dar a crua
verdade.
— Você prefere mentiras envernizadas?
— Possivelmente. Não tenho certeza de que meu ego não
testado esteja pronto para tantos abusos. Meus soldados podem
não me seguir se forem submetidos a noites após noites minhas
chorando sobre canecas.
— Tente soluçar em seu travesseiro - abafa o barulho.
Aren riu, depois olhou para trás na casa. — O que ela disse para
você?
Segurando a raiz que lhe fora dada, Lara fez uma pausa,
percebendo que Nana suspeitava que Aren iria rejeitar. O que forçou
a pergunta: por que ele rejeitou? A razão, ela adivinhou, era mais
complicada do que o desejo de colocá-la entre os lençóis. —
Aparentemente, ela se ofende com a ideia de eu vomitar em suas
botas.
Ele a recompensou com uma risada baixa que enviou uma
emoção inesperada correndo por ela. Então ele extraiu a venda de
onde estava enfiada no cinto, os ombros dela apertando
reflexivamente quando a envolveu em torno do rosto dela, os dedos
cheirando a sabão. — Você quer andar ou ser carregada?
— Caminhar. — Embora ela tenha se arrependido da decisão
quando tropeçou pela décima segunda vez, um alívio a encheu
quando entraram na escuridão fria do píer, Aren segurou os
cotovelos para mantê-la estável enquanto subia os degraus. Ela
contou, calculando a distância.
De volta à ponte, o grupo se moveu a toda velocidade, ninguém
falando. Portanto, era inconfundível quando o som fraco de uma
buzina, longa e triste, cortou pela espessura da pedra que os
envolvia. Aren e o resto pararam, ouvindo. Soou novamente, a
mesma nota longa, seguida por um padrão de sons curtos que se
repetiam três vezes em rápida sucessão antes de interromper no
meio da quarta, como se a buzina tivesse sido arrancada dos lábios
do soprador.
— Esse é o pedido de ajuda de Serrith — disse Jor.
— Seus civis já partiram para as marés de guerra? — Aren
exigiu.
Marés de guerra?
— Não. — Mesmo com a venda nos olhos, Lara sentiu a tensão
atravessar o grupo, estalando como uma tempestade elétrica.
— Quem está mais perto? — Houve um abalo na voz de Aren.
Uma sugestão de algo que Lara ainda não via nele: medo.
Jor pigarreou. — Nós.
Silêncio.
— Não podemos deixá-la sozinha na ponte — disse Aren.
— Não podemos poupar ninguém para ficar com ela, e não
temos tempo para levar de volta para Nana.
Lara mordeu a língua, querendo pensar, mas sabendo que era
melhor não dizer nada.
— Não posso fazer nada. Teremos que trazê-la conosco. — As
mãos de Aren roçaram o lado do rosto dela quando ele tirou a
venda. — Mantenha-se alerta. Fique quieta. E quando a luta
começar, fique fora do caminho.
Rezando para que ele confundisse sua excitação com medo, ela
assentiu uma vez. — Eu vou.
O grupo começou a correr.
16
LARA

L I ,
seco queimando em seu peito enquanto o grupo corria pela ponte.
Somente a sorte permitiu que ela notasse quando Lia plantou um
metro quadrado em um marcador de quilômetro, sua boca se
movendo silenciosamente quando começou a contar seus passos.
Lara viu o contador de Lia, guardando o número quando a outra
mulher levantou a mão e derrapou para parar. Jor colocou Lia nos
ombros enquanto o resto preparava o equipamento. Nenhum deles
falou, e Lara manteve-se nas sombras enquanto observava Lia
estender a mão para pressionar a palma contra o que parecia ser
pedra lisa. Houve um clique pesado, então, com um esforço, ela
levantou uma escotilha no teto da ponte.
Outro caminho.
Triunfo correu através de Lara, mesmo quando o ar frio soprava
por dentro, pegando os fios soltos de seus cabelos quando Jor e
Aren levantaram os outros soldados para a abertura. Então Jor se
levantou, e só ela e Aren permaneceram.
— Nunca revele nada disso a ninguém, senão mato você eu
mesmo. — Sem esperar por uma resposta, ele agarrou Lara pela
cintura e a levantou na abertura.
Jor segurou seus braços, levantando-a no topo da ponte antes
de se inclinar para puxar Aren também, os dois fechando a
escotilha. Mas era difícil para Lara se concentrar no que os homens
estavam fazendo, porque estava em uma ponte através das nuvens.
A névoa úmida se instalou em Ithicana enquanto eles estavam lá
dentro, e ela girou e soprou, puxando suas roupas antes de girar
para longe em redemoinhos violentos. Abaixo, o mar batia contra
um píer ou uma ilha ou talvez os dois - ela não sabia dizer. Não
conseguia ver mais de uma dúzia de passos em qualquer direção, e
era como estar em um mundo totalmente diferente. Como estar em
um sonho que estava à beira de um pesadelo.
— Cuidado. — Aren advertiu, pegando sua mão. — É
escorregadio e estamos em um ponto alto. Você não sobreviveria à
queda.
Ela o seguiu em uma corrida lenta, todos lutando para manter o
equilíbrio na superfície escorregadia enquanto a ponte descia em
direção ao próximo píer, que Lara só podia ver fracamente através
da névoa. Mas, antes de alcançá-lo, todos os guardas caíram como
se tivessem dado um sinal invisível, Aren a carregando com ele.
Quando as mãos de Lara pressionaram contra a pedra molhada,
seus olhos pousaram em um marcador de quilômetro, as
engrenagens em sua mente girando quando uma estratégia de
invasão começou a se formar.
Jor tinha uma luneta, que se movia de um lado para o outro
antes de congelar no lugar. — Navio Amarid. — Ele passou o
instrumento para Aren, que olhou uma vez e depois xingou.
— Devemos esperar por reforços — continuou Jor, pegando o
objeto de volta e rastejando para o lado oposto da ponte, olhando na
mesma direção que o resto dos soldados. A névoa rodou, revelando
uma ilha por um batimento cardíaco antes de obscurecê-la
novamente. — Quando eles desembarcarem toda a equipe,
estaremos em menor número.
Ninguém falou, e foi então que os ventos mudaram de direção.
Com eles vieram os gritos.
— Vamos agora — ordenou Aren.
Nenhum dos guardas discutiu. Um deles prendeu um cabo em
um grosso anel de metal embutido na ponte, a outra extremidade
presa a um parafuso pesado que foi encaixado em uma arma
projetada como uma besta. Então ele entregou a Aren. — Você faz
as honras, Vossa Excelência?
Aren pegou a arma, ajoelhando-se na pedra. — Vamos lá — ele
murmurou. — Deixe-me ver.
Os ventos pararam e ninguém parecia respirar. Lara enfiou os
dedos na pedra, observando e esperando, a antecipação fazendo
seu coração disparar. Então o ar rugiu contra eles, varrendo as
nuvens, e Aren sorriu uma vez.
Ele soltou o ferrolho com um som alto, grunhindo contra a força
do recuo. O raio voou em direção à ilha, arrastando o cabo fino atrás
dele e, com um estalo alto audível à distância, cravou-se em uma
das árvores.
O soldado que lhe deu a arma apertou a folga no cabo e a
prendeu. Então, aparentemente sem medo, ele puxou uma luva
pesada, prendeu um gancho sobre o cabo e balançou ao ar livre.
Lara observou com espanto o homem disparar ao longo do arame
sobre o mar aberto, indo cada vez mais rápido até chegar à terra.
Depois, ergueu a luva e diminuiu a velocidade, caindo como um
gato no mato debaixo da árvore.
O resto dos soldados o seguiu rapidamente, mas quando Lara
olhou por cima do ombro, ela determinou que Aren não estava
prestando a mínima atenção. Em vez disso, ele estava misturando
pós em uma pequena bexiga. Enquanto observava, ele adicionou
água à mistura e, com muito cuidado, prendeu o dispositivo a uma
flecha com um pouco de barbante. Ele a ergueu para o arco e atirou
no navio ancorado abaixo.
Segundos depois, uma explosão sacudiu o ar, o navio visível
através da névoa enquanto chamas subiam no mastro. — Isso deve
mantê-los ocupados.
Passando o arco por cima do ombro, ele tirou um gancho e uma
luva como os outros haviam usado. — Eu vou precisar que se
segure em mim.
Sem palavras, Lara colocou os braços em volta do pescoço e as
pernas em volta da cintura. O calor correu através dela quando ele a
puxou contra si com a mão livre.
— Não grite. — Ele passou o gancho por cima da linha e pulou.
Lara mal conteve seu grito, agarrando-se a ele quando eles
caíram, descendo em velocidade incrível. Lá embaixo, as ondas
quebravam contra os penhascos da ilha e ela conseguia distinguir
os botes que se retiravam de uma pequena enseada em direção ao
navio em chamas para ajudar seus camaradas. O vento rugiu em
seus ouvidos, e então eles estavam sobre a selva verde.
— Segure-se firme — disse ele em seu ouvido, então a soltou,
estendendo a mão enluvada para segurar o cabo, reduzindo a
velocidade deles até que eles se pendurassem em segurança acima
dos outros.
Lara soltou-se, aterrissando entre eles, e ela balançou
propositalmente e caiu de bunda, mesmo quando Aren pousou com
graça predatória ao lado dela. Em um movimento praticado, ele
extraiu uma máscara de couro idêntica àquelas que todos os
guardas estavam usando agora e a colocou sobre o rosto.
— Fique aqui — ele sussurrou. — Fique fora da vista e cuidado
com as cobras.
Então eles se foram.
Lara esperou até a contagem de cinquenta, depois foi atrás
deles, facas na mão. Ela se moveu com cuidado, confiando que a
passagem deles teria mandado qualquer cobra sair correndo. Não
foi difícil determinar a direção que eles foram; só tinha que seguir os
gritos.
Uma batalha travada em uma vila, o interior das casas de pedra
em chamas, incontáveis mortos e moribundos caídos nos caminhos
que corriam entre eles. Alguns estavam armados, a maioria não.
Famílias. Crianças. Tudo abatido pelos soldados Amaridianos
lutando contra Aren e seus guardas. Mantendo-se atrás de uma
árvore, Lara observou o Rei de Ithicana se arremessar contra os
outros homens, facão em uma mão, punhal na outra, deixando
apenas cadáveres em seu caminho. Ele lutou como se tivesse
nascido para isso, destemido, mas inteligente, e ela se viu incapaz
de desviar o olhar.
Até os gritos da praia chamarem sua atenção. Abandonando sua
posição, Lara recuou nessa direção, apertando o estômago ao ver
os soldados Amaridianos subindo a trilha em direção à vila. O navio
estava completamente envolvido pelo fogo, o que significava que
eram homens desesperados sem possibilidade de fuga. E Aren e
sua guarda pessoal estavam em menor número de três para um. A
menos que ela quisesse que Amarid fosse o Reino assumindo o
controle da ponte, ela precisava equilibrar as probabilidades.
Lara escolheu um ponto na borda da brecha de um par imenso
de rochas pelas quais os soldados teriam que passar.
Dois soldados contornaram a curva, surpresos ao vê-la parada
no caminho deles. — É ela. A garota Maridriniana.
Ela esperou que a atacassem, esses homens tanto inimigos de
Maridrina quanto de Ithicana, mas eles permaneceram firmes,
olhando para ela como se não tivessem certeza do que fazer a
seguir. — Você não deveria estar aqui.
Lara deu de ombros. — Má sorte sua, suponho. — Então jogou
as facas em rápida sucessão. Os soldados caíram, com as lâminas
na garganta. Mais três vieram, e Lara pegou uma das espadas dos
homens mortos e se lançou para frente, cortando o intestino de um
homem enquanto mergulhava sob a lâmina de outro, cortando seus
tornozelos enquanto este rolava. Seu camarada virou e ela desviou,
depois o chutou no joelho, enterrando a lâmina no peito dele quando
ele caiu.
Pegando sua arma quando se levantou, Lara atacou o terceiro
homem, forçando-o a recuar antes de cortar sua mão no pulso. O
soldado gritou, seu sangue espirrando no rosto dela, mesmo quando
ele colidiu com os soldados que vieram por trás.
Era gritos e caos. Homens tropeçando nos corpos de seus
companheiros enquanto tentavam se espremer pela passagem
estreita, Lara matando-os quando conveniente, mutilando-os
quando não era, seu objetivo era impedir que se juntassem à
batalha e esmagassem Aren e seus soldados.
Mas quando um par de flechas assobiou sobre sua cabeça, ela
se jogou na selva, escondendo-se no mato, enquanto o resto dos
soldados Amaridianos passavam correndo. Depois que se foram,
ela pegou e embainhou suas armas dando lugar a uma das armas
mais pesadas dos Amaridianas. Cortando a garganta enquanto
passava, Lara correu a trilha até a vila.
Havia sangue por toda parte. Corpos em toda parte. Vários
guardas de honra caíram, e o estômago de Lara afundou enquanto
procurava por Aren.
Ela o encontrou lutando com um homem enorme empunhando
uma corrente. As roupas de Aren estavam ensanguentadas, seus
movimentos outrora afiados agora lentos e desleixados. O guerreiro
Amaridiano balançou sua corrente com força e Lara sibilou ao atingir
Aren nas costelas, dobrando-o. Ela instintivamente deu vários
passos na direção deles, com a faca na mão, pronta para intervir,
mas Aren subiu balançando, pegando o grande homem no rosto
com o punho, e depois enfiando uma faca em seu intestino. Os dois
caíram em uma pilha.
Antes que Aren pudesse se levantar, outro soldado Amaridiano
avançou em direção às costas expostas.
Sem pensar, Lara se jogou entre eles, sua faca afundando sob o
esterno, inclinando-se para perfurar o coração do soldado.
Seu impulso a derrubou, o ar saindo de seus pulmões quando
seus ombros atingiram o chão, o soldado moribundo caindo em
cima dela. Ele estava se debatendo e chutando, o punho da faca
cravando em seu estômago, e ela não conseguiu sair de baixo dele.
Não conseguia respirar quando a massa carnuda de seu peito
pressionou contra o rosto dela.
O peso subiu abruptamente.
Lara ofegou, sugando o ar, antes de rolar sobre as mãos e os
joelhos, observando Aren deslizar desnecessariamente uma faca
pela garganta do soldado morto. Mãos escorregadias com o sangue
do outro homem, Aren agarrou seus braços, puxando-a para perto.
— Você está bem? Você está machucada? — Ele estava puxando
as roupas dela, o sangue do marinheiro morto misericordiosamente
escondendo os das vítimas no caminho.
— Eu estou bem — ela ofegou, finalmente capaz de respirar. —
Mas você não. — Ele estava sangrando muito devido a um corte no
antebraço, mas ela suspeitava que não fosse o pior.
— Não é nada. Fique de fora. Fique fora de vista. — Ele tentou
empurrá-la para trás de uma das casas da vila, mas ela se agarrou
aos ombros dele, desesperada para mantê-lo fora da briga. Se ele
morresse, tudo seria em vão.
Ele hesitou, e ela enterrou o rosto no ombro dele, certa de que a
deixaria de lado e entraria novamente na batalha. Mas ele estava
ferido e exausto, e isso não terminaria bem. O pânico aumentou em
sua garganta, e ela sussurrou a única coisa que conseguia pensar
que iria fazer com que ficasse — Por favor. Não me deixe.
As mãos dele estavam quentes nas costas dela, ambas
ensopadas com o sangue de seus inimigos. — Lara... — Sua voz
estava dolorida, e ela sabia que estava vendo os corpos de seu
povo. Que ele estava vendo seus guarda-costas, lutando e
vacilando contra o inimigo.
Você poderia lutar.
Você poderia lutar por ele e salvar essas pessoas.
O pensamento dançou em sua mente, mas ela foi salva de ter
que tomar uma decisão pela chegada de reforços.
Soldados Ithicanos invadiram a vila, os guarda-costas de Aren
recuaram, cercando ele e Lara enquanto os outros derrubavam os
soldados Amaridianos, despachando implacavelmente os feridos até
o único som serem os gemidos e gritos dos moradores.
Aren não a soltou até terminar.
A fumaça queimou os olhos de Lara quando olhou em volta.
Como ela viu, pela primeira vez, como era realmente a guerra. Não
apenas soldados mortos, mas civis desarmados caídos no chão. As
formas ainda de crianças.
Você acha que será diferente quando seu pai vier com seu
exército? Você acha que eles mostrarão mais misericórdia?
Os moradores que fugiram começaram a voltar para a vila,
principalmente crianças mais velhas, segurando bebês e mãos de
crianças pequenas. Alguns deles começaram a soluçar ao encontrar
as formas imóveis de seus pais. Mas muitos ficaram paralisados,
rostos perdidos e sem esperança.
— Ainda acredita que aqueles marinheiros da Amaridiana
mereciam piedade? — Aren disse suavemente por trás dela.
— Não — ela sussurrou enquanto caminhava em direção ao
Ithicano ferido mais próximo, rasgando tiras de tecido de sua túnica
quando caiu de joelhos. — Eu não acredito.
17
AREN

A ,
lentamente ficando vermelho quando lavou o sangue que cobria
suas unhas. O sangue dele. O sangue de seus inimigos.
O sangue do seu povo.
A água tremeu e ele puxou as mãos para fora da bacia,
secando-as em um pedaço de toalha que lhe foi deixado. Cada
centímetro dele doía, especialmente as costelas onde aquele
grande bastardo o pegara com a corrente. Nana informou que nada
estava quebrado, mas sua lateral já era um hematoma lívido, e a
experiência lhe dizia que amanhã seria pior. No entanto, ele sofreria
isso mil vezes se significasse chegar a Serrith mais cedo. Vinte
minutos antes. Dez. Cinco. Mesmo um batimento cardíaco mais
cedo poderia ter permitido que ele salvasse pelo menos um dos
moradores que foram mortos hoje.
— O chamado para reunir o conselho em Eranahl foi enviado e
as respostas recebidas. Todo mundo estará lá ao anoitecer.
Ele se virou para encontrar Jor parado atrás dele, o curativo
enrolado em sua cabeça escondendo o corte profundo que havia
recebido na luta. Um corte que Lara, de todas as pessoas, costurou.
Por vontade própria, os olhos de Aren se voltaram para onde sua
esposa se ajoelhava entre os feridos, silenciosamente seguindo a
direção de Nana e seus alunos. Seus cabelos cor de mel estavam
com um tom escuro de sangue, assim como suas roupas, mas, em
vez de prejudicar sua beleza, isso apenas a fazia parecer feroz.
Como uma guerreira. Há meio dia, a ideia seria ridícula.
Mas não mais.
Jor seguiu seu olhar, dando um suspiro profundo quando viu
quem Aren estava olhando. — Ela possui uma quantidade
problemática de informações.
— Não havia como evitar.
— Não significa que não é um problema.
— Ela salvou minha vida.
Jor respirou fundo, depois soltou o ar lentamente. — Ela salvou
mesmo.
— Eu caí e um deles veio às minhas costas. Ela ficou no
caminho e enfiou uma faca nele. — Toda vez que ele piscava, Aren
via Lara sob aquele bruto de um Amaridiano, sangue por toda parte.
Sentia o medo da certeza de que todo o sangue era dela. — Meio
que arruína a teoria de que ela está aqui para me assassinar, não
acha?
— Talvez queira fazer isso ela mesma — respondeu Jor, mas
sua voz não estava convencida.
Lara levantou a cabeça, como se sentisse a análise deles. Aren
se virou antes que seus olhos pudessem se encontrar, e a pilha de
Amaridianos mortos entrou em sua linha de visão. Ele puxou o
bastardo dela e cortou sua garganta, mas o homem já estava morto,
a faca que Lara pegou em algum lugar fincada com precisão em seu
coração.
Sorte, ele disse a si mesmo. Mas os instintos de Aren estavam
dizendo outra coisa.
— De qualquer forma, precisamos ficar ainda mais de olho nela
agora — disse Jor. — Se os Maridrinianos determinarem onde ela
está e a encontrarem, a cabeça dessa mocinha está cheia de
segredos suficientes para nos causar alguns problemas sérios.
— O que você está sugerindo?
— Estou sugerindo que talvez ela seja mais problemática do que
vale a pena. Acidentes acontecem. Cobras encontram seu caminho
para as camas. Os Maridrinianos podem usá-la firmemente contra
nós...
— Não.
— E manter fingindo que está viva. — Jor confundiu o motivo da
recusa de Aren. — Consiga um falsificador para falsificar as cartas
dela para o pai. Eles nunca precisam saber.
Aren se voltou contra o homem que o vigiava desde criança. —
Vou dizer isso uma vez e nunca mais. Se alguém machucá-la,
perderá a cabeça. Isso vale para você, vale para Aster e para minha
avó, também, mesmo que ela me tenha como ignorante. Entendido?
Sem esperar por uma resposta, Aren caminhou até as piras
montadas às pressas nos arredores da vila, o ar denso com o cheiro
do óleo encharcando a madeira. Dezenas de corpos, grandes e
pequenos, foram dispostos em filas iguais, e os sobreviventes
estavam ao redor, alguns chorando, outros olhando para o nada.
Alguém passou uma lamparina para ele e Aren olhou para as
chamas tremeluzentes, sabendo que ele deveria dizer alguma coisa.
Mas quaisquer palavras que pudesse oferecer àquelas pessoas que
ele deveria proteger - que ele não protegeu - pareciam vazias e sem
sentido. Ele não podia prometer que não aconteceria novamente,
porque aconteceria. Ele não podia prometer vingança, porque
mesmo que invadir Amarid fosse uma possibilidade para o seu
exército já tenso, não se comprometeria a prejudicar civis
Amaridianos apenas porque sua Rainha era uma cadela vingativa.
Ele poderia dizer a eles que pretendia enviar uma caixa cheia de
cabeças junto com os restos carbonizados da bandeira do navio de
volta à senhora mas o que isso significava? Não traria de volta os
mortos.
Então ele não disse nada, apenas se inclinou para frente para
tocar a tocha na madeira encharcada de óleo. Chamas rasgaram os
galhos, o ar ficou quente e não demorou muito até que seu nariz se
encheu com o cheiro horrível de cabelo queimado. Sangue
carbonizado. Carne cozinhando. Isso fez seu estômago revirar, e ele
rangeu os dentes, querendo fugir, mas se forçando a se manter
firme.
— Os navios estão aqui de Eranahl — disse Jor. — Precisamos
começar a carregar os sobreviventes ou perderemos o clima. —
Como se quisesse enfatizar o ponto, uma gota de chuva bateu na
testa de Aren. Depois outro e outro.
— Dê-lhes um minuto. — Ele não conseguia desviar o olhar de
uma mãe soluçando, muito perto das chamas agora sibilantes.
Naquela manhã, ela teria acordado acreditando que ao cair da noite
ela e sua família estariam a caminho da segurança de Eranahl, e
agora estaria viajando sozinha.
— Aren...
— Dê-lhes um maldito minuto. — Cabeças se viraram com a
nitidez de seu tom, e ele se afastou das chamas. Passou pelos
feridos que Nana e seus alunos estavam preparando para a jornada
e pelo caminho até a enseada onde os navios esperavam.
Contornando a curva, ele franziu o cenho para as dezenas de
soldados inimigos mortos que haviam sido arrastados para o lado do
caminho quando algo chamou sua atenção: um homem com uma
lâmina Amaridiana embutida no peito. Retrocedendo, Aren
examinou os cadáveres mais de perto.
A maioria de seus soldados lutava lado a lado com facas e
facões necessários para atravessar a densa vegetação rasteira da
selva, e as largas lâminas causavam ferimentos distintos. Mas a
maioria desses homens tinha feridas infligidas pelas esguias
espadas forjadas por Amarid, e vários deles tinham as facas de oito
polegadas que esses soldados carregavam embutidas em seus
corpos.
Eles foram mortos por suas próprias armas.
Aren recuou alguns passos para examinar a cena, os olhos
flutuando sobre as poças de sangue que misturavam-se à chuva
criando poças crescentes. Esses homens foram mortos por
indivíduos que encontraram no caminho, não pelos seus reforços.
Mas por quem? Toda a sua guarda estava com ele na vila, assim
como os civis que podiam lutar.
Um formigamento subiu pela nuca de Aren. Com a mão indo
para a lâmina em sua cintura, ele girou. Apenas para encontrar Lara
em pé no meio do caminho.
Os olhos dela se voltaram para onde a mão dele permanecia na
arma e uma das sobrancelhas dela se ergueu, mas por razões que
Aren não conseguia articular, ele não podia soltar o punho. Ela
matou aquele soldado com uma lâmina Amaridiana...
Mas sua única lesão visível era uma contusão na bochecha. Não
importava que as mulheres Maridrinianas fossem proibidas de lutar,
a própria ideia de que ela poderia ter conseguido isso sozinha era
uma completa loucura - seus melhores lutadores não poderiam ter
feito isso sozinhos.
— Para onde eles vão? — A voz dela cortou seus pensamentos.
— Existem lugares mais seguros. — Ele se perguntou por que
estava sendo tão cauteloso quando agora ela sabia tanto. Mas uma
coisa era ela saber sobre a ponte. Outra coisa era saber sobre
Eranahl.
Sem a ponte, Eranahl não existe, a voz de seu pai sussurrou em
seu ouvido. Ithicana não existe. Defenda a ponte.
— Se existem lugares mais seguros, por que você não mantém
seus civis lá?
Havia razões práticas. Manter todos os civis Ithicanos dentro de
Eranahl durante o ano todo era impossível, mas não foi essa a
razão que ele deu. — Porque isso seria como mantê-los em gaiolas.
E meu povo é... livre. — A palavra ficou presa em sua garganta,
uma súbita compreensão do que sua mãe estava lutando, lhe dando
um tapa na cara. Pelo que era Ithicana que não uma grande prisão,
os que nasceram nela proibidos de sair para sempre.
Lara ficou muito quieta, a cabeça inclinada e os olhos sem
piscar, como se a resposta dele tivesse penetrado profundamente
em seus pensamentos, não deixando espaço para mais nada. — A
liberdade deles parece ter um custo significativo.
— A liberdade sempre tem um preço. — Quão maior seria o
preço para permitir ao seu povo a liberdade do mundo?
— Sim. — A palavra pareceu grudar na garganta, e ela balançou
a cabeça uma vez, seus olhos indo para os homens mortos que
ladeavam o caminho. Aren a observou atentamente, procurando em
sua expressão qualquer indício de que ela fosse de alguma forma
cúmplice em suas mortes, mas só parecia estar nas profundezas de
seu pensamento.
— Você deveria ir até a enseada. Os barcos estão esperando.
Desviando os olhos dos cadáveres, Lara caminhou em sua
direção, silenciosa como qualquer Ithicano enquanto navegava na
ladeira escorregadia. Seu coração pulou, em seguida, acelerou, o
ritmo constante do tum tum de quando ele estava indo para a
batalha ou tentando superar uma tempestade. A emoção de que,
apesar de saber que não deveria, Aren havia procurado a vida toda.
Lara parou na frente dele. Seu cabelo estava molhado da chuva,
uma mecha perdida colada contra sua bochecha. Levou todo o seu
autocontrole para não afastá-la.
— Depois que os barcos estiverem carregados, vou embora para
um... encontro. Você ficará com minha avó até eu voltar para você.
Lara franziu a testa, mas, ao invés de discutir, estendeu a mão e
colocou a mão na dele, sua pele febrilmente quente. Então, com
força surpreendente, ela empurrou para baixo, encaixando a lâmina
de volta na bainha.
— Vou esperar perto da água. — Sem outra palavra, ela passou
por uma poça e caminhou pelo trajeto em direção à praia.
18
LARA

M G .
Era assim que os moradores da ilha de Serrith chamavam isso.
Os dois meses mais frios do ano em que os Mares de Tempestade
ficavam calmos o suficiente para os inimigos de Ithicana atacarem.
E este ano as Marés de Guerra chegaram cedo.
Tão cedo que os aldeões ainda não haviam sido evacuados para
o local misterioso onde passariam a temporada, e foi provavelmente
por isso que a frota Amaridiana havia se arriscado duas vezes em
ser pega em uma tempestade tardia. Enquanto uma localização
singular bem defendida poderia ser protegida, incontáveis pequenos
postos civis eram outra questão.
Era o melhor momento para atacar, pensou a parte fria e
estratégica de Lara. Quando o exército de Ithicana seria forçado a
dividir seus esforços entre proteger dezenas de pequenas aldeias e
proteger a ponte. E se isso acontecesse, ela sabia que Aren
colocaria a vida de seu povo em primeiro lugar. Estava escrito em
seu rosto quando aquelas cornetas soaram, o pânico e o desespero.
A disposição de arriscar tudo para salvá-los. E os mortos olharam
em seus olhos quando ele examinou a vila massacrada e soube que
havia falhado.
Eles não são de sua responsabilidade, ela lembrou-se
violentamente. Sua lealdade é para Maridrina. Aos civis de sua terra
natal que sofrem sob o monopólio de Ithicana no comércio. Para as
crianças Maridrinianas que não têm nada em seus pratos além de
verduras podres e carne rançosa, se é que têm alguma coisa para
comer. Eles estão morrendo com tanta certeza como se Ithicana
estivesse cortando suas gargantas.
Os pensamentos foram suficientes para mudar sua mente para o
contrabando de informações de Ithicana. Embora fosse ser possível
codificar mensagens curtas em suas cartas para o pai, ela não se
atreveu a tentar incluir nenhum dos detalhes que aprendeu sobre a
ponte. Se os decifradores de código os notassem, teria sorte de sair
de Ithicana viva, e tudo o que ela fez seria inútil. Aren sabia onde ela
esteve e o que aprendeu. Seria fácil para eles sustentar as defesas
e não haveria como pegá-los de surpresa.
Não, ela teria que reunir as informações necessárias e depois
contrabandear tudo de uma vez. A questão era como.
Instintivamente, ela sabia que o caminho tinha que ser através
do próprio Rei de Ithicana. Seus pensamentos foram para sua caixa
de cosméticos, dentro da qual a tinta que Serin havia lhe dado
estava escondida. Ela não apenas precisava convencer Aren a
escrever uma mensagem para o pai, mas também roubar por tempo
suficiente para escrever a sua própria, não importando o problema
de selá-la novamente sem que ninguém percebesse que havia sido
adulterada.
— Pare de tramar e ajude Taryn com a louça, sua teta
preguiçosa.
A voz de Nana arrancou Lara de seus pensamentos, e ela se
virou para fazer uma careta para a velha. — O quê?
— Você não ouviu ou não entendeu? — As mãos de Nana
estavam nos quadris dela, uma grande cobra enrolada no pescoço e
nos ombros. Ela levantou a cabeça para olhar Lara, e ela
estremeceu.
— Essa é a minha ilha — a avó de Aren latiu. — E na minha ilha,
se quiser comer, você trabalha. De pé. — Ela bateu palmas
bruscamente.
Lara se levantou, instantaneamente irritada por ter obedecido,
mas sentar-se seria infantil.
— Fora.
Irritada, ela saiu para o ar da manhã, avistando Taryn, que
estava sentada ao lado de uma banheira, até os cotovelos em água
e sabão. A jovem era a única dos guardas de Aren a ficar com ela -
a que tirou o palito mais curto, tinha agarrado prontamente Lara em
sua caminhada vendada de volta pela ponte para a ilha de Nana,
que se chamava Gamire. Um grupo de soldados desconhecidos as
seguiu silenciosamente. Lara achou que a relutância de Taryn em
passar um tempo com ela, ou talvez o desapontamento por não ter
ido aonde Aren havia ido, tornou o papel indesejável, mas depois de
uma noite passada na casa de Nana, a verdadeira razão era
aparente.
A velha bruxa era uma megera antipática e intimidadora, e Lara
não tinha ideia de como ela iria impedir de assassinar a cruel mulher
enquanto dormia.
— Você vai se acostumar com ela, depois de um tempo. — Taryn
mergulhou um prato na bacia fumegante. — Ajuda que a maioria de
nós tenha sido remendado por ela pelo menos uma vez. — Soltando
o prato, a mulher levantou a camiseta para revelar uma série de
cicatrizes em formato oval que cobria uma boa parte das costelas.
— Caí na água durante uma briga e um tubarão me atacou. Se não
fosse por Nana, eu estaria morta.
Uma faca, uma espada ou uma flecha - essas eram feridas que
Lara podia entender, mas isso... — Criaturas desagradáveis.
— Na verdade não. — Taryn largou a camiseta e voltou ao prato.
— Eles foram treinados para serem devoradores de homens, mas
não é a preferência deles.
Pegando um prato pingando e esfregando-o com uma toalha,
Lara pensou nos marinheiros Amaridianos sendo arrastados para
baixo da superfície. O florescimento de sangue. — Se você diz.
Afastando seu longo rabo de cavalo escuro, Taryn sorriu,
revelando dentes brancos e retos que devem agradar muito a Nana.
— Eles são criaturas brilhantes. Há alguns que ficam conosco
sempre, mas a maioria deles só estão aqui durante as marés de
guerra. Isso, mais que o clima, é como Nana sabe quando a estação
das tempestades está chegando ou passando. Os pescadores
notam seus números.
Seu pai e Serin sabiam disso? Lara mordeu o interior de suas
bochechas, considerando as informações. Um dos riscos de atacar
no início da estação calma era que não havia como prever
exatamente quando começaria.
— Eles sempre se reúnem nos lugares onde os invasores mais
atacam, como em Midwatch. — Taryn girou um pano dentro de uma
caneca lascada antes de entregá-la. — Há mitos que dizem que são
guardiões do povo de Ithicana, e é por isso que é proibido prejudicá-
los, a menos que seja absolutamente necessário. — Ela riu. — Mas
é apenas um mito. Eles vêm para se alimentar e não discernem
entre nós ou nossos inimigos. Qualquer um na água é um jogo justo.
Lara estremeceu, colocando o copo seco em uma bacia limpa
com o resto.
— Pare de tagarelar — Nana latiu à distância. — Há outras
tarefas que precisam ser feitas.
Taryn revirou os olhos. — Quer fugir?
— É possível escapar de Nana?
Uma piscada. — Eu tive muita prática.
Fiel à sua palavra, depois que os pratos limpos foram guardados,
Taryn conseguiu atribuí-las a uma tarefa que as mandou para uma
vila que Lara nem percebeu que estava lá. Ela pegou os Ithicanos
se apressando entre as casas de pedra ou persuadindo as crianças
que estavam se esquivando de suas tarefas. — Por que não é
evacuado?
— Eles não precisam ser. A ilha de Gamine está a salvo.
Encontre os civis. Lara lembrou as palavras de Serin, a nuca
formigando quando duas crianças passaram correndo por ela, com
sacos de aveia nos braços. Os olhos dela voltaram a ver a vila.
Havia grupos de homens estripando peixe, mas o nariz dela sentiu o
cheiro de pão assado, carne vermelha na grelha e o leve cheiro de
limão, embora nunca tivesse visto uma árvore de frutas naquele
lugar. O que significava que tudo veio como uma importação através
da ponte.
— Aqueles que vivem nas outras ilhas... onde eles vão parar nas
Marés de Guerra? — ela perguntou, porque não perguntar seria
mais suspeito. E porque estava profundamente curiosa sobre onde
poderia estar essa localização misteriosa.
— Isso é para o Rei lhe contar. — Taryn deu-lhe um olhar de
soslaio. — Ou não, conforme o caso.
— Ele não é particularmente acessível.
Dando de ombros como uma maneira de silenciar essa linha de
questionamento, Taryn levou Lara por um caminho estreito através
da selva. Elas caminharam até que a brisa aumentou e o cheiro de
sal encheu o ar, ondas altas batiam contra as paredes do penhasco.
Lara não viu o destruidor de navios até que o soldado mais velho
que o tripulava se aproximou. O reconhecimento satisfeito brilhou
em seus olhos ao ver Taryn, mas seu olhar endureceu ao pousar em
Lara.
— Estamos livres pela próxima hora — disse Taryn. — Use-a
com sabedoria e pegue um pouco da carne cozida que eu cheirei.
Depois que o soldado partiu, ela disse: — Não leve para o lado
pessoal. Quase todo mundo acima de uma certa idade perdeu um
ente querido ou dois na guerra com Maridrina. Mesmo depois de
quinze anos de paz, é difícil para eles verem você como algo que
não seja o inimigo.
Eu sou o inimigo, pensou Lara. — Você não?
— Eu julguei, no começo. — Os olhos cinzentos de Taryn
olharam para longe. — Até você salvar a vida do meu primo.
— Primo? — Lara piscou, olhando a morena musculosa sob uma
luz diferente. — Aren é seu primo?
— Vejo que te surpreende. — expirando entretida, Taryn disse:
— Meu pai era irmão do pai de Aren, o que faz de Nana minha avó
também, se você estiver acompanhando.
Ela não tinha estado, mas talvez devesse. A guarda feminina
não era exatamente da realeza, mas muito próxima. E não havia
nada nela que sequer sugerisse que era assim. Taryn usava o
mesmo equipamento monótono que o resto dos guardas, morava
nas acomodações sobressalentes do acampamento, cozinhava e
limpava com o resto de seus companheiros. Além de suas armas,
que eram de qualidade, não havia nada nela que sugerisse riqueza
ou privilégio. Para onde vai todo o dinheiro? Lara se perguntou,
lembrando-se dos números incríveis de receita que viu nas páginas
da mesa de Aren. Quando criança, ela acreditava que Ithicana devia
ter palácios de ouro cheios de tudo o que pegavam de Maridrina e
dos outros Reinos, mas até agora ela tinha visto apenas um luxo
modesto.
— Você poderia ter ficado parada e deixado ele ser morto, mas
você arriscou sua vida para salvá-lo. Esse não é o ato de um
inimigo.
Se você soubesse. O estômago de Lara ficou vazio, o café da
manhã não estava mais tão bom.
Pegando uma luneta, Taryn percorreu o oceano, dando a Lara a
oportunidade de examinar o destruidor de navios. A catapulta era
grande, feita de madeira maciça e aço, montada em uma base
aparafusada ao chão rochoso abaixo dela. Havia várias alavancas e
engrenagens, e de cada lado havia dois dispositivos idênticos, mas
muito menores. Um olhar por cima do ombro revelou uma pilha
irregular coberta de lona verde-acinzentada, que eram sem dúvida
os projéteis.
Aproximando à borda da lona, Lara olhou uma pedra que poderia
pesar uns vinte quilos. Não parecia grande o suficiente para ter
causado o dano que ela viu encenar em Midwatch, mas combinado
com força suficiente... Ela voltou-se para o destruidor de navios e
encontrou Taryn a observando.
A outra mulher sorriu. — Lançamos Aren, uma vez.
— Perdão?
— Lia e eu. Embora tenha sido idéia dele, para que você não
pense que somos idiotas totais. — Taryn deu um tapinha na
máquina. — Talvez tivéssemos doze ou treze anos, e ele teve a
grande noção de que seria divertido ver o quão alto voaríamos.
Embora ele tenha sido o único a experimentar.
— E isto... Funcionou?
— Ah, ele voou bem. Mas o que não contava foi o quanto a
aterrissagem doeria. — Ela gargalhou alegremente. — Felizmente,
havia um barco de pesca por perto para puxá-lo para fora. Nana nos
fez arrastar pedras por semanas como punição, e isso foi depois
que Jor gritou conosco por toda a ilha.
— Ele tem sorte de não ter sido morto. — E quão diferente a vida
de Lara teria sido se tivesse? Ou ela teria mesmo uma vida? Podia
facilmente imaginar seu pai recebendo as notícias da morte
prematura do príncipe de Ithicana, apenas para se virar e exterminar
todos os envolvidos na trama que dependiam do Tratado de Quinze
Anos.
Taryn sorriu. — Você poderia dizer isso sobre metade das coisas
que ele faz. — Ela bateu na arma novamente. — Você quer tentar?
Arquejando em uma risada, Lara disse: — E agora vejo o
coração do plano de me trazer até aqui.
— Você não. Uma pedra.
— Ah. — Lara olhou a máquina sob uma luz totalmente nova. —
Sim. Sim, eu quero.
Era uma máquina incrível, capaz de ser operada por um único
indivíduo, mas, dado o peso das pedras, Lara estava feliz por haver
duas delas. Girou silenciosamente em sua base, e várias manivelas
permitiram que o usuário a ajustasse para alterar a distância que
uma pedra poderia ser lançada. As catapultas menores, ela
aprendeu, destinavam-se a marcar a distância, tudo finamente
calibrado.
— Vamos tentar atingir esse pedaço de madeira. — Sob o olhar
atento de Taryn, Lara arremessou pequenas pedras nos destroços
flutuantes até que a atingiu.
— Muito bem, Majestade. Agora ajustamos o grande para a
mesma distância assim. — A mulher girou as manivelas e Lara
observou atentamente até ela recuar. — Agora você faz as honras.
Mãos suando de emoção, Lara pegou a maior alavanca de todas
e puxou. A catapulta se soltou com um estalo tremendo, e as duas
contornaram a máquina para ver como a rocha navegava no ar e
colidia com a madeira flutuante.
Taryn deu um soco no ar. — Você afundou seu primeiro navio!
Houve uma comoção atrás delas, e o soldado que elas haviam
aliviado correu ao lado delas. — Invasores? — Ele demandou.
— Testes. — A voz de Taryn era fria. — Sua Majestade ordenou
que todos os destruidores de navio fossem testados novamente.
Este parece estar em ordem. — Taryn assentiu para Lara. — Vamos
continuar, Vossa Excelência?
Lara escondeu um sorriso. — Certamente.
Elas passaram o dia em um passeio pela ilha testando os
destruidores de navios e depois se encontraram de volta à vila para
jantar, onde ficaram em pé em volta de uma fogueira com quase
todos os moradores presentes. Taryn disse a ela que era para
homenagear aquelas vidas perdidas na ilha vizinha de Serrith. Lara
comeu carne e legumes grelhados dos palitos em que estavam
espetados, bebeu a cerveja espumosa de uma caneca que nunca
parecia esvaziar e aqueceu as mãos contra as chamas quando a
brisa da noite esfriou.
Os aldeões desconfiaram dela a princípio, e Lara ficou um pouco
à parte, ouvindo histórias de mitos de Ithicana, de serpentes e
tempestades que defendiam as ilhas esmeraldas. Da própria ponte
antiga, que suas lendas diziam não ter sido construída, mas
crescera da terra como uma coisa viva. Suas palavras aumentaram
e diminuíram até que as crianças cochilaram nos braços dos pais e
foram colocadas sob mantas de lã. Em seguida, foram trazidos
instrumentos, tambor, violão e flauta, a música acompanhando os
homens e as mulheres enquanto cantavam e dançavam, Taryn
juntando-se com uma voz soprano surpreendentemente adorável.
Eles convenceram Lara a participar do canto, mas ela implorou,
dizendo que tinha uma voz terrível, mas era principalmente porque
queria assistir. E escutar. E aprender.
Quando a reunião começou a se acalmar, os casais escapando
na escuridão de mãos dadas, o povo mais velho formando círculos
onde fofocavam e reclamavam, passando um cachimbo de pessoa
para pessoa, Taryn finalmente descansou a mão no ombro de Lara.
— Devemos voltar antes que Nana venha nos procurar.
Guiadas pela fraca luz de uma lamparina, elas subiram o
caminho estreito, os sons da selva feroz e tumultuada ao seu redor.
— Eu não queria ser uma soldada, você sabe.
Lara lançou um olhar de soslaio para Taryn. — Não estou
surpresa. Você me parece mais uma pescadora.
Taryn cuspiu uma risada, mas seu tom ficou sério. — Eu queria ir
para uma das universidades de Harendell para estudar música.
As universidades de Harendell eram renomadas em todos os
Reinos, norte e sul, mas a ideia de que uma Ithicana desejasse
participar pareceu estranho a Lara, porque era... impossível. — Mas
os Ithicanos nunca saem?
— Porque é proibido. — Taryn acenou com a mão. — Ah,
existem espiões que vão, é claro, mas não é a mesma coisa. É uma
vida falsa onde você não é você mesmo, e eu não pude suportar
isso. De seguir o meu sonho como outra pessoa... — Ela
interrompeu. — Eu nunca contei a meus pais, porque sabia que eles
desejavam que eu treinasse como guerreira e acabassem sendo
nomeada para o conselho de Aren. Mas eu disse à minha tia Delia.
Mãe de Aren, pensou Lara. A Rainha.
— Minha tia acreditava que a maneira mais segura de ganhar
confiança era dando. — Taryn puxou o braço de Lara, parando-a
para permitir que algo deslizasse pelo caminho antes de continuar.
— Todos apoiaram o tratado para acabar com a guerra com
Maridrina, mas ninguém apoiou a inclusão de uma cláusula de
casamento. Ninguém queria que Aren se casasse com alguém de
fora, especialmente uma maridriniana. Mas tia Delia acreditava que
era a única maneira de termos paz com nossos vizinhos. A única
maneira das pessoas pararem de ver um inimigo quando nos
sentamos do outro lado da mesa para negociar.
É mentira, a voz de Serin gritou dentro da cabeça de Lara.
Usando bondade para fazer você revelar o que não deveria. Mas
Lara silenciou a voz. — Se ela acreditava que esse casamento
impediria os Maridrinianos de ver Ithicana como inimiga, ela estava
enganada.
Taryn balançou a cabeça. — Ela não queria mudar as crenças do
seu Reino. Ela queria mudar a nossa.
Não se podia dizer mais nada, quando chegaram à casa de
Nana, a velha em pé na porta, observando-as se aproximarem. —
As crianças rebeldes voltam.
— Nós nos mantivemos ocupadas, Nana.
— Ocupadas bebendo, pelo cheiro.
Um comentário um tanto hipócrita dado que Lara podia sentir o
cheiro de álcool no hálito da mulher, uma garrafa e um copo meio
cheio sobre a mesa atrás dela.
— Estou indo para a cama — disse Lara, sem humor para ser
repreendida, mas Nana pegou o braço de Lara com força. Com a
outra mão, ela estendeu uma bolsa que estremeceu e chiou. —
Primeiro você alimenta as cobras.
Lara olhou a bolsa com desgosto. Não porque tivesse alguma
aversão particular a ratos, mas porque ela estava cansada da velha
bruxa que a ordenava como uma criada. O que ela queria era sair
hoje à noite para dar uma olhada no píer da ponte, mas Nana
provavelmente pretendia ficar sentada olhando para ela. — Não.
As sobrancelhas de Nana se levantaram. — Não? A princesinha
é boa demais para alimentar os animais de estimação de uma
velha?
Os dedos de Lara se apertaram reflexivamente. Então seus
olhos brilharam nas prateleiras acima das gaiolas de cobras, e uma
ideia começou a se formar. — Eu tenho medo de ratos — ela
mentiu, afastando-se da bolsa enquanto Nana balançava na direção
dela.
— Supere isso.
Lara foi forçada a pegar a bolsa ou espalhar os ratos por toda
parte. Amaldiçoando silenciosamente a velha, Lara tirou um rato da
bolsa pelo rabo, destravou cuidadosamente uma das gaiolas e jogou
a criatura para dentro antes de passar para a próxima.
As cobras eram todas venenosas. Taryn havia dito a ela que
Nana colhia o veneno e o usava para criar antídotos, bem como
remédios para várias aflições naturais. Havia dezenas de frascos de
líquido nebuloso armazenados acima das gaiolas e acima delas,
inúmeras outras plantas e remédios, todos claramente rotulados.
Entre cada gaiola, Lara examinou o conteúdo, sorrindo quando
encontrou o que estava procurando.
Deixando cair o saco ainda contorcido de ratos, Lara gritou: —
Isso me mordeu!
— Qual cobra? — Nana exigiu, um toque de pânico em sua voz.
— Não é uma cobra — ela soluçou, enfiando um dos dedos na
boca e mordendo para criar uma lesão realista. — Um rato!
— Droga, garota! — Nana pegou a bolsa, mas já era tarde
demais. Os ratos restantes estavam correndo para todos os lados.
— Taryn, pegue as malditas coisas antes que entrem na minha
despensa.
Lara lamentou, subindo em uma cadeira enquanto os roedores
tiravam vantagem de sua liberdade. Mas quando as costas de Nana
se viraram, ela pegou um pequeno pote das prateleiras.
— Pegue-os, pegue-os!
Taryn estava obedientemente perseguindo os ratos, mas ela
bebeu o suficiente naquela noite para que seus movimentos fossem
muito lentos, os roedores se esquivavam facilmente até que se virou
para pisar neles com suas botas pesadas. Lara aproveitou o
momento para abrir o frasco.
— Não os mate! — Nana tinha dois ratos pelas caudas e os
empurrava dentro da bolsa. — As cobras não os comerão se
estiverem mortos! — Ela se lançou para outro rato, e Lara se
inclinou para o lado e jogou um generoso respingo do conteúdo da
jarra no copo de Nana, mais uma vez agradecida pela preferência
Ithicana por bebidas fortes.
— Peguei um! — Taryn jogou o rato no saco de Nana. Lara
fechou o frasco e empurrou-o de volta na prateleira, depois ficou de
pé na cadeira, observando inutilmente as duas mulheres recolherem
os ratos restantes.
Murmurando baixinho, Nana começou a terminar de alimentar as
cobras, então agarrou a mão de Lara, examinando a pequena ferida
sangrando. — Idiota. Vai te servir bem se isso infeccionar.
Tirando a mão do aperto da velha, Lara olhou para ela. — Eu
estou indo para a cama. — Suas botas bateram imperiosamente
enquanto caminhava até a cama que foi feita para ela, e sorriu
enquanto, pelo canto do olho, observava Nana tomar o conteúdo de
sua caneca.
Agora tinha que esperar.
19
LARA

N , ,
Nana dividiu o silêncio. Um momento depois, a velha cambaleou
para fora de sua cama e saiu pela porta. Em um piscar de olhos,
Lara foi até a parede de frascos, pegando um que havia notado
antes. Medindo uma gota, ela o segurou sob a narina de Taryn,
silenciosamente se desculpando pela dor de cabeça que causaria
pela manhã enquanto a mulher roncava suavemente.
Lara saiu em uma poça luminosa. Uma brisa suave percorreu
seus cabelos, cheirando a selva e chuva, as estrelas no céu apenas
visíveis em trechos através da crescente nuvem de nuvens. Lara
pegou o lampião, elevou a chama o mais alto possível e depois
caminhou em direção à pequena dependência onde o banheiro
estava localizado.
Parando do lado de fora, ela sorriu com os sons vindos de
dentro, depois girou em círculo, olhando para a escuridão. Como
previsto, um homem alto Ithicano apareceu. — Existe algo em que
eu possa ajudá-la, Vossa Excelência? — Ele colocou o polegar no
cinto enquanto a olhava.
— Ah! — Lara pulou, depois pressionou a mão na boca como se
estivesse assustada. — Bem, eu precisava... — Ela apontou para o
prédio exatamente quando um peido tremendo reverberou de dentro
da construção, seguido por um gemido de consternação. Lara pode
estar fora de seu elemento em Ithicana, mas quando se tratava de
narcóticos, ela estava em casa. Nana estava exatamente onde
esperava que estivesse.
Os olhos do guarda se arregalaram à luz da lamparina. — Certo.
— Ele obviamente estava tentando não rir. — Entendo. Bem, talvez
você possa...
— Um arbusto serve. — Lara riu, empurrando a lamparina para
ele. — Você pode segurar isso para mim?
Aliviando-se atrás da cobertura de uma árvore, Lara voltou para
o guarda e pegou o lampião. Segurando-o, notou como ele apertou
os olhos e piscou com o brilho. — Você acha que ela vai ficar bem?
— Lara apontou para a casinha. — Você acha que deveríamos...?
— Não! — O pensamento de interromper Nana no banheiro
claramente não era algo que ele quisesse arriscar. — Tenho certeza
que ela vai ficar bem.
— Acredito que sim. — Lara deu um sorriso vencedor, depois se
retirou para a casa. Nana estaria cagando por horas, mas ficaria
bem na manhã seguinte. Apagando o lampião, ela o pendurou no
gancho e entrou.
Mas não fechou a porta completamente.
Contando até cinco, ela abriu novamente, recebida por nada
além de escuridão. Os olhos dela não tinham se ajustado da luz
brilhante da lamparina, mas isso significava que nem os do guarda.
Movendo-se às cegas, Lara deu a volta na esquina da casa, onde
esperou até que pudesse distinguir as sombras das árvores, depois
caiu no chão, rastejando silenciosamente ao lado da parede do
jardim de Nana até que estivesse na selva.
As árvores nesta ilha não eram tão grossas quanto em
Midwatch, a lua fraca e a luz das estrelas filtrada através das folhas,
permitindo que Lara se movesse a passos lentos pelo caminho em
direção ao píer da ponte. Qualquer som que ela emitia estava
coberto pela brisa do oceano, mas fazia uma pausa ocasional para
ouvir sons de perseguição. Não havia nenhum.
O leve aroma de rocha úmida pairava sobre seu nariz, estranho
e ainda familiar, e depois de um batimento cardíaco, Lara
reconheceu o odor único da pedra da ponte. Movendo-se mais
cautelosamente, para prevenir guardas, ela subiu o caminho até
que, através das árvores, distinguiu a grande sombra do píer
subindo pela noite. Uma sombra que se espalhava de norte a sul: a
ponte.
Abrindo caminho entre as árvores, Lara procurou por algum sinal
de guarda, mas não havia nenhum, então caminhou até a base do
píer. Foi construído a partir da combinação de um afloramento de
rocha natural e uma pedra de ponte, e sustentava a ponte talvez
seis metros acima do solo. O terreno ao redor era rochoso, então
não havia um caminho claro que levasse à entrada que sabia que
estava lá. Lara correu a unha contra a extensão da pedra da ponte
que compunha o píer, procurando na base o contorno da porta, mas
logo desistiu. Havia muitos arranhões e marcas, e ela não tinha
muito tempo. Então recorreu a empurrar a superfície, jogando seu
peso contra a pedra na esperança de que se abrisse.
Nada.
Xingando, Lara foi até a parte do píer que era de pedra natural.
Tirando as botas pesadas e colocando-as na sombra, ela começou
a subir. Mais e mais subia, costas e ombros queimando com o
esforço. Ela alcançou o fundo da ponte, sentindo ao lado desta e
sorrindo ao encontrar estrias lineares na pedra que forneciam
apoios de mão suficientes para ela subir. Seus dedos gritando com
ela, Lara subiu pela lateral da ponte, rolando para o topo.
A escuridão se espalhava sob ela em um interminável mar
noturno, apenas algumas pontadas de luz do interior da ilha
quebrando a escuridão aveludada. Movendo-se devagar, Lara
arrastou os dedos pelo meio da ponte, sabendo que acabaria
encontrando um marcador idêntico ao de quilômetro no interior.
O suor escorria por suas costas, seu relógio interno dizendo que
precisava voltar para a casa de Nana, mas ela continuou até
encontrá-lo. Então caminhou de volta ao píer, contando seus passos
cuidadosamente já calculados.
Apenas para ouvir vozes vindas da direção oposta.
— Malditos idiotas. O que eles estavam pensando em estacionar
um grupo de comerciantes acima de Gamire durante a noite?
Foi Jor. Ele e quem sabia quantos outros estavam no topo da
ponte com ela.
Com o coração batendo forte, Lara caiu de bruços, rastejando
até a beirada e espiando. Abaixo, um grupo saiu das árvores, um
deles carregando um pote com uma substância levemente brilhante.
— Eles não sabem que estão acima de Gamire, Jor. — A voz de
Lia. — Esse é o ponto principal.
— Não faz com que isso seja menos doloroso.
Lara rolou para a extremidade oposta do grupo abaixo, então
cuidadosamente se abaixou para o lado, os dedos suados tremendo
de esforço.
— Vocês dois estão terminando aí em cima?
A voz de Aren. Uma das mãos de Lara escorregou e ela ofegou,
balançando com uma mão até recuperar o aperto.
— Nós demos uma olhada. Há um grupo de comerciantes
acampados para a noite logo abaixo de nós, e a escotilha do lado de
cima está muito perto para que possamos entrar sem sermos
detectados. É uma caminhada de cinco quilômetros em qualquer
direção até a próxima escotilha e, com esses ventos soprando, eu
não aconselho. Ninguém está pensando em passar a noite
amarrado ao topo da ponte sob a chuva torrencial.
Aren soltou um suspiro cansado. — Nós vamos de barco, então.
— Em águas agitadas. Espero que tudo o que Nana deu à sua
adorável noiva acalme seu estômago o suficiente para a jornada.
Embora algo forte possa estar em ordem para lidar com seu maldito
pânico.
— Deixe Lara em paz. — A voz de Aren não estava divertida. —
Ela foi criada no deserto e não sabe nadar. Cair na água é um medo
válido.
— Sim, sim — Jor murmurou, e Lara usou o som para descer
ainda mais. Quando estava a três metros do fundo, ela pulou, seus
pés descalços fazendo um barulho rápido quando bateu no chão e
rolou, dando cinco longos passos até que estava fora de vista nas
árvores. A lama espremeu-se entre os dedos dos pés enquanto ela
circulava, observando Aren descansar as mãos no cais, uma acima
da outra, e pressionar duas vezes. Um leve clique e um painel de
pedra se abriu. Ele entrou.
Acima, Jor e Lia haviam amarrado uma corda através de um dos
muitos anéis embutidos na ponte e estavam descendo o píer lado a
lado. Lia estava puxando a corda pelo laço quando Aren ressurgiu e
disse: — Tem alguém dormindo bem em cima das portas
ensanguentadas.
— Como eu disse — respondeu Jor. — Idiotas.
— É isso ai. Vamos lá. — Aren começou a seguir o caminho em
direção à casa de Nana. Para recuperar ela, percebeu.
Merda. Lara esperou até que os outros o seguissem antes de
subir o píer para recuperar as botas do esconderijo. Seria uma
corrida louca ao voltar para a casa de Nana sem ser detectada, mas
não podia sair sem dar uma olhada lá dentro. Pressionando as
mãos duas vezes no mesmo local que Aren, Lara sorriu quando a
porta se abriu.
Ela esperava que estivesse totalmente escuro por dentro, mas
as escadas curvas que levavam para cima eram iluminadas por
mais lamparinas. Subindo os degraus três de cada vez, ela alcançou
uma parede de pedra lisa. Sabendo que havia o risco de ser pega,
mas julgando que valia a recompensa, apertou as mãos contra ela
duas vezes.
Clique.
Ela estremeceu com o som, depois abriu uma fresta da porta, o
bloco pesado se movendo em dobradiças silenciosas. De fato, havia
um homem dormindo na frente disso, seus roncos provavelmente
tudo o que impedia os soldados Ithicanos mascarados vigiando por
dentro de ter ouvido o barulho.
A porta precisava ser marcada para que os soldados de seu pai
pudessem encontrá-la por dentro. No entanto, ela sabia que os
Ithicanos varriam a ponte em busca de sinais de adulteração, de
modo que tinha que ser algo que eles não notariam.
Sua mente correu ao longo dos anos das lições de Serin,
sabendo que ela precisava de uma solução e que precisava se
apresentar imediatamente ou Aren iria alcançar Nana antes dela e
encontrá-la desaparecida.
Uma ideia surgiu em seus pensamentos. Puxando a faca, Lara
cortou uma ferida superficial no antebraço e depois afastou a
lâmina. Cobrindo os dedos em sangue, traçou cuidadosamente a
borda externa da porta. Uma vez seco, não seria perceptível contra
a pedra. Mas se pulverizado com o composto certo, reagiria.
Não havia tempo para fazer mais nada.
Fechando a porta com cuidado, Lara voou escada abaixo e
fechou a porta na base. Então estava correndo o mais rápido que
ousava, seus pés descalços arranhando raízes e pedras. Mas ela
não conseguia se mexer tão rápido com suas pesadas botas
Ithicanas, mantendo qualquer nível de silêncio.
À frente, ela percebeu o brilho fraco da jarra que Aren carregava
e diminuiu a velocidade, subindo tão perto deles quanto ousava. Ela
pensou em tentar passar por eles nas árvores, mas não havia
chance deles não a ouvirem. Não no escuro, neste ritmo.
A casa de Nana apareceu à frente.
Pense em um plano, ela silenciosamente gritou consigo mesma
enquanto observava Aren contornar a casa. Abriu a porta. Ele voltou
então em um flash gritando: — Onde ela está?
Puxando as botas, Lara cortou as árvores e depois saiu para a
clareira, caminhando através dela em direção a Aren. — Estou bem
aqui, então pare de gritar.
Ele olhou para ela, assim como seu guarda-costas e o guarda
encarregados de vigiar a casa. Nana escolheu esse momento para
abrir a porta do banheiro apenas com uma camisola e botas.
— O que — Aren exigiu saber — você está fazendo vagando
pela floresta no meio da noite?
A voz de Serin ecoou em sua cabeça: a maioria das pessoas
mente para evitar vergonha. Muito poucas pessoas mentem para se
envergonharem, o que inclina os outros a acreditar nelas.
Lara olhou para o chão, sabendo que o suor escorrendo pelo
rosto e a pele corada apenas acrescentariam verdade à mentira. —
Eu não estava me sentindo bem, e as instalações estavam... —
apontou para Nana — ocupadas.
Aren virou-se para a avó. — Você está doente?
— De caganeira. Eu vou viver.
— Deve ter sido algo que comemos. — Lara pressionou a mão
no estômago como se doesse. — Ou talvez alguma sujeira nos
ratos que me fez tocar.
— Ratos? Você a fez alimentar suas cobras? — Balançando a
cabeça, Aren virou-se para o guarda. — Onde diabos você estava?
— Aqui. Eu não a vi sair. Eu estava vigiando.
— Não muito bem.
— Eu estava tentando ser discreta — Lara retrucou, chutando a
ponta da bota na terra. — Agora, se você tiver terminado de ficar
boquiaberto comigo, eu gostaria de voltar a dormir.
Aren exalou um longo suspiro.
— O quê? — Lara cruzou os braços sob os seios e olhou para
ele.
— Uma frota de trinta navios Amaridianos está à espreita na
costa de Ithicana. Há uma tempestade que pode nos levar a gastar
mais tempo, mas Midwatch está sob meu comando, e eu preciso
voltar para preparar nossas defesas.
— Eles pretendem invadir?
— Provável. — Ele exalou. — Você pode voltar conosco ou ficar
aqui com Nana para as Marés de Guerra. Sua escolha.
— Eu vou voltar para Midwatch. — Nem no inferno havia como
passar outro dia com aquela mulher horrível. Não importava que, a
julgar pela expressão de olhos estreitos de Nana, a velha não tenha
sido totalmente enganada por sua decepção. Sem dúvida, amarraria
Lara na cama todas as noites e triplicaria a guarda. E por isso
precisava avançar com seu plano de atrair Aren, Lara acrescentou:
— Eu quero ir com você.
Sua testa franziu e ele desviou o olhar. — Não podemos
atravessar a ponte. Há uma grupo de comerciantes a caminho de
Southwatch, acampados acima deste píer durante a noite, e não
podemos entrar sem que eles vejam. Terá que ser de barco.
Lara engoliu o desconforto que ardia em seu estômago, ouvindo
os ventos crescentes. Controle seu medo, ela ordenou. Há muito a
ser ganho aqui, se você mantiver seu juízo sobre você.
— Eu vou conseguir — ela murmurou.
Aren se virou contra Taryn, que estava esfregando as têmporas.
— Não é seu melhor momento, soldada. Jor vai lidar com o seu
castigo quando estivermos em casa.
— Desculpe, Vossa Excelência — disse Taryn, e a culpa
aumentou brevemente em Lara antes de engoli-la.
Aren levou Lara pela mão na escuridão, Jor na liderança e Taryn
grogue atrás, a outra mulher carregando algo volumoso que
esbarrou em seu ombro enquanto corria.
Os ventos estavam subindo mais alto a cada segundo, mas
sobre eles, as ondas batendo contra as paredes do penhasco
encheram os ouvidos de Lara, e seu coração trovejou
violentamente, sabendo que eles pretendiam navegar por elas. O
suor rolou em suas costas enquanto alcançavam o topo da falésia
com vista para o mar, nada visível na escuridão, a lua e as estrelas
obscurecidas pelas nuvens.
Começou a chover.
Uma garoa fria que ensopou seus cabelos e escorreu pelas
costas de sua túnica enquanto ela observava os soldados
estacionados na ilha se esforçarem para levantar o que parecia ser
uma enorme escada de madeira no ar. A extremidade estava presa
a cordas e foram necessários oito para abaixá-la sobre a beira do
penhasco, na escuridão abaixo.
— Há uma grande rocha aflorando abaixo — Aren gritou em seu
ouvido. — Descemos e depois iremos para a ilhota onde ancoramos
os barcos. A maré está baixa, mas a água ainda estará nos seus
joelhos.
— Vamos lá! — Jor estava na escada e desceu em direção ao
mar abaixo, Lia o seguindo.
— Eu vou primeiro. Então você, então Taryn.
Lara assentiu sem palavras, incapaz de falar com o bater de
seus dentes. Aren subiu na escada e desceu, mas quando Lara
agarrou os degraus, seus dedos estavam dormentes. Seus braços e
pernas tremiam, e levou toda a sua força de vontade para descer.
Para baixo e para baixo em direção à água.
Se eles podem fazer isso, então você pode. Ela repetiu o
cântico, os lábios se movendo silenciosamente, as mãos
escorregadias de suor, gotas borrifando nas roupas enquanto ondas
após ondas martelavam o afloramento abaixo. Finalmente, às mãos
de Aren se fecharam em torno de sua cintura, firmando-a enquanto
ela pisava nas pedras viscosas. Taryn caiu um momento depois, e
quando ela deu a chamada, houve um rangido quando os soldados
subiram a escada de volta à ilha.
Lara não viu nada. Nada. Mas ao seu redor, a água rugia. Um
passo na direção errada e estava morta. O pensamento a fez cair de
joelhos, apertando os dedos nas pedras.
— Não temos tempo para você rastejar — Aren gritou sobre o
barulho. — Estaremos em uma situação muito pior se ficarmos
presos aqui quando a maré mudar.
Seus joelhos tremiam quando ela se levantou, sua respiração
saindo em um grande suspiro quando deu um passo, depois dois,
permitindo que Aren a guiasse.
— Jor marcou o caminho. — Aren levantou a mão, usando-a
para apontar, porque não podia ver o contorno dele na escuridão.
Lá.
Manchas de algas brilhantes eram fracamente visíveis a cada
poucos passos. Seu coração se firmou e ela seguiu em frente, sua
confiança crescendo a cada passo.
— Há cerca de um trecho de três metros daqui que está
submerso. Você ficará de joelhos, mas a corrente é forte, então se
segure em mim.
— Maldito seja por me forçar a fazer isso.
Aren riu, o que a irritou o suficiente para dar o primeiro passo.
A bota de Lara encheu-se de água, a corrente empurrando
contra sua perna, arrastando-a na direção oposta à medida que
subiu. Ela se agarrou ao cinto de Aren, sentindo a mão firme de
Taryn em seu ombro por trás.
Passo.
Passo.
Seu dedo pegou uma pedra e Lara tropeçou, um soluço rasgou
sua garganta quando recuperou o equilíbrio.
Passo.
Passo.
Uma grande onda surgiu contra ela, e ela deslizou para o lado,
as pernas lavadas debaixo dela. Ela estava até a cintura na água,
apenas o aperto no cinto de Aren a mantendo na vertical. O grito
dela cortou a noite, frenético, desesperado e primitivo, depois as
mãos dele se fecharam em torno de seus braços, arrastando-a da
água.
— Você está fora. Está tudo bem. O pior acabou.
— No segundo em que estiver em terra seca, vou estripá-lo
como um porco! — Ela odiava ter medo e a única coisa forte o
suficiente para afugentar a emoção era a raiva. — Eu vou sufocá-lo
enquanto dorme!
Uma dúzia de vozes riu, a voz de Jor a mais alta de todas. — E
ela finalmente mostra suas verdadeiras intenções.
Aren bufou. — Você pode cortar seu sarcasmo até que você
esteja em um lugar onde não possa pegá-lo e jogá-lo no mar. —
Então Aren foi para o outro lado da ilhota.
A mão de Taryn pegou seu cotovelo, ajudando a garota a se
levantar. — Vamos levar apenas uma hora para chegar a Midwatch.
— Ela apertou uma alça na mão de Lara. — Eu pedi a um dos
moradores que fizesse isso para você. Se algo acontecer, você será
mantida flutuando até que um de nós possa levá-la de volta ao
barco.
Lara passou as mãos pelo objeto, que era uma alça presa a um
barril. Um pequeno ato, mas uma enorme bondade. E uma que Lara
não merecia. — Obrigada.
Os Ithicanos a depositaram em um dos barcos e ela se encolheu
ali, agarrando-se com uma mão ao barril e a outra à beira enquanto
empurravam para a água. Suas vozes eram despreocupadas,
apesar de ser uma loucura que nenhum indivíduo são empreenderia
sob nenhuma circunstância.
O barco subiu e desceu sobre as ondas, e seu estômago fez o
mesmo, mas Lara não conseguiu se soltar o suficiente para pegar a
raiz que Nana lhe deu em seu bolso. Ela estava ocupada vomitando
na borda quando o grupo ficou em silêncio, as mãos ainda em
cabos e lemes e cordas.
— Lá estão eles. — A voz de Lia soou.
Jor xingou baixinho. — Espero que essa tempestade se torne
desagradável e os coloque no fundo do mar.
Erguendo a cabeça, Lara olhou com dificuldade sobre a água.
Balançando ao longe havia dezenas, não, centenas de luzes. E
transportado pelo vento na direção deles, havia o som da música e
das vozes cantadas.
Navios.
A frota Amaridiana.
— Nós devemos acender alguns deles — Lia retrucou. — Isso
abafaria a festa deles.
Como uma só, todas as cabeças se viraram na direção de Aren.
Unhas cavando na beira do barco, Lara esperou para ver como ele
reagiria.
— Continue para Midwatch. — Sua voz era baixa.
— Mas poderíamos afundar alguns deles, — argumentou Lia. —
Nós temos os suprimentos.
— Midwatch — Aren repetiu. — Eles não atacaram e nós não
instigaremos.
— Mas eles vão! Você sabe que assim que o tempo mudar, eles
invadirão!
— Quando invadirem, lutaremos contra eles. Como sempre.
Não havia emoção na voz de Aren, mas Lara podia sentir
frustração e raiva saindo dele em ondas.
— Ou poderíamos detê-los agora. — Lia não estava desistindo.
— Eles estão fora de nossas águas e não mostraram agressão.
— Aren se mexeu inquieto, seu joelho roçando nas costas de Lara.
— Se atacarmos sem provocação, Amarid terá motivos para
declarar guerra contra nós. São alguns navios - um ataque. Nós
podemos lidar com isso. A força total da frota de Amarid contra nós
é uma questão completamente diferente. Ithicana não instiga conflito
- não podemos permitir. Agora, nos leve de volta para Midwatch.
Sem palavras, todos começaram a se mover e os barcos
recuperaram a velocidade, pulando através das ondas. No entanto,
Lara não conseguia desviar o olhar da luz fraca da frota, o discurso
do pai daquele fatídico jantar mudando e sacudindo em sua cabeça.
Durante toda a memória, Ithicana colocou um domínio sobre o
comércio, criando Reinos e quebrando-os como se fosse um deus
das trevas.
Ela acreditou nisso. Acreditava nele sem questionar. No entanto,
as palavras de Aren... elas não eram de um governante com poder
divino. Muito pelo contrário. Foram as palavras de um líder de um
Reino que lutava para sobreviver.
20
AREN

A ,
areia e depois saíram para assar no sol do verão por uma semana.
As costelas latejavam, as costas doíam e as palmas das mãos
estavam marcadas por bolhas devido a muitos dias de uso
excessivo. O pior foi o dente que ele tinha quase certeza de ter sido
arrancado quando Lara acidentalmente bateu em seu rosto depois
que quase foi varrida pelo oceano. Ele rezou para que isso se
resolvesse, ou Nana nunca o deixaria ouvir o fim.
— Estamos o mais prontos possível. — Jor bebeu
profundamente de um frasco de prata que tirou do bolso antes de
passá-lo pela fogueira para o Rei. — Parece que você precisa disso.
Ele provavelmente precisava, mas Aren acenou com o frasco.
Sua equipe mais Lara com o rosto pálido reboque, havia retornado a
Midwatch pouco antes do amanhecer, e o dia inteiro havia sido
gasto em preparação para o inevitável ataque Amaridiano. Agora,
havia pouco a fazer além de observar o tempo. Com os ventos
ainda altos, é improvável que os atacantes tentem atracar, mas uma
tempestade leve como essa não duraria. E certamente não seria
suficiente para levar os navios de volta à segurança dos portos
Amaridianos. — Eu vou fazer a próxima patrulha.
Jor levantou uma sobrancelha. — Você já fez o seu turno.
— Eu preciso me mover. Você sabe que o ócio me deixa louco.
— Está com uma chuva fria. Você vai se arrepender de sua
decisão no meio da ilha.
— Arrependimento — disse Aren, pegando sua capa, —
atualmente é o meu nome do meio.
— Você está particularmente choroso essa noite.
Coçando a bochecha com o dedo médio, Aren ergueu a mão
para reconhecer o soldado que acabou de chegar do perímetro,
depois passou pela porta.
— É melhor ir com você. Apenas no caso de você desistir no
meio do caminho e correr para o conforto da casa chique.
— Eu não contaria com isso.
A chuva forte estava congelando, o vento soprando o capuz da
capa de Aren até que desistiu de cobrir a cabeça. Eles caminharam
em silêncio por um longo tempo, mais concentrados em manter os
pés nas pedras escorregadias e na lama enquanto atravessavam os
penhascos com vista para o mar. Mais de alguns soldados haviam
morrido e, apesar da série de dias de merda que teve, Aren não se
importou em se juntar a eles.
Quando alcançaram o primeiro mirante, os dois olhando para as
águas agitadas, Jor finalmente disse: — Você estava certo em não
ceder com eles ontem.
— Talvez. — Os pensamentos de Aren foram para a reunião em
Eranahl, para os rostos duros de seus comandantes de Watch
quando eles chegaram, abrindo caminho pelos evacuados que
desembarcavam de seus navios, suprimentos e crianças chorando
por toda parte. A evacuações desorganizadas da atualidade, ele
ouviu os murmúrios mais vezes do que poderia contar. Ele estava
inclinado a concordar com o sentimento.
— É dever do conselho questionar você. Eles pressionavam sua
mãe constantemente, especialmente sobre isso. Ela aprendeu a
saber quando estavam dando bons conselhos e quando era o medo
deles falando - quando defender sua posição e quando conceder.
Aren extraiu sua luneta, examinando a escuridão em busca de
quaisquer luzes no horizonte que marcassem um navio. — Você
acha que eu estava certo em defender minha posição nisso?
O único som era o vento uivando e as ondas batendo contra os
penhascos abaixo. — Eu não sei. Não sei se há uma escolha certa
nisso, Aren. Todos os caminhos levam à guerra. — Jor recostou-se
nas mãos. — Mas o que está feito está feito, pelo menos no que diz
respeito à batalha que estamos enfrentando. Agora, se você me der
licença, preciso mijar.
O homem mais velho desapareceu silenciosamente na selva e,
em seguida, fez suas necessidades não tão silenciosamente. Aren
permaneceu agachado nas rochas, enfiando as mãos nos bolsos
para aquecê-las. Com a evacuação praticamente concluída, seu
pessoal havia respondido à convocação anual de armas, todos entre
quinze e cinquenta anos, a caminho ou para a guarnição designada,
a única exceção sendo famílias com crianças pequenas, que
enviavam apenas um dos pais. Corpos capazes podem lutar. Os
incapazes desempenham outros papéis, sejam eles vigilantes,
enviando sinais, organizando quedas de suprimentos ou
gerenciando a complexa tarefa de garantir que cada uma das
centenas de postos avançados tenha uma equipe adequada.
Ithicana não tinha civis durante as Marés de Guerra. Tinha um
exército.
Um exército furioso por Amarid os ter pego com as calças em
Serrith. Uma ilha que estava por acaso sob a vigilância de Aren.
De novo e de novo, ele repetia a reunião do conselho das Marés
de Guerra em sua cabeça, vendo centenas de coisas que poderia
ter feito de maneira diferente. Dito de forma diferente.
— Eu entendo que você sofreu muitas perdas em Serrith, Vossa
Excelência. — Ressoou a voz da comandante Mara ecoando em
sua cabeça. — Já são duas vezes que Amarid se aproximou de
você, e a Maré de Guerra está apenas começando. A linda garota
maridriniana deve ser uma distração e tanto.
Todos na sala se mexeram inquietamente, Lara era o ponto
crucial da farpa, não as perdas. Eles sabiam que Serrith era um
pesadelo para defender, a proximidade da ponte, com a praia
permitindo que os navios se escondessem embaixo dela enquanto
lançavam embarcações de desembarque, tornando inúteis os
destruidores de navios. Era necessário mão-de-obra e preparação
para adiar um ataque e, mesmo assim, com forte neblina, os
soldados estacionados ali teriam apenas alguns minutos - o tempo
necessário para os botes chegarem à praia - para se defenderem. O
que seria suficiente se o homem de guarda não tivesse adormecido
em seu posto. Um erro que o soldado pagou com sua vida.
— Eu entendo que ela estava com você quando o ataque
aconteceu. Na ponte.
Não havia esperança de manter isso quieto. Não com todos os
evacuados de Serrith agora em Eranahl. A fofoca se moveu mais
rápido que uma tempestade em Ithicana. A única graça salvadora
era que Aster estava atrasado para a reunião. Se o comandante da
guarda soubesse o que Lara vira, o velho bastardo estouraria um
vaso sanguíneo. — Nunca foi minha intenção manter Lara trancada.
Todos vocês sabem disso.
No entanto, também não tinha sido sua intenção trazê-la para a
ponte ou para ver como suas forças armadas a usavam para
combater seus inimigos. Mas observando-a entrar em pânico no
barco, ofegante e tremendo incontrolavelmente... Ele não tinha sido
capaz de aguentar. Ele não estava disposto a admitir isso diante
desses homens e mulheres endurecidos pela batalha, cujo respeito
precisava ganhar.
— Conhecer suas intenções não é o mesmo que concordar com
elas. Os Maridrianos são ratos. Solte um, e em breve toda a Ithicana
ficará infestada com eles.
— Os Maridrianos são nossos aliados — disse Ahnna de onde
estava, no extremo oposto da grande réplica de Ithicana, com a mão
apoiada de forma protetora na ilha de Southwatch.
Mara fez uma careta. — Os Maridrianos são nossos parceiros de
negócios, na melhor das hipóteses, Ahnna. Nós os pagamos pela
paz. Isso não é uma aliança.
Mas poderia ser, pensou Aren antes de interromper. — Eles nos
deram quinze anos de paz em troca de nada, Mara. Eles provaram
seu compromisso com o tratado, e agora é hora de fazermos o
mesmo.
— Mas a que custo? — Mara apontou para o meio do mapa,
onde os navios modelo Amaridianos estavam pousados para
representar a frota inimiga à espreita. — Os Amaridianos sempre
foram os piores ladrões de Ithicana, principalmente porque eram
concorrentes do mesmo negócio: o comércio entre os continentes.
Os navios mercantes de Amarid assumiram os maiores riscos,
atravessando o norte e o sul mesmo durante a estação das
tempestades, principalmente o tráfico de mercadorias de que
Ithicana não queria participar de seus mercados. Maridrina fez uso
pesado de seus serviços. Até agora. E a Rainha Amaridiana
claramente pretendia manifestar seu descontentamento por esse
fato.
— Depois que os termos forem negociados com Harendell, eles
verificarão a frota de Amarid — disse Aren. Enquanto Amarid
poderia arriscar brigar com Ithicana, travar batalhas com seu
enorme vizinho era outra coisa completamente diferente.
— Harendell já pediu por Ahnna?
Aren sentiu sua irmã gêmea se mexendo nervosamente atrás
dele. — Não.
— Iniciou negociações comerciais?
— Ainda não. — O suor escorria pelas costas de Aren, foi uma
luta não ranger os dentes. — O que não é surpreendente. Eles
estarão esperando para ver como está a paz no sul antes de
começar a fazer exigências.
— Não cheira a paz. — Todos se viraram para assistir o
comandante Aster entrar na sala. — Cheira a guerra pra mim.
Ele entregou a Aren uma carta dobrada selada com cera cor de
ametista, estampada com o emblema valcotticano do cajado
cruzado. — Encontrei o mensageiro na ponte e pensei em trazer
isso diretamente para você.
Você quer dizer que pensou em me ter lendo na frente de todos,
pensou Aren, quebrando a cera com mais força do que o
necessário, lendo as poucas linhas e lutando para manter uma
careta no rosto enquanto ele colocava a página na réplica de
Midwatch. A imperatriz de Valcotta era uma mulher sensata. Os
valcotticanos eram pessoas sensatas. Mas ambos odiavam
Maridrina de uma maneira que limitava a religião. Foi um sentimento
que os Maridrianos retornaram.
— Então? — Mara exigiu saber ao mesmo tempo que Aster
deixou escapar: — Valcotta declarou guerra contra nós?
De olhos na página, Aren leu: — À Sua Majestade Real, o Rei
Aren Kertell, Rei de Ithicana, Governante dos Mares de Tempestade
e Mestre da Ponte.
Todos na sala pareciam prender a respiração, e ele sabia o
porquê. Até hoje, a imperatriz sempre se referia a ele como Querido
Aren, filho amado do meu amigo, que Deus mantenha sua alma em
paz. O uso de seus títulos não era um bom sinal.
Ele continuou. — Há muito tempo que Valcotta e Ithicana são
amigas...
— Amigos que atacam quando o tempo está bom — Jor
murmurou de onde ele estava à esquerda de Aren.
— Todos os amigos brigam de vez em quando — disse Aster. —
Você vai continuar, Vossa Excelência?
Aren tossiu. — Há muito tempo que Valcotta e Ithicana são
amigas, e nos entristece muito saber que você escolheu trair essa
amizade ao ficar no lado de Maridrina contra nós.
Alguém na sala soltou um assobio baixo, mas Aren não levantou
a cabeça da página. — Quebra nosso coração saber que nosso
querido amigo Ithicano agora ajuda nosso inimigo mortal em seus
ataques injustos contra nossas terras. E todos os nossos mortos
estão ao seus pés.
Ninguém falou.
— Forte é o nosso desejo de manter nossa amizade com
Ithicana, mas essa afronta não pode ficar sem resposta. Quando a
calma estiver sobre nós, distribuiremos nossas frotas para bloquear
nosso inimigo, Maridrina, de alcançar seus mercados na ilha
Southwatch até que essa aliança ofensiva seja quebrada.
Ele foi impedido de ler o resto, quando Aster e Mara começaram
a rir, grande parte da sala ecoando. — A boa sorte está do nosso
lado, afinal — Aster finalmente conseguiu sair. — Silas achou que
era tão esperto. Achei que ele conseguiu extrair de nós uma coisa
que não queríamos dar, mas nem ele, nem Maridrina verão nada
disso.
Aren não tinha rido então, e ele certamente não estava rindo
agora. Um galho estalou, e se afastou de seus pensamentos,
virando-se para ver Jor voltar para as rochas, ainda no processo de
afivelar o cinto.
— Os ventos estão se fortalecendo — disse Jor. — A
tempestade vai se enfurecer mais forte antes de dar o último
suspiro. Amarid terá que esfriar os calcanhares por alguns dias
antes de virem buscar sangue. — O velho soldado sorriu para Aren.
— É um momento oportuno para você passar algum tempo com sua
linda esposa. Ela está começando a gostar de você, posso dizer.
— Você chegou a todas essas realizações enquanto estava
cagando?
— É quando eu penso melhor. Agora vá. Vou terminar a patrulha.
Levantando-se, Aren lançou o olhar na direção de sua casa e
depois balançou a cabeça. Lara deveria ser o primeiro passo em
direção a um futuro melhor para a Ithicana. Mas com Amarid prestes
a travar uma guerra e Valcotta fazendo o possível para destruir o
tratado, um futuro melhor não parecia mais um sonho.
Parecia uma ilusão.
21
LARA

L ,
fraco no leste e o outro nos Ithicanos agrupados na clareira em
frente ao quartel. A água da chuva escorria por sua nuca, mas
depois de três noites espionando do telhado da grande estrutura de
pedra, ela mal notava a interminável umidade.
A população de Midwatch havia crescido quatro, se não cinco
vezes, nos últimos dias, homens e mulheres chegando de barco
para se juntar aos pelotões. Eles eram civis - ou pelo menos haviam
sido até o começo das Marés da Guerra - mas chamá-los de tal
parecia um nome impróprio, pois eles entraram na rotina eficiente de
Midwatch habilmente. Até o mais novo, que não devia ter mais de
quinze anos, parecia ter chegado totalmente treinado.
Ainda assim, os oficiais de classificação - que eram todos
soldados na Midwatch - passaram por treinamento após
treinamento, dia e noite, sem deixar nada ao acaso.
E qualquer coisa que acontecesse de madrugada, Lara era
testemunha.
Sair da casa de Midwatch não era um grande desafio, apesar do
número de guardas que Aren havia colocado na casa. Primeiro
porque ela ganhou um pouco de confiança deles ao salvar a vida de
Aren durante a batalha na Ilha Serrith, para que eles não estivessem
mais esperando que fizesse algo nefasto. Segundo porque as
nuvens das tempestades tornavam a noite mais escura, dando-lhe a
cobertura perfeita para escapar. E terceiro porque os Ithicanos
estavam distraídos com o que consideravam uma ameaça muito
maior do que uma jovem se banhando em uma fonte termal:
Os Amaridianos.
A frota permaneceu na costa de Ithicana, embora não houvesse
ataques desde Serrith. Eli, a fonte de grande parte das informações
de Lara, havia lhe dito que era improvável que atacassem até o
tempo melhorar. As águas eram rasas e cheias de rochas e bancos
de areias, assim como as defesas artificiais pelas quais Ithicana era
conhecida, ventos imprevisíveis e pouca visibilidade tornavam o
ataque no clima ruim desaconselhável.
Mas a tempestade não duraria para sempre, e Midwatch
fervilhava com antecipação das batalhas que viriam. O que serviu
bem aos propósitos de Lara.
Sua cabeça já estava cheia com o que ela havia aprendido
durante sua aventura em Midwatch com Aren, e as últimas três
noites renderam ainda mais. Do seu poleiro, ela aprendeu muito
sobre como a ponte era patrulhada, por dentro e por fora, onde
sentinelas estavam estacionados nas ilhas vizinhas e os sinais que
eles usavam para se comunicar com Midwatch, que parecia
funcionar como um ponto de controle central para essa área de
Ithicana. Ela aprendeu sobre os explosivos que usavam para abater
navios inimigos, disparados por flechas ou lançados por
destruidores de navios e, se a história que ela ouvira era verdadeira,
plantados ocasionalmente à mão sob a cobertura da noite.
Ela os assistiu treinar, trabalhando na chuva com apenas uma
luz fraca da lamparina para evitar a atenção de alguém na água.
Corpo a corpo, com lâminas e arco, os piores eram pelo menos
proficientes. O melhor deles... bem, ela não iria querer lutar contra
os melhores, a menos que precisasse. Suas armas eram de
excelente qualidade, cada um deles armado até os dentes, a
guarnição empilhada o suficiente para suprir peças de reposição.
Midwatch era apenas uma peça do quebra-cabeça, mas se era o
padrão que Ithicana se mantinha, então o que Serin e o resto de
seus mestres haviam dito a Lara e suas irmãs sobre Ithicana ser
impenetrável tinham uma precisão alarmante.
Mas quanto ao resto do que ela e suas irmãs haviam sido
informadas sobre Ithicana... isso, Lara estava questionando.
Questionando o que era verdade e o que era mentira, porque era
impossível que todas as partes tivessem sido honestas com ela.
Não com todos alegando ser a vítima e ninguém o agressor.
Alguém a estava enganando.
Ou todo mundo estava. Afastando uma mecha de cabelo
molhado de seu rosto, Lara desejou, não pela primeira vez, que lhe
fosse permitido ter passado um tempo longe do complexo. Tudo o
que sabia vinha de livros e de seus mestres. Fora do combate, ela
era como uma estudiosa que entendia do mundo, mas nunca saia
da biblioteca. Era uma limitação, e uma que apontou para Serin
várias vezes, para sua irritação sem fim.
— Não vale a pena arriscar — ele retrucou. — Tudo o que você
precisa é de um deslize de sua parte, e tudo pelo que trabalhamos,
lutamos, será desfeito. O seu desejo por uma estadia vale a pena
perder a única chance de Maridrina escapar da coleira de Ithicana?
— Ele nunca esperou por uma resposta, apenas deu um tapa na
bochecha dela e disse: — Lembre-se do seu propósito.
Mestre Erik tinha lhe dado uma resposta diferente quando ela
pressionou. — Seu pai é um homem que precisa de controle,
pequena barata — disse ele, passando uma pedra de amolar por
uma lâmina. — Aqui, ele pode controlar todas as variáveis, mas lá
fora — ele usou a arma para gesticular para o deserto, — o
verdadeiro controle está além do poder de um Rei. Sua vida é assim
por necessidade, minha menina. Mas não será assim para sempre.
Suas palavras a enfureceram na época - uma vaga resposta, na
opinião infantil dela - mas agora... Agora ela se perguntava se havia
mais profundidade em sua resposta do que havia percebido.
Agora se perguntava se a variável que seu pai mais queria
controlar era ela.
A porta principal do quartel se abriu e fechou embaixo dela, e a
atenção de Lara se animou quando uma figura alta saiu do prédio.
Ele estava com o capuz puxado contra a chuva, roupas idênticas às
de todos os outros soldados, mas ela sabia instintivamente que era
Aren. Algo sobre o passo dele. O jeito que ele segurava seus
ombros. A pitada de orgulho que irradiava dele enquanto examinava
as tropas. E algo mais que ela não conseguia identificar...
Ela sabia que o que seu pai e Serin haviam dito sobre o Rei de
Ithicana havia sido uma mentira - embora ela entendesse o porquê.
Era mais fácil esfaquear um demônio pelas costas. Uma coisa muito
mais difícil de trair um homem cujas ações e escolhas foram
motivadas pelo desejo de fazer o que é certo por seu povo. Mas ela
também sabia que sua terra natal e Ithicana estavam em desacordo,
e o que salvaria um, danificaria o outro. O bem-estar de seu povo
era sua prioridade, sua missão de dar a eles a única coisa que
garantiria seu futuro. E por esse motivo, Aren nunca poderia ser
algo para ela, a não ser seu inimigo.
Aren se aproximou dos soldados de treinamento para dizer algo
à mulher que liderava os exercícios, e Lara se inclinou para frente
para captar o que era. Quando se aproximou, um pedaço de entulho
escorregou do telhado do quartel, aterrissando com um baque
suave no chão.
Aren girou nos calcanhares, uma mão indo para a arma presa na
cintura, a outra empurrando o capuz.
Lara congelou. Vestida com roupas pretas, ela estava escondida
na escuridão no topo do telhado. A menos que alguém levantasse
uma lamparina para investigar um ruído.
Com a ponta da bota, Aren cutucou o pedaço caído de galho e
folhas. Lara silenciosamente desejou que ele desviasse o olhar. Não
é nada. Apenas folhagem solta pelo vento. Acontece cem vezes por
dia. Mas, mesmo assim, ela pode identificar como o sexto sentido o
dizia que algo não estava certo.
— Alguém traga uma lamparina aqui. E uma escada. Acho que
temos cobras no telhado novamente.
Com o pulso rugindo em seus ouvidos, Lara recuou, seus dedos
segurando a pedra viscosa de seu esconderijo. Ele ouviria o menor
ruído, mas se não se movesse rápido...
Uma buzina soou ao longe, e os Ithicanos - incluindo Aren -
pararam o que estavam fazendo e se viraram na direção da água.
Outra buzina soou, essa mais perto, e Aren deu um aceno agudo. —
Amaridianos estão em movimento. — Ele começou a gritar ordens,
mas Lara não podia ficar para ouvir. O amanhecer estava se
aproximando, e ela precisava da cobertura da noite para voltar à
casa sem ser detectada. E precisava estar lá dentro quando o sol
nascesse, ou sua ausência seria notada.
Passando pela parte de trás do quartel, ela pulou, agarrando um
galho de árvore que realmente precisava ser cortado. De árvore em
árvore, ela subiu e caiu no abrigo da selva. Usando a rota que havia
estabelecido em sua primeira noite, ela cortou o caminho que levava
à casa, movendo-se tão rápido quanto ousou na terra lamacenta.
Gorrick e Lia estavam guardando o exterior, e ela
silenciosamente circulou até encontrar um lugar fora da vista dos
dois, depois escalou a parede, rastejou sobre o telhado e caiu no
pátio. Entrando pela janela rachada, rapidamente limpou a lama de
suas botas e roupas, colocando tudo de volta no guarda-roupa onde
poderia secar sem ser detectado.
Uma batida soou na porta, a trava batendo. — Vossa
Excelência? É madrugada.
Taryn. A mulher era como um maldito relógio. Desde que ela
percebeu o fracasso em vigiar Lara enquanto estavam na casa de
Nana, Taryn pretendia se redimir, monitorando Lara como um falcão.
Ela dormia no corredor do lado de fora da porta de Lara - teria
dormido ao lado de sua cama se Lara não tivesse notado
gentilmente que o ronco de Taryn rivalizava com as tempestades em
volume.
Se ela não respondesse, Taryn provavelmente quebraria a porta.
— Indo!
Vestindo uma túnica e enrolando uma toalha no cabelo, Lara
correu pelo chão e abriu a porta. — Algo está errado? Eu ouvi as
cornetas?
— Amarid — Taryn respondeu vagamente, então seus olhos se
estreitaram. — Por que há lama no seu rosto?
— Eu estava apenas lavando. Certas lamas são boas para a
pele. Elas limpam os poros.
— Lama? — Taryn lhe deu uma carranca duvidosa, depois
balançou a cabeça, passando uma mão cansada sobre os olhos
antes de entrar no quarto, dando uma olhada de novo. — Eu disse
para você não deixar sua janela aberta. Você está pedindo para
acordar com uma cobra debaixo das cobertas.
— Eu só abri agora — mentiu Lara. — Estava abafado aqui.
Taryn verificou debaixo da cama. — A tempestade acabou, então
você pode sair se quiser ar fresco. — Então ela virou a capa e
xingou, dando um passo atrás. — O que eu te disse?
Uma pequena cobra, preta com faixas amarelas, estava enrolada
no centro da cama, sibilando furiosamente para elas. Murmurando
baixinho, Taryn entrou no corredor e gritou por Eli, que apareceu
momentos depois, um longo graveto com uma corda na ponta. Ele
habilmente pegou a criatura, o laço apertando seu pescoço, depois
partiu tão rapidamente quanto ele veio, serpente a reboque.
Aparentemente, Lara precisava adicionar checar quarto para
cobras em sua rotina ao retornar de uma missão de
reconhecimento.
Embora não houvesse muito mais a ganhar do telhado do
quartel. Ou de Midwatch, para esse assunto. Era uma noz quase
impossível de quebrar, a menos que seu pai conseguisse alguém
por dentro. Idealmente, seria ela, mas ela pretendia estar muito
longe antes de Maridrina invadir, sua vida tanto em perigo pelos
soldados de seu pai quanto pelos Ithicanos quando percebessem
que os traíra. O que significava que ela precisava encontrar um
ponto de entrada que não fosse Midwatch para o pai explorar.
— Eu vou fechar sua janela. — Taryn se afastou para que a tia
de Eli pudesse entrar com a bandeja do café da manhã, que foi
depositada na mesinha. — Ou então comece a trancar Vitex aqui
com você à noite.
O pensamento de dormir com o enorme gato a observando deu
arrepios a Lara. — Eu vou manter isso fechado. Eu prometo.
Sentando à mesa, Lara carregou dois pratos cheios de comida e
depois gesticulou para a outra mulher se juntar a ela, ambas
bebendo profundamente seus cafés fumegantes. Elas se tornaram
cada vez mais familiares em seu tempo juntas, Taryn era fácil de
conviver, de uma maneira que lembrou Lara de suas irmãs. —
Amarid atacou?
— Ainda não. Eles sabem que não têm mais o elemento
surpresa, então procuram pontos de fraqueza.
— Aren...
— Ele estará na água, certificando-se de que não temos pontos
de fraqueza. Por quê? — Taryn sorriu. — Saudades dele?
Lara deu uma risada divertida que poderia ser entendida de
qualquer forma, mas as rodas estavam girando em sua cabeça.
Aren indo embora significava que não havia ninguém na Midwatch
para dizer não. — Eu queria perguntar uma coisa...
— Ah?
— Eu quero me acostumar a estar na água.
Taryn parou ao mastigar um bocado de presunto e depois
engoliu. — Marés de Guerra não é exatamente o momento ideal
para velejar sem rumo, Lara.
Lara deu-lhe um chute suave debaixo da mesa. — Eu sei disso.
Eu estava pensando em sentar em um barco na enseada. Então,
talvez no final da Maré de Guerra eu tenha me adaptado à água o
suficiente para me aventurar mais sem sujeitar todo mundo ao meu
vômito.
Taryn deu outra mordida na carne, a testa franzida. — Há muitas
idas e vindas no momento...
— Existe outro local que funcionaria melhor? Não quero ficar no
caminho. — E se houvesse outro ponto de desembarque na ilha -
talvez um com menos defesas - poderia diminuir sua necessidade
de encontrar outra entrada para a ponte.
— Nenhum lugar com uma praia adequada.
Lara exalou em decepção. — É só que me sinto tão presa.
Quero ver mais de Ithicana, mas com o meu enjoo e o meu... medo,
parece impossível.
Presa como Taryn se sentia presa. Limitada onde ela poderia ir e
o que pode fazer por circunstâncias e necessidade. Lara viu suas
palavras tocarem o alvo, a outra mulher pousando o garfo, os olhos
distantes enquanto pensava. — Suponho que poderíamos tentar por
uma hora e ver se alguém discorda.
Lara sorriu. — Deixe-me lavar o resto dessa lama do meu rosto e
então podemos ir.
Três horas depois, as duas estavam sentados em uma canoa
balançando, Lara tentando acompanhar os acontecimentos na
enseada, enquanto periodicamente se inclinava para o lado para
esvaziar suas entranhas.
Taryn a levou para outro prédio não muito longe do quartel, que
estava cheio de uma variedade de embarcações que não estavam
em uso no momento. Ela selecionou uma pequena canoa que não
caberia mais do que as duas, tão velha que mal parecia navegável.
Ninguém sentiria falta desse barco em particular. Enquanto o
carregavam até a praia, Lara silenciosamente considerou como
poderia escondê-lo para sua eventual fuga.
Ela descansou os antebraços na beira da canoa e observou a
corrente que guardava a boca na enseada subir, para que os navios
pudessem transportar mercadorias do píer para a costa. Caixas de
comida, suprimentos e armas, todos vindos de Harendell. Havia
gaiolas de galos cacarejando, três porcos vivos e uma dúzia de
cortes de carne, os movimentos dos Ithicanos escondidos por uma
névoa pesada.
As cornetas nunca pareciam parar de tocar. Ondas de som que
transmitiam inúmeras mensagens diferentes, a julgar pelas várias
reações que incitavam, e não algo que pudesse ser imitado por um
soldado maridriniano não treinado. Lara suspeitava que seu pai
precisaria recrutar músicos, caso desejasse transformar a forma de
comunicação em seu favor. Tomando um gole de um cantil com
água, Lara esfregou a têmpora latejante enquanto ouvia as notas,
tentando memorizar padrões e respostas, embora levasse dias,
provavelmente semanas, ouvindo e olhando para que ela
entendesse alguma coisa.
A canoa girou, então ela estava de costas para os penhascos
que protegiam a enseada do mar, mas o barulho da corrente
chamou sua atenção e ela se virou para assistir uma série de
embarcações entrando, seus olhos encontrando Aren
imediatamente em um deles.
E ele a encontrando.
Ela o observou trocar palavras com Jor, depois o navio alterou
seu curso da praia para a pequena canoa de Lara. De pé, ele
segurou o mastro quando os dois barcos vieram ao lado. —
Suponho que haja uma explicação interessante para isso?
Taryn se levantou, a canoa balançando, e o estômago de Lara
balançou junto com ela. — Sua graça acha que a exposição vai
curar sua enjoo.
— Como isso está funcionando?
Taryn gesticulou para o cardume de pequenos peixes circulando
o barco, e Lara sentiu as bochechas quentes enquanto os dois riam
às suas custas. Então Aren disse: — Vá descansar um pouco,
Taryn. Eu vou assumir um pouco.
O coração de Lara pulou quando Aren se sentou no assento em
sua frente. Ele esperou até o outro barco chegar perto da praia
antes de perguntar: — Por que exatamente você se ofereceu para
essa miséria em particular?
Lara olhou para o fundo da canoa, que estava absorvendo um
pouco de água através de uma pequena fenda que ela precisaria
consertar. — Porque se eu não aprender a dominar o mar, nunca
poderei ir a lugar nenhum com você.
— Dominar? — Ele se inclinou para frente, e os olhos dela, por
vontade própria, fixaram-se nos lábios dele, o calor subindo por
suas bochechas quando ela lembrou a sensação deles contra os
seus.
— Talvez tolerar seja uma palavra melhor — ela murmurou,
notando um arranhão desagradável no interior do antebraço do
homem. — Você está machucado.
— Não é nada. Eu tive uma briga com uma pedra, e a pedra saiu
ganhando.
Parte dela tinha medo de se aproximar dele, já ciente de que, na
presença dele, ela havia parado de ver e ouvir o que estava
acontecendo ao seu redor. Mas, ela disse a si mesma, ele também
era a chave para ver mais de Ithicana, e isso era uma parte
necessária de seu plano. — Deixe-me dar uma olhada.
Ele se aproximou, desafivelando a braçadeira que protegia a
parte de trás do braço. — Viu? Nada demais.
— Ainda deve ser enfaixado.
Não precisava ser enfaixado. Ambos sabiam disso. Mas isso não
a impediu de segurar o pulso dele. Ou ele de lhe fornecer pomada e
um rolo de tecido. O barco balançou em uma série de ondas
maiores, e o joelho dele bateu contra o lado da coxa dela, enviando
uma onda de calor pelo resto do caminho acima da perna dela,
enchendo-a de uma sensação que era definitivamente uma
distração.
Forçando sua atenção para a lesão, Lara pegou alguns pedaços
de pedra, melou os arranhões crus com pomada e embrulhou
cuidadosamente o curativo, mas era impossível não notar como a
respiração dele movia os fios de cabelo selvagens em sua testa. A
maneira como os músculos do antebraço se flexionavam quando ele
se movia. A maneira como a outra mão roçou o quadril dela
enquanto agarrava a lateral da canoa.
— Você é conhecedora das artes da cura.
— Qualquer idiota pode enrolar um curativo no braço.
— Eu quis dizer mais com o que você fez em Serrith.
Lara deu de ombros, amarrando o curativo. — Espera-se que
todas as mulheres Maridrinianas consigam juntar seus maridos. Eu
recebi o treinamento apropriado.
— Praticar pontos em um pano não é o mesmo que passar uma
agulha e linha numa pele que sangra. Eu quase desmaiei na
primeira vez que tive que fazer isso.
Um sorriso surgiu em seu rosto e ela soltou o nó do curativo,
insatisfeita. — As mulheres não têm o luxo de tanta delicadeza,
Vossa Excelência.
— Você está evitando a pergunta, Vossa Excelência. — Sua voz
era leve, provocadora, mas por baixo ela sentiu uma seriedade,
como se ele estivesse procurando uma mentira.
— Minhas irmãs e eu praticamos nos criados e guardas sempre
que havia um ferimento. Nos cavalos e camelos também. — Essa
era a verdade. O que ela não disse foi que seu verdadeiro
treinamento veio da tentativa de salvar as vidas dos guerreiros
valcottanos que ela e suas irmãs lutavam no pátio de treinamento.
Tinha sido uma maneira distorcida de aprender. Em um piscar de
olhos, tentando tirar a vida de um homem. No próximo, tentando
salvá-lo. Apenas para levá-lo novamente.
— É uma habilidade útil a se ter por aqui. Isto é, se você estiver
disposta.
Passando a braçadeira sobre o curativo, as costas da mão dela
roçaram a palma da mão e ele fechou os dedos em volta dos dela.
Sua linha de pensamento desapareceu. — Eu ajudarei o máximo
que puder. Eles são meu povo agora.
Sua expressão se suavizou. — Eles são.
Os dois pularam quando algo bateu com força contra o casco da
canoa, e Lara olhou para cima e viu Jor parado no barco ao lado
deles, remo à mão. — Está pronto?
— Para quê?
O homem mais velho lançou-lhe um olhar incrédulo. — As
cornetas, Aren. Amarid está se movendo para o sul.
Lara não tinha ouvido nenhuma buzina tocar. Não tinha visto a
outra canoa se aproximar. Não tinha notado nada, enquanto
enfaixava o braço. E nem, ao que parecia, Aren.
Ele saiu da canoa dela e entrou no outro navio, deixando os dois
homens se balançando, e então eles seguiram em direção à entrada
da enseada. Lara olhou para eles, finalmente gritando: — Como vou
voltar para a praia?
— Você tem remos — ele gritou de volta, um sorriso selvagem
no rosto quando o vento bateu em seus cabelos. — Use-os!

A partir desse momento, um padrão foi formado entre Lara e Taryn


descendo após o café da manhã para flutuar na água, chovendo ou
fazendo sol. No começo, foi miserável. O movimento incessante
para cima e para baixo fez a cabeça de Lara girar e seu estômago
revirar, mas gradualmente o mal-estar começou a diminuir, assim
como a onda de medo que ela sentia ao sair da terra seca e entrar
no barco.
Os ataques foram intermináveis, a música das cornetas tão
constante que parecia uma canção interminável de guerra. Aren e
seus soldados estavam continuamente em movimento, perseguindo
invasores, reforçando as defesas e garantindo que as inúmeras
estações de vigia e postos avançados fossem mantidos
abastecidos. Mais frequentemente, suas excursões se
transformavam em pequenas lutas, os barcos voltando cheios de
homens e mulheres feridos, os rostos de seus companheiros
ansiosos e exaustos.
O pior dos feridos foi para as dezenas de curandeiros
estacionados em Midwatch, mas aqueles que precisavam apenas
de pontos ou curativos foram deixados no barco de Lara para que
ela ajudasse. Na maioria das vezes, um de seus pacientes era Aren,
que foi a única vez que Taryn saiu de seu lado.
— Estou começando a me perguntar — disse ela, aplicando uma
sanguessuga no inchaço em sua bochecha, sorrindo quando ele
recuou da criatura — se você está propositadamente tentando se
machucar ou se é apenas inepto.
Ele se encolheu quando ela levantou outra sanguessuga do
pote. — Existe uma terceira opção?
— Sente-se quieto. — Ela aplicou a sanguessuga da maneira
que os curandeiros haviam lhe mostrado, maravilhada com a forma
como o inchaço quase instantaneamente reduzia na sua bochecha,
as criaturas inchadas caindo em suas mãos quando terminaram...
Juntamente com os suprimentos, os curandeiros também insistiram
para que ela recebesse um barco melhor, devolvendo sua pequena
canoa à doca seca. Ela andava às escondidas à noite para mover
lentamente a embarcação para o esconderijo que selecionara perto
de um dos penhascos, junto com vários suprimentos roubados,
prontos para facilitar sua fuga na hora certa.
— Você parece estar melhor com a água.
— Eu não fico mais enjoada. Embora eu suponha que possa ser
diferente ao ar livre, onde as ondas são maiores.
— Talvez um dia testaremos essa teoria.
Algum dia. O que significava pouco tempo, em breve. Foi uma
luta manter o cenho franzido, porque ela estava ficando sem ideias
para conquistá-lo. Ela ganhou sua luxúria, isso ficou claro pela
maneira como os olhos dele deslizaram sobre o decote sem tiras de
sua túnica. Ganhar sua confiança, no entanto, estava se mostrando
muito mais desafiador.
Ela pensou, por um tempo, era porque o casamento deles ainda
não havia sido consumado. Que talvez ele precisasse desse passo
antes de lhe entregar as chaves metafóricas do Reino, mas ela
havia rejeitado essa teoria. Aren não era, a julgar pelos comentários
imediatos que ouvira de seus soldados, inexperiente com as
mulheres, então seria necessário mais do que habilidade no quarto
para fazê-lo se apaixonar por ela.
E seria preciso mais do que ele se apaixonar por ela para fazê-lo
confiar nela.
Por mais que ele pudesse cuidar dela, ele amava mais seu povo.
Sua confiança só chegaria se ele acreditasse que ela era tão leal ao
seu povo quanto ele.
— Não tenho certeza de que a sanguessuga mereça muita
atenção. — A voz de Aren tirou Lara de seus pensamentos, e ela
piscou, percebendo que estava olhando a criatura contorcida em
sua mão por muito tempo.
— Elas acabaram de devolver seu rosto bonito, então talvez
você deva lhes dar o crédito que elas merecem.
Aren sorriu e Lara percebeu o que ela havia dito. Com todos os
outros, ela era estratégica, mas Aren a perturbava. As coisas tinham
um jeito de escapar quando ele estava por perto.
— Vai chover hoje à noite. Eu pensei que poderia aproveitar a
oportunidade para um jantar adequado em casa. Com você.
Seu rosto estava ardendo, o coração um tumulto no peito. —
Hoje à noite?
Ele desviou o olhar dela. — Minha capacidade de prever o tempo
tem seus limites. Mas sim, essa noite parece promissora.
Diga que sim, sua voz interior gritou. Faça o que você precisa
fazer. Exceto estar sozinho com ele... Lara não tinha certeza do que
aconteceria. Ou melhor, ela tinha certeza e queria evitar a todos os
custos.
Não porque ela não queria que ele a beijasse, porque ela queria.
E não porque não queria que ele descartasse as roupas de seu
corpo, porque Deus, ela imaginou isso mais de uma vez.
Era porque ela o queria e era preciso evitar essa situação,
porque traí-lo já seria bastante difícil.
Buzinas soaram, e desta vez o ritmo não era música, mas um
estrondo ansioso que rasgou seus ouvidos. Aren ficou rígido, sua
expressão atenta. — O que é isso? — ela exigiu saber.
— Aela.
— Quem?
— É uma das ilhas sob a vigilância de Kestark. Está sendo
atacada.
— Kestark?
— A guarnição ao sul de nós. — Seus olhos estavam distantes,
ouvindo. — Mas o posto avançado de Aela está pedindo a ajuda de
Midwatch.
Os soldados já estavam caindo na praia, empurrando barcos
para a água. Mais buzinas soaram e o rosto de Aren empalideceu.
— O que está acontecendo?
— O destruidor de navios deles está preso. — Ele ficou de pé,
gesticulando para os guardas, que estavam remando com força em
direção a eles. — O posto avançado será massacrado. Amarid vai
tomar a ilha, e será um pesadelo sangrento tomá-la de volta.
A mente de Lara correu, decidindo um plano enquanto ele se
desenrolava em sua mente. Ela pegou a mão dele. — Me leve com
você. Se houver feridos, eu posso ajudar.
— É para isso que temos agentes de cura.
— Cinco deles estão em outro lugar, dois dos quais se
machucam. O que deixa apenas cinco para levar com você. Não
basta lidar com o abate.
— Outros virão.
O barco estava a poucos metros de distância. Ela teve segundos
para convencê-lo.
— E quantas pessoas morrerão no tempo necessário para
chegarem? — Ela apertou os dedos nos dele. — Eu posso ajudá-
los.
A indecisão ricocheteou em seu rosto, depois ele assentiu. —
Siga ordens. Sem argumentos. — O outro barco veio ao lado, e ele
levou Lara e sua caixa de suprimentos com ele. — Vá! — ele gritou.
Remos os levaram para a brecha, a corrente já estava alta, o
oceano coberto de ondas além. Selvagem e imprevisível. Uma
pontada de medo percorreu a espinha de Lara quando se sentou no
fundo do barco.
— Hora de colocar seu experimento à prova — disse Aren,
enquanto eles passavam entre os penhascos altos, o navio
balançando e mergulhando no momento em que atingiu o mar
aberto.
— Por Aela! — Jor rugiu. — Vamos dar a esses Amaridianos
uma amostra do aço da Midwatch!
— Por Aela! — Os soldados dos outros navios ecoaram o
cântico e, atrás deles, cornetas chamavam pela água. Não a onda
musical de um sinal, mas uma explosão violenta de raiva.
Um grito de guerra.
22
LARA

O
pelo mar, um forte vento vindo do norte enchendo as velas. O
coração de Lara estava na garganta, mas com a náusea sob
controle, ela foi capaz de estudar a ponte enquanto eles seguiam
seu grande comprimento cinza para o sul, os olhos vendo
observadores empoleirados no topo e o brilho de telescópios nas
ilhas dos dois lados.
— Quanto tempo até chegarmos a Aela? — ela gritou sobre o
vento.
— Não muito tempo — respondeu Aren. — As equipes mais
próximas de Midwatch já estarão lá.
O tempo parecia voar e rastejar. Mil detalhes inundaram sua
mente, mesmo quando seus batimentos cardíacos se moveram no
baque rápido, mas constante que sempre acontecia antes da
batalha. Você não está aqui para lutar, ela lembrou a si mesma.
Você está aqui para observar com a desculpa de ajudar os
curandeiros, nada mais. As palavras não fizeram nada para acalmar
sua antecipação.
Quando contornaram uma enorme torre cárstica de calcário,
todos os Ithicanos tiraram as máscaras dos cintos e as vestiram.
Armas afrouxadas. Olhos atentos.
Então ela viu.
O navio era maior do que qualquer outro que ela já vira antes,
uma grande monstruosidade de três mastros tão alta quanto a
própria ponte. Ela avistou a bandeira da Amaridiana, incontáveis
soldados correndo pelo convés. Mais além, meia dúzia de botes
estavam se movendo em direção a uma praia estreita na qual uma
batalha estava sendo travada, a areia encharcada de sangue.
Rapidamente ela viu a razão pela qual os Amaridianos haviam
escolhido a Ilha Aela além do desembarque relativamente fácil que
a praia lhes proporcionava. Havia um píer no extremo oeste da ilha,
a ponte curvando-se para o interior antes de voltar para o mar. E se
os Ithicanos estavam lutando tanto para defendê-la, ela apostaria
que o píer tinha uma abertura em sua base. — Quantos homens
estão naquele navio?
— Quatrocentos — respondeu Jor. — Talvez mais alguns.
— E nós?
Ninguém respondeu.
Aren pegou a mão dela, puxando-a para perto. — Vê a linha de
rochas e árvores? — Ele apontou. — Vamos fazer você e os outros
curadores passarem dessa linha. Você ficará lá e os feridos serão
levados até você, entendeu?
— Sim.
A mão dele apertou. — Mantenha o capuz para que os
Amaridianos não a reconheçam. E se as coisas correrem mal, vá
com os outros curadores. Eles sabem como fazer um retiro.
E ela apostaria que o retiro estava na ponte. Mas obter essas
informações não valia o custo da vida de Aren.
Seu batimento cardíaco não era mais estável, mas um animal
selvagem e caótico. — Não deixe isso ir mal — ela sussurrou. — Eu
preciso que você ganhe isso.
Mas Aren já estava gritando ordens. — Derrube aqueles botes.
O resto de vocês, para a praia!
Os barcos ladeavam o enorme navio, o ar denso com flechas
disparadas de ambos os lados. Aren se ajoelhou no barco ao lado
dela, esvaziando uma aljava nas costas dos Amaridianos subindo
em botes, seus cadáveres caindo na água abaixo. Os dedos de Lara
coçavam para pegar uma arma, lutar, mas ela se forçava a se
encolher no barco, vacilando toda vez que uma flecha batia na
madeira grossa.
Então eles passaram pelo navio.
Quatro dos navios Ithicanos se afastaram da manada, pulando
as ondas para bater nos botes cheios de soldados que iam para a
costa. Madeira lascada e rachada, homens tombando na água. Os
Ithicanos embarcaram nos botes com graça letal, as lâminas
brilhando, o sol brilhando nas rajadas de sangue.
O resto dos barcos dirigiu-se para o massacre na praia. Havia
corpos por toda parte, a areia mais vermelha que branca. Talvez
duas dúzias de Ithicanos segurassem o inimigo na linha de água,
usando o acesso estreito e o terreno mais alto a seu favor, mas
estavam recuando. Morrendo sob o ataque Amaridiano.
Eles teriam que se apressar, ou a ilha estaria perdida.
Os barcos da Midwatch largaram as velas, cavalgando as ondas
quando foram lançadas na praia. No último segundo, Aren pegou a
mão de Lara. — Salte! — ele gritou.
Lara pulou, suas botas afundando na areia, o momento quase a
fazendo se espatifar. Então eles estavam correndo em direção aos
Amaridianos, que agora estavam espremidos entre duas forças.
Gritos despedaçaram o ar, corpos e membros atingindo a areia,
o fedor de sangue e as tripas abertas sufocando. Lara segurou firme
sua caixa de suprimentos, mantendo-se atrás de Aren enquanto ele
subia a colina, passando por cima de suas vítimas enquanto ela
passava. As armas dos mortos caíam na areia, e todo o instinto
exigia que ela pegasse uma. Que lutasse.
Você não deve, ela ordenou a si mesma. Não, a menos que você
não tenha escolha.
Mas a guerreira nela lutou contra a limitação, então, quando um
soldado passou pela linha Ithicana, ela bateu a caixa de
suprimentos no rosto dele, observando com satisfação quando
tombou para trás, a ponta da lâmina de Aren aparecendo em seu
peito.
O Rei de Ithicana usou um pé de bota para empurrar o morto de
sua arma, o couro de sua máscara coberto de sangue. Pegando a
mão dela, ele a puxou correndo, esquivando-se dos poucos
Amaridianos restantes que estavam de joelhos implorando por suas
vidas.
— Não lhes mostre piedade! — ele gritou, depois puxou Lara
para trás de uma série de pedras. Uma mulher Ithicana mais velha,
com o rosto desfigurado, roupas ensopadas de sangue, estava
fechando as pálpebras de um jovem, com o corpo marcado por
várias feridas mortais. Três outros soldados estavam caídos no
chão, com ferimentos enfaixados, o rosto contraído pela dor.
Os olhos da curandeira se arregalaram ao ver seu Rei. —
Explique a Lara o que você precisa que ela faça — disse Aren.
Então ele estava de volta à rocha, gritando: — Taryn, faça o
destruidor de navios funcionar e afunde essa vadia!
Os curandeiros da Midwatch apareceram, suas escoltas já os
tinham abandonado. — O que você quer que eu faça? — Lara
perguntou.
— Espere que eles nos tragam os feridos. O que você tem de
suprimentos? Estou com pouco.
Lara entregou-lhe a caixa, depois subiu correndo pelas costas de
uma das pedras para assistir a batalha se desenrolando abaixo. Seu
sangue gelou com a visão.
Aren estava na praia com talvez cem Ithicanos, mas além disso,
a água estava cheia de botes. Dezenas deles, todos cheios de
soldados fortemente armados, e mais ainda esperando no convés
do navio para serem descarregados. Havia centenas deles. E
nenhuma maneira de detê-los.
Os Ithicanos estavam atirando flechas nos corredores da frente,
mas não demorou muito para que esses se tomassem inúteis, não
deixando nada para eles além de esperar.
A velha curandeira havia subido ao lado dela, expressão sombria
enquanto ela observava a cena.
Lara cravou as unhas na rocha. — Não podemos vencer isso.
Não com toda essa divergência.
— Vencemos contra o pior. Embora este nos custará.
Ainda seria uma vitória se todos estivessem mortos? Lara
pensou.
Deve ter aparecido no rosto dela, porque a mulher mais velha
suspirou. — Você já viu uma batalha antes, Majestade?
Lara engoliu em seco. — Assim não.
— Eu diria para você se preparar, mas você não pode. — A
velha pousou a mão na de Lara. — Este momento vai mudar você.
— Então ela desceu das pedras para se juntar aos curandeiros de
Midwatch.
A cena era estranhamente silenciosa, o único som era o rugido
das ondas e o ocasional grito de dor, os feridos deixados na praia
até a batalha ser vencida. Tão quieto. Muito quieto.
Então o primeiro dos botes atingiu a costa e tudo virou caos.
As duas forças se chocaram, o ar se encheu de berros e gritos, o
choque de metal contra metal e armas contra carne.
Ondas após ondas de barcos lançavam-se à costa, os navios
pesados esmagando e matando Amaridianos e Ithicanos, a linha
d'água era uma massa abundante de humanos. Os marinheiros
lutavam para se retirar e voltar ao navio para recuperar mais
soldados, mas os homens de Aren se atiravam contra os
marinheiros, cortando-os. Puxando as embarcações para a areia.
Ainda mais vieram.
Os Ithicanos lutavam com eficiência viciosa, mais bem treinados
e melhor armados, porém em menor número. Eles lutavam até não
suportarem mais, sofrendo ferimento após ferimento até desabarem
na praia ou serem puxados sob ondas que eram mais sangue e
corpos do que água.
E ainda assim o inimigo chegou.
Era a oportunidade perfeita para fugir. Ir olhar o píer da ponte e
determinar se ela poderia usá-lo em sua estratégia, mas seu corpo
permaneceu enraizado no lugar.
Você tem que fazer alguma coisa. A voz surgiu das profundezas
da mente de Lara, incessante e obstinada. Faça alguma coisa. Faça
alguma coisa.
Mas o que ela poderia fazer? Não havia feridos por trás dessas
pedras para ela cuidar, e não haveria até que a batalha terminasse.
Ela podia pegar uma arma e lutar, mas não eram as mesmas
circunstâncias que Serrith. Nessa loucura, ela não podia mudar a
maré.
Faça alguma coisa.
Seus olhos voltaram para um ferido sangrando na praia. Se
afogando nas ondas. E então ela correu sobre as pedras e
continuou correndo.
Lara tinha sido a mais rápida de suas irmãs - construída para a
velocidade, o mestre Erik sempre dizia. Hoje ela correu como nunca
antes.
Suas coxas queimaram quando ela correu pela praia, os braços
batendo, os olhos fixos em seu alvo. Parando ao lado de uma jovem
mulher que tinha duas flechas nas costas e uma na coxa, Lara se
inclinou e a jogou por cima do ombro, depois correu de volta para as
pedras.
Rodeando-os, Lara cuidadosamente depositou a soldada ferida
no chão, em frente aos curandeiros assustados. — Ajudem ela.
Então a Rainha estava de volta à praia correndo.
A necessidade a levou a escolher aqueles com ferimentos aos
quais eles poderiam sobreviver. Pelo visto, a maioria dos que
estavam mais distantes na praia estava longe de serem salvos, os
olhos encarando fixamente o céu cinzento.
Então ela se aproximou da batalha.
Os soldados capazes de lutar estavam fazendo isso em cima
dos corpos dos mortos. Amaridianos e Ithicanos, ambos enredados
na confusão de membros, mãos mortas parecendo agarrá-los e
fazendo-os tropeçar enquanto as ondas vermelhas puxavam e
arrastavam para a carnificina.
Quase todo mundo no chão estava morto. Seja por seus
ferimentos originais ou por serem esmagados e afogados, mas Lara
ainda rondava a retaguarda da linha Ithicana, a água enchendo suas
botas enquanto ela procurava.
— Volte — alguém gritou para ela, mas o ignorou, avistando um
homem mais jovem que ela, sufocando enquanto tentava sair da
batalha, as ondas passando sobre sua cabeça, botas batendo nas
costas.
Lara mergulhou, pegando a mão dele e segurando-a com força
para que a água não o puxasse para longe.
Alguém a chutou para o lado.
Outro pisou na parte de trás de sua perna e ela gritou.
Eles estavam pressionando-a, empurrando-a para a areia, mas o
garoto estava olhando para ela e ela para ele, e Lara se recusou a
deixá-lo ir.
Centímetro por centímetro, ela o arrastou de volta, depois uma
mão fechou em seu cinto e puxou ela e o soldado ferido pelo resto
do caminho.
— O que você está fazendo?
A voz de Aren. O rosto dele escondido atrás da máscara.
Por cima do ombro, ela viu um Amaridiano erguendo um bastão.
Pegando uma pedra, ela jogou com força, quebrando o rosto do
soldado. — Lute — ela gritou para Aren, depois se levantou.
Segurando o garoto ferido sob as axilas, ela o arrastou pela praia
e fora de perigo. Então ela se jogou de volta na carnificina.
Os Ithicanos viram o que ela estava fazendo e lutaram para lhe
dar aberturas. Chamavam o nome dela quando alguém caía.
Protegia suas costas enquanto ela arrastava os camaradas para
fora da água porque não podiam se dar ao luxo de parar de lutar.
E o inimigo continuou vindo.
Empurrando-os para mais longe na areia.
Passo a passo, os Ithicanos recuaram e Lara uivou de fúria,
porque todos aqueles que puxou para a praia estavam agora em
risco de serem pisoteados mais uma vez. Seu corpo gritava de dor e
exaustão, seus lados se contraíam enquanto seus pulmões lutavam
para aspirar ar suficiente para alimentar seu coração trovejante.
Então um estalido familiar ecoou pela ilha, junto com o apito de
algo grande voando pelo ar.
Lascas de madeira e gritos se filtraram das águas mais
profundas, e Lara levantou a cabeça e viu um grande buraco na
lateral do navio. Alguém havia consertado o destruidor de navios.
Outro estalido dividiu o ar, e desta vez o projétil atingiu um dos
mastros. Estilhaçou, caindo de lado, as cordas e velas caindo no
convés.
Outro estalido, desta vez um buraco se abrindo no casco, a água
derramando a cada onda.
A arma não parou. Pedregulho após pedregulho foi jogado no
navio, então Taryn mirou nos botes, atingindo-os com precisão
mortal.
Os Amaridianos começaram a entrar em pânico, quebrando as
linhas enquanto lutavam para salvar suas próprias peles. Mas não
houve recuo, e os Ithicanos não lhes mostraram piedade.
— Por Ithicana! — alguém rugiu, e o cântico correu pela praia
até abafar todos os outros ruídos enquanto os soldados reuniam-se
em torno de seu Rei, avançando.
Portanto, não havia ninguém para ouvir quando Lara sussurrou
— Por Maridrina — e voltou ao caos.
23
AREN

A L
maré lavando sangue das mãos e braços. Suas roupas estavam
encharcadas de sangue e, quando ela ergueu a cabeça para
observá-lo, ele notou marcas vermelhas em suas bochechas, de
onde afastou os fios de cabelo que soltaram de sua trança grossa.
Seus soldados estavam falando sobre ela; e não, pela primeira
vez, sobre como ela era uma maridriniana inútil, que não servia para
nada além de cama. Hoje mudou isso. Vez após outra, ela correu
para a praia para puxar um Ithicano ferido de volta para trás das
filas, sem demonstrar respeito por sua própria vida, pois os
Amaridianos haviam lutado para avançar, a batalha irregular e
desesperada.
E uma vez que a batalha foi vencida, ela tratou os feridos com
velocidade e eficiência, enfaixando feridas e amarrando torniquetes,
dando-lhes tempo até que os curandeiros pudessem alcançá-los.
Salvando vidas, um soldado de cada vez, com o rosto tenso com
determinação.
Hoje ela conquistara o respeito de Ithicana.
E dele.
— Você está bem? — Ele se agachou para mergulhar as
próprias mãos na água. Ele havia feito isso antes, mas sua pele
ainda estava pegajosa e manchada.
— Cansada. — Ela recostou-se, os olhos voltados para os
cadáveres flutuando entre os destroços do navio quebrado, a água
ainda vermelha. — Quantos morreram?
— Quarenta e três. Provavelmente outros dez não passem desta
noite.
Lara fechou os olhos com força e os abriu. — Muitos.
— Teria sido mais se você não tivesse me convencido a trazê-la.
Ou se você não tivesse ignorado minhas ordens. — Ele não
acrescentou que havia passado boa parte da batalha com medo de
que a decisão a fizesse um cadáver na areia, uma espada
Amaridiana nas costas.
— Parece que eu não consegui fazer nada em tudo isso — ela
murmurou.
— Os homens e mulheres cujas vidas você salvou apostariam
em algo diferente, eu suspeito.
— Vidas que salvei. — Ela balançou a cabeça. — Eu deveria
voltar para ajudar.
Aren pegou o pulso dela quando ela se levantou, os dedos
envolvendo os ossos finos, que pareciam delicados demais para ter
conseguido o que ela tinha. — Nós precisamos ir.
— Ir? — Pontos de raiva subiram em suas bochechas. — Não
podemos deixá-los assim.
Ele queria abandonar essa praia e seu povo ferido não mais do
que ela, mas a defesa de seu Reino era uma máquina finamente
lubrificada com mil peças diferentes. Puxar uma fora do lugar,
mesmo por uma questão de horas, põe em risco todo o trabalho e,
agora, sua peça estava muito fora do lugar. — Mudei números
significativos da defesa de Midwatch e de suas ilhas vizinhas.
Precisamos voltar.
— Não. — Ela se soltou das garras dele. — Menos de uma dúzia
de soldados aqui estão ilesos. Não podemos deixá-los indefesos. E
se os Amaridianos atacarem de novo?
Pelo canto do olho, Aren podia ver seu guarda parado perto dos
barcos, Jor dando-lhe um olhar aguçado. Várias das outras equipes
do Midwatch estavam prontas na praia, esperando a ordem dele
para partir. — Não há navios Amaridianos no horizonte e reforços já
estão a caminho. Eles estarão aqui dentro de uma hora.
— Eu não vou embora até que eles cheguem.
Ela cruzou os braços, e ocorreu-lhe que talvez tivesse que
arrastar a mulher que todos os soldados naquela praia estavam
elogiando como heroína para um barco, se ele quisesse partir. O
que não era exatamente o visual que ele queria apresentar a eles.
Respirando fundo, Aren puxou uma faca do cinto e se ajoelhou
na areia, desenhando uma linha serpenteando representando a
ponte. — A defesa da ponte é dividida em seções lideradas pelos
Comandantes de Watch, cada uma com um subconjunto das forças
armadas de Ithicana sob seu controle. A guarnição de Midwatch
está aqui — ele fez um buraco na areia — e a guarnição Kestark
está aqui. Quatro navios Amaridianos estavam fazendo movimentos
para atacar aqui. — Ele fez quatro buracos ao sul da Ilha Kestark.
— Os curandeiros poderiam usar minha ajuda — interrompeu
Lara — Então, talvez vá direto ao ponto.
— Eu estou chegando ao ponto — ele resmungou, esperando
que uma explicação complicada a convencesse a sair, em vez de
provocar perguntas. — Kestark mudou suas tropas para reforçar os
locais com maior probabilidade de serem atacados, enquanto, ao
mesmo tempo, os Amaridianos atacaram aqui na Ilha Aela. Kestark
não podia arriscar recuar sua tropa, nem eles poderiam reorganizar
as equipes que compunham a rede de defesa por aqui — desenhou
um oval — então eles pediram assistência de Midwatch. Mas agora
Midwatch perdeu a maior parte de suas tropas, portanto, se houver
algum ataque aqui — ele desenhou outro oval — não seremos
capazes de ajudá-los em tempo suficiente.
Lara olhou para o desenho, piscando apenas uma vez em
aparente confusão. Então ela apertou os dedos nas têmporas. —
Pelo amor de Deus, Aren, nada disso justifica abandonar esses
soldados. — Ela começou a se afastar, mas ele a puxou de volta.
— Ouça. Os quatro navios Amaridianos que deveriam atacar se
retiraram - provavelmente porque viram que não seria uma luta fácil
- e se mudaram para o leste e desapareceram de vista dos nossos
observadores. Então agora haverá uma onda de sinais, com as
equipes mudando uma posição para o norte e oeste, a fim de
permitir que as equipes de Kestark mais próximas de nós se movam
para reforçar. Como eu disse, eles estarão aqui dentro de uma hora.
— Bem. — Saindo do alcance, ela começou a subir a areia até
onde os feridos estavam dispostos em fileiras.
— Mulher insuportável — ele murmurou, então um apito chamou
sua atenção. Aren se virou e viu Jor gesticulando para um par de
barcos Kestark voando sobre a água em uma rajada violenta de
vento que cheirava a chuva. Ele voltou a apontá-los para Lara, mas
ela já estava fora do alcance da voz.
Rosnando algumas maldições, ele caminhou até a água. — Todo
mundo vai. Quero você de volta à Midwatch antes que essa
tempestade comece.
Seus soldados imediatamente se afastaram da praia, mas em
vez de observá-los, Aren encontrou seus olhos atraídos para onde
Lara caminhava entre os feridos, ocasionalmente curvando-se para
falar com um deles. Os ventos crescentes pegavam os fios soltos de
seus cabelos, a luz do sol diminuindo, fazendo-os brilhar como
tentáculos de mel. Seus soldados se afastaram para ela, inclinando
a cabeça para ela. Em respeito a ela
A imagem justa punha a dela andando pela estrada em
Southwatch no braço do pai, de seda e os olhos arregalados: o
retrato de uma Rainha que ele temia que Ithicana nunca aceitasse.
Acabou que ele estava errado.
— E quando partiremos, Vossa Excelência? — Jor perguntou,
chegando ao lado dele. — Quando sua pequena esposa disser que
é hora de ir?
— Iremos quando a Rainha de Ithicana disser que é hora de ir.
O homem mais velho riu e depois bateu no ombro dele.
O primeiro dos barcos Kestark chegou à costa, e Aren
reconheceu o comandante Aster quando os olhos do homem
brilharam ao avistar ele, apreensão os enchendo. — Vossa
Excelência. Não sabia viria por você mesmo.
— O benefício de estar na guarnição de Midwatch. Como eu
deveria estar.
O rosto de Aster perdeu mais de sua cor, e com razão. O fato
dele estar chegando agora significava que não estava na guarnição
de Kestark, ou mesmo com a maior parte de suas forças afastando
o ataque previsto. E Aren tinha certeza de que sabia exatamente
onde o outro homem estivera.
— Como você pode ver, comandante, as coisas quase não
seguiram o caminho de Ithicana hoje. Aela é um ponto fraco, seu
posto avançado era sub-tripulado e o destruidor de navios não havia
sido recalibrado após a temporada de tempestades, deixando
aqueles que estavam aqui como alvos fáceis para um navio inteiro
cheio de Amaridianos.
— Estamos atrasados nas inspeções, Vossa Excelência — disse
Aster. — A temporada chegou cedo...
— O que não explica por que você super protegeu o sudeste e
deixou sua extremidade norte exposta. Talvez você me esclareça?
— Havia quatro navios da frota. Precisávamos estar prontos para
defender...
— Defender uma série de ilhas que não seriam acessíveis se os
Amaridianos atacassem com vinte navios! — Aren rosnou. — Se
você estivesse prestando atenção, saberia. O que eu imagino é que
você estava distraído quando deu a ordem.
— Eu não estava distraído, Vossa Excelência. Eu comando
Kestark desde que você era criança.
— E ainda... — Aren gesticulou para as filas e filas de rostos
mortos encarando sem ver o céu. Então ele se inclinou para frente.
— As evacuações estão completas, o que significa que sua adorável
esposa e filhos estão abrigados em segurança em Eranahl,
deixando você com todo o tempo do mundo para transar com sua
amante na casa que sei que você construiu para ela a oeste daqui.
A mandíbula de Aster se apertou, mas não negou. Ele não podia,
não com sua guarda pessoal ouvindo de onde eles estavam ao lado
de seus barcos. Então seus olhos passaram pelo ombro de Aren. —
O que ela está fazendo aqui?
Virando-se, Aren viu que Lara estava atrás dele, uma oficial
sobrevivente - uma garota que tinha apenas dezoito anos - ao seu
lado. Ele começou a defender a presença de Lara, mas a garota o
venceu.
— Respeitosamente, comandante, muito mais de nós estaríamos
mortos se nossa Rainha não tivesse vindo.
Lara não disse nada, mas seus olhos azuis estavam frios e
estripantes enquanto olhava Aster. Então seu olhar mudou para
Aren e ela assentiu uma vez.
— Não há mais erros, comandante. — Aren pegou o braço dela
e caminhou em direção ao barco onde sua guarda esperava. — E
faça um favor a todos nós e mantenha seu pau em suas calças e
seus olhos no inimigo pelo resto das Marés de Guerra.
— Meus olhos estão no inimigo. Ela está parada bem ali.
Ânimos à flor da pele, Aren se virou e deu um murro no rosto do
homem, nocauteando-o. Então se virou para a garota-soldada. —
Você acabou de ser promovida a comandante interina de Kestark
até que outro possa ser escolhido. Me avise se alguém lhe der
algum problema.
Lara ajudou o guarda a empurrar o barco para a água, depois
pulou para dentro, sentando-se no lugar de sempre, o máximo que
podia estar no pequeno navio. Aren sentou-se ao lado dela, mas
não havia espaço para conversa, todos forçados a remar com
dificuldade para ultrapassar a linha de ruptura, o vento contra eles.
A tempestade chegava forte do norte, os raios dançavam no céu
escuro, e a embarcação subia e descia sobre ondas que cresciam a
cada minuto que passava. As costas de Lara estavam voltadas para
ele, mas Aren podia sentir o medo irradiando dela, as juntas brancas
onde segurava a beira do barco. Ela manteve a compostura até que
uma rajada esquisita pegou a vela. Lia e Gorrick lançando seu peso
sobre as pernas foram as únicas coisas que os impediu de virar.
Isso arrancou um grito da garganta dela. Lara se jogou desarmada
na batalha, mas isso... Isso era o que a aterrorizava. E Aren se viu
relutante a sujeitá-la a isso.
— Precisamos sair da água! — ele gritou para Jor, cuspindo um
bocado de água do mar quando uma onda tomou conta deles. Jor
sinalizou para o barco carregando o resto da guarda, depois
examinou o ambiente e apontou.
A vela baixou, eles remavam com força, rumando para um dos
inúmeros pontos de aterrissagem escondidos por toda Ithicana.
A chuva caiu em um dilúvio, tornando quase impossível ver
como eles serpenteavam entre duas torres de calcário e em uma
pequena enseada com falésias de todos os lados. Do alto de um
dos penhascos, duas pesadas vigas de madeira estendiam-se sobre
a água, cordas com ganchos pendurados em cada um deles. Lia se
lançou, agarrando um dos ganchos e prendendo-o no anel montado
na popa do navio.
Aren passou o remo para uma Lara de rosto branco. — Se
chegarmos muito perto das paredes, empurre o barco para longe.
Ela assentiu, segurando o remo de madeira como uma arma.
Atrás dele, Taryn esperou até o barco girar no ângulo certo, depois
pulou, agarrando uma corda pendurada no penhasco, subindo
rapidamente até o topo.
— Aren, venha aqui e ajude. — Jor e Gorrick haviam removido o
pino que segurava o mastro no lugar e estavam lutando para tirá-lo
de sua base. Aren tropeçou em um assento, então agarrou o mastro
e acrescentou sua força ao esforço. O mastro saltou bem quando
uma onda violenta levantou o barco, fazendo com que o mastro e
Gorrick caíssem na água.
Aren caiu de costas, deixando apenas Jor de pé, o velho
balançando a cabeça em desgosto. — Por que isso nunca fica mais
fácil? — Ele se abaixou e prendeu a outra linha do barco, enquanto
Aren ajudava um Gorrick nadador a prender o mastro para o lado.
Uma eternidade exaustiva depois, eles finalmente levantaram o
segundo barco para a praia com o guincho, onde o amarraram,
todos arrastando-se pela curva da rocha até onde o esconderijo
esperava.
O interior do edifício de pedra estava misericordiosamente seco
e livre de ventos fortes. Depois de designar dois dos homens para
vigiar pela primeira vez, Aren bateu a porta de madeira com mais
força do que o necessário. Sem falhar, seus olhos foram
imediatamente para Lara, que estava no centro da sala segurando a
sacola cheia de suprimentos.
— Existem muitos desses lugares? — Ela se virou em um
círculo.
Não havia muito para ver. Beliches de madeira e corda cobriam
duas das paredes. Caixas de suprimentos estavam empilhadas
contra a terceira parede, e a quarta era ocupada principalmente pela
porta. Todos os guardas estavam tirando as botas e as túnicas para
secar, depois voltando a atenção para as armas, que precisavam
ser afiadas e lubrificadas.
— Sim. — Ele pegou sua própria túnica e a jogou em um beliche.
— Mas, como você notou, eles são um pé no saco para serem
usados no meio de uma tempestade.
— A tempestade afundará o resto da frota de Amarid? — ela
perguntou, e o guarda riu, lembrando a Aren que todos estavam
ouvindo.
— Não. Mas eles se mudam para águas abertas em vez de
arriscar serem levados a um banco de areia ou contra qualquer
pedra. Nos dará um pouco de descanso.
Uma das sobrancelhas dela se levantou. — Não é a pausa mais
confortável.
— Agora, agora — disse Jor. — Não seja tão rápida em
desanimar do conforto de uma casa segura. Particularmente um
esconderijo de Midwatch. — Ele foi até uma das caixas, abrindo a
tampa e olhando para dentro. — Sua Graça tem um bom gosto,
então ele garante que em qualquer lugar que ele possa ter que
passar uma noite seja abastecido apenas com o melhor.
— Você está reclamando? — Aren sentou-se no beliche inferior
e recostou-se na parede.
Jor extraiu uma garrafa empoeirada. — Vinho Amaridiano
fortificado. — Ele a segurou mais perto da lamparina na mesa
singular e leu o rótulo. — Não, Vossa Excelência, certamente não
estou reclamando.
Estourando a rolha, Jor derramou uma dose nos copos de lata
que Lia colocou, entregando um a Lara. Ele levantou um. — Um
brinde aos viticultores de Amarid, que fazem a melhor bebida do
mundo conhecido, e aos seus compatriotas caídos, que apodreçam
nas profundezas dos Mares de Tempestade. — Então o velho
soldado pigarreou. — E para os nossos caídos, que o Grande Além
lhes dê céus claros e mares calmos e mulheres sem fim com seios
perfeitos.
— Jor! — Lia o cutucou no braço. — Um bom número de nossos
caídos eram mulheres. Tenho certeza de que pelo menos algumas
delas gostavam de homens. Pelo menos, deixe-as estar cercados
por...
— Paus perfeitos? — Nove pares de olhos surpresos se
voltaram para Lara, que deu de ombros.
— Onde a vida mortal falha, o Grande Além oferece. — entoou
Jor, e Aren atirou a bota nele.
Lia levantou as mãos. — Pessoas morreram. Mostre respeito.
— Eu estou respeitando-os. Desrespeitar eles teria brindado seu
sacrifício com esse lodo. — Jor pegou uma garrafa de vinho
maridriniano enevoado da caixa. Ele estremeceu, e ele lançou um
olhar incrédulo, olhando o que parecia ser uma pedra no fundo da
garrafa. — Não é ruim o suficiente por si só, eles precisam colocar
pedaços de pedra nela? — Seus olhos foram para Lara. — É algum
teste estranho da força dos estômagos Maridrinianos que eu não
ouvi falar?
Todos sorriram, e Gorrick rugiu: — Por Ithicana! — Todos o
repetiram, levantando os copos.
Enquanto Aren engolia o vinho, o que era muito bom, ouviu Lara
murmurar — Por Ithicana.— e tomou um pequeno gole de sua taça.
Enchendo os copos, Aren se levantou. — Por Taryn, que matou
nosso inimigo. E para nossa Rainha — ele puxou Lara para frente
— que salvou nossos camaradas.
— Por Taryn! — todos gritaram. — À Sua Majestade!
O vinho desapareceu em poucos minutos, pois apesar do ar
leve, hoje havia deixado sua marca. Era assim que eles conseguiam
- fingindo não se importar, mas Aren sabia que Jor daria tempo para
cada um deles, ajudando-os a aceitar o que haviam testemunhado.
E com o que eles fizeram. Ele era capitão da guarda por um motivo.
Lara estava abraçando seu corpo, tremendo apesar do vinho. O
vento e a chuva estavam mais frios do que Ithicana normalmente
via, e suas roupas estavam ensopadas. Ele a observou olhar para
as outras mulheres, que estavam despidas em calças e camisetas,
e então a mão dela foi para o cinto.
O coração dele disparou, depois disparou quando ela o soltou,
colocando-o de lado junto com as facas Maridrinianas que
habitualmente usava. Então desatou os laços da túnica na garganta
e puxou a roupa sobre a cabeça.
A casa segura ficou completamente silenciosa por um piscar de
olhos, depois cheia de barulho alto de armas sendo limpas e
conversas irracionais, todos olhando para qualquer lugar, menos
para sua Rainha.
Aren parecia não fazer o mesmo. Enquanto as outras mulheres
usavam tecidos grossos, as roupas de baixo de Lara eram a melhor
seda de marfim, ensopada, tornando-a transparente. As curvas
cheias de seus seios pressionaram contra o tecido, seus mamilos
cor de rosa atingiram o pico do frio. Não havia nada, Aren pensou,
que o Grande Além pudesse oferecer que seria mais perfeito que
ela.
Percebendo que ele estava olhando, Aren desviou o olhar.
Pegando um cobertor fino dobrado no final do beliche, ele o
entregou a Lara, com cuidado para manter os olhos no rosto dela.
— Aqui vai aquecer com todos os corpos - quero dizer, pessoas.
Em breve. Logo estará mais quente.
Seu sorriso era tímido quando ela enrolou o cobertor em volta
dos ombros, mas sua alegria com o desconforto dele desapareceu
quando viu Jor examinando uma de suas facas.
Ele tirou a peça de jóias da bainha e estava testando a borda. —
Afiado. — Ele o usou para cortar a cera de uma roda de queijo
Harendellian. — Eu pensei que estas deveriam ser cerimoniais?
— Eu achei sensato torná-las um pouco úteis — respondeu Lara,
uma expressão determinada.
— Quase — Jor equilibrou a arma, o punho coberto de gemas
tornando-a pesada e densas, embora a própria lâmina parecesse
bem feita. — Nós poderíamos vendê-las por uma fortuna no norte e
conseguir algo que você realmente possa usar.
Lara estava se mexendo e balançando como se não quisesse
nada além de estender a mão e pegar a faca de volta, então Aren
fez isso por ela, limpando o queijo da lâmina com a lateral da calça
antes de devolvê-la a ela.
— Obrigada — ela murmurou. — Meu pai entregou-as para mim.
Elas são a única coisa que ele já me deu.
Aren queria perguntar por que isso importava. Por que ela se
importava com alguma coisa a ver com a criatura gananciosa e
sádica que a gerou. Mas ele não fez. Não com todo mundo ouvindo.
Jor pegou a garrafa de vinho maridriniano. — Tempos
desesperados. Tempos desesperados. — Então ele abriu a rolha e
derramou, algo pousando com um splash na xícara de lata. —
Agora, o que temos aqui?
— O que é isso? — Lia perguntou.
— Parece que o prêmio de um contrabandista se perdeu. — O
velho soldado levantou algo que brilhava em vermelho à luz da
lamparina, depois jogou na direção de Aren. — Há um comprador
na Northwatch que ficará muito insatisfeito com sua compra de
vinho.
Aren levantou o grande rubi. Ele não era especialista em pedras
preciosas, mas, a julgar pelo tamanho e cor, valia uma pequena
fortuna. Um contrabandista muito infeliz, de fato. Empurrando-o no
bolso, ele disse: — Isso deve cobrir os impostos que o indivíduo
estava tentando fugir.
Todos riram e depois procuraram os suprimentos, todos
agredidos e sem fome depois de um dia de luta, remadas e quase
morte, mais interessados em enfiar comida na garganta do que em
conversas. Lara sentou-se ao lado de Aren no beliche, equilibrando
sobre os joelhos uma porção de carnes curadas, queijos e um copo
de lata com água enquanto comia.
Suas mãos e dedos esbeltos tinham uma variedade de velhas
cicatrizes, cortes e linhas, e uma junta um pouco maior, sugerindo
que ela havia sido quebrada em um ponto. Não as mãos que se
esperaria da princesa maridriniana, mas considerando que antes de
questionar o tipo de vida que ela estava vivendo no deserto para
ganhar essas cicatrizes, agora ele estava tendo pensamentos muito
diferentes sobre essas mãos.
De como seria segurá-las.
De como seria ser tocado por elas.
De como seria...
— Luzes apagadas! — Jor anunciou. — O vento me diz que
essa tempestade vai quebrar da noite para o dia e queremos voltar
à água ao amanhecer.
Todos os olhos se voltaram para os oito beliches, depois para as
dez pessoas na sala.
— Se dividam ou o menor graveto para o chão.
Gorrick subiu ao topo de um dos beliches, depois puxou Lia com
ele, e Aren estremeceu, esperando que eles mantivessem as mãos
para si pelo menos.
— Vou ficar no chão — disse ele. — Mas irei tirar uma soneca na
minha cama de penas assim que chegarmos em casa amanhã.
— Agradecemos seu sacrifício, Vossa Majestade. — Jor
estendeu a mão e desligou a lamparina, mergulhando a casa segura
na escuridão.
Aren estava deitado no chão de pedra, um braço cruzado sob a
cabeça para ser um travesseiro. Era frio e desconfortável, e apesar
de sua exaustão, o sono não chegava enquanto ele ouvia a
respiração profunda das pessoas ao seu redor, mil pensamentos
enchendo sua cabeça.
Quando algo frio roçou em seu peito, Aren quase pulou fora de
sua pele antes de perceber que era Lara. Ela estava inclinando-se
para fora do beliche ao lado dele, os olhos lambendo o brilho fraco
da lamparina. Sem palavras, ela pegou a mão dele e a puxou para
cima, puxando-o para o beliche.
Com a pulsação rugindo em seus ouvidos, Aren passou por cima
dela, as costas apoiadas na parede fria, sem saber o que fazer com
os braços e as mãos ou qualquer parte dele até que ela se enrolou
contra ele, com a pele gelada.
Ela está com frio, ele disse a si mesmo, e você precisa manter
as mãos para si mesmo.
O que poderia ter sido a coisa mais difícil que ele já fez, com um
dos seus joelhos entre os dele, os braços dela dobrados contra o
peito dele, a cabeça apoiada no ombro dele e a respiração quente
contra a garganta dele. Ele não queria nada mais do que rolar sobre
ela, provar aqueles lábios e descartar aquele pedaço de seda
provocante do peito, mas, em vez disso, puxou o cobertor sobre o
ombro nu dela, depois apoiou a mão nas costas dela.
A sala estava úmida com a respiração pesada com o cheiro de
suor e aço. Taryn estava roncando como se sua vida dependesse
disso, Gorrick tagarelava enquanto dormia, e alguém -
provavelmente Jor - peidava em intervalos regulares. Era
provavelmente a situação menos desejável compartilhar uma cama
com a esposa pela primeira vez. Mas, enquanto o cabelo dela fazia
cócegas no nariz dele, o braço dele adormecia sob a cabeça dela e
um arrepio se formava no seu pescoço, ocorreu a Aren, quando ele
se afastou, que não havia outro lugar que preferisse estar.
Horas depois, Aren acordou com uma batida rítmica. Franzindo a
testa, ele virou a cabeça e encontrou os olhos de Lara abertos e
brilhando na luz fraca. Puxando uma mão debaixo do cobertor, ela
apontou para cima e levantou a sobrancelha com um sorriso
divertido.
Gorrick e Lia. Provavelmente se aquecendo após sua vez de
vigiar.
Ele estremeceu, sussurrando: — Desculpe. É a vida de um
soldado. — Então ele correu mentalmente a escala, percebendo que
Jor o havia pulado e que Taryn se fora, o que significava que estava
quase amanhecendo.
— Quer ir lá fora? — Alívio o encheu quando Lara assentiu.
Colocaram botas, roupas e armas em um silêncio próximo, Lara
pegando comida de um dos caixotes e seguindo-o até a noite. A
tempestade tinha sido soprada, o céu era um tumulto de estrelas de
prata, o único som era o bater das ondas contra os penhascos da
ilha.
Taryn estava empoleirada em uma pedra nas sombras, mas ele
a ouviu murmurar agradecimentos quando Lara se aproximou e lhe
deu um pouco da comida.
— Aren, leve-a para o lado leste.
— Por quê?
Mesmo na escuridão, ele sentiu Taryn sorrir. — Confie em mim.
— Tudo certo. — Ele pegou a mão de Lara. — Voltaremos ao
nascer do sol.
Aren não tinha estado nesta ilha em particular muitas vezes,
então ele foi devagar. Ele conseguiu encontrar o caminho para o
mirante oriental pela memória, um pedacinho de rocha que pairava
sobre o oceano. Um mar de luz azul estendia-se diante deles.
Lara deu um passo à frente, ainda segurando a mão dele. — Eu
nunca vi algo tão bonito.
Nem ele, mas Aren forçou os olhos do rosto dela para a água
calma abaixo. — Chamamos de Mar das Estrelas. Isso não
acontece com frequência e sempre durante as marés da guerra, por
isso não é muito apreciado.
Fios brilhantes de algas cobriam a água, os aglomerados
formando brilhantes pontos azuis de luz no mar, fazendo-o sentir
como se estivesse entre dois planos de luz das estrelas. Ondulava
nas ondas suaves, lançando sombras nas rochas que pareciam
dançar ao ritmo das ondas. Eles ficaram assistindo por um longo
tempo, nenhum deles falando, e ocorreu a Aren que ele deveria
beijá-la, mas em vez disso, disse: — O que mudou?
Porque tinha algo. Algo mudou, suavizando-a na direção dele,
talvez para toda a Ithicana, e ele não tinha certeza do que era. Pelo
que sabia, a maioria de suas experiências desde que ela chegou
não tinha sido particularmente boa. Ela era filha de um homem que
era mais inimigo de Aren do que seu aliado, e ele não deveria
confiar nela. Não confiava nela. Mas a cada dia que passava com
ela, se sentia querendo confiar nela. Com tudo.
Lara engoliu audivelmente, puxando a mão do aperto dele e
cruzando as pernas no chão, esperando até que ele sentasse ao
lado dela. A luz azul do mar iluminava seu rosto, fazendo-a parecer
sobrenatural e intocável. — Quando eu era criança, disseram-me
muitas vezes a quantia de receita que Ithicana gerava em um ano
fora da ponte.
— Quanto? — Ele balançou a cabeça ao número quando ela
respondeu. — É mais.
— Você está se gabando?
— Apenas sendo sincero.
O canto da boca dela se curvou, e ela ficou quieta por um
momento antes de continuar. — Para mim, a quantia foi
impressionante. E eu pensei... Disseram-me que Ithicana tocava e
manipulava o mercado, arrancava viajantes com medo de tomarem
os mares e cobrava pesados impostos e pedágios de comerciantes
que desejavam transportar e comercializar seus próprios bens. Que
você decidiu quem tinha o direito de comprar e vender em seus
mercados e que tiraria esse privilégio se eles o cruzassem de
alguma maneira. Que você controlou quase todo o comércio entre
dois continentes e onze Reinos diferentes.
— Preciso. — Ele não se deu ao trabalho de acrescentar que
Ithicana pagou em sangue por esse direito, porque ela mesma tinha
visto as evidências.
— O que não foi preciso... foi o porquê disso.
— O que te disseram?
— Ganância. — Seus olhos estavam sem piscar quando ela
olhou para o oceano. — Quando eu era jovem, acreditava que você
devia viver em enormes palácios, preenchendo de todos os maiores
luxos que o mundo tinha para oferecer. Que você se sentava em um
trono de ouro.
— Ah sim. Meu trono de ouro. Eu o mantenho em outra ilha e o
visito quando preciso reafirmar meu senso de autoestima e direito.
— Não zombe de mim.
— Eu não estou zombando. — Ele pegou a parte de cima da
bota, onde o couro se partira da exposição excessiva à água
salgada. — Deve ter sido bastante decepcionante descobrir a
verdade.
Lara emitiu um som meio riso, meio soluço. — Midwatch é tão
luxuosa quanto minha casa no Deserto Vermelho, e meu tempo
passado aqui foi relaxante em comparação. Fui criada de forma
dura, Aren.
— Por que eles eram tão duros com você?
— Eu pensei que sabia, mas agora... — Ela levantou o queixo
dos joelhos, virando a cabeça para olhá-lo. — Você me pergunta o
que mudou? O que mudou é que agora eu sei que você usa esse
dinheiro para alimentar e proteger sua população.
Havia uma certa inevitabilidade em aprender essa verdade.
Talvez se ele a mantivesse trancada na casa de Midwatch, sem
contato com ninguém além da equipe e de sua guarda, ele poderia
ter escondido dela. Mas queria que seu casamento com Lara fosse
um símbolo de mudança em Ithicana, uma nova direção. E para que
isso acontecesse, eles precisavam vê-la, e sempre houve
consequências para esse caminho, e a revelação dos segredos de
Ithicana era um deles.
E ele queria muito confiar nela.
— A verdade é que Ithicana não é passível de sobreviver sem a
ponte — disse ele. — Ou melhor, é passível de sobrevivência, mas
apenas se cada minuto de cada dia acordado for dedicado à
sobrevivência. — Girando no chão para que estivessem se
encarando, ele olhou nos olhos dela. O sol estava nascendo, a luz
mudando de azul para dourado, e era como acordar de um sonho e
voltar à realidade. Se Aren pudesse ter parado, ele teria. — Imagine
uma vida em que você teve que combater essas tempestades e
essas águas para alimentar sua família. Vestir seus filhos. Para
protegê-los. Onde semanas podem passar quando você não pode
pegar um barco na água. Onde uma série de dias pode passar,
quando beira o suicídio, sair da sua casa. O que mais existe além
da sobrevivência em um mundo como esse?
Aren não tinha percebido que tinha pegado suas mãos, mas ela
as apertou com força então, e ele fez uma pausa, seus polegares
passando levemente sobre suas cicatrizes. — A ponte muda isso.
Isso me permite dar ao meu pessoal o que eles precisam, para que
uma pequena parte de seus dias seja dedicada a mais do que
apenas a sobrevivência, mesmo que seja apenas uma hora. Para
que meu povo tenha a chance de ler, aprender, fazer arte. Cantar,
dançar ou rir.
Ele parou, percebendo que nunca havia explicado isso a
ninguém. Explicou como era governar este lugar. A luta constante
para dar uma vida digna ao seu povo. E não foi suficiente. Ele
queria que eles tivessem mais.
— Você poderia alimentar cada um deles como Reis com esse
tipo de dinheiro. — Lara não estava questionando sua palavra, mas
o levando adiante, extraindo toda a verdade.
— Isso é verdade. Mas ter essas coisas - ter a ponte - tem um
custo. Outros Reinos sabem que tipo de receita a ponte ganha, e
isso os faz querer possuí-la. Os piratas acreditam que temos
estoques de ouro escondidos nas ilhas, então eles nos atacam para
encontrá-lo. Então nós temos que lutar. Meu exército permanente
não é enorme, mas durante as Marés da Guerra, quase dois terços
do meu povo largam seus negócios e pegam em armas para
defender a ponte. Eu tenho que comprar armas para eles. Eu tenho
que pagar pelo serviço deles. E tenho que compensar a família
deles quando morrerem.
— Então, apesar de tudo, Ithicana está apenas sobrevivendo,
afinal.
Ele apertou mais as mãos dela. — Mas talvez um dia possa ser
algo melhor.
Nenhum dos dois falou, e quando uma brisa suave soprou fios
de cabelo em seu rosto, Aren estendeu a mão para afastá-los. Lara
não se encolheu com o toque dele. Não desviou o olhar. — Você é
linda. — Ele enroscou os dedos nos cabelos dela. — Eu penso
assim desde o momento em que te vi, mas acho que nunca disse
isso.
Lara abaixou os olhos, rosa subindo para as bochechas, embora
pudesse ter sido apenas o brilho do sol. Ela balançou a cabeça
levemente.
— Eu deveria ter dito. — Ele abaixou a cabeça, com a intenção
de beijá-la, mas, em vez disso, um ruído agudo o fez pular.
Com a mão na arma, Aren se virou para ver Jor virando a
esquina, o rosto cheio de diversão. — Eu odeio acabar com o seu
piquenique, Majestade, mas o amanhecer está chegando e
precisamos seguir nosso caminho.
Como que para pontuar suas palavras, soaram buzinas sobre a
água anunciando navios no horizonte. — Isso muda as coisas para
você? — ele perguntou a Lara, ajudando-a a se levantar.
Ela fechou os olhos, apertando o rosto por um momento como se
sentisse dor, depois os abriu e assentiu. — Isso muda tudo.
Esperança, e outra coisa, algo exclusivamente reservado para
ela, inundou seu coração e, pegando Lara pela mão, Aren a levou
de volta aos barcos correndo.
24
LARA

T .
E nada.
Não era luxúria. Lara não era tão fraca ao ponto de abandonar
uma vida inteira de planejamento e preparação para o bem de um
homem bonito e charmoso demais para o seu próprio bem. Se isso
fosse tudo, ela teria saciado sua curiosidade e continuado com a
consciência tão limpa quanto qualquer espião poderia ter. Não, era
sua admiração por Aren que estava se tornando cada vez mais
problemática, assim como sua tristeza pelo que aconteceria com
Ithicana quando ela terminasse.
Lara e suas irmãs foram ensinadas a desprezar Ithicana por um
motivo. Seu objetivo era infiltrar-se nas defesas de uma nação para
que ela pudesse, na melhor das hipóteses, ser vencida. Na pior das
hipóteses, ser destruída. Uma coisa fácil de imaginar quando o
inimigo não era nada mais do que demônios mascarados usando
sua força para manter seu povo oprimido.
Mas agora eles tinham rostos. E nomes. E famílias.
Todos os quais eram atacados anualmente por Reinos e piratas.
Talvez os Ithicanos fossem cruéis e impiedosos, mas agora Lara
descobriu que não podia culpá-los por isso. Eles fizeram o que
precisavam para sobreviver e, com todas as informações que
armazenava sobre eles, sua culpa aumentou, porque sabia que
Ithicana não sobreviveria a ela. Embora esse conhecimento já tenha
lhe trazido satisfação, agora não passava de um fato inescapável
que parecia destinado a atormentá-la a cada momento acordada
com auto aversão.
Suas ações na Ilha Aela haviam conseguido o que ela temia ser
impossível: conquistar a confiança de Aren. E não apenas a
confiança dele, mas a de todos os soldados que lutaram na batalha.
As expressões deles na presença dela haviam passado de
desconfiadas para respeitosas, e como um, eles pararam de
questionar seu direito de ir aonde ela quisesse. Um direito que
abusou instantaneamente. Ninguém a questionou quando ela se
afastou dos curandeiros e dos feridos após a batalha. Ninguém a
deteve ou a seguiu quando caminhou até a base do píer da ponte,
onde havia encontrado a entrada quase invisível, que ela marcou
com algumas pedras cuidadosamente colocadas que não
significariam nada para os Ithicanos e muita coisa aos soldados
Maridrinianos quando tomarem a ilha de Aela.
Dentro do píer, ela também escondera três cornetas que roubou
dos cadáveres na praia, prontas para desviar os reforços Ithicanos
ao usar quando der a hora. Uma estratégia que Aren praticamente
explicou para ela em suas tentativas de convencê-la a se afastar
dos feridos e entrar em um barco. O que ele só fez porque
acreditava que ela estava começando a amá-los da maneira que ele
amava.
Não vacile, ela silenciosamente cantou, olhos fixos no céu
enquanto flutuava seu corpo ainda dolorido na primavera quente.
Não falhe.
Mordendo a cutícula do polegar, Lara ponderou o que havia
aprendido. Ponderou se era suficiente para Maridrina tomar Ithicana.
O suficiente para conquistar o invencível e o suficiente para dar a
Maridrina a ponte que seria sua salvação.
Era o suficiente.
Tudo o que restava era levar os detalhes de seu plano de
invasão para Serin e seu pai, para que, então, fingisse sua morte e
escapasse de Midwatch e Ithicana e, esperançosamente, dos
inevitáveis assassinos de seu pai. Onde ela iria, não sabia. Para
Harendell, talvez. Talvez uma vez que a poeira baixasse, ela tentaria
encontrar suas irmãs. Faça uma vida por si mesma. Por mais que
tentasse, não conseguia imaginar como seria uma vida além de
Ithicana. Uma vida sem ele.
Os olhos de Lara ardiam e, em uma onda de movimento, saiu do
jardim, pegando a toalha pousada na rocha. Mais de uma semana
se passou desde o ataque a Aela, e ela ainda não havia dado um
passo adiante para colocar seu plano em ação. Ela disse a si
mesma que era porque o músculo que distendeu em seu ombro
durante a batalha precisava de tempo para curar antes que ela
fosse forte o suficiente para fazê-la escapar. Mas seu coração disse
que estava atrasando por outros motivos. Razões que colocam toda
a sua missão em risco.
Mas hoje era a noite.
Aren enviou uma mensagem do quartel via Eli que haveria uma
tempestade essa noite e que ele planejava jantar com Lara. E se
estivesse com ela, isso significava que Taryn, que ainda insistia em
dormir do lado de fora de sua porta, faria uma pausa nos seus
deveres de guarda-costas. Uma dose dupla de um narcótico
sedativo no vinho de Aren depois do jantar, e então ela passaria a
noite inteira no quarto dele para trabalhar sem medo de
interrupções.
As nuvens já estavam rolando, o vento soprava, pois mesmo na
estação calma, os Mares de Tempestade ainda mostravam suas
garras. Lara trabalhou metodicamente em sua aparência, secando
os cabelos e depois usando um ferro quente para criar cachos que
pendiam de suas costas. Ela escureceu os olhos com kohl e pó até
esfumar e pintou seus lábios de um rosa pálido. Ela escolheu um
vestido que não usara antes: roxo escuro, a seda
escandalosamente transparente, revelando seu corpo por baixo
sempre que passava diante de uma luz. Nas orelhas, ela usava
diamantes pretos e, no pulso, a pulseira inteligente que escondia os
frascos de narcóticos.
Saindo para o corredor, ela caminhou até a sala de jantar, as
sandálias parecendo estranhas depois de tantas semanas usando
botas pesadas. A sala estava iluminada com velas, as persianas das
grandes janelas abertas, apesar do risco que o vento representava
para o vidro caro. E um Eli encharcado conversava com Taryn,
quem Lara ficou surpresa ao encontrar ainda em casa. Ambos se
viraram para olhá-la, expressões sombrias e o coração de Lara
pulou. — Onde está ele?
— Eles foram patrulhar no final da manhã. — Taryn passou a
mão pelos lados raspados da cabeça. — Ninguém viu ou ouviu falar
deles desde então.
— Isso é normal? — Lara não conseguia controlar o tremor em
sua voz.
A outra mulher exalou um longo suspiro. — Não é anormal para
Aren decidir que há algum lugar em que ele precisa estar além de
Midwatch. — Então seus olhos deram uma nova reparada em Lara.
— Mas acho que não é o caso hoje à noite.
— Então, onde ele está?
— Pode ter sido problema com um dos barcos. Ou talvez eles
tenham decidido esperar a tempestade. Ou…
Cornetas soaram e Lara não precisava mais de Taryn para lhe
dizer o que elas queriam dizer: invasores.
— Estou indo para o quartel. — Correndo para os quartos, Lara
substituiu as sandálias por botas e colocou uma capa sobre o
vestido.
Lá fora, a chuva caía constantemente, mas o vento não era forte
o suficiente para causar aos Ithicanos qualquer problema na água.
Taryn em seu braço, e o resto de seu guarda-costas ao lado e atrás
dela, Lara correu pelo caminho escuro em direção ao quartel.
Onde a tensão estava maior do que ela já vira antes.
— Vou descobrir o que eles sabem. — Taryn deixou Lara com os
outros dois guardas, que a seguiram enquanto contornava a
enseada, subindo os degraus de pedra esculpida até o topo da
falésia, onde podia ver o mar. Vários soldados se ajoelharam atrás
das pedras que usavam para se esconder, com lunetas na mão.
— Alguma coisa? — Mas eles apenas balançaram a cabeça.
E se ele não voltasse?
Isso jogaria seu plano para a merda. Sem Aren para escrever
uma carta para o pai, ela não tinha como passar uma mensagem
detalhada sobre Ahnna e seus decifradores de códigos em
Southwatch. Sua única opção seria fingir sua morte e escapar, e
depois enviar as informações ao pai de fora de Ithicana. Mas então
ele e Serin saberiam que ela estava viva, e isso significava uma vida
inteira de assassinos correndo atrás dela. No entanto, quando se
agachou no chão para observar a escuridão do oceano, não foram
soluções para seu dilema que encheram seus pensamentos.
Foi medo.
Ela viu tantos Ithicanos morrerem em combate, de muitas
maneiras diferentes. Executados ou estripados. Esmagados ou
estrangulados. Espancados ou afogados. Os cadáveres dançavam
através de seus pensamentos, todos agora usando o rosto de Aren.
— Eles não enviaram nenhuma nota. — Taryn apareceu no
cotovelo de Lara. — Mas isso não significa necessariamente outra
coisa senão que não querem anunciar sua presença ao inimigo.
Ou estavam todos mortos, pensou Lara, apertando o peito
dolorosamente.
Taryn entregou-lhe um pacote dobrado de papéis. — Isso veio
para você.
Segurando o papel ao lado de um dos potes de algas, Lara
analisou o conteúdo. Serin, fingindo ser seu pai, discutiu sua
decepção com seu segundo irmão mais velho, Keris, que estava
exigindo frequentar a universidade em Harendell, em vez de assumir
o comando de forças Maridrinianas como seu irmão mais velho. Ele
deseja estudar filosofia! Como se houvesse tempo para contemplar
o sentido da vida quando nossos inimigos continuarem mordendo
nossos flancos!
Alguns soldados se mexeram, tirando sua atenção da carta, e
levou alguns momentos para que ela pudesse se reorientar. O
código de Marylyn parecia uma ilusão. Os olhos de Lara arrastaram-
se continuamente para o mar. Mas, eventualmente, sua mente
retirou a mensagem de Serin do absurdo. Valcotta bloqueou nosso
acesso à Southwatch. Fome em ascensão.
Uma onda de náusea passou por Lara e enfiou as páginas no
bolso da capa. Com seus destruidores de navios, Southwatch era
capaz de expulsar Valcotta, mas ela podia entender a relutância
deles em antagonizar a outra nação. Entendeu o que custaria a
Valcotta se juntar aos escalões dos Reinos que invadiam Ithicana.
Mas eram as pessoas que pagavam o preço.
Eles ficaram sentados na chuva por horas, mas nenhuma
corneta soou. Nenhum barco apareceu abaixo solicitando acesso à
enseada. Nada se mexeu na escuridão.
Eventualmente, Taryn se aproximou dela. — Você deveria voltar
para casa, Lara. Não há como dizer quando eles voltarão, e você
congelará nessa chuva fria.
Ela deveria ir. Ela sabia que deveria ir. Mas a ideia de ter que
esperar por um deles para lhe trazer notícias… — Eu não posso. —
Sua língua estava grossa.
— Para o quartel, então? — Havia um apelo na voz da outra
mulher.
Relutantemente, Lara assentiu, mas a cada poucos passos pela
trilha, lançava um olhar para trás em direção ao mar, o rugido dele
chamando, atraindo-a de volta.
— Este é o beliche de Aren — disse Taryn, uma vez que
estavam nos limites do edifício de pedra. — Ele não vai se importar
se você dormir aqui.
Fechando a porta do quarto minúsculo, Lara colocou a lamparina
na mesa de madeira áspera ao lado da cama estreita e sentou-se, o
colchão duro como uma rocha e o cobertor áspero comparado aos
lençóis macios da casa. Isso a lembrou da cama que ela dividiu com
ele na casa segura. Como ela adormeceu em seus braços, ouvindo
a batida de seu coração.
Ela tirou a capa e se encolheu de lado, a cabeça apoiada no
travesseiro.
Cheirava como ele.
Fechando os olhos com força, Lara aproveitou todas as lições
que seu Mestre de Meditação já havia lhe ensinado, medindo a
respiração e limpando a mente, mas o sono não veio, então se
sentou, o cobertor enrolado nas pernas.
Não havia nada na sala para distraí-la. Sem livros ou quebra-
cabeças. Nem mesmo um baralho de cartas. Os esparsos
aposentos de um soldado, não de um Rei. Ou pelo menos não do
tipo de Rei que ela acreditava existir. Os aposentos de um líder que
não se mantinha acima do seu povo. Que tomava suas dificuldades
como dele. Porque elas eram dele.
Por favor, esteja vivo.
A porta se abriu e Lara deu uma volta para encontrar Taryn em
pé na porta. — Eles voltaram.
Ela seguiu a outra mulher correndo até a enseada, o peito
apertado de medo. Era um medo para si mesma, sua mente gritava.
Medo por sua missão. Medo pelo destino do seu povo.
Mas seu coração lhe disse o contrário.
A areia da praia mudou sob seus pés, e Lara apertou os olhos na
escuridão. Uma voz fraca chamou, então a corrente chacoalhou,
abrindo a entrada da enseada.
Mais salpicos, ondas batendo contra cascos e remos esculpindo
a água. Mas, acima de tudo, Lara percebeu gemidos de dor. O
coração dela disparou.
Por favor, esteja vivo.
A enseada se transformou em uma onda de atividades, barcos
cheios de homens e mulheres ensanguentados entrando, aqueles
na praia amarrando-os e ajudando os feridos a desembarcar. Os
olhos dela saltaram sobre os rostos sombreados, procurando.
Procurando.
— Você pode, pela fé, se apressar? — A voz de Jor. Lara
atravessou o tráfego eficiente, tentando encontrar o soldado.
Finalmente, ela viu ele e Lia agachados no fundo de um barco, uma
figura caída entre eles.
— Aren? — Sua voz saiu como um coaxar, os pés abruptamente
enraizados no local.
A dupla se abaixou, e o alívio inundou suas veias quando Aren
afastou suas mãos. — Saiam de cima de mim. Eu posso muito bem
sair sozinho.
Ele ficou de pé e o barco balançou, Jor e Lia recuperando o
equilíbrio facilmente, mas Aren quase indo para o lado.
— Chega de seu orgulho, garoto. — Jor latiu e, entre ele e Lia,
eles arrastaram o Rei para a terra.
Lara não conseguia ver o que havia de errado com ele no
escuro, as lamparinas projetando sombras que pareciam manchas
de sangue, só que se mexiam e se moviam. Então Aren se virou, e
a lamparina atrás dele revelou o contorno de uma flecha embutida
em seu braço.
— Saiam do meu caminho. — Ela empurrou dois soldados para
o lado e correu em direção a Aren.
— O que diabos você está fazendo aqui em baixo? — Aren
empurrou Jor para longe, mesmo quando ele tropeçou. Lara se
adiantou e pegou o peso dele, o cheiro quente de sangue enchendo
seu nariz. — Eu posso andar sozinho. — ele murmurou.
— Claramente. — O corpo de Lara estremeceu com o esforço de
segurá-lo de pé enquanto se dirigiam da praia inclinada em direção
à linha das árvores, o caminho que levava ao quartel mal iluminado
com potes de algas.
Arrastando Aren para o quartel, ela o colocou em um banco.
Jogando de lado a capa encharcada, puxou uma das facas e cortou
a túnica dele, deixando cair a roupa arruinada no chão. Então ela se
ajoelhou ao lado dele, seus olhos observando a lesão.
A ponta da flecha estava enterrada profundamente no músculo
de seu braço, o eixo tendo sido quebrado pela metade por alguém
em algum momento, a madeira manchada de escuro com sangue.
— Malditos Amaridianos. — A voz de Jor parecia distante para
Lara, cada parte dela focada na respiração de Aren contra seu
pescoço, quente e irregular.
Erguendo o rosto, ela encontrou seu olhar enevoado pela dor. —
Não podemos retirá-la - temos que empurrá-la completamente.
— Cada momento com você é uma delícia. — Uma leve faísca
voltou aos olhos de Aren. — Desculpe, eu perdi o jantar.
— Você deveria ter vindo. — Ela lutou para manter a voz calma.
— Cheirava muito bem.
— Perder a comida não é a parte pela qual sinto muito. — Ele
levantou o braço não machucado, os dedos roçando o grande
diamante ainda adornando sua orelha, enviando um tremor através
dela.
— Se segure em mim — Ela empurrou a mão dele antes que sua
compostura fosse totalmente quebrada. — A última coisa que
precisamos é que você se contorça e agrave a lesão.
Aren soltou uma risada dolorida, mas segurou a cintura dela com
a mão do braço não ferido, os dedos cravando nos músculos das
costas dela.
— Isso vai doer — advertiu Jor, segurando com firmeza a flecha.
Xingando, Aren baixou a cabeça no ombro de Lara e o puxou contra
ela, sabendo que não era forte o suficiente para mantê-lo firme se
ele lutasse.
— Relaxe — disse Jor. — Você está sendo um bebê.
Lara murmurou no ouvido de Aren — Respire — Os ombros dele
tremiam quando inspirou e expirou, e ela sabia que a atenção dele
estava nela. Os dedos dele flexionavam, depois deslizaram da
cintura para o quadril. — Respire — ela repetiu, os lábios roçando o
lóbulo da orelha dele. — Respire. — Quando disse a palavra pela
terceira vez, ela encontrou o olhar de Jor.
Ele empurrou.
Aren gritou em seu ombro, empurrando-a com tanta força que
Lara quase recuou, suas botas derrapando contra o chão do quartel.
O sangue espirrou em seu rosto, mas o segurou, recusando-se a
soltá-lo.
— Consegui! — Jor disse, e um segundo depois, os joelhos de
Lara dobraram e caiu para trás, Aren pousando em cima dela. Por
um batimento cardíaco, nenhum dos dois se mexeu, a respiração de
Aren trabalhou em seu ouvido, seu corpo pressionado contra o dela.
Ela o segurou, agarrou-se a ele, um desejo irracional de caçar e
destruir aqueles que haviam feito isso consumindo todos os outros
pensamentos. Então Jor e Lia estavam puxando-o para longe dela.
Lutando em pé, Lara limpou o sangue do rosto, o coração
batendo forte quando Jor examinou a lesão. — Você o ajudará. —
disse ele, depois se afastou quando uma das alunas de Nana
chegou.
Ao redor havia soldados ensanguentados. Alguns cerraram os
dentes contra a dor. Alguns gritaram quando seus camaradas
tentavam estancar ferimentos horríveis. Alguns deitavam-se
imóveis.
Todos eles se machucaram em defesa de sua casa.
Os olhos de Lara caíram em Taryn, lágrimas escorrendo pelo
rosto da mulher enquanto pressionava as mãos contra o estômago
de um jovem, tentando segurar suas entranhas por dentro. — Não
morra comigo. — Sua voz sussurrada de alguma forma cortou o
barulho. — Não se atreva a morrer.
Mas, enquanto Lara observava, o peito do jovem ficou imóvel.
Quantos corações ainda haveriam quando o pai dela atacasse?
Eles são seus inimigos, ela entoou. Seu inimigo. Seu inimigo.
Mas as palavras eram profundamente vazias em sua mente.
Lara deu um passo para trás. Então dois. Três. Até que estava
fora do quartel e em um caminho vazio.
— Lara!
Ela virou. Aren estava a uma dúzia de passos atrás dela no
caminho, o curativo no braço caindo, como se tivesse empurrado a
curandeira trabalhando nele antes que ela pudesse terminar.
— Espere.
Ela não conseguia. Ela não deveria. Não quando cada pedaço
de determinação que possuía estava desmoronando no chão. No
entanto, seus pés permaneceram fixos na terra enquanto Aren
caminhava lentamente em sua direção, o sangue escorrendo pelo
braço e pingando das pontas dos dedos.
— Eu sinto muito. — Sua voz estava trêmula. — Sinto muito que
tudo que viu desde que esteve aqui foi violência.
Tudo o que ela conhecia era violência. Não era nada para ela. E
tudo.
— Queria que fosse diferente. Eu gostaria que não fosse assim.
Ele balançou, caindo de joelhos, e Lara não percebeu que
também estava ajoelhada até a lama encharcar seu vestido. Não
percebeu que ela estendeu a mão para segurá-lo até a mão de seu
braço não ferido agarrar seu quadril para se equilibrar. Uma dança
onde ela liderou e ele a seguiu.
— Olhos assim como os de seu maldito pai. Foi o que pensei
quando te vi pela primeira vez. Nós chamamos de azul de bastardos
Maridrinianos.
Ele deve ter sentido ela estremecer, porque seu aperto no quadril
dela aumentou, puxando-a para mais perto. Ela não brigou com ele.
— Mas eu estava errado. Eles são diferentes. Eles são… Mais
profundo. Como a cor do mar ao redor de Eranahl.
Eranahl? Ela já tinha visto esse nome antes, escrito em uma das
páginas da mesa dele… Ouviu quando ele repreendeu o
comandante Aster na praia na ilha de Aela. Revelando que era um
deslize da parte dele, ela tinha certeza disso. Mas não conseguiu se
importar quando a mão dele deslizou pelas costas dela. Levou toda
a força de vontade que ela tinha para não deslizar os braços ao
redor do pescoço dele, para não beijar aqueles lábios perfeitos dele,
sem se importar com o sangue e o pus.
Lara retirou a mão do ombro dele, mas a pegou com a sua.
Dobrando os dedos em um punho, ele beijou as juntas, os olhos
queimando nos dela. — Não vá.
Tudo estava queimando.
O coração de Lara batia freneticamente, sua respiração instável,
sua pele tão sensível que a pressão de suas roupas quase doía.
Pare! O aviso gritou dentro de sua cabeça. Você está perdendo
o controle. Ela sintonizou a voz, afastou-a.
O polegar de Aren roçou a parte interna de seu pulso, os nós dos
dedos ainda pressionados nos lábios dele, e isso enviou rios de
sensação correndo sobre sua pele, o desejo de ter as mãos dele em
outro lugar, deixando suas pernas fracas. Ela balançou e ele a
puxou contra ele, os dois instáveis.
— Você precisa voltar para os curandeiros — ela sussurrou. —
Você precisa deixá-los costurar isso antes de sangrar até a morte.
— Eu vou ficar bem. — Ele abaixou a cabeça no momento em
que ela ergueu a dela, compartilhando o mesmo ar, a mesma
respiração, a brusca subida e descida de seu peito desmentindo
suas palavras. Ele não estava bem.
O pensamento disso a encheu de terror. Terror que se
transformou instantaneamente em raiva. Por que se importava com
o que aconteceu com ele além do sucesso de sua missão? Por que
ela se importava se ele vivia ou morria? Este foi o homem que
deliberadamente tomou decisões que causaram grandes danos ao
povo de sua terra natal. Talvez tenha feito isso pelo bem de seu
próprio povo, mas isso não desculpou a completa falta de empatia e
culpa que ele sentia ao agir. Ele era seu inimigo, e ela precisava se
livrar dele antes de cometer um erro.
Então seus lábios roçaram suavemente os dela, e isso a desfez
completamente. Os dedos dela se enredaram nos cabelos dele, e
ela queria mais. Mais disso e mais dele. Porém, em vez de dar a
ela, ele se afastou. — Eu preciso que você me ajude a fazer isso
parar. Estou cansado de lutar contra o mundo, quando o que quero
é lutar para tornar Ithicana parte dele.
E foi como se a realidade lhe desse um tapa na cara.
Lara se afastou dele. — Isso nunca vai parar, Aren. — Sua voz
era estéril. Morta. O que era estranho, porque dentro de sua cabeça
havia um caos de emoções. — Você tem o que todo mundo quer, e
eles nunca vão parar de tentar pegá-la. Isto é Ithicana, e é tudo o
que será. Viva com isso.
— Isso não é viver, Lara. — Tossiu, depois estremeceu,
pressionando a mão contra a ferida. — E pretendo continuar lutando
por um futuro melhor, mesmo que isso me mate.
A fúria irracional surgiu em suas veias com as palavras dele. —
Então você também pode se deitar e morrer! — Ela precisava ficar
longe dessa situação porque a estava despedaçando. Levantando-
se em uma onda de movimento, Lara virou-se e correu pelo
caminho escuro, escorregando na lama e nas raízes, até a casa.
Ela esperou em seus quartos até que os corredores estivessem
em silêncio, até que não houvesse chance de alguém a perturbar,
depois rastejou pelos corredores escuros e trancou a fechadura do
quarto de Aren. Vitex sentou na cama, mas ele só se esgueirou do
lado de fora, ignorando-a enquanto passava.
Fechando a porta atrás dela, Lara acendeu a lamparina e foi até
a mesa de Aren. Ela extraiu o pote de tinta invisível que Serin lhe
dera, depois puxou a caixa de papelão com um pesado pergaminho
oficial ao lado de sua mão esquerda, abrindo a tampa. Pegando a
página de cima, virou-a para que a forma em relevo da ponte ficasse
voltada para baixo, depois mergulhou uma caneta na tinta e
começou a escrever em letras minúsculas, o líquido secando
invisível enquanto detalhava tudo o que havia aprendido sobre
Ithicana e uma estratégia para conquistar e quebrar o Reino da
Ponte. Sua mão tremia quando chegou ao fundo, mas deixou o
papel de lado para secar e pegou outro, repetindo sua mensagem.
Depois, outro e outro, até que todas as vinte e seis páginas da caixa
contivessem palavras condenatórias idênticas.
Precisou de tudo dela para não rasgá-las em pedaços enquanto
colocava tudo de volta e se retirava para seu próprio quarto.
Exaustão pesando seus membros, ela enterrou o rosto nos
travesseiros de sua cama, com lágrimas ensopando as penas. É o
único jeito, disse a si mesma. É a única maneira de salvar Maridrina.
Mesmo que isso significasse se condenar.
25
LARA

A
chegou rápido e violento, com o mar tão agitado que nem os
Ithicanos se aventuravam nele. Até a ponte estava quase vazia,
disse Eli, a tempestade intensa demais para os navios mercantes
enfrentarem a curta travessia para as ilhas de Northwatch e
Southwatch. Como resultado, Midwatch sentiu-se profundamente
isolada, separada inteiramente do mundo, e ficou pior pelo fato de
Lara estar presa na casa sozinha com os criados.
Embora a luta tivesse terminado, Aren a estava evitando. Ele
passava todos os dias com seus soldados e suas noites na cama
estreita no quartel, nem uma vez subindo o caminho para a casa de
Midwatch.
Mesmo assim, ela verificava o número de páginas de carta no
quarto dele todas as noites, mas todas até últimas páginas das
palavras condenatórias permaneciam em Ithicana.
Assim como ela.
Na manhã seguinte à tempestade, Lara decidiu que estava na
hora. Vestindo suas roupas Ithicanas, ela encheu os bolsos de jóias
e alguns de seus melhores narcóticos, comeu o máximo que podia
para encher do estômago, depois disse a Eli que iria sair para tomar
um ar fresco.
Encarar os mares durante uma tempestade seria, literalmente,
suicídio, então ela esperou por um céu claro antes de adotar seu
plano de fingir sua morte, sabendo que a honra levaria Aren a enviar
uma carta formal informando o pai de Lara sobre sua morte. Que
Serin, sempre vigilante, verificaria a página e descobriria o que ela
havia escrito. Então ela só podia esperar e rezar para que, quando
não aparecesse depois de um tempo em Vencia, seu pai e Serin
acreditassem que ela estava morta de verdade. Então nenhum
assassino a procuraria em Harendell, que era para onde planejava
ir. Ela poderia viver sua vida sabendo que havia dado ao povo a
chance de um futuro melhor.
À custa do futuro de todos os que vivem em Ithicana.
Com as tempestades para vigiar a ilha, Taryn e o resto foram
dispensados do serviço de guarda e não havia ninguém para fugir
enquanto ela seguia uma trilha até as falésias com vista para o mar,
cortando o lado norte até chegar ao local que escolheu há muito
tempo.
Era um ponto alto, a água a dez metros abaixo, mas o que a
atraía era a série de rochas planas que se projetavam nas ondas.
Elas eram adequadas para ela descer sua pequena canoa com
cordas e igualmente adequadas para encenar o que pareceria uma
queda acidental e uma morte trágica. De lá, pretendia pular de ilha
em ilha, usando casas seguras como as encontrou, lentamente indo
para Harendell durante os intervalos da tempestade.
Era um plano cheio de perigos, mas não era o medo que pesava
em seu estômago enquanto ela olhava para as rochas.
— Não caia.
Assustada, Lara perdeu o equilíbrio e Aren estendeu a mão e
segurou seu braço, puxando-a para longe da borda.
Ele fez um barulho de exasperação, depois continuou puxando o
braço dela. — Venha comigo. Você tem deveres a cumprir.
— Quais deveres?
— Os deveres de uma Rainha.
Ela afundou com os calcanhares, deixando rastros gêmeos na
lama até que ele parou e deu a ela um olhar de nojo. — Isso não é
um dever, Lara. Supervisionar o retorno dos evacuados da Midwatch
é. Então, ou você começa a andar ou eu vou arrastá-la para a água
e jogá-la em um barco.
— Eu andarei. — Ela ficou furiosa porque seu plano estava
sendo interrompido, mas também furiosa com a pequena semente
de alívio que sentiu sabendo que provavelmente teria que esperar
outra tempestade passar antes de deixar Ithicana.
Instalada em seu lugar habitual no barco, ela esperou até que
saíssem da enseada antes de perguntar: — Para onde estamos
indo?
— Serrith. — Aren se curvou, de costas para ela.
— Apenas um dia encantador na água — disse Jor atrás dela,
enquanto levantava a vela. Depois disso, ninguém disse mais nada.
A enseada na ilha de Serrith era dominada por dois dos grandes
navios de casco duplo que ela vira durante a evacuação, mas eles
já estavam vazios de civis e suprimentos, suas equipes prontas para
partir. Partir para Eranahl, ela pensou, observando-os. Embora onde
exatamente, permanecia um mistério para ela, apesar de todas as
semanas de espionagem.
Sua pele formigou quando ela seguiu Aren pelo caminho através
da fenda na rocha onde matou todos aqueles soldados. Eles
continuaram até chegarem à vila. Era uma visão totalmente
diferente da última vez que eles estiveram aqui. Em vez de sangue
e corpos, crianças de olhos mortos e pais chorando, estava
movimentada pela indústria. As mulheres abriram as janelas e
portas fechadas de suas casas para arejá-las, e as crianças corriam
soltas entre elas.
Houve uma enxurrada de saudações e votos de felicitações,
apresentações orgulhosas de novos bebês para seus governantes e
crianças seguindo o rastro deles, desesperados por um momento de
atenção. A tática de Aren era óbvia. Tentando tocar o coração dela
colocando bebês gordinhos nos braços da mulher ou dando doces
para distribuir às crianças.
E foi eficaz. Ela queria cair no chão e chorar, porque o mundo
deles seria despedaçado. Mas era entre eles e os Maridrinianos. O
povo faminto de Maridrina precisava da ponte, precisava da receita,
precisava dos bens que passavam por ela. Então sacrificaria essas
pessoas por si mesma e depois rezaria para que a culpa e o
sofrimento não a matassem.
Lara teria dado qualquer coisa para ter suas irmãs aqui para
compartilhar o fardo, porque elas entenderiam. Elas eram as únicas
pessoas que entenderiam. Mas ela estava sozinha, e cada minuto
que passava parecia estar mais perto do ponto de ruptura do que
ela poderia suportar.
Somente quando voltaram para os barcos, ela sentiu que podia
respirar novamente, sentada com o rosto nas mãos enquanto
navegavam de volta para Midwatch.
— Parece que os guardiões tiveram alguns visitantes — disse
Jor, quebrando o silêncio.
Lara levantou a cabeça, os olhos pousando em uma pequena
ilha com praias brancas e suaves que desapareciam em rochas e
vegetação. Acima dela, pairava a ponte, com o comprimento
apoiado em um píer centrado na ilha. Não era que a própria ilha
fosse única, apenas que parecia extraordinariamente fácil de
acessar em relação às outras que os construtores haviam usado
como cais.
Porque eles não tiveram escolha, ela determinou, olhando a
distância. A maior extensão de ponte que vira estava a cem metros
entre os cais, e contornar a ilha exigiria um trecho mais longo do
que era possível. Seus olhos pousaram nas três formas humanas,
no meio da praia, inchadas e apodrecendo ao sol. — O que é este
lugar?
— Ilha das Cobras.
Ela pensou nas inúmeras serpentes que tinha visto desde a
chegada. — Um nome que descreve a maior parte de Ithicana.
— Essa em particular. — Aren fez sinal para que Jor abaixasse
as velas, permitindo que o barco flutuasse sobre o fundo raso em
direção à praia. — Veja.
Ela olhou, vendo movimentos instáveis sob a borda da rocha que
pairava sobre a praia, mas incapaz de descobrir detalhes.
Aren levantou-se no barco ao lado dela, um peixe ainda em
movimento que havia sido capturado mais cedo em uma mão,
esperando enquanto as ondas os levavam gentilmente até a praia.
Quando estavam a uns trinta metros, Jor enfiou um remo na água,
impedindo que o barco se afastasse. Aren jogou o peixe.
Ele aterrissou no meio da praia e Lara assistiu horrorizada
quando dezenas e dezenas de cobras dispararam para fora da
saliência, voando em direção ao peixe com as mandíbulas abertas.
Elas eram grandes, em média, com o comprimento maior do que a
altura de Aren, e algumas muito maiores que isso.
A corredora da frente passou a mandíbula em torno do peixe
enquanto as outras se empoleiravam, lutando e estalando até que o
peixe desaparecesse pelo esôfago, o pescoço da cobra esticado
para conter seu prêmio.
— Bom Deus. — Lara pressionou a mão contra a boca.
— Se uma delas enfia os dentes em você, você se vê paralisada
em poucos minutos. Então é uma questão de tempo até que uma
das grandes apareça para terminar o trabalho.
— Uma das grandes... — A ilha tornou-se impossivelmente mais
aterrorizante quando Lara procurou por sinais das referidas cobras.
Ela avistou um caminho de pedra que levava à base do píer. Estava
cheio, mas comparado a todos os outros cais, parecia quase
acolhedor. — Por favor, não me diga que você usa isso como uma
rota para a ponte?
Aren balançou a cabeça. — Distração. Faz bem o seu trabalho, é
tão convidativa.
— Muito convidativa — acrescentou Jor. — Quantos de nós
alimentaram aquelas serpentes malditas?
Lara olhou de soslaio para Aren.
— É um jogo que nossos jovens jogam, embora seja proibido.
Duas pessoas atraem as cobras para longe do caminho, e o
corredor deve chegar ao píer, subir e descer na ponte e depois cair
de novo na água. Um teste de bravura.
— Mais como uma prova de idiotice — Jor retrucou.
— Certamente uma boa maneira de se matar. — Lara mordeu o
interior de suas bochechas, debatendo a utilidade desse lugar em
particular. Seria fácil ancorar navios e transportar homens, se algo
pudesse ser feito sobre as cobras.
Lara estava tão envolvida em seus pensamentos que nem
percebeu que Aren havia tirado a calça até que pulou pela beira do
barco, parado na água até a cintura. — Segure isso para mim. —
Ele entregou a ela seu arco. — Não deixe molhar.
— O que você pensa que está fazendo?
Ele estalou os nós dos dedos. — Faz muito tempo, mas tenho
certeza de que ainda posso fazer isso.
— Volte para o barco, Aren — disse Jor. — Você não é mais um
garoto de catorze anos.
— Não, eu não sou. O que deve ser apenas para minha
vantagem. Lia e Taryn, vocês são a isca. Façam um bom trabalho, a
menos que queiram passar seus dias assistindo a bunda de Ahnna.
— Vocês não irão fazer isso — ordenou Jor às duas mulheres.
— Fiquem aqui.
Aren girou na água, descansando as mãos no barco. — Preciso
lembrá-lo quem é o Rei aqui, Jor?
Lara sentiu seu queixo cair. Nunca em Ithicana ela o viu usar sua
autoridade. Dar ordens, sim, mas isso foi diferente.
Os dois homens se entreolharam, mas Jor levantou a mão livre
em derrota. — Façam como Sua Majestade ordena.
Com rostos sombrios, as duas mulheres pegaram um par de
peixes cada uma e depois pularam na água. Elas já fizeram isso
antes, pensou Lara. Elas já fizeram isso antes por ele.
O coração de Lara estava batendo em batidas rápidas. — Entre
no barco. Seu braço não está curado.
— Está curado o suficiente.
— Isso é loucura, Aren! O que você está tentando provar?
Aren não respondeu, andando até ficar a poucos metros da linha
de água, depois ficou totalmente parado enquanto as duas soldadas
espirravam água ruidosamente em direções opostas, chamando a
atenção das cobras. O chão sob o parapeito era uma massa
contorcida de corpos, as criaturas se afastando do caminho,
observando as mulheres.
Isso é por causa do que você disse, uma voz em sua cabeça
sussurrou. Você disse para ele se deitar e morrer.
— Aren, volte para o barco. — Sua voz era irreconhecivelmente
estridente. — Você não precisa fazer isso.
Ele a ignorou.
Diga a ele que você se importa. Diga a ele que a vida dele é
importante para você. Diga o que você precisa dizer para levá-lo de
volta ao barco.
Exceto que não podia. Não podia contar uma mentira assim para
esfaqueá-lo pelas costas.
Mas isso é mentira?
— Aren, eu... — A garganta de Lara estrangulou o resto das
palavras.
Jor acenou com a cabeça para os guardas no barco, e aqueles
que carregavam arcos silenciosamente lançaram flechas, mas de
alguma forma, Aren sentiu o que estavam fazendo. — Se algum de
vocês disparar uma dessas flechas, está fora da minha guarda.
Eles abaixaram os arcos. — Você não pode estar falando sério
— Lara rosnou. — Aren, volte para o barco, você…
— Agora!
A seu comando, as mulheres jogaram o peixe na praia. Mais
uma vez, cobras dispararam de baixo da borda, dezenas de cobras
após dezenas de cobras. Mais do que Lara poderia contar. E
quando as primeiras estavam prestes a ganhar o prêmio, Aren
começou a correr, os pés afundando na areia profunda. Ele só
chegou na metade do caminho na praia quando as cobras o viram,
várias delas erguendo-se para observar o intruso antes de se lançar
em sua direção.
Ele foi rápido.
Mas as cobras eram mais rápidas.
— Elas estão vindo! — Lara gritou, observando horrorizada as
criaturas perversas voarem pela areia. Aren estava no caminho,
correndo em direção ao píer imponente, suor brilhando em seus
ombros nus. Ele tinha trinta metros pela frente.
Ele não ia conseguir.
As cobras estavam se jogando no ar, suas mandíbulas estalando
apenas passos atrás dele. E estavam se aproximando.
— Corra!
Lara ficou de pé, sem perceber como o barco balançava
embaixo dela. Ele não poderia morrer. Assim não.
Jor também estava de pé. — Corra, seu merdinha!
Apenas uns dez metros. Por favor, ela rezou. Por favor, por favor.
Ela e Jor viram antes de Aren. Uma enorme besta em forma de
cobra que rodeava a base do píer, atraída pela comoção de suas
irmãs menores. A fera viu Aren no mesmo instante em que ele a viu,
a cobra se erguendo no instante em que o Rei derrapou, preso entre
a morte dos dois lados.
Sem pensar, Lara levantou o arco de Aren e pegou uma flecha
da mão do guarda mais próximo. Prendendo a flecha enquanto
girava, ela a deixou voar. A longa pena preta disparou no ar, mal
passando pelo ombro de Aren, pegando a grande assassina de
homens com sua boca aberta.
Aren reagiu instantaneamente, saltando sobre a cobra caída e
pulando para se segurar nas lascas da rocha gasta, empurrando os
calcanhares fora do alcance das cobras que se lançavam no tempo.
Ele subiu até metade em questão de segundos, depois virou a
cabeça para olhar o barco, provavelmente para ver quem havia
desobedecido suas ordens.
Lara deixou o arco escorregar dos dedos, mas não importava.
Ele tinha visto. Todos eles viram. E agora ela teria que lidar com as
consequências.
Ninguém falou enquanto ele subia, e o coração de Lara não
diminuiu por um momento, sabendo muito bem que uma queda
daquela altura o mataria. A ferida em seu braço se abriu e o sangue
escorria quando ele subia, mas se isso o incomodava, não
demonstrava. Chegando ao topo da ponte, Aren desceu o vão até
voltar às águas profundas e, sem hesitar, mergulhou em suas
profundezas.
Lara prendeu a respiração, procurando no mar qualquer sinal
dele. Mas não havia nada.
Seu ombro estava sangrando.
E se houvesse tubarões por perto?
Jor estava se movendo atrás dela, tirando as botas, o barco à
deriva. — Lia, Taryn! Venham pra cá.
Então Aren quebrou a superfície, arrastando-se para dentro do
barco em um movimento suave. A água brilhava em sua pele
bronzeada, os músculos flexionando enquanto recuperava o
equilíbrio, seus soldados meio que caindo para abrir caminho
enquanto ele caminhava em direção a ela. — O que diabos foi
aquilo?
Lara se manteve firme, sem se importar que ele pairasse sobre
ela. — Eu salvando sua bunda infantil, foi isso que aconteceu.
— Eu não precisava ser salvo.
A tosse subsequente de Jor parecia muito com Bosta nenhuma.
Aren olhou para Jor uma vez, antes de voltar para Lara. — Você
nunca disse que sabia usar um arco. Teria sido útil mencionar nos
últimos meses.
— Você nunca perguntou. — Levantando-se na ponta dos pés,
ela olhou para ele até ele dar um passo para trás, o barco
balançando enquanto se aproximava da costa. — E se você me
assustar alguma vez assim de novo, não ache que eu hesitaria em
usar um em você.
— E aqui estava eu pensando que você não se importava.
— Eu não! Você pode voltar para a praia e dormir com uma
daquelas cobras por toda a diferença que isso faz para mim.
— Então é assim? — E rápido como as serpentes da ilha, ele a
pegou e a jogou na água.
Lara caiu de bunda no banco de areia, a água até a cintura, mas
as roupas estavam ensopadas. — Idiota! — Ela ficou de pé, as
ondas batendo nos joelhos.
— Diz a mulher que não é nada além de um espinho na minha...
— Ele interrompeu com um grito quando Jor se inclinou no barco e o
chutou na bunda.
Aren caiu de mãos e joelhos com um splash, quase derrubando
Lara. Recuperando o equilíbrio mais rápido do que ela, Aren gritou:
— Droga, Jor. Para que diabos foi isso?
Mas o barco já estava partindo. — Voltaremos — gritou Jor. —
Depois que vocês resolverem essa briga conjugal. — Então o navio
contornou o píer e eles sumiram de vista.
Soltando uma série de maldições escaldantes, Aren bateu a mão
contra a superfície da água. Lara mal percebeu. Em vez disso,
observou as cobras descendo a areia, parando na linha da água.
Várias delas recuaram, balançando para frente e para trás enquanto
observavam os dois. E atrás dela... oceano aberto. Mesmo se ela
pudesse nadar, Lara sabia muito bem o que se escondia nessas
águas.
Estava presa.
O sol batia em sua cabeça, e sua sobrancelha se arrepiou
quando gotas de suor se formaram, misturando-se à água do mar
que encharcava seus cabelos.
Seu pânico crescente deve ter sido escrito em todo o seu rosto,
porque Aren disse: — As cobras não vão sair daqui. Elas sabem
nadar, mas não gostam. Jor vai voltar. Ele está apenas sendo um
idiota. Não há nada a temer.
— Fácil para você dizer. — Os dentes de Lara bateram juntos
como se estivesse com frio, mas não estava. — Você pode nadar
para longe, se quiser.
— É tentador.
— Não estou surpresa. Dado o pouco que você valoriza a vida
maridriana. — As palavras haviam surgido, mas talvez fosse a hora
delas. Talvez estivesse na hora de chamá-lo pela vilania de Ithicana.
Aren olhou para ela, mandíbula aberta. — Talvez você possa me
explicar exatamente o que eu fiz para obter um comentário como
esse de você? Não fiz nada além de tratá-la com cortesia, e o
mesmo vale para seus compatriotas.
— Nada? — Lara sabia que estava permitindo que seu
temperamento a vencesse, mas a raiva tinha um gosto melhor que o
medo. — Você acha que deixar meu povo passar fome porque é
bom para seus cofres não é nada?
Silêncio.
— Você acha que Ithicana é responsável pelos problemas de
Maridrina? — Sua voz era incrédula. — Somos aliados, inferno!
— Ah sim. Aliados. É por isso que todo mundo sabe que a
maioria dos alimentos vendidos no Southwatch vai para Valcotta.
— Porque eles compram! — Ele levantou as mãos. —
Southwatch é um mercado livre. Quem oferece mais pelos produtos
os recebe. Sem preconceito. Sem favoritismo. É assim que
funciona. Ithicana é neutra.
— Com que facilidade você lava as mãos de toda culpa. — Ela
ficou furiosa por ele ter passado o dia tentando despertar sua
simpatia pelo povo dele, depois fechou os olhos. — E como você
pode Reivindicar uma aliança em um suspiro e neutralidade no
próximo?
Aren xingou, balançando a cabeça. — Eu não posso. Eu não
posso mais. — Ele pressionou um polegar em sua têmpora. — Por
que você acha que Amarid está fungando nosso pescoço? É porque
estão zangados com as concessões que demos a Maridrina e que
daremos a Harendell se Ahnna decidir se casar com seu príncipe.
— E que impacto suas chamadas concessões causaram?
Maridrina está morrendo de fome, presa entre Ithicana e o Deserto
Vermelho, e ainda estou para ver você mostrar o mínimo de
empatia.
— Você não tem ideia do que está falando.
— Não? Eu ouvi você no dia em que fui trazida aqui. Ouvi dizer
que as concessões que você deu ao meu pai não eram o que queria
e que Maridrina passaria fome antes mesmo de ver o benefício
desse tratado!
Ele olhou para ela, o rosto tenso com fúria. — Você está certa.
Eu disse isso. Mas se você e o resto do seu povo querem culpar a
fome de Maridrina, é melhor procurar o seu pai.
Lara abriu a boca para responder, mas nada saiu.
— Você leu o tratado? — ele perguntou.
— Claro que li. Se Maridrina mantivesse a paz com Ithicana por
quinze anos, você se casaria com uma princesa do Reino e
ofereceria concessões significativas a tarifas e pedágios na ponte
enquanto durar a paz entre nossos Reinos.
— Isso é o resumo de tudo. E quando chegou a hora de negociar
essas concessões, me ofereci para eliminar todos os custos
associados a um bem importado singular, acreditando que poderia
forçar seu pai a escolher uma opção que cultivasse a paz. Gado.
Trigo. Milho. Mas você sabe o que ele exigiu? Aço harendelliano.
O peito dela se apertou. — Você está mentindo. Tudo o que meu
pai fez é para o bem do nosso povo.
Aren riu, mas não havia humor nisso. — Tudo o que seu pai faz
é para o bem de seus cofres. E por seu orgulho. — Ele balançou
sua cabeça. — Nossos impostos sobre aço e armas sempre foram
proibitivamente exorbitantes porque o tráfico de armas tem
ramificações políticas que preferimos evitar. Não importando se
essas armas forem usadas, em algum momento, contra nós.
Ela não conseguia respirar.
— Maridrina não possui minas de minério, o que significa que o
aço para suas armas deve ser adquirido em outro lugar. E porque
seu pai não desistirá de sua guerra sem fim com Valcotta, ele foi
forçado a importar suas armas por navio a um grande custo. Até
agora.
O sol estava muito brilhante, tudo um borrão.
— Vou continuar, pois parece que sua educação no deserto teve
algumas lacunas. — Os olhos castanhos de Aren brilharam com
raiva. Eles eram a única coisa em que ela conseguia se concentrar.
— Guerra custa dinheiro, acredite, eu sei. Mas seu pai não tem a
ponte, então paga por ela com pesados impostos que prejudicam a
economia de Maridrina. Portanto, mesmo quando seus
comerciantes atracam no mercado aberto da Southwatch, eles não
conseguem fazer lances bons o suficiente. E assim eles zarpam
com o que ninguém mais vai comprar.
Carne infectada. Grão podre. Lara fechou os olhos. Se ele
estava dizendo a verdade, significava que tudo o que estava
alimentando seu desejo de capturar a ponte era falso. E tudo o que
restava para justificar a queda de Ithicana era exatamente o que ela
criticou contra toda a sua vida: ganância.
— Não fui eu quem mentiu para você. Não que eu espere que
você acredite em mim.
Jor e os outros escolheram aquele momento para dar a volta, e a
expressão no rosto de Aren foi suficiente para afastar a diversão do
homem mais velho. O barco se aproximou e Aren agarrou a borda,
puxando-se para dentro. Depois que Lara fez o mesmo, Aren
ordenou: — Suba a outra vela.
Jor estremeceu. — Está ansioso para chegar em casa?
— Nós não estamos indo para casa.
— Ah? Para onde?
Aren olhou de relance para o céu escuro do leste, depois voltou-
se. Mas não foi para Jor que seus olhos foram.
O estômago de Lara revirou quando Aren a encarou. Desafiou-a
— Vamos fazer uma visita a Maridrina.
26
LARA

Q
inimigo, disposto levá-la - que conhecia tantos segredos de Ithicana
- para aquele território, deveria ter convencido Lara de que as
palavras de Aren eram verdadeiras. Que seu pai, Serin, e todos os
seus mestres no complexo eram mentirosos.
Mas isso não aconteceu.
Histórias da vilania de Ithicana haviam sido queimadas na alma
de Lara. Sussurradas em seus ouvidos a vida toda. Cantadas como
um mantra através de horas, dias, anos de treinamento exaustivo
que quase a quebraram. Isso havia quebrado muitas de suas meias-
irmãs, enviando-as, de um jeito ou de outro, para a morte.
Tome a ponte e você será a salvadora de Maridrina.
Acreditar em Aren significaria mudar esse cântico para algo
muito diferente. Pegue a ponte e você será a destruidora de uma
nação. Pegue a ponte e você provará ser o peão de seu pai. Por
esse motivo, ela, como uma covarde, imediatamente argumentou
contra a partida.
— Estamos no meio da temporada de tempestades. — Lara
apontou para a escuridão no leste. — Que tipo de louco vai para o
mar para provar um argumento?
— Esse tipo de louco. — Aren puxou a linha que Lia passou para
ele com força. — Além disso, o céu está claro na direção que
estamos seguindo. E se a tempestade nos pegar, há boatos de que
somos marinheiros muito hábeis.
— Estamos em uma canoa! — Lara odiava o tom estridente em
sua voz. — Não vejo como sua habilidade entra em jogo no meio de
um tufão!
Aren riu, sentando-se em um dos bancos. — Dificilmente vamos
navegar para a capital de Maridrina em uma embarcação Ithicana.
— Como então? — exigiu saber. — Pela Ponte?
Jor bufou e deu a Aren um olhar significativo. — Melhor ignorar
Southwatch, não é, Majestade?
Aren o ignorou, levantando os calcanhares e recostando-se
contra uma mochila. — Você verá em breve.
Logo ela estava agarrada à beira da embarcação, que pulava
através das ondas, tão alto que ela tinha certeza de que uma forte
rajada de vento iria virá-los, afogando-os em mar aberto.
Lara lembrou-se de prestar atenção para onde estavam indo. É
assim que eles se infiltram em sua terra natal, como espionam. No
entanto, à medida que a ponte e a névoa desapareciam à distância
e mais ilhas se erguiam à frente, tudo o que ela queria aprender era
as profundezas de Serin e a decepção de seu pai.
Os Ithicanos largaram uma das velas, o barco saindo de sua
aterrorizante angulação para se instalar no mar, e Lara analisou
onde Aren a havia levado. Colunas de rocha incrustadas de verde
saíam dos mares azuis tão claros que o fundo parecia apenas a um
braço de distância. Os pássaros enchiam o ar em enormes bandos,
alguns mergulhando na água apenas para emergir com um peixe
preso no bico, que engoliram antes que um de seus companheiros
pudesse roubá-lo. Algumas das ilhas maiores tinham praias brancas
que chamavam convidativamente, e, em lugar algum, qualquer
lugar, havia sinal das defesas que tornavam as águas ao redor da
ponte de Ithicana vermelhas de sangue inimigo.
Lara se ajoelhou para olhar para cima enquanto passavam entre
duas torres de calcário. — Pessoas moram aqui?
Como se para responder à pergunta dela, quando eles
contornaram outra ilha, vários barcos de pesca apareceram,
homens e mulheres a bordo parando o que estavam fazendo para
levantar as mãos em saudação, muitos deles chamando Aren pelo
nome.
— Alguns moram aqui — ele respondeu lentamente, como se a
admissão lhe custasse alguma coisa. — Mas é perigoso. Se eles
forem atacados, não podemos ajudá-los até que seja tarde demais
para fazer alguma diferença.
— Eles são atacados com frequência?
— Não desde que o tratado foi assinado, é por isso que mais
pessoas instalaram suas famílias aqui.
— Eles partem durante as Marés de Guerra?
Sua mandíbula contraiu. — Não.
Lara se afastou dos barcos de pesca para olhá-lo, uma sensação
doentia enchendo suas entranhas. Quais eram as chances de Serin
e seu pai não saberem que essas pessoas estavam aqui? E quais
eram as chances de Aren não fazer tudo ao seu alcance para ajudá-
los se fossem atacados?
Mesmo que isso significasse enfraquecer as defesas da ponte.
Eles serpenteavam pelas ilhas em silêncio antes de navegar sob
um arco de pedra natural até uma enseada escondida que ofuscava
a de Midwatch, onde, para surpresa de Lara, vários grandes navios
estavam ancorados.
— São, em grande parte, embarcações navais que capturamos.
Ajustamos várias para passar como navios mercantes. Essa é a
minha. — Aren apontou para uma embarcação de tamanho médio
pintada de azul e dourado.
— Elas não são todas suas? — Lara respondeu amargamente,
aceitando o braço de Jor para se equilibrar antes de agarrar a
escada de corda pendurada na lateral do navio.
— Todos elas pertencem ao Rei Aren de Ithicana. Mas essa está
sob o comando do capitão John, comerciante de Harendell. Agora
vamos lá. Essa tempestade nos perseguirá em Vencia se
demorarmos muito mais.
O porão, como se via, estava cheio do produto que Ithicana
tentava ocultar de Maridrina: aço. — Não é possível manter várias
cabeças de gado no barco. — disse Aren. — Além disso, o aço é a
única mercadoria que vale o risco de atravessar a estação das
tempestades. Ou pelo menos era.
Quando se retiraram para o convés e entraram nos aposentos do
capitão, Lara quebrou um pedacinho da raiz que Nana lhe deu e
depois a mastigou vigorosamente, na esperança de que acabasse
com a náusea infligida por mais do que apenas enjoo do mar.
Abrindo um baú, Aren remexeu e tirou um conjunto de roupas e
um chapéu pescador, que ele jogou em sua direção. — Disfarces.
Se você fingir ser menino, terá mais liberdade quando chegarmos à
cidade.
Carrancuda, Lara pegou as roupas e esperou que ele virasse as
costas antes de tirar suas roupas Ithicanas. Depois de pensar um
pouco, ela enrolou um cachecol com força no peito, amarrando os
seios o melhor que pôde, depois vestiu a camisa folgada e as
volumosas calças aparentemente presenteadas pelos marinheiros
de Harendell. Ela torceu sua longa trança em um coque no topo da
cabeça, prendendo-o com força, depois puxou a chapéu para
assegurar e se virou.
Aren já estava vestido com seu traje de Harendell, um chapéu
pescador semelhante na cabeça. Ele franziu a testa. — Você ainda
parece uma mulher.
— Chocante. — Ela cruzou os braços.
— Hmm. — Ele girou em círculo, depois caminhou para um
canto e esfregou a mão no chão. — Este navio não foi a lugar
nenhum há mais de um ano e eu não acho que alguém esteja
limpando. — Recuando ao redor do porão, ele a alcançou.
Lara recuou em alarme. — O que você está fazendo?
— Terminando seu disfarce. — Segurando a parte de trás da
cabeça dela, ele esfregou uma mão que cheirava a sujeira e merda
de rato em seu rosto, ignorando seus protestos. Recuando, Aren a
olhou de cima a baixo. — Relaxe um pouco. E mantenha essa
careta no seu rosto. Combina com a de um garoto de treze anos
forçado a servir seu primo mais velho, ainda que charmoso.
Lara levantou a mão em um gesto que era universalmente
ofensivo.
Aren riu, depois gritou pela porta. — Todas as mãos no convés.
Partimos para Maridrina.
Com eficiência treinada, os soldados que se tornaram
marinheiros de Harendell estavam preparando o navio, Jor
conversando com uma dúzia de Ithicanos que ela não reconheceu,
mas que deviam estar na ilha.
— Qual é a história, capitão? — Jor chamou quando Aren e Lara
entraram no convés.
— Vimos uma pausa nas tempestades e arriscamos a travessia
para obter um lucro rápido. Última chance de ganhar um belo
centavo, enquanto os preços do aço estão altos.
Todos concordaram, e Lara percebeu que eles haviam feito isso
antes. Que o homem mais procurado de Ithicana dançou sob o nariz
do pai sem ninguém, nem mesmo Serin, muito mais sábio, perceber.
Aren segurou o volante no leme, gritando ordens. A âncora foi
levantada, as velas caíram no lugar e o navio saiu da enseada.
— Você vai a Maridrina frequentemente?
Aren balançou a cabeça. — Não mais. Antes da minha coroação,
passei muito tempo em outros Reinos, desenvolvendo minha
educação em economia comercial.
— É isso que você estava fazendo? — Jor disse enquanto
passava. — E aqui eu pensei que todos esses empreendimentos
fora de Ithicana fossem dar a você uma oportunidade de jogar,
perseguir saias e gastar dinheiro com bebidas baratas.
— Isso também. — Aren teve a decência de parecer
envergonhado. — Independentemente disso, tudo terminou quando
eu fui coroado, mas para Lara, vou abrir uma exceção.
Ela apoiou os cotovelos no parapeito. — Quanto tempo vai
demorar para chegarmos lá?
— Antes desta tempestade — ele sorriu — ou nunca.
— Isso é desnecessário. — Ela estava mais preocupada com o
que encontraria quando chegassem do que se a levaria até lá viva.
— Essa é minha decisão a fazer. Agora, por que você não
encontra algo útil para fazer?
Porque sabia que Aren não esperava que ela ouvisse, Lara fez
exatamente isso. Armada com um balde, um esfregão e uma escova
suja, ela esfregou o convés antes de se mudar para os aposentos
do capitão, onde furtou um pouco de ouro que encontrou na gaveta
de uma mesa, parando na limpeza apenas para jogar a água
enegrecida e puxar uma nova. Pelo canto do olho, ela viu Aren abrir
a boca cada vez que passava antes de fechá-la e encarar o mar à
frente deles.
Sendo satisfatória por si só, porém mais do que isso, a limpeza
lhe deu tempo ininterrupto para pensar. Na opinião de Lara, tinha
três opções quando chegassem ao porto. A primeira seria ela fugir.
Não havia dúvida de que poderia escapar de Aren e da guarda dele
e, com as jóias que tinha no bolso, juntamente com o ouro que já
havia roubado dos aposentos do capitão, seria capaz de criar uma
vida para a si mesma onde quisesse. Ela teria liberdade e,
assumindo que Aren acabaria escrevendo para o pai nas páginas
marcadas, teria cumprido seu dever para com o povo.
A segunda foi que ela caminharia até o palácio de seu pai e
usaria os códigos que Serin havia lhe dado para obter admissão.
Que contaria tudo o que sabia em troca de sua liberdade, como
havia sido prometido. Embora fosse um risco muito grande para ela,
o pai cortaria a garganta dela um pouco depois que lhe desse o que
ele precisava. E a terceira...
A terceira era que tudo o que Aren havia dito a ela era verdade.
Que seu pai teve a oportunidade de melhorar a vida do povo
maridriniano, mas optou por não fazer isso. Que seu pai, não
Ithicana, era o opressor de sua terra natal. No entanto, a mente de
Lara hesitou, não querendo aceitar essa explicação. Certamente
não estando disposta a aceitá-la sem provas.
Segurando um balde de água suja em uma mão e a grade com a
outra, ela se virou para assistir Aren navegar no navio, com o
coração palpitando, apesar do chapéu ridículo que ele usava.
E se a vida dela tivesse sido dedicada a uma mentira?
Lara foi salva de pensar mais quando uma onda caiu sobre o
convés, tornando seus esforços desnecessários. Os mares estavam
agitados e, erguendo o rosto para o céu, viu o relâmpago estalar
entre as nuvens, o vento puxando seu chapéu tolo. Aren estava
contornando a borda da tempestade, que estava quase sobre eles.
Apertando os olhos, Lara viu a sombra do continente à frente deles.
Quais eram as chances de conseguirem?
Deixando cair o esfregão e o balde, ela cambaleou pelo convés
que balançava e subiu os degraus até onde Aren estava ao leme. —
Você precisa virar para o oeste e seguir em frente deste tufão, seu
pirado — ela gritou com o vento, gesticulando para as nuvens
negras.
— É apenas uma pequena tempestade — disse ele. — Eu
vencerei. Mas você deve esperar.
Agarrando-se à balaustrada com uma mão e seu chapéu com a
outra, Lara observou como Vencia e seu porto protegido cresciam
no horizonte, quase invisíveis quando a chuva começou a cair. Ao
contrário do dia em que ela partira, o céu sobre a cidade de seu
nascimento era preto e ameaçador, às construções brancas caiadas
erguendo-se do porto em um cinza opaco. Por cima de tudo, estava
o Palácio Imperial, as paredes de um azul brilhante impecável, as
cúpulas de bronze. Era onde seu pai mantinha seu harém de
esposas, uma das quais era sua mãe, se ela ainda estava viva.
Vagamente, ela ouviu Aren ordenar que sua tripulação largasse
algumas velas, o navio quase desacelerando enquanto corria em
direção ao quebra-mar que protegia o porto. Um raio brilhou e, um
batimento cardíaco depois, um trovão sacudiu o navio. Ondas após
ondas inundaram o convés, os Ithicanos segurando cordas
firmemente para não serem levados ao mar.
Apenas Aren parecia imperturbável.
Lutando contra a crescente náusea, Lara enfiou os dedos no
parapeito. As ondas quebravam contra o alto quebra-mar como um
aríete incessante, espuma e gotículas voando a quinze metros no
ar. Cada vez que parecia uma explosão, o suor escorria por suas
costas enquanto imaginava o que aconteceria com o navio se as
ondas quebrassem a estrutura.
Com um grunhido de esforço, Aren girou o volante, seu olhar fixo
no espaço aparentemente minúsculo pela qual eles passariam.
Uma onda subiu quase à altura do quebra-mar. — Isto é loucura.
— Lara mal conseguiu manter o equilíbrio quando o navio girou e se
endireitou, deslizando através da abertura com precisão infalível.
Uma grande lufada de ar expeliu de seus pulmões, a madeira do
parapeito cavando na testa de Lara enquanto descansava contra
ela, a chuva espirrando em sua testa.
— Eu disse que conseguiríamos — disse Aren, mas ela não
respondeu, apenas observou o porto lotado, as águas suaves em
relação às do mar aberto que haviam deixado para trás.
Durante a temporada de tempestades, ela sabia que a maioria
dos navios mercantes permaneciam próximos à costa, capazes de
correr para um porto se o céu escuro ameaçasse, de modo que as
cabeças se viraram ao ver um navio harendelliano entrando. O
conteúdo provável de seu porão atraiu o capitão do porto o
suficiente para colocá-los nas docas à frente da fila, para o óbvio
desgosto daqueles capitães e tripulações.
— Faz muito tempo, seu corajoso bastardo — o homem gritou
quando o navio bateu contra a doca, Jor e vários outros saltando
sobre o corrimão para proteger o navio.
Aren esperou até que eles abaixassem a prancha antes de fazer
sinal para Lara segui-lo, a chuva ficando mais pesada a cada
minuto. — Você diz corajoso, mas minha avó usa outra palavra para
me descrever.
O mestre do porto riu. — Ganancioso?
Aren bateu a mão no peito e cambaleou para o lado. — Você me
magoou!
Eles riram como se fossem velhos amigos. Aren extraiu um
punhado de moedas e as entregou ao dono do porto, depois outra
de ouro, que o homem enfiou no bolso enquanto seu assistente
registrava os detalhes em um pedaço de papel.
— Você está bem levando em conta a hora que você chegou —
disse o chefe do porto. — Os preços do aço não se manterão por
muito tempo com Ithicana enviando o metal amaldiçoado sem
impostos ou pedágio. Está se acumulando em Southwatch. Não que
os valcottanos estejam dando ao Rei Silas muitas chances de
recuperar seu dinheiro. — Ele cuspiu na água.
Aren fez um barulho de simpatia. — Tenho ouvido.
— A nova Rainha de Ithicana não nos fez nenhum favor. Todo o
ouro que Silas retirou dos nossos bolsos foi gasto em aço e, no
entanto, não vimos nada em troca.
— Mulheres bonitas têm uma maneira de custar dinheiro aos
homens — respondeu Aren.
Lara se irritou, e os olhos do mestre do porto deixaram Aren para
pousar nela. — Não gosto muito do jeito que você está olhando para
mim, rapaz.
Aren bateu no ombro de Lara com força suficiente para fazê-la
cambalear. — Não ligue para o meu primo. Ele está azedo porque
passou a travessia inteira varrendo o convés em vez de ficar
descansando, como costuma fazer.
— A família é a pior tripulação.
— Não é só isso. Fiquei meio tentado a jogá-lo ao mar meia
dúzia de vezes, mas fazer isso significaria que nunca mais poderia
voltar para casa.
— Mais do que algumas senhoras em Vencia ficariam felizes em
te animar, eu acho.
— Não me tente.
Um quarto plano, que envolvia enfiar uma faca nas entranhas de
Aren, começou a se desenvolver quando Lara seguiu os dois
homens para fora das docas.
A voz do mestre do porto chamou sua atenção de volta para a
conversa. — Ouvi dizer que Amarid passou a estação tranquila
mostrando ao Reino da Ponte exatamente o que pensavam de
Ithicana roubando o negócio de fornecimento de armas
harendellianas a Maridrina.
— Ithicana não está fornecendo armas.
Lara detectou o raiva na voz de Aren, mas o chefe do porto não
pareceu notar.
— Mesmo assim. Enviá-las gratuitamente. Colocá-las em nossas
mãos. Ou seria, se a Valcotta não estivesse arriscando sua frota
para nos impedir de chegar ao porto. — A amargura em sua voz era
palpável. — O Rei Silas deveria ter negociado por gado.
— Vacas não vencem guerras — respondeu Aren.
— Nem soldados famintos. Ou aqueles mortos de peste. — O
mestre do porto cuspiu no chão. — O único bem que o casamento
de nossa princesa fez para Maridrina foi encher os bolsos dos
mendigos que o Rei pagou para sentar na rua e cantar pelo nome
dela quando ela passou.
Aren e o homem se voltaram para os detalhes da descarga do
navio. Não era nada além de um zumbido nos ouvidos de Lara
quando o que ouviu afundou profundamente em sua alma. O que
Serin havia dito a ela em sua carta sobre a fome e a praga ainda era
verdade... No entanto, se o que esse homem disse tinha alguma
veracidade, ela estava muito enganada sobre quem era o culpado.
O suor rolou em pequenas gotas pelas suas costas, fazendo a pele
coçar.
Não poderia ser verdade. Aren havia contratado esse homem
para dizer essas coisas. Era tudo mentira destinada a enganá-la.
Uma faixa de tensão envolvia o peito de Lara, cada respiração uma
luta enquanto tentava conciliar uma vida inteira de aprendizado com
o que estava vendo. O que ela estava ouvindo.
Com o que ela fez.
— Mande sua tripulação descarregá-lo logo de manhã. Essa
tempestade vai tornar quase impossível fazer isso agora.
Lara piscou, concentrando-se em Aren enquanto apertava a mão
do mestre do porto, esperando até que o homem estivesse fora do
alcance da voz antes de dizer: — Prova o suficiente para você?
Lara não respondeu, pressionando a mão na têmpora dolorida,
odiando como tremia.
— Estamos voltando para o navio agora? — A língua dela estava
grossa na boca, a própria voz distante.
— Não.
Havia algo em seu tom que a tirou de sua fuga. A água escorria
pelos ângulos duros do rosto de Aren, pequenas gotas se
acumulando em seus cílios escuros. Seus olhos castanhos
procuraram os dela por um momento, depois ele examinou o cais.
— Precisamos esperar a tempestade em Vencia. Melhor fazer isso
com um pouco de conforto.
Seu pulso bateu em seu crânio como um tambor enquanto ela
caminhava pelo mercado, seguindo os calcanhares de Aren, os
Ithicanos casualmente andando ao seu redor. Corra. A palavra
repetia em sua cabeça, os pés se contorcendo nas botas,
desesperados para afastá-la dessa situação. Ela não queria ouvir
mais nada. Ela não queria encarar o fato de que talvez não fosse
uma libertadora. Talvez não fosse uma salvadora. Nem mesmo uma
mártir.
Queria fugir desses fragmentos da verdade dizendo que ela era
algo completamente diferente.
Aren subiu as ruas estreitas, edifícios de dois andares
amontoados dos dois lados, janelas fechadas contra a tempestade.
Ele parou na frente de uma porta com uma placa que dizia The
Songbird em cima. Música, tilintar de copos e o murmúrio coletivo
de vozes vazavam pela rua. Ele hesitou com uma mão na
maçaneta, depois abriu a porta com um suspiro.
O cheiro de fumaça de madeira, comida cozinhada e cerveja
derramada tomou conta de Lara, e entrou na sala comunal cheia de
mesas baixas, a maioria delas Reivindicadas pelos clientes da
classe dos comerciantes. Jor e Aren estavam sentados em uma
mesa no canto, os outros guardas espalhados pelo bar. Lutando
para controlar as emoções turbulentas que atravessavam seu
coração, Lara sentou-se à direita de Aren, curvando-se na cadeira e
esperando que a chuva não tivesse lavado a sujeira que completava
seu disfarce. Uma voz feminina chamou sua atenção.
— Bem, agora, veja quem resolveu aparecer.
Uma jovem, talvez com vinte e poucos anos, se aproximou da
mesa. Ela tinha cabelos longos, um tom de loiro mais claro e
dourado que o de Lara, e boa parte de seu decote generoso foi
revelado pelo corpete decotado de seu vestido.
Aren pegou um dos pequenos copos de líquido âmbar que uma
garçonete trouxe para a mesa. — Como você está, Marisol?
— Como eu estou? — A mulher - Marisol - colocou as mãos nos
quadris. — Já faz mais de um ano que você mostrou seu rosto triste
em Vencia, John, e você pergunta como eu estou?
— Faz tanto tempo?
— Você sabe muito bem que faz.
Aren levantou as mãos em um pedido de desculpas, dando à
mulher um sorriso encantador que Lara nunca tinha visto antes em
seu rosto. Flertando. Familiar. A natureza do relacionamento deles
bateu em Lara, sua pele ficando quente.
— Circunstâncias além do meu controle. Mas é bom te ver.
A mulher esticou o lábio inferior e deu-lhe um longo olhar. Então
ela se sentou no joelho dele e passou um braço em volta do
pescoço dele. Os dedos de Lara tremeram em direção às facas
escondidas em suas botas, a fúria borbulhando em suas veias. O
que ele estava pensando, desfilando sua amante na frente dela?
Isso era algum tipo de punição? Estava tentando provar um ponto?
A mulher então cumprimentou Jor e acenou para uma das
garçonetes para trazer outra rodada.
Jor esvaziou o copo, arrancando o próximo da garçonete antes
mesmo que ela tivesse a chance de colocá-lo no lugar. — É bom ver
você, Marisol.
O olhar da mulher pousou em Lara. — Quem é o mal-humorado?
— Meu primo. Ele está aprendendo o ofício.
Marisol inclinou a cabeça bonita, olhando para Lara como se
estivesse tentando reconhecer o rosto. — Olhos assim, sua mãe
deve ter se divertido com o próprio Rei Silas.
Aren engasgou com a bebida. — Agora, isso não seria demais?
— Você pode se divertir mais se sorrisse um pouco mais, garoto.
Você pode aprender mais com seu primo do que como navegar em
um navio.
Lara deu um sorriso cheio de dentes, mas a mulher apenas riu,
voltando sua atenção para Aren. — Por quanto tempo você estará
aqui?
— Só até amanhã, supondo que a tempestade pare.
Sua mandíbula se contraiu em óbvia decepção. — Tão cedo.
— Minha presença é necessária em casa.
— Isso é o que você sempre diz. — Marisol exalou suavemente
e depois balançou a cabeça. — Você vai precisar de quartos para
sua tripulação durante a noite, então? E seu primo?
O estômago de Lara revirou. Mas não para ele. Certamente ele
não pretendia...
— Para eles. E um para mim também.
Uma das sobrancelhas de Marisol se levantou, e Lara lutou
contra o desejo de socá-la em seu nariz bonito.
Jor pigarreou. — Ele se casou, Marisol.
A mulher levantou-se tão abruptamente que bateu na mesa,
derramando líquido dos copos.
Abaixando sua bebida, Aren lançou um olhar sombrio a Jor, mas
o homem mais velho apenas deu de ombros. — Não faz sentido
continuar a conversa. Agora ela foi informada, para que possamos
continuar com os negócios.
Os olhos de Marisol brilharam e ela piscou rapidamente. —
Parabéns. Tenho certeza que ela é encantadora.
— Ela tem um temperamento como um incêndio e uma língua
afiada para combinar.
O olhar de Marisol mudou para Lara, muitos entendimentos
brilhando em seus olhos. Em vez de encará-la como ela queria, Lara
fixou sua atenção em uma rachadura na mesa. — Tenho certeza
que ela é muito bonita. — disse a outra mulher.
Aren ficou quieto por um momento. — Tão bonita quanto o céu
limpo sobre os Mares de Tempestade. E igualmente evasiva.
O estômago de Lara revirou quando suas palavras foram
registradas, um elogio envolto em uma verdade sombria que ela não
podia negar.
— Bem, isso explica por que você está apaixonado por ela,
então — disse Marisol suavemente. — Você sempre se encantou
com os desafios.
Lara pegou um dos copos pequenos e bebeu o conteúdo, seus
ouvidos zumbindo enquanto olhava para qualquer lugar, menos para
Aren.
Jor tossiu alto, depois balançou os braços no ar. — Precisamos
de uma rodada de bebidas por aqui.
— Talvez mais de uma. — Marisol estava sentada à mesa,
dando um leve aceno de cabeça aos músicos. Eles deixaram de
lado os instrumentos de corda, recuperando tambores e pandeiros,
enchendo a sala de ritmo. Moças vestidas com vestidos de cores
vivas dançavam através das mesas, as pulseiras de sinos ao redor
dos pulsos e tornozelos tilintando enquanto suas vozes
acompanhavam a música. Momentos depois, os clientes
começaram a bater palmas, o barulho tornando difícil para Lara se
ouvir seus pensamentos.
Marisol bateu palmas. — Não há evidências de que o Rei esteja
montando sua frota em um esforço para combater o bloqueio
valcottano. Nem qualquer sinal de que ele pretenda. Tenho
informantes na costa, e nenhum estaleiro possui um comando da
coroa.
Lara piscou. Essa mulher era uma espiã?
— Os preços das importações dispararam às alturas. A comida é
limitada ao que Maridrina pode produzir por si mesma, o que é
pouco, dado que todos os nossos agricultores se voltaram para os
soldados, e a fome está aumentando nas cidades. Só deve piorar.
Aren aplaudiu no tempo da música. — Amarid não está
aproveitando a trégua? Eu tinha pensado que eles clamariam pela
oportunidade.
Marisol sacudiu a cabeça. — Os marinheiros da Amarid estão se
lamuriando em todos os portos que a aliança entre Ithicana e
Maridrina destruiu sua renda. — Os olhos dela se voltaram para
Aren. — E agora que a aliança não está funcionando como
planejado, eles parecem felizes por Maridrina pagar o preço.
— Rancor deles.
Marisol tomou um gole de sua bebida e depois assentiu. — O
apoio do povo maridriniano ao conflito com Valcotta vinha
diminuindo há anos, porque ninguém acreditava que havia algo a
ganhar com isso. Mas desde o casamento e a retaliação
subsequente de Valcotta, o apoio pela guerra total com Valcotta
cresceu dez vezes. Homens e meninos estão se lançando contra os
recrutadores do exército, imaginando-se os salvadores do seu povo
e... — Marisol parou, lançando um rápido olhar para Lara.
— E? — Aren perguntou.
— E há um número crescente de vozes sugerindo que a aliança
do Tratado de Quinze Anos deve ser quebrada. Enquanto Maridrina
morre de fome, Ithicana continua a lucrar com o comércio com
Valcotta. Que se o Reino da Ponte fosse um verdadeiro aliado, eles
negariam porto aos nossos inimigos em Southwatch.
Erguendo um ombro, Marisol o deixou cair. — As concessões
que Ithicana concedeu a Maridrina não beneficiam nem um pouco
nosso povo. Mas, em vez de culpar o Rei Silas, eles culpam Ithicana
pelas dificuldades. As pessoas estão ansiosas por uma briga.
Maridrina passará fome antes mesmo de ver o benefício deste
tratado. As palavras de Aren ecoaram no crânio de Lara. Como ele
estava certo.
A música terminou, os dançarinos voltaram para os outros
lugares, e os músicos escolheram uma música mais suave para a
sua próxima peça. Marisol levantou-se. — Eu preciso voltar ao
trabalho. Vou mandar comida e quartos arrumados para você e sua
tripulação.
O pai dela, Serin... todos os seus mestres. Eles mentiram para
Lara e suas irmãs. Isso por si só não era uma grande revelação - ela
percebera que a vilania de Ithicana havia sido exagerada e
explanada a fim de transformar as meninas em fundamentalistas
com um objetivo claro: a destruição do opressor de Maridrina. Mas
até esse exato momento, ela acreditava que, embora os métodos de
seu pai tivessem sido vis, sua motivação era pura. Para salvar o
povo de Maridrina. Alimentá-los e protegê-los.
Exceto que Ithicana não era o opressor. O pai dela era
Lara e suas irmãs não haviam sido isoladas no complexo do
deserto por sua segurança. Elas nem haviam sido mantidas lá para
esconder de Ithicana os planos de seu pai, na verdade não. Tinha
sido para manter Lara e suas irmãs longe da verdade. Porque se
elas soubessem que sua missão não era motivada pela
necessidade de corrigir um erro, mas pela inesgotável ganância de
seu pai, quão dispostas algumas delas estariam em trair um
marido? De destruir uma nação? De ver um povo massacrado?
Promessas, ameaças e subornos foram motivadores insignificantes
em comparação com o fanatismo que havia sido queimado na alma
dela e de suas irmãs.
Mas para Lara, esse fanatismo não queimava mais.
27
AREN

— P ? — J
meninas trazer outra rodada de bebidas. — Para que estamos nos
aventurando por mares selvagens e território inimigo?
Empurrando sua comida no prato à sua frente, Aren não
respondeu. Lara subiu as escadas para o quarto deles há uma hora,
quieta, com o rosto pálido. Ele disse a ela para ficar lá até que ele
voltasse, para sua própria segurança. Não esperava que ela
ouvisse.
Ele sabia. Parado na água com ela ao lado na Ilha das Cobras
ele soube. Todas as pequenas peculiaridades de sua esposa
maridriniana, as pequenas coisas que lhe pareceram estranhas se
acumularam até que não havia como negar.
Lara era uma espiã.
A droga da mulher por quem se apaixonou era uma espiã.
Nos primeiros dias do casamento, ele acreditava que o aparente
desdém de Lara por ele era motivado pelo desconforto de ser
forçada a um casamento que não queria. Uma vida que não tinha
escolhido. Mas o choque em seu rosto quando ele lhe disse que seu
pai tinha tido a chance de alimentar seu povo faminto, mas havia
comprado armas, indicava que ela havia mentido no geral.
Aren contratou espiões demais para saber que os melhores
desses acreditavam que o trabalho que realizavam era para um bem
maior. O Rei Rato teria dificuldade em encontrar um espião que
acreditasse que Ithicana fosse a causa da situação de Maridrina,
então criou uma: uma filha criada em total isolamento para implantar
um falso senso de justiça.
Exceto que agora ela sabia a verdade.
— Aren? — A voz de Jor era despreocupada, mas Aren nunca
ouviu o capitão de sua guarda errar um pseudônimo,
particularmente o do seu Rei. O homem mais velho estava
preocupado. E com razão. Ithicana estava entre a cruz e a espada.
Antes que Aren tivesse chance de responder, um de sua
tripulação entrou na taverna e assentiu uma vez. O coração de Aren
afundou. — Você está prestes a descobrir.
Do lado de fora, o guarda informou: — Ela está subindo a
avenida principal. Gorrick está a seguindo. — Ele entregou a Aren
seu arco e aljava.
Aren pegou as armas sem falar nada e começou a subir a rua
com Jor nos calcanhares. Vencia estava lotada como sempre, por
isso demorou um pouco para encontrar o alto Ithicano seguindo sua
esposa. — Volte — ele murmurou para Gorrick, uma vez que tinha
Lara na mira. — Nós assumimos a partir daqui.
O homem abriu a boca para discutir, depois viu a expressão no
rosto de Aren e desapareceu na multidão.
Lara andava a passos largos no centro da rua, ainda disfarçada,
o que significava que bêbados e arruaceiros a deixavam em paz. No
entanto, enquanto a seguiam, ele se perguntou como o disfarce
podia enganar. Toda vez que ela virava a cabeça para considerar
algo que lhe interessava, a luz das tochas emoldurava as linhas
delicadas do rosto, os lábios carnudos, a longa estrutura do
pescoço, a curva arredondada de bunda. O leve balanço em seu
passo. Nenhum grumete harendelliano que conhecera andava
assim.
Ela era tão bonita que doía, e, mesmo sabendo que usou isso
contra ele, não diminuía o quão fortemente ele era atraído por ela.
Ele silenciosamente implorou: Por favor, deixe-me estar errado
sobre o que você pretende fazer.
Mas não havia como negar o caminho que Lara seguia, para
cima pelas ladeiras na direção do palácio de seu pai, aquele
testemunho azul e bronze de sua arrogância e ganância.
Jor xingou quando também percebeu para onde Lara estava
indo. — Precisamos detê-la.
Aren contornou uma dupla bêbada e migrou para as sombras
mais próximas dos edifícios. — Ainda não.
Quanto mais eles subiam, menos pessoas enchiam a rua, mas
Lara não olhou uma vez para trás. Como se não tivesse a ocorrido a
ela que ele poderia vê-la.
— O que você está fazendo, Aren? — Jor sibilou.
— Eu preciso ver se ela vai me trair se tiver a chance.
Mas o que ele esperava era que a verdade a tivesse
transformado. Que, agora acordada para a decepção de seu pai,
daria as costas para qualquer propósito que fora definido. Se ela era
o tipo de mulher que ele acreditava, não, rezava, que fosse.
Ela continuou andando em direção ao portão, os guardas em sua
volta com um interesse entediado, era um jovem solitário que não
lhes interessava. Aren parou nas sombras, onde os guardas não o
viam, puxando uma única flecha da aljava. O arco era dele, mas a
madeira parecia estranha e desconhecida sob os dedos suados.
Jor pegou sua arma. — Deixe-me fazer isso por você.
Aren deu um passo para o lado, segurando a flecha enquanto
balançava a cabeça. — Não. Eu a trouxe para Ithicana. Ela é minha
responsabilidade. — Lara não estava diminuindo a velocidade e os
guardas no portão se animaram quando se aproximou.
Um dos guardas a chamou. — O que você está fazendo, garoto?
— Lara não respondeu.
Mais uma vez, Jor tentou pegar a arma. — Você está um pouco
apaixonado pela garota. Você não precisa disso em sua
consciência.
— Sim, eu preciso.
Ela parou a uns doze passos dos pesados portões de ferro.
— Declare seu propósito ou vá embora. — o guarda gritou.
Aren lentamente puxou o arco, apontando a flecha no centro de
suas costas delgadas. Nesse intervalo, ela perfuraria diretamente
seu coração. Ela estaria morta antes que pudesse condenar ele, e
Ithicana, mais do que já condenara.
O coração de Aren estava selvagem e frenético em seu peito, o
suor quente se misturando com a chuva escorrendo por suas
costas. Quando ele piscou, a viu cair. Viu o sangue dela derramar
em uma poça ao seu redor. Viu aqueles olhos malditamente lindos
dela perderem a centelha. Então piscou novamente e ela ficou
imóvel na escuridão. Ela deu um passo hesitante à frente. O braço
dele tremeu.
Mais um passo.
A corda do arco afundou em seus dedos quando ele lentamente
começou a endireitá-los, sabendo que, apesar de não ter escolha,
nunca se perdoaria por matá-la.
O corpo dela tremeu e o coração dele pulou. Então relâmpagos
brilharam e Lara girou, correndo para longe dos portões. Jor
empurrou Aren mais fundo nas sombras enquanto ela passava,
voltando para a cidade. Ele deu um passo para a seguir antes que
tudo o que tinha comido no jantar subisse em sua garganta.
Apoiando a mão na parede do edifício, Aren vomitou suas entranhas
na rua.
— Siga-a — conseguiu dizer. — Certifique-se de que ela volte a
salvo.
Somente quando Jor desapareceu na rua, Aren apoiou a cabeça
na pedra úmida e viscosa. Meio segundo. Essa tinha sido a
diferença entre ela correndo pela noite e deitada morta na rua. Meio
segundo.
O cheiro de vômito encheu seu nariz, mas não foi isso que fez
seus olhos arderem. Ele esfregou-os furiosamente, odiando o Rei de
Maridrina até as profundezas de sua alma. A aliança entre Maridrina
e Ithicana zombava da palavra, por isso Aren sentia que não tinha
um maior inimigo que Silas Veliant.
— Você — alguém gritou. — Nada de vadiagem. Saia daqui!
Lançando um olhar para trás para o palácio onde o pai de Lara
dormia, Aren se misturou com a noite.
28
LARA

— U — L , -
em um banquinho no The Songbird, a água pingando de suas
roupas para a poça no chão embaixo dela.
O barman olhou para ela com diversão. — Você pode pagar,
garoto?
— Não — ela retrucou. — Eu pretendo beber e depois sair
correndo pela porta dos fundos.
A diversão em seus olhos sumiu e ele se inclinou sobre o bar. —
Escute aqui, seu pequeno...
— Querido, você pode trazer mais vinho da adega? — Marisol
apareceu do nada. — Eu vou lidar com isso.
Dando de ombros, o barman caminhou em direção a uma porta
aberta atrás do bar. Depois que ele se foi, Marisol puxou uma
garrafa de debaixo do bar e derramou uma dose generosa em um
copo, que empurrou na frente de Lara. — Não sei como eles fazem
as coisas em Harendell, mas não tenho o hábito de embebedar
crianças em meu estabelecimento.
Lara lançou um olhar frio para ela, esvaziou o copo e o empurrou
de volta na frente da outra mulher. Então ela enfiou a mão no bolso
e pegou uma moeda harendelliana de ouro e a jogou na barra. —
Faça uma exceção.
Uma sobrancelha se levantou. — Você é encantadora, não é,
Vossa Majestade.
— Você concede títulos a todos os seus clientes?
— Somente para mulheres com olhos azuis característicos de
Veliant que viajam na companhia de espiões Ithicanos.
Parecia fazer pouco sentido tentar dissuadi-la. — Ou enche o
copo e converse ao mesmo tempo, ou cala a boca. Não estou de
bom humor. — Não havia disposição para nada além de silenciar as
perguntas que giravam loucamente em seus pensamentos,
enquanto tentava chegar a um acordo com um mundo que parecia
virado de cabeça para baixo. E certamente não estava com
disposição para conversar com a ex-amante de Aren.
Marisol serviu e depois colocou a garrafa ao lado do copo. — Eu
vi você quando passou por Vencia a caminho de Ithicana. — Ela
apoiou os cotovelos na madeira polida. — A cortina foi puxada para
trás na carruagem e tive um vislumbre. Você parecia estar indo para
a guerra, não para se casar.
Lara estava indo para a guerra. Ou assim pensou na época.
— O Rei ordenou ruas limpas. Ninguém foi autorizado a sair de
suas casas até você embarcar no navio. Para sua proteção, eles
disseram.
Não tinha nada a ver com a proteção dela. Foi o último detalhe
para garantir que Lara embarcasse no navio convencida de que
Maridrina estava da pior forma possível e que Ithicana era a
culpada. Um último pedaço de decepção.
— Então eles carregaram você no navio e você se foi. Foi para
Ithicana e para, sem o meu conhecimento na época, roubar meu
amante favorito.
Lara deu um sorriso doce. — Dado que você não o via há mais
de um ano, não tenho certeza de que você tinha direito naquele
momento. Ou alguma vez.
— Você é uma puta, não é?
Lara pegou o copo que Marisol estava limpando de suas mãos,
encheu-o, esperou a outra mulher levantá-lo e depois bateu o dela
contra ele. — Um brinde a isso.
Engolindo o líquido em um gole, Marisol colocou o copo de lado.
— Esperávamos que as coisas mudassem. Que seu pai aliviasse
seus impostos imundos ou pelo menos usasse o dinheiro para algo
melhor do que para sua guerra incessante com Valcotta.
— Mas nada mudou.
Marisol sacudiu a cabeça. — Que nada, só piorou.
— Me pergunto por que eu me incomodei em ir. — Exceto que
Lara sabia exatamente por que tinha ido para Ithicana. Para salvar
suas irmãs. Para salvar seu Reino. Para salvar a si mesma. Nesse
exato momento, ela meio que se perguntou se tinha amaldiçoado
todos eles.
— Não era uma escolha sua, suponho. — Os olhos de Marisol
flutuavam sobre o ombro de Lara, observando as idas e vindas da
sala comunal. — O que eu sei é que você se casou com o melhor
homem que já tive o privilégio de conhecer, então, talvez, em vez de
afogar suas mágoas, considere um uso melhor do seu tempo. — Ela
inclinou a cabeça. — De qualquer maneira, espero que você
aproveite a sua noite, Vossa Majestade.
— Boa noite — Lara murmurou, enchendo o copo novamente.
Ela sabia que Aren era um bom homem. Seus instintos, nos quais
deveria ter confiado, estavam gritando com ela por mais tempo do
que gostaria de admitir, mas ela os ignorou em favor do que havia
sido dito. Ela foi enganada. Manipulada. Usada.
Ela foi ao palácio matar seu pai.
Seu plano era usar os códigos que recebera para obter acesso,
esperar que eles a levassem ao seu pai - e matá-lo. Com as
próprias mãos, se ela precisasse. Não era como se não tivesse sido
treinada para fazer isso. Eles a matariam depois, mas sua morte
valeria a pena. Valeria o momento em que o pai dela perceberia que
ela, sua arma preciosa, havia se voltado contra ele.
Mas, enquanto Lara estava de pé ali na chuva com os soldados
do pai a observando desinteressadamente, a voz do mestre Erik
encheu seus ouvidos: não deixe seu temperamento tirar o melhor de
você, pequena barata. Pois, quando faz isso, você corre o risco de
seus inimigos te derrotarem.
Uma coisa seria o custo a ela de sua perda de controle. Mas
enquanto ela estava ali, com a pele arrepiada com algum sexto
sentido alertando-a para o perigo, Lara percebeu que seria Ithicana -
e Aren - quem pagaria o preço. As folhas de papel nos quartos de
Aren em Midwatch ainda continham todos os segredos da ponte. Se
pelo menos um deles chegasse às mãos de Serin... isso seria um
dano que nunca poderia ser desfeito. Ela precisava garantir que
fossem destruídas. Uma vez feito isso, ela poderia se vingar com a
consciência limpa.
Ela voltou, pretendendo deixar um bilhete para Aren explicando
tudo e instruindo-o a destruir os papéis, mas a visão do rosto de
Aren quando lesse continuou girando em seus pensamentos. Ele,
que era leal desde de seu âmago, levaria o ato de deslealdade ao
lado pessoal. Ele iria odiar ela. Lara engoliu o conteúdo do copo em
grandes goles, desejando que o álcool funcionasse mais rápido.
Desejando que entorpecesse seu coração traidor.
Enchendo o copo de novo e de novo, ela ruminou até que a
garrafa estivesse vazia, o uísque fazendo nada para entorpecer a
dor maçante em seu peito. Ela teria pedido outro e continuaria
bebendo, mas não havia mais ninguém para servi-la, todas as
garrafas e copos guardados da noite, a sala quieta e silenciosa.
Levantando-se, Lara virou-se para encontrar a sala comunal
vazia de clientes e funcionários, cadeiras empurradas para mesas,
pisos varridos e porta trancada. Desprovida de vida. Exceto Aren,
que estava sentado à mesa atrás dela.
Ela o encarou com a vista turva, sentindo o coração como se
tivesse sido rasgado em mil pedaços e depois queimado.
— Esperando que eu vá para a cama para que possa encontrar
Marisol? — As palavras foram arrastadas. Ácidas. Mas ela quase
desejou que ele fizesse isso sem motivo para, então, dar-lhe uma
razão válida para odiá-lo. Um motivo válido para sair e nunca olhar
para trás.
O canto da boca dele se levantou — Quem você acha que veio
me encontrar para lidar com meu priminho da boca suja?
Lara fez uma careta. — Ela sabe que eu não sou seu primo. Ela
sabe exatamente quem eu sou e, por conseguinte, quem é você.
— Marisol é astuta.
— Você não está preocupado?
Aren sacudiu a cabeça e depois se levantou. Suas roupas
estavam úmidas, mas a água da chuva que tinha se molhado já
estava secando a muito tempo. Há quanto tempo ele está sentado
lá?
— Ela está espionando para Ithicana há quase uma década -
desde que seu pai se enforcou e depois cravou a própria cabeça
nos portões de Vencia. Ela é leal.
Palavras cheias de ciúme dançavam na língua de Lara, mas as
engoliu. — Ela é linda. E gentil.
— Sim. — Seu olhar era intenso. — Mas ela não é você.
Seu corpo cambaleou, a sala girando. Aren fechou a distância
entre eles em dois passos, as mãos pegando nas laterais dela.
Firmando-a. Lara fechou os olhos para tentar impedir o mundo de
girar mas a sala rotativa foi substituída pela memória do corpo
musculoso e duro do homem, de sua pele bronzeada sob os dedos
dela. O calor floresceu baixo em sua barriga.
Você não pode, ela disse a si mesma. Você é uma mentirosa e
uma traidora. Você não é a mulher que ele acredita que você é e
nunca poderá ser. Você nunca poderá ser você mesma. Não sem o
risco dele descobrir a verdade. Se ela não conseguia encontrar a
coragem de dizer a verdade, então precisava voltar a Ithicana para
destruir todas as evidências de sua traição e desaparecer. Fingir sua
própria morte. Retornar a Maridrina para vingança.
E nunca mais ver Aren novamente.
Seus olhos ardiam, sua respiração ameaçava soltar um soluço e
traí-la.
— Você está bem?
Ela cerrou os dentes. — Eu não me sinto bem.
— Não é surpreendente, dada a quantidade que você bebeu.
Você tem um gosto refinado, a propósito. Essa não é uma garrafa
barata.
— Paguei eu mesma. — Ela disse as palavras lentamente, na
tentativa de torná-las mais claras.
— Você quer dizer com as moedas que roubou do meu navio.
— Se você é estúpido o suficiente para deixá-las por aí, merece
perdê-las.
— Eu sinto muito. Eu não percebi isso através de todas as
insinuações.
— Babaca.
Ele riu. — Você pode andar?
— Sim. — Desembaraçando-se do aperto dele, ela cambaleou
em direção à escada, quando, de repente, o último degrau estava
subindo em direção a ela. Porém, antes que o rosto de Lara
pudesse bater contra a madeira, Aren a agarrou, puxando-a nos
braços. — Não vamos tentar o destino.
— Só preciso de água.
— Você precisa de um travesseiro. Talvez tenha sorte e a
tempestade demore o suficiente para que você descanse. Mas
duvido.
Lara fez um som de raiva contra o peito dele, mas era mais para
ela mesma. Na facilidade com que se enrolou contra ele. Como
seria atraente mais algumas noites com ele, apesar de saber que
isso estava apenas atrasando o inevitável.
— O uísque ajudou?
— Não.
— Isso também nunca me ajudou muito.
Uma lágrima vazou em sua bochecha, e ela virou o rosto no
peito dele para escondê-la. — Sinto muito por ter sido tão terrível.
Você merece alguém melhor que eu.
Aren exalou, mas não disse nada. O movimento metódico dele
subindo as escadas a embalou, a consciência desaparecendo
lentamente. Ela não lutou, porque, mesmo contra todas as
adversidades, confiava nele implicitamente. Ainda assim, estava
ciente o suficiente para ouvi-lo, sua voz rouca quando ele disse: —
Desde o momento em que vi você em Southwatch, não havia
ninguém além de você. Mesmo que eu seja um maldito idiota por
isso, nunca haverá ninguém além de você.
Você é um tolo, ela pensou quando a escuridão a levou.
E isso fazia os dois serem.
29
AREN

E
um dia com céus limpos.
Como seu corpo adormecido sabia que os ventos haviam
morrido e a chuva cessara, era um mistério. Um sexto sentido de
uma vida em Ithicana que o alertava quando os Mares de
Tempestade baixavam a guarda e que estava na hora de levantar a
dele. Então, quando seus olhos se abriram com o brilho mais fraco
no horizonte, Aren se levantou de onde havia dormido no chão, se
vestindo silenciosamente para não incomodar Lara, que ainda
estava roncando levemente em seu travesseiro, depois desceu as
escadas procurando algo para comer.
Era como se um fardo tivesse saído de seus ombros. Vir a
Vencia sempre foi um risco, mas havia sido mil vezes mais com Lara
a reboque. No entanto, valeu a pena. Valeu a pena fazê-la descobrir
a verdade da situação em Maridrina com seus próprios olhos e
ouvidos. Fazer com que ela entendesse que seu pai, não Ithicana,
era o opressor de sua terra natal. Ter Lara finalmente vendo com
seus próprios olhos, não mais nublados por qualquer besteira que
sua mente tivesse sido preenchida ao longo dos anos.
Essas coisas valiam o risco de que ela se voltasse contra ele e
derramasse todos os segredos amaldiçoados que aprendeu. Valeu
aqueles momentos torturantes em que Aren acreditava que teria que
detê-la.
Valeu o momento em que Aren teve certeza de que sua
lealdade, se não inteiramente voltada para Ithicana, pelo menos
tinha abandonado o seu inimigo.
O fato de ela ter feito essa escolha ficou claro desde o momento
em que a viu sentada no bar, bebendo uísque como se sua vida
dependesse disso. Aren conhecia bem a esposa para saber quando
estava chateada. Como uma chama silenciosa e fervente que fazia
com que qualquer pessoa sã lhe abrisse espaço, estes percebendo
ou não. Ontem à noite, ela ficou furiosa. Mas, pela primeira vez, não
foi com ele. Não, quando ela se virou e o viu, sua raiva foi vencida
por outra emoção completamente. Uma que ele estava desesperado
para ver nos olhos dela por mais tempo do que queria admitir.
Na sala comunal, Jor estava sentado com Gorrick, mas Aren
apenas assentiu para eles e sentou-se sozinho no canto, contente
em assistir as idas e vindas enquanto tomava o café que Marisol lhe
trouxera, sua amiga e ex-amante ocupada demais com o movimento
da sala para fazer mais do que apertar o ombro ao passar por ele.
A sala estava meio cheia de comerciantes viajantes. Alguns com
o claro olhar daqueles que desejavam lucrar assim que o mercado
abrisse. Outros tinham os olhos embaçados e os rostos verdes
daqueles que haviam passado uma noite em Vencia e só estavam
acordados porque temiam a ira de seus senhores.
Aren tinha muito mais em comum com o último grupo. Desde os
quinze anos, ele tem saído de Ithicana. Aparentemente, para
espionar. Para aprender os caminhos dos pseudo-aliados e inimigos
claros de seu Reino, mas não havia como negar que também usava
as viagens para se afastar dos incessantes fardos que
acompanhavam seu título. Vencia sempre foi o seu lugar favorito, e
ele passou uma dúzia, ou talvez mais, de tufões bebendo, jogando e
rindo em uma sala comum ou outra, mais frequentemente com uma
garota local para aquecer sua cama, ninguém acreditando que ele
fosse algo diferente de um filho de um comerciante de sucesso.
Enquanto o Reino de Maridrina era um espinho nas costas de
Ithicana, o povo maridriniano era amigo de Aren por muito tempo, o
que criou um certo conflito. Ele não deveria gostar deles, mas
gostava. Gostava de como discutiam e argumentavam sobre cada
coisa maldita; como eles eram impetuosos e corajosos, mesmo os
mais covardes deles propensos a brigar com os punhos para
defender a honra de um amigo; como eles cantavam, riam e viviam,
cada um deles com grandes ambições por algo mais.
Vencia em si era um lugar bonito, uma colina de construções
brancas com telhados azuis que sempre pareciam brilhar quando se
aproximava a partir do mar, suas ruas cheias de pessoas vindas de
todas as nações, norte e sul. Uma metrópole que prosperou apesar
do seu Rei, que governava com mão de ferro e que usava impostos
para nada além de saquear seu próprio povo.
Não, se Maridrina encontrasse por si mesma um novo
governante e Aren não fosse o Rei de seu próprio Reino, ele ficaria
feliz em viver em Vencia. Às vezes, ele se perguntava se isso era
uma parte do que seu conselho temia sobre abrir as fronteiras de
Ithicana e permitir que seus cidadãos saíssem: que veriam como a
vida era fácil em outros Reinos e nunca mais voltariam. Que Ithicana
não seria conquistada, mas, sim, desapareceria lentamente da
existência.
Só que ele não achava que seria assim. Havia algo sobre a
emoção selvagem de viver em Ithicana que falava com as almas
daqueles que nasceram para isso, e nem as pessoas, nem o Reino
jamais se deixariam ir de bom grado.
Os pensamentos de Aren foram interrompidos por uma sombra
passando sobre sua mesa.
— Bom dia, Vossa Excelência — disse uma voz nasal. — Espero
que você me perdoe por interromper seu café da manhã.
O garfo de Aren parou a meio caminho da boca e foi preciso
muito esforço para engolir a boca cheia de ovos. Ele levantou a
cabeça. — Fui chamado de muitas coisas nesta sala, mas nunca
disso.
Magpie deu um pequeno sorriso e sentou-se em frente a Aren.
— Eu aprecio o jogo tanto quanto qualquer um, Vossa Excelência,
mas talvez possamos renunciar à pretensão de que você é nada
mais nada menos do que o Rei de Ithicana. — O sorriso dele
cresceu. — Por conveniência.
Aren pousou o garfo e recostou-se na cadeira. Pelo canto do
olho, ele viu Jor e Gorrick levantarem a cabeça, o rosto de Serin
profundamente familiar para eles. Mas eles só viram o mestre de
espionagem de Maridrina de longe, porque nunca, nunca, seu
disfarce foi comprometido.
Todos os espiões Ithicanos sabiam que, ao entrar no território
inimigo, se fossem pegos, cairiam sobre sua própria espada antes
de abrir mão dos segredos de seu Reino e Aren não tinha dúvida de
que todos com ele fariam exatamente isso. Exceto, talvez, a mulher
no andar de cima.
— Foi a cicatriz na sua mão que o denunciou. — Serin apontou o
queixo em direção à mão esquerda de Aren, que repousava sobre a
mesa, a cicatriz branca curva de uma velha luta de facas claramente
visível. — Junto com a máscara, você sempre usava luvas quando
se encontrava com pessoas de fora. Mas não no seu casamento, o
qual, é claro, eu estava presente. Foi uma cerimônia tão dramática.
Gorrick ficou de pé, bocejando, depois caminhou até o bar como
se quisesse falar com Marisol. Sua amiga sorriu e riu enquanto
lustrava o copo que estava segurando, mas um batimento cardíaco
depois, ela desapareceu da sala. Para encontrar Taryn, que
protegeria Lara.
Se isso ainda era mesmo uma possibilidade.
Deus, ele era um tolo por baixar a guarda. Por acreditar que tudo
terminou na noite passada quando Lara não entrou no palácio.
Talvez isso tivesse sido apenas um truque e, mesmo agora, sua
esposa maridriniana estava contando tudo o que havia aprendido
para os lacaios de seu pai.
— Não é comum de vocês, Ithicanos, cometerem um erro. —
Serin levantou a mão para chamar a atenção de uma criada. — É
claro que suspeitávamos que você visitasse nossas praias de
tempos em tempos, mas até agora nunca havia anunciado tão
descaradamente sua chegada.
A sobrancelha de Aren se levantou.
— Foi o aço, como você pode ver. Foi marcado em Northwatch
para transporte através da ponte há mais de um ano, e, no entanto,
a carga de alguma maneira chegou a Vencia ontem, descarregada
apenas nesta manhã. E através de um navio que afirma ter vindo de
Harendell, não de uma balsa de Southwatch.
Porra. Ahnna ia matá-lo se conseguisse sobreviver a isso.
— Eu diria que foi um erro amador, mas essa não é sua primeira
visita a Vencia, é, Vossa Excelência? — Serin aceitou um café de
uma das garotas de Marisol. — Você parece confortável demais
para ser sua primeira vez.
Aren pegou sua xícara, olhando o mestre dos espiões. — Eu
sempre gostei de Vencia. Muitas mulheres atraentes.
Serin deu uma fungada divertida. — Eu pensaria que aqueles
dias ficariam para trás agora que você é um homem casado.
— Talvez eles tivessem ficado se não tivesse me enviado uma
megera.
O café na xícara de Serin estremeceu, e o homenzinho pousou-a
rapidamente para esconder a reação. Aparentemente, Lara não
havia seguido os métodos de sedução de acordo com o plano do
mestre de espionagem. O que provavelmente era uma coisa boa,
porque Aren suspeitava que ele e Serin tinham gostos bastante
diferentes quando se tratava de mulheres.
— Nós poderíamos enviar outra para você... talvez uma com
maneiras mais delicadas e gentis. — Os olhos de Serin foram para
Marisol. — Vejo que você gosta de loiras. Eu posso pensar apenas
em uma princesa para você. Ela foi minha primeira escolha, mas o
destino conspirou contra mim. Contra nós dois, parece.
A curiosidade de Aren sobre o motivo de Lara ter sido escolhida
despertou mais uma vez antes de ser afastada pela preocupação
por sua amiga. Marisol estava ligada a ele; isso significava que ela
estava em perigo. — Tentador. Infelizmente, essas práticas são
desaprovadas pelo meu povo. Vou ter que me contentar com o que
você me enviou.
— Falando em Lara, como ela está? Já faz algum tempo desde
que recebemos notícias dela, e seu pai está muito... preocupado.
A mente de Aren calculou. Se o aço havia sido descarregado e
processado até essa manhã, era possível que eles estivessem sob
o escrutínio de Magpie por uma questão de horas, todo o tempo que
Lara havia passado desmaiada em uma cama no andar de cima.
Por outro lado, isso poderia ser um truque para distrair Aren
enquanto os Maridrinianos protegiam sua princesa. — Ela está bem
o suficiente.
— O pai dela gostaria de alguma prova disso.
— Quando eu voltar para casa, irei sugerir que coloque a caneta
no papel. Mas devo adverti-lo, Lara não é a mais... obediente das
esposas. É mais provável que me diga para enfiar a caneta e o
papel na minha bunda.
A testa de Serin enrugou. — Talvez lembrá-la da longa
preocupação de seu pai por seu bem-estar.
Aren apoiou os cotovelos na mesa. — Pare com isso, Magpie.
Nós dois sabemos que seu mestre não se importa com a filha dele.
Ele conseguiu o que queria, que era o livre comércio de aço e
armas. Então, o que mais você procura?
Agitando a mão como se quisesse dissipar a tensão, Serin deu-
lhe um sorriso de desculpas. — As aparências devem ser mantidas,
você deve entender. Francamente, você pode cortar a garganta da
putinha e meu mestre não se importaria; o que ele se importa é o
seu compromisso com a aliança entre nossos Reinos.
— Ele tem seu aço, conforme nosso acordo. O que mais ele
sente que merece?
Um aceno condescendente. — É verdade que você manteve ao
pé da letra do acordo, como nós. Estou me referindo mais... ao
espírito do acordo. O tratado era para uma aliança de paz entre
Ithicana e Maridrina, e ainda assim você continua hospedando e
comercializando com o nosso maior inimigo em seu mercado em
Southwatch, permitindo que eles comprem os bens que Maridrina
precisa desesperadamente. Meu mestre pede que você reconsidere
essa prática.
— Você quer que eu corte laços com Valcotta? — Cortar laços
com o Reino que fornecia perto de um terço da receita da ponte
todos os anos? Valcotta não era um aliado, mas também não eram
inimigos jurados de Ithicana como Maridrina fora no passado. No
entanto, se Aren fizesse o que Serin estava pedindo... — Não tenho
interesse em entrar em guerra contra Valcotta.
— Meu mestre também não está pedindo que entre. — Serin
deslizou um cilindro de prata em relevo sobre a mesa, o
envernizado selo maridriniano em azul. — Ele simplesmente pede
que você pare de fornecer a eles a guerra deles contra nós.
— Eles vão retaliar, e a guerra estará à minha porta, eu pedindo
ou não.
— Possivelmente. — Serin tomou um gole de café. — Mas se
Valcotta atacar suas terras, tenha certeza de que Maridrina retaliará
dez vezes mais contra eles. Não levamos gentilmente aqueles que
mexem com nossos amigos e aliados.
Palavras de apoio, mas Aren ouviu a ameaça embaixo deles.
Faça como meu mestre diz ou enfrente as consequências.
— Pense nisso, Vossa Excelência. — Serin levantou-se. — Meu
mestre aguarda sua resposta por escrito, detalhando seu
compromisso com a nossa amizade. — O pequeno sorriso voltou. —
Que tenha uma viagem segura de volta para sua terra natal e, por
favor, dê meus cumprimentos a Lara.
Sem outra palavra, o mestre espião de Maridrina saiu da sala
comunal, a porta se fechando com força. Pegando o tubo de
mensagem, Aren rapidamente analisou o conteúdo antes de enfiá-lo
na bolsa com seus pés, depois encontrou os olhos de Jor do outro
lado da sala.
Hora de ir.
30
LARA

L ,
cobria dos pés ao queixo, tinha um copo de água sobre a mesa de
cabeceira e a sua cabeça latejava com a pior dor de cabeça de sua
vida.
Gemendo, ela se virou para enterrar o rosto no travesseiro. Os
eventos da noite anterior estavam nebulosos, mas se lembrou deles
o suficiente para que suas bochechas ardessem ao se lembrar de
Aren a pegando antes que pudesse cair de cara no chão. O jeito
que se enrolou em seus braços enquanto ele a carregava pelas
escadas. As coisas que ela disse. As coisas que ele tinha dito.
Sentada com a coluna ereta, Lara olhou para suas roupas de
menino, as quais ela dormira vestida, para as botas no chão ao lado
de sua cama, a única peça de seu vestuário que Aren havia tirado
dela depois que ela desmaiou.
As facas dela.
Olhando em volta freneticamente, Lara jogou os travesseiros no
chão, seu coração se acalmou e um leve sorriso subiu aos lábios
quando viu as lâminas descansando ali. Aparentemente, Aren havia
notado mais de seus hábitos do que ela tinha imaginado.
Pegando o copo d'água, ela abriu as janelas fechadas e olhou
para fora: o céu estava limpo com apenas uma leve brisa agitando a
roupa pendurada no varal do outro lado da rua. Eles poderiam ir
para casa hoje.
Casa. Balançando a cabeça bruscamente com esse deslize,
Lara bebeu a água em poucos grandes goles e calçou as botas. A
sala estava claramente desprovida de sujeira, então ela usou um
pouco de fuligem da lamparina para completar seu disfarce antes de
enfiar seus poucos pertences na bolsa e sair para o corredor.
Para encontrar-se cara a cara com metade da guarda de Aren.
— O que está acontecendo? — ela perguntou a Taryn, que
parecia estranha no vestido simples que usava como disfarce.
— O tempo vai piorar. Hora de ir.
Ela estava mentindo. Havia muito poucas coisas que botavam
medo nos olhos dos Ithicanos e a promessa de uma tempestade
certamente não era uma delas.
O andar de baixo já estava ocupado com o grupo de
comerciantes que acordaram cedo e já estavam começando o
desjejum, porém seus olhos encontraram imediatamente Aren
sentado no bar. Atrás dele, estava Marisol, que, pela primeira vez,
não estava polindo um copo, mas com o foco totalmente no homem
à sua frente. A mandíbula de Lara se apertou, mas seu ciúme sumiu
ao lembrar das palavras de Aren. Nunca haverá ninguém além de
você.
Exceto que, com todas as mentiras que ela tinha contado, com
todas as maneiras que o manipulou, como ela poderia ficar com
ele?
Enquanto Lara estava congelada na entrada da sala comunal,
Aren se virou e a viu. O que parecia com alívio se espalhou pelo
rosto dele. Com uma última palavra para Marisol, ele jogou um
punhado de moedas no bar. Algo estava muito errado.
Ele atravessou a sala. — Finalmente decidiu se mostrar primo?
Mal vai ter tempo para viajar para Southwatch com você se
embelezando.
Ela olhou para ele porque outros clientes estavam assistindo,
mas, uma vez que estava ao alcance do braço, ele murmurou: —
Fomos descobertos. Nós precisamos ir.
Jor e o resto dos Ithicanos estavam do lado de fora encostados
na parede com falsa indiferença. Apesar do vestuário, ninguém com
pelo menos um neurônio acreditaria que eles eram marinheiros.
Eles estavam muito alertas e nenhum deles parecia com ressaca.
Exceto ela.
— Não quero perder a maré — anunciou Aren, e imediatamente
estavam em movimento.
No porto, eles percorreram a multidão em uma corrida contida
até o cais e para dentro da doca onde o navio estava atracado. Os
Ithicanos que ficaram no navio já estavam correndo pelo convés,
preparando-se para zarpar. Prontos para fugir. O foco de Lara
aumentou, e ela examinou as docas e a multidão em busca de
qualquer sinal de perseguição. Aren disse que sua cobertura havia
sido comprometida, mas havia níveis nessa afirmação. Se os
Maridrinianos descobriram que eram de Ithicana, isso era uma
coisa. Se Maridrinianos descobriram a identidade de Aren - ou pior,
a de Lara - eles estavam com sérios problemas.
— Você é louco, John. — A barriga do mestre do porto balançou
quando esse se apressou em direção a eles. — Há uma tempestade
se formando.
Aren parou na base da prancha, usando uma mão para empurrar
Lara para cima. — Não é nada mais do que uma tempestade. Isso
manterá os valcottanos longe dos meus calcanhares.
— Insanidade — o homem resmungou. — Vou manter uma vaga
aberta para você.
— Voltaremos antes do almoço. Você pode me comprar uma
bebida ou duas no meu retorno.
— Mais provável que eu esteja brindando em sua memória.
A risada de Aren parou abruptamente. Com os grilhões
erguendo-se, Lara desviou-se da inspeção da escuridão que crescia
ao leste e encontrou Serin parado uma dúzia de passos atrás do
mestre do porto, com os braços cruzados nas costas. Observando.
O navio balançou sobre uma onda e Lara cambaleou, os ombros
colidindo com o peito de Aren, o braço dele envolvendo-a
reflexivamente para recuperar o equilíbrio, segurando-a contra ele.
Os olhos de Serin se arregalaram.
— Vá — ela sussurrou, vendo o entendimento nascer no rosto
do mestre espião. A percepção de que sua presença em Maridrina
significava que ela sabia a verdade. Que a estratégia de quinze
anos em desenvolvimento se esgotou muito cedo. A percepção de
que, se Lara fosse levada viva desse porto haveria chance de seu
pai conseguir a ponte. — Vamos! — ela gritou.
— Levantar as velas! — Aren rugiu.
Os Ithicanos entraram em ação e, num piscar de olhos, o navio
estava se afastando da doca, a prancha de desembarque pousando
na água com um esguicho. Aren arrastou Lara com ele enquanto
corria para o leme, gritando ordens mesmo quando enxames de
soldados desciam sobre eles.
— Mais rápido! — A distância entre o navio e o cais estava
aumentando, mas não rápido o suficiente. — Aren, eu não posso
deixar que me levem viva. — Lara puxou uma das facas da bota. —
Eles vão me fazer falar.
Ele avistou a faca dela, percebendo suas intenções. — Guarde
isso, Lara! Eu não vou deixar eles te levarem.
— Mas...
Ele arrancou a lâmina ornada de jóias de suas mãos e a jogou, a
arma rodando até aterrissar na doca – que estava cheia de soldados
correndo, os da frente já se preparando para saltar.
— Vamos lá, vento! — Aren gritou. — Não deixe que essa seja a
única vez que você se recusa a soprar.
Como se atendesse ao chamado de seu mestre, o vento uivou
do leste, as velas estalando. O navio balançou quando três dos
soldados saltaram, os braços agitando enquanto caíam na água em
vez de no convés.
O navio colidiu com outra embarcação com um ruído alto, a outra
tripulação gritando e xingando enquanto se arrastava ao longo dele,
atingindo outro navio, depois outro, enquanto Aren usava a força do
vento para forçar o caminho.
Os soldados corriam em todas as direções, pulando em navios
na tentativa de alcançar seu alvo, mas eles eram lentos demais.
Mesmo à distância, as embarcações estavam repletas de
marinheiros se preparando para a perseguição.
— Você consegue fugir deles? — Lara exigiu saber.
Aren assentiu, seus olhos fixos na fuga deles através do porto
lotado.
Sinos tocavam freneticamente na cidade.
— Merda! — Aren gritou. — Precisamos passar o quebra-mar
antes que eles levantem a corrente.
O olhar de Lara correu através da água para as torres gêmeas
que margeavam a abertura entre o quebra-mar até a pesada
corrente de aço que estava rangendo ao ser levantada.
— Toda velocidade!
O convés estava um caos enquanto os Ithicanos puxavam
cordas, a lona branca se abrindo para o céu. O navio saltou através
das ondas em direção à abertura, mas a corrente estava subindo
com a mesma rapidez. Mesmo que eles conseguissem atravessar,
isso rasgaria o leme e se tornariam presas fáceis para a frota
maridriniana.
— Não podemos passar pela abertura com todas as velas —
gritou Jor. — Nós seremos jogados nas pedras.
— Levante-as — ordenou Aren. — Todas elas.
Lara agarrou-se ao corrimão, os cabelos chicoteando atrás deles
com a velocidade do seu progresso. No entanto, as expressões nos
rostos da tripulação diziam que não era suficiente. Que eles
estavam indo em direção a um desastre que os teria ou afogados ou
capturados, o que equivaleria à mesma coisa.
E não havia nada que ela pudesse fazer para salvá-los. Mesmo
se pulasse no mar, o navio ficaria preso. Serin e seu pai nunca os
deixariam sair livres.
Batendo os punhos no parapeito, Lara rosnou em uma fúria sem
palavras, desespero esculpindo seu interior vazio. Apesar de tudo,
seu pai ia vencer.
A mão de Aren pegou a dela. — O vento - ele sopra ao redor da
colina e através da abertura no quebra-mar. Se programarmos isso
da maneira correta, pode funcionar.
— O que pode funcionar? — A corrente estava perigosamente
próxima.
— Você vai ver. — Ele lançou um sorriso sombrio para ela. —
Segure o corrimão e, pelo amor de Deus, não solte! — Então ele
largou a mão dela e soltou o leme.
Enquanto ele fazia isso, uma enorme rajada de vento os atingiu.
O cordame gemeu, cordas, madeira e lona esticando, à beira de
estalos, e o navio estava prestes a tombar. Mais e mais e Lara
berrou, agarrando-se ao que podia, certa de que o navio iria virar.
O navio estremeceu, um alto som de raspagem enchendo os
ouvidos de Lara enquanto a corrente se arrastava pelo lado do
porto. O barulho era horrível, a madeira lascava e estalava, a
velocidade diminuindo quando o vento diminuiu, o navio se
endireitando lentamente.
— Vamos lá! — Aren gritou enquanto Lara encarava os soldados
que controlavam as torres do quebra-mar, os olhos arregalados de
espanto.
Então eles passaram.
Recuperando o equilíbrio, Lara tropeçou para o lado do navio
para olhar para trás. Flechas chovendo por seu rastro, disparadas
mais por desespero do que por qualquer chance de atingir o alvo.
Nem, ela pensou, eles arriscariam as catapultas montadas nas
colinas. Seu pai queria que fossem capturados, não mortos. Os
navios Maridrinianos estavam amontoados atrás da corrente agora
totalmente elevada, os capitães gritando com os que estavam nas
torres.
— Levará algum tempo para que a corrente troque de lado. Eles
podem nos perseguir até Southwatch. — Os olhos de Aren se
voltaram para as nuvens negras pairando sobre o oceano escuro,
prometendo mares selvagens. — A corrida começou.
31
LARA

O
caminho de Southwatch, se era por medo da tempestade que se
formava no leste ou pela dúzia de destruidores de navios na ilha
fortificada, era impossível dizer.
Ancorar o navio no cais de Southwatch não era tarefa fácil. Todo
o corpo de Lara doía com a tensão enquanto Aren afastava o navio
contra a pedra. Ela, Aren e o resto da tripulação desembarcaram
rapidamente, encontrando um homem Ithicano mais velho na guarita
montada onde o cais encontrava a ilha.
— Nós não percebemos que você estava em Vencia, Vossa
Excelência. — O homem curvou-se com mais formalidade do que
qualquer um em Midwatch já mostrou. Seu olhar passou por seu Rei
para pousar em Lara, seus olhos se arregalando ao inclinar a
cabeça para ela.
— Viagem não planejada. Onde está a comandante?
A voz de Aren estava nítida e inabalável, mas sua mão esquerda
se apertava e abria em um movimento repetitivo que o traía. Ele não
estava ansioso para se explicar à irmã, isso era certo.
— Fora da ilha, Vossa Excelência. Ela saiu essa manhã para
lidar com um conflito na Ilha Carin, e espero que ela tenha que
enfrentar essa tempestade por lá.
A mão de Aren relaxou. — Diga a ela que sinto muito por não a
ter visto, porém não podemos ficar. Tire tudo que for importante do
navio e o afunde.
— Como você quiser, Vossa Excelência. — Curvando-se mais
uma vez, o homem continuou descendo em direção ao navio,
gritando ordens enquanto ia.
Lara lançou um olhar para trás para o navio danificado. — Por
que afundar? Você não pode apenas... repintar?
— Não há tempo para devolvê-lo ao porto seguro antes que essa
tempestade comece. O mar o destruirá e o afundará de qualquer
maneira se o deixarmos aqui, o que poderia causar problemas para
outros navios que tentarão chegar ao porto. Ahnna cortará minhas
bolas se tiver que limpar esse tipo de bagunça.
— Tenho a impressão de que ela estará com a faca às mãos de
qualquer maneira quando descobrir onde você esteve.
Ele riu, sua mão caindo contra as costas dela para guiá-la pelo
caminho. — Então que um pouco de sorte esteja ao nosso lado por
sentirmos a falta dela.
— Ela vai deixar pra lá?
— Sem chance, mas espero que não tenha vontade de nos
seguir até Midwatch para expressar sua opinião sobre o assunto.
— Essa sua coragem é inspiradora.
— Todos nós temos nossos medos. Agora vamos entrar antes
que a chuva caia.

Eles não permaneceram no mercado de Southwatch, o que teria


sido uma decepção para Lara se não estivesse queimando com a
urgência de voltar para Midwatch. O mercado era uma série de
grandes armazéns de pedra, além de um prédio menor, o qual Taryn
disse que era onde todo o comércio era ministrado. Ela ansiava por
ver o que havia dentro desses edifícios, que tipo de mercadoria
vinha de Harendell, Amarid e mais além, e o que era despachado de
sua própria terra natal. Assim como ela agora ansiava para
conversar com os Ithicanos que moravam e trabalhavam aqui em
Southwatch. Para entendê-los de uma maneira que, já que não era
necessário, ela não se permitiu antes.
Porque agora eles eram tão seu povo quanto os Maridrinianos
que deixou para trás. Na linha dessa percepção, veio uma profunda
e incessante vergonha de que ela, que era sua Rainha e quem eles
acreditavam ser sua defensora, quase os tivesse colocado na pira
funerária. Homens, mulheres e crianças. Famílias e amigos. A
maioria dos inocentes dedicados a nada mais do que viver suas
vidas - essas pessoas, tanto quanto Aren, seriam as pessoas que
ela teria traído se suas palavras tivessem alcançado Serin e seu pai.
Com esse conhecimento queimando em seu coração, ela ficou
feliz quando Aren e seus guardas a levaram para a grande entrada
negra da ponte.
A Ponte. Como ela odiava essa coisa amaldiçoada que era a
fonte de todo o desespero em sua vida. A cada passo que dava por
sua extensão fedorenta, ela desejava que isso não existisse.
Desejava ter sido enviada para Ithicana sem nenhuma obrigação
além de ser esposa. Desejava que não fosse uma perversa
mentirosa traidora de si mesma. Mas os desejos eram para tolos. O
que talvez fosse adequado, porque seu eu-tola perdia toda a
compreensão lógica sempre que sua manga roçava a de Aren, toda
vez que o olhar dele caía sobre ela, toda vez que ela se lembrava
da sensação das mãos dele em seu corpo e quanto as desejava lá
novamente.
Não havia dia ou noite na ponte. Apenas uma escuridão sem fim
com cheiro de mofo. A tempestade produzia um som lamuriante
dentro do túnel, às vezes pouco mais que um sussurro, outras vezes
um rugido ensurdecedor que forçava o grupo a enfiar algodão nos
ouvidos. Era como uma fera viva e, no final do primeiro dia de
caminhada, Lara estava meio convencida de que foi engolida viva.
Ela não podia ficar em Ithicana, mesmo que quisesse. E ela
queria. Mais do que tudo. Porém, todo o seu relacionamento com
Aren foi construído com uma mentira e, se ela lhe dissesse a
verdade, quais eram as chances dele a perdoar? Ele amava demais
o seu povo para permitir que alguém como ela permanecesse como
sua Rainha. Nem manter isso em segredo era uma opção. Seu pai a
faria pagar por sua traição. Não haveria um feliz para sempre. Não
para ela.
Relutantemente, um plano se formou na mente de Lara. Sua
primeira obrigação seria destruir os papéis com sua invasão
planejada. Então, esperaria uma noite com céus limpos e correria
para sua canoa escondida com suprimentos. Tudo o que restaria
seria navegar em direção à vingança. Porque ela pretendia fazer
com que o pai pagasse pelo que havia feito com Maridrina. O que
ele pretendia fazer com Ithicana. E o que fez com ela. Entender as
variáveis a distraiu. Afastou o aperto no peito de toda vez que ela
percebia que nunca mais veria Aren.
De tempos em tempos, encontravam grupos transportando
mercadorias. Burros cansados puxavam carrinhos cheios de aço,
tecidos e grãos para o sul. Homens com carrinhos de mão
transportavam caixas de vidraçaria valcottana para o norte. E uma
vez, depois de seguirem uma corrente de cerveja derramada por
vários quilômetros, passaram por uma carroça cheia de barris em
direção ao norte. Jor, de brincadeira, colocou a cabeça sob o cano
vazado até Aren chutar seus pés, e então informar ao homem que
dirigia a carroça para parar de fazer bagunça em sua ponte.
Às vezes havia comerciantes nas caravanas, mas sempre eram
acompanhados por guardas Ithicanos mascarados. Antes de passar
por qualquer um deles, seu próprio grupo vestia máscaras
parecidas, e Lara imaginou o que os comerciantes pensariam se
soubessem que passaram pelos os governantes de Ithicana na
escuridão.
Acamparam na ponte duas noites seguidas, comendo rações
frias que pegaram em Southwatch com apenas água para beber. Os
guardas tomavam turnos rotativos de vigia, todos dormindo apenas
com a mochila como travesseiro e a capa como cobertor. A
privacidade era inexistente e, no terceiro dia de caminhada, Lara
estava quase enlouquecida por poder sair do local.
— Lar doce lar — disse Jor, e o resto do grupo parou,
observando silenciosamente enquanto o capitão descansava as
duas mãos contra pontos de pressão na parede da ponte. O som de
um clique suave encheu o ar, e um bloco de pedra do tamanho de
uma porta abriu para dentro em dobradiças silenciosas, revelando
uma pequena câmara com uma abertura no chão.
Jor entrou e olhou para baixo. — A maré ainda está alta demais.
Teremos que esperar um pouco.
— Levarei Lara para cima. — afirmou Aren abruptamente. — O
resto de vocês esperam aqui em baixo.
Ninguém disse nada, Taryn e Jor silenciosamente abrindo a
escotilha no teto. Aren levantou Lara e depois se arrastou para fora.
Deixando a escotilha aberta, ele caminhou vários passos pelo
comprimento da ponte. Lara o seguiu, parando ao lado de um dos
grossos anéis de aço embutidos na rocha que os Ithicanos usavam
para a tirolesa.
A tempestade não se estendera, terminando no segundo dia na
ponte, embora outra estivesse se formando no horizonte. Por
enquanto, o céu ao redor de Midwatch estava limpo e ensolarado, a
água abaixo em um tranquilo azul. O ar fresco e o espaço aberto
aliviaram instantaneamente a cortina opressiva que a ponte tinha
descido.
— Nós precisamos conversar, Lara.
Seu coração disparou, suas veias inundando de ansiedade.
— Eu sei que você é uma espiã do seu pai.
Seu estômago ficou vazio. — Eu era espiã do meu pai. Já não
sou mais.
— Vou precisar de mais provas do que apenas a sua palavra.
— A prova é que estou aqui. Com você.
Silêncio.
Quando os nervos de Lara estavam em frangalhos, perguntou:
— Você não vai dizer nada?
Aren se virou para encarar Midwatch, a tensão irradiando dele.
— Suponho que uma pergunta seja óbvia: você passou alguma
informação para ele que eu deveria saber?
— Eu não disse nada a ele. — Porque não tinha. Nem uma única
coisa. Não com todos aqueles malditos pedaços de papel ainda na
mesa dele, esperando que ela os destruísse.
Ele exalou um longo suspiro. — Suponho que seja alguma coisa.
Alguma coisa.
A necessidade para ele saber o motivo por trás de suas ações
queimou no peito de Lara. — Serin e meus outros professores,
mentiram para mim. Durante toda a minha vida, eles mentiram sobre
a natureza de Ithicana, sobre o relacionamento entre seu Reino e o
meu. Eles o pintaram como um opressor sombrio que usava seu
poder sobre o comércio para suprimir meu povo. Para controlá-los.
Para morrer de fome. Tudo por uma questão de lucro. Eles me
disseram que você matou comerciantes e marinheiros por nenhuma
outra razão além chegar muito perto de suas costas. Não apenas
mortos, mas mutilados e torturados por esporte. Que você era um
demônio.
Aren não disse nada, então ela continuou. — Eles me fizeram
acreditar que isso salvaria meu povo. Que isso era justo. Agora
entendo que é por isso que me mantiveram trancada no complexo -
para que eu nunca descobrisse a verdade. E eles acreditavam que
você me manteria igualmente resguardada, para que eu não tivesse
chance de aprender a verdade até que fosse tarde demais.
— E qual é a verdade?
Qual era a verdade? Lara não tinha ilusões de que era uma boa
pessoa do mesmo jeito que alguém como Marisol. Ela havia matado
guerreiros valcottanos trazidos para seu complexo por nenhuma
outra razão além da necessidade de escolher entre sua vida ou a
deles. Aprendera inúmeras maneiras de torturar, mutilar e matar. Ela
não reagiu enquanto criados que cuidavam dela e de suas irmãs
desde que eram crianças eram assassinados a sangue frio. Tinha
assistido enquanto o homem que tinha sido como um pai cortou sua
própria garganta pela culpa equivocada. Ela tinha mentido e
enganado e manipulado, e quase condenou uma nação inteira. Boa
ela não era.
No entanto, ela também não acreditava que era má. Ela tinha se
condenado a esse destino para salvar a vida de suas irmãs, a quem
amava acima de tudo. E uma vez aqui, seguiu com sua missão na
crença de que estava salvando seu povo. Motivações nobres,
talvez, no entanto ela não estava inteiramente certa de que a
absolviam da culpa. Sabendo o que aconteceria com Ithicana, ainda
havia escrito instruções sobre como destruí-la. Ela fez essa escolha.
Tudo o que podia fazer agora era tentar reparar. — A verdade é... a
verdade é que eu sou a vilã. — Mas ela não faria mais esse papel.
Mais silêncio.
— O que você vai fazer comigo? — ela perguntou.
— Eu não sei, Lara. — Com suas palavras, a tensão entre eles
aumentou. — Eu... suspeitava há algum tempo, mas ouvindo você
dizer isso... Eu não sei.
Um medo frenético vibrou em seu peito. Um medo de que ela o
tivesse perdido. Que ele a odiava. Que ele nunca a perdoaria.
— Eu não dei nada a ele, Aren. — Ela queria desesperadamente
salvar o que restava entre eles. — Eu não fiz nada.
— Não fez nada? — Ele se virou para encará-la. — Como você
pode declarar isso? Como você pode dizer que não fez nada
quando, desde o momento em que nos casamos, planejava me
esfaquear pelas costas? Tudo o que você disse, tudo o que fez,
tudo entre nós foi uma mentira maldita. Uma maneira de me
manipular para confiar em você, para que pudesse aprender os
segredos de Ithicana e depois usá-los contra nós. Enquanto eu,
como um maldito idiota, estava tentando conquistar você.
Era a verdade, mas não era o todo. Porque durante esse tempo,
ela começou a se preocupar com ele e seu Reino, a entender sua
situação, e ainda assim escolheu destruí-los. Tinha escrito todos os
detalhes que aprendeu nessas páginas, uma estratégia para invadir
a terra natal de Aren e roubar a ponte que seu povo precisava
desesperadamente. Foi apenas pura sorte que uma dessas páginas
não tivesse chegado às mãos de seu pai.
— Você se importou? — Ele demandou.
— Sim. Mais do que você sabe. Mais do que posso explicar. —
Ela empurrou o cabelo que tinha soprado em seu rosto, tentando
encontrar palavras para fazê-lo entender. — Mas não achei que
houvesse outro jeito. Eu acreditava que a única chance que meu
povo tinha era que ganhasse a ponte para eles. Toda a minha vida
foi dedicada a dar-lhes um futuro melhor, não importando o custo
para mim. Certamente você, de todas as pessoas, pode entender
isso?
— Não é o mesmo. — Sua voz estava fria. — O futuro melhor
que você imaginou foi construído nas costas de cadáveres
Ithicanos.
Lara fechou os olhos. — Então por que você não me matou
depois que soube? Por que você me trouxe para Vencia, se você
suspeitava? Por que você arriscou tanto?
Aren roçou a bota contra a ponte, olhando para Midwatch. — Eu
percebi que você tinha sido enganada. E se a verdade nos desse
uma chance, era um risco que eu estava disposto a correr. — Ele
soltou um suspiro irregular. — Eu te segui naquela noite quando
você caminhou até os portões do palácio. Eu apontei uma flecha
nas suas costas e eu... Eu quase te matei. Se você desse mais um
passo, eu mataria. — Suas mãos tremiam, o oscilar do movimento
prendendo sua atenção como um vício. — Mas então você se virou
e voltou. De volta para mim.
— Eu não poderia fazer isso. — Lara fechou as mãos sobre as
dele, precisando impedi-las de tremer. — E eu não vou. Nunca. Nem
que ele me encontre e me mate por traí-lo.
Aren ficou muito quieto. — Ele te ameaçou?
Ela engoliu em seco. — Ele me disse no navio para Ithicana que
se eu falhasse ou se eu o traísse, ele me caçaria.
— Se ele pensa...
Um barulho de briga o interrompeu, fazendo os dois pularem.
Segundos depois, com um xingamento murmurado, Ahnna saiu da
escotilha, o rosto como uma nuvem de tempestade.
Aren parou na frente de Lara, caminhando em direção a Ahnna,
enquanto sua irmã fechava a distância com passos rápidos.
— O que diabos você estava pensando? — Ahnna estalou. —
Indo para Maridrina por si mesmo? Você perdeu a maldita cabeça?
— Já fui dezenas de vezes antes. E daí?
— Como um Rei você não foi. Você tem uma responsabilidade
para com o nosso povo. Além disso, você quase foi pego. O que
diabos teria acontecido se você tivesse sido?
— Então você teria sua chance na coroa.
— Você acha que é isso que eu quero? — Os olhos dela
passaram pelo irmão, aterrissando em Lara. — E aí está a pior
parte. Já era ruim o suficiente você ter ido, mas levou a filha de
nosso inimigo, a mulher que, se todos os rumores forem
verdadeiros, você está contando todos os segredos de Ithicana, de
volta à sua terra natal?
— Levei minha esposa para sua terra natal por razões que não
são da sua conta.
O rosto de Ahnna assumiu uma palidez horripilante, mas ela
cerrou os punhos e, por um piscar de olhos, Lara pensou que iria
bater no irmão. Bater em seu Rei. Mas tudo o que disse foi: — Não
há razão boa o suficiente. Ela sabe o suficiente para permitir que
Maridrinia nos tenha na palma da mão, e você praticamente a
entregou ao Rei. Ela poderia ter corrido direto para os braços de
Magpie
— Ela não correu.
— Mas e se tivesse corrido? Este não era o plano. Você
deveria...
— Eu deveria o quê? — Aren pulou para frente, pairando sobre
sua irmã. — Mantê-la trancada aqui para sempre? Ela é minha
maldita esposa, não minha prisioneira.
— Esposa? Apenas no nome, pelo que ouvi. E não pense que
todo mundo não percebe que você está arriscando todo o seu Reino
apenas para ficar entre as pernas dela.
Ninguém falou. Nem Aren ou Ahnna. Nem os soldados que
haviam chegado ao topo e agora estavam olhando para qualquer
lugar, menos para seus líderes. E nem Lara, cujo coração parecia
prestes a explodir em seu peito. Porque os medos de Ahnna eram
válidos. No entanto, Aren a estava defendendo. Apesar de saber
que ela viera para Ithicana com más intenções, ele defendia o direito
dela a uma vida. O direito dela a uma casa. O direito dela à
liberdade. E ela não merecia isso. Não o merecia.
Antes que Lara pudesse pensar nas consequências do que
pretendia dizer, ela se adiantou, suas botas deslizando na superfície
lisa da ponte. — Ahnna...
— Fique fora disso. — Sem olhar, a outra mulher balançou um
braço para bloquear o caminho de Lara.
O golpe atingiu Lara no peito e tropeçou para trás, os pés
procurando o chão.
Ela estava caindo.
— Lara! — Aren a alcançou, mas era tarde demais.
Ela gritou, os braços agitando quando o ar passou por ela, mas
não havia nada para agarrar. Nada que parasse o inevitável.
Ela bateu contra a água, o impacto expulsando o ar de dentro
dela em uma confusão de bolhas, enquanto mergulhava cada vez
mais para baixo.
O pânico correu através dela, selvagem e sem controle, e logo
depois veio a necessidade desesperada de respirar. Ela chutou,
agitando os braços, lutando em direção à superfície que parecia
impossivelmente distante.
Você não vai morrer.
Você não vai morrer.
Você não vai... O pensamento desapareceu e a luz da superfície
começou a escurecer quando afundou nas profundezas.
Até que algo a agarrou pela cintura.
Lara lutou, procurando cegamente sua faca até que seu rosto
ultrapassou a superfície e Aren estava gritando em seu ouvido: —
Respire, Lara!
Ela sugou um bocado desesperado de ar. E outro. Uma onda
rolou sobre sua cabeça, e o medo a encheu de novo.
Puxando e agarrando, ela tentou subir. Tentou ficar acima da
água.
Então o rosto de Aren estava na frente dela. — Pare de lutar
comigo. Eu peguei você, mas você precisa ficar quieta.
Foi um pedido impossível. Ela estava se afogando. Estava
morrendo.
— Eu preciso que você confie em mim! — A voz dele estava
desesperada e, de alguma forma, cortou seu medo. Trouxe de volta
para si mesma. Ela parou de lutar com ele.
— Boa. Agora me segure e não se mexa.
Agarrando seus ombros, Lara forçou as pernas trêmulas a
ficarem imóveis. Eles não estavam bem embaixo da ponte, talvez a
vinte metros do píer mais próximo: o estreito sem acesso à ponte. E
a costa...
— Podemos fazer isso? — perguntou, cuspindo um bocado de
água enquanto outra onda a atingiu no rosto.
— Não.
— O que nós fazemos? — Ela virou, olhando para a ponte. Ela
podia ouvir os soldados gritando, ver Jor pendurado do lado de uma
corda, o dedo apontando para a água.
— Pare de se mexer, Lara!
Ela congelou. Porque naquele momento, viu o que Jor estava
apontando. O que tinha a atenção de Aren - e seu medo.
Barbatanas cinzas cortavam a água.
Circulando-os.
Aproximando-se.
— Temos que aguentar até que eles possam chegar até nós em
um barco.
Seus olhos saltaram para o píer distante, a abertura ainda
escondida pela maré. Depois, para a enseada onde dois barcos já
estavam vindo. Não havia como eles chegarem a tempo.
Como se para pontuar seu pensamento, um dos tubarões
disparou na direção deles antes de se desviar no último segundo.
— Merda — Aren rosnou.
As criaturas estavam nadando mais perto, e Lara chorou quando
algo bateu em seu pé.
Os soldados acima começaram a disparar flechas, os raios
cortando a água ao redor deles, o sangue brotando quando
atingiram algo. Então, como um só, as barbatanas desapareceram.
— Aren! — O grito de Ahnna ecoou de cima e, um segundo
depois, uma barbatana enorme cortou as ondas na direção deles.
— Me deixe aqui — Lara tomou a decisão porque sabia que ele
não iria. — Sem você, eu vou me afogar. Mas se você me deixar,
terá uma chance.
— Não.
— Não seja tolo. Nós dois não temos que morrer.
— Quieta.
Os olhos de Aren estavam fixos no tubarão em círculo. — Eu te
conheço, velhota — ele murmurou antes de olhar para cima. —
Você sofrerá antes da morte vir de baixo.
— Me deixe aqui!
— Não.
Lara se afastou dele, tentou nadar, mas Aren a arrastou de volta,
nadando com força. Puxando-a com ele.
O tubarão disparou em direção a eles. Tão rápido. Rápido
demais para desviar. Infinitamente rápido demais para fugir
nadando. O medo, primitivo e básico, tomou conta dela, e Lara
gritou.
— Agora!
Uma flecha de aço presa a um cabo cortou o ar por cima,
explodindo no lado do tubarão, mas a criatura continuou vindo,
como se o instinto de caçar importasse mais do que a ferida que
havia sido aberta
Lara gritou de novo, engasgando com a água, observando-o se
aproximar deles, a boca abrindo para revelar fileiras e mais fileiras
de dentes afiados.
O cabo preso ao alvo puxou.
Em um movimento violento, o tubarão foi arrancado da água, seu
corpo enorme se debatendo no ar antes de bater contra o mar,
lutando contra o cabo que o prendia à ponte.
A água passou fortemente sobre a cabeça de Lara, e o rabo do
tubarão bateu contra ela com a força de um aríete, arrancando-a
das mãos de Aren.
Ela se debateu sem saber para que lado ficava o ar. Não
sabendo onde estava o tubarão. Onde Aren estava. Bolhas
passaram em turbilhão por seu rosto, obscurecendo sua visão
enquanto chutava e lutava. Então as mãos se fecharam em seu
pulso, puxando-a para a superfície.
— Nade! — Não era a voz de Aren, mas as dos soldados acima,
a voz de Ahnna mais alta do que todas. — Todo o sangue está
atraindo-os! Nade, sua infeliz!
Ele a arrastou pela água, as ondas cada vez mais fortes. E
acima, o céu ficou mais escuro. Um raio brilhou a distância.
Aren parou de nadar.
Ele estancou na água, sua respiração irregular com o esforço de
segurar os dois.
Lara viu o que ele estava olhando.
O píer mais próximo, cheio de pontas de metal, o oceano
batendo contra elas com a ferocidade da tempestade que se
aproximava.
— Você precisa... agarrar... um dos espigões — ele ofegou. —
Não se solte.
E, sem esperar que ela respondesse, ele a arrastou em direção
ao píer.
As ondas os puxaram em um momento que não tinha mais volta,
lançando ela e Aren na pedra e no aço.
Haveria uma chance. Apenas uma chance.
Lara respirou fundo, marcando o espigão que alcançaria. O aço
que seria sua salvação ou sua condenação.
Aren virou no último minuto, pegando o maior impacto. Lara se
atrapalhou às cegas, sabendo que tinha apenas um segundo.
Sua mão se fechou no espigão enquanto sentia que Aren a
soltava.
Agarrar-se tomou toda sua força quando a água arrastou suas
pernas, seus braços tremendo com o esforço. Por um momento, seu
corpo ficou fora da água, depois as ondas bateram nela novamente.
Ela se agarrou ao metal, conseguindo passar as pernas por cima e
ao redor, respirando enquanto a água recuava novamente.
— Aren! — Ela procurou na água por ele, o terror enchendo seu
coração.
— Aqui!
Ele estava pendurado no espigão que estava atado na rocha.
Mas ele não aguentaria mais por muito tempo.
A água os atingiu novamente, e, acima do barulho, Lara ouviu o
nome dela. Olhando para cima, viu Ahnna pendurada em uma corda
acima, outra corda na mão. Ela balançou na direção de Lara. —
Segure!
A corda pesada passou e Lara se esticava para alcançar, quase
perdendo o controle enquanto fazia. De novo e de novo a corda
passou por ela, mas não conseguiu alcançá-la.
E Aren estava ficando sem tempo.
Então, quando a corda passou mais uma vez, Lara se lançou,
sabendo que, se não pegasse, cairia na água e que Aren estava
longe demais para ajudá-la. Porém ele tentaria de qualquer maneira.
Seu equilíbrio vacilou, seus dedos alcançando, agarrando e
segurando a corda.
As pernas de Lara escorregaram e estava balançando.
Silenciosamente agradecendo a Erik por todas as flexões que a
forçou a fazer durante o treinamento, ela se levantou, prendendo o
laço sob as axilas.
Balançando com força, ela pegou o espigão e se arrastou mão
após mão em direção a Aren, mal mantendo o controle enquanto a
água subia contra ela, afogando-a a cada passo.
— Agarre-se a mim — ela gritou mesmo quando uma onda a
libertou de seu poleiro.
Ela balançou e bateu contra Aren. Instinto a fez envolver as
pernas em volta da sua cintura, seus braços protestando enquanto o
peso dele a arrastava. Então ele estava estendendo a mão e
segurando a corda.
O mar bateu contra eles mais uma vez, empurrando os dois
contra a rocha, e Lara engasgou e soluçou, sabendo que não
aguentaria mais. Sabendo que mais uma onda a soltaria.
E essa estava chegando, espuma voando em sua direção.
Pouco antes da onda alcançá-los, a corda tremeu e estavam
subindo. Cada vez mais rápido. Eles giraram e rodopiavam, Aren se
erguendo de modo que as pernas dela, ainda enroladas ao seu
redor, aliviassem a pressão dos braços dela.
— Não se solte. — O sangue escorria por um corte em sua
têmpora. — Você não vai se soltar.
Eles colidiram contra a lateral da ponte, e Lara choramingou
quando foi arrastada ao longo da rocha, mas a dor deu lugar a alívio
quando mãos agarraram sua roupa, puxando-a para cima, deitando-
a na superfície sólida da ponte. Ofegando, ela rolou de lado,
vomitando uma quantidade sem fim de água do mar até que só tinha
força para descansar a testa na pedra molhada.
— Lara. — Os braços a puxaram para cima, e ela se virou
apenas para desabar no peito de Aren, agarrando-se ao pescoço
dele. Ele estava tremendo, mas a sensação dele contra ela era mais
confortável do que a terra parada sob seus pés.
Ninguém falou. Ela sabia que havia homens e mulheres ao seu
redor, mas era como se estivesse sozinha com ele, a chuva da
tempestade batendo contra sua bochecha.
— Aren? — A voz de Ahnna quebrou o silêncio, o distante som
do trovão ecoando seu nome. — Eu não quis fazer... Isso foi...
Lara o sentiu endurecer, sentiu a raiva mesmo quando dizia, com
a voz fria: — Volte para Southwatch, comandante. E se eu vir seu
rosto antes da Maré da Guerra, tenha certeza de que não hesitarei
em cumprir o contrato de Ithicana com Harendell.
Lara virou-se a tempo de ver Ahnna estremecer como se tivesse
levado um tapa. — Sim, Vossa Majestade. — Sem outra palavra, ela
se afastou, seus soldados seguindo em seus calcanhares.
Levantando-se com as pernas trêmulas, Aren puxou Lara com
ele. — Precisamos voltar para Midwatch. A tempestade está
chegando.
Mas quando seu coração bateu dentro do peito, Lara soube que
ele estava errado.
A tempestade já tinha chegado.
32
AREN

T
quartel, Aren lentamente tirou a roupa encharcada e rasgada,
deixando-a em uma pilha no chão enquanto passava pelo quarto
escuro até o guarda-roupa para pegar calças secas. As persianas
batiam contra as janelas quando o vento atacava, a chuva
tamborilava furiosamente contra o telhado, tudo abafado por rajadas
de trovão que sacudiram a casa até seu núcleo. O ar estava cheio
do cheiro forte e fresco de ozônio, misturando-se com o sempre
presente perfume de terra úmida e vegetação que ele associava à
sua casa.
Boom. O chão sob seus pés reverberou, a pressão mudando
enquanto o tufão descia com força total. Era uma besta em forma de
tempestade - do tipo que deu o nome aos Mares de Tempestade.
Com ventos tão selvagens e ferozes que pareciam quase
conscientes, essa tempestade deixaria faixas de destruição em seu
rastro, e qualquer pessoa ou qualquer coisa presa na água seria
varrida da face da terra. Ithicana fora construída para suportar o pior
que o mar e o céu podiam desencadear, e de fato era apenas
durante essas tempestades que Aren realmente respirava fundo,
certo de que seu Reino estava a salvo de seus inimigos.
Mas não essa noite.
Expirando, ele descansou a mão contra a coluna de sua cama,
procurando algum senso de equilíbrio, mas era uma causa perdida.
Como tantas outras coisas.
Lara não disse uma palavra desde que eles foram puxados do
mar. Ele não podia culpá-la. Ela quase se afogou. Quase foi comida
viva. Quase bateu contra a rocha. Ela não tinha surtado
completamente, o que deveria ter sido um pequeno milagre, exceto
que teria preferido isso ao silêncio sem emoção.
O rosto empalideceu de tal forma que seus lábios estavam
cinzentos, Lara seguiu entorpecida onde era levada, os braços
flácidos em suas mãos enquanto era examinada por ferimentos.
Nenhum sinal de seu humor seco ou da língua venenosa que ele
tanto amava quanto odiava. Apenas... Nada.
Fechando os olhos, Aren descansou a testa contra o pilar da
cama, porque a outra opção era rasgá-la e esmagá-la contra a
parede. A fúria, desenfreada e ardente, correu por suas veias. Por
Ahnna. Pela ponte. Por si mesmo.
Um som mais animal que humano subiu em sua garganta e, em
uma onda de movimento, ele torceu e bateu com o punho contra a
parede. A dor floresceu em seus dedos, e se agachou, querendo
explodir, querendo correr. Sabendo que nada disso seria bom.
Boom. A casa estremeceu e seus pensamentos foram para a
carta do Rei rato, enfiada em sua bolsa, onde quer que fosse. O
ultimato era claro: aliado de Maridrina contra Valcotta ou
enfrentando guerras e bloqueios como os que Maridrina impuseram
quinze anos antes, melhorados apenas com a assinatura do tratado.
Foram os tempos mais sombrios. Maridrina tinha impedido que
alguém desembarcasse em Southwatch por dois anos, fechando
completamente o comércio. Nada foi transportado pela ponte e as
receitas de Ithicana secaram completamente. Sem elas, não havia
como alimentar seu povo. Para mantê-los com provisões. Para
mantê-los vivos. Não com tempestades violentas que levam
pescadores dos mares mais vezes do que tinham lucro. A fome
varreu Ithicana. Praga também. E a ideia de voltar a isso...
A alternativa era se juntar a um homem que estava conspirando
contra ele da pior maneira possível. Para entrar em uma guerra da
qual não queria participar. Era profundamente tentador aliar-se
formalmente a Valcotta por despeito. Os cofres de Ithicana eram
fortes o suficiente para comprar o que o Reino precisava por um ano
ou mais, sem receita adicional da ponte. Entre os destruidores de
navios de Southwatch e a força das frotas de Valcotta, o exército de
Silas não teriam chance.
No entanto, tal ação colocaria todo o sofrimento no povo de
Maridrina. O povo de Lara.
Condená-los à fome faria dele o vilão que Magpie havia pintado.
Aren se tornaria o homem que Lara havia sido criada para odiar.
Porém, ceder ao pedido do pai dela significaria arriscar Ithicana para
quando Valcotta viesse em busca de vingança. Não havia solução.
A voz de seu pai dançou pela cabeça de Aren, palavras gritadas
para sua mãe. Ithicana não faz alianças. Somos neutros - temos que
ser, ou a guerra virá para nós. Mas, assim como sua mãe, Aren
agora acreditava que o tempo da neutralidade havia chegado ao fim.
Exceto que havia uma diferença entre desejar uma aliança e permitir
que seus termos fossem ditados por outro homem.
Aren vacilou, então em dois passos, ele estava em sua mesa.
Abrindo o compartimento escondido, Aren extraiu a carta para Silas
que começara a alguns meses atrás. Encarando a saudação
educada e os honoríficos apropriados, ele empurrou a página de
lado, pegando um novo papel.

Silas,

Ithicana não cessará o comércio com Valcotta. Se você deseja


acabar com a agressão naval, sugiro que desista de seus ataques à
fronteira norte de Valcotta. Somente com a paz entre as duas
nações Maridrina tem a chance de voltar à saúde e prosperidade.
Quanto à sua insinuação de que Ithicana não manteve o espírito do
acordo entre nossas nações, consideramos necessário ressaltar sua
hipocrisia ao fazer tal afirmação. No melhor das intenções para
nossos povos, perdoaremos seus planos e permitiremos que
Maridrina continue a negociar no mercado Southwatch nos termos
feitos no acordo. Entretanto, que seja dito, se você tentar matar sua
espiã, Ithicana tomará como um ato de agressão contra sua Rainha
e a aliança entre nossos Reinos será irrevogavelmente desfeita.

Escolha sabiamente.
Aren

Ele olhou para a carta, sabendo que nunca poderia contar a Lara
o que havia escrito. A vida dela tinha sido dedicada a mitigar a
situação do seu povo, e ela não o perdoaria por ameaçar essas
mesmas pessoas para protegê-la. No entanto, não havia outra
maneira de garantir que Silas não a machucasse. Deus o ajude se
ele for forçado a seguir adiante.
Levantando-se, Aren saiu pelo corredor, caminhando até
encontrar Eli.
— Leve isso para o quartel quando a tempestade diminuir. Diga
a Jor que deve ser enviada imediatamente ao Rei de Maridrina.
Voltando para seus aposentos, Aren abriu a porta do pátio. E
saiu para a tempestade.
33
LARA

L ,
uma mão. Escuridão a envolvia. Um trovão ecoou pela sala, seguido
por dois relâmpagos que iluminaram levemente o contorno de uma
janela. O piso de madeira embaixo dela era liso e polido, e o ar
estava denso com a umidade e o cheiro de terra da selva.
Lágrimas quentes escorriam por seu rosto e ela limpava-as das
bochechas. No momento em que voltou para Midwatch, ela
pretendia encontrar o caminho para o quarto de Aren para destruir a
prova condenável de sua traição antes que pudesse piorar mais
ainda. Fazer isso sem que ele soubesse, porque nunca poderia
deixá-lo ler essas palavras.
Uma coisa era ele saber que tinha mentido para ele. Manipulado
ele. Enganado ele. Outro coisa era ler a prova disso. Ele ver que
cada momento o qual acreditava que uma conexão estava
crescendo entre os dois tinha sido uma estratégia para obter as
informações que ela precisava. Que, depois de tudo o que tinham
passado, ela ainda havia escolhido destruí-lo naquela noite fatídica
em que a beijara na lama.
Era imperdoável a quantidade de mágoa que o faria ler... Ela não
podia deixar isso acontecer. Não quando apenas destruir as páginas
eliminaria todas as evidências. Seu plano era drogar levemente
Aren no jantar, depois entrar furtivamente em seu quarto e acender
uma pequena fogueira em sua mesa, que poderia ser facilmente
atribuída a uma vela deixada muito perto de um pedaço de papel.
Ela poderia então alegar ter cheirado a fumaça, com seus gritos e
batidas na porta sendo o suficiente para acordá-lo e alertar a
equipe. Entre as chamas e a água que seriam necessárias para
apagá-las, todos os artigos de papelaria com sua mensagem
invisível seriam arruinados além do uso. Era um plano perigoso e
prejudicial, mas ela preferia queimar a casa de Midwatch às cinzas
do que arriscar Aren questionar por que todos os artigos de
papelaria dele desapareceram misteriosamente.
Porém, enquanto Lara esperava a hora do jantar, a exaustão
tomou conta e adormeceu nos lençóis limpos e macios da cama.
Agora os aromas do jantar passavam por baixo da porta e ela não
estava nem um pouco preparada.
— Você pode consertar isso — murmurou, ficando de pé.
Vestindo um de seus vestidos de seda Maridrinianos e passando
uma escova pelos cabelos, a mente de Lara a mil enquanto enfiava
um frasco de narcótico em sua pulseira. No corredor, ela correu em
direção à sala de jantar fechada, certa de que encontraria Aren lá.
Ele não era daqueles que negligenciavam o estômago.
Mas lá havia apenas Eli, que a encarava — Nós pensávamos
que você gostaria de jantar no seu quarto, minha senhora — disse
ele. — Deseja comer aqui em vez disso?
— Obrigada, mas não estou com fome. Você sabe onde ele
está? — Havia apenas um ele nesta casa.
— No quarto dele, minha senhora. Ele não quis jantar.
A lógica e seu treinamento sussurravam que deveria esperar por
mais uma noite. Outra oportunidade. Melhor fazer isso do que correr
o risco de ser pega. No entanto, Lara se viu correndo pelo corredor
ao quarto de Aren, com os pés descalços silenciosos no chão frio.
Ela bateu na porta e esperou. Sem resposta.
Ela tentou a maçaneta e, pela primeira vez, a encontrou
destrancada. — Aren?
Aren não estava à vista. Essa era a sua chance. Ela poderia
fingir que encontrou o fogo já queimando.
Fechando a porta, Lara correu para a mesa pesada,
imediatamente espiando a caixa de papelaria aberta. E o começo de
uma carta escrita para seu pai.
Com o coração na garganta, Lara olhou para as poucas linhas
de tinta seca endereçadas ao seu pai. Como Aren podia suportar
ser tão educado com o inimigo estava além de sua compreensão.
Embora talvez não teve estômago para tal e, por isso, a carta não
tinha sido terminada.
Um ronronar chamou sua atenção e ela olhou para baixo quando
o gato de Aren começou a enrolar seu corpo enorme entre suas
pernas, quase a derrubando. Uma ideia, melhor e muito menos
prejudicial que um incêndio saltou em sua cabeça. — Desculpe por
isso, Vitex. Mas preciso da sua ajuda.
Ela montou o plano, colocando a caixa de lado no chão, depois
respingando a carta com tinta, deixando o frasco virado no resto das
páginas para que ficassem encharcadas e inutilizáveis. Mas não
antes de contar o maço. Vinte e cinco páginas em branco, mais a
carta inacabada, vinte e seis.
Atraindo Vitex, ela coçou as orelhas dele, segurando gentilmente
uma de suas patas e usando-a para fazer impressões de tinta.
Percebendo o que ela estava fazendo, o gato sibilou e se afastou,
deixando um rastro através da sala enquanto ele passava.
Todos os músculos de seu corpo se contraíram e, com um
suspiro irregular, Lara caiu de joelhos, encarando o que havia sido o
clímax de todos os seus esforços. De todo o seu treinamento. Da
sua vida. Lembrando como se sentiu da última vez que segurou
aquelas páginas, acreditando que as palavras condenadoras que
escrevera salvariam seu povo. Quão errada ela estava.
No entanto, mesmo com o apagamento delas, o peso que
carregava em seus ombros desde que descobrira a decepcionante
verdade sobre o pai continuou. O que ela tinha feito... Era horrível.
O pior tipo de traição. Mas foi motivada por mentiras que encheram
seus ouvidos por quase sua vida inteira. Entretanto, atacar o seu pai
agora seria um ato movido pela verdade. O que ela estava fazendo
agora era por escolha própria.
E, mesmo sabendo que Lara havia pintado um alvo em suas
costas e que os assassinos de seu pai nunca parariam de caçá-la,
pela primeira vez em sua vida se sentiu livre.
Levada por um estranho sexto sentido, ela entrou na antecâmara
e abriu a porta do pátio, o vento a golpeando com a força de um
gigante. Ao sair, se viu em um inferno de vento e chuva.
O ar soava como um grito enquanto circulava o pátio carregando
folhas, galhos e chuva que mordiam seus braços nus e batiam em
suas bochechas. A tempestade era ensurdecedora com sua fúria,
numerosos raios descendo pelo céu, trovões machucando seus
tímpanos.
No meio dela estava Aren.
Sem camisa e com os pés descalços, olhando para o céu,
aparentemente indiferente à tempestade que o rodeava. Ou do
perigo em que ele estava.
Um galho foi arrancado de uma árvores e atravessou o jardim,
explodindo na lateral da casa. — Aren! — Mas a tempestade abafou
sua voz.
Era impossível se manter em pé enquanto ela lutava para abrir
caminho, derrubada várias vezes por rajadas de vento que
ameaçavam levantá-la no ar. Seu cabelo chicoteava em um frenesi
selvagem, cegando-a, mas nem por um batimento cardíaco
considerou voltar. Se levantando nas pedras escorregadias, ela se
lançou.
Os ventos morreram quando suas mãos se fecharam nos braços
de Aren, como se o mundo desse um suspiro e relaxasse, os
destroços caindo suavemente no chão e a chuva passando
gentilmente contra sua pele.
— Lara?
Soltando um suspiro irregular, ela levantou o rosto e encontrou
Aren olhando para ela, sua expressão confusa, como se não
pudesse entender como ela estava diante dele.
— Acabou? — ela perguntou, achando difícil respirar. E ainda
mais difícil de pensar. — A tempestade?
— Não. Estamos no olho agora.
O olho da tempestade. O peito dela se apertou. — O que você
está fazendo aqui fora?
Os músculos duros de seus antebraços flexionavam sob o aperto
dela. — Eu precisava disso.
Instintivamente, ela entendeu o que ele quis dizer. A maioria das
pessoas buscava consolo do perigo, mas para ele, o perigo era o
consolo. A onda de adrenalina clareava a sua mente, arrancava a
incerteza que atormentava todas as decisões que tomava como Rei.
O medo de errar. As consequências disso. Na tempestade, ele
conhecia seu caminho.
Ela entendeu, porque se sentia da mesma maneira. — Você
poderia ter morrido hoje. Ao fazer o que você fez.
— Você teria morrido se eu não tivesse feito isso.
As mãos dele se fecharam em volta dos braços dela e, embora
suas palmas estivessem febrilmente quentes, Lara estremeceu. —
Você poderia estar melhor se eu tivesse.
Seu aperto aumentou. — Você honestamente acredita que
poderia me perdoar se eu ficasse parado e visse você se afogar?
— Mas o que eu fiz...
— Está no passado. Está para trás agora.
Sua pulsação era um rugido surdo em seus ouvidos quando as
palavras dele foram assimiladas. Aren a perdoou. Em que parte do
coração ele conseguiu isso, ela não entendia, mas estava lá. O que
ela queria mais do que tudo porém não tinha esperanças para
desejar.
— Você quer deixar Ithicana? Porque, se é isso que você precisa
para ser feliz, eu a colocarei em qualquer praia que desejar com
tudo o que você precisar para criar uma vida própria.
Lara tinha planejado fugir. Os assassinos de seu pai logo a
seguiriam e não acreditava que houvesse algo a ganhar com a
estadia. Um relacionamento entre os dois nunca teria chances -
Aren inevitavelmente descobriria a verdade e nunca a perdoaria por
isso.
Mas Aren sabia a verdade. E, apesar de tudo, ele a tinha
perdoado. Agora… agora o pensamento de dar as costas a este
lugar, de dar as costas para ele, era o pior futuro que ela poderia
imaginar.
— Você não pode me deixar sair de Ithicana. — Sua garganta
estava apertada, e as palavras saíram estranhas e ofegantes — Eu
sei demais. Você estaria arriscando demais.
Seus olhos queimaram nos dela e nunca em sua vida ela se
sentiu como se alguém tivesse a visto tão perfeitamente. — Eu
posso deixar você ir, porque eu confio em você.
Ela não conseguia respirar.
— Eu não quero ir. — As palavras eram uma verdade escavada
nas profundezas de seu coração. Ela não queria deixar Ithicana. Ela
não queria deixá-lo. Ela queria ficar, lutar, suar e sangrar por ele e
por seu Reino cruel, selvagem e bonito.
A tempestade os cercou, observando, mas deixando-os
intocados para o momento.
As mãos de Aren se afrouxaram em seus braços e, por um
terrível batimento cardíaco, ela pensou que a deixaria ir. Que ele
queria que ela fosse.
Em vez disso, seus dedos traçaram a parte de trás de seus
braços, o leve toque deixando rios de sensação por seu rastro.
Toques gentis para cima e para baixo, como se estivesse
acalmando alguma coisa selvagem que poderia morder.
Ou testando as águas.
As mãos dele roçaram os lados dos seios dela e Lara exalou um
suspiro suave quando os polegares prenderam nas tiras do vestido,
aliviando-os enquanto se curvava, os lábios roçando um ombro nu.
Depois o outro.
Um gemido escapou dela quando Aren afastou seus cabelos
úmidos, expondo o pescoço e beijando a clavícula, a garganta, a
linha da mandíbula. Apenas o aperto dele no vestido dela impediu
que caísse e a deixasse nua diante dele.
Lara queria tocá-lo.
Queria sentir sua pele macia esticada sobre os músculos duros,
mas ela estava com medo, porque sabia que isso seria sua ruína.
Não haveria como voltar atrás.
Os lábios de Aren fizeram uma pausa e ela prendeu a
respiração, esperando que eles descessem por conta própria,
enquanto se perguntava se, caso ela se permitisse afundar nessa
poça quente de desejo, voltaria à superfície novamente. Se iria
querer.
Mas ele apenas descansou a testa na dela. — Eu preciso que
você diga que quer isso, Lara. Que você está permitindo isso porque
você escolheu, não porque isso foi imposto a você.
Seu peito ardia com uma emoção tão intensa que doía através
dela. Ela se afastou para que se encarassem — Eu quero isso. — E
porque não somou nada, acrescentou: — Eu quero você.
A tempestade voltou vingando quando os lábios deles se
tocaram, mas Lara mal sentiu os ventos quando Aren a levantou
contra ele, as mãos segurando seus quadris enquanto ela envolvia
as pernas em volta de sua cintura, os braços deslizando ao redor do
pescoço dele. Sua boca estava quente, sua língua escorregou
contra a dela, a chuva encharcando sua pele enquanto a carregava
através da tempestade e para o abrigo da casa.
Lá dentro, seus pés deslizaram sobre o azulejo molhado e
bateram contra a parede, derrubando o que restava das prateleiras
no chão. Ele se apoiou com as mãos em ambos os lados dela, a
respiração quente contra sua garganta enquanto Lara se apertava
contra ele. Seus calcanhares afundaram nas costas dele quando o
puxou para mais perto, sem querer nada entre eles, mesmo quando
o atrito do cinto contra ela trouxe um gemido de seus lábios.
As costas dela arquearam até que apenas a cabeça tocou a
parede atrás, o vestido com a saia já enrolada na cintura, foi puxado
para baixo para expor a parte superior de seus seios. Ela sentiu a
respiração de Aren prender.
— Deus, você é linda — ele rosnou. — Incontrolável, com a
língua venenosa e a mulher mais incrível em que já pus os olhos.
Suas palavras fizeram suas coxas ficarem escorregadias e ela
ofegou. — Porta. Feche a maldita porta.
— Sim, Vossa Majestade. — Ele deslizou a língua na boca dela,
provando-a, antes de permitir que deslizasse para o chão, a dureza
dele pressionando contra seu estômago antes de virar a chave na
porta e silenciar a tempestade.
Com o ferrolho travado, Aren andou em sua direção, seus olhos
castanhos predadores, sempre como caçador. Lara deu um passo
para trás no quarto, desafiando-o a segui-la Atraindo-o porque ela
não era e nunca seria a presa de ninguém. Suas panturrilhas
atingiram a madeira maciça de sua cama e ela o encarou, parando-
o.
O uivo do vento estava abafado e, por cima dele, ela podia ouvi-
lo respirar. Cada inspiração e expiração aumentavam sua
necessidade enquanto seus olhos percorriam o corpo dele,
marcando a maneira como os músculos de sua mandíbula se
tensionavam enquanto a observava com um mesmo foco.
Alcançando cegamente a lamparina, Lara aumentou a chama e
depois a colocou de lado, seus olhos nunca deixando os dele.
Segurando o corpete encharcado do vestido, o decote grudado nos
mamilos eriçados, ela lentamente retirou a seda do corpo,
descartando a roupa no chão. Então se deitou de costas para a
cama, descansando o peso nos cotovelos. Com deliberada lentidão,
Lara permitiu que seus joelhos se abrissem.
Ela observou o controle dele se perder, viu como ele se manteve
firme por causa da força de seu olhar, o desejo aparente contra as
calças encharcadas de chuva que era tudo o que usava. — Tire-as
— ela ordenou, a risada baixa fazendo sua pele formigar com a
necessidade de ter às mãos dele mais uma vezes em si.
Ele soltou o cinto, enfiou os polegares sobre ela e as empurrou,
o peso da faca ajudando a arrastar as calças para o chão, onde as
chutou para o lado. Desta vez, foi a vez de Lara recuperar o fôlego
enquanto observava o comprimento duro dele, porque quando o vira
nu antes, não era assim. Suas coxas tremiam com a necessidade
de tê-lo, e ela assentiu uma vez.
Em três passos, ele cruzou o quarto, mas, em vez de prendê-la
na cama, como ela pensara que faria, ele caiu de joelhos diante
dela. Ithicana - e seu Rei - não se curvaram a nada e a ninguém.
Mas ele se curvou para ela.
Aren beijou a parte interna do joelho esquerdo. Então o joelho
direito, se demorando em uma cicatriz antiga que subia até metade
da parte interna da coxa. Suas mãos, ásperas com os calos
conquistados na defesa de seu Reino, seguraram suas pernas. E,
com ela tremendo sob seu aperto, ele abaixou o rosto e deslizou a
língua dentro dela.
Seus quadris se contraíram, mas ele a segurou contra a cama,
lambendo e chupando o ápice de suas coxas até que um gemido
saiu de seus lábios. Ela caiu contra o lençol, as mãos o alcançando,
puxando-o, mas ele apenas levantou a cabeça tempo suficiente
para lhe dar um sorriso feroz antes de deslizar os dedos no lugar
que sua língua havia acabado de estar.
As costas de Lara se arquearam e ela agarrou a beira da cama,
o seu mundo se inclinando enquanto ele acariciava seu interior, a
boca dele a consumindo novamente, a pressão crescendo
profundamente em seu núcleo. Um relâmpago brilhou quando seus
dentes a arranharam e o mundo se despedaçou, sua visão se
fragmentando quando ondas de prazer a inundaram até que ela
ficou ofegante e tremendo.
Aren não se moveu por um longo momento, então com uma
ternura que partiu seu coração, ele beijou seu estômago antes de
descansar sua bochecha contra ela, seus dedos emaranhados em
seus cabelos.
Mas ela não terminou com ele. Nem ele com ela.
Ele a escalou com a graça de uma pantera na caçada.
Segurando suas mãos, ele colocou os braços dela sobre a cabeça,
os nós dos dedos cravando no colchão. Por um batimento cardíaco,
ela resistiu, lutando contra a força muito superior do homem. E
então seu corpo cedeu. Não para ele, mas para si mesma. Para o
que queria. Sua vida havia sido gasta como um peão sem vontades
nas maquinações de seu pai, mas não mais. Toda vitória ou erro,
todo toque ou uso de violência… Tudo isso seria ações dela agora.
Ela os possuiria. Ela quem comandava.
Erguendo a cabeça, ela o beijou e o sentiu estremecer enquanto
prendia as pernas em volta da cintura dele, puxando-o para baixo
para que seus corpos se pressionassem. O beijo se aprofundou,
todas as línguas e dentes, as respirações pesadas mais sentidas do
que ouvidas sobre o estrondo do trovão.
A ponta dele roçou contra ela, e Lara gemeu em sua boca, seu
corpo sabendo o que queria, desesperado por ele preenchê-la. Ela
apertou os quadris contra ele, ofegando quando seu pênis provocou
dentro dela antes de se afastar.
— Nem tudo será em seus termos, amor — ele rosnou em seu
ouvido. — Eu não vou ser apressado.
— Você é um demônio, afinal — ela sussurrou, mas sua
capacidade de falar desapareceu quando ele soltou seus pulsos e
seu rosto desceu para seu peito, sugando e provocando seu mamilo
com a boca, a mão entre suas pernas. As próprias mãos dela
deslizaram para os ombros dele, dedos passando pelas curvas
duras de seus músculos, traçando as linhas de cicatrizes antigas e
novas, depois descendo pela espinha, saboreando a maneira como
tremia sob o toque dela.
Mas não foi suficiente. Ela mordeu o pescoço dele, querendo
que ele se aproximasse, querendo que seus corpos e almas se
fundissem e nunca mais se separassem.
— Aren. Por favor.
Ele recuou, levando-a com ele. De joelhos, a segurou contra ele,
olhos fixos nos dela enquanto a abaixava lentamente. Com a
cabeça caindo para trás, Lara gritou na tempestade, agarrando seus
ombros quando afundou nela e depois parou.
— Olhe para mim.
Ela olhou, pressionando a bochecha contra a mão dele quando
alcançou a lateral da cabeça dela. — Eu te amo — disse ele, seus
lábios roçando nos dela. — E eu vou te amar, não importa o que o
futuro traga. Não importa o quanto eu precise lutar. Eu vou sempre
amar você.
As palavras a desfizeram, quebraram-na totalmente, depois a
forjaram em algo novo. Algo mais forte. Algo melhor. Ela o beijou,
por muito tempo, forte e profundamente, seus corpos balançando
juntos.
Baixando suas costas até os lençóis, ele retirou completamente
e depois empurrou de volta com uma lentidão torturante. Então de
novo. E de novo. A cada golpe forte, seus corpos ficavam
escorregadios de suor. Ela agarrou a mão dele, a outra mão
enrolando pelos cabelos, descendo pelas costas, precisando possuir
cada centímetro dele enquanto seu próprio corpo se apertava,
queimando, queimando em direção à liberação.
Ela lutaria por ele.
Ela sangraria por ele.
Ela morreria por ele.
Porque ele era seu Rei e, mesmo que isso significasse
assassinos caçando-a pelo resto de seus dias, ela seria muito bem
a Rainha de Ithicana.
A libertação tomou conta dela, violenta como a tempestade que
castigava seu Reino, e ela sentiu o prazer de seu corpo puxar Aren
para o limite. Ele se enterrou ao máximo, uivando o nome dela
quando o quarto estremeceu sob o ataque da tempestade, depois
desmoronou, a respiração irregular em seu ouvido.
Eles mal se moveram pelo que pareceram horas. Lara se
enrolou no calor de seus braços, sua mente flutuando enquanto ele
acariciava suas costas nuas, enquanto a cobria com um lençol
quando o suor em seus corpos começou a esfriar. Foi somente
quando a respiração dele virou um suave ritmado de sono que ela
levantou a cabeça.
Tirando os cabelos da testa, ela o beijou gentilmente. E porque
ela precisava dizer isso mas não estava pronta para ele ouvir, ela
sussurrou: — Eu te amo.
Com a cabeça apoiada no peito dele e o batimento cardíaco no
ouvido dela, ela finalmente permitiu que o sono a levasse.
34
LARA

O , L
Aren passaram na cama. Muito pouco desse tempo passaram
dormindo.
Momentos do lado de fora do quarto eram gastos jogando cartas
e jogos de tabuleiro Ithicanos peculiares, para os quais Aren era um
terrível trapaceiro. Horas dela lendo em voz alta enquanto a cabeça
dele descansava no seu colo, os olhos distantes enquanto ouvia, os
dedos entrelaçados nos dela. Ele contou histórias de sua infância
em Ithicana, que pareciam envolver principalmente evitar seus
tutores para correr pela floresta até que Jor o perseguisse. Ele
contou sobre a primeira vez que ele, Taryn e Lia apostaram suas
vidas na Ilha das Cobras, revezando-se enquanto seus amigos
assistiam de barco na água.
— E Ahnna?
Aren bufou. — Ela não é estúpida o suficiente para tais
acrobacias.
Havia algo na voz dele que levou Lara a colocar o copo de suco
na mesa com um tinido alto. — Você precisa se desculpar com sua
irmã pelo que disse. Foi desnecessário.
Aren se virou, empurrando um livro de volta na prateleira e
tomando toda sua própria bebida. — Ela quase matou você.
— Foi um acidente. E para você que não estava prestando
atenção, ela também foi quem salvou nossos traseiros.
— Anotado.
— Aren.
Ele encheu sua bebida. — Eu já disse coisas piores e ela para
mim. Ela vai superar isso.
Lara mordeu o interior de suas bochechas, entendendo que não
era relutância em se desculpar, mas sim o conhecimento de que
deveria justificar suas ações relacionadas a ela. — Há uma
diferença substancial entre palavras cruéis trocadas entre irmãos e
ameaças proferidas por um Rei à comandante de seus exércitos.
Ele deu um suspiro minucioso. — Ok, ok. Vou me desculpar
quando a ver novamente
— Que será quando?
— Deus, mas você é persistente.
Lara deu-lhe o seu sorriso mais doce.
— Na reunião do conselho antes do início das Marés de
Guerras, quando discutiremos nossa estratégia. Ahnna representa
Southwatch, então ela tem que estar lá.
Sua boca se abriu para perguntar onde precisamente a reunião
seria realizada, mas depois a fechou novamente. Nos últimos dias,
Lara teve o cuidado de não investigar detalhes nos quais um espião
pudesse estar interessado, cautelosa em dar a Aren qualquer
motivo para duvidar de sua lealdade. Parte dela se perguntava se
isso iria mudar, ou se o passado dela sempre mancharia o
relacionamento deles.
— Por que você nunca fala sobre suas irmãs?
As irmãs dela. Lara fechou os olhos, lutando contra a inesperada
ardência de lágrimas. Fora um esforço consciente da parte dela
pensar nelas o mínimo possível. Em parte, era para evitar a dor no
peito que vinha com a lembrança, a sensação de perda que vinha
toda vez que ela percebia que provavelmente nunca mais as veria.
A outra parte era o medo de que, se as mantivesse muito na mente,
poderia revelar acidentalmente que ainda estavam vivas, e essa
informação poderia voltar para o pai. E, pelo bem delas, ela não
podia confiar em Aren para contar a verdade, pois, se ele quisesse
um motivo para provocá-la, poderia fazer a partir disso. — Elas
estão mortas.
O copo escorregou de sua mão para bater contra o chão. —
Você não está falando sério?
Lara caiu de joelhos para pegar os quebrados. — Todo mundo
que sabia da trama de meu pai foi morto, com exceção de Serin.
— Todos elas? Você tem certeza?
— Eu as deixei de bruços na mesa de jantar, cercadas por
chamas. — Lembrou-se da sensação dos cabelos loiros dourados
de Marylyn sob os dedos, quando tirou a cabeça da irmã da tigela
de sopa. Do jeito que ela, seu pai e todo o grupo deles haviam
fugido do complexo, suas irmãs abandonadas à sorte e à própria
inteligência. Um pouco de vidro espetou seu dedo e ela sibilou,
sugando o sangue da ferida antes de retornar à tarefa.
As mãos de Aren se fecharam sobre as dela. — Deixe, amor.
Alguém mais vai limpar isso.
— Eu não quero que Eli faça isso. — Ela pegou outro fragmento
de vidro. — Ele tenta fazer tudo muito rápido e com certeza se
cortará.
— Então eu farei isso eu mesmo.
Os cacos de vidro caíram de suas mãos, e ela observou como os
pedaços de líquido âmbar neles capturavam a luz. Ainda havia tanta
coisa que ela não tinha contado a ele.
— Minha infância foi feia. Eles tentaram nos transformar em
monstros. Talvez eles tenham tido sucesso.
O único som era a chuva lá fora.
— Naquele dia do ataque à ilha Serrith... Havia uma dúzia de
Amaridianos mortos no caminho que levava da enseada.
— Eu os matei, se é isso que você está perguntando.
— Todos eles?
— Sim. Você estava em menor número e sua morte não... Não
fazia parte do meu plano.
Ele exalou um longo suspiro, depois repetiu: — Não fazia parte
do seu plano.
Embora Aren soubesse a verdade e a perdoasse por isso, parte
de Lara ainda temia que ele mudasse de ideia. Que esses últimos
dias não passavam de um truque: uma maneira de mostrar a ela o
que poderia ter sido se tivesse chegado a esse casamento sem
traição em seu coração.
Ele puxou Lara para seus pés. — Ninguém pode saber. Sobre
nada disso. Muitos do meu povo eram contra essa união, para
começar. Se eles soubessem que você era uma espiã - e uma
assassina treinada - enviada para se infiltrar em nossas defesas,
eles nunca a perdoariam. Eles exigiriam sua execução, e se eu não
concordasse...
Lara sentiu o sangue sumir de seu rosto. Não por causa da
ameaça à vida dela, mas por causa da ameaça à dele. — É melhor
para você se eu for? Nós podemos fingir minha morte e todos os
problemas por eu estar aqui presente serão resolvidos.
Aren não respondeu, e quando ela finalmente encontrou
coragem para levantar a cabeça, foi para encontrá-lo olhando para
longe, os olhos sem foco. Então ele balançou a cabeça
bruscamente. — Fiz uma promessa a você e pretendo mantê-la.
O peito de Lara se apertou. — Meu pai mandará assassinos
atrás de mim. Qualquer pessoa perto de mim estará em perigo.
— Não se eles não souberem onde você está.
— Eles sabem que estou em Midwatch, Aren. E aqui não é tão
impenetrável quanto você pensa. Meu pai não vai esquecer minha
traição tão facilmente.
— Estou ciente das limitações de Midwatch, e é por isso que não
vamos ficar aqui. — Ele a puxou para seus braços. — E o seu pai
vai deixá-la em paz se ele acreditar que o custo de vingança é mais
do que deseja pagar.
A vingança valia qualquer preço para seu pai. — Deixe-me voltar
para Maridrina. Deixe-me matá-lo e acabar com isso.
— Eu não usarei você para matar meus inimigos.
— Ele é meu inimigo também. E o inimigo do povo maridriniano.
— Eu não discordo. — A mão de Aren subiu e desceu por sua
espinha. — Mas assassinar seu pai fará exatamente o oposto do
que estamos trabalhando. Mesmo que Serin não possa provar que
foi Ithicana, ele jogará a culpa em nossos pés, e não vai demorar
muito até que o povo maridriniano esqueça Silas, o tirano, e comece
a exigir vingança por Silas, o mártir. Seu irmão mais velho é igual a
seu pai e eu não pretendo entregar a ele um exército de sangue
Ithicano.
— Se eles atacassem — continuou ele — provavelmente
poderíamos convencer Valcotta a se aliar conosco e esmagá-los,
mas aí seria o seu povo que sofreria. E, no final, estaríamos de volta
ao mesmo lugar que há quinze anos atrás, nossos povos se
odiando.
— Portanto, não fazemos nada, então? — Tudo o que ele disse
era verdade, mas Lara não conseguiu esconder a amargura de sua
voz.
— Nós assistimos. Nos preparamos. Mas... — Ele encolheu os
ombros. — Qualquer ação que possamos tomar neste momento
causaria mais mal do que bem.
— Com Valcotta atacando comerciantes Maridrinianos tentando
aportar em Southwatch, minha terra natal continuará passando
fome.
— Tudo resolveria se seu pai desistisse da guerra com Valcotta.
Deixe os agricultores voltarem aos seus campos e os comerciantes
aos seus negócios.
Mas ele não iria. Lara sabia disso com certeza, porque seu pai
nunca admitiria a derrota.
— A temporada das tempestades ajudará a manter os
valcottanos em seus portos. O porto de Vencia é o mais próximo de
Southwatch, e seu pessoal aproveitará os curtos intervalos das
tempestades. Por mais impossível que seja acreditar, a estação das
tempestades é melhor para os seus compatriotas do que a calmaria.
Alimentos vão chegar nos costas maridrinas.
Aren não mentiria para ela - Lara acreditava nisso. Ela confiava
nele. Mesmo que a matasse por não fazer nada.
Ele ficou quieto por um longo tempo e depois disse: — Mas há
dois lados nisso, Lara. Poucos Ithicanos já deixaram nossas costas.
Muito poucos deles já conheceram um maridriniano. O resultado é
que acreditam que seu pai é a soma do seu povo. Preciso que você
me ajude a mudar isso. Preciso que os faça ver que os
Maridrinianos não são nossos inimigos. Para fazê-los querer mais
do que apenas uma aliança no papel e palavras entre Reis, mas
uma aliança entre nosso povo. Porque é a única maneira de
encontrarmos a paz.
— Não vejo como isso pode acontecer enquanto ele viver.
— Ele não viverá para sempre.
Lara exalou um longo suspiro. — Mas meu irmão, como você
disse, é exatamente como ele. Ele tirará vantagem da utopia que
você imagina.
— Eu não imagino uma utopia, Lara. Apenas algo melhor. — Ele
beijou seu ombro, seus lábios quentes. — Já era hora de pararmos
de permitir que nossos inimigos ditem nossas vidas e começarmos a
viver para aqueles que amamos. E para nós mesmos.
— Um sonho.
— Então faça ser realidade. — Alcançando os bolsos das calças,
ele extraiu uma pequena bolsa de seda. — Eu tenho algo para você.
A cabeça de Lara virou, seus olhos se arregalaram quando ele
retirou uma delicada corrente de ouro com esmeraldas e diamantes
negros brilhando na luz. — Você mencionou uma predileção pelo
verde.
Cuidadosamente, ele passou os cabelos para o lado e prendeu o
colar em volta do pescoço. — Era da minha mãe. Meu pai mandou
fazer isso anos atrás e ela quase nunca tirou. Os criados a
encontraram em seus quartos depois… — Ele parou, balançando a
cabeça para clarear a emoção. — Ela sempre disse que era para
ser usada.
Lara arrastou um dedo pelo ouro e pelas jóias, depois o afastou,
com a mão em punho. — Eu não posso ficar. Ahnna é quem deveria
ficar.
— Ahnna odeia jóias. E, além disso, você é Rainha de Ithicana.
Você é quem deveria usá-la.
Pegando em suas mãos, Aren a virou na direção do grande
espelho na parede e pressionou os dedos contra o grande diamante
negro descansando no centro de sua clavícula, a pulsação ritmada
logo embaixo. — Northwatch. — Então ele desceu a mão pelo colar,
nomeando as ilhas maiores enquanto fazia.
— Serrith. — Ele parou ali, beijando o ombro dela, roçando os
dentes no pescoço dela, sentindo o corpo dela recuar e depois
pressionar contra ele, a cabeça caindo contra o ombro dele. —
Midwatch. — Os dedos deles percorreram a curva do seio direito,
parando em uma grande esmeralda. Ele fez um ruído considerado,
depois continuou o mapa de jóias, parando em Southwatch, a
esmeralda aninhada em seu decote.
— É seu — ele murmurou em seu ouvido. — Ithicana. Tudo o
que tenho é seu. Para proteger. Para melhorar.
— Eu vou — ela sussurrou. — Eu prometo. — Virando, Lara
apoiou a testa no peito dele, concentrando-se na sensação de suas
mãos. No som do seu coração.
Então ele ficou quieto. — Escute.
— Eu não ouço nada.
— Exatamente. A tempestade passou. O que significa que terá
terminado ao sul daqui, de modo que os barqueiros de Vencia já
estarão na água em direção a Southwatch.
Era tão estranho ter que confiar nos Mares de Tempestade, que
ela temia mais do que qualquer outra coisa, para proteger seus dois
povos. Lentamente, a tensão desapareceu dela. — Como é seguro
sair, eu me pego desejando um banho adequado.
— Seu desejo é meu comando, Vossa Majestade — ele rosnou
em seu ouvido, jogando-a por cima do ombro e indo para a porta.
No corredor encontraram Eli, que carregava um saco de pele no
ombro.
— Estou correndo para o quartel, Vossas Graças. Alguma
mensagem que você deseja transmitir?
Aren hesitou. — Sim. Diga a Jor que quero vê-lo. Depois do
almoço. — Ele deu um tapinha significativo na bunda de Lara, rindo
quando ela lhe deu uma joelhada no peito. — Mas, por enquanto, eu
preciso de um banho.

Várias horas depois, eles estavam terminando uma refeição de


peixe grelhado e molho cítrico quando a porta da casa se abriu.
Sem se importar com as botas salpicadas de lama, Jor entrou na
sala de jantar e sentou-se em frente a eles. — Majestades. — Seus
olhos brilhantes iam e viam entre Lara e Aren enquanto ele tirava
um bolo da bandeja. — Que bom ver vocês dois finalmente se
dando bem.
As bochechas de Lara esquentaram e ela tomou um gole do
suco de frutas, esperando que o copo escondesse seu
constrangimento.
— E tudo o que foi necessário para ganhar sua afeição foi o
pobre garoto pulando em águas infestadas de tubarões para salvar
seu traseiro. — Ele suspirou dramaticamente. — Não tenho certeza
se estou disposto a tais atos de heroísmo. Suponho que vou ter que
deixar de lado o sonho de tomar você quando Aren for morto por
uma de suas acrobacias estúpidas.
— Cai fora, Jor.
Lara apenas sorriu. — Felizmente para você, eu tenho uma
quedinha por homens idosos.
— Idosos? — Pedaços de bolo voaram da boca do guarda. —
Quero que você saiba, pequena senhorita, que eu sou...
— Chega, chega. — Aren encheu o copo na frente de Jor. —
Não é por isso que você está aqui.
— Sim, me diga por que eu tive que arrastar minha bunda idosa
até a colina para visitar os dois pombinhos.
Lara virou-se na cadeira para olhar Aren, curiosa.
— Como estão os céus? — ele perguntou.
— Coloque a cabeça para fora da porta e veja por si mesmo.
— Jor.
— Limpo. — O guarda mastigou lentamente outro bolo, a testa
franzida com suspeita. — Por quê?
A mão de Aren se fechou sobre a de Lara, o polegar traçando
um círculo contra a palma da mão. — Diga a todos para arrumar
suas coisas e preparar os barcos. Acho que é hora de voltarmos
para casa.
35
LARA

L .
Para Lara, Midwatch era lar, com sua serenidade silenciosa. Mas
não havia como confundir a excitação nos rostos dos guardas, que
amarravam suas mochilas e montes de provisão em um trio de
barcos, quase tropeçando um no outro na pressa. Onde quer que
estivessem indo era lar para eles, e a agitação da atividade apenas
reforçava a curiosidade de Lara. Não havia grandes civilizações em
Ithicana, nada maior que uma vila de pescadores, e a maridriniana
nela lutava para acreditar que o Rei do Reino da Ponte poderia
chamar um desses de lar.
— Para onde estamos indo? — ela perguntou a Aren pela
centésima vez.
Ele apenas deu um sorriso divertido e jogou sua bolsa de
pertences na canoa. — Você vai ver.
Mal teve permissão para levar qualquer coisa, apenas um
conjunto de suas roupas Ithicanas, uma seleção de roupas de baixo
e, a pedido de Aren, um de seus vestidos de seda Maridrinianos,
apesar de que utilidade teria em uma vila de pescadores, ela não
sabia.
Mordiscando um pedaço fresco de raiz para ajudar a manter o
estômago calmo, Lara se acomodou no barco, ficando fora do
caminho enquanto eles saíam da enseada. Embora o céu estivesse
relativamente calmo, o mar estava cheio de galhos e detritos, e,
através da névoa que assolava Midwatch, Lara notou que a selva
havia sido severamente danificada pela tempestade, árvores
derrubadas e plantas sem flores e folhas.
Os barcos passaram por baixo da ponte, a ilha desaparecendo
de vista, e Lara olhou para frente quando a vela foi levantada, os
ventos fortes fazendo-os atravessar pelas ondas. Eles viraram para
o oeste, para longe da ponte serpenteante, passando por inúmeras
massas de terra minúsculas, todas as quais parecendo desabitadas,
embora ela soubesse que em Ithicana as aparências enganassem.
Eles navegaram por uma hora quando, ao redor de uma ilha
menor, os olhos de Lara caíram sobre uma verdadeira montanha
subindo do oceano. Não é uma montanha, ela silenciosamente se
corrigiu. Um vulcão. A própria ilha tinha várias vezes o tamanho de
Midwatch, as encostas do vulcão, que chegavam ao céu, densas
com selvas verdejantes. As águas azuis batiam contra as paredes
do penhasco com quinze metros de altura, sem sinais de praia ou
enseada. Impenetrável e, se a fumaça subindo do pico fosse alguma
indicação, um lugar perigoso para se habitar.
No entanto, enquanto passavam pelo monólito, Jor abaixou a
vela, diminuindo a velocidade, mesmo quando Lia se levantou, a
mão equilibrada no ombro de Taryn enquanto examinava o
ambiente. — Não há velas no horizonte — declarou ela, e Aren
assentiu. — Levante a bandeira, então.
A bandeira verde brilhante cortada por uma linha curva preta foi
desenrolada e erguida para o topo do mastro, o vento batendo nela
com um entusiasmo que se refletia nos rostos de todos os Ithicanos.
Eles se aproximaram da ilha e, protegendo os olhos com a mão
contra o brilho da água, Lara viu uma abertura escura nas paredes
do penhasco.
A entrada para a caverna do mar cresceu enquanto os barcos se
aproximavam, quase sem espaço suficiente para os mastros
enquanto se afastavam para dentro, a escuridão escondendo o que
quer que estivesse lá dentro.
O coração de Lara trovejou em seu peito, percebendo que ela
estava testemunhando algo que ninguém de fora já tinha visto. Um
lugar que era totalmente do domínio de Ithicana. Um segredo maior,
talvez, do que mesmo os de sua preciosa ponte.
Um chocalhar ensurdecedor fez Lara pular. A mão de Aren
descansou contra suas costas para firmá-la enquanto os olhos de
todos se ajustavam à penumbra. Piscando, ela observou com
admiração quando um portão de aço coberto de algas e cracas se
ergueu em um estreito espaço na rocha do teto e os três barcos
foram gentilmente levados a um túnel que se curvava à direita.
Segurando as laterais do barco, Lara prendeu a respiração
enquanto Taryn e Lia os levaram para dentro, o túnel se abrindo
para uma enorme caverna. A luz do sol filtrava através de pequenas
aberturas no teto para dançar pela água calma, e o chão da caverna
parecia estar ao alcance de um braço, embora Lara suspeitasse que
era muito mais profundo.
Atracados às paredes, havia dezenas de barcos, incluindo os
grandes que viu evacuar a vila na Ilha Serrith. Crianças meio
vestidas nadavam entre eles, seus gritos animados audíveis quando
o barulho das grades descendo atrás deles parou. Houve gritos de
reconhecimento quando as crianças avistaram Aren e seus guardas,
e muitos deles caíram como um cardume de peixes ao redor dos
barcos. Jor riu, fingindo bater neles com um remo enquanto se
dirigiam para o outro extremo da caverna, onde degraus esculpidos
na rocha escura levavam para cima.
Com as vozes das crianças enchendo seus ouvidos, Lara
permitiu que Aren a ajudasse a sair do barco, com as pernas
instáveis embaixo dela. Que lugar era esse?
Com a mão suada apoiada no braço de Aren, Lara subiu as
escadas em direção à abertura iluminada pelo sol com o coração
batendo forte no peito. Juntos, eles saíram, e uma rajada de vento
salgado atingiu os cabelos de Lara, arrancando-os da trança. O
brilho ardeu em seus olhos, e ela piscou, meio para limpar as
lágrimas e meio por que não podia acreditar no que estava vendo.
Era uma cidade.
Cobrindo as encostas íngremes da cratera do vulcão, ruas,
casas e jardins da cidade se entrelaçavam perfeitamente com a
vegetação natural, tudo isso refletido em um lago esmeralda que se
acumulava na bacia. Soltando o braço de Aren, Lara girou em um
círculo, lutando para absorver a magnitude deste lugar que não
deveria, não poderia, existir.
Homens e mulheres vestidos com túnicas e calças cuidavam dos
seus negócios e inúmeras crianças corriam, provavelmente
aproveitando o descanso devido ao mau tempo. Havia centenas de
pessoas e ela não tinha dúvida de que muitas mais poderia ser
encontradas dentro das estruturas que foram construídas na
encosta, feitas com o mesmo material sólido da ponte. Árvores e
trepadeiras envolviam as casas, as raízes cravadas profundamente
na terra, os cinzas e verdes serpenteados por inúmeras flores de
todas as cores do arco-íris. Sinos de metal pendiam dos galhos das
árvores e, com cada sopro de vento, sua música delicada enchia o
ar.
Parecendo cada centímetro de si como um Rei que analisava
seu Reino, Aren disse: — Bem-vinda a Eranahl.
36
AREN

F A
visto.
Tufão atrás de outro atacava Ithicana, mar, vento e chuva
atingindo a fortaleza que era Eranahl, mantendo-a ainda mais
isolada do que o normal. A cidade foi forçada a procurar seus
próprios suprimentos e seria uma corrida louca reabastecer os
estoques antes que as Marés da Guerra chegassem e a população
da cidade triplicasse, com a vinda dos que moravam nas ilhas
próximas à ponte para se refugiar dos inevitáveis invasores. Esses
trazendo suprimentos com eles, mas, com meses de apenas dias
claros limitados para pescar e se reunir, eles tinham que correr
contra o tempo.
O que significava que a ponte tinha que os abastecer.
No entanto, tinha sido dolorosamente fácil não pensar nos
perigos iminentes dos meses seguintes desde que ele trouxera Lara
para casa em Eranahl. Fácil de sentar em volta da mesa com os
amigos, bebendo e comendo, rindo e contando histórias na
escuridão da noite. Fácil de se perder em um livro sem esperar que
cornetas soem com alertas de invasores. Fácil de dormir no final da
manhã, os braços em volta da forma esbelta da esposa. Acordar e
reverenciar as curvas de seu corpo, o gosto de sua boca, a
sensação de suas mãos nas costas dele, nos cabelos, em seu
pênis.
Houve dias em que pareciam que Lara esteve presente em toda
sua vida, pois ela tinha emergido completamente em todos os
aspectos de seu ser. Em todos os aspectos de Eranahl. Ele temia
que ela sofreria para se integrar ao seu povo e eles com ela. Mas,
dentro de um mês, ela tinha aprendido o nome de cada cidadão e
como cada um deles se integrava, e Aren frequentemente a
encontrava trabalhando com as pessoas, ajudando-as quando
estavam doentes e feridas. A maior parte do tempo de Lara era
gasta com os jovens de Ithicana, em parte porque mantinham
menos preconceitos contra os Maridrinianos do que seus pais e
avós e, em parte, ele pensou, porque isso lhe dava um senso de
propósito. Ela começou uma escola, pois, embora seu pai imbecil a
tivesse tratado mal, ele não havia economizado em sua educação, e
os esforços para compartilhar esse conhecimento conquistaram
mais corações do que seus heróis na ilha de Aela.
Lara tomou seus amigos como dela, enfrentando Jor cara-a-cara
sobre quem conseguia contar as piores piadas, bebendo, comendo
e rindo enquanto mergulhava em suas vidas, sua mão na de Aren
enquanto esperavam acabar tempestade após tempestade. Ela
nunca revelou mais do que detalhes superficiais sobre sua própria
vida, mas se alguém percebeu, não comentou. E o próprio Aren
parou de cavar, parou de perguntar quem infligiu suas cicatrizes por
dentro e por fora, contente que, se ela quisesse lhe contar, faria.
Com muito capricho e insistência, as crianças Ithicanas
convenceram Lara a entrar no porto da caverna, ensinando-a a
flutuar e a remar, mas ela saia num piscar de olhos se um peixe a
tocasse e se recusava em se colocar embaixo d'água As poucas
vezes em que alguém foi corajoso - ou tolo - o suficiente para
afundá-la foram as únicas vezes em que Aren a viu perder a
paciência com as crianças, gritando que ia matar alguém. Então ela
saia enfurecida e seminua, pingando de volta para o palácio, onde
se recusava a falar com qualquer pessoa, inclusive com ele, pelo
resto do dia, apenas para voltar à água com eles durante uma
pausa da tempestade seguinte.
Vir a Eranahl tinha mudado sua esposa. Não a tinha amolecido,
não exatamente, pois ela ainda tinha o temperamento mais perverso
de que já tinha conhecido, mas, para Aren, parecia que estar aqui
havia a tirado de sua concha. Fora da fortaleza que ela construiu
para se proteger. Ela estava mais feliz. Mais brilhante. Contente.
Exceto que toda temporada de tempestade chegava ao fim, e
essa não seria diferente.
Soltando um suspiro, Aren olhou para o céu, a chuva
tamborilando suavemente contra sua pele. Havia apenas a brisa
mais fraca, a tempestade mal merecia esse nome, e ele suspeitava
que seria apenas uma questão de dias até Nana ter previsões sobre
a temporada. E, por isso, seu conselho de guerra se reuniu.
Durante a última hora, os Comandantes da Guarda estavam
chegando de barco: homens e mulheres endurecidos pelas batalhas
as quais viram o pior que seus inimigos tinham a oferecer e, em
troca, tinha se tornado piores. Cada um dos nove, incluindo ele em
Midwatch, era responsável pela defesa de certa parte da ponte e
das ilhas que a rodeavam, e todos chegaram prontos para discutir o
que a temporada traria. Exceto uma.
Ahnna estava atrasada.
Entrando no abrigo do porto da caverna de Eranahl, Aren
sentou-se nos degraus para esperar, irritado com a ansiedade que
crescia em sua barriga. Essa seria a primeira vez que veria sua irmã
gêmea desde a queda de Lara da ponte. A primeira vez que se
falariam desde que ele ameaçou mandá-la para Harendell. Ahnna
tinha sido inflexivelmente contra Lara ser qualquer coisa além de
uma gloriosa prisioneira mantida em Midwatch, e ele não pôde
deixar de imaginar como ela reagiria ao fato de Lara estar no
coração de Ithicana.
Os portões começaram a subir lentamente, assustando Aren em
seus pensamentos. Um dos barcos da Guarda do Sul flutuou pela
curva, e ele olhou para a penumbra, tentando encontrar sua irmã
gêmea. Ahnna estava sentada na popa, timão na mão, expressão
ilegível.
O barco bateu contra os degraus de pedra, um dos soldados
pulando e atracando enquanto os outros descarregavam
suprimentos. Ahnna jogou o saco por cima do ombro, chamando a
tripulação para aproveitar suas poucas horas de liberdade antes de
subir os degraus dois em dois.
— Vossa Majestade — disse ela, e seu coração afundou. —
Peço desculpas por estar atrasada. Com o estado das relações
entre os Reinos do sul, Southwatch exige minha atenção total.
— Tudo bem. — Ele tentou se conciliar com a placa entre eles
que nunca poderia ser removida. — Temos tempo.
Os olhos de Ahnna se voltaram para o céu, então balançou a
cabeça. — Não tenho certeza de que temos.

O palácio se silenciou quando ele e Ahnna entraram, todos que não


eram necessários haviam desocupado o local e aqueles que eram
necessários estavam ocupados com suas tarefas. Isso produziu um
estranho tipo de som, como se a ausência de pessoas mudasse o
prédio, fazendo ecoar passos e vozes.
Não que os dois se sentissem inclinados a falar.
Virando pelo corredor, Aren viu Lara sentada em um banco
acolchoado do lado de fora das câmaras do conselho, ombros retos,
olhos fixos nas portas sólidas. Ela usava um vestido de seda azul e
verde, os cabelos trançados em uma coroa que revelava a longa
coluna do pescoço. Sandálias de salto alto, o couro incrustado com
lápis-lazúli, estavam amarradas aos pés dela, e dali podia ver as
bochechas e os ossos da testa brilhando com poeira dourada.
— Vejo que ela não desistiu de seus gostos caros — murmurou
Ahnna.
Lara não tinha, mas Aren a satisfez, porém não pelas razões que
sua irmã havia pensado. Lara teria deixado de lado os luxos, teria se
misturado ao povo dele a ponto de esquecer que ela não havia
nascido entre eles, mas os dois entendiam a importância das
pessoas se lembrarem que era maridriniana. Que eles começassem
a amar como maridriniana, o que eles já começaram.
Lara se levantou quando eles se aproximaram e, quando se
virou para encará-los, Aren ouviu o suave suspiro da respiração de
Ahnna. Ela estava olhando as jóias em volta do pescoço de Lara, o
colar de esmeraldas e diamantes pretos que tinham sido de sua
mãe. — Como você pôde? — Suas palavras saíram como um
assobio entre os dentes. — De todas as coisas que você poderia ter
dado a ela, por que isso?
— Porque Lara é a Rainha. E porque eu a amo.
Mil respostas passaram pelos olhos de sua irmã, mas ela não
disse nenhuma delas. Apenas curvou-se para Lara. — Estou feliz
em vê-la bem, Vossa Excelência. — Então ela tirou a chave que
marcava-a como comandante da guarda, destrancou a câmara do
conselho e entrou.
— Eu disse que seria um erro não falar com ela antes. — Lara
apoiou as mãos nos quadris, sacudindo lentamente sua cabeça
perfeita. — Você a estapeia na cara com tudo o que ela não quer
ver e depois espera que cerre os dentes e aguente.
Diminuindo a distância entre eles, Aren puxou Lara contra ele, os
braços dela deslizando ao redor do pescoço dele. — Por que você
está sempre certa? — perguntou, fechando os olhos e beijando sua
garganta.
— Eu não estou. É só que você, geralmente, está errado.
Ele riu, sentindo um pouco de sua tensão dissipar apenas para
retornar quando ela disse: — É muito cedo, Aren. Deixe-me ir
buscar Jor.
— Não. Você é Rainha de Ithicana e isso faz de você a minha
segunda em comando. É assim que sempre foi e eu levando Jor
comigo enviaria uma mensagem aos comandantes de Watch e ao
povo de que não a vejo como capaz. Que eu não confio em você.
Arruinaria tudo o que realizamos desde que você veio para Eranahl.
— Até onde eles sabem, eu sou incapaz.
— Eu sei que é o contrário. — Mas ele era o único que sabia; O
passado de Lara, seu treinamento, como era mortal, um segredo
que Aren mantinha de todos. E continuaria mantendo para proteger
sua esposa e a paz tênue que o casamento simbolizava. — Além
disso, há mais para administrar num Reino do que o conhecimento
bélico.
— Essa é a reunião do conselho das Marés da Guerra — disse
ela entre os dentes, os olhos se movendo pelo corredor para
garantir que estivessem sozinhos. — A única coisa que importa é o
conhecimento bélico. Deixe-me chamar Jor.
Aren balançou a cabeça. — Você é a única que conhece todos
os riscos. — Ele descansou a testa na dela. — Eu preciso de você
ao meu lado.
E antes que ela pudesse discutir mais, ele abriu a porta e puxou
Lara para dentro da sala de guerra de Ithicana.
37
LARA

A ,
intimidade que condensou o ar entre eles momentos atrás se foi. E
foi substituído por algo completamente diferente.
Aqui, eles não eram marido e mulher. Nem Rei e Rainha de
Ithicana. Nesta sala, Aren era comandante de Midwatch e ela era
sua segunda no comando, e Lara imitava instintivamente seus
ombros retos e a expressão dura, seguindo em seus calcanhares
até a elevada réplica de Midwatch, a ilha que fazia parte de um
enorme mapa de Ithicana. O único mapa completo de Ithicana
existente.
Ninguém era permitido nesta sala, a não ser os comandantes de
Watch e seus segundos no comando. Nem mesmo os funcionários
foram aceitos para limpar, o grupo que cuidava dos serviços com
eficiência típica da Ithicana. O fato dela, uma maridriniana, estar
nesta sala era inédito, fato esse que ficou claro quando todas as
cabeças se viraram para ela, os olhos arregalados de choque.
— Onde está Jor? — A voz de Ahnna cortou o silêncio de onde
estava ao lado da réplica de Southwatch, com a mão repousando
possessivamente na grande ilha.
— No andar de baixo. — A voz de Aren saiu curta e grossa,
embora Lara suspeitasse que o tom tivesse mais a ver com nervos
do que com irritação. Ele sabia que a presença dela seria
questionada.
— Comandante, talvez possamos discutir se a presença de Sua
Majestade é apropriada — disse Mara. O que não era
surpreendente. A mulher não escondia seu desgosto por Lara, mal
falando com ela quando estava em Eranahl.
Aren voltou seus olhos frios para a comandante de Northwatch.
— Nós escolhemos nossos segundos. Nossas escolhas não são
questionadas. — Ele apontou o queixo em direção a Aster, a quem
Mara tomou como segundo no comando depois da demissão dele
do comando de Kestark. — A menos que você queira mudar esse
protocolo?
Mara levantou as mãos em defesa. — Eu apenas pensei que
você gostaria de ter alguém com experiência como seu segundo,
Comandante. Emra — ela apontou para o jovem comandante de
Kestark — escolheu alguém mais velho para compensar sua
juventude.
Emra escolheu sua mãe - uma guerreira endurecida pela batalha
de quem Lara gostava imensamente - como segunda no comando,
e a mulher em questão revirou os olhos para o céu enquanto sua
filha respondia: — Escolhi alguém em quem eu pudesse confiar.
Um pequeno farol de solidariedade, mas o alívio que Lara sentiu
com as palavras da jovem foi lavado quando Ahnna disse: — Desde
quando você não confia em Jor?
Aren se moveu ao lado de Lara, suas pernas roçando nas saias
dela. Ela sabia que não ter o apoio de sua irmã doía. Pelo que ela
soube de Taryn, Jor e o resto dos guardas, os gêmeos eram unidos,
lutando nas costas um do outro até Ahnna se mudar para
Southwatch. Ela teve o voto decisivo de apoio nesta câmara do
conselho para o casamento de Aren com Lara, mas, a julgar pela
expressão da princesa, se arrependeu profundamente dessa
decisão.
— Lara é minha esposa. Ela é a Rainha. Eu confio nela, e ela é
minha segunda no comando. — Lara prendeu a respiração quando
o olhar de Aren percorreu a sala. — Qualquer um que tenha um
problema com isso pode dar o fora agora.
Mara bufou, mas todo mundo segurou a língua. — Vamos
começar, então? Eu quero estar na água antes do anoitecer.
Foi um longo processo de Mara detalhando os desenvolvimentos
ocorridos durante a temporada de tempestades. O que os espiões
de Northwatch descobriram sobre as intenções de Harendell e
Amarid. Onde seus exércitos e frotas estavam localizados. O
número de navios que foram construídos ou destruídos. Lara ouviu
atentamente; não passou despercebido por ela que todos os
governantes do mundo matariam para ter um espião no lugar dela.
— Amarid está substituindo os navios que eles perderam no ano
passado — disse Mara. — Mas nós observamos seu progresso e
nenhum estará pronto no início das Marés de Guerra, então nós
talvez teremos um pouco de descanso
— Todos eles? — Aren perguntou. — Com que fundos? Amarid
está quase falida.
Uma falência que Lara sabia ter sido cimentada por Ithicana por
pegar a renda que Amarid geralmente recebia pelo transporte de
aço através dos Mares de Tempestade. De todos os Reinos, norte e
sul, seu casamento com Aren custou mais a Amarid.
— Direto dos cofres, é o mais próximo que podemos dizer. —
respondeu Aster. — Não está no crédito. Ninguém mais empresta a
eles. — O homem mais velho levantou uma página na mão. — Há
um boato de que os navios foram financiados com pedras preciosas,
mas isso parece improvável.
Pedras preciosas. A palavra surgiu na mente de Lara, importante
de alguma forma, embora ela não conseguisse pensar no porquê. —
Que tipo de pedras preciosas?
Cada par de olhos na sala viraram para ela antes de ir para
Aren. Sua mandíbula se contraiu com óbvia irritação. — Responda à
pergunta.
— Rubis — disse Aster. — Mas Amarid não tem minas, então
provavelmente não passa de um boato.
Os dedos de Lara foram para a faca presa à cintura, arrastando-
se pelas pedras vermelhas embutidas no punho.
— Não estou interessado em boatos — disse Aren. — Estou
interessado em fatos. Descubra como Amarid está pagando pelos
navios. Se eles estão trabalhando com alguém, eu quero saber
quem é. E quais são suas intenções. — Ele acenou com a mão para
Mara continuar, mas a mente de Lara ficou com os navios. Com a
ideia de que poderia haver alguém fora de Amarid interessado em
financiar novos ataques contra a Ithicana.
—... um aumento acentuado na importação de certos produtos
Maridrinianos por Amarid. — As palavras de Mara roubaram a
atenção de Lara.
— Que tipo de mercadoria?
A expressão de Mara era de irritação — Vinho barato,
principalmente.
— Por que, dado que Amarid faz os melhores vinhos e é
conhecida mundialmente por suas destilarias, eles importariam
vinho maridriniano?
— Claramente, alguns Amaridianos têm gosto pelo que é uma
porcaria suja — Mara retrucou. — Agora seguindo em frente.
— Comandante, tome cuidado. — A voz de Aren estava fria.
A mulher mais velha apenas levantou as mãos exasperada. —
Presumo que os Maridrinianos estejam vendendo o que podem para
comprar o que precisam - só os notei por serem incomuns e pode
ser um mercado que possamos explorar no futuro.
— Não foi uma remessa grande — Ahnna interrompeu. —
Nossos pedágios teriam consumido metade do lucro, eram coisas
tão baratas. Eu peguei uma caixa e a incluí com os suprimentos
para Midwatch.
A pulsação de Lara estava rugindo em seus ouvidos agora, a
memória da garrafa de vinho maridriniano no estoque da Casa
Segura dançando diante de seus olhos, junto com o rubi do
contrabandista que haviam encontrado nele. Um rubi que agora
estava em sua caixa de jóias em Midwatch. Que a melhor maneira
de contrabandear pedras preciosas do que em vinhos baratos que
os Ithicanos dificilmente tocariam, que eles nem notariam se Ahnna
não tivesse feito uma brincadeira? Se Aren havia feito a conexão,
Lara não podia dizer - ele estava guardando suas reações muito
fechadas.
— Posso continuar? — Mara exigiu e, ao aceno de Aren, ela deu
um rápido resumo das defesas de Northwatch, depois passou a
reunião para o próximo comandante.
As ilhas ao norte e ao sul de Midwatch sofreram a maioria dos
ataques durante as Marés da Guerra passada, e grande parte da
conversa se voltou para especulações sobre se este ano seria o
mesmo. Lara escutou com um ouvido, mas sua mente não
abandonou a noção de que alguém em Maridrina estava financiando
a frota Amaridiana.
A conversa avançou progressivamente para o sul, a reunião
parando apenas quando alguém precisava se aliviar e retomar
imediatamente após o retorno do indivíduo. Não havia tempo. Lara
podia sentir: o zumbido galopante de adrenalina que geralmente
precedia uma tempestade, mas desta vez sussurrava guerra. Aren
tomou sua vez para falar de Midwatch, mal se referindo às notas
que Lara passou para ele.
— A própria Ilha de Midwatch foi atacada apenas uma vez. Na
meia estação, e obviamente por um capitão inexperiente, enquanto
navegavam diretamente pelo caminho de nossos destruidores de
navios. Era como se eles estivessem pedindo para afundar. Mesmo
assim, tivemos pouco descanso, as outras ilhas sob nossa vigilância
foram atacadas repetidamente.
Eles se voltaram para os detalhes, mas Lara mal ouviu a
conversa, com a pele fria como gelo. A parte principal do plano de
seu pai foi fazer Lara testemunhar as táticas militares de Ithicana
por dentro, seu treinamento permitindo que ela entendesse essas
táticas e como poderiam ser exploradas. Nas Marés de Guerra, ela
acreditava que todas as oportunidades que tinha para assistir os
Ithicanos em ação tinham sido sorte, mas e se não tivesse sido? E
se tivesse sido de propósito? E se tivesse sido ordenado pelo
indivíduo que financiava a reconstrução desses navios?
E se esse indivíduo fosse o pai dela?
— O ataque Amaridiano a Serrith foi a única ocasião em que
sofremos perdas significativas...
Serrith. Sem perceber, a lembrança do ataque surgiu em sua
mente. Do modo como os marinheiros Amaridianos a
reconheceram, mas em vez de atacar, recuaram até ficar claro que
era a sua vida ou a deles. O que não fazia sentido, já que Lara e o
tratado que representava eram a causa de toda a aflição de Amarid.
— Sua vez, Emra — disse Aren. — Como foi em Kestark?
O papel nas mãos da jovem tremia enquanto falava, mas sua
voz era clara e firme ao resumir o estado do seu comando, que
sofreu pesadas perdas durante as Marés de Guerra. Chegando ao
final de suas anotações, ela fez uma pausa antes de dizer: — Um
navio mercante Amaridiano passou por Kestark dois dias atrás.
— Mantenha-se nos detalhes importantes, garota — disse Aster,
e Lara reprimiu o desejo de jogar o copo de sua mão na cabeça
dele. — Não temos tempo para discutir todos os navios mercantes
soprados para nossas águas durante uma travessia na estação das
tempestades.
Os olhos de Emra brilharam com irritação, mas ela fechou a
boca em respeito habitual ao homem mais velho.
Qualquer coisa a ver com Amarid era importante agora, e Lara
abriu a boca para pedir a Emra que elaborasse, mas Aren a venceu.
— Por que você menciona isso?
— Eu estava na ilha de Aela, inspecionando o posto avançado,
Comandante. Percebemos a embarcação ancorada no lado leste do
vento, a tripulação chamando atenção ao fazer alguns reparos.
— E?
— E eu notei que estava muito ao norte. O que, dado que ela
vinha do norte, parecia estranho. Então, abordamos ela para ver o
que era aquilo.
— Você abordou um navio Amaridiano?
— Abordamos pacificamente. O porão estava vazio e, quando
perguntei sobre os negócios deles, o capitão me disse que estavam
transportando uma nobre rica.
— É uma história muito emocionante — disse Aster secamente,
mas Aren acenou para silenciá-lo, o que era oportuno, pois Lara
estava pensando em maneiras de envenenar a bebida do homem
para fazê-lo calar a boca. — Você viu a mulher?
— Sim, Comandante. Uma mulher muito bonita com cabelos
dourados. Tinha uma empregada com ela, além de alguns militares
para escoltá-la.
— Você falou com eles?
Emra balançou a cabeça. — Não. Mas notei que o vestido dela
era do mesmo estilo que Sua Majestade às vezes usa.
— Ela era maridriniana?
Emra encolheu os ombros, as bochechas ficando vermelhas. —
Não tenho experiência suficiente para dizer. Sua Majestade é a
única maridriniana que eu já conheci.
— Talvez você devesse ter consultado sua mãe, Comandante —
interrompeu Mara. — Ela, afinal, lutou na guerra contra Maridrina e,
portanto, está bem ciente de como eles se parecem e falam. De
qualquer forma, pouco importa. Maridrinianos que não podem arcar
com as passagens da ponte muitas vezes arriscam a viagem nos
navios Amaridianos. Eles são baratos.
— E eu não teria pensado muito mais sobre isso, comandante —
respondeu Emra — exceto que passamos pelo território de
Midwatch a caminho de Eranahl e vimos o mesmo navio. E uma
banheira mercante dessas não chegaria a Maridrina e voltaria a
Midwatch em menos de dois dias.
A pele de Lara se arrepiou como se estivesse sendo observada,
apesar de não haver janelas na sala. Seu pai não usava mulheres
em batalha ou como espiãs, a única exceção sendo Lara e suas
irmãs. E ela pagou pela liberdade de suas irmãs em sangue.
— Alguém mais notou o mesmo? — Aren perguntou.
Cabeças balançaram, mas o comandante da guarnição ao norte
de Midwatch disse: — Nossos sentinelas avistaram um navio
mercante Amaridiano indo para o sul e leste, passando pelas ilhas
de Serrith e Gamire, mas parecia estar navegando à frente de uma
tempestade que se formava a oeste.
— Existe algo que devemos saber? — Mara perguntou.
O algo era que o pai de Lara estava caçando por ela. Lara sabia
disso e, a julgar pela tensão que sentiu irradiando de Aren, ele
também suspeitava. Mas nenhum deles poderia dizer isso sem
levantar a questão do porquê Silas estava tão interessado em
rastrear sua filha rebelde.
Aren balançou a cabeça. — Continue.
Foi a vez de Ahnna falar sobre Southwatch.
A princesa esfregou o queixo e depois tocou a réplica da ilha que
guardava tão ferozmente. — Todas as defesas de Southwatch estão
em boas condições. Os danos que foram causados durante a
temporada de tempestades conseguimos reparar durante os
intervalos entre elas. — Contando com a página em sua mão,
Ahnna detalhou o número de soldados parados, o esconderijo de
armas, os suprimentos de comida e água.
— Todos vocês sabem — ela abaixou os papéis — que Valcotta
foi capaz de manter um bloqueio parcial ao acesso de Maridrina a
Southwatch, apesar do pedágio que tinha em sua frota.
Esperávamos que iria prejudicar nossos lucros, mas a Imperatriz
valcottana é muito experiente para nos dar um motivo para reclamar.
Tínhamos navios mercantes valcottanos alinhados a dez metros de
distância em cada pausa entre tempestades, e eles compravam
tudo, muitas vezes com o preço usual. Quando os navios
Maridrinianos tiveram a chance de chegar ao porto, havia pouco
para comprar. Embora, para seu crédito, o Rei Silas estivesse
priorizando comida, não seu precioso aço e armas.
— Ainda está tudo em Southwatch? — Aren perguntou.
— Temos um armazém inteiro cheio de armas — respondeu
Ahnna. — Tudo estará enferrujado quando ele chegar a vê-las com
o ritmo em que as coisas estão indo. E, no entanto, eles continuam
chegando.
— Seus compradores pegam todo o aço e armamento que os
harendellianos oferecem em Northwatch — disse Mara. — E os
compradores valcottanos sabem disso.
Ahnna assentiu. — Mas ele não ousa usar seus recursos para
recuperá-lo. Não com seu povo tumultuando nas ruas. Eles estão
morrendo de fome. E estão desesperados. E eles culpam Ithicana
por tudo isso.
O coração de Lara pareceu parar quando um súbito
entendimento tomou conta dela. Ela tinha sido uma tola, imaginando
que poderia ter acabado. Tinha acreditado, com esperança ilusória,
que, sem a ajuda de sua espionagem, seu pai não teria como se
infiltrar nas defesas de Ithicana.
Seu pai esperou quinze anos, investiu uma fortuna e a vida de
vinte de suas filhas em sua aposta pela ponte. Ele mentiu,
manipulou e assassinou para manter tudo em segredo. Não havia
chance dele esquecê-la.
Não importando quanto custaria a Maridrina.
Ela precisava falar com Aren sozinha. Precisava avisá-lo de que
Ithicana estava em um perigo maior do que já estiveram. Precisava
fazer isso antes do término desta reunião, para que os indivíduos
que protegiam as costas de Ithicana voltassem suas guarnições
preparados para lutar.
Mas ela não podia pedir para falar com ele em particular sem
que todos questionassem o que ela e Aren estavam escondendo do
conselho.
Pegando a pilha de notas de Aren, Lara se abanou
vigorosamente, o suficiente para que os olhos se voltassem para
ela. Então pegou seu copo de água, propositadamente jogando-o no
chão, o copo quebrando.
Aren interrompeu sua discussão com Mara, virando-se para
olhá-la.
— Desculpe — ela murmurou.
Os olhos dele se estreitaram quando Lara balançou em seus
pés. — Está muito quente aqui.
— Você está bem?
— Acho que preciso me sentar — disse ela, depois caiu para o
lado nos braços dele.
38
AREN

—É — A
dentes enquanto a carregava pelo corredor. — Porque eu não
acredito merda nenhuma que você desmaiou.
— Nos leve a algum lugar onde possamos conversar — foi a
resposta sussurrada dela, confirmando sua suposição.
Abrindo a porta dos quartos, Aren acenou para os criados de
olhos arregalados que corriam atrás dele. — Muito tempo em pé. —
Então ele deu uma cotovelada na porta, Lara deslizando agilmente
de seus braços no momento em que a trava clicou.
— Temos apenas alguns minutos — ela disse — então ouça com
atenção. Meu pai formou uma aliança com Amarid.
Silêncio.
— Ithicana tem espiões em ambos os Reinos, Lara, e nenhum
deles relatou sequer uma sugestão de aliança entre Maridrina e
Amarid. Muito pelo contrário, na verdade.
— Sim, sem dúvida é nisso que meu pai deseja que você
acredite.
Aren ouviu silenciosamente enquanto Lara explicava as
conexões entre os ataques concentrados na área de Midwatch, o
vinho maridriniano e o rubi contrabandeado, e os navios sendo
financiados em Amarid com as mesmas pedras preciosas. Um fluxo
de pequenos detalhes e coincidências que ele poderia ter deixado
passar como nada, exceto pelo fato de saber por que Lara havia
sido enviada para Ithicana. Saber que Silas era seu inimigo.
— E há navios à espreita em torno de Midwatch. A nobre... —
Ela parou, hesitando. — A nobre é apenas uma desculpa para os
soldados estarem a bordo. Você sabe que eles estão me
procurando.
Foi lá que Aren interrompeu. — É claro que ele está procurando
por você, Lara, porque sem você, suas conspirações, sua aliança
com Amarid - tudo - terminará em nada.
— Mas...
Aren agarrou seus ombros. — Sem você, ele não tem nada.
Lara não o traiu, Aren acreditava nisso. Confiava nela com seu
coração, com a ponte, com seu povo. No entanto, o brilho frenético
nos olhos dela formava uma semente de dúvida em seu peito. —
Você tem certeza de que não deu a ele nenhuma pista em suas
cartas?
Lara encontrou seu olhar sem piscar. — Tenho certeza. Assim
como tenho certeza de que ele está criando uma situação em que
não precisa mais de mim para conseguir a ponte. Ele fará isso à
força.
Expirando profundamente, Aren disse: — Lara, ele já tentou isso
antes. Tentou e falhou e sofreu perdas catastróficas. Os
Maridrinianos se lembram de como era enfrentar nossos
destruidores de navios. Ver seus camaradas se afogarem nas
ondas, esmigalharem-se em rochas e serem despedaçados por
tubarões. Silas pode contratar todos os navios Amaridianos que ele
quiser - não será uma luta que seu povo apoiará.
— Por que você acha que ele está os deixando passar fome?
Seu sangue gelou abruptamente. — Para tentar nos fazer
romper o comércio com Valcotta.
Lara balançou a cabeça lentamente. — Essa é a última coisa
que ele quer. Meu pai não quer Ithicana como aliada; ele quer você
como seu inimigo. — Seus olhos brilhavam com lágrimas não
derramadas. — E ele fez isso. Meu pai transformou você no vilão de
Maridrina e logo eles virão em busca de seu sangue.
Mesmo enquanto as palavras saíam da garganta de Lara, Aren
sabia que eram verdadeiras. Que, apesar de tudo o que havia feito,
tudo o que sonhou para o futuro de Ithicana, a guerra estaria à sua
porta. Virando-se para longe de Lara, ele agarrou a coluna da cama
que dividia com ela, a madeira gemendo sob seus punhos.
— Você pode defender Ithicana contra as duas nações? — A voz
de Lara era suave.
Lentamente, ele assentiu. — Este ano sim. Mas é esperado que
nossas perdas sejam catastróficas. Ambos os Reinos têm muito
mais soldados para lançar contra nós do que Ithicana tem a perder.
E quais eram as opções dele? A maneira mais segura de parar
Silas seria unir forças com Valcotta, mas isso seria desastroso para
Maridrina. O povo de Lara morreria aos milhares, cortados por
lâminas ou morrendo de fome. Vidas inocentes perdidas - tudo por
causa da ganância de um homem. Entretanto, fazer o contrário
provavelmente significaria o fim de Ithicana, a menos que Harendell
intervisse, em que as ações passadas diziam o contrário.
— Não há solução — disse ele.
Silêncio.
— Pare de negociar com Valcotta. — As palavras de Lara saíram
tão baixas que ele mal as ouviu. — Tente minar o apoio a essa
guerra com Maridrina. Faça de Ithicana a heroína.
— Se eu romper as relações comerciais com Valcotta e usar
meus recursos para quebrar seu bloqueio a Maridrina, isso dizimará
nossos lucros. Ithicana precisa da renda que Valcotta obtém em
Southwatch para sobreviver. Não importa que eles que nos
retaliarão. Você quer que eu arrisque isso por especulações? Por
coincidências?
— Sim.
Silêncio.
— Aren, você me trouxe aqui porque acreditava que seu povo
precisava conhecer Maridrina, para que houvesse paz entre nosso
povo. Para que eles vissem Maridrina como um aliado, não como o
inimigo antigo. — Sua voz estava embargada. — Vai nos dois
sentidos. Maridrina também precisa ver Ithicana como uma aliada.
Como um amigo.
Os ombros de Aren se curvaram. — Mesmo que eu concorde
com você, Lara, nunca levarei o conselho a concordar. Eles
acreditam que compramos a paz com Maridrina - que demos a seu
pai o que ele queria, então ele não tem motivos para nos atacar.
Eles não arriscariam a receita valcottana com base na suposição de
que seu pai pode querer mais.
— Então talvez seja a hora de você contar a verdade sobre mim.
Talvez isso seja suficiente para provar a gravidade da nossa
situação.
Aren sentiu o sangue escorrer de seu rosto. — Eu não posso.
— Aren...
— Eu não posso, Lara. A reputação de Ithicana por crueldade
não é totalmente imerecida. Se eles descobrirem que você era uma
espiã... — Sua boca estava seca como areia. — Não seria uma
execução misericordiosa.
— Que assim seja.
— Não. — Ele cruzou o espaço entre eles em três passos,
puxando-a em seus braços, seus lábios pressionando contra seus
cabelos. — Não. Eu me recuso a entregá-la para ser executada. Eu
vou muito bem deixá-los me alimentar ao mar antes que eu
concorde com isso. Eu te amo demais.
E porque Aren sabia que ela era corajosa o suficiente para se
sacrificar, quer ele quisesse ou não, acrescentou: — Se eles
descobrissem a verdade sobre você, a última coisa que fariam seria
ajudar o seu povo. Eles vão me forçar a me aliar formalmente com
Valcotta, e o que aconteceria... Não tenho certeza se Maridrina
sobreviverá.
Seus ombros começaram a tremer e depois soluços rasgaram
sua garganta. — É impossível. Impossível salvar os dois. Sempre
foi.
— Talvez não. — Aren a empurrou em direção à cama. — Eu
preciso que você fique aqui e mantenha sua atuação.
Lara passou a mão na bochecha. — O que você vai fazer?
Parando com a mão na porta, Aren se virou para olhar para sua
esposa. — Seu pai enviou você para Ithicana com um propósito. Ele
falhou. Mas também te trouxe aqui por uma razão, Lara. E acho que
é hora de ver se minha jogada funcionou.
Ela não parou Aren quando ele saiu, seus longos passos
devorando os corredores do palácio enquanto formava as palavras
certas. Um discurso que ele usou inúmeras vezes, mas agora se
voltou para um propósito diferente. Chegando às câmaras do
conselho, Aren pegou sua chave, abriu a porta e entrou.
A conversa parou bruscamente, depois Ahnna disse: — Nana
enviou uma mensagem. A temporada de tempestades acabou. As
Marés de Guerra começaram.
Havia um recolhimento e mudança na sala, todos os
comandantes e segundos presentes agora desejosos de voltar a
vigiar. Para se preparar para afastar seus inimigos, quem quer que
sejam. Para terminar com essa reunião.
Mas Aren não terminou com eles.
— Há mais um assunto que precisamos discutir — disse ele, o
tom de sua voz fazendo com que todas as cabeças se virassem. —
Ou melhor, terminar de discutir. E esse é assunto é a situação do
povo maridriniano.
— O que tem a dizer? — Aster disse, trocando uma risada com
Mara. — Eles já fizeram suas escolhas.
— Assim como nós.
O sorriso desapareceu do rosto de Aster.
— Dezesseis anos atrás, Ithicana assinou um tratado de paz
com Maridrina e Harendell. Um tratado que ambos os Reinos
mantiveram, nenhum deles atacando nossas fronteiras no período
intermediário. Nossos termos com Maridrina foram cumpridos. Eles
me forneceram minha adorável esposa e diminuímos os custos para
usar a ponte.
— Suponho que você esteja indo direto ao ponto, Vossa
Excelência — disse Mara.
— Os termos foram cumpridos — Aren interrompeu — mas a
questão da natureza do acordo entre nossas duas nações
permanece sem resposta. É, como a comandante Mara descreveu
com tanta eloquência, um contrato comercial, onde Ithicana pagou a
Maridrina pela paz? Ou é uma aliança em que nossos dois Reinos
usam os termos do tratado para promover um relacionamento além
da troca de serviços, produtos e moedas?
Ninguém falou.
— O povo de Maridrina está morrendo de fome. Pouca terra é
fértil para a produção e, da que pode ser usada, mais da metade
está em desuso por falta de mão de obra. Os ricos ainda são
capazes de importar, mas e o resto? Com fome. Desesperados.
Enquanto nós, seus chamados aliados, negociamos com seus
inimigos, enchendo os bolsos valcottanos com bens que Maridrina
precisa desesperadamente, já que os valcottanos pagam mais.
Sentados à toa enquanto os navios valcottanos negam a Maridrina o
aço pelo qual eles pagaram. Não é à toa que eles chamam esse
tratado de farsa.
— O que está acontecendo em Maridrina é trabalho de Silas —
disse Ahnna. — Não é nosso.
— Isso é o que Silas está fazendo. Mas somos melhores em
sentar e assistir enquanto crianças inocentes vão para o túmulo
quando temos o poder de salvá-las? Silas não é mais reflexo do seu
Reino do que eu sou reflexo do meu, e nenhum de nós é imortal. Há
um grande cenário.
— O que você está sugerindo, Aren? — Perguntou Ahnna com a
voz apática.
— Estou sugerindo que Ithicana exija que Valcotta abandone seu
bloqueio. E caso eles recusem, que lhes seja negado aportar em
Southwatch. Que nos mostremos como aliados de Maridrina.
A sala explodiu em uma enxurrada de vozes, Aster é a mais alta
de todas. — Isso soa como as palavras de sua esposa, Vossa
Excelência.
— Soa mesmo? — Aren se igualou ao homem com um olhar. —
Há quanto tempo estou insistindo para formarmos sindicatos com
outros Reinos para que nosso povo tenha oportunidades além da
guerra? Para nós transformarmos Ithicana em algo mais do que
apenas um exército que guarda violentamente sua ponte? Quanto
tempo minha mãe insistiu antes de mim? Estas não são as palavras
de Lara.
Embora, de certa forma, elas fossem, porque, antes, ele só se
importava em proteger seu próprio Reino. Sobre como Ithicana
poderia se beneficiar com uma aliança. Agora Aren viu os dois
lados, e acreditava que era um homem melhor por isso.
— Mas, para ter uma aliança que permita ao nosso povo essas
oportunidades, não podemos simplesmente pegar. Temos que dar
algo em troca. A situação de Maridrina? É uma oportunidade de
mostrar a importância de Ithicana. Nossa importância.
— Isso é uma proclamação, então? — Aster cuspiu. —
Arriscarmos nossos próprios filhos e não termos voz sobre isso?
Se Aren pudesse ordenar, ele teria, por nenhuma outra razão
além de assumir a culpa caso as coisas dessem errado. Mas não
era assim que Ithicana funcionava — Nós votamos.
Lentos acenos e então a mãe de Emra disse: — Tudo bem
então. Mãos para cima para quem estiver a favor.
A dela subiu imediatamente, assim como a de Emra e quatro dos
outros comandantes mais jovens. Incluindo o voto de Aren, que fez
sete, e precisava de nove. Essa foi uma das razões pelas quais não
pediu para Lara voltar aqui com ele. Números ímpares garantiriam
que a votação não fosse interrompida. E tê-la ausente significava
que ninguém poderia responsabilizá-la.
Vários da velha guarda, incluindo Aster, recuaram, balançando a
cabeça. Mas Aren quase caiu para trás quando Mara levantou a
mão. Ao ver seu choque, o comandante da Northwatch disse: — Só
porque eu questiono você não significa que não acredito em você,
garoto.
A única que faltava votar era sua irmã.
Ahnna passou um dedo por Southwatch, a testa franzida. — Se
fizermos isso, isso significará a destruição de nosso relacionamento
com Valcotta. Significa guerra para Ithicana.
Aren olhou para a réplica de seu Reino. — Ithicana sempre
esteve em guerra, o que temos a mostrar?
— Estamos vivos. Nós temos a ponte.
— Você não acha que é hora de lutarmos por algo mais?
Ahnna não respondeu, e o suor escorria pelas costas de Aren
enquanto esperava a irmã gêmea dar seu voto. Esperou para ver se
deixaria de lado a desconfiança à Lara e à Maridrina. Se ela
arriscaria, esse salto de fé. Se lutaria ao lado dele, como sempre.
Ahnna deu à ilha um último carinho e depois assentiu uma vez.
— Eu jurei há muito tempo lutar ao seu lado, não importando as
probabilidades. Agora não é diferente. Conte com Southwatch.
39
LARA

O , L
Jor sobre a fogueira, gritando de rir quando um tronco estourou,
borrifando faíscas em suas mãos.
Pela primeira vez na história, os meses de trégua das
tempestades não significaram guerra para Ithicana, embora
parecesse que toda a nação prendera a respiração até que a
estação terminasse.
Depois do aviso de Aren para suspender o bloqueio ou arriscar
perder o direito de negociar no mercado de Southwatch - o qual a
Imperatriz valcottana havia ignorado - Ithicana dirigiu os navios da
frota valcottana para espreitar as costas de Southwatch, permitindo
acesso total às embarcações Maridrinianas. Aren começou a
carregar os navios de Ithicana cheios de alimentos e suprimentos,
que foram entregues em Vencia e distribuídos aos pobres. Aren
havia usado repetidamente os cofres e os recursos de Ithicana para
abastecer a cidade, até o povo maridriniano cantar seu nome nas
ruas.
Seja porque ele havia perdido o apoio de seu povo para a guerra
ou porque Lara não havia lhe dado as informações de que
precisava, o pai dela não levantou a mão contra Ithicana. Nem
Amarid, que parecia ainda estar lambendo suas feridas. E agora que
as tempestades estavam chegando, os dois Reinos haviam perdido
a chance por mais um ano. Ou talvez para sempre, se a força do
relacionamento entre o povo Ithicano e maridriniano fosse alguma
indicação.
Não que não houvesse consequências. A imperatriz respondeu
com uma carta dizendo a Aren que ele merecia tudo o que recebia
por dormir com cobras, transformando toda sua armada em
transporte mercante, na tentativa de diminuir ainda mais as receitas
da ponte, que já foram reduzidas pela metade por perder comércio
com a nação do sul. Os cofres foram drenados. Mas, na mente de
Lara, os civis Maridrinianos e Ithicanos estavam vivos. Eles estavam
a salvo. Nada mais importava.
Ela cumprira seu dever como princesa e Rainha.
— Seu irmão deve estar passando por Midwatch agora — disse
Jor, entregando-lhe outra caneca cheia de cerveja. — A maré está
baixa. Poderíamos dar um passeio pela ponte e fazer uma visita a
ele. Ter uma pequena reunião de família.
Lara revirou os olhos. — Vou passar. — Seu irmão Keris
finalmente havia convencido seu pai a dar permissão para
frequentar a universidade em Harendell para estudar filosofia, e ele
estava viajando pela ponte com toda sua comitiva de cortesãos e
serventes para começar seu primeiro semestre. Um dos
mensageiros havia chegado à frente deles, e ele disse que pareciam
um bando de pássaros, todos enfeitados com seda e jóias.
— Vamos — Aren murmurou em seu ouvido. — Estou ansioso
por uma noite com você em uma cama de verdade.
— Você vai adormecer no segundo em que sua cabeça tocar no
travesseiro. — Ela saboreava o crescente calor do desejo entre as
pernas, enquanto os dedos dele traçavam as veias de seus braços.
Ela ficou com ele no quartel durante todo o período das Marés de
Guerra, mas a maca estreita do soldado não foi propícia ao
romance. Embora eles tivessem se contentado.
— Eu aceito essa aposta. Vamos.
Ele a levou pela chuva suave, o pior da tempestade já havia
passado. Um dos soldados de Aren estava do lado de fora e ele
olhou para ela com surpresa. — Pensei que você já tivesse ido até a
casa.
— Ainda não. Jor continuava enchendo minha caneca. Eu acho
que não vão ter mais cerveja no momento em que seu turno
terminar.
— Pensava que já tinha visto você, isso é tudo. — O grande
guarda franziu a testa, depois deu de ombros. — Eles estão
sinalizando para uma chegada de suprimentos no píer, então
provavelmente teremos bebidas chegando.
— Mandarei enviar para casa — Aren assegurou ao homem,
puxando o braço de Lara.
— Obrigada, Vossa Excelência. — Mas Aren já a estava
arrastando pelo caminho, a corrente da enseada se levantando
atrás deles. A lama estremeceu sob as botas enquanto subiam a
trilha até a casa que mal haviam visitado nas oito semanas
anteriores, nenhum dos dois conseguindo relaxar o suficiente para
se afastar do quartel.
— Um banho, primeiro — disse Lara, pensando sonhadora nas
fontes quentes e fumegantes. — Você cheira a soldado.
— Você não está tão diferente, Majestade. — Aren a abraçou, a
luz da lamparina dançando loucamente de onde pendia na mão
dela. Ela girou em seu aperto, envolvendo as pernas em volta de
sua cintura. Um gemido suave escapou dos lábios dela quando se
pressionou contra ele, com as mãos dele segurando sua bunda.
Lara o beijou com força, deslizando a língua em sua boca,
depois riu quando ele escorregou, a lamparina caindo de suas mãos
e escurecendo. — Não se atreva a me deixar cair.
— Então pare de me distrair — ele rosnou. — Ou serei forçado a
arrastá-la para a lama.
Ela deslizou para o chão e pegou a mão dele, levando-o a em
uma corrida perigosa pela encosta até avistar o gato de Aren, Vitex,
sentado no degrau da frente, com o rabo tremendo de raiva.
— O que você está fazendo aqui fora? — Aren alcançou o gato
que sibilou e saltou para longe, mancando um pouco quando ele
disparou para as árvores.
Lara observou-o partir. — Ele está machucado.
— A fêmea que ele está perseguindo provavelmente arrancou
algum pedaço dele. Ele provavelmente mereceu. — Pegando-a pela
cintura, Aren a levantou pelas escadas e abriu a porta da casa.
Estava escuro.
— Parece que Eli esqueceu de ligar uma lamparina. — A pele de
Lara formigou quando encarou a escuridão. Aren mandou avisar a
casa que as Marés de Guerra haviam terminado, instruindo Eli a
escolher uma garrafa de vinho cara do porão para a mãe e a tia.
Mas o garoto Ithicano nunca negligenciou seus deveres.
— Talvez ele tenha bebido o vinho — Aren murmurou, traçando
beijos em sua garganta, as mãos encontrando seus seios. — Vai
fazer bem a ele.
— Ele tem quatorze anos. — A casa estava silenciosa. O que
não era exatamente incomum, mas havia algo sobre a natureza do
silêncio que passava por Lara de um jeito estranho. Como se
ninguém respirasse.
— Exatamente. Você sabe o tipo de coisa que estava fazendo
aos catorze anos?
Lara se afastou, ouvindo. — Eu deveria checá-lo.
Um suspiro ofendido saiu da garganta de Aren. — Lara, relaxe.
As tempestades estão aqui e elas cumprirão seus deveres. —
Puxando-a em seus braços, ele a beijou. Lentamente.
Profundamente. Afastando todos os pensamentos da cabeça dela,
enquanto a empurrava pelo corredor escuro para o quarto deles,
onde, felizmente, havia uma lamparina queimando. A chama
amarela que empurrava a escuridão diminuiu a agitação em Lara,
que afastou a cabeça quando os dentes do marido roçaram seu
pescoço, sentindo a leve brisa da janela aberta.
— Tomamos banho depois — ele rosnou.
— Não. Você fede. Saia e eu estarei lá em um momento.
Resmungando, ele tirou a túnica e as braçadeiras, jogando as
duas no chão, indo em direção à antecâmara e para além da porta
do pátio.
Tirando a capa com capuz, Lara pendurou a roupa úmida em um
gancho para secar e estava desabotoando a parte superior da
túnica quando seu coração disparou, seus olhos caindo em uma
carta com um selo familiar. Ao lado, uma faca gêmea à da sua
cintura estava em uma pequena pilha de areia vermelha, seus rubis
brilhando na luz. A faca que Aren havia jogado nas docas de Vencia.
O medo encheu seu estômago enquanto caminhava até a mesa,
pegando o papel pesado com os dedos dormentes e quebrando a
cera.
Querida Lara,

Mesmo em Vencia, ouvimos falar da afeição entre o Rei Ithicano e


sua nova Rainha, e nos enche o coração saber que você, por mais
improvável que seja, encontrou amor em seu novo lar. Aceite nossos
mais sinceros votos de felicidades para o seu futuro, por mais curto
que possa ser o esse.

Pai

— Aren — A voz dela tremia. — Por que essa carta não foi
entregue no quartel? Quem a trouxe?
Sem resposta.
Um movimento confuso de briga.
Uma maldição abafada.
Girando, ela pegou a faca na cintura. Então congelou. Aren
estava de joelhos no outro lado da sala. Uma figura encapuzada,
vestida com roupas idênticas às de Lara, segurava uma lâmina
brilhante na garganta. E, embaixo da cama ao lado deles, a mão de
um jovem se projetava, dedos cobertos de sangue seco. Eli...
— Olá, irmãzinha — disse uma voz familiar e a mulher estendeu
a mão e puxou o capuz.
40
LARA

— M . — O
garganta de Lara, seu peito cheio de emoção ao ver sua irmã
novamente, mesmo sabendo o que a presença da outra mulher
significava. Estava bonita e com cabelos loiros dourados.
Marylyn era a mulher nobre do navio que Emra havia abordado.
— Lara.
Aren começou a lutar, tirando Lara de seu transe. — Não se
mexa — Lara o avisou. — A lâmina dela está envenenada.
— Você conhece meus truques.
— Deixe ele ir.
— Nós duas sabemos que não é muito provável que isso
aconteça, pequena barata.
O antigo apelido queimou em seus ouvidos enquanto seus olhos
procuravam uma maneira de desarmar Marylyn sem matar Aren.
Mas não havia.
— Quem é essa mulher? — Aren exigiu saber.
— Lara é minha irmãzinha. Minha mentirosa, ladra e putinha
irmã.
As palavras eram como um tapa na cara. — Marylyn, eu vim aqui
para poupar você.
— Mentirosa. — A voz de Marylyn era puro veneno. — Você
roubou o que era meu por direito, depois me deixou apodrecer no
deserto. Você tem alguma ideia de quanto tempo levei para chegar
em Vencia e explicar ao Pai o que você fez?
— Eu fiz isso para proteger você!
— Lara, a mártir. — O lábio de Marylyn se repuxou em um
sorriso de escárnio. — Somente eu vi suas verdadeiras intenções,
sua puta mentirosa.
Lara olhou para ela, perplexa. A carta que havia deixado no
bolso de Sarhina explicava tudo. A intenção do pai de matar o resto
delas. Que Lara falsificando suas mortes e depois tomando o lugar
de Marylyn como Rainha de Ithicana era a única maneira de salvar
todas as vidas, exceto, talvez, a dela mesma. Ela lhes deu
liberdade. — Ele ia matar nossas irmãs. Era a única maneira. Por
que você não entende?
— Eu entendo perfeitamente. — Marylyn moveu a lâmina
pressionada contra a garganta de Aren, inclinando a ponta para
cima. — Você acha que eu não sabia que o pai pretendia matar o
resto de vocês? — Ela riu. — Você acha que me importei?
Esta não era a irmã dela. Não poderia ser. Marylyn sempre fora a
mais doce. A mais gentil. Àquela que precisava ser protegida.
A melhor atriz.
— Você disse que suas irmãs estavam mortas. — A voz de Aren
a puxou de volta para o momento.
— O que agora, ela tem mantido segredos? — Marylyn acariciou
sua bochecha com a mão livre, rindo quando ele recuou. — Permita-
me apresentá-lo a realidade, Majestade. Ninguém forçou Lara a vir a
Ithicana para espionar, ela escolheu. Exceto que "escolher" nem
sequer é uma palavra forte o suficiente. Lara conspirou contra todos
nós a fim de garantir que ela seria Rainha de Ithicana, para que ela
tivesse a glória de jogar seu povo às lâminas Maridrinianas.
— Isso não é verdade — Lara sussurrou.
— Essa é a mulher com quem você se casou, Majestade. Uma
mentirosa como nenhuma já conhecida. Pior que isso, ela é uma
assassina. Eu a vi matar. Mutilar. Torturar. Tudo a sangue frio. Tudo
um treinamento para o que ela pretendia fazer com o seu povo.
Essa parte era verdade. Uma dolorosa e deplorável verdade —
Todas nós fizemos isso, Marylyn. Nenhuma de nós teve escolha.
A irmã mais velha revirou os olhos. — Sempre houve uma
escolha. — Os olhos dela se voltaram para Aren. — O que você
acha que ele teria feito na mesma posição? Você acha que ele teria
matado um homem inocente só para se salvar?
Não.
— Barata egoísta, sempre se colocando em primeiro lugar.
Embora eu possa entender porque você decidiu ficar por perto
depois de enfiar a faca nas costas dele. — Ela arrastou um dedo
pelo peito nu de Aren. — Que prêmio ele é. Não nos disseram isso
durante nossas aulas no complexo. Eu poderia testar algumas de
suas habilidades antes de cortar sua garganta.
A fúria ardeu no peito de Lara e ela soltou a faca do cabo de
jóias, embora o pensamento de machucar sua irmã a deixasse
doente. — Não toque nele.
Marylyn apertou os lábios. — Por quê? Porque ele é seu?
Primeiro que ele é meu por direito. Segundo é que, mesmo se eu
pretendesse deixá-lo vivo, o que não quero, você realmente acha
que ele vai querer algo com você agora que entende que tipo de
mulher você é? Depois de descobrir o que você fez?
— Eu não fiz nada.
Pegando do bolso, Marylyn extraiu um grosso pedaço de
pergaminho com bordas douradas.
Não.
— Reconhece isso, Vossa Majestade? — Marylyn segurou-o na
frente do rosto de Aren. — Você escreveu no último outono em
resposta ao pedido de meu pai a manter-se fiel ao espírito do
Tratado dos Quinze Anos. Não é a resposta mais caridosa, embora
eu suponho que você terminou ajudando no final. — Todo o corpo
da irmã tremia de tanto rir.
Não é possível.
Ela havia destruído todas as páginas.
— Existe um tipo de tinta que fica invisível até ser pulverizada
com outro agente. Nesse ponto, torna-se bastante visível. Se você
olhar nos aposentos de Lara, tenho certeza de que encontrará um
pote, um pouco gasto.
Marylyn virou a carta, e Lara não pôde fazer nada enquanto Aren
lia linha após linha de sua letra elegante expondo todos os segredos
de Ithicana, uma estratégia para se infiltrar na ponte escrita
detalhadamente.
Ela entregou Ithicana de joelhos.
— Lara? — Os olhos de Aren queimaram nos dela e a angústia
neles era como ter seu coração arrancado de seu peito.
— Eu não fiz... — Ela fez. — Eu escrevi isso antes. Antes de
saber a verdade. — Antes que ele arriscasse sua vida para salvar a
dela. Antes de levá-la para sua cama. Antes que confiasse nela por
tudo. — Eu pensei que tinha destruído todas as cópias. Isto é... Isto
é um erro. Eu te amo.
Ela nunca havia dito isso antes. Nunca disse a ele que o amava.
Por que ela nunca disse isso antes?
— Você me ama. — Sua voz era apática. — Ou você estava
apenas fingindo?
— Como isso é trágico. — O relógio badalou pontuando as
palavras de Marylyn. — Embora eu suspeite que esteja prestes a
piorar, já que o grupo de cortesãos de Keris cruzou seu caminho
com um carregamento de armas de Harendell.
Uma corneta soou. Um pedido de ajuda. Depois, outra e outra,
até que as notas nada mais eram do que uma mistura de ruídos.
— Esses cortesãos saíram dos cais nas ilhas de Aela e de
Gamire e atacaram seus postos da guarda pela retaguarda,
desativando os destruidores de navios para que os navios
Amaridianos carregados com centenas de nossos soldados
pudessem desembarcar sem serem atingidos. Mesmo agora, muitos
deles estão migrando para Northwatch e Southwatch para atacá-los
por trás. E temos homens usando as próprias cornetas sinalizadoras
de Ithicana para garantir que ninguém venha em seu auxílio. Isso é
apenas o começo, é claro. As instruções de Lara eram bastante
detalhadas. Especialmente em como podemos tomar Midwatch.
O pânico brilhou nos olhos de Aren, e ela sabia o que estava
pensando: todos os seus soldados - todos os seus amigos -
estavam sentados no quartel, com a guarda baixa.
Marylyn continuou a tagarelar, mas a mente de Lara disparou. Se
eles pudessem descer para o quartel, talvez pudessem fechar a
corrente a tempo. E depois enviar um sinal para Southwatch
avisando-os. Mas isso era impossível, a menos que ela desarmasse
Marylyn.
— Não faça isso. Não seja mais o peão de nosso pai.
O rosto da irmã ficou sombrio. — Eu não sou o peão de
ninguém.
— Você não é? Você faz o que ele pediu e para quê? Tudo o que
nos disseram quando crianças era uma mentira destinada a
alimentar um ódio irracional a Ithicana. Para transformar-nos em
fanáticas que não parariam por nada para atacar o inimigo. Mas
nosso pai era o vilão. Ele é o opressor de quem Maridrina precisa se
livrar. Nós fomos enganadas, Marylyn. Por que você não vê isso?
— Não, Lara. Você foi enganada. — Marylyn balançou a cabeça
com piedade, a parte de trás da perna batendo na cama. — Eu
sempre vi claramente. Você perguntou, o que eu tenho a ganhar?
Levando suas cabeças de volta a Vencia papai prometeu me encher
de riquezas. Se eu caçar nossas outras irmãs rebeldes, ele me fará
herdeira. Serei Rainha de Maridrina e mestre da ponte. — Ela sorriu.
— E não mais Ithicana.
A raiva consumiu Lara como um animal sensível, rondando
através dos músculos e tendões, fazendo os dedos flexionarem na
faca à mão. Mestre Erik sempre a alertou que a raiva a deixaria
desleixada. Faria com que ela cometesse erros. Mas ele mentiu. A
raiva deu-lhe foco. E foi esse foco que captou a leve mudança nos
lençóis da cama atrás de Marylyn. Isso permitiu que ouvisse o leve
assobio sobre a batida rápida de seu coração. Aren, nascido e
criado neste Reino selvagem, também o ouviu.
— Você está se iludindo. — Lara observou a forma se movendo.
— Papai sabe que você é um "cachorro louco". E, uma vez que
você tenha feito o trabalho sujo por ele, a deixará de lado. Ou eu
poderia fazer isso por ele.
Ela jogou a faca.
A lâmina cortou o ar, não tocando em Marylyn, mas afundando
profundamente na cama, os lençóis agora uma enxurrada de
movimento.
— Perdeu sua manha. — Sua irmã gargalhou quando Aren se
inclinou empurrando seu peso contra ela. Eles tombaram contra a
cama e a cobra ferida atacou. Marylyn gritando quando as presas
afundaram em seu ombro. Girando, ela soltou Aren e enfiou sua
lâmina na cobra, prendendo seu corpo no colchão.
Lara já havia cruzado o quarto. Então bateu em Marylyn, levando
as duas a rolarem no chão. Elas se agarraram, punhos e pés
empurrando com a intenção de ferir. Mutilar. Matar. Golpe após
golpe, ambas igualmente bem treinadas. No entanto, quando se
tratava dessa coisa, a violência, Lara sempre foi melhor.
Segurando a cabeça de Marylyn em um gancho, Lara sussurrou:
— Você não é a Rainha de nada — em seguida, apertou os braços
quebrando o pescoço da irmã.
A luz saiu dos olhos da outra mulher e o tempo pareceu parar.
Como isso aconteceu? Parecia uma vida atrás que ela tinha
tomado a decisão de se sacrificar para salvar suas irmãs. Ser
campeã de Maridrina. Para destruir o Reino da Ponte. Tudo mudou
desde então. Suas crenças. Sua lealdade. Seus sonhos. No
entanto, agora uma de suas irmãs estava morta por suas mãos e
Ithicana estava à beira de cair sob o jugo de Maridrina.
Apesar de tudo, seu pai ainda havia vencido.
— O que você fez?
O horror na voz de Aren fez seus dentes se apertarem. — Eu
não pretendia que isso acontecesse.
Ele tinha um facão na mão, mas seu braço tremia quando
apontou para ela. — Quem é você? O que você é?
— Você sabe quem eu sou.
Sua respiração estava irregular. Com os olhos nunca a deixando,
ele entendeu o braço para recuperar o pedaço de papel que era a
condenação de Ithicana, relendo as linhas, os pensamentos
queimando em seu rosto. Eles não podiam lutar contra isso.
Houve uma confusão lá fora. Com o som de homens gritando.
— Eu não vou deixar você para trás para me condenar ainda
mais — Aren sibilou.
Lara não lutou quando ele amarrou seus pulsos com o laço de
uma das cortinas. Ou quando puxou uma fronha sobre sua cabeça e
a arrastou para fora da sala, mesmo quando soldados entraram na
casa. Vozes Ithicanas, a princípio. Depois Maridrinianas. Então,
caos.
Gritos cortaram o ar, lâminas contra lâminas, e ela foi empurrada
de um lado para o outro. Cornetas ainda soavam, enchendo o ar
com pedidos de ajuda que nunca chegariam. O ar da noite encheu
seu nariz, e ela estava caindo, joelhos batendo dolorosamente
contra os degraus. Braços puxando-a para cima e então eles
estavam correndo.
Ramos chicoteando seu rosto, raízes tropeçando topando em
seus pés, o chão escorregadio de lama.
Vozes sibiladas. — Por aqui, por aqui.
Gritos de perseguição.
— Para baixo, para baixo. Você a amordaçou?
O rosto dela estava pressionado contra o chão, terra molhada
passando pela fronha. Uma pedra cavou em suas costelas. Outra
pressionou bruscamente contra seu joelho. Tudo parecia distante,
como se estivesse acontecendo com ela em um sonho. Ou com
outra pessoa.
Eles continuaram a noite toda, a chuva forte ajudando-os a evitar
o que pareciam inúmeros soldados Maridrinianos caçando-os por
Midwatch, embora logicamente soubesse que não poderiam ser
tantos. A essa altura, a elite de seu pai já teria descoberto o corpo
de Marylyn - e a ausência dela e de Aren - e não havia dúvida de
que encontrá-los tinha quase a mesma prioridade que tomar a
ponte.
Somente quando o amanhecer chegou, filtrado em cinza pelas
nuvens e o tecido cobrindo seu rosto estava encharcado, eles
encontraram abrigo. Havia vozes familiares no grupo. Jor e Lia.
Outros da guarda de honra. Seus ouvidos se voltaram para os de
Aren, mas nem uma vez o escutou entre os sussurros.
Ainda assim, ela tinha certeza de que ele estava lá. Sentiu sua
presença. Sentiu a culpa, a raiva e a derrota irradiando dele em
ondas quando aceitou a queda de seu Reino. Sabia, instintivamente,
quando ele mandou todos embora para que estivesse sozinho com
ela.
Lara esperou por um longo tempo para ele falar, se preparou
para a culpa e acusações. Aren permaneceu calado.
Quando não aguentou mais, Lara se levantou, erguendo os
pulsos amarrados para puxar a fronha da cabeça, piscando na
penumbra.
Aren estava sentado em uma pedra a alguns passos de
distância, cotovelos apoiados nos joelhos, cabeça baixa. Ele ainda
estava sem camisa, e a chuva caía em torrentes pelas costas
musculosas, lavando manchas de sangue e lama. Um arco e aljava
repousavam sob o abrigo de uma saliência. Um facão estava preso
à cintura. Em sua mão, ele segurava a faca dela - a que jogou na
cobra - e ele a virava repetidamente como se fosse algum artefato
que nunca tinha visto antes.
— Alguém saiu? — Sua voz raspou como uma lixa sobre
madeira áspera. — Para avisar Southwatch?
— Não. — Suas mãos pararam, a ponta afiada da lâmina
brilhando com a chuva. — Taryn tentou. Os Maridrinianos usaram
nossos próprios destruidores de navios com proficiência chocante.
Ela está morta.
Dor aguda penetrou no estômago de Lara, sua boca ficou com
um gosto azedo. Taryn estava morta. A mulher que nem queria ser
soldada estava morta, e foi por sua culpa. — Eu sinto muito.
Ele levantou a cabeça e Lara recuou com a fúria de seus olhos.
— Por quê? Você conseguiu tudo o que queria.
— Eu não queria isso. — Exceto que ela tinha, em um momento.
Queria destruir Ithicana. Esse desejo os levou a esse ponto, não
importando o quanto se arrependesse.
— Chega de suas mentiras. — Ele estava de pé em um
movimento suave, caminhando em direção a ela, faca na mão. —
Ainda não tenho um relatório completo, mas sei que a ponte caiu
por seu pai, usando um plano para se infiltrar em nossas defesas,
melhor do que eu poderia imaginar. Seu plano. — Quando ele
levantou a voz, ela não pôde deixar de vacilar, sabendo que ainda
estavam sendo caçados.
— Eu pensei que tinha destruído todas as evidências. Não sei
como me escapou...
— Cale-se! — Ele levantou a lâmina. — Meu povo está morto e
morrendo por sua causa. — A faca escorregou de seus dedos. —
Por minha causa.
Puxando o maldito pedaço de papel do bolso, ele o segurou no
rosto dela. Não o lado em que ela havia escrito, mas o que ele havia
escrito, a letra fluida e clara. Palavras que convenceram o pai a
reconsiderar sua guerra com Valcotta e a colocar seu povo à frente
de seu orgulho. Seu peito ficou vazio enquanto ela lia o final.
Entretanto, que seja dito, se você tentar matar sua espiã,
Ithicana tomará como um ato de agressão contra sua Rainha e a
aliança entre nossos Reinos será irrevogavelmente desfeita.
Aren caiu de joelhos na frente dela, segurando as laterais de seu
rosto, os dedos emaranhados em nos cabelos. Lágrimas brilhavam
em seus olhos. — Eu te amei. Eu confiei em você. Comigo mesmo.
Com o meu Reino.
Amou. Pretérito. Porque ela nunca mereceu o amor dele e agora
o perdeu para sempre.
— E você estava apenas me usando. Apenas fingindo. Foi tudo
um ato. Um plano.
— Não! — Ela arrancou a palavra de seus lábios. — No começo
sim. Mas depois... Aren, eu amo você. Por favor, acredite nisso, pelo
menos.
— Eu costumava me perguntar por que você nunca disse isso.
Agora eu sei. — Seu aperto no rosto aumentou, então ele afastou as
mãos. — Você diz isso agora apenas porque está tentando salvar
sua própria pele.
— Isso não é verdade!
Explicações brigaram entre si para sair qual de sua boca
primeiro. Maneiras de fazê-lo entender. Maneiras de fazê-lo
acreditar nela. Todas elas morreram nos lábios quando pescou a
faca da lama.
— Eu deveria te matar.
Seu coração palpitava no peito como um pássaro enjaulado.
— Mas, apesar de tudo, tudo, o que você fez, não tenho
coragem de enfiar essa lâmina em seu sombrio coração
maridriniano.
A lâmina passou entre seus pulsos, cortando a corda em um
puxão limpo. Ele pressionou o punho da faca na palma da mão dela.
— Vá. Corra. Não tenho dúvida de que você conseguirá sair
desta ilha. — Sua mandíbula se apertou. — É da sua natureza
sobreviver.
Lara olhou para ele, com os pulmões paralisados. Ele não a
estava deixando ir, estava... banindo-a. — Por favor, não faça isso.
Eu posso lutar Posso te ajudar. Eu posso...
Aren empurrou seus ombros com força o suficiente para fazê-la
tropeçar para trás. — Vá! — Então ele se abaixou e pegou seu arco,
armando-o com uma das flechas pretas.
Firmando-se em pé, ela abriu os lábios, desesperada para não
perder a chance de desfazer o dano que havia causado. A chance
de lutar contra o pai. De libertar Ithicana.
De conquistar Aren de volta.
— Vá! — Ele gritou a palavra para ela, mirando a flecha na testa
dela, enquanto lágrimas caíam pelas bochechas. — Eu nunca mais
quero ver seu rosto. Eu nunca mais quero ouvir seu nome. Se
houvesse uma maneira de tirar você da minha vida, eu faria. Mas
até encontrar forças para colocá-la em uma cova, isso é tudo o que
tenho. Agora corra!
Seus dedos tremeram na corda do arco. Ele faria. E isso o
mataria.
Lara se virou na lama, correndo pela encosta, os braços
balançando vigorosamente. Suas botas escorregaram e deslizaram
quando pulou sobre as árvores caídas e bateu nas samambaias.
E parou. Apoiando a mão em uma árvore, ela se virou. A tempo
de ver a flecha dele raspando seu rosto, batendo na árvore ao lado
dela.
Ela apertou uma mão trêmula contra a linha cortada em sua
bochecha, uma gota de sangue correndo entre os dedos. Com os
olhos fixos nela, Aren puxou outra flecha de sua aljava, encaixou-a e
mirou a ponta afiada. Os lábios dele se moveram. Corra.
Ela correu, nunca olhando para trás de novo.
41
LARA

—O .
O barman levantou uma sobrancelha sobre a caneca que estava
polindo com um pano sujo, mas não fez nenhum comentário
enquanto enchia o copo com o vinagre que a taberna chamava de
vinho. Não que isso importasse; não era como se ela pretendesse
saboreá-lo.
Virando o conteúdo em três goles, Lara empurrou o copo de
volta através do bar — Encha.
— Meninas bonitas como você poderiam se meter em encrenca
por beber do jeito que você bebe, senhorita.
— Uma garota bonita como eu cortará a garganta de qualquer
um que lhe causar problemas. — Ela deu um sorriso que mostrava
todos os dentes — Então, que tal você não tentar o destino e
apenas entregar a garrafa. — Ela jogou algumas moedas
estampadas com o rosto do Rei Harendell na direção do homem. —
Aqui. Nos salva de ter que trocar mais palavras essa noite.
Mais sábio do que parecia, o barman apenas deu de ombros,
pegou as moedas e entregou-lhe uma garrafa cheia de vinagre.
Mas, mesmo bêbada, considerou as palavras dele. O rosto dela era
familiar aqui. Era hora de encontrar um novo poço para se afogar
todas as noites.
O que era uma pena. Cheirava a cerveja e vômito derramados,
mas ela gostava desse lugar.
Bebendo diretamente da garrafa, ela olhou obscuramente a sala,
mesas cheias de marinheiros de Harendell vestidos com calças
largas e aqueles estúpidos chapéus pescadores que nunca
deixavam de lembrá-la de Aren. Um trio de músicos tocava no
canto. Garçonetes levavam bandejas de carne assada fumegante e
grossas sopas para os clientes, o cheiro deixando-a com água na
boca. Acenando, então, para uma das mulheres com uma tigela de
sopa passando na frente dela momentos depois.
— Aqui está você, Lara.
Merda. Estava na hora de partir. Há quanto tempo estava nesta
cidade? Dois meses? Três? Na névoa do álcool, ela perdeu a noção
dos dias, parecendo que foi a uma vida inteira e era apenas ontem
quando arrastou o barco surrado para uma praia de Harendell,
faminta e as roupas ainda vermelhas com o sangue de soldados
Maridrianos que matou para fugir de Midwatch.
O cheiro de sopa fez cócegas em seu nariz, mas seu estômago
azedou, então ela empurrou a tigela para longe, bebendo, no lugar,
a garrafa.
O mais inteligente seria se mudar para o interior, para o norte e
para longe de todos aqueles que conheciam e se importavam com
Lara, A Rainha Traidora de Ithicana. Os agentes de seu pai a
procurariam - talvez outra de suas irmãs, pelo que sabia - e uma
náufraga bêbada como ela era um alvo fácil.
Mas ela continuou encontrando desculpas para não ir. O clima. A
facilidade de roubar moedas. O conforto dessa pocilga de taberna.
Só que ela sabia que a razão de sua estadia era aqui porque as
notícias de Ithicana estavam nos lábios de todos. Noite após noite,
se sentava no bar, ouvindo os marinheiros conversando sobre essa
batalha e aquilo, esperando e rezando para que a maré mudasse.
Que, em vez de resmungar sobre o crescente domínio de Maridrina,
ela ouviria que Aren estava de volta ao poder. Que Ithicana tomou
posse da ponte novamente.
Esperanças desperdiçadas.
A cada dia que passava, as notícias pioravam. Ninguém em
Harendell ficou particularmente satisfeito com o fato de Maridrina
agora controlar a ponte - os velhos já lamentavam os bons e velhos
tempos de eficiência e neutralidade Ithicana - e houve muita
conversa sobre a probabilidade do Rei harendelliano intervir. Exceto
que, mesmo assim, Lara sabia que não seria até depois da
temporada de tempestades, daqui a seis meses. E a essa altura... a
essa altura, seria tarde demais.
—... batalha com os Ithicanos... o Rei... prisioneiro.
Os ouvidos de Lara se atiçaram, inquietos afastando a névoa do
vinho. Virando-se para a mesa atrás dela, que estava cheia de um
grupo de homens corpulentos com bigodes igualmente grossos, ela
perguntou: — O que você disse sobre o Rei da Ithicana?
Um dos homens sorriu lascivamente para ela. — Por que você
não vem aqui e eu vou lhe contar tudo o que há para saber sobre o
pobre tolo? — Ele bateu em um joelho, coberto de manchas de
graxa.
Pegando a garrafa, Lara se aproximou da mesa e a colocou
entre as canecas. — Aqui estou. Agora, o que você estava dizendo?
O homem deu um tapinha no joelho. Ela balançou a cabeça. —
Estou bem em pé, senhor.
— Eu ficaria melhor com essa sua bela bunda no meu colo. — A
mão dele girou em um arco largo, estalando contra o traseiro dela,
onde permaneceu, seus dedos carnudos cavando sua carne.
Lara esticou o braço para trás, segurando com firmeza o pulso
dele. O idiota teve a coragem de sorrir. Puxando com força, ela
girou, batendo a palma da mão contra a mesa e, um batimento
cardíaco depois, cravando sua adaga nela.
O homem gritou e tentou se afastar, mas a lâmina da faca estava
presa na madeira embaixo de sua mão.
Um dos outros a alcançou, mas caiu para trás, com o nariz
quebrado.
Outro mirou o punho em seu rosto, mas ela se esquivou
facilmente, a ponta da bota pegando-o na virilha.
— Agora. — Ela descansou uma mão na faca e deu uma torção
suave. — O que você estava dizendo sobre o Rei de Ithicana?
— Que ele foi capturado em uma briga com os Maridrinianos. —
O homem estava chorando, se contorcendo em seu assento. — Ele
está preso em Vencia.
— Você está certo?
— Pergunte a qualquer um! As notícias chegaram de
Northwatch. Agora, por favor!
Lara o olhou pensativa, nada em seu rosto revelando o terror
crescente em suas entranhas. Soltando a faca, ela se inclinou. —
Se você der tapa em outra bunda eu pessoalmente vou te encontrar
e cortar essa mão fora.
Girando nos calcanhares, ela acenou com a cabeça para o
barman e saiu pela porta, mal sentindo a chuva que caía em seu
rosto.
Aren havia sido capturado.
Aren era um prisioneiro.
Aren era refém de seu pai.
O vento puxava e torcia seus cabelos. O último pensamento
repetiu-se infinitamente em sua mente quando Lara caminhou em
direção à pensão, as pessoas pulando fora de seu caminho quando
passou. Havia apenas uma razão para o pai manter Aren vivo: usá-
lo como isca.
Subindo os degraus dois de cada vez, ela destrancou a porta do
quarto, batendo-a atrás dela. Bebendo água diretamente de uma
jarra, tirou o simples vestido azul que usava e vestiu suas roupas
Ithicanas, embalando rapidamente seus poucos pertences em um
saco. Então, com um pedaço de carvão na mão, ela se sentou à
mesa.
O colar estava quente por descansar em sua pele, as
esmeraldas e diamantes brilhando à luz das velas. Ela não tinha o
direito de usá-lo, mas o pensamento de o colar ser roubado, de ser
usado por qualquer outra pessoa era insuportável, então nunca o
tirava.
Ela fez isso agora.
Colocando o colar no papel, Lara traçou as jóias com o carvão, a
névoa do vinho diminuindo lentamente enquanto trabalhava.
Quando o desenho terminou, ela devolveu o colar à garganta e
levantou um mapa completo de Ithicana, com o olhar fixo no grande
círculo a oeste do resto.
Isso é loucura, a parte lógica de sua mente gritou. Você mal sabe
nadar, é uma marinheira de merda e está no meio da temporada de
tempestades. Mas seu coração, que era frio e ardente desde que
fugiu de Aren, em Midwatch, agora queimava com uma ferocidade
que não seria negada.
Colocando o mapa no bolso, ela apertou as armas e saiu para a
tempestade.

Lara levou três semanas para chegar lá, e quase morreu uma dúzia
de vezes ou mais durante a jornada. Tempestades violentas a
perseguiram até dentro de pequenas ilhas, ela gritando com o vento
enquanto arrastava seu pequeno barco por cima da tempestade. Ela
lutou contra cobras que pensavam se esconder sob a cobertura de
seu barco; rajadas de vento esquisitas que rasgavam sua vela
simples; e ondas que a afogavam, roubando todos os seus
suprimentos.
Mas foi chamada de barata por um motivo, e aqui estava ela.
O céu estava cristalino, o que provavelmente significava que o
pior tipo de tempestade estava iminente, e o sol quase a cegou nos
reflexos das ondas. O barco dela, a vela abaixada, balançava um
pouco além da sombra do enorme vulcão, o único som sendo as
ondas que batiam contra os penhascos.
Lara ficou de pé, com os joelhos tremendo enquanto segurava o
mastro para se equilibrar. Havia um brilho da luz do sol batendo em
vidro nas profundezas das encostas da selva, mas mesmo sem ele,
sabia que estavam assistindo-a.
— Abra — ela gritou.
Em resposta, um estalo alto dividiu o ar. Lara xingou, observando
uma pedra voar pelo ar em sua direção. Ela atingiu a água a alguns
passos de distância, encharcando-a, as ondas quase virando seu
barco.
Voltando seus pés para onde estava encolhida no fundo, ela
enfiou os dedos no mastro, lutando para dominar seu medo da água
sua volta.
— Ouça-me, Ahnna! — Os outros Ithicanos teriam batido nela de
início. Somente a princesa se preocupou em aterrorizar primeiro. —
Se você não gostar do que tenho a dizer, pode me jogar de volta no
mar.
Nada se mexeu. Não havia outro som além do rugido do oceano.
Então, um chocalhar partiu o ar, o som característico dos portões
para Eranahl se abrindo. Pegando o remo, Lara manobrou para
entrar.
Rostos familiares cheios de uma fúria congelante a encontraram
quando o barco bateu contra os degraus. Ela não lutou quando Jor a
puxou pelos cabelos, as escadas de pedra arranhando suas canelas
enquanto a arrastava, rosnando: — Eu cortaria seu coração aqui e
agora, se não fosse pelo fato de Ahnna merecer a honra. — Ele
puxou um capuz sobre a cabeça dela, obscurecendo sua visão.
Eles a levaram ao palácio, os sons e cheiros dolorosamente
familiares e, enquanto contava os passos e as curvas, Lara sabia
que estava sendo levada para a sala do conselho. Alguém,
provavelmente Jor, chutou a parte de trás de seus joelhos quando
eles entraram, e ela caiu, palmas batendo no chão.
— Você tem muita coragem de voltar, vou lhe dar isso.
O capuz foi arrancado da cabeça dela. Se levantando, Lara
encontrou o olhar de Ahnna, seu estômago apertando ao encarar a
cicatriz cruel que agora corria do meio da testa da mulher até a
bochecha. O fato dela não ter perdido os olhos era um milagre. Ao
seu redor havia meia dúzia de soldados, todos com marcas de
terem escapado por pouco de Southwatch com vida. E atrás deles,
pendurado na parede, havia um grande mapa de Maridrina.
— Me dê uma boa razão para eu não cortar sua garganta, sua
vadia traidora.
Lara forçou um sorriso em seu rosto. — Não é muito criativo.
Uma bota a encontrou nas costelas, virando-a. Pressionando a
mão contra seu lado, Lara lançou um olhar sombrio para Nana, a
dona da bota, antes de voltar sua atenção para a mulher no poder.
— Você não vai cortar minha garganta porque meu pai tem Aren
como prisioneiro.
A mandíbula de Ahnna se apertou. — Um fato que não ajuda
para o seu lado.
— Precisamos recuperá-lo.
— Nós? — A voz da princesa era incrédula. — Seu pai tem Aren
dentro de seu palácio em Vencia, que tenho certeza de que é uma
verdadeira fortaleza guardada pela elite do exército maridriniano.
Meus melhores não foram capazes de entrar. Cada um deles
morreu tentando. De qualquer forma, me divirta com o porquê de
que você será de qualquer ajuda. Você vai seduzir até entrar, vadia?
Lara a encarou, o silêncio pairando na sala sufocante.
Por quinze anos, ela foi treinada em como se infiltrar em um
Reino impenetrável.
Como descobrir pontos fracos e explorá-los.
Como destruir seus inimigos.
Como ser impiedosa.
Ela nasceu para isso.
No entanto, Lara não disse nada porque as palavras não
convenceram essas pessoas que acreditavam - com razão - que ela
era uma mentirosa.
Inspire. Expire.
Ela se moveu.
Estes eram guerreiros endurecidos pela batalha, mas o elemento
de surpresa era dela. E ela era o que era. Sem segurar nada, ela
girou, punhos e pés um borrão enquanto desarmou os soldados ao
seu redor, derrubando-os. Afastando-os.
Ahnna lançou-se com um grito, mas Lara passou um pé em volta
de suas pernas e rolou com ela, escalando a princesa alta para um
estrangulamento, a faca da outra mulher na mão livre.
O silêncio encheu a sala, os guerreiros se recuperando e a
olhando com um novo e saudável respeito, enquanto pensavam em
como poderiam desarmá-la.
Lara lançou os olhos pela sala, encontrando cada olhar
individualmente antes de soltar a garganta de Ahnna. A outra mulher
se afastou, ofegando, olhos cheios de choque. Lara levantou-se.
— Você precisa de mim, porque eu conheço nosso inimigo. Fui
criada por eles para ser sua maior arma, e você viu em primeira
mão o que posso fazer. O que eles nunca consideraram é que a
maior arma deles poderia ser lançada contra si próprios. — E Lara
não era a única arma que eles criaram: havia dez outras jovens
mulheres por aí que lhe tinham uma dívida vitalícia, que ela
pretendia cobrar.
— Você precisa de mim porque eu sou a Rainha de Ithicana. —
Girando, ela atirou a faca da mão, observando-a cravar no mapa,
marcando Vencia - e Aren - com perfeita precisão. — E chegou a
hora de meu pai ficar de joelhos.

Obrigada por lerem! A história da Lara e do Aren continua em THE


TRAITOR QUEEN.

Você também pode gostar